Sombras Do Sol - N. K. Jemisin

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SUMÁRIO

Capa
Sumário
Folha de rosto
Epígrafe
1. O teste do Compartilhador
2. O teste do caçador
3. O teste da dama
4. Insônia
5. O portador do dízimo
6. Ocupação
7. A sombra
8. Veneno
9. Corte
10. Sonta-i
11. Traição
12. O segundo teste
13. Intervalo
14. Merik-ren-aferu
15. Um chamado à luta
16. O preço de um Compartilhador
17. A negociação de aço
18. A negociação do silêncio
19. Bárbara
20. Isca
21. Armadilha preparada
22. Repercussão
23. A negociação da magia
24. Legado
25. A negociação da dor
26. Professora
27. Sonhando acordado
28. Misericórdia
29. Os Protetores
30. Nome de alma
31. O pesadelo
32. Morte
33. Convite
34. Canto fúnebre
35. Consolo
36. Legado
37. Líder de guerra
38. Segredos
39. A guerra começa
40. Aliança
41. Paz rompida
42. Retorno
43. A batalha da carne
44. A batalha da alma
45. A batalha do sangue
46. Príncipe do Ocaso
47. Um Servo da paz

Glossário
Agradecimentos
Sobre a autora
Créditos
“No deserto vi uma criatura nua, bestial,
que, agachada no chão,
segurava o coração nas mãos,
e o comia.
Eu perguntei: ‘É gostoso, amigo?’.
‘É amargo, amargo…’, respondeu ele.
‘Mas eu gosto
Porque é amargo
E porque é meu coração.’”
— Stephen Crane,
The Black Riders and Other Lines
1

O TESTE DO COMPARTILHADOR

Havia duzentos e cinquenta e seis lugares onde um homem poderia se


esconder dentro da própria carne. O soldado morrendo sob as mãos de
Hanani fugira para algum lugar profundo. Ela lhe vasculhara o coração, o
cérebro e as entranhas, embora a alma visitasse esses órgãos com menos
frequência do que os leigos pensavam. Examinara a boca e os olhos, estes
últimos com atenção especial. Por fim, encontrou atrás de um lóbulo do
fígado a trilha de sua alma e seguiu-a até um sonho de ruínas
ensombrecidas.
Pilhas de escombros surgiam das brumas crepusculares: ruínas de
estruturas tão gigantescas que cada tijolo faria um homem parecer diminuto,
de arquitetura tão estranha que ela não conseguia entender seu propósito.
Um palácio? Um templo? Era camuflagem, de qualquer maneira. Sob seus
pés, a poeira reluzia, algo mais do que fragmentos: cada passo deslocava um
milhão de estrelas. Ela tomou o cuidado de colocá-las todas de volta após a
sua passagem.
Para encontrar o soldado, Hanani primeiro teria de lidar com o cenário.
Era bastante simples pôr as ruínas em ordem com a força de vontade, o que
ela fez agachando-se e tocando o chão. Fios de icor onírico brilhante e de
um amarelo intenso saíram dos seus dedos e gravaram um padrão
rendilhado no chão por um instante, antes de desvanecer. No intervalo de
uma respiração, a poeira deslizou para cima, vedando a pedra rachada, o
precursor da mudança. Então a terra se partiu e o chão tremeu quando os
grandes tijolos se endireitaram e voaram pelo ar, encaixando-se
ruidosamente para formar colunas e paredes. À sua volta, se Hanani tivesse
escolhido observar, os contornos de uma cidade monstruosa tomaram forma
contra o céu inclinado. Mas, quando a cidade estava completa, ela se
levantou e seguiu em frente sem olhar. Havia um trabalho muito mais
importante a ser feito.
[“Está demorando mais do que deveria.”
“A ferida está sarando.”
“Isso não será nada bom se ele morrer.”
“Ele não vai. Ela o achou. Observe.”]
Depois de passar sob um arco de pedra, Hanani parou e virou-se para
trás a fim de examiná-lo. O arco tinha a altura de um homem, a única coisa
de proporções normais na paisagem onírica. Além do arco, as mesmas
sombras que cobriam tudo… não. As sombras eram mais espessas aqui.
Aproximando-se com cautela, Hanani tentou atravessar o arco outra vez.
As sombras recuaram.
Ela imaginou iluminação.
As sombras se intensificaram.
Após refletir por um momento, evocou dor, medo e raiva e envolveu-se
neles. A resistência das sombras se dissipou, a alma do soldado reconheceu
afinidade. Passando pelo arco, Hanani se viu no jardim do átrio, do tipo que
teria ajudado a refrescar o centro de qualquer casa, mas este estava morto.
Ela olhou ao redor, abaixando-se para passar debaixo de palmeiras
fragmentadas e videiras murchas de lágrima da lua e franzindo a testa ao se
deparar com a confusão supurante de um canteiro. Então avistou algo
depois dele: ali, no coração do jardim, encolhido em um ninho criado a
partir da própria tristeza, estava o soldado.
Parando aqui, Hanani direcionou uma parte da atenção para o reino da
vigília.
[“Dayu? Vou precisar de mais bílis onírica em breve.”
“Sim, Hanani… Hum, quero dizer, Compartilhador-Aprendiz.”]
Tendo feito isso, voltou para o sonho do jardim oculto. O soldado estava
com as pernas encolhidas e abraçado a si mesmo, como que para se consolar.
Na curva do corpo, uma ferida profunda entornava o seu intestino em um
buraco no centro do ninho. Hanani não podia ver nada além do buraco,
apenas aquele cordão perverso conectando-se a ele.
Morte, anunciou o ar ao redor do soldado.
— Aqui não, requerente — retorquiu ela. — Esta é a terra das sombras.
Existem lugares melhores para morrer.
Ele não se mexeu, ansiando outra vez pela morte. Outra vez ela se opôs.
Lembrança, ofereceu ela em busca de convencê-lo.
A agonia irrompeu em frias nuvens de um roxo esbranquiçado,
envolvendo a área em torno do ninho à medida que uma nova forma se
aglutinava. Outro homem: mais velho, com uma barba ao estilo daqueles
que têm sangue nortenho, também vestido como soldado, mas claramente
de hierarquia mais alta do que o soldado de Hanani. Um parente? Mentor?
Amante? Amado, quem quer que fosse.
— Ele se foi — sussurrou o soldado de Hanani. — Ele se foi sem mim.
— Que ele viva na paz Dela para sempre — falou ela. Estendendo as
mãos para os lados, passou os dedos pelo círculo de névoa. Nos pontos que
tocou, delicados fios vermelhos e profundos se fundiam e pulsavam,
tornando-se brancos.
[“Ela está usando mais sangue onírico? Nesse ritmo, vai ficar esgotada.
“Então vamos dar mais a ela. A escória do deserto quase o partiu em
dois, cara, o que você esperava?]
O soldado de Hanani gemeu e encolheu-se ainda mais quando fios
vermelhos se projetaram das paredes, mergulhando em sua pele. As brumas
bruxulearam de modo brusco, a imagem do soldado de barba tornando-se
insubstancial como as sombras. Novas cenas se formaram, aparecendo,
sobrepondo-se e desvanecendo a cada respiração. Um poleiro solitário no
alto de uma parede. Treino com espadas. Uma cama de quartel. Uma barca
de rio.
Hanani convenceu as lembranças a continuarem, introduzindo sugestões
agradáveis para guiá-las em uma nova direção. Entes queridos. Vida. As cenas
mudaram a fim de incorporar o soldado de barba e outros: sem dúvida os
companheiros do requerente ou pessoas da mesma casta. Eles riam,
conversavam e trabalhavam em seus afazeres diários. Enquanto as imagens
fluíam, Hanani estendeu cuidadosamente as mãos ao redor do homem e
colocou-as no buraco que o devorava. O primeiro contato disseminou dor
pelo seu braço como um choque, mas frio, tão intensamente frio! Ela
arquejou e lutou contra o impulso de gritar à medida que seus dedos
enrijeciam, congelavam e se partiam…
Não. Ela formou na mente as sílabas do seu nome de alma e a clareza
tomou conta dela, um lembrete de que era um sonho e ela estava no
controle. Essa dor não é minha. Quando recolheu a mão, ela estava inteira.
Mas o homem não estava; a dor o devorava. Ela se concentrou nas
imagens de novo, notando nelas uma taverna. O requerente não estava lá,
embora seu ente querido morto e os outros companheiros estivessem, rindo
e cantando uma música luxuriosa. Havia perigo nisso, ela se deu conta
abruptamente. O requerente havia sido ferido em um ataque e a pessoa a
quem amava, morta. Ela não fazia ideia se os demais companheiros haviam
sido abatidos também. Se fosse o caso, o que ela pretendia tentar poderia só
aumentar o desejo do soldado de morrer.
Não havia escolha, a não ser tentar.
[“… Como eu pensava, você quer que ela fracasse, Yehamwy.”
“Claro que não. O Conselho simplesmente quer ter certeza da
competência dela.”
“E se o Conselho soubesse alguma coisa sobre cura, isso seria…”
“Que barulho é esse?”
“Não sei ao certo. Veio das alcovas de doação de dízimo. Dayu? Está
tudo bem, rapaz?”]
Distrações poderiam ser perigosas, até fatais, na narcomancia.
Concentrando a mente na tarefa em questão, Hanani reformulou a cena da
taverna em torno do seu soldado. Os companheiros dele pararam de cantar e
se viraram para ele, cumprimentando-o, falando de recordações e
oferecendo canecas que entornavam. A cerveja refletia um tom cálido e
intenso de vermelho sob a luz do sonho. Atrás deles, Hanani discretamente
apagou o soldado de barba.
— Escute — ela disse ao requerente. — Os seus companheiros estão
esperando. Não vai se juntar a eles?
O homem gemeu, desembaraçando-se do ninho e esforçando-se para se
mover na direção dos companheiros. Um vento forte soprou pela paisagem
onírica, levando embora a cidade e as sombras. Hanani exerceu sua vontade
em conjunto com a do homem e o jardim foi varrido para longe, suas
sombras de repente substituídas por lampiões reluzentes e paredes de
taverna. O ninho, porém, permaneceu, pois o homem estava preso à dor.
Então, em vez de fazê-lo desaparecer, Hanani tocou a borda do ninho e o
fez comprimir, encolhendo rapidamente até transformar-se em um
diminuto mármore escuro, pequeno o suficiente para caber na palma da mão
dele. O soldado fitou Hanani com tristeza e apertou o mármore contra o
peito, mas não protestou quando ela soltou a corda de intestino,
interrompendo a ligação. Hanani pressionou a ponta pendurada contra a
barriga dele e ela desvaneceu, assim como a própria ferida. Por fim, ela
evocou roupas, que formaram um borrão momentâneo antes que a mente
dele moldasse o colarinho cinza-ágata e o sobrepano de um guarda
gujaareen da cidade.
O soldado lhe fez um aceno de cabeça uma vez, depois se virou à procura
de se juntar aos companheiros. Eles rodearam-no, abraçaram-no e, de
súbito, ele começou a chorar. Mas ele estava a salvo do perigo agora… e ela
o deixara a salvo, deixara-o curado, tanto o corpo quanto a mente. Sou um
Compartilhador agora!
Mas não, essa era uma suposição. Se havia passado no teste para se
tornar membro pleno do caminho dos Compartilhadores era uma questão
para os seus irmãos de caminho decidirem e para o Conselho confirmar, não
importando o quão bem havia se saído. E era uma completa loucura deixar
as emoções saírem de controle enquanto permanecesse no sonho; ela não
prejudicaria a si mesma ao cometer um erro infantil. Então, com um suspiro
profundo para concentrar os pensamentos, Hanani soltou o sonho do
soldado e seguiu o tênue cordão vermelho que conduziria sua alma de volta
ao seu invólucro de carne…
… mas alguma coisa sacudiu sua percepção.
Ela parou, franzindo a testa. A terra dos sonhos de Ina-Karekh ficara
para trás, tanto quanto era possível dizer que tais coisas tinham alguma
direção. Hona-Karekh, o reino da vigília, estava à frente. Ela abriu os olhos
da sua forma onírica e se viu na versão de sombras cinza do mundo da
vigília, onde a tensão e o movimento agitado que enchiam o Salão de
Bênçãos momentos antes haviam se aquietado de repente. Ela estava na
plataforma aos pés da grande e imponente estátua de Hananja, feita em
pedra da noite, e seu requerente desaparecera. Mni-inh e o professor
Yehamwy, que viera para supervisionar o seu teste, haviam ido embora. O
Salão estava vazio e silencioso, exceto por ela.
O reino entre a vigília e os sonhos. Hanani franziu o cenho. Não tivera a
intenção de parar ali. Concentrando-se, ela procurou seu umblikeh de novo
para completar a viagem de volta para a vigília… e então, ao ouvir algo,
parou. Lá. Perto das alcovas de doação de dízimo, onde os
Compartilhadores-Aprendizes e acólitos colhiam sonhos das mentes dos
fiéis adormecidos. Um som baixo e profundo, diferente de tudo o que ela já
ouvira antes. Uma pedra raspando?
Ou a respiração de uma fera enorme e pesada.
[“Hanani.”]
Nada entre os reinos era real. O espaço entre sonhos era o vazio, onde a
alma poderia ficar à deriva, sem nada a que se agarrar: nenhuma imagem,
nenhuma sensação, nenhuma conceitualização. Um lugar fácil para se
enlouquecer. Com seu nome de alma e treinamento, Hanani estava mais
segura, pois aprendera há muito tempo a criar um construto protetor à sua
volta (o Salão das Sombras, nesse caso) sempre que viajava para lá.
Entretanto, evitava o espaço entre reinos se pudesse, uma vez que apenas os
Coletores conseguiam transitar por ele com facilidade. Era no mínimo
perturbador que ela tivesse se manifestado ali involuntariamente.
Estreitando os olhos na direção das alcovas, ela se perguntou: será que
esquecera alguma etapa na cura do soldado, fizera algo errado na rota de
volta de Ina-Karekh? A vida de um homem estava em jogo, era seu dever ser
meticulosa.
[“Hanani. A cura está completa. Saia.”]
Alguma coisa se mexeu na tranquilidade perto da abertura de uma
alcova. Emergiu de trás de uma das colunas cobertas de flores do Salão, que
impediam uma visão nítida. Ela percebeu intenção e poder, uma lenta
acumulação de malícia que primeiro a enervou, depois ativamente a
assustou…
[“Hanani.”]
O Salão das Sombras estremeceu, depois ficou claro e cheio de pessoas,
brisas e murmúrios. Hanani respirou fundo, piscando enquanto sua alma se
acomodava de volta na própria carne. O reino da vigília. Seu mentor estava
ao seu lado com um semblante de preocupação.
— Mni-inh-irmão. Tinha alguma coisa… — Ela chacoalhou a cabeça,
confusa. — Eu não tinha terminado.
— Você fez o suficiente, Aprendiz — declarou uma voz fria. Yehamwy,
um Professor corpulento e calvo no início da velhice, estava ao lado da área
de cura, lançando olhares fulminantes. À frente dela, em um dos sofás de
madeira preparados para o público dos Compartilhadores, o soldado de
Hanani dormia o sono profundo dos recém-curados. Automaticamente,
Hanani tirou o curativo para verificar a barriga dele. A carne estava intacta e
sem cicatrizes, embora ainda manchada com o sangue líquido e coagulado
que fora derramado antes da cura.
— Meu requerente está bem — concluiu ela, olhando confusa para
Yehamwy.
— Não ele, Hanani. — Mni-inh agachou-se ao lado do sofá e colocou
dois dedos nas pálpebras do soldado para verificar o trabalho de Hanani.
Fechou os olhos por um momento. Eles se movimentaram com rapidez sob
as pálpebras. Então ele expirou e voltou. — Está bem mesmo. Vou pedir
que alguém chame os membros da casta dele para levarem-no para casa.
Menos desorientada agora, Hanani passou os olhos pelo Salão de
Bênçãos e franziu a testa. Quando começara a trabalhar no soldado, o Salão
estava cheio, zunindo com as vozes daqueles que vêm oferecer seus dízimos
mensais, apresentar demandas pela ajuda do Hetawa ou simplesmente para
se sentar em esteiras entre as flores de lágrima-da-lua e rezar. O sol ainda
entrava em um ângulo inclinado pelas janelas de prismas, mas agora o Salão
estava vazio, a não ser por aqueles na plataforma com Hanani e um grupo
de Compartilhadores e Sentinelas próximo a uma das alcovas de doação de
dízimo.
O mesmo lugar onde vira algo no reino entre reinos. Era estranho. E era
cedo demais para o horário de abertura do Salão ao público ter terminado.
— Hanani não teve nada a ver com isso — declarou Mni-inh. Surpresa,
Hanani alçou o olhar ao ouvir o tom incisivo da voz do mentor. Ele estava
olhando feio para o Professor Yehamwy.
— O garoto estava pegando dízimos para ela — disse Yehamwy. — É
claro que ela está envolvida.
— Como? — Ela estava entranhada demais no sonho até para notar.
— O garoto só tinha treze anos. Ela o fez transportar humores como se
ele fosse aprendiz pleno.
— E daí? Você sabe tão bem quanto eu que nós permitimos aos acólitos
que transportem humores sempre que mostram aptidão!
O conselheiro chacoalhou a cabeça.
— E às vezes eles não estão. Esse incidente é o resultado direto do uso
excessivo que a sua aprendiz fez dos humores…
Mni-inh retesou-se.
— Não me lembro de você ter passado no teste do Compartilhador em
nenhum momento, Yehamwy.
— E o desejo do garoto de agradá-la? Não é preciso ser Compartilhador
para entender isso. Ele a seguia por toda parte como um cão de caça manso
disposto a fazer qualquer coisa para servir à sua paixão. Disposto até a tentar
realizar um procedimento narcomântico além de sua habilidade.
Os joelhos de Hanani haviam enrijecido durante a cura, apesar da
almofada debaixo deles.
— Por favor… — Os dois homens se calaram, fitando-a; a expressão de
Mni-inh ficou marcada por súbita piedade. Isso a assustou, pois só havia um
garoto do qual poderiam estar falando. — Por favor, Mni-inh-irmão, me
conte o que aconteceu com Dayu.
Mni-inh suspirou e passou a mão pelo cabelo.
— Aconteceu um incidente nas alcovas de doação, Hanani… Não sei.
Não há…
Com um gesto impaciente, Yehamwy o interrompeu.
— Ela deve saber sobre o mal que causou. Se acredita verdadeiramente
que ela é digna de se tornar um Compartilhador, não a mime. — E a
expressão dele quando se virou para ela era de amargura e satisfação. — Um
portador do dízimo está morto, Compartilhador-Aprendiz. E o acólito
Dayuhotem, que auxiliava você, também.
Hanani suspendeu a respiração e olhou para Mni-inh, que aquiesceu em
uma confirmação discreta.
— Mas… — Ela buscava as palavras. Seus ouvidos zuniam como se as
palavras houvessem soado alto demais, embora ninguém fosse gritar no
salão da própria Hananja, aos pés da estátua Dela. Hananja apreciava a paz.
— C-como? Era um procedimento simples. Dayu fizera isso antes, muitas
vezes, sabia o que estava fazendo apesar de ser só uma criança. — Uma
criança brincalhona, alegre e indomável como a lua, tão exasperante quanto
encantador. Ela não conseguia imaginá-lo morto. Seria como imaginar o
Sol deixando de brilhar.
— Não sabemos como aconteceu — respondeu Mni-inh. Ele lançou um
olhar repressor ao conselheiro, que começara a falar. — Não sabemos. Nós o
ouvimos gritar e, quando entramos na alcova, encontramos Dayu e o
portador do dízimo. Alguma coisa deve ter saído errado durante a doação.
— Mas Dayu… — Hanani sentiu um nó na garganta depois de
pronunciar o nome. Sua visão turvou; ela pôs a mão sobre a boca, como se
isso fosse afastar o horror de sua mente. Morto.
— Os corpos serão examinados — informou Mni-inh em tom pesaroso.
— Existem narcomancias que podem ser realizadas mesmo depois que o
umblikeh é cortado, o que pode nos dar algumas respostas. Enquanto isso…
— Enquanto isso — interrompeu Yehamwy —, sob a minha autoridade
como membro do Conselho dos Caminhos, o Compartilhador-Aprendiz
Hanani está proibida de continuar praticando qualquer arte de cura ou
narcomancia até chegarem os resultados do exame. — Ele se virou para um
dos Sentinelas vestidos de preto que estava de guarda na porta que levava ao
Hetawa interior; o Sentinela se virou para fitá-los. — Por favor, notifique
isso para a sua irmandade, Sentinela Mekhi. — O Sentinela, com o rosto
inexpressivo de quem está a trabalho, acenou com a cabeça uma vez em
resposta.
Dayu estava morto. Incapaz de pensar, Hanani fitava Yehamwy. Dayu
estava morto e o mundo se retorcera em um novo e irreconhecível formato.
Hanani devia ter se curvado sobre as mãos para mostrar humildade e
aceitação do decreto do Conselheiro, e sabia que o fato de não o fazer
repercutia mal para Mni-inh. Porém, continuava fitando-o, paralisada,
mesmo enquanto ele ficava mais carrancudo.
— É dever dos Compartilhadores disciplinar os nossos — pontuou Mni-
inh. Ele falou em um tom muito suave, mas Hanani pôde ouvir a fúria
suprimida na voz do mentor.
— Então cumpra o seu dever — retrucou Yehamwy. Lançando um
último olhar frio para Hanani, ele se virou e se afastou.
Hanani fitou o mentor, que ficou olhando feio para o conselheiro, como
que contemplando algo nada agradável. Então sua raiva desvaneceu e Mni-
inh olhou para ela. A jovem leu compaixão em seus olhos, mas também
resignação.
— Sinto muito — falou ele. — Seu trabalho com o requerente foi
impecável. Não acho que os nossos irmãos de caminho vão descartar o seu
teste por causa disso, mas… — O semblante dele ficou sombrio. Ele
conhecia a política do Hetawa melhor do que Hanani.
Não era esse o futuro que eu imaginava, refletiu alguma parte dela
enquanto o restante de sua alma flutuava em círculos da tristeza para a
descrença e de volta para a tristeza. Isso não está acontecendo. Ela se obrigou a
se curvar sobre uma das mãos; a mão tremia muito.
— Sim, Irmão.
Mni-inh tocou a mão dela outra vez.
— O garoto era importante para você. Deixe-me chamar um Coletor.
A promessa do consolo de um Coletor era tentadora, mas então a
amargura eclipsou esse desejo. Ela perdera seu amigo mais querido no
Hetawa e parecia provável que suas esperanças para o futuro fossem seguir o
mesmo caminho que ele. Ela não queria consolo. Quero tudo de volta como
era antes.
— Não — respondeu ela. — Obrigada, Irmão, mas… prefiro ficar
sozinha agora. P… — Ela se forçou a pronunciar as palavras. — Posso ver
Dayu?
Mni-inh hesitou só por um instante antes de responder. Foi quando
Hanani se deu conta: havia algo de errado com o corpo de Dayuhotem.
— É uma casca, Hanani — ele falou com delicadeza, usando seu tom
mais persuasivo. — Ele não está mais lá. Não se atormente.
Se Mni-inh não queria que ela visse o corpo, então Dayu não morrera
em paz. Uma alma que morria com dor, medo ou raiva era atraída para a
terra das sombras, os recessos escuros de Ina-Karekh, para sofrer pelo
restante da sua existência em meio a pesadelos infinitos. Era o destino
temido por todos os que honravam a Deusa Hananja.
Trêmula, Hanani caminhou até um banco próximo, segurando-se nas
coisas, e sentou-se pesadamente. Ela precisava se encolher no Jardim das
Águas para chorar um dia e uma noite inteiros.
Mni-inh leu o rosto dela.
— Hanani — começou ele, mas caiu em um silêncio desolador. Os
Compartilhadores eram treinados para oferecer consolo após uma tragédia,
mas não eram Coletores; seu consolo eram apenas palavras, ineficientes
como tal. Hanani jamais sentira a inadequação desse treinamento com tanta
intensidade quanto agora.
E se o Professor Yehamwy estivesse certo?, sussurrou uma vozinha no fundo
da mente de Hanani. E se a morte e a danação de Dayu fossem, de algum
modo, culpa de Hanani?
A estátua de Hananja, de doze metros de altura, reluzente em pedra da
noite branca sarapintada, pairava lá no alto. Será que rezar ajudaria?,
perguntou-se ela de modo vago. Dayu e o portador do dízimo morto iam
precisar de preces no lugar para onde haviam ido. Mas nenhuma palavra lhe
veio à mente e, depois de um longo instante vazio, ela se levantou.
— Vou estar nos meus aposentos — anunciou ela a Mni-inh.
E, embora visse Mni-inh erguer uma das mãos enquanto ela se virava,
sua boca se abrindo como que para impedi-la, no fim ele não disse nada.
Hanani foi embora sozinha.
2

O TESTE DO CAÇADOR

A fumaça chegava longe nas brisas áridas. O tênue odor veio até
Wanahomen através do véu enquanto ele mirava uma cidade distante do
outro lado do vale verdejante. Sua cidade. A nuvem de fumaça se erguia de
dentro dos seus muros.
— Foi Wujjeg — disse Ezack ao seu lado. Ele falou em chakti, a língua
de Banbarra.
— Eu sei — respondeu Wanahomen na mesma língua. Debaixo dele, a
camela se remexeu, agitada, e soltou um resmungo de reclamação.
Distraído, Wanahomen afagou o pescoço dela sem tirar os olhos da nuvem
de fumaça.
— Não acho que Wujjeg pretendia matar, não a princípio. Contudo,
quando o primeiro gujaareen foi derrotado, o segundo enlouqueceu e o
atacou, completamente exposto.
— Ele não devia ter eviscerado o primeiro.
— O que vai fazer?
Wanahomen não respondeu, dando meia-volta com a camela e descendo
a trilha do ponto de observação de volta para o acampamento, passando por
um caminho saliente que era mais seguro de atravessar com quatro patas do
que com dois pés. A maior parte dos cavalos e camelos havia sido solta para
procurar comida pelas trilhas íngremes abaixo da plataforma, embora
houvessem empilhado forragem por perto para os animais se alimentarem
também. Os homens mais jovens do acampamento já haviam acendido a
fogueira da noite. O aroma do chá em preparo afastou o cheiro de cidade
em chamas das narinas de Wanahomen, mas não de sua mente.
Ao chegar à plataforma, Wanahomen desmontou sem tirar o arreio nem
a sela do animal, assobiando a nota que significava fique. A camela grunhiu
em um gesto rabugento de aceitação e Wanahomen entrou no
acampamento a passos largos, ignorando os olhos que o seguiam e tentavam
interpretá-lo, não respondendo às poucas vozes que murmuraram
cumprimentos. Seus olhos estavam fixos em um jovem agachado próximo a
uma das fogueiras, rindo com um grupo de companheiros. Alguém cutucou
o jovem — Wujjeg — quando Wanahomen se aproximou e, depois de um
instante de hesitação, Wujjeg levantou-se e se virou para encará-lo. Ele
deixara o véu escorregar para um lado. Sem mulheres ou estranhos por
perto, o fato em si não era um insulto, mas o acampamento inteiro notou o
olhar insolente que ele lançou para Wanahomen.
— I-Dari — disse ele, oferecendo o termo respeitoso com um tom que
era qualquer coisa, menos isso. — Pelo menos o ataque foi lucrativo, você
tem de admitir.
— Realmente — concordou Wanahomen. — A tribo deve se certificar
de agradecer a você quando orar pelos ancestrais. — Ele pôs a mão no cabo
de marfim da faca e esperou.
O sorriso de Wujjeg desvaneceu apenas por um momento, assim como
parte de sua presunção. Automaticamente ele levou a mão ao cabo da
própria arma, mas não a desembainhou.
— I-Dari — começou ele, porém, antes que pudesse dizer mais, a
lâmina de Wanahomen saiu rasgando da bainha e desenhou uma segunda
boca na garganta de Wujjeg.
Houve um arquejo de alguém entre os amigos de Wujjeg. Ninguém mais
falou nem se mexeu. Wujjeg também não produziu som algum, colocando
as mãos por um momento no fluxo que lhe jorrava da garganta antes de
tombar ao chão.
Wanahomen sacudiu a faca e voltou-se para o membro mais jovem da
tropa.
— Embale Wujjeg para a viagem e coloque-o junto à bagagem.
Precisamos devolvê-lo para o clã dele.
O jovem engoliu em seco e balançou a cabeça, em silenciosa
concordância. Wanahomen embainhou a faca e passou por cima da poça
cada vez maior de sangue a fim de caminhar até a fogueira seguinte. Pouco
antes do círculo de pedras, ele se ajoelhou, curvando a cabeça.
— Unte, posso entrar?
O homem sentado ao lado do fogo inclinou a cabeça. Um homem idoso
com as feições redondas de um ocidental — alguém escravizado —
apressou-se em afastar uma pedra e Wanahomen entrou no círculo.
— Seja bem-vindo — saudou Unte, depois fez um sinal para a pessoa
escravizada. Enquanto o servo pegava uma pinça para tirar das chamas a
caixa de cozimento metálica, o homem lançou a Wanahomen um longo
olhar reflexivo. — Estou tentando decidir se declarei como líder de caça um
tolo ou um gênio.
O indivíduo escravizado entregou uma tigela para Wanahomen.
Tubérculos de cercrus assados com filetes de carne condimentada que podia
ser de kinpan, uma ave de chão, ou outra entre meia dúzia de espécies de
ratazana do deserto. Erguendo o véu com uma das mãos, Wanahomen
comeu de maneira rápida e asseada, sem fitar Unte.
— O senhor veio nessa cavalgada para ver como faço as coisas — disse
ele.
— Realmente. E agora vejo.
— Não fiz nada que viola os costumes desta tribo.
— Verdade. Você é sempre apropriado e cuidadoso, Wana.
Wanahomen pôs o prato no chão e esfregou os olhos. Estava cansado
demais para jogos verbais.
— Vai me expulsar?
— Ainda não decidi.
Não! Estou tão perto! Mas, em vez de expressar o protesto, Wanahomen
falou:
— Posso fazer um pedido, então, enquanto ainda sou o seu líder de caça?
— Faça.
— Espere.
— Esperar? Para o clã de Wujjeg incitar os parentes do Dzikeh-
Banbarra para a briga?
— Cada homem desta tropa jurou me obedecer, Unte. Wujjeg
desobedeceu a minha ordem. Só pode haver uma punição para isso
enquanto estamos caçando.
— Ele matou um inimigo. — A voz de Unte era branda, mas seus olhos
eram frios e penetrantes por trás do véu.
Wanahomen tentou não suspirar.
— Já expliquei isso para o senhor e para todo o restante da tribo. Só os
kisuati são nossos inimigos, não todos os habitantes da cidade.
— E já expliquei para você que a maioria dos banbarranos não
concordaria com essa afirmação nem se importaria com a diferença —
retorquiu Unte. As rugas em torno dos olhos dele relaxaram sob a luz da
fogueira, por trás do véu ele estava achando graça. — Mas admito que
talvez estejam mais inclinados a prestar atenção agora.
Wanahomen também relaxou, aliviado.
— E então, gênio ou tolo?
— Gênio não, de jeito nenhum.
— Mas não completamente tolo?
— Que os deuses ajudem a todos nós, não, um tolo não. Minha vida
seria mais fácil se você fosse, porque então eu poderia me ver livre de você.
Wanahomen pôs no chão a tigela vazia, fazendo, por um hábito
desatento, um aceno de agradecimento ao indivíduo escravizado e então se
levantou para apertar o ombro do ancião.
— Prometi fazer do senhor um rei entre os reis, Unte. Isso não faz valer
a pena me suportar?
Mas Unte chacoalhou a cabeça e respondeu:
— Só se você sobreviver para conseguir, Wana. Durma um sono leve esta
noite.
Dispensado dessa forma, Wanahomen se pôs de pé e foi embora.
Manteve-se olhando para a frente enquanto atravessava o acampamento de
novo, desta vez por cansaço, não por raiva. A maior parte do grupo de caça
consistia de apoiadores seus, dos quais poucos se ressentiam dele pela morte
de Wujjeg. No entanto, iam querer conversar com ele, descobrir seus planos,
elogiar sua franqueza ou reafirmar a própria lealdade. Um ou dois sem
dúvida o convidariam a compartilhar o catre durante a noite, embora ele
normalmente recusasse tais ofertas em busca de evitar acusações de
favoritismo. Ele não queria nada mais do que o seu próprio catre e a paz dos
sonhos, mas primeiro tinha de cuidar da sua montaria: nenhum banbarrano
respeitável dormiria antes de fazê-lo. Como ele não era banbarrano, era
importante que permanecesse dentro dos limites da respeitabilidade.
Entretanto, quando chegou à trilha aos pés da plataforma, encontrou
Laye-ka já sem a sela, sua pelagem cor de creme escovada e limpa. A camela
mastigava placidamente algum pedaço de vegetação e grunhiu para ele à
guisa de cumprimento, chacoalhando o colar de amuletos que ele lhe
trançara. Ao ouvir o barulho, Ezack assomou por detrás da anca do animal e
sorriu para ele.
— Sabia que você ia voltar. A mocinha aqui não quis esperar. Começou a
pisotear de um lado para o outro e a grunhir quando você saiu.
Wanahomen deu uma risadinha e se aproximou da cabeça da camela,
estendendo a mão para esfregar sua testa dura. Ela encostou a cabeça na
mão dele, implorando afago.
— Não é igualzinha a uma mulher? — perguntou ele, agradando à
camela.
— Verdade! Então… — Ezack deu uma olhada ao redor à procura de
curiosos. — O velho ficou bravo?
— Não. Ele entendeu.
Ezack deu um suspiro de alívio, seu hálito inflou por um momento o
tecido do próprio véu.
— Achei que ele fosse entender, mas, mesmo assim.
— Ele me avisou para ter cuidado. Como se eu precisasse desse aviso. —
Enquanto Wanahomen esfregava as orelhas de Laye-ka, seus olhos se
dirigiram de volta ao acampamento. A maioria dos grupos de homens já
havia se dispersado, como se a morte de Wujjeg e a aprovação de Unte
houvessem encerrado todas as discussões. Um grupo remanescente, aqueles
que eram amigos de Wujjeg, estava sentado ao redor de uma das fogueiras,
aos cochichos. Wanahomen não ficou particularmente perturbado com isso,
pois Wujjeg era o mais esperto e o mais audacioso daquele bando; sem ele,
os demais representavam pouco perigo. Não obstante, ele obedeceria a Unte
e tomaria cuidado.
— Ah, sua faminta, agora vá para lá. — Ele deu um tapinha no ombro
de Laye-ka e, com um último olhar pesaroso, ela se virou e se afastou para
se juntar aos outros cavalos e camelos. — Descanse, Ezack.
— Em paz, Wana.
Wana parou, olhando surpreso para trás ao ouvir a expressão de
despedida familiar, mas tipicamente gujaareen. Ezack deu de ombros para o
olhar dele.
— Nós, banbarranos, encontramos uso para tudo o que aparece no nosso
caminho. Ficamos com você, não ficamos?
Com tais palavras, Ezack começou a empilhar alforjes contra a parede da
plataforma, ignorando Wana educadamente quando ele murmurou
“obrigado” em gujaareen. Um momento delicado demais para o gosto dos
banbarranos, o tipo de ação que Wanahomen jamais teria se permitido fazer
com nenhuma outra pessoa para que não o achassem mole como a maioria
dos habitantes da cidade. Mas Ezack aprendera a tolerar o comportamento
peculiar de seu comandante anos antes, algo pelo qual Wanahomen era
grato. Ele se afastou rápido, antes que o impulso de ficar sentimental
piorasse.
Seu lugar no acampamento estava pronto, o fogo ardia vivamente e o
catre fora disposto pelo seu próprio indivíduo escravizado. Não havia
nenhum círculo de barreira aqui: um bom líder de caça não precisava se
separar de seus homens. Quando entrou na área da luz do fogo e se sentou,
mexendo-se para se deitar de lado, Wanahomen fez um aceno para o servo.
— Vamos para casa amanhã.
Charris, que um dia fora general do exército de Gujaareh, embora em
um passado distante, devolveu o aceno de onde estava no próprio catre.
— Você se saiu bem — Charris falou em gujaareen, em parte porque seu
chakti era pobre, em parte pela privacidade. Apenas Unte e Ezack falavam
alguma coisa da língua: Unte com pouca fluência, Ezack com bem menos
do que isso.
As bochechas de Wanahomen esquentaram com o elogio.
— Meu pai me ensinou a lidar logo com as provocações.
— Se serve de consolo, o gujaareen que foi ferido provavelmente vai
sobreviver. Se os companheiros o mantiveram aquecido e o levaram direto
para o Hetawa, o ferimento pode ter sido curado.
Wanahomen aquiesceu lentamente, contemplando o fogo.
— Eu tinha esquecido isso. Cura. Incrível, não é? Que eu possa ter
esquecido uma coisa dessas. — Ele se calou enquanto os muros da capital,
dourados durante o pôr do sol, cintilavam em sua memória. Por um
momento, quase pôde sentir o cheiro das flores de lágrima-da-lua no vento,
e então a lembrança se desvaneceu. Lamentou que houvesse passado: suas
lembranças eram tênues e raras nos últimos tempos. — Nenhum gujaareen
de verdade esqueceria uma coisa dessas, Charris. Esqueceria?
— Faz tempo que estamos longe, meu Príncipe, mas sempre seremos
gujaareen — respondeu Charris em um tom amável.
Sim. E Gujaareh voltaria a ser dele. Wanahomen repetiu aquele
pensamento para si mesmo uma vez, e mais três vezes em voz baixa: quatro
repetições formavam uma oração. Dele, pela graça de Hananja.
— O encontro com os shunha — comentou ele. — Está marcado?
Charris confirmou com a cabeça.
— Daqui a três dias, ao pôr do sol. Na mensagem, falei para ele que seria
eu. — Ele lançou um olhar inquieto a Wanahomen.
— Tenho de ver esse homem eu mesmo, Charris. Os shunha podem
oferecer a primeira lealdade à Gujaareh, mas ainda são próximos demais das
raízes kisuati para o meu gosto. Preciso ter certeza de que podemos confiar
nesse. — Wanahomen passou a mão debaixo do lenço para esfregar a nuca
repleta de areia, sentindo falta, com uma afeição pesarosa, dos banhos
perfumados do seu povo. — Vou tomar cuidado, não tema.
— E a minha outra sugestão?
Wanahomen fez uma careta.
— Nunca.
— O Hetawa tem tanto poder em Gujaareh quanto a nobreza, meu
Príncipe. Mais até.
— E eu nunca vou pedir a ajuda deles nem para curar um dedão
machucado.
Charris suspirou.
— Em paz então, meu Príncipe. — Ele se virou para se deitar no saco de
dormir.
— Em paz, velho amigo. — Wanahomen se mexeu a fim de tirar as
botas, depois se deitou, prendendo o véu facial para descansar. Vendo as
sombras dançarem no beiral da plataforma, ele fechou os olhos…
… e os abriu para ver um céu agitado, sufocado pela tempestade.
Onde deveria estar a pedra de uma saliência protetora, onde a Lua dos
Sonhos e os milhões de Sóis Menores deviam ter preenchido o céu noturno
mais adiante, agitavam-se e encrespavam-se espessas nuvens pretas. O raio
que cintilou entre essas nuvens foi atenuado, ralo e enfermiço, e demorou-
se, mais semelhante a uma rede de veias na carne do que a luz e fogo. Ele
jamais vislumbrara um céu daqueles, nem na pior das estações de inundação.
Ele se sentou. Sob esse céu, o mundo ficou estranho e cinza: desprovido
de cor, as sombras haviam se tornado nítidas e densas demais para se
enxergar através delas. Quando o manto externo de Wanahomen
desapareceu, ele percebeu que toda a sua vestimenta banbarrana empoeirada
havia sumido, substituída por uma plissaia de linho fino sob medida, um
manto de penas e um colarinho de lágrimas de lápis-lazúli. Roupas dignas
de um príncipe.
— Como deveria ser — sussurrou a voz de seu pai.
Wanahomen virou-se. O acampamento banbarrano desvanecera, Charris
desvanecera. O catre e a fogueira de Wanahomen repousavam sobre os
tijolos imundos de uma rua gujaareen em um beco sombreado e de muros
altos. Perto do fundo desse beco, onde as sombras eram mais densas,
espreitava uma forma ao mesmo tempo familiar e hedionda. Com a cabeça
inclinada para um lado, ele viu o brilho de dentes. E no entanto…
— Wanahomen — sussurrou o espectro.
Ele se pôs de pé, tomado pela certeza do sonho.
— Pai.
— Meu filho, meu herdeiro. — A voz era suave, leve, porém
Wanahomen reconheceria o timbre em qualquer lugar. Ele mordeu o lábio e
deu um passo à frente, querendo encurtar a distância. Sabendo, apesar de
estar ausente de Gujaareh há dez anos, que esse desejo era tolice. A terra
dos sonhos era incompreensivelmente vasta, levaria eras para as almas dos
mortos a preencherem. A maioria das pessoas vista nos sonhos eram meros
reflexos dos próprios pensamentos e medos do sonhador.
Mas…
— Minha alma renascida. — A sombra do pai chacoalhou a cabeça,
tranças sujas e frouxas sacudiram para a frente e para trás. — Onde está a
Auréola, Wanahomen? Onde está o seu reino?
— Em mãos inimigas, pai. — Ele pôde ouvir o ódio na própria voz,
ecoando das paredes do beco. — Eles tiraram tudo de mim.
— Não tudo. Não a esperança. Não o favor Dela.
Wanahomen chacoalhou a cabeça com um sorriso desolado.
— Será que Ela ao menos me conhece, pai? Não fiz nenhuma oferenda
nem recebi nenhuma bênção durante anos.
— As bênçãos virão. — Algo naquela voz, ao mesmo tempo dissimulada
e entretida, transformou as palavras mais em um aviso do que em uma
promessa. O vulto ergueu um dedo torto e paralisado em direção ao céu. —
Elas já vieram, está vendo? Bênçãos tão poderosas. Elas abalarão Gujaareh
inteira, desperta e adormecida, e afogará os fracos em seus próprios sonhos
escuros. Seu sofrimento não conhece limites.
Wanahomen contemplou o céu estrondoso e tremeu, embora não
houvesse vento.
— O senhor está falando da Deusa? Não entendo, pai…
— Não entende? — As sombras se mexeram quando o vulto abaixou o
braço a fim de apontá-lo para Wanahomen, avançando o suficiente para que
a luz da fogueira iluminasse enfim a sua carne. O estômago de Wanahomen
revirou quando ele viu feridas preto-arroxeadas mosqueando uma pele que
um dia tivera o tom dourado-claro da areia do deserto. A putrefação da
morte? Não. Esses ferimentos pareciam mais algum tipo de doença.
A coisa que fora seu pai soltou uma risada grossa e viscosa. Seguindo o
dedo dele, Wanahomen olhou para si mesmo e arquejou ao notar que o
próprio torso estava coberto das mesmas feridas. Revoltado, passou as mãos
em si mesmo em busca de tirá-las do corpo. Porém, sua pele estava intacta;
a doença estava por baixo. Dentro de si.
— Depressa — sussurrou seu pai. — Você viu que já começou.
Wanahomen abriu os olhos de novo. A caverna e os banbarranos haviam
voltado. O sonho se fora.
Não. À diferença da maioria de seus compatriotas, Wanahomen nunca
fora treinado quanto às técnicas do sonho adequado… seu pai não
permitira. Contudo, parecia que certas habilidades eram inatas, com ou sem
treinamento. Isso ele podia sentir: alguns sonhos eram mais do que sonhos.
Wanahomen fechou os olhos, mas não voltou a dormir naquela noite.
3

O TESTE DA DAMA

Tiaanet, filha de Insurret, dama da casta shunha, era uma lenda em


Gujaareh. Poetas e cantoras haviam composto hinos em sua homenagem,
escultores e pintores usavam a imagem da jovem em suas melhores obras.
Aqueles que conversavam com Tiaanet notavam que sua inteligência e
graciosidade se equiparavam à beleza física e ninguém podia negar que a
casa vinha sendo muito bem administrada desde que sua mãe lhe atribuíra
parte da gestão. Da mesma forma, os investimentos da família eram
lucrativos e bem escolhidos. Alguns (tolos apaixonados, mas também alguns
outros) segredavam que em sua perfeição haviam renascido os ancestrais
divinos dos shunha.
Foi assim que, quando começou a terceira estação de colheita, no décimo
ano da ocupação kisuati, espalhou-se entre as castas mais altas a notícia de
um acontecimento importante: lady Tiaanet enfim procurava um marido.
Ninguém esperara tal restrição de sua poderosa e influente família, pois,
embora as mulheres dentre os shunha raramente se casassem tão cedo
quanto as mulheres baixa-casta ou as camponesas, o rio inundara quatro
vezes desde a maioridade de Tiaanet, aos dezesseis anos. Entre seus dons
naturais e a riqueza futura (pois, assim como os kisuati, os shunha passavam
a herança pela linhagem materna), era quase garantido que todo homem de
valor nas duas terras viria na próxima ocasião social, que acabou sendo o
funeral do lorde Khanwer, um primo do pai de Tiaanet.
Por tradição, os ritos funerais do lorde Khanwer foram realizados na casa
do parente vivo mais próximo, culminando em uma celebração do Nascer ao
Pôr da Lua. Em flagrante desrespeito à tradição shunha, porém, não foi a
mãe de Tiaanet, e sim a própria Tiaanet, que foi a anfitriã do evento: uma
grande responsabilidade para uma dama tão jovem e um escândalo terrível.
Os shunha não desrespeitavam a tradição. Os anciãos da casta sem dúvida
lhe mandariam uma carta de censura e ela sem dúvida os visitaria para pedir
desculpas antes de continuar fazendo exatamente o que queria.
Tiaanet tomou o cuidado de manter o passo tranquilo e gracioso
enquanto andava entre os convidados reunidos, mantendo as taças cheias e a
conversa fluindo. Mais importante, ela notou os olhares dos homens, que
desviaram em direção a ela ao longo da noite. A pedido do pai, colocara seu
vestido mais sedutor, de um linho tão primorosamente tecido que acabava
sendo muito fino, e meticulosamente pregueado que se ajustava a cada curva
do seu corpo. Os homens ficavam de boca aberta quando seus seios soltos
balançavam sob o tecido translúcido, lançavam olhares prolongados à curva
suave do seu ventre, tentando identificar o triângulo escuro por baixo. Ela
vira vários deles se aproximarem do pai no decorrer da noite, falando em
vozes baixas e urgentes e fitando-a. Mas seu pai apenas dava acenos
educados durante tais conversas, seu sorriso se alargando a cada nova
proposta como se fosse a ele, e não a Tiaanet, que estivessem cortejando.
— Como deve ser entediante para você — comentou um homem de
cabelos brancos enquanto Tiaanet enchia de novo sua taça. A jovem alçou o
olhar e se deparou com ele sorrindo-lhe, o que a surpreendeu… não pelo
sorriso, que era gentil, mas pelo fato de não haver luxúria nele.
— Nem tanto, milorde — respondeu ela. Um servo se aproximou,
oferecendo-lhe uma garrafa fresca de vinho; ela agradeceu com um aceno e
trocou-a pela sua, que estava quase vazia. — Agrada-me honrar a morte de
um homem tão estimado.
— Hum, sim. O último dos verdadeiros tradicionalistas era Khanwer.
Gujaareh perdeu um campeão. — O homem bebeu o vinho e parou para
saborear o gosto por um momento, erguendo as sobrancelhas em apreciação.
— É uma bebida do sul? É excelente.
Tiaanet inclinou a cabeça.
— Vinho de palmeira-daro, produzido em Sitiswaya. Raro e difícil de
conseguir, mas meu pai tem muitos amigos entre os mercadores kisuati.
— Que conveniente. Tantos dos nossos nobres têm caído em desgraça
com os nossos soberanos hoje em dia. — O homem fez uma pausa para
tomar outro gole, fechando os olhos de prazer. — Entretanto, me contaram
que o seu pai estava em conflito com Khanwer antes de sua morte. Decerto
ele não estava em desgraça?
Com um olhar de soslaio, Tiaanet voltou a examinar o homem,
perguntando-se qual era a intenção dele. Sondando informações, sem
dúvida, mas, sem saber seu status, ela não podia imaginar o motivo. Com a
pele marrom cor de nogueira, nem escura nem clara, ele parecia mais ser de
alguma casta intermediária do que da nobreza, e nenhum baixa-casta teria
composto a lista de convidados. Um artista, talvez. E algo em sua
vestimenta, uma túnica simples de hekeh branco, chamou-lhe a atenção por
estar fora de lugar em meio à elegância de todos os demais convidados.
Contudo, ele não estaria presente se não tivesse alguma importância na
sociedade gujaareen. Tiaanet conhecia muito bem seu pai.
— Khanwer era parente, milorde — respondeu ela cautelosamente.
— É claro. Você não falaria mal dele na frente de um estranho. Perdoe-
me a intromissão. — O homem fez uma pausa e lhe deu outro daqueles
sorrisos peculiares e gentis. — A propósito, não precisa me chamar de lorde.
A mente da jovem preencheu a lacuna de modo abrupto.
— O senhor é do Hetawa.
Ele ergueu as duas sobrancelhas e soltou uma risadinha.
— Puxa, isso é humilhante! Me acostumei a ser reconhecido nesses
últimos anos.
Não era um simples membro do templo, então. Tiaanet curvou-se sobre
as duas mãos espalmadas em um pedido de desculpas.
— O erro é meu. Sempre acreditei que viver aqui no campo, por mais
suntuosa que seja a nossa propriedade, deixa a nossa família isolada dos
acontecimentos e das personalidades importantes da cidade…
O Superior do Hetawa, líder da fé hananjana em todos os reinos que
honravam a Deusa, chacoalhou a cabeça uma vez.
— Você foi uma anfitriã graciosa de todas as maneiras, lady Tiaanet,
especialmente nessas circunstâncias. Como está a sua mãe?
— Descansando, Superior.
— Disseram-me que faz algum tempo que ela está doente. — Ele olhou
ao redor e inclinou-se para se aproximar dela com tanta falta de jeito que
todos os convidados por perto deviam ter notado. — Será que o seu pai
aceitaria a visita de um Compartilhador? — perguntou em voz baixa. — As
enfermidades crônicas costumam ser fáceis de curar. Isso pode ser feito de
maneira discreta.
Tiaanet agraciou-o com um olhar frio, alertando-o para que não
insistisse no assunto.
— Nós somos shunha, Superior.
Ele suspirou e endireitou-se.
— Bem, em todo caso, por favor informe-lhe da oferta. Ele não seria o
primeiro shunha a discretamente quebrar a tradição.
— Vou transmitir a oferta. — E seu pai havia começado a observar os
dois do outro lado da sala. Ela inclinou a cabeça para o homem outra vez e
virou-se para deixá-lo. — Desfrute do restante da noite, Superior…
— Espere. — O homem deu outra daquelas olhadas demasiado óbvias
ao redor; desta vez, Tiaanet ficou tensa no seu íntimo, sentindo o escrutínio
do pai como uma ferroada quase palpável ao longo da espinha. — Diga-me,
filha de Insurret. Sabe alguma coisa sobre como lorde Khanwer morreu?
Ah. As mulheres podem não ser muito do gosto de um Servo de
Hananja, mas segredos? Nem mesmo sangue onírico podia apagar isso.
— Ele morreu durante o sono, Superior — respondeu ela. A jovem
sorriu, o que o fez recuar, franzindo a testa de um modo inquieto. Ela não
sorria com frequência por esse motivo. — Como todo seguidor bom e fiel
de Hananja desejaria.
Ela afastou-se, então, antes que o Superior pudesse lhe fazer mais
alguma pergunta estranha e antes que pudesse lhe causar mais problemas,
apesar de vislumbrar a expressão fria do pai enquanto servia vinho ao
próximo convidado e desconfiar de que já era tarde demais para isso.
Certo tempo depois, a última fatia colorida da Lua dos Sonhos
escondeu-se sob o horizonte, deixando apenas a diminuta e branca Lua da
Vigília e os piscantes Sóis Menores no céu. Com a tradição cumprida, os
convidados foram partindo um a um. Tiaanet cuidou daqueles que não
queriam fazer a viagem de volta para a cidade ou para as próprias casas,
direcionando-os aos quartos de hóspedes enquanto o pai se despedia do
restante. Portanto, foi Tiaanet a quem um dos servos abordou, sussurrando
que sua mãe precisava de ajuda.
Ela olhou em direção ao pai, que estava entretido em uma conversa com
outros dois lordes shunha. Acenando para o servo, a jovem se dirigiu à
câmara norte.
Não se ouvia nenhum ruído no interior quando ela parou diante da
pesada cortina de entrada e acenou aos servos de guarda dos dois lados.
— Mãe? Posso entrar?
Não houve resposta, embora ela não houvesse esperado uma. Ao passar
pela cortina, encontrou o quarto adiante em completa desordem: almofadas
e roupas espalhadas por toda parte, um baú de madeira virado e seu
conteúdo derrubado, um tapete arremessado na parede oposta. O banco em
forma de ferradura perto da janela, onde a mãe costumava se sentar, estava
de lado no chão. Em meio ao caos, a mãe estava retesada, segurando uma
pequena estátua de Hananja com força em uma das mãos, os olhos fixos em
algum ponto distante além da janela. Ela não se virou quando Tiaanet
entrou.
Tiaanet inclinou-se para pegar uma almofada.
— Deixe aí — falou Insurret. Tiaanet deixou a almofada onde estava.
— Quer que eu traga alguma coisa? — perguntou Tiaanet, mantendo a
voz baixa.
De perfil, o sorriso da mãe era afiado como um caco da Lua no inverno.
— O seu pai, quando você terminar com ele.
— Ele está com os nossos convidados, mãe.
Insurret olhou para Tiaanet por cima do ombro.
— E você veio para atender as minhas necessidades? Que filha boa você
é. Talvez algum dia tenha uma filha assim tão boa.
Tiaanet não respondeu e ficou esperando. Em geral, tentava não sair
antes que Insurret a dispensasse. Uma boa filha ficava para fazer a vontade
da mãe.
— Seu pai pretende deixar a sua irmã de fora da festa? — O sorriso de
Insurret era venenoso. — Com tanta luz e barulho, não poderia haver
perigo.
— Tantufi está na casa de campo, mãe. — Assim como Insurret bem
sabia.
— É, é. Outra boa filha para mim. — Os olhos de Insurret ficaram
abruptamente vagos, o sorriso desvaneceu. — Filhas tão boas.
Não havia sentido em uma conversa dessas. Tiaanet suspirou e virou-se
para sair.
— Os servos vão arrumar tudo de manhã, se a senhora permitir. Boa
noite, mãe. Em paz…
A estátua de Hananja atingiu a parede bem ao lado da cabeça de Tiaanet
e se partiu em duas. Ela parou.
— Nunca me deseje paz — rosnou Insurret. — Serpente. Vadia
bajuladora. Nunca deixe a palavra paz passar pelos seus lábios na minha
presença. Entendeu?
Tiaanet agachou-se para recolher os pedaços da estátua, colocou-os em
uma prateleira próxima, depois cruzou os antebraços e curvou a cabeça em
uma manuflexão como pedido de desculpa para a Deusa.
— Entendi, mãe. Boa noite.
A mãe não respondeu enquanto ela saía.
O pai esperava do lado de fora do quarto. Tiaanet parou, procurando
quaisquer sinais de raiva em seu rosto, mas ele observava a cortina do quarto
de Insurret com uma expressão de cansaço.
— Você se saiu bem — elogiou ele.
Tiaanet aquiesceu. Era impossível se sair bem com Insurret, mas havia
graus de sucesso.
— Todos os convidados foram acomodados?
— Sim. — Ele fez um aceno para os guardas e ofereceu o braço à filha,
que claramente não foi recusado. O pai começou a acompanhá-la ao quarto
dela. — O que o Superior queria?
— Saber como Khanwer morreu, pai.
— E o que você falou para ele?
— Que o nosso nobre primo morreu durante o sono, pai.
Ele riu, dando palmadinhas na mão dela.
— Boa garota. Ouvi muitos elogios sobre você hoje à noite.
Vendo o bom humor dele, a jovem arriscou uma pergunta.
— E quantos desses elogios vieram com propostas de casamento?
Ele sorriu para a filha.
— Quatro só esta noite. Auspicioso, hein? E mais virão quando os
homens forem para casa e calcularem suas riquezas para ver se são dignos de
você. Vou dar esperança para alguns deles por um tempo, mas não tenha
medo. — Ele deu palmadinhas na mão dela outra vez. — Você não será
desperdiçada com algum oficial ou mercador insignificante. Tenho um
pretendente melhor para você em mente.
Algum nobre kisuati?, ponderou Tiaanet, embora soubesse que era melhor
não perguntar. Isso a faria parecer interessada, ávida para partir, o que é
claro que ela não poderia estar.
Ambos entraram no corredor que levava ao quarto dela.
— O Superior também se ofereceu para mandar um Compartilhador
para a mãe — falou ela. Talvez a informação o distraísse o suficiente. — Eu
o lembrei de que esse não é o nosso costume.
O pai bufou.
— Esse homem é um tolo. Agora, o antecessor dele… aquele fazia as
coisas acontecerem e foi provavelmente por esse motivo que foi morto pelos
Coletores. Ah, hoje em dia o Hetawa está ansioso demais para parecer
inofensivo, conciliador demais com os kisuati e com todo o restante… —
Quando chegaram à porta de Tiaanet, o pai se virou e pôs as mãos nas
bochechas dela. — Chega de política. Está cansada?
Tiaanet se obrigou a sorrir, desejando que seus sorrisos o deixassem tão
perturbado quanto deixavam tantos outros.
— Muito, pai, depois de uma noite tão longa.
— Entendo. — Ele sorriu, abrindo a cortina para que ela entrasse. —
Vamos ser rápidos… e silenciosos também, para os nossos convidados não
acordarem. Certo?
Por um instante fugaz, o impulso de gritar veio à mente de Tiaanet. A
casa estava cheia de convidados, um grito alertaria a todos. Será que o
Superior ficara para passar a noite? Se ela acusasse o pai de corrupção na
frente dele, na frente dos convidados, o Hetawa certamente investigaria. Os
Coletores viriam. Ela poderia mostrar-lhes a pequena Tantufi, pobre
menina prejudicada, como prova; talvez até Insurret estivesse lúcida o
bastante para confirmar as acusações. Talvez os Coletores matassem a
família inteira para livrar Gujaareh de uma pestilência daquelas. Então
Tiaanet e Tantufi poderiam enfim ser livres, de um jeito ou de outro.
Mas aquele impulso, como tantos outros iguais, desapareceu tão
rapidamente como surgira. Ela não sentia uma esperança verdadeira há
anos. Na maior parte dos dias, nos dias bons, não sentia absolutamente
nada.
Então Tiaanet entrou no quarto e subiu na cama, mantendo os olhos na
parede oposta. Após a passagem dela, ele fechou a cortina e foi se juntar a
ela.
— Eu te amo, Tiaanet — disse ele. — Você sabe disso, não sabe?
— Sei, pai — respondeu ela.
— Minha boa menina — respondeu ele, e inclinou-se para dar um beijo
de boa-noite.
4

INSÔNIA

Sunandi Jeh Kalawe, Voz do Protetorado Kisuati e governadora de


Gujaareh em nome dos Protetores, não tinha sono pesado. Qualquer
movimento a acordava durante a noite. Até mesmo uma brisa que agitasse
as cortinas da cama com muita frequência podia mantê-la de olhos bem
abertos até o amanhecer. Nos anos que se seguiram ao casamento, adaptara-
se a essa tendência, mantendo uma jarra de cerveja de mel com água na
mesa de cabeceira, enxotando o marido para os sofás da sala de estar sempre
que ele roncava ou fugindo ela mesma para esses sofás a fim de não o
perturbar. Ela dormia… só que brevemente, descansando em pequenas e
insuficientes porções. Às vezes, acordava mais cansada do que estava quando
fora dormir.
Invariavelmente, havia noites em que bebidas relaxantes e contar de
quatro em quatro não ajudavam. Nesses momentos, ela ia ao escritório
trabalhar para que pelo menos o tempo não fosse desperdiçado. Ou ia à
sacada do apartamento no Yanya-iyan em busca de contemplar a Lua dos
Sonhos, bebendo sob aquela luz prateada e colorida sem pensar em nada.
Nessa ocasião, todavia, ela parou em estado de choque, encontrando a
sacada já povoada.
— Não grite — anunciou o Coletor Nijiri. Ele estava apoiado em um pé
sobre o parapeito, o outro pendurado no vácuo de uma queda de oito
andares, observando-a com um olhar divertido. — Seu marido soldado viria
correndo para cá, armas seriam desembainhadas e a paz do palácio inteiro
seria perturbada.
Soltando o ar que ela puxara de fato para gritar, Sunandi saiu na sacada.
— Seria pouco provável que eu gritasse se você não estivesse
empoleirado aqui fora como um rapinante à procura de ratos.
— Sou um Coletor, Jeh Kalawe. Achou que eu fosse entrar pelo portão
da frente com escolta completa? Que talvez trouxesse uma cantora para
anunciar a mim e a minha linhagem inteira? De qualquer forma, você
deveria estar me esperando.
Ela revirou os olhos, vindo se juntar a ele no parapeito.
— Eu esperava você ao anoitecer. Enviei meu chamado logo depois que
aquele maldito banbarrano acabara de aterrorizar a cidade hoje de manhã.
— A irritação dela desvaneceu, eclipsada por uma ansiedade mais pessoal.
— Faz tempo que está aqui? — Ela fizera amor com Anzi pouco antes da
meia-noite.
Ele sorriu, a luz da Lua fazendo-o parecer momentaneamente mais
jovem… mais semelhante ao garoto que conhecera dez anos antes. Ele
ficara mais alto com o passar dos anos e sua beleza jovial tornara-se elegante
e de contornos firmes, mas ainda era bem novo, mesmo para os padrões de
Kisua, onde a vida das pessoas não era tão longa. Era a profissão dele que o
fazia parecer mais velho do que a própria idade.
— Se eu tivesse chegado mais cedo — respondeu ele —, então você teria
tido devaneios melancólicos de vir para esta sacada.
Ela demorou um instante para entender o que ele queria dizer e, quando
entendeu, quis matá-lo.
— Keb-na! Você sabe que não gosto que manipule os meus sonhos.
Ele não se pronunciou, ficou apenas observando-a e, depois de um
momento, ela suspirou. Claro que ele manipularia seus sonhos se achasse
melhor. Ele era um Coletor.
— É necessário que você saiba — declarou ela, mudando de assunto —
que esses ataques banbarranos precisam parar.
Ele continuou observando-a em silêncio, possivelmente porque sabia
quanto essa maldita calma gujaareen a irritava ou porque simplesmente não
tinha nada a dizer em resposta.
— Eles ameaçam a paz — continuou ela, irracionalmente compelida a
preencher o silêncio. — Se perdemos o controle de Gujaareh, poderia haver
todo tipo de caos. Rebeliões. Sabotagem.
— Por que está me contando isso?
— O Hetawa tem o ouvido do povo. Alguém em alguma parte deve ter
um primo ou tia de Banbarra. Vocês se misturam com tudo.
Nijiri apenas suspirou ao ouvir o insulto; já ouvira coisa pior vindo dela.
Eles toleravam um do outro coisas que não tolerariam de mais ninguém.
— O Hetawa apoia qualquer um que possa dar à cidade uma paz
duradoura. No momento, é Kisua. Isso nos custou caro quanto à confiança
do povo.
— Um gujaareen foi morto desta vez! Um guarda da cidade. Outro foi
gravemente ferido, apesar de terem me informado que os seus curadores
conseguiram salvá-lo. Mataram vinte dos homens do meu marido. Isso lhe
parece paz?
Ele franziu a testa.
— Parece extraordinário. Oito ataques, vinte kisuati mortos e só um
gujaareen? O que eles levaram?
Sunandi foi enumerando com os dedos.
— O conteúdo de três depósitos usados pelas nossas tropas, inclusive
uma reserva supostamente escondida de armas. Cavalos. Feixes de cevada
embalados para serem enviados a Kisua, o que imagino que serão usados
como forragem para os cavalos; só Merik pode saber o que mais poderiam
fazer com isso no deserto. Vinho de lágrima-da-lua. Couro e tecido hekeh.
Lápis-lazúli e sal marinho.
Nijiri não falou nada por um instante, pensando no assunto.
— Produtos comerciais — comentou ele. — Você diria que essas
mercadorias são especialmente apreciadas em Kisua?
Sunandi franziu o cenho.
— É, a maioria alcançaria preços altos em qualquer mercado de Kisua.
Essa comercialização diminui a perda financeira que tivemos com a
conquista de Gujaareh. — Ela suspirou. — Na verdade, perder esses
produtos já causou males: parte dos mercadores de Kisua estão pedindo
medidas mais duras no nosso controle da capital gujaareen neste exato
momento…
— Nenhuma pessoa foi levada? Eles gostam de pessoas escravizadas,
aqueles bárbaros do deserto.
Sunandi ignorou a zombaria. Os kisuati mantinham pessoas escravizadas
também.
— Nenhuma. Eles não têm nenhum receio de fazer correr o sangue
daqueles que entram em seu caminho, mas não levam prisioneiros. É sorte,
imagino.
— Duvido.
Ela franziu a testa. Algo no comportamento de Nijiri mudara. Ela
hesitava em chamar aquilo de entusiasmo, pois havia algo de errado com
qualquer Coletor que tivesse esse sentimento. Contudo, não havia dúvida
quanto à nova tensão em seu corpo.
— Explique.
O Coletor fez um aceno lento e fitou a cidade, passando os olhos de um
lado para o outro, de um lado para o outro, pelos telhados e pelas ruas. Por
um breve instante, Sunandi conjecturou se ele dormia bem.
— Para as tribos do deserto — explicou ele —, nós, moradores da
cidade, tanto gujaareen como kisuati, somos moles, decadentes, covardes e
indignos da riqueza que temos. Mesmo os shadoun, os seus próprios
aliados, só fazem negócios com vocês porque odeiam mais os gujaareen.
Então, para os banbarranos não pegarem indivíduos escravizados e evitarem
matar os gujaareen enquanto acabam com quadras de kisuati…
Sunandi agarrou o parapeito da sacada, resmungando de leve. Que tolice
a dela não ter visto!
— Estão cortejando Gujaareh para uma aliança!
Nijiri não respondeu, mas não havia necessidade; Sunandi soube de
pronto que estava certa. As tribos do Mil Vazios estavam em conflito há
tanto tempo que ninguém conseguia se lembrar. As guerras entre os
banbarranos e os shadoun, as duas tribos mais fortes, eram lendárias, mas
houvera uma paz relativa nos últimos séculos, à medida que Gujaareh
ampliara seu poder. Nenhuma tribo ousava se enfraquecer lutando contra
velhos rivais com uma nova ameaça espreitando tão perto.
Os ataques eram prova de que o longo impasse acabara. Os shadoun
eram parceiros comerciais e às vezes aliados de Kisua, e agora Kisua
controlava Gujaareh. Isso encurralava os banbarranos, cujo território se
estendia da fronteira sudoeste de Gujaareh às fortalezas das montanhas ao
sul dos shadoun, entre duas ameaças aliadas. Não era de admirar que
houvessem decidido fazer algo a respeito.
— Acha que os banbarranos estão visando mercadorias de propósito —
argumentou Sunandi, franzindo o cenho enquanto meditava sobre as
palavras de Nijiri. — Por quê? Para tornar a nossa conquista de Gujaareh
pouco lucrativa? Para provocar alguma espécie de mudança política em
Kisua?
— Eu não disse isso. Mas a tática deles mostra certa premeditação, não
acha?
Muita. Sunandi fez cara feia.
— Essa gente ignorante, nômade e amante de camelos não pensa nisso.
Uma centelha de irritação perpassou o rosto dele enfim, branda e fugaz.
— Eles não são burros, Jeh Kalawe. Fazer esse tipo de afirmação rebaixa
você.
— Até o seu povo os chama de bárbaros!
— Mas lembre-se: negociar com os bárbaros nos deixou ricos.
Diferentemente de Kisua, nunca permitimos que os nossos preconceitos nos
cegassem para o potencial ou para a ameaça da raça bárbara.
Sunandi rechaçou a bronca com um gesto, cruzando os braços sobre os
seios e começando a andar de um lado a outro.
— Os banbarranos foram orgulhosos demais para pedir ajuda no embate
contra os shadoun antes, por que procurar agora? E de Gujaareh, quando
ela é apenas uma humilde cativa de Kisua? O povo do deserto respeita a
força; Gujaareh não tem nenhuma.
— Se você acredita nisso, então você é que é burra — retrucou ele.
Ela cerrou os punhos e se virou para ele.
— O exército gujaareen…
— Era só parte do poder de Gujaareh mesmo antes da vinda dos kisuati.
Você se esqueceu dos nossos laços com as terras do norte e do leste? Como
você diz, metade dos zhinha é parente de sangue de um rei bárbaro ou
outro. E nesta terra existe a casta militar, a maioria nascida para guerrear,
que ficou ociosa… e irritada… desde que o exército foi desmantelado. Foi
um erro da sua parte fazer isso, você não tem ideia de quanto o Hetawa
trabalhou para mantê-los quietos. E a guarda da cidade, e as forças
particulares que os nobres empregam para proteger suas terras… e o próprio
Hetawa. Você tem ideia do que os meus colegas Servos poderiam fazer se
fossem provocados? Só os Sentinelas…
Ele chacoalhou a cabeça, passou as duas pernas para o lado interno da
sacada e inclinou-se para a frente. Sunandi conteve o impulso de se afastar
um passo daquela súbita atenção. Coletores não deviam sentir fortes
emoções, mas Nijiri sempre fora temperamental.
— Sei o que Kisua pensa de nós. Vocês nos chamam de ovelhas
adormecidas, satisfeitas por nos livrarmos de todos os nossos problemas
através dos sonhos. Mas quando a ira de Gujaareh desperta, ela queima
como a de qualquer outra terra… mais ainda, porque nós a reprimimos com
tanta frequência. Mas, se essa ira se libertar, Kisua vai perder o controle.
Ela o encarou de volta e tentou ignorar sua inquietação.
— Você disse que o Hetawa nos apoiava.
— O Hetawa apoia vocês por enquanto. Mas, se surgir uma opção
melhor, Jeh Kalawe, se o caminho mais rápido e mais garantido para a
estabilidade vier a partir do massacre de cada kisuati dentro das nossas
fronteiras, então esteja certa de que o Hetawa garantirá que seja feito. —
Então, para surpresa de Sunandi, a raiva nos olhos dele mudou, tornando-se
algo mais pesaroso. — Todos esses anos e ainda somos estranhos para você.
— Estranhos, não — respondeu ela, sentindo-se estranhamente
ofendida. — Sei o quanto a paz é importante para vocês.
— É mais do que importante, Jeh Kalawe. É o nosso deus. — Nijiri se
pôs de pé e suspirou. — Uma coisa eu te digo: seu palpite estava correto.
Nós fomos contatados pelo representante do líder banbarrano.
Sunandi conteve a respiração.
— Eu não sabia que eles tinham um líder.
— Os banbarranos são muitas tribos, é verdade, com muitos líderes.
Mas, em tempos de guerra, eles se tornam um corpo com uma cabeça. É
provável que o homem com quem estamos lidando se torne essa cabeça.
— Quando eles contataram vocês?
— Após os primeiros ataques à cidade. O que você me falou apenas
confirma algo de que nós mesmos tínhamos começado a desconfiar. E não
me pergunte se e quando a reunião vai acontecer. Os assuntos do Hetawa
não são da conta dos Protetores.
E é claro que ela não podia prometer que manteria a informação em
segredo, dado o seu papel como Voz dos Protetores, assim como ele não
podia prometer uma cooperação duradoura com ela. Cada um deles tinha
seus mestres a servir.
Então fez uma pergunta aberta para permitir que o Coletor tivesse
espaço para manobrar entre as lealdades dela e as dele:
— Há algo que você possa me contar?
Ele aquiesceu com o mais leve ar de aprovação.
— O porta-voz do líder banbarrano, quando vieram nos procurar, era
um gujaareen da casta militar. Do alto escalão. Ele alegava ter sido general
antes da conquista. Zhinha de nascimento. — Ele a observava enquanto
dizia isso.
— Que a Deusa nos proteja — sussurrou Sunandi, a pele se arrepiando
não só devido ao frio da noite. Shunha e zhinha, as duas castas nobres de
Gujaareh, orgulhosas demais para receber ordens de qualquer um de casta
inferior, não costumavam entrar para o exército. Mas havia uma linhagem à
qual um general nascido zhinha serviria com prazer, até mesmo no exílio.
Nijiri não fez nenhum comentário sobre a blasfêmia dela… talvez
porque percebesse, pelo menos de momento, que ela estava sendo
totalmente sincera.
— Pense o que quiser — falou ele. — Agora volte para o seu marido
antes que ele sinta a sua falta. — Ele se levantou para partir e, com o
movimento, uma das duas tranças na nuca passou por cima do seu ombro.
O gesto e o penteado eram tão familiares que uma leve pontada agitou o
coração de Sunandi.
— Como você está, Nijiri? — perguntou ela, colocando uma ligeira
ênfase na palavra você.
Ele parou, mas não se virou para encará-la.
— Estou bem, Jeh Kalawe.
— Eu… — ela hesitou, mas enfim disparou: — Realmente sinto falta
dele. Dá para acreditar? Nós não éramos amigos. E, no entanto…
Nijiri se segurou no parapeito.
— Nós dois vamos encontrá-lo de novo um dia. Você pode até encontrá-
lo antes de mim; você é mulher, vocês têm mais poder do que eu para
encontrar o caminho dentro de Ina-Karekh. E você ainda pode sonhar.
Ela se esquecera daquilo. Ele era um verdadeiro Coletor agora, pagando
o preço de um Coletor pelo poder.
— Eu lamento — disse ela. Sunandi não conseguiu distinguir se o tom
na voz dele era tristeza ou apenas resignação; fosse como fosse, havia uma
dor subjacente. Hesitante, Sunandi estendeu a mão até o ombro dele, se é
que o gesto serviria de alguma coisa. Seus dedos mal roçaram a pele do
jovem antes que ele virasse e segurasse sua mão.
— Não lamente — respondeu ele. Nijiri levou as costas da mão da
mulher até a sua bochecha e manteve o rosto encostado nela por um
instante, fechando os olhos e talvez imaginando a mão de outra pessoa em
seu lugar. Nesse momento, ela pensou em como ele devia ser solitário, pois
ninguém tocava um Coletor, não intencionalmente. Eles consolavam os
outros, mas carregavam a própria dor sozinhos.
Mas, para a surpresa de Sunandi, Nijiri abriu os olhos e franziu a testa.
— Você nunca vai se encontrar com ele desse jeito. Por que não veio me
procurar? Você sabe que eu a teria ajudado.
E, antes que ela pudesse perguntar do que ele estava falando, Nijiri
estendeu a mão até o rosto dela. Sunandi piscou em uma reação instintiva e
sentiu a ponta dos dedos dele roçar suas pálpebras por um instante e então
ele se afastou. Quando ela abriu os olhos, ele havia saltado e se agachado
sobre o parapeito, ágil como um pássaro.
— Não volte a me chamar — ele falou por cima do ombro. — As coisas
estão mudando rápido demais. Errei, Jeh Kalawe, quando afirmei que você
não nos entendia. Você entende tanto quanto é possível para qualquer
estrangeiro e melhor do que qualquer outro kisuati. É por isso que vou
perdoar você, não importa o que os Protetores a obriguem a fazer.
Enquanto Sunandi o fitava de volta, tentando entender aquilo, ele se pôs
de pé sobre o parapeito, equilibrando-se com facilidade, sem se importar
com a altura. Segurando uma saliência acima, ele ergueu o corpo em um
único movimento suave. Depois sumiu.
Só quando voltou ao quarto é que Sunandi entendeu o que ele fizera.
Mais exatamente, ela entendeu de manhã, quando acordou nos braços de
Anzi, confortável e mais descansada do que se sentira em anos. Anzi a
puxara para perto de si durante a noite, com certeza dando-lhe um puxão no
processo. Todavia, ela não acordara nenhuma vez.
5

O PORTADOR DO DÍZIMO

— Não — disse Mni-inh.


Hanani manteve a cabeça curvada, os braços cruzados à frente com as
palmas para baixo. Mni-inh, sentado em um banco acolchoado
massageando um dos joelhos, fez cara feia quando ficou nítido que ela não
tinha intenção de sair do lugar.
— Falei que não, Hanani. — Ele se endireitou, colocando o sobrepano
vermelho de volta no lugar com um peteleco. — O Hetawa já pediu
desculpas à família do portador do dízimo. Ele vai ter um funeral formal
completo na cripta do próprio Hetawa, uma honra concedida apenas a
Servos de Hananja. Deixe que isso seja suficiente.
— A morte do portador do dízimo não é culpa do Hetawa — retorquiu
Hanani, mantendo os olhos no peito dele. Sob a baixa luminosidade da
manhã, o colarinho rubro do cargo dele parecia gotículas de sangue
espalhadas por toda a sua pele clara.
Mni-inh hesitou e sentou-se. Mas o Salão dos Compartilhadores ficava
quase vazio entre o amanhecer e o meio-dia, enquanto aqueles que
trabalhavam à noite dormiam e o restante se mantinha ocupado com as
tarefas diurnas habituais de um Compartilhador no Salão de Bênçãos ou na
câmara de ervas e plantas medicinais. Os poucos que perambulavam pelos
bancos e pelos cantos do salão estavam estudando, absortos, ou conversando
com outras pessoas. Ninguém olhava para Hanani e Mni-inh, mas ele olhou
para toda parte para se certificar e se aproximou antes de voltar a falar.
— Nem é culpa sua, tolinha! Não faça o trabalho de Yehamwy para ele,
Hanani. Como espera que o Conselho acredite que é competente se você
mesma não acredita?
Ela ergueu a cabeça e o viu recuar, surpreso.
— Não acredito que sou incompetente, Mni-inh-irmão. Como eu
poderia, depois do seu treinamento?
— Então por que visitar a família do portador do dízimo?
Era uma pergunta que Hanani fizera a si mesma a noite toda durante as
horas que passara chorando e rezando e por fim caiu no sono. Ela não
sonhara, não houvera resposta para as suas orações em busca de paz e
compreensão. E então acordara aquela manhã com os pensamentos tomados
por um único impulso: descobrir por que Dayu morrera.
— Porque meu coração está privado de paz neste exato momento —
respondeu ela. Mni-inh recuou ao ouvir isso, franzindo a testa. — A dúvida
veio preencher este vazio. Será que forcei mesmo o Dayu a ir longe demais,
rápido demais? Será que aquele portador do dízimo morreu porque eu
esperava que uma criança fizesse o trabalho de um adulto? Você sabe o que a
dúvida pode fazer na narcomancia, irmão. Mesmo que o conselheiro não
tivesse me interditado, eu me recusaria a realizar curas agora.
Mni-inh suspirou com um tom de frustração.
— Isso eu entendo. Mas como o fato de pedir desculpas a uma viúva
enlutada que pode culpar você pela morte do marido, seja culpa sua ou não,
vai aliviar a sua dúvida? — Ele ficou sério de repente. — Espere. Sei o que
está acontecendo. É a primeira vez que você lida com a morte.
— Não é isso — contestou ela, embora desviasse o olhar para não ver a
compaixão nos olhos dele. Nos primeiros meses do seu treinamento naquele
caminho, Hanani na verdade suspeitara que Mni-inh guardava um sadismo
secreto na alma, disfarçando-o dos Coletores de algum modo, mas o
infligindo com alegria no aprendiz relutante sob o pretexto da mentoria. Ele
fora duas vezes mais duro com ela do que com os outros Compartilhadores
com seus aprendizes do sexo masculino, mencionando quando ela reclamava
que teria de ser duas vezes melhor para superar os temores dos requerentes
quanto ao seu sexo. E o ódio dele, ela sentira-se segura disso.
Contudo, à medida que os meses se tornaram anos e Hanani
amadurecia, ela entendera enfim que a dureza de Mni-inh era fingimento.
Por trás daquela dureza, sua verdadeira personalidade era muito mais
branda. Demasiado branda, Hanani achava agora, extremamente desprovido
da calma e do estoicismo que os fiéis esperavam dos Servos de Hananja. Ele
tomava o desrespeito para com ela como insulto pessoal, irritava-se
constantemente com o ritmo lento de mudança do Hetawa, esquecia o tato
e dizia coisas que prejudicavam sua posição entre os irmãos de caminho. Era
verdade que sua falta de ortodoxia provavelmente fizera dele o melhor
professor para ela, mas havia momentos em que Hanani teria achado mais
fácil lidar com o capataz da sua juventude do que com o irmão mais velho
imprudente e superprotetor que ele se tornara desde então.
— Vê-la vai fazer eu me sentir melhor — afirmou ela enfim, com
firmeza. — E eu simplesmente preciso saber mais, Mni-inh-irmão. Preciso
conhecer o homem que morreu com Dayu. Preciso entender o que
aconteceu ou pelo menos começar a tentar.
Mni-inh a encarou. Suspirou outra vez, afinal, passando uma das mãos
pela cabeleira peculiar, ondulada, de aparência oleosa.
— Tudo bem. Vá.
Ela se levantou de um salto e já dera três passos antes de ele perguntar
atabalhoadamente:
— Você vai agora? Ah, deixe para lá, é melhor você ir ou posso mudar de
ideia. Apenas tome cuidado.
— Obrigada, Mni-inh-irmão.
Ele murmurou algo baixinho que ela desconfiou não ser uma prece.
Então Hanani saiu do Salão dos Compartilhadores, atravessando o
enorme pátio aberto do Hetawa interior a caminho do Salão de Bênçãos.
Dois Professores-Aprendizes, os braços carregados de pergaminhos,
fitaram-na ao cruzar com ela e começaram a cochichar quase tão depressa
quanto ela saiu do alcance do ouvido. Um Sentinela idoso sentado em um
degrau observou-a, estreitando os olhos, como que tomando suas medidas.
Ela acenou para ele, que acenou em resposta.
Não foi difícil para Hanani adivinhar o que estava por trás de tantos
olhares que lhe foram lançados no decorrer da manhã. Ela participara de
uma oração dançante em grupo naquela manhã e sentira muitos olhos sobre
si. Nos banheiros, alguns dos outros aprendizes haviam sido mais mordazes
do que de costume em desviar a vista da nudez dela. Nem todos os seus
colegas Servos a achavam responsável pelas duas mortes, ela sabia. Mas
ficara evidente, pelos olhares e cochichos, que muitos achavam.
Se ela já não estivesse se sentindo tão deprimida, os olhares teriam
cobrado seu preço. Tal como estava a situação, nada podia machucar mais
do que a perda de Dayu.
O Salão de Bênçãos proporcionou algum alívio, pois os
Compartilhadores em serviço estavam ocupados demais para sequer olhar
para ela. A fila de requerentes estava mais comprida do que o habitual,
cinquenta por cento maior do que a fila de portadores de dízimo. Quase
todos na fila dos requerentes mostravam alguma lesão visível: um braço
pendurado, um pé ou a cabeça enfaixados. Mais ferimentos do ataque
banbarrano, percebeu ela, junto aos acidentes costumeiros da época da
colheita e da vida cotidiana na cidade. Os mais machucados, como o
soldado que Hanani curara no dia anterior, haviam sido tratados primeiro.
Agora havia tempo e magia suficiente para o restante.
Iria mais rápido se eu estivesse lá, pensou ela enquanto passava pela
plataforma. Mas não havia paz nem sentido em tais pensamentos, então ela
seguiu em frente.
As grandes portas duplas ficavam abertas nas horas de atendimento ao
público e, ao passar do Salão frio e pouco iluminado para o barulho e a
claridade do lado de fora, parou nos degraus para deixar os olhos se
ajustarem. O calor estava tão intenso que fez sua pele comichar…
agradavelmente em um primeiro instante, no entanto ela logo começaria a
suar. Ela ergueu uma das mãos para cobrir os olhos e observou a vastidão
agitada e movimentada da praça do Hetawa. Viu ali por perto um punhado
de devotos sentados nos degraus com o intuito de orar e, mais adiante,
mercadores andavam de um lado para o outro, vendendo água e frutas
cortadas aos transeuntes. Ao longo da via principal do outro lado da praça,
dezenas de pessoas perambulavam e seguiam seu caminho para o mercado
ou para a margem do rio ou só os sonhos sabiam para onde mais. Muitas
pessoas, muito caos e muitos que encarariam seus seios enfaixados e
achatados ou então o sobrepano vermelho e masculino atado em torno do
quadril largo de uma mulher. Ela jamais gostara de se aventurar pela cidade.
E, no entanto…
Nenhuma daquelas pessoas agitadas e de passo rápido sequer a fitou
enquanto ela as contemplava dos degraus do Hetawa. Mesmo os que
olhariam quando ela houvesse se juntado àquele fluxo movimentado
pensariam apenas que era uma mulher com roupa de homem. Não sabiam o
que ela fizera e, além do mais, não se importavam. Era estranho e, de certo
modo, um alívio considerar isso.
— Você deveria ter uma escolta, Compartilhador-Aprendiz.
Hanani alçou o olhar para as pequenas sacadas que davam para os
degraus do Hetawa. Os dois homens agachados ali vestiam sobrepanos
pretos e colarinhos de ônix, calma e mortalmente estáticos. Hanani
reconheceu o que falara com ela como sendo Anarim, um Sentinela sênior.
O outro era um Sentinela que ela não conhecia. Enquanto Anarim focava
sua atenção nela, aquele outro mantinha o olhar nos degraus e nas ruas mais
além, alerta para quaisquer ameaças ao templo e aos devotos da Deusa.
Independentemente disso, ela fez uma mesura aos dois.
— Já fui à cidade servir requerentes muitas vezes, Sentinela. Consigo
encontrar o caminho.
— Não tenho dúvidas disso, Aprendiz. Mas não foi por isso que sugeri
uma escolta. — Anarim, como a maioria dos membros de seu caminho, era
esguio como o cordão de um chicote; era algum efeito do treinamento que
eles faziam. O Sentinela levara essa semelhança mais longe sendo um tipo
de homem alto e estreito com dedos compridos e um rosto anguloso e lábios
tão finos quanto os de um nortenho. Aqueles lábios finos se contorceram
agora em tênue reprovação, apesar de, fora isso, ele manter o semblante
inexpressivo. Ela soube de imediato que a reprovação não era para ela. —
Os kisuati parecem incapazes de evitar ataques e outras perturbações dentro
dos muros da cidade nos últimos tempos. As coisas não estão tão pacíficas
como deveriam. Eu ou outro membro do meu caminho podemos
acompanhá-la.
Hanani refletiu, mas depois chacoalhou a cabeça.
— Vou para me humilhar diante de um estranho, Sentinela Anarim.
Levar um guarda poderia ser malvisto. Além do mais… — Ela apontou
para as próprias roupas. — Esta roupa me proporciona uma proteção que
não é pequena. Isso não mudou, kisuati ou não.
— Muito bem, Aprendiz. Vá, e volte, na paz Dela. — Então, para
grande surpresa de Hanani, Anarim inclinou a cabeça para ela. A jovem
ficou olhando, pois era só uma aprendiz e ele era um dos mais respeitados
Servos do Hetawa, um membro do Conselho dos Caminhos. Mas, quando
Anarim se endireitou, retomou sua posição de guarda, os olhos vasculhando
a praça em busca de ameaças em potencial, e teria sido desrespeitoso distraí-
lo falando de questões tão pequenas.
Mas a mensagem era clara: pelo menos ele acreditava que ela não tinha
culpa das mortes. A moça se afastou, sem saber ao certo como se sentir…
mas, não obstante, sentindo-se melhor.
O nome do portador do dízimo era Bahenamin e ele fora um rico
membro da casta mercante. Sua família vivia na extremidade do distrito dos
nobres, perto do Jardim Yafai, a metade oeste da cidade, do outro lado do
rio. Embora pudesse ter mostrado ao motorista de um transporte de tração
humana o seu símbolo de lágrima-da-lua do Hetawa e ter sido levada aonde
quisesse, ela hesitou em fazê-lo. O símbolo deveria ser usado apenas para
tratar de questões do Hetawa. Será que se enquadrava nesse caso a situação
de pedir desculpas por uma morte que ela poderia ter causado? Ela não fazia
ideia, mas não tinha nenhuma vontade de tentar justificar aquilo para o
Conselho. Foi andando.
Como sempre, as multidões e o tráfego eram um contraste dissonante
em relação à ordem silenciosa do complexo do Hetawa. Hanani juntou-se
ao fluxo da via principal, o que de imediato a forçou a se locomover em um
ritmo que teria sido inaceitável no Hetawa, a não ser em emergências.
Quando passou por um mercado, o tráfego desacelerou, transformando-se
em um grupo compacto que dava empurrões, um emaranhado que se
formara por nenhum motivo que ela pudesse discernir além da pura
natureza inquieta desse rio humano: rios inevitavelmente tinham
corredeiras. Ali ela levou cotoveladas, foi empurrada, teve os pés com
sandálias pisados e cerveja derrubada em seu braço. Quando as pessoas viam
sua vestimenta vermelha, abriam caminho, mas, na maioria dos casos,
simplesmente não a viam. Não pela primeira vez Hanani desejou que uma
de suas antepassadas houvesse chamado a atenção de algum homem alto e
belo de alguma alta-casta por uma ou duas noites.
O tráfego diminuiu próximo à margem do rio, graças à Sonhadora,
embora isso se desse em grande parte devido ao cheiro. Os peixeiros
estavam trabalhando duro perto da ponte mais ao norte da cidade, vendendo
algas marinhas secas e a pesca da manhã. A pesca dos dias anteriores
também estava aqui, apodrecendo em urnas especiais vedadas debaixo da
ponte. Quando pronta, a pasta fluida enriquecia o solo para os cultivos nos
arredores do vale do rio Sangue, que ficavam fora do alcance da inundação
que renovava a fertilidade de Gujaareh todos os anos. Mas, embora as urnas
de pasta fluida houvessem sido vedadas com piche e cera e pasta de semente
de hekeh, parte suficiente da fedentina tóxica escapava, de maneira que o
próprio ar fazia os olhos de Hanani lacrimejarem. Ela prendeu a respiração
e atravessou a ponte correndo, parando apenas quando um grupo de caracais
desgarrados precipitaram-se em seu caminho, perseguindo um do bando,
que carregava uma cabeça de peixe.
Por fim, chegou ao distrito do Jardim Yafai. A casa de Bahenamin era
uma construção alta em estilo kisuati com vergas de madeira azul em um
canto do outro lado do jardim. Os pictorais da sua linhagem foram
entalhados em um bastão fixado próximo à entrada da casa. Borboletas com
pintas de leopardo pairavam sobre os tijolos da passarela da casa, dançando
naquela onda de calor; Hanani tomou o cuidado de não pisotear nenhuma
daquelas criaturas adoráveis. Mas, para sua surpresa, a porta abriu antes que
ela pudesse alcançá-la e uma jovem serva saiu com um tecido índigo mais
intenso — a cor do luto — nas mãos. A garota trajava um vestido curto e
justo de estampas azuis entrelaçadas em vez de estar com o peito descoberto
como a maioria dos servos nos dias quentes: uma família de luto aderia a
roupas formais em caso de visitantes.
Hanani esperou enquanto a serva terminava de enrolar o tecido em volta
do bastão da linhagem… então avistou Hanani e parou também, piscando,
surpresa.
— Saudações, estranha. Você tem algo a tratar aqui?
Hanani fez uma mesura, virando as palmas das mãos para cima a fim de
cumprimentá-la.
— Venho do Hetawa. Gostaria de conversar com a família do mercador
Bahenamin.
— Esta é a casa dele, que ele viva na paz Dela para sempre. — A serva
então fitou Hanani por um intervalo de tempo um pouco maior, analisando-
a de alto a baixo com uma expressão confusa familiar. — Do Hetawa, você
disse?
— Sim — respondeu Hanani, esperando. O sobrepano era declaração
suficiente, ou deveria ser, de sua identidade. Como garantia adicional aos
que pudessem duvidar, Hanani sempre tomava o cuidado de usar também o
colarinho de pequenas cornalinas polidas que lhe fora dado quando se
juntara ao caminho dos Compartilhadores. Entre isso e o sobrepano, e
quaisquer boatos que corressem pela cidade, a maioria das pessoas a
conhecia à primeira vista: a única mulher que recebera permissão para seguir
um dos quatro caminhos sagrados do serviço à Deusa.
Demorou um momento no caso da serva, mas depois Hanani enfim viu
o reconhecimento perpassar o rosto dela. Só então acrescentou:
— Sou Hanani, aprendiz do caminho dos Compartilhadores.
A serva por fim se lembrou de ter modos e inclinou a cabeça.
— Por favor, entre, Compartilhador-Aprendiz.
A casa, quando entraram no hall, era bem mais fria e confortável do que
o calor sufocante de fim de tarde do lado externo. O hall dava diretamente
no modesto átrio da família, onde pequenos arbustos e plantas cercavam
uma bela tamareira de bom tamanho. Sua copa projetava sobre o átrio faixas
de sombra. Debaixo dessa árvore, fora construído um ninho de cobertas e
almofadas. Ali estava reclinada uma mulher corpulenta e grisalha que usava
uma vestidura kisuati em um tom intenso de índigo. Seu rosto, Hanani viu
quando a serva foi falar com ela, era enrugado e estava inchado, o branco
dos olhos vermelho de chorar. Mas se fixaram profundamente em Hanani
enquanto a serva falava e, após um instante, a mulher acenou para que
Hanani se aproximasse.
Hanani entrou no jardim e se curvou sobre as duas mãos.
— Obrigada pela honra da sua hospitalidade.
A serva se apressou em colocar outra almofada no chão. A mulher
acenou e disse:
— Por favor, sente-se, Compartilhador-Aprendiz, e seja bem-vinda.
Meu nome é Danneh. Na vigília, fui a primeira mulher de Bahenamin.
Hanani sentou-se e a serva se retirou em resposta a algum sinal
despercebido de Danneh.
— Vim pedir desculpas — falou Hanani quando se passara um espaço
pacífico de tempo. Em seu íntimo, Hanani sentia-se rígida, embora já
houvesse decidido que aceitaria quaisquer palavras que a mulher lhe atirasse,
que suportaria qualquer fúria. — Sinto que tenho alguma responsabilidade
pela morte do seu marido. Foi meu assistente que pegou a doação dele
naquele dia.
Danneh franziu a testa.
— A criança que morreu com ele?
— Sim. Ele era um acólito contemplando o caminho dos
Compartilhadores. Ele tinha sido treinado e o procedimento era comum,
mas… — Ela chacoalhou a cabeça, à procura de alguma explicação que
fizesse sentido. Nada fazia. — Algo saiu errado. A culpa é minha.
Mas Danneh franziu ainda mais a testa.
— Disseram para mim que foi um acidente.
— Meu assistente só tinha treze anos, novo demais para assumir uma
tarefa tão importante…
— Não. — Danneh chacoalhou a cabeça. — A idade da escolha é doze.
Treze é idade suficiente para uma criança assumir responsabilidade pelos
próprios atos. Você confiava nele para a tarefa? Esperava que ele fosse
falhar?
— Eu… — De todas as reações que Hanani se preparara para suportar,
essa não era uma delas. — Eu confiava nele, senhora.
— Foi a primeira vez que ele fez o procedimento?
— Não, senhora. Ele já tinha feito antes, muitas vezes. Todos os acólitos
aprendem a extrair e a repassar humores oníricos, independentemente do
caminho que escolhem no final.
Danneh suspirou.
— Então foi um acidente. Ou… — Ela lançou a Hanani um súbito
olhar perspicaz. — Alguém mandou você aqui para pedir desculpas?
— N-não. — Aquela maldita gagueira aparecia sempre que ela ficava
nervosa. — Ninguém me mandou, mas…
— Mas eles culpam você. É claro que culpariam. — Danneh chacoalhou
a cabeça e deu um ligeiro sorriso. — A única mulher do Hetawa. Achei que
você fosse mais alta.
Hanani se remexeu um pouco na almofada, sem saber ao certo como
deveria reagir a essa declaração.
— Eu esperava saber mais sobre o seu marido — comentou ela.
Foi uma mudança muito brusca, uma transição desajeitada na conversa.
O sorriso de Danneh desvaneceu de imediato e Hanani repreendeu-se em
silêncio por cometer um erro tão deselegante. Mas então Danneh respirou
fundo e aquiesceu.
— Saber mais sobre ele — repetiu ela. — É. Isso me deixaria feliz.
Isso…
Para o choque de Hanani, os olhos da mulher de repente se encheram de
lágrimas. Danneh desviou o olhar e pôs a mão sobre a boca pelo intervalo
de várias respirações, reprimindo um soluço. Hanani estendeu o braço em
busca de tocar a outra mão dela e ficou ainda mais alarmada quando a
mulher agarrou sua mão com força. Mas o contato pareceu ajudar Danneh a
recobrar o controle.
— Me perdoe — pediu ela após o tempo de algumas respirações. — Sei
que deveria ir ao Hetawa pedir paz. Mas parece… melhor, de certo modo,
deixar a tristeza fluir livremente.
— É — concordou Hanani pensando nas próprias longas noites desde a
morte de Dayu. Parte desse sentimento deve ter se manifestado em sua voz
porque então Danneh reuniu forças para dar um sorriso úmido.
— Diga-me o que quer saber sobre o meu Hena?
Hanani ficou pensando.
— Bahenamin era um homem devoto?
Danneh não soltara a mão de Hanani, embora a segurasse com menos
força. De um modo quase distraído, ela deu batidinhas na mão de Hanani,
talvez buscando consolo no plano físico porque o intangível lhe causava
tanta dor.
— Não muito. Ele fazia suas doações todo mês, fazia oferendas na Noite
Hamyan, não mais do que isso. Mas dessa vez ele tinha ido ao Hetawa para
rezar.
— Por que dessa vez em particular?
— Sonhos. — Danneh suspirou e secou os olhos com um tecido. — Ele
vinha tendo sonhos ruins.
A pele de Hanani se arrepiou, como se uma repentina brisa gelada
houvesse soprado pelo átrio, embora as folhas da tamareira estivessem
imóveis.
— Não entendo — comentou ela. — Toda criança gujaareen aprende a
lidar com sonhos perturbadores.
— Hena tentou, mas os truques de costume não funcionaram. Ele
alegava que alguma coisa estava esperando por ele. Seguindo-o, como uma
leoa segue a presa. Foi por isso que ele foi para o Hetawa: estava com receio
de que os deuses pudessem estar bravos com ele por alguma razão.
Alguma coisa estava esperando por ele. Movimento no escuro. Uma
malevolência à espreita.
— Ele era um sonhador vigoroso? — perguntou Hanani. Sua mão devia
ter estremecido na de Danneh, mas a senhora não pareceu notar.
Danneh chacoalhou a cabeça, sorrindo um pouco para si mesma com o
carinho recordado.
— O Hetawa o deixou de lado quando tinha quatro inundações. Não lhe
ofereceram nem o treinamento para leigos, ele não tinha talento nenhum
para os sonhos.
— E ele teve esse sonho só uma vez?
— Duas vezes em duas noites. Na terceira, ele não dormiu, o medo o
manteve acordado. No dia seguinte o pressionei a ir ao Hetawa e ele enfim
foi. — Danneh suspirou. — Não dei muita importância, para ser sincera.
Achei que os Compartilhadores tirariam os pesadelos dele e lhe dariam uma
boa noite de sono, e esse seria o fim. Ele tinha ido a um funeral dias antes…
Khanwer, um lorde shunha com quem fazia negócios com frequência. Ver
um amigo morrer pode empurrar qualquer homem para perto da terra das
sombras por algum tempo… — Ela ficou em silêncio outra vez, mas
Hanani identificou o discernimento nos olhos dela. Ele morreu daquele
sonho.
Era uma verdade que Hanani também sentia agora, com uma certeza
instintiva, embora não manifestasse nada em voz alta. Que mulher iria
querer saber que as coisinhas aparentemente sem importância que ela
notara, notara sem qualquer preocupação, deixaram-na viúva? Que mulher
não se culparia em um caso desses?
E o que era mais preocupante, o que significava o fato de que Hanani
sentira algo esperando por ela no espaço entre sonhos naquele dia, assim
como Bahenamin parecia ter sentido antes da morte?
— Obrigada — disse Hanani. — Talvez isso ajude a mim e aos meus
irmãos a descobrir como aconteceu. — Então, em uma grande ousadia, ela
apertou a mão de Danneh em resposta. — Que Hananja lhe conceda paz na
vigília até que possa vê-lo outra vez em Ina-Karekh.
Danneh sorriu antes de enfim soltar a mão da jovem.
— Você é uma boa menina — comentou ela. — Os Servos de Hananja
sabem escolher.
Sentindo que a conversa chegara a um fim gracioso, Hanani acenou
timidamente e se levantou.
— Gostaria de voltar — arriscou ela. — Para ouvir mais sobre
Bahenamin. E, se prefere não ir ao Hetawa a fim de aliviar a sua tristeza,
então talvez eu possa voltar da próxima vez que receber o dízimo de um
Coletor.
— Eu também gostaria disso — respondeu Danneh —, mas não pelo
sangue onírico.
O sorriso da mulher fez Hanani sorrir também ao curvar-se para uma
última despedida.
— Então com certeza vou voltar — falou. — Em paz, mercadora
Danneh.
— Em paz, criança.
Do lado de fora, Hanani desceu os degraus devagar, os pensamentos
agitados como o céu em uma estação de inundação. Por conta disso, não viu
a serva às suas costas oferecer-lhe uma mesura completa de respeito antes de
fechar a porta da casa.
6

OCUPAÇÃO

Wanahomen estava tão perdido em lembranças enquanto andava pelo


coração da Cidade de Hananja (de novo, até que, enfim, desta vez sem estar
oculto pelas roupas banbarranas, e sim como seu verdadeiro eu) que não
percebeu os soldados kisuati até ser quase tarde demais. Fora pego pelo
perfume do Jardim Yafai, que estava carregado de lágrimas-da-lua e jasmins
e lhe lembrava de noites do passado no Yanya-iyan jogando dados com o pai
e Charris. Quando alçou o olhar e viu dois soldados batendo em um
homem gujaareen quase até a morte, já estava praticamente em cima deles.
A vítima era um vendedor de frutas que estendera uma manta próximo
ao portão do jardim e organizara pilhas de figos e melões-edaki e dyar-a-
whe espessos e verdes para atrair os transeuntes. A lei da cidade determinava
que os mercadores podiam vender seus produtos apenas nas áreas de
mercado designadas: isso mantinha as coisas em ordem. Entretanto, em dias
como esse, em que os pavimentos da rua estavam quentes o suficiente para
assar pão e uma mordida em uma fruta fresca e agradável seria bem-vinda
para qualquer pessoa, a maioria dos guardas da cidade teria feito vista
grossa.
Os soldados kisuati não fizeram. O mercador implorava diante deles, sua
voz uma súplica alta. “O trabalho de uma semana!” foi tudo o que
Wanahomen o ouviu dizer enquanto um dos homens o empurrava com o
pé. “Minha família vai ficar sem dinheiro…” E então seu protesto se
transformou em um arquejo quando um dos soldados pisoteou a pilha de
figos.
— O trabalho de uma semana? Isto? — O soldado falou com um forte
sotaque da planície. — Sou fazendeiro. Meu trabalho de uma semana
encheria este jardim! Ah, só em Gujaareh pessoas preguiçosas poderiam
ficar tão ricas. — Ele olhou para o colega e sorriu. — Devemos ensinar a
esse tingam o valor do trabalho duro? — Ele pisoteou outra fruta, que
respingou, madura; o colega deu risada.
Um homem gujaareen de verdade teria adotado uma postura estoica a
essa altura e suportado em silêncio qualquer abuso que os soldados lhe
impusessem. Era a única atitude sensata e pacífica a se tomar: os soldados
estavam entediados e era muito evidente que a resistência só provocaria um
comportamento pior. Mas parecia que o mercador estava mesmo
preocupado com as finanças da família, ou talvez apenas não estivesse se
sentindo pacífico. Antes que o soldado pudesse pisar o edaki, o mercador se
mexeu para cobrir aquela pilha com o corpo.
O que se seguiu era totalmente previsível, porém chocante de ver,
mesmo para Wanahomen, que testemunhara situações muito piores nos
anos que decorreram após sua saída de Gujaareh. Os soldados começaram a
chutar o homem para valer, primeiro pisoteando as costas e os ombros em
vez da fruta e depois chutando as costelas e a lateral do corpo quando ele
não saiu do lugar.
Wanahomen parou na esquina do outro lado daquela cena feia. Havia
algumas outras pessoas na rua; Wanahomen podia vê-las apontando e
cochichando umas com as outras. Uma delas talvez acabasse reunindo a
coragem para interferir… ou talvez elas apenas ficassem de lado e
observassem enquanto o pobre tolo era chutado até a morte. De qualquer
modo, Wanahomen não ousava se envolver. Entrara na cidade usando um
disfarce: um sobrepano limpo, porém simples, e um lenço na cabeça,
sandálias gastas e um colarinho barato em tom de bronze. A vestimenta de
um trabalhador comum. Contudo, debaixo do sobrepano estava uma de suas
facas banbarranas, presa à parte de cima da sua coxa, e havia joias
banbarranas em sua bolsa. Se confrontasse os soldados, eles poderiam
prendê-lo e era quase certo que encontrariam a faca e as joias. Isso levaria a
perguntas perigosas.
Embora dar as costas afligisse Wanahomen, por mais pragmática que
fosse a escolha…
— O que vocês estão fazendo? — perguntou uma voz e a cabeça de
Wanahomen se virou em um puro reflexo incrédulo.
Uma mulher estava parada diante dos soldados, que haviam cessado dos
chutes no mercador para fitá-la. O próprio Wanahomen não pôde deixar de
olhar. A mulher… uma jovem, na verdade, que passara só alguns anos da
idade do amadurecimento… usava roupas masculinas, desde sobrepanos
notadamente embainhados a um colarinho que devia ter sido feito para
ombros mais largos do que os dela. Sob o colarinho, seus seios haviam sido
fortemente cobertos com ataduras brancas, como aquelas usadas em corpos
que esperavam a cremação. Isso não servia de nada para esconder seu
volume, mas o traje todo parecia estranho demais para ser erótico. Seu
cabelo marrom-dourado fora puxado para trás em um severo coque
nortenho que não ajudava em nada a adornar seu rosto e ela não usava
maquiagem, nem sequer kohl para amenizar o brilho do sol.
Mas era o tom cornalina do seu colarinho e o intenso vermelho-sangue
dos sobrepanos que mais intrigaram Wanahomen. Ela parecia um
Compartilhador de Hananja, mas mulheres não se tornavam
Compartilhadores nem nenhum outro tipo de Servos.
— Por que estão machucando esse homem? — indagou ela, e agora
Wanahomen podia ouvir o choque em sua voz. A jovem estava na vereda de
entrada do jardim; talvez tivesse vindo de lá, sem conseguir ver o
espancamento por entre as folhas e flores até surgir bem em cima da
agressão. — Que tipo de… Como puderam… — Ela parou de falar,
aparentemente horrorizada demais para terminar qualquer pensamento.
Os soldados se entreolharam.
Vá embora, pensou Wanahomen sobre a mulher. Mesmo sem querer, ele
diminuiu o passo, cerrando os punhos nas laterais do corpo. Apenas dê as
costas e reze para eles não seguirem você.
— Compartilhador… — A fala vinha do mercador, que tossiu ao
levantar o olhar; ele respirava com dificuldade e havia sangue em seu rosto.
— Compartilhador, você não deve… Não se incomode com esses
cavalheiros. Certo? — Ele olhou para os soldados, dando um sorriso
bajulador. — Estão só me corrigindo; descumpri a lei. Você deveria voltar
para o Hetawa, está tudo bem.
— Isso não está na lei — falou a mulher, e Wanahomen se perguntou se
ela estava confusa devido ao sol ou se era tola. Os kisuati alegavam respeitar
a Lei de Hananja, mas Wanahomen fizera outras viagens clandestinas à
cidade ao longo dos anos, conversara com comerciantes e mercenários que
lhe contaram como as coisas eram de fato. Outros espancamentos. Extorsão.
Desaparecimentos. Nada muito escancarado — eles não eram abertamente
hipócritas —, porém o bastante para as pessoas sensatas saberem que era
melhor não contrariar os invasores da cidade.
Talvez fosse por isso que, embora tivesse a intenção de andar,
Wanahomen se viu parando.
— Você deveria ouvir esse camarada — aconselhou o mais falante dos
soldados kisuati, colocando o pé nas costas do mercador outra vez. O
mercador se encolheu, mas o soldado naquele momento não fez nada pior.
— Nós mantemos a ordem, certo? Mantemos a paz. Você gosta de paz? Vá
embora e dê graças a Hananja que homens tão bons estão mantendo a sua
cidade segura. — Ele sorriu.
— Eu… — Alguma percepção do perigo pareceu enfim ter atravessado o
choque da mulher. Ela engoliu em seco e deu uma espiada ao redor. Se
buscava ajuda, notou Wanahomen, não havia nenhuma disponível: nenhum
dos espectadores olhou para ela de volta. Não… quando Wanahomen fitou
os olhos observadores, uma mulher se abaixou em direção ao filho pequeno
e sussurrou alguma coisa em seu ouvido. O menino desceu uma rua lateral
em disparada, talvez para ir buscar algum tipo de ajuda. Ela não poderia
chegar a tempo.
— Eu n-não posso ir — respondeu a mulher. Ela engoliu em seco e
ergueu o queixo, embora a gagueira e o tremor negassem qualquer coragem
que ela pretendesse demonstrar. — Sou um Serv… Deixem, deixem esse
mercador vir comigo. Fiquem com os produtos dele, o dinheiro dele, se
quiserem, mas deixem-no ir embora.
Uma expressão irritada passou pelo rosto do soldado falante. Fazendo
uma carranca, ele ergueu o punho e deu um passo em direção à mulher…
… A mulher ficou tensa, preparando-se para levar o golpe…
… Wanahomen se virou na direção deles e estava no meio do caminho
antes mesmo de perceber que começara a andar…
… As pessoas do outro lado da rua gritaram; o mercador berrou “não!”
e…
… O soldado mais quieto observou em volta. Vendo que a multidão que
os observava chegara a uns vinte espectadores, ele estendeu a mão e segurou
o braço do outro. Wanahomen estava perto o bastante para ouvir o soldado
murmurar em suua:
— Espere. Muitas pessoas ao redor. O general pode ficar sabendo.
As palavras fizeram o outro soldado parar. Ele olhou feio para a garota,
mas após hesitar pelo intervalo de mais uma respiração, abaixou o punho.
Inclinou-se para a frente e sussurrou alguma coisa no ouvido dela.
Ela retesou-se, encarando-o com um horror renovado. O soldado sorriu
e recuou um passo, então, lançando um último olhar mordaz ao mercador,
virou-se… e avistou Wanahomen, que estava no meio da rua, a apenas um
passo ou dois de distância. Ele parara quando o soldado abortou o golpe,
mas estava perto demais para fingir que estava só passando. Ele ficou
paralisado, sem saber ao certo se lutava ou fugia.
— Nkua ke-a-te ananki, ebaa tingam? — perguntou o outro soldado, que
aparentemente falava apenas suua. O que você teria feito, cordeiro adormecido?
Balido para a gente?
Apesar de Wanahomen saber o suua comum bem o suficiente para
entender as palavras, o desdém no tom do soldado estava nítido para fazer o
rapaz perder os estribos. Ele se manteve rígido, ou tentou fazê-lo. Muitos
anos entre os banbarranos. O impulso de pegar a faca e retribuir o insulto
do soldado com sangue era tão forte que suas mãos tremiam.
O soldado falante bufou.
— Olhe: ele está tremendo! — Ele chacoalhou a cabeça e deu uma
palmada no ombro do companheiro. — Venha. Nosso turno está quase
terminando. Pelo menos fizemos o tempo passar mais rápido.
Ele passou ao lado de Wanahomen, esbarrando em seu ombro de
propósito. O soldado usava dragonas de bronze e o ombro de Wanahomen
estava descoberto: a batida doeu como um pesadelo. O incômodo causado
por aquilo não foi nem metade do causado pelo soldado que falava suua, o
qual sentou a mão no peito do jovem para empurrá-lo ao passar.
Wanahomen tropeçou para trás, mas conseguiu com esforço manter o
equilíbrio.
Os soldados continuaram andando e rindo entre si. Diante de
Wanahomen, a garota de traje vermelho soltou o ar, aliviada, depois se
agachou ao lado do mercador. Outros também se aproximaram, tão
solícitos, tão prestativos agora que passara o perigo. Por um instante,
Wanahomen curvou os lábios com o mesmo desdém que os soldados
deviam ter sentido… mas o dele se compunha da vergonha de que seu povo
pudesse ser tão fraco.
Contudo, ele lembrou a si mesmo que não tinha o direito de se zangar.
Eles não tinham armas, não tinham treinamento para batalha. Haviam
passado suas vidas a serviço da paz e a maioria jamais testemunhara a
violência antes da chegada dos kisuati. Fora o dever do exército, da Guarda
e do Hetawa protegê-los… e o dever do Príncipe de Gujaareh também. Não
era culpa deles que estavam indefesos agora.
E isso só contribuiu para o amargor de Wanahomen quando ele se
afastou.
— Espere.
Franzindo o cenho, ele se virou. A garota de traje vermelho. Ela
contornou o mercador para ir até ele. De perto, Wanahomen percebeu que,
apesar da vestimenta masculina, ela era bonita, com um tipo de beleza da
baixa-casta: pequena, mas robusta, a face larga e as maçãs do rosto salientes,
a pele do tom ocre das peras maduras.
— Você tentou me ajudar — disse ela. — Não era a coisa pacífica a se
fazer, suponho, mas… eu lhe agradeço mesmo assim. — Ela se curvou sobre
uma das mãos; a outra já estava manchada com o sangue do mercador. — Se
esperar um momento, posso curar o seu braço. Este homem precisa da
minha ajuda primeiro, mas não vai demorar.
Wanahomen a encarou; demorou o intervalo de uma ou duas respirações
para conciliar suas palavras com a sua condição feminina.
— Você é mesmo um Compartilhador?
Ela piscou e depois baixou os olhos.
— Compartilhador-Aprendiz. Sim. Meu nome é Hanani.
Isso era demais. Os kisuati já haviam infligido seus costumes violentos à
terra dele e agora estavam contagiando as mulheres de Gujaareh com suas
noções malucas sobre o lugar apropriado de uma mulher. Os tempos haviam
de fato se tornado catastróficos se até mesmo o Hetawa fora forçado a
comprometer suas antigas tradições.
Mas, se as coisas estão tão catastróficas em Gujaareh, de quem é a culpa?,
sussurrou o coração de Wanahomen outra vez.
Ele fez cara feia e, se falou de maneira mais ríspida do que deveria, era
porque a culpa e a raiva eram aliadas difíceis.
— Você é uma tola — afirmou ele. A mulher estremeceu ao ouvir a
frieza na voz dele, parecendo magoada; Wanahomen não se importou. — Se
é mesmo do Hetawa, volte para lá correndo e nunca mais ponha os pés para
fora. Os Servos de Hananja deveriam ser mais fortes do que você.
Ele se afastou, ignorando o murmúrio de sua consciência e a sensação de
que ela fixara os olhos em suas costas, e foi embora.

***

Quando Wanahomen entrou no distrito dos nobres, seus ânimos já haviam


se acalmado um pouco. Ele chegou ao destino no exato momento que o sol
começava a se pôr, pintando as paredes da cidade com pinceladas
abundantes de vermelho-dourado e âmbar. À sua frente havia uma casa
enorme de dois andares que ocupava o quarteirão inteiro. Tinha um estilo
em grande parte gujaareen, com paredes de argila branca cozida e veredas
pavimentadas com pedras de rio redondas, mas havia toques estrangeiros
aqui e ali: uma área lateral coberta onde a família recebia os convidados,
vergas de madeira escura do sul. Toques kisuati, pois era uma casa shunha, e
os shunha nunca esqueciam sua origem.
Um homem de talvez cinquenta inundações se abanava sentado a uma
mesa sob o teto da área de convidados, uma garrafa e dois copos à espera
diante de si. Após um momento observando em silêncio de um canto
(certificando-se de que não havia soldados nem pessoas indesejáveis à
espreita), Wanahomen se aproximou da casa e parou na borda da área de
estar. Curvou-se sobre uma das mãos, que era mais do que a posição do
homem merecia em relação à sua, menos do que o trabalhador comum que
ele aparentava ser deveria oferecer.
— Minhas saudações, senhor — disse ele em suua formal.
— Bem-vindo, estranho — respondeu o homem com igual formalidade,
fitando-o de alto a baixo… e então seus olhos se estreitaram. — Ou talvez
não um estranho. Bem, bem. Eu estava esperando o seu porta-voz.
Wanahomen inclinou a cabeça.
— Meu porta-voz informou que o senhor é de confiança, lorde Sanfi.
Considerando isso, decidi vir eu mesmo.
— Um grande risco.
— Acordos entre homens devem ser feitos cara a cara. Foi o que o meu
pai me ensinou na vigília.
Lorde Sanfi aquiesceu, depois apontou para o outro assento à mesa.
— Então sente-se, não estranho — convidou ele —, e compartilhe as
boas-vindas comigo. Sua garganta deve estar seca depois da longa viagem.
Wanahomen sentou-se enquanto Sanfi servia alguma coisa nos dois
copos.
— Perdoe-me — pediu Sanfi, voltando a falar em gujaareen agora que
eles já haviam passado das apresentações. — Não trouxe nenhum servo da
minha propriedade no campo, então deve se contentar com os meus pobres
esforços.
— Faz muito tempo que estou entre os bárbaros — respondeu
Wanahomen. — Apenas a sua cortesia é o suficiente para mim. E se
soubessem como tenho vivido, os seus servos sem dúvida torceriam o nariz e
me declarariam corrupto demais para merecer o cuidado deles.
— Atos corruptos, com moderação, são uma necessidade do poder —
replicou Sanfi, empurrando um copo na direção dele. — Até mesmo o
Hetawa reconhece isso, ou reconhecia antes que a mácula invadisse as suas
próprias fileiras.
Era desagradável travar uma conversa dessas enquanto estavam sentados
em um espaço aberto. A rua na frente da casa de Sanfi não era
movimentada, mas tampouco era deserta: transeuntes e vizinhos apareciam
de vez em quando, alguns acenavam para Sanfi enquanto iam cuidar de suas
vidas. Mas nenhum shunha respeitável convidaria um estranho à sua casa
sem primeiro compartilhar um refresco com ele do lado de fora. Quebrar a
tradição levantaria suspeita.
— Fico feliz de ouvir isso — disse Wanahomen. Depois, como era
tradição, ergueu o copo e tomou um gole. Cerveja, acre, amarga e grossa
como mel, escorreu sobre sua língua. Ele fechou os olhos e suspirou de
prazer.
Sanfi deu uma risadinha.
— Faz tempo que não toma uma dessas, para suspirar desse jeito.
— Tempo demais. Meus atuais companheiros desprezam as pequenas
delicadezas que nós de Gujaareh apreciamos tanto. Somos moles aos olhos
desse povo e, para ganhar o respeito deles, devo desprezar a moleza
também.
— A marca de um bom líder.
— Uma necessidade da sobrevivência, nada mais. — Wanahomen tomou
outro gole de cerveja, saboreando sua calidez frutosa. — Minha mãe
mandou cumprimentos.
— Ah… então ela está bem?
— Bem o bastante. — Wanahomen ficou encarando o copo. Admitir
uma doença não fazia parte dos modos shunha. Sanfi ouviria a solenidade
na voz de Wanahomen e entenderia. — Ela sente a falta do meu pai.
Sanfi aquiesceu.
— Assim como todos nós. Mas vejo a força e a perspicácia dele em você,
meu jovem amigo. — Ele não mencionou o nome de Wanahomen, ciente
dos ouvidos que passavam. — E isso deve dar grande consolo à sua mãe.
— Espero que sim. Sua família está bem, e a sua propriedade no campo?
— Bem o bastante. — Wanahomen franziu a testa e olhou para o
homem, mas Sanfi contemplava uma figueira próxima. — Minha
propriedade prospera: as tamareiras estão dando frutos e a nossa terceira
colheita já terminou. Minha filha está aqui. Você vai poder conhecê-la em
breve.
Então havia algo de errado com a mulher de Sanfi. Mas era estranho que
houvesse trazido a filha consigo; Wanahomen teria esperado que uma boa
filha shunha ficasse em casa e cuidasse da mãe. A menos que houvesse mais
de uma filha? Mas não, ele ouvira dizer que Sanfi tinha apenas uma.
Era melhor não se intrometer.
— O comércio vai bem, assim espero.
— Tolerável, dadas as circunstâncias. Os kisuati favorecem os shunha em
seus negócios. A situação não vai tão bem para os nossos colegas, os nobres
zhinha, mas é inevitável. Os kisuati os menosprezam quase tanto quanto
menosprezam os nortenhos.
— De fato. — Wanahomen pousou o copo na mesa, passando um dos
dedos por sua delicada borda. O copo era enganosamente simples, sem
qualquer tipo de desenho ou matiz além do vermelho natural, mas a argila
cozida era fina e o formato do copo tinha um toque elegante. O ceramista
fora um artesão esplêndido e Sanfi devia ter pagado uma boa quantia por
um conjunto que o faria parecer ao mesmo tempo humilde e de bom gosto.
— Dado esse privilégio, seria de se pensar por que um lorde shunha ia
querer se encontrar comigo.
Sanfi lançou-lhe um olhar divertido, embora baixasse a voz e se
aproximasse para falar.
— Kisua pretende se tornar a intersecção do comércio mundial em vez
de Gujaareh. Agora temos acesso irrestrito aos mercados e mercadores do
sul, ah, sim, uma dádiva enorme. Mas os Protetores impõem taxas mais
altas aos produtos do norte e do leste, em especial se vêm dos nossos portos
e não dos de Kisua. Restringem a quantidade e fazem mais exigências
quanto à qualidade, o que aumenta o custo a níveis proibitivos.
Determinados produtos eles proíbem de imediato, com a falsa justificativa
de que a nossa terra já está corrompida demais pelas influências bárbaras…
mas, na realidade, quase todo o comércio de Gujaareh foi restringido.
Portanto, sob o domínio kisuati, tenho mais dor de cabeça e menos
dinheiro, e estou cansado disso. — Ele encolheu os ombros e serviu mais
cerveja a Wanahomen. — Perdoe-me se pareço egoísta.
Wanahomen chacoalhou a cabeça, adotando o mesmo tom baixo.
— O interesse próprio também tem o seu lugar em uma sociedade
pacífica. Mas quantos dos shunha sentem o mesmo que você?
Sanfi bufou.
— Qualquer um com cérebro e olhos. Pense: os zhinha já estão
empobrecidos. Os shunha, na verdade, não estão muito atrás. Os
mercadores recorrem ao contrabando e a outras formas de negócio ilícito,
metade da casta militar se transformou em mercenários, negociando a
própria carne por dinheiro no leste. Quanto tempo vai demorar para todas
essas famílias começarem a demitir os serviçais e expulsar os servos? Quanto
tempo vai demorar até o Hetawa ficar pobre demais para alimentar os
necessitados? Então vamos ver crianças passando fome nas nossas ruas,
assassinatos nos nossos becos, desespero em cada esquina… igual à própria
Kisua. — Sanfi tomou um grande gole do próprio copo, pondo-o na mesa
com um suspiro. — Não, o domínio kisuati não é bom para nenhum de nós.
Wanahomen pensou nos soldados kisuati e na mulher com vestes de
Compartilhador.
— Não — ele concordou em um tom suave. — Não é.
Nesse momento, Sanfi deu um meio-sorriso para Wanahomen e pôs
uma rolha na garrafa.
— Venha para dentro, onde podemos conversar longe deste maldito
calor.
Wanahomen levantou-se, pegando os copos para que Sanfi pudesse levar
a garrafa. A casa parecia pouco iluminada depois da luz do sol que
desvanecia do lado de fora, sobretudo quando Sanfi fechou a pesada porta
de madeira ao entrarem. Os olhos de Wanahomen se adaptaram enquanto
Sanfi indicava o caminho até a elegante recepção da casa, onde haviam sido
abertas fendas no teto para permitir a entrada de ar fresco e mais luz.
E ali Wanahomen parou quando a luz iluminou a mulher mais bela que
já vira.
— Minha filha, Tiaanet — apresentou Sanfi. E, embora Wanahomen
pudesse sentir os olhos de Sanfi absorvendo sua reação, ele não conseguia
deixar de olhar. Ela o fitava com ousadia, como era apropriado para uma
mulher de sua casta, mas havia algo intrigantemente reservado em seu
comportamento. Quando a jovem atravessou a sala e foi até ambos, ele não
conseguiu desviar os olhos, arrebatado pelo movimento do seu corpo sob o
grosso vestido kisuati de brocado.
— Eu o saúdo, Príncipe do Ocaso, Avatar da nossa Deusa — anunciou
Tiaanet. Sua voz era grave e magnífica como vinho doce e escuro, deixando-
o todo tenso, desde a garganta até a barriga e mais abaixo também. Mas
então ela se ajoelhou diante dele, despertando-o do feitiço. As mulheres
gujaareen não se ajoelhavam. Elas eram deusas, isso estava errado.
Wanahomen abriu a boca para protestar, mas parou quando Tiaanet ergueu
os braços, cruzando-os diante do rosto com os punhos fechados e voltados
para fora. Uma manuflexão, a maior demonstração de respeito que uma
pessoa podia oferecer aos mortais favorecidos pelos deuses. A última vez que
Wanahomen vira uma manuflexão ser realizada fora no Yanya-iyan uma
vida atrás, quando observava suplicantes se aproximarem do seu pai.
Mas eu sou o Príncipe agora, não o meu pai. E quando era apropriado para
uma deusa se ajoelhar? Só quando um deus maior estava diante de si.
Sanfi pôs uma das mãos no ombro de Wanahomen e ele estremeceu,
deixando de fitar a mulher.
— Dez famílias dos shunha e dezoito dos zhinha concordaram em
apoiar a nossa causa — falou ele. — Pelo filho do Príncipe… por você, meu
Príncipe, eles vão empenhar suas tropas e seus recursos. Entre eles e os seus
aliados banbarranos, o total será pequeno comparado ao exército kisuati…
mas uma força pequena pode ser eficaz nas circunstâncias certas. O Trono
do Ocaso poderia voltar a ser seu.
Então poderia ter uma mulher como esta. As palavras não foram
pronunciadas, mas pairaram no ar entre eles, uma promessa implícita. E
quando Wanahomen olhou para a cabeça curvada de Tiaanet, ouviu outra
vez sua voz de vinho escuro chamando-o de Príncipe, e se viu sentado no
trono em formato de ferradura com a Auréola do Sol Poente. Tiaanet se
sentaria ao seu lado como primeira esposa e seus filhos cobririam os degraus
abaixo, ornamentos vivos de sua glória e da perfeição dela. Era a visão mais
doce que já vivenciara fora de Ina-Karekh.
— Existe uma tradição antiga, antiga, meu Príncipe — disse Sanfi, sua
voz suave no ombro de Wanahomen. — Faz muito tempo que caiu em
desuso até mesmo em Kisua, contudo parece adequado revivê-la agora.
Antes, há muito tempo, um pacto entre homens era selado por mais do que
mãos.
Tiaanet ergueu os olhos, olhando para o que Wanahomen temia ser sua
alma. Ela estendeu a mão até a dele e pegou-a (a maciez da pele dela foi
quase um choque doloroso) e levantou-se.
— Podemos discutir os detalhes mais tarde — falou Sanfi. Ele soltou o
ombro de Wanahomen quando Tiaanet deu um passo atrás, puxando
Wanahomen consigo. — De manhã. Descanse bem, meu Príncipe.
O quê…? Wanahomen encontrou perspicácia suficiente para lançar um
olhar de volta para Sanfi, seguro de que havia entendido mal. Mas Sanfi
sorria e agora a mão de Tiaanet estava em sua bochecha, desviando seu
rosto de volta para ela. Quando a jovem viu que ganhara a atenção dele de
novo, ela acenou com a cabeça e recomeçou a se afastar, levando-o junto.
Eles chegaram ao quarto dela e fecharam a cortina e, em seus braços,
Wanahomen voltou a ser Príncipe, mesmo que por uma única noite.
7

A SOMBRA

Hanani ainda tremia quando chegou ao Hetawa. O sol já havia se posto


àquela altura, pois passara por dois mercados em vez de pegar o caminho
mais rápido, atravessando o distrito dos artesãos. A maioria dos artesãos
trabalhava durante a noite, quando estava mais fresco, o que tornava o
distrito relativamente sossegado — eles estariam apenas andando —, mas os
soldados kisuati patrulhariam por ali mesmo assim: estavam por toda a
cidade. Ela estava mais segura nas ruas do mercado, onde havia mais gente
em volta à medida que as bancas começassem a fechar.
Ficou feliz por Anarim não estar mais em serviço quando subiu correndo
os degraus do Hetawa. O substituto dele mal a fitou. Será que Anarim sabia
que os soldados kisuati estavam atacando as pessoas abertamente na cidade?
Não, se soubesse teria ordenado, não sugerido, a escolta. Ela ouvira boatos
— todos eles ouviram —, mas pensara que os kisuati estavam pelo menos
tentando manter uma aparência discreta de respeito pela Lei e Sabedoria
que regia a sociedade gujaareen. Se os Sentinelas não sabiam que as coisas
haviam mudado, então talvez os Coletores tampouco soubessem.
Era seu dever contar a eles.
Ela parou à sombra de uma das colunas do Salão, colocando a mão sobre
o peito como se isso pudesse acalmar seu coração acelerado. Não queria
contar aos Coletores. Sua relutância era irracional, irresponsável…
entretanto, só de pensar naqueles momentos já trazia de volta o baque dos
golpes atingindo a carne do mercador, os olhos cruéis dos soldados, o gosto
amargo do próprio medo. Era seu dever intervir. Contudo agora entendia
que, se houvesse menos pessoas na rua, os soldados teriam batido nela
também, ou teriam feito pior. O que ela poderia ter feito, o que poderia ter
dito, para detê-los? Mesmo agora não conseguia pensar em nada e, de certo
modo, essa era a pior parte. Jurara defender a Lei, porém não conseguia
pensar em qualquer resolução pacífica para tal impasse. Um Compartilhador
deveria conhecer um jeito.
Talvez o Professor Yehamwy esteja certo sobre mim. Talvez aquele homem
estivesse certo… Não sou forte o suficiente para servir a Ela.
Mas esse pensamento encheu-a de angústia e vergonha, e esses
sentimentos eram inapropriados à vista da Deusa. Então, com um suspiro
profundo, Hanani se endireitou, pretendendo voltar à sua cela, onde poderia
rezar e recuperar a paz…
— Irmã? — Um acólito contornou a coluna e apertou os olhos para fitá-
la na penumbra, depois recuperou o fôlego quando deu uma boa olhada. —
Ah, me perdoe, Compartilhador-Aprendiz. Pensei… bom. — Ele passou o
peso de um pé ao outro, constrangido. — Eles estavam te procurando mais
cedo.
Hanani piscou, surpresa.
— Eles?
— O Superior e seus convidados. Ele mandou a gente sair para procurá-
la, mas ninguém sabia aonde você tinha ido.
Hanani sentiu um aperto na barriga em um novo tipo de desconforto.
— Quanto tempo atrás?
— Pouco depois do pôr do sol, não faz muito tempo. — O garoto
apertou ainda mais os olhos, observando seu rosto. — Você está bem?
Hanani percebeu que havia cingido o corpo com os braços, como se
estivesse com frio. Ela soltou-os e endireitou-se.
— Sim. Estou. Vou vê-lo agora.
Ela se afastou às pressas da curiosidade do garoto tanto quanto de
qualquer outra coisa.
O escritório do Superior ficava no quarto andar da ala administrativa,
que fazia limite com o Salão de Bênçãos. Chegou à sala ofegante devido às
escadas e teve apenas um momento para se recompor antes de uma das
vozes murmurando lá dentro chegar mais perto e a pesada cortina se abrir.
— Ah, aqui está ela.
O Superior parou diante dela, sorrindo. Deu um passo para o lado e fez
um gesto para Hanani entrar no escritório, o que ela fez trepidando um
pouco ao ver quem mais estava presente: dois vultos de mantos e véus
tingidos de um amarelo suave e um homem de túnica sem manga e com
capuz. As duas primeiras eram Irmãs de Hananja, apesar de que, por causa
do véu, Hanani pôde distinguir pouca coisa delas, a não ser que uma era
muito alta. Quanto ao homem encapuzado, Hanani o reconheceu não tanto
pelo rosto, mas pela tatuagem de lótus azul no ombro mais próximo: Nijiri,
o terceiro dos Coletores. Porque estavam no escritório particular do
Superior, Nijiri baixou o capuz quando Hanani entrou, revelando um cabelo
raspado e um rosto que exibia a palidez da baixa-casta e que era belo de um
modo sobrenatural e intocável. Estava recostado na parede com os braços
cruzados, a expressão fechada.
— Por favor, sente-se, Compartilhador-Aprendiz — pediu o Superior,
apontando para a mesa de convidados. Hanani engoliu em seco e sentou-se
na almofada aberta, na qual se esforçou muito para se concentrar nas
incrustações de feixes de cevada na borda da mesa. Por que o Superior a
chamara? Por que havia um Coletor e duas Irmãs presentes? Ela não ousava
especular sobre o assunto.
O Superior sentou-se sobre outra almofada com um gemido.
— Bem, Hanani, estas são as Irmãs Ni-imeh e Ahmanat. Acredito que
conheça o Coletor Nijiri.
Hanani engoliu em seco e inclinou a cabeça para as Irmãs, oferecendo ao
Coletor uma mesura mais cuidadosa, curvando-se sobre as duas mãos. Nijiri
retribuiu solenemente o cumprimento, assim como Ni-imeh, mas Ahmanat
estendeu a mão e pegou o queixo de Hanani, o que a assustou tanto que ela
ficou paralisada quando a Irmã virou seu rosto delicadamente de um lado
para o outro.
— Bonita — comentou a Irmã com uma voz surpreendentemente grave.
Essa era então uma das raras Irmãs do sexo masculino; Hanani nunca vira
uma em pessoa. Ela não conseguia distinguir nada do rosto dele atrás do
véu, mas achou que ele lhe sorria. — Apesar de a vestimenta dos
Compartilhadores não combinar nem um pouco com você. Você era da
casta camponesa? Eu também, mas você jamais imaginaria agora.
Antes que Hanani pudesse responder alguma coisa, o Superior fez um
som de reprovação.
— No Hetawa, não falamos do passado, Irmã Ahmanat.
— Nós, da Irmandade, falamos, Superior — respondeu Ni-imeh. Sua
voz era feminina, com um tremor de idade mais avançada, tão fria quanto a
da companheira era amigável. Ela se virou para examinar Hanani também.
— Mas vamos exaltar os méritos da nossa perspectiva em outra ocasião.
Devo admitir, estou surpresa de ver como ela se saiu bem. Esperava que
fosse mandada para nós muito tempo atrás.
Hanani resistiu ao impulso de estremecer ao ouvir isso. Voltou a olhar
para a borda da mesa, uma vez que era evidente que a Irmã não estava
falando com ela.
— Sim, ela está se saindo bem, exceto pelo infeliz incidente que ocorreu
há pouco — falou o Superior —, e mesmo isso é uma marca indireta em um
currículo impecável. O consenso entre a confraria dos Compartilhadores é a
de que ela é uma boa curadora… e isso é algo realmente difícil de admitir
para alguns deles. — Ele soltou uma risadinha.
— Ela está envolvida, então. — Ni-imeh não pareceu surpresa com esse
fato. — Até que ponto?
— Isso a investigação vai determinar — respondeu o Superior, que
estendeu a mão para pegar a jarra de água e começou a servir copos para
todos, servindo a Irmã idosa primeiro. — Dos corpos, os Compartilhadores
determinaram que tanto o portador do dízimo quanto o acólito morreram
em um estado de grave desequilíbrio humôrico, especificamente uma
superabundância de bílis onírica. Isso é um sintoma, claro; não sabemos o
que no sonho poderia ter causado esse desequilíbrio. Mas o resultado físico
é que o funcionamento saudável do coração e do cérebro cessou por
completo. — Ele suspirou. — E existem outras anomalias que ainda
precisam ser levadas em consideração.
— Anomalias consistentes com os relatos que trouxemos para você? —
Havia um tom áspero na voz de Ahmanat, para grande surpresa de Hanani.
Ela não fazia ideia de qual era a posição hierárquica dele dentro da
Irmandade, mas, com certeza, se havia assumido o papel de uma mulher, era
inapropriado se dirigir ao Superior em um tom desses. As mulheres
deveriam criar paz, não a perturbar.
— Quem pode afirmar? — O Superior ofereceu um copo ao Coletor,
que discretamente chacoalhou a cabeça, assim como Ahmanat. Como
alternativa, pôs o copo diante de Hanani sem perguntar primeiro. — Vocês
nos trouxeram bem pouco para tirar conclusões. O povo de Gujaareh tem
estado sob muita pressão nos últimos anos e, agora, com os ataques desses
bandidos do deserto… — Ele encolheu os ombros. — Eu ficaria surpreso se
os pesadelos não tivessem aumentado na cidade hoje em dia.
— Não são só alguns pesadelos — contrapôs Ahmanat com severidade.
— Houve mortes, Superior.
— Mortes que até mesmo você admite não terem uma conexão nítida
com os sonhos.
Hanani conteve a respiração quando entendeu. Houvera outros como
Bahenamin? Mas isso significava…
— Compartilhador-Aprendiz Hanani. — Hanani olhou em um reflexo e
tremeu por dentro ao cruzar com o olhar de Nijiri. Os olhos dele eram de
uma cor estranha: um pouco de verde, mas em grande parte um castanho-
claro que parecia avermelhado sob a luz das lamparinas do escritório. A cor
a fazia lembrar de tijolos, com arestas duras e inflexíveis.
— Parece que tem algo a dizer — comentou o Coletor.
Os outros haviam se calado quando ele falou; agora todos estavam
prestando atenção em Hanani. Hanani engoliu em seco.
— O-o portador do dízimo — começou ela. A maldita gagueira! Ela
respirou fundo e começou de novo, rezando em silêncio para ter calma. —
Bahenamin, da casta mercante. Visitei a viúva dele hoje. Ela contou… — A
boca da jovem estava seca; ela engoliu em seco outra vez. — Ela contou que
o marido s-sofria de pesadelos também. Ele veio naquele dia para dá-los à
Deusa como dízimo.
E Dayu, o doce Dayu, tentara coletar aquele dízimo. Os olhos dela
doeram outra vez, mas a Deusa devia ter ouvido as suas preces. Hanani
cerrou os punhos sob a mesa e a sensação passou.
As Irmãs se entreolharam.
— Assim como os outros — afirmou o Superior. Pela primeira vez desde
o início da conversa, ele pareceu desconcertado.
O Coletor Nijiri deu um passo abrupto para a frente, contornando a
mesa e agachando-se ao lado de Hanani. Ela resistiu ao impulso de se
afastar daquele olhar de jade e tijolos.
Ele ergueu uma das mãos diante do rosto da jovem, o indicador e o dedo
do meio graciosamente curvados e afastados. Levou a outra mão à túnica e,
de algum lugar ali dentro, todos eles ouviram o zunido suave da pedra
jungissa.
— Me permite, Aprendiz?
Hanani anuiu, intimidada demais para questionar um Coletor, mesmo
não fazendo ideia do que ele queria. Quase antes que houvesse terminado
de aquiescer, Nijiri estendeu rapidamente a mão e ela teve apenas um
instante para conjecturar se ele assustava tanto assim os portadores de
dízimo antes de ser tomada por uma grande onda de sonolência.
Não havia delicadeza na magia dele. Encontrou a alma dela de imediato,
em uma fração do tempo que Hanani costumava demorar para fazer o
mesmo, tirou-a do corpo e a levou a Ina-Karekh. Então a conduziu por Ina-
Karekh com tanta força e velocidade que tudo à sua volta se turvou… antes
de se transformar em uma rua da cidade banhada pela dourada luz do sol de
uma tarde. Borboletas bailavam no ar carregado de perfume de um jardim.
Um sonho de lembrança. Mesmo contra a vontade, Hanani observou,
fascinada, quando outra Hanani, ela mesma mas não o seu eu, apareceu na
rua. Ela tremeluziu e reapareceu diante de uma casa alta de estilo nortenho.
A serva surgiu, as duas sumiram pela porta e depois a paisagem onírica
anuviou-se e se transformou no átrio em que a viúva Danneh esperava sob a
palmeira.
Mas havia algo errado. Apesar do controle do Coletor, elementos do
sonho haviam começado a destoar da verdade. O corpo grande de Danneh
curiosamente dobrara de tamanho, seu possível eu se sobrepondo e
confundindo com outra forma, como uma sombra, embora essa sombra
parecesse de certo modo parte dela, e não uma coisa separada.
A forma onírica do Coletor apareceu abruptamente ao lado de Danneh.
Aqui em Ina-Karekh, onde ele estava livre para revelar seu verdadeiro eu,
Nijiri vestia um sobrepano estampado simples e não usava sandálias nem
colarinho. Dois cachos finos, que ele deixava crescer há anos, pendiam de
sua nuca sobre um dos ombros; ele os empurrou para trás enquanto se
agachava a fim de examinar a sombra.
Momentaneamente liberta do controle do Coletor, Hanani manifestou-
se com cuidado no átrio também.
— O que foi, Coletor?
— Não faço ideia — respondeu ele. — Mas passa uma sensação da qual
não gosto. — Ele se levantou e olhou para a lembrança, prestando atenção
enquanto Danneh contava a Hanani sobre os sonhos do marido. Quando
ele voltou a falar, seu tom era sério. — A mácula do que quer que tenha
matado Bahenamin está nessa mulher. Percebe que essa coisa matou o seu
assistente também?
Hanani aquiesceu, forçando-se a não sentir a tristeza; era perigoso
demais em Ina-Karekh, onde a dor tinha forma e poder.
— Será que é… — Ela hesitou por respeito, pois ouvira as histórias do
teste de aprendiz dele, mas a pergunta tinha de ser feita. — Será que é um
Ceifador?
Para grande alívio de Hanani, o Coletor chacoalhou a cabeça de pronto.
— Graças à Deusa, não. Esta mácula é sutil e aqueles monstros são
qualquer coisa, menos sutis. — Ele se calou por um instante, pensando
enquanto o sonho se turvava ao redor deles. Naquele momento, a não
Hanani saía da casa de Danneh e então o coração da eu-Hanani ficou
apertado quando ela percebeu o que estava por vir. A não Hanani já virava
em direção ao Jardim Yafai com a intenção de atravessá-lo por ser o
caminho mais curto para o Hetawa. E do outro lado do jardim…
Desvie, ela desejou a si mesma em silêncio, na esperança de que o
Coletor estivesse distraído o bastante para não notar sua manipulação. A
não Hanani contornaria o jardim e não veria o espancamento do mercador.
Então os soldados não a veriam e o jovem zangado com roupas de
trabalhador passaria por ela sem olhar uma segunda vez…
O sonho começou a mudar em resposta à sua sugestão. E então
congelou, um redemoinho de luz da tarde e construções indistintas. O
Coletor se virou para fitá-la.
— O que está fazendo? — A voz dele era muito suave.
Pega, Hanani mergulhou em um silêncio impotente. Não ousou mentir,
ele era um Coletor. E, no entanto, a verdade…
Nijiri estreitou os olhos por um momento e depois voltou a se concentrar
no sonho. Desta vez, Hanani não pôde fazer nada. A vontade dele era tão
inflexível quanto seus olhos e, quando o Coletor ordenou que a mente da
moça se lembrasse daquela tarde, ela ficou indefesa.
Quase tão indefesa quanto quando o soldado levantou a mão para
agredi-la.
Ela estremeceu e cruzou os braços sobre os seios conforme a lembrança
prosseguia. O Coletor não falou nada quando a não Hanani confrontou os
soldados, embora Hanani o sentisse ficar muito quieto ao seu lado. Parte da
quietude passou assim que os soldados se viraram a fim de ir embora,
porém, quando Hanani arriscou olhar para Nijiri, quase arquejou. Ela nunca
vira tanta fúria estampada de maneira tão nítida no rosto de um Coletor.
Todavia, quando ele se virou para ela, a fúria desvaneceu.
— Me perdoe — disse ele. Sua voz estava tão suave quanto antes, porém
mais reconfortante agora. — Foi difícil para você, entendo, e não ajudei ao
forçá-la a se lembrar. Mas você não devia ter escondido isso.
— Sinto muito. É só que… — Ela teve de engolir em seco. — E-eles
não me fizeram nenhum mal duradouro.
— É mentira, Aprendiz. Mas, com sorte, um dia a Deusa vai
transformar isso em verdade para você. — Ele se virou de novo para a
paisagem onírica, que congelara outra vez, e caminhou até os soldados.
Após uma longa olhada em cada homem (memorizando os rostos, percebeu
Hanani com um calafrio), o Coletor fez um aceno de cabeça para si mesmo.
— O que ele disse para você?
— Perdão, Coletor?
— O soldado. Ele sussurrou alguma coisa no seu ouvido antes de ir
embora.
Hanani estremeceu. Ela tivera a esperança de que ele não fosse
perguntar.
— E-ele falou que eu não era tão bonita como as outras mulheres do
Hetawa. Se eu fosse, ele teria me levado para o posto de guarda e… — Ele
falara misturando gujaareen e suua, do qual Hanani aprendera apenas o
suficiente para travar conversas simples. Ela não fora capaz de traduzir as
últimas palavras do soldado, mas nem precisara.
Nijiri franziu a testa.
— Outras mulheres do Hetawa? — De repente, ele fez cara feia. —
Entendo. As Irmãs. Elas deviam ter nos contado… Ah, mas elas são
orgulhosas. — Ele suspirou pesadamente. — Se ajudar, Aprendiz, saiba que
aqueles soldados nunca mais vão fazer mal a você ou a qualquer outro
gujaareen.
Hanani descobriu que a ideia não lhe trouxe nenhum consolo.
O Coletor se virou… e então parou, à espreita do rosto do jovem
trabalhador que se aproximara para ajudá-la. Nijiri arregalou os olhos.
— Ora, ora. Então é ele.
Hanani franziu a testa.
— Você o conhece, Coletor?
— Conheço, apesar de fazer dez anos que não o vejo. Achei que ele
tivesse fugido para um exílio paparicado em algum lugar ao norte. — Ele se
calou, examinando o rosto do trabalhador; sua boca se contorceu de um jeito
esquisito e amargo. — Mas eu devia ter imaginado. Ele é filho do pai dele…
e sobrinho do tio.
A própria Hanani se aproximou para espiar o rosto do homem, curiosa.
Agora que teve a chance de examiná-lo com atenção, foi fácil ver que ele
não era um trabalhador. Era alto e esguio, com os clássicos olhos estreitos e
feições angulosas de alguém da alta-casta, e a cor da pele era apenas um tom
mais claro do que o preto-shunha. Belo, se não fosse pela carranca no rosto
e pelo maxilar cerrado.
— Quem é ele?
— Ninguém importante. Mas ele se arriscou tentando ajudar você… —
Nijiri cruzou os braços, pensativo. — Talvez valha a pena salvar a linhagem
dele, afinal.
— Coletor, não estou entendendo.
— Sei disso. — Para o choque de Hanani, ele lhe lançou um olhar de
desculpas irônico. A expressão, tão surpreendente depois de toda a sua
solenidade enigmática, forçou-a a mudar a percepção que tinha dele: de
repente, percebeu que Nijiri vira só algumas inundações a mais do que ela.
— Você descumpriu a interdição — comentou ele, sério. — Aquele
mercador, você o curou.
Hanani conteve a respiração ao se dar conta. A interdição fora a última
coisa que lhe passara pela cabeça depois que os soldados se foram, com o
mercador gemendo no chão à sua frente. No entanto, Nijiri estava no
Conselho dos Caminhos (nenhum dos Coletores seniores tinha paciência
para isso, segundo os rumores) e, portanto, estaria no direito de julgá-la
corrupta por violar a interdição de Yehamwy.
— D-descumpri. Mas, depois de um espancamento daquele, ele podia
estar com hemorragia nos órgãos vitais, com ossos quebrados… — Só com
atraso ocorreu-lhe que estava arranjando desculpas; ela suspirou e desviou os
olhos. — Sim. Descumpri a interdição.
— Você poderia ter vindo ao Hetawa para buscar um dos seus irmãos de
caminho e o levado de volta para realizar a cura. Isso não passou pela sua
cabeça?
Devia ter passado.
— … Não.
— Claro que não. — Ele não pareceu insatisfeito, para grande alívio de
Hanani. Na realidade, havia uma expressão cordial e aprovadora em seus
olhos. — O mercador estava apavorado e sentia dor. Se morresse naquele
estado enquanto você fosse buscar ajuda, a alma dele teria sido condenada à
terra das sombras por toda a eternidade. Você fez o que era certo, sem
pensar na adequação ou no castigo, como um Servo de Hananja deveria. —
Ele cruzou os braços e refletiu em silêncio por um longo instante. Por fim,
chegando a alguma conclusão, fez um aceno de cabeça para si mesmo e
perguntou: — Você gostaria de se redimir, Aprendiz?
Hanani franziu a testa.
— Perdão, Coletor?
Nijiri fez um gesto e a cidade pareceu se dissipar. Uma paisagem de
dunas ondulantes apareceu em seu lugar, estendendo-se infinitamente sob
um céu cor de cobalto sem nuvens. Hanani achou que ele fizera aquilo com
a intenção de acalmá-la, mas nunca estivera no deserto antes. Achou
angustiante a paisagem onírica e, de certo modo, solitária.
— Você precisa de um novo teste de aprendiz — disse ele. — Embora
esteja nítido que você não teve nada a ver com as mortes do Acólito
Dayuhotem ou do mercador Bahenamin, existem pessoas no Hetawa que
jamais vão aceitar a sua inocência. Eles a culpam porque têm medo de você.
— Têm medo… — Hanani o encarou. — De mim?
— E das mudanças que você representa no futuro, sim. — Esse
comentário não fez mais sentido do que o anterior para ela, mas ele era um
Coletor. Eles falavam na linguagem dos sonhos. — A única maneira de
silenciar essas vozes é passar por outro teste, um teste tão absolutamente
desafiador que nenhum dos seus detratores jamais o encarariam de bom
grado. Mas, se você conseguir, ninguém mais vai voltar a questionar o seu
direito de usar a magia no nome da Deusa.
Ele se calou, observando-a, e espontaneamente passaram pela mente de
Hanani todos os rumores que ouvira sobre ele. Diziam que Nijiri derrotara
um Ceifador, que ajudara a entregar à justiça o último e louco Príncipe de
Gujaareh, que mediara uma conquista pacífica de Gujaareh de modo que
um número mínimo de vidas fosse perdido. E havia outros boatos, menos
elogiosos, porém mais comoventes, de que ele fora aprendiz, e mais do que
isso, do lendário Coletor Ehiru, de que ele próprio coletara Ehiru quando
havia chegado a hora.
Qual é a sensação de matar o seu amante?, perguntou-se ela, fitando-o
através do deserto que a alma dele evocara.
Os olhos dele se abrandaram de modo abrupto.
— Ninguém me perguntou — falou ele como se tivesse ouvido os
pensamentos dela. Podia ter ouvido, essas coisas eram possíveis no sonho.
— Encarei meu próprio teste sem ter escolha a não ser vencer ou fracassar,
com a alma do meu irmão na berlinda. Mas você tem escolha,
Compartilhador-Aprendiz. Aceita o teste que tenho em mente?
Ela engoliu em seco.
— Qual é o teste?
— Libertar Gujaareh.
Ela o encarou. Ele sorriu.
— Existe um plano. Meus irmãos e eu tínhamos pensado em usar o seu
mentor. Ele tem a flexibilidade de que precisamos, contudo, para ser
sincero, eu estava preocupado com aquele temperamento dele. Agora,
porém… acho que você se sairia melhor no papel que temos em mente.
— Q-q… — Ela não conseguia pensar. — Que papel?
— Isso não posso lhe contar… ainda não, ou você poderia desempenhá-
lo mal. Basta dizer que envolve sair da cidade e correr algum perigo. Por
outro lado, se falharmos, todo o nosso estilo de vida estará condenado.
Precisamos agir agora ou perdemos tudo. — Ele suspirou, contemplando as
dunas ondulantes. — Você provou ser uma curadora, Hanani, isso não está
em questão. Mas você serve mesmo à Lei Dela com toda a sua carne e com
toda a sua alma? Vai se arriscar pela paz tanto no reino da vigília quanto no
dos sonhos? Esse é o teste.
Um longo vento sussurrante soprou sobre as dunas, fazendo
redemoinhos de poeira girarem em resposta à turbulência na mente de
Hanani. Se fosse um sonho de cura, teria se obrigado a se acalmar, todavia,
com o sonho seguro sob o controle do Coletor, ela estava livre para sentir
todo o pavor que quisesse. Não era uma bênção.
Contudo, não podia negar a verdade das palavras dele. Ela poderia
encontrar apoiadores suficientes no Hetawa para o seu teste ser declarado
bem-sucedido, mas os boatos sempre a seguiriam. A curadora que matara.
A mulher em cuja magia não se podia confiar. Por um instante, seu medo
desapareceu sob o ressentimento: não era justo que tivesse de enfrentar isso.
Nenhum homem teria precisado enfrentar isso.
No entanto, se o mundo fosse justo, ela ainda seria uma camponesa
semianalfabeta sem nenhum futuro além de fazer colheitas e cuidar da casa.
Então Hanani o contemplou e engoliu em seco.
— Vou encarar esse novo teste, Coletor.
Ele sorriu e, por um momento fugaz, Hanani viu por que o Coletor
Ehiru o amara.
— Então venha — chamou ele, e levou os dois de volta para o reino da
vigília.

***

Mas dois dias se passaram sem intercorrências, durante os quais Hanani


ficou pensando se o seu segundo teste começaria algum dia. Então, tarde da
noite após mais um dia de rotina sem sentido, um Sentinela apareceu à
porta de seus aposentos para entregar-lhe um pequeno pergaminho fechado
com um complexo selo índigo de boa qualidade. Hanani não reconheceu o
selo (cada família de alta-casta tinha sua própria estampa, nada que ela já
houvesse aprendido), mas a borda externa do pergaminho tinha os pictorais
do nome de Hanani. Pedindo uma faca ao Sentinela, Hanani cortou o selo,
desenrolou o pergaminho e leu:

Compartilhador,
O pesadelo chegou a mim agora.
Danneh, mercadora, esposa de Bahenamin-em-sonhos
8

VENENO

Tiaanet ainda estava acordada quando Wanahomen gemeu e começou a se


mexer de tempos em tempos enquanto dormia. Ela não dormira; nunca
dormia quando havia outra pessoa em sua cama. Quando se sentou e
acendeu a lamparina, Wanahomen gritou e abriu os olhos. Ela passou a mão
diante do rosto dele, mas o rapaz não reagiu. Quando pousou uma das mãos
no peito do jovem, o coração dele bateu com força e velocidade sob sua
palma antes de ele se afastar, contorcendo-se.
Os homens não gostavam de ser acordados de sonhos ruins, isso Tiaanet
entendia instintivamente. Entre os gujaareen, a perda de controle durante o
sonho era considerada fraqueza, mais ainda para guerreiros e homens de
linhagem divina. Todavia, quando Wanahomen gritou uma segunda vez,
arqueando o corpo como se sentisse dor, Tiaanet começou a ficar
preocupada que o pai ouvisse. Então chacoalhou-o uma vez, depois com
mais firmeza. Mesmo assim, ele não acordou.
Então fez a única coisa que podia e tocou a mente onírica dele com a sua
própria.
Funcionou tão bem como às vezes funcionava com Tantufi. Wanahomen
conteve a respiração e acordou, sobressaltado.
— O quê…?
— Foi um sonho. — Tiaanet limpou as gotas de suor do peito dele. —
Só um sonho.
Ele franziu a testa, sentando-se e pondo uma das mãos no monte de
tranças caído.
— Meu pai. Vi meu pai. Ele estava nos degraus do Hetawa. Tudo estava
cinza e o céu… — Ele engoliu em seco, a mão livre trêmula. — Há alguma
coisa errada nesta cidade.
Ela tomou a mão dele e a levou aos lábios. Demorou um pouco, mas
então os olhos dele se voltaram para Tiaanet. A moça ficou surpresa com o
ar desconfiado neles, mas aquilo desvaneceu assim que ela mordiscou a
ponta de um dos dedos dele. Uma expressão ávida, quase dolorosa,
substituiu a desconfiança e, um instante depois, ele lhe estendeu os braços.
— Devo fazer de você uma das minhas mulheres quando eu governar?
— Enquanto falava, ele a puxou, fazendo-a deitar-se na cama.
Tiaanet afagou o cabelo dele enquanto ele a beijava, resistindo ao
impulso de suspirar quando Wanahomen ergueu a cabeça.
— Você é o Príncipe do Ocaso — respondeu ela. — Tudo o que desejar
será seu.
Os olhos dele lhe examinaram o rosto, perturbadores em sua agudeza.
— Você tem outro amante?
— Ninguém que eu queira. — Tiaanet ergueu a mão para acariciar o
rosto dele. — Mas você mal me conhece, meu Príncipe.
Algo ainda mais surpreendente apareceu no rosto dele nesse momento:
solidão. Ela deixara de sentir isso ou qualquer outra coisa anos antes, mas a
vislumbrava nos olhos de Tantufi vezes o suficiente para ainda reconhecê-la.
Só por esse motivo, sentiu uma centelha de simpatia por Wanahomen.
— Meu pai mal conhecia a minha mãe quando se casou com ela —
contou ele. — Ele levou quinze anos para conquistar o coração e a cama
dela; minha mãe já tinha quase passado da idade fértil quando nasci. —
Wanahomen deu a ela um sorriso meio jocoso. — Não sou tão paciente
como ele mas, por você, eu poderia tentar ser.
— É cedo demais para discutir certas coisas, Príncipe. — Ela estendeu a
mão para baixo, no espaço entre eles, o que ele não esperara; os olhos dele se
arregalaram e ficaram embaciados de desejo enquanto ela o acariciava. —
Mas existem outras coisas que poderíamos fazer por enquanto.
Ele aquiesceu, emudecido pela força da própria necessidade, e felizmente
não falou mais nada sobre amor.

***

Já era tarde da manhã quando Tiaanet se levantou e vestiu uma túnica.


Wanahomen, que dormira mais tranquilamente dessa vez, abriu os olhos no
momento que ela se mexeu.
— Maldição — falou ele, sentando-se. — Eu não pretendia ficar tanto
tempo na cidade.
Ela inclinou a cabeça.
— Posso pelo menos preparar um banho e uma refeição antes de você ir
embora?
Ele sorriu, perplexo, e anuiu.
— As mulheres de Banbarra não se parecem nem um pouco com você —
comentou ele. — Elas agem como rainhas, esperando que os homens as
agradem… ou então são como pastoras de olho em reprodutores. Eu tinha
esquecido como as mulheres gujaareen podiam ser.
— Não sou como a maioria das mulheres gujaareen, meu Príncipe.
Ele pareceu envergonhado, baixando os olhos.
— Claro, você é uma dama shunha. Perdoe-me, não quis ofender.
Aquilo não fora de modo algum o que ela pretendera dizer, mas
aquiesceu mesmo assim.
Quando o banho estava preparado, Tiaanet trouxe-lhe óleos e outros
artigos de toalete e mais uma vez pediu desculpas pela falta de servos.
Wanahomen garantiu-lhe que só o banho era um luxo maior do que aquilo
de que normalmente desfrutava e entrou no banheiro sozinho. A jovem
gostou de ele não ter feito nenhuma suposição ou sugestão grosseira de que
ela própria o ajudasse. Porém, não conseguia gostar dele, pois, no final das
contas, ele a usara, igual ao pai dela, e o fato de ser mais atencioso tinha
pouco significado.
De qualquer maneira, não podia haver nada entre eles, pois algum dia ele
saberia que ela era sua inimiga.
Quando Tiaanet foi à cozinha para preparar a refeição de Wanahomen,
seu pai sentou-se à mesa, comendo peixe e tâmaras crocantes. Ele ergueu
uma sobrancelha quando ela entrou.
— Espero que a noite tenha corrido bem. — Ele falou em um tom
despreocupado, mas Tiaanet não se deixou enganar. Havia uma sombra de
ciúmes nos olhos dele. Muito embora o plano para Tiaanet seduzir
Wanahomen houvesse sido do pai, ele jamais gostara de compartilhar.
— Tanto quanto se pode esperar — comentou ela. Passando por ele a
fim de verificar o forno, ela pôs mais lenha e começou a aquecer pedaços de
carne curada para a refeição de Wanahomen. — Ele dormiu mal. Pesadelos.
Quando se virou, o pai ficara tenso.
— Pesadelos.
— Tantufi não está aqui — ela o lembrou. No fundo, ela podia ouvir o
barulho da água na sala de banho, o que significava que Wanahomen não
ouviria.
Para sua surpresa, a garantia não tranquilizou o pai.
— Disseram-me que quatro dos convidados que compareceram ao
funeral de Khanwer estão mortos agora — disse ele baixinho. — A zhinha
Zanem e seu marido soldado, o primo da sua mãe, lorde Tun, e um
mercador, Bahenamin.
Tiaanet não falou nada em resposta, franzindo a testa enquanto se
lembrava das pessoas que ele mencionara. Tun era velho e casado, mas não a
ponto de não lançar um olhar de lascívia para Tiaanet. Zanem e o marido
haviam sido frios em sua polidez, mas era de se esperar dos zhinha.
Bahenamin, porém…
— Esse último, o mercador, morreu no próprio Hetawa — contou Sanfi
—, tentando se livrar de um pesadelo. O menino do Hetawa que tentou
tirá-lo de Bahenamin também morreu. — Ele cruzou as mãos, observando-
a com olhos frios. — Faz alguma ideia de como isso pode ter acontecido,
filha?
Tiaanet pensou o mais rápido que pôde.
— Bahenamin — falou ela. — Era aquele que usava uma peruca sobre a
careca, não era? Chegou mais cedo do que todos os demais. — Sim, agora
ela se lembrava dele. Tantas das pessoas que haviam comparecido ao funeral
de Khanwer haviam feito isso apenas para esfregar os ombros nos dos
colegas da elite. Bahenamin chorara, lamentando genuinamente a perda de
um amigo. — Mandei levarem Tantufi para a casa de campo ao meio-dia,
mas levei Bahenamin aos aposentos dele antes desse horário. Ele estava
aflito, deve ter se deitado para descansar, apesar da hora.
— E os outros três?
— Bahenamin passou a noite com a gente depois do funeral. Se o sonho
de Tantufi já estava nele, então qualquer pessoa dormindo nos quartos
vizinhos ao dele estaria vulnerável. — Sem ousar permitir que um tom de
acusação permeasse sua voz ou seus olhos, Tiaanet acrescentou: — Eu
estava ocupada naquela noite e não pude andar pelos corredores para
impedir sonho algum. E a mamãe estava no quarto sob guarda, claro. —
Insurret também podia espantar pesadelos, se estivesse inclinada a fazê-lo.
Sanfi retorceu os lábios. Um momento depois, levantou-se e começou a
andar de um lado a outro nos apertados limites da cozinha.
— A sua mãe. Eu nunca devia ter me casado com ela, bonita ou não.
Notei os primeiros sinais de sua loucura enquanto a cortejava, mas precisava
da riqueza dela… — Ele parou e suspirou, cerrando os punhos. — E
Tantufi. Todo dia me pergunto por que não estrangulei aquela criatura
quando nasceu.
Tiaanet o observava, lendo os sinais e não gostando do que via. Ele
ficaria refletindo, ela sabia. Era o que o pai fazia sempre que seus planos
eram frustrados. Refletiria e ferveria de cólera o caminho inteiro até a
propriedade no campo e, quando chegasse lá, descontaria a raiva em
Tantufi. Ela precisava distraí-lo. Mas como?
— Pai? — Ela fingiu se concentrar em grelhar uma castanha de shia
enquanto falava. — O Hetawa sabe sobre essas mortes? Será que
perceberam que todos os quatro visitaram a nossa casa?
— Ainda não. — Ele pareceu ainda mais insatisfeito agora. A filha fez
um esforço para pensar em outro assunto que pudesse despertar o interesse
dele. — Mas, se os sonhos se espalharem para além desses quatro…
Ele parou de repente e se calou. Tiaanet encheu uma taça de vinho doce,
colocou a taça e o prato em uma bandeja, depois ergueu a bandeja.
— Preciso ver o nosso hóspede, pai.
— Vá — concordou ele, distraído. Seus olhos estavam fixos na mesa, os
pensamentos acelerados por trás deles. A jovem se virou para sair, mas parou
quando ele proferiu seu nome.
— Pois não, pai?
— Tantufi — disse ele. — Se a trouxessem para a cidade, com que
velocidade o sonho dela se espalharia?
Então era essa a direção dos pensamentos dele. Tiaanet não ficou
surpresa com a crueldade, apenas com o método que ele escolhera. Ele
detestava Tantufi.
— Não sei, pai — respondeu ela com sinceridade. — Mas, no meio de
tantas pessoas, morando tão perto umas das outras, provavelmente se
espalharia rápido.
Ele anuiu, os olhos iluminando-se à medida que os pensamentos
avançavam.
— O Hetawa é uma ameaça aos nossos planos — declarou Sanfi. —
Eles apoiam os kisuati hoje em dia. Mas o sonho de Tantufi deve distraí-los,
não deve? — Ele sorriu para a filha. — Com o tempo, vão curar o sonho,
mas até lá…
Em sua mente, Tiaanet viu o rosto de Tantufi. A criança choraria por ser
a causa desse sofrimento. Mas o executaria e espalharia sua mágica como
um veneno pelas veias da cidade porque não conseguia evitar. E o pai ficaria
feliz de ver a maldição de Tantufi sendo enfim bem aproveitada.
— Vão, pai — concordou Tiaanet. — Vou mandar buscá-la, se quiser.
— Você é uma filha tão boa — falou ele. — Faça isso assim que o nosso
hóspede for embora.
9

CORTE

A viagem de Gujaareh ao deserto foi longa e entediante. Para frustrar


possíveis perseguidores, Wanahomen decidiu não ir de imediato para o
oeste, dirigindo-se em vez disso para o sul, para uma das cidades rio acima,
onde se presenteou com um último banho quente e uma última refeição
gujaareen antes de trocar seu cavalo e seu disfarce de trabalhador por seu
camelo e suas roupas de deserto. O véu não, claro, nem qualquer outra
marca tribal dos banbarranos. Ele até retirara os arreios e os ornamentos
reveladores de Laye-ka antes de partir para a viagem e deixá-la em um
estábulo na cidade. Enquanto estivesse nos Territórios Gujaareen, era um
simples homem do deserto de uma das dezenas de tribos que ganhavam a
vida à sombra de Gujaareh. Apenas quando Wanahomen chegou ao sopé
das colinas que marcavam a fronteira entre o vale do rio Sangue e o deserto
foi que ele adotou as camadas finais de sua identidade banbarrana: o véu, o
lenço que dava voltas, as vestimentas índigo e castanho-claras.
Ele passou a viagem ao longo das colinas em uma espécie de meditação,
os pensamentos internalizados pelo ritmo da marcha segura de Laye-ka e o
monótono cenário de pedra queimada pelo sol. Ele concebera uma centena
de planos durante a viagem de ida, mas nesta viagem seus pensamentos
estavam ocupados com algo completamente diferente.
Gostou disso, meu Príncipe? Deixe-me mostrar mais.
Tiaanet. Deuses, que mulher. Ele se casaria com ela, é claro. Essa fora a
intenção de Sanfi, tão clara como a luz do dia, e Wanahomen pretendia
obsequiá-lo. Apesar do calor do dia, ele estremeceu ao se lembrar dos lábios
dela, das mãos dela fazendo mágica em sua carne, da paciência dela em
prolongar sua ejaculação até ele pensar que morreria de prazer. Como ela
aprendera tal habilidade? Não importava. Precisava possuí-la outra vez e, se
isso significava tornar Sanfi avô do próximo herdeiro, então que fosse.
Por volta do meio-dia, ele se perdera em fantasias, mal se dando ao
trabalho de conduzir Laye-ka enquanto ela andava devagar pela trilha entre
dois afloramentos irregulares. Quando Kite-iyan voltasse a ser seu, instalaria
Tiaanet em sua própria suíte, assim como seu pai honrara a sua mãe. E a sua
mãe não ficaria feliz pela sua escolha de uma dama shunha como primeira
esposa? A linhagem de Sanfi era boa e antiga, eminentemente respeitável…
Pedriscos chocalharam em uma saliência acima.
Desperto do devaneio com um sobressalto, Wanahomen buscou
desesperadamente pela faca e pelas rédeas de Laye-ka ao mesmo tempo,
perscrutando as alturas à procura de movimento ou de uma sombra fora de
lugar.
Nada.
Laye-ka soltou um grunhido alto, como que em repreensão a
Wanahomen. Ele a ignorou, continuando a perscrutar as saliências
enquanto a camela continuava a caminhar. Não houve mais movimento
algum, mas Wanahomen permanecia tenso. Os declives de pedra nessa
parte da trilha eram próximos demais e estavam repletos demais de
pequenas cavernas e rochas. Ele jamais devia ter permitido que sua atenção
se desviasse em um lugar tão perfeito para uma emboscada.
Levado pelo instinto, ele desmontou de Laye-ka e conduziu-a para fora
da trilha principal, passando a uma escarpa estreita esculpida pelas chuvas
da primavera que seguia próxima à mesma saliência onde ouvira os
pedriscos, mas havia mais abrigo ali do que do outro lado da trilha. Ele até
avistou uma pequena caverna quando passou por trás de uma série de rochas
que tinham o dobro da altura de Laye-ka…
… e então avistou um homem agachado na caverna.
Wanahomen ergueu a faca.
— Quem… — Ele interrompeu a frase, surpreso ao ver o estranho levar
um dedo aos lábios, depois apontar para a trilha atrás de Wanahomen.
Quase no intervalo da mesma respiração, Wanahomen ouviu vozes ecoando
sobre as colinas, vindas da mesma direção apontada pelo homem.
O quê… Mas ele deu uma palmadinha no ombro de Laye-ka em um
rápido sinal banbarrano para ficar parada e quieta. A camela sacudiu a
cabeça uma vez, mas obedeceu, e Wanahomen espiou por entre as rochas a
fim de tentar ver quem vinha.
Ali, duas colinas atrás: o brilho do bronze e tecido tingido de verde como
as florestas tropicais. Uma quadra de soldados kisuati.
Wanahomen olhou de volta para o homem na caverna, que acenou a
cabeça em silêncio. De sua perspectiva, o homem provavelmente os vira a
uma distância ainda maior. Se Wanahomen não tivesse ouvido e reagido ao
barulho de pedriscos, algo que ele agora desconfiava que o homem fizera
para alertá-lo, os soldados o teriam visto quando tivessem chegado ao topo
da última colina.
O homem devolveu o olhar de Wanahomen com uma calma estranha e,
de certo modo, familiar. Alguma coisa nessa calma deixava Wanahomen
nervoso, embora não tanto como a proximidade dos soldados o deixava,
então, de momento, concentrou-se no perigo maior.
Que os soldados não o estavam procurando, ficou evidente quase de
imediato. Mantinham os cavalos em um ritmo tranquilo, os cascos com
revestimento de metal fazendo muito mais barulho na trilha rochosa do que
as patas de um camelo. Falavam alto em algum dialeto interiorano de suua
que Wanahomen mal conseguia compreender, mas concluiu que
conversavam sobre uma aposta. Um deles fez uma afirmação que soava
presunçosa e a risada estridente dos outros pareceu confirmar sua suposição.
Ainda gargalhando, perderam-se de vista.
Wanahomen não se mexeu pelo que pareceram horas, prestando atenção
até que os últimos ecos dos cascos dos cavalos tivessem desvanecido. Então
enfim se virou e foi até a boca da caverna para que ele e o homem pudessem
conversar em voz baixa.
— Quem, em nome dos deuses, é você?
— Anarim — respondeu o homem, que se levantou de sua posição
agachada de maneira tão suave quanto um dançarino. Seus sobrepanos eram
pretos e não tinham adornos, e eram mais curtos do que o que estava em
voga na atualidade. Não usava colarinho, embora sua pele estivesse mais
pálida ao redor do pescoço e dos ombros; ele costumava usar, isso estava
claro. A sensação de familiaridade de Wanahomen aumentou, e tornou-se
desagradável, quando viu os braceletes de couro tingidos de preto em torno
dos antebraços do homem, as caneleiras e o cabo de uma pequena espada
aparecendo sobre um ombro. Como que sentindo a repentina fúria de
Wanahomen, o homem fez um aceno de cabeça e acrescentou: — Um
Sentinela de Hananja.
Wanahomen rosnou através do véu e apertou com mais força o cabo da
faca, preparado para lutar até a morte. Mas a lógica penetrou a ira rubra em
sua mente. O Sentinela poderia ter deixado os kisuati encontrarem
Wanahomen. Poderia fazê-lo mesmo agora, apenas erguendo a voz: os
soldados viriam atrás dele antes que pudesse montar em Laye-ka e fazê-la
correr.
Devagar, Wanahomen baixou a faca.
O Sentinela mexeu-se milimetricamente, talvez relaxando quaisquer
defesas que houvesse preparado.
— Eu só o esperava dentro de mais um dia. Você é Charris, que um dia
foi general de Gujaareh?
— Cha… — De repente, Wanahomen entendeu; a fúria voltou. —
Então Charris me traiu.
O semblante do Sentinela mostrou surpresa por um momento e depois
voltou a ficar impassível.
— Ah. Você é Wanahomen, a quem Charris serve.
— Eu sou Wanahomen, que vai matar Charris da próxima vez que o
encontrar — retrucou ele. Charris, conspirando contra ele com o Hetawa! A
única coisa maior do que a raiva de Wanahomen naquele momento era a
mágoa que pulsava por trás dela. Charris, seu velho tolo e maldito, confiei a
minha vida a você!
O Sentinela o observou por um longo instante.
— Então foi por isso que ele pediu para me encontrar em segredo. Você
não tem nenhum amor pelo Hetawa.
Wanahomen encarou o homem e só se lembrou de manter a voz baixa
quando a sua ira encontrou palavras.
— O Hetawa matou o meu pai. Eles abriram os portões da capital e
deixaram estrangeiros entrarem para nos conquistar! No que diz respeito a
mim, Gujaareh inteira deveria se revoltar e jogar a sua espécie no mar.
— Que me lembre, foi o seu pai que colocou Kisua contra Gujaareh. —
O tom do Sentinela, assim como sua expressão, era quase inumanamente
neutro. Não havia qualquer sinal de censura no comportamento dele;
todavia, Wanahomen sentiu suas palavras como um tapa na cara.
— Ele nunca pretendeu que Gujaareh fosse conquistada — retrucou o
rapaz, virando-se e andando de um lado a outro nos exíguos limites da
caverna. — Quaisquer erros que o meu pai tenha cometido, ele agiu em
defesa dos interesses de Gujaareh. E não tenho que defendê-lo perante
você! — Embora estivesse fazendo exatamente isso. Furioso consigo mesmo
agora, Wanahomen rodeou o Sentinela e apontou a faca para aquele rosto
revoltantemente calmo. — Diga-me por que ia se encontrar aqui com o meu
homem.
O Sentinela contemplou a faca por um momento antes de responder.
— Trago uma mensagem dos meus superiores. — Mexendo-se devagar,
Anarim apontou para uma parede da caverna, onde havia uma pequena
bolsa de ombro sobre uma capa de viagem dobrada. — Para você.
Franzindo o cenho para encobrir a surpresa, Wanahomen foi até a bolsa,
sem perder o homem de vista. Quando abriu rapidamente a bolsa, caiu de lá
de dentro um pergaminho fechado com um selo de padrão genérico usado
pelos oficiais da cidade. Estampados na borda do pergaminho estavam os
pictorais da linhagem recente de Wanahomen, terminando com os que
compunham o seu primeiro nome.
— O general Charris solicitou uma audiência com o Superior em seu
nome — falou o Sentinela quando Wanahomen lançou-lhe um olhar de
desconfiança. — A resposta está contida aí.
Wanahomen mirou o pergaminho, depois caiu na risada.
— Uma audiência com o Superior? Pelos deuses, se eu não o conhecesse,
acusaria Charris de senilidade. Por que eu me encontraria com qualquer
pessoa do Hetawa?
— Você quer o trono de volta. Para isso, precisará da nossa ajuda.
Wanahomen quase deixou a faca cair.
— Uma aliança — disse ele após uma respiração longa e atônita. —
Charris acredita mesmo que pode formar uma aliança entre o Hetawa e os
banbarranos? — Ele mal conseguia acreditar nas próprias palavras.
— A aliança seria com você — respondeu o Sentinela —, mas poderia
incluir, claro, outros que você considerar adequados. — Ele fez uma pausa,
então acrescentou: — Não é uma ideia tão improvável. O Hetawa criou a
monarquia, afinal, e deu apoio a ela durante séculos.
— É. — A mão de Wanahomen cerrou-se em torno do pergaminho. —
Até a sua espécie escravizar a minha com sangue onírico. Uma aliança
requer confiança, Servo de Hananja, e nunca vou confiar em você ou na sua
confraria assassina. Charris deveria saber.
Ele jogou o pergaminho no chão e ficou irracionalmente irritado com o
fato de o Sentinela não mostrar nenhum sinal de afronta. Em vez disso,
Anarim indagou:
— Então você recusa a aliança?
— Não posso recusar o impossível — retrucou Wanahomen. Ele virou as
costas e espiou de novo por entre as rochas a fim de enxergar a trilha, que
estava desimpedida agora. Teria de encontrar outro caminho entre as
colinas, uma vez que o trajeto mais fácil era o caminho que os soldados
kisuati haviam seguido. Eles deviam ter começado a patrulhar as colinas
após o último ataque banbarrano, talvez na esperança de alertar a cidade ou
assolar os invasores da próxima vez.
— Vou transmitir isso ao nosso conselho — falou o Sentinela às suas
costas. — Mas com certeza vão enviar pelo menos um representante para o
local designado, caso mude de ideia. — Seguiu-se uma pausa. — Você
deveria saber, se espera confiança dos seus aliados, que também não deve
confiar no lorde shunha Sanfi.
Wanahomen fez uma carranca para o Sentinela por cima do ombro.
— Estiveram me vigiando?
— Estivemos vigiando Sanfi. Ele vem juntando uma coalizão de nobres
há algum tempo… muito antes de os seus banbarranos começarem a atacar.
Você é útil para os planos dele, mas só por enquanto.
Dois podiam jogar o jogo do rosto impassível.
— Explique — exigiu Wanahomen, cruzando os braços.
O Sentinela ergueu minimamente uma das sobrancelhas.
— Você não vai acreditar nessa informação.
— Vou decidir se acredito mais tarde. Por enquanto, quero ouvir.
— Sabe que, no passado, antes da dinastia do Ocaso, éramos como Kisua
e as tribos do sul, governados pelo mais respeitado dos nossos anciãos. — O
Sentinela encolheu os ombros. — Ter o Protetorado Kisuati no controle
pelos últimos dez anos lembrou Gujaareh dessa história. Sanfi lidera o
movimento para recriar um Protetorado Gujaareen.
Wanahomen estreitou os olhos.
— As pessoas comuns querem um campeão escolhido pela Deusa para
governá-los, não um círculo de velhos ricos e debilitados. Elas podem ver se
o Protetorado Kisuati faz muito ou pouco bem para a própria terra: crianças
órfãs se prostituem nas esquinas e os indivíduos escravizados deles morrem
de fome em meio a plantações de grãos.
O Sentinela baixou os olhos.
— Pela preservação duradoura da paz, mantivemos em segredo os
verdadeiros objetivos do seu pai. Ninguém em Gujaareh sabe que o Rei
Eninket pretendia exterminar milhares de soldados para obter a
imortalidade. No entanto, os segredos vazaram: o assassinato do
embaixador kisuati, a tortura de três Coletores, a conspiração com os
nortenhos, o Ceifador… — Ele chacoalhou a cabeça. — Os excessos de um
Protetorado estão distantes e meio esquecidos. Os excessos de um Príncipe
são uma ferida recente. Você não pode culpar as pessoas por pensarem
assim.
Podia, meditou Wanahomen de modo sombrio, mas não lhe serviria de
nada.
— Entendo.
— E até um Protetorado precisa ter um líder. Sanfi ainda é novo para
isso, mas ele pensa a longo prazo.
— Fiz contato com Sanfi um ano atrás. Era razoável que ele fizesse
planos antes — comentou Wanahomen. As palavras soaram fracas mesmo
aos seus ouvidos. Ele cerrou os punhos, fazendo cara feia. Esses planos,
esses planos! Não eram facilmente desarticulados. E algum homem que
tivesse sede de governar desistiria da ideia apenas porque o verdadeiro rei
tinha aparecido?
Não. Um homem desses não desistiria.
Se eu me casar com Tiaanet, Sanfi vai conseguir influência através de mim.
Então ele poderia me assassinar e alegar que pretendia pôr um Príncipe no trono,
mas lamentavelmente…
O Sentinela o observava em silêncio, interpretando sem dúvida o
tumulto na linguagem corporal de Wanahomen; o jovem ouvira dizer que
eles podiam fazer essas coisas. Para disfarçar, virou-se com o intuito de
encarar o homem.
— Os planos insignificantes da nobreza não significam nada para mim.
Você esquece que o meu pai me criou para lidar com esse tipo de questão.
O Sentinela inclinou a cabeça.
— Como quiser. — Ele pegou a capa e a bolsa, amarrando esta última ao
peito. — Por favor, informe Charris de que não existe mais nenhuma
necessidade de nos encontrarmos. Em paz, Wanahomen, filho do Rei.
Ele deixou o pergaminho no chão da caverna, onde Wanahomen o havia
jogado. Wanahomen lhe fez cara feia, mas o Sentinela saiu e começou a
subir por uma trilha que levava a um terreno mais elevado. Talvez tivesse
uma montaria escondida em algum lugar.
E boa saída. “Filho do Rei”! Ele fala de aliança e, no entanto, não me dá o
título adequado! Ignorando a vozinha em sua cabeça, que assinalou que o
título não tinha sentido no momento e que os Servos de Hananja sempre
diziam a verdade, Wanahomen esperou até os passos do Sentinela
desvanecerem. Depois foi pegar o pergaminho. Não ousava deixá-lo na
caverna, onde poderia ser encontrado.
De qualquer forma, que sejam levados pelas sombras. Não preciso deles. Vou
usar Sanfi como ele pretendia me usar, depois eu mesmo o mato.
Mas Tiaanet não seria uma noiva particularmente solícita se ele matasse
o pai dela.
Forçando o murmúrio de agitação em sua mente a se calar, Wanahomen
enfiou o pergaminho em um bolso. Então foi até Laye-ka, fazendo um sinal
para ela se ajoelhar para ele poder montar. Depois de pensar por um
momento para determinar uma nova rota, ele recomeçou a viagem pelo
deserto, os pensamentos agora confusos e sombrios.
10

SONTA-I

Trouxeram a mercadora Danneh para o Hetawa na manhã do Festival da


Nova Cerveja. Hanani ouviu a folia na praça do lado de fora quando as
portas do Salão se abriram para a entrada de quatro Sentinelas-Aprendizes,
que carregavam a liteira de Danneh. Os aprendizes colocaram a liteira na
plataforma e tiraram a cobertura para revelar Danneh.
A mercadora estava adormecida, mas de um modo espasmódico, o rosto
coberto de gotas de suor enquanto se mexia e soltava pequenos gemidos
febris. Sob as pálpebras, seus olhos se moviam a uma velocidade frenética,
como se as visões que a atormentavam no sonho fossem muitas e muito
rápidas para ela acompanhar. A serva de Danneh, que viera com eles, levou
as mãos à boca, contendo as lágrimas.
— Ela não acorda? — Nhen-ne-verra, o Compartilhador em serviço,
ajoelhou-se ao lado de Danneh quando os Sentinelas se afastaram.
O treinamento de Danneh se revelou quando a garota se recompôs.
— Não, Compartilhador — respondeu ela. — Quando voltei, depois de
entregar a mensagem dela ao Hetawa ontem à noite, ela tinha dormido
outra vez. Achei que talvez ela enfim tivesse encontrado paz suficiente para
descansar, mas quando chegou a manhã e ela não se levantou, fui aos
aposentos dela e a encontrei assim. Tentei acordá-la várias vezes.
Nhen-ne-verra fez um aceno de cabeça, apertando os lábios enquanto
erguia as pálpebras de Danneh — Hanani teve um vislumbre dos olhos da
mulher se revirando descontroladamente na órbita ocular —, depois abriu a
boca de Danneh a fim de cheirar seu hálito.
— Nada de comida ou bebida recente. Ela tem algum inimigo?
A serva pareceu horrorizada.
— Nenhum que fosse envenená-la!
— Estou apenas eliminando possibilidades, criança. — Ele inclinou a
cabeça de Danneh para cima e massageou sua garganta, verificando o pulso
e as glândulas no pescoço que indicavam doença, tudo parte do ritual
tradicional de avaliação, Hanani sabia… e tudo errado para essa situação.
Ela subiu o primeiro degrau da plataforma.
— Nhen-ne-verra-irmão.
Nhen-ne-verra não tirou os olhos do trabalho.
— Você está sob interdição, Aprendiz.
Hanani reprimiu a ferroada do lembrete, embora ele houvesse falado
com gentileza.
— Esta mulher… — Ela engoliu em seco. — Encontrei-a uma quadra
de dias atrás. Ela mandou me avisar sobre isso. Irmão… — A aprendiz se
calou, cerrando os punhos. Hanani não imploraria. Não imploraria.
Nhen-ne-verra enfim olhou para ela por cima do ombro. Ele era em
parte lestenense, de pele clara com um cabelo comprido e lânguido que
ficara extremamente branco na velhice, mas seus olhos eram tão pretos e
inflexíveis quanto os de qualquer shunha.
— Muito bem. Mas você não pode entrar no sono de cura. Entendido?
— Entendido, Irmão. — Sem demora, antes que ele pudesse mudar de
ideia, Hanani agachou-se do outro lado da liteira de Danneh. Lançando um
olhar à serva, ela baixou a voz. — Irmão, há um sonho…
— Sim, o superior informou aos anciãos do caminho dos
Compartilhadores, dos quais faço parte. — Nhen-ne-verra deu um meio-
sorriso ao ver a expressão envergonhada dela. — Você tem de admitir que é
intrigante, Aprendiz. Não consigo deixar de sentir certa empolgação com a
perspectiva de poder enfim examinar esse sonho misterioso.
Lembrando-se da sensação oleosa da sombra no sonho que
compartilhara com o Coletor Nijiri, Hanani estremeceu.
— Irmão… — Mas não pôde dizer o que tinha em mente. “Tome
cuidado” seria um insulto, insinuando que o achava velho demais ou
incompetente para realizar a tarefa. “Dayuhotem morreu desse sonho” era
ainda pior, pois Nhen-ne-verra era um Compartilhador com mais de
quarenta inundações de experiência; não havia comparação possível entre a
habilidade dele e a de uma criança. Então ela mordeu o lábio outra vez e
não falou mais nada.
Ele pareceu entender.
— Vou ficar bem, Hanani. Mas talvez você devesse ir buscar o seu
mentor para mim, se ele não estiver dormindo neste exato momento. Seria
prudente ter outro Compartilhador aqui, só por precaução.
Era trabalho de um acólito levar recados e buscar pessoas, e a
humilhação fazia a barriga de Hanani revirar. Mas era um modo de ajudar e,
nesse instante, era melhor do que nada. Ao aquiescer com um aceno rápido
para Nhen-ne-verra, ela saiu correndo à procura de Mni-inh.
Seu mentor estava terminando uma sessão de treinamento sobre como
enfaixar ataduras no Salão dos Sentinelas. Ele a avistou quando saiu da sala
de descanso seguido por meninos com olhos sonolentos, que iam para a
próxima aula de sonhos implantados.
— Ah, Hanani. Se você… — Ele leu o rosto dela. — O que foi?
Quando ela explicou, o mentor ficou sério de repente.
— Vou agora. Encontre um acólito e peça para ele chamar o Superior.
Isso a abalou.
— O Superior, Irmão?
— E Yehamwy, se não estiver dando aula neste exato momento. — Ele
leu o rosto aflito da jovem e suspirou. — Testemunhas, Hanani. Se a cura
for difícil, quero que eles vejam e percebam que Dayu não foi incompetente,
ele apenas se viu diante de algo que poderia sobrecarregar até mesmo a
habilidade de um Compartilhador experiente. Sei que você preferiria não
usar o seu amigo para provar que tem razão…
Hanani chacoalhou a cabeça, deixando de lado aquela sensação irracional
de culpa. O Coletor Nijiri dissera que essas táticas seriam ineficazes para
limpar a reputação de Hanani, mas ela entendeu o desejo de Mni-inh de
tentar. Ela esperava que funcionasse.
— É o que Dayu ia querer, Irmão.
Mni-inh aquiesceu, depois deixou-a ir e correu para o Salão de Bênçãos.
Hanani pegou um dos acólitos que saía da aula de Mni-inh e o mandou
procurar o Superior. A aula de Yehamwy era perto do Salão dos Coletores,
então ela atravessou correndo o pátio até o menor dos prédios do complexo
do Hetawa para dar o recado pessoalmente.
As paredes do Salão dos Coletores eram de um mármore cinza, diferente
do arenito marrom-amarelado usado em todos os outros prédios. Os
corredores ali eram mais frios, mais escuros e mais silenciosos, com uma
sensação que era, de certo modo, mais meditativa do que a dos outros salões
do Hetawa. Hanani diminuiu o passo, apesar da ansiedade, uma vez que a
batida apressada de suas sandálias na pedra era alta e perturbava a paz. Ela
não tinha nenhum receio de incomodar os Coletores, cujas celas ficavam no
quarto andar, longe do barulho e da atividade no térreo. Simplesmente
parecia desrespeitoso, estando na casa dos Coletores, não andar com
sossego, como eles faziam, e falar baixinho, como eles faziam, e se
comportar de todos os modos que mais agradavam Hananja.
Mas não conseguia recordar o caminho para a sala de aula certa.
Ouvindo vozes à frente, ela as seguiu.
— … mais perigoso do que o pai — declarou uma das vozes. Isso a
lembrou do mármore ao longo das paredes, escuro, frio e cinza. — A vida
dele foi mais difícil e ele tem mais motivo para odiar.
— Deveríamos avaliá-lo com antecedência, é verdade — falou outra
voz… mais leve, com um toque de risada. — Mas não sei ao certo se gosto
desse plano. O povo do deserto não é dado a um comportamento pacífico.
— Se ele permitir algum mal a qualquer um dos dois, saberemos qual
tipo de homem ele é. — Esse comentário veio de uma voz mais jovem,
menos segura. Seguindo-a, Hanani virou em um corredor e viu luz à frente:
feixes ondulantes de luz da manhã banhando o átrio do prédio. O Jardim de
Pedra, onde os Coletores dançavam em suas preces particulares. — Apesar
de que, nesse caso, o mal já estará feito — continuou a voz mais jovem.
— É inevitável — afirmou uma quarta voz e Hanani parou, horrorizada,
porque era a voz do Coletor Nijiri e isso significava que ela não deveria estar
entreouvindo a conversa de jeito nenhum. — Ele nunca confiaria em um de
nós. Mas alguém jovem, que não poderia ter participado do julgamento
contra o pai dele, alguém que esteja inclinado a proteger, não temer…
— Silêncio — interveio a voz fria e cinzenta de repente e a entrada do
átrio foi tomada por uma sombra quando um vulto alto e macilento entrou
no círculo de luz. — Compartilhador-Aprendiz.
O vulto usava uma capa clara com capuz. Ela engoliu em seco e fez uma
profunda mesura, curvando-se sobre as duas mãos em um pedido de
desculpas.
— Sinto muito, Coletor. Eu-eu estava procurando o Professor Yehamwy.
E-ele tem uma aula neste prédio.
— Naquela direção. — O Coletor apontou com a cabeça para o lugar de
onde ela viera. — Por que o está procurando?
Hanani engoliu em seco.
— A mulher do portador do dízimo que morreu foi trazida ao Salão de
Bênçãos, Coletor, sofrendo do mesmo sonho que matou o marido dela. —
E Dayu. — O Compartilhador Nhen-ne-verra está tentando curá-la. Meu
mentor achou que talvez… testemunhas…
O Coletor olhou para o lado. De repente, os outros três vultos
apareceram ao redor dele, todos perfilados contra a luz do jardim. Um deles
ela reconheceu como Nijiri antes que ele, como os demais, tirasse o capuz.
— Nós vamos estar presentes — afirmou o Coletor magro então. —
Acredito que seremos testemunhas mais adequadas do que o Professor
Yehamwy, já que podemos observar tanto no sonho como na vigília. Mostre
o caminho, Aprendiz.
Não havia nada além de comando na voz dele. Hanani não conseguiu
pensar em nenhuma maneira apropriada de protestar. Mas o Coletor estava
certo ao dizer que eles dariam testemunhas eminentemente adequadas:
ninguém contestaria as observações deles. Então, esperando que seu
nervosismo não transparecesse, Hanani os conduziu ao Salão de Bênçãos.
Quando chegaram à plataforma, porém, ela parou, surpresa. Nhen-ne-
verra estava longe da liteira de Danneh, os ombros arcados, o corpo trêmulo
como se tomado por alguma paralisia. Mni-inh o segurava pelos ombros,
quase sustentando-o, o semblante cerrado de preocupação.
O Coletor esguio passou por Hanani com a leveza de uma serpente, todo
elegância e intenção concentrada. A tatuagem no ombro mais próximo à
moça era a beladona, feita toda em índigo: Sonta-i, o mais velho daquele
caminho.
— O que aconteceu? — perguntou ele.
Nhen-ne-verra chacoalhou a cabeça, emudecido.
— Nhen-ne-verra tentou localizar a alma da requerente, a primeira etapa
da cura. Algo o perturbou — respondeu Mni-inh.
Nhen-ne-verra estremeceu e chacoalhou a cabeça outra vez.
— Não estava lá. Ela… eu não a encontrei. Mas outra coisa estava. Pela
Deusa! — Ele se afastou de Mni-inh e olhou para a grande estátua de
Hananja que pairava lá em cima, Suas mãos estendidas em um gesto de
boas-vindas. Ele estendeu os braços como que para pegar aquelas mãos, as
suas próprias tremendo.
— Nada de Vós — sussurrou ele. Havia um tom fervoroso e hesitante e
sua voz que Hanani nunca ouvira antes. Quando ela olhou para Mni-inh,
identificou preocupação no rosto dele também. — Nada que venha de Vós
passa essa sensação!
O Coletor Sonta-i aproximou-se depressa da plataforma e tocou o
ombro do velho Compartilhador. Nhen-ne-verra gemeu baixinho e pareceu
esmorecer; Mni-inh rapidamente pôs um braço debaixo do ombro dele e o
fez sentar-se em um dos bancos laterais.
Sonta-i virou-se para fitar a serva, que se afastara da cena, com os olhos
arregalados. Depois concentrou-se em Danneh.
Outro Coletor deu um passo à frente. Ele era mais alto do que todos os
demais, apesar de que, pela açafroa amarela em seu ombro, Hanani percebeu
que era Inmu, o mais jovem do caminho.
— Sonta-i-irmão, tem certeza…
Mas o Coletor Rabbaneh colocou uma das mãos em seu ombro. Inmu
olhou para ele, em seguida para Sonta-i, e acalmou-se. Sonta-i ajoelhou-se
ao lado de Danneh, pousando a ponta dos dedos em suas pálpebras
fechadas.
Foi nesse momento que uma ansiedade irracional tomou conta de
Hanani… irracional, pois por qual motivo um Coletor deveria temer
qualquer sonho? Mesmo assim, ela se aproximou.
— Coletor.
Quatro rostos encapuzados se viraram para ela, embora sua intenção
fosse a de falar com Sonta-i.
— Era no reino intermediário. Não em Ina-Karekh, não aqui em Hona-
Karekh. Entre os dois.
Ele estreitou os olhos. O Coletor Nijiri dirigiu-lhe um longo olhar
pensativo. Ao se ver observada por eles, Hanani encolheu-se em seu íntimo,
perguntando-se o que, em nome dos deuses, a havia compelido a dizer uma
coisa daquelas. Mas, antes que pudesse gaguejar uma desculpa, Nijiri virou-
se para Sonta-i. Nenhum dos dois falou, mas algo se passou entre eles
mesmo assim: qualquer pessoa com um sopro de dom do sonho que fosse
poderia ter sentido. Sonta-i fez um diminuto aceno para Nijiri e virou-se
para reconcentrar-se em Danneh. Ele fechou os olhos e um instante se
passou.
Isso vai dar errado, sussurrava tudo dentro de Hanani.
Mas, antes que pudesse pensar em algo para dizer, Sonta-i produziu um
ruído baixo e tenso. Hanani conteve a respiração e correu até a plataforma,
mas Nijiri se antecipou com uma das mãos segurando seu ombro como um
torninho. Quando ela se virou para fitá-lo, seu rosto já estava sombrio
devido ao pesar, os olhos fixos em Sonta-i. Ela olhou para Rabbaneh, que
tinha a mesma expressão. O que havia de errado com eles? Eles sentiam o
mesmo perigo que ela, por que não acabavam com aquilo? Apenas Inmu
pareceu preocupado quando Hanani se deparou com seus olhos, e ele
desviou o olhar com a mandíbula cerrada e rígida.
Sonta-i arquejou de repente, os olhos e a boca bem abertos. Uma dúzia
de expressões perpassaram seu rosto, mais do que Hanani já vira nele, todas
efêmeras demais para identificar.
— Tanta raiva — sussurrou ele. — Tanta mágoa. Nunca soube o que
eram sentimentos até agora. Que ironia. — Ele estremeceu, a mão
deslizando do rosto de Danneh para se escorar no chão. Era o primeiro
movimento desajeitado que ela já vira um Coletor fazer. Ele se concentrou
naquela mão, aparentemente com grande esforço. — O espaço
intermediário. A força não é suficiente. Uma criança, Nijiri. A Sonhadora
Desvairada é uma criança.
Ele se inclinou para a frente sem aviso, caindo em cima de Danneh.
Alarmado, Mni-inh acercou-se e puxou Sonta-i para cima; o Coletor
Rabbaneh agachou-se depressa a fim de ajudar. Mas o corpo de Sonta-i
estava inerte entre eles e o golpe também não tinha machucado Danneh.
Ambos estavam mortos.
11

TRAIÇÃO

Os cantos de pássaro das sentinelas ecoaram das paredes do cânion


chamado Merik-ren-aferu, precisos o suficiente em sua imitação a ponto de
rapinantes que faziam ninhos nas faces íngremes dos penhascos
responderem ao canto em um desafio territorial. As sentinelas vinham
observando Wanahomen há quilômetros com longavisões, ele sabia,
provavelmente desde o momento em que ele e Laye-ka apareceram como
um pontinho no deserto ondulante. Se ele fosse um pontinho inesperado,
ou pior, múltiplos pontinhos, a tribo teria saído do cânion há muito tempo
quando ele chegasse na entrada do lugar… menos as sentinelas, que teriam
ficado para trás para recebê-lo com uma flecha no olho. A hospitalidade
banbarrana era infame.
Porque Wanahomen era conhecido e esperado, porém, ele vislumbrou
sinais de habitação assim que entrou no cânion. Por entre as frestas da
vegetação alta, ele avistou pomares e canteiros cultivados escondidos…
cuidados por pessoas escravizadas de tribos mais agrícolas, claro, pois
nenhum banbarrano jamais se dignaria a trabalhar na terra. E as sentinelas
apareceram, enfim, espreitando ao longo de espinhaços com roupas da cor
das rochas e olhando-o a partir de buracos cuidadosamente disfarçados.
Aqueles que o rapaz conseguia enxergar davam-lhe um aceno sério quando
ele passava; Wanahomen sabia haver outros que não tinha visto. Então
Laye-ka deu um assovio alegre quando surgiu o curral, no qual os camelos e
cavalos da tribo descansavam quando não estavam em uso ou soltos para
procurar comida.
Wanahomen desmontou naquele ponto e cuidou de Laye-ka antes de
soltá-la no curral.
— Obrigado por me trazer de volta em segurança — sussurrou ele ao
tirar o cabresto dela, que grunhiu como se entendesse as palavras rituais.
Então a camela trotou para o curral e prontamente empurrou três outros
camelos para chegar ao cocho. Eles abriram caminho com um ar de longo
sofrimento que fez Wanahomen rir.
A risada fez aparecer outra cabeça, que despontou de trás de uma pedra
com o lenço torto e um dos lados do rosto marcado por linhas que se
formam quando se dorme.
— Wana! — O garoto se animou de imediato, levantando-se de um salto
e andando a passos rápidos até ele. — Não ouvi você chegar.
— É, e se eu fosse um ladrão, as nossas montarias já teriam sido levadas
há muito tempo — disse Wanahomen. Ele jogou o alforje sobre um dos
ombros, então pôs as mãos no quadril e dirigiu ao garoto um olhar austero.
— Que tipo de guarda você é se dorme durante o trabalho, Tassa?
O garoto baixou os olhos, envergonhado.
— Foi só um pouquinho. Fiquei acordado esperando você ontem à noite.
— Eu me atrasei — respondeu Wanahomen com uma careta. Ele
tomara um longo desvio por uma trilha menos usada pelos sopés das colinas
em busca de evitar os soldados kisuati. — Mas me responda uma coisa: o
Charris pediu um cavalo hoje?
— O seu escravizado? — O tom de Tassa tinha o puro desdém
banbarrano por um ser inferior. — Não, ainda não. Você deixa que ele
cavalgue sozinho?
Eu teria deixado antes de ele me trair.
— Apenas certifique-se de que ele não peça um hoje… não antes de me
ver. E não caia no sono desta vez. — Ao bagunçar o cabelo de Tassa, ele
respondeu ao sorriso encabulado do garoto com outro sorriso e saiu do
curral, encontrando uma das escadas de corda penduradas para subir até a
saliência mais alta.
O acampamento banbarrano era uma floresta de tendas elaboradamente
decoradas e círculos de fogueiras espalhadas por várias das saliências mais
altas e mais amplas do cânion. Todas as tendas podiam ser empacotadas
para viagem em questão de minutos, e o seriam em caso de perigo. De
momento, contudo, a tribo estava em descanso, preparando-se para a
próxima batalha de sua guerra não declarada a Kisua. Wanahomen acenou
ao passar por homens que fofocavam enquanto empenavam flechas ou
afiavam espadas; grupos de mulheres se sentavam juntos para costurar
peitorais e botas de couro. Embora Wanahomen acenasse para as mulheres
também, um hábito gujaareen do qual nunca conseguira se desfazer, elas
não responderam ao gesto e algumas nem se dignaram a olhar em sua
direção. O rapaz sentiu os olhares às suas costas depois de ter passado.
Por fim chegou a uma tenda grande e bonita de couro de camelo
marrom-escuro. As hastes ao redor da entrada haviam sido entalhadas com
pictorais gujaareen e havia um emblema sobre a aba de acesso: o sol e os
raios da Auréola do Sol Poente, símbolo da linhagem de Wanahomen. A
verdadeira Auréola, guardada em algum lugar da Gujaareh ocupada pelos
kisuati, era um semicírculo de ouro batido cercado por placas de âmbar
vermelho e amarelo. Este era de mármore esculpido com raios de madeira
clara e escura polida. De bom gosto e ainda de valor segundo a avaliação
que os banbarranos faziam das coisas, mas, mesmo depois de dez anos,
Wanahomen não conseguia deixar de ver o emblema como a imitação
insignificante que era.
— Você vai entrar? — chamou a voz da mãe de dentro da tenda.
Wanahomen estremeceu ao ouvir o som da voz dela, não apenas devido à
surpresa. Preparando-se, ele ergueu a aba e entrou.
— Me desculpe, mãe. Só estava pensando.
Hendet, esposa do Rei-em-sonhos de Gujaareh, jazia em uma enxerga
grossa de peles e de capim cheiroso trançado com dois travesseiros
guarnecidos com borlas atrás das costas. Enquanto ele atravessava o chão
coberto por camadas de tapete, ela deixou de lado um pergaminho grosso e
abriu os braços.
— Tão parecido com o seu pai — comentou ela quando ele ajoelhou
para receber seu abraço. — Sempre pensando, pensando, pensando. O que
foi desta vez?
Ele já havia ouvido a fraqueza na voz dela. Normalmente, ela tinha uma
voz grave para uma mulher, rouca e forte, mas agora falava como se a boca
estivesse cheia de lã seca. Era impossível não notar sua magreza quando ela
o abraçou ou a secura de papel de pergaminho de sua pele quando ela se
recostou.
— Muitas coisas — respondeu ele, forçando-se a sorrir. — A senhora
está tão bonita como sempre.
— Ensinei você a mentir melhor do que isso — retorquiu Hendet,
fingindo severidade. Isso o surpreendeu, fazendo-o rir, e aplacou um pouco
do seu medo, pois, se ela estava se sentindo bem o bastante para fazer uma
brincadeira, ainda havia esperança. — Unte falou que tudo correu bem no
ataque.
O filho concordou com a cabeça, depois ficou sério, estendendo a mão
para tirar o véu do rosto e o lenço para ela.
— Diga-me onde o Charris está, mãe.
Ela abriu a boca para falar, depois lançou-lhe um segundo olhar mais
perspicaz ao ler o rosto dele.
— Está prestes a partir em uma missão para mim — respondeu ela,
enfim.
— Para… — Ele se conteve antes de perder as estribeiras, pois ela era
gujaareen e jamais toleraria uma coisa dessas. Em vez disso, cerrou os
punhos sobre os joelhos. — Mãe, você o mandou para negociar uma aliança
com o Hetawa.
Hendet dirigiu-lhe um olhar frio que, não obstante, tinha o poder de
ferroar.
— Eu o mandei para finalizar uma aliança com o Hetawa, sim. Unte
concordou com os termos do Hetawa, embora um deles fosse que se
encontrassem com você antes que o acordo fosse selado.
— Unte! E você… — Levantando-se, Wanahomen andou de um lado a
outro no pequeno espaço da tenda, respirando fundo em um esforço para
diminuir o latejamento em suas têmporas. Quando por fim conseguiu falar
de um modo civilizado, ele parou e a encarou. — Eles mataram o homem que
você amava, mãe… — disse. — Eles o usaram e o atormentaram e
corromperam a magia da Deusa em nome do poder… — Mas parou de falar
porque Hendet o fitava com uma mescla de exasperação e tristeza, como se
ele a houvesse decepcionado de algum modo.
— Você se parece tanto com o seu pai — ela afirmou baixinho,
assustando-o a ponto de fazê-lo se calar. — Você se saiu bem, apesar de
tudo o que aconteceu, muito bem mesmo. Estou orgulhosa de você e
acredito em você. Mas em um aspecto — a voz dela ficou fria como a água
do oceano — você consegue ser tão tolo, Wanahomen.
O rapaz estremeceu.
— O quê?
— Gujaareh se baseia em uma quadra de forças. — Os olhos de Hendet
haviam endurecido como colunas de pedra. Em uma parte distante da
mente de Wanahomen, ele se regozijou com o fato de a ferocidade dela não
ter diminuído, apesar da doença; ela ainda conservava a alma de uma rainha,
por mais que sua carne fraquejasse. Mas suas palavras… — O rio, as castas,
o exército e o Hetawa. Aqueles sacerdotes que você odeia tanto educam os
nossos jovens, mantêm o nosso povo saudável e contente, administram a
justiça… e eles têm magia, Wanahomen. Um poder sem comparação no
reino da vigília. Sem a cooperação deles, mesmo que você retome o trono,
Gujaareh não será sua.
— A casta militar prometeu me ajudar na batalha final — argumentou
Wanahomen com teimosia —, e agora os nobres estão me apoiando. Selei o
pacto com o lorde shunha Sanfi. As pessoas comuns vão ficar felizes com o
meu retorno…
— Não! Não vão! Não sem o apoio do Hetawa! Wanahomen, você é
inteligente demais para isso. — Ela suspirou e lhe estendeu uma das mãos.
Após uma longa e raivosa respiração, o jovem se ajoelhou e a pegou. Ela
acariciou a mão do filho e continuou: — Seu pai o criou para ser sábio;
ignorar o Hetawa não é sábio. Você não confia neles, nem deveria. Também
me lembro dos crimes que cometeram. — E então, seu olhar duro ficou
mais distante, sua raiva direcionada para outro lugar. — Mas mesmo eu vejo
que isso é necessário.
Ele desviou os olhos em uma negação muda. Ela suspirou.
— Quando você tiver retomado o trono, vai fazer acordos com Kisua,
não vai? Por mais que os odeie. E, para recompensar os esforços dos
banbarranos, você vai lhes dar privilégios comerciais que nenhuma outra
nação teve, o que vai irritar a casta mercante, mas vai fazer isso mesmo
assim porque Gujaareh está fraca demais para outra guerra. Não é verdade?
Wanahomen cerrou os dentes.
— É diferente.
— Como? O Coletor que matou seu pai colaborou com Kisua. E quanto
aos nobres cuja aliança você está tão contente de ter conquistado, onde
estava o apoio deles com o seu pai morto e nós três precisando
desesperadamente? Eles nos deixaram para morrer! — Ela suspirou, então,
estendendo uma das mãos para afagar o cabelo dele. — O fato é que você
não pode confiar em nenhum dos seus aliados, meu filho. Um rei não pode
se dar ao luxo de confiar. Mas você também não pode permitir que o ódio
prevaleça sobre a razão.
Ele resistia à verdade das palavras dela. Só a ideia de cooperar com o
Hetawa deixava o gosto amargo da culpa, da traição, em sua boca. O que
seu pai pensaria se soubesse que Wanahomen se aliara aos seus assassinos?
Que estou fazendo o que é preciso, veio a resposta relutante e, por fim, ele
curvou a cabeça diante de Hendet, em concordância.
Ela afagou as tranças do filho em aprovação.
— Agora, conte-me como sabia.
— Encontrei um homem do templo, um Sentinela, nas colinas. Ele me
entregou isto. — Wanahomen tirou o pergaminho de uma dobra da túnica.
— E você nem sequer o abriu? Bem, pelo menos não jogou fora. O que
diz a mensagem?
Ele pegou a faca, cortou selo que fechava o pergaminho e o abriu para ler
os pictorais formais em voz alta.

Para Wanahomen, escolhido herdeiro de Eninket Rei (que ele possa viver na
paz Dela para sempre), saudações.

Seu pedido para um encontro foi aceito. Um representante deve estar


disponível no local da entrega deste pergaminho no quarto dia do oitavo mês da
colheita, ao pôr do sol.

Solicita-se que você e os seus aliados não façam mais nenhum ataque contra o
nosso inimigo mútuo até que esse encontro aconteça.

Não havia pictorais de assinatura. Wanahomen fez cara feia e jogou o


pergaminho no chão, levantando-se para andar de um lado para o outro.
Hendet estendeu a mão a fim de pegar o pergaminho. Parte da raiva de
Wanahomen se dissipou quando ele viu quanto a mão da mãe tremia antes
de ela disfarçar, colocando o pergaminho no colo para o ler com atenção.
— Você deve contar a Unte agora mesmo — determinou ela.
— Eu não tinha mais nenhum ataque planejado por causa da reunião do
solstício que está por vir — falou Wanahomen, franzindo a testa para si
mesmo. — É coincidência, mas, quando eles ficarem sabendo desse
“pedido”, os outros líderes tribais vão achar que sou subserviente ao Hetawa.
— Ele parou, refletindo. — Eu poderia ignorar o pedido…
— Você não vai fazer isso — retorquiu Hendet, indignando-se. — Você
sabe tão bem quanto eu que não se trata de um pedido, mas de uma condição
para a aliança. Unte vai entender.
— Unte não é o problema — respondeu ele e em seguida contou à mãe
sobre o soldado gujaareen assassinado e sua subsequente decisão de matar
Wujjeg. — Foi desacato — terminou ele. — Ordenei que não matassem
nenhum gujaareen e ele matou um de propósito.
— Então você estava certo de matá-lo — concordou Hendet. —
Embora seja uma pena, o clã de Wujjeg… — Ela parou de falar de modo
súbito, visivelmente cansada ao recostar-se nos travesseiros para recuperar o
fôlego. — Eles têm grande influência sobre os Dzikeh-Banbarra. Vão
tentar… tentar colocar a tribo contra você.
— Eu sei — respondeu ele em tom sombrio. De repente, aquilo tudo era
demais para suportar: os banbarranos, a doença da mãe, o três vezes maldito
Hetawa. Os sacerdotes estavam no centro de todas aquelas questões,
concluiu ele, soturno. Não fosse pelos Coletores, seu pai estaria vivo e Kisua
seria o mais novo território de Gujaareh, e Wanahomen não teria nada mais
importante com que se preocupar do que as maneiras de cortejar Tiaanet.
Mas será que ela ia me querer se meu pai ainda fosse Príncipe?, veio o
repentino pensamento desagradável.
Era inútil se atormentar com essas ideias agora.
— A senhora precisa descansar — ele disse a Hendet.
— Estou bem — falou ela, mas não resistiu quando ele a ajudou a se
deitar. Sua própria aceitação era prova de como se sentia mal: ela só
obedecia ao filho quando estava com dor. O rapaz sentiu um aperto no
estômago ao pensar no que aconteceria se ela não melhorasse logo. Os
banbarranos eram nômades durante parte de cada ano e não ficariam em
Merik-ren-aferu por muito mais tempo. Depois do solstício, os seis líderes
tribais se reuniriam e decidiriam se dariam apoio à guerra de Wanahomen.
Mas, lutando ou não a guerra, estando ela ganha ou perdida, a tribo
começaria a longa viagem através do Mil Vazios até a costa oeste do
continente para fazer negócios e enriquecer com as mercadorias que haviam
produzido ou roubado ao longo do ano. Wanahomen atravessara o deserto
durante a primavera muitas vezes no decorrer dos anos com os banbarranos
e testemunhara a dura realidade da travessia: os velhos e enfermos com
frequência não sobreviviam à viagem.
Então preciso conquistar Gujaareh antes da primavera.
Ajeitando os cobertores perto do queixo da mãe, Wanahomen inclinou-
se e beijou-lhe a testa.
— Tenha bons sonhos, mãe — sussurrou ele. — Na paz Dela.
— Você também, meu filho — disse ela, e fechou os olhos.
Ele não lhe contara das imagens que vinham assombrando seus sonhos
nas últimas semanas: seu pai consumido pela podridão, a podridão
ameaçando sua própria carne e a terrível torrente de maldade que ameaçava
inundar Gujaareh. Sua mãe veria significado nesses sonhos e talvez estivesse
certa em ver.
Mas de que serviria depois que tudo estivesse dito e feito? Por que ele
deveria se preocupar com fantasmas em sonhos quando tinha temores
suficientes para mil pesadelos no reino da vigília?
Então ele se acomodou nas peles ao lado da enxerga da mãe e ficou
observando-a até que adormecesse. Depois que Hendet entrou em Ina-
Karekh para passar a noite, ele se levantou e saiu a fim de planejar a próxima
etapa da guerra.
12

O SEGUNDO TESTE

Pela Lei e pela Sabedoria, os corpos eram mantidos em estado durante


algum tempo após a morte. Ninguém sabia quanto tempo demorava a
última viagem para Ina-Karekh sem a ajuda de um Coletor. Os Professores
mais brilhantes de Gujaareh haviam discutido a questão durante séculos
sem chegar a uma conclusão. Segundo o consenso, havia alguma
possibilidade, por mais remota que fosse, de que destruir a carne rápido
demais poderia prejudicar a alma e lançá-la com violência em direção à terra
das sombras. As mulheres estavam a salvo disso, naturalmente, sendo deusas
que podiam navegar sozinhas por Ina-Karekh: eram mantidas por um dia
como cortesia, embora as meninas antes da menarca fossem mantidas por
dois, uma vez que seu poder feminino era menos desenvolvido. Os homens,
todavia, eram comuns, portanto a Lei ditava que corpos masculinos fossem
mantidos por no mínimo quatro dias após a morte e mais tempo quando o
embalsamento e os sarcófagos permitiam. As únicas exceções a essa Lei
eram os corpos masculinos que tivessem a marca de um Coletor e quaisquer
outros de que se soubesse que as almas estavam em segurança além do reino
da vigília.
Queimaram o corpo do Coletor Sonta-i dois dias após a sua morte. Ele
não dera o Dízimo Final, ninguém sabia da disposição de sua alma ou
mesmo se ela ainda existia. Contudo, foi cremado como se sua morte tivesse
sido apropriada e salutar porque não o fazer suscitaria perguntas que o
Hetawa não podia, não ousava responder. Como ele morreu seria a menor
delas. As seguintes seriam muito, muito piores: O que é esse sonho terrível que
o matou? O que o Hetawa pode fazer para acabar com isso? E a resposta para
esta última — Nada, não podemos fazer nada — perturbaria a paz da cidade
inteira.
Pois havia agora cinco novas vítimas.
Hanani estava na entrada do Salão de Cuidados Temporários, um dos
prédios atribuídos ao caminho dos Compartilhadores. Era nesse prédio que
as magias de cura mais difíceis e perturbadoras eram realizadas. Enquanto
se acreditava que a maioria das demonstrações de magia fortalecessem a
crença dos fiéis, algumas curas requeriam que membros fossem cortados ou
quebrados, que bebês fossem extraídos das mães, ou pior. Isso não se
aplicava nesse caso, mas ver os cinco sonhadores indefesos era perturbador
mesmo assim porque tão pouco podia ser feito por eles.
Vários Compartilhadores seniores andavam por entre as camas do Salão,
examinando os sonhadores e cuidando deles o melhor que podiam. Mais
adiante, Mni-inh conversava baixinho com um grupo de leigos que estava
por perto… as famílias das vítimas, presumiu Hanani. Ela se perguntou o
que ele poderia ter encontrado para lhes dizer.
Virando-se para o pátio central, ela viu que a pira funerária de Sonta-i
finalmente caíra sobre si mesma. A Lua dos Sonhos estava bem alta; eles
haviam acendido a pira ao pôr do sol. Um punhado de pranteadores
permanecera durante a queima, mas agora se afastavam de um em um ou
dois em dois, como se o colapso da pira tivesse sido um sinal. Nenhum deles
falou enquanto se retirava, notou Hanani. Ninguém chorava. Talvez, com o
estado da alma do Coletor tão em dúvida, ninguém soubesse muito bem
como chorar a morte.
— Compartilhador-Aprendiz.
A voz do Professor Yehamwy. Era um sinal do abatimento da própria
Hanani que ela não sentisse nada do terror de costume quando se virou a
fim de encará-lo. Mas talvez ele sentisse o mesmo: não havia nada da
reprovação costumeira em seus olhos.
— Professor. — Ela inclinou a cabeça para ele, depois olhou para a
cortina aberta do Salão de Cuidados Temporários. — Eu não entrei,
Professor.
Ele fitou a entrada como se fosse a última coisa em sua mente e suspirou.
— Bem, dadas as circunstâncias, parece evidente que a morte do garoto
era imprevisível. Pela manhã vou informar ao conselho que retirei a minha
interdição. Tenho certeza de que vão concordar.
Simples assim. Hanani o encarou, anestesiada demais para falar. Mas
então a brisa mudou, levando o cheiro da pira funerária (incenso e resina de
madeira perfumada e o odor inconfundível de carne carbonizada) e qualquer
júbilo que ela pudesse ter sentido desvaneceu antes mesmo de nascer. Em
breve ela poderia voltar a curar. Mas de que serviria quando até os sonhos
haviam se transformado em veneno? Ela não conseguiu forçar-se a
agradecer Yehamwy.
De qualquer maneira, Yehamwy parecia ignorá-la, contemplando o pátio
e a pira. Ele usava a vestimenta marrom formal de um Professor, o que
significava que provavelmente comparecera ao funeral de Sonta-i.
— Houve um tempo em que achei que você fosse a maior ameaça ao
nosso estilo de vida — confessou Yehamwy sem tirar os olhos da pira.
Hanani sobressaltou-se.
— Eu, Professor?
— Você. A nossa capitulação que anda e respira aos kisuati e ao estilo
“superior” deles. — Ele suspirou. — As mulheres deles não são deusas,
apenas criaturas mortais e fracas que fazem o mesmo trabalho que os
homens e podem sofrer os mesmos tormentos. Os servos deles são
comprados e vendidos como carne, os velhos são considerados um fardo…
eu não ia querer isso para Gujaareh. — Ele chacoalhou a cabeça devagar,
seus olhos refletindo a luz bruxuleante da pira. — Mas, no final, você é só
uma criança tola que nunca vai conhecer a verdadeira condição feminina. Se
quer curar, por que eu deveria impedi-la? Se comparada aos perigos reais do
mundo, você não é nada. — Ele se afastou da pira e também de Hanani. —
Suponho que a Deusa tenha achado por bem nos lembrar disso.
Então ele foi embora. Hanani ficou olhando para ele até sua vestimenta
marrom se mesclar com a escuridão.
nunca vai conhecer a verdadeira condição feminina
O que aquilo significava?
— Hanani?
Você não é nada.
Ela se sentia ferida por dentro. As sílabas do seu nome pareceram ecoar
em sua mente, mas ela se virou para encarar Mni-inh, que viera até a porta
do salão. Ele parecia muito cansado.
— Você deveria ir — falou ele. — Não há nada que você possa fazer
aqui.
Por um momento, com parte da mente esperando mais dor, Hanani
pensou que o mentor tivesse ouvido as últimas palavras de Yehamwy e
concordado com elas. Mas então ele soltou um suspiro profundo.
— Não há nada que ninguém possa fazer.
Ela arrastou os pensamentos dispersos de volta ao presente.
— Sonta-i. Foi por esse motivo que ele fez aquilo, não foi?
Mni-inh aquiesceu.
— Alguém tinha de tentar. Os Coletores são os narcomancistas mais
fortes do Hetawa. Se essa coisa pudesse ser derrotada pela magia… — Ele
suspirou. — Bem, agora sabemos que não pode.
Talvez ela estivesse sonhando, pensou Hanani.
Os últimos dias haviam tido uma natureza onírica, um toque sempre
presente de irrealidade que sua mente à luz do dia parecia não conseguir
compreender. No mundo da vigília, pesadelos não passavam de alma a alma
como uma pestilência e Coletores não morriam desses sonhos. Acólitos não
morriam de jeito nenhum, especialmente quando eram alegres, bonitos e
bem-amados.
Na vigília, as mulheres eram deusas em si e de si próprias, não servas da
Deusa.
Ela se obrigou a se concentrar. A alma de Mni-inh parecia tão fatigada
quanto a sua; a preocupação com ele afastou parte de sua infelicidade.
— Você deveria descansar, Irmão.
— Eu sei. Só que… Nunca fui tão inútil antes. É uma coisa com a qual
não estou acostumado. — Ele esfregou os olhos e suspirou. — Ah…
Maldição, quase esqueci. O Coletor Nijiri me informou mais cedo que
vamos partir amanhã.
— Partir?
— É. Para algum lugar no deserto, então use a sua capa formal por cima
da sua vestimenta habitual: vai protegê-la do sol. Montarias e suprimentos
estão sendo preparados para nós. Saímos ao meio-dia do portão da Casa das
Crianças.
Na vigília, Compartilhadores não saíam de Gujaareh. Hanani franziu o
cenho.
— Por qual motivo, Irmão?
— Nijiri disse que você sabia. — Parte do cansaço de Mni-inh
desvaneceu, substituído pela curiosidade.
O teste de Nijiri. Agora? Com Sonta-i morto e uma magia corrupta
ameaçando a cidade?
— Ele falou apenas de uma tarefa que queria que eu realizasse —
respondeu ela —, mas não me deu detalhes. Originalmente, a tarefa era para
você, mas ele disse que mudou de ideia.
Mni-inh franziu a testa para si mesmo.
— O que, em nome das infinitas paisagens oníricas, ele poderia estar
tramando? — Ele suspirou. — Aquele garoto é mais intrometido do que
qualquer Coletor que já conheci. Imagino que Ehiru não tenha tido tempo
de tirar isso dele.
Mni-inh fechou a porta do Salão de Cuidados Temporários e veio
postar-se ao lado de Hanani. À distância, a pira caíra ainda mais sobre si
mesma. Os dois viram quando uma grande chuva de faíscas se ergueu para
rodopiar e dançar no ar noturno. Então Mni-inh tocou o ombro de Hanani
e, em silêncio, ambos retornaram ao Salão dos Compartilhadores.

***

Havia mais pessoas presentes do que Hanani esperara quando chegou ao


pátio da Casa das Crianças, na manhã seguinte. O Superior estava nos
degraus próximos, vendo o grupo se preparar. O Sentinela Anarim
confabulava com seu aprendiz, que ainda era jovem, igualmente solene e três
outros Sentinelas que Hanani não conhecia. Mni-inh olhava, apreensivo,
enquanto um dos membros seculares do Hetawa tentava lhe explicar como
montar em um cavalo. O Coletor Nijiri já estava em cima de um cavalo, seu
rosto encapuzado contemplando a distância; ele não olhou ao redor quando
Hanani chegou. Em um impulso, a jovem foi até ele e tocou sua mão. Ele
piscou e se concentrou nela.
— Você chora a morte de Sonta-i? — Uma quadra de dias antes, ela
jamais teria ousado fazer uma pergunta tão pessoal para um Coletor. Mas
isso foi antes de ela ter conhecido o seu verdadeiro eu na paisagem onírica e
o visto mandar um irmão para a morte. Naquele dia, ela vira no rosto dele o
preço que pagara por aquilo.
Ele lhe dirigiu um sorriso pesaroso.
— Acho que você devia ter se tornado uma Coletora.
Ela baixou os olhos, excessivamente feliz, apesar de, considerando o
modo como Yehamwy e o seu grupo haviam reagido a ela como
Compartilhador, a moça não conseguia sequer imaginar o alvoroço, por
mais pacífico que fosse, se ela tivesse escolhido o caminho dos Coletores.
— Não tenho a sua força, Coletor.
— Eu não sou forte. — Antes que ela pudesse fazer mais do que franzir
a testa ao ouvir isso, Nijiri suspirou, estendendo a mão para afagar o pescoço
do cavalo. — Outra viagem pelo deserto. Da última vez… — Ele se calou
por um instante, depois deu de ombros. — Bem. As lembranças podem ser
doces e dolorosas ao mesmo tempo.
Ela não conseguia imaginar por que um Coletor jamais precisaria ir ao
deserto. Todavia, antes que pudesse pensar em um jeito diplomático de lhe
perguntar sobre o assunto, Mni-inh avistou-a e chamou-a.
— Deixe esse sujeito ensinar você a subir em um destes animais — pediu
ele, apontando com a cabeça para o membro secular enquanto tentava, outra
vez sem sucesso, montar em seu cavalo. O cavalo grunhiu e esquivou-se, e
Mni-inh pousou de novo no chão. Irritado, ele bateu na sela do cavalo. —
Também não quero montar em você.
O membro secular, esforçando-se para não sorrir, falou:
— Apenas continue tentando, lorde Compartilhador. — Virando-se
para Hanani, ele a fitou por um momento. Hanani esperou outra vez,
paciente; depois de um tempo, o membro secular se lembrou e fez uma
rápida mesura de desculpas, curvando-se sobre uma das mãos. — Por aqui,
lady Compartilhador.
— Lorde — corrigiu ela, e sorriu. — Embora na verdade nenhum dos
dois seja apropriado. Sou só uma aprendiz.
— Entendo — disse ele, parecendo mais perplexo do que antes, mas
sorriu mesmo assim. — Já cavalgou antes?
— Já — respondeu ela, ganhando um olhar surpreso de Mni-inh. —
Mas faz muitos anos.
— Algumas coisas nunca mudam, la… Aprendiz. Você se lembra?
A moça aquiesceu, sorrindo enquanto ele a levava até a égua que fora
selada para ela. Era uma bela criatura de um tom castanho-amarelado,
menor do que a média, mas de olhos inteligentes.
— Qual é o nome desta aqui?
— Dakha — falou o membro secular, nitidamente satisfeito. — Ela é
parte banbarrana, o que você vai desculpar quando perceber como ela lida
com os sopés das colinas.
Hanani anuiu, dando palmadinhas na égua enquanto passava para o
outro lado. Os estribos haviam sido colocados mais baixo para ajudar os
cavaleiros inexperientes a montar, algo pelo qual ela estava grata,
considerando sua altura e a falta de prática. Contudo, algumas coisas de fato
não mudavam, pois ela subiu no cavalo sem dificuldades, como se não
houvessem se passado catorze anos desde a última vez que cavalgara. O
membro secular assoviou, impressionado, quando Hanani se sentou na sela.
— No deserto, um bom animal pode significar a diferença entre a vida e
a morte — comentou ele, sorrindo-lhe. — Os banbarranos tratam as
montarias como parte da família, sabe. Dão nomes de crianças mortas a
elas, colocam joias nelas, e tudo o mais. Então trate bem essa dama.
Hanani sorriu, encantada, quando esfregou a crina de Dakha e o pescoço
da égua arqueou-se ao toque de sua mão.
— Vou me certificar de fazer isso, senhor.
Com o canto dos olhos, ela viu o Superior se aproximar da montaria de
Nijiri.
— Tem certeza? — ele perguntou ao Coletor. Ele falava baixo, Hanani
só ouviu porque estava perto.
— Não, não tenho. — A tristeza que Hanani ouvira antes em sua voz
sumira, substituída pela calma de um Coletor. — Mas estou seguro de que,
se não fizermos nada, estamos perdidos.
O Superior apenas suspirou em resposta. Hanani não ousou fitá-los. Em
vez disso, alçou os olhos quando o Sentinela Anarim ergueu a mão, pedindo
atenção.
— Vamos sair da cidade pelo portão leste — anunciou ele. — É pouco
usado, o que serve aos nossos propósitos de evitar chamar a atenção dos
kisuati, embora vá nos forçar a contornar a cidade antes de seguir em
direção ao sul. Deve levar dois dias para chegarmos às colinas, e mais um
dia para atravessá-las. — Ele olhou para Nijiri. — Vamos chegar lá a tempo.
Nijiri inclinou a cabeça e Hanani se perguntou outra vez o que ele e os
outros Coletores haviam planejado.
— Vamos cavalgar de dois em dois — continuou Anarim. — Devemos
estar vigilantes mesmo em terras gujaareen e, quanto mais longe estivermos
da cidade, mais perigo vai haver. Eu e Dwi vamos à frente. — Ele acenou
para o seu aprendiz, que acenou de volta com uma rapidez que contradizia a
sua aparente calma. — O Sentinela Kherkhan e o Coletor Nijiri vão por
último, os Sentinelas Emije e Lemuneb ficam com as laterais.
Compartilhadores, fiquem no meio de nós se houver algum problema.
Hanani dirigiu um breve olhar preocupado a Mni-inh e viu que seu
mentor parecia igualmente ansioso. Ela nascera nas terras cultiváveis, mas
não passara dos portões da cidade desde que se juntara ao Hetawa. Ela sabia
que Mni-inh nascera na cidade; até onde sabia, ele não havia saído da
cidade nunca na vida.
Mni-inh soltou um suspiro exasperado.
— Maldição, Nijiri. Tentei ser paciente, mas para mim já chega.
Quando vai nos contar do que se trata?
Nijiri sorriu como se esperasse a pergunta.
— Vamos encontrar amigos, Mni-inh. Pelo menos espero que sejam
amigos.
— Você espera…
— Vamos saber se não nos matarem. Isso se eles aparecerem, para
começar.
Mni-inh o encarou. Ainda sorrindo, Nijiri acenou com a cabeça para
Anarim, que fez sua montaria dar meia-volta e começou a seguir rumo ao
portão, o qual fora aberto por quatro acólitos.
— Depois de você — Nijiri falou para Mni-inh. Praguejando
entredentes, Mni-inh instou cuidadosamente o cavalo a avançar, dando um
grito assustado quando o animal de fato se locomoveu.
Então foi a vez de Hanani, e Dakha começou a trotar, como que ávida
por testemunhar enquanto todos se deparavam com o destino que os
esperava, qualquer que fosse ele.
13

INTERVALO

No jardim do Kite-iyan havia um leopardo. Ele não podia vê-lo, mas sabia que
estava lá. Como herdeiro do Príncipe, era seu dever caçá-lo e matá-lo antes que ele
machucasse suas mães ou irmãos.
— Wana.
Aproximando-se pelo jardim o mais silenciosamente possível (suas pernas eram
menores, ele sempre fora uma criança quieta), ele levantou a lança e
— Wana! Acorde, homem! Agora não é hora de sonhar acordado.
Wanahomen alçou o olhar e viu que o leopardo tinha um rosto humano. Unte.
Devo matá-lo, pensou ele.
Então Unte voltou a ser Unte e Wanahomen seguiu a direção apontada
pelo braço de Unte para ver qual era o problema.
Um grupo de oito viajantes a cavalo aproximava-se pela trilha rochosa
que conduzia àquela parte do sopé das colinas. Da saliência bem acima de
onde ele e o resto dos banbarranos esperavam a cavalo, Wanahomen
conseguia distinguir apenas as volumosas capas com capuz que cada
cavaleiro usava: cinco pretas, duas de um vermelho-sangue e uma cor de
osso descorado pelo sol. A última o fez franzir a testa.
— O Hetawa? — perguntou Unte.
Wanahomen aquiesceu.
— Os de preto são Sentinelas… os sacerdotes-guerreiros, letais sem
armas, pesadelos com elas. O de roupa clara é Coletor. — Ele contorceu o
lábio, não pôde evitar. Não esperara que o Hetawa fosse mandar um
Coletor. Para julgá-lo, talvez? E executá-lo no local, se o considerassem
inadequado? Ele apertou as rédeas com mais firmeza; o cavalo grunhiu. —
Eles conseguem lutar quase tão bem quanto os Sentinelas, mas a magia
deles é a maior ameaça. Nunca o deixe tocar você. E eles estão acima dos
outros, então aquele vai ser o líder. Os de vermelho… — Ele franziu o
cenho. — Aqueles são Compartilhadores. Curadores. Mas não faço ideia de
por que estão aqui.
— Humm. — Unte colocou a mão debaixo do véu para coçar a barba. —
E como deveríamos receber essas visitas, líder de caça?
Wanahomen ouviu o tom de gracejo na voz dele e sorriu para si mesmo.
Sua mãe desaprovaria, mas…
— Se for para serem aliados — respondeu ele —, parece sensato
mostrarmos a nossa força, não parece?
Unte riu e aquiesceu, e Wanahomen ergueu uma das mãos em um sinal.
Por toda a sua volta ele ouviu seus cavaleiros se mexerem, alertas. Ele fez
um círculo e depois cerrou o punho e jogou a cabeça para trás para soltar o
grito de guerra crescente de “Bi-yu-eh!”.
Venham e caiam em cima.
Os guerreiros avançaram, descendo por três trilhas diferentes em direção
ao fundo do cânion. Do outro lado do cânion, desceram mais duas fileiras
de cavaleiros, seus gritos ecoando das paredes rochosas. Quando o grupo do
Hetawa parou e imediatamente se virou para ficar de costas uns para os
outros, com os dois curadores no centro da formação, dois círculos de
cavaleiros banbarranos os cercaram, cada um girando em uma direção
diferente para ficar difícil de contar quantos eles eram.
Wanahomen desceu o declive com eles, gritando e brandindo a espada e
rindo por trás do véu. O pessoal do templo ficaria enervado, ele sabia, não
só pelo número de banbarranos armados que viera recebê-los, mas também
pelo simples caos barulhento que geravam. A paz era o costume gujaareen,
mas não havia paz nos banbarranos… de qualquer forma, não nesses jovens
e fortes guerreiros de Wana.
É, olhem para nós, pensou ele enquanto olhava feio para os membros do
templo. Vejam a quem estão se aliando. Se a sua sensibilidade for fraca demais
para nos suportar, então não precisamos da sua ajuda!
Mas, depois do movimento inicial de defesa, os cavaleiros do Hetawa
não se mexeram e, por fim, Wanahomen começou a se cansar do jogo.
Então ele fez um sinal para os seus cavaleiros pararem e eles detiveram suas
montarias e ficaram de frente para o grupo. Abriram caminho quando
Wanahomen passou pelas fileiras a fim de posicionar-se diante do Coletor
de capa clara.
— Mostre seu rosto — disse ele. — Eu conheceria o meu inimigo.
A maioria dos homens banbarranos não falava gujaareen, mas os poucos
que falava se inclinaram para cochichar com o resto. Todos saberiam que
Wanahomen exigira que o líder do grupo do Hetawa mostrasse seu rosto
para eles, um ato de submissão aos olhos dos banbarranos.
O Coletor levou as mãos até o capuz e parou pelo intervalo de uma
respiração, talvez notando os cochichos entre o grupo de Banbarra. Mas
completou o movimento e, assim que Wanahomen viu o rosto do homem,
estremeceu, chocado.
— Você! — Dez anos se dissolveram em um instante e ele estava outra
vez no terraço do Kite-iyan, observando enquanto seu pai enfrentava dois
Coletores de Hananja que tinham vindo para matá-lo. Um dos Coletores
era irmão de seu pai, a marca do Ocaso estava estampada em seu rosto. Mas
o mais jovem… — Você.
O Coletor anuiu, irritantemente calmo. Ele estava mais alto e mais
encorpado agora, não mais um jovem de rosto doce, mas não havia dúvidas
de que era o mesmo homem.
— Eu. Eu também me lembro de você, filho de Eninket. Saudações.
Eu deveria matá-lo bem aqui e agora. A ideia era lindamente tentadora,
embora ele soubesse que era tolice. Mas mesmo enquanto guardava a
espada, instou sua égua Iho até ela ficar ao lado da montaria do Coletor, de
modo que ele ficou ao alcance das mãos mortais do homem.
— Está sedento, Coletor? — Ele manteve a voz baixa e viu os olhos do
homem se estreitarem. — Conheço a sua espécie, lembre-se. Vi meu pai
alquebrar um de vocês. Se pretende me punir por isso, então faça-o agora.
Você não terá outra chance.
Por um momento, algo brilhou nos olhos do Coletor… não a sede
irracional que Wanahomen meio que esperara, mas uma raiva fria que era de
certo modo mais perturbadora por sua humanidade.
— Foi cruel da parte do seu pai fazê-lo observar enquanto ele destruía
Una-une — falou o Coletor com uma maldade branda que Wanahomen
jamais vira em alguém da espécie dele. — Essa experiência deve ter deixado
uma marca terrível em você. Sinto muito por não o termos matado antes,
pelo seu bem.
Wanahomen rosnou, mostrando os dentes, e conteve-se de pegar a faca
apenas por uma força de vontade monumental.
— Nunca vou confiar em você, demônio sugador de vidas!
Fazendo Iho dar meia-volta, ele se afastou alguns passos para se acalmar
antes de se virar para ficar de frente para o grupo do Hetawa de novo.
— Então, vocês propõem uma aliança. Entendo como se livrar dos
kisuati vai ajudar vocês, mas o que vocês têm a oferecer para nós, Sacerdote?
Pelo que sei, o Hetawa não tem exército.
O Coletor aquiesceu.
— Lutar nunca foi o nosso costume de fato, exceto para nos
defendermos e para defender os outros. — Ele dirigiu um sorriso de
desculpas para o sacerdote de preto mais próximo, que inclinou a cabeça
coberta pelo capuz em resposta. — Porém, você sabe que o nosso apoio
sempre foi essencial para os Príncipes do passado.
— Ah, sim, eu sei — respondeu Wanahomen. — Mas vocês sempre
cobraram um preço por esse apoio, e eu me recuso a pagar. Não vou ser seu
escravo como os meus antepassados foram.
— E nós não vamos mais exigir uma coisa dessas de você. — A voz do
Coletor ficou momentaneamente mais suave, e será que era vergonha que
havia nela? — Essa corrupção foi expurgada do Hetawa. Eu e os meus
confrades nos certificamos disso com as nossas próprias mãos. Vamos tratá-
lo de forma honesta. Quanto a isso tem a minha palavra, em nome Dela.
A franqueza do Coletor surpreendeu Wanahomen. Ele ouvira falar dos
expurgos e, em seu íntimo, admirara-se… mas ouvir as palavras em voz alta,
abertamente, era outra coisa. Uma coisa mais satisfatória.
Lançando um olhar para Unte, que descera ao cânion, mas ficara para
trás, observando em silêncio, ele disse para o Coletor:
— Então vocês oferecem a sua influência sobre o nosso povo e apoio à
minha reivindicação ao trono. Tudo isso é muito bom quando eu tiver
tomado a cidade e quando os meus homens e eu tivermos derramado o
nosso sangue nesse empreendimento. Mas aliados compartilham riscos,
sacerdote, assim como a recompensa. O que vocês podem fazer por nós
agora?
— Você acha que não compartilhamos nenhum risco? Se vocês
fracassarem, os kisuati vão nos destruir.
— E, no entanto, vocês podem se retirar da aliança a qualquer momento
antes do ataque final e alegar que não tiveram participação nenhuma. —
Wanahomen fez um gesto para o leste, em direção a Gujaareh. — Vocês
sempre agiram dessa maneira, nas sombras, esgueirando-se pelas janelas à
noite, mas isto é guerra. Comprometam-se com a luta ou fiquem no seu
templo e rezem. E esperem que eu vá destruí-los quando vencer!
O Coletor inclinou a cabeça, como se Wanahomen o tivesse convidado a
compartilhar vinho.
— Podemos oferecer suprimentos e dinheiro…
Wanahomen riu.
— Já roubamos mais do que precisamos dos kisuati. Ofereça algo útil,
homem do templo. Talvez vocês pudessem coletar Sunandi Jeh Kalawe e seu
marido general?
O rosto do Coletor endureceu.
— Eles não foram julgados corruptos.
Wanahomen não esperara realmente que ele fosse concordar.
— Então o quê?
O Coletor ficou calado por um longo instante antes de enfim suspirar.
— Que seja. — Ele afastou o cavalo alguns passos e depois parou,
virando-se para olhar para os dois sacerdotes vestidos de vermelho que
haviam estado atrás dele. — Esses dois ficam com você até recuperar o
trono.
Os sacerdotes de vermelho ficaram tensos, assim como Wanahomen. Ele
fez uma carranca, seus homens cochichando ao fundo.
— Isso é algum tipo de truque?
— O maior trunfo do Hetawa, e de Gujaareh, é a nossa magia —
respondeu o Coletor. — Um Coletor não seria de grande utilidade para
você, mas Compartilhadores poderiam salvar a vida de homens que, caso
contrário, talvez morressem nas batalhas que estão por vir.
Dois Compartilhadores. Wanahomen fitou os sacerdotes de vermelho,
dividido entre o entusiasmo e o desespero. O Coletor estava certo: dois
Compartilhadores poderiam reduzir em muito as perdas. E (sua mente
saltou a outra possibilidade com uma rapidez vergonhosa) um
Compartilhador poderia salvar mamãe.
E entretanto…
Dois Compartilhadores, jogados aos seus pés como prêmios. Dois
espiões do Hetawa bem no coração do seu acampamento.
Ele se virou para Unte, tentando se disciplinar para demonstrar
indiferença para que a decepção doesse menos.
Unte fez seu cavalo avançar, fitando pensativamente os sacerdotes.
Wanahomen lhe ensinara bastante gujaareen ao longo dos anos; ele
provavelmente fora capaz de entender a conversa toda. Mesmo assim, falou
em chakti com Wanahomen.
— Eu ouvi direito? O seu povo de repente viu vantagens na
comercialização de escravos?
Wanahomen, que estivera observando o Coletor, chacoalhou a cabeça. O
sacerdote estreitou os olhos; ele aparentemente sabia chakti o suficiente para
reconhecer a palavra escravo quando a ouviu.
— Não escravos, mas reféns para selar a nossa aliança. Para serem
libertados quando atingirmos o nosso objetivo.
Unte se remexeu na sela e suspirou.
— Nunca fui muito inclinado a pegar reféns. Trabalho demais para
pouco ganho. Mas, se eles podem fazer magia como ele diz, seriam de valia.
— Eles também poderiam passar os nossos segredos para o Hetawa.
Teríamos que levá-los para o nosso acampamento; mais tarde eles poderiam
revelar a localização — forçou-se a pontuar Wanahomen.
Unte sorriu.
— Ainda não conheci um morador da cidade que conseguisse achar os
próprios pés na areia sem a ajuda de um homem do deserto. E que motivos
eles teriam para nos espionar? Temos o mesmo inimigo.
Era verdade. Mas não escapara à atenção de Wanahomen o fato de que
esta era a única razão possível para terem trazido dois Compartilhadores
com eles. Apesar de toda a dissimulação, o Coletor tivera a intenção de
oferecê-los como prêmios desde o começo.
— Eu simplesmente não confio neles, Unte.
— Você não confia em ninguém, meu filho de alma. Diga a esse sujeito
de rosto bonito que vamos ficar com eles.
Wanahomen sobressaltou-se.
— O senhor tem… — Ele interrompeu a própria pergunta e curvou a
cabeça em submissão quando Unte lhe lançou um olhar brando. — Sim,
Unte.
Ele fez um gesto para dois dos seus homens avançarem e flanquearem os
Compartilhadores. Mas um dos sacerdotes de preto saltou do cavalo e se
moveu para bloquear o banbarrano, irradiando ameaça, e um dos sacerdotes
de vermelho tirou o capuz e gritou bruscamente:
— Nijiri!
O Coletor (Nijiri, memorizou Wanahomen) suspirou.
— Sinto muito, Mni-inh. Mas eu não ia deixar a sua aprendiz ir com
eles sozinha, por mais que ela tenha concordado.
— Ela concordou… — O Compartilhador olhou para a companheira,
incrédulo. — Hanani, é verdade?
O outro Compartilhador pareceu aflito demais para falar… assim como
Wanahomen, cujos pensamentos logo se inflamaram devido à desconfiança.
Ela?
Mas foi inconfundivelmente a voz de uma mulher, tremendo de medo,
que enfim respondeu.
— Eu… É, Irmão. Mas não me dei conta… — Os nós dos dedos de
suas mãos já pálidas, apoiadas sobre a sela, haviam ficado ainda mais
brancos. — Achei que…
— Eu disse que haveria risco, Aprendiz. — O rosto do Coletor não
demonstrava nenhuma emoção sequer. — O Príncipe acha que você é uma
espiã. Talvez ele fique menos inclinado a pensar assim quando perceber que
você não foi preparada para isso. — E o Coletor fitou Wanahomen.
Maldição. Wanahomen cerrou o maxilar, odiando ainda mais o Coletor.
Aquele homem sabia muito bem o que significava mandar uma mulher
gujaareen para um acampamento banbarrano. Mesmo mandar o
Compartilhador do sexo masculino junto seria de pouca ajuda para ela:
Compartilhadores não lutavam. Recairia sobre Wanahomen a
responsabilidade de protegê-la. Estamos no meio de uma guerra, que as sombras
o levem! Não tenho tempo para ser o guarda-costas de uma mulher inútil da
cidade!
Mas não havia outra escolha: Unte ordenara e a cooperação do Hetawa
sem dúvida dependeria de quão bem os reféns seriam tratados.
Suspirando irritado, Wanahomen avançou com a égua, parando ao se ver
diante do Sentinela (ou Sentinela-Aprendiz: o jovem mal parecia ter idade
para ter se juntado àquele caminho). Ele mal podia ver os olhos do rapaz
dentro do capuz, mas o fitou mesmo assim e, após um longo instante, o
jovem suspirou e se afastou.
Aproximando Iho do cavalo da mulher, ele estendeu a mão e puxou seu
capuz. Era ela… a moça Compartilhador que ele encontrara na cidade. Ela
olhou para ele, temerosa; com o véu cobrindo o rosto, ele provavelmente
parecia qualquer outro banbarrano para a jovem.
— Vá com eles — ordenou-lhe Wanahomen em gujaareen, indicando
seus homens com a cabeça. Ela sobressaltou-se, um medo instintivo nos
olhos; por um momento, ele achou que ela poderia fugir. Mas então ela
respirou fundo e assumiu uma máscara de calma que teria sido perfeita, não
fosse pelo brilho em seus olhos. Aquiescendo, ela cavalgou para se juntar aos
homens dele. O acompanhante dela, um homem no fim da meia-idade que
tinha um cabelo brilhante, quase liso como o dos nortenhos, fez cara feia
para Wanahomen, mas também cavalgou, permanecendo protetivamente
perto da garota.
— A aliança está selada, então? — O Coletor falou com Unte, mas seus
olhos se desviaram para Wanahomen.
— Entre o Hetawa gujaareen e os banbarranos da tribo Yusir, está —
respondeu Unte em um gujaareen com sotaque carregado. Wanahomen
também concordou com a cabeça, lembrando-se das palavras do Sentinela
aquele dia na colina: a aliança seria com você.
O Coletor inclinou a cabeça.
— Esperamos o seu ataque, então. Quando chegar a hora, os nossos
lutadores e a nossa magia vão apoiá-los durante a batalha que se seguirá.
Acontecerá em breve?
— Sim — respondeu Wanahomen.
— Logo após o solstício — acrescentou Unte, para decepção de
Wanahomen.
— Andem na paz Dela até lá — falou o Coletor, e acenou para os
Sentinelas. Eles o cercaram obedientemente e os seis viraram os cavalos para
a direção de onde haviam vindo. Unte fez um rápido sinal e os cavaleiros
banbarranos se afastaram, deixando o grupo do Hetawa partir.
Quando haviam desaparecido sobre a colina mais distante, Unte virou-se
para Wanahomen e suspirou.
— Bem, está feito.
— Ainda há a votação, Unte.
Unte olhou para Wanahomen, surpreso, um quê de divertimento em sua
expressão.
— Então você não pressupõe tranquilamente que vamos obter êxito na
votação? Nunca teria imaginado você tão inseguro.
— Estou tão confiante como sempre, Unte, mas eu nunca ousaria prever
as ações dos líderes das seis tribos. Se a votação não sair como espero… —
Ele olhou para os vultos cada vez menores do grupo do Hetawa, inquieto.
Unte sorriu.
— Bem, nós simplesmente vamos ter que esperar que saia. Essa aliança
vai ajudar. Vamos para casa?
Com um aceno de obediência, Wanahomen deu o sinal para eles
seguirem para Merik-ren-aferu com os Compartilhadores como reféns no
centro da formação.
14

MERIK-REN-AFERU

Ela estava entre bárbaros.


O Coletor Nijiri a deixara entre bárbaros.
Ela estava entre bárbaros e eles a torturariam, a matariam, mandariam
sua alma debater-se nos horrores da terra das sombras…
Esse era o ciclo de pensamentos de Hanani durante os quatro dias que
durou a viagem ao acampamento da tribo de Banbarra. Os banbarranos
impunham um ritmo pesado, cavalgando a passo rápido desde antes do
amanhecer até pouco antes do meio-dia, parando durante várias horas
quando o sol estava mais forte, e depois cavalgando do período da tarde até
depois do pôr do sol. Os músculos de Hanani, já doloridos por conta da
viagem que os trouxera da cidade, parou de protestar no segundo dia e, no
terceiro, estava simplesmente entorpecida. Ela curou as próprias feridas, mas
elas sempre voltavam.
Seus anfitriões eram qualquer coisa, menos amigáveis. Cada guerreiro
banbarrano usava túnicas esvoaçantes e capas similares, de várias cores,
lenços elaboradamente envoltos na cabeça e véus feitos de tecido cobrindo a
metade de baixo do rosto, mesmo durante o sono. Eles raras vezes diziam
seus nomes, então Hanani tinha dificuldade de distinguir um do outro.
Aquele que Nijiri chamara de “o Príncipe” mal falava com eles a não ser
para rosnar ordens; ele parecia mais irritado com a presença deles do que
com qualquer outra coisa. Os outros banbarranos seguiram o exemplo dele
em suas interações com Hanani e Mni-inh, embora Hanani pegasse alguns
deles dirigindo-lhe olhares especulativos de tempos em tempos. Ela não
fazia ideia, nem queria saber, do que os interessava tanto.
Era o líder da tribo, Unte, quem conversava com eles com mais
frequência, aproximando-se para bombardeá-los de perguntas em gujaareen
fluente, porém difícil de entender. Tanto ele quanto o Príncipe usavam
capas exteriores e véus em um tom vivo de índigo, e Unte era mais baixo, de
modo que eles podiam ao menos vê-lo acercando-se e preparar-se antes que
ele começasse. Estavam gostando do deserto? Mni-inh, que ainda estava
fervilhando com a decisão de Nijiri, respondeu a essa pergunta com menos
diplomacia do que deveria: “Não”. Mas sua hostilidade só pareceu divertir o
homem. Há quanto tempo eles serviam o Hetawa? Era verdade que eles
conseguiam sonhar enquanto estavam bem acordados ou fazer qualquer um
dormir no meio do dia? Como eles curavam?
Mni-inh esforçou-se para responder as perguntas o melhor que podia,
mas Hanani não conseguira forçar-se a reagir à cordialidade do homem. Sua
mente e seu coração estavam paralisados, como haviam estado desde que o
Coletor a lembrara de que ela concordara em enfrentar um teste. Ela
esperara… Bem, ela não fazia ideia do que esperar. Mas não isso.
Unte parecia confortável com o seu silêncio, no entanto, de vez em
quando oferecia-lhe o que parecia ser uma mesura de respeito. Mni-inh não
recebia a mesma mesura, notou Hanani.
Na noite do quarto dia, no momento em que o sol começara a fazer a
cabeça de Hanani latejar com força, ela viu que a terra coberta de matagal
elevava-se gradualmente em direção a uma grande rachadura irregular na
terra. Eles continuaram em frente, claramente posicionando-se para
atravessar esse cânion em vez de contorná-lo. Mas assim que desceram a
trilha que os conduzia entre as grandes paredes recortadas do cânion,
Hanani sentiu cheiro de água. Era um aroma tênue, nada como o cheiro
forte de terra e de rio de Gujaareh, mas, depois de tantos dias de areia e sol,
seu nariz pareceu acordar à primeira lufada de umidade. Dakha, que Hanani
percebeu que devia ter captado o odor algum tempo antes, ficava tentando
instigar os cavalos à frente a andarem mais rápido. Os cavalos, acostumados
à viagem, mantinham o mesmo ritmo forte e constante empregado o
caminho todo.
Os arredores começaram a mudar drasticamente. Em lugar da vegetação
descorada do deserto, ela começou a ver grama verde, até mesmo árvores à
medida que adentravam mais o cânion. As paredes do cânion eram altas e
íngremes, como que escavadas por uma grande faca, e tinham vivas e
intensas tonalidades de vermelho, uma mudança bem-vinda ao castanho-
claro inexorável da charneca. O verde da vegetação, embora mais pálido que
o da vegetação que crescia no solo de Gujaareh, rico e fertilizado pela
inundação, era claro o suficiente a ponto de quase ferir os olhos de Hanani.
Animando-se, ela olhou para os companheiros e viu que o humor dos
banbarranos também parecia ter melhorado, alguns até rindo quando
conversavam uns com os outros. Um deles apontou para cima e Hanani
arquejou ao seguir seu dedo. Havia alguém em uma das saliências mais altas
do cânion!
Antes que ela pudesse gritar um alerta, porém, Mni-inh cutucou-a com
o cotovelo e apontou. Através das árvores, ela pôde vislumbrar um rio
sinuoso. Era tão pequeno que o Sangue da Deusa poderia tê-lo engolido
sem aumentar um centímetro… mas era indiscutivelmente água fresca, de
correnteza rápida. De onde viera no meio do deserto?
Unte, rindo da confusão dela, tocou seu braço e apontou. Mais além das
paredes recortadas do cânion ela pôde ver, indistintas contra o céu noturno,
um conjunto de vastas montanhas cobertas de branco.
— No inverno, neva lá — disse ele. — Você sabe o que é neve?
— Já li sobre isso — respondeu ela. — Chuva e orvalho que
endureceram por causa do frio?
— Humm. Neva lá, no inverno. Derrete, do solstício até o fim da
primavera… vocês chamam de estação da inundação. Inunda aqui, também.
Pouco. — Ele sorriu e fez um gesto minimizando para indicar que não era
nada comparado ao encharcamento anual de Gujaareh. Ele apontou para o
rio, depois de volta para o ponto de onde haviam vindo, em direção ao
deserto. — Entra no subsolo ali, debaixo do deserto, mas aqui fica tudo
verde. Seca no outono e no inverno, até chegar o solstício outra vez. Está
começando agora.
Hanani aquiesceu, o espanto superando a inquietação de conversar com
um estrangeiro. Com muita ousadia, apontou para a saliência onde vira o
que parecia uma criança correndo.
— E ali?
Ela não podia ver o rosto dele através do véu, mas os olhos do homem
formaram linhas bem gastas de risada.
— Você vai ver — respondeu ele.
Eles seguiram o rio para dentro do cânion, chapinhando em alguns de
seus riachos secundários, contornando por fim uma curva para parar diante
de uma vasta planície gramada. Havia um curral cheio de cavalos e camelos
próximo à parede norte; os animais que já estavam lá andavam de um lado a
outro, saudando os recém-chegados com grunhidos e balançando as caudas,
empolgados. Ali esperavam várias crianças banbarranas sem véus, acenando
para o grupo que retornava. Os homens ao redor de Hanani começaram a
gritar para elas, tagarelando em chakti, e as respostas pareciam vir de toda
parte, inclusive de cima, percebeu Hanani, que alçou o olhar e teria parado,
em choque, se Dakha não estivesse determinada a seguir os outros cavalos.
Lá no alto, nas saliências, havia um vilarejo inteiro, a maior parte do qual
ela viu que era composta provavelmente de tendas: coisas em formato de
cúpulas redondas enfeitadas com peles e outras decorações em vários tons de
terra. Mas algumas das estruturas eram feitas de tijolo arenoso: as casas e os
depósitos permanentes e a Deusa-sabe-mais-o-que-lá, construídas bem em
cima das saliências! Tudo isso centenas de metros acima do fundo do
cânion.
O grupo parou no curral. Desviando os olhos das saliências, Hanani
seguiu o exemplo dos anfitriões, desmontando e tentando desamarrar os
alforjes. Para sua grande surpresa, Unte fez um barulho para chamar a
atenção e aproximou-se para desamarrá-los para ela. Quando os soltou,
jogou-os sobre o ombro e fez uma mesura para ela antes de sair andando
com eles. Mas não foi muito longe… só até o Príncipe, a quem entregou os
alforjes. Longe de ficar bravo, como Hanani esperara, o Príncipe franziu a
testa, surpreso com Unte. Unte inclinou a cabeça em direção a Hanani,
indicando de quem eram os alforjes.
O Príncipe, mais espantosamente ainda, pareceu aborrecido. Ele pegou
os alforjes murmurando desculpas a Unte e depois foi até Hanani e Mni-
inh.
— As crianças vão cuidar das nossas montarias agora que estamos aqui
em… — Ele falou alguma coisa rápido em chakti, mas Hanani captou a
palavra Merik. Era o nome de um dos deuses, o artesão que triturava
montanhas e enchia os vales. — Este é o lar da tribo Yusir. Venham comigo.
Era o máximo que ele havia dito a qualquer um dos dois durante a
viagem inteira. Eles se apressaram em segui-lo, ambos trêmulos e rígidos
após dias no lombo de um cavalo, quando ele se dirigiu à colina em longas e
rápidas passadas. Quando ficou claro que ele seguia para uma das várias
escadas de corda e madeira apoiadas contra a face do penhasco, os passos de
Hanani vacilaram.
O Príncipe parou na escada. Mni-inh olhou para cima e suspirou.
— Imagino que não exista outro jeito.
— Não — respondeu o Príncipe e, pela primeira vez, Hanani ouviu um
toque de divertimento em sua voz. — Mas você pode passar a noite aqui
embaixo se a subida realmente o incomodar. Não existem animais mais
perigosos do que escorpiões e algumas variedades de cobra…
— Vamos subir — assegurou Mni-inh sem demora.
O Príncipe fez um sinal para Hanani, indicando que ela deveria ir
primeiro. Ela engoliu em seco, desconfortavelmente, foi até o pé da escada e
olhou para cima. Parecia tão alto.
— Apenas suba — disse o Príncipe. — E não olhe para baixo. Na
primeira vez, é melhor acabar com isso logo.
O que a fez lembrar, de maneira apenas um pouco tranquilizadora, que
isso fora novo para ele um dia. Ela olhou para Mni-inh e viu que ele parecia
igualmente nervoso. Porém, ele deu um jeito de sorrir.
— Vá — falou ele, colocando os alforjes no ombro como os banbarranos
haviam feito. — Vou estar logo atrás de você. Veja bem, só um de nós pode
cair, porque o outro vai ter que realizar as curas.
Hanani sorriu, mesmo sem ter vontade.
— Sim, Irmão. — Sentindo-se ligeiramente menos nervosa, ela segurou
os degraus e começou a subir o mais rápido que ousou. Depois de começar,
ficou menos assustador: a escada era bem feita e fora fixada com cavilhas e
ganchos. Antes que se desse conta, havia chegado à saliência e estava em
chão firme outra vez. Ela se virou…
… E ficou paralisada, a respiração presa na garganta.
À sua frente, estendia-se o cânion em luz ardente e sombra pontiaguda,
sob um céu tão infinito e azul quanto o Mar da Glória. Os animais no curral
lá embaixo eram tão pequenos como brinquedos de criança; a lavoura ali
perto, uma série de fileiras mais verdes em meio a ondas de relva sopradas
pelo vento; o rio do cânion não passava de um filete brilhando em meio às
árvores com a luz refletida do pôr do sol. Ela já estivera no alto antes, os
andares mais altos do Hetawa, mas nunca desse jeito.
Emudecida pela beleza do cânion, ela ainda estava lá quando Mni-inh
chegou à saliência. Ele seguiu o olhar de Hanani, depois olhou para a face
do penhasco que haviam acabado de subir. Estremeceu e deu três passos
rápidos para trás.
— Indethe a etun’a Hananja…
— Enube an’nethe — falou o Príncipe, assustando os dois. Ele brotara
atrás deles, ainda carregando os alforjes de Hanani. Quando olharam para o
rapaz, ele também estava contemplando a vista. — Ela volta Seu olhar sobre
aqueles que fazem por merecer, sacerdote. Agora venham.
Ele os conduziu pelo acampamento banbarrano. Apesar da localização
bizarra, era muito parecido com um vilarejo gujaareen rio acima, só que com
tendas em vez de casas permanentes. As tendas pareciam agrupadas em
círculos de três ou quatro voltados para fora, cada grupo separado dos outros
ao redor por um espaço e às vezes por uma área de trabalho. O punhado de
construções permanentes com paredes feitas de tijolos parecia ter propósitos
mais práticos: ela vislumbrou uma fornalha reluzente através de uma porta e
vindo de outra construção ela sentiu o odor pungente de metal derretido:
uma forja. E um reservatório de água e um depósito de grãos. Não muito
diferente de um vilarejo gujaareen.
As pessoas eram diferentes, claro. Ela não fazia ideia de qual era a
origem dos banbarranos — eles estavam no deserto há séculos quando
Gujaareh foi fundada —, mas estava claro que haviam se misturado menos
do que o povo de Hanani. Embora ela vislumbrasse ocasionalmente olhos
castanhos e pele mais clara ou mais escura, eles eram, em sua maioria, da
cor do mármore marrom, com feições marcantes que lembraram Hanani das
pessoas nascidas na casta militar gujaareen. Os homens usavam o mesmo
tipo de vestimenta que a tropa usara no deserto, embora aqui ela visse
variações mais elaboradas do estilo: tecido mais macio, enfeites de contas,
renda e cores mais claras… e véus mais compridos.
Todos fitavam-na com desconfiança, notou ela, e erguiam ainda mais o
véu quando ela e Mni-inh passavam.
As mulheres eram outra história. Ela viu as primeiras reunidas em torno
de uma fogueira para cozinhar, observando-a com sincera curiosidade.
Diferente dos homens, elas não usavam véus nem lenços na cabeça, embora
suas joias e penteados fossem elaborados o bastante para impressionar até o
mais hedonista dos alta-castas gujaareen. Hanani não pôde deixar de olhar
para as mulheres com colares de ouro pendurados da narina à orelha, com
conchas pendendo dos cabelos trançados, com pálpebras pintadas de verde e
de azul e de um branco chocante. Suas roupas eram mais justas e mais
coloridas do que as dos homens, cingidas ao redor da cintura ou do quadril,
as mangas volumosas fechadas em volta do punho e enfeitadas com mais
ornamentos.
Quando ela parou de olhar para as roupas e os adornos delas, notou seus
rostos: menos desconfiados que os dos homens, mas não mais amigáveis.
Quando o anfitrião deles parou em uma tenda grande, Hanani fitou por
um instante o emblema de sol e raios sobre a entrada. O Coletor Nijiri
chamara esse homem de Príncipe, mas o que isso significava? Nenhum
Príncipe governara Gujaareh desde que o Rei Eninket assumira o Trono dos
Sonhos, embora, claro, ele tivesse muitas quadras de filhos…
Ela olhou para o homem chamado de Príncipe e descobriu que ele a
estava observando com um mau humor desconfiado nos olhos.
— Esta é da minha mãe… — Ele disse algo em banbarrano: soou como
an-sherrat. — O lar dela, o território dela. Não a desrespeitem.
Hanani piscou, pois essa fora a última coisa que lhe passara pela cabeça.
Ela fitou o emblema outra vez, não querendo acreditar na própria suspeita.
— A sua mãe é da Linhagem do Ocaso?
— Ela é a primeira esposa do rei que governa agora em Ina-Karekh.
Mni-inh conteve a respiração e encarou o homem como se houvessem
acabado de conhecê-lo.
— Você é Wanahomen! Aquele que todos acreditavam que se tornaria
Príncipe depois dele.
Parte do mau humor desvaneceu dos olhos do Príncipe, embora Hanani
não conseguisse interpretar a emoção que tomara seu lugar. Algo amargo,
fosse o que fosse.
— Acreditavam, é? Nesse caso, está claro que nenhuma dessas pessoas
conhecia o meu pai.
Mni-inh pareceu confuso.
— Então você era o herdeiro que ele escolheu? — atreveu-se Hanani.
— Os Príncipes do Ocaso designam herdeiros apenas nominalmente.
Aquele que acaba governando é aquele que tem força para conquistar e
manter o trono. Pretendo ser este.
— É… — Ela hesitava em fazer-lhe mais perguntas; descobrira ao longo
da viagem que ele tinha pouca paciência. Mas fora-lhe incutido repetidas
vezes no Hetawa: as castas e as hierarquias organizadas de pessoas dentro da
sociedade contribuíam para a paz de Hananja. — Nesse caso, é apropriado
chamá-lo de Príncipe?
Ele soltou o ar como que achando graça, agitando brevemente o tecido
do véu.
— Você realmente é um deles, não é, mulher? Como se a adequação
importasse, dadas as circunstâncias… — Ele suspirou. — Me chame como
quiser.
Ele tamborilou os dedos sobre a superfície esticada da tenda. Uma voz
rouca de lá de dentro falou “entre” em gujaareen. Hanani viu o anfitrião
deles ficar ligeiramente tenso antes de abrir a aba de entrada e adentrar. Ele
a segurou aberta para eles entrarem e Hanani foi atrás do mentor.
O cheiro de doença chegou-lhe quase de imediato. Ela parou logo após
entrar, surpresa com o odor. A tenda era maior e mais luxuosa por dentro do
que ela esperara, o chão revestido de tapetes, belas lamparinas de latão
penduradas nas hastes e nas costuras. Uma mulher estava deitada em uma
enxerga grossa de peles no centro da tenda, espiando-os com curiosidade
quando entraram. O Príncipe amarrou a aba após a passagem deles e depois
se endireitou, fitando-os atentamente enquanto apontava para a mulher com
um gesto.
— Minha mãe Hendet, da linhagem Hinba e da casta shunha, primeira
esposa de Eninket Rei.
Mni-inh rapidamente curvou-se sobre as duas mãos, bem como Hanani,
mas Hendet não disse nada enquanto olhava para eles, em particular para
Hanani. Ao seu lado estava um menininho de seis ou sete inundações
segurando um copo de água nas mãos. O garoto pareceu apreensivo ao ver
estranhos, mas se animou assim que viu o Príncipe.
— Wana?
— Tassa. — Dizendo algo em chakti, o Príncipe estendeu uma das mãos
e a criança foi até ele. Como as outras crianças banbarranas que Hanani
vira, esta não usava véu nem lenço. O Príncipe pôs as mãos no rosto do
menino em um breve gesto de carinho e ela viu de pronto a semelhança nos
olhos… embora os sinais também estivessem no cabelo mais enrolado do
garoto e no tom de pele escuro para um banbarrano. O menino era filho
dele.
O Príncipe falou com a criança em chakti, dando algum tipo de
instrução.
— Duas tendas — disse Hendet de repente em gujaareen, e o garoto
parou e olhou para ela, surpreso, assim como o Príncipe.
— Mãe?
— Não se pode esperar que uma mulher respeitável compartilhe sua
tenda — falou Hendet. Com um movimento que claramente exigiu muito
esforço, ela se soergueu, apoiando-se em um cotovelo; Wanahomen de
imediato foi para o seu lado para ajudá-la. Ela arfou um pouco e deu-lhe
um fraco sorriso de agradecimento. — Peça duas tendas, Wana. E diga a
Nefri que eu vou comprá-las.
O Príncipe ficou tenso.
— Mãe, ela é do Hetawa, não importa…
— Ela deve ser protegida. — Apesar da doença, estava claro que Hendet
fora a esposa de um rei: o tom de ordem estava em sua voz. — Entre os
banbarranos, uma pessoa sem riqueza ou parentes é um indivíduo
escravizado. O Hetawa é nosso aliado e esses… — Ela parou de falar,
visivelmente enfraquecida. — Os dois devem ser protegidos…
Ela se calou e o Príncipe conteve a respiração, alarmado.
— Mãe!
O impulso de ir até a mulher foi forte, mas Hanani se absteve, cedendo
perante Mni-inh como Compartilhador sênior. Mni-inh aproximou-se
deles e agachou-se ao lado da mulher, tocando em sua testa antes que o
Príncipe pudesse afastá-lo com uma carranca.
— Ela só desmaiou. A doença consome toda a força dela. Deite-a e eu
vou examiná-la.
Quando o Príncipe não se mexeu, Mni-inh simplesmente esperou,
fitando-o com o olhar brando que Hanani sempre achara pior do que uma
reprimenda durante o seu treinamento. Por fim, praguejando de leve, o
Príncipe deitou-a e levantou-se, recuando alguns passos e virando-se de
costas para eles. Seus punhos estavam cerrados nas laterais do corpo, mas ele
não falou nada. O menino, que não saíra, foi até ele e tocou um dos punhos,
ansioso.
— Hanani. — Mni-inh levantou-se para tirar a capa formal, para as
mangas amplas não o atrapalharem. — Vi algo parecido antes e acho que
vamos precisar de uma boa quantidade de bílis onírica. Como estão as suas
reservas?
Seu tom brusco, o mesmo que usara em uma centena de aulas e curas
com ela, era imensamente tranquilizador.
— Desde a interdição, Irmão? Não tenho nada em grande quantidade a
não ser bílis onírica. — Isso ela tinha em abundância graças aos seus
próprios sonhos, que vinham sendo feios ultimamente.
— Ótimo. — Ele a fuzilou com um olhar quando ela não se mexeu
imediatamente para ajudá-lo. — A interdição ia ser retirada, Hanani, você
sabe disso. O seu juramento tem prioridade sobre as suas dúvidas. Esta
mulher precisa de você.
As palavras perpassaram Hanani como uma depuração tão poderosa que
ela soltou profundamente o ar e correu para se juntar a ele. Tirando a
própria capa formal, ajoelhou-se ao lado da mulher e pôs a mão no esterno
dela em uma posição secundária de cura. Mni-inh ajoelhou-se à cabeça da
mulher e pôs a ponta dos dedos nos olhos dela.
— É uma variação da doença-dos-tumores — falou ele, fechando os
olhos enquanto começava a busca pela alma dela. — A doença está no
sangue ou, mais especificamente, no osso, que fabrica o sangue. A sensação
é muito parecida com as outras variedades dessa doença, então me siga e
vamos procurá-la.
— Sim, Irmão. — Ela fechou os olhos também e mergulhou no transe
de cura com ele, seu eu onírico procurando seu parceiro na carne da mulher.
Mni-inh encontrou a alma da mulher antes de Hanani: estava escondida
entre duas costelas do meio, perto do coração. Ele fundiu-se com ela,
Hanani fez o mesmo, e juntos saltaram para Ina-Karekh.
Depois de tanto tempo, realizar uma cura irrestrita e sem culpa era uma
alegria indescritível para Hanani, embora o sonho de que Hendet sofria
fosse qualquer coisa, menos alegre. As paisagens oníricas da mulher estavam
cheias de coisas que mastigavam e esfolavam: escaravelhos e ácaros com
muitas patas e cinza incandescente que queimava tudo o que tocava. Mni-
inh encarregou Hanani de limpar essas imagens e a doença que elas
representavam enquanto ele cavava sob a paisagem onírica e usava a semente
onírica para incentivar o corpo dela a substituir o osso doente por um
saudável. Era um trabalho lento, mas, com dois curadores trabalhando em
conjunto, transcorreu com facilidade.
— Ah… — Mni-inh espichou-se, sorrindo quando eles enfim
terminaram o sonho e voltaram para Hona-Karekh. — Senti falta disso,
Hanani. É Compartilhamento de verdade quando trabalhamos juntos.
Hanani deu um sorriso tímido… e então parou para espiar o Príncipe,
que estava sentado no outro extremo da tenda, observando-os. Várias horas
deviam ter se passado desde que a cura começara, pois estava mais escuro na
tenda agora. Na penumbra, ela conseguia apenas distinguir o véu facial e o
brilho dos olhos dele logo acima.
— Ela vai ficar bem agora — disse Hanani, ansiosa por tranquilizá-lo.
— Eu limpei a mácula. Meu mentor fez crescer um osso novo e substituiu a
parte doente dela para fabricar sangue saudável de agora em diante.
Mni-inh acenou a cabeça, concordando, quando terminou o exame,
apoiando-se nos calcanhares.
— Água, repouso e comida, em especial carne vermelha, vão ajudá-la a
recobrar as forças mais rápido.
O aceno do Príncipe foi um movimento vagaroso, que mal se via na
escuridão.
— Parabéns — falou ele. — Provaram que vale a pena preservar a vida
de vocês.
A absoluta frieza em sua voz foi como um tapa. Hanani recuou, olhando
instintivamente para Mni-inh, mas ele também parecia confuso com a
reação do Príncipe. Ela não esperara que o homem compartilhasse do bom
humor deles: a felicidade parecia estar fora do seu alcance. Gratidão,
porém… sim, ela esperara por isso.
Mas antes que um dos dois conseguisse responder, o Príncipe se pôs de
pé.
— Meu servo está lá fora — declarou ele. Não olhava para nenhum dos
dois, os olhos fixos na mãe. — Ele vai acompanhá-los até as suas tendas.
Hanani olhou de novo para Mni-inh, mas ele só chacoalhou a cabeça,
levantando-se. Hanani fez o mesmo e caminhou para passar pela aba da
tenda atrás de Mni-inh.
— Estamos quites, mulher do templo — afirmou o Príncipe, sua voz a
prevenindo. — Mas não mais do que isso.
— Quites?
Ele se virou para ela, ergueu a mão e abaixou o véu. Ela conteve a
respiração, reconhecendo enfim o homem que tentara salvá-la dos soldados
kisuati. A expressão dele não tinha nem um pouco do desdém que lhe
mostrara aquele dia, mas tampouco havia amabilidade. Ele poderia ter
obsequiado um inimigo ou um inseto com o mesmo olhar frio.
— Agora saia — disse ele, e deu as costas para ela.
Chocada a ponto de emudecer, Hanani obedeceu.
15

UM CHAMADO À LUTA

A oitava de dias que levava ao solstício de inverno foi um momento de


grande paz e contemplação em Gujaareh. Em um mês, talvez mais, o
grande rio chamado Sangue da Deusa transbordaria e encheria o vale
inteiro. Quando as águas baixassem, deixariam para trás um espesso lodo
preto cuja riqueza fazia o jardim que era Gujaareh florescer no coração do
deserto. Quando as nuvens de tempestade desvanecessem e a fertilidade da
terra fosse renovada, as crianças nascidas no ano anterior poderiam enfim
receber um nome.
Mas, até que as inundações começassem, Gujaareh passava sua existência
em um limbo árido, esperando. Os fazendeiros ficavam ociosos, a quarta e
última colheita realizada; artífices e artesãos terminavam os projetos e
fechavam as contas do ano; aqueles que tinham recursos saíam de viagem a
propriedades fora do vale do rio para evitar o incômodo das inundações. Era
nesses momentos que as famílias em Gujaareh se reuniam para celebrar o
amor, a boa sorte, a morte e todas as pequenas alegrias mundanas entre uma
coisa e outra.
Os dias de solstício eram o período em que as Irmãs de Hananja ficavam
mais ocupadas. Rara era a rua, dos ricos bairros dos alta-castas às choupanas
do mercado de peixes, que não conhecia o som de sinos ritmados e de um
suave tambor majestoso anunciando a procissão de uma Irmã e suas
assistentes. E a vista da tenda amarela de uma Irmã, dentro da qual essas
representantes da Deusa deitavam seus portadores do dízimo e evocavam-
lhes sonhos do mais puro êxtase, era comum durante os dias curtos e as
noites longas de inverno.
Provavelmente foi porque havia mais Irmãs por perto e mais pessoas para
estar atentas a elas que dois soldados foram vistos forçando uma Irmã a
entrar em um antigo armazém. Formou-se uma multidão com uma rapidez
assombrosa, resgatando a Irmã e sua aprendiz, que fora feita refém para
garantir a cooperação dela. Os cidadãos zangados então cercaram os
soldados com um propósito ameaçador. Mas, enquanto os soldados
gritavam avisos e sacavam as armas para se defenderem, a multidão abriu
caminho para um homem sereno e atarracado com a tatuagem de uma
papoula vermelha em um ombro.
— Andávamos observando vocês — disse ele aos soldados, sorrindo. —
Não achamos que seriam tolos o suficiente de tentar outro ataque em
público desse jeito, mas… Bom, aqui estamos nós.
Um dos soldados, intuindo algo do objetivo do homem, gritou e atacou-
o com a espada. A multidão de observadores arquejou. Rápido como uma
cobra dando o bote, o homem desviou do golpe e agarrou o punho com o
qual o soldado segurava a espada, desequilibrando-o. O soldado cambaleou
para a frente, quase soltando o cabo, mas, antes que pudesse se recuperar, o
homem tatuado colocara dois dedos em suas pálpebras. Ele caiu,
adormecido, e o homem pôs em sua cabeça um objeto pequeno que zunia.
O outro soldado por fim entendeu. Entrando em pânico, ele procurou
atrapalhadamente a espada, mas, antes que pudesse desembainhá-la, o
homem segurou seu braço.
— Paz — falou o homem… e aquele soldado também caiu ao chão.
O homem tatuado então voltou ao primeiro soldado, pousando os dedos
sobre suas pálpebras pelo intervalo de várias demoradas e silenciosas
respirações. Quando o soldado soltou um longo suspiro e não respirou mais,
a multidão murmurou sua aprovação. O homem da tatuagem executou o
mesmo ritual no segundo soldado e, quando este também estava morto, a
multidão deu um grande suspiro coletivo. Ela se calou, em apropriada
reverência, enquanto o homem dispôs os corpos dos soldados em uma
posição digna, e depois estampou um símbolo na testa de cada um. A
papoula vermelha, a mesma da tatuagem no ombro do homem.
Assim que acabou, mais soldados kisuati chegaram apressados, tendo
ouvido falar da multidão. O novo comandante dos soldados passou aos
empurrões pela turba com a espada em punho e depois parou, incrédulo,
olhando para os cadáveres enquanto o homem tatuado se virava para encará-
lo.
— Esses homens cometeram violência contra cidadãos de Gujaareh —
declarou o homem. — Mais odiosamente contra aqueles que servem à nossa
Deusa. Foram julgados corruptos e foi-lhes concedida a paz de acordo com
a Lei de Hananja.
— Nós não obedecemos à sua maldita Lei, seu imundo… — começou o
comandante, apontando a espada para o homem. Ele se calou quando um
de seus homens tocou-lhe o ombro; a multidão cochichava outra vez, seu
tom desta vez inconfundivelmente irritado. O comandante hesitou, depois
baixou a espada.
— A Cidade de Hananja obedece à Lei de Hananja — afirmou o
homem.
— A Cidade de Hananja obedece à Lei de Hananja — ecoou a multidão,
branda e implacável. Os soldados sobressaltaram-se, olhando ao redor,
alarmados.
— Seu povo foi tolerável até agora — disse o homem — e nós lhes
demos as boas-vindas por essa razão. Vocês são nossos semelhantes, afinal.
Mas, se não puderem mais aceitar a nossa hospitalidade sem abusar dela,
então talvez esteja na hora de partirem.
O comandante conteve a respiração diante da fúria e da afronta, mas não
lhe escapou à atenção que a turba, que estava ficando maior a cada instante,
manifestava estar de acordo com alguns gritos e punhos erguidos de
incentivo. Os gritos cessaram, porém, quando o homem tatuado dirigiu um
olhar brando à multidão. Isso, muito mais do que a agitação da turba,
transformou a fúria do comandante em um medo agudo e frio como o ferro.
Ele percebeu: se o homem da tatuagem ordenasse, a multidão cairia sobre
ele e seus homens e os massacraria.
— Eu sugeriria que vocês pelo menos saiam desta rua — aconselhou o
homem tatuado. Sua voz era mansa; seus olhos, genuinamente gentis; mais
tarde, o comandante se lembraria disso sentindo-se muito confuso. Ele
jamais fora ameaçado com tamanha cortesia em sua vida. — Paz é um credo
difícil de seguir nos melhores momentos e certas provocações passam dos
limites até do autocontrole de uma pessoa devota. Vou chamar alguns dos
meus confrades Compartilhadores para ajudar a distribuir a paz desses
soldados para a multidão, o que deve acalmá-los. Vocês devem ir e informar
os seus superiores sobre o que aconteceu aqui.
Os homens do comandante olharam para ele, ansiosos, esperando que
ele concordasse. O comandante encarou o homem da tatuagem de volta,
desconfiado.
— Você quer que a gente conte o que aconteceu aqui?
O homem pareceu achar graça.
— Claro. O Hetawa não tem nada a esconder.
E com esse comentário o comandante entendeu: eles haviam planejado
aquilo.
— Precisamos levar os nossos companheiros mortos — falou o
comandante. Era um esforço para manter as aparências. Ele estava nervoso
demais para ter verdadeira coragem. Para sua surpresa, contudo, o homem
da tatuagem anuiu. Então, surpreendentemente, o homem cruzou os braços
diante do rosto e ajoelhou-se, curvando a cabeça. As pessoas na multidão,
até a Irmã que fora atacada, fizeram o mesmo. Silêncio e quietude, a não ser
pelos agitados kisuati, encheram a rua.
Eles mostram respeito a dois estupradores?, perguntou-se o comandante em
princípio. Então passou-lhe pela cabeça. Eles mostram respeito a dois
estupradores mortos. Justamente porque estão mortos.
E, em Gujaareh, a morte era uma coisa a ser celebrada, contanto que
trouxesse paz.
Rapidamente, o comandante ordenou a seus homens que pegassem os
dois corpos e os levassem de volta para o quartel local. Nem uma única
cabeça gujaareen se ergueu enquanto os soldados saíam com a sua carga.
Quando o homem tatuado levantou-se, os outros da turba também se
levantaram.
— Tem certeza de que isso foi prudente, Coletor? — perguntou a Irmã.
Ela ainda parecia abalada. O homem da tatuagem fitou-a por um momento
e então tocou sua bochecha. Ela estremeceu quando a paz do soldado foi
transferida entre eles, devolvendo a calma que lhe fora roubada.
— Prudente ou não, está feito — respondeu o Coletor. — Uma crise se
abate sobre nós. Gujaareh deve ser unificada agora se quisermos sobreviver.
— Se os kisuati punirem o Hetawa por matar aqueles malditos — falou
bruscamente um homem que estava por perto — eles serão punidos. —
Mais de um murmúrio de concordância reverberou pela multidão.
O Coletor o fitou por um instante, depois suspirou.
— Se Hananja o desejar, então que seja.
O homem soltou um viva e a turba o acompanhou, algumas pessoas
abraçando-se ou dando risada, sentindo-se excessivamente bem. Eles
haviam desafiado os kisuati… um pequeno desafio, é verdade, mas uma
vitória mesmo assim. O Hetawa enfim saíra de seu silêncio complacente e
cúmplice para apoiar o povo de Hananja diante dos conquistadores. Nos
dias seguintes, a história do Coletor se espalharia e cresceria ao ser
recontada, atiçando a esperança e o desejo de agir onde antes existira só
frustração cozinhando a fogo lento. No devido tempo, que não demoraria
muito de modo algum, a cidade estaria pronta, ávida por uma mudança. E
mais do que disposta a lutar por ela.
Na celebração improvisada que se seguiu, o Coletor Rabbaneh foi
embora sorrateiramente.
16

O PREÇO DE UM COMPARTILHADOR

Hanani acordou na alvorada do dia seguinte com fome, coceira e uma


terrível necessidade de um banheiro. Durante a viagem de Gujaareh até lá,
acostumara-se a funcionar em condições rústicas, mas havia muitas
vantagens nas elegantes câmaras e jarros do Hetawa, que tornavam as
necessidades diárias confortáveis. Não fazia ideia de quais eram os costumes
banbarranos a esse respeito, mas agora se tornara necessário perguntar.
Sentando-se, ela olhou ao redor da grande tenda vazia que lhe fora dada
na noite anterior. Charris, um homem gujaareen mais ou menos da idade de
Mni-inh que disse servir ao Príncipe, dera-lhe uma única enxerga fina onde
descansar e ordenara-lhe que não andasse pelo acampamento banbarrano
sozinha. Ela não tencionava fazer isso, mas o que devia fazer se ele não
estivesse por perto? Com o corpo duro por ter deitado na enxerga, ela se
levantou, foi até a entrada da tenda e espiou o lado de fora.
Apenas alguns banbarranos estavam de pé e perambulando de um lado a
outro tão cedo. Ela avistou, no grupo de tendas em frente à sua, um homem
magro de feições lestenenses ocupado preparando uma refeição. O cheiro de
comida cozinhando por perto chamou sua atenção e ela saiu da tenda para
dar uma olhada em volta. Ao lado de uma fogueira no círculo criado por sua
tenda, a de Hendet, a de Mni-inh e uma quarta que ela presumiu ser a do
Príncipe, Charris estava sentado, cuidando de um espetinho de carne.
Estremecendo com o frio matinal, Hanani entrou no círculo e fez uma
mesura para ele.
— Bom dia, senhor. Sonhou bem na noite passada?
Ele se sobressaltou ao ouvir a voz dela, depois pareceu achar um pouco
de graça.
— Nunca me lembro dos meus sonhos, pequeno Compartilhador —
respondeu ele. O homem não sorriu, mas havia algo em seu comportamento
que a lembrava muito de Mni-inh; ela se viu relaxando automaticamente. —
O Hetawa me dispensou como um caso perdido antes mesmo que eu
chegasse à minha terceira inundação.
Hanani sorriu e agachou-se perto do fogo, embora isso colocasse uma
pressão desconfortável sobre sua bexiga.
— Posso ajudá-lo com isso se quiser — ofereceu ela. — Mas, nesse
meio-tempo, gostaria que o senhor me ajudasse a adquirir alguns itens
necessários.
Ele aquiesceu como se esperasse aquilo.
— Roupas, certo. Você não pode andar por aí vestida assim.
Confusa, Hanani olhou para si mesma. Estava usando seu uniforme
diário: o colarinho com contas de cornalina, os sobrepanos vermelhos, a
faixa nos seios.
— O que há de errado com a minha roupa?
— As mulheres se cobrem mais aqui do que em Gujaareh. E não se
vestem como homens.
— Meu status como Servo de Hananja…
— Eu entendo — falou Charris com um leve sorriso —, mas os
banbarranos não vão entender. Uma mulher que se veste como homem será
tratada como homem e aqui homens fortes podem abusar ou até matar
homens mais fracos sem grandes consequências. Essas pessoas não
acreditam na paz como nós. Respeite isso.
Ela suspirou.
— Muito bem. Vou pôr a minha capa formal. Mas primeiro existe algum
lugar onde eu possa me aliviar? E tomar banho? Faz… vários dias. — Ela
arqueou-se, envergonhada.
Ele pareceu surpreso, depois riu, embora a risada tivesse um quê de
melancólica.
— Ah, os dias em que alguns banhos não tomados me perturbavam
tanto! Bem, por enquanto, vou levá-la ao nível do solo. Você acha que o seu
acompanhante vai acordar logo?
— Vou — respondeu Mni-inh, saindo da tenda. Ele parecia tão
sonolento e enrijecido quanto Hanani, embora acenasse cortesmente aos
dois. — Dormi melhor na areia e no cascalho enquanto estávamos viajando,
pelo menos era mais macio do que pedra sólida. A hospitalidade desse povo
deixa muito a desejar.
— Eles ainda não mataram você — retorquiu Charris, encolhendo os
ombros. Mni-inh sorriu, mas Hanani percebeu que o homem estava falando
totalmente sério. Ele afastou o espeto da fogueira, tirou várias panelas de
barro que estavam aquecendo e levantou-se. — Venham comigo.
Ele os levou de volta para a escada que haviam subido no dia anterior.
Ali Hanani esqueceu-se da bexiga, pois era muito, muito mais assustador
descer a escada do que subir. Ela conseguiu realizar esse prodígio fechando
os olhos e agarrando-se à escada o melhor que pôde, tentando não sentir a
brisa gelada da manhã que deslizava pelas suas costas enquanto seus pés
procuravam o degrau de baixo. Ajudou um pouco o fato de Mni-inh lançar
um fluxo contínuo de pragas a descida inteira, distraindo-a do próprio
medo.
Por fim, eles chegaram ao nível do solo, ilesos a não ser pelos nervos, e
Charris os levou a um conjunto de árvores a uma boa distância do rio, onde
fora cavada uma boa latrina. Isso era o que os escravizados da tribo usavam,
explicou Charris; ele não contou o que os cidadãos mais afortunados
usavam. Depois ele os levou por entre as árvores até uma margem de rio
gramada, logo depois que o cânion fazia uma curva em relação às colinas
dos acampamentos. O rio formara uma pequena piscina rasa ali.
— Tem uma outra piscina logo adiante — informou ele, apontando para
uma colina — para você.
— Vou ficar com o meu mentor — disse Hanani. Mni-inh já se despira
e entrara na água; Hanani começou a fazer o mesmo. Charris pareceu
perplexo, virando-se rapidamente de costas enquanto Hanani se despia. Ela
ficou intrigada com a reação dele enquanto se banhava, levando a roupa
consigo para dentro d’água para lavá-la também. Charris era gujaareen,
afinal; em Gujaareh, não era incomum ver homens e mulheres nus em
público, em particular nos dias quentes. E isso era para tomar banho, o que
não era nem remotamente excitante. Mas, quando saiu e se sentou em uma
pedra para pentear os cabelos com os dedos enquanto sua roupa secava,
Charris soltou um grunhido de irritação e meteu-se no meio das árvores.
Mni-inh sentou-se ao lado dela, olhando de relance para a direção por
onde fora Charris. Molhado e livre de sua trança habitual, o cabelo dele se
transformara em um emaranhado de cachos de aparência oleosa,
generosamente salpicados de branco. Tendo terminado o próprio cabelo,
Hanani posicionou-se atrás dele para ajudá-lo a desembaraçar.
— Eu acho — comentou ele enquanto ela trabalhava — que você vai ter
que ser mulher de novo, Hanani.
Ela parou, as mãos mergulhadas até os punhos no cabelo dele, e
perguntou-se se ele estava de brincadeira.
— Meu período fértil do mês já passou, Irmão, mas tenho certeza de que
ainda sou uma mulher.
— Não de verdade — falou ele. — Desencorajamos isso em você
obrigando-a a se vestir como nós e viver como vivemos no Hetawa. Para
você se tornar uma de nós, e para alguns dos nossos membros te aceitarem,
foi necessário. Mas aqui acho que você vai ter que fazer o contrário.
Hanani recomeçou a pentear o cabelo dele com os dedos, apreensiva. Ela
sempre se sentira feminina, o que quer que aquilo significasse. Sua vida
como Serva de Hananja parecia natural e correta… isso não significava que
lhe convinha, que convinha às mulheres? No entanto, ela jamais se
importara de se vestir como um homem ou de ser chamada de senhor em
situações formais porque essas coisas a tornavam um Servo de Hananja aos
olhos dos seus confrades e do povo. Sem aqueles ornamentos masculinos…
nunca conheceria a verdadeira condição feminina
… Será que ela ainda poderia ser um Servo?
Suas mãos vacilaram no cabelo de Mni-inh.
Mni-inh suspirou, interpretando mal a imobilidade dela.
— Se ao menos aquele maldito Nijiri tivesse me avisado sobre o que
estava planejando. Não acredito que ele colocou a gente nesse tipo de
perigo. — Ele esticou o braço para trás e pegou uma das mãos de Hanani.
— Vou fazer o melhor que puder para te proteger, Hanani. Mas quero que
você entenda: o que quer que aconteça, nós dois vamos ter que fazer o que
for preciso para sobreviver e voltar para Gujaareh.
Essa conversa a respeito de sobrevivência a deixou nervosa.
— O Coletor Nijiri não teria nos deixado entre essas pessoas se
acreditasse que iam nos machucar, Irmão.
A voz de Mni-inh endureceu.
— O Coletor Nijiri faria exatamente isso se servisse aos seus propósitos.
A morte é apenas outro tipo de paz para um Coletor, lembre-se; eles não
pensam como os Compartilhadores. Mas me escute. — Ele apertou a mão
dela. — Você não está indefesa, Hanani, nem mesmo agora. Você já
adivinhou, não foi? A maioria dos aprendizes descobre quando está mais ou
menos no seu nível. Os que curam podem machucar com a mesma
facilidade. A técnica é a mesma, exceto pela intenção. E pelo resultado.
Ela se afastou dele, mais nervosa do que nunca ao se dar conta do que ele
queria dizer. Ele era seu mentor, seu irmão mais velho, seu pai de todas as
formas, menos de sangue. Sempre lhe ensinara a distinguir o certo do
errado. Isso ia contra tudo o que já aprendera. Parecia tão errado que ela não
tinha palavras para descrever.
— Mas o no-nosso juramento — disse ela. — Nós n-nunca
machucamos.
— Se alguém tentar machucar você, é melhor você machucá-lo, Hanani.
— Ele se virou para encará-la; quando ela tentou desviar os olhos, ele
apertou sua mão outra vez. — Não pode haver paz sem segurança. É por
isso que Gujaareh tem um exército, afinal… e é por isso que estou falando
para você, mandando você se proteger se as coisas chegarem a esse ponto.
Seu dever é curar aqueles que precisam e você não vai conseguir cumprir
esse dever se um selvagem ou um corrupto dentro do nosso próprio povo
tiver te matado. — Ele fez cara feia alçando o olhar para a face do penhasco
e só depois Hanani percebeu que estava se referindo ao Príncipe. — Me
prometa que vai fazer o que for necessário para sobreviver.
Ela foi salva de ter que responder quando um farfalhar nas árvores
anunciou a volta de Charris. Os dois se levantaram, Mni-inh rapidamente
prendendo o cabelo e Hanani estendendo a mão para pegar a roupa. Eles
ainda estavam molhados, mas logo secariam agora que o sol saíra.
Charris continuou desviando os olhos enquanto eles se vestiam.
— Lady Hendet está acordada e pediu para ver você.
Hanani parou enquanto passava a faixa dos seios sobre um dos ombros.
Mni-inh estendeu a mão para pegar a roupa e perguntou:
— Algum problema?
— Não. Ela só quer ver você. Você — acrescentou ele, arriscando um
olhar e cruzando com o de Hanani. — Não vocês dois.
Hanani piscou, surpresa, mas, quando olhou par Mni-inh, ele apenas
anuiu. Eles terminaram de se vestir em silêncio e depois seguiram Charris
de volta ao acampamento.
Na tenda de Hendet, Charris tamborilou os dedos na pele esticada,
então colocou a cabeça lá dentro quando uma voz murmurou lá no interior.
Depois de trocarem algumas palavras, ele recuou da entrada da tenda e fez
um gesto para Hanani entrar.
Dentro da tenda, o cheiro de doença já estava desvanecendo. Hendet
estava sentada, apoiada em travesseiros, o colo e o tapete ao seu lado
cobertos de pergaminhos. Ela não alçou o olhar quando Hanani entrou,
seus olhos ocupados esquadrinhando uma coluna de numeráticos.
Inexplicavelmente nervosa, Hanani parou no tapete ao centro da tenda e
esperou, sem saber ao certo se seria mais respeitoso permanecer de pé ou
sentar-se.
— Sente-se — falou Hendet, para alívio de Hanani. Ela se sentou sobre
os joelhos, como fizera durante tantas aulas no Salão dos Compartilhadores.
Fechando o pergaminho que estivera lendo, Hendet enfim dirigiu um
olhar intenso e pensativo a Hanani. Estava claro agora que ela fora bela em
seus dias de juventude, pois ainda era bonita, de pescoço comprido e feições
graciosas, embora muito magra após a doença. E estava igualmente claro
que o Príncipe herdara seu temperamento, pois havia a mesma frieza em seu
rosto quando olhou para Hanani.
— Então o Hetawa recrutou uma mulher — comentou ela. — Para
tranquilizar os kisuati, imagino.
Hanani baixou os olhos.
— Sim, senhora.
— Vê-los tão enfraquecidos… deveria me satisfazer. Uma vingança
adequada pelo que fizeram com o meu marido. — Hendet suspirou, depois
espiou Hanani, que não fora rápida o suficiente para impedir que a raiva se
manifestasse em seu rosto. Mas, para sua surpresa, Hendet ficou pensativa.
— Me perdoe, eles são família para você. De agora em diante, não vou falar
mal deles na sua frente.
Hanani hesitou, franziu ainda mais a testa, depois disse enfim o
pensamento que lhe passara pela cabeça:
— Prefiro ouvir as palavras em voz alta do que não ouvir nada e saber
que existem pensamentos maus por trás dos seus olhos.
Hendet fitou-a em silêncio por um longo instante antes de finalmente
dizer:
— Muito bem. Vamos ser sinceras uma com a outra. — Ela pôs de lado
um pergaminho e fez um sinal para Hanani se aproximar. Hesitando apenas
pelo intervalo de uma respiração, Hanani foi ajoelhar-se ao lado da enxerga
da mulher.
Hendet estendeu a mão e tocou o colarinho de Hanani, examinando as
pedras.
— Você é uma aprendiz. Uma pena; se fosse um Compartilhador plena,
seriam rubis, não cornalinas.
— Que importância tem isso, senhora?
— Porque você precisa de riqueza. Entre os banbarranos, uma mulher é
tão valiosa quanto a herança que a mãe lhe dá e isso depende de que riqueza
ela consegue construir ao longo de uma vida de negociações inteligentes.
Um homem pode enriquecer com sorte, por meio dos despojos dos ataques
ou das batalhas ou persuadindo uma mulher rica a se casar com ele e levá-lo
para o clã dela… mas, para as mulheres, não é nada mais do que perspicácia.
— Ela soltou o colarinho de Hanani e pegou seu queixo, virando seu rosto
de um lado para o outro.
Hanani tolerou esse exame com certa consternação, lembrando-se de que
a Irmã Ahmanat fizera o mesmo. O que é que essas pessoas procuravam em
seu rosto? Seria bom se uma delas se desse ao trabalho de lhe contar.
— Não sou uma mulher banbarrana — disse Hanani, esforçando-se para
manter seu tom de voz adequadamente neutro. — Sou uma serva da Deusa;
não tenho nada além do talento que Ela me concedeu e as habilidades que
meus irmãos treinaram.
— É, existe isso. Certifique-se de exigir o pagamento apropriado quando
curar, garota. O altruísmo não vai conquistar nenhum respeito para você
nesta tribo.
Hanani afastou-se dos dedos de Hendet, incapaz de continuar contendo
a afronta.
— Eu não peço pagamento pelas minhas habilidades.
Hendet pareceu achar graça.
— Quem compra esses belos tecidos vermelhos que você está vestindo?
Hanani sobressaltou-se, olhando para si mesma em um reflexo. Os
tecidos em questão avolumavam-se em formato de sino ao redor dos seus
joelhos, amontoando-se um pouco no colo. Eles sempre foram muito
compridos para ela.
— A tintura é cara — continuou Hendet —, especialmente nessa
tonalidade forte e escura, que é importada do leste. Eu sei porque o meu
marido, Eninket, comprava tais itens elegantes para mim quando estava
vivo, e poucos nobres de Gujaareh teriam condições de adquiri-los. No
entanto, o Hetawa adorna suas dezenas de curadores com um tecido que
custa uma pequena fortuna. Como, eu me pergunto.
Hanani tocou o tecido macio de seu sobrepano frontal, perturbada como
jamais estivera antes.
— D-doações — falou ela. — Vi pessoas nos salões de dízimos. Eles
perguntam se o Hetawa precisa que alguma obra seja feita ou oferecem
dinheiro, alimentos ou mercadorias…
— O suficiente para pagar pela tintura desses tecidos e pelas pedras do
seu colarinho? E pela comida que alimentou vocês todos esses anos, e pelos
catres onde dormiram, e pelos artesãos que construíram as cisternas e os
dutos para os seus banhos diários? — Hendet chacoalhou a cabeça. — Os
nobres pagam…
— Isso acabou! — Hanani apertou o tecido do sobrepano entre as mãos.
— Os Coletores expurgaram o Hetawa de todos os que vendiam sangue
onírico para lucrar.
Hendet suspirou, um suspiro longo e cansado, e colocou dois dedos
sobre a ponte do nariz. Ela acabara de se recuperar de uma doença grave,
Hanani sabia que deveria instar Hendet a parar de conversar e descansar.
Mas não conseguiu abrir a boca e Hendet por fim voltou a se concentrar
nela.
— Os banbarranos não veneram nenhum deus — disse ela depois de um
tempo. — Você sabia disso? Ou melhor, eles apelam para todos os deuses
com igual fervor, mas nenhum em especial. Ouvi falar que rezam para
Hananja, juram por Shirloa, o Senhor da Morte, dançam para atrair os
espíritos noturnos do Vatswane. Eu os vi queimar sacrifícios aos seus
ancestrais e ser possuídos por deuses animais, e de vez em quando se pintam
de listras, como a Sonhadora. Você acha que eles não têm fé em todos esses
deuses?
Hanani a encarou, tremendo por dentro. Hendet olhou para ela e deu
uma risada branda. Não pareceu maliciosa. Apenas compassiva, o que era
pior.
— Os banbarranos veneram aquilo que criou o mundo em toda e
qualquer forma que assuma — continuou Hendet. — Mas não veneram as
pessoas. Ou melhor, eles acreditam que pessoas são pessoas, mesmo aquelas
que afirmam ser sagradas. Às vezes não consigo deixar de me perguntar se
eles têm esse direito, esses “bárbaros”. Pelo menos eles nunca enganam a si
mesmos.
— Eu não fui enganada — retorquiu Hanani com firmeza.
— Você não precisou ser enganada. Você acredita, incondicionalmente,
isso é o bastante. — Sua pena se tornara exasperação; ela chacoalhou a
cabeça, vendo o posicionamento rígido de Hanani. — Pense,
Compartilhador-Aprendiz. O que aconteceu com todos os nobres que já
tinham se tornado dependentes do sangue onírico? Eles não podem parar,
caso contrário vão enlouquecer e morrer. E o que acontece com aqueles que
vêm pedir espontaneamente, sabendo dos riscos? O sangue onírico dá um
prazer mais doce do que a pasta de timbalin, é mais potente do que qualquer
vinho ou fumo. Se aqueles que podem pagar querem, por que o seu Hetawa
deveria mandá-los embora?
Hanani encarou-a, incapaz de falar, incapaz de pensar além do lampejo
de horror que despontava em sua mente. Contudo, sob o horror havia
vergonha da própria ingenuidade. Era tão óbvio. Ela deveria saber.
— O Hetawa faz um grande bem em Gujaareh — comentou Hendet em
um tom mais gentil. — Sem ele, os órfãos e os doentes teriam que se virar
sozinhos e a maioria do nosso povo seria tão ignorante quanto o povo de
outras terras: analfabetos, supersticiosos e coisas piores. As nossas próprias
vidas se tornaram mais longas e mais saudáveis por meio da magia dos seus
sacerdotes. É por isso que Gujaareh não leva a mal os pequenos esquemas e
a afetação do Hetawa, desde que os seus Superiores não ultrapassem os
limites do decoro. E é por isso, garota tola, que você deveria pedir
pagamento dos banbarranos. Você sempre recebeu pelo seu trabalho, quer se
dê conta, quer não. — Ela encolheu os ombros. — Mas faça como quiser,
eu te dei o meu conselho.
— Obrigada — disse Hanani mais por hábito educado do que qualquer
outra coisa. Era muito difícil não odiar Hendet naquele momento.
Hendet inclinou a cabeça, embora seu sorriso fosse tênue, como se
adivinhasse o ódio de Hanani.
— E se quiser ouvir mais conselhos, venda esse colarinho seu.
Hanani sobressaltou-se, levando a mão ao colarinho.
— Vender?
— Você precisa de pertences. Roupa apropriada. Um penico, uma cama
decente. Você está com fome, não está? Ninguém come de graça aqui. Dê o
seu colarinho para Charris e peça para ele levar para um membro da tribo
chamado Nefri. Ele vai manter uma conta para você e pagar o valor justo.
Fale para o seu mentor fazer o mesmo. Eu dei uma tenda para cada um de
vocês com o meu próprio dinheiro; aos olhos da tribo, significa que
reivindiquei vocês como família. Isso vai forçá-los a tratar vocês com certo
respeito, contanto que não façam nada para ofendê-los.
Faça o que for necessário para sobreviver. Hanani passou os dedos pelas
pedras do colarinho e curvou a cabeça, odiando-se agora por chegar a
pensar em seguir o conselho de Hendet. Mas Hendet conhecia aquelas
pessoas, e Hanani não.
— Por quê? — perguntou ela. — Por que nos ajudar se odeia tanto o
Hetawa?
Hendet sorriu.
— Porque vocês são aliados do meu filho. E porque eu também fiz
escolhas difíceis para sobreviver e garantir o futuro do meu filho. — Ela
olhou Hanani de alto a baixo, depois acrescentou: — E porque, apesar de
tudo, me agrada ver uma mulher no Hetawa. Agora vá, tenho muito o que
fazer.
Obedientemente, Hanani se pôs de pé. Depois de outro momento de
hesitação, ela se curvou para Hendet; Hendet inclinou a cabeça em régia
aceitação da mesura. Com a mente cheia de perguntas, Hanani saiu.
17

A NEGOCIAÇÃO DE AÇO

Wanahomen encontrou três de seus homens agachados no ponto de


observação nordeste, passando o longavisão entre eles e dando risadinhas
como meninos virgens.
— I-Dari — chamou um deles, avistando-o. — Venha ver.
— Que bobagem estão aprontando? — perguntou, aproximando-se para
se juntar a eles. Ezack sorriu e entregou-lhe o longavisão, apontando em
direção a uma das piscinas do nível do solo. Wana pôs o visor no olho,
focalizou o ponto e sobressaltou-se. Os homens leram sua expressão e riram.
— Ela poderia parir um exército com aquele quadril — falou Ezack.
— E alimentá-lo com aqueles seios! — riu outro homem.
Era verdade, considerou Wanahomen, permitindo-se um sorrisinho
quando o Compartilhador, sem roupas após o banho, levantou-se para se
vestir e lhe permitiu uma vista particularmente boa de suas virtudes. Não
havia nada de especial em suas feições, em sua cor ou em seu porte, mas
realmente havia vantagens em certas qualidades da procriação baixa-casta
em Gujaareh.
— Ouvi falar que as mulheres gujaareen não tinham vergonha —
comentou Ezack, pegando o longavisão para dar outra olhada —, mas não
fazia ideia de que fosse assim. Olhe para ela, tomando banho com aquele
homem dela sem nenhum pudor. Eles são amantes?
Wanahomen chacoalhou a cabeça.
— Os homens do Hetawa usam magia para reprimir os impulsos
naturais, quase nem são homens. Imagino que com as garotas seja igual.
— Ela parece mulher suficiente para mim!
— Mal posso esperar para pôr as minhas mãos nela — disse um dos
homens, e o divertimento de Wanahomen desvaneceu.
— Unte deixou claro que não devemos fazer mal a eles — retorquiu ele,
mantendo o tom indiferente.
— Eu não quero fazer mal a ela — respondeu o homem, e até Ezack se
juntou aos outros para rir, contudo, ao notar a expressão de Wanahomen, a
risada de Ezack desapareceu rapidamente.
— Minha mãe a reivindicou como membro do nosso clã — revelou
Wanahomen, e depois sorriu quando os três homens o encararam,
surpresos. — Ela sempre falou que queria uma filha. Imagino que eu fui
uma tentativa.
Ele se virou para sair antes que pudessem interrogá-lo porque, de
qualquer forma, não tinha respostas. Não fazia ideia de por que Hendet
optara por dar tendas aos dois Compartilhadores. Mais exatamente,
entendia a razão — aquilo lhes daria maior status e, portanto, segurança na
tribo —, mas o fato de que o houvesse feito ainda o deixava zangado. Ele
jamais perdoaria o Hetawa. Que seus sacerdotes se virassem, como ele e a
mãe haviam sido forçados a fazer.
— Isso foi muito bem feito — falou uma voz quando ele desceu da
saliência do ponto de observação. Ele ficou tenso, então se virou para fitar a
mulher banbarrana que se dirigira a ele.
— Yanassa — disse ele com cautelosa formalidade. — A manhã
empalidece diante do seu brilho.
Ela sorriu, fazendo um gesto para indicar que ele deveria caminhar ao
lado dela. Suspirando intimamente, ele o fez.
— Tassa me informou — começou ela — que os dois estranhos fizeram
algum tipo de magia na sua mãe ontem à noite. É verdade?
A pergunta atenuou um pouco seu mau humor. Hendet acordara se
sentindo melhor, como não se sentia há anos. Wanahomen a ajudara a se
lavar e se vestir, regozijando-se com a volta de suas forças, o seu apetite
feroz, o brilho em seus olhos.
— A magia do Hetawa é um presente da nossa Deusa — respondeu ele.
— Mesmo que nada mais seja confiável a respeito deles, pelo menos isso é.
— Fico feliz em ouvir isso — falou Yanassa. — Ouvi todo tipo de boatos
estranhos sobre os forasteiros, em especial sobre as mulheres. Dizem que
elas andam por aí vestindo quase nada e fazendo tudo o que o homem que
as acompanha, ou qualquer homem, manda. — Ela chacoalhou a cabeça,
suspirando. — Imagino que uma de nós, mulheres, vai ter que se encarregar
dela antes que os homens fiquem com a impressão errada.
Wanahomen parou de andar, franzindo o cenho para ela, desconfiado.
De fato, aliviaria boa parte de seu fardo se Yanassa cuidasse da garota do
Hetawa. Mas isso o deixaria em dívida pelo favor e ele aprendera anos antes
que Yanassa não fazia nada que não beneficiasse Yanassa.
— O que você quer? — perguntou ele, abandonado a cortesia.
Ela fez um biquinho de desaprovação.
— Você nunca vai aprender a ter boas maneiras? Dez anos entre nós e
você ainda se comporta como um homem da cidade.
— Não vou me deitar com você de novo, Yanassa. Eu te disse isso dois
anos atrás: foi a última vez.
— E eu não quero você na minha cama outra vez. Tenho outro amante
agora, caso não tenha notado. — Por um momento, ela ficou séria e ele viu
uma sombra de tristeza em seus olhos. — Tassa às vezes pergunta por que
você nunca vai lá.
— Ele vai entender quando for mais velho e descobrir os métodos do seu
sexo. Me diga o que quer em troca por cuidar da mulher.
Ela suspirou e chacoalhou a cabeça.
— Nada, Wana. A garota me interessa, só isso. Ter uma feiticeira no
meu círculo de amizades poderia ser de grande valor. — Ela dirigiu a ele um
sorriso oblíquo.
— Seria melhor você fazer amizade com um chacal. Não se pode confiar
em ninguém criado pelo Hetawa.
Yanassa ergueu as sobrancelhas graciosamente arqueadas ao ouvir isso.
— Então existe algo que você odeia mais do que a mim?
Ele não a odiava, e ela sabia. Ele parou e suspirou.
— Encarregue-se da mulher — disse ele. — Do homem também. Não
tenho tempo para pajeá-los. Os grupos de caça das outras tribos vão chegar
logo e quero que os meus homens pratiquem tiro…
Ela lançou-lhe um olhar exasperado.
— É o solstício, Wanahomen. Hoje à noite é o começo do festival, ou
você se esqueceu?
Maldição. Ele tinha se esquecido.
— Não vejo motivo para não nos prepararmos e celebrarmos também.
Nós estamos cogitando uma guerra.
— Até os guerreiros precisam revigorar o espírito. — Ela dirigiu-lhe um
olhar significativo e parou, estendendo a mão para roçar os dedos pela
bochecha dele sobre o véu. — Até você, oh grande rei.
Talvez as tensões dos últimos dias o houvessem desgastado, ou talvez
Tiaanet o houvesse feito desejar mais a suavidade de uma mulher para
variar. Ele suspirou e permitiu o toque de Yanassa, mesmo quando seus
dedos baixaram o véu o bastante para revelar os lábios dele, o qual ela
acariciou com a ponta de um dedo. Ele sorriu só um pouquinho e a viu
respondendo com um sorriso no rosto. Ele sempre admirara a audácia dela.
Então aquele momento passou e Wanahomen tomou a mão dela e a
beijou antes de afastá-la com delicadeza. Sem dizer uma palavra, pois havia
tão pouco que podiam falar um ao outro sem riscos nos dias atuais e essas
pequenas conversas pacíficas eram frágeis demais para arriscar, ele ergueu o
véu, inclinou a cabeça para ela e foi embora.
Primeiro desceu ao nível do solo onde, como as pessoas do templo,
deleitou-se com a chance de tomar banho após a longa viagem. Quando a
tribo estava em Merik-ren-aferu, ele não conseguia deixar de voltar ao velho
hábito gujaareen de tomar banho ao acordar e antes de dormir. Ele até
gastara parte da sua preciosa moeda comercializável para comprar sabonetes
bons e óleos perfumados em Gujaareh, o que ele preferia em relação ao
produto simples de cinza e gordura que os banbarranos usavam. Os
banbarranos chacoalhavam a cabeça para os seus tolos hábitos da cidade,
pois se banhavam de forma mais econômica e, tendo aversão ao desperdício
de água, eram conhecidos por “lavar-se” esfregando a pele velha e o suor
com areia seca. Ele fazia o que eles faziam no deserto ou nos sopés das
colinas, mas, quando havia água disponível em abundância, ele não via razão
para não tirar vantagem disso.
Talvez seja por isso que, imerso no prazer do ritual diário, ele não ouviu
a aproximação do agressor.
Ele acabara de sair da piscina, olhando com cautela para as colinas para
se assegurar de que não estava vendo nenhum brilho que revelasse um
longavisão, quando um movimento ligeiro à beira das árvores próximas o
alertou. Ele se virou bem a tempo e agarrou o pulso de um homem mais
velho que tinha olhos cheios de ódio sobre o véu. A faca que ele empunhava
estava a centímetros da barriga de Wanahomen, tremendo enquanto ele se
esforçava para empurrá-la.
Wanahomen tentava pensar em meio ao choque dos próprios
pensamentos. Os olhos do homem eram familiares, mas… O homem
rosnou e jogou o peso sobre o braço com a faca, aproximando-a o suficiente
para fazer um talho superficial no abdômen de Wanahomen. Wanahomen
grunhiu e então girou, impelindo para o lado o braço do homem que
segurava a faca e transferindo o peso, puxando quando antes estava
empurrando. O homem cambaleou e caiu. Wanahomen continuou
segurando o pulso do homem, rapidamente envolvendo o braço do outro
com sua perna e jogando-se no chão em um movimento de luta que certa
vez aprendera com os guardas do palácio de Kite-iyan. Agora o homem
estava preso, com uma das pernas de Wanahomen em volta do peito, a outra
segurando o braço, que Wanahomen agora torceu de forma brusca. O
homem gritou, soltando a faca, mas Wanahomen não o soltou.
— Quem é você? — perguntou ele. O homem praguejava e tentava
levantar, mas não conseguia obter nenhuma vantagem. Wanahomen forçou
o braço dele para baixo com força como advertência e o homem gritou ao
perceber que Wanahomen estava pronto para quebrar seu cotovelo. —
Quem é você, covarde?
— Wutir — arquejou o homem, enfim. — Tio de Wujjeg!
Então era isso. Com repulsa, Wanahomen suspirou e afastou o braço do
homem, pegando a faca ao levantar-se. Estava imundo agora por ter lutado
na terra e sua barriga sangrava, mas isso não lhe causava nem metade da
inquietação ocasionada pelo fato de que estava nu. Os banbarranos não se
mostravam aos outros facilmente, e estar nu diante de um inimigo era a
maior humilhação. Sem dúvida Wutir contara que isso deixasse
Wanahomen mais desastrado para se defender.
Mas ele era gujaareen, não banbarrano. E, quando Wutir rolou e se pôs
de pé, Wanahomen se aproximou e encostou a faca confiscada em sua
garganta. Wutir ficou paralisado, arregalando os olhos sobre o véu.
— Mãos ao alto — ordenou Wanahomen, e Wutir relutantemente
ergueu as mãos.
Wanahomen revistou-lhe a cintura em busca de mais armas, depois se
agachou à procura de facas nas pernas e nos tornozelos, sem encontrar
nenhuma. Satisfeito, ele se endireitou e passou o braço pela cintura de
Wutir em um gesto que poderia ter parecido íntimo, não fosse a faca
encostada na garganta do homem, não fosse sua ferida no abdômen
manchando de sangue a roupa de Wutir.
— Bem — falou ele —, acho que o senhor não entendeu que Wujjeg
estava errado. Ele desobedeceu às minhas ordens e eu sou líder de caça. Sua
morte foi culpa dele mesmo.
— Você… — O rosto de Wutir foi obscurecido por fúria e repulsa
enquanto tentava se afastar. — Você é um demônio estrangeiro que devia ter
sido castrado e vendido em um leilão…
Wanahomen soltou uma risada venenosa e soltou a cintura de Wutir
para baixar a mão. Foi fácil abrir a túnica de Wutir e encontrar o cordão da
calça, mais fácil ainda quebrar esse cordão e abrir a parte frontal da calça.
Wutir arquejou e esforçou-se mais para recuar, mas Wanahomen pressionou
a faca contra o pescoço dele o suficiente para sair sangue. Wutir parou de se
mexer, rangendo os dentes. Para tirar a vida do homem, Wanahomen só
precisava de um golpe.
— Mas vocês não me castraram — retorquiu ele com um sorriso feroz.
Para seu grande divertimento, Wutir não estava flácido. A excitação da luta
talvez, ou… — Em vez disso, parece que me cobiçavam! Eu, um demônio
nascido na cidade. Você partiu para cima de mim quando eu estava nu
depois do banho e me atacou, querendo cortar a minha carne para vingar o
seu sobrinho. Mas, lamentavelmente, não gosto de homens feios e então…
Ele agarrou o pênis de Wutir e torceu-o para um lado com toda a sua
força.
O grito de Wutir foi muito gratificante. Wanahomen rapidamente o
derrubou no chão, mantendo a faca em sua garganta, embora graciosamente
permitisse ao homem encolher-se, uivando e chorando. Como insulto extra,
ele arrancou o véu do rosto de Wutir e jogou-o no rio.
— Eu devo uma diversão a Yanassa. — Wanahomen sorriu para Wutir,
esperando o homem ficar rouco de tanto gritar. — Talvez eu possa contar
para ela o que você tentou fazer e o que eu fiz como resposta. E hoje à noite,
no festival, quando uma mulher atrás da outra convidar você para ir à tenda
dela e você tiver que recusar todas, a tribo inteira vai gostar de rir da sua
humilhação.
Wutir conseguiu olhar feio para ele, embora seu rosto estivesse brilhoso
de suor e sua expressão fosse débil para um olhar raivoso. Wanahomen riu,
afastando-se dele enfim. Recuando, ele se agachou perto do rio e se limpou,
tomando o cuidado de esfregar com areia a mão que machucara Wutir.
Depois, pousando a faca em uma pedra ali perto, ele pegou as roupas que
estavam secando e vestiu-se depressa, mantendo um olho em Wutir o
tempo todo.
— N-não — falou Wutir finalmente. Ele continuava encolhido, as mãos
comprimidas entre as coxas. — N-não conte… para as mulheres.
Wanahomen pôs as sandálias e pegou a faca de novo, sentando-se na
pedra para examiná-la. Surpreendentemente, era uma lâmina de boa
qualidade: nada menos do que aço de Huhoja, de uma tribo do sul famosa
por conta dessa mercadoria. Um palmo de comprimento apenas, mas bem
balanceada. Ele não conseguiu ver nenhuma mancha no brilho da lâmina
que pudesse indicar veneno, motivo pelo qual agradeceu a todos os filhos da
Sonhadora. Um homem mais inteligente ou cauteloso teria assegurado a sua
aposta usando tal substância. Wutir evidentemente não tinha esses dons.
— Que outra garantia eu tenho de que não haverá mais de vocês atrás de
mim? — indagou ele. — Cada membro fracote e covarde do seu clã me
caçando para vingar o seu sobrinho imbecil? A sua mãe te mandou?
Wutir chacoalhou a cabeça com fervor.
— Ela n-não sabia.
— Ah, ótimo. Ela sempre me pareceu uma mulher sensata, Shatyrria,
apesar do preconceito dela contra a minha mãe e contra mim. Você acha
que ela vai gostar quando a sua tolice transformá-la em motivo de chacota
de todos os seus amigos poderosos? — Ele levou a mão à bolsa e pegou um
punhado de tâmaras, parte de uma pequena provisão que trouxera de
Gujaareh. Mastigando uma, ele embrulhou a faca em um pedaço de couro
da bolsa, depois olhou para Wutir, pensativo. — Eu me pergunto se ela te
deserdaria.
Wutir apenas gemeu em resposta. Wanahomen riu e levantou-se,
guardando a faca e o resto das tâmaras. Atravessando o espaço entre eles,
agachou-se ao lado da cabeça de Wutir. Wutir fitou-o… e encolheu-se, pois
Wanahomen não estava mais sorrindo. Ele queria tanto matar Wutir que
suas mãos coçavam de vontade de pegar a faca e ficar cobertas de sangue.
Aquele tolo chegara mais perto de matar Wanahomen do que qualquer
inimigo em anos. Justo agora que os planos de Wanahomen estavam tão
perto de se concretizar!
E no entanto…
Nunca tenha pressa de matar, Wanahomen. A voz do pai chegou-lhe em
meio à sede de sangue. Isso ofende Hananja e, em todo caso, existem outras
formas melhores de destruir um inimigo.
— Entenda o seguinte — disse Wanahomen. Ele manteve a voz baixa
para que Wutir parasse de choramingar e prestasse atenção. — Todo mundo
vai ver você voltar cambaleando para o acampamento mais tarde, mal
conseguindo andar. Pense em qualquer desculpa que quiser enquanto estiver
aqui deitado. Ninguém vai acreditar, claro. Vão ver o sangue na sua túnica e
o sangue na minha e vão saber quem fez isso com você, se não souberem o
que ou por quê. Mas posso escolher não falar nada… por enquanto.
Ele chegou mais perto, correndo um grande risco. Se Wutir tivesse outra
arma com ele em algum lugar escondido… Mas algumas mensagens eram
mais bem transmitidas assim, olho no olho.
— A sua mãe espera convencer as outras tribos banbarranas a não apoiar
a minha causa — continuou ele. — E, com o tio dela liderando a tribo
Dzikeh, talvez ela consiga. Preciso de todos os guerreiros da tribo sob o meu
comando se quisermos ter uma chance contra os kisuati em Gujaareh.
Então você vai me contar todos os planos de Shatyrria.
Wutir arregalou os olhos.
— T-trair o meu clã? Você ficou louco?
— Eu disse o que vai acontecer se você não contar. Você continuaria no
clã depois disso?
Wutir gemeu e começou a chorar. Entre os banbarranos, um homem não
era nada sem a sua capacidade de gerar filhos. Fertilidade era riqueza para
eles, os corpos eram sacrossantos; coisas que não significavam nada em
Gujaareh eram uma questão de vida ou morte aqui. Nenhuma mulher o
admitiria como amante. Nenhum líder de caça o aceitaria em sua tropa. Ele
seria inútil, um animal de estimação na melhor das hipóteses e um
escravizado na pior, condenado à obscuridade e a uma vida de sordidez.
— Me mostre que você entendeu — falou Wanahomen.
Wutir fez que sim com a cabeça, desviando o olhar enquanto as lágrimas
rolavam-lhe pelo rosto. Wanahomen levantou-se e voltou para a pedra,
sentindo uma centelha de pena por trás do desdém.
— Satisfaça a minha vontade — propôs ele — e talvez dentro de alguns
dias eu deixe os curadores gujaareen verem você. O homem, não a mulher,
em nome da sua dignidade. Eles conseguem desentortar até mesmo o seu
pau deplorável, por maior que seja o estrago.
Wutir fez que sim com a cabeça outra vez, o corpo curvando-se,
derrotado.
— Então fale — disse Wanahomen, e Wutir falou. Quando
Wanahomen finalmente sabia de tudo, dirigiu-se às saliências do
acampamento, erguendo o véu para ocultar seus pensamentos conturbados.
Shatyrria fora mais rápida do que ele previra, ele entendia agora, e isso
significava que os Dzikeh-Banbarra seriam um sério problema quando
chegassem. Ele teria que encontrar algum meio de lidar com eles depressa.
Não pensou mais em Wutir, que fora deixado tremendo no chão lá atrás.
18

A NEGOCIAÇÃO DO SILÊNCIO

Em meio a todas as configurações bizarras da sociedade gujaareen — castas


de nascimento e castas escolhidas, linhagens e filhos bastardos, servos que
não eram escravizados e concessoras de prazer que não eram prostitutas —
os shunha eram o único grupo que fazia sentido para Sunandi Jeh Kalawe.
Gujaareh estava apinhada de influências estrangeiras, desde a arquitetura
nortenha até a música do oeste e os tecidos do leste. Sua língua era um
caldo tão contaminado pelos sabores de outros idiomas que agora tinha
apenas uma semelhança muito tênue com o suua que seu povo um dia
falara. Na metade do tempo, Sunandi não sabia distinguir um gujaareen de
um membro de qualquer outra raça: eles haviam se misturado tanto com os
povos estrangeiros que só eles conseguiam entender aquela bagunça estética.
Os shunha eram as rochas em torno das quais o agitado rio social corria.
Enquanto seus colegas nobres, os zhinha, lideravam o impulso para estender
o comércio e o poder gujaareen para ainda mais longe, eram os shunha que
impediam que esse impulso trilhasse longe demais ou rápido demais e que
exigisse demais dos recursos da terra. E se eram por vezes ridicularizados
como obsoletos ou estagnados, isso não mudava o fato de que Gujaareh
jamais poderia ter se tornado tão grandiosa como era sem seu comedimento
resoluto e sensato.
Mas Sunandi nunca se permitiu esquecer que, apesar de toda a sua
adesão às tradições kisuati, os shunha ainda eram incontestavelmente,
loucamente gujaareen.
Lorde Sanfi e sua filha Tiaanet tinham vindo ao palácio Yanya-iyan a
convite de Sunandi, uma vez que ela continuara com o hábito de seus anos
como embaixadora de jantar com todas as pessoas importantes da cidade. O
banquete correra bem e seus dois convidados haviam se comportado com
perfeito decoro, contudo, houvera algo estranho quanto à dupla desde o
começo. Era algo sutil, mas persistente, e, ao final da refeição, Sunandi
tinha certeza de apenas uma coisa: de que não gostava de Sanfi. Nem um
pouco.
— Seria mais fácil para você — disse Sanfi — se tivesse mantido vivo
um dos filhos do antigo Príncipe.
Sunandi, bebendo vinho de palmeira que acabara de ser produzido e
relaxando em almofadas após a refeição, não respondeu nada. Descobrira,
no decorrer da conversa daquela noite, que Sanfi reagia melhor a Anzi do
que a ela em discussões sobre tópicos controversos. Ele ficava mais na
defensiva quando Sunandi questionava seus pontos de vista e demonstrava
mais raiva quando ela salientava falhas no raciocínio dele. Era bastante
provável que tivesse certo preconceito contra as mulheres; era uma falha
comum nos homens gujaareen. Talvez, refletiu ela, fosse por isso que a filha
de Sanfi, Tiaanet, estivera em silêncio a maior parte do tempo até aquele
ponto.
Seu Anzi, que não tinha esse problema, tomara a frente da conversa: ele
se acostumara a jogar com as deixas mais sutis de Sunandi ao longo dos
anos.
— Ainda existem alguns filhos do Ocaso aqui na capital — comentou
Anzi. Ele deu uma forte tragada em seu cachimbo, o qual Sunandi só
permitia que ele fumasse nos aposentos do casal depois de refeições como
essa. Caíra a noite, úmida, porém refrescante, e no pátio do palácio abaixo
uma cantora contratada oferecia um hino melodioso ao crepúsculo. — Se
desistiram de qualquer reivindicação ao trono gujaareen e prometeram
lealdade a nós, deixamos que vivessem.
— Não esses — replicou Sanfi, o tom carregado de desprezo. — Os que
estão na cidade são filhas em sua maioria, e filhos novos ou tolos demais
para ter qualquer influência. Ninguém os seguiria.
— Já houve Príncipes mulheres no passado de Gujaareh — falou
Sunandi, girando a taça entre os dedos.
— Verdade. Mas todas elas tiveram que se esforçar mais para conquistar
respeito e poder do que qualquer homem. — Sanfi inclinou-se para a frente
para servir mais vinho a Sunandi, o retrato da solicitude. — Um filho da
linhagem poderia ser transformado em testa de ferro com mais facilidade.
Vista-o com roupas finas, coloque a Auréola atrás dele e as pessoas vão ficar
tão felizes de ter o seu Avatar de volta que boa parte da inquietação que
você tem visto ultimamente se acalmaria. Mesmo que, na realidade, Kisua
permanecesse no comando.
Será que aquele homem os achava tão tolos, perguntou-se Sunandi
enquanto fazia um aceno de agradecimento e bebia mais vinho, a ponto de
não terem pensado naquela possibilidade muito tempo atrás? A própria
Sunandi sugerira ao Conselho dos Protetores kisuati usar um dos filhos do
Príncipe. Infelizmente, após os expurgos do Hetawa e a necessária
consolidação de poder, os filhos mais velhos do Príncipe que tinham bom
senso fugiram para o exílio no norte ou no oeste ou se protegeram por meio
de casamentos e alianças com a elite de Kisua. Os poucos que restaram eram
quase inúteis: crianças, vagabundos ou coisa pior.
E aquele que poderia ter servido melhor — que tinha uma linhagem
respeitável — o favor do pai e, de acordo com todos, a inteligência e a
conduta de um verdadeiro Príncipe… ninguém vira nem ouvira falar desse
filho desde o dia da morte do antigo Príncipe, embora, depois da conversa
com Nijiri, Sunandi agora tivesse alguma ideia do que o rapaz estivera
fazendo.
Ainda bem. Se tivesse ficado na cidade, muito provavelmente eu teria
precisado matá-lo.
— E você tem um candidato em mente como testa de ferro? —
perguntou Anzi, achando graça.
— Não, não, de modo algum. — Sanfi deu risada, apesar de haver um
toque dissimulado nela. Ao lado de Sanfi, a filha não sorriu. — E,
sinceramente, hoje em dia é tarde demais para apresentar um testa de ferro
que não fosse motivo de riso. Receio que o seu povo tenha perdido muita
credibilidade em Gujaareh nesses últimos anos. Aquele imposto sobre as
exportações para o norte, por exemplo…
— Uma necessidade — respondeu Sunandi, sorrindo embora preferisse
não sorrir. Em primeiro lugar, porque era impertinente da parte dele
mencionar o assunto, mas também porque o Protetorado insistira no
imposto apesar dos protestos de Sunandi de que ele afastaria ainda mais as
famílias mais ricas daquela terra. A ocupação de Gujaareh se tornara cada
vez mais impopular em Kisua, e o Protetorado agora procurava aumentar o
lucro obtido com essa ocupação a fim de acalmar os seus cidadãos zangados.
Mas, com o imposto, Gujaareh não gerara as riquezas que os Protetores
haviam esperado. Privados de mercadorias luxuosas importadas do norte, os
gujaareen não aceitaram os produtos do sul que Kisua oferecia para
substituí-las: eles ficaram sem. Forçados a comprar madeira kisuati para
construção, eles pararam de construir. Pressionados a prender a casta servil a
contratos mais parecidos com a escravidão kisuati, um empreendimento
altamente lucrativo em Kisua, os malditos gujaareen haviam começado a
mandar seus servos para familiares em terras estrangeiras. Agora os custos
da mão de obra na cidade e nos vilarejos maiores haviam triplicado e era
apenas uma questão de tempo até haver escassez de alimentos, tecidos e
todo o resto.
A própria Sunandi se surpreendera com tudo aquilo porque acontecera
sem aviso. Seus espiões teriam ficado sabendo se houvesse algum tipo de
conluio, um esforço conjunto por parte dos mercadores ou fazendeiros,
talvez, ou uma revolta entre os servos. Mas, até onde ela sabia, o reino
inteiro de repente, espontaneamente, decidira contrariar de todas as formas
possíveis. Eles não reagiam. Não protestavam. Mas também não obedeciam.
Quanto mais Sunandi permanecia em Gujaareh, mais começava a
perceber que algo crucial, algum equilíbrio delicado que mantinha Gujaareh
estável, e segura, fora rompido. Mas Sunandi não tinha intenção de explicar
isso a Sanfi. Em vez disso, falou:
— Já vimos o que acontece quando se permite aos povos do norte
adquirir armamento e mercadorias de qualidade superior. Bem, o Anzi me
contou que, depois da guerra, quando as tropas do norte foram reunidas,
eles tinham mais arcos gujaareen do que arcos de fabricação própria! Eles
levaram aqueles arcos para as nossas praias para derramar sangue kisuati.
— Os arcos gujaareen são famosos em todo o mundo — disse Sanfi,
encolhendo os ombros. — Os nossos mercadores ficam tão felizes de vendê-
los para Kisua quanto para o norte. Ora, vamos, Oradora, todos nós
sabemos que não é esse o motivo para o imposto.
— Pode não ser — retorquiu Sunandi, sorrindo ainda, porém
permitindo que certa veemência se insinuasse em sua voz. Ela estava
cansada desse homem, que parecia acreditar que seu charme era suficiente
para desculpar sua insolência. — Mas é a única razão que deveria importar
para você.
O sorriso de Sanfi desvaneceu. Por um instante, surgiu uma centelha de
raiva nos olhos dele, bem como um brilho intenso que teria deixado
Sunandi profundamente nervosa se estivessem sozinhos. Ela já vira essa
expressão nos olhos de outros homens ao longo da vida e sabia o que era:
ódio.
Mas, antes que Sanfi pudesse dar voz a esse ódio, ou agir com base nele,
Tiaanet surpreendentemente quebrou o silêncio.
— Deveria importar a todos nós, Oradora — opinou ela. Sua voz era
grave para uma mulher, rouca; Sunandi imaginou que ela partia corações
apenas com as palavras. — Ouvi dizer que os Protetores estão menos do que
satisfeitos com as perdas de receita em Gujaareh, especialmente desde que
começaram os ataques banbarranos. Não é um mau presságio para o
governo de Gujaareh… e para a governante?
Silêncio recaiu sobre a sala. Anzi fitou Tiaanet, chocado com a sua
audácia, enquanto Sanfi virou-se para olhar feio para ela. Sunandi, após um
momento de espanto, percebeu que a noite de repente ficara muito mais
interessante.
Leopardinha esperta! Seu pai é um tolo de mantê-la na coleira.
Em um reconhecimento silencioso da defesa verbal, Sunandi inclinou a
cabeça para Tiaanet. Tiaanet acenou de volta, solene como sempre.
— Sua filha está bem informada, lorde Sanfi — comentou Sunandi. Ela
não pôde deixar de sorrir. Sanfi dirigiu-lhe um olhar consternado, mas,
quando se deu conta de que ela estava longe de se sentir ofendida, relaxou.
— Como a herdeira da estimada linhagem da mãe dela deveria ser —
respondeu ele, embora lançasse um olhar inexpressivo a Tiaanet. E, mais
uma vez uma grande estranheza, Tiaanet baixou os olhos, como que
envergonhada.
Ela pode ter acabado de salvar o pai do suicídio político. Ele deveria ter
orgulho dela; ela deveria estar cheia de si. Esse é o costume kisuati, e o shunha. O
que em nome dos deuses há de errado com esses dois?
Pousando a taça, Sunandi recusou educadamente a oferta de Anzi para
enchê-la de novo.
— E, em essência, ela está certa. Mas fique tranquilo, lorde Sanfi; se os
Protetores ficarem muito insatisfeitos, a segurança da minha posição será a
menor das preocupações de Gujaareh.
— O que provavelmente aconteceria? — Sanfi bebeu um gole de vinho
da taça, talvez para parecer casual. Mas estava tenso demais; Sunandi podia
ver que ele estava ouvindo com muita atenção.
— Estou aqui como cortesia, lorde Sanfi — explicou ela. — Sou
conhecida em Gujaareh e mais ou menos respeitada. Por minha vez,
respeito o seu povo. Por conta disso, a ocupação aconteceu de um jeito mais
brando do que teria acontecido. — Ela girou o líquido na taça, observando-
o, com o canto dos olhos, observá-la. — Mas, se os Protetores me
afastarem, significará que perderam o interesse na brandura. Eles vão tomar
o controle direto da capital e dos vilarejos maiores. Depois instituiriam
medidas mais drásticas para manter o controle. Até impostos mais altos.
Execuções sumárias e escravidão compulsória. Recrutamentos ao exército
kisuati. Racionamento.
Sanfi franziu o cenho.
— E quanto ao Hetawa?
Sunandi ergueu uma sobrancelha, perguntando-se o que o havia feito
pensar nisso.
— Eu deixei claro para os Protetores que o Hetawa colaborou conosco
até agora. Em sinal dessa cooperação e do favor que o Coletor Ehiru nos fez
cuidando de Eninket, acredito que os Protetores permitiriam que o Hetawa
continuasse funcionando como de costume… de momento, pelo menos.
Sanfi fungou.
— Você faria bem em observá-los mais de perto, Oradora. Afinal, eles
um dia governaram Gujaareh e dobraram todos os outros poderes desta
terra à sua vontade. O seu povo não está familiarizado com a magia. Ela
pode ser uma arma formidável em certas mãos.
— Uma arma. — Anzi pareceu cético, embora Sunandi soubesse que era
uma fachada. Os dois haviam estado no platô em Soijaro dez anos antes e
visto o horror do Ceifador de Eninket. — Feitiços para dormir e curas? O
que eles vão fazer, atacar os meus homens e deixá-los saudáveis e bem
descansados?
Sanfi sorriu, mas deu de ombros.
— A magia vem em muitas formas, nem todas benignas. Quem pode
dizer o que o Hetawa poderia fazer, se quisesse?
Anzi olhou para Sunandi, estava tão perplexo quanto ela. Por que esse
homem mencionara esse assunto? Sunandi franziu a testa e virou-se para
Sanfi.
— Vou me lembrar disso — respondeu ela com absoluta sinceridade.
O resto da noite passou rápido. Não falaram mais sobre política: depois
de dar seu aviso sobre o Hetawa, Sanfi pareceu inclinado a passar para
assuntos menos delicados, como fofoca sobre seus colegas nobres. Sunandi
estava feliz em deixá-lo fazer isso. Após a última garrafa de vinho ser
servida, Sanfi ofereceu os elogios e agradecimentos de costume aos
anfitriões, fez uma oferenda final de bebida aos ancestrais deles e finalmente
se retirou com a filha. Na esteira da ausência dos convidados, Sunandi se viu
olhando para as almofadas onde eles haviam se sentado, revirando a
conversa da noite em sua mente.
Anzi, relaxando agora que podia deixar de lado sua dissimulação de
general — ele odiava ser formal por mais tempo do que o estritamente
necessário — aproximou-se para descansar a cabeça na coxa da mulher.
— Já deixou de ser a Voz do Protetorado?
Ela sorriu e afagou a testa do marido, achando graça. Ele nunca se
interessara muito por política; muitas vezes ela se assombrava que houvesse
chegado a um posto tão alto. Talvez fosse apenas o fato de que ele fazia bem
o jogo quando precisava. Era unicamente por ela, contudo, que ele tolerava
noites como essa.
— Eu sempre sou a Voz deles, meu amor. Mas, por você, posso ser um
pouco menos Voz por algum tempo.
Ele franziu o cenho, sua ampla testa enrugando sob a ponta dos dedos
dela.
— Uma dupla estranha, aqueles dois. Nunca vi uma filha shunha tão…
Não sei. Acuada.
Sunandi acenou em sincera concordância. E por que parecia que o
propósito de Sanfi aquela noite fora levantar suspeitas quanto ao Hetawa?
Mas Anzi escolheu esse momento para se sentar e beijá-la. Ele ia querer
atenção agora: para um guerreiro de semblante pétreo, ele podia ser tão
exigente quanto um bichinho de estimação quando queria. E então, como
Sunandi prometera, deixou de lado as responsabilidades e preocupações para
se tornar, pelo resto da noite, apenas a esposa dele.
19

BÁRBARA

Na superfície espelhada de uma chapa de metal havia uma mulher: não alta,
com cabelo cor de mel e pele cor de amêndoa, e lábios tão exuberantes
quanto os campos do vale do rio Sangue. Seus olhos estavam marcados por
kohl e sua boca, por uma tintura marrom. A metade de cima do cabelo
havia sido penteada no coque habitual, embora presa com fios de conchas
brancas do longínquo Oceano Oeste. A metade de baixo fora separada em
uma dúzia de cachos ou mais, cada um sustentando na ponta um ornamento
de ouro pesado, em formato de lágrima. Eles produziam um barulho sutil,
chamando a atenção sempre que ela virava a cabeça.
— Isso vai servir — disse a mulher banbarrana ao lado de Hanani em
um gujaareen com sotaque. Ela passou um dedo sobre um dos cintos
entrecruzados que prendiam as novas saias de muitas camadas de Hanani
em volta do quadril. Hanani sobressaltou-se com o toque, desviando os
olhos do espelho… mas depois de apenas um instante seus olhos voltaram
ao reflexo. Ela não conseguia deixar de fitar aquela estranha ali.
Yanassa fez um som de satisfação.
— Você poderia ficar vaidosa nesse ritmo!
Hanani virou-se para a mulher, mexendo-se cautelosamente com aquelas
saias estranhas. Como ela evitava pisoteá-las? Teria de aprender.
— Yanassa, eu… eu nunca… — Ela olhou para si mesma. — Não
consigo nem pensar em como reagir a isto. Essa mulher não sou eu. — Ela
ergueu os braços cobertos de braceletes e tecidos com franjas. Como é que
poderiam ser seus? Seus braços deveriam estar desnudos e suas mãos,
desimpedidas, para serem rápidas e hábeis e salvarem vidas. No entanto,
eram os mesmos braços, as mesmas mãos.
Yanassa sorriu. A mulher banbarrana viera até Hanani aquela manhã,
depois que Charris levou embora seu colarinho e o de Mni-inh para o
“mestre contador” da tribo, o que quer que fosse aquilo. Junto com Yanassa
viera uma pequena horda de mulheres banbarranas tagarelas que invadiram
a tenda de Hanani em massa e a atacaram com roupas, maquiagem e joias.
Quando Hanani debilmente questionou a repentina atenção, Yanassa fora
sucinta:
— Você ofereceu valor para a tribo — respondeu ela, fazendo um gesto
em torno da garganta da moça para indicar o colarinho de Hanani. — Seu
sacerdote-homem informou que a riqueza dele e a sua deveriam ser
compartilhadas igualmente. E Hendet adotou você como sendo dela. Você
agora é uma mulher rica de um bom clã e, entre o meu povo, isso muda
tudo.
Estava claro que mudava. Durante o processo, homens e crianças
banbarranos continuaram chegando à tenda de Hanani, trazendo objetos
extras: enxergas, almofadas, lamparinas, tapetes, recipientes de alimentos…
um penico. Todas as necessidades e confortos que a tenda antes não tinha.
Sob ordens de Yanassa, as mulheres haviam saído e voltado com mais roupas
do tipo que Hanani usava agora, inclusive peças de roupa íntima e sandálias
e uma profusão de joias maior do que jamais vira na vida.
— Valor por valor — falou Yanassa em seu sotaque rápido e agitado. Ela
inspecionara cada pacote que chegara, mandando alguns de volta com
reclamações ruidosas, enquanto Hanani ficava abismada. — Não gostamos
muito de convidados, mas nunca vão poder dizer que os banbarranos
trapaceiam nas negociações.
Foi por meio dessas declarações mordazes, feitas como pronunciamentos
do Hetawa, que Hanani enfim começou a entender alguns dos traços
peculiares do comportamento banbarrano. A prática masculina de usar o
véu, por exemplo, não era simples hostilidade. Yanassa explicou que um
homem podia trazer os resultados da caça e das pilhagens, mas era dever das
mulheres da família (as quais menos provavelmente seriam reconhecidas,
presas ou mortas) transformar essas matérias-primas em riqueza útil
negociando nas cidades. Portanto, os homens cultivaram o hábito de
encobrir-se entre estranhos, enquanto as mulheres aprenderam as
habilidades que as ajudariam a barganhar pelas necessidades da tribo.
— Minha mãe me ensinou gujaareen e quatro outras línguas, além de
escrita, algarismos e investimento — contara Yanassa a Hanani com
orgulho. — Ela não se deu ao trabalho de ensinar aos meus irmãos. Mas a
mim ela idolatrava, pois sabia que no futuro eu traria grande riqueza para o
nosso clã.
Parecia-lhe, apesar de todos os banbarranos que vira até agora, até as
outras mulheres, que havia se submetido a Yanassa pelas regras de alguma
hierarquia incompreensível.
— Agora, ratinha — disse Yanassa. (Hanani não gostava desse termo,
mas pelo menos parecia carinhoso.) — No festival de hoje à noite, você deve
tomar o cuidado de não se exibir. Isso é o que as mulheres da cidade fazem e
nossos homens não têm respeito por essa atitude. O seu valor anuncia a si
próprio, não há necessidade de se esforçar mais.
Hanani franziu a testa, confusa.
— Eu nunca “me exibiria” — retorquiu ela, falando devagar caso algo
tivesse ficado embolado na tradução. — Nem sei o que você quer dizer.
— Então deve ser fácil para você. Os homens não vão se aproximar de
você… não agora, que todos podem ver que você é uma mulher de verdade.
Se eles te pressionarem, me avise. — Ela fez uma careta. — Alguns deles são
tolos. Os sensatos vão revelar o interesse deles de formas sutis. Você vai
saber: um toque, um olhar, uma gentileza inesperada. Se você o desejar
também, tudo o que tem a fazer é derrubar algum enfeite ou faixa perto
dele.
— Desejá-lo?
Yanassa estava pendurando as bolsas de cores vivas que continham o
novo guarda-roupa de Hanani ao longo da armação da tenda. Ela não viu o
olhar de choque de Hanani.
— Esse é o costume. Se houver muitos homens por perto, olhe nos olhos
daquele que você quer antes de deixar cair seu objeto. Depois, simplesmente
volte para a sua tenda e espere. Se ele desejar você também, ele deve vir até a
sua tenda para trazer o que você “perdeu”. Muitas vezes vai trazer algum
outro presente. — Ela deu um sorriso a Hanani por cima do ombro. — Aí
você o deixa entrar. Mas, veja bem, ele precisa ir embora de manhã. — Ela
parou, franzindo a testa para si mesma. — E é melhor não se dar ao
trabalho com Wana, se ele é do seu gosto. Já o vi jogar os sinais das
mulheres de volta aos pés delas quando estava de mau humor: ele é exigente
e não tem modos. Mas isso significa que a maioria das mulheres o deixa em
paz, o que eu acho que é o que ele quer.
— Eu… — Hanani procurava as palavras, por um instante atordoada
demais para falar. Em Gujaareh, as pessoas simplesmente sabiam que os
Servos de Hananja faziam voto de celibato. Ela jamais tivera que explicar
antes. — Yanassa, eu não posso.
— Hein? — Yanassa parou de fazer as amarrações, franzindo a testa para
Hanani.
— Não posso ficar com um homem. Não desse jeito. É proibido.
Yanassa encarou-a pelo intervalo de uma longa respiração, boquiaberta.
— Nunca?
— Não — respondeu Hanani. — Os que seguem o meu caminho… os
curadores, quero dizer… absorvemos a magia Dela dentro de nós e a
compartilhamos com os outros. Geralmente temos que compartilhar algo
das nossas próprias almas no processo. Isso é tudo o que a grande Hananja
permite, o resto de nós pertence a Ela.
— Quantos anos você tem?
— Já vi vinte inundações do rio.
— Pelos deuses das nuvens e do vento frio. — Yanassa parecia
horrorizada. — Você nunca sente desejo por um homem? Você tem
permissão pelo menos para dar prazer a si mesma?
Hanani sentiu as bochechas pegarem fogo. Ninguém em Gujaareh fazia
perguntas tão incisivas.
— Eu… já… senti desejo, sim. Mas é uma medida da nossa força e
disciplina o fato de conseguirmos superá-lo — explicou ela, citando Mni-
inh. — E, e… se o desejo se torna grande demais para ser suportado, posso
pedir para um dos meus irmãos ou para um Coletor compartilhar sangue
onírico comigo. Isso acalma todas as paixões. Mas nunca precisei… pelo
menos não por enquanto. — Ela ponderou. — Talvez seja porque sou
mulher e as paixões não sejam tão ardentes em mim.
Yanassa falou algo em chakti. Hanani não entendeu, mas soou muito
rude.
— É essa a bobagem que ensinam para vocês em Gujaareh? — Yanassa
chacoalhou a cabeça. — Não é de admirar que as mulheres da cidade não
tenham orgulho! E você… nenhum homem? Mulheres, pelo menos; eles
devem permitir que você tenha prazer com mulheres.
— N-não existe nenhuma outra mulher no Hetawa.
— Então você não tem nem amigas com quem compartilhar os seus
problemas? Que crueldade!
Hanani passava o peso de uma perna para a outra, desejando de todo o
coração que aquela conversa terminasse.
— Tenho meu mentor e… eu nunca, ah, me arrependi da minha
escolha…
— Unu-vi. Como poderia se não sabe o que está perdendo? — Yanassa
suspirou e veio mexer no cabelo de Hanani. — Que pena. Mas se esses são
os seus costumes, então que seja. — Ela parou e franziu a testa, pensativa.
— Devo contar a todo mundo sobre esse seu voto? Caso contrário, os
homens vão ficar curiosos sobre você. E também as pessoas que desejarem o
seu sacerdote-homem podem ficar ofendidas com a recusa dele.
— Deve, por favor — respondeu Hanani, aliviada. — Não quero ofender
ninguém… isto é, bom, todos estão se sentindo ofendidos. — Era muito
melhor Yanassa agir como intermediária do que Hanani suportar essa
conversa outra vez.
Yanassa sorriu e bateu em seu ombro.
— Tudo bem. Coitadinha, isso deve ser difícil para você. Somos um
povo apaixonado, nós, banbarranos, e a paixão é o que o seu povo parece
recear mais. É uma pena que mais de vocês não sejam como Wanahomen,
mas ele me avisou muito tempo atrás que não era um típico morador da
cidade.
Uma chance de mudar de assunto. Hanani a agarrou de maneira tão
tranquila quanto possível. Ela já aprendera que fazer uma pausa para falar
significava apenas ser interrompida.
— Você o conhece bem, o Príncipe?
— Tão bem quanto qualquer banbarrano pode conhecer aquele lá. —
Havia uma combinação de pesar e carinho na voz da mulher quando ela se
virou para o espelho de Hanani para verificar o próprio cabelo, com seu
penteado elaboradamente trançado preso no alto da cabeça. — Nós fomos
próximos um dia, mas aí eu o julguei mal no que me parecia uma questão
sem importância e ele nunca me perdoou por isso. Esse homem
decididamente gosta de um ressentimento.
De repente, Hanani intuiu uma coisa.
— A criança que estava cuidando da mãe dele ontem à noite. — Como o
Príncipe a chamara? — Tassa.
— É meu — confirmou Yanassa em tom afetuoso. — Ele estava
cuidando de Hendet? Criança de coração mole… tão diferente do pai.
Ainda não sei se deveria ser grata por isso.
Se o filho não havia herdado o humor colérico e afiado do pai, Hanani
não conseguia ver aquilo como nada além da bênção da Deusa.
— A aliança da qual o Coletor Nijiri falou. — Ela quase se esquecera em
meio ao choque dos últimos dias. — O Hetawa o apoia, então… o Príncipe.
Mas os kisuati jamais iriam embora pacificamente.
Yanassa dirigiu-lhe um olhar estranho.
— Claro que não. O seu “Príncipe” pediu para todas as tribos dos
Banbarra se unirem a ele em uma grande batalha para mandar os kisuati de
volta para a terra deles. Vão votar sobre a guerra no final do solstício.
Hanani conteve a respiração; sua pele ficou arrepiada. Guerra… isso era
anátema para Hananja. A guerra transformava o reino da vigília no mais
sombrio dos pesadelos e condenava suas vítimas às sombras na vida após a
morte também. Poderia o Hetawa realmente apoiar uma coisa dessas?
— Não acredito nisso — sussurrou ela.
— O quê? — perguntou Yanassa. Mas, antes que Hanani pudesse
responder, Yanassa piscou e franziu a testa, desviando os olhos ao ouvir
gritos e agitação do lado de fora. — O que é agora?
Ela saiu, e Hanani foi atrás, para ver que a tribo começara a se reunir na
borda norte da plataforma principal. Por sobre as cabeças dos membros da
tribo que iam e vinham, na saliência de observação, ela viu um homem em
postura rígida, segurando um objeto cônico e comprido. Em princípio,
Hanani pensou que fosse um chifre, mas o homem levou o apetrecho ao
olho.
— Hanani. — Ela se virou e, chocada, encarou Mni-inh. O mentor
sorriu de volta para ela, encabulado, envolto dos pés à cabeça em
vestimentas banbarranas e com um lenço na cabeça. Tinham até lhe dado
um véu, embora estivesse solto em volta do queixo. Então ela viu que ele a
estava fitando, um sorriso lento invadindo seu semblante.
— Eu sabia que tinha que ser você — continuou ele. — Ninguém mais
aqui tem esse cabelo. Mas isso… Ora, ora. — Ele pôs as mãos no quadril,
sorrindo, e ela baixou os olhos para ele não ver seu rosto pegando fogo.
Yanassa, ao seu lado, fez um barulhinho de quem achava graça.
Então os murmúrios dos membros da tribo abrandaram quando o
Príncipe apareceu, saído da multidão junto com Unte. Hanani mal notou o
líder da tribo, pois a raiva abrasadora no comportamento do Príncipe deixou
seu coração apertado de apreensão. Havia sangue nas roupas dele e morte
nos olhos.
O Príncipe parou nesse momento e Hanani percebeu que ele a vira. Ele
olhou para baixo e depois para cima de novo. Jamais na vida ela quisera ser
menos notada.
Mas ele não falou nada, inclinando a cabeça primeiro para Yanassa,
então, depois de uma pausa momentânea, para Hanani. Em seguida virou-
se e caminhou a passos largos para o ponto de observação. Unte demorou-se
um pouco mais, os olhos enrugando-se no que era inconfundivelmente um
sorriso por trás do véu. Na sequência, dirigiu-se para o ponto de observação
também.
— Estou começando a questionar seriamente o julgamento dos
Coletores — murmurou Mni-inh, fitando o Príncipe. — Se foi ele o
escolhido…
Hanani lembrou-se do seu pensamento anterior — o Hetawa apoia a
guerra — e manteve silêncio, perturbada demais para fazer outra coisa.
Yanassa gritou para alguns companheiros da tribo em chakti. O homem
respondeu logo e as pessoas ao seu redor murmuraram, surpresas e
alarmadas, em resposta. A própria Yanassa pareceu surpresa.
— Apareceu uma caravana — ela informou a eles em gujaareen. — Eles
mandaram os sinais corretos de saudação. Mas nenhuma das delegações das
outras tribos deveria estar aqui por pelo menos uma quadra de dias.
Unte fez um sinal com a mão do alto do ponto de observação e os
membros da tribo que o viram se alegraram.
— O quê? — indagou Mni-inh. — Delegações?
— Existem seis tribos do povo banbarrano — respondeu Yanassa. —
Normalmente, a tribo só se reúne no Conclave da Primavera no oeste, mas
Unte pediu para os líderes de tropas de todas as seis virem até aqui e
decidirem se devem se juntar à guerra de Wana. O primeiro desses grupos
parece ter chegado cedo.
Mni-inh sobressaltou-se, como Hanani fizera antes, ao ouvir a palavra
guerra. Ele franziu o cenho, estreitando os olhos ao contemplar a paisagem.
Só então ela notou a tensão no ar à sua volta, a tribo esperando por algo. O
quê?
O homem com a estranha engenhoca disse alguma coisa para Unte, que
sorriu e virou para encarar a multidão.
— Dzikeh! — gritou ele, e ouviu-se outra onda de vivas. Mas Yanassa
não estava mais sorrindo, percebeu Hanani.
— Os Dzikeh-Banbarra são contrários à união — comentou ela
baixinho. — Para chegarem cedo… Eles pretendem combatê-la.
— O que isso vai significar para o Príncipe? — perguntou Mni-inh.
Yanassa chacoalhou a cabeça.
— Impossível dizer com certeza. Mas ele não pode conquistar sua cidade
de volta sem mais guerreiros e ajuda do que tem agora.
Enquanto Unte dispersava os membros da tribo para começarem a se
preparar para a chegada dos novos convidados, Hanani viu o Príncipe se
voltar para a sua direção. Era impossível ter certeza de longe e com o véu no
lugar, mas, onde os olhos não alcançavam, a intuição compensava: ele estava
sorrindo para si mesmo. Ela não sabia como sabia aquilo, mas tinha certeza.
E, quando os olhos dele a encontraram no meio da multidão, sentiu-se
igualmente convencida de que ele abrira um sorriso maior ainda e de que
não havia nada de bom nisso.
20

ISCA

Teria que ser a mulher do templo, decidiu Wanahomen.


Não havia opção melhor. Não agora, com os Dzikeh no horizonte com
mais de uma quadra de dias de antecedência graças à tramoia de Shatyrria.
Nem mesmo com o suborno que ele havia amealhado durante o último ano:
sua parte dos despojos dos ataques a Gujaareh e a outros postos avançados
kisuati. Unte lhe garantira pelo menos dois votos: o dele e o do líder dos
Issayir-Banbarra, que era irmão de Unte. As outras tribos variavam em sua
provável boa vontade de se unir, especialmente sob o comando de um
forasteiro nascido na cidade. Wanahomen os lembrara de seu poder graças
aos ataques bem-sucedidos a Gujaareh e eles estavam ávidos por mais da
riqueza a ser conquistada com a campanha, mas uma objeção forte poderia
levá-los a recusar por orgulho e solidariedade. O líder da tribo dos Dzikeh,
Tajedd, representava essa objeção.
Mas, com Hanani, talvez Wanahomen pudesse ganhá-lo também.
— Vista uma roupa limpa — falou Unte, virando-se para descer do
ponto de observação. Ele fez uma careta, uma vez que o movimento
causava-lhe dor no joelho. — Tajedd vai procurar qualquer sinal de fraqueza
em você. Ele não precisa ver o seu sangue com tanta facilidade.
— Sim, Unte. — Da forma mais discreta possível, segurou o cotovelo de
Unte. — O mesmo vale para o senhor. Devo chamar um dos
Compartilhadores para eliminar as suas dores?
— Eles podem fazer isso? Incrível! — Unte deu uma risadinha. — É
tentador, Wana, mas eles não deveriam desperdiçar magia. Nada pode curar
a velhice.
O sangue onírico poderia. Mas esse pensamento avivou muitas lembranças
sombrias e Wanahomen tirou-o da cabeça ao sair.
Sua mãe o esperava quando voltou à an-sherrat deles e, por um
momento, o rapaz encheu os olhos ao vê-la de pé — de pé! — na entrada da
tenda, observando os acontecimentos. Ele foi até ela, tomou suas mãos e
deu-lhe um beijo na testa. Ela riu, embora ele notasse que ela não se
afastou.
— Você vai fazer as outras mulheres acharem que eu te mimo demais —
comentou ela, depois franziu a testa, recuando quando percebeu a mancha
de sangue na barriga dele. — O que aconteceu?
— Coisa demais para contar neste exato momento. — Ele apertou a mão
dela. — Mas não se preocupe. A senhora deveria descansar; os sacerdotes
disseram que precisa de tempo para se recuperar…
— Tudo bem, tudo bem. — Ela suspirou, apenas ligeiramente irritada
com a preocupação dele. — Vou querer um relatório completo mais tarde,
claro.
— Claro. — Ele fez uma mesura para ela, depois se dirigiu depressa para
a própria tenda. Certificou-se de vestir a melhor de suas túnicas índigo, a
cor da nobreza entre os banbarranos, que Unte lhe dera permissão para usar
alguns anos antes. Também amarrou a bela espada de bronze
tradicionalmente dada ao herdeiro do Trono do Ocaso, chamada Mwet-zu-
anyan, o Sol da Manhã. Ele não a carregava com frequência porque era
muito evidente que não era uma arma banbarrana (eles preferiam as lâminas
curvas) e porque tinha medo de perdê-las. Mas agora era importante
mostrar aos banbarranos que podiam obter força de aliados estrangeiros.
Mesmo suas mãos nascidas na cidade podiam derramar sangue.
Quando Wanahomen encontrou Unte outra vez, o grupo dos Dzikeh
havia entrado no cânion. Era difícil dizer de tão longe, mas Wanahomen
pensou ter visto o vulto franzino de Tassa entre os tratadores do curral
saudando os visitantes. O menino adorava estar no meio da ação. Só por um
momento ficou preocupado que os Dzikeh fossem menosprezar Tassa
quando o vissem; a maioria dos Yusir não lhe dava trabalho quanto a isso,
mas os banbarranos, via de regra, não gostavam muito de mestiços. Yanassa
o advertira a não tentar proteger o menino anos antes. Ele precisa encontrar o
próprio caminho e você ficando em cima não vai ajudá-lo, dissera ela, e estava
certa. Então ele cerrava os punhos, mas não fazia nada quando Tassa voltava
para casa com o nariz ensanguentado e hematomas nos nós dos dedos,
embora houvesse ensinado ao menino como lutar usando todos os truques
que seu próprio pai lhe mostrara muito tempo antes. E não faria nada agora,
contanto que Tassa pudesse suportar. Mas se passassem desse limite…
Bem. Melhor não invocar os Coletores cedo demais, como diziam em
Gujaareh. Ele já tinha problemas suficientes para resolver.
Houve uma agitação nas escadas e, um instante depois, o grupo dos
Dzikeh começou a subir. Primeiro veio o líder da tribo, Tajedd, supôs
Wanahomen, pois esse homem já tinha certa idade, mas não tanta quanto
Unte. Isso daria a Unte a vantagem da ancianidade, o que era bom. Tajedd
era alto e magro e tinha um semblante pesaroso, com os ombros começando
a se curvar. Ele parou diante de Unte, que estava esperando, e os dois líderes
se cumprimentaram.
O homem que subiu em seguida deixou Wanahomen de cabelo em pé,
embora Wutir o houvesse prevenido: Tajedd está trazendo uma arma especial
para você. Esse novo homem não era tão alto como Tajedd, mas o que lhe
faltava em estatura, ele compensava em massa, com ombros e braços grossos
como uma canga, descobertos até o cotovelo — uma raridade entre os
homens banbarranos obcecados com encobrimento — que pareciam
musculosos o suficiente para arremessar rochas. Havia não uma, mas duas
espadas penduradas nas laterais do corpo, as bainhas enfeitadas com
berloques e amuletos e, pela forma como ele se portava, Wanahomen teve
pouca dúvida de que o homem sabia como usá-las.
Este era o líder de caça dos Dzikeh, com certeza. E, pelo aguçamento
dos olhos sobre o véu, Wanahomen soube que o homem Dzikeh o marcara
pelo mesmo posto.
Ele vai encontrar um motivo para desafiar você e depois vai te matar. E,
embora Wanahomen houvesse zombado daquelas palavras quando Wutir as
dissera, agora via que era verdade. O próprio Wanahomen era um guerreiro
hábil, treinado por Charris e pelos formidáveis guardas do Kite-iyan, mas
esse Dzikeh era completamente outra coisa. Uma arma de fato.
Mas as armas sempre podiam ser voltadas contra os seus mestres.
— Então esta é a causa da nossa reunião — comentou Tajedd, lançando
um olhar demorado a Wanahomen. — Ouvi falar muito de você,
Wanahomen de Gujaareh.
Com o clã de Shatyrria certamente mandando-lhe cartas a cada virada
da Lua da Vigília, Wanahomen não estava surpreso.
— E eu do senhor, Primo — respondeu ele. O rapaz viu as sobrancelhas
de Tajedd se erguerem ao ouvir a palavra Primo. O líder de caça Dzikeh fez
cara feia.
— A mãe de Wanahomen concordou em se tornar a minha quarta
esposa pouco depois que eles se juntaram à nossa tribo — disse Unte, sua
voz enganosamente branda como sempre. — Wanahomen é filho do meu
clã agora.
— Entendo. — Tajedd olhou para Unte como se quisesse falar alguma
coisa a esse respeito, mas no final optou pela diplomacia. — Espero que o
nosso grupo de caça possa ser bem recebido pela tribo Yusir pelos próximos
dias, Unte. Nós cavalgamos rápido na esperança de chegar a tempo para o
seu festival do solstício.
Unte pôs uma das mãos sobre o coração, fingindo espanto.
— Então foi por isso que chegaram cedo? Para cortejar as nossas
mulheres e comer a nossa comida? Eu devia saber. — Os membros da tribo
que observavam caíram na risada e, após um momento, Tajedd começou a
rir também. Boa parte da tensão causada pela reunião se dissipou.
Wanahomen sempre admirara a habilidade de Unte de fazer isso.
— Então venha — chamou Unte, fazendo um gesto largo para os dois
Dzikeh o seguirem. O resto do grupo Dzikeh (Wanahomen calculou que
deviam ser uns oitenta guerreiros) havia terminado a subida e estava sendo
recebida pela tribo, que oferecia bebida e comida e panos para lavarem o
rosto e as mãos. Wanahomen conferiu se seus próprios homens estavam em
seus lugares: alguns estavam entre os membros da tribo, acolhendo os
visitantes, mas a maioria estava discretamente em torno dos perímetros do
acampamento, alertas para problemas. Ezack permaneceu nas alturas dos
pontos de observação; quando os olhares de Wana e dele se entrecruzaram,
ele fez um aceno de cabeça. Estava tudo bem. Satisfeito, Wanahomen
virou-se para seguir Unte.
A tenda de Unte era maior do que a maioria, uma vez que ele realizava
reuniões com frequência. Do lado de dentro, três indivíduos escravizados
deviam ter trabalhado como diabos para se prepararem tão rápido para a
chegada de convidados. A bagunça habitual de Unte — pergaminhos de
poesia escritos pela metade e cachimbos fumados pela metade — havia
sumido, deixando a tenda organizada e acolhedora. Uma mesa baixa havia
sido disposta, profusamente carregada de petiscos e chás. Um incensário
ricamente entalhado estava a um canto, queimando uma mescla relaxante de
ervas.
Tajedd acomodou-se nas almofadas a um lado da mesa com um gemido
satisfeito, pegando de pronto uma garrafa de vinho de fruto de cacto, uma
bebida tradicional para viajantes que haviam estado no alto deserto. O líder
de caça se acomodou ao lado dele, esperando o seu líder de tribo se revigorar
primeiro, como era apropriado.
Wanahomen sentou-se de frente para o líder de caça Dzikeh.
— Você tem a vantagem de saber o meu nome — disse ele
educadamente.
— Tenho — respondeu o líder de caça, e não falou nada mais.
Wanahomen ficou com a impressão de que ele sorriu por trás do véu.
Isso fez Unte erguer uma sobrancelha.
— Nós estamos em guerra, então, a ponto de os nomes não serem ditos
de forma espontânea? Estamos desconfiados uns dos outros para mantermos
nossos rostos cobertos pelo véu dentro da tenda? — Ele baixou o próprio
véu e dirigiu um olhar audacioso aos dois Dzikeh. — Se é esse o caso, eu
não sabia.
Tajedd logo baixou o próprio véu, revelando um rosto tão fino e pesaroso
quanto o resto do corpo, embora lhe desse um sorriso largo. Ele tinha vários
dentes faltando.
— Não em guerra, Primo, claro que não. E nenhum de nós veio com
medo. Certo, Azima?
O líder de caça Dzikeh fez cara feia quando seu nome foi pronunciado,
mas depois estendeu a mão para tirar o véu. Wanahomen fez o mesmo de
modo que pudessem revelar o rosto um para o outro no mesmo instante. No
caso de Azima, isso significava um rosto de planos rígidos e ângulos
impiedosos, embora ele tivesse os olhos grandes dos habitantes do oeste.
Isso o elevou, e a Tajedd por aproximação, um pouco na estima de
Wanahomen: o homem também era mestiço.
— Não vejo nada para temer aqui — falou Azima para Wanahomen, e
sorriu.
Wanahomen devolveu o sorriso, pensando em seu íntimo: eu gostaria
tanto de matar você. Mas ele não podia fazer isso. Azima seria infinitamente
mais útil para ele vivo.
Enquanto Tajedd saboreava o vinho e, educado que era, recitava um
poema em louvor à bebida e ao anfitrião, Wanahomen fez um sinal para um
dos escravizados de Unte, que estava agachado ali perto. Quando o homem
se aproximou, Wanahomen murmurou em seu ouvido:
— Vá buscar a mulher curadora. Diga a ela que alguém na tenda de Unte
precisa que um ferimento pequeno seja curado. — O escravizado aquiesceu
e saiu.
Quando Tajedd terminou, Wanahomen inclinou a cabeça para mostrar
sua aprovação.
— É uma viagem longa da an-sherrat da sua tribo até aqui? —
perguntou ele. Unte serviu vinho para si mesmo. Wanahomen inclinou
graciosamente a cabeça para Azima, indicando que Azima, como
convidado, deveria beber em seguida. Azima contorceu os lábios e não
pegou a garrafa de vinho. Ele não ia beber e isso significava que
Wanahomen também não podia. Wanahomen ficou sinceramente surpreso:
será que aquele homem acreditava que uma mesquinhez tão simples o
enfureceria?
Por outro lado, os banbarranos não eram dados aos tipos de intrigas que
Wanahomen continuava esperando, mesmo depois de dez anos entre eles.
Ele crescera vendo os nobres gujaareen oferecerem camadas de insultos com
uma mudança de tom e uma mesura fora de lugar. Os banbarranos eram tão
diretos que ele os achava revigorantes, mesmo quando queriam ser rudes.
— Um mês inteiro, uma oitava de dias a mais ou a menos — respondeu
Tajedd. Ele parecia alheio ao comportamento de Azima, mas Wanahomen
sabia que isso não era verdade. — Isso com guerreiros treinados viajando em
ritmo de caça.
— Uma viagem difícil — concordou Unte.
Wanahomen deu uma risadinha.
— Bem, as nossas esposas com certeza vão ajudar os seus maridos a
esquecer as dificuldades da viagem. — Ele se serviu de uma taça de chá,
interrompendo o jogo tolo de Azima com o vinho. — Elas gostam de rostos
novos. Mas vocês podem ter concorrência; existem muitas novidades pelo
acampamento hoje em dia.
Unte observava Wanahomen, pensativo, sem dúvida percebendo que ele
estava tramando alguma coisa. O velho passara a confiar em Wanahomen
no decorrer do tempo, concedendo-lhe uma vasta liberdade de ação na
política da tribo, mas Wanahomen sabia que ele não toleraria nenhum
insulto manifesto aos Dzikeh. Os banbarranos podiam ser hostis com os
estranhos, mas, entre os seus, levavam o costume de acolhida aos convidados
muito a sério. Wanahomen estava contando com isso.
— Está se referindo a si mesmo? — indagou Tajedd, e então, talvez para
atenuar a implicação do insulto, acrescentou: — Mas, se você é do clã de
Unte…
— Não, não a mim mesmo — respondeu Wanahomen. Ele deu um
sorriso autodepreciativo. — Deixei de ser novidade faz muito tempo. Não,
eu quis dizer que temos dois sacerdotes gujaareen entre nós, dados como
presente pelo Hetawa para selar a nossa aliança. O senhor vai vê-los por aí:
pessoas pálidas e moles, típicos moradores da cidade. Tivemos que fazê-los
vestir roupas banbarranas, já que a deles era indecente.
Tajedd arregalou os olhos. As tribos banbarranas mantinham contato
umas com as outras por meio de mensageiros e de aves mensageiras, mas os
Dzikeh provavelmente haviam deixado o acampamento da tribo antes que a
notícia sobre a aliança pudesse alcançá-los.
Azima pareceu menos impressionado.
— Um presente? Sacerdotes? — Ele riu. — Nós precisamos de mais
orações para nos apoiar nas batalhas, então?
— Ah, eles têm muitos talentos — falou Wanahomen. Ele sorriu para
Azima, que parecia irritado. Ele bebeu chá e então ouviu, em um
sincronismo quase perfeito, o homem escravizado voltar com a mulher
Compartilhador a tiracolo. A aba da tenda se abriu quando o homem a
conduziu para dentro.
Perplexo, Unte franziu o cenho para o escravizado.
— O que é isso?
A mulher do templo falou rápido. A escravidão ia contra a Lei de
Hananja; ela com certeza temia que o escravizado fosse castigado.
— Peço desculpas por interromper — disse ela em sua própria língua. —
Me, me disseram que alguém aqui tinha um ferimento que precisava ser
curado.
Wanahomen não poderia ter planejado melhor. Tanto Tajedd quanto
Azima fitavam-na, surpresos com sua voz suave e seu comportamento
respeitoso. A moça estava adequadamente vestida, pois Yanassa fizera um
trabalho incrível com ela; o próprio Wanahomen ficara impressionado.
Contudo, nenhuma mulher que soubesse seu valor para a tribo ficaria ali
parada, gaguejando como uma criança.
— Aqui — chamou Wanahomen, fazendo um aceno brusco. Ela veio de
imediato, outra coisa que uma mulher banbarrana não teria feito, dada a
grosseria do gesto, e ajoelhou-se em uma almofada ao lado dele.
— Onde está o ferimento? — perguntou ela. A jovem já estava
totalmente concentrada em sua tarefa, alheia aos olhares dos dois homens
Dzikeh. Por cima do ombro dela, Wanahomen podia ver Unte franzindo a
testa para ele, embora estivesse claro que o líder da tribo havia decidido
deixá-lo jogar aquele jogo.
Wanahomen recostou-se nas almofadas, posicionando-se de um modo
confortável, e depois ergueu a túnica para revelar o corte que Wutir fizera
em sua barriga. Isso também chamou a atenção dos Dzikeh, pois os homens
banbarranos revelavam as partes vulneráveis do corpo apenas para
familiares, para outros homens e para mulheres com quem haviam tido ou
pretendiam ter intimidade.
— Aqui — falou ele. O rapaz tirou a faixa de pano que amarrara em
torno do ferimento para impedir que sangrasse em sua túnica.
A mulher do Hetawa inclinou-se para a frente a fim de examinar o
ferimento com os dedos, tocando as bordas com cautela.
— Superficial — comentou ela rapidamente, quase estragando o efeito
que ele queria criar. Com uma tarefa diante de si, ela estava confiante,
calma. Ele teria de fazer algo quanto a isso. — Mas por causa da localização
vai ficar abrindo de novo. É provável que infeccione.
— É, foi isso que pensei — retorquiu Wanahomen. Então, fazendo o
gesto parecer casual, ele ergueu uma das mãos e colocou o cabelo enfeitado
da moça atrás do ombro. Ela se sobressaltou só um pouco, dirigindo-lhe um
olhar confuso, mas, como ele esperara, não protestou nem recuou. Na
verdade… Ah, ela estava corando! Sua pele pálida de baixa-casta acendeu
como uma lamparina.
Em outras circunstâncias, ele teria dado risada. Mas era crucial agora que
ele parecesse falar manso com ela, íntimo, carinhoso. Os Dzikeh
provavelmente tinham apenas a mais vaga ideia do que eles estavam dizendo
um ao outro, se soubessem um pouco de gujaareen, mas estariam prestando
atenção a posturas e tons de voz. Ele queria que vissem um homem
libidinoso e uma mulher relutante… relutante, porém incapaz ou sem
vontade de recusar suas atenções.
— Sim, claro — respondeu ela, falando muito rápido. — A cura não vai
demorar. Você se lembra de como isso é feito?
Ele vira um de seus irmãos sendo curado uma vez depois que uma
aventura infantil no Kite-iyan deu errado. Em resposta, ele recostou a
cabeça, fechando os olhos. Após um momento, ela pousou a ponta dos
dedos nas pálpebras dele, leves como plumas. Em seguida…
Ele abriu os olhos, sobressaltado, o sonho desvanecendo antes mesmo
que pudesse se lembrar. Sua barriga coçava. Erguendo a cabeça, viu que o
ferimento sarara, o sangue já derramado começando a secar. Ele o limpou
com o pano que cobria a ferida e só então notou que a mulher do templo
estava pálida e imóvel ao seu lado, algo em sua expressão que poderia ter
sido susto. Mas, uma vez que ela estava de costas para os Dzikeh,
Wanahomen ignorou o fato.
O rapaz se sentou para que Tajedd e Azima pudessem ver sua barriga
curada.
— Estão vendo? — Tajedd conteve a respiração; Azima fez cara feia.
— Magia — disse Tajedd, admirado. — Ouvi falar que os sacerdotes de
Gujaareh tinham esse poder.
— Eles matam também — retorquiu Azima em tom rude. — Como
demônios, entrando sorrateiramente durante as brisas noturnas e soprando
veneno no seu sono.
— Esse é um tipo diferente de sacerdote — explicou Wanahomen em
um tom desdenhoso que dizia e eu não tenho medo deles. Ele fechou a túnica e
acenou em direção a Hanani. — Esse tipo não consegue fazer nada além de
curar. Eles vão curar os nossos homens depois da batalha, deixando a gente
forte e pronto para lutar enquanto os nossos inimigos ainda estiverem
tratando dos feridos. Agora o senhor vê o valor da amizade do Hetawa?
Tajedd pareceu pensativo. Azima inclinou-se depressa para cochichar no
ouvido dele. Unte não estava mais franzindo a testa; seu rosto ficara tão
inexpressivo quanto o de uma estátua, embora também estivesse observando
os Dzikeh. O Compartilhador conseguira se recompor, apesar de ela ainda
parecer perturbada por algo quando sacudiu a cabeça em uma despedida
absorta e mexeu-se como se fosse se levantar. Ele estendeu a mão e pegou o
queixo dela, sobressaltando-a a ponto de fazê-la ficar estática como um
animal selvagem.
— Obrigado — falou ele, e inclinou-se para beijá-la.
Se ela estivesse de pé, ele achava que seus joelhos poderiam ter cedido.
Ele lhe deu um beijinho, uma provocação de amante, embora ela não
relutasse e ele pudesse facilmente ter feito um alarde devorando-a na frente
de todos eles. Do jeito como havia sido, ela precisou tentar duas vezes até
conseguir se levantar quando ele a soltou, e mesmo então estava
cambaleante, visivelmente abalada. Ele não pôde deixar de sorrir quando ela
foi até a porta e fez outro aceno de despedida — para o escravizado entre
todas as pessoas, santos deuses, nem em Gujaareh as pessoas faziam isso —
e por fim saiu.
Houve pouco mais do que bate-papo depois disso. Pelo costume
banbarrano, não se discutia um assunto importante imediatamente após a
viagem: era considerado injusto com o grupo mais cansado. Além disso, o
sol estava se pondo e Wanahomen já podia ouvir os músicos da tribo
aquecendo seus alaúdes e tambores de mão. A oitava de dias de solstício
sempre começava e terminava com uma festa grandiosa e, com visitantes
para compartilhar a folia, a daquela noite com certeza seria lendária mesmo
para os padrões banbarranos.
Unte ordenou a um dos escravizados que levasse Tajedd e Azima para
uma tenda de visitantes. Quando saíram, ele soltou um longo suspiro antes
de se virar para Wanahomen.
— Se você não conseguir conquistar Gujaareh, deve ir embora desta
tribo.
Wanahomen ficou tenso com o choque e uma inesperada mágoa.
— Unte?
— Não porque não seja capaz, Wana. — Havia uma ternura no rosto de
Unte que acalmou parte do choque de Wanahomen. — Na verdade, sei que,
se você se tornasse líder depois de mim, a tribo prosperaria.
— Então por que devo ir embora?
— Porque eu amo você como se fosse filho do meu sangue, mais até, mas
você me assusta, Wana. Sei que você vai usar qualquer um, destruir qualquer
coisa, para aplacar a raiva que queima como o fogo do Sol no seu coração.
Inclusive esta tribo inteira. Você ama alguns de nós, mas não o suficiente.
Não o suficiente para nos manter a salvo se algum dia começasse a nos
odiar.
— Eu… — Incapaz de pensar, ele fitou Unte. Procurou alguma resposta
dentro de si mesmo. Qualquer uma serviria.
— Você nega?
Com o coração apertado, Wanahomen desviou o olhar e não disse nada.
Unte aquiesceu, como se não esperasse nada diferente, e suspirou.
— Peça ao seu escravizado que fique bem atento à garota gujaareen de
agora em diante. Você plantou uma semente perigosa hoje.
Ele estava sendo dispensado. Wanahomen se pôs de pé, tão trêmulo
quanto a mulher do templo, e caminhou até a porta. Quando tocou a aba de
entrada, algo mudou nele e ele viu…
O pai, estendendo um braço morto para ele, a pele salpicada de imundície…
… Aquela mesma mácula consumindo sua própria carne…
… E então a visão, o devaneio ou o que quer que fosse desvaneceu.
— Wana? — A voz de Unte atrás dele. Havia preocupação naquela voz,
e tristeza, e amor. O amor cravou a dor das palavras de Unte mais fundo em
seu coração porque significava que Unte acreditava verdadeiramente nelas.
Que homem de sorte ele era por ter dois pais, ambos reis, que se
importavam tanto com ele e que jamais permitiriam de bom grado que
governasse seus reinos.
— Boa noite, Unte — murmurou Wanahomen. Puxando o véu, ele
voltou para a própria tenda.
21

ARMADILHA PREPARADA

Hanani achou Mni-inh na tenda dele, sentado sobre uma pilha de enxergas
novas que os banbarranos haviam trazido, os olhos fechados e a cabeça
caída. Ele poderia estar realmente dormindo, mas era mais provável que
estivesse rezando. Era um lembrete para Hanani de que ela própria não
rezava há dias. Mas quando se agachou no tapete para fitar o rosto do
mentor, descobriu que não tinha vontade de tentar naquele momento. Para
encontrar paz em Ina-Karekh, era necessário ter paz dentro de si mesmo.
Ela não conseguia se lembrar da última vez que estivera em paz.
No entanto, era um consolo estar perto do corpo de Mni-inh, mesmo
que sua alma estivesse em outro lugar. Ela se encolheu sobre as enxergas ao
lado dele, repousando a cabeça em sua coxa como não fazia desde que era
uma acólita. Ele começara delicadamente a evitar os abraços dela e outros
gestos infantis de carinho mais ou menos na época em que seus ciclos férteis
haviam começado. Não porque não os aceitasse, ele lhe garantira, mas
porque, como a única mulher que passara da infância no Hetawa, ela
precisava manter não apenas a substância, mas a aparência de decoro o
tempo todo. “Você é uma filha para mim”, ele lhe dissera, “mas, nos vilarejos
rio acima, não é incomum um homem da minha idade tomar uma esposa da
sua idade. Outros vão se lembrar disso, mesmo que eu e você não pensemos
assim”.
Ela jamais pensara nele daquela forma antes ou desde então. Jamais
tivera tais pensamentos sobre nenhum dos seus confrades do Hetawa,
nenhuma vez durante todos os anos em que vivera entre eles.
Mas agora o gosto do Príncipe estava em seus lábios.
Hanani estremeceu, odiando a lembrança do beijo, porém vendo-o em
sua mente, sentindo-o repetidas vezes. O Príncipe a estava usando. Isso
estava claro até mesmo para os seus olhos ignorantes. Ele odiava a ela e a
tudo o que ela estimava. E, no entanto, ela ainda sentia os dedos dele
colocando seu cabelo atrás de uma orelha.
Ela fechou os olhos e desejou de todo o seu coração ter dito não ao teste
de Nijiri. Gostaria de voltar para a sua pequena cela no Hetawa, onde
estivera a salvo do caos do mundo.
Uma mão pousou sobre o seu cabelo e afagou-o de leve, fazendo os
ornamentos dourados estrepitarem.
— Vamos conseguir voltar para casa logo — falou Mni-inh. Ele sempre
fora bom em intuir seu estado de espírito. Ela fechou os olhos e se esforçou
para não chorar porque essa era uma coisa que os Servos de Hananja não
faziam.
Ele suspirou, ainda afagando o cabelo dela.
— Ajudaria se você soubesse que eu venho conversando com Nijiri?
— O quê?
— Em sonhos — disse ele. — É uma técnica simples. Nós escolhemos
de comum acordo um local de encontro em Ina-Karekh, alguma imagem
singularmente forte, importante para ambos por motivos parecidos, e depois
especificamos um horário em que os dois vão viajar para lá. Nesse caso, o
Salão de Bênçãos, na véspera de uma nova Lua da Vigília.
Hanani franziu a testa.
— O Coletor Nijiri falou com antecedência para você encontrá-lo?
— Falou. — O sorriso de Mni-inh tornou-se amargo. — Ele não me
contou por que precisávamos marcar um encontro, só que seria necessário.
Falei poucas e boas para ele quando chegou lá, isso eu posso te dizer.
Hanani sentou-se, embora não tão rápido a ponto de desalojar a mão
dele.
— Por que ele fez isso com a gente, Mni-inh-irmão? Essas pessoas
podem nos matar. Elas não têm nem um pouco de paz dentro de si…
— Eu sei — concordou ele. — Mas estamos fazendo tudo certo até
agora, não estamos? Sinceramente, pelo que Nijiri me contou, talvez a gente
esteja até mais seguro aqui do que em Gujaareh.
Hanani franziu o cenho.
— O pesadelo afetou mais pessoas?
— Afetou, há trinta pessoas doentes com ele agora, o Salão de Cuidados
Temporários está cheio delas, mas não era disso que eu estava falando.
Ontem, os próprios Coletores fizeram a demanda e a coleta dos dízimos dos
dois soldados kisuati que ameaçaram você.
Hanani conteve a respiração, sua mente enchendo-se de imagens do
Hetawa em chamas.
— O-os kisuati — sussurrou ela. — Eles avisaram durante a conquista
que qualquer mal feito aos seus soldados seria revidado em quádruplo. Se
atacarem o Hetawa…
— Não, Hanani. Eles não são tolos o bastante para colocar a ocupação
de Gujaareh em risco por conta de homens tão corruptos. Os soldados
abordaram uma Irmã antes de o Coletor Nijiri julgá-los: como resultado, as
tensões estão elevadas na cidade. Nijiri acha que os kisuati vão esperar até o
povo ter se acalmado antes de agir. — Ele suspirou, esfregando os olhos
com uma das mãos. — E, quando agirem, quem pode dizer o que
acontecerá? Então peço aos deuses que o nosso jovem amigo principesco
esteja pronto para retomar a cidade logo e que ele consiga quando
finalmente começar.
A menção ao Príncipe lembrou Hanani da cura da tarde e do que se
seguiu. Ela baixou os olhos e afastou a lembrança, concentrando-se na
questão mais importante.
— Irmão, tem uma coisa que você deve saber. Eu curei o Príncipe hoje à
tarde. Ele tinha um ferimento superficial na barriga, acho que foi com faca.
Mas não foi isso o que me deixou preocupada. — Ela chacoalhou a cabeça.
— Mni-inh-irmão, ele tem o dom do sonho.
— Ele o q… — Mni-inh franziu a testa de repente, pensativo. — O
dom corre nessa linhagem. O Coletor Ehiru era tio dele. Que intensidade
você diria que ele tem?
Hanani engoliu em seco, recordando o sonho de cura. Ela tentara impor
um simples construto na paisagem onírica dele: uma tenda banbarrana com
um rasgo em uma parede de pele de camelo. Mas, antes que ela pudesse
persuadir a mente dele a reparar a tenda, ele tomou violentamente dela o
controle do sonho, atirando-a em uma Gujaareh das sombras sobre a qual
uma nuvem monstruosa, como uma boca devoradora, agitava-se no céu.
— Eu não consegui direcionar o sonho dele — respondeu ela. — Ele me
levou para onde quis dentro de Ina-Karekh. Ele não tem controle, acredito
que não teve intenção. Mas, se tivesse sido treinado, se tivesse tentado, acho
que poderia ter me segurado lá pelo tempo que quisesse.
Mas ela sentiu aquilo no momento que a Gujaareh sombria se
manifestou: o Príncipe também não tinha desejado estar lá. Algo naquela
paisagem onírica o assustava… a ele, um homem tão cheio de raiva que ela
se admirava de haver algum espaço sequer para o medo em seu íntimo.
Todavia, por causa daquele medo, ele permitira a ela levá-lo de volta ao
sonho mais suave e mais simples dela sobre o deserto e um céu tranquilo de
manhã e a tenda rasgada. Ele a reparou quase como uma reação posterior.
— Nunca senti tanta força a não ser com o Coletor Nijiri — acrescentou
ela por fim. E, na verdade, ela não sabia ao certo se o Coletor Nijiri era
igualmente forte.
— Um dom desses. Pela Deusa sagrada. Mas sempre tivemos cuidado
com a linhagem do Ocaso. Tal como são as coisas, existem muitos loucos
entre eles. Não acredito que deixamos esse passar. — Ele ficou sério de
repente. — Por outro lado, o Príncipe… hum, Rei, quero dizer, o pai de
Wanahomen… tramou contra o Hetawa durante décadas. Se Wanahomen
foi testado, o Príncipe sem dúvida encontrou uma maneira de subornar ou
corromper os examinadores.
Hanani apenas chacoalhou a cabeça, esvaziada demais pelos
acontecimentos do dia para continuar pensando. Anoitecera: a tenda de
Mni-inh estava quase escura, iluminada pela única lamparina que ele devia
ter acendido antes de rezar. Em algum lugar lá fora, um músico tocava uma
melodia animada em algum tipo de alaúde. Ela podia ouvir pessoas batendo
palmas e cantando no tempo da música. O festival do solstício banbarrano
começara.
— Ele não é louco — disse ela.
— Não, imagino que esses bárbaros não o abrigariam se fosse. Mas, se o
dom dele é tão poderoso, pode ser só uma questão de tempo.
Hanani chacoalhou a cabeça e se pôs de pé, tendo um pouco de
dificuldade com a estranha constrição das saias.
— Preciso descansar, Irmão. — A estranheza dos banbarranos, o caos
incontrolado dos costumes e modos de pensar deles haviam-na deixado
exausta. Ela não contaria a Mni-inh sobre o beijo; ela mesma não o
entendia. Em todo caso, o Príncipe provavelmente fizera aquilo só para
atormentá-la.
Mni-inh observou-a levantar-se, uma ligeira linha de preocupação visível
em sua testa.
— Tudo bem. Apenas se lembre de que isso vai acabar logo. Não vai
demorar muito para você estar entretendo a Casa das Crianças com histórias
sobre as suas façanhas e convencendo-as a se juntarem aos
Compartilhadores aos montes.
Hanani concordou com a cabeça e conseguiu dar um sorriso em resposta
à tentativa dele de animá-la.
— Bom descanso, Irmão.
— Vá na paz Dela, Hanani.
Ela se preparou antes de sair da tenda dele; contudo, não estava
preparada para a profusão de sensações que a recebeu. Ali por perto, havia
um grupo de pessoas ao redor de uma fogueira ardente, aplaudindo
enquanto dançarinos pisavam e saltavam próximo às chamas. Um
aglomerado de crianças passou correndo, três delas levando algum tipo de
brinquedo enfeitado com fitas compridas; ela teve de parar ou seria
atropelada. O ar estava carregado de aromas agradáveis: fumaça de madeira,
carne tostada, incenso, chá. Mais distante, um grupo menor se reunira em
torno de outra fogueira, onde dois músicos cantavam algo ululante e
discordante. Pela atenção extasiada de sua plateia banbarrana, Hanani podia
ver que eles adoravam a música, mas, para os seus ouvidos gujaareen, aquilo
era só barulho.
Ela se virou em direção à própria tenda e parou quando alguém saiu da
turba e apareceu à sua frente. Charris.
— Onde você esteve? — perguntou ele com um toque de comando na
voz. Ela ouvira dizer que ele era o indivíduo escravizado do Príncipe,
embora a ideia de um gujaareen mantendo um escravizado fosse abominável
em e por si, mas essa não era a primeira vez que via pistas de que Charris
tivera um status mais alto em sua vida pré-banbarrana. Talvez até fosse
zhinha, o que significava que ela deveria tratá-lo com mais respeito… mas
estava cansada demais para se importar.
Sem dizer uma palavra, Hanani apontou para a tenda do seu mentor. Ele
arregalou os olhos, pegou-a pelo braço e virou-a bruscamente.
— Nesta tribo, homens e mulheres sem parentesco não se misturam —
falou ele ao ouvido dela — a não ser para um propósito. Se quer que a tribo
trate você como uma prostituta que está disposta a receber qualquer homem
que te quiser, então continue passando tempo com o seu amigo sacerdote
em particular!
Aquilo era demais. Ela soltou o braço da mão dele com um puxão.
— Estas pessoas não pensam em outra coisa? As mulheres não podem
ter nenhum outro propósito? Será que o mundo inteiro para além de
Gujaareh não passa de violência e prazer e dinheiro e… — Ela chacoalhou a
cabeça. — Não é de admirar que o Rei Eninket quisesse conquistar tudo.
Eu quase gostaria que ele tivesse conseguido!
Ela se afastou dele e, para seu grande alívio, ele não veio atrás.
Sua tenda, felizmente, estava do lado oposto à de Mni-inh, de costas
para a música e as danças mais altas. Do lado de dentro estava escuro. Ela
tropeçou nos tapetes, com os quais não estava acostumada, deixando-se
enfim cair sobre a pilha de enxergas e cobertores que de algum modo eram
seus. Comprados e pagos com o colarinho de aprendiz que ela passara a vida
conquistando. Ela riu amargamente da ideia e abraçou um travesseiro em
busca de qualquer conforto insignificante que pudesse oferecer.
Quando a aba da tenda se abriu, derramando a luz da fogueira no rosto
dela, a moça ergueu o travesseiro para bloquear a claridade.
— Por favor, me deixe em paz.
— Elin aanta? — A voz era grave e não era a de Charris. Ela levantou a
cabeça, franzindo o cenho, quando o homem disse outra coisa, uma longa
sequência em chakti. Em meio à confusão de palavras, ela pensou ter
captado o nome Wanahomen.
— Eu não entendo você — falou ela. — Você tem alguma mensagem do
Príncipe? — Parecia errado usar o primeiro nome de Wanahomen.
Enquanto o Príncipe de Gujaareh habitava o reino da vigília, ele não tinha
nome, só depois da morte se tornava mais do que o seu ofício. No entanto,
era esse o nome que aqueles bárbaros conheciam. — Do Wanahomen?
Ela podia ver o vulto grande de um homem contra a luz. Ele a observou
por um momento e depois acenou para si mesmo, mas, se não falava
gujaareen, não poderia tê-la compreendido. Mas por quê…
O homem entrou na tenda dela, deixando a aba se fechar após sua
passagem.
Hanani sentou-se, alarmada.
— O que você está fazendo? — A moça conseguia ouvi-lo aproximando-
se no escuro, embora as sombras da tenda fossem densas demais para ela ver.
— Charris disse que os homens aqui não…
Então ele retrucou alguma coisa, tão próximo que ela arquejou: ele estava
bem em frente a ela. Com o coração acelerado, ela tentou afastar-se, mas
uma mão calosa agarrou seu tornozelo. A mão a puxou em direção a ele,
jogando-a de costas. Ela gritou e outra mão tapou sua boca, os dedos
tateando por um momento antes de apertar com firmeza. Depois o corpo do
homem recaiu sobre ela, tão pesado que ela mal conseguia respirar.
Ela estava de volta a Gujaareh, diante dos soldados kisuati. Um deles
inclinou-se para perto, irradiando ameaça. “Se você fosse mais bonita, sabe o que
eu faria?”
O homem estava puxando suas roupas. Ela ouviu o tecido se rasgando e,
de repente, uma de suas pernas estava livre. Ela chutou com aquela perna
cegamente, em pânico, mas era como chutar uma pedra. Ele apenas
resmungou e mudou de posição de alguma forma e, de súbito, estava entre
as pernas dela…
Você não está indefesa, Hanani, nem mesmo agora, a voz de Mni-inh
sussurrou em sua mente.
Ela segurou braços tão compactos quanto as colunas do Salão de
Bênçãos, arranhando-os. Ele grunhiu e sentou-se e, repentinamente, tudo
ficou branco quando um golpe a atingiu… por quanto tempo, ela não sabia
dizer. Mas, quando recobrou os sentidos, pôde sentir que o tecido que
cobria sua pelve sumira e que o homem estava ocupado tirando as próprias
calças e roupas íntimas. Pareceu requerer grande esforço, mas ela tentou se
libertar dele. O sujeito simplesmente puxou-a de volta para o lugar.
Ela chorou ao perceber que não tinha força para impedi-lo…
Os que curam podem machucar com a mesma facilidade.
Em sua mente, tendas se rasgavam. Insetos mastigavam. Colunas se
estilhaçavam.
Virando-se, Hanani cravou uma das mãos no peito do homem. Todo o
medo e horror e raiva e dor que ela sentira… sim, raiva, cada coisa terrível
que já sentira em toda a sua vida, tudo reunido em um nó dentro de si e
então
estilhaçou
E o homem foi jogado para trás como se a mão da própria Deusa o
tivesse golpeado.
Um interminável período depois, a aba da tenda de Hanani foi aberta
outra vez e outro homem entrou, esse com uma lamparina. Ele falou, mas as
palavras eram sem sentido, uma confusão que sua mente não interpretava.
Seus olhos estavam fixos no vulto imóvel na escuridão, que se converteu em
um homem banbarrano desconhecido quando a luz se aproximou. Seu lenço
e seu véu haviam caído; sua túnica estava desajeitadamente puxada para
cima e a calça, abaixada; os olhos e a língua saltavam do rosto.
O homem que havia entrado… Charris, o nome dele era Charris…?
olhou para ela, depois olhou para o cadáver por um longo instante. Sem
dizer uma palavra, ele pôs a mão na túnica, tirou uma faca de uma prega
oculta e ajoelhou-se para cravá-la no peito do homem morto.
Hanani gritou.
22

REPERCUSSÃO

Wanahomen estava rindo, vendo Tassa tentar gracejar com as outras


crianças plantando bananeira, quando Charris veio e tocou seu ombro.
— Azima desapareceu — murmurou Charris em seu ouvido. — Eu o vi
pela última vez à espreita perto da an-sherrat da sua mãe.
Então a armadilha já havia atraído presas. Wanahomen continuou
sorrindo, embora se levantasse e piscasse para Tassa à guisa de despedida.
Tassa caiu no chão, endireitou-se e acenou tontamente para Wanahomen
antes que outro menino o derrubasse em uma luta bem-humorada.
— Achei que ele fosse mandar um representante — comentou
Wanahomen enquanto eles se afastavam. Outra criança, esta mais velha,
aproximou-se com uma bandeja de espetos de carne e legumes.
Wanahomen aceitou um com um agradecimento educado e a criança
continuou andando. Ele ergueu o véu para comer. — Manter as próprias
mãos limpas.
— Então seria um dos homens dele que ganharia o seu desafio e
possivelmente o privilégio de matá-lo. — Charris olhou na direção da an-
sherrat da mãe de Wanahomen, onde estavam armadas as tendas dos
Compartilhadores. — Eu deveria ver se ela está bem…
— Sim, sim. Vá.
Charris saiu de fininho e Wanahomen continuou seu passeio pelo
acampamento, acenando quando amigos ou guerreiros o cumprimentavam
ao passar. Como esperara, os Yusir-Banbarra de Unte estavam alegres,
tomando a chegada antecipada dos Dzikeh como bom presságio do ano
vindouro. Ele avistou Unte em meio a um grupo de guerreiros Dzikeh,
fazendo um gesto amplo enquanto os entretinha com alguma história de
suas façanhas de juventude. Não era uma grande surpresa para Wanahomen
que uma quadra de mulheres Yusir se deixasse ficar perto daquele grupo,
uma delas fingindo afinar um instrumento, mas as demais olhando
descaradamente para os recém-chegados com olhos ávidos e especulativos.
Ele sufocou uma bufada de divertimento diante da previsibilidade das
mulheres, depois parou quando uma vista ainda melhor saudou seus olhos.
Hendet estava sentada com um pequeno grupo perto de uma das
fogueiras, ouvindo enquanto outra mulher cantava uma música. Ela alçou o
olhar e sorriu quando Wanahomen foi tocar seu ombro.
— Não me dê bronca — disse ela em chakti. As mulheres ao redor dela
sorriram.
— Eu nunca sonharia em fazer uma coisa dessas — respondeu ele. Ela
tinha até um cheiro mais saudável. Ele teve de conter o impulso de abraçá-
la na frente dos outros. — Desde que a senhora esteja se sentindo bem.
Ela abriu a boca para tranquilizá-lo e sobressaltou-se quando os dois
ouviram o grito da mulher do templo.
Embora ele estivesse pronto para aquilo, o grito pegou Wanahomen
desprevenido, pois não parava, foi mais longo do que qualquer mulher
deveria ter fôlego para gritar. E não havia medo em sua voz, nem
indignação, como ele esperara. Não havia nem um pouco de sanidade em
sua voz.
A cantora interrompeu a música, assim como os dançarinos próximos da
fogueira maior e Unte no meio da sua história.
Maldição! Pegando a faca, Wanahomen correu em direção ao som,
notando com o canto dos olhos vários guerreiros reagindo da mesma forma.
Três deles chegaram à tenda assim que o grito enfim terminou e Charris
abriu a aba pelo lado de dentro. Todos eles pararam, até mesmo
Wanahomen, contendo a respiração em estado de choque.
A mulher estava em meio às almofadas espalhadas de sua cama, as mãos
na cabeça, os olhos arregalados e agitados. Um olho, em todo caso; o outro
já estava quase fechado com o inchaço, aquele lado inteiro do rosto roxo e
feio. As saias estavam rasgadas, a saia interior estava retalhada, deixando as
pernas dela indecentemente descobertas das coxas para baixo. Aos pés dela,
esparramado e exposto e definitivamente morto estava Azima, o líder de
caça Dzikeh. Um cabo de faca banbarrana se projetava do peito dele.
— O quê… — Em todos os seus planos, Wanahomen jamais esperara
esse resultado. Ele parou a frase, depois tentou de novo. — O que em nome
dos deuses…
Charris abaixou-se diante dele, apoiando-se em um joelho. Não era a
postura habitual de um escravizado perante seu senhor entre os
banbarranos, mas Charris sempre deixara claro que se considerava
escravizado somente para Wanahomen.
— Meu Príncipe, entrei na tenda porque vi este homem entrar primeiro
— disse ele em gujaareen — e pensei ter ouvido uma luta quando me
aproximei. A mulher é do Hetawa, ela não o teria convidado.
Mais pés se aproximaram ruidosamente atrás deles, e mais vozes se
ergueram em questionamento, horror, raiva. De repente, elas silenciaram
quando Unte chegou, empurrando a multidão. Ele parou e fitou Azima,
dirigindo um olhar duro a Wanahomen.
Wanahomen chacoalhou a cabeça milimetricamente, rezando para que
Unte visse o choque em seu próprio rosto. Nunca quis que isso acontecesse. Ele
esperara encontrar a garota abalada, porém furiosa, e Azima na defensiva,
pego no ato. Tocar uma mulher contra a vontade dela, qualquer mulher, a
não ser uma escravizada ou inimiga da tribo, era uma das maiores desonras
que um homem poderia atrair para si. Fazer uma coisa dessas na an-sherrat
de um aliado, violando o costume de acolhida aos visitantes… teria
resolvido a disputa entre eles de maneira mais firme do que qualquer
desafio.
Ele ouviu a voz de Yanassa acercando-se em meio à turba, falando
rispidamente com homens até eles saírem do seu caminho. Chegando à
frente, captou a cena com uma olhada, então suspirou e foi até Hanani. A
mulher do templo não tirara os olhos do cadáver de Azima em nenhum
momento. Mesmo quando Yanassa agachou-se ao seu lado e tocou seu
ombro, Hanani teve um espasmo violento, mas não desviou o olhar.
— Shh, shh. — Yanassa tirou um cobertor da pilha emaranhada atrás da
garota e colocou-o ao redor dos ombros dela, depois jogou outro sobre as
pernas. Virando-se para os homens que observavam, ela olhou feio. — O
que há de errado com vocês? Não ficou claro o que aconteceu aqui? Alguém
tire esse cadáver da frente dela antes que ela enlouqueça.
Unte respirou fundo.
— Onde está Tajedd?
— Aqui… — Enrolado em um cobertor e acompanhado por uma das
mulheres Yusir mais velhas, o líder Dzikeh atravessou a multidão e parou,
arquejando. — Azima! Ah, pelos deuses, Azima… — Ele aproximou-se do
cadáver, tocando o rosto flácido com uma mão trêmula. — Quem? Como?
— Eu o matei — falou a mulher do templo. Se o burburinho ao redor da
tenda não houvesse cessado quando Tajedd chegou, ninguém a teria ouvido:
sua voz mal passava de um sussurro velado. — Eu o matei.
— Hanani! — Era o outro sacerdote agora. Wanahomen afastou-se
quando Mni-inh abriu caminho aos empurrões, sem tentar ser educado,
depois soltou uma sequência de xingamentos no gujaareen mais imundo.
Ele foi até a mulher do templo, mas Yanassa afastou as mãos dele com um
tapa.
— O que há de errado com você? — Ela passou para gujaareen para que
ele pudesse entendê-la, embora sua linguagem corporal protetora e seu tom
indignado fossem claros o suficiente. — A última coisa de que ela precisa
neste exato momento é o toque de um homem!
O Compartilhador Mni-inh jamais parecera tão furioso desde que
Wanahomen o conhecera. Na verdade, sua voz tremia de raiva.
— Ela está em choque, sua vaca bárbara, e não estaria se não tivesse sido
machucada pelo seu povo… agora saia da minha frente!
Wanahomen talvez houvesse dado risada, em outras e melhores
circunstâncias, do modo como Yanassa se sobressaltou e se afastou em uma
obediência involuntária. O sacerdote abaixou-se, apoiando-se em um joelho,
e pegou a mão da garota, depois respirou fundo e olhou com firmeza nos
olhos dela. Ele teve de entrar em sua linha de visão, bloqueando o cadáver
de Azima com o corpo, para fazer isso. Ela olhou para ele, seus movimentos
rápidos e bruscos.
— Eu o matei, Irmão. Eu o matei. — Ela começou a tremer com tanta
violência que Yanassa ficou preocupada e o sacerdote mal conseguia segurar
suas mãos. — Eu o matei!
— Shh — disse o sacerdote, e então fechou os olhos. De repente, os
tremores da jovem cessaram. Ela caiu para trás, adormecida. Ele ergueu suas
pernas para colocá-las sobre a enxerga e arrumou o cobertor.
Yanassa suspirou e se levantou.
— Que bênção! — Ela se virou para Tajedd, o rosto endurecendo. —
Nesta tribo, um homem que violenta uma mulher merece a morte. Estou
feliz que a nossa prima gujaareen tenha achado conveniente aplicar a
sentença ela mesma.
Tajedd sobressaltou-se.
— Você está louca? Aquela escravizada matou o meu líder de caça! —
Ele apontou para Hanani. — Eu quero a vida dela!
Yanassa pôs as mãos no quadril.
— Ela não é escravizada! Que escrava tem a própria tenda e tanta
riqueza? — Ela fez um gesto, mostrando o ambiente ao redor. A tenda
ainda era decorada de maneira escassa para os padrões banbarranos, mas
mesmo aos olhos estrangeiros de Wanahomen ficou claro que a tribo
atribuíra grande valor às joias do Hetawa que ela tinha.
— Não é escravizada? — Tajedd piscou, confuso.
— Não é escravizada — confirmou a voz de Hendet, e Wanahomen se
virou para ver a mãe às suas costas. Ela acenou para ele ao passar. — Eu
mesma dei esta tenda de presente para ela. Meu filho e eu a reivindicamos
como família de acordo com o costume de acolhimento de visitantes da
nossa terra natal. — Ela inclinou a cabeça para Tajedd, um pequeno gesto
de respeito de uma pessoa de posição alta para outra, lembrando
tacitamente a todos os presentes que tinha status igual ao dele.
— Ela é sacerdote entre o povo dela — falou Yanassa. — Admito que ela
não conhece o comportamento adequado, mas tenho certeza absoluta de
que não teve nenhuma intenção de convidar este homem para a tenda dela.
— Ela dirigiu ao cadáver de Azima um olhar contundente. — Ela me
contou que nunca teve homem nenhum e foi proibida de fazer isso pela
Deusa dos Sonhos. Ela será virgem durante a vida inteira.
— Uma virgem? — Tajedd ficou tenso, compreensão e fúria iluminando
seu rosto. Ele se virou e lançou um olhar do mais puro ódio para
Wanahomen.
Wanahomen cerrou o maxilar. A virgindade não significava nada em
Gujaareh, um inconveniente do qual a maioria se livrava assim que atingia a
idade da escolha, mas era um status ao qual os banbarranos davam muito
valor. Violentar uma virgem infringia metade das leis deles de uma tacada
só: clãs haviam entrado em contenda e tribos em guerra por menos. Tajedd
jamais acreditaria que Wanahomen não havia planejado a morte de Azima
agora. Ele não tinha escolha a não ser continuar seu jogo até o fim.
— Realmente, os costumes podem ser diferentes, Primo — disse ele a
Tajedd, respondendo à fúria deste com frieza. — Talvez Azima tenha
interpretado mal o comportamento estranho da garota como sinal de
disponibilidade ou um convite. Erros acontecem. Porém… — Ele entrou na
tenda e aproximou-se para dar uma espiada na moça. O Compartilhador
estava com os dedos nas pálpebras dela, inclusive sobre a roxa; enquanto
Wanahomen observava, o inchaço diminuiu. — É estranho Azima ter
batido nela, não é? É de admirar que ela ainda tenha conseguido apunhalá-
lo depois de um golpe desses. Ela podia ter morrido. — Ele se virou para
Tajedd, cuja raiva desaparecera agora, eclipsada pela desgostosa
compreensão. — Uma escravizada não teria reagido, certo? Elas sabem que
não devem. Na verdade, uma escravizada não estaria sozinha em uma tenda
a menos que tivesse recebido ordens do dono para esperar lá. Será que
Azima achou que esta era a tenda de outra pessoa?
O constrangimento fez Tajedd cerrar a mandíbula quando Unte se virou
para estreitar os olhos para ele. Havia poucas coisas que os banbarranos
levavam mais a sério do que a privacidade. A an-sherrat de cada clã era seu
próprio pequeno reino dentro do todo maior da tribo, governado pela
mulher de maior status. Dentro dos limites de uma an-sherrat, os homens
podiam se sentir seguros para baixar os véus se a dona aprovasse; as
mulheres podiam despir-se e satisfazer qualquer prazer com a dignidade
intacta. Ninguém podia entrar na an-sherrat de outro clã sem ser convidado,
exceto em uma emergência.
— Deve ter sido um engano — murmurou Tajedd.
— Qual? — perguntou Unte. Ele manteve a voz branda, mas só um tolo
teria tomado sua calma por ausência de raiva. Wanahomen estava grato pelo
apoio dele; entretanto, a tribo Yusir estava envolvida na morte de um líder
de caça Dzikeh. Unte também tinha de ver aquilo resolvido. — Invadir a
tenda de uma mulher decente, bater nela, tentar roubar aquilo que é dela e
somente dela para conceder? Ou invadir a an-sherrat de Hendet Hinba’ii
com a intenção de danificar a propriedade do clã dela? Qual foi o erro de
Azima?
Tajedd ficou calado pelo espaço de várias malditas respirações. Por fim,
baixou os olhos, aceitando a desonra. Na realidade, não houvera saída para
ele: era simplesmente uma questão de qual erro causava menos dano à
reputação de sua tribo.
— Meu líder de caça está morto, Unte — disse ele enfim com uma voz
grave. — Ele é filho da minha irmã, querido para mim. Vamos discutir esse
erro em particular para eu poder me redimir.
Unte aquiesceu.
— Sim. Esta é uma questão entre líderes de tribo. — Ele olhou para a
entrada da tenda, onde os Yusir e os Dzikeh-Banbarra se aglomeravam para
vislumbrar os acontecimentos. — Isso vai ser resolvido adequadamente ao
amanhecer — falou Unte para eles. — A loucura de um homem não precisa
lançar uma sombra sobre a noite toda. Todos vocês voltem para a festança,
exceto aqueles que forem nos ajudar a transportar o corpo de Azima.
Vários dos Dzikeh atravessaram a multidão, mas o restante das pessoas
reunidas começou a perambular e cochichar de imediato, apenas algumas se
afastando como Unte ordenara. Uma mulher deu um passo à frente.
— Unte, vai haver uma contenda entre nós e os Dzikeh?
Algumas pessoas olharam para Tajedd, que não ergueu os olhos.
— Não — respondeu Unte em voz firme. — Um erro foi cometido e
Tajedd quer que a justiça seja feita. Os laços entre os Dzikeh e os Yusir são
fortes demais para ser prejudicados por esse acontecimento.
Wanahomen notou mais de um rosto aliviado entre os espectadores
quando mais deles começaram a deixar a área da tenda de Hanani. Ele não
os culpava; também ouvira histórias das guerras brutais entre tribos que
duravam gerações. No passado, houvera três tribos a mais do que as seis
remanescentes.
Os homens Dzikeh se reuniram e recolheram o corpo do seu líder de
caça, enrolando-o com um dos tapetes da mulher do templo para evitar que
mais sangue se espalhasse. Havia menos sangue do que seria de se esperar
considerando que a faca atingira o coração. Mesmo assim, Wanahomen não
achou que a mulher fosse se importar com a perda do tapete.
Unte saiu com Tajedd, embora antes houvesse dirigido a Wanahomen
um olhar impossível de interpretar que o deixou com um aperto no
estômago. Mas o plano funcionara, por mais errado que houvesse dado. Os
Yusir-Banbarra talvez até ganhassem status graças àquilo, embora
Wanahomen não pudesse ter certeza: mesmo depois de dez anos, havia
coisas quanto aos banbarranos que ele jamais entenderia. A provável reação
de Unte era uma delas.
Por fim, restaram cinco pessoas na tenda: Wanahomen, Charris, Yanassa
e os dois Compartilhadores. Yanassa pairava perto de Hanani, embora
parecesse haver dado a disputa por vencida pelo Compartilhador, que
terminara de curar a moça e agora estava sentado em silêncio ao lado dela.
— Meu Príncipe. — Wanahomen concentrou-se em Charris com uma
pontada de culpa; ele deixara o homem ajoelhado aquele tempo todo.
— Levante-se, Charris. O que foi?
Charris se pôs de pé e passou a falar chakti, lançando um rápido olhar
para o Compartilhador enquanto fazia isso.
— O Dzikeh já estava morto quando cheguei. Não havia nenhuma
marca nele. Fui eu que pus a faca no peito dele.
Wanahomen ficou tenso. Yanassa franziu a testa, sem compreender.
— Como pode? — perguntou ela. — Um homem daquela idade e
saudável não cai simplesmente morto. — De repente, seus olhos se
estreitaram, pensativos. — Mas é verdade que ela não tinha nenhuma faca
antes e eu não comprei uma para ela. Para ser sincera, achei que ela só fosse
se machucar com uma.
Magia. Não havia outra explicação. Wanahomen se virou para fitar as
costas do Compartilhador.
— Yanassa, por favor me deixe a sós com os convidados do nosso clã.
Charris, vá com ela.
Charris fez uma rápida mesura, virou sobre os calcanhares e saiu da
tenda. Yanassa fez cara feia e parecia querer protestar, mas, para infinito
alívio dele, ela suspirou e saiu também. No silêncio que se seguiu,
Wanahomen tirou o lenço da cabeça, passou uma das mãos pelas tranças e
suspirou.
— Você quer saber como ele morreu — falou o Compartilhador.
Wanahomen piscou, surpreso: esse aí sabia chakti? Ou seria só
suposição?
— Quero — respondeu ele. — Considerando que a Lei e a Sabedoria
não dizem nada sobre moças Compartilhadores que podem derrubar
bárbaros com um grito.
— Ela gritou por causa do que tinha feito — explicou o Compartilhador,
levantando-se. Quando ele se virou, tinha o rosto mais frio que
Wanahomen já vira. Durante toda a viagem pelo sopé das colinas, esse
parecera o mais agradável dos dois, irritado com a situação deles, mas ainda
determinado a tirar o melhor proveito dela. Não havia nada de agradável
nele agora.
— Para curar um homem, nós tocamos a alma dele e a ensinamos a
desejar a integridade. Para machucar um homem, é preciso ensinar a alma a
desejar o próprio tormento. — O Compartilhador aproximou-se e estendeu
o braço para pousar a mão no peito de Wanahomen. O rapaz sobressaltou-
se e recuou, subitamente desconfortável, mas o Compartilhador
acompanhou o movimento, mantendo contato. — E para matar um
homem…
Uma dor comprimiu o peito de Wanahomen com tamanha brutalidade
que ele não conseguiu puxar fôlego suficiente para gritar. Ele cambaleou
para trás, arranhando o peito e a mão do Compartilhador, que era agora
uma garra presa à túnica dele e na carne debaixo dela. Mas, enquanto seu
coração gritava no peito, enquanto ele lutava para escapar do novo monstro
gerado pelo Hetawa, a força pareceu esvair-se dos membros de
Wanahomen. Ele caiu de joelhos, ofegante.
— Eu vi o que aconteceu nos sonhos dela — disse o Compartilhador.
Wanahomen olhou para ele com os olhos semicerrados, em meio a lágrimas
de dor, e de repente soube: este homem não tinha nenhum remorso quanto
a matá-lo. Quaisquer que fossem os juramentos que houvesse feito, por mais
arraigadas que fossem suas crenças de curador, eles haviam sido
completamente dominados por sua fúria. — Eu vi você levá-la para aquela
tenda para curar a sua ferida. Ela não entendeu sua intenção com aquele
beijo, mas eu entendo. Você a marcou como alvo. Você a usou como isca.
O coração dele. A dor envolvera o coração dele como as espirais de uma
serpente… ou uma dúzia de cordas, suas fibras brutas friccionando-o ao
passo que apertavam com mais força. Ele gemeu, desejando que as cordas
afrouxassem só por um instante para aliviar a dor. Ou, melhor ainda, que
rebentassem…
Através da visão borrada, ele pensou ter ouvido o barulho de fibras se
esticando e se rompendo. Um instante depois, ele pôde respirar de novo, e o
Compartilhador o soltou.
— Entendo — Wanahomen ouviu o Compartilhador murmurar quase
que para si mesmo. — Ela estava certa sobre a sua força. Se você fosse
treinado, teria levado a melhor… mas você não é treinado, jovem Príncipe, e
eu posso dilacerar o seu corpo mais rápido do que você pode vencer os meus
construtos. — Passos se movendo na direção dele. Wanahomen recuou aos
trambolhões, mas de maneira ineficaz: a dor o deixara fraco.
O Compartilhador agachou ao lado do rapaz. Ele não fez cara feia; sua
expressão estava calma como deveria ser a de qualquer sacerdote hananjano.
Toda a fúria estava em seus olhos pretos.
— Me conte por que, Príncipe.
— P-por quê…?
— Por que colocou a minha aprendiz em risco? Se você tivesse ideia…
— O rosto do Compartilhador se contraiu em súbita angústia. — Eu não a
tinha alertado de que ela podia matar desse jeito. Ela é tão jovem, se esforça
tanto. Esta noite vai macular a alma dela para sempre e eu quero saber se
você é tão monstruoso como o seu pai porque, se for… — Ele cerrou um
punho, tremendo com a raiva reprimida, e, por um momento, a dor no
coração de Wanahomen, que estava diminuindo, foi ofuscada pelo medo de
que o sacerdote louco voltasse a atacá-lo.
Ele tentou pensar.
— Eu precisava…
— Não minta para mim.
— Não estou mentindo, droga! Eu p-precisava do voto de Tajedd. — O
coração dele latejava com uma dor penetrante, mas o jovem respirou fundo
mais vezes, deleitando-se com o sabor do ar, com a sensação do ar nos
pulmões. — Dentro de alguns dias vai haver… uma reunião das tribos.
Yusir, Dzikeh… o-outras quatro. Eles vão votar… se vão se juntar à guerra
contra os kisuati. Libertar Gujaareh.
O Compartilhador estreitou os olhos. Por que, perguntou-se
Wanahomen, os sacerdotes do Hetawa se pareciam tanto quando
pretendiam matar? Mas, se soubesse que até os curadores eram mortais,
teria falado para aquele Coletor onde ele podia jogar os dois.
— E era improvável que a votação favorecesse você?
— S-seis tribos. Porque os inimigos não veem diferença entre um
banbarrano e outro… quatro das seis precisam votar a favor. Mesmo um
empate perde. Os Dzikeh não teriam me apoiado. Eles podiam ter
convencido outros. Eu precisava ganhá-los agora.
Havia algum indício de compreensão nos olhos do Compartilhador?
Wanahomen não se atreveu a ter esperanças.
— E como machucar a Hanani ganhou esses… — Ele se atrapalhou
com as sílabas estranhas. — Dzikeh?
Ele começou a protestar que a garota não estava tão machucada; estava
claro que Azima não conseguira penetrá-la nem deixar semente dentro dela.
Bem a tempo percebeu a completa estupidez de dizer aquilo.
— Eu os fiz pensar que Hanani era minha — explicou ele. — Minha
escravizada, minha esposa. Azima, o homem morto, queria uma desculpa
para lutar comigo. Danificar a propriedade de outro homem é um insulto
que deve ser vingado. Ele a atacou para me provocar.
Com isso, Wanahomen alçou o olhar para o Compartilhador. Parte da
sensação estava voltando para os seus membros. Será que poderia se
defender agora? Ele não teria apostado nisso.
— Mas preciso do Hetawa também, embora eu desejasse a todos os
deuses não precisar. Então pedi para o Charris vigiar a garota, pronto para
intervir antes… bem, antes. Você pode não acreditar, mas eu não queria a
morte de Azima. E não queria que a moça fosse… machucada. Alarmada,
talvez. Ofendida. Não mais do que isso.
O Compartilhador não disse nada por um bom tempo, ponderando.
Então, antes que Wanahomen pudesse recuar, ele levou a mão ao rosto do
rapaz. Wanahomen piscou instintivamente e depois aconteceu outra
daquelas curiosas disjunções de tempo. O Compartilhador tirou a mão e as
pálpebras de Wanahomen formigaram. Ele se sentou, ciente de que se
passara mais tempo do que a sua mente conseguia captar de imediato.
Então percebeu que a dor em seu peito, mesmo as pontadas dos
hematomas onde o sacerdote o agarrara, haviam sumido.
— Os Coletores veem algum valor em você — falou o Compartilhador
em tom suave, curvando o lábio. — Acham que você é melhor do que o seu
pai. Não posso dizer que concordo, mas eles estão mais perto de Hananja do
que eu. — Ele se levantou. — Faça o que precisa para libertar Gujaareh e
devolver a paz para a nossa terra, mas nunca mais use a minha aprendiz nas
suas tramoias.
O Compartilhador virou-se, então, e voltou a ajoelhar-se ao lado da
garota. Estava bastante claro que ele pretendia permanecer em vigília pelo
resto da noite. E estava bastante claro que Wanahomen fora dispensado.
Após várias tentativas — as forças estavam voltando aos seus membros,
mas devagar — Wanahomen conseguiu se levantar. Foi ainda mais difícil
sair da tenda em um ritmo que não parecesse uma fuga, de modo que
alguma migalha de sua dignidade pudesse permanecer intacta. O
Compartilhador jamais voltou a atenção para ele; o homem não ligava. Mas
tinha importância para Wanahomen.
Mas, mais tarde, quando chegou à própria tenda e se deixou cair sobre as
enxergas, ele não parou de tremer por um bom tempo.
23

A NEGOCIAÇÃO DA MAGIA

A criança se sentou e olhou ao redor. Depois de um instante, levantou-se,


em seguida girou. A mãe arquejou, então envolveu a menina em um abraço
apertado, ganhando dela um protesto abafado.
— Ela estava fraca havia vários meses — disse Yanassa para Hanani se
sentir melhor. — Mas, com essa febre, a mãe dela começou a recear que ela
fosse morrer. O clã só tem uma menina para herdar a an-sherrat.
Hanani se pôs de pé e arrumou as saias, acenando para a mãe de olhos
lacrimejantes que balbuciava um agradecimento a ela.
— Tudo graças à Deusa — falou ela. — Curei a febre, mas o problema
preexistente continua. Por favor, diga a eles que a criança deve tomar o
cuidado de comer certos alimentos ou ela pode ficar fraca de novo,
especialmente agora que os ciclos férteis começaram. Carne seria a melhor
opção, mas… — Ela deu uma olhada na tenda. Era uma das mais pobres
que já vira no acampamento banbarrano, remendada e velha e com poucos
dos enfeites e decorações que as mulheres banbarranas pareciam colecionar.
— Se a família não puder pagar pela carne, então existem outros alimentos
que devem servir também. Se eu disser os nomes em gujaareen, você vai
saber quais são?
— Se não souber, eu descubro — respondeu Yanassa. Ela também se
levantou, depois acompanhou Hanani para fora da tenda. — Muitas
crianças morrem sem necessidade nesta tribo. Vai ajudar se a tribo inteira
comer esses alimentos?
— Ajudaria qualquer um, mas especialmente os jovens e as mulheres em
idade fértil, sim.
— Então preciso dizer ao Unte e, nas comercializações da primavera,
vamos nos certificar de pegar provisões desses alimentos. — Olhando de
soslaio para Hanani, ela sorriu. — Mais uma vez você atribuiu valor à tribo.
Se ficar muito mais tempo com a gente, vamos ter que mandá-la para casa
com um cavalo ou dois!
Hanani não falou nada. Haviam se passado dois dias desde a celebração
do solstício, um desde o enterro discreto e não lastimado de Azima. Nem os
Dzikeh haviam comparecido no sepultamento… por ordem de Tajedd, uma
vez que Azima envergonhara a tribo. Os escravizados haviam cuidado desse
problema e, além deles, apenas Hanani estava ao lado do túmulo para
sussurrar preces em uma língua que Azima não teria entendido, oferecidas a
uma deusa que ele provavelmente desdenhava.
Desde então ela se dedicara ao dever para distrair os pensamentos
daquela noite terrível. Yanassa a ajudara a encontrar os membros da tribo
que sofriam de doenças ou ferimentos e, com a ajuda da mulher banbarrana,
convencera a maior parte a aceitar sua magia. Com o conselho de Hendet
em mente, ela aceitara os presentes e serviços que eles lhe ofereceram em
troca, mas sabia a verdade. Ela não realizara as curas pelo bem deles.
— Você ainda está incomodada com aquilo, ratinha? — Hanani sentiu o
olhar de Yanassa sobre seu rosto. Quando Hanani não respondeu, Yanassa
suspirou. — Pode ser que eu nunca entenda os corações gentis das pessoas
da cidade. Lamentar a morte de um homem que te insultou tanto… — Ela
chacoalhou a cabeça. — Vocês lamentam a morte dos inimigos que matam
nas guerras também?
— Lamentamos.
Yanassa a encarou.
— Eu estava brincando.
— Eu não. Assassinato e violência causam corrupção a menos que sejam
cometidos com a mais pura das intenções. É por isso que o meu povo só
mata por misericórdia e nunca por raiva. É por isso que consideramos a
guerra um anátema… ou já consideramos um dia. — Mas o mundo mudara
de tantas formas.
Mni-inh veio andando até elas do outro extremo do acampamento,
acenando para Yanassa com fria cordialidade antes de se juntar a elas na
caminhada. Dirigiu um olhar avaliador a Hanani, depois encostou a mão na
dela.
— Suas reservas estão baixas.
— Tenho o suficiente para ferimentos e doenças leves.
— Estamos aqui para uma guerra, Hanani. Você deve estar pronta para
mais do que isso. Venha; vou falar com Unte agora mesmo. Podemos muito
bem ir os dois para pedir.
Yanassa olhou para eles com curiosidade.
— Pedir?
— Humores oníricos — falou Hanani. Ela meio que esperara se virar
sem eles, fazendo as pequenas magias que pudesse com as reservas que lhe
restavam e a sua própria energia gerada pelos sonhos. Assim não teria mais
capacidade de realizar alta narcomancia. Assim não teria mais capacidade de
matar.
Mni-inh confirmou com a cabeça, dirigindo a Hanani uma carranca de
desaprovação.
— Minha aprendiz parece ter esquecido que a Deusa Hananja, Ela
Cujos sonhos abrangem a vida após a morte, nos dá o dom da magia para
servir aos outros. Porém, os nossos próprios sonhos não são suficientes;
precisamos pedir doações para o seu povo.
— Doações… de sonhos? — Yanassa ponderou sobre aquilo e suspirou.
— Nós gostamos tanto dos deuses de Gujaareh quanto dos de qualquer
outra terra, mas a sua em particular parece estranhamente ambiciosa. Dói
essa doação?
— Não — respondeu Mni-inh — e não causa nenhum mal a não ser
quando se toma sangue onírico; só os Coletores têm autorização para
coletá-lo. Mas acho que, se encontrarmos voluntários, poderíamos extrair
uma quantia mínima de cada um. Isso seria suficientemente seguro.
Azima teria tido mais sangue onírico do que precisamos se tivesse morrido em
paz, Hanani não conseguiu deixar de pensar, mas não expressou em voz alta
o pensamento.
— A semente onírica vai ser um problema também — continuou Mni-
inh, refletindo consigo mesmo. — Considerando os sentimentos deste povo
quanto à sexualidade, não sei ao certo qual a maneira apropriada de pedir
doações disso. E não sou uma das Irmãs, não faço ideia de como… bem. —
Seu rosto enrubesceu. — Mas definitivamente vamos precisar desse humor
também.
Yanassa chacoalhou a cabeça, sem entender.
— Bom, o que quer que vocês precisem, Unte vai providenciar. Entendo
agora por que o seu povo ofereceu vocês em troca: essa sua magia é um
grande tesouro. — Ela desacelerou o passo quando chegaram à tenda de
Unte. Para Hanani, enfaticamente, ela disse: — Vou vir para ver como você
está à noite. — Depois fez uma mesura e foi embora.
Mni-inh ficou olhando para Yanassa por um momento.
— Parece que você ganhou uma amiga.
— Parece. — Os banbarranos admiravam assassinos rápidos e eficientes.
O interior da tenda de Unte estava mais fresco do que o calor do lado de
fora, mas fumarento graças ao comprido cachimbo que ardia lentamente em
um pedestal perto de Unte. Unte, o véu e o lenço deixados de lado (ele era
careca como um ovo, ela viu pela primeira vez), sorriu quando eles entraram
e fez um sinal para se sentarem à mesa baixa que Hanani vira antes. E,
como antes, Wanahomen estava lá, embora desta vez estivesse sentado ereto
e solene em uma almofada perto da mesa. Também estava sem véu e não
olhou para eles quando entraram. Hanani também não sentiu grande desejo
de olhar para ele.
— Por onde vou, o meu povo exalta a sua magia — comentou Unte,
apontando para as almofadas vazias dos dois lados da mesa. Hanani esperou
Mni-inh escolher um assento, mas ele fez um sinal para ela se sentar
primeiro e ela se lembrou de que esse era o costume banbarrano.
Desajeitadamente, lutando contra a sensação de erro, ela se sentou ao lado
de Unte. Mni-inh pegou o último lugar ao lado de Wanahomen.
— É por isso que estamos aqui, lorde Unte — explicou Mni-inh.
— Lorde? Essas pessoas da cidade têm belos modos, não têm? — Unte
olhou para Wanahomen e sorriu. — Não sou chamado assim desde que você
chegou pela primeira vez.
Wanahomen conseguiu dar um sorriso fraco, que não chegou nem perto
dos olhos.
— Na minha terra, é considerado boa educação.
— Humm. O dia em que o meu povo precisar de um título sofisticado
para saber quem é o líder deles vai ser o dia em que vou cavalgar para o
deserto para encontrar o Pai Sol. — Unte dispôs pequenas xícaras e serviu
chá para cada um deles sem se dar ao trabalho de perguntar se queriam ou
não. Hanani, seguindo o exemplo de Mni-inh, pegou a xícara e bebeu com
cautela. Para sua surpresa, o líquido estava gelado em vez de quente,
condimentado e bem doce.
Mni-inh ergueu as sobrancelhas, apreciando o chá enquanto também o
bebia, mas pousou a xícara.
— Que esse dia demore muitos anos — disse ele. — Se quiser, um de
nós pode verificar a sua saúde e talvez prolongá-la um pouco mais. Mas,
para essa e qualquer outra cura, precisamos da sua ajuda.
— Ah?
Mni-inh olhou para Hanani. Eles haviam discutido isso; entre os
banbarranos, era inapropriado para uma mulher ficar em silêncio, mesmo
que essa mulher fosse uma humilde aprendiz tentando mostrar respeito pelo
mestre. Mesmo que, para começar, essa mulher não tivesse nenhuma
vontade em especial de falar. Então Hanani respirou fundo e deixou o chá
de lado.
— Os nossos poderes vêm dos sonhos, L… — Ela hesitou. — Unte. Na
cidade, no Hetawa, pegamos os sonhos daqueles que vêm oferecê-los como
dízimo para a nossa Deusa. Mas aqui não temos portadores do dízimo e
logo vamos ficar sem magia.
Unte recostou-se, surpreso.
— Eu não sabia que vocês podiam ficar sem magia. É perigoso, hum,
oferecer esses sonhos?
Hanani começou a chacoalhar a cabeça para negar, então se lembrou de
Dayuhotem.
— Normalmente não. É indolor e não demora mais do que o intervalo
de algumas respirações.
Unte olhou para Wanahomen.
— Você já ouviu falar disso?
Wanahomen fez que sim com a cabeça e olhou para cada um deles pela
primeira vez desde que haviam entrado. Hanani não conseguiu ler os olhos
dele; ele manteve a expressão cuidadosamente neutra ao encará-la.
— Na capital de Gujaareh, espera-se que todos os cidadãos doem
dízimos regularmente, embora eu nunca tenha doado. — Para Unte ele
acrescentou: — Charris e eu estamos mais familiarizados com isso do que
qualquer pessoa da tribo. Com a sua permissão, vou encontrar voluntários
antes de partirmos.
— Partir? — perguntou Mni-inh.
Wanahomen dirigiu-lhe um olhar cauteloso.
— Com tantos visitantes esperados nos próximos dias, seria fácil para os
espiões dos shadoun ou de algum outro inimigo ultrapassar as nossas
fronteiras e talvez até fazer um ataque-surpresa ao cânion. Eu e o meu
grupo de caça vamos patrulhar as partes altas pelo restante do solstício. —
Ele fez um gesto vago apontando as paredes do cânion.
— Ah. — Para surpresa de Hanani, o rosto de Mni-inh assumiu uma
frieza que ela raramente vira nele. — Esse é o seu castigo pelo seu papel na
morte daquele homem.
Um silêncio doloroso recaiu pelo intervalo de várias respirações. Os
olhos de Wanahomen tornaram-se ainda mais frios e ele apertou bastante os
lábios, mas não falou nada. Foi Unte, após tomar um demorado gole de chá,
quem por fim respondeu.
— Wanahomen não fez mal aos olhos do meu povo — explicou ele. —
Azima não era adequado para ser líder de caça dos Dzikeh, como provou
quando atacou a sua filha de alma. Isso não foi culpa de Wana. — Ele
pousou a xícara e olhou para Hanani. — No entanto, tenho consciência de
que você foi prejudicada no processo, donzela de Gujaareh. É dever dos
Yusir-Banbarra consolá-la após o seu trauma. Por isso decidi mandar
Wanahomen para longe por um tempo para que a presença dele pare de
ofender você.
— A presença dele não me ofende — retorquiu Hanani.
Todos eles olharam para ela surpresos… até Wanahomen.
— Hanani. — Mni-inh estendeu a mão para pegar a dela, preocupado.
— Você não percebe o que ele fez.
Ela olhou para a mão dele, depois para o rosto, perguntando-se se ele
percebia o quanto suas palavras — e a implicação de que ela era burra
demais para saber das coisas — machucavam. Ele não percebia, ela viu de
pronto, o que fez a dor diminuir um pouco. Mas não por completo.
— Sei exatamente o que ele fez, Mni-inh-irmão — disse ela, recebendo
outro olhar de incredulidade dele. — Sei que ele manipulou aquele homem
para me atacar, apesar de não saber nem me importar com o motivo. Mas
conseguir e manter o poder sempre exigiu certo grau de corrupção, o que o
Hetawa permite contanto que os nossos líderes tenham em mente o bem
maior do nosso povo. — Ela fitou Wanahomen. — O bem de Gujaareh era
o que tinha em mente, Príncipe?
Ele não respondeu por um longo instante e, quando o fez, havia uma
estranha intensidade em suas palavras. Ela não conseguia distinguir se ele
estava com raiva, assustado ou tomado por alguma outra forte emoção, mas
sua voz estremeceu quando ele falou:
— Na mente e no coração e na alma, Compartilhador-Aprendiz. Cada
parte da minha vida serve a esse propósito.
Hanani inclinou a cabeça.
— Então devo aceitar que o que fez foi a vontade de Hananja.
O que era o único motivo pelo qual ela ainda não oferecera o próprio
sangue onírico para Mni-inh.
Unte pareceu verdadeiramente perplexo, mas então chacoalhou a cabeça
e suspirou.
— Mesmo assim, a patrulha precisa ser feita. É obrigação de
Wanahomen proteger a tribo.
Wanahomen fez uma breve reverência, curvando-se até a cintura.
— Minha obrigação e meu prazer, Unte. — Quando ele se endireitou,
porém, continuou franzindo a testa para Hanani.
— Pois muito bem. — Unte pegou a xícara e acabou de tomar o chá. —
Wanahomen, você pode sair para fazer as preparações de que precisa. E
vocês, meus amigos gujaareen, esse era o seu único pedido para mim?
— Era — respondeu Mni-inh. Então ele hesitou e acrescentou: — Por
enquanto.
Unte deu risada.
— Finalmente está aprendendo, homem da cidade. — Ele fez um gesto
floreado para eles que pareceu em parte uma continência, em parte uma
despedida, e pegou o cachimbo que ainda fumegava. — Voltem sempre que
quiserem. Ou sintam-se à vontade para ficar e desfrutar do descanso do
horário de pico do sol comigo.
Como em Gujaareh, os banbarranos lidavam com a parte mais quente da
tarde dormindo.
— Obrigado, mas não — falou Mni-inh, levantando-se. — O melhor
momento para nós trabalharmos é quando os outros dormem.
— Ah, sim. Então bom descanso… e trabalho.
Eles saíram da tenda em fileira, Wanahomen saindo por último para
certificar-se de que a aba fosse fechada da maneira correta. Quando se
ergueu depois de terminar a tarefa, encarou-os.
— Vocês podem pegar qualquer humor onírico que precisarem de mim e
de Charris — declarou ele. — Também posso perguntar para a minha mãe
se ela está disposta a doar um dízimo. Isso é suficiente?
— Sua mãe não pode — explicou Mni-inh. — O corpo dela ainda está
se recuperando. E Charris precisa se oferecer como voluntário, pois Hananja
não aceita oferendas contra a vontade própria.
— Acho que ele vai concordar, sempre foi devoto. Mas vou chamá-lo
para que vocês possam perguntar.
Mni-inh aquiesceu.
— Quanto a você… Bem, você entende os riscos. Está disposto apesar
deles?
Wanahomen dirigiu a eles um olhar inexpressivo.
— Riscos?
Mni-inh arregalou os olhos. Ele olhou para Hanani e ela olhou de volta,
sem precisar de narcomancia para compartilhar do choque do mestre. Como
podia Wanahomen não conhecer os riscos? A menos que nunca o
houvessem alertado sobre o problema em primeiro lugar.
— Explique esses riscos — pediu Wanahomen. Ele captara a troca de
olhares entre os dois; os olhos do rapaz se estreitaram com desconfiança. —
Você não mencionou riscos com relação a Charris.
Mni-inh apenas chacoalhou a cabeça, murmurando para si mesmo,
espantado. Sobrou para Hanani explicar quando Wanahomen olhou para
ela.
— Você jamais deveria doar o dízimo — disse ela.
Ele franziu ainda mais a testa.
— Explique, mulher.
— Seria perigoso. O seu dom do sonho é poderoso. Mesmo o menor
desequilíbrio dos seus humores poderia colocar o seu dom fora de controle.
Sem sangue onírico para manter você ligado a si mesmo, você poderia
enlouquecer.
O Príncipe estremeceu, o rosto passando do horror para a confusão e
depois para a raiva enquanto ele a encarava. Após um longo instante, ele
falou:
— Dom do sonho. — Era uma pergunta.
— Seu pai devia saber — sugeriu Mni-inh. Ele estava sorrindo, mas
havia algo de frio e zangado no sorriso que Hanani achou bem alarmante.
— Você disse que nunca fez uma doação de dízimo. Todas as outras dúzias
de filhos do Príncipe davam dízimos sempre que estavam na cidade, porém,
de algum modo nunca houve tempo para levar você? — Ele soltou um
suspiro de desdém. — Ah, mas o Hetawa era corrupto naquela época. Teria
sido preciso só um suborno para a pessoa certa para guardar o segredo do
precioso herdeiro dele.
Wanahomen cerrara os punhos nas laterais do corpo, o qual estava
rígido.
— O que em nome dos pesadelos você está falando?
Hanani interveio depressa, antes que Mni-inh pudesse falar mais alguma
coisa.
— Em algumas pessoas, a habilidade de sonhar é forte demais para
permanecer dentro de suas mentes ou para vir apenas durante o sono —
explicou ela para Wanahomen. — Seus sonhos são mais vívidos, suas
mentes conseguem transitar entre Ina-Karekh e Hona-Karekh como se o
sonho e a vigília fossem uma coisa só. Consideramos esse nível de força uma
dádiva da Deusa. Aqueles que a possuem costumam ser reivindicados pelo
Hetawa.
Os olhos dele se encheram de tamanho horror que Hanani
inadvertidamente recuou. Por que ele estava tão transtornado?
— É uma grande honra ter um dom tão poderoso quanto o seu —
arriscou ela, nervosa. — Se tivesse sido descoberto e treinado jovem o
bastante, poderia ter se tornado Compartilhador também, ou Coletor.
Talvez pudesse até ter servido junto com o Coletor Ehiru, seu tio…
Mas ela parou de falar ao perceber o que isso teria significado.
Wanahomen era da mesma idade do Coletor Nijiri, ou quase. Se ele
houvesse sido reivindicado pelo Hetawa como deveria, ele em vez de Nijiri
poderia ter ajudado a matar seu pai.
Ela levou a mão à boca, entendendo enfim a terrível compreensão no
rosto dele. Mas, antes que pudesse pensar em alguma forma de corrigir o
erro, ele fechou a boca e foi embora.
— Príncipe… — Hanani começou a ir atrás dele, mas parou quando
Mni-inh segurou seu braço.
— Deixe que ele vá.
— Irmão!
— Deixe-o, eu falei. — Mni-inh observou enquanto a figura vestida de
índigo do Príncipe desaparecia entre as tendas. — Ele acabou de descobrir
que seu lugar é entre as mesmas pessoas que odiou a vida inteira. Não vai ser
fácil para ele.
— Você não tornou nem um pouco mais fácil!
— Não, não tornei — replicou Mni-inh. Não havia pedido de perdão
nem culpa na expressão dele. — E você também não deveria tornar depois
do que ele te fez. Você é gentil demais, Hanani.
Era a segunda vez que ele falava com ela como se fosse uma tola. E,
embora fosse impróprio e nada pacífico para ela sentir raiva das palavras
dele, ou demonstrar caso sentisse, o sentimento foi tão intenso naquele
momento que ela soltou o braço do aperto da mão dele com um puxão
agressivo.
— Era melhor eu ser gentil, não era, Irmão? — Ele a encarou, surpreso
com a veemência dela. A jovem deu um passo em direção a ele e teve
presença de espírito suficiente para baixar a voz para um sussurro acalorado.
— A raiva te dá consolo? Eu garanto a você que não é fácil para mim.
Alguém mais pode morrer da próxima vez que eu perder a cabeça. Melhor
eu rezar para pedir mais gentileza, você não acha?
— Hanani — disse ele bruscamente, depois se calou. Antes que pudesse
falar mais alguma coisa, Hanani fez como o Príncipe e foi embora.
24

LEGADO

— Sabia — confirmou Hendet. — Seu pai sabia e eu também.


Wanahomen fechou os olhos. Você poderia ter se tornado um Coletor, o
Compartilhador dissera. Como Ehiru, que matara seu pai. Como Una-une,
o Ceifador irracional que comia almas.
Ele acordara Hendet de uma soneca no horário de pico do sol para exigir
a verdade dela.
— Por quê? — Ele sussurrou as palavras. — Por que não me contou?
— O dom corre na linhagem masculina — explicou ela. Sua voz era
monótona e fria, mas ele a conhecia. Ela estava com medo. — Você ouviu a
história de Mahanasset, o Primeiro Príncipe, muitas vezes, Wanahomen.
Você nunca entendeu a mensagem? Mahanasset foi o primeiro a conhecer a
maravilha do sangue onírico porque, sem ele, não conseguia distinguir a
realidade das visões que o atormentavam…
— E é isso o que posso esperar para mim? Loucura? — Wanahomen
levantou-se de um pulo. — Demônios e sombras, é isso o que a senhora está
me dizendo?
— Sente-se! — Sua voz estalou como um chicote. Ele abriu a boca para
protestar e ela o calou com um olhar feio. — Sente-se, menino tolo, e me
escute.
Silenciosamente fervendo de raiva, ele obedeceu, ajoelhando-se na
almofada mais distante dela. Ao ver essa atitude, Hendet suspirou e
esfregou os olhos.
— Não culpo você pela raiva — disse ela, enfim. Ela olhou para ele e
parte da raiva no âmago dele se desfez ao ver a dor no rosto dela. — O
sacerdote que testou você nos falou que, com a força do seu dom, havia
chances iguais de você crescer louco ou não sofrer nenhum efeito nocivo.
Parecia valer a pena correr o risco.
— Chances iguais. — Ele cerrou os punhos pousados sobre o colo. —
Eu podia me tornar um lunático violento a qualquer momento amaldiçoado
pelas sombras e vocês acharam que valia a pena correr o risco?
— Seu pai achou que valia, sim — respondeu Hendet baixinho.
Ele olhou de volta para ela e finalmente fez em voz alta a pergunta em
que pensara, e à qual resistira, por dez anos.
— E ele era louco?
O rapaz ficou muito abalado com o fato de que ela não negou de
imediato.
— Não sei — respondeu ela após um longo silêncio. Ela desviou os
olhos, esfregando as palmas das mãos no colo. Fora treinada para nunca
demonstrar nervosismo. — Ele com certeza sabia distinguir o sonho da luz
do dia. Comigo sempre era gentil, sempre tão inteligente. Mas as coisas que
fez perto do fim… Aquelas coisas… — Ela flexionou o maxilar e se calou.
Então talvez os Coletores estivessem certos de reivindicá-lo foi o pensamento
que veio à mente de Wanahomen antes que pudesse rejeitá-lo, como de
costume.
Não. O Hetawa abusara de seu pai, abusara de todos os seus
antepassados. Quaisquer crimes cometidos por Eninket haviam sido levados
a cabo em resposta a isso.
— Você precisa entender — falou Hendet, a voz mais suave que de
costume. — Se os sacerdotes tivessem tentado reivindicar qualquer outra
das crianças, ele poderia ter cedido, mas não você. Então seu pai aproveitou a
oportunidade e subornou o sacerdote para dizer que você não tinha o dom.
— Tudo isso é muito bom e acertado — replicou Wanahomen em tom
firme —, mas você podia ter me contado.
Os dois ficaram em silêncio, o de Wanahomen tenso e o de Hendet
cheio de culpa.
— Sinto muito — sussurrou ela, enfim. — Você está certo, claro. Eu
só… Você tinha tantos outros problemas para resolver. E, quanto mais eu
escondia a verdade de você, mais difícil ficava contar.
Depois disso, não havia mais nada em que Wanahomen pudesse pensar
para falar. Ele chacoalhou a cabeça, suspirou e finalmente se pôs de pé.
Hendet inclinou-se para a frente, ansiosa.
— Aonde você vai?
— Me preparar para a nossa patrulha. E encontrar os Compartilhadores.
— Wana…
Ele ergueu uma das mãos para calá-la, sem vontade de ouvir mais de
suas meias verdades.
— Podemos conversar de novo quando eu voltar.
— Sinto muito — repetiu ela enquanto ele passava pela aba da tenda.
Ele olhou para ela outra vez e não conseguiu se despedir enquanto a aba se
fechava.
Não demorou muito para encontrar a mulher do templo.
— Ela está atrás de você — informou um dos anciãos da tribo quando
ele perguntou. — Por ali. — Assim, ele a encontrou perto da an-sherrat de
Shatyrria, mãe de Wutir e avó de Wujjeg, procurando. Pelo desconforto no
rosto de Hanani, ele sabia que ela notara os olhares hostis dos parentes de
Wutir. Os olhares que dirigiam a Wanahomen eram piores; ele os ignorou.
— Príncipe. — Havia um tom de alívio em sua voz quando ela o viu.
Fosse outro dia, ele poderia ter visto ironia nisso. — Por favor, perdoe o
meu mentor. Ele ainda está bravo…
— Eu sei — disse Wanahomen. — Venha comigo.
Ele deu três passos antes de perceber que ela não o estava seguindo.
Quando olhou para trás, ela examinou-lhe o rosto e ele se deu conta de que
ela tirara aquele tempo para refletir se era seguro acompanhá-lo. O fato de o
incidente com Azima tê-la deixado mais cautelosa era bom; o fato de sentir
necessidade de ter cautela com ele era preocupante.
Mas eu não fiz por merecer?, sussurrou sua consciência quando ela
finalmente começou a segui-lo.
Sim. Ele fez. E esse era o motivo, no final das contas, porque perdoaria a
mãe. Não podia censurá-la quando ele próprio cometera atos vergonhosos.
Hanani lançava olhares para ele enquanto caminhavam pelo
acampamento, mas não falou nada para quebrar o silêncio, pelo que
Wanahomen ficou agradecido. Só quando chegaram à an-sherrat de Yanassa
ela comentou alguma coisa, entendendo.
— O seu filho.
Ele parou e se virou para encará-la. Não a odiava mais, não depois de ver
seu rosto na noite em que matara Azima. Será que ela o odiava? Ele rezou
para que fosse leal o bastante para com seus votos para ajudá-lo mesmo que
o odiasse.
— Preciso saber — explicou ele. — Tassa precisa saber.
Ela aquiesceu lentamente.
— Posso administrar o teste do quarto ano. Mas o dom passa com mais
frequência e mais força por parte de pai, de homem para homem. Se ele
tiver o dom…
— Não garante que ele vai ficar louco.
— Não. Mas o que vai acontecer se ele tiver? Como os banbarranos
cuidam dos seus loucos?
— Eles os levam para o deserto e os deixam lá para morrer.
Ela ficou tensa. Quando finalmente falou, havia um certo grau de
desdém em sua voz que ele nunca ouvira.
— Um povo deve ser considerado civilizado pelo modo como os
menores entre eles são socorridos.
Ele ficou surpreso de ouvir um dos provérbios de Mahanasset na boca da
moça… por outro lado, o Hetawa não economizava nada na educação dos
que adotava.
— Existe algo de verdade nisso — comentou ele. — Mas mesmo em
Gujaareh não se espera que uma pessoa corte a garganta de seus familiares
doentes nem que afogue os próprios filhos com malformação. Não existem
Coletores aqui para fazer essas coisas.
— Os loucos não estão morrendo nem tem malformação! Esses
bárbaros… — Ela parou, provavelmente se esforçando para continuar sendo
educada. Ele quase sorriu com a pura arrogância gujaareen no tom de voz
dela. Não sabia que ela tinha essa característica.
— A vida no deserto é difícil, Compartilhador-Aprendiz. Os
banbarranos não são abastados como Gujaareh e têm poucos recursos para
gastar com “os menores entre eles”. E lembre-se: os loucos podem ser
perigosos.
Ela fez um gesto depreciativo, rápido e irritado.
— Então diga a eles para levarem os loucos para Gujaareh! Nós
podemos ajudá-los a terem vidas boas e longas. Ou, se forem levados
quando jovens, eles podem ajudar como Compartilhadores ou Coletores.
Da idade de Tassa ou mais novos.
Wanahomen ficou tenso, mas lembrou a si mesmo que a mulher não
mencionara especificamente reivindicar Tassa.
— Quando eu voltar para Gujaareh, vou perder o meu filho — falou ele.
O Príncipe manteve a voz suave e neutra, mas alguma ponta de angústia
devia ter escapado apesar dos seus esforços. Ela ficou em silêncio, parte da
justa raiva sumindo de seu rosto. — Ele é o meu primogênito, mas nunca
vai se sentar no Trono do Ocaso. Tassa é apenas metade banbarrano de
descendência, mas, de espírito, é completamente banbarrano. Tirá-lo da
vida e do clã que ele ama, forçando-o a viver sob um teto permanente,
acorrentando-o a pessoas que ele despreza… Essas coisas o destruiriam.
Entende?
Ela falou em tom suave também, talvez com a intenção de ser gentil.
— A loucura o destruiria também, Príncipe. Só existe uma maneira
segura de garantir que isso não aconteça, se a alma dele começar a vagar de
verdade.
— Também não quero que ele seja escravizado pelo sangue onírico.
Ela permitiu que houvesse um momento de silêncio para atenuar suas
palavras seguintes e para que ele pudesse se preparar para elas.
— Então, se ele enlouquecer, você vai levá-lo aos Coletores?
— Eles não vão ficar com outro da minha linhagem.
— Então…
— Se ele enlouquecer, eu mesmo o mato.
Não doeu pronunciar as palavras, só pensar nelas. E, porque ela era
gujaareen, seu rosto se encheu de compaixão em vez de horror.
— Essa escolha deveria ser dele — salientou ela.
Ele anuiu concisamente.
— Deveria. E se houver necessidade, vou perguntar a ele. Mas, se ele já
tiver começado a ter visões e a balbuciar, se essa maldição que você chama
de dom tiver tirado a escolha dele… — O Príncipe chacoalhou a cabeça. —
Não vou deixar que ele sofra.
Ela suspirou, mas não protestou contra as palavras dele.
— Vou dar uma olhada no menino agora.
Tassa estava lá dentro, brincando com a espada de brinquedo que
Wanahomen lhe dera depois de uma de suas viagens a Gujaareh. O garoto
abriu a aba para convidá-los a entrar com uma ansiedade que revelava um
longo tédio.
— A mamãe falou para eu ficar aqui dentro hoje — disse ele. —
Dasheuri achou um escorpião e me desafiou a pegar, e eu peguei. A mamãe
viu e ficou brava.
— Como ela deveria — retorquiu Wanahomen, fazendo cara feia. —
Essas criaturas podem matar uma criança do seu tamanho.
— Eu sabia o que estava fazendo — respondeu Tassa, não com pouca
arrogância. Depois voltou seu olhar brilhante e curioso para a mulher. — É
ela que a mamãe está ajudando.
— Ela é uma curadora — explicou Wanahomen. A mulher olhou para
os dois, obviamente sentindo que estavam falando dela. — Da terra onde eu
nasci. Ela quer ler os seus sonhos para ver como está a sua saúde.
Tassa fez um gesto convidando-os a se sentarem nas almofadas para
convidados dispostas ao redor de um pequeno tapete quadrado.
— Ela pode olhar os meus sonhos? — Sua voz denotava fascínio em vez
do desconforto que um adulto poderia ter sentido. — Como?
— Deite-se e ela vai mostrar para você — falou Wanahomen. Quando
Tassa se deixou cair avidamente sobre duas almofadas, Wanahomen acenou
para a mulher, que se ajoelhou ao lado do menino.
— Sonho… lembrar vou? — perguntou Tassa em um gujaareen
hesitante e horrível. Wanahomen piscou, surpreso, depois entendeu de
repente: Yanassa. Ela devia ter decidido ensinar gujaareen para Tassa,
embora tradicionalmente os meninos banbarranos não aprendessem
habilidades de mulher. Por um momento, ele sentiu lágrimas ardendo em
seus olhos, antes de afastá-las logo com piscadas. Ele teria de agradecer
Yanassa mais tarde.
A mulher do templo também pareceu surpresa, mas sorriu.
— Posso fazer você lembrar se quiser — respondeu ela. Quando Tassa
franziu a testa, sem entender, ela simplificou. — Sim. Você vai lembrar.
Tassa pareceu contente.
— Não me lembro da maioria dos meus sonhos — comentou ele,
voltando a falar chakti. — Queria poder lembrar mais.
— Ela pode te ensinar como fazer isso se quiser.
O menino estreitou os olhos, desconfiado.
— Não quero aprender magia. É uma coisa estrangeira.
É metade da sua herança, ele quase disse, mas se conteve.
— Isso dependeria da sua mãe — falou ele —, mas deite-se e fique um
tempo em silêncio ou esta magia vai demorar a tarde inteira.
Tassa se pôs à vontade.
— E agora?
— Feche os seus olhos. Ela vai colocar os dedos neles e fazer você
dormir.
Uma ponta de preocupação perpassou o rosto do garoto.
— Você já fez isso?
— Fiz. E Hendet também. Você viu que ela está melhor agora?
— Vi. Tudo bem, então. — Ele fechou os olhos, ansioso agora.
A mulher pôs a ponta dos dedos sobre as pálpebras dele e entoou um
zunido suave e monótono. Após um instante, o corpo de Tassa relaxou até
cair no sono e Wanahomen sentou-se sobre os joelhos para esperar.
Demorou menos do que ele imaginava. Nem cinco minutos depois ela
expirou e abriu os olhos.
— Sonhos tão agradáveis — sussurrou ela. — Eu não esperava isso do
seu filho.
Sem saber ao certo como receber aquele comentário, Wanahomen
decidiu ignorá-lo.
— Ele tem o dom ou não?
— Não. Os sonhos dele nunca vão sair de Ina-Karekh.
A onda de alívio que perpassou Wanahomen era tanto dolorosa quanto
doce. Em um nível completamente irracional, ele esperara ver ainda outro
sinal do seu sangue no menino. Essa tolice passou rápido, porém, e
Wanahomen fechou os olhos para sussurrar uma prece de agradecimento
pela boa sorte do filho. Quando abriu os olhos, a mulher estava olhando
para ele.
— Não achei que você rezasse — comentou ela.
Ao ouvir isso, ele fez cara feia.
— É o Hetawa que eu odeio, não a Deusa — falou ele, aproximando-se
de Tassa. Em um impulso, pegou o garoto nos braços, como Yanassa tão
raras vezes o deixara fazer quando Tassa era bebê. — Se Ela julga
conveniente me conceder alguma pequena bênção, sou Dela o suficiente
para ser grato.
— E, no entanto, não obedece à Lei Dela.
Tassa deu um suspiro alegre durante o sono, aninhando-se no peito de
Wanahomen, que não pôde deixar de sorrir. Ele caçoaria do menino quanto
a isso mais tarde.
— Não, não obedeço — concordou ele. — No meu coração, obedeço,
mas na realidade… Sou um homem mais endurecido agora do que era
quando deixei Gujaareh e admito: esse fato às vezes me preocupa. Mas é por
Gujaareh que faço essas coisas que não são nada pacíficas. Tento me
certificar de que são as coisas certas, mas… — Ele olhou para ela. Os
hematomas haviam sido curados e Azima estava morto, mas a sombra do
que acontecera ainda rondava o rosto solene da moça. Ele suspirou e fez das
suas palavras seguintes as mais semelhantes a um pedido de desculpas que o
seu orgulho conseguia suportar. — Nem sempre consigo.
Ela franziu um pouco a testa… não em reprovação, supôs ele, mas em
reflexão. E, em particular, observava-o segurar Tassa nos braços. Ele sentiu
que ela estava ponderando alguma coisa, ou talvez escondendo alguma
coisa.
— Ele não tem o dom — revelou ela —, mas ainda é o seu filho. Os
filhos dele poderiam ter. Essas coisas às vezes saltam gerações. — Quando
Wanahomen não falou nada… porque não conseguia pensar em mais nada
para dizer… ela acrescentou: — Você precisa falar com ele sobre isso,
Príncipe. O conhecimento é uma arma; não deixe seus descendentes
desarmados. — Ela fez outra pausa. — Como você ficou.
Zangado, ele dirigiu-lhe um olhar penetrante, mas isso não fazia sentido,
pois não fora ela quem escondera a verdade dele. Ela também não
estremeceu diante da raiva dele, talvez porque soubesse que tinha o direito.
Essa ideia o fez suspirar e ceder.
— Vou explicar tudo para o Tassa — afirmou ele. — Amanhã. Vou
contar para Yanassa também e convencê-la… e tentar convencê-la a deixar
Tassa visitar Gujaareh em algum momento no futuro. Ele vai precisar saber
como levar os filhos ao Hetawa para serem testados, se puder.
Hanani franziu a testa.
— Ah, as mães controlam essas coisas aqui. Entendo. — Ela pensou por
um momento. — Vou discutir a questão com Yanassa e com as mulheres
que conheço. Não sou mãe, mas talvez ajude se vier de uma mulher.
— Obrigado — disse Wanahomen, surpreso. — É, isso ajudaria. — Mas
por que você está ajudando?, ele não perguntou. Era uma pergunta
desnecessária, na verdade; ela obviamente sentia que ajudá-lo servia à Deusa
Hananja de alguma forma. E, além do mais, talvez visse aquilo como ajudar
Tassa, e Wanahomen fosse apenas um meio para tal.
Mas, de repente, a mulher suspirou e Wanahomen se deu conta de que,
enquanto estivera pensando sobre ela, ela chegara a uma decisão.
— Existe outra maneira de você evitar a loucura — declarou ela. — O
sangue onírico é a forma mais segura, mas já que você não quer… — Ela
hesitou, depois suspirou. — Você poderia aprender a restaurar o equilíbrio
dos seus próprios humores quando estiverem em desalinho. É uma
habilidade que aqueles de nós que manipulam humores precisam aprender.
Se você conseguisse dominá-la, sua sanidade deveria estar a salvo.
Ele franziu o cenho para ela por um momento, depois se mexeu para pôr
Tassa deitado de novo a fim de que o menino pudesse dormir o resto do
horário de pico do sol.
— Seria difícil aprender essa habilidade?
— Foi fácil para mim, mas eu já tinha uma boa prática de narcomancia
àquela altura do meu treinamento. Muita coisa dependeria do quão rápido
você aprende, e de quanta paciência o meu mentor provavelmente terá…
— Não. — Deixar aquele maldito torturador odioso entrar em seus
sonhos? Será que ela estava maluca? — Você vai me ensinar.
Ela se sobressaltou.
— Príncipe, eu sou só uma aprendiz.
— Eu não me importo. Você consegue me ensinar?
Ela hesitou. Não por duvidar, ele supôs com base no que viu no rosto
dela, mas por um sentimento de decoro.
— Consigo, mas Mni-inh tem muito mais anos de experiência…
— Então vai ser você. Mas me conte o motivo.
Agora foi a vez dela de encará-lo como se ele houvesse enlouquecido.
— De você não deixar o meu mentor…?
— Não. Me conte o motivo de oferecer essa opção para começar. Eu a
insultei, Compartilhador-Aprendiz Hanani. Faria tudo de novo se fosse
conquistar o voto banbarrano e não posso pedir desculpas por isso. No
entanto, você me perdoou. Por quê?
Ela se afastou e, de súbito, toda expressão desapareceu de seu rosto,
tornando-a fria como uma estátua, o que o fez lembrar, por um instante
fugaz, de Tiaanet.
— Eu nunca disse que tinha perdoado você — retrucou ela.
— Então por que me ajuda?
— Porque acredito agora que foi por essa razão que os Coletores me
mandaram. Me deram ordens para libertar Gujaareh. Ajudar você vai
atingir esse objetivo.
— Você recebeu ordens para… — Ele a encarou, sem saber se devia rir.
Quem em sã consciência pediria a uma coisinha tímida e acanhada como ela
para libertar seu povo dos conquistadores? E quem em todo o deserto teria
esperado que ela de fato tentasse?
E, contudo, ela não estava tímida e acanhada agora. Ele jamais teria
acreditado com base na primeira impressão que tivera dela, mas seus olhos
eram de pedra agora. Será que o incidente com Azima trouxera aquilo à
tona ou será que sempre estivera ali, escondido sob seu comportamento
gujaareen recatado? Ele não sabia… mas sabia que devia respeitar.
— Me ensine essa magia — pediu ele finalmente, falando em tom suave
porque essa era a única humildade que se permitiria mostrar a um sacerdote
do Hetawa. — Vou ensinar para o Tassa para que ele possa ensinar para os
próprios filhos. Quando eu reconquistar a nossa terra, vou ensinar para
todos os meus herdeiros. Gujaareh nunca mais precisará temer um louco no
trono outra vez.
Ela inclinou a cabeça.
— Devemos começar logo então. Amanhã. Preciso discutir o método
com Mni-inh primeiro. — Ela se levantou para sair.
Wanahomen ficou olhando para as costas dela.
— Eu parto para os pontos altos de manhã!
Ela abrira a aba da tenda. Naquele momento, parou e virou-se. Uma
brisa leve, perfumada com o aroma de flores silvestres de fim de estação,
soprou pela abertura, inflando as faixas e saias ao redor dela em uma nuvem
de tons terrosos. Ela parecia surreal e fria e tão essencialmente gujaareen,
mesmo com roupas banbarranas, que Wanahomen sentiu saudades de casa.
— Você vai acampar lá em cima? — Ela apontou para além da tenda, em
direção às colinas próximas.
— À noite, sim. De dia estarei cavalgando pela borda com os meus
homens…
— Então eu vou ao seu encontro à noite. — Ela inclinou a cabeça para
ele e saiu, a aba da tenda se fechando ruidosamente após a sua passagem
com um ligeiro repique, como uma risada oca.
25

A NEGOCIAÇÃO DA DOR

Tiaanet percebeu o perigo assim que entrou na sala onde o pai e três outros
nobres estavam tramando a queda kisuati.
A mulher que falava era alta, pálida, arrogante e pouco mais velha que
Tiaanet, embora usasse um diadema em seu cabelo trançado que indicava
que era a chefe de sua família. Iezanem, zhinha e filha de lady Zanem, que
ficara recentemente órfã com a misteriosa morte de seus pais durante o
sono. Seu tom de voz soou mordaz quando ela disse para Sanfi:
— De que isso nos serve agora? Com uma única tacada, o Hetawa
ganhou de volta o coração do povo como se os últimos dez anos não
tivessem acontecido.
O perigo estava escondido atrás da máscara de calma do seu pai, notou
Tiaanet, mas estava lá. Ele não podia se dar ao luxo de hostilizar Iezanem,
que falava em nome do punhado de famílias zhinha que haviam conseguido
manter algum poder real sob o domínio kisuati. No entanto, ele jamais
gostara que qualquer mulher lhe falasse em um tom daqueles e, enquanto
Iezanem o fazia agora, Tiaanet sentiu um aperto de apreensão na barriga.
— O coração do povo é volúvel — respondeu ele, fazendo um aceno de
agradecimento para Tiaanet enquanto ela reenchia sua taça de vinho doce.
— Eles vão odiar o Hetawa de novo assim que os kisuati começarem a
matá-los em retaliação pela morte dos soldados.
— Você não pode garantir isso — contestou outro dos convidados de
Sanfi. Esse era Deti-arah, das castas shunha e militar, que um dia estivera a
ponto de se tornar o próximo general de Gujaareh. O fato de que ainda não
alcançara o posto foi a única coisa que o salvou de uma execução kisuati
após a conquista. — Nem que os kisuati vão retaliar, nem que as pessoas vão
se voltar contra o Hetawa. Eu me encontrei com Sunandi Jeh Kalawe e o
marido dela, Anzi Seh Ainunu. Anzi é soldado, é verdade, pode ser que
queira sangue pela morte dos homens dele. Mas Sunandi entenderá o perigo
de fazer isso. Aqueles soldados roubaram, espancaram e violentaram
cidadãos gujaareen. Retaliar contra o Hetawa por matar uma indecência
dessas enfureceria a cidade toda.
— Anzi controla o poder militar da cidade — falou Sanfi, tomando um
gole de vinho. — Qual é a probabilidade de um homem ouvir a sua mulher,
por mais sensatos que os conselhos dela possam ser, quando está bravo e
tem o poder de agir com base na raiva?
— Sunandi fala em nome do Protetorado — retorquiu Ghefir, outro
shunha que devia a Sanfi um empréstimo substancial. Ele mordiscou o lábio
inferior enquanto falava, a testa franzida pelo desconforto, e não olhou para
Tiaanet quando ela lhe serviu mais vinho. — Eles a designaram exatamente
para impedir que ele cometesse esses erros. Se ele a ignorar e as coisas
derem errado, vai ter que responder mais tarde aos Protetores.
— Mas o estrago estaria feito — argumentou Sanfi.
— Isso é irrelevante — opinou Iezanem bruscamente em um tom
agitado que fez Tiaanet estremecer. — Estamos indo devagar demais. As
nossas tropas se reuniram na borda do deserto, por que estamos esperando
para atacar? Quanto mais adiamos, mais poder o Hetawa obtém. Nesse
ritmo, mesmo que vencermos, as pessoas vão nos aplaudir como seus
libertadores e depois vão se voltar para os sacerdotes em busca de
orientação.
— Ou a quem quer que o Hetawa apoie — disse Deti-arah. Ele suspirou
e encostou os dedos, as mãos em forma de campanário. — Há um boato se
espalhando pela cidade de que os banbarranos estão do nosso lado agora e
são liderados por um homem da Linhagem do Ocaso. Isso é obra sua,
Sanfi?
Tiaanet foi até uma mesa de serviço no extremo da sala para encher a
garrafa. No longo período de silêncio antes da resposta de Sanfi, o som do
vinho derramando pareceu muito alto.
— Não — respondeu Sanfi enfim, e havia um trovão em sua voz agora,
escuro e crescente. — Essa foi uma informação que concordamos em omitir
até a hora do ataque final. Alguém entre nós abriu a boca.
Deti-arah chacoalhava a cabeça quando Tiaanet se virou para ficar de
frente para a sala.
— Eu ouvi isso do Hetawa — declarou ele. — Fui com o meu filho doar
alguns sonhos como dízimo dois dias atrás. O sacerdote que pegou a doação
me falou que a Deusa em breve responderia as minhas preces porque o
Avatar Dela voltaria para restaurar a liberdade da cidade. O sujeito parecia
quase alegre com aquilo, bem diferente de um homem do templo.
Houve silêncio. Tiaanet viu a mão de Sanfi apertar a taça.
— Mas… eles só saberiam disso e estariam contentes se o retorno do
Príncipe servisse aos propósitos deles — comentou Ghefir, mordendo o
lábio com mais força agora. — Não é?
— É — concordou Sanfi em voz baixa. — Parece que o Hetawa e o
Príncipe fizeram sua própria aliança. Isso é… lamentável.
— Lamentável? — Iezanem levantou-se; estava trêmula de raiva. — É
esse o nome que você dá? Quem nesta cidade vai querer um Protetorado
Gujaareen agora, quando o Hetawa está fazendo o retorno de Wanahomen
parecer algum tipo de profecia muito anunciada? Isso é o resultado dos seus
adiamentos, Sanfi. Não temos escolha a não ser agir…
— Não. — Sanfi olhou feio para ela, não mais se dando ao trabalho de
ser educado. — Os kisuati na cidade estão em alerta, com medo de uma
revolta a qualquer momento. Precisamos esperar até que estejam
desprevenidos.
— Poderia levar meses!
— Não vai. Vai levar só uns dias.
Ghefir revirou os olhos, exasperado.
— Sanfi, velho amigo, do que você está falando?
Deti-arah foi mais direto quando se inclinou para a frente.
— O que você está escondendo?
Sanfi suspirou, apertando a ponte do nariz entre os dedos como se
estivesse cansado. Tiaanet era mais sensata. Ele estava furioso, mas precisava
soar calmo, parecer confiante.
— Uma quadra de Protetores está vindo para Gujaareh — revelou ele,
enfim. As demais pessoas na sala reagiram com murmúrios de preocupação;
ele esperou que se acalmassem. — Um dos meus contatos entre os
mercadores de lá mandou avisar, embora estejam viajando em segredo por
uma questão de segurança; ele lida com tráfego de barcaças naquela parte do
rio e foi contratado para trazê-los aqui. Eles devem chegar no final da oitava
de dias do solstício. E estão vindo no mínimo para avaliar Sunandi Jeh
Kalawe e decidir se ela deve continuar no comando da cidade. A chegada
deles pode trabalhar a nosso favor. Qualquer transição de poder é um
momento de confusão.
E existe uma praga à solta na cidade. — Ele parou e inclinou a cabeça
solenemente para Iezanem, que cerrou o maxilar. Ela não usava as cores do
luto porque os zhinha não se importavam com a tradição, mas seu pesar
ainda estava claro. — Mais uma vez um contato meu me contou um
segredo: o Hetawa tem duas ou três dúzias de leigos isolados no Hetawa
interior, dormindo até morrer. Os sacerdotes dizem que estão estudando a
doença, procurando alguma cura para ela. Mas e se não houver cura?
Iezanem ficou muito quieta. Deti-arah franziu a testa.
— Não estou entendendo.
— Um Coletor morreu vários dias atrás. Sonta-i.
— Sim — falou Deti-arah com ar de impaciência. — O que você está
insinuando? Sonta-i era velho para os padrões dos Coletores. Não há nada
de fatídico no fato de ele dar o Dízimo Final agora.
— E se ele não tiver dado o Dízimo Final? — perguntou Sanfi. — E se
ele também morreu dessa doença? E se se espalhasse o boato de que o
Hetawa, com toda a sua magia, não consegue controlar nem deter a
disseminação dessa doença? O que aconteceria nesse caso?
Deti-arah arregalou os olhos. Confusa, Iezanem chacoalhou a cabeça,
fazendo seus brincos de ouro e lápis-lazúli chocalharem.
— A cidade ficaria repleta de medo e inquietação — comentou ela — e
os Protetores provavelmente se voltariam contra o Hetawa, uma vez que não
consegue mais realizar sua função básica de manter a cidade saudável e
satisfeita. Mas nenhuma dessas coisas aconteceu, Sanfi.
Sanfi encolheu os ombros, embora Tiaanet pudesse ver a tensão em seus
ombros.
— E se pudessem acontecer?
— Você — disse Deti-arah, a voz trêmula e horrorizada. — Você causou
essa doença?
Iezanem virou-se para Sanfi, o corpo enrijecendo.
— Não — respondeu Sanfi com firmeza, olhando para Iezanem
enquanto falava. — A doença é magia. Quem controla a magia em
Gujaareh? O Hetawa. Talvez eles mesmos tenham causado a doença de
alguma maneira. Só estou sugerindo que a gente encontre uma forma de
lembrar as pessoas, os Protetores, disso.
Iezanem conteve a respiração; sob seu semblante carregado, seus olhos
brilhavam, cheios de lágrimas não derramadas. Ghefir parou de mordiscar o
lábio. Só Deti-arah continuou olhando para Sanfi com algo próximo a
desconfiança, mas ele não expressou suas preocupações em voz alta, fossem
quais fossem.
Havia pouco mais a ser dito depois daquilo. Iezanem e Ghefir
concordaram em espalhar o boato por meio de suas conexões. Sanfi, como
um dos nobres mais proeminentes da cidade, ofereceu-se para marcar uma
reunião com os Protetores visitantes, assim que chegassem, a fim de
expressar suas preocupações quanto ao Hetawa. Então Tiaanet ofereceu aos
convidados uma bandeja com pequenos petiscos para revigorá-los e eles se
despediram, deixando Tiaanet a sós com o pai.
Sanfi permaneceu na sala de recepção onde estivera ao longo da reunião,
olhando para as mãos cruzadas enquanto Tiaanet fazia a limpeza. Ele ficou
em silêncio por tanto tempo que ela se assustou quando ele disse:
— A Tantufi foi acomodada?
Tiaanet quase derrubara um vaso com suas repentinas palavras. Ela o
arrumou depressa, concentrando-se no objeto para não franzir a testa. Ele
estava acostumado demais a ver uma serenidade vazia no rosto dela; a
mudança chamaria excessiva atenção.
— Sim, pai. Eu a coloquei no porão de depósito.
— Me leve até ela. — A voz dele estava muito suave.
Tiaanet virou-se para encará-lo com o vaso nas mãos, tensa. Ele olhou
para ela; um músculo de seu maxilar se contraiu.
— Não me desafie, Tiaanet — aconselhou ele. — Não hoje à noite.
Pousando o vaso, Tiaanet ficou onde estava um instante a mais para
mexer no arranjo de flores que havia dentro do objeto. Enquanto isso, sua
mente estava acelerada, tentando encontrar algum modo de acalmar a ira
que ela conseguia sentir irradiando dele como o calor de uma fogueira. Mas,
quanto mais demorasse, mais quente a ira ficaria. Por fim, ela virou-se para
ele, curvou-se e caminhou em direção ao porão.
Ela podia ouvi-lo andando atrás, o passo dele tão compassado e
tranquilo quanto o seu, embora a respiração dele fosse irregular e áspera. O
corredor que levava ao porão era mal iluminado; na pequena escada que ia
para baixo da casa a iluminação era ainda pior. No escuro, ele não podia ver
as suas mãos tremerem, mas ela sabia que ele sentiria seu medo mesmo
assim. Essa era a única coisa que ainda podia deixá-la com medo e ambos
sabiam disso.
Dentro do pequeno porão, uma lamparina solitária queimava
continuamente em uma prateleira repleta de potes fechados. O óleo da
lamparina tinha cheiro de hissopo, mas não era suficiente para mascarar o
odor de mofo que vinha do chão e das paredes de barro. O porão nunca se
secava de todo de uma estação de inundação para a outra; eles usavam o
espaço apenas para armazenar itens que eram à prova daquele cheiro. E os
itens que não eram considerados importantes, como a menininha
acorrentada à parede mais distante.
Sanfi entrou no porão atrás de Tiaanet e parou, estreitando os olhos. A
garota estava encostada à parede, a cabeça balançando, mas, no silêncio,
dava para ouvir seus murmúrios baixos, assim como o som das correntes em
seu tornozelo, chocalhando enquanto ela esfregava metodicamente a perna
contra a parede de pedra.
— Por que ela não está dormindo? — indagou ele.
Tiaanet engoliu em seco. Mas, antes que pudesse formular uma resposta,
Tantufi ergueu a cabeça. Ela se concentrou nas vozes deles com esforço,
piscando com grandes olhos remelentos.
— Sem sono — murmurou a menina. — Sem sono sono sono tanta
gente perto, tanta.
Sanfi flexionou o maxilar, cerrando os punhos. Ele deu um passo em
direção à garota, sua postura inteira advertindo sobre sua intenção. Tiaanet
rapidamente entrou na frente dele.
— É o hábito, pai — explicou ela. — Ela só está acostumada que os
guardas a mantenham acordada. Ela não entende que o senhor quer que ela
durma agora.
— Saia da minha frente — ordenou ele.
— Ela não vai conseguir evitar, pai, vai ter que acabar dormindo…
Ele ergueu a mão para afagar a bochecha de Tiaanet e ela se calou,
paralisada.
— Quero que ela durma agora — disse ele baixinho. — A magia dela
funciona igualmente bem se estiver inconsciente.
Não. Tiaanet fechou os olhos, ouvindo seu coração latejar em seus
ouvidos. Tão poucas coisas podiam machucá-la agora, mas contra essa ela
não tinha defesa. Deusa, por favor, não. Não posso suportar ver de novo
enquanto ele bate nela, a menina quase morreu da última vez, não. Hananja, por
favor me ajude.
Então, como que em resposta à sua prece, ela encontrou a solução.
— O senhor prometeu, pai — falou ela. Na quietude fechada do porão,
sua voz soou anormalmente alta, perigosamente áspera… muito semelhante
à da zhinha Iezanem. Ela o viu franzir o cenho em resposta a isso, viu a
raiva dele começar a se concentrar em um novo alvo.
Isso. Eu, não ela.
— O senhor prometeu que não ia machucá-la de novo depois da última
vez. — Ela ajeitou os ombros e ergueu o queixo. Era um dedo mais alta do
que ele e normalmente mantinha a cabeça baixa para evitar fitá-lo de cima
para baixo. Agora o fez de propósito, de um modo agressivo. — E eu não te
agradei naquela noite, pai? Eu não paguei bem o suficiente pela segurança
dela?
Ele arregalou os olhos, o corpo todo tenso com a fúria.
— Como ousa? — sussurrou ele.
— Se quer que ela durma, posso dar uma bebida de ervas — propôs a
moça. Deliberadamente, Tiaanet se aproximou dele, comprimindo-o,
olhando nos olhos dele. — Aí você pode ter a sua praga. Mas você não quer
que ela durma, não é? Você quer que ela morra. Você está tão bravo para
pensar neste exato momento, pai, porque Wanahomen roubou de você a
marcha sobre a cidade, mas por que isso te irrita tanto? Ele vai ser um bom
genro. Ele usa os outros e mente como você. Como você vai fazer se
machucar a Tantufi quando prometeu não fazer isso, ou nenhuma das suas
promessas na cama tem valor? Não me surpreenderia, nada mais do que
você faz na cama tem qualquer…
Foi quase um alívio quando a tempestade desabou. Ela estava ficando
sem opções para insultá-lo. Ele grunhiu, furioso, e bateu nela com tanta
força que ela girou e caiu em meio a vários sacos empilhados de areia branca
decorativa que deveria ser usada no jardim do átrio. Os sacos eram macios o
suficiente para evitar que ela quebrasse alguma coisa ao cair sobre eles, mas
perdeu a respiração, e entre isso e o golpe que ele deu, a visão dela ficou
turva por algum tempo.
Em meio à turvação, Tiaanet ouviu Sanfi gritando alguma coisa sobre
como ela era um veneno assim como a mãe, uma maldição sobre a linhagem
dele, uma maldição que ele não merecia. Ele agarrou o quadril dela e ela
esperou que a arrastasse para fora dos sacos, até o chão onde poderia
terminar de descarregar a raiva. Mas ele a deixou onde estava. Em vez disso,
ela sentiu a parte de trás do vestido sendo rasgada e as pernas sendo abertas.
Seguiram-se mais movimentos atrapalhados e tecido rasgado e então sentiu
uma nova dor atordoante, quatro vezes pior do que o golpe que ele lhe dera,
quarenta vezes pior do que a primeira noite em que ele entrara em seu
quarto, tantos anos antes que ela quase não se lembrava de nada, a não ser
da vergonha que sentira um dia. Havia potencial para sentir vergonha ali
também, e talvez um pouco de repulsa enquanto ele grunhia e gemia e se
esfregava nas costas dela, mas ela não sentiu nenhuma das duas coisas,
apesar da dor. A época em que sentira vergonha dele e de si mesma por ser
filha dele passara anos antes. Agora a única coisa que importava era que
fosse ela a suportar a dor, não Tantufi. Não Tantufi.
Felizmente, ele estava bravo demais para tentar agradá-la, como fazia
com tanta frequência para tentar aliviar a culpa. Isso fez com que fosse
rápido.
Quando terminou, ela esperou, ouvindo-o respirar e se recompor,
sabendo que os pedidos de desculpa não viriam agora. Durante algum
tempo, ele ainda a culparia por tê-lo provocado. Por fazê-lo machucá-la. No
máximo poderia se preocupar que ela fosse deixá-lo e então ela teria de
tolerar ser seguida pelos guardas dele aonde quer que fosse. Ele a advertira
desde a infância que mandaria assassinos para persegui-la se algum dia
tentasse fugir. Mas eles não usariam armas; ele autorizaria os métodos mais
lentos e brutais como presente de despedida para sua única e amada filha.
(Ela não temia aquele destino para si mesma. O que significava mais
dor? Mas ele faria aquilo com Tantufi também e isso ela não podia
suportar.)
Só mais tarde é que a culpa substituiria a raiva do pai e então ele pediria
desculpas que não queriam dizer nada, daria presentes que ela não queria e
faria mais promessas que nunca seriam cumpridas.
Depois de algum tempo, ele se levantou e saiu do porão. Tiaanet ficou
onde estava, sentindo a umidade resfriar em seu corpo, esperando os últimos
resquícios da dor desaparecerem da sua cabeça e das suas costelas e das
outras partes. Por um tempo, seu pensamento vagou, achando ter imaginado
o toque de dedos delicados em seus lábios e o suave tamborilar de lágrimas
em sua bochecha. Mas as lágrimas não podiam ser suas, já que não chorava
mais.
— Dorme — sussurrou uma voz em seu ouvido. — Dorme agora,
dorme. Vou ficar acordada por você. Segura segura segura. Dorme.
Tiaanet dormiu.
26

PROFESSORA

— Estou me perguntando — disse Mni-inh, falando devagar para deixar


evidente a sua raiva — se você perdeu o juízo.
Hanani, sentada ao lado da piscina de banho com as mãos cruzadas
sobre o colo, suspirou. Passara-se um dia desde a última discussão deles;
parecia que o tempo fizera pouco para acalmar as coisas entre eles.
— É o único jeito, Irmão.
Mni-inh estava sentado em uma pedra de frente para ela, onde estivera
trançando o cabelo até Hanani lhe contar o seu plano. Agora ele estava
seminu, o cabelo bagunçado, olhando para ela furiosamente.
— Isso, minha aprendiz, não é nem um pouco verdade. Você não tem
que ajudar o Príncipe de maneira alguma, menos ainda seguir com esse
plano ridículo de ensinar narcomancia para ele.
— Ele poderia enlouquecer…
— Deixe que enlouqueça.
Hanani fitou Mni-inh, chocada. Depois de um momento, Mni-inh
suspirou, esfregou o rosto e levantou-se para começar a andar de um lado a
outro.
— Hanani… — Ele chacoalhou a cabeça, frustrado. — Você diz que a
raiva não te dá consolo; tudo bem. Você é melhor Serva de Hananja do que
eu porque eu quero que ele sinta tanta dor quanto você sentiu.
Hanani franziu o cenho.
— O desejo de vingança é natural, Irmão, mas não há paz nele.
— Eu sei disso! Mas não consigo tolerar o que as maquinações daquele
chacal arrogante fizeram com você. Você não sorri mais. Você nem conversa
comigo sobre… sobre o que aconteceu. Existe um espaço entre nós agora
quando antes éramos mais próximos do que parentes de sangue.
Hanani suspirou e fechou os olhos, buscando calma. Ela não queria falar
sobre Azima, nem sequer queria pensar sobre ele. No entanto, Mni-inh
continuava trazendo o assunto à tona repetidas vezes, preocupando-se com
aquilo como uma criança com uma ferida meio cicatrizada. Não importava
que ela houvesse sofrido aquela ferida.
— Tudo isso é irrelevante, Irmão — afirmou ela quando se sentiu capaz
de falar em um tom neutro. — O que quer que o Príncipe tenha se tornado,
o Hetawa contribuiu para criar…
Mni-inh bufou, irritado.
— Wanahomen é irrelevante, Hanani. Nijiri é maluco de confiar nele e eu
não poderia me importar menos com o que acontece com ele!
A raiva estava voltando. Hanani cerrou os punhos sobre as coxas e rezou
para a Deusa fortalecê-la contra aquele sentimento.
— Ele é o motivo de estarmos aqui, Irmão. Ou você prefere que tudo isso
seja para nada? A dor que eu passei… — Agora a raiva foi ofuscada pela
repulsa e pela lembrança desagradável das mãos de Azima e pela lembrança
ainda mais desagradável de suas próprias mãos estraçalhando a alma dele.
Ela se concentrou em suas palavras. Palavras não podiam machucá-la. — A
vida que eu tirei. A raiva não me consola, Irmão. Mas saber que o que eu
suporto, o que eu faço, pode ajudar Gujaareh… sim, isso me consola.
Ajudar o Príncipe ajuda Gujaareh.
Mni-inh parara de andar de um lado para o outro para encará-la e,
enquanto ela observava, o rosto dele passou da tristeza para a raiva e para a
compreensão, depois voltou para a tristeza.
— Eu deveria ter protegido você — falou ele baixinho.
E assim Hanani entendeu por que ele estava tão irritado.
— O que aconteceu comigo não foi culpa sua — disse ela com o tom
mais suave que pôde.
— Eu estava a duas tendas de distância! Devia ter ouvido. Devia saber…
— Ele se calou, os punhos cerrados nas laterais do corpo.
Hanani se pôs de pé, foi até ele e pegou as mãos do mestre, olhando nos
olhos dele a fim de que visse que ela não o culpava.
— Faz alguns anos que saí da infância, Irmão. Você não pode me
proteger do mundo inteiro.
Ele a fitou com olhos cheios de arrependimento, levando uma das mãos
à bochecha dela de um jeito que não fazia há anos. Ele parara de fazer
aquilo na mesma época em que parara de abraçá-la e ela sentira uma falta
terrível das duas coisas desde então. Por isso se recostou na mão dele,
deixando que soubesse, sem palavras, quão grata ela estava pelo gesto, e ele
soltou um longo suspiro doloroso.
— Você é a filha que eu nunca soube que precisava — declarou ele
baixinho. — Ninguém pode amar tanto outra pessoa e ainda manter uma
paz perfeita no coração. Eu não deveria amar você como amo. Mas eu não
ligo, Hanani. Não ligo.
Nem eu, Irmão, pensou ela consigo mesma. Eu jamais poderia me
arrepender de amá-lo tanto quanto amo.
No entanto, Mni-inh falara a verdade. Como Compartilhadores, eles
haviam jurado devoção apenas aos requerentes e portadores do dízimo e
demais Servos no serviço à Deusa. O amor individual — a substância
egoísta e poderosa das famílias e dos amantes — interferia nessa devoção.
Então Hanani não falou nada, mas ergueu a mão para cobrir a dele.
Mni-inh sorriu, seu rosto amargo e sombrio.
— E aqui estou eu, aumentando o seu fardo — comentou ele. —
Enquanto você luta consigo mesma, precisa reservar um tempo para me
consolar. — Ele suspirou. — Me perdoe.
Ela chacoalhou a cabeça, sem vontade de falar. Mas algo dentro dela
relaxou só um pouquinho quando ele expressou com palavras a frustração
que ela vinha nutrindo há dias. Então se sentiu melhor quando Mni-inh
soltou uma longa e lenta respiração e a soltou.
— Treine o seu Príncipe — disse ele. — Se conseguir. Ele está velho
para isso e provavelmente muito inclinado à barbárie. Mas, se estiver
determinada a treiná-lo, vou ajudar você.
Ela conseguiu sorrir para ele.
— Obrigada, Irmão.
Ele aquiesceu, suspirando.
— Bom. Se você vai tentar enfiar magia na cabeça daquele tolo, vai
precisar de toda a sua força. Vamos ver se esses selvagens conseguem fazer
uma refeição decente.

***

Então mais tarde naquela noite, após uma refeição absolutamente deliciosa
na fogueira comunitária para aqueles que não tinham escravizador, Hanani
seguiu o jovem Tassa por uma longa trilha que era pouco mais do que uma
série de saliências vagamente conectadas ao longo da parede oriental do
Merik-ren-aferu. Tassa, nascido e criado para uma vida no cânion, subia as
pilhas de pedras e as encostas íngremes como um lagarto, rindo de Hanani
sempre que ela empacava ou tinha de parar e descansar. Mas ele não a
deixava, pelo que ela estava agradecida.
Durante um descanso, enquanto ela estava sentada em uma laje plana de
pedra e rezava para que as cobras e as aranhas ali embaixo ficassem onde
estavam, ele veio se sentar ao seu lado, os olhos brilhantes e curiosos.
— Por quê? — perguntou ele. — Ir, Wana. Você. — Ele apontou para o
alto da colina, que Hanani não conseguia ver; a lamparina que ela levava
difundia um círculo luminoso, mas para além dele havia escuridão. Ela só
podia ter esperança de que estivessem perto.
— Para ensinar para ele — respondeu ela, usando palavras simples. —
Sonhos. — Ela fez um gesto indicando o sono, pousando o rosto sobre as
mãos encostadas.
Ele franziu a testa ao ver isso, pensando.
— Porque… — Ele ficou procurando as palavras por um instante. — Ir,
Wana. Para, para Gujaareh. Você ensina sonhos, por quê?
Era difícil explicar. Mesmo se Tassa falasse gujaareen fluentemente, ele
era só uma criança. Mas ela vira o quanto era doloroso para o Príncipe
esconder sua herança gujaareen do menino. Então ela ergueu os dedos
diante dos olhos de Tassa, embora não os estendesse ao rosto dele.
— Posso?
Ele franziu a testa, muito parecido com o seu progenitor nesse momento,
mas finalmente a curiosidade venceu: ele fez que sim com a cabeça e fechou
os olhos. Hanani pousou os dedos nas pálpebras dele e teceu-lhe um rápido
e delicado sonho de ensinamento. Ela estivera no palácio Yanya-iyan
algumas vezes na vida, em geral como parte da procissão anual do Hetawa
na Hamyan. Ela mostrou isso para Tassa, passando no sonho pelos
reluzentes portões do palácio, entrando no vasto pátio e parando diante da
plataforma de onde tradicionalmente o Príncipe de Gujaareh observava a
celebração anual. Não havia nenhum príncipe na plataforma há dez anos,
mas Hanani vislumbrara o velho Príncipe, o pai de Wanahomen, uma vez
quando era criança. Então se baseou naquela lembrança para criá-lo, esguio
e orgulhoso e imóvel como uma estátua sobre o assento branco em forma de
ferradura que era seu trono, com a Auréola do Sol Poente dourada e âmbar
atrás e acima dele.
Depois aos poucos substituiu aquele Príncipe por outro: Wanahomen.
Ele estava sentado no mesmo trono, o rosto cheio de presunção e poder,
vestindo uma camisa de seda vermelha e um colarinho de placas de ouro,
um lenço vermelho na cabeça fazendo um retrato do rosto dele sob a coroa
de marfim semelhante a uma cúpula.
Quando ela encerrou o sonho, Tassa fitou-a, admirado.
— Wana?
Hanani sorriu e confirmou com a cabeça.
— Gujaareh é a cidade dos sonhos. Wana, ele precisa ter bons sonhos,
sonhos saudáveis, para nos governar. Para ser o nosso Príncipe. Você
entende?
Tassa franziu o cenho, mas não por não ter entendido, pensou Hanani.
Ele dobrou os joelhos e Hanani viu melancolia nos olhos dele.
— Príncipe aqui — falou ele em tom taciturno. — Líder de caça antes,
no governo de Unte, é líder da tribo depois de Unte. Mas…
Ele jamais poderia se satisfazer com isso, Hanani sabia. Ela viu essa nova
percepção nos olhos de Tassa e então se arrependeu de mostrar a verdade ao
menino. O Príncipe fora criado em meio a uma magnificência que nem a
mais rica tribo banbarrana poderia igualar. Tassa poderia ter aquela glória
também, como filho do Ocaso… mas só a um custo terrível. Yanassa
explicara: as crianças banbarranas pertenciam ao clã da mãe, com tias e avós
para ajudar a criá-las e tios para ensinar aos meninos os costumes dos
homens. Os homens banbarranos não tinham direitos sobre os filhos que
geravam, apenas sobre aqueles nascidos das mulheres da sua própria família.
Para dar a Tassa seu direito de nascença gujaareen, o Príncipe teria de
roubar dele seu direito de nascença banbarrano e toda a família que ele
conhecia e amava.
Quando eu voltar para Gujaareh, vou perder o meu filho. Recordando as
palavras do Príncipe, Hanani entendeu duas coisas ao mesmo tempo: que
Yanassa era generosa e valente de permitir que Tassa tivesse tanto contato
com o pai e que o Príncipe era menos egoísta e arrogante do que parecia.
Hanani suspirou e tocou a mão de Tassa.
— Meus pais me venderam quando eu era mais nova do que você —
contou ela. — Você tem muita sorte de ter pais que te amam tanto como os
seus.
O menino não entendeu, ela viu isso em sua expressão confusa. Mas
então ele arregalou os olhos e levantou-se de um salto e pegou um pedaço
de pedra lascada (uma faca caseira, percebeu Hanani enquanto se levantava
também) de uma das dobras de sua túnica. Ele se virou para ficar de frente
para uma parte escura da trilha fora do alcance da luz da lamparina, tenso e
trêmulo.
Mas era só o Príncipe que saía silenciosamente da escuridão. Tassa
conteve a respiração e relaxou com um alívio visível.
O Príncipe se aproximou deles com um olhar de divertimento enquanto
fitava a faca insignificante de Tassa. Ele falou alguma coisa em chakti e
Tassa se contorceu de vergonha e tentou guardar a faca. Mas, antes que
pudesse fazê-lo, o Príncipe tomou sua mão e agachou-se, tirando a faca dele
para examinar. O rapaz chacoalhou a cabeça, mas então seus olhos se
abrandaram ao contemplar Tassa. Ele levou uma das mãos à bochecha do
menino e, contra a sua vontade, Hanani não pôde deixar de se lembrar do
afeto da mão de Mni-inh.
Depois o Príncipe se pôs de pé e desamarrou uma das facas ao redor da
cintura. O cabo era de osso polido; a bainha, de couro lindamente
trabalhado. Ele desembainhou a lâmina por um momento e o brilho do aço
refletiu a luz. Em seguida, guardou-a de novo, enrolou as cordas com franjas
em volta do cabo e entregou-a a Tassa.
Tassa respirou bruscamente, pegando a faca com as duas mãos. Fez uma
pergunta em tom respeitoso; o Príncipe aquiesceu. Tassa, com os olhos
brilhando, tagarelou, balbuciou um agradecimento entusiasmado e quase
incoerente e depois saiu correndo para a escuridão, apertando a faca ao peito
e sorrindo como um pateta.
O Príncipe observou o menino ir embora, suspirando com força
suficiente para levantar o véu.
— A insensatez de Wujjeg vem a calhar. Mas Yanassa vai querer
conversar comigo.
— Uma faca é um presente perigoso para uma criança.
— É. Mas, entre os banbarranos, os meninos que querem ser guerreiros
normalmente ganham uma mais ou menos na idade dele. — Ele examinou
a faquinha de pedra, pouco mais do que uma pedra afiada, e depois a jogou
na escuridão. — E, se ele está tão determinado a ter uma faca, deveria ter
uma que não vá falhar quando ele precisar.
Ele parecia estranhamente sombrio; Hanani não conseguiu detectar nem
um pouco da cisma e do desdém de costume em seu comportamento. Ela
arriscou:
— Se é tradicional, então Yanassa…
— Yanassa quer que ele seja contador-mestre ou guardião de histórias ou
ferreiro. Qualquer coisa, menos guerreiro. Mas ele é meu filho, por mais que
ela possa se arrepender disso agora.
Ele entreouvira a conversa dela com Tassa, ela se deu conta. As pedras
ecoavam o som; em uma noite silenciosa daquelas, cada palavra devia ter
ficado clara.
— Bem, as crianças raramente crescem como seus pais gostariam —
continuou ele, movendo-se para se sentar de frente para ela, acomodando-se
o melhor que pôde contra a superfície inclinada de uma rocha. — Os seus
devem estar espantados com você.
Hanani cruzou as mãos sobre o colo.
— Os meus provavelmente não pensam muito em mim, se é que
pensam.
Ele hesitou.
— Você disse que eles te venderam.
— É. Eles eram da casta lavradora; certo ano, as nossas safras foram
perdidas. É dever de uma menina garantir o bem-estar da família em
tempos difíceis. Então eu pedi para eles me venderem.
Ele franziu a testa.
— Ouvi falar que essas coisas aconteciam entre os baixa-castas, mas…
Quantos anos você tinha?
— Eu tinha visto seis inundações do rio.
— Seis! — Ele chacoalhou a cabeça. — Você não tinha como saber o
que estava pedindo.
Ela encolheu os ombros. Não tinha, mas não importava mais.
— Por que o Hetawa? — perguntou ele. — Eles quase não precisam de
meninas… ou, pelo menos, esse era o caso antes de você. Com certeza seus
pais poderiam ter conseguido mais vendendo você para outra família da
casta lavradora que não tivesse filhas, ou para uma casa de timbalin, ou para
outro lugar.
Hanani observou a chama da lamparina dançar ao sabor da brisa gelada.
O movimento era quase tão hipnotizante quanto um feitiço para dormir.
— Foi escolha minha — falou ela. — O Hetawa sempre pareceu tão
magnífico para mim. Todos aqueles sacerdotes esplêndidos e sábios, e a
magia, e a chance de aprender tanto quanto eu quisesse… mesmo que só
por alguns anos, eu queria.
— E os seus pais fizeram o que te deixaria mais feliz, mesmo que isso
tornasse você menos valiosa para as necessidades deles. — Os olhos dele
sobre o véu a observavam constantemente.
Aquela ideia nunca tinha passado pela cabeça de Hanani. Para as
crianças adotadas pelo Hetawa, a Deusa Hananja se tornava mãe; os Servos,
pais; os outros adotados, um exército de irmãos. Acreditar naquilo, e
esquecer a família em que nascera, ajudara durante aquelas primeiras noites
solitárias e nostálgicas. Com o passar do tempo, tornara-se verdade. Mas
talvez ela também tivesse tido a sorte de ter pais que a amavam tanto que a
sua felicidade era mais importante do que os desejos deles.
Ela inclinou a cabeça para o Príncipe, grata pelo discernimento dele. O
rapaz pareceu nervoso por um breve instante, depois se empertigou.
— Vamos começar essa aula?
— Ah. Vamos. — Era uma transição brusca e chocante na conversa. Ela
jamais conhecera um gujaareen tão deselegante. Até os kisuati tinham mais
delicadeza. — Bem, posso examinar você?
Ele aquiesceu, e ela se levantou e foi até ele. Foi difícil para ela se
posicionar apropriadamente com as saias estorvando, mas conseguiu fazê-lo
pousando uma das mãos em seu ombro. Isso o fez fitar a mão dela com uma
expressão estranhamente pensativa nos olhos.
— Não ficou um hematoma — disse ele.
— O quê?
— O lugar onde o soldado kisuati me acertou. Você se ofereceu para me
curar aquele dia, se bem me lembro.
Hanani se esquecera. Aquilo a chocou, especialmente considerando que
ele tentara salvá-la naquele momento do mesmo tipo de tratamento que
Azima infligira depois.
Ela não podia, não iria, torturar-se com aquele pensamento.
— Feche os olhos — pediu ela. As palavras e o tom foram tão
desastrados quanto fora a tentativa dele de mudar de assunto, e sua voz
soara fria até mesmo aos seus próprios ouvidos. Os olhos dele se tornaram
igualmente frios em resposta. Mas, sem dizer mais uma palavra, ele recostou
a cabeça na rocha e fechou os olhos.
Há muita raiva em meu coração para isso, percebeu Hanani. Mas agora as
palavras estavam ditas e a aula, começada; ela não tinha escolha a não ser
prosseguir.
Então ela colocou os dedos nas pálpebras do rapaz e procurou a sua
alma. Havia camadas e camadas dele para vasculhar, não só carne, mas
constrições de vontade e emoção. Teria sido mais fácil se ela pudesse fazê-lo
dormir, mas era importante que ela o reconhecesse na vigília tanto como no
sonho… mais importante até, Mni-inh a advertira, porque era para o eu da
vigília que ela ensinaria, não importando o reino onde entrassem. Então ela
mergulhou na impetuosidade e na solidão e no orgulho e no protecionismo
dele e, quando adentrou no fluxo da grande artéria acima do coração,
encontrou a alma dele e em seguida…
O quê?
Alguma coisa se mexeu.
Em vez da escuridão atrás das pálpebras dele, ela se viu à deriva em uma
escuridão ainda mais profunda. Por um momento ficou desorientada, e
depois percebeu: não estava mais dentro do Príncipe. A conexão continuava,
ela viu: um fio brilhante em tom vermelho-sangue atravessava o espaço. O
fio dele, o umblikeh, que ligava a alma ao corpo. O de Hanani também
estava visível naquele lugar sem forma.
Ela não gostava da ausência de forma. Mas, no momento que lhe
ocorreu esse pensamento, o espaço ao seu redor se iluminou,
transformando-se no Salão de Bênçãos outra vez. Todo cinzento.
O reino intermediário. Alarmada, Hanani virou-se para as alcovas do
Salão, onde antes avistara — ela agora sabia — a força que matara
Dayuhotem. Mas não havia nada lá. Aliviada, voltou para a estátua de
Hananja e para a plataforma e viu a si mesma, outra dela, vestida com roupas
volumosas que inflavam com um vento que não se sentia.
Ajoelhada aos pés da Deusa e usando uma faca, a faca que o Príncipe
acabara de dar ao filho, para furar repetidamente uma figura minúscula
diante dela, que já estava em um estado irreconhecível de profanação
vermelha.
Hanani gritou. A outra Hanani parou, fitou-a e sorriu entre lágrimas e
salpicos de sangue.
Não! Eu nunca! Desvairada, Hanani agarrou o próprio fio e…
… Voltou para dentro de si mesma de forma tão rápida e tão intensa que
se afastou bruscamente de Wanahomen com um arquejo.
Ele abriu os olhos, surpreso e confuso.
— O que foi?
— Eu… eu não… — Ela estava desorientada, letárgica; não conseguia
organizar os pensamentos. Será que ele não tivera aquela visão de horror?
Será que não tinha nenhuma lembrança dos próprios sonhos? — Não sei.
Eu estava…
— Pelos deuses, você está cambaleando como um bêbado. — O Príncipe
estendeu as mãos para firmá-la, pondo uma das mãos na cintura e outra na
coxa.
Na coxa, como as mãos de Azima…
O pânico tomou conta dela antes que ela pudesse pensar.
— Não me toque! — Sua voz era quase ininteligível, um grito com
palavras, e ela se agitou e chutou para se afastar dele. Tropeçando nas saias,
ela caiu no meio das pedras e da poeira, ofegando e arquejando e tremendo
tanto que mal conseguia respirar. Ela continuou a se arrastar, apoiada nas
mãos e nos joelhos, parando apenas quando chegou a uma grande laje que
bloqueava a trilha.
Seguiu-se um longo silêncio atrás dela e, naquele silêncio, o pavor de
Hanani começou a passar.
— Não vou tocar em você — assegurou o Príncipe. Ele falava em um
tom suave, a voz baixa. — O que devo fazer para ajudá-la? Eu poderia ir
buscar o seu mentor, mas isso significa deixá-la aqui sozinha.
Ela começara a recobrar o controle de si mesma. Os tremores foram se
acalmando enquanto ela se levantava devagar, procurando por dignidade
enquanto se virava para encará-lo.
— N-não — disse ela. — Sinto muito. Eu, eu não sei por que… — Ah,
mas ela sabia o porquê. Os dois sabiam. — Me desculpe.
— Entre todas as pessoas, você não deveria pedir desculpas para mim —
falou ele. Só mais tarde é que ela pensaria nas palavras dele ou reconheceria
arrependimento nelas. — É seguro aqui, Compartilhador-Aprendiz. Não
vou permitir que mais ninguém a machuque, nunca mais.
Incrivelmente, impossivelmente, aquelas palavras de fato a
reconfortaram. Não deveriam. Ela não tinha nenhum motivo para confiar
nele. No entanto, o fato de ele ser o único homem ali e não ter feito
nenhum movimento para voltar a tocar nela tinha o seu próprio poder,
embora sem palavras, e ela ficou mais calma. Ele se calou então, o que
ajudou mais ainda: ela podia fingir que ele não estava ali e procurar paz
dentro de si mesma. Dessa forma, por fim ela respirou fundo e mudou de
posição para se sentar sobre os joelhos.
— Acho que deveríamos terminar a aula por aqui esta noite — declarou
ela, enunciando com cautela.
O Príncipe viera agachar-se perto da lamparina esvaecente. Ele
aquiesceu. Para alívio dela, ele não perguntou outra vez sobre a estranheza
que ela encontrara nos sonhos dele, nem se estava bem.
— Deixe-me acompanhá-la de volta.
Ela anuiu, levantando-se. O Príncipe pegou a lamparina e chegou perto
o bastante para que ela pudesse ver através da luz, mas não perto o suficiente
para tocá-la. Ela não olhou para ele. Em silêncio, ele a conduziu de volta ao
acampamento.
27

SONHANDO ACORDADO

Havia uma sensação estranha no ar noturno. O Coletor Inmu notou


enquanto saltava de um telhado para outro no caminho de volta ao Hetawa.
Se o telhado fosse uma daquelas monstruosidades inclinadas preferidas
pelos zhinha e por outros com gostos estrangeiros exóticos, Inmu teria
acabado contando os ossos em uma viela lá embaixo. Felizmente, o telhado
era plano. Inmu pousou de mau jeito, rolando uma vez para dissipar a força
do impacto, mas ileso, só o orgulho ferido.
Seu orgulho tomou outro golpe quando olhou para cima e viu o vulto
estático do Coletor Nijiri à sombra da cisterna do telhado.
Constrangido, ele se pôs de pé. Mas, para seu alívio, Nijiri não o
repreendeu por sua falta de jeito. Na verdade, embora houvessem
combinado de se encontrar ali no final de suas rondas, Nijiri não parecera
notar Inmu. Quando Inmu se aproximou, viu que Nijiri estava totalmente
imóvel, uma das mãos apoiada na cisterna, o olhar voltado para dentro e
uma expressão em parte de raiva, em parte de medo fixa no rosto.
Talvez Nijiri nunca conheça a verdadeira paz, o mentor de Inmu,
Rabbaneh, dissera-lhe certa vez. Ele tem paz suficiente para seus requerentes,
mas acho que talvez jamais encontre o que precisa para ser feliz. Em todo caso,
não aqui no Hetawa.
Às vezes perturbava Inmu pensar que um de seus Irmãos sofria tanto.
Todos eles sabiam por quê: Ehiru. Todavia, Nijiri era um Coletor perfeito
em todos os outros sentidos: rápido e silencioso na caçada, mortal no
combate, delicado ao coletar o dízimo. Será que era o seu pesar prolongado
que o tornava tão competente? Inmu não fazia ideia, mas decidira estudar o
irmão até encontrar um modo de ajudá-lo.
Então se aproximou ainda mais, entrando na sombra com ele.
— Nijiri-irmão?
Nijiri ergueu a cabeça de forma brusca e, por um instante, Inmu temeu
que seu irmão fosse atacá-lo. Então a expressão desvairada e defensiva
desvaneceu de seus olhos.
— Inmu, está sentindo isto?
A estranha sensação de pressão preenchendo a noite ao redor deles; era o
que Inmu notara durante o salto. Pareceu ofuscar até a luz colorida da Lua
dos Sonhos.
— Estou — respondeu Inmu, franzindo a testa. — Mas não sei o que é.
— Pensei… — Nijiri hesitou, engoliu em seco. Quando os olhos de
Inmu se ajustaram à escuridão, viu que o rosto de Nijiri estava transpirando
de suor. — Por um momento… Sonta-i está morto, não está? Nós o
queimamos… — Ele fechou os olhos e estremeceu.
Alarmado, Inmu tocou delicadamente o ombro de Nijiri.
— Irmão, você está bem? — Ele tentou se lembrar da última vez que
Nijiri passara por um pranje, o ritual de purificação e reafirmação exigido
anualmente de todos os Coletores. Espere, sim: Nijiri colocara-se em
isolamento em pleno verão, apenas alguns meses antes. Cedo demais para
precisar de outro. Mas o que mais poderia estar causando essa agitação?
De repente, Nijiri olhou para cima.
— Não, não sou um tolo cegado pelas lembranças. Isso é algo diferente.
— Ele se afastou da mão de Inmu e foi até a beira do telhado, estreitando os
olhos. — Inmu. Venha ver.
Mais confuso ainda, Inmu aproximou-se para ficar ao lado de Nijiri,
seguindo o rumo para o qual o irmão apontava com a mão. Pela janela, eles
podiam ver um casal na cama, dormindo. A mulher chorava enquanto
dormia, a voz fraca, porém audível na quietude da noite. O marido se
revirava e se debatia como se estivesse lutando contra um inimigo invisível.
Enquanto os Coletores observavam, ele gemeu e fez um movimento
abrupto com um braço, atingindo a mulher adormecida. Ela não acordou,
apenas continuou produzindo aqueles sons patéticos e entrecortados.
Inmu franziu o cenho. Nijiri fez uma carranca, a angústia anterior já
desvanecida; agora o frio e mortal Nijiri voltara.
— Há algo de errado nisso — comentou ele.
Talvez eles apenas tenham sono pesado, Inmu pensou em dizer. Mas não
disse porque o tom agourento das palavras de Nijiri o havia assustado… e
porque temia que Nijiri pudesse estar certo. Ele não podia dizer como, mas
tinha a mesma sensação imprecisa de algo errado quanto ao casal
adormecido.
Então se lembrou da mulher cujos sonhos haviam matado Sonta-i. Anos
de treinamento o impediram de arquejar em voz alta, mas, quando olhou
para Nijiri, ele aquiesceu.
— Precisamos ajudá-los — sussurrou Inmu. Enquanto falava aquilo,
sentiu um aperto de desespero na barriga. Sonta-i já provara que não havia
nada que eles pudessem fazer. E Nijiri chacoalhou a cabeça, embora Inmu
visse a mesma frustração nos olhos do irmão.
— Há algo a mais nisto — comentou Nijiri. — Essa sensação estranha,
a luz, o sabor do ar. Quase me esqueci desde que me tornei Coletor, mas
reconheço agora… sinto como se eu estivesse sonhando.
E Inmu percebeu que Nijiri estava certo. Fazia oito anos que Inmu era
um Coletor pleno, percorrendo as extremidades de Ina-Karekh somente
com a ajuda dos portadores do dízimo, mas ainda não se esquecera de como
era sonhar por conta própria. Havia momentos em que a terra dos sonhos se
parecia tanto com a vigília que o único modo de saber a diferença era o
instinto. Era isso o que ele sentia agora: o sutil sussurro de sentidos além
dos físicos advertindo-o da irrealidade.
— Nós estamos sonhando? — perguntou Inmu.
— Espero que não — respondeu Nijiri, apontando para o casal com a
cabeça. — Ou é só uma questão de tempo até que seja lá o que tenha
matado Sonta-i nos leve.
O irmão Rabbaneh ficaria muito irritado se o deixássemos como o único
Coletor, pensou Inmu, depois teve de conter o vão impulso de rir. Outro
som no limiar de sua audição apagou a leveza momentânea.
Ele se levantou e atravessou o telhado até a beirada oposta. A luz da Lua
estava mais forte aqui, então ele conseguiu ver a fonte do problema com
clareza: um jovem não muito mais velho do que ele próprio, encolhido em
um degrau, dormindo. Pela vestimenta e pelo cobertor surrado que o cobria,
Inmu desconfiou que o homem fosse um servo passando a noite do lado de
fora como punição por algum erro. Embora os degraus da casa não
pudessem ser confortáveis, ele caíra no sono e também se mexia, inquieto,
gemendo nas profundezas de um pesadelo.
— Não estou gostando disso — falou Nijiri. Inmu sobressaltou-se; Nijiri
aproximara-se de forma tão silenciosa que Inmu não notara.
— O sonho passa por proximidade — disse Inmu, preocupado. — Nós
já vimos isso. O mercador Bahenamin teve, depois a mulher, depois a serva.
E outras vítimas moravam na mesma casa ou em casas adjacentes. Qualquer
um que durma enquanto um portador dorme por perto.
Nijiri aquiesceu.
— Parece que estamos testemunhando outro surto. — Ele soou sombrio
ao dizer aquilo. Os Compartilhadores haviam coletado todas as vítimas da
praga que haviam encontrado, isolando-os no Salão de Cuidados
Temporários. Eles não podiam fazer nada para ajudar as vítimas, mas
haviam se consolado com o conhecimento de que, quando aquelas pobres
almas morressem, não haveria outras. Agora parecia que os
Compartilhadores seriam privados até desse pequeno conforto.
Mas alguma outra coisa no que haviam visto perturbava Inmu.
— Irmão — falou ele —, nós achamos todas as vítimas antes. Os
Sentinelas trouxeram todos os que sofriam do sonho, e todos os que tinham
tido contato com eles, e todos os que poderiam ter tido. Trouxeram algumas
pessoas mesmo contra a vontade delas. — Inmu e alguns dos
Compartilhadores haviam acompanhado os Sentinelas nessas viagens.
Parecia errado usar feitiços de sono como armas, especialmente
considerando a possibilidade de que alguns dos que eles estavam fazendo
dormir jamais acordariam, mas manter a paz muitas vezes exigia atitudes
dolorosas. — Nossos confrades Sentinelas foram tão minuciosos que não
consigo ver como eles deixaram alguém de fora.
— Devem ter deixado. E existe um problema maior: onde está a fonte
desse sonho ruim, Inmu? Ninguém nunca descobriu.
Enquanto Inmu refletia sobre o assunto, outro som estranho chamou a
sua atenção e a de Nijiri. Uma voz de mulher? E mais alguma coisa, esta
mais alta do que o resto, e familiar: rodas de carruagem batendo na pedra.
— É tarde para viajar — comentou Nijiri.
— Alguém voltando para casa depois de visitar o amante ou um bar. —
Inmu deu de ombros.
Nijiri girou sobre os calcanhares onde estava agachado, seguindo o som.
— Você ouviu de que direção veio?
— De lá — apontou Inmu, e ficou surpreso de perceber que estava
apontando para o próprio Hetawa. Para a rua que passava ao lado do
Hetawa, especificamente, perto do muro leste do complexo.
Mas por que isso fizera Nijiri franzir o cenho de maneira mais
acentuada?
— Veio de lá — murmurou Nijiri, quase que para si mesmo. — Não das
ruas em volta, onde estão as casas. Havia silêncio, e então nós ouvimos a
carruagem andar…
De repente, ele ficou tenso, arregalando os olhos de horror.
— Indethe… — E antes que Inmu pudesse perguntar qual era o
problema, Nijiri saiu em disparada. Ele passou por cima da parede baixa do
telhado e já estava quase no chão antes que Inmu pudesse organizar seus
confusos pensamentos. Quando Inmu chegou ao chão também, Nijiri havia
desaparecido após virar a esquina.
Perguntando-se outra vez se o irmão mais velho estava completamente
são, Inmu correu atrás dele. Mas Nijiri já sumira em meio às ruas estreitas;
até o som de seus passos desvanecera.
Mas o barulho da carruagem não estava muito longe. Inmu hesitou,
depois virou na direção do ruído e avançou em uma trajetória que cruzaria
com ela. Enquanto corria, aproximando-se do tinido das rodas sobre o
pavimento, ouviu a voz da mulher outra vez. Cantando.
Logo à frente agora. Ele chegara a um cruzamento de ruas; a carruagem
passaria pela avenida à sua frente a qualquer momento.
— Deusa, minha doce Deusa, não… — A voz de Nijiri, alçada a um
volume bastante perturbado, ecoou pelas ruas vazias. Assustado, Inmu
derrapou até parar. — O que…?
A carruagem — simples, de duas rodas, puxada por um homem forte da
casta servil que portava armas suficientes para deixar claro que era um
guarda também — passou na rua à frente de Inmu. Era aberta, embora um
mosquiteiro atrapalhasse qualquer visão clara dos seus ocupantes. Em uma
cintilação fortuita da luz da Lua e uma brisa que moveu o fino tecido para o
lado, ele teve um vislumbre de movimento e então avistou o rosto de uma
mulher, virando-se quando percebeu sua presença. Eram os olhos mais
lindos que ele já vira: pretos como o lado escuro da Sonhadora, cativantes
como uma pedra jungissa.
E tristes. Tão terrivelmente, dolorosamente tristes que Inmu quis ir até
ela oferecer algum consolo se ela desejasse a fim de tirar aquela expressão de
seu rosto. Ele a Coletaria, se ela quisesse, ou apenas a abraçaria, porque
jamais vira alguém carregar tanta amargura e desespero sozinho. Não
carregar e continuar vivendo, pelo menos.
Então algo se mexeu nos braços da mulher. Uma criança, ele se deu
conta, embora tivesse apenas o mais efêmero vislumbre. Cinco ou seis
inundações de idade, mole de sono. A expressão nos olhos da mulher
mudou. Agora Inmu viu afeto nela e uma ternura tão profunda que os olhos
dele se encheram de lágrimas. Ela recuou para as sombras por trás da
cortina, aninhando a criança no seu peito. Quando a carruagem passou,
virando em uma esquina para se dirigir a uma das pontes, ele ouviu a voz
dela se erguer de novo, cantando aquela mesma cantiga suave que
entreouvira antes. Uma canção de ninar.
Desejando algo de que nunca sentira falta antes, Inmu ficou olhando na
direção por onde seguira a carruagem pelo intervalo de cinco respirações
inteiras antes de se lembrar de Nijiri.
Virando-se de volta para o Hetawa, Inmu correu até alcançar a rua ao
lado do muro leste do complexo. Encontrou seu colega Coletor encostado
ao muro, a cabeça curvada e os ombros agitados e os punhos cerrados contra
a pedra antiga como se de algum modo pudessem empurrá-la para um lado
apenas com a força de vontade.
— Irmão! — Ele correu para o lado de Nijiri. — Nijiri-irmão, o que em
nome das sombras…
— Aqui! — Nijiri virou-se para Inmu e segurou-o pelos ombros; seus
olhos estavam desatinados. — Era aqui. Tem que ser a fonte, as pessoas
estão pegando agora, a fonte! Estava estacionada aqui, esperando aqui, sabe o
que isso significa? — Ele apontou um dedo para a parede. — Olhe!
Inmu olhou sem entender e viu o muro.
— É só o muro leste, Irmão. Eu não…
E então, de repente, terrivelmente, ele compreendeu.
Cada grupo dentro do Hetawa tinha seu setor do complexo. O norte
pertencia aos Sentinelas e abrigava o Salão das Crianças. O oeste era o
Salão dos Coletores, onde eram dadas as aulas de narcomancia. O sul era o
Salão das Bênçãos e o complexo de escritórios, bibliotecas e salas de aula
usados pelos servos leigos do Hetawa, pelos Professores e pelo Superior.
O leste continha o aglomerado de edifícios que abrigavam os que
seguiam o caminho dos Compartilhadores.
A fonte, dissera Nijiri. A fonte da praga do pesadelo. Estivera estacionada
perto do Salão dos Compartilhadores a noite inteira enquanto eles dormiam.
— Não — sussurrou ele. O Coletor não conseguia pensar. Mal conseguia
respirar. — Não.
Então Inmu se lembrou da carruagem e da mulher. Cantando sua canção
de ninar.
Ele se soltou de Nijiri e desceu a rua às pressas, correndo o mais rápido
que podia, sem se preocupar com o barulho que fazia ou com a perturbação
de seus movimentos. De que importava que as sandálias batessem no
pavimento, que ele estivesse chorando enquanto corria? Ninguém nas casas
à sua volta jamais acordaria.
Ele chegou à rua onde vira a carruagem pela última vez e parou,
tentando desesperadamente acalmar sua respiração ofegante para poder
ouvir e localizar as rodas da carruagem.
Mas, ao seu redor, só havia silêncio.
28

MISERICÓRDIA

Logo após o amanhecer, Hanani foi à tenda de Mni-inh e sentou-se. Ele,


que acabara de acordar e ainda tinha a vista embaçada, deu uma olhada no
rosto dela e acordou por completo.
— O que aconteceu?
Hanani contou a ele sobre a primeira aula do Príncipe, embora tenha
omitido o momento de pânico que se seguiu. Quando falou sobre ter sido
jogada no reino intermediário e sobre a visão de si mesma cometendo uma
violência, Mni-inh arregalou os olhos.
— Era uma criança — disse ela, as mãos contorcidas no colo. — Um
bebê ou uma criança mais velha bem pequena. Eu jamais machucaria uma
criança, Irmão. Sei que as coisas em Ina-Karekh são reflexos de nós
mesmos, mas o que vi não era em Ina-Karekh. Estávamos no reino entre o
sonho e a vigília. Você já ouviu falar sobre isso antes?
— Não exatamente. — Ele coçou o queixo, onde um punhado disperso
de pelos firmes crescera da noite para o dia, fazendo um barulho alto. — O
que você vivenciou parece uma visão verdadeira, uma visão de algo que vai
de fato acontecer — Hanani sentiu um aperto ainda mais forte no
estômago, mas Mni-inh logo chacoalhou a cabeça —, mas nunca ouvi falar
disso acontecendo no reino intermediário. Só a Deusa pode criar mundos,
seja na vigília ou no sonho. O reino intermediário é misterioso, mas deveria
estar vazio. — Ele suspirou. — Mas condiz com uma coisa da qual eu
suspeitei.
— Que é?
— Bom… — Ele se recostou nas almofadas, uma expressão meio
pesarosa no rosto. — Ouvi dizer, de uma forma indireta, que existe um
motivo pelo qual o Hetawa apoiou a Linhagem do Ocaso por tantos anos.
O Rei Eninket não foi o primeiro a desgraçar a família, afinal: eles são
homens, com as mesmas fraquezas e falhas que qualquer outro. Mas tem
algo a ver com eles, com essa linhagem em particular.
— Por quê?
— Não sei. — Ele deu um sorriso amarelo. — Há segredos a que só o
Conselho e os Coletores têm acesso e… Bem, você sabe o que os outros
seniores acham de mim. — Ele suspirou. — Mas me contaram, anos atrás,
que ninguém ficou surpreso ao descobrir que Ehiru, que foi dado ao Hetawa
pela mãe para salvá-lo de Eninket, revelou-se um dos narcomancistas mais
poderosos na memória recente. E eu acho interessante que Nijiri, que foi
uma das principais vozes aconselhando a conciliação com os kisuati durante
todos esses anos, mudou de opinião quando Wanahomen começou sua
campanha.
E o Coletor Nijiri ficara particularmente interessado ao ver que
Wanahomen tentara salvá-la, lembrou-se Hanani. Talvez valesse a pena
salvar a sua linhagem, afinal.
— Também acho interessante — continuou Mni-inh — que todos os
Príncipes que já tivemos… todos, até onde posso dizer… tinham o dom do
sonho em alguma medida.
Hanani piscou.
— Até o Rei Eninket?
— Ah, sim. O dom dele era fraco, mas estava lá. E um punhado deles,
inclusive o Primeiro Rei Mahanasset, eram bastante poderosos e doidos de
pedra antes de o Hetawa ajudá-los. Pegamos alguns desses, como Ehiru,
para nós… mas não todos. Você fique de olho nesse Wanahomen. — Ele
sacudiu um dedo para ela. — Ele disfarça bem e pode até nem ter
consciência de estar disfarçando. Mas, com um dom desses, a alma dele
deve andar entre a vigília e o sonho o tempo todo. Ele não consegue evitar.
Hanani alisou rugas invisíveis em suas saias, pesando. Sentia-se mais
calma, pelo menos.
— Não acho que o que eu vi foi uma visão verdadeira — pontuou ela. —
Só os Coletores têm essas visões.
— Ele é um Coletor, Hanani, em essência. Por mais que ele odeie. —
Enquanto Hanani piscava, Mni-inh sentou-se e espreguiçou-se,
massageando as torções causadas pelo descanso noturno. — E, ao tocar os
sonhos do Príncipe, você pode ser arrastada pelo poder dele, então tenha
cuidado. Sinceramente, é por esse motivo que cada caminho treina os seus
próprios membros. — E foi por esse motivo que tentei te alertar para não o
treinar, ele não falou, mas essa discussão estava encerrada. Para manter a
paz, ele não a traria à tona outra vez, algo pelo que Hanani ficou agradecida.
— Mantenha o seu nome de alma e a sua astúcia por perto e esteja
preparada para qualquer coisa.
Enquanto Hanani refletia sobre isso, Mni-inh se levantou.
— Como sinto falta dos banhos do Hetawa! Os deuses colocaram água
quente e óleos perfumados neste mundo por uma razão, estou te dizendo.
Hanani não pôde deixar de sorrir ao ouvir o comentário… o que a
surpreendeu, porque não sentia vontade de sorrir há dias. A culpa
onipresente permanecia e talvez sempre permanecesse, pois ela tirara uma
vida sem conceder paz e não havia pecado maior em toda a fé hananjana.
No entanto, o medo irracional parecia ter enfim desvanecido.
Tenho que agradecer ao Príncipe por isso, imagino. Os deuses não deixam de
ter um senso de ironia…
— Já tomei banho, Irmão, me perdoe por não o acompanhar — disse ela,
levantando-se também. — Preciso descansar, já que parece que dar aula ao
Príncipe vai ser mais desafiador do que eu pensei a princípio. Mas posso vir
depois e compartilhar a dança do fim de tarde com você?
Mni-inh parou e encarou-a, então um vagaroso sorriso se abriu em seu
rosto.
— Eu ficaria encantado — respondeu ele. — Não rezamos juntos há
muito tempo. Até o pôr do sol, então.
Hanani tocou a mão do mestre ao passar por ele para sair. Ele segurou a
mão dela e apertou-a, encorajando-a, antes de soltar. Foi bom sorrir de
novo, então ela sorriu o caminho todo de volta para a sua tenda.

***

Uma mudança no som ambiente do acampamento acordou Hanani. Tirada


de um sonho agradável com um banho quente com cheiro de sândalo do
Hetawa, ela voltou ao reino da vigília e ouviu, através das paredes de sua
tenda…
Gritos raivosos. Chamados: por Unte, por Tajedd, por outras pessoas
importantes da tribo. Zombarias e risadas com uma ponta de ódio. E
corrupção.
Alguém tamborilou a aba de sua tenda. Levantando-se para abri-la (ela
sempre mantinha as cordas bem amarradas agora), ela piscou quando
Yanassa enfiou a cabeça para dentro.
— Você ainda está aí? Ótimo. Fique aí até amanhã. — A expressão da
mulher banbarrana estava atipicamente dura e fria. — Wana pegou um
espião.
Hanani sobressaltou-se.
— Achei… achei que a patrulha dele fosse uma punição, que fosse só de
fachada.
— Talvez essa fosse a intenção. Mas ninguém esperava que um shadoun
fosse tão audacioso a ponto de entrar no nosso território. — Ela chacoalhou
a cabeça, depois fechou a aba da tenda de Hanani com tanta força que fez
um barulho alto, para grande surpresa de Hanani. — Eles vão pagar por
esse desrespeito!
Cautelosamente, Hanani abriu a aba e deu uma espiada do lado de fora.
Mais adiante de Yanassa, ela pôde ver uma grande aglomeração de pessoas
perto do centro do acampamento, uma massa que gritava e gesticulava.
Crianças passavam correndo e rindo, entusiasmadas. Duas delas levavam
varetas.
Hanani sentiu um súbito e terrível calafrio.
— Yanassa, o que vai acontecer com esse shadoun?
— Nada de bom. — De repente, Yanassa ficou séria, olhando firme para
ela. — Mas isso não diz respeito a você. Apenas fique na tenda até de
manhã e não preste atenção no que ouvir. — Ela estendeu a mão para fechar
a tenda outra vez.
Hanani segurou a mão dela.
— O que você está dizendo? Vai haver violência? — Essa era uma
pergunta boba; a violência pairava como uma onda de calor no próprio ar.
— Yanassa…
No plano de fundo, a multidão se afastou por um momento e Hanani
teve um vislumbre do espião shadoun.
Da espiã shadoun.
Foi difícil de distinguir a princípio. Hanani estava acostumada a ver
mulheres enfeitadas com joias e o rosto pintado; esta não tinha nenhuma
dessas coisas. Como os homens banbarranos, ela usava túnicas de deserto
largas e um lenço na cabeça, que ocultavam muitos dos detalhes do seu rosto
e do seu corpo. O lenço fora parcialmente arrancado, revelando um cabelo
preto liso cortado curto e um rosto que não era muito diferente de um
banbarrano típico. Suas feições eram mais arredondadas; seus olhos, de uma
cor mais clara, um verde pálido, nesse caso; e sua pele, de um tom mais
escuro de marrom, mais semelhante ao dos habitantes do oeste. Mas tinha a
mesma arrogância ferrenha.
E sorria, mesmo enquanto era arrastada por dois guerreiros do grupo de
caça de Wanahomen.
Mas isso não causava nem metade da perturbação provocada pela
sombria antevisão no comportamento de Yanassa.
— Me diga o que vocês pretendem fazer com ela! — exigiu Hanani.
Yanassa fez cara feia e finalmente entrou na tenda, fechando a aba depois
de passar.
— Não depende de mim… ou, pelo menos, não só de mim. O grupo de
caça vai entregá-la para Unte. Unte provavelmente vai dá-la para a tribo.
Especificamente, para as mulheres da tribo. Cabe a nós decidir o destino de
outra mulher. — Ela cruzou os braços. — Algumas de nós estão com raiva
suficiente para despedaçá-la com as próprias mãos ou jogá-la das colinas,
mas o mais provável é que a gente a dê de presente para os homens da tribo.
Eles vão garantir que ela sofra tempo suficiente para satisfazer todos.
Hanani a encarou, revoltada demais para falar.
Yanassa suspirou e desviou o olhar por um momento, uma ponta de
vergonha nos olhos… mas estava brava também, e foi a raiva que a fez
voltar a encarar Hanani de modo desafiador.
— É o que eles fazem com as nossas mulheres quando podem!
— E por isso é certo?
Yanassa chacoalhou a cabeça, não em resposta à pergunta de Hanani,
mas por alguma grande turbulência interna.
— A última mulher sobreviveu, se é que dá para chamar de
sobrevivência. Os shadoun a mandaram de volta. Destroçada,
balbuciando… — Ela cerrou os punhos. — Na verdade, nós a levamos para
o seu povo em busca de ajuda, embora fazer isso quase nos sufocasse. E eles
tentaram por pura gentileza. Mas ela estava quebrantada além do que a
habilidade da magia podia consertar… Eles podiam curar o corpo dela, mas
não a mente. Então eles a mataram para nós, como um ato de misericórdia.
E nós ficamos felizes por isso. — Os olhos de Yanassa se encheram de
lágrimas; a tristeza e o ódio competiam em seu rosto com um resultado
misto e feio. — Isso foi vinte anos atrás, minha tia-avó. Eu me lembro da
expressão nos olhos dela, ratinha, e se você a tivesse visto também… — Ela
respirou fundo. — Então não, não está certo. Mas eu não me importo.
Hanani estremeceu, apesar de não estar frio dentro da tenda. Ela já vira
pessoas tão machucadas por uma tragédia ou outro infortúnio um punhado
de vezes durante sua vida no Hetawa. Quando a loucura não era congênita
nem era resultado de algum desequilíbrio humôrico, quando o problema
eram as lembranças e não a carne que as abrigava… Não, nem mesmo a
magia podia fazer muita coisa. Era por isso que existiam os Coletores.
Contudo, ao olhar para os lábios trêmulos de Yanassa, para o seu maxilar
cerrado, ocorreu a Hanani que às vezes o verdadeiro dano não era às almas
libertas, mas aos que ficavam para chorar a sua morte. Afinal, a corrupção
era a mais virulenta das doenças e precisava apenas da menor ferida para
infeccionar.
— Então fique aqui — disse Yanassa. Seu rosto suavizara um pouco. —
Unte e Tajedd pretendem interrogá-la primeiro. Eles ainda podem matá-la
de cara, mesmo que seja porque qualquer coisa pior estragaria as celebrações
do solstício.
Ela saiu da tenda e Hanani ficou olhando para as abas que balançavam
por um longo instante depois de sua saída.
Depois ela própria passou pelas abas e foi direto para a tenda de Unte.
29

OS PROTETORES

O pássaro mensageiro fora e voltara, um arauto da mudança. Agora essa


mudança estava nos portões do palácio e Sunandi estava com medo.
Anzi pôs uma das mãos em seu ombro enquanto esperavam no pátio. O
pátio estava quieto, embora Sunandi e Anzi houvessem visto, ao atravessar o
palácio, cortesãos e guardas passando apressados pelos salões de mármore
para se prepararem para os hóspedes inesperados. Apenas os servos, que
eram gujaareen em sua maioria e não haviam ficado impressionados com a
chegada de ainda mais kisuati, estavam calmos enquanto cuidavam de seus
deveres. Alguns dos kisuati haviam parado para fazer uma mesura para
Sunandi e Anzi ao passar, mas a maioria não prestara atenção ao casal. Sem
dúvida consideravam Sunandi inútil para quaisquer que fossem as suas
ambições políticas agora que chegava um quarteto de Protetores para tomar
o controle de Gujaareh.
— Você não sabe o que eles vão fazer — murmurou Anzi. Ela olhou
para ele, mais agradecida do que poderia ser expresso em palavras por
haverem resolvido suas diferenças após o incidente seis dias antes. Mas ele
ouvira quando ela o aconselhou a não ir prender de imediato o Coletor
envolvido. Em vez disso, ele esperara, acalmando a si mesmo e a seus
oficiais impacientes, e esperando também enquanto as tensões na cidade se
abrandavam um pouco. E quando chegara a mensagem de Kisua dizendo
que Sunandi deveria se preparar para receber os quatro membros do
Protetorado que já estavam a caminho de Gujaareh pelo rio abaixo, ele
devolveu o favor acalmando-a e lembrando-a de que fizera um bom trabalho
ao governar o reino com recursos limitados e ordens difíceis recebidas da
terra natal. Qualquer que fosse a mudança pela qual os ventos políticos
houvessem passado em Kisua, ninguém poderia negar isso.
Mas Sunandi, que sabia exatamente quão instáveis esses ventos podiam
ser, não tinha tanta certeza.
Ela escolhera encontrar-se com os Protetores no grande pátio do Yanya-
iyan, diante do pavilhão com teto de vidro que um dia servira como
plataforma exterior do trono do Príncipe de Gujaareh. Agora a plataforma
era um mero ponto de referência natural quando os visitantes entravam
pelos portões do palácio e atravessavam a areia varrida. Os soldados
entraram primeiro, espalhando-se para ladear os muros do pátio. Depois
vieram os empregados domésticos e os carregadores de bagagem e, por
último, quatro quadras de homens jovens e fortes, cada quarteto carregando
as hastes de uma liteira de tamanho mediano sobre os ombros. As liteiras
eram cobertas por drapeados verdes, adornadas com franjas e conchas
polidas. Ela conseguia ver apenas vultos tênues lá dentro. Os grupos
pararam e colocaram as liteiras no chão diante da plataforma do trono e
Sunandi e Anzi ajoelharam-se para mostrar respeito quando os Protetores
saíram.
E, no momento que alçou o olhar para cumprimentar os visitantes,
Sunandi soube que os ventos em Kisua deviam de fato estar ruins.
Dois dos Protetores Sunandi conhecia pessoalmente: Sasannante, um
grande acadêmico e poeta que Sunandi estudara durante o seu treinamento,
e Yao, chamada de Mama Yao porque tivera treze filhos e os usara para se
tornar a matriarca de uma das mais poderosas famílias do ramo naval de
Kisua. Os outros dois ela conhecia só de vista e pela reputação. Um deles era
Moib, um ex-general que perdera um olho contra tropas apoiadas por
Gujaareh na Batalha de Soijaro dez anos antes. O outro, um homem tão
alto que provavelmente se sentira péssimo durante toda a viagem naquela
liteira, tinha de ser Aksata, outro mercador cuja família fizera fortuna
vendendo espadas e armaduras para o exército permanente de Kisua. Moib,
o Senhor da Guerra, eles o chamavam, e Aksata, o Oportunista.
Então as coisas ficaram ruins a esse ponto. Só pode haver um motivo para os
Protetores terem mandado esses dois para cá.
Como que ouvindo seu pensamento, Aksata sorriu, inclinando a cabeça
para Sunandi e Anzi.
— Saudações, Oradora Jeh Kalawe, General Seh Ainunu. O Conselho
manda lembranças.
Sunandi levantou-se, embora mantivesse o olhar respeitosamente
abaixado. Ao seu lado, Anzi fez o mesmo.
— E saudações a vocês, Estimados e Sábios de Kisua. Dou-lhes as boas-
vindas a Gujaareh. A viagem foi difícil? Posso oferecer petiscos ou
descanso?
— Sim, daqui a pouco — respondeu Aksata. Ele olhou para os demais
Protetores. Mama Yao, que estava talvez em sua sétima década, apoiava-se
pesadamente em um dos servos que carregara a liteira, mas fez um aceno
cansado demonstrando que concordava com Aksata. Sasannante estava tão
ereto e inescrutável quanto a bengala elaboradamente entalhada em suas
mãos, enquanto Moib fazia algum alongamento de soldado para se desfazer
da rigidez da viagem. Aksata parecia saudável, mas afinal estava apenas no
final dos cinquenta anos, pela estimativa de Sunandi. Em Gujaareh, onde a
magia prolongava a vida dos cidadãos, ele seria jovem demais para se
qualificar para a idade da velhice.
Ao passo que Mama Yao está tão idosa que a viagem em si poderia tê-la
matado. Ela não tem nenhum amor por Gujaareh, mas também não é
insensata… Então, será que os outros Protetores esperam que ela morra antes de
poder fazer muita coisa?
Infelizmente, era bastante possível.
— A viagem realmente foi difícil — comentou Aksata —, em grande
parte porque nos apressamos para chegar aqui. Recebemos notícias ao longo
do caminho de mais problemas além da praga dos bandidos do deserto que
você tem enfrentado. Alguma coisa a ver com o Hetawa?
— Sim — respondeu Sunandi, mantendo o tom cuidadosamente neutro.
Pássaros mensageiros de novo, ou talvez cavaleiros portadores de
mensagens, viajando rio acima para encontrar os Protetores no caminho. De
qualquer forma, ela não fazia ideia do quanto de verdade, ou de falsidade,
fora fornecido pelos espiões na equipe de Sunandi.
— No começo do solstício — começou ela —, dois dos nossos soldados
foram Coletados. Ao que parece, eles estavam molestando mulheres na
cidade.
— Me disseram que eram prostitutas — interveio Moib. Sua voz era
áspera como cascalho de estrada. Havia outra cicatriz franzida, há muito
curada, de um lado a outro da garganta.
— Gujaareh tem poucas prostitutas como as denominamos — informou
Sunandi. — Servas e mulheres de casas de timbalin, se assim escolherem —
e mesmo essas nunca deviam ser violentadas pela Lei de Gujaareh, mas
agora não era o momento de explicar isso aos Protetores —, mas as
mulheres agredidas pelos soldados eram de outro calibre. Uma espécie de
sacerdotisas.
— Putas sagradas, então — escarneceu Mama Yao. — E sem dúvida
fáceis de confundir com qualquer outro tipo. Então os gujaareen mataram
os seus homens por causa de um mal-entendido? — Ela olhou para Anzi.
Anzi flexionou o maxilar por um momento e Sunandi rezou para que o
marido mantivesse a calma.
— Eles não consideram um mal-entendido, Estimada.
— Claro que não — retorquiu Aksata. Ele suspirou. — Bem, nós
esperávamos que algo assim fosse acabar acontecendo. Vocês executaram o
Coletor que fez isso?
Sunandi franziu a testa.
— Não, Estimado.
— Não? — Alguma coisa no comportamento de Aksata, interpretação
ruim, talvez, disse a ela que ele não estava nem perto de se sentir tão
surpreso quanto parecia. — Prenderam, então? Um julgamento parece
excessivamente formal, mas…
Então era isso. Sunandi quase sorriu. Em algum lugar do além-túmulo
dos sonhos, seu velho mentor Kinja estava rindo. Mas ela sabia agora o
papel que eles queriam que ela desempenhasse.
— As tensões na cidade têm estado altas — explicou ela, olhando para
trás de Aksata, para os outros Protetores. Aksata era irrelevante; ele viera
com a sua própria agenda. Moib também, muito provavelmente. Era
possível que todos eles tivessem vindo com o mesmo propósito, mas ela
precisava tentar. Concentrou-se em Mama Yao e Sasannante na esperança
de que ainda não houvessem julgado previamente a situação a ponto de
ignorar a razão. — Tem havido inquietação nos últimos tempos por conta
dos ataques banbarranos e há boatos de algum tipo de doença à solta pela
cidade. Também desconfio que alguns dos nobres…
— Basta, Oradora — falou Mama Yao. Ela se endireitou e fixou em
Sunandi um olhar severo. — Não viemos para ouvir desculpas.
— Aceito qualquer solução que sugerirem, Estimada — disse Sunandi
depois de fechar a boca por um instante.
Sasannante olhou para os outros Protetores e sorriu.
— Eu falei para vocês que a protegida de Kinja não seria tola.
— Conciliadora demais, talvez — retorquiu Mama Yao. Ela parecia
irritada, como se houvesse esperado mais resistência da parte de Sunandi.
— Talvez. — Sasannante fitou Sunandi, pensativo. — Esse vai ser um
momento difícil para você, Oradora. Não é fácil abrir mão do tipo de
controle que você teve até agora. Mas, para suportar bem este momento,
lembre-se de que você serve ao povo de Kisua, não o de Gujaareh.
Todos eles então. Sunandi baixou os olhos, tremendo por dentro com
uma raiva que jamais demonstraria. Malditos! Dez anos de noites sem sono e
cautelosa diplomacia e agora eles estavam prestes a estragar tudo.
Mas Sasannante estava certo; ela servia a Kisua acima de tudo. Gujaareh
tinha seus próprios protetores, mais perigosos do que o Conselho em sua
terra natal se dava conta. E se, fazendo mesuras e sorrindo para esses tolos,
Sunandi pudesse encontrar uma forma de proteger o seu lar do pior da ira
gujaareen em fermentação, que fosse.
Então ela inclinou a cabeça para Sasannante, estendendo as mãos para as
laterais em um gracioso ato adicional de submissão, e disse:
— Nunca esqueci que sirvo a Kisua, Estimado… e aos seus Protetores,
claro.
Moib soltou uma risada rouca; Aksata chacoalhou a cabeça e sorriu.
— Temo o dia em que você se tornar uma anciã, Jeh Kalawe — falou ele.
— Eu me pergunto se nos atreveremos a deixá-la participar do conselho
quando isso acontecer!
Sunandi manteve seu desdém oculto atrás da máscara agradável em seu
rosto. Me deixe participar e a primeira coisa que vou fazer é garantir que tolos
egoístas e míopes como você sejam assassinados durante o sono.
— Então. — Aksata alongou-se, as juntas estralando ruidosamente; ele
fez uma careta. — Redimam-se hoje, Oradora e General. Vão ao Hetawa e
busquem o homem que ousou tirar uma vida kisuati. Tragam-no para cá
para fazermos dele um exemplo.
E Anzi, o doce Anzi, que passara os últimos dias aprendendo com
Sunandi porque essa era exatamente a coisa errada a se fazer, franziu o
cenho e deu um passo adiante.
— Estimado, se ao menos ouvisse o conselho da minha mulher…
Sunandi pôs uma das mãos no ombro dele e ele se virou para fitá-la. Ela
chacoalhou minimamente a cabeça. Eles estavam juntos há quase dez anos;
ele chegara a conhecê-la melhor do que qualquer outra pessoa a não ser
Kinja e um certo sacerdote gujaareen, os quais já haviam morrido há muito
tempo. A Oradora ainda se admirava com o fato de que, em momentos
como aquele, ele conseguisse olhar para ela e decidir, com base apenas no
amor, confiar nela sem questionar. Ela não conseguia lembrar o que fizera
na vida para merecer tal devoção. Mas ele a demonstrou agora e deu um
passo atrás.
— Será feito imediatamente, Estimado — declarou ela, e fez uma
mesura. Anzi também fez, embora a sua fosse menos graciosa; ele não era
tão bom em fingir como ela.
Aksata acenou com a cabeça.
— Pois bem. Se não se importam, ficaremos felizes em aceitar aquela
oferta de descanso e petiscos e esperar a sua volta.

***

Agora eles estavam nos degraus do Hetawa, Sunandi e os dezesseis soldados


da melhor tropa de Anzi, esperando enquanto um Sentinela foi anunciar a
chegada deles. Sunandi pedira que os soldados estivessem desarmados, mas
duvidava que essa particularidade fosse importar muito para a multidão
gujaareen que já estava se formando na praça e que havia vindo para ver o
que os soldados kisuati queriam dos Servos de Hananja. Ela conseguia
distinguir os murmúrios em meio à aglomeração, sentir a subcorrente de
raiva que espreitava logo abaixo da superfície, mas não estava com medo. De
qualquer forma, não ainda. Nenhum gujaareen cometeria violência na
entrada do Hetawa.
As grandes folhas da porta de bronze estalaram e então abriram com um
rangido. Só depois ocorreu a Sunandi perguntar-se por que a porta estava
fechada… e aferrolhada, se ela não se equivocara com o barulho… para
começar. Era o meio da tarde, o Hetawa costumava ficar aberto durante as
horas do dia.
Em seguida, saiu o Superior, parecendo cansado, mas nem um pouco
surpreso de vê-los, e Sunandi concentrou-se rapidamente no aqui e agora.
— Bem-vinda, Voz dos Protetores — disse o Superior, inclinando a
cabeça para ela. Ele olhou para os soldados e ergueu uma sobrancelha
branca e curva. — Bem-vindos também, soldados dos Protetores. Estou
surpreso de vê-los sem armas.
Dirakha, o capitão da tropa, fez uma mesura cautelosa para o Superior,
depois olhou para Sunandi sem dizer uma palavra. O Superior deu um leve
sorriso para eles.
— Entendo — falou ele. — Obrigado, Oradora. Agradecemos o
respeito.
Sunandi inclinou a cabeça em resposta, embora apenas o suficiente para
reconhecer um igual. Entre os gujaareen, para quem o Superior oficialmente
ficava atrás somente do Príncipe no poder, isso trazia o risco de insulto, mas
o Superior devia saber por que eles haviam vindo. Ele só suspirou um
pouco, o sorriso desvanecendo.
— Os Coletores convidam você a entrar, Sunandi Jeh Kalawe —
declarou ele. — E, já que esses homens estão desarmados, eles podem entrar
também. Há algo dentro do Salão de Bênçãos que você deveria ver.
Isso Sunandi não esperara. Todavia, disfarçou sua surpresa e aquiesceu,
subindo os degraus para seguir o Superior para dentro. Atrás de si, ouviu
Dirakha hesitar por um momento, talvez esperando algum sinal de Sunandi,
mas ela não olhou para ele. A escolha de entrar no Hetawa teria de ser dele.
Ela soube qual foi a decisão quando ouviu uma praga murmurada em suua e
as súbitas pegadas de dezesseis pares de sandálias logo atrás.
Ela passou pela porta e adentrou os limites mais frescos e mais escuros
do Hetawa, piscando enquanto seus olhos se adaptavam. Então, quando se
adaptaram, ela parou em estado de choque.
Em filas duplas ao longo do corredor central, havia enxergas. Devia
haver quarenta ou mais, caprichosamente espaçadas e enfileiradas até a
metade do caminho para a porta de bronze. Em cada enxerga havia uma
pessoa dormindo.
Sunandi franziu o cenho, percorrendo o corredor enquanto tentava
compreender o que via. Seria isso algum ritual novo? Mas algumas das
pessoas acamadas pareciam estar tendo um sono agitado, gemendo e
remexendo-se, como que incapazes de acordar de um pesadelo.
Perscrutando o rosto de um dos adormecidos, Sunandi ficou tensa ao
reconhecer o homem. Era um dos Compartilhadores, que ela conhecera
muito tempo antes em alguma solenidade de estado ou outra. Ela olhou
para os outros e estremeceu quando um calafrio percorreu seu corpo. Quase
todos usavam vestimentas do Hetawa.
— Compartilhadores em sua maioria, mas também Professores e
Sentinelas — disse o Superior, observando-a. Ela se virou para ele, que lhe
deu outro sorriso tênue e doloroso. — Nenhum Coletor e nenhuma criança,
graças à Deusa. Uma pequena bênção.
— O que é isso? — perguntou Sunandi.
— Os seus espiões devem ter contado para você sobre a praga. — Ele
passou por ela, parando para fitar outro de seus colegas. — Faz um mês que
estamos lutando contra ela. Admito que guardamos segredo sobre a notícia
na sincera esperança de que logo encontraríamos uma cura. — Ele suspirou.
— Agora não temos escolha. Estão se espalhando pela cidade boatos de que
nós somos a fonte desse horror. Precisamos revelar tudo para que as pessoas
possam encontrar paz na verdade.
Dirakha segurou o braço de Sunandi de repente.
— Oradora, se existe uma praga…
— A praga é transmitida de sonho a sonho — explicou uma voz familiar,
e Sunandi virou as costas para o capitão para ver uma figura vestida com
mantos claros avançando na direção deles. Ele parou e curvou-se sobre as
mãos ao estilo gujaareen, seu rabo de cavalo de cachos castanho-
avermelhados balançando para a frente durante o movimento. O Coletor
Rabbaneh. Quando ele se endireitou, Sunandi percebeu que não estava
sorrindo talvez pela primeira vez desde que o conhecera.
— Não há risco de contágio — assegurou ele, olhando para Dirakha,
que, de repente, pareceu constrangido e soltou Sunandi. — Não agora. Mas
se você se deitasse agora e dormisse entre essas pessoas, nunca acordaria.
— Por que não me informaram sobre isso? — Apesar de Sunandi estar
horrorizada, sua mente já estava pensando nas implicações. Os Protetores
aproveitariam a oportunidade para culpar o Hetawa por todos os males de
Gujaareh. Na melhor das hipóteses, poderiam banir a magia; na pior,
poderiam fechar o Hetawa, exigir a prisão ou a execução de todos os
sacerdotes e fazer o máximo para erradicar esse ramo da fé hananjana.
— Nós ocultamos porque o problema estava contido — respondeu
Rabbaneh. Desolação, percebeu Sunandi. Era essa a expressão nos olhos do
Coletor enquanto ele olhava ao redor do salão para os confrades
moribundos. Ele não tinha esperança de que fossem melhorar. — Ou pelo
menos foi o que pensamos. Duas quadras de dias atrás, coletamos todos os
que sofriam do sonho e qualquer outra pessoa que pudesse ter sido exposta.
Ao todo, mais ou menos cinquenta. Nós os deixamos isolados, estudando-
os, mas cientes de que havia uma esperança se não conseguíssemos
encontrar uma cura: eles seriam os últimos. — Ele fitou um garoto, um
jovem magro quase da idade do amadurecimento ou pouco mais que isso, e
fechou os olhos, como que sofrendo. — Mas, duas noites atrás, fomos
atacados pelos portadores do sonho.
Com todos os pensamentos sobre os Protetores dissipados agora,
Sunandi o encarou.
— Atacados?
— É o que achamos — falou uma nova voz às suas costas… a voz que
ela temia. Preparando-se, ela se virou para ficar de frente para Nijiri. Mas
viu de pronto pela expressão do rapaz que ele sabia por que ela viera e não a
odiava por isso. Foi quando ela recordou as últimas palavras dele: Vou
perdoar você não importa o que os Protetores a obriguem a fazer.
Sunandi ficou surpresa com o quanto aquelas palavras a deixavam
aliviada.
— A fonte do sonho é uma criança — informou Nijiri. — Sonta-i
descobriu isso para nós. Não sei como qualquer criança poderia ter tanto
poder, mas o fato é que alguém está usando a criança como arma. Eu e meu
irmão Inmu somos testemunhas. — Ele fez um gesto, apontando para as
figuras adormecidas. — Fizeram isso conosco.
— Pior — disse Rabbaneh —, descobrimos que algumas pessoas
“carregam” o sonho durante vários dias sem cair em um sono sem fim. Elas
estão tão condenadas quanto aquelas que dormem imediatamente, mas,
nesse meio-tempo, transmitem o sonho para outros.
Sunandi estremeceu, cruzando os braços sobre os seios.
— Uma praga de pesadelos. Realmente sombrio. — Então ela parou,
algo em suas próprias palavras despertando uma lembrança. — Isso já
aconteceu antes? Sonhos com tanto poder?
O Superior lançou-lhe um olhar estranho.
— Não. Existem muitas variações incomuns na magia que usamos, mas
nenhuma é inerentemente prejudicial, apesar do que o seu povo diz.
— A Sonhadora Desvairada — falou Rabbaneh. Ele se agachou ao lado
do jovem magro, olhando para o menino com uma ternura inconfundível.
— Foi assim que Sonta-i a chamou no final. Mas vasculhamos os arquivos e
não encontramos nenhuma menção a uma coisa dessas.
Sonta-i. Anúncios da morte dele haviam sido afixados por toda a cidade;
vários artesãos e artífices especializados em luto haviam criado tribunos em
sua homenagem. A morte de um Coletor em si não era causa de tristeza na
cidade, pois a maioria dos Coletores escolhia o momento de partir e partia
feliz. Agora, porém, vendo a angústia em Rabbaneh e Nijiri, Sunandi
entendeu o que mais fora escondido do público.
Mas as últimas palavras de Sonta-i mexeram ainda mais com as
lembranças de Sunandi. Sonhadora Desvairada.
— Vocês não consultaram os arquivos no Yanya-iyan — murmurou ela,
tentando pensar. Tentando desvendar aquele pedaço irritante de lembrança.
— Todo o material que Eninket reuniu enquanto tentava descobrir os
segredos dos Ceifadores. Levou anos para nós organizarmos, mas me
lembro de ver alguma coisa referente a essa praga de pesadelos. E à
Sonhadora Desvairada.
O Superior ficou tenso. Rabbaneh e Nijiri se entreolharam, depois
fitaram-na. Rabbaneh se pôs de pé.
— Você precisa me prender — disse Rabbaneh. — Certo?
Sunandi baixou os olhos.
— Certo.
Ele se levantou e veio se posicionar diante dela, estendendo os braços.
— Tome o cuidado de envolver as minhas mãos; você sabe o que
podemos fazer com um toque.
Ela o encarou. De certa forma, esperara por isso. Mesmo assim… Ela
fez um sinal para Dirakha avançar e afastou-se enquanto os homens dele
amarravam os braços do Coletor.
Nijiri também avançou. Atrás dele, o terceiro Coletor, um jovem alto e
magrelo, caminhava pelo corredor em direção a eles.
— E eu — disse Nijiri. — E Inmu.
— E eu — falou o Superior, dando um passo à frente. Ele deu um leve
sorriso amargo para Sunandi. — Sou apenas um Professor, mas
infelizmente, como um Coletor se foi, eu seria o melhor substituto.
Sunandi franziu a testa.
— Me mandaram aqui para buscar Rabbaneh.
— Segundo a sua regra, qualquer mal feito a um kisuati seria revidado
em quádruplo, certo? — retorquiu Nijiri. Ele fitou os irmãos e o Superior.
— Somos só quatro, não oito, mas talvez os Protetores perdoem o fato de
sermos em pequeno número, considerando quem somos.
— Não posso levar todos vocês — disse Sunandi, pensando. Ela olhou
para Nijiri em especial; ele saberia o quanto suas próximas palavras lhe
haviam custado. — A cidade precisa dos seus Coletores.
Nijiri ergueu uma sobrancelha, um lento sorriso abrindo-se em seu rosto.
— É verdade, Jeh Kalawe — comentou ele. — Mas não podemos fazer
mais nada por Gujaareh agora. Você sentiu o clima na cidade nos últimos
dias. A última coisa que o nosso povo quer é paz.
E com você e os seus confrades sob a nossa custódia, a raiva da cidade vai ficar
muito mais atiçada. Ah, sim. Ela podia ver nos olhos de Nijiri. Ele sabia
muito bem como o povo de Gujaareh provavelmente reagiria quando se
espalhasse a notícia de que Kisua prendera os Coletores. Todo o falatório
sobre o Hetawa infligir pesadelos à população acabaria, a inquietação do
povo se intensificaria, transformando-se em um foco afiado e escaldante.
Kisua, não o Hetawa, seria o alvo de toda essa raiva.
O caminho mais rápido e mais seguro para a estabilidade. Foi o que
Nijiri a advertira que o Hetawa escolheria.
— Vou vasculhar os arquivos do palácio e compartilhar qualquer material
relevante — assegurou ela, olhando nos olhos de Nijiri.
— Qualquer coisa vai ajudar a essa altura — falou ele. Depois deu a ela
um leve sorriso afetuoso. — Somos má influência para você, Jeh Kalawe. O
seu comportamento parece suspeitosamente gujaareen hoje em dia.
Ela devolveu o sorriso, menos insultada do que deveria.
— Você sabe que eu uso qualquer tática que funcione melhor. Com
sorte, os meus atos vão trazer paz para ambos os povos com um mínimo de
sofrimento.
— Então devemos rezar. — Depois estendeu os braços quando dois dos
homens de Dirakha vieram amarrá-lo. Dirakha mandou-os passar a corda
por cima dos punhos cerrados de Nijiri e em volta deles para prender os
dedos, e então amarraram os quatro homens uns aos outros com uma
corrente interligada.
Isso feito, os soldados os conduziram em uma fila única e os fizeram
andar para fora do templo, em meio à multidão furiosa, até o Yanya-iyan.
30

NOME DE ALMA

Wanahomen saiu da tenda de Unte e imediatamente avistou a mulher do


templo a dez passos de distância e chegando como uma intempérie. Seus
punhos estavam cerrados, os olhos pretos como cabochões, as faixas e saias
agitando-se à sua volta.
Em outras circunstâncias, Wanahomen teria admirado a vista. Hanani
não tinha a beleza de Tiaanet nem o charme ousado de Yanassa, mas havia
algo atraente nela mesmo assim, especialmente quando perdia a timidez e
permitia que esse seu lado aparecesse. Em outro momento e lugar,
Wanahomen poderia tê-la cortejado de bom grado; era esperado que um
Príncipe contasse com algumas mulheres comuns entre suas duzentas e
cinquenta e seis esposas. Agora, porém, ele tinha de detê-la antes que
fizesse alguma coisa estúpida.
Ele a interceptou a cinco passos e pegou seu braço.
— Venha comigo.
Ela olhou para ele, surpresa e brava… brava demais, desconfiou ele, para
reagir ao seu aperto com pavor como fizera antes. Ele não sabia ao certo se
isso era uma bênção.
— O quê? Me solte!
— Venha comigo, droga, a menos que queira desencadear uma tempestade
de violência como você nunca viu.
Isso venceu a raiva. Cambaleando em sua confusão, ela finalmente o
deixou afastá-la da tenda. Ele continuou segurando o braço dela durante
todo o caminho de volta para a an-sherrat da mãe dele, onde a levou para o
círculo de fogo entre as tendas e a fez sentar-se.
— Não posso ficar parada enquanto eles abusam daquela mulher — disse
Hanani de pronto.
— Não pode mesmo — respondeu Wanahomen, sentando-se de frente
para ela. — Para variar, concordo com o modo de pensar do Hetawa sobre
isso.
Ela piscou, deixando claro que esperara uma discussão.
— Então por que…
— Se você tivesse entrado lá neste exato momento e dito a dois líderes
banbarranos como devem tratar seus prisioneiros, eles teriam te expulsado e
dado à prisioneira a morte mais lenta e dolorosa que conseguissem sonhar
entre ambos. Se você os tivesse ofendido o suficiente, teriam te obrigado a
assistir.
Ela estremeceu, seu rosto tornando-se de fato mais pálido, o que
Wanahomen pensou que não fosse possível.
— Isso é uma barbárie!
— Eles são bárbaros. — Wanahomen estendeu a mão para tirar o véu e o
lenço; passou uma das mãos pelas tranças, de repente exausto. Estivera
montado a cavalo o dia inteiro e isso depois de dormir mal na noite anterior.
A visita da mulher do templo deixara sua consciência dolorida e seus
pensamentos, inquietos. — E são homens, e são anciãos, e são líderes de um
povo que considerava Gujaareh o inimigo até pouco tempo atrás. Você é
uma convidada na casa deles, em nome da paz. Como acha que eles
reagiriam se você os desrespeitasse? Imagine se você deixasse um estrangeiro
entrar no Salão de Bênçãos e ele primeiro tentasse dizer a você como rezar e
depois mijasse na estátua de Hananja. Você estaria inclinada a ouvir alguma
coisa do que ele dissesse depois disso?
Ela pareceu insultada só de imaginar esse ofensor fictício, mas então
fechou o rosto outra vez.
— Mas não é de mera grosseria que estamos falando, Príncipe, é de
assassinato e tortura. Algumas coisas são erradas aos olhos de todos os
povos…
— Isso não é verdade. — Ele se inclinou para a frente, apoiando os
cotovelos nos joelhos. — Em Gujaareh, os Coletores matam por coisas que
aqui seriam consideradas apenas maus modos. Um escravizado banbarrano
pode comprar ou conquistar sua liberdade; em Gujaareh, os nossos servos
não têm esperança de escapar da sua condição. E pense nisto: para Unte e os
outros, o que foi feito com você é crueldade, é um tormento para a vida
inteira.
— Isso é… — começou ela, mas ele a cortou com um gesto brusco.
— Eu sei. Mas é assim que eles veem. Uma mulher tirada de sua família
quando criança, forçada a se vestir e agir como homem, obrigada a ser
humilde quando deveria ser orgulhosa, sem nunca ter permissão para ter
amantes ou filhos ou propriedade ou qualquer uma das coisas que
constituem uma boa vida aos olhos deles? Qualquer pessoa que fizesse uma
proposta dessas para uma menina aqui seria chamado de monstro e expulso
da tribo.
Ela pareceu estupefata ao ouvir essa caracterização de sua vida. Vendo
que estava enfim conseguindo fazê-la entender, Wanahomen aproveitou a
vantagem.
— Entre as nossas duas raças, os banbarranos são os anciãos,
Compartilhador-Aprendiz, e, como todos os anciãos, são orgulhosos e
estabelecem a sua maneira de fazer as coisas. Não podemos exigir coisas
deles, só podemos pedir… e, se recusarem, aceitar. Se você pressionar, só vai
piorar as coisas.
Ela franziu a testa de repente, os olhos examinando o rosto dele com
demasiada atenção agora que ele retirara o véu.
— Você fala por experiência.
Wanahomen refletiu, depois optou pela honestidade brutal.
— Às vezes um escravizado novo não aceita a sua condição e precisa ser
subjugado. Começam com surras durante dias. Depois passam para
queimaduras, amputações de qualquer coisa que não seja considerada
importante… — A moça ficara imóvel. Ele baixou os olhos, olhando para
as próprias mãos cruzadas. Era fácil, assustadoramente fácil, lembrar-se de
um tempo em que houvera algemas ao redor de seus próprios punhos. —
Quando eu era novo aqui, também protestei contra tamanha crueldade.
Mas, como eu disse, é possível tornar as coisas piores.
Ela fez um barulhinho, levantando-se e começando a andar de um lado a
outro para extravasar sua frustração. De maneira surpreendente, era uma
coisa nada pacífica a se fazer para um Servo de Hananja: a expressão física
da aflição simplesmente não era demonstrada entre os gujaareen educados.
Ele a observou com cautela, perguntando-se se havia lhe causado mais mal.
Quando ela parou, suas mãos continuaram se mexendo, inquietas,
esfregando uma à outra como que para eliminar algum contaminante. Mas
sua voz estava calma quando ela falou.
— Vou pedir a eles que reconsiderem a crueldade — disse ela. — Mas o
que posso fazer se recusarem? Eu não poderia suportar. Não sei o caminho
de volta para Gujaareh, mesmo que fosse possível resgatá-la…
Wanahomen resmungou.
— Você é tola a esse ponto? Deixando de lado o fato de que o próprio
Unte perseguiria você por abusar da hospitalidade dele, aquela mulher é
shadoun. Ela te mataria no momento que você baixasse a guarda, mesmo
que estivesse tentando ajudá-la. — Ele soltou uma risada áspera. —
Especialmente se estivesse tentando ajudá-la. Ela é do deserto e sabe como
viajar e sobreviver. Você a atrasaria.
Hanani ficara paralisada durante a bronca, as costas rígidas e os punhos
cerrados. Ele se preparou para continuar discutindo. Em vez disso, ela
curvou a cabeça de repente, calando-se. Com certa preocupação, ele
percebeu que ela estava a ponto de chorar.
— Não sei o que fazer — falou ela. Mal dava para ouvir sua voz. — Sou
uma Serva de Hananja; eu deveria saber o que fazer. Deveria ser capaz de
encontrar um meio pacífico de resolver os problemas. — Ela deu uma breve
risada amarga. — Mas essa não seria a primeira vez que fracassei nisso.
Surpreendido com a súbita mudança de ânimo da jovem, Wanahomen se
pôs de pé e foi para o lado dela. Embora não fizesse ideia do que poderia
dizer para consolá-la, ele estendeu a mão para tocar seu ombro… e então se
conteve, lembrando-se a tempo. Ela provavelmente estava pensando em
Azima naquele exato momento, percebeu ele com atraso, vendo os punhos
dela tremerem e seus ombros se retesarem. Seu maior fracasso. O Hetawa
ensinava que a verdadeira força estava em suportar os tormentos dos outros,
mesmo que isso significasse dor ou autodegradação. Era permitido resistir,
mas apenas após a calma e a contemplação, de modo que, ao revidar, a
pessoa não se tornasse tão corrupta quanto o atormentador.
Mas essa noção não fazia sentido. Que força Hanani poderia ter obtido
deixando-se ser torturada quando tinha os meios de impedir aquilo? Havia
fortaleza e havia loucura. Ela devia entender a diferença.
Suspirando, Wanahomen decidiu que tanto as mulheres como as pessoas
do templo não chegavam nem perto de serem sensatas. Ele quase sentiu
pena por aquela ali, condenada pelo sexo e pela vocação.
— Hananja não Se ocupa do reino da vigília — declarou ele. — Não é
isso que diz a Sabedoria de Hananja? Ela deixa por nossa conta traçarmos o
nosso destino.
— Sim, é verdade…
— Então não procure respostas na doutrina do Hetawa. Ela foi feita
pelos mortais, não pelos deuses. — E, embora tentasse desviar os
pensamentos para qualquer outra coisa, não pôde evitar. Por um momento,
olhando para ela, ele via apenas Nijiri, o Coletor que a mandara para o
deserto… e Ehiru, o Coletor que o treinara. E também via o pai, que
morrera pelas mãos de Ehiru. — E mortais podem ser corruptos.
Ela se virou e o encarou, franzindo a testa diante da mudança de ânimo
dele, e, ao se mexer, as contas do seu penteado banbarrano bateram umas
nas outras, retinindo. Ele piscou e ela voltou a ser ela mesma, não um
Coletor, não o Hetawa. Só uma garota gujaareen com roupas banbarranas,
tão fora do seu elemento que não tinha ideia do que fazer em seguida.
Mas seus punhos ainda estavam cerrados na lateral do corpo e havia uma
postura em seus ombros que dizia a ele que ela pretendia fazer alguma coisa,
se pudesse. Ele não pôde deixar de pensar também: gostava desse aspecto
dela. Era tão louca quanto o resto dos sacerdotes do Hetawa, mas pelo
menos ele podia admirar sua coragem.
E ele dera voltas demais.
— Fiz o que pude — disse ele. — As circunstâncias da captura da
shadoun foram suspeitas. Ela estava perto da borda do cânion, em campo
aberto, acendendo uma fogueira para fazer chá. Era como se quisesse ser
capturada. — Ele chacoalhou a cabeça. — Sugeri para Unte e Tajedd que
ela fosse interrogada para definir quais segredos ela poderia estar
escondendo. Isso dá algum valor a ela por enquanto.
— E o que eu posso fazer para ajudar? Se você diz que devo pedir e não
exigir…
Ele chacoalhou a cabeça.
— Ainda não. — Ela abriu a boca outra vez, previsível como as luas, e
ele falou mais rápido. — Às vezes, a escolha mais útil é não agir,
Compartilhador-Aprendiz. Se chegar a esse ponto, eu preferiria guardar o
seu… pedido… como último recurso. Apele para a misericórdia de Unte e
Tajedd, diga a eles que o ataque de Azima ainda te deixa perturbada. — Ela
estremeceu e ele acenou soturnamente com a cabeça. Pelo menos havia
algum uso duradouro naquilo que ele lhe fizera. — Já que você é uma
hóspede, eles vão hesitar em fazer qualquer coisa que pudesse te prejudicar
ainda mais.
Ela aquiesceu lentamente.
— Entendo. Eu, eu vou seguir o seu conselho, então. — Ela hesitou e
acrescentou: — Obrigada, Príncipe. Por ajudar aquela mulher. Sei que ela
não serve à sua causa de nenhuma maneira.
Ele fez uma careta, não apreciando a baixa avaliação dela quanto à sua
moral.
— Esquecer de mim mesmo também não “serve à minha causa”. Eu sou
gujaareen afinal. — Aborrecido, ele cruzou os braços. Ela se virou e fitou-o
por tanto tempo e de forma tão consistente que ele começou a se sentir
desconfortável.
— Você deveria se sentar — aconselhou ela abruptamente. — Preciso
fazer você dormir para a próxima aula.
Ele sobressaltou-se.
— Uma aula? Agora?
— Você falou que não há mais nada a fazer pela mulher, pelo menos por
enquanto. Você tem outros afazeres?
Unte e Tajedd o chamariam se decidissem logo qual seria o destino da
shadoun. Até lá, recebera ordens de manter a tropa no cânion em vez de
retomar a patrulha, caso os shadoun estivessem planejando algum ataque.
Ezack estava encarregado de um grupo nas alturas, vigiando se havia perigo;
as coisas estavam tão pacíficas quanto estariam por algum tempo.
— Pois bem — concordou ele, indo sentar-se em um tronco ao lado da
fogueira. — Pelo menos vou ganhar uma soneca com isso.
A mulher veio se posicionar à sua frente, colocando uma das mãos atrás
de sua nuca. O rapaz ficou surpreso com essa atitude até sentir os dedos dela
tatearem a base do seu crânio, verificando quão tenso ele estava. Ela não
tinha uma pedra jungissa, a qual somente os Coletores usavam; ele ouvira
dizer que podia ser difícil impor feitiços de sono durante o dia sem uma
dessas. Ciente disso, ele respirou fundo para clarear os pensamentos e ela
deu um aceno de aprovação. Quando ficou convencida de que ele estava
relaxado o suficiente, ela se inclinou para a frente para perscrutar o seu
rosto.
— Tente ficar dentro de si mesmo desta vez — disse ela em tom sério,
como se aquilo devesse significar alguma coisa para ele. — Não consigo te
ensinar se você ficar me arrastando por todas as partes dos reinos.
Wanahomen suspirou outra vez.
— Você é a mulher mais estranha que já conheci.
Ela piscou e seus lábios se espraiaram no primeiro sorriso que ele vira em
seu rosto em dias. Então ela levantou a mão e cantarolou uma nota baixa;
ele fechou os olhos e, um instante depois, adormeceu.
Quando abriu os olhos, a an-sherrat sumira. A mulher também, e a
fogueira, e o chão, e o próprio céu sobre sua cabeça. Não conseguia se ver:
sua única consciência era a crença de que existia. Ele flutuava em um nada
escuro, alarmado e sozinho.
Não. Sozinho não…
— Aqui.
A voz da mulher do templo ecoou em meio à escuridão, embora ele não
pudesse vê-la. Ele estendeu uma das mãos para tocá-la e não encontrou
nada, embora ela houvesse estado bem à sua frente no reino da vigília.
— O que é este lugar? — perguntou ele.
— O reino entre Ina-Karekh e Hona-Karekh, despojado de artifícios ou
camadas. Ele não tem nome.
Aquela informação não ajudou.
— Onde você está?
A presença de repente estava por toda a sua volta, tão próxima e
envolvente que ele não podia se virar sem sentir a presença dela. Não a
carne: ele ainda não conseguia vê-la nem tocá-la. O que ele percebia em vez
disso era calma, controle e uma feminilidade tão quintessencial do caráter
dela que quase tinha textura. Suave, terna, vibrante. E sob o cheiro e do
gosto e da sensação dela havia mais alguma coisa. Algo mais rígido, como
osso ou o caroço no centro da fruta. Não, aquele não era o centro dela,
apenas a casca exterior, e seu nome era…
Ela se afastou de imediato e ele se obrigou a não demonstrar medo
diante da perspectiva de ser deixado sozinho naquela escuridão vazia.
— Tão forte — disse ela, ralhando de leve. — Tão insistente. Você
nunca espera para ser convidado a entrar em um lugar, Príncipe?
Ela não parecia zangada. Quando muito, ele pensou ter ouvido gracejo
no tom de voz dela.
— Normalmente, eu consigo ver se é um lugar onde não posso entrar —
respondeu ele, irritado.
— Neste reino, se uma coisa ainda não estiver lá para você perceber, você
deve procurá-la com muita cautela. Se tiver que bisbilhotar, faça isso com as
suas próprias proteções em posição. Onde está o seu nome de alma?
— Eu não tenho.
A calma dela se transformou em pena, o que ele achou ainda mais
irritante do que o gracejo. Ela, talvez sentindo sua irritação, voltou quase de
pronto à calma.
— Me perdoe. — pediu ela — Achei que tivesse recebido pelo menos o
treinamento dado às crianças em Gujaareh.
— Meu pai não permitiu.
— Entendo. Isso não é um problema; vou ter que te dar esse
treinamento agora. Me diga: você sabe o que um nome de alma é de
verdade?
Ele ficou com vergonha de admitir sua ignorância, então falou o que
sabia.
— Sei que devem ser guardados com cuidado — respondeu ele. —
Possuir o nome de alma de outra pessoa é ter poder sobre ela nos sonhos.
— Sim. No sonho, a pessoa pode se perder. Um nome de alma
proporciona uma âncora a tudo o que você é; com ele, você sempre
conseguirá encontrar o caminho. As sílabas em si não têm poder, mas o
significado que você dá a elas, a incorporação do próprio conceito, é crucial
para a preservação da sua identidade. — Ela suspirou; ele sentiu
preocupação nela antes que ela disfarçasse. — Se você ainda fosse criança,
seria fácil. Você seria… flexível. Como homem feito, com um senso tão
forte de si mesmo… — Um tom de advertência se fez notar na voz dela. —
Isso não vai ser agradável.
— Pouca coisa na minha vida foi agradável, mulher — declarou ele,
levantando-se, se é que o gesto tinha algum significado naquele lugar sem
forma. — Faça o que tiver que fazer.
— Muito bem.
A sensação da presença dela mudou completamente. Ela ainda estava
por toda a sua volta, mas ele não conseguia mais reconhecê-la. A suavidade
que interpretara como feminina, como ela, transformou-se em uma sensação
de lasca de pedra e metal, fria e afiada. Então ela exerceu uma pressão
contra a existência que ele passara a entender que era ele mesmo. Aquilo
deixou gosto de metal em sua boca; ele recuou, desaprovando a sensação.
— O que você está fazendo? — indagou ele. Mas ela não falou nada,
apenas continuou pressionando mais e, para sua preocupação, ele percebeu
que ela não lhe deixara nenhuma saída para escapar. Para onde quer que
virasse, ela estava lá.
E quando ela pressionou de novo, as bordas rígidas de sua presença o
arranharam como uma pedra de moinho. Doeu de um modo que era menos
e ao mesmo tempo mais do que dor; surpreendido com aquilo, ele
inadvertidamente gritou no espaço vazio. Aquela mulher era louca?
Cascalho raspava a pele dele, ácido queimava a carne viva por debaixo… Ela
voltou a pressionar e ele começou a resistir agora, entendendo enfim o que
ela estava fazendo. As bordas frias e desagradáveis dela o estavam
dilacerando, escavando a própria essência do ser dele. Se ela continuasse
fazendo aquilo, ele não tinha ideia do que aconteceria… será que ele se
tornaria ela, devorado como que por um Ceifador? Será que sua alma
deixaria de existir, deixando apenas a carne para morrer? Ele não fazia ideia,
mas, se não conseguisse descobrir como lutar com ela, tinha receio de que
descobriria logo.
— Pare com isso, seu monstro assassino do Hetawa! — Ele deu tudo de
si para tentar se libertar. Era como lutar contra a areia: cada vez que cavava
um espaço para ele mesmo existir, o espaço se enchia com mais dela. E agora,
para seu horror, ele percebeu que estava perdendo a disputa. Ela… quem era
ela? Ele não conseguia se lembrar, mas, mais importante, ele não conseguia se
lembrar do próprio nome. Ela dilacerou mais pedaços dele. — Afaste-se de
mim! — gritou ele, mas a escuridão e o silêncio abafaram o grito.
Ela terminou de dilacerar as camadas externas dele e depois recuou,
preparando-se para o ataque final. Ele arquejava sob o domínio dela, em
carne viva e vulnerável e exausto, ciente agora de que ela tinha acesso ao
núcleo mais profundo do seu ser. Se ela o tocasse uma vez que fosse, seria
destruído, ele sentia isso com uma certeza instintiva. Jamais ficara tão
apavorado em toda a sua vida.
Então ela avançou em direção a ele, à parte dele que pulsava como um
coração e que era igualmente vital, e ele chorou e se contorceu e por fim
gritou a única coisa que poderia salvá-lo. Duas sílabas.
Ouviu-se um barulho. Por um momento, ele não conseguiu identificá-lo,
e aí se lembrou: sua infância no palácio Kite-iyan. Em um arroubo de raiva,
uma das esposas de seu pai jogara uma xícara de cerâmica fina na parede,
estilhaçando-a. Mas esse barulho era mais tênue, mais claro, como metal ou
talvez cristal…
Assim que lhe ocorreu esse pensamento, ele passou a existir. Formou-se
um cristal ao seu redor, duro e claro como o diamante, suas facetas
pontiagudas iluminando a escuridão com seu brilho. A lasca de pedra e o
metal fustigaram-no e recuaram, inofensivos agora. E de repente ele
entendeu.
Ele era Wanahomen. Líder de caça dos Yusir-Banbarra, futuro Príncipe
de Gujaareh, rebento do Sol e porta-voz da Deusa. Mas, mais do que isso,
ele era…
O rapaz abriu os olhos, acordado e de volta à an-sherrat de sua mãe. A
mulher continuava à sua frente.
— Niim — disse ele, alçando os olhos para ela, admirado. — Eu sou
Niim.
Ela afagou o cabelo dele e sorriu.
— Nos sonhos, sim.
— O que… — Ele mal conseguia se lembrar de como falar com a boca.
Quanto tempo se passara? A fogueira mal queimara, porém parecia que
haviam se passado horas. Ou anos. — O que você…
— Era o único método que eu conhecia para extrair o seu nome.
Felizmente, você foi imaginativo o suficiente para sobreviver.
Ele estava impressionado demais para ficar bravo.
— Esse nome… — Mas ele se calou, surpreso, quando ela pôs o dedo
sobre seus lábios.
— Você entende agora por que o nome só deve ser compartilhado com
algumas poucas pessoas de confiança. — Ela sorriu outra vez com um toque
de autodepreciação. — Você provavelmente vai se arrepender de ter me
contado. Mas, para retribuir, te dou isto: eu sou Aier nos sonhos.
Ele entendia agora o quanto o nome significava. O caroço sob a polpa
macia e madura da fruta. Ele estremeceu ao contemplá-la, dividido entre a
admiração e um sentimento que não conseguia definir. Desejo? Sim, havia
algo de desejo e ele era homem suficiente para reconhecer. Não a torrente de
luxúria que sentira por Tiaanet ou a maré de idas e vindas que tivera com
Yanassa durante a relação deles, mas alguma coisa mesmo assim. Um fluxo
tranquilo e constante de querer, talvez. Mas junto com esse desejo vinha um
sentimento mais profundo, mais poderoso e mais tocante do que a simples
luxúria. Reverência, uma sensação de conforto. Era o que ele sentia nas raras
ocasiões em que rezava.
— Obrigado — falou ele, querendo dizer aquilo em muitos sentidos.
Hanani baixou os olhos, soltou-o e deu um passo atrás. Intimidade
demais, percebeu Wanahomen. Ela jurara Compartilhar a si mesma apenas
com a Deusa; dar seu nome de alma a ele aproximava-se perigosamente de
um tipo semelhante de compartilhamento. Ele sentia falta da proximidade
dela, ansiava por mais dessa proximidade. Todavia, ela já quebrara o
juramento uma vez por causa dele. Seria errado causar-lhe mais mal.
Com uma ligeireza forçada, ele perguntou:
— É isso, então? A técnica que você pretendia me ensinar?
— Não. — A timidez voltara; ela falava em um tom suave e não olhava
nos olhos dele. — Já que você não tinha nome de alma, tínhamos que fazer
isso primeiro. Mas acredito que talvez esteja pronto para a técnica de
equilíbrio de humor na próxima aula.
Ela parou de falar, franzindo o cenho. De repente, Wanahomen percebeu
barulho para além da an-sherrat: mais gritos e chamados empolgados. A
sensação boa de Wanahomen desvaneceu com um calafrio; ele viu Hanani
ficar tensa. Mas a barulheira não tinha a intensidade desagradável e violenta
que Wanahomen teria esperado se houvessem decidido a sentença da
mulher shadoun.
Charris contornou uma das tendas, parecendo aliviado quando avistou
Wanahomen.
— Mais duas tribos chegaram juntas — contou ele. — Madobah-
Banbarra, disseram os sentinelas, e Issayir.
Wanahomen levantou-se de pronto, o cansaço esquecido.
— Não poderíamos ter pedido por um momento mais conveniente. A
que distância eles estão?
— A uma hora, talvez.
— Ótimo. — Virando-se para a mulher, ele a encontrou franzindo a
testa para os dois, confusa. — Agora não vão decidir nada quanto à
prisioneira até o período da manhã — explicou ele. — É o costume de
acolhida dos convidados. E, de manhã, cabeças mais frias podem tomar a
decisão. — Ele colocou uma das mãos no ombro dela, de forma
extremamente ousada. Ela pareceu surpresa, mas não se sobressaltou nem se
afastou, então ele sorriu e permitiu-se dar um aperto breve e reconfortante.
— Não prometo nada, mas vou fazer tudo em meu poder para dar uma
morte pacífica à shadoun.
O rosto dela encheu-se de esperança, uma melhora bem-vinda quanto ao
seu estado de ânimo anterior. Ela aquiesceu sem dizer uma palavra.
Inclinando a cabeça como despedida, Wanahomen pegou o lenço e o véu e
foi com Charris dar as boas-vindas aos novos hóspedes.
31

O PESADELO

Durante longos instantes após a partida do Príncipe, Hanani ficou entre


duas tendas da an-sherrat, olhando daquele espaço de relativa segurança
para o acampamento banbarrano. A aula do Príncipe a exaurira, embora
essa não fosse a razão pela qual ela ansiava pelas sombras agora.
Simplesmente precisava de tempo para digerir mais uma vez a estranheza
do mundo. Os banbarranos nunca haviam parecido tão assustadores do que
hoje e o Príncipe nunca havia parecido mais normal.
O mundo inteiro deve estar de ponta-cabeça. Talvez os deuses tenham se
embebedado com vinho de cometa de novo, como nas histórias.
O ombro dela comichou com o calor persistente da mão do Príncipe. O
que é que havia nele que cada toque seu, mesmo aquele beijo sórdido e
malicioso dele quando procurou enganar Azima, ficava com ela por tanto
tempo? Ela passara a vida toda entre homens, muitos deles bonitos o
bastante para fazer o Príncipe passar vergonha. Tampouco era estranha aos
desejos dos homens, pois teria sido cega se não houvesse notado que alguns
olhares se demoravam sobre ela nos banhos do Hetawa e que algumas mãos
ficavam pegajosas sempre que tocavam as dela. O interesse do Príncipe
havia aromatizado o próprio ar entre eles depois que trocaram os nomes de
alma e, no entanto, ele não era diferente de todos os outros homens
libidinosos que ela aprendera a ignorar ao longo dos anos. Por que então
parecia-lhe tão difícil ignorá-lo?
Talvez porque ele não tenha paz dentro de si, veio o pensamento. O desejo
de seus colegas sacerdotes era irrelevante, eles eram homens disciplinados há
muito acostumados a conter ou redirecionar seus impulsos inconvenientes.
O Príncipe satisfazia seus impulsos livremente, sem controle, negligente
com o mal que aquilo fizesse com a sua paz interior… ou com os outros, ao
que parecia. Seria o medo então que a tornava tão sensível a ele? Ele a usara
em um plano para matar um homem. Ele próprio era pouco melhor do que
um bárbaro. Ela deveria tê-lo temido. Contudo, não temia, não exatamente,
não mais. Estava claro que ele estava arrependido do que lhe fizera, ela
notara-o esforçando-se para não fazer mais nada que a lembrasse do ataque
de Azima. Até falava com ela em um tom mais amável, uma gentileza pela
qual ficava grata, por menor que fosse. E ela o vira esforçando-se também
para se lembrar de sua própria natureza gujaareen. Era impossível para ela,
uma Serva de Hananja, observar esse esforço e rejeitá-lo como um caso sem
solução.
Ela encontraria Mni-inh, decidiu. Dançaria a oração do fim de tarde
com ele e veria se isso clareava suas ideias e sentimentos.
— Hanani. Você está aqui.
Ela olhou ao redor, positivamente surpresa de ouvir a voz do mentor.
Mas quando Mni-inh deu um passo à frente, ocupando o espaço entre as
tendas, sua expressão estava estranhamente sombria.
— Irmão? O que foi?
— Andei sonhando com Nijiri outra vez — contou ele. Seus olhos
fitavam o chão; ela percebeu com certa preocupação que ele tremia. — Tive
que esperar mais que de costume. Ele teve que ir para algum lugar fora do
Hetawa para fazer isso e se certificar de que o sonhador dele estava em
segurança. Algo terrível aconteceu.
— O que, Irmão?
— Um ataque. — Ele cerrou o maxilar. — Alguém atacou o Hetawa
várias noites atrás. A Sonhadora Desvairada. Metade… — Ele voltou a
estremecer, o rosto se comprimindo de angústia. — Mais da metade dos
nossos confrades Compartilhadores… A maioria deles estava dormindo,
Hanani.
Levou o intervalo de várias respirações para a sugestão das palavras dele
ser compreendida. Nhen-ne-verra. Fierat, seu colega aprendiz que sempre
esquecia que ela era uma garota e fazia piadas obscenas em sua presença.
Todos os seus irmãos mais velhos, muitos dos quais a haviam desprezado,
tratado como algo exótico e perigoso, mas não mereciam a morte por isso.
Ninguém merecia uma morte como a de Dayu.
Hanani levou uma das mãos à boca.
— Ah, Deusa. Oh, não.
Mni-inh recostou-se na parede da tenda próxima, a sua própria.
— Aqueles que sobreviveram ao ataque inicial foram infectados com o
sonho, tão condenados quanto os que morreram. Eles vão ficar acordados o
máximo que puderem, mas quando enfim cederem… — Ele chacoalhou a
cabeça. — E, nesse meio-tempo, ninguém mais no Hetawa se atreve a
dormir. Nijiri falou que nós estamos melhor aqui do que se estivéssemos em
casa. — Ele chacoalhou a cabeça. — Essa é uma mudança desagradável de
sorte.
Hanani também se recostou em uma tenda, abalada demais para ficar de
pé.
— Quem faria uma coisa dessas? Por quê? Compartilhadores não
ofendem ninguém. Não faz sentido.
— Faz se alguém estiver espalhando esse pesadelo de propósito. Nossos
irmãos de caminho estavam trabalhando dia e noite para encontrar uma
cura. O culpado deve ter ficado com medo de que encontrassem. — Ele
cerrou o maxilar com amargura. — Dando esse golpe, eles prejudicaram a
nossa capacidade de cuidar das vítimas e de revidar. Os Compartilhadores
que sobraram não têm esperanças de deter isso agora. O melhor que podem
fazer é socorrer os colegas até o fim.
Aquilo era demais.
— Eu queria ir para casa — sussurrou Hanani. Seus olhos voltaram a
arder, como haviam ardido quando o Príncipe lhe falou de horrores
inimagináveis… mas de que serviriam as lágrimas? Ela chacoalhou a cabeça.
— Apenas alguns instantes atrás, eu perguntei se os banbarranos sequer
eram humanos. Mas o Príncipe estava certo: nós não somos melhores. Só
um gujaareen usaria sonhos como arma. Só nós condenamos os nossos
inimigos ao tormento por toda a eternidade.
— A mesma coisa me passou pela cabeça — comentou Mni-inh. Ela
nunca ouvira tamanho desconsolo na voz dele. — Talvez nunca possamos
eliminar a corrupção de dentro de nós mesmos, não completamente. Mas é
importante continuarmos tentando.
Como que em resposta às palavras de Mni-inh, os dois ouviram uma voz
de criança chamando pelos seus nomes, distorcidos por um forte sotaque
chakti.
Tirada de sua melancolia, Hanani foi ver quem era. Tassa estava perto da
tenda de Mni-inh, olhando em volta; ele se animou ao vê-la.
— Compartilhador — disse ele. — Nu-dari… Unte, líder da tribo…
falou pra vir. Magia… sua magia… — Ele fez cara feia, tentando lembrar
uma palavra. — Precisa sua magia. É. — Ele a chamou com um gesto e
apontou para a tenda de Unte.
Mni-inh apareceu entre as tendas também, franzindo a testa.
— Tem alguém machucado?
— Machucado? Não. É… é… — Tassa contorceu o rosto, incapaz de
expressar seus pensamentos. — Shadoun precisa magia.
Um calafrio percorreu o corpo de Hanani. Será que haviam machucado a
mulher?
Mni-inh pôs uma das mãos no ombro de Hanani, sua expressão soturna
e zangada; ele tinha a mesma suspeita nos olhos, viu Hanani.
— Eu vou — falou ele para Tassa. — Mesmo que seja apenas para dizer
a esses tolos que não vamos corromper a nossa magia por eles, se a quiserem
curada só para fazer mais mal a ela. Hanani…
— Eu também vou.
Mni-inh abriu a boca para protestar, recebeu um olhar dela e fechou-a.
Ele chacoalhou a cabeça.
— Aprendi a essas alturas a não discutir com você. Você sempre ganha.
Hanani fez um aceno para Tassa; ele os conduziu pelo acampamento até
a tenda de Unte.
A cena, quando eles entraram nos limites esfumaçados da tenda, não era
tão terrível quanto Hanani temera. Unte estava perto da mulher shadoun,
que fora obrigada a ajoelhar-se, ainda amarrada, no centro da tenda. Tajedd
estava sentado do outro lado da mesa, de frente para ela, e ao lado dele havia
dois outros homens, seus trajes índigo empoeirados da viagem: os dois
líderes de tribo recém-chegados. A mulher shadoun parecia ter sofrido
poucos golpes adicionais além do hematoma sobre um dos olhos, que
parecia recente.
— O que é isto? — perguntou a mulher, olhando para Hanani e Mni-
inh de alto a baixo. Seu gujaareen, provavelmente a única língua comum
entre os shadoun e os banbarranos, tinha um toque de sotaque cadenciado
que Hanani nunca ouvira. Ela contorceu o lábio em um gesto de repulsa. —
Vocês cruzam com os nortenhos agora? Esses dois são pálidos como a areia.
Unte, o rosto impassível, ignorou a mulher. Para Hanani e Mni-inh ele
disse:
— Wanahomen me contou muitas vezes que o seu povo pode curar a
loucura.
Hanani piscou; Mni-inh compartilhou com ela uma expressão de igual
surpresa.
— Até certo ponto — respondeu Hanani enfim. — Certos tipos de
loucura reagem bem à nossa magia, mas não todos.
Unte aquiesceu, depois inclinou a cabeça em direção à mulher shadoun.
— Por favor, diga se esta mulher está louca.
— Gujaareen! — Os dois sobressaltaram-se, pois a mulher pronunciara a
palavra com um rosnado, como uma maldição. O ódio nos olhos dela não se
parecia com nada que Hanani já houvesse visto; de repente, ela entendeu
por que os líderes de tribo banbarranos questionavam sua sanidade. De fato,
a mulher tremia de ódio. — Gujaareen e Hetawa. Eu sabia que vocês,
banbarranos, se associavam com cachorros, mas nunca sonhei… — Ela
cuspiu de forma abrupta, girando o pescoço com o esforço; o cuspe foi cair a
pouco mais de dois centímetros das sandálias de Mni-inh.
Com a mesma calma com que falara com eles, Unte deu um tapa na
mulher com as costas da mão, atingindo-a com tanta força que ela caiu de
lado. Então ele agarrou a parte de trás da vestimenta dela e puxou-a para
que se levantasse, segurando-a até que se firmasse outra vez.
O golpe fez Hanani levar as mãos à boca; Mni-inh dera um passo
adiante, os punhos cerrados.
— Pare com isso, droga!
Unte apenas os fitou e seu semblante vazio gelou até os ossos de Hanani.
Até Mni-inh recuou ao ver aquela expressão, o rosto empalidecendo.
Quando voltou a falar, seu tom foi mais conciliador.
— Perdão — disse ele. — Falei sem pensar. Mas… tenho certeza de que
o P… Wanahomen contou que a nossa fé, a nossa ordem, considera a
violência um grande mal.
— Sei disso — falou Unte. Hanani pensou… esperou… ter visto certo
abrandamento na expressão dele em resposta ao pedido de desculpas de
Mni-inh. — E é por isso que a única coisa que peço é que vocês
determinem se ela está louca. Se estiver, não peço que a curem. — Ele
dirigiu um olhar aos demais líderes de tribo, todos igualmente soturnos. —
Outros pediriam para que ela pudesse ser dada para as mulheres se
divertirem, mas eu não. Se ela estiver louca, vamos matá-la para sua loucura
não infectar todos nós. Se estiver sã… — Ele fechou a boca.
Nesse ponto, Hanani entendeu e um aperto doloroso dentro dela se
desfez. Na verdade, se pudesse, teria abraçado Unte. Se ela e Mni-inh
julgassem a shadoun insana, ela receberia uma morte rápida. Significava
mentir se a mulher fosse sã, mas nenhum ato que servia à paz poderia ser
verdadeiramente errado, poderia? Ela olhou para Mni-inh na esperança de
que ele concordasse, embora tivesse o cuidado de manter a expressão tão
neutra quanto a de Unte. Era pouco provável que os outros líderes de tribo
falassem gujaareen porque eram homens. Mas estava claro que era
importante que Unte não mostrasse nenhum sinal de gentileza para com a
shadoun.
— Vocês não vão me tocar — disse a mulher de repente, olhando feio
para Mni-inh. — Agora sei o que vocês são, apesar de eles terem vestido
vocês com as roupas cafonas deles. Dash ta hinakri en em… — Ela passou a
falar na própria língua por um momento, tremendo de raiva. — Demônios!
Insetos! Não vou tolerar que me toquem!
— Somos Compartilhadores de Hananja — explicou Mni-inh,
inclinando a cabeça. — Curadores…
— Não me importa! Deixe esses tteba ficarem comigo. — Ela fez um
movimento brusco com a cabeça apontando a aba da tenda de Unte. — Eu
preferiria ter cem deles em cima de mim do que estar na mesma tenda que
vocês!
Mni-inh fitou a mulher, depois trocou um olhar confuso com Hanani.
Era extremamente inapropriado para um Compartilhador forçar uma cura
indesejada a um requerente; só os Coletores tinham o direito de impor
magia contra a vontade de uma pessoa. Mas, se não fizessem nada, era
impossível dizer o que os banbarranos fariam.
— Deixe comigo — falou Mni-inh finalmente. Ele suspirou e ergueu as
mangas, dando um passo adiante.
A mulher ficou tensa, os olhos brilhantes como os de um animal
encurralado. Hanani arquejou um alerta apenas um instante antes de ela se
precipitar sobre Mni-inh. O que ela pretendia fazer Hanani não podia
imaginar… mordê-lo? Mas Mni-inh também vira que o ataque estava vindo
e evitou a investida, segurando um ombro dela com a mão.
A shadoun arquejou, os olhos ficando vidrados, e tombou ao chão.
Sangue onírico. Chacoalhando a cabeça com pesar, Mni-inh ajoelhou-se,
virou-a com a ajuda de Unte e pôs os dedos nas pálpebras dela, que já se
fechavam.
Foi só nesse momento que Hanani notou os círculos fundos sob os olhos
da mulher e a exaustão que a raiva dela escondera até então. Viajar sozinha
pelo deserto não devia ter sido fácil para ela, especialmente em território
inimigo. A pobre mulher parecia não dormir há dias…
Não dormir há dias.
Eles vão ficar acordados o máximo que puderem, dissera Mni-inh sobre os
irmãos de caminho que agora carregavam a doença do pesadelo.
No silêncio que recaíra, Mni-inh arquejou de repente, abrindo os olhos.
Unte, que ajudava a segurar a mulher, franziu a testa para ele abruptamente.
Mas quando enfim cederem…
— Não. — Hanani tentou se mexer, mas seus membros não obedeciam.
Em sua mente, ela viu o Coletor Sonta-i, viu Dayuhotem. — Não…
Já era tarde demais. Mni-inh começou a tremer todo, o rosto se
contorcendo. Ele emitiu um único som malogrado, meio um grito, meio um
soluço.
— Não! — Algo estalou dentro de Hanani. Ela correu até ele,
empurrando Unte para um lado com o ombro. Mas Mni-inh tombou ao
chão antes que ela pudesse segurá-lo.
Hanani se jogou sobre ele, puxando-o com toda a sua força para colocá-
lo de costas. Ela teve de fechar as pálpebras dele com os dedos: estavam
arregaladas, horrorizadas. Precisou de toda a sua disciplina para se acalmar o
suficiente para entrar no sono de cura, mas entrou e se projetou na carne
dele, procurando e procurando por sua alma.
Mas não restara nada dentro dele a não ser silêncio.
32

MORTE

Por um momento, entrando na tenda de Unte, Wanahomen pensou ter


voltado no tempo. Mais uma vez Hanani estava imóvel; mais uma vez a
sensação do ar era de morte e choque. Mas havia dois corpos no tapete
desta vez: a mulher shadoun e o Compartilhador Mni-inh.
— O que aconteceu, em nome das sombras? — perguntou ele.
O fato de que Tajedd foi o primeiro dos líderes de tribo a responder foi
uma medida de quão perturbador fora o acontecimento.
— A mulher estava balbuciando — explicou ele, parecendo atordoado.
— Nós oferecemos comida e bebida, nós a ameaçamos, e ela só nos xingava.
Então mandamos chamar esses dois — ele acenou para o corpo de Mni-inh
e para as costas de Hanani — para ver se ela estava louca.
— Ela não queria que eles a tocassem. — Outro homem, que
Wanahomen não conhecia. A julgar pela forte semelhança entre ele e Unte,
aquele era o irmão mais novo de Unte e o líder da tribo Issayir. — Então o
curador fez alguma coisa para acalmá-la. Quando ele pôs os dedos nos olhos
dela… — Ele estremeceu. — Nunca vi uma expressão daquela no rosto de
um homem.
— Foi o pesadelo da morte. — A voz da mulher do templo, suave nos
melhores momentos, mal se ouvia agora. Ela estava sentada de costas para
eles, a cabeça de seu mentor em seu colo. Wanahomen achou estranho que
ela houvesse desfeito o coque habitual do mestre. Uma das mãos dela
afagava o cabelo dele, lenta e continuamente. — O sonho que mata como
doença. Alguns não morrem logo, mas carregam a doença com eles,
passando para todos os que dormem por perto. — Ela parou por um
momento, embora sua mão jamais parasse com a carícia incessante. — Está
anoitecendo.
Wanahomen ficou tenso.
— Você está dizendo… — Mas ele enfim entendeu. Havia boatos sobre
o pesadelo na cidade quando fora visitar Sanfi, apesar de jamais ter
suspeitado que fosse tão grave. E agora ele se lembrava de como haviam
encontrado a shadoun: acendendo uma fogueira para fazer chá. Chá preto
forte para se manter acordada. Ela devia saber que carregava a morte dentro de
si. Então veio para o meio dos inimigos sem se importar em como ia morrer,
contanto que nos levasse consigo.
Os líderes de tribo estavam observando-o, esperando; Hanani falara em
gujaareen. Ele engoliu em seco e explicou.
Tajedd recuou.
— Uma praga! Aqueles cadáveres podem transmiti-la agora?
— A magia onírica não funciona assim. Não há perigo. — Wanahomen
olhou para Hanani, perturbado com sua imobilidade. — A shadoun deve ter
passado pela capital de Gujaareh recentemente, fazendo comércio. Desde a
conquista kisuati, eles são a única tribo do deserto que tem permissão para
entrar na cidade. Se passaram a noite na cidade, perto de alguém que tinha a
doença… Pelo que ouvi falar, não precisa de mais que isso.
— Animais — rosnou o outro líder de tribo… dos Madobah,
Wanahomen adivinhou por eliminação. Ele olhou feio para o cadáver da
shadoun. — Covardes sorrateiros! São fracos demais para nos enfrentar em
um combate, então recorrem a truques?
— É — concordou Unte. Ele também fitou a shadoun, que morrera com
uma careta no rosto. — Muitos dos melhores guerreiros das seis tribos estão
aqui. Se o plano dela tivesse dado certo, ela teria conseguido em uma única
noite o que gerações de rixas de sangue entre as nossas raças não
conseguiram. — Ele deu um suspiro pesado e olhou para o corpo do
Compartilhador. — Diga à mulher, quando achar apropriado, que o amigo
dela será enterrado com todas as honras devidas a um guerreiro banbarrano.
Ele pode ter perdido a própria vida, mas nos salvou no processo.
Wanahomen aquiesceu. Seguiu-se um silêncio desconfortável; em meio a
ele, todos ouviam o leve murmúrio de movimento enquanto Hanani afagava
outra vez o cabelo do mentor.
Wanahomen foi até ela e agachou-se ao seu lado, espiando seu rosto. Ela
não estava chorando. Em vez disso, estava com uma expressão
estranhamente vazia da qual Wanahomen não gostou nem um pouco.
— Compartilhador-Aprendiz. — Ele hesitou por um momento, sem
saber ao certo se o gesto seria rejeitado, mas então pôs uma das mãos na
dela, contendo a carícia incessante.
Ela olhou para ele e a máscara vazia se desfez. Pelo espaço terrível de
uma respiração, tamanha agonia distorceu o rosto dela que ele mal a
reconheceu. Naquele momento, ele receou que a dor fosse grande demais
para suportar; ela enlouqueceria ou morreria de pesar. Mas então o
momento passou e o rosto dela voltou à expressão vazia. Ela respirou fundo
e aquiesceu, depois cuidadosamente tirou a cabeça do mentor do seu colo.
— Vocês têm assuntos para discutir — disse ela. — Me perdoem.
— Hanani — falou ele, recorrendo com desconforto ao nome dela. —
Você deveria…
— Você pode tomar as providências para o funeral? — Ela atropelou as
palavras dele como se ele não houvesse falado. — Apesar das…
circunstâncias… a cremação deve servir. A alma dele não está nem aqui em
Hona-Karekh, nem sonhando em Ina-Karekh. A carne dele não tem
importância
Wanahomen ficou pensando onde estava a alma do homem, mas não
teve coragem de perguntar.
— Os banbarranos não cremam, mas vou ensiná-los como construir a
pira corretamente.
— Obrigada, Príncipe. — Ela se levantou em um movimento vagaroso e
desajeitado, como se manter a máscara de calma lhe custasse todo o seu
esforço. Não lhe restara nenhuma força para a graciosidade. — Dadas as
circunstâncias, devo pedir outra vez doações de humores oníricos da tribo, já
que agora sou a única curadora aqui.
— Vou falar para o Unte. — Ele continuou rápido, antes que ela pudesse
interrompê-lo outra vez. — Hanani, você não deveria ficar sozinha.
Ela fitou-o e ele viu a terra das sombras nos olhos dela.
— Quem vai me dar paz agora, Príncipe? Você?
— Existe mais de um tipo de paz — pontuou ele, fazendo cara feia. —
Yanassa. Vou pedir para ela…
— Obrigada pela sua preocupação. — Ela se virou para ir embora, então
parou. — Esse foi claramente um acidente imprevisto. Quando eu voltar
para o Hetawa, vou assegurar que os meus confrades entendam.
Wanahomen fez uma careta, envergonhado pelo próprio egoísmo,
porque no fundo da mente preocupara-se exatamente com isso. Mas ela não
lhe deu chance de verbalizar uma resposta. Com um esforço quase palpável
para endireitar os ombros, ela inclinou respeitosamente a cabeça para os
líderes de tribo, depois saiu da tenda.
— Wana. — Unte. Ele estava franzindo a testa para Hanani. — Não sei
quais são os costumes da sua terra, mas…
— Em Gujaareh, nós a mandaríamos para o Hetawa — respondeu
Wanahomen em tom pesaroso. — O meu povo trata as feridas da alma
assim como as da carne. Nós nunca deixamos essas coisas ulcerarem. Mas
não há ninguém aqui que possa curá-la agora.
Unte suspirou e aquiesceu.
— Bem. A celebração do fim do solstício é amanhã à noite. A votação
vai acontecer um ou dois dias depois, presumindo que as duas tribos que
faltam cheguem a tempo. De um jeito ou de outro, vamos poder levá-la para
casa logo.
Wanahomen não tinha certeza se ela sobreviveria por tanto tempo, mas
guardou esse pensamento para si mesmo.
— Ela falou que vai contar aos seus confrades do Hetawa que a morte
dele não foi culpa nossa. — Ele olhou para os dois cadáveres e estremeceu.
— Mas isso é culpa minha. Eu trouxe esse horror para dentro da tribo. —
Cerrando os punhos, ele foi até Unte, tirou o véu e o lenço e ajoelhou-se.
Embora eles houvessem concordado que Wanahomen jamais curvaria a
cabeça para Unte (reis não se submetem a outros reis), ele o fez nesse
momento, pressionando as duas mãos no chão e inclinando a testa até elas,
em um pleno e formal gesto gujaareen de arrependimento. Ele odiava as
palavras que tinha de dizer, odiava a si mesmo por ter de dizê-las, mas era
impossível negar que precisavam ser ditas.
— Eu fui negligente — declarou ele. O rapaz falou em gujaareen; ele
não poderia ter se humilhado apropriadamente em chakti. — Presumi que a
mulher não poderia nos fazer mal e não notei o que deveria ter notado,
embora os sinais estivessem lá. Você estava certo de duvidar de mim, Unte,
eu não me importo o suficiente.
Houve silêncio por um momento, durante o qual Wanahomen contou
cada batida do coração. Mas então Unte tocou seu ombro.
— Acho que talvez você se importe um pouco mais agora — falou ele
com uma brandura surpreendente.
Depois ele passou a falar em chakti para que os outros líderes pudessem
entender a conversa.
— Fique tranquilo, Wanahomen. Ninguém poderia ter previsto isso.
— Mas a minha negligência…
Unte chacoalhou a cabeça.
— Cuide da sua compatriota, então, se quer cumprir penitência. Mas
não consigo ver como eu poderia ter feito diferente no seu lugar. — Ele
olhou para os outros líderes de tribo; dois deles concordaram com a cabeça.
Tajedd não concordou, mas isso era de se esperar.
Wanahomen fechou os olhos por um instante, aliviado e agradecido e
angustiado, tudo ao mesmo tempo. Sentia um aperto na garganta, mas isso
não serviria de nada, não em um ambiente cheio de homens que ele ainda
esperava atrair para a sua causa… apesar de que, depois daquilo, suas
chances provavelmente desvaneceriam como névoa antes do sol. Não havia
nada a ser feito quanto a isso agora. Ele engoliu em seco, aquiesceu e
levantou-se.
— A mulher pediu que ele fosse queimado — disse ele, apontando com
a cabeça para o corpo do Compartilhador.
Unte coçou o queixo, pensativo.
— Há uma caverna onde isso pode ser feito — falou ele. — Em direção
ao norte do cânion, bem longe dos campos, onde o rio corre no subsolo.
Existem muitas aberturas para outras cavernas; isso deve dissipar a fumaça.
Wanahomen anuiu.
— Eu conheço o lugar. Vou pedir para os meus homens cuidarem disso.
— Ele olhou para a shadoun. — E ela?
Unte deu um sorriso triste.
— Ela também deveria ser enterrada de forma honrosa — respondeu ele.
— Assim como qualquer guerreiro que faz um ataque útil pelo seu povo.

***

A noite caíra quando Wanahomen foi procurar Hanani. A essa altura, ele
estava suado e com calor, cheirando a óleos e ervas, e cansado demais para
tomar outro banho antes do período da manhã. Por outro lado, também
estava preocupado com a mulher. Ele não achava que ela era do tipo que se
machucaria… ou pelo menos não ali e naquele momento. Ao menos, como
uma boa hananjana, ela ia querer doar seu sangue onírico antes de morrer.
Ele avistou Yanassa em meio a um pequeno grupo com outras mulheres,
ouvindo música não muito longe da tenda de Hanani. Com várias centenas
de convidados no cânion e o desastre evitado, parecia que Unte havia dado
permissão para as celebrações do solstício continuarem. Mesmo assim, havia
um toque de moderação na festança. A instrumentista, Neapha Sete-Dedos,
tocava um lamento baixo e pesaroso. Wanahomen não viu ninguém
dançando, tampouco as celebrações mais alegres e barulhentas que eram
comuns na penúltima noite do solstício. Na noite de amanhã talvez eles
voltassem à alegria habitual, especialmente se a votação fosse a favor da
guerra. Na noite de hoje, a atmosfera na tribo era melancólica.
Yanassa avistou Wanahomen e fez um gesto de desculpas para as
companheiras antes de se levantar e vir ao encontro dele.
— Você vai vê-la?
Ele confirmou com a cabeça.
— Você a viu? Como ela está?
— Ela me deixou entrar por algum tempo, mas não falou sobre a sua
dor. — Yanassa baixou os olhos. — Nós tivemos uma discussão antes sobre
a mulher shadoun e acho que ela não confia mais em mim. Talvez você se
saia melhor.
As coisas estariam de fato ruins se esse fosse o caso.
— Vou lá agora.
Houve uma movimentação imediata do lado de dentro quando
Wanahomen tamborilou na aba da tenda de Hanani. Ela abriu para ver
quem era.
— Príncipe, você veio para a próxima aula?
Ele se sobressaltou; essa fora a última coisa que lhe passara pela cabeça.
— Esta noite não me parece o momento…
— Yanassa me contou que os líderes de tribo votam daqui a dois dias.
Não resta muito tempo para eu te ensinar. Entre. — Ela saiu da tenda e
contornou-a, dirigindo-se ao círculo de fogo outra vez.
A an-sherrat ainda tinha quatro tendas, percebeu Wanahomen. Ele
pediria aos seus homens que retirassem a de Mni-inh pela manhã.
A mulher estava se comportando melhor agora do que à tarde. Não havia
nenhum sinal externo de dor em seus movimentos ou em sua conduta,
nenhum sinal de emoção nenhuma. Ela também parecia melhor
fisicamente, embora isso provavelmente fosse um feito de Yanassa. O
penteado fora refeito com cachos, os ornamentos pesados substituídos por
minúsculas moedas douradas de enfeite que tilintavam de leve quando ela
andava. Os banbarranos usavam o tilintar das moedas para afastar a má
sorte em tempos de luto.
Suspirando, ele se sentou em uma das pedras ao lado da fogueira. Ela se
sentou de frente para ele.
— Cuidei do corpo do seu mentor da melhor forma que pude — disse
ele. — Eu não me lembrava de todos os ritos, não tinha os envoltórios, mas
o tratei com dignidade. Meus homens estão recolhendo lenha hoje à noite;
de manhã vamos levá-lo a um lugar para acender a pira. Você quer vir junto?
Ela não falou nada por um momento, a linguagem corporal tão
impossível de interpretar quanto o rosto.
— Não.
Nem uma lágrima, nem um tremor, nem um único sinal de tristeza. Se
ele não houvesse passado a conhecer a combinação peculiar de força e
incerteza que era normal dela, não saberia que havia algo de errado.
— Você encontrou portadores do dízimo?
— Yanassa — respondeu ela. — E Charris também, quando veio fazer
uma visita. E alguns outros.
— Você tem o suficiente agora?
— O suficiente de tudo, menos de sangue onírico, mas isso é de se
esperar sem a ajuda de um Coletor. Os vivos podem ceder muito pouco do
próprio sangue onírico.
Wanahomen tivera a esperança de desviar a conversa da morte.
— Esta aula. Vai ser tão desconfortável quanto a outra? — Ele conseguiu
dar um sorriso, mas ela não respondeu com outro.
— Isso depende de você — respondeu ela. A inexpressividade de sua voz
era verdadeiramente inquietante, comparada ao seu tom compassivo de
costume. — Por favor, durma agora.
Mais fácil falar do que fazer, pensou ele com azedume, mesmo assim se
virou para se sentar no chão, apoiando as costas na pedra. Embora estivesse
exausto, o sono demorava para chegar. Estava demasiado consciente dos
olhos dela sobre ele, do crepitar do fogo, do desconforto do chão.
— Você não consegue dormir.
O som da voz dela.
— Vai acabar acontecendo — retrucou ele. — Se estou demorando
demais para o seu gosto, podemos terminar a aula amanhã.
— Imagine uma coisa importante para você.
Ele franziu a testa.
— Como o quê?
— Algum objeto, ou um símbolo que tenha significado para você. Um
pictoral talvez. Imagine-o. Contemple seus contornos em sua mente.
Ele pensou por um momento, depois cautelosamente, reverentemente,
desenhou a imagem da Auréola do Sol Poente em sua mente. Não a
imitação da mãe, mas a coisa real: o bastão entalhado de nhefti branco, uma
madeira usada apenas para objetos sagrados. A moldura de metal, feita por
um artesão há tanto tempo que seu nome fora esquecido. Placas de âmbar
polido, cada uma entalhada a partir de pedras que deviam ser do tamanho
de melões e cada uma valendo o equivalente a toda a riqueza de um reino
menor para representar os raios sobrepostos do sol. Oito em âmbar
vermelho, oito em amarelo-claro. Ele se lembrava de ouvir quando era
criança, extasiado, enquanto o pai explicava que a placa central, o
semicírculo dourado com dois palmos de largura e quase tão vermelho
quanto o sangue, representava o Sol, que fundara a linhagem deles com uma
bela garota mortal que encheu seus olhos sempre inquietos. Fora extraída de
uma montanha onde a camada de neve era grossa o bastante para alguém se
afogar…
Niim.
A voz da mulher não o perturbou desta vez. Algo mudou dentro dele.
De repente, sua pele arrepiou com um calafrio muito mais profundo do que
aquele da noite do deserto e o ar tinha um sabor seco e amargo, como metal
enferrujado. Ele abriu os olhos e encontrou a an-sherrat em tons de branco e
cinza. Mesmo o fogo que ardia lento aos seus pés havia ficado
estranhamente sem cor. Mais branquidão, cintilante e estranha, cobria as
paredes da tenda e cada superfície. Ele tocou uma massa que havia ali perto
e a frieza dela ferroou seus dedos. Neve? Nunca a vira, mas estava pensando
nela, recordando as histórias do pai… De pronto, entendeu.
— Estou sonhando.
— Está. Mas não em Ina-Karekh. — A mulher do templo, quando ele
olhou em volta, estava a alguns metros de distância. Havia algo estranho em
sua forma onírica, que cintilava de vez em quando, como que tentando
assumir uma forma diferente, mas no momento ela a tinha sob controle.
— Este é o reino entre a vigília e o sonho — explicou ela. — A sua alma
me trouxe para cá várias vezes em vez de me levar para Ina-Karekh.
Acredito que seja um sinal de que alguma parte de você está desalinhada. —
Ela fez uma pausa. — Você tem visões com frequência?
Wanahomen estremeceu e mentiu.
— Não.
Ela ficou em silêncio por tanto tempo que ele soube que ela não havia se
deixado enganar. Mas ele não tinha nenhuma intenção de admitir a verdade
diante dela.
— Não importa — disse ela por fim. — De qualquer forma, pretendo
ensinar você a se curar.
Ele franziu a testa, confuso, envolvendo o corpo com os braços. O frio
atravessava as suas vestes.
— Não gosto disso.
— Então mude — falou ela. — Este é o seu reino.
— Não entendo.
— Um Coletor é aquele cuja mente cria novos mundos por meio do ato
de sonhar. Fazer isso é natural para eles. Na verdade, se não fosse pelo poder
equilibrador do sangue onírico, alguns deles passariam o tempo inteiro nos
mundos criados por suas mentes. Você chamaria isso de loucura.
Ele estremeceu, ou arrepiou. Ela não parecia afetada pelo frio por
alguma razão, embora vestisse menos roupa.
— Não sou um Coletor. — Quando ela não disse nada em resposta, ele
fez cara feia e mudou de assunto. — Como saio deste lugar?
— Crie outro. Assim como criou este.
Ele se lembrara das histórias do pai e imaginara uma paisagem onírica
coberta de neve. Decidiu tentar outra lembrança de infância: os jardins do
Kite-iyan, o palácio de suas mães e irmãos. Em sua visão mental, ele viu as
delicadas palmeiras em miniatura, sentiu a fragrância das flores das videiras
e do rio próximo, sentiu a terra entre os dedos dos pés…
Os dedos dos pés. Ele estivera usando sandálias, mas agora seus pés
estavam descalços. O ar estava tépido. Ele abriu os olhos para ver o Kite-
iyan… incolor, sombreado, mas inconfundível.
Hanani olhou ao redor, acenando no que poderia ter sido aprovação.
— A sua vontade é forte. Mas isso nunca esteve em questão. — Então
ela andou pelo jardim, incongruente com seu elegante vestuário bárbaro e
sua disciplina do Hetawa, passando os dedos pelas plantas, pelos
pedregulhos, por uma parede de pedra. — O que você está vendo aqui? Está
tudo em ordem?
Ele franziu a testa, perguntando-se do que em nome dos deuses ela
estava falando.
— Está como eu me lembro, sim, exceto por esse tom feio de cinza.
— Nada fora do lugar? Tem certeza?
— Claro que não tenho certeza, não venho aqui faz dez anos. — Ah,
mas como sentira falta de lá! Brincara naqueles jardins quando criança, de
esconde-esconde com os irmãos e de construir castelos de areia com as
irmãs. Ouvira a mãe, naqueles tempos muito antes de a doença e a velhice
enfraquecerem a sua voz, cantar as músicas da sua terra natal em suua. Ele
ouvira…
Um barulho. Algo no jardim não soava certo.
Girando para se orientar pelo som, ele começou a andar entre as
palmeiras e as samambaias. Água. Sim, a velha fonte; ele quase se esquecera.
Fixa na parede, uma cabeça de leopardo despejava água na boca aberta de
três filhotes, que então derramava em uma piscina abaixo.
— Está fraco demais — murmurou ele, meio para si mesmo. — Não há
água suficiente, está gotejando devagar demais.
— Conserte. — Em silêncio, a mulher viera para o seu lado. Será que ela
caminhara ou simplesmente se manifestara ali?
Wanahomen olhou ao redor da fonte, procurando algum mecanismo,
embora ela houvesse sido construída séculos antes e ele jamais tivesse sabido
nada sobre o seu funcionamento. Mas Hanani tocou seu braço.
— Este é o seu mundo — afirmou ela. A estranha turvação na forma
onírica da moça cessara; ela estava focada por inteiro nele agora. Ele se
sentiu indiretamente lisonjeado. — Conserte.
De repente, Wanahomen entendeu. Ele não precisava de mecanismos e
conhecimento sobre construção quando controlava tudo o que via apenas
com a força de vontade. Então se concentrou em lembrar-se de como
funcionava o fluxo de água, afinando a imaginação. Quando o som da fonte
correspondeu ao som de sua lembrança, desceu-lhe pela espinha um calafrio
que não tinha nada a ver com os flocos de neve que ainda derretiam em seu
cabelo. Por puro instinto, ele ergueu a cabeça, o olhar atraído para o céu.
Aquilo também estava errado. Ele dera ao cenário o céu causticante e sem
nuvens dos desertos em torno do Merik-ren-aferu. Em vez disso, desejou
um azul mais intenso e algumas nuvens finas de umidade que
desapareceriam ao redor do meio-dia, mas sempre voltariam à noite.
O calafrio percorreu seu corpo outra vez, mais forte agora, e com ele veio
uma sensação de conformidade tão poderosa que ele conteve a respiração.
— O que você está sentindo é equilíbrio — explicou Hanani. — Paz.
Lembre-se. Quando essa sensação mudar ou desaparecer, volte para este
lugar e faça o que acabou de fazer. Ou crie um lugar diferente, não importa.
Quando invoca o seu nome de alma, você se despe do artifício do seu eu da
vigília. Quando cria um domínio neste lugar vazio, tudo… todas as coisas
que você vê… é você. Mude-o e mudará a si mesmo.
Ele respirou fundo, saboreando a sensação de conformidade. Admirou-se
de não ter notado sua falta antes. Será que isso significava que estava
enlouquecendo aos poucos? Um pensamento assustador.
— Não entendo como isso funciona.
— Não precisa entender. Nenhuma outra pessoa entende. — Quando
ele a fitou, surpreso, ela sorriu, embora fosse um sorriso com pouco humor.
Ele tinha a sensação de que aquela expressão era mais um reflexo. — Aqui é
o sonho, Príncipe. Estes são os reinos dos deuses. Apenas os mais fortes
Coletores têm alguma esperança de entender: eles nascem para o poder da
Deusa de uma maneira que o resto de nós só consegue se esforçar por
imitar. É por esse motivo que eles nos conduzem… e é por esse motivo que
temos tanta esperança em você, Avatar de Hananja.
Ele franziu a testa ao ouvir aquilo, mas, ao mesmo tempo que o fazia,
percebeu que os sinais estiveram ali o tempo todo, tão claros quanto os
círculos sob os olhos da shadoun. Ele achara que o interesse do Hetawa nele
era puramente político. Eles precisavam de um novo testa de ferro e ajuda
militar para se livrar dos kisuati. Mas agora sabia: acreditavam de fato que
ele era um deles. Amaldiçoado pela magia deles, sem treinamento nem
controle, mas abençoado pelo favor da Deusa também. Para o Hetawa,
aquilo era tudo.
Wanahomen nunca acreditara em Hananja de verdade. Ah, ele sonhava,
e tinha visto o poder da magia do Hetawa, mas a ideia de que uma deusa
pudesse se importar com criaturas minúsculas que se esgueiravam nos
sonhos Dela parecia absurda. Aquela questão do avatar sempre fora apenas
outro título para ele, mais sem sentido do que o resto. Mas, se era a razão
pela qual o Hetawa concordara em ajudá-lo, então o título tinha de fato
poder real. E se existisse alguma verdade nesse título? E se o poder que esses
sacerdotes ficavam dizendo que ele tinha, um poder que deveria tê-lo
tornado um Coletor, tivesse algum outro propósito mais sagrado? Qual era
esse propósito? E por que Ela o dera a ele?
Wanahomen chacoalhou a cabeça e levantou-se. Ele pensaria em tudo
aquilo depois.
— Então é isso? Agora vou conseguir evitar a loucura?
— Você pode usar este método para manter os seus humores em
equilíbrio, sim. Mas fique vigilante, pois a loucura tem muitas formas e nem
todas são afetadas pelo sangue onírico. A corrupção do seu pai é prova disso.
Ele ficou tenso e um súbito vento cortante soprou pelo jardim.
— Ele não era louco.
— Então você acredita que ele simplesmente era mau? Nem nós
chegamos tão longe, Príncipe.
Ele se virou para ela, fazendo cara feia.
— Também não acredito nisso.
— Você sabe o que ele tentou fazer. Torturou um Coletor duas vezes até
aquele Coletor se transformar em um monstro. Soltou aqueles monstros
tanto sobre os inimigos como sobre os aliados, condenando todos a destinos
muito, muito piores do que a morte…
— Não foi assim! Ele não era assim! Ele era…
O jardim mudou, banhando-se com uma luz do sol intensa, porém ainda
incolor. Agora ele estava nos andares superiores do Kite-iyan, na sacada do
suntuoso apartamento com muitos quartos que um dia fora seu. Olhou para
si mesmo e viu roupas de uma vida diferente: seu sobrepano de pele de
leopardo favorito e uma camisa solta de seda importada, sobreposta pelo
colarinho de jaspe que sua mãe lhe dera para a sua cerimônia da idade do
amadurecimento. Suas mãos estavam mais macias e os braços, menos
musculosos do que haviam se tornado nos dez anos de vida difícil de
guerreiro…
— Wanahomen — disse uma voz às suas costas e seu coração parou.
Então ele se virou.
Eninket, agora Rei do Trono dos Sonhos de Gujaareh, atravessou o
quarto com suas passadas largas de costume. Havia um sorriso em seu rosto
e os braços estavam estendidos para abraçar o filho favorito. Quase
paralisado pelo choque e pela lembrança e pela dor ainda muito viva,
Wanahomen correspondeu ao abraço, os olhos enchendo-se de lágrimas,
uma vez que o sonho fornecia muitos detalhes importantes que ele quase
esquecera. O cheiro do pai, suor e olíbano e óleo de cravo. O tinido de
minúsculos cilindros dourados entrelaçados no cabelo dele. A força dos
braços dele, que, naquela época, mesmo como um jovem adulto que já
passara das ilusões da mocidade, Wanahomen acreditara que jamais pudesse
esmorecer.
O dia. Sim, ele se lembrava disso também. Foi um dia antes daquele em
que os exércitos de Kisua e Gujaareh deveriam se encontrar em Soijaro, no
norte de Kisua. O dia anterior à morte do seu pai.
— Pai — sussurrou Wanahomen, abraçando-o com força. — Pai. —
Quando abriu os olhos, porém, viu algo que o abalou: a mulher do templo.
Ela os observava, sua forma ainda cinza e branca e incolor, do outro extremo
do quarto. Enquanto ele olhava, ela se turvou de novo e, desta vez, ele
conseguiu vislumbrar lampejos do outro eu da moça: uma figura chorosa e
plangente. Uma figura extenuada com olhos cheios de uma compaixão
amarga.
Isso mesmo. Ela também sabia o que significava perder um pai.
Wanahomen afastou-se do abraço do pai, fitando o rosto do homem que
fora o deus do seu mundo por tanto tempo. Será que realmente houvera
tanta tristeza escondida atrás do sorriso largo do pai naquela época? Ou
seria aquilo apenas um truque da memória?
— O que há de errado, Wana? — perguntou seu pai, meio que sorrindo
de espanto ao ver a expressão dele.
— Nada — respondeu ele. — Só estou feliz de te ver. — Então seu pai
sorriu e passou um braço amigável ao redor do seu ombro, conduzindo-o
para a sacada.
Este é o seu mundo, dissera Hanani. Ele veria o que quisesse ver. Naquela
época, quando ele era o filho mimado de um príncipe, houvera muita coisa
que não quisera ver no que se referia ao pai. Agora…
Hesitando por mais um instante, Wanahomen fechou os olhos e desejou
que a sua lembrança se tornasse certa.
Quando abriu os olhos, o pai havia se afastado, apoiando-se no parapeito
da sacada enquanto contemplavam juntos o sol poente. Agora Wanahomen
via as linhas de preocupação em volta dos olhos do pai, lia a tensão atípica
no corpo dele. Agora Wanahomen notava, enfim, que o pai não olhava em
seus olhos.
— Quero que você saiba — falou o pai — que, o que quer que eu faça
amanhã, é por você.
A Ceifa dos exércitos. Seu pai fizera aquilo para alcançar a imortalidade
por meio de um conhecimento mágico tão antigo e proibido que a maior
parte do mundo havia se esquecido de sua existência; embora Wanahomen
não soubesse disso na época, Charris confessara a verdade para ele nos anos
que se seguiram. Se Eninket houvesse se tornado imortal, Wanahomen teria
sido condenado ao destino que esperava a maioria dos seus irmãos: uma vida
de precária inutilidade, riqueza e privilégio sem propósito. Como filho
favorecido, ele poderia ter se casado com alguém de alguma linhagem
elevada para consolidar os laços daquela família com o trono, mas jamais
poderia ter alcançado poder ou aclamação próprios, nem mesmo se
abraçasse uma profissão ou arte. Qualquer filho do Príncipe cuja glória se
equiparasse à do pai era uma ameaça potencial ao Trono do Ocaso.
E será que seu pai teria convocado assassinos para matá-lo nesse caso,
como ditava a tradição?
Seu pai dirigiu-lhe um olhar naquele momento. Como é que
Wanahomen nunca notara a vergonha naqueles olhos que eram tão
parecidos com os seus?
— Quero manter você em segurança — disse Eninket em tom baixo. —
Quero que a sua vida seja pacífica. Os fardos de governar… — Ele suspirou.
— Eu os manteria longe de você se pudesse, eu te manteria como você está
agora, sem mácula.
Me manter como estou, pai? Um menino no corpo de um homem? Um animal
de estimação?
Atrás de seu pai, a mulher do templo desviou o olhar.
— Wana? Você entende? — O pai olhou para ele, perturbado com o seu
silêncio.
Sim, eu entendo. Que tipo de homem escolhe um destino desses para o filho?
Entendo exatamente o que você pretendia fazer.
E, no entanto, Wanahomen suspirou, esfregou os olhos, então estendeu
uma das mãos para apertar o ombro do pai. Essa mão, não de todo para
surpresa de Wanahomen, era a mão que ele possuía agora. Não era mais
macia. Estava marcada e desgastada pelo vento, escurecida pelo sol, toda
cortada de cicatrizes adquiridas ao aprender a usar a faca, praticar luta com a
espada, lutar mão a mão. Ele se tornara o homem que seu pai jamais quis
ver.
— Eu te amo, pai — falou ele, e era verdade. — Eu nunca te disse isso o
suficiente. Mas a incorreção aqui neste mundo que é a minha alma… — Ele
fechou os olhos, odiando-se por essa traição, ao menos da própria imagem
que tinha quando jovem do pai. — É você.
E, fechando os olhos, desejou que a incorreção, toda ela, desaparecesse.
Eles flutuaram de novo no espaço entre os reinos, que se despira de sua
aparência e mostrava sua verdadeira natureza como uma escuridão infinita e
amorfa. Isso combinava com o seu estado de ânimo.
— Sinto muito — veio a voz dela de algum lugar.
— Como é que você consegue estar aqui? — perguntou ele. O rapaz se
sentia vazio dentro da parede de cristal que protegia o seu eu mais íntimo.
Toda a sua raiva se extinguira. Ele não conseguia sequer odiar o Hetawa…
pois agora enfim entendera que eles estavam certos em matar seu pai. — Se
este lugar é meu para controlar.
— Alguma parte de você deve me querer aqui. Mas posso ir embora
agora e deixar você dormir. A aula terminou.
— Não. — Ele desejou que a parede de cristal do seu nome de alma
afinasse e se tornasse permeável, um convite. — Fique. Podemos consolar
um ao outro.
De repente, ele sentiu as paredes do eu dela se manifestarem, sólidas,
porém quebradiças como ossos.
— Eu não preciso de consolo.
Ele nunca a ouvira mentir.
Mas antes que pudesse confrontá-la sobre isso, ela se afastou.
— Bom descanso, Príncipe. Em paz. — Rápida como a luz, ela se foi.
— E que a paz Dela esteja com você também — falou ele. Mas sabia que
isso também seria uma mentira por um longo tempo.
33

CONVITE

No escuro de sua tenda, Hanani contemplava a loucura.


Podia senti-la invadindo a sua consciência a cada momento que passava.
Sentira aquilo em Ina-Karekh com Wanahomen e mesmo no reino
intermediário. Não sabia como fugir da loucura. Nem sabia ao certo se
queria fugir.
Dayu. A mercadora Danneh. Mni-inh. Todos com quem me importo
morrem.
Mas não haviam sido só aqueles, não é? Azima, o Coletor Sonta-i, até a
mulher shadoun sem nome. Ela podia não ser a causa direta em todos os
casos, mas o contato com ela havia anunciado cada tragédia. Ela era um
presságio vivo.
Tive medo dos banbarranos, mas eles é que deveriam ter medo de mim, na
verdade. Eu deveria deixar o reino da vigília antes que destrua esta tribo inteira.
Assim seguia a loucura.
Ela sabia que seus pensamentos eram irracionais. O Hetawa ensinava
que não havia presságios a não ser aqueles enviados diretamente pela Deusa
na forma de visões verdadeiras. Mni-inh em especial estaria furioso com ela
por pensar em tal heresia. Mas não importava o quanto ela tentasse manter
aqueles pensamentos afastados, eles sempre voltavam. E ficavam cada vez
mais fortes.
A única solução era não sentir nada e não pensar nas coisas que lhe
causavam dor. Era difícil com tanta gente tentando conversar com ela, tocá-
la, consolá-la. Eles não entendiam. Nada poderia consolá-la após a perda de
Mni-inh. Nada jamais voltaria a consolá-la.
Encolhendo-se deitada de lado entre as almofadas, Hanani adormeceu.

***

A tribo estava alegre quando Hanani finalmente saiu da tenda aquela


manhã. Ela dormira até mais tarde que de costume, seu corpo não
conseguira acordar com o alvorecer pela primeira vez desde que tinha
lembrança. Não tivera nenhum sonho. Do lado de fora, olhando ao redor,
avistou os banbarranos que estavam acordados aglomerando-se perto de um
mirante outra vez. Pelo entusiasmo e pelos dedos apontados, ela supôs que
outro grupo de caça chegara.
Ela foi ao nível do solo para tomar banho, desta vez surpreendendo
algumas outras mulheres banbarranas na piscina. Elas fizeram acenos de
cumprimento e abriram caminho para ela, demonstrando mais cortesia do
que nunca. Embora não fizesse ideia do que elas diziam enquanto
tagarelavam à sua volta, achou o simples tom das vozes das mulheres
irritante o suficiente: elas estavam tão felizes. Quando não conseguiu mais
suportar as ocasionais gargalhadas, endireitou-se, fez um aceno de
despedida e saiu da piscina. Elas ficaram em silêncio nesse momento,
embora a jovem sentisse que a fitavam enquanto ela se vestia. Sem dúvida
fofocariam sobre ela quando houvesse ido embora, então obsequiou-as e
saiu o mais rápido que pôde.
Na saliência do acampamento, os líderes das últimas duas tribos
banbarranas, Vilisyo e Amaddur, haviam vindo cumprimentar Unte e os
outros. Os escravizados banbarranos praticamente formavam borrões ao
correr de um lado para o outro, tentando se preparar para a última noite do
solstício e para uma celebração que com certeza seria mais agitada do que
qualquer uma na memória recente. As mulheres da tribo estavam
alvoroçadas, apressando-se para se embelezarem; os homens eram mais
discretos quanto a isso, mas faziam basicamente a mesma coisa. À medida
que o dia foi se passando, Hanani testemunhou lutas, competições para ver
quem dançava mais rápido — que ofereciam uma joia como prêmio — e
homens erguendo de maneira furtiva os véus uns para os outros para discutir
o brilho dos seus dentes.
Hanani estava tendo dificuldades para não odiar a todos.
Mas ódio era uma emoção e ela não podia se permitir senti-la, assim
como não podia se permitir sentir tristeza, ou tudo desmoronaria. Então,
por fim, voltou para dentro da tenda e ficou ali o resto do dia.
Ao final da tarde, alguém tamborilou na aba de sua tenda. Ela não queria
visitas, mas se levantou e desamarrou a aba mesmo assim.
Wanahomen entrou na tenda, deixando a aba bem aberta para que os
outros pudessem ver o lado de dentro. Ele, diferente de todas as outras
pessoas que ela vira naquele dia, parecia sombrio e encardido, e seu ânimo
parecia qualquer coisa, menos comemorativo. Então Hanani avistou a urna
de cerâmica que ele levava em um braço e entendeu o porquê.
Ele ofereceu-lhe a urna.
— Está lacrada. Você poderá levá-la de volta para o Hetawa desse jeito.
Ela olhou para a urna e sentiu a primeira fissura em suas defesas. Mni-
inh, aquele dos olhos sorridentes e da voz gentil, reduzido àquilo. Ela
desviou o rosto e fechou os olhos.
— Obrigada, Príncipe. Você poderia colocar em algum outro lugar para
mim?
Ela o ouviu andar até a lateral da tenda, couro e tecido se mexendo.
— Está em um dos seus alforjes. Eu o enrolei em uma faixa para
amortecer.
Ela aquiesceu e voltou para as almofadas para sentar-se, incapaz de falar
porque estava se formando um nó em sua garganta. Sem sentimentos, sem
sentimentos. Ela repetiu a ideia até se tornar realidade. Quando o nó
diminuíra o suficiente para falar, perguntou:
— A votação vai acontecer logo?
— Amanhã. No máximo depois de amanhã. Se for favorável, as tropas
vão se reunir e estar prontas para marchar em um dia. Os banbarranos são
de fato bárbaros, mas, em termos de eficiência militar, humilham as terras
civilizadas.
— E se a votação não for favorável?
— Isso não é mais provável. — Sim, ali estava alguém que entendia que
a guerra estava chegando. Ela ouviu isso no peso da voz dele: não parecia
feliz com a conquista. — A mulher shadoun superou todas as minhas
maquinações; os líderes estão unidos em sua raiva agora. Não há dúvida de
que, se conseguirmos, eles vão pedir a ajuda de Gujaareh para eliminar os
shadoun.
— Os shadoun já sofreram, se a praga do pesadelo estiver entre eles.
— Não importa. — A voz dele estava inexpressiva. — Gujaareh vai
precisar de aliados até nos fortalecermos outra vez. E eu preciso pagar as
minhas dívidas.
Hanani suspirou.
— Você fala como se fosse garantido que vai conquistar a cidade de
volta.
Ele fora se posicionar próximo à aba aberta, fitando o acampamento ou
talvez apenas deixando que os outros vissem que não estava fazendo nada
impróprio com ela. Não tirara o véu, mas ela o conhecia bem o bastante
para sentir seu sorriso amargo.
— Que outra opção existe para mim? Se eu fracassar, nenhum exército
ou aliado jamais vai me seguir de novo. Vou ter que fugir para o exílio no
norte… isso se os kisuati não me capturarem e não fizerem da minha
execução um espetáculo público. — Ele encolheu os ombros. — É mais fácil
ser otimista.
Hanani não podia deixar de concordar. Mas…
— O povo vai se unir em torno de você. Você é o Avatar Dela. Talvez
seja garantido que vai ganhar.
— Nada é garantido. O exército banbarrano… — Ele parou e suspirou.
— Meu pai daria risada até de chamá-los de exército. Se as tropas de guerra
de todas as tribos se juntarem, o total será de pouco mais de mil e
seiscentos. Eles lutam como demônios, mas os kisuati são quatro mil, com
outros quatro mil que podem vir de Kisua em uma oitava de dias. As tropas
dos nobres talvez acrescentem dois mil para o meu lado… mas esses são
soldados em que não me atrevo a confiar. Receio que nem todos os meus
aliados sejam tão honrados como o Hetawa e os banbarranos.
Ele estava com medo. Ela podia ver isso na posição dos ombros dele e
nos braços cruzados e no modo como os olhos dele viam, mas não viam, a
festança se intensificando do lado de fora. Mas ela não tinha palavras de
conforto para lhe oferecer. Havia provérbios do Hetawa que poderia ter
dito, sabedoria dos seus Professores que poderia ter compartilhado, mas
tudo aquilo parecia sem sentido agora.
Ele suspirou.
— Bem, fiquei aqui tempo demais. Não quero que as línguas comecem a
falar. — Então ele olhou de volta para ela, a expressão inescrutável. —
Entendo o que você está tentando fazer — falou ele, enfim. — Eu também
fiz isso depois… depois que a minha mãe e eu saímos de Gujaareh. Mas não
fique aqui hoje à noite, Hanani. O silêncio. Ele te despedaça.
Ele achava que entendia porque seu pai estava morto. Mas seu pai fora
um monstro, ao passo que Mni-inh fora bom e sábio e gentil. Ela desviou os
olhos de Wanahomen para não o odiar também e tornou a voz muito fria.
— Vou ficar bem, Príncipe.
— Não, não vai — retorquiu ele, soando irritado. — Mas você é tão
teimosa e arrogante como qualquer outra mulher… Pelos deuses. Eu não
devia nem ter tentado. Faça como quiser então. — Ele saiu, fechando a aba
com um baque ao passar.
Ela voltou a amarrar a aba após a saída dele e depois se sentou imóvel na
escuridão e no silêncio da tenda, desejando poder sentir algo de Mni-inh
nas cinzas que ele deixara para trás.

***

Ao anoitecer, Hanani sabia que ia desmoronar.


Wanahomen estava certo quanto ao silêncio. Ela agora estivera na tenda
por mais uma hora, olhando para o alforje e lutando contra o impulso de
pegar a urna, desenrolá-la, encolher-se ao seu redor e abri-la para ver se
tinha o cheiro do seu mentor, sabendo muito bem que fazer isso a deixaria
balbuciando. Por fim, não teve escolha: poderia odiar os banbarranos por se
alegrarem quando Mni-inh havia morrido, mas odiá-los era melhor do que
sentir falta dele. Então ela finalmente saiu da tenda e olhou em volta.
Estava tudo como estivera na primeira noite da oitava de celebração do
solstício: ambas as saliências do acampamento banbarrano, e várias outras
saliências próximas do Merik-ren-aferu tornadas habitáveis só para os
convidados, estavam cheias de gente. O caminho entre as tendas estava mais
iluminado do que o habitual graças a dezenas de lamparinas penduradas em
cordas; o cânion estava mais barulhento que de costume, o ar repleto de
vozes e música e palmas e risadas. Ela podia até ver escravizados celebrando
em uma fogueira no nível do solo. Lá no alto, a Lua dos Sonhos não estava
tão grande como de costume, sua face de quatro faixas truncada do lado
direito por sombras invasoras que diziam anunciar a época de frio mais
cortante nas terras do norte. Pela primeira vez em vários meses, a luminosa
estrela piscante chamada Myani em suua antigo, ou Menino Bonito,
aparecera logo abaixo da curva escurecida da Lua. Um novo ano começara.
Vaguear pelo acampamento era como vaguear em um sonho. Ninguém
parecia notar Hanani… nem os grupos de homens e mulheres, nem as
crianças que passavam correndo por ela em suas brincadeiras. Ela era uma
pedra de rio imóvel enquanto a vida do acampamento transcorria ao seu
redor. Ela estava no meio de mil outras almas e se sentia completamente
sozinha.
— Hanani! — Uma voz familiar. Ela se virou e viu Yanassa, sentada com
Hendet e várias outras mulheres perto de uma das fogueiras. Yanassa se
levantou e foi até ela, sorrindo e pegando suas mãos. — Você saiu… que
bom! Eu não tive esse trabalho todo com o seu cabelo para você se esconder.
Venha, venha.
Era mais fácil desistir do que resistir, então ela foi com Yanassa sentar-se
perto da fogueira.
— Tome — falou uma das mulheres, jogando para ela alguma coisa em
uma cabaça oca. Ela pegou e bebeu sem olhar e só percebeu o que era
quando sua garganta pareceu pegar fogo. Engasgando-se e tossindo, ela
quase deixou a cabaça cair, mas alguém a tomou dela. Uma risada bem-
humorada surgiu à sua volta; alguém esfregou suas costas para ajudá-la a se
recuperar. — Sipri — disse a mesma mulher que lhe dera a bebida. — Do
chá, sabe?
— O-o quê? — Hanani ainda estava tentando respirar.
— É feito da mesma planta que o chá gelado de que você gosta tanto —
explicou Yanassa. Era ela quem estava esfregando as costas de Hanani. —
Quer mais?
Algum tipo de licor. Os Compartilhadores não deveriam beber nunca,
uma vez que a narcomancia exigia uma força de vontade inalterada. Ela
pegou a cabaça de volta e deu mais alguns goles, fazendo careta enquanto
eles desciam queimando.
— Você não está bem, Compartilhador-Aprendiz — comentou Hendet,
que estivera observando Hanani do outro lado da fogueira com olhos
estreitos.
Hanani alçou os olhos para fitá-la. Yanassa inclinou-se para a frente para
examinar o rosto de Hanani também, a própria alegria desvanecendo.
— Não — respondeu Hanani para a rainha de Gujaareh. — Não estou.
Yanassa deu a Hanani um sorriso e habilmente tirou a cabaça de sipri das
mãos dela.
— Você vai ficar. Nós vamos cuidar de você. Não se preocupe.
Hanani não estava preocupada. Ela apenas não se importava.
— Ora, ora — falou uma das outras mulheres. Elas seguiram seu olhar.
Em torno de outra fogueira, uma jovem de talvez dezesseis ou dezessete
inundações andava em direção a um dos guerreiros Issayir sentado em meio
a um grupo de homens. Ele aguçou o olhar, interessado, e continuou a
conversa com os outros homens, mas estava claro como a luz do dia que não
estava prestando real atenção a eles. A garota tinha uma joia em uma das
mãos, era difícil para Hanani ver com precisão o que era. Mas, quando a
garota passou pelo guerreiro, olhou nos olhos dele e deixou o objeto cair
acidentalmente. Com um olhar inocente que não enganava ninguém, ela
continuou andando até outra fogueira cercada por mulheres.
O guerreiro sorriu e pegou o objeto. Os homens ao redor dele o
cutucavam com os cotovelos e empurravam-no de brincadeira, tentando
fazê-lo derrubar a joia, mas ele a segurou com firmeza.
— Então Teniant enfim fez a sua escolha! — Yanassa pareceu contente.
— Aquele ali é o líder de caça Issayir. Uma boa escolha.
— Não concordo — opinou outra mulher, fazendo cara feia. — Um
homem se preparando para a guerra pode ser muito bruto para uma garota
tão nova.
— Tenho certeza de que ele pode acalmar sua natureza guerreira por
uma única noite — retorquiu Yanassa em tom desdenhoso. — Não consigo
imaginar um homem se tornando líder de caça sob o comando do irmão de
Unte se gostar de torturar mulheres decentes. Os Issayir não são os Dzikeh.
Outra mulher rapidamente fez um sinal para calar Yanassa, dando uma
olhada em volta para ver se não havia nenhum Dzikeh por perto, mas
Hanani ignorou-as, fitando o guerreiro Issayir. Surgiu um desejo em seu
coração, nem lógico nem completamente formado. Ela o teria chamado de
instinto se tivesse se dado ao trabalho de pensar sobre o assunto. Mas ela
não queria pensar.
E então, enquanto Yanassa e as outras mulheres continuavam discutindo,
Hanani se levantou. Yanassa lhe dera um brinco bonito e elaborado que se
fixava na borda de uma de suas orelhas em três lugares. Ela ergueu a mão
para tirá-lo.
— Compartilhador-Aprendiz? — veio a voz de Hendet, cheia de
surpresa e um toque de desconfiança. Ignorando-a, Hanani afastou-se da
fogueira.
Encontrou quem queria em uma fogueira perto da extremidade do
acampamento, conversando baixinho com alguns de seus homens. Charris
estava encostado em uma parede rochosa próxima, sutilmente de guarda.
Ele viu antes de todos os outros a chegada de Hanani e franziu a testa,
perplexo, quando ela se aproximou. Então alguém cutucou Wanahomen,
que se virou para fitá-la, curioso.
O brinco estava gelado na mão de Hanani. Ela o segurou com tanta
força que as partes mais pontiagudas ameaçavam arrancar-lhe sangue. Mas
ela avançou mesmo assim, mantendo contato visual com Wanahomen de
forma tão constante quanto pôde, e deixou o brinco cair aos pés dele.
Os homens se calaram. Ela não olhou para eles, não os queria.
Wanahomen fitou o brinco, arregalando os olhos. Alçou o olhar para ela,
descrente e sem palavras.
Calada, vazia, Hanani voltou para a sua tenda para esperar.
34

CANTO FÚNEBRE

Os lestenenses contavam histórias sobre almas que não conseguiam fazer a


viagem para Ina-Karekh por alguma razão e eram condenadas a andar pelo
reino da vigília para sempre em forma de névoa e tristeza. A mulher do
templo parecia uma dessas.
Wanahomen olhou para a moça enquanto ela se afastava e depois olhou
para o brinco aos seus pés.
— Ela não pode ter tido a intenção — murmurou ele. Pegou o objeto.
Fora tão claramente direcionado a ele que nenhum dos outros homens
estava sequer fingindo reivindicá-lo. — Ela não pode saber o que isso
significa.
— Me pareceu que ela sabia exatamente o que significava — comentou
Ezack. Até ele parecia desconfortável, apesar do sorriso.
— Mulher teimosa e arrogante — disse ele, pegando o brinco e
fechando a mão. Estava frio, embora houvesse estado na mão dela; um dos
pingentes se soltara quando ela o deixou cair. Frio e partido, como ela. —
Mulher inconsequente e burra…
Ele se levantou e saiu furioso atrás dela, sem se permitir questionar a
própria fúria. Chegando à tenda dela, entrou, arrancou o véu e jogou o
brinco de volta aos pés dela.
— Você está fora de si — rosnou ele.
A tenda estava iluminada por uma única lamparina pendurada ao mastro
central. Hanani estava longe da luz, meio que nas sombras, de costas para
ele. De repente, a raiva de Wanahomen arrefeceu quando ele se deu conta
de que ela estava olhando para o alforje onde ele colocara as cinzas de Mni-
inh.
— Isso eu não contesto — falou ela quase em um sussurro. Então soltou
uma risada débil e vacilante que o deixou ainda mais nervoso.
Ele suspirou, tirando o lenço e passando uma das mãos sobre as tranças
por hábito.
— Não é disso que você precisa, Hanani. Você precisa… pelos deuses, eu
não sei do que você precisa. Mas não é disso.
— Eu é que devo decidir, não é?
Ele a encarou, incrédulo.
— Quando envolve o meu corpo?
A orelha sem adornos da jovem pendeu para o lado dele.
— Você me queria ontem.
— Não quer dizer que eu te queira agora!
Para o choque do rapaz, ela começou a se tremer toda de modo tão
violento que os ornamentos em seu cabelo tilintavam. O contraste entre esse
tremor e a voz dela, calma demais, inexpressiva demais, era bastante
assombroso.
— Entendo. Me perdoe então, eu entendi mal. Vou escolher outra
pessoa.
— Você vai o quê? — O Príncipe se aproximou dela e segurou seus
ombros, fazendo-a virar para ficar de frente para ele. Foi como segurar um
animal selvagem: ela ficou tensa, os olhos arregalados e irracionais de medo.
Ela não gritou, mas ele desconfiou que fora por pouco.
— Hanani… — Ele chacoalhou a cabeça, embora tenha afrouxado o
aperto de imediato. — Em nome da Deusa adorada, olhe para você. Você
não quer um homem. Por que está fazendo isso?
Parte do pânico desapareceu dos olhos dela, substituído por uma tristeza
tão profunda que todo o resto de raiva que ele sentia desvaneceu. Ela
desviou os olhos e fez um esforço frouxo para se libertar das mãos dele.
— Não importa. Sei o que quero.
— Não, você…
— Eu sei o que quero! — Ela gritou as palavras, cerrando os punhos, o
rosto tão contorcido pela ira que, por um momento, ele não a reconheceu.
Então ela se lançou contra ele, as mãos se transformando em garras, e de
repente ele teve de segurá-la para que ela não lhe rasgasse a garganta. Ou
usasse magia contra ele… mas ele não podia se permitir ter medo dela, não
agora. — Saia! Você não tem utilidade para mim, não posso confiar em você
mesmo, você não pode me ajudar!
Ele lutou contra ela por um instante, depois percebeu que teria de mudar
de tática. Em vez de tentar manter as mãos dela afastadas, ele as puxou para
o seu peito.
— Aqui — disse ele bruscamente, abrindo as mãos dela e colocando as
palmas sobre o seu peito. — Você quer que eu vá embora? Você sabe como.
Faça comigo o que fez com Azima.
Ela ficou paralisada, os olhos subitamente arregalados de medo.
— Não. Não vou matar de novo.
— Você não precisa. O seu mentor me fez sentir dor uma vez. Me fez
ajoelhar com um toque. Faça isso agora e saberei que você realmente quer
que eu vá embora para que algum outro tolo entre aqui e seja “útil” para
você. — Ele se preparou para o caso de estar errado sobre ela, mas não
achava que errara. E, de fato, em vez de machucá-lo, ela tentou fugir dele
outra vez.
— Me solte!
— Você diz que sabe o que quer! Quem você ia querer em vez de mim?
Devo mandar o Charris para você? Unte, talvez… Ele é velho, mas teve
outro filho ano passado. Ou vai ficar com o primeiro homem que vier atrás
de você com desejo em vez de inteligência? Nesse caso, você devia ter
deixado o Azima te violentar!
Ela estremeceu, mas depois chacoalhou a cabeça.
— Que importância tem, Príncipe? Você me odeia de qualquer jeito.
Apenas me solte.
Ele respirou fundo.
— Eu não te odeio. Odiei um dia, mas foi um erro. Na verdade… — Ele
quase riu; aquela era a última conversa que esperara ter com um sacerdote
do Hetawa. — Você é bonita o bastante e admirável o bastante, a ponto de
eu me sentir tentado. Mas isso é um erro também, não consegue ver? Há algo
de errado com você e isso não vai consertar as coisas.
Ela ergueu a cabeça aos poucos. Ele poderia ter sentido pena só pela
confusão em seu semblante. Enquanto ela parecia procurar as palavras, ele
apertou suas mãos e falou:
— Você disse que eu não podia te ajudar. Ajudar como, Hanani? Do que
é que você precisa?
Ela não respondeu nada, mas olhou de novo para o alforje. Wanahomen
se viu desejando de coração não ter lhe dado a maldita urna até chegar a
hora de voltar a Gujaareh.
— Seu mentor se foi. — Ele falou com tanta gentileza quanto pôde e, no
entanto, a moça ainda estremeceu como se houvesse erguido uma das mãos
para ela. Ocorreu-lhe uma ideia. — Me diga o que Mni-inh faria, Hanani,
se estivesse aqui. Me conte como ele ajudaria você.
Era totalmente irracional. Se Mni-inh ainda estivesse vivo, ela estaria
bem. Mas aqueles que lidavam com sonhos aprendiam a pensar com uma
lógica onírica, então não o surpreendeu nem um pouco o fato de ela franzir
a testa e piscar e parecer se concentrar nele, como se as palavras fizessem
perfeito sentido.
— E-ele teria me abraçado. — Ela baixou os olhos. — Não. Ele não
fazia isso com muita frequência, não mais. Mas eu, eu queria que ele fizesse.
Sempre queria que ele fizesse.
— Tudo bem. — Movendo-se com cautela… pois ela ainda estava tensa,
preparada para fugir ou coisa pior… ele soltou as mãos dela e voltou a
segurar seus ombros. Puxou-a para mais perto e, quando ela não resistiu
nem entrou em pânico outra vez, envolveu-a por completo com os braços.
— Pronto. Assim?
Ela tremeu. Encostou a cabeça nele. Pressionou o rosto no peito dele. O
rapaz sentiu algo no corpo dela acumular-se, estabilizar-se…
E então ela uivou. Era a única palavra em que ele conseguia pensar para
descrever o som que ela produziu, tão distante de um soluço ou de um
gemido que parecia ter saído de sua alma. Era pior ainda do que o som que
ela fizera depois da morte de Azima. Isso era agonia, tormento, e ela gritou
de novo e de novo e se agarrou a ele, puxando a túnica do rapaz e tremendo
com o esforço até ele pensar que aquilo por si só a quebraria.
Parecia não haver outra maneira de lidar com tamanha dor a não ser
deixá-la seguir o seu curso, então ele a abraçou e a deixou gritar.
A aba da tenda de Hanani se abriu e alguém espiou lá dentro. Hendet.
Como dona da an-sherrat, apenas ela tinha o direito de invadir a privacidade
de Hanani. Ela os examinou por um momento, depois inclinou a cabeça
para Wanahomen antes de se retirar outra vez e fechar a aba. Sem dúvida
ela tranquilizaria os que estavam do lado de fora, contando-lhes o que
realmente estava acontecendo.
A voz de Hanani acabou em algum momento após o vigésimo ou
trigésimo grito. Ela chorou então, impotente e angustiada… e brava
também, pois de tempos em tempos cerrava uma das mãos e o esmurrava.
Resignando-se a ter alguns hematomas e a ficar com a túnica molhada, ele
enfim a levantou e a conduziu até as almofadas, deitando-se e arrumando-a
de modo que ela pudesse passar o resto da noite chorando sobre ele se
precisasse. Ele percebeu, depois da primeira vez que ela extravasou seus
sentimentos, que havia mais naquilo do que apenas dor pela morte de Mni-
inh. Talvez ela chorasse por outras perdas ou talvez simplesmente
procurasse desafogar sentimentos suprimidos durante toda a sua vida
vinculada ao Hetawa. Fosse como fosse, ele se viu afagando as costas dela e
murmurando consolos vagos… “Shh, shh, você não está sozinha, não se
preocupe”… que pareceram tranquilizá-la.
E talvez, dada a sua nova compreensão sobre o pai e os seus temores
quanto à guerra que estava por vir, ele também se tranquilizou um pouco.
Aos poucos ela se aquietou. Wanahomen cochilou a certa altura,
acordando quando o instinto o impeliu. Horas haviam se passado, embora o
barulho da celebração do lado de fora não houvesse diminuído nem um
pouco. Os banbarranos podiam e iriam farrear a noite toda quando
devidamente motivados. A lamparina se apagara, mas entrava luz suficiente
da Sonhadora pela saída de fumaça da tenda. Ele presumiu que era meia-
noite mais ou menos.
Virando a cabeça, viu que Hanani estava acordada, a cabeça pousada em
seu peito, os olhos abertos e secos, porém perdidos em pensamento. Uma
das mãos ainda estava agarrada ao tecido de sua túnica. Isso a fazia parecer
muito jovem.
— Sentindo-se um pouco melhor? — perguntou ele.
Ela respirou fundo, os olhos ainda fitando a distância.
— Cansada — sussurrou ela. Sua voz estava rouca.
— Você deveria descansar, então.
A moça franziu a testa, ergueu a cabeça e olhou para ele. O rapaz
conteve uma careta quando o movimento da cabeça de Hanani expôs uma
ampla área molhada em sua túnica.
— Você tem que ir embora?
— Não. — Ele deu um sorriso pesaroso. — Na verdade, depois de
aceitar o seu convite, eu deveria ficar a noite toda, ou até você se cansar de
mim. Você está cansada de mim?
Ela baixou os olhos e sorriu. Um sorriso débil, praticamente
imperceptível, mas ele ficou aliviado a ponto de quase chorar ao vê-lo. Era a
primeira coisa normal que ela fazia em dias.
— Não. Mas não fizemos nada que cansaria qualquer um dos dois. —
Seus ombros ficaram tensos outra vez, o começo do desconforto.
Ela deveria estar exausta depois daquela tempestade de dor, mas ele
decidiu não chamar sua atenção para esse fato. Abordou, porém, o
desconforto.
— Os banbarranos vão pensar todo tipo de coisa, mas nós sabemos a
verdade. — Ele deu de ombros. — Contanto que não fiquem sabendo sobre
hoje à noite lá no Hetawa, não tem problema. Me deixe levantar um
momento.
Ela pareceu surpresa ao notar que ainda estava firmemente agarrada à
túnica dele, mas o soltou. Ele se sentou e tirou a túnica e a camiseta interior
e colocou-as no tapete para secar. Então, avistando uma refeição não comida
a um lado da tenda, levantou-se e verificou a garrafa: chá gelado. Só havia
um copo, mas o trouxe e o encheu, servindo-o para ela. A moça fez um
aceno cansado de agradecimento e bebeu tudo. Depois de beber um
segundo copo, ela o devolveu e ele serviu o resto do chá para si mesmo.
Então ele voltou a se deitar, estendendo o braço para que ela pudesse se
aninhar ao lado dele de novo.
Ela hesitou, aparentemente com vergonha do peito nu do rapaz.
— A pele seca mais rápido do que o tecido — explicou ele. — Assim
você pode chorar em cima de mim o quanto quiser.
Isso lhe rendeu outro sorriso cansado. O cansaço venceu: ela se deitou
outra vez, seu cabelo fazendo cócegas no ombro dele, sua mão pousada de
leve sobre a barriga dele. Wanahomen suspirou, cobrindo-os do frio da
noite com um cobertor que havia ali por perto e desfrutando do contato.
Sempre preferira quando as mulheres sentiam prazer com ele por mais do
que um único motivo.
O silêncio se estendeu, pontuado pela batida distante de um tambor e
por uma dúzia de vozes cantando uma música estridente. Wanahomen
começara a se deixar levar outra vez quando a voz de Hanani o trouxe de
volta. O chá lhe fizera bem: ela não estava mais tão rouca agora.
— Eu não ligo — disse ela. — Se ficarem sabendo lá no Hetawa.
Ele fechou os olhos e lhe afagou as costas, desejando que ela dormisse.
— Deixaria as coisas embaraçosas para você quando voltasse. Para mim
também.
— Direi para eles que eu te obriguei a vir. Eles não podem culpar você
por isso. E, de qualquer forma, é a mim que deveriam culpar. Você nunca
fez um juramento a Hananja. — Sua mão se retesou sobre a barriga dele; ele
esperou que ela não o esmurrasse outra vez. — Mas não me importo mais
com o que eles pensam.
Ela se importaria, claro, quando sua dor pela morte de Mni-inh
desvanecesse e tivesse os meios para voltar a pensar em seu futuro. Ele
pediria ajuda a Yanassa para ajudar a controlar os boatos que com frequência
corriam rápido pela tribo, para diminuir a chance de que a história chegasse
aos ouvidos dos superiores de Hanani.
— Durma — disse ele com firmeza. — Nada de aulas desta vez, nada de
magia. Nós dois precisamos de descanso.
Ela aquiesceu e ficou em silêncio, e Wanahomen acabou dormindo.

***

A cidade de novo, em cores desta vez. Isso era Ina-Karekh, sonho de


verdade, e não o espelho de sua alma que era o reino intermediário.
Contudo, por algum motivo ele parecia atraído pela terra das sombras. O
céu era um fosso mortuário de nuvens agitadas e dispersas salpicado de
relâmpagos. Wanahomen estava nos degraus do Hetawa e na entrada estava
uma figura sombreada e oscilante.
— Pai — falou Wanahomen. Ele inclinou a cabeça em uma saudação.
O vulto sombreado não respondeu nada nem fez nenhum movimento
além de deslocar o peso de uma perna a outra. Wanahomen olhou para o
próprio corpo, mas não viu nada daquela imundície insidiosa de antes. O
dano fora reparado.
— Meu filho, meu herdeiro — disse a figura sombreada com sua voz
entrecortada. — Minha alma renascida.
— Não — contestou Wanahomen, franzindo o cenho. — Seu filho, seu
herdeiro se Hananja desejar, mas a minha alma me pertence, pai. Assim
como o meu futuro.
Houve um momento de silêncio. Ele pensou ter sentido surpresa naquela
coisa à entrada. Então dentes brilharam na penumbra; porém, se era um
rosnado ou um sorriso, ele não sabia dizer.
— Niim. — A voz mudara. De repente, estava menos sibilante, mais
humana e real. — A força devora a força nos reinos dos sonhos, Niim. O
ódio e o medo ficam cada vez mais fortes. Mas a compaixão… Ela recebeu
tão pouca compaixão. E confiança? Amor? Contra isso ela não tem poder.
— Quem? — Perplexo com a mudança no sonho, Wanahomen subiu
um degrau, depois outro. — Quem, pai? Hanani? Yanassa? — Aqueles
nomes não pareciam certos. — Tiaanet? — Mais perto, porém mais
perturbador. — O senhor está me alertando contra a mulher que eu quero
como a minha rainha?
Outro brilho de dentes, definitivamente um sorriso agora, e um sorriso
verdadeiro. Este era o seu pai. Ele sentiu isso com todos os instintos que
possuía: não um fantasma, nem uma lembrança distorcida, mas realmente a
alma de Eninket, condenada à terra das sombras por sua crueldade e
ganância. O Hetawa declarara Eninket louco e ele o fora, na vigília. Mas, de
algum modo, neste reino, ele parecia haver encontrado certo grau de paz.
E foi como um homem inteiro e curado que Eninket falou:
— Fique bem, meu filho. Seja um homem melhor do que eu.
— Pai! — Wanahomen precipitou-se degraus acima, sem se importar
mais com que horror o aguardava nas sombras. — Pai, não, espere…
Mas a cidade desapareceu e o silêncio entre sonhos foi sua única
resposta.
35

CONSOLO

Hanani esperou em um sonho do Salão de Bênçãos do Hetawa. Depois de


um bom tempo (o tempo não significava nada, era um sonho, mas ela o
marcou do mesmo jeito por uma questão de hábito da vigília), as sombras
cintilantes perto das alcovas de doação se agitaram e o Coletor Nijiri deu
um passo à frente.
— Hanani? — Ele franziu a testa. — Onde está Mni-inh?
Ela se pôs de pé, desceu da plataforma e curvou-se sobre as duas mãos.
— Morto, Coletor.
Ela ouviu, mais do que viu, a suave puxada de ar de Nijiri. Ele não falou
nada, mas o Salão reverberou, só um pouco, com seu choque. Uma vez que
já esperava por isso — ela também amara Mni-inh — foi fácil para ela
manter o sonho estável, equilibrando sua estrutura contra a onda de
angústia dele.
— A praga do pesadelo — explicou ela. — Uma mulher dos shadoun a
trouxe para o acampamento banbarrano. Nós não sabíamos. O irmão Mni-
inh tentou curá-la.
Nijiri soltou um suspiro que era meio um gemido e virou de costas para
pousar a mão na estátua da Deusa feita de pedra da noite. Na vigília, isso
nunca era permitido, mas nos sonhos não havia regras. Quando Hanani
alçou o olhar, viu-o recostado à estátua como se precisasse do apoio para
ficar de pé, a cabeça curvada, fora do campo de visão dela. A jovem sentou-
se na beirada da plataforma para esperar.
— Até no deserto! — murmurou ele, depois soltou outro grande suspiro.
— Mni-inh era o único amigo que eu tinha no Hetawa além dos meus
irmãos de caminho. A praga é uma abominação pior do que o Ceifador.
Indethe etun’a Hananja, que ele caminhe na Sua paz até o sonho terminar.
Hanani permaneceu em silêncio, dando a ele tempo para o luto, como
era apropriado. Quando ele enfim se virou, entretanto, tinha o semblante
arrasado; aproximou-se dela e agachou-se, tomando suas mãos de imediato.
— Me perdoe, Hanani. Penso na minha própria dor primeiro e me
esqueço da sua. Deixe-me lhe dar paz…
Ela se levantou e se afastou do toque dele da forma mais educada que
pôde.
— Vou encontrar a minha própria paz, Coletor. Obrigada. O P… Os
banbarranos, eles são muito gentis. Estão me ajudando.
Ele pareceu surpreso, mas aquiesceu.
— A praga passou para os outros antes…
— Não. A morte de Mni-inh pôs fim a ela.
— Uma coisa tão terrível pela qual ser grato. — Ele se calou por um
instante e o ar pareceu pesado com a sua tristeza. Então chacoalhou a
cabeça. — Mas tenho pouco tempo. Compartilhe isto com o Príncipe: a
cidade está tão pronta quanto conseguimos deixá-la. Se ele atacar logo, o
povo lutará ao lado dele. Estão zangados o suficiente para lutar sem ele, mas
esperamos que aguentem até o momento certo.
Ela anuiu.
— Vou passar a mensagem, Coletor. Acredito que os planos do Príncipe
vão chegar ao ápice nos próximos dias.
— Ótimo. Os Sentinelas fizeram um acordo com algumas pessoas da
casta militar… os poucos da Guarda do Ocaso que conseguiram escapar dos
expurgos, oficiais do antigo exército, algumas companhias mercenárias
persuadidas a voltar e lutar de graça. Eles têm uma série de sabotagens a
fazer assim que a força de guerra do Príncipe começar o ataque. Isso deve
prejudicar as defesas dos kisuati e impedir que eles se reagrupem com a
mesma eficácia. De resto, depende dele.
— Sim, Coletor.
Então ele fez uma pausa e olhou para ela com firmeza. Ela escolhera
aparecer com as roupas banbarranas que Yanassa lhe dera em vez das suas
vestes vermelhas. Seus olhos de Coletor com certeza reconheciam outras
mudanças mais sutis.
— Você está mesmo bem, Hanani?
Ela esperara essa pergunta também, mas isso não a tornou mais fácil de
suportar.
— Estou melhor do que estava, Coletor, e acredito que vou ficar melhor
com o tempo. Mas… — Ela hesitou, depois falou o que estava em seu
coração, uma vez que ele já havia percebido. — Mas não sei se algum dia
vou poder ficar bem. Mni-inh e Dayuhotem, eles… — Ela curvou a cabeça.
— Sei que devemos amar todos os nossos irmãos, mas não havia ninguém
no Hetawa que significasse mais para mim do que eles dois. Sem eles sou
uma barca sem remos a caminho do imenso mar.
A expressão dele tornou-se mais compassiva do que ela jamais vira.
— Eu entendo — disse ele em um tom bem suave. Ela acreditava que ele
de fato entendia. — Não tenho consolo para oferecer, infelizmente. O
sangue onírico é só um cauterizador: ele pode aliviar a dor por um tempo,
quando a ferida é recente e existe maior risco de inflamar. Fora isso, é
melhor se a alma se curar… — Ele se conteve. — Mas você é a curadora
aqui.
— Apenas da carne — pontuou ela. — Vocês, Coletores, sempre
cuidaram da alma.
Ele lhe deu um sorriso tão brando e gentil que ela se perguntou como
algum dia pensou que ele fosse frio.
— Existem mais imbricações do que você imagina, Aprendiz. O seu
mentor me ensinou isso.
Antes que ela pudesse voltar a falar, ele parou e desviou o olhar de
repente, franzindo o cenho.
— Preciso ir. O meu sonhador está acordando. — Como todos os
Coletores, ele não podia sonhar por conta própria. Devia ter vindo até ela
através dos sonhos de algum acólito ou aprendiz do Hetawa, ou talvez
algum Servo de outro caminho. Era estranho, contudo, que não houvesse
apenas colocado sua jungissa no sonhador para manter a pessoa dormindo.
— Fique bem, Hanani — falou ele, afastando-se. — Dayu e Mni-inh
não eram os seus únicos amigos no Hetawa, não importa como você se
sinta. Você não está sozinha. — Então, erguendo uma das mãos em
despedida, ele desapareceu.

***

Hanani abriu os olhos na penumbra da tenda. Não sabia dizer que horas
eram, mas o barulho da celebração do lado de fora desvanecera. Ainda havia
bastante atividade no acampamento, mas a música estava mais suave e mais
lenta agora. Ela não conseguia ouvir nenhuma criança correndo ou gritando,
o que significava que no mínimo já passara da hora de dormirem.
Ao seu lado — sua cabeça ainda repousava sobre o ombro dele —,
Wanahomen dormia, os olhos se mexendo sob as pálpebras. Ela se
perguntava o que o Coletor Nijiri teria achado da sua decisão de treiná-lo.
Será que Mni-inh havia contado para ele? Conhecendo Mni-inh, ela
duvidava. Aliás, ela se perguntava o que Nijiri acharia de Wanahomen em
sua cama, por mais inocente que fosse. Ela não seria a primeira no Hetawa a
suportar boatos constrangedores. Havia o próprio Coletor Nijiri, e diziam
que o Sentinela Renamhut tinha uma mulher e uma filha no distrito dos
artesãos, e o Professor Ide era conhecido por gostar de aprendizes escuros
como os shunha. Na realidade, a julgar pelos boatos, vários dos acólitos e
dos sacerdotes do Hetawa tinham casos secretos, embora boa parte talvez
fosse exagero. Hanani jamais entendera por que Mni-inh tivera tanto
cuidado em manter distância dela quando metade do Hetawa desconfiava
deles mesmo assim e o resto tinha seus próprios segredos a esconder.
Ela suspirou, contemplando o peso do braço de Wanahomen contra as
suas costas. O Coletor Nijiri teria entendido, concluiu ela. Wanahomen não
era Coletor nem tinha sangue onírico para lhe dar, mas tinha o dom de um
Coletor para perceber quando o consolo era necessário. Ela teria
desmoronado se não fosse por ele. Mni-inh: ela fechou os olhos, permitindo
que a dor tomasse conta por um momento. Era como se alguém houvesse
invadido seu íntimo e esvaziado sua alma. As bordas do lugar vazio estavam
em carne viva, moldadas para ele caber nelas. No entanto, a presença de
Wanahomen aliviava a dor.
Agitada com os próprios pensamentos, ela se mexeu para ficar mais
confortável. Sua mão sentiu uma linha áspera sobre a barriga dele: uma
cicatriz. Intrigada (o ferimento no abdômen que ela curara não deveria ter
deixado cicatriz), ela rastreou e se deu conta de que era um machucado
diferente. Esta não era comprida, mas a espessura e o formato da cicatriz
eram perturbadores, assim como sua localização, logo abaixo da caixa
torácica. Fora profundo esse ferimento, e cicatrizara mal, reabrindo pelo
menos uma vez.
— Foi uma faca serrilhada — contou Wanahomen.
Ele falara baixinho, mas Hanani sobressaltou-se mesmo assim, surpresa.
Ela sentiu a mão dele afagando suas costas, tranquilizadora, o que quase a
fez dar um pulo. A moça notara que os banbarranos tocavam uns nos outros
com frequência, de formas que os gujaareen não se tocavam: eles se davam
os braços de maneira casual, cutucavam-se, faziam um carinho afetuoso nas
crianças e até nos animais. Wanahomen estivera entre eles por tempo
suficiente para pegar alguns daqueles hábitos. Ela achava os toques fáceis e
despreocupados dele exóticos e perturbadores.
Então ela se concentrou nas palavras dele.
— Uma faca serrilhada? Por que alguém usaria uma coisa dessas em um
homem?
— Para causar dor, imagino. Provavelmente facilita a inflamação
também. Eu quase morri só por causa da febre. — A voz dele estava pesada
de sono; sob a luz da Lua, ela pôde ver que ele não abrira os olhos. — É um
tipo de coisa tola para se usar em uma batalha… muito fácil de pegar em
alguma coisa no momento errado. Mas o homem que a usou em mim não
era um guerreiro. Só um covarde, corrupto como qualquer outro
escravizador.
Hanani chacoalhou a cabeça, no fundo admirada de que ele houvesse
sobrevivido sem a ajuda de um Compartilhador.
— Você foi escravizado?
Ele aquiesceu e bocejou, despertando mais.
— Por um breve período, eu e minha mãe e Charris. Fomos capturados
ao fugir da cidade pelos mercadores Damlushi, que tinham acampado ao
longo das trilhas para o norte como abutres para pegar qualquer gujaareen
que pudessem porque sabiam que o nosso exército estava ocupado em outro
lugar. Ao que parece, os gujaareen são conhecidos por darem bons
escravizados: saudáveis, educados, não violentos — escarneceu
Wanahomen. — E apesar de termos levado o resto da Guarda do Ocaso
junto, fomos vencidos. Eles tinham esperança de pegar riquezas nossas
também.
Hanani franziu a testa e olhou para os punhos dele. Ela notara marcas ali
antes, embora fossem tênues. Vestígios de cicatrizes.
— Eles acorrentaram você.
Ele aquiesceu outra vez, abrindo enfim os olhos.
— Estavam nos levando para o sul, com medo de nos vender tão perto
de casa. No sul, talvez tivessem nos separado e teria sido muito mais difícil
escapar ou comprar a nossa liberdade. Então desafiei o líder da caravana em
algum jogo. Não lembro o quê. Se eu ganhasse, ele tinha que nos vender por
essas bandas. Eu ganhei, mas ele era um mau perdedor. Quando nos
prepararam para a venda, ele me esfaqueou e amarrou a ferida para não
aparecer. Tive que fingir que não estava sentindo nada e parecer saudável ou
ninguém ia me comprar.
Hanani conteve a respiração. Um ato desses era de fato corrupto… mas,
por outro lado, ali fora, longe do alcance dos Coletores, almas corruptas
pareciam tão numerosas quanto formigas.
— E os banbarranos compraram vocês?
— Uhum. A primeira esposa de Unte, Widanu. Ela ficou furiosa quando
descobriu sobre o meu ferimento. Minha mãe nos salvou então, porque eu já
estava ficando doente e com febre por conta da ferida e Widanu teria me
matado para acabar com o meu sofrimento. Minha mãe fez um acordo com
Widanu pela minha vida, oferecendo todas as joias que tinha trazido de
Gujaareh: nós as tínhamos escondido em uma caverna no sopé das colinas
antes de os Damlushi nos pegarem. Isso a estabeleceu como uma mulher de
valor aos olhos dos banbarranos e me deu valor também como filho dela,
então fomos libertados. O Charris… Bom. Widanu tinha que trazer alguma
coisa de volta. Mas assim que a minha mãe adquiriu riqueza suficiente… ela
sempre foi astuta… nós o compramos de volta. Ele não nos deixa libertá-lo
porque ter escravizados aumenta o prestígio do nosso clã. Velho teimoso.
Hanani assimilou aquilo, localizando a cicatriz outra vez com os dedos
pela simples novidade da coisa: ela não vira muitas cicatrizes. A magia não
deixava cicatrizes. Então seus olhos captaram outra marca na pele dele: um
torrão do tamanho de uma moeda de vidro arrancado da carne logo abaixo
da clavícula. Ela se sentou, curiosa, e depois notou duas outras marcas: uma
logo acima da bacia e outra perigosamente próxima do coração. Se todas
elas tivessem uma história como a primeira, ela entendia melhor por que
havia tão pouca paz nele.
A pele dele era macia como camurça ao redor das cicatrizes. Uma coisa
frágil demais para ter resistido a tanta violência. Ela passou os dedos pela
clavícula dele até o ombro, depois por um dos braços, deslizando-os pelos
contornos dos músculos. Ela estudara os corpos das pessoas Coletadas como
parte do seu treinamento, sabia os nomes de cada tendão e osso, vasculhara
partes que não tinham nome para encontrar a sede sempre cambiante da
alma… mas aquilo era diferente, de certo modo, de contemplar o todo
cálido e vivente de um ser humano. Era tão fácil reduzir toda aquela
vitalidade sólida a cinzas. Algum dia, Wanahomen seria como Mni-inh, um
potinho de nada. Tudo o que importava nele teria ido para Ina-Karekh.
Era tão importante valorizar a vida, protegê-la, entendê-la plenamente
enquanto ainda persistia.
— Príncipe — disse ela. Os olhos dele ainda estavam sobre ela,
ligeiramente intrigados agora. Tocar de forma casual era o costume
banbarrano, não gujaareen. Ela o confundira com suas explorações. — Você
é gujaareen?
Ele se retesou, zangado de repente.
— Você sabe muito bem que eu sou…
— Você age mais como os banbarranos do que percebe, eu acho —
comentou ela, ainda examinando o corpo dele, rastreando sua respiração. —
Eu entendo por que… aqui fora, é mais seguro ser banbarrano do que
gujaareen. É mais seguro ser qualquer coisa do que gujaareen. — Ela parou
então, a mão no ventre dele. Sob seus dedos, os músculos do abdômen dele
estavam mais tensos do que deveriam. — Mas é encenação? Algo que você
usou para cobrir o seu verdadeiro eu como um manto? Ou você se tornou o
manto? Pergunto porque você foi gentil comigo, e você também foi cruel, e
eu não sei qual deles é o seu verdadeiro eu.
O ventre dele soergueu-se de leve com a respiração, embora ele tenha
ficado calado por um momento.
— Os dois, suponho eu — respondeu ele por fim. — Essa é uma coisa
em que eu não penso muito. Vivi entre os banbarranos durante quase
metade da minha vida; quando estou com eles, penso como eles. Eu até
penso em chakti. Mas, quando estou perto de você, do seu mentor… — Ele
suspirou. — Acho que preciso me tornar um pouco mais gujaareen. É uma
sensação estranha a de ser dois homens. — Ele hesitou mais um instante,
então estendeu a mão e pegou a dela. Ela o sentiu examinando seu rosto. —
Mas a crueldade não é uma coisa banbarrana, Hanani, se é isso que você
quer saber. Essa parte de mim é toda gujaareen e vem do meu pai. Você me
ajudou a entender isso nesses últimos dias.
Ela anuiu.
— Isso agrada você? Ser cruel como o seu pai?
Ele não respondeu pelo intervalo de várias respirações; quando falou, a
palavra soou muito suave e impregnada de vergonha.
— Não. Eu preciso dessa crueldade, não teria sobrevivido por tanto
tempo sem ela. Mas não gosto.
Hanani aquiesceu. Depois se levantou e tirou os sapatos, começando o
laborioso processo de tirar todas as pulseiras e joias tilintantes que Yanassa a
fizera usar. Ela as deixou cair na sacola decorativa onde deveriam ser
guardadas.
— Então você não é corrupto.
Wanahomen apoiou-se sobre um cotovelo, franzindo o cenho para ela.
— Bom saber. Mas o que você está fazendo?
— Me despindo. — Ela ficou surpresa com a própria calma.
Seguiu-se um súbito silêncio perplexo às suas costas. Ela tirou a blusa e
pendurou-a em uma estaca; quando se virou de novo, ele a fitava.
— Essa não é uma boa ideia, Hanani.
Ela estava profundamente farta de pessoas que falavam com ela como se
não pudesse entender as implicações de seus próprios atos.
— Eu não exijo, peço. — Ela deixou as saias caírem; ele as seguiu com os
olhos até o chão, como se não conseguisse acreditar no que estava vendo. —
Peço ao seu eu banbarrano, ou ao seu eu mais gentil, como preferir pensar.
Eu gostaria de fazer sexo. Faz isso comigo?
Quando ela terminou de pendurar as saias e se virou, a expressão de
Wanahomen mostrou algo semelhante a susto. Ele pegara a própria camisa,
agarrando-a com as mãos como se pretendesse afastar a moça com ela.
— Você enlouqueceu de novo?
— Eu nunca enlouqueci. — Ele a ajudara a voltar daquele precipício e
ela estava feliz por isso. Talvez fosse injusto de sua parte pedir mais dele,
mas não havia mais ninguém que entenderia. Ela precisava ter esperança de
que a parte dele que era um Coletor, por menos refinada que pudesse ser,
fosse querer ajudar outra vez.
— Você está falando sério. Isto é… — Ele ficou paralisado quando ela
desamarrou a tanga e a deixou cair em um cesto. — Você está falando sério.
Hanani tirou a combinação que vestira debaixo da outra blusa. Estava
usando apenas as ataduras ao redor dos seios debaixo da combinação e,
quando terminou de colocá-la a um lado, achou graça de ver que os olhos
dele haviam se fixado diretamente nessa parte, como se nunca a houvesse
visto com as vestimentas de Compartilhador. Talvez seus seios não lhe
houvessem parecido atraentes naquele momento, emoldurados por roupas
masculinas? Ela começou o laborioso processo de desenrolar as ataduras
enquanto ele a fitava como um homem sedento no deserto.
— É claro que estou, Príncipe.
Ele arrastou o olhar mais para cima e havia uma evidente cautela em sua
expressão.
— Você não me ama.
Ao ouvir isso ela parou, surpresa.
— Não, não amo. Preciso amar?
No rosto dele estampou-se meio que um sorriso, meio que uma careta.
— Imagino que não. Ninguém pode acusar você de falta de sinceridade,
mulher do templo. Admito isso. — Ele se levantou e se virou para enfim
ficar de frente para ela, ainda segurando a camisa, embora não fizesse
nenhum movimento para vesti-la. — Mas precisa pelo menos confiar em
mim para isso e… — Ele desviou os olhos. — E, como você disse, eu fui
cruel com você.
Hanani suspirou e começou a se perguntar se havia cometido um erro.
Ele tinha sentimentos tão profundos, tão acelerados, esse homem. Ela
esperara que ele fosse simplesmente agir com base no desejo, não conversar
sobre as coisas até enjoar. Contudo, ela deveria ter esperado por isso
também: um homem tão dominado por suas emoções devia, claro, atendê-
las antes de tomar qualquer decisão. Mni-inh ensinara-lhe isso muito tempo
antes, quando ela lhe perguntara por que ele se oferecera para ser seu
mentor. Não foi uma coisa pensada, ele lhe contara. Eu apenas vi você
precisando de um mentor e os outros Compartilhadores se recusando como se a sua
feminilidade fosse uma praga que os macularia. Esse tipo de tolice… acho que me
deixou zangado, eu agi com base nisso.
A ideia de que Wanahomen tivesse algo de Mni-inh dentro de si, por
mais importuna que ele achasse a comparação, fez Hanani se sentir melhor
quanto à sua decisão.
— Eu deixei você entrar nos meus sonhos — disse ela. — Vi os segredos
da sua alma e mostrei alguns dos meus. O corpo… — Ela encolheu os
ombros. — Ele pode ser curado, modificado, destruído. É uma coisa fácil de
manipular. Mas a alma tem significado e permanência… — Ele franziu
ainda mais a testa e ela se calou. Era difícil explicar. Ela não era nenhuma
Professora.
— Isto não é nada para você, então. — Ele pareceu amargurado e ela não
sabia por quê. Ela se aproximou, tocando o braço dele para tentar entender,
mas ele não a olhava nos olhos. Estaria ele ofendido por ela querer usá-lo
daquela forma? Talvez. Mas talvez ela ainda pudesse persuadi-lo com a
verdade.
— Não, Príncipe. — De perto, ele cheirava a suor e areia… mas também
a ervas, como aquelas usadas pela maioria dos gujaareen para banhos e
remédios. Erva-doce e calêndula, que ela vira crescendo em torno do
cânion, e alguma coisa mais refinada que ele devia ter comprado em
Gujaareh: âmbar cinzento envelhecido. Era um cheiro que a lembrava do
Hetawa, onde era queimado como incenso. Outro luxo que ela não
questionara, como suas vestimentas vermelhas de Compartilhador; ela vira o
âmbar cinzento no mercado e era incrivelmente caro. Mas não a surpreendia
nem um pouco o fato de que Wanahomen, apesar do exílio e da existência
bárbara simples, ainda encontrasse alguma pequena maneira de tratar a si
mesmo como um príncipe.
Ela sorriu e tocou a cicatriz debaixo da clavícula outra vez. Ele se
endireitou, talvez surpreso. Pele bárbara, sangue e ossos gujaareen. Ele
pensava em si mesmo como dois homens, mas ela via um só.
— Isto é vida para mim. — Ela olhou nos olhos dele, tentando dialogar
com a cautela que havia neles. — Isto é carne. É… dor e fraqueza e coisas
que me assustam. Mas a carne é algo que eu consigo controlar, Príncipe.
Posso deixá-la mais forte. Posso curá-la quando as coisas vão mal. Preciso
disso, dessa certeza, neste exato momento. Faz sentido para você?
Várias expressões cruzaram o rosto dele, todas rápidas e complexas
demais para ela interpretar.
— Eu… Faz. Por mais estranho que pareça, faz. Mas e o seu juramento
de Servo, Compartilhador-Aprendiz? Já tirei tanto de você. Eu não ia
querer acrescentar mais coisas à lista.
— O juramento é meu para descartar, não seu para tirar. — Hanani
flexionou o maxilar. — Amanhã talvez eu seja capaz de me doar por inteiro
para Hananja outra vez sem receio. Hoje à noite… — Ela suspirou,
sentindo-se velha e jovem, e incomparavelmente solitária. — Hananja
também tirou muito de mim, Príncipe.
Mais do que Ela tinha o direito de tirar. Mas Hanani não falou isso em voz
alta porque ele era gujaareen o suficiente para que as palavras o
perturbassem.
Wanahomen olhou para a mão dela em seu ombro, depois para o rosto
dela, procurando. Hanani não fazia ideia do que ele buscava, mas, depois de
um momento, ele suspirou. De forma muito proposital, ele deixou a camisa
cair de novo no chão.
— Carne não é apenas dor — disse ele baixinho. — Você não deveria
pensar nela desse jeito.
Ela encolheu os ombros e voltou a desenrolar as ataduras dos seios.
— É a única coisa que eu conheço.
— Eu posso te mostrar mais. — Ele pareceu quase tímido ao dizer
aquilo.
Mesmo sem querer, ela sorriu.
— Eu ficaria agradecida.
Quando ela deixou a última parte da atadura dos seios cair ao chão, ele a
fitou por um longo tempo, examinando-a com os olhos assim como ela o
examinara com os dedos. Quando ele deixou a calça cair, bem pronto para
ela, a jovem se virou em direção às almofadas para se deitar. Ele a deteve
pousando uma das mãos no ombro dela, depois, para grande surpresa da
moça, ajoelhou-se aos pés dela. A respiração dele estava mais forte, mas
havia tanto reverência como necessidade em seu olhar.
— As mulheres são deusas — disse ele. — O prazer é o seu dízimo por
direito. Esse é o costume gujaareen, afinal… eu me lembro disso. E é meu
dever como Príncipe garantir que o dízimo seja entregue de forma
adequada. — Ele disse aquilo sem nenhum toque de ironia ou deboche.
Hanani fitou-o, admirada. E, quando ele abriu os braços, erguendo o queixo
e oferecendo a si mesmo, algo dentro dela que estava tenso, apesar de suas
palavras, relaxou.
Ela se aproximou e os braços dele a envolveram no mais cuidadoso dos
abraços.
Esta foi então a manifestação da paz: silêncio. Eles eram gujaareen. Não
sentiam necessidade de gritos, gemidos, nomes murmurados como
declarações de orgulho ou devoção. Ele não forçou nada que ela não
quisesse, não conteve nada que ela desejasse. Enquanto ele roçava contra ela,
ela estudava a constante flexão dos músculos dele, o ritmo e o tom da
respiração dele, o modo como cada suspiro e toque seu redirecionava os
humores dentro do milagre da carne dele. Aquilo era a verdadeira magia,
não elemento de sonhos, escrita em sangue e bílis e icor e semente sólidos e
conscientes. No clímax, Hanani canalizou essa nova magia em uma prece
por Mni-inh, para que a Deusa pudesse trazer a alma dele de volta para
casa. E, naquela respiração sustida, enquanto Hanani pairava quase fora de
si mesma, o Avatar de Hananja a segurou com firmeza e estremeceu dentro
dela e soltou um sussurro quente em seu ouvido:
— Isso.
Ela fechou os olhos, agradecida e em paz.
36

LEGADO

Não foi difícil para Sunandi providenciar certas coisas dentro do Yanya-iyan
quando os Coletores e o Superior foram detidos. Os Protetores não se
importavam com o local onde os prisioneiros eram mantidos, contanto que
estivessem seguros, e então Sunandi os instalou em um conjunto de quartos
de hóspedes que aparentemente haviam sido construídos para atender aos
gostos nortenhos: com portas robustas que tinham fechaduras e apenas as
mais estreitas janelas. Os quartos teriam sido desagradavelmente quentes
durante os meses de cultivo — havia um motivo pelo qual os gujaareen não
colocavam portas nos quartos —, mas, nesses dias que ainda não chegavam
a ser os da estação da inundação, eram confortáveis o bastante. Além do
mais, ela escolhera quartos bem espaçados e colocara um guarda do lado de
fora de cada porta, de maneira que ninguém fosse considerá-la negligente.
Todavia, pedira a ajuda de Anzi para selecionar guardas com certas
características úteis. O que ela colocou no quarto do Superior era o filho
secreto de um Professor do templo hananjano em Kisua. Dois outros eram
eles mesmos hananjanos; talvez um quinto de todos os kisuati eram devotos
da fé. O quarto era um homem gujaareen, um dos poucos membros da casta
militar que conseguira encontrar emprego no exército kisuati. Ele era um
soldado raso agora; no exército de Gujaareh, fora oficial.
Esses guardas, ela diria aos Protetores se eles perguntassem — ela
duvidava que fossem perguntar, mas era sempre prudente ter explicações
prontas —, garantiriam que os Coletores e o Superior não fossem
maltratados durante o confinamento. Já haviam acontecido incidentes nos
dois dias desde que os Coletores haviam sido levados sob custódia: uma
avalanche de prisões, uma vez que os artesãos se recusavam a entregar
trabalhos encomendados por cidadãos kisuati e mercadores rejeitavam
compradores kisuati ou deixavam de aceitar moedas kisuati. Depois que
várias duplas de soldados foram atacadas e espancadas por gangues de
gujaareen bravos, Anzi ordenara que os soldados patrulhassem apenas em
grupos de dezesseis e havia colocado uma tropa em cada bairro da cidade.
Apesar dessas ações, um toque de recolher e uma proibição de reuniões não
haviam evitado um tumulto, o primeiro que ocorrera em séculos, no Distrito
dos Infiéis. Só mais tarde eles descobriram que uma armaria fora saqueada
durante o caos. O distrito estava sendo vasculhado, mas nenhuma das armas
havia sido encontrada ainda. Sunandi desconfiava que elas já haviam
passado pelo muro e se espalhado pelo resto da cidade.
A única coisa que a surpreendia era que a violência não houvesse se
tornado generalizada. Parecia-lhe que a cidade estava segurando o fôlego,
esperando, embora ela não soubesse dizer pelo quê.
O corredor onde os sacerdotes eram mantidos estava em silêncio quando
ela chegou… bem diferente dos agitados e movimentados andares
superiores, onde os Protetores estavam morando e trabalhando desde a
chegada. Na realidade, o silêncio lembrou Sunandi do Jardim de Pedra, um
espaço para oração dentro do Salão dos Coletores no Hetawa: o corredor
tinha a mesma calma dominante. Três dos guardas acenaram solenemente
para ela quando se aproximou; ela os cumprimentou de volta. O quarto
guarda, que deveria estar à porta de Nijiri, sumira.
Sunandi parou e olhou para os outros guardas. Eles ainda não haviam
dado o alarme, nem sequer pareciam preocupados.
Um momento depois, a porta do quarto se abriu e o guarda, o gujaareen
da casta militar, saiu. Avistando Sunandi, ele inclinou a cabeça para ela de
maneira respeitosa.
— O jantar, Oradora — explicou ele em um suua com sotaque.
— Ah. — Ela o fitou por mais um instante, até ele começar a parecer
desconfortável. Já havia passado da meia-noite: tarde para o jantar, mesmo
para um Coletor de hábitos noturnos. Mas ela enfim avançou e ele abriu a
porta para deixá-la entrar.
Lá dentro, o quarto estava silencioso, iluminado por uma única
lamparina e pela luz da Sonhadora que entrava pela janela. Ela viu uma
refeição sobre a mesa: então o guarda pelo menos tivera a perspicácia de ser
sincero sobre aquilo. Nijiri estava sentado na cama ali perto, as costas
apoiadas na parede, observando-a com a expressão mais inocente que pôde.
Isso para ele não era grande coisa.
Ela cruzou os braços.
— Boa noite, pequeno assassino. Ou deveria ser pequeno conspirador?
Ele sorriu quase que para si mesmo.
— Pedi ao guarda que me ajudasse a mandar uma mensagem para um
amigo, nada mais — disse ele. Depois ficou sério. — Mas o amigo não…
estava lá.
Ela franziu a testa, confusa.
— O guarda já entregou a mensagem para você?
— Por meio dos sonhos dele, já. É uma coisa que narcomancistas
habilidosos conseguem fazer. — Ele cruzou as mãos, os olhos pousando
sobre os três pergaminhos que ela carregava debaixo do braço. — Você me
trouxe um presente, Jeh Kalawe?
Ela ignorou a pergunta.
— Quanto tempo vai demorar até você ficar sem sangue onírico?
Há muito acostumado com a grosseria dela, ele não pestanejou.
— Três ou quatro oitavas de dias para todos nós. Lembre-se, tivemos
tempo para nos preparar.
Aquilo era um alívio.
— E quando chega a tempestade que você invocou?
Ele ergueu as sobrancelhas, todo inocência de novo.
— Tempestade?
— Sei que os nobres estão tramando alguma coisa. E está ficando cada
vez mais óbvio que esta cidade está se preparando para uma luta. Você está
influenciando todos eles em seus sonhos?
Essas palavras provocaram um sorriso genuíno.
— Nenhum Coletor tem tanto poder assim, Jeh Kalawe.
— Ehiru tinha.
Uma pausa.
— Ehiru não era um Coletor naquele momento. — A voz dele tornara-
se fria, o sorriso desvanecendo. Instantaneamente, Sunandi se arrependeu de
suas palavras, mas não havia como corrigir o erro. De qualquer modo, ele
era gujaareen: deixaria aquilo passar em nome da paz entre eles. O perdão
demoraria mais, mas então que assim fosse.
Ela soltou um suspiro e continuou.
— Mais cedo você insinuou que um dos filhos de Eninket ainda estava
vivo e entre os banbarranos. As minhas fontes dizem que há boatos sobre
isso se espalhando pela cidade também… de que está vindo um novo
Príncipe que vai libertar Gujaareh. É verdade?
Ele baixou os olhos.
— Eu disse que ia perdoar você, Jeh Kalawe. Essa promessa continua de
pé mesmo que eu não responda às suas perguntas e você me castigue pelo
meu silêncio.
— Não vou castigar você, seu tolo! Estou tentando ajudar nós dois! —
Ela aproximou-se, abaixando a voz. — Os Protetores trouxeram mais mil
soldados com eles, Nijiri. Estão sendo empregados na cidade agora para
manter a paz e receberam ordens para responder a qualquer problema com
muita severidade: morte para qualquer um que resistir. E estão planejando
mais alguma coisa, caso aconteça algum tipo de ataque ou revolta em toda a
cidade. Alguma coisa para alquebrar o espírito do povo. — Ela flexionou o
maxilar. — Não sei o quê. Não estou nas boas graças deles neste exato
momento, nem Anzi.
Nijiri levantou-se e foi até a janela, olhando para cima como que para
verificar a posição da Sonhadora. Era o mais perto da inquietude que ela já
vira um Coletor chegar.
— Você não vai reconquistar as boas graças nos ajudando, Jeh Kalawe.
Então por que está fazendo isso?
Sunandi revirou os olhos.
— Estou ajudando Kisua. Esta terra se tornou perigosa demais para nós
a mantermos. Alguns dos membros mais gananciosos do nosso povo, alguns
dos quais estão aqui agora, no comando, vão ficar ricos à medida que as
tensões aumentarem, mas o resto de Kisua é que sofrerá quando Gujaareh
devorar os nossos recursos e soldados e não nos devolver nada além de dor
de cabeça. E estou apavorada com a ideia de que essa praga do pesadelo
chegue ao nosso povo. Você sabe que não temos defesa contra magia.
— Nós ajudaríamos vocês se isso acontecesse, quando aprendêssemos
como lutar contra ela, apesar de que poderia exigir que o seu povo tentasse
usar magia outra vez.
— Não vamos precisar de magia. Só de um milagre.
Ele se virou para ela devagar, examinando o rosto dela, e então seus
olhos passaram para os pergaminhos que carregava debaixo do braço.
— Você achou alguma coisa.
Ela aquiesceu, contendo o entusiasmo, depois foi até a mesa, colocando a
bandeja de comida no chão.
— Em sua busca pelo segredo da imortalidade, Eninket reuniu uma
coleção e tanto de crenças sobre todo tipo de curiosidades mágicas.
Nijiri fez uma careta, ajudando-a a abrir os pergaminhos.
— Como o Ceifador.
— E mais coisas interessantes. Isto, por exemplo. — Ela apontou para
um pergaminho coberto de pictorais arcaicos desenhados com grossas linhas
pretas. Não conseguira ler nem metade deles, mas o acadêmico que lhe dera
a tradução ficara tão empolgado de ver as palavras de seus ancestrais que
cobrara um quarto a menos do que a sua taxa habitual só pelo privilégio. —
Este fala de uma praga que quase consumiu a cidade, uma praga que
nenhum curador conseguia combater, passada por meio dos sonhos. Ele
menciona centenas de vítimas, desespero por todo o território… Isso já
aconteceu antes, Nijiri.
Ele ficou tenso.
— Nós não temos nenhum registro de uma praga dessas no Hetawa.
— Vocês também não têm nenhuma sabedoria popular sobre a
imortalidade; no entanto, Eninket descobriu um jeito. Alguém,
provavelmente muitos alguéns ao longo dos séculos, manteve os seus
registros do Hetawa muito limpos e organizados. A sujeira e a verdade estão
todas aqui. — Ela deu outra batidinha nos pergaminhos.
Ele suspirou, embora não protestasse contra a maneira como ela
caracterizara a questão.
— Eles devem ter encontrado alguma forma de combater o sonho
naquela época ou Gujaareh seria uma ruína abandonada agora. Existe
alguma menção da cura?
— Existe. — Sunandi remexeu os pergaminhos e abriu outro, este
esfarrapado e manchado, escrito em hieráticos rabiscados. Esse ela
conseguia ler sozinha, e leu até tarde da noite, com um cartaz na porta
advertindo Anzi e mesmo os criados para não entrarem. Seus olhos ainda
doíam. — Este diz aqui: “Uma criança abrigava o sonho, atraindo e
prendendo todos os outros dentro dele. Quando a criança sonhava com
coisas horríveis, todos sofriam com essas coisas e muitos morriam. Outros
morriam dormindo, incapazes de comer ou beber. Só quando a criança foi
morta é que as vítimas foram libertadas”. — Ela se endireitou, olhando para
ele com firmeza. — O texto prossegue dizendo que apenas alguns poucos
sabiam disso e que a solução foi descoberta pelo Superior da época. Ele
matou a criança, Nijiri… e depois ordenou a morte de qualquer um que
soubesse do ocorrido.
Nijiri franziu ainda mais a testa.
— Por quê?
— Não se sabe. Isso foi escrito por um antigo acólito do Hetawa… Ele
testemunhou a morte da criança, mas ninguém notou sua presença. Se
tivessem notado, ele teria sido morto também. — Ela pôs uma das mãos
sobre o pergaminho, espalmando-a sobre os hieráticos para chamar a
atenção dele. — Esse Superior não era corrupto, Nijiri. Ele veio a fundar o
caminho dos Compartilhadores, escreveu algumas das preces mais bonitas
da sua fé e promulgou leis que melhoraram a cidade. Era um homem bom.
Pessoas boas só matam para guardar os segredos mais perigosos.
Ele alçou o olhar até ela devagar.
— O que está tentando dizer, Jeh Kalawe?
— Que você precisa estar aberto a soluções que, do contrário, não levaria
em consideração. Que a corrupção tem a ver com o intuito, não com a ação,
como me falou o seu mentor muito tempo atrás.
Houve um momento de silêncio.
— O acadêmico que te ajudou com esses documentos. O que você fez
com ele?
Ela já havia decidido responder, se ele perguntasse… embora houvesse
esperado que não perguntasse.
— Ele vai receber o funeral adequado junto com as outras vítimas da
praga, pois esse foi o motivo da morte dele, mesmo que não tenha sido o
modo. — Quando Nijiri apertou os lábios, Sunandi inclinou-se para a
frente, apoiando as mãos na mesa e colocando propositalmente o rosto ao
alcance das mãos compridas e mortais do Coletor. — E quantas pessoas
você matou para guardar os segredos de Eninket ao longo dos anos?
Ele não tentou agarrá-la nem estremeceu, é preciso reconhecer. E ela se
forçou a não estremecer ao encarar a morte fria nos olhos dele, o que era um
bálsamo para o seu próprio orgulho.
— Coletores não matam — disse ele baixinho com um toque de ironia
na voz que a fez sentir ainda mais calafrios. — Tudo o que fazemos é uma
bênção dada por Hananja para o povo Dela.
No rescaldo daquelas palavras, Sunandi não podia fazer nada além de
permitir um momento de apropriado silêncio gujaareen. Havia algo de bom
no costume, concluíra ela anos antes, de deixar que uma breve passagem de
tempo limpasse o ar depois que palavras e pensamentos perigosos o tivessem
maculado.
— Não tenho nenhuma pretensão de ser santa, mas também faço o que
preciso para manter a paz — falou ela por fim. Ela bateu o dedo no
pergaminho esfarrapado. — O homem que escreveu isso jamais deveria ter
colocado essas coisas no papel. Ele escreveu para aliviar a consciência, e a
fraqueza dele pode nos salvar… Mas, quando encontrarmos quem está
usando essa pestilência como arma agora, precisamos ser mais vigilantes do
que os nossos ancestrais. Precisamos garantir que essa magia maligna morra
aqui. Você concorda com isso?
Ele aquiesceu.
— Isso é corrupção do mais alto nível. O Hetawa precisa fazer o que for
necessário para que seja depurada.
— Mesmo que a depuração signifique matar uma criança?
— Essa pode não ser a única forma.
Era um alívio que ele hesitasse, concluiu Sunandi, embora não pudesse
permitir que ele continuasse teimando quanto a esse ponto. Ela saberia que
deveria temê-lo só quando a consciência dele morresse… ou se ela algum
dia fizesse alguma coisa prejudicial sem um propósito. Então ele viria buscá-
la. Ela sempre soubera disso e aceitara o fato.
— É a única forma infalível. Você vai fazer isso se for preciso? Coletar
um inocente?
Outro momento necessário se passou.
— Não sou o meu mentor — respondeu ele baixinho. Ela ficou surpresa
ao ler vergonha no rosto dele. — Nunca tive a honra dele.
Ela hesitou, mas então estendeu a mão e pousou-a no ombro dele.
— Você é diferente de Ehiru, é verdade, mas isso não é uma coisa ruim.
Ele só pensava em Hananja, enquanto você pensa primeiro no povo de
Hananja.
Ele lhe deu um sorriso tênue cuja tristeza a surpreendeu.
— Não se deixe enganar, Jeh Kalawe. Eu só penso em mim mesmo.
Preciso ser capaz de olhar nos olhos dele quando o encontrar de novo em
Ina-Karekh.
Ela jamais se acostumaria com o modo como os Coletores
constantemente ansiavam pela própria morte.
— Há mais coisas nos registros. — Uma transição desajeitada desta vez,
mas inevitável. Ela tirou o terceiro pergaminho do fundo da pilha e abriu-o
em cima dos outros dois. — Você reconhece isto?
Nijiri franziu a testa ao ver o documento, que estava coberto por alguma
espécie de tabela. Pictorais de nomes se espalhavam pela página, ligados por
linhas diretas e precisas.
— Eu deveria? Não sou Professor. — Ele parou então, avistando o
pequeno carimbo do criador em um dos cantos inferiores da página, e ficou
tenso.
— Inunru. — Sunandi o observava. — O nome era mais comum
naquela época, mas existe motivo para acreditar que esse era de fato o
mesmo Inunru que fundou a sua fé, a narcomancia e o caminho dos
Coletores. — E o homem que havia criado os primeiros Ceifadores, ela não
acrescentou… porque, de qualquer maneira, ele sabia e porque evitar
assuntos dolorosos era costume tanto em Kisua como em Gujaareh.
Nijiri flexionou o maxilar mesmo assim, mas não comentou nada, os
olhos percorrendo as linhas do pergaminho.
— O que é isto? Mães, pais, tios… — Ele fez uma careta, impaciente.
— Eu nasci na casta servil, Jeh Kalawe; nós procriávamos como quiséssemos
e nunca ficávamos obcecados com linhagens como vocês, alta-castas. O que
significa?
— Pelo que sei, o seu fundador estava pesquisando certas linhagens. O
dom do sonho é de família, não é?
Ele anuiu, distraído.
— Mais por parte de pai do que de mãe, é. Sempre que a linhagem
paterna produz uma criança adequada aos caminhos da narcomancia, nós a
observamos dali em diante.
Ela apontou para um minúsculo pictoral de pássaro ao lado de alguns
nomes.
— Esse é o primeiro caractere da sua palavra para sonho. Pode significar
que Inunru desconfiava que essas pessoas tinham o dom.
Nijiri tocou uma descendência, uma de várias que haviam sido
desenhadas em vermelho em vez de preto.
— Mas esta é a linhagem materna — disse ele. — A irmã de um
Sentinela que tinha um dom forte… — Ele seguiu a linha. — Produziu três
crianças, todas meninas… — O dedo dele parou em um espaço vazio abaixo
daquela linha. — Ele perdeu o rastro aqui. Mas isso não é de surpreender;
nós nunca observamos as mulheres.
— Porque as mulheres herdam o dom mais raramente? — perguntou
Sunandi, cruzando os braços. — Ou porque a sua fé rejeita as mulheres?
Ele pareceu irritado.
— Nós reverenciamos as mulheres.
— Se vocês deixam passar despercebidas as mulheres que têm o dom, é a
mesma coisa. Aquela garota que vocês acolheram como Compartilhador…
Qual era o nome dela?
— Hanani.
— O dom de Hanani é forte?
Nijiri ponderou por um instante.
— Forte o suficiente — respondeu ele, enfim. — Mni-inh… — Ele
inexplicavelmente se deteve para respirar. — Mni-inh nunca reclamou da
habilidade dela, apenas da confiança.
— Ela poderia ter se tornado um Coletor em vez de Compartilhador?
O rosto dele se contorceu, embora tenha dominado sua reação depois
disso.
— Ela não tem o temperamento. Mas Coletar e Compartilhar são dois
lados da mesma moeda, no final das contas. — Ele suspirou. — Então,
poderia.
Sunandi bateu com o dedo no pergaminho perto dos nomes das três
sobrinhas do Sentinela.
— Então uma dessas mulheres pode ter tido um dom forte como o de
um Coletor ou Compartilhador? As mulheres costumam enlouquecer aqui
em Gujaareh?
Nijiri desviou o olhar, perturbado.
— Não com frequência, mas também não é algo sem precedentes. —
Um tanto na defensiva, ele acrescentou: — Nós damos sangue onírico para
elas para controlar a loucura, igual faríamos com qualquer homem.
— Mas os homens com o dom são encontrados cedo e levados para o
Hetawa, antes que possam sofrer muito. Eles são valorizados, cuidados.
Porém, isolados… — Um novo pensamento passou pela cabeça dela então e
era desagradável. Ela fez uma careta enquanto o revirava em sua mente. —
As restrições do seu Hetawa contra Servos mulheres podem ter sido
intencionais. Os homens com o dom se tornam celibatários no Hetawa, mas
as mulheres com o dom não vivem sob a mesma restrição, a maioria delas
faz filhos e filhas. Não é diferente de deixar éguas úteis no rebanho
enquanto os garanhões mais encrenqueiros que têm os mesmos traços são
abatidos! Essas mulheres — ela apontou para as linhagens maternas em
vermelho — mantêm o dom do sonho em Gujaareh. Caso contrário, o Hetawa
pegaria todos e em pouco tempo não haveria mais Compartilhadores nem
Coletores.
Nijiri não falou nada pelo intervalo de várias respirações. Sunandi notou
que os olhos dele estavam na tabela de linhagens, fixos no pictoral do
criador no canto inferior.
— Foi Inunru quem decretou que as mulheres não deveriam servir —
comentou ele por fim. — Foi o que me ensinaram na Casa das Crianças.
Ele disse que era porque as mulheres são deusas e a magia delas é como o
reino dos sonhos: poderosa, mas imprevisível. Instável demais para usar na
narcomancia. É por isso que tantos culparam Hanani quando… — Ele
parou de falar, franzindo o cenho para si mesmo.
— Hanani é a prova de que mulheres com o dom do sonho não são
diferentes dos homens — declarou Sunandi com firmeza. — Quantas
outras como ela existem por aí, eu me pergunto. Talvez algumas tenham se
casado com homens cujas próprias linhagens carregam o dom. Os filhos
delas podem se tornar Coletores e as filhas, lunáticas.
Ele estremeceu ao ouvir isso, mas depois chacoalhou a cabeça; Sunandi
queria bater nele por conta dessa resistência.
— Nem todo mundo que tem o dom enlouquece, Jeh Kalawe.
— Não, mas aqueles que enlouquecem não precisavam enlouquecer.
Suponho que a sua fé considere esse um pequeno preço a se pagar. — Ela
deu um suspiro amargo; ele não falou nada. — E, volta e meia, nasce uma
criança com um dom tão forte a ponto de ser um perigo para todos por
perto. — Ela bateu o dedo no pergaminho. — Eu apostaria a minha fortuna
que o seu fundador estava procurando uma criança assim.
— Procurando uma? Por que ele…
— Pela mesma razão pela qual ele guardava anotações sobre o potencial
dos Ceifadores! Imortalidade, magia, sonhos que podem matar exércitos…
ou nações. Poder. O seu fundador era fascinado por isso.
E, em seu íntimo, Sunandi estava feliz pelo fato de que Inunru estava
morto havia muito tempo. Ela não ia querer enfrentar um homem tão
brilhante e tão profundamente cruel. Ainda bem que seus colegas Servos de
Hananja o haviam matado por seus muitos crimes, mas ele havia visto quase
trezentas inundações do rio antes de esse dia chegar, usando seu próprio
conhecimento de magia para estender sua vida. Ele passara a maior parte
desse tempo moldando o Hetawa e Gujaareh para atender aos seus projetos.
Um longo tempo para semear o mal.
Se ao menos o fruto envenenado não amadurecesse na minha época.
Nijiri deu um suspiro profundo.
— Esse conhecimento deixou Ehiru magoado quando ele descobriu —
disse o rapaz. — Ele tinha a nossa fé em tão alta conta. Isso me perturba
menos porque eu sempre soube do mal que podemos fazer, mesmo assim…
— Ele suspirou. — Indethe ne etun’a Hananja. Está claro que a Senhora não
nos observa com atenção suficiente, minha Deusa.
Sunandi olhou para a porta, tentando estimar quanto tempo havia se
passado. Ela não podia ficar afastada dos andares dos Protetores ou dos seus
aposentos por muito tempo, não sem levantar suspeitas.
— Você consegue enviar essas informações para os seus confrades no
Hetawa? Por meio dos sonhos ou do que for?
— Consigo. Nós temos acólitos espalhados pela cidade, longe do
Hetawa, onde podem sonhar em segurança. Vou entrar em contato com um
deles. — Ele se sentou na cama de novo, solene. — Você quer que os
Professores vasculhem os registros de nascimento da cidade em busca das
linhagens que produziram narcomancistas fortes, mas desta vez seguindo as
mulheres.
— Só as mais fortes ou as que geraram Coletores ou Compartilhadores
mais recentemente. Não há tempo para vasculhar todas. Pode ser que vocês
não encontrem nada, mas a alternativa é revistar todas as casas da cidade
para ver se conseguem encontrar a criança que têm pesadelos escondida em
um armário.
— Muito bem, Jeh Kalawe. Vamos fazer o que você sugeriu.
Sunandi aquiesceu e logo começou a recolher os pergaminhos,
observando-o furtivamente enquanto o fazia. Ele parecia deprimido, mas
isso poderia ser apenas o confinamento e a incerteza. No entanto, ela não
pôde deixar de perguntar:
— Há alguma coisa que eu possa fazer por você? Alguma coisa de que
você precise?
Ele chacoalhou a cabeça.
— Você se arriscou o suficiente. — Mas o semblante dele não mudou,
então ela não ficou surpresa quando ele voltou a falar. — Tem uma coisa que
me preocupa.
— Que é?
— Inunru fez muitos decretos na época em que conduzia a nossa fé.
Quanto mais o conheço, mais percebo que cada um desses decretos tinha
algum propósito oculto. — Sunandi aquiesceu, feliz de não ser a única que
pensara nisso. Ele esfregou as mãos como se estivesse com frio, embora o
quarto não estivesse gelado. — Há uma linhagem paterna na cidade que o
Hetawa nunca reivindica… não completamente. Por tradição e por decreto
de Inunru, todos os Príncipes do Ocaso devem ter o dom do sonho em
alguma medida. Só o Conselho dos Caminhos do Hetawa sabe do
decreto… mas, como herdeiros de Inunru, nós trabalhamos para cumprir a
vontade dele todos esses séculos. Na verdade, essa foi uma das várias razões
pelas quais decidimos apoiar Wanahomen: o pai dele tentou esconder de
nós, mas o garoto é um sonhador vigoroso. — Ele suspirou. — Alguns de
nós até tomaram isso como um sinal da Deusa.
Sunandi franziu a testa.
— Por que Inunru daria uma ordem dessas?
— Não sei, Jeh Kalawe. Mas tenho suspeitas e elas me assustam.
Ela adivinhou com base na hesitação dele. Era óbvio, na verdade. Se
Inunru não conseguia encontrar um Sonhador Desenfreado, pretendera criar
um. Os Príncipes do Ocaso tomavam muitas esposas e geravam muitos
filhos: isso por si só devia ter tornado a linhagem perfeita para os propósitos
de Inunru. Uma criança dessas nas mãos erradas, mesmo não treinada, era
uma arma viva formidável. Nas mãos de Inunru… Sunandi estremeceu só
de pensar.
E agora o Hetawa estava ajudando Wanahomen, descendente de loucos
e mágicos, herdeiro de outro monstro que fugira ao controle deles. Outro
dos perigosos segredos de Inunru.
Sunandi pôs os pergaminhos debaixo do braço e suspirou.
— Guarde essa para a próxima guerra, seu tolo — disse ela. — Já não
temos problemas suficientes?
Ele a encarou, depois riu. Era a primeira risada genuína que ela
conseguia se lembrar de ter ouvido.
— Bom descanso, Sunandi. Vou rezar por você hoje à noite.
E, até onde Sunandi recordava, ele jamais a chamara pelo primeiro
nome. Ela não ficara ofendida por aquela camada extra de formalidade entre
eles apesar dos anos de amizade; ele era gujaareen. No entanto…
— Em paz, Nijiri — respondeu ela, e conteve o sorriso até sair do
quarto.
37

LÍDER DE GUERRA

Metade da manhã já havia se passado quando Wanahomen finalmente


deixou a tenda de Hanani. Ela ainda estava dormindo, emaranhada em um
lençol fino no meio da pilha de almofadas espalhadas. Ele parou para beijar
o pescoço dela e um seio simplesmente descoberto antes de sair; ela não se
mexeu.
Lá fora, o acampamento estava apenas meio desperto, uma vez que a
maior parte da tribo e seus convidados haviam continuado a celebração até a
Lua da Vigília se pôr. Ele avistou alguns escravizados com olhos sonolentos
fazendo a limpeza e alguns guerreiros com olhos mais sonolentos ainda
tomando um chá forte ao redor das fogueiras; fora isso, o acampamento
estava adormecido. Voltando à própria tenda, ele tomou um banho rápido
de bacia e vestiu uma roupa limpa antes de procurar Unte.
— Ora, ora — disse Unte quando o escravizado o deixou entrar na
tenda. Unte estava estendido sobre uma comprida almofada plana com os
pés para cima, bebendo o conteúdo de uma xícara grande. Pelo cheiro
amargo, Wanahomen soube que ela continha um chá para ressacas. — Você
nunca faz as coisas do jeito fácil, Wana? Metade do acampamento está
admirada com você e a outra metade acha que você pode ser a morte de
todos nós.
Wanahomen acomodou-se em uma almofada de frente para ele com um
sorriso triste.
— Ótimo. Não faz muito tempo que só um quarto estava admirado
comigo. De qual lado você está, a propósito?
— Vou decidir quando vir o rosto da moça. Espero que ela tenha ficado
satisfeita.
Era praticamente uma lei entre os banbarranos gabar-se de suas façanhas
sexuais. Os homens teciam histórias sobre mulheres inatingíveis
conquistadas e posições impossíveis alcançadas, ao passo que, segundo
boatos que ele ouvira, as mulheres guardavam uma tabela em algum lugar
para fazer apostas, uma tabela completa com classificações das habilidades
de cada um dos homens da tribo. Mas, embora Wanahomen houvesse tido a
sua cota de contação de histórias (algumas verdadeiras, a maioria não, que
era como funcionavam essas coisas), ele não sentia grande vontade de
conversar sobre o tempo que passara com Hanani. A questão toda era muito
frágil e poderosa, quase sagrada, como a própria mulher do templo. Ele
ainda não sabia como se sentir com relação àquilo.
— Eu diria que sim — falou ele para Unte, tentando soar indiferente. —
Apesar de sempre ser difícil de dizer com as mulheres, claro. Acho que a
tristeza dela também foi atenuada, pelo menos o suficiente para ela não
enlouquecer nem se matar.
Unte conteve um bocejo e franziu a testa.
— Existia mesmo esse risco?
— Ontem à noite? Pelos deuses, existia sim. E ela vai precisar de uma
observação cuidadosa por mais algum tempo. — Ele estendeu a mão para
pegar o chá e se servir. — O meu povo não lida muito bem com a dor.
— Então ainda bem que você deu prazer a ela, apesar de agora eu estar
preocupado que os sacerdotes amigos dela, aqueles sujeitos de rosto frio que
matam de noite, fiquem irritados com a gente.
— Sim, eles vão ficar irritados comigo. — O chá cheirava mal, mas
continha um estimulante forte; ele fez uma careta e forçou-se a engolir. —
Mas vão colocar a culpa nela, não em mim.
— Eles podem alegar que você a seduziu.
— As pessoas do templo podem ser muitas coisas, mas não são
mentirosas. Se perguntarem para ela, ela vai contar para eles que me pediu
os meus favores. — Ele suspirou e acabou de esvaziar a xícara. — Não sei o
que vão fazer com ela então.
— Bem. — Unte se sentou, fazendo uma careta e tocando a têmpora
como se o movimento lhe causasse dor. — De um jeito ou de outro, vai
acontecer depois da batalha.
Estendendo a mão para pegar a garrafa de chá outra vez, Wanahomen
ficou paralisado e o encarou.
— A votação? Mas pensei que…
— Asnif dos Madobah era o único possível dissidente e ele ficou muito
impressionado com você depois da morte do curador naquele dia. Ele falou
ontem à noite que pretende apoiar você e os outros admitiram que
planejavam fazer o mesmo. Até mesmo Tajedd, embora ele não tenha
escolha. — Unte deu um sorriso tênue. — Então, em vez de fazer
cerimônia, contamos aquilo como votação. Os outros vão informar seus
líderes de caça… não, líderes de guerra, esta manhã. Eles concederam a você
o título de comandante de guerra. — Unte sorriu. — O nosso primeiro em
gerações.
Wanahomen fechou os olhos e murmurou uma breve oração de
agradecimento a Hananja, então respirou fundo, sentindo em seu sangue as
primeiras agitações da prontidão para a batalha.
— Então partimos amanhã — disse ele. — Por favor, peça à tribo para
preparar rações para todos os guerreiros e animais de carga para carregar
forragem. Vou organizar uma reunião com os líderes de guerra esta tarde
para nos prepararmos. E mande um mensageiro: vamos levar três dias de
viagem pesada para chegar ao ponto de encontro com os soldados gujaareen.
Unte ergueu as sobrancelhas, achando graça, embora aquiescesse para
cada item da lista de pedidos de Wanahomen.
— As rações já estão preparadas, claro, já que nós meio que esperávamos
por isso. E a forragem, e os cavalos; o resto pode ser feito rapidamente. Mas
você vai tomar cuidado, Wana, não vai? Não quero ver dez anos
desperdiçados.
Wanahomen sorriu e virou-se para ajoelhar-se diante de Unte.
— Eu falei que faria do senhor um rei entre reis, não falei? Gujaareh será
minha outra vez e todos conhecerão a força dos banbarranos antes de
terminarmos. Vou te deixar orgulhoso.
Unte riu, estendeu a mão e segurou o ombro de Wanahomen, depois se
sentou e, para grande surpresa do rapaz, beijou sua testa.
— Você já me deixou — respondeu ele.

***

Já fazia tempo que o sol havia se posto quando Wanahomen voltou cansado,
porém satisfeito, para a saliência do acampamento dos Yusir. Passara a tarde
discutindo estratégias com os outros líderes de guerra, agora seus tenentes,
enquanto os homens das tropas faziam os preparativos finais para a guerra.
Mal conseguia pensar em outra coisa além de uma refeição e sua cama, mas
claro que isso mudou quando Yanassa apareceu e tomou o braço dele.
— Yanassa — disse ele em um cumprimento cansado. — O ar fica mais
fresco por causa da sua presença.
Ela deu um sorriso doce, embora ele não houvesse se deixado enganar
nem um pouco. Ela queria alguma coisa.
— Que presente você trouxe para a Hanani?
Hanani. Ele pensara na mulher do templo, claro, mas com tantas outras
preocupações em sua mente, essa escapara. Era o costume banbarrano
compensar uma mulher pela sua virgindade. E, embora Hanani não fosse
banbarrana e talvez não se importasse, estava claro que Yanassa pretendia
garantir que ele fizesse o certo pela moça.
— Pelas sombras — murmurou ele.
Ela deu uma batidinha em seu ombro.
— Acho que aquela sua tornozeleira de âmbar vai servir muito bem.
Ele sobressaltou-se, franzindo a testa para ela. Ele dera a tornozeleira
para Yanassa anos atrás, quando se tornaram amantes. Ela a devolvera
quando eles brigaram, mas ele sempre tivera a esperança…
— Não sei — respondeu ele.
— Então você não se importa nem um pouco com ela? Ela foi só o alívio
de uma noite para você?
— Não, eu apenas… — Ele parou, preocupado. Passara a gostar de
Hanani mesmo sem ter a intenção, mas de que servia isso? Ela não o amava.
Ela o usara, na verdade, embora ele houvesse permitido. Era justo depois do
que ele fizera com ela… Mas, no final das contas, ela voltaria para o Hetawa
e acabaria se esquecendo dele, e ele, dela. — Eu tinha pensado em dar a
tornozeleira para uma das minhas esposas — terminou.
Yanassa parou de andar, fazendo cara feia para ele.
— É sempre a mesma coisa com você. Uma noite nos braços de uma
mulher e você quer trancá-la em um palácio em algum lugar. E, se por
algum motivo você não consegue ter isso, ela não significa nada para você.
Por que você nunca pode apenas aceitar o que foi oferecido, Wana, sem
exigir tantas coisas mais?
Ele parou também, pondo as mãos no quadril, sem se importar com o
fato de que eles estavam no meio de uma passagem e metade da tribo
provavelmente estava observando.
— Porque não sou um banbarrano atirando a minha semente em
qualquer mulher disposta e me gabando da minha pontaria!
— Ela também não é banbarrana! — retrucou Yanassa. — Pelos deuses,
nenhuma mulher banbarrana é burra o bastante para tolerar você depois de
ver o que eu passei. Mas a Hanani é como você, zangada, machucada e
solitária debaixo de toda aquela presunção e precisa que alguém se preocupe
com ela mesmo que seja justo você, de todas as pessoas. Então, se você
despedaçar o coração dela, vou desprezar você para sempre. — Dito isso, ela
virou as costas e foi embora em um turbilhão de faixas e joias penduradas,
deixando-o boquiaberto.
Charris saiu do meio de duas tendas e veio se postar ao lado dele.
— Meu pai nunca teve tantos problemas assim com as mulheres, teve?
— perguntou Wanahomen entredentes.
— Não, milorde. Mas pode ser porque ele mantinha todas as mulheres
dele trancadas em um palácio em algum lugar.
Wanahomen lançou-lhe um olhar penetrante, mas Charris manteve seu
rosto educadamente neutro.
Ele suspirou e esfregou os olhos por cima do véu.
— Quer pegar a tornozeleira de âmbar para mim, por favor? — Quando
Charris não saiu do lugar, Wanahomen olhou para baixo e viu que havia um
pacotinho na palma da mão do velho.
Com um último olhar azedo, Wanahomen pegou o pacote e foi à tenda
de Hanani.
Ela não estava lá. Algumas perguntas pelo acampamento revelaram que
ela aparecera mais ou menos no momento do descanso do meio-dia, fora
tomar banho, depois voltara e pedira a vários dos banbarranos para
compartilhar humores oníricos com ela.
— Como ela parecia estar? — indagou ele a um dos anciãos de quem ela
coletara sangue onírico.
— Bem o bastante — respondeu o idoso, então sorriu. — Não parecia
insatisfeita, se é que você tem esperanças de outra noite ocupada. —
Contendo uma resposta mal-educada, Wanahomen desejou boa tarde ao
homem.
Por fim, conversou com alguém que a vira se dirigindo para as alturas.
Encontrou-a no meio da subida, nas saliências onde lhe dera aquela
primeira aula de narcomancia somente uma quadra de dias antes. Na
verdade, estava sentada na mesma laje de pedra, abraçando os joelhos,
contemplando o cânion à medida que as últimas cores do pôr do sol se
dissipavam do horizonte que escurecia.
Wanahomen foi até ela e sentou-se ao seu lado; ela se assustou quando
ele se sentou, voltando de uma distância de um milhão de quilômetros.
— Ah — disse ela. — Boa noite, Príncipe.
Ele reprimiu o impulso de tirar do rosto dela um cacho espesso de cabelo
cor de areia. Apesar da noite anterior, parecia um tanto estranho tomar a
liberdade de tocá-la. Ele manteve as mãos embaraçosamente no colo.
— Como você está?
— Bem, obrigada — respondeu ela. Seu tom não era nada além de
cortesia. De repente, o rapaz se perguntou se ela estava insatisfeita com ele.
Então se lembrou das palavras de Yanassa e percebeu que ela poderia não
estar pensando nem um pouco na noite anterior.
— A votação foi a seu favor — falou ela, confirmando a suposição dele.
— Todo mundo está comentando.
Ele aquiesceu.
— Vai acabar logo, de um jeito ou de outro. — Olhando para ela, ele
acrescentou: — Então você vai poder voltar para o Hetawa. — Observando
o rosto dela, Wanahomen vislumbrou um breve baixar de olhos.
— É.
Ele se preparou e então perguntou:
— Arrependimentos no fim das contas?
Ela apertou os lábios.
— Preocupações.
— Preocupações com…?
Ela chacoalhou a cabeça devagar, como se insegura de suas palavras.
— A paz que um dia eu senti como Serva de Hananja se foi. Estava
sumindo antes, mas a morte de Mni-inh acabou com ela de vez. A morte
me segue como uma sombra. Sou uma curadora, deveria trazer vida, não
deveria? O que significa o fato de que não trago?
Wanahomen ficou perplexo por algum tempo. Será que ela passara o dia
inteiro ali ruminando uma pergunta dessas? E como é que ele, que não era
um sacerdote em nenhum sentido, deveria responder?
Ele suspirou e tirou o véu, contemplando o cânion também.
— Você não causou a morte de Mni-inh — disse ele. — E Azima
provocou a dele quando te atacou.
— Se eu mesma tivesse curado a shadoun, Mni-inh não teria morrido.
Ele a encarou.
— Porque você teria morrido no lugar dele! Hanani… — Ele chacoalhou
a cabeça, suspirou e estendeu o braço na direção dela. Ela ficou tensa e ele
parou, deixando a mão no ar até ela relaxar. Depois ele a puxou para que ela
se sentasse em seu colo. Ele teve a impressão de que ela só permitiu aquilo
porque a pegara de surpresa.
— Príncipe, o que…
— Wanahomen.
— Como é?
— Eu estive na sua tenda e dentro do seu corpo. Você pode pelo menos
me chamar pelo meu nome amaldiçoado pelas sombras.
Aquilo com certeza a tirou da melancolia. Uma vermelhidão forte o
suficiente para se ver mesmo na penumbra espalhou-se pelo rosto dela. Seu
sorriso tímido veio a seguir; ele o contou como uma vitória secundária.
— Pois muito bem, Wanahomen.
— Ótimo. — Ele a envolveu frouxamente com os braços. — Agora você
está sendo tola. E da última vez que estava sendo tola, abraçá-la pareceu
trazer o seu juízo de volta. É a única coisa que eu sei que posso tentar. —
Ele ficou aliviado de ver o sorriso dela se alargar.
— Sim, P… Wanahomen. É estranhamente útil.
Tranquilizado, ele se mexeu para se acomodar na pedra dura, de modo
que suas pernas não fossem ficar dormentes.
— A guerra começou — falou ele em tom mais sério. — Nenhum de
nós pode se dar ao luxo de ser tolo agora. Apenas passar por isso vai trazer
de volta a paz.
Ela aquiesceu, ficando séria também.
— Eu tomei providências para cavalgar na retaguarda do seu exército
com os escravizados e os ferreiros e os outros que não vão lutar.
Não ocorrera a Wanahomen que ela iria junto quando ele fosse viajar.
Mas, por outro lado, esse foi o motivo pelo qual o Hetawa lhe dera os
Compartilhadores para começar, não foi? Preocupado, ele se atreveu a
pousar uma das mãos na lombar da moça, pensando nos perigos.
— Continue usando essa roupa — disse ele. — Ninguém vai incomodar
uma mulher banbarrana, não com centenas de guerreiros banbarranos por
perto. Mas uma gujaareen solitária seria vista como vulnerável.
Ela franziu o cenho.
— Um Compartilhador deveria ser fácil de encontrar — pontuou ela. —
As vestes vermelhas… todo gujaareen sabe o que elas significam. No meio
da batalha, isso poderia me ajudar a chegar aos feridos…
— Eu não quero que você seja fácil de encontrar — retorquiu ele,
fazendo cara feia; ela recuou, surpresa. — Não confio nos meus aliados da
cidade, Hanani. Eles podem querer estragar a minha aliança com o Hetawa
fazendo mal a você.
— Ninguém… — Mas parou sem terminar a frase. Ela vira o suficiente
agora para saber que não devia.
Não gostando do fato de que ela ficara tensa, ele estendeu a mão para
massagear seu pescoço e seus ombros.
— Durante a batalha, vou mandar levarem os feridos para onde quer que
a gente faça acampamento. Você pode curá-los lá. Quando tivermos passado
pelos muros da cidade, vou te levar de volta para o Hetawa. Até isso
acontecer, você é a minha curadora e só serve aos meus homens. Entendido?
Hanani fitou-o por um longo tempo, e só depois é que ele ficou
pensando no que poderia fazer se ela dissesse não.
— Vou esperar até você considerar seguro antes de ajudar qualquer um
além dos banbarranos — concordou ela, enfim. — Mas só porque fazer o
contrário poderia causar mais danos.
Wanahomen soltou o ar e aquiesceu. Eles ficaram assim por um bom
tempo, até a curva superior vermelho-sangue da Lua dos Sonhos começar a
encher o céu sobre o cânion.
— Você está machucada? — indagou ele quando se passara tempo
suficiente para poderem discutir algo mais íntimo.
— Alguns pontos doloridos. Não o suficiente para ter o trabalho de
curar. — Ela encolheu os ombros. — Você foi muito cuidadoso. Obrigada.
Ele ficou incomodado com o fato de ela parecer surpresa com o seu
cuidado. Incomodava-o mais ainda que ela parecesse completamente
impassível com relação ao que acontecera entre eles, poderia ter sido apenas
mais uma aula de sonho, apesar de toda a ternura do comportamento dela.
Por conta disso, ele disparou:
— Você lamenta alguma coisa, Hanani? Agora que a luz do dia clareou
os seus pensamentos?
Ela suspirou, mas para alívio dele chacoalhou a cabeça.
— Você lamenta?
Ele sentiu uma ligeira tensão no corpo da moça e ficou surpreso com o
quanto isso lhe agradava. Pelo menos gostava dele o suficiente para se
preocupar com o que ele pensava dela.
— Só o fato de que você precisa voltar para o seu Hetawa.
Esse comentário pareceu trazer de volta parte da tristeza dela e o fez
ficar sério também.
— O que vai acontecer com você? — perguntou ele. — No Hetawa?
Ela suspirou.
— Vou contar ao Superior tudo o que fiz. Ele vai decidir qual será a
minha penitência, apesar de que os anciãos do meu caminho vão opinar
também… e os Coletores, considerando que tirei uma vida. A notícia vai se
espalhar de um jeito ou de outro e a minha reputação vai ser mais
prejudicada. Existem aqueles que sempre disseram que uma mulher não tem
a disciplina para servir a Deusa de forma apropriada e agora eu provei que
eles estavam certos em muitos sentidos.
Ele não gostou de saber que os Coletores estariam envolvidos na decisão
do destino dela. Nem um pouco.
— Mais tolice — comentou ele com uma indiferença que não sentia de
verdade. — Para começar, você não poderia ter se tornado Compartilhador
sem disciplina.
— Mas eu não sou Compartilhador, ainda não. E agora pode ser que eu
nunca me torne um. Mni-inh… Ele era o meu defensor no Hetawa. Ele…
— Ela estremeceu e se calou; ele a sentiu tremer.
— O seu mentor e eu, nós não éramos amigos — começou Wanahomen,
constrangido. Mas sentiu que ela estava prestando atenção. — Talvez ele
visse o meu pai em mim. Eu com certeza via o Hetawa nele… e em você, no
começo. Mas ele era firme e enérgico em suas convicções, até eu devo
admitir que o admirava por isso. Não consigo imaginar um homem desses
apoiando você se não acreditasse que você é digna de servir Hananja.
— De que adianta se ninguém mais acredita? — Não havia força na voz
de Hanani, apenas resignação, e enfim Wanahomen percebeu que o que ela
estava reprimindo não era arrependimento, mas um desespero tão intenso
que era como pedras em sua alma. Ela ainda era uma mulher de luto, por
mais incomum que fosse o método que escolhera para desligar sua mente do
sofrimento. Era tão fácil agravar suas feridas.
— Então eles não merecem ter você no convívio deles — retrucou
Wanahomen, zangado por ela. — Mas pare e pense: os Coletores
escolheram você para realizar uma missão de grande importância, não é
verdade? O seu mentor considerou você digna das suas vestes vermelhas,
isso ficou claro para mim. Unte e os banbarranos respeitam você, até a
minha mãe respeita… e essa não é uma coisa fácil de conquistar, acredite.
Hanani não falou nada, mas ele sentiu parte da tensão diminuir nas
costas dela. Satisfeito, Wanahomen mudou de posição e pôs uma das mãos
na barriga dela.
— E… os banbarranos não entendem isso, mas não me deito com
qualquer mulher. Você pode se tornar a mãe do próximo rei de Gujaareh,
afinal.
Wanahomen não pôde ver as nuances do rosto dela no escuro, mas teve a
impressão de que ela desviou o rosto.
— Não vai haver uma criança — declarou ela —, não é a época certa.
Ele piscou, surpreso, mas ela era uma curadora, é claro que saberia. Pelo
espaço de uma respiração, ele ficou desapontado, antes que o bom senso se
reafirmasse.
— Mesmo assim — disse ele. Afagou a coxa da jovem por cima da saia,
depois acariciou a bochecha dela. — Por mais adorável que você seja, por
mais deliciosa que você estivesse ontem à noite, eu jamais teria atendido ao
seu pedido se não tivesse visto sua força e sua inteligência e não as tivesse
desejado para os meus herdeiros.
Ela deu um sorriso estranho, mas havia um divertimento genuíno nele.
— Não sei ao certo como responder a isso.
— Diga “obrigada” — falou ele com uma presunção fingida. — E eu
também apreciaria um elogio pela minha habilidade, pelo gosto impecável e
pelo bom senso.
Ele ficou contente de vê-la soltar uma risada suave, mas ainda mais
satisfeito quando ela pôs os braços ao redor do seu pescoço.
— Obrigada por ser gentil comigo — sussurrou ela em seu ouvido. E
então ela o beijou.
Surpreso, Wanahomen abraçou-a e correspondeu ao beijo, admirando-se
mais uma vez com a forma como ela colocou todo o seu ser naquele
momento. Talvez porque estar com ele fosse uma traição ao seu juramento:
se estivesse em seu lugar, ia querer saborear cada momento também. Para
fazer a traição valer a pena.
Então ele suspirou, delicadamente a fez recuar um pouco e tirou o pacote
de Charris da roupa.
— Eu é que agradeço — disse ele, abrindo o tecido dobrado. Ela conteve
a respiração quando ele pegou a tornozeleira; mesmo sob a tênue luz da
Sonhadora ela podia ver o brilho dos pingentes. Ele o amarrou ao redor do
tornozelo dela e teve de admitir que ficou melhor do que esperara em sua
pele pálida.
— Mas por quê? — perguntou ela, finalmente parecendo emocionada
com alguma coisa que ele fizera. Aquilo por fim satisfez o orgulho dele.
— Você me deu prazer — respondeu ele. Acariciou a panturrilha dela;
era a única parte do seu corpo que ousava tocar para não se sentir tentado a
prosseguir. Uma noite era tudo o que podia esperar dela e isso já estava
feito. Ele se viu desejando que pudesse haver mais. — E me deu a honra de
ser o seu primeiro amante. Mesmo sem contar o seu juramento ao Hetawa,
essa é uma coisa poderosa e especial.
Ela chacoalhou a cabeça.
— Foi um presente mútuo, Príncipe. Wanahomen. Você também me
deu prazer.
— Verdade. Mas, entre os banbarranos, nada é de graça… — Ela pôs os
dedos sobre os lábios do rapaz, para sua grande surpresa.
— Você não é banbarrano — pontuou ela. Levantou-se e ficou ali
parada, parecendo selvagem e bárbara, embora sua determinação calma
fosse toda gujaareen. — As Irmãs dizem que o prazer honra Hananja
porque traz paz. Hoje à noite pretendo orar para que essa guerra termine
rápido. Se quiser… — Ela baixou a cabeça, sua timidez voltando apenas por
um instante, mas então olhou para ele por entre os cílios de um jeito que fez
todas as lamentações dele desaparecerem. — T-talvez a gente possa orar
junto.
Ela se virou e desceu a trilha em um ritmo não exatamente pacífico, e
estava a meio caminho do acampamento antes que a mente de Wanahomen
compreendesse que ele acabara de ser seduzido.
Em seguida, tão rápido quanto podia sem colocar a vida em risco, desceu
a encosta íngreme atrás dela.
38

SEGREDOS

Não fazia nem metade de um dia que Tiaanet e seu pai haviam voltado para
a propriedade no campo quando servos vieram informá-la de que havia
visitantes se aproximando da casa.
— Uma oitava de soldados, senhora, e um homem com uma lança —
detalhou a menina de olhos arregalados. — Todos kisuati.
O pai de Tiaanet estava se preparando para viajar para o sopé das
colinas, onde os exércitos dos nobres estavam se reunindo para a sua
tentativa de retomar Gujaareh. Não havia tempo para esconder os alforjes
ou os suprimentos empilhados no pátio da casa; ela teria de pensar em uma
desculpa adequada para explicá-los.
— Convide-os para entrar quando chegarem — falou ela para a menina.
— Trate-os como convidados, mas, se fizerem perguntas, apenas responda
que não sabe de nada. — A menina aquiesceu e saiu correndo; outro servo
estava por perto, parecendo igualmente ansioso. — Informe o meu pai —
ordenou ela, e ele saiu depressa no mesmo momento.
Era impróprio para uma mulher dos shunha receber os convidados
quando havia servos à disposição para cuidar dessa atividade doméstica.
Posicionando-se de frente para a entrada da sala de recepção, Tiaanet se
recompôs para esperar e perguntou-se o que faria se os kisuati houvessem
descoberto os planos do pai. Nessa hipótese, eles o matariam,
provavelmente em público e devagar, na justiça tipicamente brutal dos
kisuati. A linhagem então seria dela para administrar e sua mãe e Tantufi
ficariam sob seus cuidados. Mas isso só aconteceria se os kisuati não a
julgassem culpada junto com o pai, o que fariam a menos que ela alegasse
ignorância bem o suficiente para convencê-los. Se eles tivessem prendido
algum outro conspirador, como os outros lordes e ladies que haviam
discutido a conspiração na sua frente, eles certamente apontariam Tiaanet
junto com o pai. Nesse caso, ela não alegaria ignorância, mas o controle do
pai. E, se a pressionassem, ela lhes mostraria Tantufi e todos os segredos
seriam revelados.
Se Tiaanet ainda fosse capaz de sentir, poderia ter sentido algo muito
semelhante a expectativa.
Mas houve uma agitação na frente da casa quando os soldados entraram.
Ela ouviu a voz da serva se levantar em protesto, seguida do som de carne
batendo em carne (ela conhecia esse som muito bem) e um surpreso gemido
de dor. Então os soldados apareceram na sala de recepção, flanqueando o
líder, e de repente Tiaanet começou a desconfiar que, no final das contas,
eles não haviam vindo atrás de seu pai.
O líder carregava de fato uma lança curta amarrada às costas, como a
serva informara, além da tradicional espada curva no quadril. Mas a menina
pertencia à casta servil e era ignorante: claro que a lança foi a única coisa
que ela notou. Tiaanet notou coisas completamente diferentes, como o fato
de que o homem era mais baixo do que a maioria dos kisuati, embora magro
e bem musculoso, e havia mais que um traço oestense em suas feições
arredondadas. Usava o cabelo solto, diferente da maioria das pessoas de
Gujaareh ou Kisua, penteado como um capacete untado e bem arrumado,
cortado reto à altura das orelhas. E, em lugar do tecido drapeado solto que a
maior parte dos capitães kisuati usava ao redor dos ombros, esse homem
vestia um espesso couro preto atado com um elaborado fecho de marfim. A
origem daquele couro talvez também houvesse sido o dono dos dentes que
adornavam o colar do homem.
Um caçador: um membro de uma das castas mais antigas e mais
honradas de Kisua, embora sua glória e sua quantidade houvessem
diminuído nos últimos séculos.
— Você é lady Insurret, da casta shunha e da linhagem de Insawe? —
perguntou o homem, depois verificou ele mesmo. Ele tinha um forte
sotaque suua; mesmo conhecendo a língua, Tiaanet demorou o espaço de
uma respiração para se adaptar ao gujaareen entrecortado e de flexões
estranhas do sujeito. — Não, você é jovem demais. Você seria lady Tiaanet,
filha dela.
— Sou — respondeu Tiaanet com uma cuidadosa mesura que
reconhecia a patente do homem e mais nada. — E o senhor é?
— Bibiki Seh Jofur — disse ele. — Um capitão de Kisua, ultimamente
associado ao Protetorado em Gujaareh. Onde está Insurret?
— Ela está indisposta — explicou Tiaanet. Contara essa mentira tantas
vezes que ela lhe vinha facilmente à boca, e parecia mais seguro do que
perguntar o que acontecera com a serva que atendia à porta. — Venho
cuidando dos assuntos dela há algum tempo agora, com a permissão dela e
do meu pai. Posso transmitir uma mensagem para ela em seu nome?
— Você pode acompanhar os meus homens até os aposentos dela —
replicou ele — e depois pode vir junto conosco.
Por um momento, Tiaanet estava segura de não ter ouvido direito.
— Minha mãe está…
— Ora, por favor. — Bibiki sorriu, todo cortesia. — Temos que ir para
longe e eu gostaria de estar de volta à cidade ao anoitecer.
— O que é isso? — Sanfi entrou na sala com a camisa de vestir dentro de
casa e ainda passando um pano na testa para secar a umidade do banho. Ele
parecia assustado aos olhos experientes de Tiaanet, o que significava que ele
fingia beligerância e raiva ao falar com Bibiki. — Quem é você? Os servos
me disseram…
— Ah, lorde Sanfi — disse Bibiki. — Estou feliz de enfim conhecê-lo.
Ouvi falar muito do senhor. — Com um rápido movimento de mão, ele fez
um sinal para os dois soldados à sua direita. Eles imediatamente
atravessaram a sala e passaram por Sanfi, adentrando a casa. Sanfi conteve a
respiração e virou-se para protestar, mas eles o ignoraram.
— O que é isso? — quis saber Sanfi.
— Um serviço solicitado a todas as famílias nobres gujaareen pelos seus
Protetores. — Bibiki assumiu uma postura relaxada, as mãos cruzadas atrás
das costas, uma expressão simpática no rosto que não enganava ninguém. —
Parece que alguns membros da nobreza gujaareen… não sabemos ao certo
quais, infelizmente… começaram a tramar contra o nosso governo. Acho
difícil de acreditar, em especial no caso de famílias como a sua, que se
dedicaram tão honrosamente a manter os ideais da nossa terra natal. Mas,
até conseguirmos identificar os bandidos, receio que as suas mulheres devam
desfrutar da hospitalidade dos Protetores por um período indeterminado.
A um gesto invisível de Bibiki, um dos soldados restantes foi se
posicionar perto de Tiaanet.
— Isso é ridículo. — Sanfi olhou para o soldado perto de Tiaanet, então
para o corredor onde os outros dois haviam entrado, depois para Bibiki
outra vez. Ele tremia de raiva, quase descontrolado. — Você vai levá-las
como reféns? Nós servimos Kisua fielmente…
— Certo, certo — falou Bibiki, e agora sua voz tinha uma aspereza que
deixou Tiaanet tensa, embora ele mantivesse o sorriso cortês. — Fielmente,
sem dúvida. A propósito, nós não vamos ter nenhum problema com os
soldados da sua propriedade, vamos? Nós não vimos nenhum quando
passamos pelos seus campos. Como vocês se defendem contra os
banbarranos e outros agressores?
Sanfi se calou, sua expressão rapidamente voltando-se para um cálculo
mental. Os soldados contratados da propriedade haviam partido no dia
anterior para se juntar ao exército que estava se reunindo no sopé das
colinas. Bibiki já sabia disso, percebeu Tiaanet, caso contrário não teria
vindo com apenas uma oitava de soldados. Sanfi também sabia.
— Capitão — chamou um dos soldados em suua de lá do fundo da casa.
Só então Tiaanet se deu conta do verdadeiro perigo. Desde que haviam
voltado da cidade na noite anterior, Tantufi fora abrigada temporariamente
em uma despensa até que pudessem levá-la à casa no campo, algo que
Tiaanet planejara pedir aos servos que fizessem após a meia-noite. Mas, se
os soldados estavam vasculhando a casa…
— Não — sussurrou Tiaanet. Bibiki fitou-a, especulando, então
contornou-os e adentrou a casa para ver o que seus homens haviam
encontrado. Tiaanet ouviu murmúrios e logo, alguns instantes depois, os
homens apareceram. Um dos soldados conduzia Insurret pelo braço. O
outro soldado carregava Tantufi.
Tantufi não podia andar. Anos acorrentada ao chão haviam tido seus
efeitos no corpo dela: suas pernas eram finas, com os músculos atrofiados a
ponto de não funcionarem. Apesar do sono que ela tivera permissão para
dormir em Gujaareh, o preço de anos sem descanso apropriado ainda podia
ser visto no rosto flácido e prematuramente envelhecido, nos membros
macilentos, no cabelo ralo e na pele opaca e, sobretudo, nos imensos olhos
desvairados. O soldado a segurava nos braços, apoiando-a a um lado do
quadril; a cabeça da menina pendeu para trás.
— Mamãe mamãe mamãe mamãe — sussurrou ela. A corrente que os
soldados deviam ter quebrado para soltá-la (Sanfi mantinha a chave
escondida de Tiaanet) pendia de um dos tornozelos.
Tiaanet avançou em direção a Tantufi de imediato, mas o soldado que se
posicionara perto dela segurou seu braço e puxou-a de volta. Insurret, que
viera arrastando docilmente os pés sob o controle do soldado, estremeceu ao
ouvir a voz de Tantufi.
— O que essa coisa está fazendo aqui?
Sanfi deu um passo em direção a Bibiki.
— Você não pode… — Outro soldado apontou uma espada para Sanfi
antes que ele pudesse se aproximar; Sanfi parou de pronto.
— Lorde Sanfi — disse Bibiki em um tom reprovador. Ele olhou para
Sanfi com franca curiosidade. — Me falaram que o senhor tinha apenas a
filha e a esposa.
— Por favor — pediu Sanfi. — Minha esposa está doente. E aquela
criança… — Ele olhou para Tantufi e desviou o olhar. — O senhor pode
ver que ela está doente também. Por favor, solte as duas, e a minha Tiaanet.
Em outra vida, sob outras circunstâncias, Tiaanet poderia ter dado um
sorriso. Seu pai jamais teria implorado por Insurret nem por Tantufi por elas
mesmas.
— O que há de errado com elas? — Bibiki segurou a cabeça de Tantufi e
ergueu-a com uma delicadeza surpreendente, espiando os olhos agitados da
menina. O aperto na barriga de Tiaanet diminuiu um pouco quando ele
tomou um cuidado tão evidente para não machucar a garotinha.
— Uma enfermidade antiga — respondeu Sanfi. — Aflige algumas das
mulheres da linhagem. Elas precisam de cuidado constante.
Bibiki lançou-lhe um olhar brando.
— Elas podem receber cuidado constante na cidade.
Tiaanet deu um passo à frente outra vez, embora não tão à frente a
ponto de o soldado puxá-la de volta.
— Com todo o respeito, senhor, meu pai e eu e os nossos servos sabemos
a melhor forma de cuidar delas. Na cidade…
— Não vou levá-las para o Hetawa para serem curadas, se é esse o seu
medo. Naturalmente nós, caçadores, como os shunha, jamais poderíamos
aprovar uma coisa dessas. — Bibiki acenou para o soldado, indicando que
ele mesmo deveria segurar a cabeça de Tantufi, o que o homem fez. Depois
Bibiki fez um gesto para os dois homens saírem com Tantufi e Insurret.
Em um piscar de olhos, Insurret ficou descontrolada, precipitando-se
sobre Tantufi, as mãos em forma de garras.
— Tire esse monstro da minha frente! Afogue, queime, espanque, mate,
leve embora, tire de dentro da minha cabeça, tire deste mundo!
O soldado que a segurava ficou tão surpreso que quase a soltou. Isso foi o
suficiente para Insurret pôr as mãos nos poucos cachos de Tantufi. Ela deu
um forte puxão na cabeça da menina, claramente tentando quebrar o
pescoço dela. Seu rosto era um ricto de exultação; sua voz, um guincho.
— Afogue, queime, espanque…
— Não! — Tiaanet segurou o braço da mãe antes que ela pudesse dar
outro puxão em Tantufi. — Mãe, não!
O soldado conteve Insurret outra vez e arrastou-a para trás, mas Insurret
agarrou o cabelo de Tantufi como uma sanguessuga, rosnando violências
incoerentes agora. De todos eles, apenas Tantufi estava quieta… e calma,
mesmo quando Insurret conseguiu dar outro puxão em sua cabeça. Sanfi
deu um passo à frente, fazendo cara feia; Bibiki levou a mão à pequena
lança, mas Tiaanet estava farta.
Colocou o rosto diante do rosto enlouquecido de Insurret, forçando a
mãe a olhar para ela.
— É por isso que ele te odeia — disparou ela.
Insurret recuou. Parou de resistir, os braços ficando frouxos.
— O-o quê?
— Olhe para si mesma. — Tiaanet encheu a voz de desdém. Não foi
difícil. — Uma fera egoísta, cheia de ódio, cega à dor da sua própria família,
tão rancorosa que até mataria uma criança. Por que algum homem iria te
querer?
Os olhos de Insurret se encheram de lágrimas.
— Mas, mas… — O rosto dela se contorceu. Ela soltou o cabelo de
Tantufi e cobriu o rosto com aquela mão. — Você não entende qual foi a
sensação. Carregar você, os seus sonhos sempre sussurrando para mim,
empurrando e puxando a minha alma… — Mas então seu humor voltou a
mudar, rápido como um sonho, e ela olhou feio para Tiaanet por entre os
dedos. — Ah, mas eu me esqueço. Você sabe qual é a sensação, não sabe?
Vagabunda traidora.
Ela afastou a cabeça e teria cuspido em Tiaanet, mas a filha lhe deu um
tapa tão forte que o rosto dela virou. Insurret piscou, parecendo surpresa.
Tiaanet voltou-se para Bibiki.
— Como o senhor pode ver, meu pai tinha razão. — Ela tentou manter
o tom inexpressivo e não conseguiu: estava zangada demais, zangada de
verdade, com o que a mãe fizera com Tantufi. Sua voz reverberava com a
força de sua fúria. — Só ele e eu podemos cuidar desses membros da família
da maneira apropriada.
Mas Bibiki estava encarando-a. Ele olhou para Tantufi, depois para
Tiaanet outra vez, e estreitou seus olhos de caçador.
— Entendo — comentou ele em um tom suave. — A criança é sua filha,
não sua irmã.
Tiaanet não falou nada, embora em seu íntimo um grande nó de tensão
houvesse se desfeito. Será que era alívio? Ela achou que talvez fosse. Fez de
tudo para não sorrir para Bibiki. Continue, pensou, ansiou, suplicou. Você
entende tanto tão bem, caçador. Quer fazer o favor de entender o resto? Diga em
voz alta.
Sanfi ficou tenso ao lado dela, embora sorrisse.
— O senhor está certo — confirmou Sanfi. Ele pôs o toque exato de
constrangimento na voz: o nobre respeitável forçado a admitir um segredo
de família vergonhoso, porém secundário. Tiaanet se perguntou se ele vinha
praticando aquelas palavras em sua mente nos últimos seis anos. — Nós a
mandamos para ir morar com parentes em Kisua por um ano quando
descobrimos sua condição. Algum rapaz do local, nem um pouco adequado;
nós tínhamos que manter as perspectivas de casamento dela desimpedidas.
Com certeza o senhor entende, se for um homem de família.
— Ainda não sou — respondeu Bibiki, dirigindo-lhe um olhar de frio
desdém. — Mas, se eu fosse, duvido que seria tão depravado a ponto de
engravidar a minha própria filha.
Tiaanet fechou os olhos por um momento, saboreando a sensação de
viver sem segredos. Ela poderia amar esse tal de Bibiki, se ainda fosse capaz
de amar alguém além de Tantufi.
Sanfi estremeceu ao ouvir aquilo, verdadeiramente desconcertado pela
primeira vez desde que Tiaanet tinha lembrança.
— Eu… — começou ele. Abriu a boca mais uma ou duas vezes, mas no
final calou-se. Talvez não houvesse praticado aquela resposta em particular.
Bibiki meneou a cabeça para si mesmo.
— Bem. Parece que o senhor tem muitas coisas para pensar, lorde Sanfi.
— Ele se virou então, fazendo um sinal para que os soldados o seguissem.
Aquele que estava perto de Tiaanet estendeu a mão para pegar em seu
braço. Ela começou a andar antes que ele pudesse tocá-la.
— Tiaanet… — A voz de Sanfi estava angustiada. Tiaanet virou-se para
trás para fitá-lo; ele deu um passo à frente. — Tiaanet, eu nunca quis… Não
era… Você entende, não é?
Ela jamais entendera. Durante todos aqueles anos desde a primeira vez
que ele subiu em sua cama e todas as crueldades desde então, ela nunca
entendera o que o levara a fazer as coisas que fez. Depois de um tempo, ela
deixara de se preocupar, pois que importância tinha o motivo pelo qual ele
as fazia? No entanto, o hábito de obedecer ao pai, agradá-lo, estava
arraigado demais para Tiaanet ignorar, mesmo agora.
— Entendo, pai — respondeu ela. O rosto dele se iluminou
imediatamente de alívio e alegria.
— Não se preocupe — assegurou ele, a expressão ferrenha. — Vou eu
mesmo até os Protetores, se preciso, para libertar vocês. Não se preocupe.
Ela não estava preocupada. Não se importava com o que aconteceria
consigo, nem com ele ou com Insurret, na verdade. Não se importava com o
que os kisuati, que nunca lhe haviam feito nenhum mal, pensariam do fato
de ela ter dado à luz uma filha do seu próprio pai. Eles já haviam
demonstrado mais gentileza e atenção com Tantufi do que a própria família
dela. Nada do que lhe fizessem poderia ser pior do que o que ela já passara.
Mas Tiaanet inclinou a cabeça para o pai. Ele ainda poderia lhe ser útil,
afinal. Depois aproximou-se de Tantufi.
Bibiki a observou reflexivo durante essa interação, como se houvesse
adivinhado a linha de raciocínio dela. Talvez houvesse; ela jamais fizera
muito esforço para esconder esse tipo de coisa. (Nunca precisara. Sanfi via o
que queria ver.) Quando Bibiki inclinou a cabeça para ela em um gesto que
poderia ter sido de respeito ou simples cortesia, ela respondeu inclinando a
cabeça de volta. Ele também poderia lhe ser útil. Essa fora a lição mais
importante que o pai lhe ensinara há muito tempo: qualquer um podia ser
usado. Não dava para confiar em ninguém.
Os kisuati saíram, levando Tiaanet, a mãe e a filha embora.
39

A GUERRA COMEÇA

Hanani acordou ao som de uma mão batendo nas paredes de sua tenda.
— Acorde, ratinha — disse a voz de Yanassa através do couro de camelo.
— Sei que aquele tolo não te deu tempo para dormir, mas você tem muito a
fazer.
Piscando para espantar a sonolência, Hanani sentou-se e encontrou-se
coberta por um tecido fino. O espaço entre as almofadas onde Wanahomen
se deitara estava vazio e ele deixara as abas da tenda desamarradas ao sair.
— Entre — falou ela, distraída. Yanassa passou a cabeça pela aba, depois
se esgueirou para dentro.
— Ele deve ter saído antes do amanhecer — explicou Yanassa em um
tom gentil, interpretando a confusão de Hanani. Ela se aproximou e se
ajoelhou ao lado do Compartilhador, estendendo a mão peremptoriamente
para começar a desembaraçar o cabelo da jovem. — Muitos preparativos a
serem feitos antes da partida do exército. Ah, ele deu de presente para você!
— A perna de Hanani havia escapado do cobertor; Yanassa apontou para a
tornozeleira de âmbar.
Hanani sentiu as bochechas pegarem fogo, embora tenha resistido ao
impulso de esconder a tornozeleira: não fazia sentido agora que Yanassa já a
havia visto.
— Deu.
Yanassa deu uma batidinha no ombro de Hanani.
— Ele deveria ter dado o presente para você logo de cara, claro, mas não
leve a mal. Nunca ensinaram para ele o comportamento apropriado de um
homem. Agora você entende como devem ser as coisas entre vocês? — Ela
soltou o cabelo de Hanani e se levantou para pegar novos enfeites de cabelo
da caixa de joias ali perto.
— Ser? — Perplexa, Hanani pegou as faixas para enrolar em seus seios e
começou a procurar a ponta com o nó. Após a morte de Mni-inh, Yanassa
viera lhe oferecer consolo… e um pedido de desculpas por suas palavras
duras quanto à mulher shadoun. Em Gujaareh, Yanassa teria de pedir
desculpas à Deusa também por sua vontade nada pacífica de ver outra
pessoa assassinada de um modo horrível. Os Coletores talvez houvessem se
envolvido, avaliando a alma dela em busca de sinais de corrupção; era quase
certo que ela teria de pagar um dízimo extra e passar por um ritual de
purificação no Hetawa ou em um templo satélite, no mínimo. Mas ali, no
deserto, a questão foi resolvida apenas com o pedido de desculpas e Yanassa
retomara a amizade delas como se o incidente nunca houvesse acontecido.
Hanani ainda estava se esforçando para acompanhar tudo aquilo.
— Você não pode se deitar com outro homem durante um mês inteiro
ou até quando o seu sangue descer de novo, o que acontecer primeiro —
explicou Yanassa, penteando o cabelo de Hanani com os dedos. As torções o
haviam deixado com os cachos emaranhados, mas Yanassa felizmente
parecia saber lidar com eles. — Um homem merece pelo menos esse tempo
de chance para provar seu valor antes de você descartá-lo. Bem, você
obviamente já viu que não precisa fazer um convite em público outra vez.
Você também pode visitar a tenda dele se estiver disposta e a dona da an-
sherrat concordar. — De repente, ela suspirou. — Apesar de que, com essa
guerra, conhecendo o Wana, ele pode rejeitar você. Ele nunca se permite
um luxo quando os homens dele estão sem nenhum.
Abandonando o esforço de se vestir com dignidade, Hanani encolheu as
pernas e abraçou os joelhos enquanto Yanassa cuidava do seu cabelo.
Wanahomen passara horas com ela na noite anterior, massageando-a e
afagando-a muito depois de passado o primeiro arrebatamento. Quero que
você sinta a minha falta quando voltar para o Hetawa, ele lhe dissera enquanto
fazia coisas que a deixaram sem fôlego e com vontade outra vez. Se tiver que
enfrentar uma punição por se deitar comigo, então eu deveria pelo menos te dar
um prazer que valha o preço, não deveria? Então ele lhe dera mais, e mais
ainda, até ela enfim cair em um sono exausto e sem sonhos.
Serviria, decidira ela, como despedida.
— Não vai haver outra vez — declarou ela. Foi quase um sussurro. As
mãos de Yanassa pararam de mexer em seu cabelo.
— Eu tinha planejado aconselhar você a não o amar — disse Yanassa, a
voz cheia de compaixão. — Ele prende demais, isso é inadequado em um
homem. Mas o amor nunca foi um risco para você?
Hanani apertou as mãos no colo. Ela não conseguia encontrar as palavras
para expressar o turbilhão dentro de si. Wanahomen cometera uma quadra
completa de erros com ela. No entanto, desde então ele fora atencioso com
ela ao seu modo rústico, até gentil. A consideração a deixara confusa; a
gentileza transformara a raiva dela em algo totalmente diferente.
Incomodava-a perceber que o perderia também quando tudo aquilo
terminasse, tão certo como já perdera Mni-inh e Dayuhotem.
Mas Wanahomen não seria como eles em um aspecto crucial. Ela
poderia jamais voltar a vê-lo se ele sobrevivesse àquela guerra, mas pelo
menos teria o consolo de saber que estava vivo.
Yanassa suspirou, tomando o silêncio dela como uma resposta por si só.
— Estou feliz que o meu povo não siga a sua deusa genuinamente —
comentou ela por fim. — Ela exige demais de vocês.
— Ela nos concede um grande poder. É justo que exija um preço alto
por ele.
Yanassa fez um som de afronta.
— Não existe justiça nisso. — Ela prendeu alguma coisa na cabeça de
Hanani e deu a volta para ficar de frente para a moça. — Você não pode
deixar o seu Hetawa? Nós acolheríamos você.
Hanani encarou Yanassa, surpresa demais para se sentir ofendida.
— O Hetawa me criou desde a minha sexta inundação. É o meu lar. Os
Servos de Hananja são a única família que eu conheço.
— A família faz o que é melhor para você! Que boa família censura uma
mulher por seguir a sua natureza? Você aprendeu o seu valor, encontrou
algum orgulho em si mesma. Se vivesse entre nós, poderia criar filhos e
filhas, construir um clã abastado com as suas habilidades como curadora,
viver rodeada por aqueles que te honram como você merece. O seu Hetawa
algum dia vai te dar isso?
— Filhos e filhas não, e qualquer riqueza que eu ganhe vai para o
Hetawa, mas… — Ela franziu a testa, pensando nas palavras de Yanassa.
Quando voltasse ao Hetawa, se lhe fosse permitido continuar servindo,
receberia uma penitência por suas más ações. Caso se redimisse por
completo, talvez algum dia lhe permitissem obter o status de
Compartilhador. Então ela poderia construir uma reputação baseada em sua
habilidade, conseguir acólitos e aprendizes para guiar, aprender o
conhecimento mais profundo do seu ofício, talvez até chegar ao Conselho
dos Caminhos…
Mas ela franziu o cenho, preocupada. Esse poderia ser o caminho natural
para qualquer homem que servisse à Deusa, mas seria para ela? Que acólito
serviria a ela depois de Dayu? Que aprendiz ia querer a única e difamada
mulher do Hetawa como mentora? Será que seria capaz de algum dia
conseguir respeito suficiente de seus irmãos de caminho a ponto de lhe
permitirem representá-los em importantes questões do Hetawa? Nem Mni-
inh fora capaz de fazer isso, e ele não fora prejudicado pela controvérsia.
Mas foi pensar em Mni-inh que silenciou suas dúvidas.
— Eles são a minha família — repetiu ela com mais firmeza. — Meu
mentor passou metade da minha vida me treinando, acreditando em mim.
Ele queria que eu usasse o colarinho de rubi e me tornasse, enfim, um
Compartilhador pleno. Não posso apenas deixar isso de lado, Yanassa.
Yanassa suspirou, acomodando-se sobre os calcanhares.
— Isso eu entendo. Às vezes, honrar as nossas famílias significa olhar
além das nossas próprias necessidades. — Ela juntou os enfeites de cabelo
que haviam sobrado e se levantou para guardá-los. Hanani olhou no espelho
e viu que os cachos haviam sido puxados para trás e presos com um anel de
placas de bronze sobrepostas. Um bom penteado para viajar. Mas ela parou,
intrigada, ao avistar um fino cordel vermelho entre os cachos. Ela o pegou e
descobriu que ele estava pregado em seu cabelo, e que havia um segundo
cordel ao lado daquele.
— Um para os seus ciclos menstruais — explicou Yanassa, notando sua
confusão. — O outro é para o sangue da sua virgindade. O terceiro não virá
a menos que você dê à luz uma criança e o quarto seria pelo fim dos seus
ciclos. São seus cordéis de marcação.
— De marcação…?
— Uhum. Os homens têm um grande ritual extravagante no décimo
segundo ano deles. Fazem alguma coisa com o pênis, dançam com os tios e
irmãos, soltam grunhidos e peidos e dizem uns para os outros que são
homens. Nós, mulheres, só precisamos olhar para os nossos próprios corpos.
— Yanassa terminou de guardar os enfeites e se aproximou para pousar as
mãos nos ombros de Hanani, sorrindo para ela no espelho. — Me perdoe se
vocês têm os seus próprios costumes gujaareen para essas coisas. Não tive
intenção de desrespeitar. Entre nós, os cordéis são um emblema da condição
feminina. — Ela se virou para que Hanani pudesse ver os três cordéis
entrelaçados em um cacho trançado do seu cabelo.
Hanani não fazia ideia se havia costumes gujaareen para essas coisas. Ela
fitou os cordéis de Yanassa, depois os seus próprios, e sua vista se turvou.
— U-um dos sacerdotes do Hetawa — começou ela. Parou de falar,
sentindo um aperto na garganta, e então respirou fundo. — Ele falou que eu
nunca seria uma mulher de verdade.
Yanassa ficou boquiaberta.
— O que, em nome das sombras, ele saberia sobre a condição feminina?
Você não deu ouvidos a essa estupidez, deu?
— Eu…
Yanassa chiou e virou Hanani para que ficassem de frente.
— Me escute. Trazer honra para o seu clã… ou para o Hetawa, seja qual
for… isso faz de você uma mulher. Alegrar-se com a própria beleza, dominar
o poder do seu corpo, tomar conta do mundo ou pelo menos da parte dele
que está por perto… Os cordéis apenas marcam as etapas mais óbvias. —
Ela deu um sorriso pesaroso a Hanani. — Eu sempre disse que deveria
haver mais cordéis: um por suportar tolos, um para cada criança insolente…
mas ai de nós, porque aí as nossas cabeças ficariam sobrecarregadas de
cordéis vermelhos.
Hanani não pôde deixar de sorrir ao ouvir isso, embora em pouquíssimo
tempo sentisse de novo um aperto na garganta. Ela engoliu em seco e
deixou os cordéis voltarem a se misturar com o cabelo, e decidiu deixar sair
outra coisa também.
— Yanassa, obrigada. Ainda existem muitas coisas que eu não entendo
sobre você, mas você foi gentil comigo e isso é o mais importante. — Uma
ideia lhe passou pela cabeça; ela fez um gesto, apontando para a tenda. —
Todas essas coisas que eu tenho. Não posso levar de volta comigo. Posso dar
para você?
Yanassa sobressaltou-se, arregalando os olhos.
— Você me daria toda essa riqueza? Mas eu nem sou do seu clã!
— De onde eu venho, família é uma questão de coração, não de laços de
sangue. Você é minha amiga, a única amiga mulher que já tive. Isso tem
muito valor para mim, vale mais do que a riqueza.
Yanassa chacoalhou a cabeça e inclinou-se para a frente para abraçá-la.
— Isso é muito acertado — disse ela no ouvido de Hanani. — Qualquer
mulher pode enfrentar o mundo sozinha, mas por que deveríamos?
Hanani abraçou-a com força, tentando não desejar o que não era possível
e notando que conseguia apenas em parte.
Finalmente, Yanassa a soltou, fungando e esfregando os olhos com uma
manga de blusa perfumada.
— Bem. Mais um pouco disso e o exército vai deixar você para trás.
Hanani aquiesceu com a cabeça, incapaz de falar, e virou-se para
terminar de arrumar as coisas. As sacolas estavam apenas parcialmente
cheias quando ela terminou, embora houvesse colocado ali suas vestimentas
do Hetawa, seus pequenos itens de higiene pessoal e ornamentos de cura, e
os pacotes de ração que Yanassa trouxera do intendente da tribo para a
viagem.
— E isso aqui? — perguntou Yanassa, erguendo a caixa que dera a
Hanani para guardar as joias.
— É seu também.
— O quê? Você precisa delas… — Yanassa fez uma careta. — Ah, por
Hananja, eles vão fazer você usar aquela roupa vermelha estúpida outra vez,
não vão?
Hanani fez uma careta, consternada, mas lembrou a si mesma que esse
era o perigo de fazer amizade com uma bárbara.
— Meu papel no Hetawa é o papel de um homem. Em Gujaareh,
quando um homem segue o caminho de uma mulher ou uma mulher segue
o de um homem, essa pessoa deve assumir uma aparência adequada.
Yanassa revirou os olhos.
— Eles pretendem te dar um pênis de barro também e grandes bolas de
bronze? Lembre-se, Wanahomen vai ficar muito zangado se o seu for maior.
E ele vai comparar, acredite em mim.
A ideia era tão absurda, a imagem que trazia à mente era tão ridícula —
e a caracterização que Yanassa fizera de Wanahomen, tão exata — que
Hanani não pôde deixar de rir.
— Não, claro que não!
— Muito bem, então. — Yanassa foi até uma das sacolas, abriu-a e jogou
as joias de Hanani lá dentro. — Já vi os homens da sua terra: eles gostam
tanto de enfeite quanto as mulheres. E aqui… os homens usam pintura nos
olhos, não usam? Isso significa que você também pode usar. — Ela jogou
cosméticos por cima das joias.
Hanani não sabia se ria ou se resmungava.
— Os homens não usam tintura nos lábios, Yanassa.
— Eles que comecem a usar, então!
Fechando o alforje, Yanassa foi até Hanani e pegou as mãos dela.
Demorou um pouco para Hanani lutar contra o riso o suficiente para ver a
seriedade no rosto da mulher banbarrana.
— Não se esqueça de si mesma quando voltar para aquele lugar — disse
Yanassa, os olhos atentos. — Se você deve voltar para eles, volte nos seus
próprios termos. Sirva à sua Deusa do seu jeito.
Hanani ficou séria e desviou o olhar.
— Está tudo bom e certo para os leigos — respondeu ela. — Mas sou
um Servo de Hananja. Como eu posso quebrar a tradição, perturbar a
ordem do Hetawa e ainda alegar que sigo o caminho da paz?
— Você nunca será um homem, Hanani, não importa o quanto aperte os
seus seios. Você não quer ser um homem. E eles podem nunca aceitar você,
não importa o quanto corretamente siga as regras deles e imite o
comportamento deles. Então, por que você não deveria abraçar o que é? E
servir de qualquer maldito jeito que quiser!
Hanani se calou, confusa com a ideia. Só então lhe ocorreu uma coisa: o
que ela fizesse seria considerado um precedente se algum dia outra mulher
procurasse se juntar ao Hetawa. Tudo o que fizesse, tudo o que alcançasse,
estabeleceria o padrão.
E Yanassa estava certa sobre todo o resto. Ela tentara, repetidas vezes,
fazer as coisas da maneira como seus colegas Compartilhadores as haviam
feito. Ela se esforçara mais, treinara por mais tempo, humilhara-se e
reprimira-se em um esforço para ser perfeita… e ainda assim Yehamwy
tivera receio dela. Ainda assim alguns de seus companheiros a viam não
como um Servo de Hananja, mas como uma mulher fingindo ser um.
Não havia paz em continuar fazendo algo que já se mostrara inviável. Às
vezes a própria tradição perturbava a paz e apenas o novo podia suavizar o
caminho.
Ouviu-se um dedilhar na aba da tenda e uma voz de homem chamar o
nome de Yanassa.
— Estou aqui — gritou Yanassa, e um homem jovem, não muito mais
velho que Hanani e com os mais belos olhos com cílios longos sob o véu,
enfiou a cabeça para dentro. Ele falou alguma coisa em chakti e Yanassa
aquiesceu. O rapaz inclinou a cabeça para Hanani também, depois se
retirou.
— Ele é bonito, não é? — Yanassa sorriu para Hanani, que estivera
observando. Ela corou.
— E-ele tem belos olhos.
— Ha! Tire os olhos desse aí, ratinha, ele é meu. O ceramista da tribo,
então ele não vai para a guerra, graças aos deuses. Wana foi o último
guerreiro com quem me envolvi e acabou me levando a ter essa ideia anos
atrás. — Ela se afastou de Hanani e pegou um dos alforjes, indicando que
Hanani deveria pegar o outro. — E os ceramistas podem usar muito bem as
mãos no que se refere a outros tipos de artes…
Hanani arquejou, cobrindo a boca para sufocar uma risada.
— Yanassa!
— Bem, é verdade. — Com um sorriso presunçoso, Yanassa segurou a
aba da tenda para Hanani. — Agora venha comigo e vou mostrar uma
maravilha para você.
Hanani seguiu Yanassa pelo acampamento, acenando com a cabeça para
os banbarranos com quem conversara ou a quem curara. Alguns ainda não
respondiam ao seu cumprimento e várias mulheres jovens em particular a
vinham ignorando desde sua primeira noite com Wanahomen. Mas houve
mais pessoas que acenaram para ela do que pessoas que viraram as costas, e
Hanani se surpreendeu ao perceber quantas ela passara a conhecer, mesmo
que pouco. Estivera entre eles durante menos de um mês. Parecia muito
mais.
Elas chegaram à saliência que dava uma ampla visão para o cânion, onde
Hanani parou, admirada.
O cânion estava cheio de uma parede a outra e dos dois lados do rio de
fileira após fileira de homens. O que ela estava vendo devia ser só uma
porção do todo, pois eles estavam se locomovendo devagar enquanto saíam
em fila do cânion para começar a viagem. Hanani quase conseguia sentir o
cheiro da avidez deles para lutar, pairando no ar como a poeira levantada
pelos cascos dos cavalos. Era uma sensação bastante perturbadora… e,
contudo, Hanani não conseguia desaprová-la. Em vez disso, para sua grande
surpresa, ela se sentia empolgada, esperançosa. Com certeza Gujaareh seria
libertada com a ajuda daqueles guerreiros. Com certeza eles poderiam
restaurar a paz no território por mais mil anos.
Yanassa lhe deu um susto terrível ao pôr a mão em alguma dobra
invisível de sua roupa e pegar uma faca. Ela a ergueu sobre a cabeça e soltou
um grito estridente e melodioso: “Bi-yu-eh!”. Antes que Hanani pudesse
entender o que ela estava fazendo, outros gritos se ergueram à sua volta e ela
olhou ao redor e viu que a maioria das mulheres da tribo havia vindo se
juntar a elas na saliência para ver o exército partir. Elas também ergueram
armas e soltaram aquele grito sobrenatural.
Alguém tocou o braço de Hanani, e ela se virou e viu Hendet ao seu
lado.
— Grite — falou Hendet em seu gujaareen baixo e aristocrático. — Pela
vitória dos guerreiros. Pela paz e por poucas baixas, se isso a agrada mais, e
por um fim rápido para essa bagunça toda. Pense nisso como uma prece…
mas grite. — E, para choque de Hanani, Hendet também ergueu a voz em
um grito mais profundo, embora não soasse menos bárbaro. Algo em suua.
Parecia um costume estranho, mas Hanani entendeu o significado dele.
Ela não tinha nenhuma arma, uma vez que se recusara a levar uma mesmo
depois do incidente com Azima. Essas coisas não tinham outro propósito
que não causar dor, em sua opinião. Mas ela matara Azima apenas com a
mão, não matara? A magia era tanto uma ferramenta útil quanto uma arma
letal, nada diferente de uma arma, apesar de ser um presente da Deusa.
E então, hesitante, ela levantou a mão. Fechou os olhos, tomou fôlego,
deixou de lado o decoro e se juntou à despedida das mulheres. Ela gritou o
nome de Hananja e transformou a palavra em uma oração, pensando:
Permita que volte a haver paz em breve, para mim e para todas estas pessoas, e
quando a Senhora tiver feito isso, não tire mais nada de mim.
Quando ficou sem ar e os gritos das outras mulheres começaram a se
dissipar, Yanassa segurou seu ombro. Curvando-se sobre as mãos para se
despedir de Hendet, que respondeu à mesura com uma graça majestosa,
Hanani e Yanassa correram para as escadas e desceram ao nível do chão.
Tassa estava esperando ao lado do curral, segurando a rédea do cavalo selado
de Hanani e parecendo ansioso. Ele e outros dois meninos logo ajudaram
Hanani a amarrar os alforjes. Depois Hanani montou em Dakha, que bateu
os pés, impaciente para ir embora com os companheiros. Os últimos
guerreiros estavam começando a passar, seguidos pelos ferradores e pelos
caçadores e por outros que haviam escolhido viajar com o exército para dar
apoio.
Finalmente pronta, Hanani olhou para Yanassa e Tassa com um aperto
na garganta.
— Yanassa…
Yanassa chacoalhou a cabeça.
— Sem despedida. Traz má sorte.
Hanani aquiesceu, mas não pôde resistir a pelo menos uma bênção, se
não uma despedida.
— Ande na paz Dela no sonho e na vigília, Yanassa. Saiba que vou ver
você de novo em um ou na outra.
Yanassa sorriu.
— Você vai me ver na vigília, garota boba. Quando Wana tiver a cidade
de volta, pretendo ir lá para fazer negócios e ficar rica, e eu prometo, vou
procurar você no seu Hetawa. É melhor você estar usando pelo menos
brincos! Agora vá.
Engolindo em seco e endireitando a postura como convinha tanto a uma
mulher de valor como um Servo de Hananja, Hanani virou-se e saiu
cavalgando para se juntar ao exército.
40

ALIANÇA

Com o vento às costas e o cheiro das terras cultiváveis para guiá-los, o


exército banbarrano chegou rápido em Sabesst, em meio aos sopés das
colinas ocidentais de Gujaareh. Sabesst era o abismo ameaçador e coberto
de pedras de um vale, com encostas íngremes e apenas a mais estreita
passagem permitindo a entrada e a saída. O mito gujaareen dizia que
Sabesst foi onde Merik, o deus que formou as montanhas, certa vez
depositara suas ferramentas enquanto tirava uma soneca. Era um dos
poucos lugares no sopé das colinas onde um exército poderia se formar em
segredo.
Cavalgando à frente da coluna banbarrana, Wanahomen os conduziu
pelo meio do acampamento dos seus aliados, tentando não escarnecer dos
currais improvisados, das fileiras aleatórias de tendas, da minúscula forja que
parecia mal preparada até para colocar uma ferradura. Os homens, pelo
menos, foram a única coisa positiva que Wanahomen viu: havia talvez três
vezes mais daqueles soldados do que dos seus banbarranos. Mas os
primeiros que Wanahomen avistou eram um grupo deplorável. Nenhum dos
homens dos nobres estava em formação ou fazendo exercícios de
treinamento enquanto cavalgava. A maioria apenas veio olhar para os
estrangeiros com uma curiosidade indisciplinada. Todos vestiam cores e
emblemas variados, mostrando sua aliança com essa ou aquela família
nobre; não houvera sequer uma tentativa de unificá-los com uma única faixa
ou cor. Pior ainda, Wanahomen notou um número preocupante de soldados
que eram velhos ou pouco mais que meninos. Alguns eram esqueléticos
demais para erguer uma espada ou gordos demais para se sentarem em
qualquer cavalo a não ser os maiores.
— É isso o que você pretende levar contra os kisuati? — perguntou
Ezack em chakti, mas sabiamente manteve a voz baixa em todo caso, talvez
para que os novos aliados deles não ouvissem o desdém em seu tom de voz.
— Boa parte desses aí deveria ser mandada para o deserto para morrer e
aliviar o fardo para os demais.
Wanahomen compartilhava do desdém do outro, mas não ousou se
permitir pensar muito nisso. Aqueles soldados, por mais inadequados que
fossem, eram tudo o que eles tinham.
— Muitos são contratados — comentou ele, e depois se explicou melhor
quando Ezack pareceu confuso. O conceito de lutar por uma paga era
desconhecido pelos banbarranos. — Não são verdadeiros guerreiros. São
mais como escravizados: obedecem a qualquer um que possa alimentá-los.
Ezack fez um som de desgosto.
— Fazem os escravizados lutarem por eles? E nós é que somos chamados
de bárbaros.
Olhando para mais longe, Wanahomen avistou alguns sinais de
esperança. Nem todos os soldados haviam se aproximado quando os
banbarranos chegaram. Um bom número permaneceu entre as tendas,
observando. Esses homens estavam em melhor forma e havia algo mais do
que uma curiosidade entediada em seus olhos. Eles observavam
Wanahomen em particular, uma vez que ele era o único que vestia índigo à
frente da coluna; os outros líderes de guerra estavam atrás com os seus
próprios homens. Sabiam quem ele devia ser.
— Ali — disse Wanahomen para Ezack, tomando o cuidado de não
olhar na direção dos homens de quem estava falando. — Aqueles são os
guerreiros… homens da casta militar e outros que um dia fizeram parte do
exército de Gujaareh. Eu esperava que fôssemos ver pelo menos alguns. Eles
vão compensar o resto.
Calando-se, Ezack avaliou esses homens com mais atenção e endireitou-
se um pouco, como que inibido.
Mais adiante havia um aglomerado de grandes tendas, cada uma em
estilo gujaareen elaborado: feitas com tecido amarelo, com franjas de couro e
fio dourado, três vezes maiores até mesmo do que a melhor tenda
banbarrana. Com os olhos treinados por dez anos no deserto, Wanahomen
não pôde deixar de sentir desdém por tamanho excesso. As tendas levavam
horas para montar e desmontar e provavelmente tiveram de ser
transportadas por vários animais de carga. O tecido leve e brilhante era
bonito, mas deixaria entrar frio à noite e calor durante o dia.
No entanto, ele disciplinou a expressão quando o pano das tendas se
agitou e seus aliados surgiram para saudá-lo. Havia mais pessoas do que ele
esperara ver: quase vinte no total, de variadas idades e castas, embora a
maioria elegantemente vestida e de porte digno.
— Então esses são líderes de guerra entre o seu povo? — perguntou
outro dos seus homens.
— Eles são mais parecidos com líderes de tribo.
— O seu povo não sorri muito — comentou Ezack. — Não consigo
distinguir o que estão pensando nesses rostos de pedra. Alguns desses aí
parecem querer te matar.
Wanahomen sorriu.
— Alguns provavelmente querem.
— Ah, então eles têm bom senso.
Ignorando esse comentário, Wanahomen ergueu um punho para indicar
parada para a coluna. Instantaneamente, seus auxiliares ergueram o punho
também, e os líderes de guerra dos seus respectivos regimentos, e seus
auxiliares, até que, em um espaço de algumas respirações, todos os mil
homens haviam parado onde estavam. Satisfeito com essa demonstração de
disciplina (cairia bem com os membros da casta militar), Wanahomen
desceu do cavalo e deu um passo à frente.
Ele conhecia muitos daqueles rostos dos dias em que era o herdeiro
escolhido de seu pai, embora se lembrasse apenas de um punhado de nomes.
O resto, até onde ele podia dizer, eram nobres de menor importância ou
empobrecidos, mercadores ricos, até mesmo um grupo de artífices e artesãos
famosos. Ver tal mescla de pessoas o deixou tanto feliz como preocupado:
cada um talvez houvesse trazido recursos extras para o exército, mas o que a
sua presença significava de verdade? Quantos eram espiões de Kisua… ou,
pior ainda, de outras terras, mantendo um olho nos assuntos do que um dia
fora o reino mais poderoso do mundo? Ele também se preocupava que os
infortúnios da ocupação houvessem se tornado mais extremos para o seu
povo do que pensara. Só um grande sofrimento ou uma raiva justificada
poderiam instigar tantos gujaareen a deixar de lado a Lei de Hananja.
Mas isso é uma bênção para mim. Venham, então: sigam-me e eu darei um
bom uso para a dor de vocês.
— Saudações — cumprimentou Wanahomen. Ele levou a mão à cabeça
para tirar o lenço e o véu e ficou satisfeito ao ver o reconhecimento
instantâneo em vários pares de olhos. Sempre fora parecido com o pai,
exceto pela altura e pela cor mais acentuada de sua herança shunha.
Considerando que o pai fora filho de uma dançarina e, por conta disso,
tivera a pele pálida dos baixa-castas, essa pequena vantagem sempre o
deixou feliz.
— Meu Príncipe — falou um deles, um homem mais velho que se
ajoelhou de pronto, fazendo uma manuflexão. A maioria dos outros seguiu o
exemplo, embora não todos, notou Wanahomen. Ele sorriu para cada um
dos que não se ajoelharam e viu desafio em alguns daqueles rostos,
hostilidade descarada em outros.
— Meus amigos — disse ele, falando diretamente para esses últimos. —
Não há necessidade de me chamar de Príncipe… não ainda. Não enquanto
eu não me sentar diante da Auréola e receber a bênção da nossa Deusa. Até
lá, sou apenas Wanahomen, um concidadão que compartilha do seu sonho
de uma Gujaareh livre. — Aos que haviam se ajoelhado, ele fez um aceno
de cabeça. — Por favor, levantem-se.
Houve uma agitação no grupo quando eles se levantaram, murmurando
entre si, e por fim um homem que o Príncipe jamais conhecera deu um
passo à frente.
— Eu sou Deti-arah, shunha, da linhagem de Mun-arah — apresentou-
se o homem. — Seja bem-vindo, Pr… lorde Wanahomen. Por favor, venha
se juntar a nós na tenda, temos muito a discutir.
Wanahomen aquiesceu e se virou para Ezack.
— Diga aos homens para montarem acampamento — falou ele em
chakti. — Escolha algum lugar mais adequado, não gosto do formato deste
vale. — Sobretudo porque estava cheio de pessoas em quem não confiava.
Ezack franziu a testa.
— Para além do vale, as nossas fogueiras e tendas poderiam ser vistas. Se
você pretende manter este exército em segredo…
— Não importa mais. — Wanahomen olhou por todo o vale. Tantas
milhares de pessoas, todas dispostas a lutar por ele. O rapaz não pôde deixar
de sorrir e repetir as palavras em gujaareen para que todos entendessem. —
A esta altura, os kisuati não têm nenhuma esperança de nos deter, mesmo
que saibam exatamente onde estamos.
— Ah. — Ezack, que franzira o cenho, concentrado, enquanto decifrava
o gujaareen, pareceu satisfeito ao ouvir aquilo. — Muito bem, então. — Ele
se endireitou, fazendo o sinal para darem meia-volta. A coluna virou e
começou a voltar pelo caminho por onde viera. Houvera uma colina de bom
aspecto pouco antes de entrarem no Sabesst; Wanahomen desconfiava que
era para lá que Ezack pretendia ir.
Mas, antes de saírem, quatro dos guerreiros da fileira da frente pararam
seus cavalos e desceram, assumindo posições de guarda às costas de
Wanahomen. Um deles era Yusir-Banbarra e outro era Charris, o que não
surpreendeu Wanahomen; os outros dois eram banbarranos de outras tribos,
o que o surpreendeu. Ele os fitou, surpreso, depois alçou o olhar e viu Ezack
observando-o. Os olhos de Ezack se franziram em um sorriso antes que ele
virasse o próprio cavalo e fosse embora.
— Seus aliados parecem bastante imponentes — comentou Deti-arah.
Ele olhou aflito para os homens que flanqueavam Wanahomen. Charris
ainda podia passar uma imagem impressionante quando queria, mas mesmo
ele parecia pequeno quando comparado aos outros três, os quais Ezack
parecia haver escolhido apenas pelo tamanho.
Wanahomen conteve o impulso de rir. Ele teria de elogiar Ezack depois.
— Eles podem ser.
Deti-arah concordou com a cabeça.
— Pois bem. — Ele ficou de lado e fez um gesto para Wanahomen ir na
frente. Ele foi, e os guarda-costas banbarranos imediatamente o seguiram.
Como ele desconfiara, isso deixou Deti-arah ainda mais nervoso.
— Milorde. — Deti-arah lançou um olhar significativo aos banbarranos.
Wanahomen fingiu um ar inocente.
— Certamente o senhor tem seus próprios guardas, não tem, lorde Deti-
arah?
— Tenho, milorde, mas…
— Pois bem. — Dando um sorriso cordial, Wanahomen fez um gesto
para os banbarranos o seguirem e entrou na tenda. Um instante depois,
parecendo irritado, Deti-arah foi atrás, junto com vários dos outros nobres.
A tenda logo ficou lotada com Charris e os três banbarranos presentes, mas
Wanahomen andou até a mesa central com facilidade: as pessoas na tenda
abriam caminho para ele.
Uma mulher jovem e alta estava àquela mesa dentro da tenda, olhando
para o que parecia um mapa em um pergaminho. Wanahomen conseguiu
evitar que suas sobrancelhas se erguessem ao vê-la, pois ela penteara o
cabelo para trás em uma trança austera e usava uma vestimenta marcial: uma
meia-armadura de couro frouxa para acomodar seus seios pequenos, o
sobrepano masculino, botas, luvas de arqueiro, com uma adaga embainhada
a um lado do quadril. Ela examinou Wanahomen com um olhar
desconfiado e avaliador quando ele entrou; depois de um momento, ela fez
um aceno vagamente respeitoso.
— Iezanem — disse Deti-arah, apontando para a mulher. — Da casta
zhinha e da linhagem de Zanem.
— Castas zhinha e militar, milorde — corrigiu ela. — Em tese, a casta
da minha mãe tem precedência, mas escolhi abraçar as duas na medida do
possível. Meu pai me ensinou as habilidades que pôde. Você é Wanahomen.
Deti-arah parecia mais irritado ainda, embora fosse difícil dizer o que
mais o ofendia: a reivindicação de Iezanem a duas castas, sua audácia em
não esperar ser apresentada ou apenas sua presença. Ela era a mulher
gujaareen mais pálida que Wanahomen já vira, com um cabelo cor de argila
vermelha enferrujada e um pouquinho de sardas — e partes de pele
queimada de sol — sobre a ponte do nariz. Ela também não era bonita, com
quadril estreito, lábios tão finos que desapareciam quando falava e um nariz
muito abertamente gujaareen para o resto nortenho do corpo dela. Então
não era de admirar que ela fosse tão beligerante: mesmo entre os zhinha ela
teria sido objeto de escárnio por sua aparência. Mas havia algo na
combinação de força e defesa em seu comportamento que indiretamente
lembrou Wanahomen de Hanani e o predispôs a sorrir para ela, o que a fez
piscar com uma surpresa desconfiada.
— Eu sou Wanahomen. — Ele apontou com a cabeça para o mapa, que
parecia ser das ruas de Gujaareh, e avançou em direção à mesa. — Já que
analisou a situação, poderia me passar um resumo?
Ela o fitou de soslaio antes de dar uma batidinha no mapa.
— Nosso plano atual. Pensamos em nos aproximar da cidade pelo portão
oeste ao pôr do sol, com a luz às nossas costas e depois com a escuridão a
nosso favor para frustrar os arqueiros deles. Nossos agentes na cidade vão
atacar os guardas do portão de lá de dentro, o que pelo menos vai distraí-los
para nós podermos encontrar uma defesa fraca e colocar escadas para
transpor o portão. Na melhor das hipóteses, claro, não haverá nenhuma
resistência e o portão se abrirá para nós simplesmente entrarmos. — Ela deu
um sorriso breve. — É nesse momento que começará a verdadeira batalha.
— Pelo palácio. — Ela acenou afirmativamente com a cabeça.
— As tropas kisuati vão recuar para o Yanya-iyan — falou outro homem.
Ghefir, obsequiou a memória de Wanahomen, um primo distante da
linhagem de sua mãe. Ele acenou para o homem em silencioso
reconhecimento e Ghefir devolveu o aceno. — Uma oitava de dias atrás,
quatro Protetores chegaram de Kisua para supervisionar a cidade. Os kisuati
vão lutar até o último homem para protegê-los. Essa com certeza vai ser
uma batalha difícil, mas é uma batalha que precisamos vencer. Kisua pagará
um resgate alto para ter seus anciãos de volta ilesos, caso contrário seus
próprios cidadãos vão ficar revoltados. Pegá-los como reféns vai ganhar esta
guerra.
Wanahomen chacoalhou a cabeça, examinando o mapa.
— Não. O Yanya-iyan é um alvo ruim.
A expressão de Iezanem tornou-se instantaneamente derrisória.
— Ah, é? Nosso alvo deveria ser este, então? — Ela bateu com o dedo
no distrito dos artesãos. — Ou deveria ser resgatar a casta servil primeiro?
— Servos, sim — disse Wanahomen. Ele ignorou o sarcasmo de
Iezanem, sabendo agora o que era. Ela não era diferente dos homens mais
jovens da tropa dele, todos apavorados e desesperados para provar seu valor.
Alguns escondiam seu medo com beligerância; não havia mal nenhum
nisso, contanto que aprendessem a não cruzar a linha de sua paciência.
— Nosso alvo deveria ser o Hetawa — afirmou ele. — O Yanya-iyan foi
construído para se defender contra um ataque. Ele tem portões de metal que
não são fáceis de escalar, portas que não dá para arrebentar rápido. Os
arqueiros nos matariam quando descêssemos por qualquer avenida em
direção ao palácio… as avenidas são estreitas com esse propósito… e, nas
ruas menores, passariam carruagens para eliminar qualquer sobrevivente.
Mesmo se o cercássemos, os depósitos do Yanya-iyan abrigam grãos e
provisões para um vilarejo inteiro. Eles poderiam aguentar tempo suficiente
para chegarem reforços de Kisua.
Ghefir franziu o cenho.
— Mas os Protetores…
— Precisam ser capturados, sim, concordo com isso. Mas existem outras
maneiras de capturá-los. A grande fraqueza do Yanya-iyan está em seu
tamanho e suas muitas entradas. Defender um portão contra um exército é
fácil, mas defender cada porta de jardim, cada entrada de servos, cada
centímetro de cada parede, contra infiltrados solitários? É muito mais
difícil.
Ghefir arregalou os olhos.
— Assassinos? Você quer matá-los? — Ele soou horrorizado, e com
razão. O próprio Wanahomen ainda era gujaareen o suficiente para se
recusar a matar anciãos, embora pretendesse fazer isso e coisas piores se
fosse este o caminho para a vitória.
— Não. — Wanahomen voltou a bater com o dedo no distrito do
Hetawa, seu dedo se detendo sobre o próprio Hetawa. — Eu estava
pensando em um tipo diferente de infiltrado.
Mas Deti-arah estava chacoalhando a cabeça.
— Você não ficou sabendo, então. Os kisuati levaram os Coletores como
reféns há quase uma oitava de dias. Eles estão sendo mantidos no Yanya-
iyan.
— Eles estão… — Wanahomen o encarou, depois começou a sorrir. Não
pôde evitar. — Caramba, que oportunidade!
— Oportunidade?
— É! — Wanahomen inclinou-se sobre a mesa para esclarecer o que
queria dizer; Iezanem recuou, como se sentisse repulsa pelo entusiasmo
dele. — Uma distração, um lapso na guarda kisuati e os Coletores estarão
livres. Dentro do Yanya-iyan. Nós deveríamos fazer todo o possível para
facilitar que isso aconteça… e definitivamente vamos precisar da ajuda dos
outros sacerdotes nesse caso. Eles podem conversar uns com os outros por
meio dos sonhos. — Ele franziu a testa, pensativo. — Isso por si só seria
valioso, se eles puderem nos ajudar a coordenar os nossos esforços. Mas o
mais importante é que as pessoas vão se juntar em apoio ao Hetawa. Os
kisuati podem lutar contra um exército, mas não contra uma cidade inteira.
A expressão de Iezanem passou de surpresa a consternação e depois a um
reconhecimento relutante.
— O Hetawa tem um valor simbólico — comentou ela por fim. —
Também daria uma boa base de operações, se os Servos permitirem. — Ela
fitou Wanahomen, sua expressão tornando-se fria. — Eles permitiriam?
— Acredito que sim. — Ele olhou nos olhos dela, entendendo que eles
sabiam de sua aliança com o Hetawa. Ótimo: eles que lidassem com aquilo
também, se planejavam traí-lo. — Eles prometeram fazer o que fosse
necessário para devolver rapidamente a paz a Gujaareh. Se isso significasse
reduzir o Yanya-iyan a cinzas junto com todos os kisuati que estivessem lá
dentro, então acredito que eles fariam.
Seguiu-se um momento de silêncio enquanto eles assimilavam aquilo.
— Sim — falou outro homem, que não fora apresentado e tinha a
aparência de um mercador; ele olhava para Wanahomen, concordando com
a cabeça, os olhos brilhando. — Sim.
— Pela Sonhadora nas alturas — disse Ghefir, enfim. — Começo a
achar que isso pode mesmo funcionar. — As palavras romperam a tensão do
momento; vários dos nobres reunidos riram nervosamente.
— Então existe mais uma questão importante a ser resolvida antes de
abordarmos as infinitas questões menores. — Wanahomen fitou Deti-arah,
Ghefir e Iezanem. Sanfi não estava presente; Wanahomen não se permitiu
especular sobre o assunto. — Nenhum exército pode ser comandado por um
conselho, por mais estimado que seja. E os banbarranos não vão seguir
nenhum gujaareen que não seja eu.
Houve silêncio por mais um instante e depois Deti-arah deu-lhe um
lento aceno.
— Nenhum de nós é guerreiro, a não ser Iezanem — declarou ele. —
Sempre soubemos que ter você à frente traria poder. — Ele então olhou
para Iezanem.
Iezanem parecia querer contestar aquilo, mas, quando Wanahomen
dirigiu-lhe um olhar duro, ela suspirou.
— Nós vamos seguir o seu comando — assentiu ela. Ghefir acenou
vigorosamente com a cabeça, concordando.
Um profundo senso de prontidão tomou conta de Wanahomen. Aquilo
era o que ele esperara durante dez anos. Era o que a sua Deusa pretendia.
Ele se surpreendeu de repente desejando que Hanani estivesse lá. Ela
também conhecia o poder das bênçãos de Hananja. Teria sido bom
compartilhar esse momento de paz com ela.
E então teria sido perigosa e tentadoramente fácil procurar a tenda dela
mais tarde aquela noite na área dos seguidores. Não para fazer amor, não na
véspera da batalha… mas ele também apreciava o simples conforto de
conversar com uma mulher e talvez compartilhar seus sonhos com ela. No
entanto, ele se despedira dela três noites antes no Merik-ren-aferu e
conversar de novo com Hanani seria apenas embaraçoso para ambos. Ela
sabia disso também, ele entendeu, pois não tentara vê-lo desde aquela noite.
— Então que seja — disse ele aos nobres reunidos. — Marchamos pela
manhã. Se as Luas quiserem e os sonhos forem doces, Gujaareh logo será
nossa outra vez.
Tendo dito isso, eles se reuniram ao redor da mesa e passaram as horas
seguintes planejando.
41

PAZ ROMPIDA

No quarto dia do ano novo, o pôr do sol trouxe uma grande mudança a
Gujaareh.
A batalha começou com um rumor de fim de tarde, que rapidamente se
transformou em alarme. Uma trilha de poeira fora avistada contra o
horizonte, diminuindo em vez de aumentar com a proximidade, e ela
acabou se tornando por fim um exército passando dos poeirentos sopés das
colinas para as áreas cultiváveis mais úmidas, depois acompanhando as
veredas de irrigação rumo à cidade. Ele chegaria em uma questão de horas.
Unidades kisuati que haviam se dispersado pela cidade para manter a paz
responderam rapidamente quando os mensageiros trouxeram novas ordens
do Yanya-iyan. Algumas foram até os muros para a defesa; outras se
prepararam para defender os defensores, cientes de que a cidade
representava um perigo maior do que o exército do lado de fora. Outras
ainda foram ao Yanya-iyan, para lá organizarem as forças para a maior
batalha de todas.
Quando os rumores se tornaram relatos confirmados, os cidadãos de
Gujaareh saíram para as ruas, reunindo-se em mercados e parques e praças
de dança. Muitos haviam levado armas ou ferramentas que poderiam servir
como armas; a maioria não levara nada além de sua raiva. Isso se mostrou
formidável o bastante, uma vez que os soldados kisuati recuaram. Os
soldados de má sorte ou lentos demais se viram cercados por turbas de
cidadãos que apenas um mês antes teriam sido facilmente intimidados.
Agora essas mesmas turbas espancavam homens até a morte ou os
despedaçavam e carregavam os pedaços ensanguentados pelas ruas como
troféu. O mesmo destino esperava quaisquer civis kisuati que não
houvessem visto os sinais de alerta e fugido com antecedência. Lojas de
mercadores foram saqueadas. As casas de vários negociantes foram
queimadas com mulheres, crianças e pessoas escravizadas ainda lá dentro.
Cidadãos gujaareen caíam também, principalmente por conta das espadas e
facas e flechas dos soldados, mas havia muito, muito mais deles do que dos
kisuati e, para cada gujaareen que morria, outros quatro vinham lutar no
lugar dele ou dela.
E em meio às multidões raivosas andavam aqueles que estavam
esperando exatamente por essa circunstância. Nos degraus do Hetawa, os
Professores pregavam a turbas entusiastas e as exortavam a ser tão rápidas e
decisivas quanto os Coletores em sua violência e a não prolongar o
sofrimento dos inimigos mais que o necessário. No portão oeste, guerreiros
da casta militar vestidos como cidadãos comuns atacaram os kisuati,
encorajando multidões que gritavam a ultrapassar as posições defensivas.
Dando um apoio silencioso, porém decisivo, as Irmãs de Hananja atiravam
nos arqueiros kisuati a partir das entradas de lojas e cúpulas de timbalin.
Seus confrades do Hetawa do caminho dos Sentinelas emboscavam e
desarmavam reforços a partir das sombras das vielas, impedindo que os
kisuati formassem uma defesa eficaz. Eles também salvavam das turbas os
agora indefesos sobreviventes dessas emboscadas quando podiam, embora
nem sempre fosse possível. O povo de Gujaareh estava zangado demais e
não havia muita paz no coração deles.
Enquanto a escuridão chegava e as ruas ardiam, os últimos defensores do
portão perderam para um grupo de meninos que mal haviam chegado à
puberdade armados com tijolos e cacos de cerâmica quebrada. O portão foi
imediatamente aberto e, em menos de uma hora depois, o primeiro de três
mil salvadores começou a cavalgar pela cidade. A vanguarda era composta
por bárbaros ferozes com vestes pálidas de deserto que brandiam espadas
reluzentes e soltavam gritos crescentes de vitória enquanto se espalhavam
pelas ruas. Esses gritos foram logo sufocados pelos aplausos dos próprios
gujaareen à medida que o líder dos banbarranos avançava e se espalhava a
notícia de que ali estava enfim o Avatar de Hananja. O Príncipe há muito
perdido de Gujaareh: um belo jovem de aparência nobre carregando a
espada do Sol da Manhã.
Ele parou o cavalo no centro de um mercado lotado, olhou para a
multidão que o observava com a respiração contida e disse quatro palavras
que percorreram todas as ruas e vizinhanças à velocidade do sonho:
— Eu voltei para casa.

***

Nesse mesmo instante, na parte leste da cidade, o professor Yehamwy estava


em um dos passadiços sobre o muro do Hetawa com o Sentinela Anarim e
dois outros membros do Conselho dos Caminhos, observando a fumaça e a
luz de chamas do oeste se aproximar.
— Isso está saindo do controle — comentou Anarim.
— Como acontece com o caos — complementou Ni-imeh, das Irmãs.
Ela e outras da sua irmandade, aquelas que não estavam lutando, haviam
vindo para o Hetawa em busca de abrigo aos primeiros sinais de problema.
— Você acredita que o Príncipe virá para cá primeiro?
— Essa foi a sugestão mandada para ele pelos sonhos — respondeu
Yehamwy. — Não dá para assegurar nada, claro, sem o controle do sangue
onírico. — Ele fitou o Compartilhador Anakhemat, que aquiesceu com um
aceno cansado.
— Não podemos dizer até ele chegar à nossa entrada e, mesmo nesse
momento, pode ser que nunca saibamos se a decisão foi resultado da nossa
influência ou dos próprios desejos dele — pontuou o Compartilhador. —
Os sonhos dele se tornaram mais nítidos ultimamente; tivemos que ser
sutis. A narcomancia a distância sempre é difícil. E ninguém teve tempo de
viajar para as fronteiras para reforçá-la, não em vários dias.
Ni-imeh aquiesceu.
— Devemos nos contentar com isso, então. Se ele não for visto buscando
a nossa bênção para restaurar o seu governo, as desavenças entre o Hetawa e
o Yanya-iyan podem jamais se resolver.
— Alguma notícia dos investigadores? — perguntou Yehamwy.
— Eles identificaram cinco linhagens maternas antes que essa coisa toda
começasse — respondeu Anarim. Ele acenou para o horizonte reluzente. —
Foram encontradas várias mulheres e meninas com consideráveis dons de
sonho não treinados; só uma havia tido visões ou mostrado sinais de perda
de controle. Mas mesmo o poder dela não era nada que pudesse explicar a
praga. — Ele fez uma careta. — Infelizmente, com tanto caos na cidade, as
investigações restantes vão atrasar.
— Ajudaria se nós colaborássemos com os seus esforços? — indagou Ni-
imeh. — A Casa das Irmãs praticamente não sofreu danos com esses
pesadelos. Nossas aprendizes e membros que têm a necessária habilidade
narcomântica podem viajar disfarçadas em nome da segurança.
Yehamwy e Anarim se entreolharam, surpresos. Ni-imeh cerrou os
lábios, ligeiramente irritada.
— Só porque vocês perceberam apenas agora o potencial das mulheres
não significa que nós fomos tolas esse tempo todo.
A expressão de Anarim se suavizou, transformando-se no mais próximo
de um sorriso que um Sentinela jamais se permitiria.
— Nós agradeceríamos qualquer ajuda, claro. Mas isso pode requerer
viajar para fora da cidade. Várias das linhagens maternas são de famílias
nobres ou camponesas, com residências nas terras cultiváveis ou em vilarejos
rio acima.
— Não é dificuldade nenhuma… — Ni-imeh parou de falar, espantada,
quando um barulho interrompeu a relativa quietude do pátio do Hetawa.
Ao se virar, eles viram um menino novo demais para servir como acólito
correndo pela lajota o mais rápido que suas perninhas conseguiam levá-lo.
Mesmo do alto do muro podiam ouvir a criança chorar enquanto corria.
— O que em nome dos pesadelos? — Yehamwy deu um passo à frente e
puxou o fôlego para chamar o menino. Foi impedido pelo Sentinela
Anarim, que estendeu o braço e cobriu com a mão a boca do colega sem
nenhuma cerimônia.
— A Casa das Crianças — falou Anarim. De onde estavam, eles podiam
ver a Casa na outra extremidade do comprido pátio do Hetawa, em frente
ao Salão de Bênçãos. Embora a maior parte das janelas da Casa devesse
estar escura — as crianças iam dormir pouco depois da dança-oração e do
banho — eles podiam ver lamparinas se movendo pelo prédio e, quando o
vento mudou de direção, puderam ouvir os gritos de medo das crianças lá
dentro. Um instante depois, outro vulto saiu correndo pelo portão da Casa.
Esse era mais alto, um dos adultos da Casa.
— Atenção, kisuati! — gritou ele enquanto corria. O volume de sua voz
foi um choque contra a quietude do Hetawa; eles o fitaram, até mesmo
Anarim paralisado em uma espécie de descrença horrorizada. — Na Casa
das Crianças, soldados kisuati…
Mais vultos correram atrás dele. Todos eles ouviram o zunido agudo de
uma flecha quando foi atirada; um instante depois, o Professor ficou em
silêncio e caiu no chão.
— Ah, pela Deusa — sussurrou Ni-imeh.
Yehamwy levou uma mão trêmula à boca.
— Bahal, aquele era o jovem Bahal, ele era aprendiz de Deshephemun…
— Entrem — disse Anarim. — Vão para o Salão de Bênçãos; falem para
todos que virem para se reunirem lá. Pode ser que queiram apenas as
crianças.
— Apenas as crianças? — Anakhemat pareceu horrorizado. — O que
você está dizendo?
— Estão fazendo as crianças de reféns. Eu e meus irmãos vamos cuidar
disso. Agora vão!
— Mas… — Yehamwy deu um passo, mas parou, indeciso. — Anarim, a
maioria dos seus confrades está… — Ele olhou em direção à parte oeste da
cidade, onde o Yanya-iyan se erguia sobre os tetos.
— Sobraram oito de nós — falou Anarim com um rápido sorriso
apertado. — Uma oitava de Sentinelas de Hananja é um exército. — E ele
entrou correndo nas sombras antes que eles pudessem protestar outra vez.

***

Havia algo em lorde Sanfi enquanto ele se prostrava na sala do trono do


Yanya-iyan, mais tarde renomeado como Salão dos Protetores, que fazia
Sunandi pensar em crocodilos.
— Um mal-entendido, ou talvez até uma calúnia sórdida — dizia o
lorde. Ele estivera de joelhos quase desde o momento em que entrou. Era
isso, entre observações lembradas da noite do jantar, que dava a ele um
comportamento reptiliano aos olhos de Sunandi. A facilidade com que ele
se humilhava, como se seu orgulho fosse só mais uma ferramenta em um
vasto arsenal usado para manipular aqueles à sua volta. O modo como
examinava os rostos do seu público, interpretando-os em busca de
fraquezas. A rápida olhada em Sunandi, avaliando-a e rejeitando-a de
repente. Ela não lhe era mais útil; ele buscava uma presa mais valiosa.
— É o que o senhor diz, lorde Sanfi — falou a Protetora Yao. Ela
também parecia não gostar dele. — Mas ouvimos testemunhos de
mercadores estrangeiros de quem o senhor comprou armas e outras
mercadorias de guerra. Que desculpa pode dar para isso?
— Só a de que sou inocente, Estimada — respondeu ele. Falava em suua
fluente, mas havia uma inaptidão na maneira como usava as formas
suplicativas. Claramente não estava acostumado com elas. — Se isso puder
convencer a senhora quanto à minha inocência, sei de outros entre os meus
companheiros que podem ter transgredido…
Sunandi ouvira o suficiente, revoltada com a traição descarada do
homem. Tiaanet, concluiu ela, faria bem de matar o pai e assumir a
linhagem antes que ele os constrangesse ainda mais.
— Com todo o respeito, Estimada — disse ela, interrompendo Sanfi —,
não temos tempo para isso. O último informe do portão oeste era de que
poderia cair a qualquer momento. Vamos prender esse homem, com a
mulher e as filhas, se isso for do agrado dele, e dedicar os nossos esforços à
defesa.
Mama Yao concordou com a proposta, assim como Sasannante, mas
Aksata esfregou os olhos, parecendo entediado e exausto. Todos eles
estavam exaustos. Fora Aksata quem insistira que os Protetores tomassem a
sala do trono, colocando suas próprias cadeiras onde o assento em formato
de ferradura do Príncipe do Ocaso estivera um dia sozinho. Os servos do
palácio vinham servindo comida fria e perdendo roupas — e
“acidentalmente” fazendo barulhos altos tarde da noite — desde então.
— Não é preciso se preocupar, Oradora — declarou Aksata, dominando
o seu humor o suficiente para sorrir para Sunandi. — O portão oeste não é
uma grande perda. Na realidade, já mandamos ordens para o seu marido
para recuar e trazer o restante das forças militares para cá.
— Entendo. — Sunandi franziu a testa, tentando sem êxito
compreender qualquer estratégia que Aksata pudesse estar planejando. —
Então, Estimado, esse príncipe gujaareen e os seus lutadores vão entrar na
cidade. Eles vão ter condições de atacar o próprio Yanya-iyan a essa altura.
— Sim, eles vão — concordou Aksata, e trocou um breve sorriso com
Moib, que deu uma ligeira risadinha. — Isso serve aos nossos propósitos no
momento.
Sanfi ouvia com atenção ao pé da plataforma; Sunandi notou a testa dele
levemente franzida, embora ele continuasse de joelhos. Ela quase achou
graça de ver sua preocupação, considerando que ele acabara de se oferecer
para entregar os próprios aliados, mas isso não lhe causava nem metade da
preocupação que lhe causava a ideia de suportar um cerco.
Mas, antes que ela pudesse formular uma pergunta que não fosse irritar
ainda mais o Protetor Aksata, havia vozes altas à porta da câmara. Um
instante depois, a porta se abriu e um dos guardas do palácio entrou às
pressas, parando ao lado de Sanfi e ajoelhando-se para dar a informação.
— Estimados e Sábios, me perdoem pela intrusão, mas o meu
comandante me mandou informá-los de que estamos sendo atacados —
disse ele. O suua dele tinha um toque de sotaque rústico de região florestal:
um baixa-casta. — Eles já estão dentro do palácio. Todos os arqueiros da
primeira fileira estão mortos… Acreditamos que eles entraram com as
tropas que recuavam, usando os uniformes dos nossos homens…
— Espere — falou Mama Yao, franzindo o cenho. — Como é que eles
podem estar dentro do palácio? O Príncipe e o seu exército de traidores
ainda estavam no portão da cidade no último informe…
— Não é o pessoal do Príncipe! — interrompeu o soldado, claramente se
esquecendo dos bons modos. — Não sei quem são. Eles vieram disfarçados
entre os nossos, como eu disse… Encontramos trinta membros da guarda de
proteção mortos sem nenhum ferimento que sangrasse, mas com muitos
pescoços quebrados e gargantas esmagadas. Ninguém sequer os ouviu dar o
alarme! E agora os homens com as roupas deles estão… — Parou de falar,
chacoalhando a cabeça. — Alguns dizem que eles sobem pelas paredes
como escaravelhos. — Ele olhou para o teto da sala do trono, como que
para se certificar de que não havia ninguém ali.
Sunandi estremeceu, sentindo um calafrio na nuca ao compreender.
— Sentinelas — murmurou ela. — Sacerdotes do Hetawa.
Moib franziu a testa.
— Os responsáveis pela guarda? Me falaram que só os Coletores…
— Os Sentinelas treinam os Coletores, Estimado — explicou Sunandi.
Era tremendamente indelicado interromper um ancião, mas ela tinha de
encontrar uma maneira de transmitir para eles o quanto aquele
acontecimento era desastroso. Era uma possibilidade que ela própria jamais
previra; ela também pensara nos Sentinelas como defensores em vez de
agressores. Mas isso fora loucura de sua parte, pois Nijiri a alertara. A
cidade inteira era a tempestade que ele invocara e seus confrades eram os
relâmpagos prontos para atacar.
Sunandi avançou para se postar ao lado de Sanfi.
— Eu já vi um Coletor desarmado quebrar o braço com o qual um
soldado montado segurava uma espada com o que pareceu um golpe de
raspão… e eles são os lutadores mais fracos. É aos Sentinelas que eles
confiam a missão de caçar os Coletores quando eles ficam loucos e se
transformam em Ceifadores. Eles não têm magia, mas têm armamentos e
seu único propósito é lutar.
— Mas nós temos quase toda a força militar que trouxemos de Kisua —
pontuou Sasannante. Ele se sentou, franzindo o cenho. — Espere, quantos
desses sacerdotes guerreiros existem?
— Dezenas ou centenas. Ninguém a não ser o Hetawa sabe com certeza
— respondeu Sunandi, chacoalhando a cabeça. — Estimados, os senhores
deveriam vir: existem lugares mais seguros para se esconder do que este.
Mama Yao ficou indignada.
— Esconder?
— É — disse Sunandi. Ela queria gritar a palavra. — Podemos nos
esconder ou ficar aqui e lutar contra um inimigo desconhecido, de força
desconhecida, e esperar ter sorte suficiente para vencer. Qual a senhora
prefere?
Mama Yao retorceu a boca meio desdentada, mas enfim olhou para os
companheiros. Aksata tinha a expressão de quem gostaria de ter objetado,
mas Sasannante e Moib se levantaram de imediato. Quando eles desceram
da plataforma, foram cercados por soldados e Sunandi lhes deu ordens para
levá-los ao jardim do Yanya-iyan, o ponto mais defensável do palácio.
E enquanto andavam, Sunandi prometeu a si mesma que, quando fosse
anciã, ouviria os mais jovens à sua volta. A juventude não tornava uma
pessoa estúpida, e a verdadeira sabedoria era nitidamente algo que até os
anciãos tinham de se esforçar para alcançar.
Às costas do grupo, enquanto saíam, o lorde shunha Sanfi fugia,
despercebido.

***

Das profundezas da contemplação, o Coletor Rabbaneh sentiu a presença


de novos sonhadores atrás de sua porta. Quatro onde antes havia um… e
outros quatro para Nijiri, e outros quatro para Inmu, e mesmo uma quadra
para o Superior. E mais quatro além desses, rodando no corredor além da
suíte de convidados. Tudo aquilo apenas para dominar três Coletores?
Rabbaneh quase soltou uma gargalhada.
A porta se abriu. Rabbaneh abriu os olhos, prestando atenção enquanto
três dos soldados silenciosamente se espalhavam pelo pequeno quarto,
flanqueando-o. O quarto… Rabbaneh sentiu cheiro de couro e de metal
recém-forjado e ouviu o chocalhar de algum tipo de dobradiça ou
mecanismo de fechadura. Então era isso o que eles estavam tramando.
Ah, Ehiru, meu amigo, você deu um susto muito grande nessas pessoas dez
anos atrás. Elas pensam que todos nós somos pouco melhores do que Ceifadores. Só
por esse motivo vou ter que ensinar uma lição a elas…
— Coletor Rabbaneh? — Esse era o jovem soldado que o vigiara
naquela última quadra de dias. Rabbaneh passara a ter afeição pelo jovem,
que nasceu artesão como o próprio Rabbaneh, de uma ilustre família de
cantores em Kisua. Ele fizera a gentileza de compartilhar alguns de seus
cantos com Rabbaneh durante as refeições. Rabbaneh tomaria o cuidado de
não o machucar tanto como os outros.
Ele se levantou e se virou para encarar o rapaz, que segurava uma
engenhoca horripilante de ferro e couro projetada para prender as mãos de
Rabbaneh com os punhos cerrados. Uma cangalha de ladino de algum estilo
kisuati. Havia toda espécie de rebordos e trancas naquela coisa; Rabbaneh
desdenhou da simples feiura do objeto.
— Suponho que seja para mim.
O jovem soldado confirmou com a cabeça, engolindo audivelmente em
seco. Ele lançou um olhar aos companheiros, todos preparados de espada
em punho, e por fim voltou a encarar Rabbaneh.
— Sinto muito, Coletor, mas são ordens dos Protetores. Com tudo o que
está acontecendo…
Um dos outros homens, um soldado mais velho e talvez o superior do
rapaz, rosnou alguma coisa para ele em suua. Rabbaneh, cujo suua era
cerimonial na melhor das hipóteses, presumiu que o homem estivesse
falando para o jovem andar logo com aquilo.
Esse primeiro, então.
O soldado não havia terminado de repreender o garoto quando
Rabbaneh enfiou a mão nos olhos do homem. Em vez de pousar os dedos
delicadamente sobre as pálpebras do sujeito, ele golpeou com força.
Enquanto este gritava e punha as mãos sobre os olhos, Rabbaneh agachou-
se bem para ficar abaixo do nível da espada do soldado à sua esquerda… não
que as espadas fossem uma grande ameaça em um espaço tão limitado,
especialmente quando os homens haviam se espalhado de uma forma tão
conveniente para ele. Um pouco ofendido que houvessem vindo tão mal
preparados ao encontro de um Coletor, Rabbaneh atingiu o joelho do
soldado um tanto mais forte do que o estritamente necessário. O som da
junta se quebrando foi perturbadoramente alto, como um galho de árvore se
rompendo com o vento. O grito do soldado foi ainda mais alto e se juntou
de modo bastante cacofônico ao do seu companheiro que tivera os olhos
arrancados.
Eu deveria tê-los silenciado, pensou Rabbaneh com uma culpa tardia.
Sonta-i teria me repreendido tanto se estivesse aqui…
O terceiro soldado estava vindo em sua direção agora, a espada já erguida
e o rosto contorcido de raiva. Isso o tornou o alvo mais fácil, pois ele não era
diferente das centenas de homens violentos que Rabbaneh Coletara ao
longo dos seus vinte e dois anos de serviço. Três socos rápidos no rosto e o
homem caiu no chão, atordoado e meio cego. Não havia nenhuma razão
verdadeira para colocá-lo para dormir depois disso, mas Rabbaneh o fez de
qualquer maneira para ser minucioso.
Quando esse soldado caiu — a coisa toda demorara o intervalo de três
respirações profundas —, Rabbaneh se virou para encarar o soldado mais
novo. O rapaz não se mexera durante o ataque a não ser para dar um passo
para trás e começar a tremer como um junco.
— Sinto muito — disse Rabbaneh, tornando sua voz tranquilizadora. —
Foi necessário… — Ele parou, surpreendido, quando uma lâmina curva saiu
do meio do peito do jovem.
— Coletor — falou o rapaz de maneira abrupta, depois olhou para o
próprio peito com igual surpresa antes de cair para a frente, morto. Quando
ele caiu, Rabbaneh viu que mais dois soldados kisuati estavam passando pela
porta, empurrando um ao outro e gritando para os colegas, em pânico.
Se eles haviam confundido o garoto de costas com Rabbaneh ou se o
garoto apenas estava no caminho deles, Rabbaneh jamais saberia. Ele os
atacou antes que houvessem acabado de entrar, cobrindo os rostos dos dois
com as mãos e inserindo pura fúria em suas mentes despertas. Tal foi a força
da fúria do Coletor que eles gritaram quando suas almas se desprenderam;
Rabbaneh não se importava para onde aquelas almas iriam. Ele deixou os
corpos caírem e precipitou-se pela porta para matar o resto, para matar
todos eles, que se danasse a paz…
O golpe que percorreu seu corpo tirou-o do estado de fúria. Ele tentou
se virar, desviando uma espada que descia em direção ao seu rosto quase sem
pensar, mas achou seus movimentos atravancados de um modo estranho.
Então veio outra daquelas curiosas sensações destoantes e ele estava livre
para se mexer de novo.
O soldado que estava atrás dele — logo a um lado da entrada, Rabbaneh
não o vira — deu um passo atrás, erguendo a espada para brandi-la de novo.
Ela já estava manchada de vermelho.
Rabbaneh ergueu um punho para atacar o soldado, mas seu braço se
moveu devagar, como que em um sonho. Isso era uma bobagem porque, em
um sonho, ele tinha controle total e o movimento era uma simples questão
de vontade focada…
Outro golpe destoante. Rabbaneh virou o rosto, ainda admirado com sua
lentidão, e viu outro soldado completando uma estocada. A mão dele
segurava o cabo de outra espada, cuja ponta estava enfiada entre as costelas
de Rabbaneh, logo ao lado do esterno.
— Rabbaneh! — A voz de Nijiri, perturbadoramente alarmada. A
cabeça do soldado que acabara de golpear Rabbaneh de repente girou em
um ângulo desagradável. Ele voou para o lado, deslocando a espada no
processo. Rabbaneh sentiu um impulso completamente inapropriado e
desrespeitoso de rir ao ver a expressão de surpresa no rosto do cadáver, mas,
no momento, estava mais preocupado com a sua súbita incapacidade de ficar
de pé. Ele conseguiu cair de joelhos com algo semelhante a graça, mas
depois não conseguiu evitar uma queda de lado, esparramando-se de um
modo desajeitado e embaraçoso.
Então Nijiri apareceu, e Inmu também, os dois parecendo assustados e
ansiosos. O Superior também, atrás deles, todos fitando-o, alarmados. Mas
por quê? O problema dos soldados havia sido resolvido. Eles estavam livres.
— Os Protetores… — começou a dizer Rabbaneh, e em seguida se deu
conta de que esquecera o final da frase. Os protetores o quê?
— Rabbaneh-irmão. — Inmu, ainda tão jovem mesmo após sete anos de
Coleta, parecia estar prestes a chorar. — Nijiri, você não pode…
— Não sou Compartilhador — disse Nijiri, o rosto mais sombrio que de
costume. — Cortes pequenos talvez eu pudesse curar. Isso não, não antes
que a vida dele se esvaia.
Inmu sufocou um soluço. Rabbaneh abriu a boca para lembrar Inmu que
tal histrionia era imprópria para um Coletor. E eles tinham problemas mais
importantes com que se preocupar, como… como… o quê? Ele não
conseguia se lembrar. Estava tão difícil de respirar.
— Então só há uma coisa a ser feita — retorquiu Inmu. Quando Nijiri
desviou o olhar, a expressão de Inmu passou de dor a resignação e Rabbaneh
ficou impressionado de testemunhar a transformação do seu tímido e
desafortunado irmão de caminho mais novo em um Coletor de Hananja.
— Meu irmão — murmurou Inmu, estendendo a mão para afagar a
bochecha de Rabbaneh. — Você serviu bem a Hananja. Tenho certeza de
que Ela espera para te dar as boas-vindas. — Ele engoliu em seco. —
Transmita o meu amor ao irmão Sonta-i, por favor.
Ele pousou a ponta dos dedos nas pálpebras de Rabbaneh, que não viu
mais nada na vigília.
42

RETORNO

Viajando com os outros apoiadores na retaguarda do exército, Hanani


entrou em Gujaareh pela primeira vez em um mês. Não parecia nem um
pouco com a mesma Gujaareh que ela deixara para trás.
Ela não podia enxergar por causa da fumaça. Um arsenal kisuati próximo
ao portão oeste fora consumido pelo fogo, a parte de madeira
desmoronando para dentro, só as paredes rebocadas com barro e manchadas
de preto ainda de pé. À distância, ela pôde ouvir gritos, berros, os ocasionais
vivas de uma multidão. Dakha recuou de forma abrupta, sacudindo a cabeça
ao contato com a fumaça e contornando para evitar alguma coisa no chão.
Hanani parou o cavalo e conteve a respiração quando olhou para baixo e
avistou os olhos já sem visão de um soldado kisuati. Era apenas um de várias
centenas de corpos espalhados ao redor da praça do portão.
O banbarrano ao lado dela, um homem da idade de Unte, pôs uma mão
calejada no braço de Hanani e disse algo tranquilizador em chakti. Ele era
um dos artesãos que haviam vindo para ajudar os soldados, algum tipo de
forjador de armas. Ele e vários outros dos homens banbarranos haviam se
mantido protetoramente perto de Hanani ao longo da viagem, embora
nenhum deles fosse guerreiro nem estivesse armado com outra coisa além da
faca-padrão que todos eles pareciam carregar. Ela acenou para ele, grata pelo
consolo, apesar de ter pouco efeito enquanto ela olhava em volta para aquele
pesadelo escabroso que um dia fora chamado de Cidade dos Sonhos.
Mas, à medida que eles avançavam para além do portão e entravam nas
avenidas que os levariam até a metade leste da cidade, Hanani viu com
alívio que a destruição não era tão grande quanto temera. Não havia
nenhum outro prédio em chamas, embora ela visse várias lojas que pareciam
ter sido vandalizadas. A maioria das janelas das casas estava escura, porém
Hanani vislumbrou pessoas nelas, espiando os cavaleiros através das
cortinas. Os mercados não estavam tão pacíficos: havia mais corpos ali e,
quando passaram debaixo de um arco ainda enfeitado com coloridas fitas de
solstício, Hanani viu um soldado kisuati correndo em uma rua paralela. Ele
foi seguindo um instante depois por dez ou quinze jovens gujaareen que
gritavam.
O distrito à margem do rio estava em silêncio quando atravessaram uma
das pontes, o fedor familiar de peixe quase perdido sob o cheiro de fumaça e
cavalos. Quando entraram no distrito dos artesãos, a coluna da frente
diminuiu o ritmo de repente e o grupo de Hanani parava de tempos em
tempos enquanto o exército prosseguia devagar. Só então Hanani percebeu
que o exército devia estar se reunindo na Praça do Hetawa, a única área
aberta nessa parte da cidade grande o suficiente para abrigá-los como um
grupo unido. Com efeito, quando eles entraram na praça, Hanani viu que os
soldados estavam se unindo em grupos organizados, com escudeiros nas
partes mais periféricas e arqueiros nos telhados das casas e prédios mais
próximos. Um punhado de bigas de guerra, ágeis e reluzentes, subiam e
desciam ruidosamente as ruas dos arredores, patrulhando.
Havia pessoas comuns ali também: homens e algumas mulheres de todas
as idades e castas, espreitando nas beiradas do ajuntamento. Hanani
vislumbrou mais gente para além da praça e em aglomerados nas esquinas e
em portas abertas. Um bando de meninos, que mal haviam chegado à idade
da escolha, foi correndo até um dos cavaleiros gujaareen e começou a
implorar em voz alta para se juntar ao exército. Os adultos que Hanani
podia ver estavam mais reticentes, alguns esticando o pescoço para ver
Wanahomen, alguns apontando para os banbarranos. Outros cochichavam
entre si tapando a boca com a mão, os olhos brilhantes com alguma espécie
de entusiasmo e expectativa que Hanani teria achado assustadora pouco
tempo antes. Agora, apesar de ainda perturbá-la, ela entendia o que via nos
olhos das pessoas. Não era diferente da fúria justificada de Mni-inh sempre
que ele sentia que haviam procedido mal com Hanani ou da determinação
que fez Wanahomen atravessar a escravidão e a traição. Não havia paz em
tal arrebatamento e ela sabia com precisão como poderia ser perigoso se
fosse desenfreado, mas tampouco os sentimentos perturbadores em si eram
corruptos. Era tudo uma questão de quando e como eram expressos.
Mas quando Hanani contemplou o arenito do Hetawa outra vez, achou
seu coração cheio de alegria e inquietação. Aqui era o seu lar. Aqui estavam
seus irmãos, sua única família. Será que eles a receberiam de volta, maculada
como estava por juramentos descumpridos e costumes banbarranos? Será
que poderiam curá-la de alguma maneira da dor da morte de Mni-inh e da
vida que ela tirara? Ou será que dariam uma olhada no que ela se tornara,
levantariam as mãos e pediriam aos Coletores que acabassem com o seu
sofrimento?
Uma agitação entre as fileiras de soldados à sua frente a distraiu de seus
pensamentos. Um instante depois, eles abriram caminho e um homem com
roupas banbarranas castanho-claras entrou com o cavalo em seu campo de
visão. Algo familiar na postura de seus ombros lhe revelou quem ele era
mesmo antes que ele a avistasse e parasse.
— Compartilhador-Aprendiz — disse Charris. — O nosso Príncipe
ordena que você venha para que ele possa acompanhá-la até em casa.
Surpresa, Hanani ficou paralisada por uma respiração ou duas. Nunca
lhe ocorrera que Wanahomen pudesse fazer isso naquele momento. Não
houvera nenhuma luta até aquele ponto; suas habilidades como curadora
não haviam sido necessárias. Era isso, então? Ela não tinha mais utilidade e
agora Wanahomen queria se livrar de uma responsabilidade indesejada?
Mas não, ela estava sendo tola. Wanahomen fora até ali, ao Hetawa em
vez do Yanya-iyan; deveria haver alguma razão estratégica para a visita. E
era só uma questão de prudência devolvê-la enquanto podia. Engolindo a
ansiedade, Hanani aquiesceu e impeliu o cavalo a andar com o de Charris.
Em silêncio, Charris conduziu-a pela coluna de guerreiros até chegarem
à frente, ao pé dos degraus do Hetawa. Ela avistou Wanahomen de
imediato, pois ele descartara o lenço e o véu e descera do cavalo. Ele se virou
do escrutínio com que observava a porta de bronze quando Hanani e
Charris se aproximaram; o aceno de saudação dele foi informal, porém
impessoal.
— Obrigado, Charris. Por favor, traga as sacolas dela.
Os olhos dele passaram para Hanani e se demoraram ali por mais um
instante. Ela o viu flexionar um músculo do maxilar; havia uma imensidão
de palavras nos olhos dele. Mas, em vez de dizê-las em voz alta, ele
estendeu uma das mãos para ela e falou apenas:
— Compartilhador-Aprendiz.
Ela foi inexplicavelmente desajeitada ao desmontar do cavalo, levando
duas tentativas para enfim descer da sela. Quando foi até ele, tropeçou,
embora não houvesse obstáculos no chão. Wanahomen deu um passo à
frente e segurou o braço dela, apoiando-a até que conseguisse se firmar.
Quando ela alçou o olhar, ele a estava observando.
— Príncipe… — A garganta dela estava seca; mal conseguiu pronunciar
aquela palavra. O que havia de errado com ela? Não o amava. Ele fora o que
ela precisara, um amigo em um momento de perda, e nada mais. Por que se
sentia pior agora do que se sentira ao deixar Yanassa?
Wanahomen suspirou ao ver a confusão no rosto dela e pôs um dedo nos
lábios da jovem.
— Não diga nada — murmurou ele apenas para os ouvidos dela. — Ou
eu posso ficar com você e vamos ter uma nova guerra nas mãos. — Ele falou
com doçura e sorriu ao falar, mas, pelo mais breve espaço de uma respiração,
Hanani sentiu a tensão no aperto da mão dele em seu braço. De repente ela
entendeu: se pedisse, ele cumpriria o que dissera e ficaria com ela,
independentemente do que pudesse significar para o reino recém-
conquistado.
Era isso o que Yanassa tentara lhe dizer sobre Wanahomen, e não era
nada além do que Hanani vira por conta própria. Não havia meio-termo
com ele. Ele odiava e amava com a mesma ferocidade e podia ser perigoso
em qualquer dos extremos. Não era loucura no sentido habitual, mas era
uma versão menor da mesma insensatez que destruíra o pai dele.
Saber dessas coisas não tornou mais fácil sorrir de volta, como se ele
houvesse realmente feito só uma piada. O lento e resignado esmaecer do
próprio sorriso dele deixou um gostinho de culpa nos lábios dela.
— Me leve para casa, Wanahomen — disse ela. Depois de um longo
instante, ele inclinou a cabeça, soltou-a e virou-se para subir os degraus com
ela. Charris seguiu atrás, carregando os alforjes de Hanani no ombro.
A grande porta de bronze do Hetawa foi destrancada com um som que
ecoou pela praça, abrindo-se para revelar escuridão no interior. Hanani
manteve-se olhando para a frente, a cabeça erguida, embora seu coração
estivesse acelerado e sua mente, vazia. Eles pararam no meio do caminho,
Wanahomen detendo-se para desatar a pesada espada de bronze do quadril.
Pôs a espada no degrau à sua frente, então desatou o cinto e a bainha de sua
faca banbarrana e colocou-os ao lado dela. Erguendo as mãos para que
todos pudessem ver que ele fora ao Hetawa com a reverência apropriada, ele
deu um passo à frente.
Duas flechas saíram zunindo da escuridão da boca do Hetawa. Uma
atingiu o peito de Wanahomen; a outra, a coxa direita.
O choque no rosto de Wanahomen foi total. Correspondia ao horror de
Hanani quando ele deu um passo atrás, cambaleando, depois caiu de joelhos
devagar. Mas foi o grito massivo dos guerreiros e dos cidadãos ao redor que
preencheu o silêncio, e a fúria deles que instantaneamente consumiu a Praça
do Hetawa.

***

Os soldados kisuati haviam tomado o Hetawa de Hananja com uma


facilidade surpreendente. A única resistência veio de um punhado de
Sentinelas que atacou enquanto as forças de Bibiki agrupavam as mais ou
menos cem crianças da Casa no pátio, para de lá serem conduzidas ao Salão
de Bênçãos. Os sacerdotes haviam sido rápidos, silenciosos e totalmente
letais, atacando os soldados e massacrando-os às quadras apesar de os
soldados estarem em uma vantagem numérica de dez para um. As crianças
haviam aplaudido; por algum tempo, parecia que eles poderiam vencer.
Bibiki os detivera com um simples gesto, ordenando que seus arqueiros
mirassem nas crianças amontoadas nas lajotas do pátio. Os Sentinelas
paralisaram. A ordem seguinte de Bibiki voltou as flechas para eles.
Tiaanet, carregando Tantufi, e Insurret estavam entre os kisuati àquela
altura, junto com talvez outros trinta “convidados do Protetorado”. Tiaanet
reconheceu vários dos reféns, mas apenas dois eram de famílias envolvidas
na conspiração: Orenajah, uma anciã zhinha, tia de Iezanem, e Uayad, o
filho de oito anos de Deti-arah. Orenajah estava ereta e irritada, andando
apenas quando os soldados a forçavam. Uayad estava se esforçando muito
para ser corajoso, mas quando os Sentinelas caíram, Tiaanet o viu secar
depressa os olhos com um punho.
Com os Sentinelas mortos, os homens de Bibiki conduziram os reféns
pelo complexo de prédios, com pequenos destacamentos de soldados se
separando para vasculhar cada prédio e capturar ou matar qualquer membro
do templo que encontrassem. Quando chegaram ao Salão de Bênçãos,
descobriram que a maior parte dos Servos havia se reunido ali, já cientes da
invasão.
Não haviam restado lutadores entre os membros do templo a essa altura,
só algumas centenas de Professores de vestimentas marrons e
Compartilhadores de vestimentas vermelhas, junto com acólitos e
aprendizes. Eles estavam calados e vigilantes, estranhamente calmos à
maneira dos de sua espécie, flanqueando a porta em duas fileiras irregulares
quando os soldados de Bibiki entraram. Uma fileira bloqueava os degraus
que levavam à plataforma, de modo que o altar de Hananja não fosse
profanado por homens com intenções nada pacíficas. A outra fileira
bloqueava alas de vultos silenciosos deitados em enxergas, quatro alas
dispostas de um lado do Salão. As vítimas da praga do pesadelo.
Sendo conduzida pelos soldados, Tiaanet parou para olhar para aqueles
que dormiam, então tropeçou e quase caiu quando as pessoas que vinham
atrás trombaram nela. Um velho Compartilhador, pálido na mesma medida
em que Tiaanet era escura, deu um passo à frente, saindo da fileira mais
próxima, para apoiá-la.
— Você está bem? — perguntou ele.
— Estou — respondeu Tiaanet. — Obrigada. — Quando ele não falou
mais nada, ela o fitou e percebeu que ele estava olhando para Tantufi.
— Devo… — começou ele.
— Não — retorquiu Tiaanet, puxando Tantufi para mais perto de si, e
rapidamente seguiu adiante.
Bibiki ordenou aos seus homens que protegessem o Salão, o que fizeram
em um curto espaço de tempo, o grosso dos soldados de infantaria e
arqueiros aglomerando-se em torno da entrada principal para se preparar
contra um ataque. Alguns arqueiros entraram nos corredores do fundo do
Salão e subiram para as sacadas. Ele então ordenou aos reféns que entrassem
nas alcovas de doação, na lateral do Salão de Bênçãos. Os cômodos eram
pequenos e em pouquíssimo tempo as crianças os encheram, deixando a
Tiaanet e aos outros reféns adultos a alternativa de encontrarem lugares de
descanso ao longo das paredes e ao pé das colunas decoradas com vinhas e
flores. Após um longo e contemplativo olhar para os membros do templo e
então para os que dormiam, Bibiki foi para o centro da sala.
— Ninguém fará mal a vocês se cooperarem. — Ele falou em voz alta, já
que o Salão tendia a abafar o som. Tiaanet viu vários dos Servos fazerem
careta diante do volume da voz dele. — A não ser que o povo desta cidade
decida que vocês não são dignos de serem salvos, mas é algo para vocês se
preocuparem, não para mim.
Alguns dos Servos relaxaram ao ouvir isso, mas a maioria permaneceu
rigidamente em silêncio, mais afrontados do que temerosos. Depois de um
instante, um ancião com vestimentas de Professor deu um passo à frente.
— Nós vamos cooperar — disse ele. Talvez para censurar Bibiki pela
altura da voz, ele falou tão baixo que Tiaanet mal conseguiu ouvi-lo. — Se
permitirem, podemos providenciar comida e bebida para os seus homens e
cuidar de qualquer ferimento que possam ter. Sem magia. — Ele olhou em
volta para os que estavam dormindo e soltou um leve suspiro. — Preste
atenção: a nossa magia depende do sono e o sono é perigoso perto dessas
pobres almas. Mas ainda temos a habilidade com as ervas, a cirurgia e um
pouco de alquimia. A única coisa que pedimos é que não cometam mais
nenhum ato de violência neste salão. Estamos diante da imagem de
Hananja, e Hananja estima a paz.
Bibiki o encarou, claramente incrédulo.
— Vocês fomentam uma rebelião manifesta nas ruas, depois nos
oferecem a sua hospitalidade? — Ele chacoalhou a cabeça e suspirou. —
Pode ser que eu jamais entenda vocês. Meus homens não vão comer nem
beber nada das suas mãos e nós não precisamos de nenhuma das suas curas.
Mas, se algum dos reféns precisar, vocês podem cuidar deles.
O Professor inclinou a cabeça e começou a se virar.
— Quanto à violência — continuou Bibiki, antecipando-se a ele —, eu
não prometo nada. Somos soldados e isto é uma guerra. Nós fazemos o que
é preciso.
Houve cochichos de aprovação vindos das bordas da sala. Soldados de
Bibiki, a maioria dos quais observava os membros do templo de maneira
taciturna. O Professor observou Bibiki e os soldados por um longo instante,
a repulsa fazendo-o contorcer o lábio. Então, sem dizer uma palavra, ele se
afastou e começou a conversar com seus confrades.
Exausta, pois não descansara bem na última quadra de dias, Tiaanet
acomodou-se na sombra de um dos pilares, passando Tantufi para o seu colo
para aliviar o peso nos braços e nos ombros. Ela tirara sonecas quando
ousara com Tantufi tão perto, entre ser obrigada a subir em cavalos ou
empurrada para dentro de currais improvisados com os outros reféns.
Ajudava que ela houvesse há muito cultivado a habilidade de perceber
quando Tantufi estava entrando em um sono com sonhos e acordar antes
que sua própria alma pudesse ser apanhada.
Mas, embora o efeito das drogas de costume devesse ter passado dias
antes, Tantufi se mantivera acordada o tempo todo, empregando todos os
pequenos hábitos que cultivara no decorrer dos anos: mexer com frequência
alguma parte do corpo, revirar os olhos, morder a língua e as mãos e
sussurrar para si mesma um interminável falatório monótono. Ela não ia
conseguir continuar daquele jeito para sempre e, de fato, Tiaanet já notara
os sinais de que a menina dormiria logo, quer quisesse, quer não. Seus
movimentos frenéticos estavam ficando mais lentos. Sempre que seus olhos
redondos como a lua fechavam ao piscar, ela demorava cada vez mais para
voltar a abri-los. Com o auxílio brutal dos guardas do pai, Tantufi poderia
viver por mais tempo, mas, em meio à pressão dos últimos dias, com a paz
acalentadora do Hetawa ao redor delas agora, Tiaanet desconfiava que não
demoraria até que Tantufi cedesse.
Insurret se acomodara contra a parede de frente para Tiaanet,
observando-a com olhos brilhantes. A viagem deixara a mãe de Tiaanet
mais lúcida do que estivera em anos, como se as adversidades da viagem
houvessem forçado sua mente a sair de seu infinito circuito fechado de
insensibilidade. Isso não fizera nada para amenizar seu ódio. Mas, para
alívio de Tiaanet, ela não dissera uma palavra desde que os soldados as
haviam levado de sua propriedade nas terras cultiváveis.
— A senhorita quer água? — Um jovem do Hetawa, provavelmente
encarregado da tarefa pelos seus superiores, parou ao lado dela com um
jarrão e uma caneca nas mãos.
— Obrigada — respondeu Tiaanet. O garoto lhe deu a caneca, que
Tiaanet segurou para Tantufi, depois se serviu antes de devolvê-la. — E a
minha mãe — falou Tiaanet, apontando para Insurret do outro lado do
corredor.
O menino aquiesceu, distraído, e Tiaanet viu que ele também estava
olhando para Tantufi. Dirigindo ao garoto um olhar frio, Tiaanet se mexeu
de modo que o rosto de Tantufi ficasse escondido do seu olhar casual. O
menino estremeceu diante da reprimenda silenciosa, fez um aceno de cabeça
sobre a caneca, pedindo desculpas, e virou de costas para oferecer água para
Insurret.
— Isto é inútil — murmurou Orenajah ao lado de Tiaanet. Como os
demais reféns, ela espiara Tantufi com curiosidade no primeiro dia, mas, a
essas alturas, a aparência da criança não a incomodava. — A cidade
enlouqueceu. Ninguém vai se importar que estejam nos prendendo aqui.
Tiaanet sabia que seu pai se importaria, e muito. Ele certamente se
importaria o bastante para oferecer um resgate; ele poderia até se importar o
suficiente para trair seus camaradas e a resistência, embora Tiaanet
desconfiasse que ele não chegaria ao ponto de se incriminar. E outros entre
os conspiradores se importariam que o Hetawa houvesse sido invadido…
tantos que poderiam até retirar seu apoio a Wanahomen, agora que era
essencial que ele tivesse união entre os seus aliados.
— Os kisuati ainda são fortes — pontuou Tiaanet. — Ouvi Bibiki
dizendo aos homens dele que o grosso das forças kisuati recuou para o
Yanya-iyan. Se a aliança do Príncipe for por água abaixo, então os kisuati só
precisam se esforçar um pouco para recuperar o controle. Se matarem o
Príncipe e destruírem o Hetawa, o espírito do povo ficará quebrantado.
Gujaareh será deles outra vez.
Orenajah franziu a testa, pensando no assunto.
— Não me importo muito se eu morrer — comentou ela enfim. — Eu
teria demandado um Coletor em breve mesmo. Mas… — Ela olhou para as
alcovas do outro lado do corredor, onde se podia ouvir crianças chorando.
Tiaanet não pôde deixar de voltar os olhos para as enxergas com as
pessoas adormecidas. Compartilhadores e acólitos andavam entre as fileiras
agora, cuidando delas como deviam ter feito pelos últimos trinta dias; ela
viu alguém colocando uma fralda em uma mulher mais velha do que ela
própria.
— Não importa — murmurou ela, desviando o olhar. Ela já vira vítimas
do poder de Tantufi antes. Não havia nada a fazer por elas, era melhor
considerá-las mortas. — Precisamos pensar em nós mesmas agora.
Logo atrás, ela ouviu a ligeira fungada de Orenajah em reprovação ao
ouvir aquilo, mas a velha mulher não falou mais nada.
— Mamãe — sussurrou Tantufi. Tiaanet olhou para ela; os enormes
olhos injetados de sangue a encaravam, momentaneamente lúcidos. — As
pessoas.
Os adormecidos.
— Shh — disse Tiaanet. — Você está com fome?
Tantufi chacoalhou a cabeça vigorosamente.
— Não não não. — Ela se virou, olhando por cima do ombro de Tiaanet
para as enxergas, o rosto enrijecido em uma angústia palpável. — Tantas,
mamãe.
— Não importa — repetiu Tiaanet. — Nada importa para você além de
mim e nada para mim além de você. Não foi sempre assim? Fique quieta
agora.
Tantufi finalmente ficou em silêncio, reiniciando seus movimentos
frenéticos, mas seus olhos se demoravam sobre os que dormiam e de vez em
quando ela soltava um leve barulhinho aflautado de desespero. Do outro
lado do corredor, Insurret deu uma ligeira fungada desdenhosa, mas fora
isso continuou calada, e então Tiaanet a ignorou.
Um silêncio relativo recaiu sobre o Hetawa enquanto eles esperavam…
pelo que, Tiaanet não sabia. Outro acólito passou, este carregando fatias de
pão sírio; ao que parecia, Bibiki estava permitindo que alguns membros do
templo fossem aos depósitos sob vigia. Tiaanet pegou um pedaço de pão
mais para se manter acordada do que por fome de fato e insistiu que Tantufi
comesse pelo mesmo motivo. A menina começara a ficar parada por breves
períodos, outro sinal de sono iminente.
Mas, antes que Tiaanet conseguisse fazer Tantufi comer, ela se
sobressaltou quando um dos soldados perto da porta principal do Hetawa
deu um grito abrupto:
— Capitão!
Bibiki, conversando em um canto com alguns de seus soldados,
imediatamente foi até a porta para ver qual era o problema. Não houve mais
nada por algum tempo. Tiaanet comeu e alimentou Tantufi, mastigando um
pouco de pão para ela, uma vez que os dentes da criança estavam moles.
Mas por fim ficou claro que havia algo acontecendo lá fora. Os soldados
estavam mais vigilantes, aglomerando-se na porta e nas janelas frontais com
armas em punho. A tensão deles perturbava o ar de paz do Salão.
— Eu não acredito nisso — Tiaanet ouviu Bibiki murmurar de repente,
e ele riu. — Ora, ora, talvez esta bagunça acabe mais cedo do que eu pensei.
Vejamos se podemos levá-lo com vida.
Os homens se moviam rápido, embora Tiaanet não conseguisse ver o
que estavam fazendo nem por quê. Então ela ouviu o intenso rangido do
bronze da porta do Hetawa se abrindo.
Os Servos em toda parte do Salão ficaram tensos de pronto.
— Eles estão sacando as armas — falou um Compartilhador em um
sussurro audível e exasperado. Ele cerrou os punhos. — Armas!
— Paz — aconselhou um Professor próximo a ele, mas não parecia mais
feliz quanto ao que estava acontecendo.
Então a voz de Bibiki gritou “agora!” e Tiaanet ouviu o sibilo vibrante de
flechas. Um grande bramido ecoou no Salão, mil vozes de homens
zangados, e vozes de mulheres e anciãos e crianças também. Sobressaindo-
se àquele alarido, ela ouviu Bibiki gritar:
— Atirem na primeira linha! Façam-nos recuar! Vocês quatro, vão e
peguem-no. Depressa. O resto de vocês, deem cobertura!
Houve um grande fluxo de atividade na entrada do Hetawa antes que a
porta se fechasse com um rangido um instante mais tarde. E então um
grupo de homens de Bibiki veio correndo para o centro do salão, um deles
puxando uma mulher com vestimenta bárbara que se debatia com violência
nas mãos dele. Um soldado kisuati arrastava outro banbarrano, mas mesmo
de onde estava Tiaanet podia ver que esse homem estava morto: uma única
flecha atravessara-lhe a garganta. Começou a se acumular sangue ao redor
dele assim que o deixaram cair no chão.
A terceira figura que arrastavam consigo também sangrava, mas xingou e
se debateu quando o deixaram cair no chão. Wanahomen.
— Cuide do seu filhote de cobra, filha. — A voz de Insurret trouxe
Tiaanet de volta para os seus próprios problemas. Insurret estava sorrindo.
Ela apontou para os braços de Tiaanet. Com uma brusca pontada de
alarme, Tiaanet percebeu que o corpo de Tantufi ficara mole, os olhos
estavam fechados e a boca, aberta.
— Não… — Imediatamente, Tiaanet a chacoalhou o mais forte que se
atreveu, mas não o suficiente para machucá-la. Os olhos de Tantufi,
vidrados e vagos, abriram um pouco, mas voltaram a se fechar quase em
seguida. — Tufi, acorde. Você não deve dormir, não agora.
Não em um cômodo cheio de pessoas adormecidas, as almas já
enfraquecidas pelo longo cativeiro. Não no coração do Hetawa, cercada por
narcomancistas que reconheceriam Tantufi de pronto pelo que ela era.
Mas era tarde demais. Tiaanet chacoalhou-a de novo, deu um tapinha
nela, até ergueu uma das mãos e cravou os dentes sobre uma das cicatrizes
recentes, mas Tantufi não se mexeu. Era sempre assim quando ela enfim
dormia: se não fosse acordada no mesmo instante, seu corpo exigia
recompensa pelos dias de abuso. Nada menos que uma surra a acordaria
nesse ponto.
O que deixou Tiaanet impotente e aterrorizada enquanto a filha
suspirava, aninhava-se mais perto do peito dela e silenciosamente começava
a sonhar.
43

A BATALHA DA CARNE

Wanahomen não parava de se debater sob as mãos de Hanani.


— Filhos de uns chacais comedores de merda rastejantes surgidos das
sombras! — Ele afastou as mãos dela quando ela tentou examinar a flecha
em seu peito, lançando olhares furiosos para os soldados kisuati
aglomerados ao redor deles e tentando se sentar. — Vocês não têm honra
nenhuma? Por profanar o Hetawa, vocês deveriam sofrer a ira de todos os
deuses…
O grupo abriu caminho e um homem kisuati, com um manto de pele de
leopardo preta e um ar de comando, veio espiá-los.
— É muito provável que isso aconteça, Príncipe — comentou ele em um
gujaareen com forte sotaque. — Mas, quando eu sofrer, vou me contentar
com o fato de que, pelo menos durante algum tempo, fui considerado um
herói pelo meu povo por capturar você. Você — e olhou de maneira brusca
para Hanani. — Você é alguma espécie de curadora ou só a esposa dele?
O ferimento na perna de Wanahomen estava sangrando demais. A
flecha no peito dele talvez houvesse penetrado fundo o bastante para
perfurar o pulmão, mas a coxa era mais perigosa em curto prazo.
— Sou Compartilhador-Aprendiz deste Hetawa — respondeu ela para o
kisuati, agarrando com força a roupa de Wanahomen e rasgando-a para
poder ver o ferimento. — Emprestado ao Príncipe em sinal da nossa
aliança.
Ela ouviu, em vez de ver, a surpresa do comandante kisuati.
— Entendo. Pois bem… já que esse é o seu propósito, mantenha-o vivo.
Vou mandar alguém lá fora para dizer para as tropas dele que ele vai morrer
se tentarem derrubar a porta.
— Me manter vivo para vocês poderem me executar. — Wanahomen
deu uma risada amarga, depois se contraiu com a dor no peito.
— Certo, certo, como quiser — retrucou Hanani, impaciente com os
dois homens. Ameaças desnecessárias e resistência sem sentido. Ela não
tinha tempo para a presunção bárbara deles. Atrás dos soldados, ela podia
ver alguns dos membros do templo se reunindo e, entre eles, um rosto
familiar. — Nhen-ne-verra-irmão!
Nhen-ne-verra sobressaltou-se, depois deu um passo à frente.
— Pois não…? — Ele arregalou os olhos, só então a reconhecendo. —
Hanani?
— Acho que esta flecha cortou a grande artéria da perna dele — disse
ela. Então se sentou e desafivelou uma das cintas que Yanassa lhe dera,
aquela que devia carregar as provas de afeição dos seus amantes. Tirou-a e
colocou-a ao redor da coxa de Wanahomen, acima da flecha. — Eu posso
fazer a cura, mas não me atrevo a puxar a flecha ainda. Pode ser a única
coisa impedindo o jorro…
A moça parou de falar quando um dos soldados se moveu para o lado e
ela viu Charris, ainda carregando os alforjes dela, virado para baixo em uma
poça de sangue. Alguém retirara a flecha dele, mas ele não se mexia.
— Charris! — Wanahomen tentou levantar-se; um dos soldados apontou
uma espada para a garganta dele e ele soltou uma série de injúrias
banbarranas. — Hanani… — Ele se virou para ela, os olhos arregalados de
medo. — Ajude-o. Por favor.
Havia demasiado sangue em volta de Charris. Hanani concentrou-se em
apertar o torniquete em volta da coxa de Wanahomen para demorar mais
um instante para lhe contar a verdade. Mas Nhen-ne-verra agachou-se ao
lado dela.
— Um dos nossos acólitos está cuidando dele, Príncipe.
Um menino quase com idade suficiente para ser aprendiz se agachara ao
lado de Charris. O exame dele levou apenas um momento; o olhar no rosto
do garoto foi confirmação suficiente.
— Não — sussurrou Wanahomen, e então emitiu um som que era meio
um gemido, meio um soluço. — Pelos deuses, não.
Hanani obrigou-se a se concentrar no ferimento. Haveria tempo para
consolá-lo mais tarde.
— Acho que tivemos um pouco de sorte — comentou ela com Nhen-
ne-verra. — A flecha no peito talvez não tenha perfurado o pulmão. Não
consigo ouvir nenhum ar e a respiração dele não parece prejudicada.
Nhen-ne-verra passou a rasgar a roupa em torno da flecha no peito para
olhar mais de perto.
— Ah, sim… ela se alojou entre as costelas, o ferimento atingiu só a
carne. Um momento. — Ele tirou a flecha do peito de Wanahomen. O
Príncipe gritou, depois olhou feio para Nhen-ne-verra em pura afronta.
Hanani quase sorriu. Se raiva e orgulho por si só pudessem sustentar um
homem, Wanahomen se recuperaria dentro de um dia.
— Se cuidar da perna dele, Irmão, e tirar a flecha quando parecer
apropriado… — Ela estendeu a mão em direção aos olhos de Wanahomen.
Mas Nhen-ne-verra segurou seu pulso bruscamente.
— Você não pode curá-lo — declarou ele. — Não com magia, não aqui.
Ele fez um gesto apontando o Salão, onde Hanani enfim notou as fileiras
de vultos adormecidos.
— E um número maior de mortos — explicou Nhen-ne-verra quando
ela conteve a respiração, horrorizada. — A cada poucos dias, algo os
arrebata como uma inundação. Esses são apenas os novos que foram
trazidos desde a última eliminação. Não podemos fazer nada para salvá-los,
nem para salvar ninguém, já que o sono de cura é suficientemente parecido
com o sono verdadeiro para… Bom. — Ele baixou os olhos.
Totalmente desorientada por essa reviravolta, Hanani olhou para
Wanahomen, que esmorecera um pouco. Ele estava ofegando após a retirada
da flecha. As gotas de suor na testa dele a tiraram do seu atordoamento.
— Nos meus alforjes, aqueles que o homem estava carregando — falou
ela para o acólito que cuidara de Charris e que agora pairava ali por perto.
— Meus ornamentos estão lá. Por favor, faça os preparativos para o ritual de
cirurgia. — O jovem pareceu surpreso pelo espaço de uma respiração, mas
então foi imediatamente até o corpo de Charris para vasculhar em busca das
ferramentas dela.
— Hanani… — Nhen-ne-verra chacoalhou a cabeça. — Você tem
sangue onírico para aliviar a dor dele? Com os Coletores presos, não sobrou
quase nada entre nós. Se ele desmaiar, os pesadelos vão tomar conta dele.
— Se eu não fizer nada, ele vai sangrar até a morte — replicou ela,
esforçando-se para se manter respeitosa. Claro que ela entendia o perigo.
Será que ele a achava uma tola? Mas achava, ela percebia agora… assim
como muitos dos Compartilhadores plenos, que muitas vezes haviam falado
com ela como se ainda fosse uma acólita ou particularmente burra muito
depois de ter provado ser igual aos outros aprendizes. Ela achara que havia
se acostumado à desconsideração casual deles. O que mudara tanto no
último mês que ela não tinha mais paciência para isso?
— E você não pode usar magia para limpar o corpo dele — continuou
Nhen-ne-verra. Dando um sermão. — Quando o ferimento absorve
veneno…
— Eu aceitaria qualquer sugestão alternativa, Irmão. — Ela olhou nos
olhos dele, sabendo que ele não tinha nenhuma. Finalmente, Nhen-ne-
verra desviou o olhar e chacoalhou a cabeça.
Hanani fitou o rosto de Wanahomen. Ele se acalmara depois da flecha e
agora a observava. De repente, ela se lembrou da noite em que ele a abraçara
enquanto chorava a perda de Mni-inh e foi dominada por um medo intenso
e doloroso. Era uma coisa perder Wanahomen para o trono e para o dever
dela; era outra coisa completamente diferente perdê-lo para a morte.
— Você é forte, Príncipe — disse ela, estendendo a mão para tocar os
lábios dele. Havia sangue dele no dedo dela. O toque deixou uma mancha
semelhante à tintura de lábios banbarrana. — Você sobreviveu a coisas
demais para fraquejar aqui e agora.
Wanahomen ergueu as sobrancelhas, surpreso com o gesto dela. Só mais
tarde ocorreu a Hanani que ela nunca lhe fizera nada carinhoso antes.
Talvez o agradasse.
— Claro que eu não vou morrer — retorquiu ele, e ela ficou animada
com o desdém no tom de voz dele. — Ande logo e me faça ficar bem.
Hanani aquiesceu, depois se levantou.
Suas vestimentas banbarranas — largas e imundas com a poeira da
viagem e o suor do cavalo — eram totalmente inadequadas para a cirurgia.
Ela tirou a última túnica e a jogou de lado, depois a combinação larga que
colocara por baixo. Deixara de usar as faixas para os seios desde a primeira
visita de Wanahomen porque eram um incômodo quando ela queria sexo. A
tira de couro banbarrana para os seios, porém, irritava sua pele e, não tendo
encontrado nenhum substituto adequado, ela finalmente optou por não usar
nada debaixo da combinação. Nhen-ne-verra ficou vermelho como acontece
aos homens pálidos, mas, depois de um único olhar chocado para os seios
dela, virou o rosto e não falou nada, sabendo, assim como ela, que aquele
não era o momento para se preocupar com o decoro.
O acólito voltou, trazendo os ornamentos de Hanani e um jarro de água,
seguido de perto por outro jovem que carregava a grande bacia de cera
vermelha aquecida que ficava em uma das câmaras de oração para o ritual de
cirurgia. Se algum dos garotos ficara impressionado com os seios de Hanani,
nenhum deles foi tolo o bastante para demonstrá-lo.
— Podemos auxiliar, Compartilhador-Aprendiz? — perguntou o
primeiro menino.
Hanani piscou, surpresa. Ela jamais esperara que outro acólito a servisse
depois de Dayu, muito menos dois. Ah, mas estava claro: cirurgias eram
raras e eles poderiam nunca mais ter outra chance de testemunhar uma.
— Vocês podem auxiliar — respondeu ela. — Segurem a bacia. —
Preparando-se, pois a cera ainda estava quente o bastante para queimar, ela
enfiou as mãos no recipiente. A cera era de abelha (que diziam prevenir as
pústulas, assim como o mel), misturada com fibra de hekeh e ervas
conhecidas por ajudar na cura. Ela mergulhou as mãos quatro vezes,
sussurrando uma invocação à Deusa depois de cada vez, e, após o quarto
mergulho, ergueu as mãos. A cera as revestiu até a metade do antebraço com
luvas finas e flexíveis.
Enquanto Nhen-ne-verra se aproximou para mergulhar as mãos dele, o
outro acólito estendeu os ornamentos dela em uma almofada de couro e ela
viu que ele as havia polido com uma pomada acerada de acácia e disposto na
ordem apropriada. Quando Hanani fez um aceno de aprovação, o sorriso
satisfeito do garoto a fez lembrar, por um momento chocante, de
Dayuhotem. Mas ela deixou a lembrança de lado, pegou a comprida faca de
opala branca fina como uma lasca e agachou-se ao lado de Wanahomen.
— Quer alguma coisa para morder, Príncipe?
Ele estava olhando para o teto, respirando fundo.
— De que vai servir? Apenas vá em frente.
Hanani aquiesceu, depois inclinou-se para a frente e fez um corte rápido,
até a profundidade do osso, com a faca de opala de cada lado da flecha. A
fina espessura da faca a fazia atravessar pele e músculo tão fácil como
manteiga. Infelizmente, a manteiga não sentia dor, ao passo que
Wanahomen conteve a respiração e ficou enrijecido de pura agonia. Ele
conseguiu não emitir nenhum som quando Hanani colocou a faca de opala
de volta na almofada e abriu o ferimento com os dedos, embora respirasse
com muita força e cerrasse as mãos em punhos trêmulos.
Era difícil ver com aquele sangue jorrando, mas o estrago na grande
artéria estava claro o bastante: a flecha triturou e furou a parte externa. Isso
também era sorte, pois a ponta da flecha bloqueava a maior parte do buraco
que criara, caso contrário ele já teria se esvaído em sangue.
— Jade — pediu ela, e o acólito rapidamente lhe ofereceu uma agulha
fina e curva com fibras de tendão seco de cavalo. — Nhen-ne-verra-irmão.
— Nhen-ne-verra segurou a flecha. Quando Hanani acenou, ele a puxou. O
sangue jorrou de imediato, uma pequena fonte que teria sido muito pior não
fosse o torniquete. Tão rápido quanto pôde, Hanani passou a agulha de um
lado para o outro da artéria várias vezes e apertou o tendão. Isso fez o jorro
parar, mas não os vazamentos menores…
— Hanani. — A urgência no tom de Nhen-ne-verra a alertou. Ela alçou
o olhar e viu as pálpebras de Wanahomen bruxuleando, os olhos revirando.
— Príncipe — chamou ela, tornando sua voz penetrante. — Wanahomen.
— Ele piscou várias vezes, conseguindo enfim se concentrar nela, embora
ficasse claro que exigia um esforço. — Quer saber o que Yanassa me contou
sobre você?
Isso o fez acordar, embora ele gemesse de leve.
— E-ela te contou…?
Mudando para a minúscula agulha de pedra da noite, Hanani trabalhava
rápido para fechar os vazamentos, acenando para um dos acólitos para
derramar um pouco de água salgada no ferimento para que ela pudesse ver.
Wanahomen soltou um grito abafado, retesando-se outra vez e ofegando
entredentes.
— Ah, muitos segredos — continuou ela para distraí-lo. — Ela falou
que você chamou pela sua mãe uma vez no clímax e a sua mãe gritou de
volta pela parede da tenda para você gritar algum outro nome e parar de
deixá-la constrangida.
Nhen-ne-verra estava esperando, a mão no torniquete. Assim que
apertou o fio da última sutura, Hanani fez um sinal. Nhen-ne-verra
afrouxou o cinto. O ferimento se encheu de sangue quase de pronto, mas a
maior parte era do corte que Hanani fizera para abrir a ferida, não da
grande veia. Com sorte, isso significava que ele não teria gangrena no
membro. Hanani soltou o ar, aliviada; Nhen-ne-verra fez um aceno de
aprovação. Pegando o jade outra vez, Hanani rapidamente começou a
costurar o músculo.
— E-ela… não te falou… nada desse tipo — contestou Wanahomen
entredentes. Uma das mãos dele abria e fechava convulsivamente a cada
pontada da agulha. — Você é… ah, pelos deuses, pelos deuses…! a
mentirosa mais incompetente que eu já vi.
A pele foi mais fácil de suturar e a parte que causou mais dor. Hanani
trabalhava o mais rápido que podia, mas Wanahomen estremecia a cada
mergulho da agulha, virando a cabeça de um lado para o outro e arfando
como um fole. Quando ela enfim terminou, o corpo dele estava banhado em
suor e a poça de sangue debaixo da perna dele havia ensopado as saias de
Hanani dos joelhos aos tornozelos.
— O ferimento precisa de bandagem — declarou Hanani por fim,
recostando-se com um suspiro —, mas está feito. — Nhen-ne-verra
também parecia aliviado, e só então Hanani se deu conta de que ele estava
quase tão tenso quanto Wanahomen. Era instinto do Compartilhador atacar
a dor, não a infligir.
No entanto, Wanahomen estava quieto e Hanani olhou para ele,
receando que houvesse desmaiado. Ele estava desperto, embora olhasse para
alguma outra coisa através das colunas, a testa franzida expressando
confusão. Hanani seguiu o olhar dele e viu uma mulher jovem, alta e magra
como os shunha ou os kisuati, sentada contra a parede oposta com uma
criança de membros finos nos braços. Ela estava chacoalhando a criança,
murmurando palavras ternas para acordá-la, mas a criança pendia com o
corpo mole.
— Pegue bandagens — pediu Hanani, distraída, e um dos acólitos de
imediato saiu correndo para obedecê-la, indo aos compartimentos entre as
alcovas onde estavam guardados os apetrechos de cura. — Nhen-ne-verra-
irmão, aquela mulher…
Nhen-ne-verra olhou.
— É, eu as vi quando entraram. A criança tem algum tipo de doença
debilitante. Eu me ofereci para examiná-la, mas a mulher… Bem, elas são
shunha.
— Tiaanet? — disse Wanahomen de repente. A fala dele estava
arrastada; a força que o sustentara durante a cirurgia estava desvanecendo.
— T-Tiaanet?
Para além das colunas, a mulher alçou os olhos. Hanani viu que ela era
incrivelmente bela, embora uma profunda ansiedade desfigurasse suas
feições agora. Ela fitou Wanahomen por um momento, mas depois desviou
o olhar e voltou a chacoalhar a criança em seus braços.
— Eu posso enfaixar isto, se você quiser vê-la — ofereceu Nhen-ne-
verra.
Hanani aquiesceu e levantou-se. Ela era uma visão e tanto com as saias
empapadas de sangue do joelho para baixo; sua própria vestimenta
vermelha, pensou com tristeza. Mas tirou a cera das mãos e as deu para o
acólito que esperava, então foi até a mulher.
— Com licença — disse ela. A mulher levantou a cabeça, os olhos
arregalados com um protecionismo tenso e irritadiço que fez Hanani parar
onde estava. Pairando sobre elas, Hanani pôde ver o que Nhen-ne-verra
quisera dizer: a criança estava claramente enferma, embora com nenhuma
doença que Hanani pudesse reconhecer. A menina era quase careca e,
embora Hanani presumisse pelo tamanho que ela houvesse visto cinco ou
seis inundações do rio, sua pele era fina como papel, com a textura tão tênue
quanto a de uma velha. Seus ossos ressaíam de forma tão evidente que
Hanani podia ver os pontos onde alguns deles haviam sido quebrados no
passado, depois haviam sarado tortos, ou embolados. Era igualmente óbvio
que a criança nunca fora bem alimentada.
Tudo isso era perturbador o bastante por si só. Mas, pior ainda, a criança
estava dormindo.
Forçando-se a desviar os olhos da aparência da criança, Hanani se
concentrou na… mãe? Irmã? Mãe, ela decidiu por instinto.
— Se quiser, podemos cuidar dela para você — propôs ela à mulher.
— Ela está bem — retrucou a mulher.
Hanani chacoalhou a cabeça devagar.
— Essa doença tem a ver com magia — explicou ela. — A sua filha não
vai acordar por conta própria. Mas podemos pelo menos deixá-la mais
confortável. — Ela fez um gesto, apontando para os outros que dormiam.
A menininha gemeu então, contorcendo o rosto durante o sono, de
modo que pareceu mais velha. Todo o corpo dela ficou tenso, frágil como
era, e ela virou a cabeça como Wanahomen fizera, reagindo a algum
tormento interior. Um pesadelo. Hanani desviou o olhar. Fora assim que
Mni-inh morrera.
Mas um som, sussurrando pelo Hetawa como um vento, tirou-a daquele
estado de melancolia. Ela se virou, confusa, e percebeu: os adormecidos.
Alguns deles estavam se agitando enquanto dormiam, gemendo como a
garotinha acabara de fazer. O som era a voz massiva do sofrimento deles.
— Ah, Deusa, nos proteja. — Nhen-ne-verra se pôs de pé, cerrando os
punhos revestidos de cera. — Por favor, outra vez não.
Os soldados kisuati ficaram igualmente nervosos, alguns deles erguendo
as armas. Hanani viu o comandante deles vir para o centro do salão,
franzindo a testa ao olhar para os dormentes, subitamente agitados.
— O quê? — começou Hanani, mas de repente entendeu. Nhen-ne-
verra falara de algo que perpassava os adormecidos de tempos em tempos.
Agora ela via que era um pesadelo: o mesmo pesadelo, atacando todos ao
mesmo tempo.
Mas…
— Nãonãonãonão — choramingou a criança durante o sono. — Nãonão,
papai.
Um instante depois:
— Não! — gritou uma mulher ali perto, suas palavras enroladas por
causa do sono, mas inteligíveis. — Não, pai, por favor!
Um idoso soltou um gemido fraco e trêmulo.
— Meu pai, eu imploro… não, não…
— Não — lamuriou outro homem, um sujeito corpulento que tinha a
aparência de um soldado ou guarda. — Não, pelos deuses, por favor… não!
— A última parte foi arrancada de dentro dele, um grito assustado e aflito.
Ele abriu os olhos quando arqueou para cima, sem ver nada. Um dos
Compartilhadores que estivera cuidando dos dormentes foi correndo até ele,
mas antes que pudesse chegar lá, o guerreiro arquejou e agarrou o próprio
peito. Um tremor violento perpassou seu corpo e, um instante depois, ele se
deixou cair, revirando os olhos. O Compartilhador agachou-se e o
examinou, depois gemeu em um eco da própria angústia do adormecido.
A nuca de Hanani ficou arrepiada. Ela se virou lentamente de volta para
a mulher e a estranha criança.
A mulher — Tiaanet, Wanahomen a chamara — estava observando
Hanani, agachada e tensa como um animal selvagem. No interminável
espaço de uma respiração que se passou, Hanani de repente entendeu o que
estava acontecendo e o que a criança tinha a ver com aquilo. Naquele
mesmo instante, a mulher viu que Hanani sabia.
A criança se retesou nos braços dela, sufocando um grito. Um intervalo
de respiração depois, todos os dormentes gritaram, alguns gritando com
toda a força. Como se isso houvesse sido um gatilho, a mulher saiu em
disparada, levantando-se de um pulo e esbarrando em Hanani de propósito
com a criança nos braços. Hanani caiu no chão e a mulher passou por ela
correndo para a parte de trás do Salão de Bênçãos.
Os soldados kisuati, distraídos pelos dormentes que gritavam, não
reagiram à mulher em fuga no início. Hanani levantou-se aos tropeções e
deu um grito de alerta, mas ele se perdeu em meio a tantas vozes altas. Só
quando os gritos começaram a diminuir, alguns cessando com uma sinistra
brusquidão, foi que Hanani conseguiu se fazer ouvir.
— Meus irmãos, aquela criança! — Ela apontou para a mulher. —
Aquela criança é a fonte do sonho!
Os soldados finalmente notaram, mas nenhum deles estava perto de
Tiaanet. Os membros do templo reagiram mais rápido, alguns arquejando e
começando a correr atrás da mulher de pronto. A mulher passou apressada
pela porta de pesadas cortinas que conduzia ao interior do Hetawa.
O comandante kisuati soltou um xingamento claro e gritou alguma coisa
por cima do barulho dos adormecidos. Quatro soldados imediatamente
pularam e foram atrás da mulher. Houve um tumulto à porta quando os
soldados gritaram com três Compartilhadores que também estavam
correndo para seguir a mulher. Hanani queria ir também, mas o dever a
impediu: até que Wanahomen estivesse saudável, ela não tinha por que
deixá-lo. Então voltou para o lado de Wanahomen e ajoelhou-se, tomando
sua mão.
— Tiaanet — murmurou ele. — Aquela era Tiaanet. Tenho certeza. —
Ele franziu a testa, parecendo preocupado. — Ela me viu. Por que ela
não…?
— Ela temia pela filha, eu acho, seja ela quem for — opinou Hanani.
Um dos acólitos limpara o sangue derramado e estava enfaixando a perna de
Wanahomen. O outro estava colocando uma almofada de couro e ervas
sobre o ferimento do peito. Hanani fez um aceno de aprovação para os
garotos, que responderam ao aceno dela com grande seriedade. — Apesar
de que, se aquela criança for realmente a fonte do pesadelo que matou tanta
gente, isso explica muita coisa. Você a conhece?
Wanahomen suspirou devagar. Hanani estava preocupada com o fato de
que ele ainda estava suando e agora tremia de leve. Ela tocou o menino que
estava aplicando o cataplasma e fez um sinal para ele ir buscar água e um
cobertor.
— Shunha. O pai dela… um dos meus aliados. Eu esperava… — Ele
franziu ainda mais a testa. — A filha dela, você disse?
— Acredito que sim. — Ela parou então, surpresa, quando alguém abriu
caminho rapidamente pelo aglomerado ao redor de Wanahomen: o
Professor Yehamwy.
— Aprendiz, o que você viu? Tem certeza sobre a criança?
Hanani piscou, tão desconcertada pelo surgimento do Conselheiro
quanto pelas perguntas. Yehamwy parecia abatido e profundamente
cansado, como se não houvesse dormido bem em dias… como talvez fosse o
caso. Mas havia uma intensidade febril em sua expressão agora que a deixou
nervosa.
— Não, não tenho certeza — respondeu ela. — Mas me pareceu que os
adormecidos estavam reagindo aos sonhos da criança. — Hesitante, ela
acrescentou: — O Príncipe disse que a mulher é Tiaanet, da casta shunha.
A criança é filha dela.
Yehamwy conteve a respiração e se virou para outro Professor que
Hanani não conhecia. O Professor deu um aceno sombrio e falou:
— A linhagem de Insurret. Era uma das linhagens maternas que
pretendíamos investigar.
— Ela é uma cobra — disse uma voz entre as colunas, e todos eles se
viraram para ver uma mulher de meia idade agachada contra a parede mais
distante. A semelhança entre ela e Tiaanet foi identificada de imediato,
assim como o brilho de loucura em seus olhos. — Sempre silvando, silvando
na minha mente, pior quando eu dormia. Eu sabia que ela era veneno
mesmo quando estava no meu ventre. Mal podia esperar para me afastar
dela. Agora ela deu à luz a própria filha-serpente, e que a menina a mate.
Que a menina a mate!
Yehamwy olhou para o outro Professor.
— Insurret?
— É o que parece.
Yehamwy respirou fundo e aproximou-se da mulher, agachando-se
diante dela.
— Meus cumprimentos, lady Insurret — começou ele. — Me diga: o
que quis dizer quando falou que a sua filha “silvava na sua mente”?
Insurret ficou mal-humorada de repente.
— Por que está perguntando sobre ela? Todo mundo pergunta sobre ela.
Todo mundo quer a ela, não a mim.
Yehamwy pareceu inquieto, sem dúvida desejando poder chamar um
Compartilhador para curar a loucura da mulher. Mas ele se inclinou para a
frente, falando com urgência.
— Precisamos encontrá-la, senhora. Se o que acreditamos é verdade, ela
e a S… Ela e a filha dela podem ter a chave para salvar muitas vidas.
— Então você também a quer. — A pura mordacidade na voz de
Insurret fez um calafrio percorrer a espinha de Hanani. Se ela não houvesse
visto loucura nos olhos da mulher antes disso, teria sabido que era louca
pelo tom. — Fique com ela então, se quiser; eu não me importo. Ela veio
chorando me procurar, veio sim, veio chorando contar que o pai dela… O
pai dela… — Insurret começou a balançar para a frente e para trás,
contorcendo o rosto. Depois de um instante, ela se calou, esfregando as
mãos nos joelhos. De repente, chacoalhou a cabeça. — Vadia peçonhenta e
mentirosa! Se ele fez aquilo, foi culpa dela. Culpa dela!
Yehamwy recuou, seu rosto refletindo os mesmos choque e repulsa que
Hanani sentia. Então ele claramente se preparou e tentou de novo.
— Seja como for, senhora, precisamos entender a doença que aflige a
filha dela. A senhora nos conta, por favor? A criança consegue libertar as
pessoas que captura no sonho?
— Por que está perguntando sobre ela? — Insurret olhou feio para ele.
— Aquela abominação deveria ter sido estrangulada quando nasceu. Mas ele
sempre, sempre faz o que ela quer. “Me deixe ficar com a menina”, ela diz, e
ele faz a vontade dela sempre, uma garota tão bonita, tão mais bonita do que
eu, a criança é o fardo dela então por que eu deveria me preocupar com aquele
demônio filho de uma vadia?
E, antes que Yehamwy pudesse reagir, Insurret se levantou e o empurrou.
Com um grito assustado, Yehamwy tentou se erguer e cambaleou para trás
e, apesar de ver o que estava por vir, Hanani não conseguiu reagir rápido o
bastante para evitar. Debatendo os braços, Yehamwy caiu em cima das
pernas de Wanahomen.
Wanahomen gritou, retesando-se de agonia, e antes que o último fôlego
deixasse seus pulmões, seus olhos reviraram, as pálpebras se fechando.
— Não! — Sem qualquer consideração pelo decoro, Hanani empurrou
Yehamwy, mas já era tarde demais. Havia adormecidos por toda parte, os
sobreviventes ainda gemendo e debatendo-se. Wanahomen cairia direto no
pior dos horrores.
E Hanani perderia mais uma pessoa com quem se importava para aquele
sonho amaldiçoado pela Deusa.
Não, não vou.
Sem pensar duas vezes, Hanani pôs os dedos nas pálpebras de
Wanahomen e mergulhou no pesadelo.
44

A BATALHA DA ALMA

O mundo era feito de vermelho e ossos. Rolando enquanto caía, gritando, o


homem que fora Wanahomen se viu reduzido a um zé-ninguém. A
lembrança da vigília ainda estava dentro dele, embora distante e esmaecida,
como acontece com a infância. Ele não era mais um príncipe. O mundo
vermelho o reconstruíra. Aqui ele era uma coisa fraca, a mais baixa em uma
hierarquia incomensurável, e sabia sem sombra de dúvida que não havia
esperança para a sua sobrevivência, pois este não era o espelho imperfeito do
reino intermediário, tampouco a sombra necessária da alma brilhante de
Hananja. Este era outro lugar completamente diferente, o lugar de outra
pessoa e, ali dentro, esperança era uma palavra sem sentido.
Ele não apenas pousou, mas atolou. O vermelho era espesso e coagulado
em algumas partes, não era sólido o bastante para se firmar sobre ele, mas o
suficiente para rastejar. Então o rapaz rastejou, sujo até o pescoço com uma
imundície quente e aromática, os braços e as pernas se esforçando para abrir
caminho entre ossos que não faziam sentido: massas emendadas e
indefiníveis. E ele chorou, pois seu coração estava cheio de um desespero
tamanho que jamais conhecera no reino da vigília. Estava sozinho. Sentia-se
tão fraco. E logo — o sabor da iminência era como o de maçãs amargas em
sua língua, ou talvez fosse a lama — ele encontraria o mestre desse reino.
Durante estações intermináveis, o homem lutou. Quando a luz e o calor
arderam do alto em sua direção, achou que era a morte que enfim chegara e
parte dele se regozijou. Mas o fogo que queimava através do vermelho tinha
uma limpeza que ele soube instintivamente que não era daquele lugar. De
onde viera? Ele não sabia, mas sentia apenas uma inveja débil… até que o
fogo o envolveu e o libertou da lama.
— Este lugar assola a alma — disse uma voz familiar, feminina. Quem
era ela? Ele não sabia, mas agarrou-se à sua presença brilhante e amorfa,
pateticamente grato por não estar mais sozinho. — Nunca vi uma
idealização tão sórdida! Proteja-se, Príncipe.
Ele não entendia do que, ou de quem, ela estava falando em princípio.
Seria ele o “Príncipe”? E o que era uma idealização?
Mas então uma grande agitação pulsante convulsionou o vermelho e os
ossos abaixo deles se elevaram quando uma grande massa saiu rastejando de
dentro da paisagem. Ela tinha um formato longo e sinuoso como uma
cobra, se as cobras chegassem a ter a espessura de um rio. Por sua extensão
surgiam membros correspondentes que andavam, como os de um escorpião
ou de uma centopeia, embora cada um terminasse em mãos massivas do
tamanho de edifícios. A maioria estava cerrada em punhos e, enquanto se
erguiam e abaixavam com os movimentos da criatura, o homem avistou
anéis em alguns dos dedos. Eles deixavam marcas cheias de sangue na carne
esponjosa no chão à medida que as mãos andavam.
Mas foi a cabeça da criatura, que se levantou da lama sobre a longa e
maciça haste que era o pescoço, que fez o homem começar a gritar… pois
era seu pai.
O rosto era o mesmo, embora distorcido por uma espécie de avidez
contente e sádica. Naquele rosto, o homem viu toda a loucura do pai
manifesta. Esse era o monstro que quase destruíra a própria nação para
alimentar sua ambição… e que devorara o futuro do filho com a mesma
ganância brutal. Um monstro mais terrível do que o Ceifador jamais fora,
pois ambos tragavam vidas, mas só um o fazia conscientemente.
Ternamente.
Mas, quando o homem gritou, a mulher irradiou claridade com uma
súbita fúria.
— Você — rosnou ela.
Desperto do terror, o homem calou-se com um tremor enquanto a
mulher ao seu lado tomava forma… mas não era uma forma que
correspondia às lembranças que tinha dela. Quando ele buscou essas
lembranças, o que lhe veio à mente era mais suave de algum modo: dedos
delicados, uma torrente de cabelos encaracolados da cor da areia molhada,
uma voz gaguejante, seios maduros com mamilos marrons que tinham sabor
de sal marinho e doçura, embora não conseguisse se lembrar de como sabia
tudo isso. Mas a mulher que apareceu era diferente do que ele imaginara.
Ela se vestira como um homem, com sobrepanos muito rigidamente retos
para o seu quadril curvilíneo, um colarinho amplo demais para os seus
ombros estreitos, sua torrente de cabelo represada por amarras e um coque.
E algumas coisas sobre ela o incomodavam vivamente, pois pareciam
erradas de alguma maneira. Os sobrepanos que ela vestia eram vermelhos,
mas havia pontos mais escuros e úmidos espalhados neles. Uma vermelhidão
espessa cobria suas delicadas mãos… sangue? O elemento amargo e mais
espesso daquele lugar? Ele não sabia dizer, mas a vermelhidão se flexionou,
transformando-se em luvas finas quando ela cerrou os punhos.
— Tire esse rosto — falou ela. A voz dela era um sussurro, mas tão cheio
de ira que fez aquele mundo vermelho inteiro se agitar. Um vento, súbito e
frio, saiu rodopiando do nada e fustigou a planície de ossos. O rosto da
mulher se turvou com o vento, duplicando-se. Sob o seu rosto zangado, uma
figura plangente e lastimosa. Quando gritou as palavras seguintes, havia um
toque áspero de loucura na voz dela. — Como ousa fingir ser o irmão Mni-
inh quando você o matou? Tire esse rosto, sua abominação!
Ela está esquecendo de si mesma, pensou o homem. Ele sabia que era
verdade, mesmo não sabendo como.
E a mulher sumiu, correndo pela lama vermelha como se fosse terra
batida, em direção ao monstro, que empinou — ele era cem vezes maior do
que ela — e ergueu seus muitos punhos, bramindo um desafio com a voz
estrondosa de um elefante macho.
Deixou o homem para trás, que olhava para ela dali da lama, distraído de
seu próprio sofrimento. Mas, à medida que seu desespero anterior
desvaneceu, ele começou a entender.
Não só o seu pai. A fera usava os rostos de todos os pais, qualquer pai, o
vazio deixado pela ausência de um pai, para quem quer que ousasse fitá-la.
Ela usava aqueles rostos e as lembranças que eles evocavam para desferir
golpes silenciosos e deixar contusões imperecíveis. Mas, sob esse rosto de
pesadelo…
… pesadelo, pesadelo, pelos deuses, espere, isto é um sonho…
… que rosto ela usava de verdade?
Os punhos da fera açoitaram a terra. A substância vermelha tremeu e
sacudiu debaixo do homem, fazendo-o cair de costas na lama. Quando ele
se levantou com dificuldade, ficou chocado ao ver que a fera afundara.
Várias de suas dezenas de braços de um lado haviam se contraído debaixo
dela, encolhendo enquanto o homem observava. E ali, andando entre os
membros agitados do monstro, gritando como uma fera ela mesma, estava a
mulher. Ela tocou outro braço e ele morreu, os músculos formando nós e
estalando como uma corda arrebentada. Quando ela assentou os pés e gritou
na cara da coisa — tire esse rosto! tire! — algo saiu ondulando de sua
boca e sua própria voz fez o pescoço da coisa se contorcer e ficar roxo com
uma gangrena. A cabeça do monstro caiu ao chão, o rosto…
… meu pai, não, não, não ele…
… contorcendo-se de agonia. Ela estava matando a coisa a cada toque,
fazendo sua carne adoecer e morrer apenas com a força da vontade.
E isso era errado. O homem sentia no âmago do seu ser que era. Ela não
era a coisa suave que ele a considerara, aquilo fora um engano… mas
tampouco era essa portadora da morte feroz e vingativa. Ele sabia tão bem
quanto qualquer um o quanto o sofrimento da perda podia esfolar a alma,
deixando feridas que inflamavam até que nada pudesse aliviar a dor a não ser
a raiva e a violência. Mas aquilo não era ela. Ela era…
… o caroço dentro de uma fruta madura. Lasca de pedra e metal, sangue e
lágrimas. Uma oração no clímax do sexo…
… Aier. Ela era Aier.
E ele, ele não era um covarde sem nome, não estivera perdido naquele
reino durante estações, séculos, eternidades. Na vigília, ele era um guerreiro.
Ergueu uma das mãos, cerrou-a, lembrou-se da sensação do cabo de uma
espada dentro do punho. Ao fazer isso, a espada apareceu. Sim. A espada do
pai, Mwet-zu-anyan. A espada do Príncipe do Trono do Ocaso.
Sua espada. Porque na vigília ele era Wanahomen, líder de caça dos
Yusir-Banbarra. E no sonho…
(Hanani. O nome dela era Hanani, e ela era sua amante e sua curadora.)
… No sonho ele era Niim.
E Niim era um sonhador de portentos e presságios, sobrinho do maior
Coletor de Gujaareh, descendente de reis brilhantemente loucos e
loucamente brilhantes. Ele era o Avatar de Hananja. Seria Príncipe um dia
e, quando esse período terminasse, estava destinado a se sentar ao lado
direito da Própria Deusa dos Sonhos.
O Príncipe de Gujaareh se levantou, a espada na mão, e atravessou o
mundo vermelho para trazer a Serva de Hananja de volta a si.

***

O jardim do Yanya-iyan era a fortaleza secreta do palácio. Era acessível


apenas por uma única porta de vidro — uma porta de verdade em vez das
inúteis entradas abertas nas quais os gujaareen pensavam como portas —
que podia ser trancada. Ele continha um pequeno galpão cheio de
implementos de jardinagem: enxadas com lâminas afiadas, forcados com
dentes, machados, facas compridas. Suas paredes eram revestidas de grossas
placas de obsidiana com o propósito de reter o calor do jardim à noite, mas
também duras demais para qualquer aríete rompê-las com facilidade. As
placas permitiam o crescimento de plantas exóticas de terras distantes,
inclusive ervas venenosas que poderiam ser usadas contra um inimigo ou
para uma fuga final, caso todas as outras defesas fracassassem.
Os Coletores e Sentinelas o haviam tomado em metade do espaço de
uma respiração. Anzi havia posicionado seus homens para defender os
Protetores, orientando seus arqueiros para atirar na porta em ondas quando
os Sentinelas começaram a atacar. Eles não haviam esperado que a porta de
vidro aguentasse um ataque, claro, e ela não aguentara; uma pedra foi
atirada dos corredores além do jardim e os soldados de Anzi se prepararam
quando o vidro se estilhaçou e caiu aos pedaços. Mas, em vez de um grito
de guerra, Sunandi ouvira então um som familiar e assustador: o zunido
agudo de uma pedra jungissa.
Quando Sunandi acordou, estava esparramada em uma cama de flores de
liti e vinhas de lágrima-da-lua, e Nijiri pairava sobre ela.
— Me disseram — falou Nijiri baixinho — que uma força tarefa de
soldados invadiu o Hetawa, fazendo os meus confrades, as nossas crianças e
outros cidadãos gujaareen de reféns.
Isso a fez despertar por completo com um arquejo. Sentando-se, ela
olhou ao redor e viu Anzi e todos os soldados kisuati ajoelhados e
amarrados em um canto, cercados por sacerdotes-guerreiros de olhares
ferozes. Sunandi, os Protetores e outros cortesãos haviam sido deixados em
liberdade na cama de vinhas, mas os Coletores eram seus guardas… e,
aparentemente, seus interrogadores.
Mas, se os Protetores haviam sido estúpidos o bastante para atacar o
Hetawa, eles teriam sorte se o papel de interrogadores fosse o único que os
Coletores desempenhassem naquela noite.
Nijiri aproximou-se dela e, apesar da longa parceria, Sunandi se viu
estremecendo sob o olhar dele. Não havia nenhuma compaixão no rosto do
rapaz, nenhuma amizade em seus olhos.
— Você não sabia disso, Oradora? — perguntou ele.
— Não, Coletor — respondeu Sunandi. Ele sabia muito bem que ela
teria tentado impedir se soubesse. Já era ruim o bastante que o Hetawa
estivesse envolvido. O novo Príncipe gujaareen (pois ele vencera, onde quer
que estivesse) tinha um grande interesse em manter os Protetores vivos. O
Hetawa não tinha essa motivação e agora estariam furiosos sob aquela
fachada fria e pacífica.
Nijiri acenou afirmativamente para si mesmo. O outro Coletor — o mais
jovem, ela achava que seu nome era Inmu — também parecia zangado,
embora a raiva dele deixasse Sunandi menos nervosa. A raiva no rosto de
Inmu era ardente e humana. A raiva que irradiava de Nijiri era algo
diferente.
— Qual de vocês orquestrou essa ofensa contra a nossa Deusa? —
indagou ele, passando os olhos pela fileira de pessoas. — Falem e
apresentem-se para o julgamento.
Aksata fez uma careta ao ouvir isso.
— Vocês não têm o direito de nos julgar — contestou ele. — Nós não
fizemos nada de errado e…
Nijiri fez um movimento rápido com a mão e, um instante depois,
Aksata caiu inconsciente no chão, uma jungissa sussurrante em forma de
libélula fixa em sua testa. Nijiri fez um sinal peremptório com a cabeça para
Inmu, que se agachou e pôs os dedos nos olhos de Aksata.
— Ah, pelos deuses. — Sasannante, sua voz subindo de tom quando ele
entendeu. — Vocês não podem matá-lo, não podem!
Mas, depois de um intervalo de várias respirações, Inmu se levantou e
devolveu a jungissa de libélula para Nijiri. Como um gesto extra de desdém,
Inmu deixou o cadáver de Aksata esparramado de uma forma indigna.
Sasannante soltou um pequeno gemido de horror e calou-se.
— Parem com isso! — gritou Anzi do outro lado do jardim. Sunandi
olhou feio para ele, querendo que ficasse quieto, mas ele a ignorou. —
Como ousam? Os Protetores de Kisua são…
— A Cidade de Hananja obedece à lei de Hananja — interrompeu
Nijiri. Na verdade, ele ergueu a voz; até Anzi se calou diante da fúria
cortante no tom de voz dele. — Se não queriam ser julgados por essa Lei,
não tinham nada que ter vindo para cá.
Mama Yao, com uma coragem que Sunandi poderia ter admirado em
circunstâncias mais razoáveis, endireitou-se ao ouvir aquele comentário.
— Isto é uma guerra, Coletor — disse ela. — Não existe lei em uma
guerra. O seu próprio povo cometeu atrocidades; você vai julgá-lo também?
— Vou. E aqueles que tiveram suas almas corrompidas por essa violência
devem morrer. A paz deles pode ser usada para acalmar e curar o resto, e
assim a Lei será cumprida. — Nijiri estreitou os olhos para Mama Yao. —
A senhora ordenou os ataques contra o Hetawa?
— Não — respondeu ela, franzindo a testa e piscando. A afirmação de
Nijiri de que ele pretendia matar cidadãos gujaareen deixara Yao nervosa;
essa era a primeira vez que Sunandi via a velha mulher embaraçada. — Mas
apoio o direito dos meus colegas Protetores de fazerem o que acharem
melhor pelo bem de Kisua.
Nijiri não acenou afirmativamente, mas Sunandi teve a impressão de ver
uma atenuação da raiva no rosto dele. O rapaz se concentrou em
Sasannante.
— E você?
— Eu não sabia nada sobre o ataque planejado — respondeu ele, a voz
baixa e triste. Nijiri estreitou os olhos para ele.
— Mas desconfiava.
— Desconfiava, mas nunca pensei que iriam em frente com isso! Fazer
crianças de reféns… Eu jamais teria aprovado uma coisa dessas. Mas Aksata
não apresentou essa ideia para nós, Coletor, antes de decidir seguir em
frente! Ele agiu sozinho, talvez porque sabia que diríamos não. Ou talvez
para nos proteger das repercussões. — Sasannante chacoalhou a cabeça com
amargura, fitando o corpo de Aksata.
Depois de um instante, Nijiri acenou afirmativamente e passou para
Moib.
— Eu não tive nada a ver com isso — declarou Moib, e de novo Nijiri
colocou a pedra jungissa na testa do homem, fazendo-o cair como uma
pedra. Quando o rapaz se agachou ao lado do corpo de Moib para fazer a
Coleta ele mesmo desta vez, Anzi voltou a gritar.
— Ele falou que não estava envolvido, que os deuses te amaldiçoem!
— Ele estava mentindo — retorquiu Nijiri em tom monocórdico. Ele
fechou os olhos e, após o intervalo de dez respirações, Moib também estava
morto.
Levantando-se, Nijiri se virou para Anzi.
— Você vai até o Hetawa para chamar os seus colegas de volta?
Anzi cerrou os dentes, tremendo de raiva.
— Eu não respondo a você!
Para surpresa — e intenso alívio — de Sunandi, Nijiri apenas aquiesceu.
Ele se voltou para Mama Yao.
— Por favor, ordene ao general Anzi que faça o que eu pedi — disse ele.
— Vocês perderam. É escolha sua permanecer e enfrentar o nosso Príncipe
e os seus aliados bárbaros ou começar a viagem de volta para Kisua. Se
escolher essa última opção, vamos acompanhar o seu povo até o portão e dar
mantimentos para a viagem pelo deserto.
Mama Yao parecia profundamente abalada. Todos eles sabiam que Moib
estava mentindo; ele e Aksata haviam sido farinha do mesmo saco naquela
conspiração. O fato de o Coletor ter percebido a mentira era uma
demonstração mais devastadora de sua magia do que qualquer feitiço para
dormir.
Yao olhou para Sasannante, que acenou afirmativamente; com um
suspiro pesado, Mama Yao acenou também.
— General — disse ela —, por favor transmita as nossas ordens para o
capitão Bibiki no Hetawa. Os reféns devem ser libertados e ele e os homens
dele devem voltar para cá, junto com os kisuati que permaneceram na
cidade. Devemos partir imediatamente para casa.

***

Tiaanet tropeçou enquanto corria pelas lajotas do pátio do Hetawa, quase


derrubando Tantufi e tombando ela mesma em meio aos corpos que havia
ali. Ela se endireitou e viu um soldado kisuati aos seus pés, o pescoço
quebrado e o rosto paralisado em uma expressão de surpresa. As forças de
Bibiki ainda não haviam voltado para recolher os corpos da batalha com os
Sentinelas e ela tropeçara no braço estendido deste. Como Bibiki, o homem
usava um couro de animal como manto: uma pelagem curta de tom fulvo
dourado estampada com pálidas rosetas brancas. Outro caçador. Ela não
fazia ideia do animal de que viera o couro, mas havia uma adaga
diabolicamente comprida com cabo de osso na palma da mão do homem.
Sem pensar, Tiaanet apoiou Tantufi sobre um ombro e se agachou para
pegar a arma para si.
A pausa despertou sua astúcia. Ela se dirigira à Casa das Crianças na
vaga esperança de fugir para a cidade por lá, explorando os mesmos meios
que os kisuati haviam usado para entrar no complexo do Hetawa. Agora
havia gritos atrás dela e gritos de resposta à sua frente: soldados kisuati
dando o alarme. Claro que eles teriam guardas na Casa das Crianças e em
todas as outras entradas e saídas do Hetawa. Não havia nenhuma maneira
de escapar. Ela precisava se esconder.
Então ela saiu do pátio, correndo para dentro de um dos muitos outros
prédios do complexo do Hetawa. Um corredor, algumas escadas, uma
entrada com cortina. Ela se viu em um cômodo minúsculo com uma
enxerga desarrumada a um lado e algumas prateleiras e baús com objetos
pessoais. Os aposentos particulares de algum membro do templo.
Colocando Tantufi na enxerga, ela foi se agachar ao lado da cortina,
girando repetidas vezes a faca nas mãos.
Com a mãe de guarda, Tantufi continuou sonhando.

***

Ela não odiara Azima.


Sabia disso agora enquanto caminhava em direção à monstruosidade
caída que era a Sonhadora Desvairada, suas mãos revestidas de vermelho
estendidas nas laterais do corpo. Azima fora um estranho para ela; ela o
matara por medo e raiva e pelo simples desejo de sobreviver. Mas ela não o
conhecera. Ele não fizera nada para merecer sua ira além de ser um tolo
levado pelo ódio.
A Sonhadora Desvairada ergueu um grande punho contra ela, rosnando
com sua voz inumana, mas ela não tinha medo daquilo. Andara nos
pesadelos de uma deusa, por que uma mera mortal a perturbaria? Então foi
fácil levantar uma parede de sangue à sua volta, que conteve o punho em
movimento e o segurou bem firme. Sim, era sempre esse o truque para fazer
uma cura na terra das sombras, apesar de um dia ela ter tido dificuldade para
entender. A alma de um requerente não queria a cura nessas circunstâncias;
ela queria mais dor e hediondez. Queria que alguém reconhecesse a
imundície da vida, sua maldade e sua bílis. Para entrar em uma alma presa
em um pesadelo, era preciso tornar-se um pesadelo.
Era por isso que Sonta-i não conseguira matá-la: ele não tinha emoções,
não tinha como entender. E Mni-inh, apesar de toda a sua habilidade e do
seu temperamento irritadiço, não tinha muito do que essa sonhadora
precisava: uma fúria desesperada, estéril, cozinhando por muito tempo e a
fogo lento. Conhecimento do que significava ser traída (dada embora
desrespeitada explorada) por aqueles que deveriam ter cuidado e protegido.
Familiaridade com a sensação de ser fraca entre os fortes, de não receber
nem o respeito básico que se deve a outro ser humano. Consciência de como
era ser uma coisa inferior e indigna aos olhos dos outros.
(Sonta-i? Mni-inh? Azima? Por um momento, a lembrança de quem eles
eram desapareceu, mas então voltou esgueirando-se, hesitante.)
Mas, mesmo que Mni-inh houvesse compreendido como passar pelas
defesas da fera, não teria tido ódio suficiente em sua alma para derrotá-la.
— Você o tirou de mim — disse ela. Tocou o punho que fazia pressão
contra ela e ele se desintegrou ao seu toque, a carne torrando e os ossos
virando cinzas. A fera gritou e ela começou a percorrer seu corpo, matando-
a enquanto andava. (A fera se encolhia ainda mais ao ouvir suas palavras?
Difícil dizer. Mais difícil ainda se importar.) — Mni-inh. E você levou o
meu… — Ela parou por um instante, tentando se lembrar do nome. Ele lhe
veio à mente devagar por entre o vermelho e os ossos. — O meu
Dayuhotem, ele também. Você destruiu tantas pessoas, corrompeu tantas
almas. Você não vai levar mais ninguém.
— Hanani.
Ela ignorou a palavra. Não importava quem ela era naquele lugar. A
única coisa que importava era o ódio. Ela deu um tapa em uma ampla parte
da lateral da criatura e viu sua pele ficar cinzenta e pintalgada como uma
infecção que estivesse se espalhando rápido. A criatura se contorceu,
tentando escapar, mas ela manteve a mão ali, mostrando os dentes e
pressionando até a carne morta se contrair entre seus dedos. Era difícil
controlar tanta bílis onírica, que abundava dentro dela, agitando-se com as
correntes de luto de sua alma. Aquela coisa precisava sofrer; ela precisaria ter
cuidado para não a matar rápido demais.
— Você nunca deveria ter nascido! — gritou ela. A criatura se contraiu
de novo, de forma inconfundível desta vez, tremendo e gemendo em uma
súbita falta de energia. Ótimo.
— Não há paz nisso, Hanani. Essa crueldade não combina com você. —
A voz de novo, atrás dela.
A mulher não se importava com o que combinava com ela.
— Vá embora.
— Você vai me matar se eu não for?
Ela chacoalhou a cabeça para se livrar da distração da voz. Matar? Sim.
Seria boa a sensação de matar qualquer um que ficasse em seu caminho.
Não. Havia só uma alma ali que merecera seu ódio.
— Essa coisa matou Mni-inh! — disparou ela, tentando se concentrar.
— Ela tem que morrer.
— Não desse jeito. — Seguiu-se uma pausa. — Lembre-se de quem
você é, Aier.
Um sobressalto.
Ela parou de derramar bílis onírica na fera cheia de mãos, piscando.
— Aier? Quem é…
Vestes vermelhas dançando cera vermelha cornalinas vermelhas ga-ga-
gagueira uma estátua de pedra da noite olhos fechados o sorriso de Mni-inh
a boca de Wanahomen seu cabelo solto incenso cera de abelhas o som de
sinos o sabor de sipri jungissa Dayu um campo rumorejante de cereais a voz
meio esquecida de seus pais. Eu juro em nome de Hananja não causar nenhum
mal.
Hanani arquejou e olhou para a fera.
Que de repente se encolheu aos pés dela, não mais uma fera, mas uma
figura diminuta e magricela chorando após o tormento. Quando a
Sonhadora Desvairada alçou os olhos para ela, Hanani fitou o rosto da
assassina de Mni-inh e viu:
Uma criança.
Apenas uma criança. Que poderia ter se tornado uma menininha
inteligente e alegre se alguém não houvesse despedaçado sua alma e moído
os fragmentos até virarem pó. Que gemia e se esquivava de Hanani,
erguendo mãos que já haviam sido quebradas demasiadas vezes, como que
para evitar um golpe.
O que ela fizera?
— Para machucar outra pessoa, é preciso ensinar a alma a desejar o
próprio tormento — falou a voz… Wanahomen, ele era Wanahomen…
atrás dela. Algum atributo das palavras dele lembrou Hanani de Mni-inh e
ela estremeceu outra vez, olhando para a criança. Wanahomen continuou, o
tom triste agora: — Acho que talvez essa já tenha tido tormento suficiente,
Hanani.
— Ah, Deusa — sussurrou ela, deixando-se cair de joelhos. A menina
agora estava tentando rastejar para longe… sem conseguir, seus fracos
membros inúteis na lama fofa que sua própria alma invocara. E, de repente,
Hanani soube que houvera outras vezes, outros algozes de quem a menina
não escapara. Outras palavras cruéis e espancamentos e um desejo infinito,
doloroso, desesperado de descansar, só descansar um pouquinho…
— Mamãe — sussurrou a menina. Uma súplica para que alguém a
salvasse de Hanani. Hanani estendeu a mão para a criança, mas a criança
soltou um gemido alto e aflautado de angústia e ela deixou a mão cair.
— Sinto muito — disse ela enfim, quando conseguiu refletir sobre o seu
horror. — Sinto muito, eu não estava pensando, sinto muitíssimo, por favor,
não tive a intenção de machucar você. — Isso era mentira. Ela tivera a
intenção de destruir cada membro que destruiu. — Eu não quis machucar
você. — Essa parte era verdade. A fera cheia de mãos, uma manifestação dos
medos da criança, nascida de toda a violência que lhe fora infligida, Hanani
odiara aquilo com razão. Mas ela se esquecera da regra mais importante do
Compartilhamento: uma pessoa não era os seus sonhos. E nenhum
narcomancista poderia enfrentar as conjurações oníricas da alma sem um
coração calmo, caso contrário se perderia no sonho e esqueceria de si
mesmo. Essas haviam sido as primeiras lições que Mni-inh lhe ensinara.
Wanahomen se aproximou.
— Hanani?
— Não sei o que fazer — sussurrou ela. — Não restou nem um pouco de
paz dentro de mim. Não sei como ser… ser o que ela precisa. — Ela não
conseguiu se forçar a dizer um Compartilhador. Ela não era um
Compartilhador, não mais. — Não consigo pensar em um jeito de ajudá-la.
Wanahomen suspirou e agachou-se ao lado dela, envolvendo-a com o
braço e puxando-a para perto.
— Tudo bem. Você consegue encontrar uma maneira.
Com o canto dos olhos, Hanani viu a criança parar de rastejar e se virar
para fitá-los com grandes olhos redondos.
— Eu, eu nunca senti tanta raiva, Wanahomen… — Ela ainda tremia de
raiva. Havia gostado daquilo: perseguir a fera, infligir dor, pensar consigo
mesma não preciso de armas porque suas mãos eram letais o bastante. Elas
continuavam revestidas de cera vermelha… Não. Será que era cera? Ela
sentiu náusea; começou a arranhar de maneira frenética os braços e os
pulsos para tirar aquela coisa, usando as unhas e não se importando com os
rastros de sangue que os arranhões deixavam para trás. Wanahomen fez cara
feia e segurou as mãos dela para impedi-la.
— Sem tocar — falou a criança. Surpresa, Hanani viu que a Sonhadora
Desvairada se levantara. Aqui no sonho a menina não era aleijada, não se
desejasse o contrário. Agora ela estava de pé, embora vacilante, observando-
os. Observando Wanahomen, seu rostinho se enchendo de um ódio letal. —
Sem tocar sem dormir você não toca você não machuca.
Wanahomen abriu a boca para dizer:
— Não a estou machucando, sua boba…
Mas, no instante seguinte, sua boca desaparecera.
Ele respirou, arregalando os olhos, erguendo a mão para tocar o local
onde ela estivera. Mas então suas mãos desapareceram, encolhendo até
restarem apenas os cotocos do punho. Não havia sangue: os cotocos eram
uma pele lisa e fechada, como se nunca houvessem existido mãos, para
começar. Em seguida, os antebraços se fenderam e sumiram, até o cotovelo.
Wanahomen emitiu um ruído rápido, aterrorizado…
— Não! — Hanani levantou-se de um salto, entrando na frente dele. A
Sonhadora Desvairada tremeu, olhando feio para ela, e Hanani sentiu sua
consciência se turvar, seu senso de si mesma estremecer e se afastar outra
vez. Ela não era Hanani, era a mãe, cheia de raiva…
Não! Eu sou Aier! Hanani cerrou os punhos e lutou para permanecer ela
mesma. Esse era o poder da Sonhadora aqui neste mundo que criara nos
reinos intermediários. Em Ina-Karekh, os sonhos refletiam o eu, como a
Deusa Hananja ordenara. Mas, na idealização da Sonhadora Desvairada, o
eu refletia ela mesma… o que a Sonhadora via em suas vítimas ou queria que
elas se tornassem. Será que a criança ao menos percebia que estava matando
pessoas, completos estranhos que não haviam feito nada para merecer sua
ira? Hanani não sabia, mas quando Wanahomen caiu ao chão às suas costas,
soltando um uivo animalesco enquanto suas pernas se retorciam e
desapareciam, todo o seu medo desapareceu também.
— Chiu — disse Hanani, dando um passo à frente. A vontade da
Sonhadora a pressionou de novo e, desta vez, ela deixou que a modificasse,
pelo menos na superfície. Por dentro, ainda era Aier. Por fora, sua aparência
mudou, tornando-se mais alta, mais escura, esbelta, mais bonita do que
jamais poderia ser na vigília. — Pronto — falou ela, baixando e suavizando
a voz. O cantarolar de uma mãe. — Não tenha medo.
E a raiva da Sonhadora Desvairada desvaneceu. Ela recuou um passo,
depois deu um passo à frente, e uma expressão de ansiedade desesperada
tomou conta do seu rosto esquelético.
— Mamãemamãe?
Hanani estendeu os braços para a criança e a envolveu, aninhando-a bem
perto de si. A criança estremeceu e depois enterrou o rosto no seio de
Hanani.
— Mamãe — voltou a dizer… e sorriu.
— Sim — confirmou Hanani. Ela afagou os ombros macilentos, seus
dedos deixando delicados fios vermelhos. Tanta dor nessa menina, mais do
que qualquer magia poderia aliviar. A alma da Sonhadora Desvairada
absorvia sangue onírico como o deserto drenava água… e então Hanani não
tinha mais nada, a não ser o seu próprio sangue onírico, o que lhe custaria a
vida. Não a incomodava pagar esse preço, mas não resolveria o problema. A
necessidade da Sonhadora era demasiada. Hanani poderia derramar toda a
sua vida na criança e jamais fazer a diferença.
Sua alma estava quebrantada além do que a habilidade da magia podia
consertar, Yanassa lhe dissera uma vez, falando sobre dor e perda… e
misericórdia. Seus irmãos Compartilhadores haviam matado aquela mulher,
a tia-avó de Yanassa. E o que Yanassa não falara, o que talvez nem sequer
soubesse, era que aqueles Compartilhadores provavelmente haviam
obliterado a alma dela em vez de deixá-la viajar para Ina-Karekh. Uma alma
tão corrompida jamais poderia encontrar paz, nem mesmo com a magia
inata de uma mulher, nem mesmo com a ajuda de um Coletor. Ela apenas
vagaria para a dor e a escuridão dentro da mente da Deusa, os semelhantes
se atraindo, para sofrer pesadelos por toda a eternidade. Era mais generoso
aniquilar a alma do que deixá-la daquele jeito.
Yanassa provavelmente teria entendido, se soubesse. Nós ficamos felizes
por isso.
Então, quando os fios vermelhos se esgotaram, Hanani fechou os olhos e
derramou fios pretos.
Mas não para causar dor desta vez.
— Quietude — sussurrou ela no ouvido da criança. — Silêncio.
Com uma voz confusa, tão exausta que os olhos de Hanani arderam com
as lágrimas que brotaram, a Sonhadora Desvairada perguntou:
— Dormir?
— Dormir — respondeu ela. — É. Você pode dormir agora. O quanto
quiser.
E a Sonhadora Desvairada recostou-se nela com um suspiro profundo e
contente. Foi fácil para Hanani entrelaçar bílis onírica naquele suspiro,
transformando-o em um suspiro mais longo, tirando o ar da criança até
parar. Foi fácil também desembaraçar a alma em si.
O desagradável mundo de sangue e ossos desvaneceu. Eles flutuaram,
Hanani e Wanahomen, na escuridão mais limpa dos reinos intermediários.
Da alma da Sonhadora Desvairada não restara nada. Ela deixara de existir.
— Príncipe — falou Hanani baixinho para a escuridão. — Volte para a
vigília agora. Diga aos meus irmãos, se eles ainda não souberem, que a praga
do pesadelo acabou.
Após um momento de pausa, provavelmente contando todas as suas
partes para se certificar de que ainda estavam lá, Wanahomen soltou o ar.
— Graças à Deusa por isso. — Uma pausa. Naquele espaço sem corpo,
ela sentiu a súbita desconfiança dele. — Mas com certeza você mesma pode
contar a eles.
Ela suspirou.
— Não, Príncipe. Eu não posso.
Silêncio e choque… e, de repente, medo. Ele não queria que ela
morresse. Ele a queria, mas isso não era de surpreender. Como Yanassa a
advertira, Wanahomen prendia demais.
Você compartilhou a sua força comigo, Niim, quando precisei depois da morte
de Mni-inh. Mas isto você não pode compartilhar.
— Minha alma também é corrupta — disse Hanani. Na escuridão suave,
a voz dela ecoava, vazia. — Duas vezes agora matei com mãos que deveriam
curar e até gostei do sofrimento de outra pessoa. Repetidas vezes, quebrei os
meus juramentos. Mas ainda amo Hananja; sei qual é o meu dever.
A raiva dele fez a escuridão ondear, tentando se tornar outro lugar, mas a
vontade dele estava muito dispersa e agitada para moldar qualquer coisa
específica. Ele não tinha o controle de um Coletor, só o poder.
— Não, não, você não vai fazer isso, Hanani, eu proíbo…
— Você não tem o direito de me proibir — interrompeu ela, sem se
importar mais com a grosseria. Estava cansada, tão cansada. Todos a quem
amava estavam mortos e seus sonhos se foram. Talvez não se desse ao
trabalho de viajar para Ina-Karekh. Talvez simplesmente ficasse ali e
deixasse sua alma extinguir-se como a da Sonhadora Desvairada. — Não há
mais nada para mim em Gujaareh.
— Então volte para Merik-ren-aferu — retrucou ele. — Fique com os
banbarranos. Eu digo a eles que você morreu.
— Não seja tolo, Príncipe. Vai se corromper por mim? E destruir tudo
pelo que trabalhou? — Ele caiu em uma consternação silenciosa e ela
chacoalhou a cabeça. — Um Servo de Hananja não teme a morte. E eu…
Então parou. Tudo dentro dela doía. Maldito fosse ele por tornar aquilo
mais difícil para ela. Será que ele não pensava em ninguém além de si
mesmo? Ela sentiria falta dele. Não queria, mas sentiria… e essa era apenas
mais uma dor, mais um fardo, sobre tantos outros que já a faziam se vergar.
— Eu quero morrer — afirmou Hanani por fim. — Por favor.
Isso deveria ter resolvido a questão. Se ele fosse um homem sério, um
homem civilizado, teria. Nenhum gujaareen desrespeitaria o desejo de outra
pessoa por paz.
Mas Wanahomen era metade bárbaro e metade louco… e um príncipe
acostumado a conseguir o que queria, e um guerreiro acostumado a impor o
que queria e, além de tudo isso, um Coletor. Então ele se aproximou dela e
quando ela resistiu, surpresa, falou o nome de alma dela. Não para lhe fazer
mal, embora pudesse ter feito… assim como ela poderia ter feito mal a ele,
sabendo por sua vez o nome dele. Ele simplesmente a abraçou tão próximo
que ela podia distinguir as esperanças dele, a vontade dele, de forma tão
clara quanto as dela.
— Não vou deixar você fazer isso — sussurrou ele.
— Eu te disse, você não tem…
— Eu sou o Avatar Dela, que os pesadelos te amaldiçoem, isso me dá
algum direito! E, se seguir adiante, vai fazer comigo o que a perda de Mni-
inh fez com você.
— Isso é egoísmo!
— Sim! É! Mas não quer dizer que eu esteja errado!
Emaranhada a Wanahomen, ela sentiu o fio do medo dele. Por hábito,
seguiu-o e encontrou sua raiz na alma dele, logo atrás do coração, onde
retirá-lo deixaria uma ferida aberta e talvez fatal. Perdê-la causaria essa
ferida nele.
Hanani ficou tão surpresa com aquilo que prestou atenção nele em vez
de rejeitá-lo de todo. Sentiu-o perceber isso e soube quando ele optou por
uma nova tática, aproveitando a vantagem.
— Deixe os Coletores decidirem — propôs Wanahomen sem demora.
— O quê?
Mãos que ela não conseguia ver a seguravam perto e com firmeza.
— Como você pode se atrever a se julgar corrupta? Você é só um
Compartilhador, Hanani, e um aprendiz, aliás. Volte para a vigília e
apresente-se a eles. Conte a verdade. — Um lampejo de medo dele,
rapidamente suprimido. — Eles verão, assim como eu vejo, que as suas
escolhas não tiveram nenhuma intenção corrupta.
Fazia um sentido surpreendente. Parte dela queria ouvir, ou talvez ela
apenas estivesse tão cansada que era mais fácil deixá-lo vencer por enquanto.
— Pois bem — concordou ela, enfim. Mas, antes que ele pudesse
rejubilar-se, acrescentou: — Mas eu vou me apresentar aos Coletores,
Príncipe. E vou me submeter ao julgamento deles, seja qual for.
O medo dele desvaneceu só um pouco porque ele sabia tão bem quanto
Hanani que ela cometera grandes crimes. Os Coletores não eram
conhecidos por sua clemência e a Lei de Hananja tinha pouco espaço para
nuances.
— Que seja — disse ele, enfim. Ela ficou surpresa por sentir uma
resignação solene nele. — Você é um Compartilhador de Hananja; sei o que
isso significa desde que te conheci. Vou me submeter ao que quer que você
escolha.
Então ele os levou de volta ao reino da vigília, para enfrentar todas suas
as ameaças e promessas.
45

A BATALHA DO SANGUE

Tiaanet andou sozinha pela cidade com a faca do caçador na mão. As ruas,
povoadas apenas pela fumaça remanescente e pelas sombras saltitantes,
ecoavam levemente o barulho dos seus pés calçados com sandálias. Várias
vezes ela ouviu outros passos ou vozes nas ruas adjacentes, mas nenhum
deles chegou perto. A cidade ainda estava zangada, mas não com ela, então
a deixaram em paz.
Ela deixara o corpo de Tantufi para trás, naquele quartinho, para os
membros do templo o encontrarem. Eles veriam a carne negligenciada e
cheia de cicatrizes da criança e demonstrariam bondade, talvez até
contratando pranteadores para chorar as lágrimas que ninguém mais
derramaria. Talvez fossem usar a magia deles para ver de algum modo como
haviam sido as suas últimas horas; Tiaanet ouvira falar que eles podiam
fazer isso. Então talvez pudessem ver que Tantufi gritara pela mãe uma vez
das profundezas do sono. Talvez vissem que Tiaanet erguera Tantufi nos
braços depois de encontrar o rosto dela coberto de lágrimas; veriam que
Tantufi se aconchegara mais perto, enterrando o rosto no seio da mãe e
soltando um suspiro de profundo contentamento. E talvez experimentassem
aquele terrível e magnífico momento em que alguma força inexplicável
perpassou Tantufi e, através de Tantufi, chegou a Tiaanet. Aquela força
tocara velhas e profundas cicatrizes dentro de Tiaanet e as suavizara um
pouco, talvez diminuindo uma ou duas das mais antigas e espessas. Mas,
quando aquele momento passou, havia uma nova ferida viva para substituí-
las, pois Tantufi estava morta nos braços de Tiaanet.
Ela virou uma esquina, entrando no distrito alta-casta.
Os soldados kisuati haviam deixado o Hetawa quando ela foi embora.
Teria sido fácil para Tiaanet ficar onde estava e esperar que os Servos de
Hananja a encontrassem; ela não tinha mais motivos para temê-los com
Tantufi morta. Mas, em vez disso, quando a Lua dos Sonhos começou a
segunda metade de seu percurso noturno pelo céu, Tiaanet saiu do Hetawa
passando pela Casa das Crianças vazia. Seu caminho serpenteou desde
então, principalmente para evitar áreas de fogo e barulho, mas ela soubera
desde o início aonde pretendia ir.
A casa da cidade estava escura quando ela chegou. Ela se preparara para
usar a chave escondida na área para convidados — a maioria dos gujaareen
não trancava suas portas, mas Sanfi sempre exigira isso —, mas a porta
principal se abriu quando ela tentou. Ela a fechou e ficou ouvindo na
entrada por um instante. Vinham sons furtivos dos corredores da parte de
trás da casa e, ao fundo de um, ela pôde ver uma luz tênue. Uma única
lamparina, provavelmente, a chama mantida baixa por alguém que esperava
evitar a atenção dos vizinhos.
Tiaanet caminhou em direção à luz.
Seu medo voltara. Esse fora o desafortunado efeito colateral do poder
que matara Tantufi… ou talvez fosse obra de Tufi, de algum modo. A noção
confusa que a criança tinha de um presente. E talvez algum dia Tiaanet
agradecesse a volta das emoções que perdera tanto tempo antes, mas não
agora. Não com o coração martelando em seus ouvidos e memórias
desagradáveis desfilando atrás de seus olhos.
Mas não seria aquilo adequado? Ela parou à entrada do estúdio,
observando em silêncio enquanto o pai revirava papéis de folha de junco e
resmungava para si mesmo. Ao longo de todos os anos de tormentos do pai,
Tiaanet se recolhera à ausência de emoções, mas Tantufi não tinha esse
refúgio. Se Tiaanet houvesse mantido sua autodepreciação, poderia ter
vencido a inércia que a mantinha obediente à vontade do pai. Uma boa mãe
não teria encontrado de alguma maneira a chave que Sanfi usava para
manter sua filha acorrentada? Uma boa mãe não teria contratado seus
próprios assassinos?
Uma boa mãe não teria matado Tantufi ela mesma, se não havia
nenhuma outra forma de escapar de tanto sofrimento?
Tiaanet certificou-se de que a faca estivesse fora de vista atrás da
moldura da porta.
— Pai — disse ela.
Sanfi levou um grande susto, deixando cair com estardalhaço um
pergaminho e quase derrubando a lamparina. Quando ele a viu, porém, o
medo em seu rosto foi substituído pela alegria.
— Tiaanet! Os olhos da Deusa recaíram sobre mim! O que… Como…
Você fugiu dos soldados? Eu fui ao Yanya-iyan, implorei aos Protetores, mas
eles não queriam me escutar…
Tiaanet olhou em volta quando entrou no cômodo. Três dos vasos de
flores haviam sido movidos para o lado ou derrubados, expondo
compartimentos que ela não sabia que estavam lá. Um dos compartimentos
estava aberto; dentro dele, ela pôde ver um pequeno baú vazio. Uma bolsa
aberta — ela pôde ver que havia dinheiro, joias e pergaminhos com um selo
e um nó de propriedade nela — estava no chão ao lado de Sanfi, bem como
uma chave familiar em um barbante comprido.
— Tantufi está morta — falou ela, passando os olhos da chave para o
rosto dele.
Um lampejo de júbilo perpassou seu rosto antes que ele pigarreasse e
fingisse desconforto.
— É, bem, a saúde da sua irmã era…
— Filha, pai. Não tem mais ninguém aqui, não precisamos mentir um
para o outro. — Dobrando o corpo da maneira exata, ela contornou um
banco de madeira, aproximando-se dele. — Minha filha, e sua.
Ele fez cara feia, como sempre fazia quando o lembravam de suas
perversões.
— E a sua mãe?
— Ainda no Hetawa. Eles vão curá-la, imagino, até onde é possível. —
Ela viu-o franzir ainda mais o cenho ao ouvir aquilo, viu-o calcular a chance
de uma Insurret racional contar aos sacerdotes os muitos, muitos crimes de
seu marido.
— Precisamos sair da cidade — afirmou ele por fim, virando-se para
pegar os pergaminhos caídos. — Tenho conhecidos nos vilarejos rio acima e
em Kisua que podem nos ajudar. Pode haver uma forma de salvar os nossos
planos se…
Tiaanet enfiou a faca do caçador kisuati nas costas dele. Ela usou as duas
mãos e movimentou o braço de cima para baixo, embora a faca fosse afiada,
porque precisava ter certeza de que atravessaria as costelas dele.
Ele girou para encará-la, parecendo mais perplexo do que qualquer outra
coisa.
— Tiaanet? — Ele levou a mão às costas e tateou em busca da faca,
depois trouxe a mão de volta para a frente, arregalando os olhos ao ver o
próprio sangue. — O que… Você…
Ela não acertara o coração. Sem demora, antes que ele pudesse se
recuperar, ela o empurrou para trás com as duas mãos. Ele cambaleou para
trás, tropeçou na bolsa aberta e caiu de maneira desajeitada entre os baús e
pergaminhos. Enquanto se esforçava para se levantar, ela pegou um dos
vasos de flor de metal. Era pesado demais para ser erguido, mas ela podia
carregá-lo até ele, o que ela fez.
— Tiaanet! — A confusão dele dera lugar ao medo. Ele se arrastou para
longe dela em pânico, esquecendo-se de todos os seus esforços para ser
discreto. — Tiaanet!
Ela deixou cair o vaso. Ele ergueu um braço diante do rosto no último
instante, o que fez o vaso pousar sobre a sua garganta e o seu peito em vez
de acertar sua cabeça. Ele soltou um gemido forte, inarticulado e
borbulhante, provavelmente quando a faca penetrou mais fundo no pulmão
ou em outro órgão, mas ainda estava tentando se libertar, embora
debilmente agora. Tiaanet observou por um momento, ponderando, e então
foi sentar-se sobre o vaso.
A lamparina se apagou durante o tempo que levou para o seu pai morrer.
A luz da Sonhadora entrando pela janela alta era um substituto suficiente,
mas Tiaanet descobriu que não gostava de observar. Observou mesmo assim
porque, de outro modo, nunca saberia ao certo que ele estava morto. Mas,
por mais que se obrigasse a se lembrar das coisas que ele fizera, por mais que
seu coração ecoasse com o ódio que ela jamais ousara sentir antes, sua visão
se turvou enquanto ela o via gargarejar e tentar respirar. Suas mãos tremiam
quando ela enfim tocou a garganta dele para ver se o coração havia parado.
Ficou sentada sobre o vaso por mais um tempo só para garantir, mas enfim
teve de se levantar quando sentiu náusea.
Morto. Ele estava morto. Morto. Morto.
Depois da náusea, ela chorou por algum tempo.
Quando se recuperou, pegou a bolsa e encheu o restante do espaço com
roupas para viagem e comida. Pegou a chave da corrente de Tantufi
também, amarrando-a ao redor do pescoço e escondendo-a no brocado do
vestido. Esse não foi um gesto pensado. Ela não esperava lembrar-se da filha
pela ferramenta usada para escravizá-la. Simplesmente pareceu certo e, para
Tiaanet, que sobrevivera o tempo que sobrevivera confiando na razão e não
na emoção, sendo mais esperta que o pai, quando não o derrotando, deixar o
sentimento guiar suas ações era novidade e, de certo modo, um alívio.
À entrada ela parou, abruptamente atrapalhada, pois não pensara além
da morte do pai. Mas, quando a última porção da Lua dos Sonhos
desapareceu entre os telhados da cidade, ela alçou o olhar e notou a estrela
mais alta da constelação chamada Enlutada. Ela só aparecia durante a
primeira estação de um novo ano; a Lua da Vigília já estava se esgueirando
para fora do esconderijo para encobri-la. Por enquanto, todavia, a estrela
brilhava mais do que qualquer outra, baixa no horizonte oeste.
Virando-se para segui-la, Tiaanet começou a andar.
46

PRÍNCIPE DO OCASO

O mundo havia mudado outra vez quando Wanahomen abriu os olhos.


— Saudações, Príncipe. — Uma voz familiar, embora não totalmente
bem-vinda. Wanahomen olhou em frente e viu o Coletor Nijiri agachado ao
seu lado.
— Wana! — Wanahomen piscou. Ezack estava ao seu outro lado,
levantando-se com esforço agora que vira Wanahomen acordado.
Soerguendo-se, Wanahomen se viu dolorosamente enrijecido e tão
exausto como se não houvesse dormido nem um pouco. Ele esfregou os
olhos e só então se lembrou de que devia estar ferido. Mas não havia dor em
seu peito nem em sua coxa e, quando examinou a si mesmo, descobriu que
os ferimentos haviam fechado, deixando apenas buracos ensanguentados em
suas roupas banbarranas.
— Hanani — falou Nijiri. — Ela curou você enquanto te salvava da
Sonhadora Desvairada. Como se sente?
— Cansado — respondeu Wanahomen. Ele poderia ter dormido por
uma semana. — Faminto.
— Nós damos comida pra você — disse Ezack em um gujaareen
deplorável, exibindo um sorriso malicioso. — Ou você dá comida pra gente,
agora que é um rei abastado.
Wanahomen olhou ao redor. Luz do sol e arco-íris banhavam o Salão de
Bênçãos, entrando pelo prisma das janelas e pela porta de bronze
escancarada. Ele estava deitado em um dos vários bancos de cura que
haviam sido colocados na plataforma, aos pés da Deusa-estátua. Atrás do
Coletor e de Ezack, ele podia ver muitos outros, seus próprios homens se
misturando com os aliados gujaareen e os Servos e as Irmãs. Iezanem estava
tendo uma conversa profunda com um Professor; Deti-arah se agachara
para falar com o filho. Não havia soldados kisuati presentes. As enxergas
onde estiveram os adormecidos haviam sumido também.
— Você dormiu a noite inteira até de dia — explicou Ezack, ficando
sério. — A gente achou que os fuh atat kisuati, coloca veneno, mas sacerdote
falou que não. Falou que você ocupado com magia.
— Eu estava — confirmou Wanahomen, franzindo a testa. As
lembranças estavam confusas, espessas. Se algum dia ele tivesse sido
treinado para se lembrar dos sonhos, talvez pudesse ter obtido clareza deles,
mas a única coisa de que se recordava era vermelhidão e repugnância. E…
uma criança assustada? Alguma coisa sobre os Coletores?
O Príncipe fitou o Coletor Nijiri, só então notando que o homem
parecia tão exausto quanto ele. E havia um tipo estranho de peso nos gestos
do Coletor que intrigou Wanahomen por um momento… até ele lembrar
quantas pessoas haviam morrido, inclusive Charris. Então ele entendeu o
estado de ânimo do Coletor.
— Talvez você nunca se lembre — explicou Nijiri. — Mesmo para
aqueles de nós criados no Hetawa, nem tudo o que acontece nos sonhos
pode ser explicado à luz do dia. Basta saber que a praga do pesadelo acabou
e Gujaareh está livre, pelo menos nos sonhos.
As lembranças eram como a neblina da manhã na mente de
Wanahomen, desaparecendo quando ele despertou por completo. Ele
chacoalhou a cabeça para esvaziar a mente e cautelosamente se pôs de pé.
Por um instante, ele ficou tonto, mas a sensação passou logo.
— Os adormecidos se aquietaram enquanto você e Hanani enfrentavam
a Sonhadora Desvairada — continuou Nijiri, levantando-se com ele. —
Eles não acordaram, mas pararam de morrer. Foi assim que soubemos que
alguma coisa tinha mudado. Alguns instantes depois, eles começaram a
acordar. Foi assim que soubemos que vocês tinham vencido.
Alguns instantes. Ele sentia como se houvessem se passado anos.
— E os kisuati? — perguntou ele para se distrair, alongando-se para
aliviar a rigidez.
— Foram embora da cidade ao amanhecer. Esses foram os termos da
rendição que exigimos.
Isso fez Wanahomen acordar.
— Rendição?
Um dos membros do templo ali por perto, um ancião que estivera
conversando com um dos sacerdotes-guerreiros vestidos de preto, virou-se e
sorriu para Wanahomen.
— Foi incondicional — falou ele. — Me disseram que eles abandonaram
o Yanya-iyan com uma pressa nada pacífica, na verdade, o que eu desconfio
que pode ter sido motivado pela multidão de cidadãos raivosos que tinha
começado a se formar no portão do palácio.
Wanahomen olhou para Ezack em busca de confirmação. Ezack, que
conseguira entender a conversa, deu de ombros.
— Nenhuma flecha foi disparada dos nossos arcos — comentou ele em
chakti. — Alguns morreram, a maioria quando você sofreu aquela
emboscada, mas muito menos do que esperávamos no total. Os feridos
também já foram curados. Se você tivesse falado que ia ser fácil assim, a
gente teria vindo tomar a sua cidade de volta para você muito tempo atrás.
Não houve nada de fácil nisso, pensou Wanahomen, mas é claro que Ezack
não era gujaareen. Ele não entenderia.
Então Wanahomen voltou-se para o Coletor.
— Essa não era a guerra que eu tinha em mente — disse ele. —
Carruagens e lanças eram algo que eu estava preparado para enfrentar, mas
demônios oníricos e magia? — Ele chacoalhou a cabeça.
— A Deusa nos dá os fardos que cada um de nós é mais indicado para
carregar — falou o Coletor. — Nem sempre são os fardos que esperamos.
— Você deve ter muitos fardos perfeitamente comuns agora, Príncipe —
declarou o ancião, que contornou o banco para pôr a mão no ombro de
Wanahomen de maneira amistosa, embora o rapaz nunca o houvesse visto
antes. — Talvez isso ajude…
Ele fez um sinal para duas crianças do Hetawa virem para a frente, cada
uma carregando um objeto embrulhado em um pano. Um dos objetos era
um bastão comprido, pelo formato do embrulho. O outro… Wanahomen
conteve a respiração, intuindo o que era antes de ver. O menino parou
diante dele e, com a ajuda do colega, desembrulhou o objeto, revelando as
placas de âmbar vermelho e dourado da Auréola do Sol Poente.
— Nós a trouxemos para os nossos cofres para salvaguardá-la quando os
kisuati tomaram a cidade — explicou o ancião, falando em um tom suave
enquanto Wanahomen se apoderava da Auréola com reverência. Ele a
ergueu contra a luz, admirando-se de como parecia muito mais brilhante do
que se lembrava. — Se quiser, podemos emprestar um desses jovenzinhos
para carregá-la para você quando for para o Yanya-iyan.
Cavalgar pelas ruas da cidade com a Auréola atrás dele… Wanahomen
engoliu com esforço o nó na garganta e fez um aceno mudo para o garoto,
que sorriu e imediatamente começou a trabalhar com o acompanhante para
desembrulhar o bastão.
— Há muito trabalho a fazer, colocar Gujaareh nos eixos — disse
Wanahomen quando conseguiu falar outra vez. — Eu gostaria de ter a ajuda
do Hetawa para isso. E a dos shunha e dos zhinha, e dos meus aliados
banbarranos.
Ele se virou para ficar de frente para as pessoas reunidas na plataforma e
teve um acesso momentâneo de nervoso ao ver que os olhos de todos
estavam voltados para ele, na expectativa. Mas seus nervos se acalmaram
muito, muito rápido.
— Você terá a ajuda do Hetawa, claro — assegurou o ancião, que
Wanahomen enfim percebeu que devia ser o atual Superior.
— E a dos shunha — acrescentou Deti-arah, erguendo o filho nos
braços para que o menino pudesse ver. — Não posso falar pelos zhinha,
mas…
— Eu posso — disse Iezanem, parecendo ofendida que Deti-arah sequer
considerasse a possibilidade. — Nós já oferecemos o nosso apoio à
Linhagem do Ocaso, embora alguns detalhes desse apoio precisem ser
discutidos.
Ela dirigiu um olhar significativo a Wanahomen e ele inclinou a cabeça
para mostrar que entendia. Ele teria de compartilhar mais poder com os
nobres do que seu pai fizera, e talvez com os mercadores e os militares
também. Ele não necessariamente se importava com isso… mas, se ela
achava que ele toleraria ser uma mera figura decorativa, Wanahomen
esperava que estivesse preparada para lutar outra guerra.
Talvez fosse melhor eu me casar com ela, isso poderia fazê-la calar a boca.
— Quer dizer que eu sou líder de caça agora? — perguntou Ezack em
chakti. Ele se alongou, despreocupado.
Wanahomen o fitou, dividido entre o divertimento e o espanto com a
audácia dele.
— Isso depende de Unte.
— Droga. Ele não gosta de mim.
— Mando uma recomendação para ele em seu favor — falou
Wanahomen — se você mantiver a tropa dos Yusir aqui para servir como
minha guarda do palácio por uma oitava de dias ou duas. Preciso de
guerreiros em quem eu possa confiar, caso apareçam assassinos.
Ezack se animou de imediato.
— Nunca matei um assassino! Vão ter muitos?
— Com sorte, todos eles vão ficar com medo de tantos guerreiros
bárbaros destemidos.
Ezack suspirou.
— Acho que podemos ficar esse tempo. Unte não vai se importar, já que
as mulheres logo vão vir para a cidade para começar a pechinchar com os
nossos novos parceiros de negócios. Pode ser que elas queiram alguns de nós
por perto no caso de alguma estupidez… apesar de que, sinceramente, o seu
povo parece tão feliz de nos ver que não consigo imaginar muito disso
acontecendo. — Ele fez uma pausa, observando outro zhinha passar com
uma serva de seios descobertos um passo atrás. Todos os homens de caça
estavam olhando para ela. Wanahomen anotou mentalmente para instruí-
los sem demora sobre os costumes gujaareen. — Falando em felicidade, vai
ter festa?
— Depois — respondeu Wanahomen. Ele se virou para o Superior, mas
não pôde deixar de cruzar o olhar com o Coletor enquanto falavam. —
Primeiro choramos a perda dos mortos e cuidamos dos vivos. Todas as
coisas no seu devido tempo. É esse o caminho da paz, não é?
O Coletor aquiesceu silenciosamente.
— Assim é — concordou o Superior.
— Então vamos começar — instou Wanahomen.
E, embora ninguém aplaudisse, houve uma mudança palpável no clima
do Salão. Wanahomen viu júbilo em muitos rostos enquanto se viravam
para retomar suas tarefas ou saíam para começar o longo e árduo processo de
consertar uma nação danificada. Ezack fez uma saudação animada para
Wanahomen e depois desceu da plataforma, provavelmente para conversar
com os demais líderes de caça. O Coletor desapareceu entre a multidão,
como fazia a sua espécie. Mas, quando o Superior se virou para partir,
Wanahomen pôs uma das mãos no braço do homem para impedi-lo.
— Todas as coisas no seu devido tempo, Superior — disse ele, falando
baixo e aproximando-se. — E o Compartilhador-Aprendiz Hanani, onde
está?
O Superior ficou sério de repente.
— Ela está bem — respondeu. — Ela acordou algumas horas antes de
você e nos contou o que aconteceu no reino dos sonhos. Se quiser, eu posso
transmitir a sua mensagem de despedida…
— Eu mesmo transmito, obrigado.
O Superior hesitou, parecendo nitidamente desconfortável.
— Hanani conversou conosco abertamente sobre a morte de Mni-inh —
comentou ele devagar — e sobre… e sobre os outros eventos que
aconteceram enquanto ela estava no deserto. Percebo que você pode ter
desenvolvido uma, hum, afeição… Que os seus sentimentos… — Ele
respirou fundo, depois enfim chacoalhou a cabeça. — Nós somos a família
dela, Príncipe. É melhor você não voltar a vê-la.
Só o treinamento de sua mãe evitou que Wanahomen retrucasse uma
resposta imediata ao ouvir aquilo. Ele teria de reaprender a ter tato,
percebeu com pesar: a língua afiada que lhe servira tão bem entre os
banbarranos não lhe serviria mais em Gujaareh.
— Se essa for a decisão dela, claro que vou concordar — replicou ele,
mantendo o tom respeitoso apesar da intratabilidade das palavras. — Então
vou apenas vê-la agora, para ouvir de sua boca.
O Superior pareceu azedo, mas enfim suspirou.
— Venha comigo — disse ele, e Wanahomen o seguiu para o Hetawa
interior.

***

Várias centenas de corpos haviam sido dispostos nas lajotas do pátio.


Vítimas do pesadelo, kisuati e gujaareen que haviam morrido na revolta,
Sentinelas caídos na batalha pelo Hetawa… e Charris. O Superior parou a
uma distância diplomática enquanto Wanahomen foi ver o velho amigo,
cumprimentando com a cabeça a Irmã de Hananja que envolvia o corpo
para cremação. Mas o Charris que ele tinha conhecido se fora daquela carne
havia muito tempo e, depois de um instante, Wanahomen seguiu em frente.
Hanani estava ajoelhada em meio aos corpos. Estava claro que fazia
algum tempo que estava acordada, reservando um tempo para tomar banho
e colocar a vestimenta do Hetawa que estava usando quando eles se
encontraram pela primeira vez, embora com mudanças, notou Wanahomen.
Ela deixara o cabelo ao estilo banbarrano, solto e enfeitado, os grossos
cachos cor de areia afastados do rosto por uma faixa de couro com miçangas.
Ao kohl sobre os seus olhos, que quase todos os gujaareen usavam como
proteção para que o sol não os cegasse, ela acrescentara uma suave tintura de
lábio marrom que combinava com a sua tez, e ainda usava a tornozeleira de
âmbar sobre as sandálias simples e funcionais.
Mas o colarinho que cobria o seu pescoço e os seus ombros agora tinha
várias dezenas de pequenos rubis polidos em vez das cornalinas que ela
usara antes.
Engolindo em seco para evitar um súbito desconforto, Wanahomen
parou atrás dela e pigarreou. Por um momento, achou que ela não o
houvesse escutado, mas então ela disse:
— Os Coletores não me julgaram corrupta.
E então enfim ele se lembrou. A barganha que ele fizera em seu
desespero para convencê-la a voltar para Hona-Karekh e para a vida. Jamais
lhe ocorrera que ela poderia procurar o julgamento antes mesmo que ele
acordasse. Maldita mulher teimosa… Mas ele estava feliz, mais feliz do que
podia dizer, de que eles a houvessem deixado viver.
— Ótimo — retorquiu ele. — Porque você não era.
— É o que dizem. — Ela suspirou, afagando o rosto do corpo à sua
frente. — Mas matei quatro pessoas agora.
As palavras deixaram Wanahomen totalmente confuso até ele olhar para
o corpinho macilento do qual ela cuidava naquele instante e reconhecer seu
rosto agora apaziguado.
— Misericórdia não é assassinato — disse ele. — Você foi uma bênção
para aquela criança, Hanani. Olhe para ela: seu sofrimento acabou agora.
Com certeza essa era a vontade da Deusa.
— E o que isso significa? — Hanani ergueu a cabeça para fitá-lo. Ela
não estava chorando, mas a expressão perdida nos olhos dela era
dolorosamente familiar, acompanhada agora por uma exaustão ainda mais
profunda do que aquela no coração dele. Wanahomen fez cara feia; o
Superior dissera que eles iam cuidar dela. Por que a estavam deixando ali,
então, entre os mortos e invejando-os?
— A morte de Dayu foi um acidente, mas não consigo me perdoar por
isso — declarou ela. — A de Mni-inh, a mesma coisa. Azima… aquilo foi
pura corrupção, independentemente do que os Coletores digam, assim
como o que eu fiz com a criança no sonho. Mas o que significa eu ter
cometido esses pecados e ter sido nomeada Compartilhador pleno mesmo
assim? O que significa eu ter rezado pedindo orientação e essa ter sido a
minha resposta? — Ela fez um gesto, apontando para o corpo da Sonhadora
Desvairada.
Wanahomen suspirou. Aqui estava a prova de que ele não era nenhum
Coletor, independentemente de seu dom onírico tão poderoso: nenhuma
palavra de consolo lhe veio à mente. E ali, no meio do Hetawa, ele não
podia tomá-la nos braços e cingi-la como poderia ter feito em outro lugar.
Não com o colarinho do Hetawa em volta do pescoço dela como uma
coleira de sangue.
— Eu não me sinto mais como um Compartilhador, Príncipe. — Ela se
virou de volta para olhar para o corpo. — Não sei o que sou agora.
Ele não conseguia suportar a angústia dela. Estava também furioso com
os seus superiores ou irmãos de caminho, ou quem quer que tivesse
arranjado aquele teatro, porque entendia agora que aquilo fora feito para ele.
Para adverti-lo de que não tinha a habilidade para aliviar a dor dela. Eles a
estavam machucando para afastá-lo.
Então ele se agachou ao lado dela e pegou sua mão.
— Vá embora deste lugar.
Ela piscou, surpresa.
— O quê?
— A menina está morta e isso tinha que ser feito. É o que a paz exige às
vezes. Aceite ou não, como quiser, mas não fique aqui remoendo. Venha.
Ele puxou a mão dela até ela se levantar, então a levou consigo enquanto
se dirigia para o Salão de Bênçãos. Mas o Superior moveu-se habilmente
para interceptá-los, franzindo o cenho ao ver as mãos dadas.
— Meu Príncipe, o Compartilhador Hanani tem tarefas…
— Sim — falou Wanahomen —, cuidando dos vivos, não dos mortos.
Vou levá-la para onde realmente precisam dela.
O Superior ficou tão surpreso ao ouvir isso que de fato se calou por um
momento.
— Para onde? — perguntou Hanani.
— Cada homem, mulher e criança desta cidade acabou de passar por
uma batalha.
— Então deixe que venham para cá — disse o Superior em tom severo.
— Os acólitos e as Irmãs estão lá fora agora, recolhendo aqueles que não
podem se deslocar, e os Sentinelas estão lidando com aqueles que se
recusam a voltar para os caminhos da paz. Vamos curar aqueles que
pudermos e, para isso, precisamos de Hanani aqui…
— Mas ela não precisa do senhor. — Wanahomen ouviu a raiva em sua
própria voz e percebeu que estava se saindo muito mal em ser diplomático,
porém não se importava mais. — O que vai fazer? Enchê-la de sangue
onírico e trancá-la em uma cela até ela parar de chorar? Não é disso que ela
precisa!
— Você acredita que sabe melhor do que ela precisa — retorquiu o
Superior com igual veemência, embora mantivesse a voz baixa. — Nós…
— Chega — disse Hanani em um tom mais suave do que qualquer um
dos dois, mas a repulsa desolada em sua voz atravessou a raiva deles como
uma reprimenda. — Isso não tem sentido. Superior, vou pedir uma folga de
alguns dias. Sei que todos os Compartilhadores são necessários, mas… —
Ela chacoalhou a cabeça. — Neste exato momento, não sirvo para nada.
O Superior pareceu perplexo.
— Bom, isso é… inapropriado, mas… eu, eu acho que é um pedido
razoável e, no entanto…
— Obrigada — falou Hanani, interrompendo-o com uma grosseria
chocante. Soltando a mão de Wanahomen, afastou-se deles e seguiu rumo
ao Salão de Bênçãos. Igualmente perplexo, Wanahomen se viu trocando um
olhar confuso com o Superior.
Mas, à entrada do Salão, Hanani parou e olhou para eles.
— Príncipe?
Incapaz de resistir a um malicioso sorriso de triunfo, Wanahomen fez
um aceno apenas educado ao Superior e apressou-se em segui-la.

***

Ele cavalgou até o Yanya-iyan com a Auréola sendo levada em um cavalo


atrás dele e Hanani sentada à sua frente em sua montaria. Se Charris e
Hendet estivessem presentes, sem dúvida teriam reprovado esse último. Ele
não só deixara extremamente claro para toda a cidade que Hanani era sua
amante (só os deuses sabiam como o Hetawa reagiria quando soubessem),
mas também, ao mostrar favorecimento a ela, prejudicara a si mesmo. Todas
as famílias nobres e abastadas da cidade estariam almejando alianças
políticas agora que ele voltara. Sua escolha quanto à primeira esposa em
particular poderia fortalecer o seu governo ainda frágil. Ele não tinha mais
ilusões a respeito de Tiaanet. Mas que outra mulher de alto nível e com
boas relações se tornaria de bom grado a primeira esposa de um homem que
tinha tão abertamente uma favorita?
Enquanto eles percorriam as avenidas da cidade com o exército dele e os
aliados a tiracolo — Wanahomen acenando para as multidões que se
formavam para aplaudir e chorar ao vê-lo passar —, Hanani parecia pela
primeira vez não se importar com o decoro. Ela se recostou contra ele
enquanto cavalgavam, a cabeça no ombro dele, os olhos abertos, mas
perdidos em algum tumulto interno. Ele não poderia dizer se ela encontrava
algum conforto real na sua proximidade.
No Yanya-iyan, os rostos dos servos e dos funcionários ostentavam boas-
vindas e uma familiaridade surpreendente dos dias de sua juventude. Parecia
que os kisuati não haviam sido tolos o bastante para interferir com uma
função tão competente e eficiente. Portanto, Wanahomen sentiu-se seguro
em entregar Hanani aos cuidados deles, ordenando que a tratassem como
tratariam uma de suas esposas. Perturbou-o, contudo, o fato de ela não olhar
para trás enquanto ia com eles.
Ele passou as horas seguintes fazendo reuniões para proteger a cidade e
colocar em movimento as nascentes estruturas de seu governo. Era um
trabalho necessário, porém penoso, e a Lua dos Sonhos já mostrara seu
rosto de quatro faixas inteiro quando ele finalmente se retirou para os
aposentos nos quais pensaria como sendo de seu pai por muitos meses
ainda. Ali os servos o banharam e o perfumaram, soltaram suas tranças
esfarrapadas e fizeram tranças de corda, tiraram suas roupas banbarranas e
puseram nele um colar de metal dourado e uma plissaia de um tecido tão
macio que ele mal o sentia sobre a pele.
Foi nesse estado — sentindo-se nu e estranho a si mesmo, cansado e
incompreensivelmente solitário — que ele foi até Hanani.
Ela estava aninhada entre as almofadas da grande cama redonda dele. Os
servos haviam cuidado bem dela, substituindo sua faixa banbarrana por um
diadema de ouro e pedra olho de tigre e colocando nela um vestido plissado
de linho que aderia às suas curvas e que era transparente demais para uma
mulher de cor tão pálida. Ver uma mulher totalmente vestida jamais o
excitara com tamanha intensidade.
Mas ele conteve seus desejos quando se deitou, pois sabia, com o instinto
de um guerreiro, que agir de forma muito desastrada agora significaria
perdê-la. E, de repente, ficar com ela era extrema e desesperadamente
importante para ele.
Então ele se deitou ao lado dela e aguardou. Como esperara, Hanani se
virou para encará-lo. Só então ele notou que ela ainda usava o colarinho de
rubi de Compartilhador.
— Parabéns — disse ele, apontando para a coisa com o queixo. Foi um
gesto mais rígido e deselegante do que ele deveria ter feito, mas achou tolice
fingir algo que não sentia.
Ela aquiesceu, devagar.
— O irmão Mni-inh estaria orgulhoso. — Ela estendeu a mão para
tocar o cabelo dele, recém-trançado. — Assim como seu pai estaria de você.
Ele não pôde resistir: pegou a mão dela e beijou a palma aberta, depois
afagou o braço dela para mitigar parte do seu anseio. Para seu grande prazer,
parte da melancolia sumiu dos olhos dela. Mas voltou logo.
— Não sei o que fazer — falou ela. — O Hetawa… hoje estive no Salão
dos Compartilhadores, no Salão de Bênçãos, e me senti uma intrusa. Passei
a maior parte da minha vida lá, mas não é mais meu lar.
— A sensação pode passar com o tempo — obrigou-se a dizer ele.
— Não. Não acho que vá passar. — Ela engoliu em seco, claramente se
esforçando para falar. — Eu ainda amo a Deusa. Acho que poderia amar
curar de novo, com o tempo. Mas, voltar para aquela vida… não tenho mais
forças, Príncipe. Não depois de tudo o que já perdi. Não… não sabendo que
outras coisas eu poderia ter.
E Wanahomen rejubilou-se em seu interior quando ela olhou em seus
olhos, só pelo espaço de uma respiração, antes de desviar o olhar.
Mas, ah, com calma, com calma. Ele queria tanto dela e as coisas entre
eles ainda eram frágeis.
— Fique aqui e decida — sugeriu ele. — Uma quadra de dias, uma
oitava, uma estação, um ano. Fique o quanto precisar. Passe todos os dias
orando no jardim, se for do seu agrado. — E todas as noites comigo. — Você
não terá problemas aqui.
Ela franziu a testa.
— Não vou abusar da sua hospitalidade…
Ele tocou os lábios dela para fazê-la calar, como ela fizera com ele uma
vez.
— Como você me lembrou, não somos banbarranos — disse ele. — E
Gujaareh está livre dos kisuati. Agora podemos voltar a nos comportar
como pessoas civilizadas e ser gentis uns com os outros sem compensação ou
motivo.
Ela sorriu de volta, timidamente, embora mais uma vez o sorriso tenha
desvanecido. Perturbava-o que a felicidade dela fosse tão frágil. Ela cheirou
a mão dele e chegou mais perto, procurando maior conforto. Ele a puxou
para os seus braços, saboreando a cálida fragrância dela, e teria se
contentado em ficar assim a noite inteira. Mas ela ergueu o rosto e procurou
sua boca, e a língua dela tinha o doce gosto do desejo.
Com calma, ele lembrou a si mesmo, apesar de seu corpo esquecer o
cansaço de imediato. Mas, antes que pudesse começar a lenta sedução que
tinha em mente, ela se afastou de forma abrupta.
— Eu não te amo, Príncipe — falou ela, parecendo preocupada. — Você
entende isso? Eu quero, mas tem uma parte de mim que recua. Perdi todas
as pessoas que eu amava ultimamente. É mais fácil… mais seguro… não te
amar.
Perplexo, Wanahomen soergueu-se, apoiando-se em um cotovelo, e
refletiu sobre o assunto. Ela se juntara com ele em meio ao luto, para
consolar seu coração. Será que ela o teria desejado se não fosse por isso?
Impossível dizer. O reino da vigília não era como os sonhos: não dava para
mudá-lo com a vontade a seu bel-prazer. Ele só podia aceitar ou rejeitar o
que lhe era dado.
E ele não queria rejeitá-la. Essa parte, pelo menos, estava clara.
— Não vou fingir que gosto disso — respondeu ele. Mas, enquanto
falava, pousou uma das mãos na barriga dela. — Sou vaidoso o suficiente
para querer que todas as mulheres com quem me deito me amem. Mas sou
um príncipe: o amor não é uma necessidade. — Ele hesitou. — Mas
suponho que te devo sinceridade também: eu tinha pensado em me casar
com você. Mas fiquei sabendo por Yanassa que é má ideia pedir uma mulher
em casamento rápido demais e sem resolver certos assuntos primeiro. — Ele
fingiu uma ponderação arrogante. — Posso esperar uma quadra de dias,
talvez.
Ele ficou feliz de ver o sorriso dela voltar.
— Você me perguntou uma vez se não significava nada para mim. Quero
que você saiba… que isso não é verdade. Você é meu amigo, Wanahomen.
Uma das poucas pessoas que já chamei assim. — Ela suspirou. — É parte
do que sinto, eu acho. Eu, eu não sei ter amigos, Príncipe. Não sei ser
amante, menos ainda esposa. Não sei o que quero.
Ele se inclinou para baixo e beijou a testa larga da moça.
— Então fique até saber.
Ela não respondeu nada em princípio, e isso o deixou preocupado.
— Você quer filhos também. — O rosto de Hanani estava solene. — Se
me quer como esposa.
— Claro. Você vai ser uma ótima mãe… — Mas ele parou de falar ao ver
a expressão no rosto dela.
— Nunca vamos poder fazer filhos juntos, Príncipe — declarou ela. —
O dom do sonho é uma coisa arriscada: é impossível prever a vontade da
Deusa. Mas eu te disse antes que você poderia ser Coletor… e nunca houve
uma criança gerada por um Coletor e um Compartilhador. Uma criança
dessas nunca deveria existir. Na melhor das hipóteses, poderíamos apenas
fortalecer o dom do sonho que corre na sua linhagem… e isso por si só seria
uma coisa perigosa. Na pior das hipóteses… poderíamos gerar entre nós
outra Sonhadora Desvairada.
Esse comentário chocou Wanahomen, fazendo-o calar-se por um
minuto inteiro. Ele se sentou, preocupado em tantos sentidos que não
conseguia expressar seus sentimentos em palavras.
Com um suspiro pesado, Hanani sentou-se, apoiando-se nas costas dele.
A respiração dela fazia cócegas em sua nuca.
— Sinto muito. Mas nunca vou mentir, Príncipe. Talvez seja algo que as
boas amantes façam, mas… eu sou quem sou.
Ele estava feliz com aquilo? Ela poderia facilmente ter ficado calada, se
deitado com ele durante anos e fingido simplesmente ser estéril. Ela era
curadora: podia evitar qualquer coisa que não quisesse. Era melhor, não era,
saber o porquê?
No entanto, ela não o amava. Não queria a semente dele para seus filhos.
Não precisava da riqueza dele, pois podia voltar ao Hetawa; não precisava da
força dele, pois tinha muita. O que então ele poderia lhe oferecer? Ele não
estava acostumado a se sentir tão perdido.
— Se quiser que eu vá embora… — começou ela.
— Não.
— Príncipe…
Ele se virou e se deitou com ela outra vez, afastando os cachos do seu
rosto de camponesa, perguntando-se o que havia de errado consigo. Fora a
rejeição de Yanassa que o fizera querer tanto essa mulher? A falsidade de
Tiaanet? O fato iminente de que era improvável que ele amasse ou mesmo
gostasse das outras esposas, com as quais se casaria por dever? Ele desejava
ter uma mulher que correspondesse o seu amor. Não era um sonho tão
impossível: seu pai tivera isso com sua mãe. Mas, ao que parecia, o coração
de Wanahomen havia escolhido essa mulher.
— Não tenho certeza de nada mais entre nós, Hanani, a não ser de que
eu não quero que você vá embora — disse ele então.
O desassossego desvaneceu do rosto da jovem e ela relaxou.
— Obrigada.
Ela se aproximou e pôs uma das mãos sobre a dele. Parecia gostar mais
das mãos dele do que de qualquer outra parte do seu corpo. Ele a deixou
abrir sua mão esquerda, separando os dedos, acariciando sua palma com o
polegar. Quando ela levou a mão dele aos lábios dela para um beijo, porém,
o colarinho dela se mexeu, as pedras tinindo umas contra as outras, e ele
percebeu que havia mais uma coisa sobre a qual tinha certeza.
Ele respirou fundo.
— Bem, se vamos fazer um filho ou não fica ao seu critério de curadora
— falou ele, estendendo a mão para passar os dedos nas pedras do
colarinho. Eram rubis bonitos, de alta qualidade, rivalizando facilmente
com as joias que ele vira na coleção do palácio. O Hetawa enfim lhe dera o
devido valor. — Vou pedir aos servos que tragam os preservativos e
unguentos necessários, se não quiser desperdiçar magia, ou existem outras
formas de dar prazer um ao outro. Mas é você que eu quero, Hanani, não o
Hetawa. Me escolha ou não me escolha, vou conviver com qualquer decisão.
Pelo menos escolha alguma coisa a respeito deles.
Ela tocou o colarinho por um momento, pensando, por mais tempo que
a respiração contida do rapaz. Não era uma coisa justa a que pedira a ela e
ele sabia. O Hetawa era mais que um poder de Gujaareh para ela, era sua
família. Mas seus olhos estavam claros quando ela o fitou. Qualquer que
fosse sua decisão, ela já a tomara.
Quando ela se sentou para tirar o colarinho, ele suprimiu o triunfo. Sabia
que não devia demonstrá-lo. Contudo, foi difícil não sorrir quando ela
dobrou bem o colarinho, colocou-o a um lado e voltou a se deitar com ele.
— Eu dei a Ela o bastante — disse ela, erguendo o queixo. Havia um
tom resoluto e contundente em sua voz. — Dei o bastante a todo mundo.
Está na hora de ter alguma coisa para mim.
Então Wanahomen tentou lhe dar o que ela queria. Ele se moveu
devagar quando a tocou, dando-lhe tempo para pensar, pronto para cessar se
ela mudasse de ideia. Mas ela apenas suspirou enquanto ele a acariciava e
saboreava sua pele macia e, quando ele se posicionou no meio de suas pernas
para prepará-la, ela soltou um gemido de deleite que ele ouviria em seus
melhores sonhos desde então.
Então ele se uniu a ela, cuidadosa e reverentemente… pois as mulheres
não eram deusas? Ele esbanjava esforço em lhe dar prazer ao mesmo tempo
que se satisfazia, ciente de que aquela poderia ser sua única chance de
ganhá-la. Ela parecia satisfeita quando o fogo havia esfriado, então ele a
envolveu em seus braços — sem apertar, tendo em mente a reprimenda de
Yanassa — e enfim se permitiu descansar.
Mas, de manhã, quando acordou, Hanani havia ido embora.
47

UM SERVO DA PAZ

Quando o Hetawa de Ina-Karekh se formou ao redor de Hanani, ela não


ficou surpresa de encontrar Nijiri à sua espera.
— Saudações, Coletor.
Ele se levantou e se virou para ficar de frente para ela na plataforma onde
estivera orando e examinou o rosto dela por um momento.
— Então você tomou a sua decisão.
Ela aquiesceu e veio se postar diante dele. No sonho, ela usava a
vestimenta de um Compartilhador; agora estendia a mão para retirar o
colarinho de rubis. Estendeu-o e, após um longo e silencioso instante, ele o
pegou.
— Posso devolvê-lo na vigília também… — começou ela.
— Não. O sonho tem mais importância. — O colarinho desapareceu da
mão dele. — Me desculpe, Hanani. Nunca pretendi que esse teste te fizesse
sofrer tanto.
As linhas no rosto de Nijiri eram mais profundas e seus olhos, mais
velhos do que da última vez que ela compartilhara um sonho com ele.
Haviam lhe contado sobre a morte do Coletor Rabbaneh. Na vigília, ela
teria guardado seus pensamentos para si mesma, mas no sonho isso não
fazia sentido.
— Você sofreu na mesma medida, Coletor.
Ele não se deu ao trabalho de negar.
— Você vai encontrar paz com ele?
— Paz? Com Wanahomen? — Em um momento mais descontraído, ela
poderia ter dado risada. — Não. Não sei. Talvez. Há um vazio em mim,
Coletor, que nada jamais vai preencher. Não sei o que fazer quanto a isso.
Sangue onírico… — Ela chacoalhou a cabeça. Não conseguia achar as
palavras para explicar, mas sentiu uma certeza instintiva de que o sangue
onírico não lhe serviria de nada.
Nijiri suspirou, concordando.
— Tempo e amigos vão preencher esse vazio, Hanani. Mas… — Ele
desviou o olhar. — A perda não vai sumir nunca, não de todo. Pelo menos
não sumiu para mim.
Havia consolo em suas palavras, para grande surpresa dela. Ajudou, de
certa forma, saber que ela não deixaria de sentir falta das pessoas que amava.
Parecia… não bom, mas certo que a perda de sua fé deixasse uma cicatriz
duradoura.
Hanani se virou para ficar de frente para a porta de bronze no outro
extremo do Salão. Ele se afastou da estátua; eles começaram a percorrer
juntos o corredor entre as colunas.
— Inmu e eu começamos a encontrar almas à deriva nos reinos entre a
vigília e o sonho — revelou ele. — Muitas não se lembram de si mesmas
por completo; compartilhar a dor da Sonhadora Desvairada foi demais para
elas. Mas estão intactas o suficiente para serem mandadas para Ina-Karekh e
deixadas lá em paz.
Ela conteve a respiração, parando onde estava.
— Mni-inh? Dayuhotem?
— Ainda não. Mas é só uma questão de tempo.
A moça fechou os olhos, sentindo lágrimas pinicarem as pálpebras… e
sentindo também o grande vazio dentro dela se atenuar, só um pouco. Era
como se alguém houvesse acendido uma lamparina dentro dela. Apenas
uma pequena quentura, inútil na verdadeira escuridão, mas mesmo aquilo
era melhor do que nada.
— Eu gostaria de poder vê-los de novo.
Ele não falou nada. Era costume tranquilizar uma pessoa de luto
dizendo-lhe que ela voltaria a ver seus entes queridos um dia. Mas Ina-
Karekh era infinito. Hanani poderia procurar por várias existências e nunca
encontrar a única alma que procurava, muito menos duas. O silêncio de
Nijiri era sinceridade e ela estava grata por isso.
Mas a esperança também era sincera. Enquanto estivesse viva, ela podia
sonhar… e, porque era mulher, poderia continuar procurando após a morte
também. Então ela decidiu: iria vê-los outra vez um dia.
— Obrigada, Coletor — disse ela.
Ele inclinou a cabeça.
— Você pretende continuar curando?
— Eu gostaria. Gosto de ajudar as pessoas. Mas o Superior estava certo:
ninguém precisa das minhas habilidades aqui em Gujaareh. O Hetawa
provê tudo de que as pessoas precisam.
— O mundo é mais do que Gujaareh — comentou ele de maneira
enigmática, e então parou.
Eles haviam chegado à porta de bronze, que aqui em Ina-Karekh se
abria não para os degraus e a praça, mas para uma vastidão amorfa de
luminosidade. O caminho de volta para o reino da vigília.
— Mni-inh te treinou bem — disse ele —, então vamos confiar no seu
julgamento sobre essa e todas as outras questões. Só tome o cuidado de não
ensinar mais magia ao seu Príncipe, se decidir ficar com ele. Você foi sábia
de ensinar equilíbrio para ele, mas ele não tem disciplina para experimentar
as artes narcomânticas superiores. Depois de todo o esforço que investimos
nele, seria uma pena perdê-lo tão rápido.
Hanani baixou os olhos, concordando.
— Sim, Coletor.
Nijiri acenou a cabeça afirmativamente, depois pegou as mãos dela.
— Você sempre será do Hetawa, Hanani. Quer você sirva da nossa
maneira, quer da sua, ainda seremos seus irmãos. Não se esqueça da gente,
por favor.
Hanani sorriu e então, em um impulso, deu um passo à frente e
envolveu-o com os braços. Ele pareceu muito surpreso, pois não se
abraçavam Coletores. Mas, por fim, ele chacoalhou a cabeça, relaxou, e
envolveu-a com os braços também.
— Obviamente — disse ele, o rosto encostado no cabelo dela —,
devemos consultar as Irmãs sobre como lidar com as mulheres da forma
correta antes de tentarmos outra vez.
— Obviamente — concordou Hanani, e fechou os olhos. — Adeus,
Coletor.
Abrindo os olhos em Hona-Karekh, ela ficou acordada nos braços de
Wanahomen por várias horas.

***

Um dos guerreiros banbarranos concordou em conduzir Hanani até o


Merik-ren-aferu. Ela esperara que Unte fosse relutar, mas, para sua
surpresa, ele concordou com quase todos os seus pedidos. Mais tarde, ela
comentou isso com Hendet, que também escolhera permanecer com os
banbarranos por ora.
— Eles são bárbaros — falou Hendet, dando de ombros. — Nós
praticamente esquecemos o que significa fazer escolhas difíceis; eles não.
— E… a senhora? — Hanani fez essa pergunta com certo desconforto,
afinal, ela abandonara o filho de Hendet e não sabia como a outra mulher se
sentia a esse respeito.
— Eu fiz mais escolhas difíceis do que você jamais vai saber —
respondeu Hendet, e foi embora.
A seu pedido, construíram um acampamento solitário para Hanani na
extremidade do cânion, em uma saliência estável que era baixa o suficiente
para não a assustar. Com os ricos mercados de Gujaareh finalmente abertos
para eles e, além disso, com Wanahomen pagando aos guerreiros de caça por
suas tarefas de guarda, a tribo decidira abrir mão de sua costumeira viagem
de primavera às terras do oeste. Isso significava que Hanani podia contar
com proteção e assistência por pelo menos mais um ano.
Pelo preço de seu colarinho de rubi, ela conseguiu uma boa tenda e
suprimentos em abundância, com produtos frescos e mensagens trazidos
uma vez por semana por um cavaleiro de caça. Yanassa e as mulheres da
tribo também vinham com frequência, às vezes trazendo outros visitantes:
uma criança com a coluna torcida, uma mulher cujo cabelo estava caindo,
um homem com um machucado genital constrangedor. Hanani os mandava
embora curados e chegavam mais. Os banbarranos de outras tribos
começaram a viajar para visitá-la e, pelo acordo de Hanani com Unte, eles
eram bem-vindos no Merik-ren-aferu não importando como estavam as
coisas politicamente entre as tribos. Sua pequena saliência era um território
soberano dentro do território dos Yusir, mais ainda do que a an-sherrat de
qualquer mulher, e ninguém que se aproximava com bandeira branca com o
propósito de vê-la poderia ser ferido… nem aqueles de tribos em disputa
com os Yusir. Ela não convencera Unte a permitir que os shadoun viessem
também, mas continuaria insistindo.
Em troca da ajuda e da proteção da tribo, Hanani não cobrava os Yusir
pelos seus serviços. Então, mesmo os membros mais pobres da tribo vinham
e Hanani os curava. Dentro de pouco tempo, tinha visitas todos os dias. Até
Unte veio uma vez… para ver como o prêmio exótico de sua tribo estava,
disse ele, mas ela consertou os joelhos doloridos dele antes que fosse
embora.
Yanassa acabou convencendo-a a ter um contato mais próximo com os
Yusir, apesar de Hanani ficar preocupada que isso prejudicasse seus esforços
de se estabelecer como uma aliada neutra em vez de um membro da tribo.
Mas ela não pôde evitar, pois as noites no deserto eram frias e longas e
Nijiri estava certo: a presença de outros ajudava a manter a dor da perda
afastada. Então ela frequentava as celebrações e os rituais da tribo e até
pegou uma menininha, uma que ela curara de febre algum tempo antes,
como uma espécie de aprendiz. A criança era uma sonhadora fraca e nunca
conseguiria usar mais do que feitiços básicos do sono para ajudar suas
habilidades herbáceas e cirúrgicas. Mesmo assim, era bom ter alguém para
ensinar de novo.
Com o incentivo de Yanassa, Hanani até experimentou um jovem que se
oferecera várias vezes para levar suprimentos para ela. Ele era mais novo do
que ela, era tímido e tinha uma gagueira pior do que as que ela já tivera, e
deixava ingenuamente claro que gostava dela. Ela gostava dele também,
sobretudo considerando o quanto ele ficou alegre com o seu convite para
passar a noite lá. Isso se mostrou um erro, porém. Suas habilidades sexuais
eram suficientemente prazerosas — ele tinha muito entusiasmo —, mas ela
não sentiu grande desejo de voltar a vê-lo depois, o que tornou a decepção
dele ainda mais dolorosa para os dois quando ele se deu conta. Ela quase o
aceitou outra vez por pena até lhe ocorrer que isso era desrespeitoso. Ele
merecia uma amante que o quisesse de verdade.
E essa linha de raciocínio, quando Hanani a aplicou a si mesma, levou-a
a finalmente mandar um pergaminho para Gujaareh por meio do
mensageiro seguinte. Poucas quadras de dias mais tarde, quase um ano
depois que ela o deixara, Wanahomen chegou ao Merik-ren-aferu.

***

Ele não gritou. Não exigiu explicações. Mais tarde, Hanani descobriria que
Yanassa, Hendet, Ezack e Unte estavam por trás disso. Eles haviam se
recusado a levar Wanahomen até o acampamento dela até ele prometer ficar
calmo. Ele não estava bravo o suficiente para declarar guerra contra as seis
tribos, mas foi por pouco.
Em vez disso, sentou-se ao lado de Hanani na saliência, os dois deixando
as pernas dependuradas sobre uma queda de uns nove metros. Ele estava
resplandecente com um enfeite de contas lápis-lazúli na cabeça, luvas feitas
de trançado e um manto de brocado que chegava até o chão. Ela usava
apenas uma simples vestimenta bege; isso a fez sentir-se uma pavoa sem
graça, dada a plumagem brilhante dele.
Ainda assim, ele continuava olhando para ela. Ela não sabia o que isso
significava.
— Me desculpe — disse ela por fim.
Ele suspirou.
— Te pressionei demais e muito depressa. Eu é que devo um pedido de
desculpas.
Essas palavras surpreenderam Hanani, pois ela não esperara que ele
pedisse desculpas por nada, menos ainda por aquilo. Ao vê-la boquiaberta,
em estado de choque, Wanahomen fez cara feia, e Hanani se virou com
rapidez para esconder seu sorriso. Ela sentira uma falta tremenda das caras
feias dele.
— Eu desconfiei que você poderia estar aqui — comentou ele quando ela
se recuperou. — Aonde mais você poderia ter ido com tanta facilidade? Mas
não vim porque estava zangado.
— Compreensível — falou Hanani.
— E porque eu esperava que você fosse mudar de ideia algum dia e
voltar para mim.
Ela olhou para as sandálias, que pendiam sobre o vale, e chacoalhou-as
um pouco.
— Como eu fiz, pelo menos em parte.
— O que então você quer de mim? — Wanahomen se virou para fitá-la,
a expressão cautelosa e soberba, mas ele ainda não perdera de todo sua
personalidade banbarrana. Sua tensão estava nítida no modo como seus
olhos nunca desviavam do rosto dela e na força com que suas mãos
seguravam a saliência, os nós dos dedos empalidecendo.
— Eu, eu gostaria de voltar a ser sua amante — respondeu ela, sentindo
as bochechas pegarem fogo. — E sua amiga, e talvez mais. Se me quiser.
A desconfiança que passou pelo rosto dele foi dolorosa de ver.
— Depende — disse ele em um tom neutro demais. — Você me ama?
Ela confirmou com a cabeça e o viu relaxar.
— Você fazia parte do espaço vazio dentro de mim — explicou ela. —
Eu não percebi no começo porque o vazio era muito grande. Mas o Coletor
Nijiri estava certo: o tempo e os amigos trouxeram alívio e agora eu vejo que
sou mais feliz com você do que sem.
Ele flexionou um músculo do maxilar.
— Se é esse o caso, então peço que se case comigo. — Quando Hanani
olhou surpresa, ele cerrou ainda mais o maxilar. Ela havia se esquecido da
teimosia dele. — Sinto necessidade de ter laços com você, Hanani, por
algum motivo incompreensível.
Ela quase sorriu, mas o momento era sério demais para isso.
— Estou disposta a me casar, apesar de não saber nada sobre como é o
casamento. Eu não deveria conhecer as suas outras esposas primeiro? Para
ter certeza de que haverá paz entre nós, pelo menos.
— Não tenho outras esposas.
Hanani franziu a testa. Passara-se um ano desde a libertação de
Gujaareh e qualquer príncipe tinha inimigos.
— Não é… bom, irresponsabilidade o Príncipe do Ocaso não ter
esposas? Nem herdeiros?
— Eu já tenho um filho da minha carne e uma esposa que me ama e me
quer, mas os dois são meio selvagens. Eles fogem para o deserto sempre que
eu tento corresponder o amor deles. Se eu fosse um homem menos
confiante, poderia ficar preocupado.
Hanani baixou a cabeça para ocultar o sorriso. Wanahomen enfim se
revelara um pouco. Ele tocou a mão dela, que estava sobre a coxa, depois
deslizou os dedos pela perna abaixo, puxando as saias para cima. Ela corou
quando percebeu o que ele estava procurando: a tornozeleira de âmbar, que
ela ainda usava. Ao vê-la, ele pareceu satisfeito e depois deu um suspiro
profundo.
— Não fuja de mim de novo, Hanani — pediu ele, sua voz quase um
sussurro.
Ela pôs a mão dela sobre a dele.
— Não vou fugir.
— E você vai ser a minha primeira esposa?
— Eu… — Isso a sobressaltou; as implicações de ele não ter outras
esposas haviam passado batido. — Primeira esposa? Mas eu não sou alta-
casta. Não tenho conexões importantes, minha riqueza entre os banbarranos
é uma ninharia pelos cálculos gujaareen.
— Eu não me importo.
— Mas…
— Mulher, eu não me importo. Mas, se agradar você, as pessoas comuns
vão ficar felizes por eu ter tomado uma primeira esposa baixa-casta. Vai
deixar claro que eu não esqueci quem me ajudou a voltar ao poder. E o
nosso casamento pode simbolizar a reconciliação entre o Hetawa e o Ocaso
ou algo do tipo. — Ele fez um gesto impaciente. — Bom, qual é a sua
resposta?
Ela não conseguiu se forçar a falar. Havia um aperto em sua garganta,
mas não era causado por tristeza, então ela fez que sim com a cabeça. Ele
soltou um suspiro longo e pesado, a última tensão visivelmente deixando seu
corpo.
— Vou organizar uma cerimônia, então. Algo rápido, senão você muda
de ideia, e com bastante vinho, já que sei que os banbarranos vão
transformar a festa em uma loucura. Talvez duas cerimônias: uma na cidade,
para os membros do templo poderem comparecer, e uma aqui… — Ele
parou de falar, pensando. — Depois você prefere morar no Yanya-iyan ou
em Kite-iyan?
Surpreendeu Hanani o quanto aquela decisão foi fácil. Ou talvez só fosse
fácil por comparação.
— Coloque as suas outras esposas nos palácios. Vou ficar aqui e ser
curadora dos banbarranos.
— Ficar e ser… — Ele a encarou, incrédulo. — A primeira esposa de
um Príncipe não deveria macular as mãos com trabalho.
— Uma primeira esposa que nasceu na casta camponesa, e foi criada
pelo Hetawa, e é aliada dos banbarranos, naturalmente se sentiria realizada
com o trabalho que serve à Deusa e aos demais. Isso não deixaria as pessoas
comuns felizes também?
— Mas e se eu quiser ver você, em nome dos pesadelos?
Ela encolheu os ombros.
— Então venha para cá. Não é uma viagem mais longa do que para o
Kite-iyan, é? Mas aqui você pode ter que se privar de servos: esta saliência
não é grande o suficiente para outra tenda…
Ele resmungou alto o suficiente para a sua voz ecoar na parede do
cânion.
— Pelos demônios e pelas sombras, você é realmente a mulher mais
estranha que eu já conheci! Não faz sentido nenhum eu te querer.
— Fico feliz que você me queira — falou ela bem baixinho. Ele olhou
para ela e a raiva desvaneceu de seu rosto. Então voltou a pegar a mão dela e
ela não retirou.
Eles contemplaram as sombras se alongarem nas paredes vermelhas do
Merik-ren-aferu em silêncio. Uma transição adequadamente pacífica para o
começo de uma nova vida. Então Hanani se levantou, oferecendo a mão
para ajudar Wanahomen a fazer o mesmo. Ele fez uma carranca de leve
irritação em princípio, depois finalmente aceitou e deixou que ela o ajudasse.
Quando a luz se apagou do céu, ela o levou para a sua tenda, onde ele a
puxou para perto e houve mais silêncio. Isso era agradável a Hananja, pois
mesmo o menor ato de paz é uma bênção sobre o mundo.
GLOSSÁRIO
Acólitos: garotos que têm entre doze e dezesseis inundações e foram
escolhidos para seguir o Serviço de Hananja, mas que ainda não
fizeram o juramento para dedicar-se a um dos quatro caminhos.
Alta-casta: as famílias reais gujaareen, shunha e zhinha; em Kisua,
inclui soonha e caçadores.
Anzi Seh Ainunu: um general de Kisua, designado para
supervisionar a ocupação de Gujaareh.
Aprendizes: jovens que passaram para a idade do amadurecimento e
começaram o treinamento superior na vocação adulta.
Atador: cintas usadas para manter o sobrepano no lugar.
Auréola do Sol Poente: símbolo da autoridade e da divindade da
linhagem do Ocaso. Emblema que consiste em gravuras alternadas
em vermelho e dourado no formato de raios ao redor de um
semicírculo de ouro, localizado sobre um bastão entalhado em nhefti
branco.
Baixa-casta: membro de qualquer das castas na base da pirâmide
social gujaareen. Inclui agricultores e empregados.
Banbarra: uma tribo do deserto, antigos inimigos de Gujaareh.
Consiste em seis tribos autônomas que dominam o comércio nos Mil
Vazios. Em disputa com os shadoun.
Bílis onírica: um dos quatro humores oníricos que formam a base da
magia gujaareen. Extraída de pesadelos, útil para desencorajar o
crescimento nocivo e destruir tecidos desnecessários do corpo.
Casta: as classes sociais/vocacionais de Gujaareh e de Kisua,
atribuídas no nascimento. Um indivíduo só pode transcender sua
casta se entrar no serviço público (como o Hetawa ou o serviço
militar).
Ceifador: narcomancista cuja alma foi devorada pela ânsia por sangue
onírico. Dotado de grande poder e grande corrupção. Abominação.
Cidade de Hananja: outro nome para a capital de Gujaareh.
Cidade dos Sonhos: nome coloquial para a capital de Gujaareh.
Também conhecida como “Cidade de Hananja”, o nome oficial é
apenas “Gujaareh”.
Cirurgia: um ritual de cura perigoso, mas periodicamente necessário,
que apenas os Compartilhadores plenos e os aprendizes mais
avançados do caminho podem invocar.
Colarinho: item de decoração usado em Gujaareh e ocasionalmente
em Kisua. Consiste em uma faixa ao redor do pescoço e ornamentos
pendentes que formam drapeados em torno do peito e dos ombros.
Coletores: um dos quatro caminhos no Serviço de Hananja,
responsáveis por fazer cumprir a Lei.
Compartilhadores: um dos quatro caminhos no Serviço de Hananja,
responsáveis pela saúde da cidade. Usam narcomancia e, às vezes,
cirurgia e fitoterapia.
Conselho dos Caminhos: junto ao Superior, forma o conselho
administrativo do Hetawa. Inclui membros seniores dos Sentinelas,
Professores e Compartilhadores, bem como uma intermediária (sem
direito a voto) das Irmãs. Por cortesia, os Coletores trabalham sob a
autoridade desse conselho, embora oficialmente sejam autônomos.
Cordéis de marcação: para as mulheres banbarranas, uma série de
cordéis decorativos para marcar as etapas da vida: menarca, perda da
virgindade, parto e menopausa.
Cura: qualquer arte de cura não mágica, inclusive a fitoterapia e a
cirurgia. Em Gujaareh, essas artes são praticadas principalmente
pelos Compartilhadores de Hananja.
Deusa, A: em Gujaareh, outro termo para Hananja. Em Kisua, pode
referir-se a qualquer divindade feminina.
Dízimo: a oferenda devida por um cidadão gujaareen a Hananja.

Doação: a oferenda mensal de sonhos exigida de todos os cidadãos de


Gujaareh. Os doadores são denominados “portadores do dízimo”.
Escravizado: em Kisua, inimigos cativos, devedores, indigentes,
forasteiros indesejados e criminosos condenados à servidão por um
período de anos. A escravidão é ilegal em Gujaareh.
Gujaareh: uma cidade-estado cuja capital (também chamada
Gujaareh, ou Cidade dos Sonhos, ou Cidade de Hananja) se situa na
foz do Sangue da Deusa, ao longo do Mar da Glória.
Hanani: um Compartilhador-Aprendiz do Hetawa.

Hananja: uma das filhas divinas da Lua dos Sonhos e do Sol. A


deusa dos sonhos, também associada à morte e à vida além-túmulo.
Hekeh: planta fibrosa nativa do Vale do Rio do Sangue, cultivada em
Gujaareh e em outras nações ribeirinhas. Útil para a produção de
tecidos, cordas e muitos outros materiais.
Hetawa: o templo central e o centro físico da vida espiritual em
Gujaareh. O Hetawa supervisiona a educação, as leis e a saúde
pública.
Hieráticos: forma estenográfica ou cursiva da língua gujaareen
escrita.
Hona-Karekh: o reino da vigília.

Humores físicos: sangue, bílis, icor (plasma) e semente.


Humores oníricos: as energias mágicas extraídas dos sonhos, usadas
pelos Compartilhadores para curar.
Icor onírico: um dos quatro humores oníricos que formam a base da
magia gujaareen. Extraído de sonhos comuns e sem sentido, útil para
reparar danos ao corpo.
Idade da escolha: em Gujaareh e Kisua, 3 × 4, ou doze inundações de
vida. A idade em que os jovens cidadãos são considerados maduros o
bastante para seguir uma vocação escolhida, cortejar um pretendente
ou tomar muitas outras decisões significativas.
Idade da velhice: em Gujaareh, 4 × 4 × 4, ou 64 inundações de vida.
A idade em que cidadãos são considerados maduros o bastante para
ocupar posições de liderança ou respeito. Em Kisua, os cidadãos são
considerados velhos aos 52 anos.
Idade do amadurecimento: em Gujaareh e Kisua, 4 × 4, ou dezesseis
inundações de vida. A idade em que são concedidos aos jovens
cidadãos os direitos legais e todos os outros direitos da maioridade e
podem receber a confirmação de sua vocação de escolha.
Ina-Karekh: a terra dos sonhos. Os vivos podem visitar essa terra por
breves períodos durante o sono. Os mortos vivem nesse lugar pela
eternidade.
Indethe: palavra da língua suua para atenção/honra/amor.
Interminável, O: o grande oceano a oeste do Mar da Glória.
Inundação: evento anual em que o rio Sangue da Deusa transborda e
enche o vale do rio de Sangue, renovando a fertilidade do solo.
Também é o marco com o qual os habitantes do vale contam eventos
perenes, tais como a idade.
Inunru: grande figura respeitada da história da fé hananjana.

Irmãs de Hananja: ordem (independente do Hetawa) que consiste


predominantemente de mulheres que servem Hananja coletando
sementes oníricas na cidade.
Jungissa: pedra rara que ressoa em resposta a estímulos.
Narcomancistas habilidosos as usam para induzir e controlar o sono.
Todas as jungissas são fragmentos das sementes do Sol, caídos na
terra, vindos do céu.
Kisua: cidade-estado na região do meio oriente continental, pátria de
Gujaareh.
Kite-iyan: o palácio alternativo do Príncipe, lar de suas esposas e
filhos.
Lágrima-da-lua: flor encontrada ao longo do Sangue da Deusa, que
só floresce sob a luz da Lua dos Sonhos. Sagrada para a fé hananjana.
Lei de Hananja: o conjunto de leis que regem Gujaareh. Sua
doutrina é a paz.
Lestenenses: termo coletivo para povos de terras longínquas ao leste
do Mar da Glória.
Linhagem do Ocaso: a família real de Gujaareh, considerada
descendente do Sol.
Lua da Vigília: irmã mais nova da Lua dos Sonhos. Visível somente
antes do nascer do sol e depois do pôr do sol (até a Lua dos Sonhos
aparecer).
Lua dos Sonhos: a mãe de todos os deuses e deusas, exceto do Sol e
da Lua da Vigília, e senhora do céu. Também chamada de “a
Sonhadora”.
Magia: o poder de cura e dos sonhos, usado por Coletores,
Compartilhadores e Irmãs de Hananja.
Manuflexão: gesto de respeito oferecido apenas àqueles que têm o
favorecimento dos deuses. O suplicante se apoia em um joelho,
cruzando os antebraços (com as palmas para fora) diante do rosto.
Uma versão menor (braços em paralelo diante do peito, com as
palmas para baixo, com uma mesura incluída, dependendo da
profundidade do respeito mostrado) é oferecida como cumprimento
rotineiro ou gesto de desculpas em Gujaareh.
Média-casta: membro de qualquer casta do meio da pirâmide social
gujaareen. Inclui comerciantes e artesãos.
Merik: um dos filhos divinos da Lua dos Sonhos e do Sol. Tritura
montanhas e preenche vales.
Merik-ren-aferu: um vale a oeste e norte da capital de Gujaareh, na
extremidade do Mil Vazios. Lar da tribo Yusir-Banbarra.
Militares: como os Servos de Hananja, um serviço público em
Gujaareh, e uma casta na qual se pode nascer ou na qual se pode ser
incluído.
Mil Vazios: o deserto que se estende do extremo sul dos Territórios
Gujaareen ao extremo norte do Protetorado kisuati.
Mnedza: uma das filhas divinas da Lua dos Sonhos e do Sol. Traz
prazer para as mulheres.
Mni-inh: um Compartilhador do Hetawa.

Narcomancia: as habilidades gujaareen de lançar feitiços de sono,


controlar os sonhos e usar os humores oníricos. Coloquialmente
chamada de “mágica dos sonhos”.
Nhefti: árvore resistente, de tronco espesso, que cresce próximo às
montanhas do Vale do Rio de Sangue. Sua madeira é branco-âmbar e
naturalmente perolada quando polida. Usada apenas para a fabricação
de objetos sagrados.
Nijiri: um Coletor de Hananja. A lótus azul.

Noite Hamyan: a noite mais curta do ano, quando os sonhos se


tornam tão escassos que a Deusa Hananja passa fome. Considerada
uma celebração do solstício de verão em Gujaareh.
Nome de alma: nomes dados às crianças gujaareen para protegê-las
em Ina-Karekh.
Nortenhos: termo coletivo para os membros de várias tribos ao norte
do Mar da Glória. Termo educado para “bárbaros”.
Numeráticos: representações gráficas/simbólicas usadas na
matemática, das quais se diz que têm sua própria mágica.
Pictorais: a forma escrita glífica/simbólica da língua gujaareen,
baseada no kisuati escrito. Usada em pedidos formais, poemas,
anotações históricas e escritos religiosos.
Plissaia: vestimenta usada principalmente por homens em Gujaareh
que consiste em uma vestidura de hekeh que vai até o joelho ou de
um tecido de linho plissado.
Portador do dízimo: pessoa designada pelo Hetawa para receber a
bênção suprema de Hananja em troca do dízimo dos humores
oníricos.
Príncipe/Senhor do Ocaso/Avatar de Hananja: o governante de
Gujaareh no reino da vigília. Após a morte, é elevado ao trono de
Ina-Karekh, onde governa ao lado de Hananja até a chegada de um
novo Rei (que ele viva na paz Dela para sempre).
Professores: um dos quatro caminhos no Serviço de Hananja,
responsáveis pela educação e pela busca do conhecimento.
Protetores: o conselho de anciãos que governa Kisua.

Quatro: o número de faixas da face da Lua dos Sonhos. Número


sagrado, assim como seus múltiplos.
Quatro de quatro: 4 × 4 × 4 × 4, ou 256. Um número sagrado.
Rabbaneh: um Coletor de Hananja; a papoula vermelha.

Rapinante: aves de rapina noturnas que caçam no Mil Vazios. É de


mau agouro ver rapinantes durante o dia ou longe do deserto fora da
estação chuvosa.
Rei: em Gujaareh, o Príncipe falecido mais recentemente (que ele
viva na paz Dela para sempre).
Sabedoria de Hananja: compilação de provérbios, profecias e outras
tradições que os fiéis hananjanos devem aprender.
Sábios Fundadores: os fundadores de Gujaareh, sendo o mais
importante entre eles Inunru.
Sanfi: um homem dos shunha, pai de Tiaanet.

Sangue da Deusa: rio cuja nascente se localiza nas montanhas de


Kisua. Sua foz desagua no Mar da Glória, na parte norte de
Gujaareh.
Sangue onírico: um dos quatro humores oníricos que formam a base
da magia gujaareen. Extraído do último sonho que ocorre no
momento da morte, útil para trazer paz.
Semente onírica: um dos quatro humores oníricos que formam a
base da magia gujaareen. Extraída de sonhos eróticos, útil para
estimular o crescimento que normalmente ocorre apenas no útero
(por ex.: novos membros).
Sentinelas: um dos quatro caminhos no Serviço a Hananja.
Protegem o Hetawa e todos os trabalhos da Deusa.
Servo: em Gujaareh, membro da casta mais baixa. Servos não têm
permissão para acumular riqueza e podem escolher os próprios
senhores.
Servos de Hananja: sacerdotes que juraram servir à Deusa.

Shadoun: uma tribo do deserto, inimigos de Gujaareh no passado,


agora aliados dos kisuati.
Shunha: um dos dois ramos da nobreza gujaareen, que afirma
descender de relacionamentos entre mortais e filhos da Lua dos
Sonhos. Os shunha mantêm os costumes e as tradições da terra natal
(Kisua).
Sobrepano: vestimenta usada principalmente por homens em
Gujaareh que consiste de dois pedaços de tecido compridos (até o
joelho ou até o tornozelo) atados ao redor da cintura por tiras de
couro ou correntes de metal.
Soonha: a nobreza kisuati, que afirma descender de relacionamentos
entre mortais e filhos da Lua dos Sonhos.
Sonta-i: um Coletor de Hananja; a beladona anil.
Sunandi Jeh Kalawe: uma dama dos soonha kisuati, indicada como
Voz do Protetorado em Gujaareh.
Superior: chefe administrativo do Hetawa, cujas decisões são
tomadas em conjunto com o Conselho dos Caminhos e os Coletores.
Terra das sombras: o lugar em Ina-Karekh criado pelos pesadelos de
todos os sonhadores. Aqueles que morrem em sofrimento são
arrastados para lá a fim de habitar por toda a eternidade.
Terras do Sul: nome coletivo para várias tribos que vivem além da
nascente do rio Sangue da Deusa, muitas das quais são estados-
vassalos de Kisua.
Territórios, Os: nome coletivo para as cidades e tribos que juraram
lealdade a Gujaareh.
Tiaanet: uma dama dos shunha, da linhagem de Insurret.

Timbalin: narcótico popular em Gujaareh. Permite sonhar de


maneira descontrolada.
Umblikeh: o cordão que liga a alma à carne e permite viajar para fora
do corpo a outros reinos. Quando rompido, a morte sobrevém
instantaneamente.
Una-une: um Coletor de Hananja recém-falecido. Mentor de Ehiru.

Vestidura: vestimenta usada por homens e mulheres em Kisua. A


veste de uma mulher normalmente vai até o tornozelo; a do homem
pode ir até o joelho ou ser mais curta e adornada com um drapeado
até o ombro.
Visão falsa: sonho que parece ser uma visão do futuro ou do passado,
mas é distorcida demais para ser interpretada, ou simplesmente
inexata.
Visão verdadeira: visão onírica do futuro ou do passado.

Voz de Kisua: um embaixador de Kisua, que fala pelos Protetores. O


título apropriado para uma Voz é “Orador”.
Wanahomen: filho de Eninket, herdeiro da Linhagem do Ocaso.

Yanya-iyan: o palácio principal do Príncipe na capital, sede do


governo de Gujaareh.
Zhinha: um dos dois ramos da nobreza em Gujaareh, que afirma
descender de relacionamentos entre mortais e filhos da Lua dos
Sonhos. Os zhinha acreditam que a força de Gujaareh está em sua
capacidade de se adaptar e mudar.
AGRADECIMENTOS
Assim como com Lua de sangue, a minha gratidão aqui é mais para os
recursos do que para as pessoas, mas, nesse caso, pessoas forneceram os
recursos, então elas merecem um agradecimento especial.
Em 2004, ganhei a bolsa Gulliver’s Travel Research Grant, oferecida
pela Specultive Literature Foundation (slf). A bolsa era pequena, apenas
seiscentos dólares na época, mas me permitiu viajar para o Canyon de
Chelly, em Chinle, no Arizona, dentro da nação Navajo. Eu tinha feito
algumas pesquisas que sugeriam que a civilização dos Anasazi, os antigos
indígenas pueblo que foram os primeiros habitantes do cânion (os Navajo
são seus ocupantes agora, mas prestam homenagens aos inquilinos
anteriores), poderia ter entrado em colapso por conta de uma súbita e
trágica turbulência religiosa: ou uma religião estrangeira vinda do sul ou
alguma nova revelação desenvolvida internamente, acontecendo ao mesmo
tempo que uma seca terrivelmente longa. Na época, eu tinha tido uma vaga
ideia sobre escrever uma fantasia ambientada em uma cultura lutando contra
uma turbulência dessas. Aquelas ideias meio que se dissolveram e se
distribuíram entre vários romances e contos na minha cabeça, mas a parte
que ficou neste livro foi o próprio cânion, ao qual tentei prestar um tributo
na forma do Merik-ren-aferu. O vilarejo no penhasco dos Yusir-Banbarra
foi baseado nos vilarejos Anasazi que eu vi, rotineiramente posicionados a
trezentos metros ou mais do fundo do cânion. Então obrigada, slf, por me
dar a chance de ver isso.
(Para mais informações sobre os Anasazi, os Navajo e as outras nações
americanas que faziam coisas legais no passado, recomendo vivamente 1491:
New Revelations of the Americas Before Columbus, de Charles C. Mann. É
surpreendente. E também Those Who Came Before, de Robert Lister e
Florence Lister; lindas fotos das ruínas em si.)
Por favor, lembrem-se de que a slf é uma organização sem fins
lucrativos e as doações feitas para ela são dedutíveis nos impostos. Se
quiserem ajudar outros escritores a ver coisas legais, vocês deveriam fazer
doações no site www.speculativeliterature.org!
Obrigada também ao pessoal do Totsonii Ranch em Chinle, de quem
quase ganhei um fantástico passeio a cavalo, mas, infelizmente, o cânion
estava inundado com o degelo da primavera, então era perigoso demais.
Mas eles me falaram muito sobre o cânion, sem qualquer custo. E um
agradecimento maior ao Tim do Canyon de Chelly Jeep Tours, que me
levou a um passeio em alta velocidade verdadeiramente angustiante pelo
cânion (sim, inundado) e me informou, quando fiquei francamente
preocupada com, bem, uma morte violenta e molhada, que pelo menos eu
morreria fazendo algo interessante.
SOBRE A AUTORA

©Laura Henifin

N. K. JEMISIN é uma autora nova-iorquina, cujas histórias foram


nomeadas diversas vezes aos maiores prêmios de ficção científica e fantasia
do mundo, incluindo o Nebula, Locus e World Fantasy Award. Em 2016,
se tornou a primeira pessoa negra a receber o Hugo na categoria principal
por seu livro A quinta estação, e nos dois anos seguintes quebrou recordes ao
ganhar novamente na categoria principal com as continuações da série A
TERRA PARTIDA: O portão do obelisco e O céu de pedra.
Jemisin é considerada uma das mais importantes vozes da ficção
especulativa atual por construir universos ricos e complexos, que vão da
fantasia à ficção científica. Suas obras falam sobre justiça social, preconceito,
violência e sobre a multiplicidade do comportamento humano.
Copyright © 2012 por N. K. Jemisin

Publicado em comum acordo com a autora e The Knight Agency, através de Yañez, parte da
International Editors’ Co. S.L. Literary Agency.

Título original: THE SHADOWED SUN

Direção editorial: Victor Gomes


Coordenação editorial: Aline Graça
Acompanhamento editorial: Lui Navarro e Thiago Bio
Tradução: Aline Storto Pereira
Preparação: Bárbara Waida e Letícia Nakamura
Revisão: Nestor Turano Jr.
Design de capa: Renata Vidal
Imagens de capa e miolo: © Benjamin Harte/Arcangel e © IgorZh/Shutterstock
Projeto gráfico: Vanessa S. Marine
Diagramação: Valquíria Chagas
Diagramação para e-book: Calil Mello Serviços Editoriais

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares, organizações e situações são
produtos da imaginação do autor ou usados como ficção. Qualquer semelhança com
fatos reais é mera coincidência.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em partes, através de


quaisquer meios. Os direitos morais do autor foram contemplados.

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


J49s Jemisin, N. K.
Sombras do sol / N. K. Jemisin ; Tradução: Aline Storto Pereira – São Paulo : Morro Branco, 2023.

ISBN: 978-65-86015-78-2

1. Literatura americana — Romance. 2. Ficção americana. I. Storto Pereira, Aline. II. Título.
CDD 813
Todos os direitos desta edição reservados à:
EDITORA MORRO BRANCO
Alameda Santos 1357, 8º andar
01419-908 – São Paulo, SP – Brasil
Telefone (11) 3373-8168
www.editoramorrobranco.com.br
Produzido no Brasil
2023

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