Sombras Do Sol - N. K. Jemisin
Sombras Do Sol - N. K. Jemisin
Sombras Do Sol - N. K. Jemisin
Capa
Sumário
Folha de rosto
Epígrafe
1. O teste do Compartilhador
2. O teste do caçador
3. O teste da dama
4. Insônia
5. O portador do dízimo
6. Ocupação
7. A sombra
8. Veneno
9. Corte
10. Sonta-i
11. Traição
12. O segundo teste
13. Intervalo
14. Merik-ren-aferu
15. Um chamado à luta
16. O preço de um Compartilhador
17. A negociação de aço
18. A negociação do silêncio
19. Bárbara
20. Isca
21. Armadilha preparada
22. Repercussão
23. A negociação da magia
24. Legado
25. A negociação da dor
26. Professora
27. Sonhando acordado
28. Misericórdia
29. Os Protetores
30. Nome de alma
31. O pesadelo
32. Morte
33. Convite
34. Canto fúnebre
35. Consolo
36. Legado
37. Líder de guerra
38. Segredos
39. A guerra começa
40. Aliança
41. Paz rompida
42. Retorno
43. A batalha da carne
44. A batalha da alma
45. A batalha do sangue
46. Príncipe do Ocaso
47. Um Servo da paz
Glossário
Agradecimentos
Sobre a autora
Créditos
“No deserto vi uma criatura nua, bestial,
que, agachada no chão,
segurava o coração nas mãos,
e o comia.
Eu perguntei: ‘É gostoso, amigo?’.
‘É amargo, amargo…’, respondeu ele.
‘Mas eu gosto
Porque é amargo
E porque é meu coração.’”
— Stephen Crane,
The Black Riders and Other Lines
1
O TESTE DO COMPARTILHADOR
O TESTE DO CAÇADOR
A fumaça chegava longe nas brisas áridas. O tênue odor veio até
Wanahomen através do véu enquanto ele mirava uma cidade distante do
outro lado do vale verdejante. Sua cidade. A nuvem de fumaça se erguia de
dentro dos seus muros.
— Foi Wujjeg — disse Ezack ao seu lado. Ele falou em chakti, a língua
de Banbarra.
— Eu sei — respondeu Wanahomen na mesma língua. Debaixo dele, a
camela se remexeu, agitada, e soltou um resmungo de reclamação.
Distraído, Wanahomen afagou o pescoço dela sem tirar os olhos da nuvem
de fumaça.
— Não acho que Wujjeg pretendia matar, não a princípio. Contudo,
quando o primeiro gujaareen foi derrotado, o segundo enlouqueceu e o
atacou, completamente exposto.
— Ele não devia ter eviscerado o primeiro.
— O que vai fazer?
Wanahomen não respondeu, dando meia-volta com a camela e descendo
a trilha do ponto de observação de volta para o acampamento, passando por
um caminho saliente que era mais seguro de atravessar com quatro patas do
que com dois pés. A maior parte dos cavalos e camelos havia sido solta para
procurar comida pelas trilhas íngremes abaixo da plataforma, embora
houvessem empilhado forragem por perto para os animais se alimentarem
também. Os homens mais jovens do acampamento já haviam acendido a
fogueira da noite. O aroma do chá em preparo afastou o cheiro de cidade
em chamas das narinas de Wanahomen, mas não de sua mente.
Ao chegar à plataforma, Wanahomen desmontou sem tirar o arreio nem
a sela do animal, assobiando a nota que significava fique. A camela grunhiu
em um gesto rabugento de aceitação e Wanahomen entrou no
acampamento a passos largos, ignorando os olhos que o seguiam e tentavam
interpretá-lo, não respondendo às poucas vozes que murmuraram
cumprimentos. Seus olhos estavam fixos em um jovem agachado próximo a
uma das fogueiras, rindo com um grupo de companheiros. Alguém cutucou
o jovem — Wujjeg — quando Wanahomen se aproximou e, depois de um
instante de hesitação, Wujjeg levantou-se e se virou para encará-lo. Ele
deixara o véu escorregar para um lado. Sem mulheres ou estranhos por
perto, o fato em si não era um insulto, mas o acampamento inteiro notou o
olhar insolente que ele lançou para Wanahomen.
— I-Dari — disse ele, oferecendo o termo respeitoso com um tom que
era qualquer coisa, menos isso. — Pelo menos o ataque foi lucrativo, você
tem de admitir.
— Realmente — concordou Wanahomen. — A tribo deve se certificar
de agradecer a você quando orar pelos ancestrais. — Ele pôs a mão no cabo
de marfim da faca e esperou.
O sorriso de Wujjeg desvaneceu apenas por um momento, assim como
parte de sua presunção. Automaticamente ele levou a mão ao cabo da
própria arma, mas não a desembainhou.
— I-Dari — começou ele, porém, antes que pudesse dizer mais, a
lâmina de Wanahomen saiu rasgando da bainha e desenhou uma segunda
boca na garganta de Wujjeg.
Houve um arquejo de alguém entre os amigos de Wujjeg. Ninguém mais
falou nem se mexeu. Wujjeg também não produziu som algum, colocando
as mãos por um momento no fluxo que lhe jorrava da garganta antes de
tombar ao chão.
Wanahomen sacudiu a faca e voltou-se para o membro mais jovem da
tropa.
— Embale Wujjeg para a viagem e coloque-o junto à bagagem.
Precisamos devolvê-lo para o clã dele.
O jovem engoliu em seco e balançou a cabeça, em silenciosa
concordância. Wanahomen embainhou a faca e passou por cima da poça
cada vez maior de sangue a fim de caminhar até a fogueira seguinte. Pouco
antes do círculo de pedras, ele se ajoelhou, curvando a cabeça.
— Unte, posso entrar?
O homem sentado ao lado do fogo inclinou a cabeça. Um homem idoso
com as feições redondas de um ocidental — alguém escravizado —
apressou-se em afastar uma pedra e Wanahomen entrou no círculo.
— Seja bem-vindo — saudou Unte, depois fez um sinal para a pessoa
escravizada. Enquanto o servo pegava uma pinça para tirar das chamas a
caixa de cozimento metálica, o homem lançou a Wanahomen um longo
olhar reflexivo. — Estou tentando decidir se declarei como líder de caça um
tolo ou um gênio.
O indivíduo escravizado entregou uma tigela para Wanahomen.
Tubérculos de cercrus assados com filetes de carne condimentada que podia
ser de kinpan, uma ave de chão, ou outra entre meia dúzia de espécies de
ratazana do deserto. Erguendo o véu com uma das mãos, Wanahomen
comeu de maneira rápida e asseada, sem fitar Unte.
— O senhor veio nessa cavalgada para ver como faço as coisas — disse
ele.
— Realmente. E agora vejo.
— Não fiz nada que viola os costumes desta tribo.
— Verdade. Você é sempre apropriado e cuidadoso, Wana.
Wanahomen pôs o prato no chão e esfregou os olhos. Estava cansado
demais para jogos verbais.
— Vai me expulsar?
— Ainda não decidi.
Não! Estou tão perto! Mas, em vez de expressar o protesto, Wanahomen
falou:
— Posso fazer um pedido, então, enquanto ainda sou o seu líder de caça?
— Faça.
— Espere.
— Esperar? Para o clã de Wujjeg incitar os parentes do Dzikeh-
Banbarra para a briga?
— Cada homem desta tropa jurou me obedecer, Unte. Wujjeg
desobedeceu a minha ordem. Só pode haver uma punição para isso
enquanto estamos caçando.
— Ele matou um inimigo. — A voz de Unte era branda, mas seus olhos
eram frios e penetrantes por trás do véu.
Wanahomen tentou não suspirar.
— Já expliquei isso para o senhor e para todo o restante da tribo. Só os
kisuati são nossos inimigos, não todos os habitantes da cidade.
— E já expliquei para você que a maioria dos banbarranos não
concordaria com essa afirmação nem se importaria com a diferença —
retorquiu Unte. As rugas em torno dos olhos dele relaxaram sob a luz da
fogueira, por trás do véu ele estava achando graça. — Mas admito que
talvez estejam mais inclinados a prestar atenção agora.
Wanahomen também relaxou, aliviado.
— E então, gênio ou tolo?
— Gênio não, de jeito nenhum.
— Mas não completamente tolo?
— Que os deuses ajudem a todos nós, não, um tolo não. Minha vida
seria mais fácil se você fosse, porque então eu poderia me ver livre de você.
Wanahomen pôs no chão a tigela vazia, fazendo, por um hábito
desatento, um aceno de agradecimento ao indivíduo escravizado e então se
levantou para apertar o ombro do ancião.
— Prometi fazer do senhor um rei entre os reis, Unte. Isso não faz valer
a pena me suportar?
Mas Unte chacoalhou a cabeça e respondeu:
— Só se você sobreviver para conseguir, Wana. Durma um sono leve esta
noite.
Dispensado dessa forma, Wanahomen se pôs de pé e foi embora.
Manteve-se olhando para a frente enquanto atravessava o acampamento de
novo, desta vez por cansaço, não por raiva. A maior parte do grupo de caça
consistia de apoiadores seus, dos quais poucos se ressentiam dele pela morte
de Wujjeg. No entanto, iam querer conversar com ele, descobrir seus planos,
elogiar sua franqueza ou reafirmar a própria lealdade. Um ou dois sem
dúvida o convidariam a compartilhar o catre durante a noite, embora ele
normalmente recusasse tais ofertas em busca de evitar acusações de
favoritismo. Ele não queria nada mais do que o seu próprio catre e a paz dos
sonhos, mas primeiro tinha de cuidar da sua montaria: nenhum banbarrano
respeitável dormiria antes de fazê-lo. Como ele não era banbarrano, era
importante que permanecesse dentro dos limites da respeitabilidade.
Entretanto, quando chegou à trilha aos pés da plataforma, encontrou
Laye-ka já sem a sela, sua pelagem cor de creme escovada e limpa. A camela
mastigava placidamente algum pedaço de vegetação e grunhiu para ele à
guisa de cumprimento, chacoalhando o colar de amuletos que ele lhe
trançara. Ao ouvir o barulho, Ezack assomou por detrás da anca do animal e
sorriu para ele.
— Sabia que você ia voltar. A mocinha aqui não quis esperar. Começou a
pisotear de um lado para o outro e a grunhir quando você saiu.
Wanahomen deu uma risadinha e se aproximou da cabeça da camela,
estendendo a mão para esfregar sua testa dura. Ela encostou a cabeça na
mão dele, implorando afago.
— Não é igualzinha a uma mulher? — perguntou ele, agradando à
camela.
— Verdade! Então… — Ezack deu uma olhada ao redor à procura de
curiosos. — O velho ficou bravo?
— Não. Ele entendeu.
Ezack deu um suspiro de alívio, seu hálito inflou por um momento o
tecido do próprio véu.
— Achei que ele fosse entender, mas, mesmo assim.
— Ele me avisou para ter cuidado. Como se eu precisasse desse aviso. —
Enquanto Wanahomen esfregava as orelhas de Laye-ka, seus olhos se
dirigiram de volta ao acampamento. A maioria dos grupos de homens já
havia se dispersado, como se a morte de Wujjeg e a aprovação de Unte
houvessem encerrado todas as discussões. Um grupo remanescente, aqueles
que eram amigos de Wujjeg, estava sentado ao redor de uma das fogueiras,
aos cochichos. Wanahomen não ficou particularmente perturbado com isso,
pois Wujjeg era o mais esperto e o mais audacioso daquele bando; sem ele,
os demais representavam pouco perigo. Não obstante, ele obedeceria a Unte
e tomaria cuidado.
— Ah, sua faminta, agora vá para lá. — Ele deu um tapinha no ombro
de Laye-ka e, com um último olhar pesaroso, ela se virou e se afastou para
se juntar aos outros cavalos e camelos. — Descanse, Ezack.
— Em paz, Wana.
Wana parou, olhando surpreso para trás ao ouvir a expressão de
despedida familiar, mas tipicamente gujaareen. Ezack deu de ombros para o
olhar dele.
— Nós, banbarranos, encontramos uso para tudo o que aparece no nosso
caminho. Ficamos com você, não ficamos?
Com tais palavras, Ezack começou a empilhar alforjes contra a parede da
plataforma, ignorando Wana educadamente quando ele murmurou
“obrigado” em gujaareen. Um momento delicado demais para o gosto dos
banbarranos, o tipo de ação que Wanahomen jamais teria se permitido fazer
com nenhuma outra pessoa para que não o achassem mole como a maioria
dos habitantes da cidade. Mas Ezack aprendera a tolerar o comportamento
peculiar de seu comandante anos antes, algo pelo qual Wanahomen era
grato. Ele se afastou rápido, antes que o impulso de ficar sentimental
piorasse.
Seu lugar no acampamento estava pronto, o fogo ardia vivamente e o
catre fora disposto pelo seu próprio indivíduo escravizado. Não havia
nenhum círculo de barreira aqui: um bom líder de caça não precisava se
separar de seus homens. Quando entrou na área da luz do fogo e se sentou,
mexendo-se para se deitar de lado, Wanahomen fez um aceno para o servo.
— Vamos para casa amanhã.
Charris, que um dia fora general do exército de Gujaareh, embora em
um passado distante, devolveu o aceno de onde estava no próprio catre.
— Você se saiu bem — Charris falou em gujaareen, em parte porque seu
chakti era pobre, em parte pela privacidade. Apenas Unte e Ezack falavam
alguma coisa da língua: Unte com pouca fluência, Ezack com bem menos
do que isso.
As bochechas de Wanahomen esquentaram com o elogio.
— Meu pai me ensinou a lidar logo com as provocações.
— Se serve de consolo, o gujaareen que foi ferido provavelmente vai
sobreviver. Se os companheiros o mantiveram aquecido e o levaram direto
para o Hetawa, o ferimento pode ter sido curado.
Wanahomen aquiesceu lentamente, contemplando o fogo.
— Eu tinha esquecido isso. Cura. Incrível, não é? Que eu possa ter
esquecido uma coisa dessas. — Ele se calou enquanto os muros da capital,
dourados durante o pôr do sol, cintilavam em sua memória. Por um
momento, quase pôde sentir o cheiro das flores de lágrima-da-lua no vento,
e então a lembrança se desvaneceu. Lamentou que houvesse passado: suas
lembranças eram tênues e raras nos últimos tempos. — Nenhum gujaareen
de verdade esqueceria uma coisa dessas, Charris. Esqueceria?
— Faz tempo que estamos longe, meu Príncipe, mas sempre seremos
gujaareen — respondeu Charris em um tom amável.
Sim. E Gujaareh voltaria a ser dele. Wanahomen repetiu aquele
pensamento para si mesmo uma vez, e mais três vezes em voz baixa: quatro
repetições formavam uma oração. Dele, pela graça de Hananja.
— O encontro com os shunha — comentou ele. — Está marcado?
Charris confirmou com a cabeça.
— Daqui a três dias, ao pôr do sol. Na mensagem, falei para ele que seria
eu. — Ele lançou um olhar inquieto a Wanahomen.
— Tenho de ver esse homem eu mesmo, Charris. Os shunha podem
oferecer a primeira lealdade à Gujaareh, mas ainda são próximos demais das
raízes kisuati para o meu gosto. Preciso ter certeza de que podemos confiar
nesse. — Wanahomen passou a mão debaixo do lenço para esfregar a nuca
repleta de areia, sentindo falta, com uma afeição pesarosa, dos banhos
perfumados do seu povo. — Vou tomar cuidado, não tema.
— E a minha outra sugestão?
Wanahomen fez uma careta.
— Nunca.
— O Hetawa tem tanto poder em Gujaareh quanto a nobreza, meu
Príncipe. Mais até.
— E eu nunca vou pedir a ajuda deles nem para curar um dedão
machucado.
Charris suspirou.
— Em paz então, meu Príncipe. — Ele se virou para se deitar no saco de
dormir.
— Em paz, velho amigo. — Wanahomen se mexeu a fim de tirar as
botas, depois se deitou, prendendo o véu facial para descansar. Vendo as
sombras dançarem no beiral da plataforma, ele fechou os olhos…
… e os abriu para ver um céu agitado, sufocado pela tempestade.
Onde deveria estar a pedra de uma saliência protetora, onde a Lua dos
Sonhos e os milhões de Sóis Menores deviam ter preenchido o céu noturno
mais adiante, agitavam-se e encrespavam-se espessas nuvens pretas. O raio
que cintilou entre essas nuvens foi atenuado, ralo e enfermiço, e demorou-
se, mais semelhante a uma rede de veias na carne do que a luz e fogo. Ele
jamais vislumbrara um céu daqueles, nem na pior das estações de inundação.
Ele se sentou. Sob esse céu, o mundo ficou estranho e cinza: desprovido
de cor, as sombras haviam se tornado nítidas e densas demais para se
enxergar através delas. Quando o manto externo de Wanahomen
desapareceu, ele percebeu que toda a sua vestimenta banbarrana empoeirada
havia sumido, substituída por uma plissaia de linho fino sob medida, um
manto de penas e um colarinho de lágrimas de lápis-lazúli. Roupas dignas
de um príncipe.
— Como deveria ser — sussurrou a voz de seu pai.
Wanahomen virou-se. O acampamento banbarrano desvanecera, Charris
desvanecera. O catre e a fogueira de Wanahomen repousavam sobre os
tijolos imundos de uma rua gujaareen em um beco sombreado e de muros
altos. Perto do fundo desse beco, onde as sombras eram mais densas,
espreitava uma forma ao mesmo tempo familiar e hedionda. Com a cabeça
inclinada para um lado, ele viu o brilho de dentes. E no entanto…
— Wanahomen — sussurrou o espectro.
Ele se pôs de pé, tomado pela certeza do sonho.
— Pai.
— Meu filho, meu herdeiro. — A voz era suave, leve, porém
Wanahomen reconheceria o timbre em qualquer lugar. Ele mordeu o lábio e
deu um passo à frente, querendo encurtar a distância. Sabendo, apesar de
estar ausente de Gujaareh há dez anos, que esse desejo era tolice. A terra
dos sonhos era incompreensivelmente vasta, levaria eras para as almas dos
mortos a preencherem. A maioria das pessoas vista nos sonhos eram meros
reflexos dos próprios pensamentos e medos do sonhador.
Mas…
— Minha alma renascida. — A sombra do pai chacoalhou a cabeça,
tranças sujas e frouxas sacudiram para a frente e para trás. — Onde está a
Auréola, Wanahomen? Onde está o seu reino?
— Em mãos inimigas, pai. — Ele pôde ouvir o ódio na própria voz,
ecoando das paredes do beco. — Eles tiraram tudo de mim.
— Não tudo. Não a esperança. Não o favor Dela.
Wanahomen chacoalhou a cabeça com um sorriso desolado.
— Será que Ela ao menos me conhece, pai? Não fiz nenhuma oferenda
nem recebi nenhuma bênção durante anos.
— As bênçãos virão. — Algo naquela voz, ao mesmo tempo dissimulada
e entretida, transformou as palavras mais em um aviso do que em uma
promessa. O vulto ergueu um dedo torto e paralisado em direção ao céu. —
Elas já vieram, está vendo? Bênçãos tão poderosas. Elas abalarão Gujaareh
inteira, desperta e adormecida, e afogará os fracos em seus próprios sonhos
escuros. Seu sofrimento não conhece limites.
Wanahomen contemplou o céu estrondoso e tremeu, embora não
houvesse vento.
— O senhor está falando da Deusa? Não entendo, pai…
— Não entende? — As sombras se mexeram quando o vulto abaixou o
braço a fim de apontá-lo para Wanahomen, avançando o suficiente para que
a luz da fogueira iluminasse enfim a sua carne. O estômago de Wanahomen
revirou quando ele viu feridas preto-arroxeadas mosqueando uma pele que
um dia tivera o tom dourado-claro da areia do deserto. A putrefação da
morte? Não. Esses ferimentos pareciam mais algum tipo de doença.
A coisa que fora seu pai soltou uma risada grossa e viscosa. Seguindo o
dedo dele, Wanahomen olhou para si mesmo e arquejou ao notar que o
próprio torso estava coberto das mesmas feridas. Revoltado, passou as mãos
em si mesmo em busca de tirá-las do corpo. Porém, sua pele estava intacta;
a doença estava por baixo. Dentro de si.
— Depressa — sussurrou seu pai. — Você viu que já começou.
Wanahomen abriu os olhos de novo. A caverna e os banbarranos haviam
voltado. O sonho se fora.
Não. À diferença da maioria de seus compatriotas, Wanahomen nunca
fora treinado quanto às técnicas do sonho adequado… seu pai não
permitira. Contudo, parecia que certas habilidades eram inatas, com ou sem
treinamento. Isso ele podia sentir: alguns sonhos eram mais do que sonhos.
Wanahomen fechou os olhos, mas não voltou a dormir naquela noite.
3
O TESTE DA DAMA
INSÔNIA
O PORTADOR DO DÍZIMO
OCUPAÇÃO
***
A SOMBRA
***
Compartilhador,
O pesadelo chegou a mim agora.
Danneh, mercadora, esposa de Bahenamin-em-sonhos
8
VENENO
***
CORTE
SONTA-I
TRAIÇÃO
Para Wanahomen, escolhido herdeiro de Eninket Rei (que ele possa viver na
paz Dela para sempre), saudações.
Solicita-se que você e os seus aliados não façam mais nenhum ataque contra o
nosso inimigo mútuo até que esse encontro aconteça.
O SEGUNDO TESTE
***
INTERVALO
No jardim do Kite-iyan havia um leopardo. Ele não podia vê-lo, mas sabia que
estava lá. Como herdeiro do Príncipe, era seu dever caçá-lo e matá-lo antes que ele
machucasse suas mães ou irmãos.
— Wana.
Aproximando-se pelo jardim o mais silenciosamente possível (suas pernas eram
menores, ele sempre fora uma criança quieta), ele levantou a lança e
— Wana! Acorde, homem! Agora não é hora de sonhar acordado.
Wanahomen alçou o olhar e viu que o leopardo tinha um rosto humano. Unte.
Devo matá-lo, pensou ele.
Então Unte voltou a ser Unte e Wanahomen seguiu a direção apontada
pelo braço de Unte para ver qual era o problema.
Um grupo de oito viajantes a cavalo aproximava-se pela trilha rochosa
que conduzia àquela parte do sopé das colinas. Da saliência bem acima de
onde ele e o resto dos banbarranos esperavam a cavalo, Wanahomen
conseguia distinguir apenas as volumosas capas com capuz que cada
cavaleiro usava: cinco pretas, duas de um vermelho-sangue e uma cor de
osso descorado pelo sol. A última o fez franzir a testa.
— O Hetawa? — perguntou Unte.
Wanahomen aquiesceu.
— Os de preto são Sentinelas… os sacerdotes-guerreiros, letais sem
armas, pesadelos com elas. O de roupa clara é Coletor. — Ele contorceu o
lábio, não pôde evitar. Não esperara que o Hetawa fosse mandar um
Coletor. Para julgá-lo, talvez? E executá-lo no local, se o considerassem
inadequado? Ele apertou as rédeas com mais firmeza; o cavalo grunhiu. —
Eles conseguem lutar quase tão bem quanto os Sentinelas, mas a magia
deles é a maior ameaça. Nunca o deixe tocar você. E eles estão acima dos
outros, então aquele vai ser o líder. Os de vermelho… — Ele franziu o
cenho. — Aqueles são Compartilhadores. Curadores. Mas não faço ideia de
por que estão aqui.
— Humm. — Unte colocou a mão debaixo do véu para coçar a barba. —
E como deveríamos receber essas visitas, líder de caça?
Wanahomen ouviu o tom de gracejo na voz dele e sorriu para si mesmo.
Sua mãe desaprovaria, mas…
— Se for para serem aliados — respondeu ele —, parece sensato
mostrarmos a nossa força, não parece?
Unte riu e aquiesceu, e Wanahomen ergueu uma das mãos em um sinal.
Por toda a sua volta ele ouviu seus cavaleiros se mexerem, alertas. Ele fez
um círculo e depois cerrou o punho e jogou a cabeça para trás para soltar o
grito de guerra crescente de “Bi-yu-eh!”.
Venham e caiam em cima.
Os guerreiros avançaram, descendo por três trilhas diferentes em direção
ao fundo do cânion. Do outro lado do cânion, desceram mais duas fileiras
de cavaleiros, seus gritos ecoando das paredes rochosas. Quando o grupo do
Hetawa parou e imediatamente se virou para ficar de costas uns para os
outros, com os dois curadores no centro da formação, dois círculos de
cavaleiros banbarranos os cercaram, cada um girando em uma direção
diferente para ficar difícil de contar quantos eles eram.
Wanahomen desceu o declive com eles, gritando e brandindo a espada e
rindo por trás do véu. O pessoal do templo ficaria enervado, ele sabia, não
só pelo número de banbarranos armados que viera recebê-los, mas também
pelo simples caos barulhento que geravam. A paz era o costume gujaareen,
mas não havia paz nos banbarranos… de qualquer forma, não nesses jovens
e fortes guerreiros de Wana.
É, olhem para nós, pensou ele enquanto olhava feio para os membros do
templo. Vejam a quem estão se aliando. Se a sua sensibilidade for fraca demais
para nos suportar, então não precisamos da sua ajuda!
Mas, depois do movimento inicial de defesa, os cavaleiros do Hetawa
não se mexeram e, por fim, Wanahomen começou a se cansar do jogo.
Então ele fez um sinal para os seus cavaleiros pararem e eles detiveram suas
montarias e ficaram de frente para o grupo. Abriram caminho quando
Wanahomen passou pelas fileiras a fim de posicionar-se diante do Coletor
de capa clara.
— Mostre seu rosto — disse ele. — Eu conheceria o meu inimigo.
A maioria dos homens banbarranos não falava gujaareen, mas os poucos
que falava se inclinaram para cochichar com o resto. Todos saberiam que
Wanahomen exigira que o líder do grupo do Hetawa mostrasse seu rosto
para eles, um ato de submissão aos olhos dos banbarranos.
O Coletor levou as mãos até o capuz e parou pelo intervalo de uma
respiração, talvez notando os cochichos entre o grupo de Banbarra. Mas
completou o movimento e, assim que Wanahomen viu o rosto do homem,
estremeceu, chocado.
— Você! — Dez anos se dissolveram em um instante e ele estava outra
vez no terraço do Kite-iyan, observando enquanto seu pai enfrentava dois
Coletores de Hananja que tinham vindo para matá-lo. Um dos Coletores
era irmão de seu pai, a marca do Ocaso estava estampada em seu rosto. Mas
o mais jovem… — Você.
O Coletor anuiu, irritantemente calmo. Ele estava mais alto e mais
encorpado agora, não mais um jovem de rosto doce, mas não havia dúvidas
de que era o mesmo homem.
— Eu. Eu também me lembro de você, filho de Eninket. Saudações.
Eu deveria matá-lo bem aqui e agora. A ideia era lindamente tentadora,
embora ele soubesse que era tolice. Mas mesmo enquanto guardava a
espada, instou sua égua Iho até ela ficar ao lado da montaria do Coletor, de
modo que ele ficou ao alcance das mãos mortais do homem.
— Está sedento, Coletor? — Ele manteve a voz baixa e viu os olhos do
homem se estreitarem. — Conheço a sua espécie, lembre-se. Vi meu pai
alquebrar um de vocês. Se pretende me punir por isso, então faça-o agora.
Você não terá outra chance.
Por um momento, algo brilhou nos olhos do Coletor… não a sede
irracional que Wanahomen meio que esperara, mas uma raiva fria que era de
certo modo mais perturbadora por sua humanidade.
— Foi cruel da parte do seu pai fazê-lo observar enquanto ele destruía
Una-une — falou o Coletor com uma maldade branda que Wanahomen
jamais vira em alguém da espécie dele. — Essa experiência deve ter deixado
uma marca terrível em você. Sinto muito por não o termos matado antes,
pelo seu bem.
Wanahomen rosnou, mostrando os dentes, e conteve-se de pegar a faca
apenas por uma força de vontade monumental.
— Nunca vou confiar em você, demônio sugador de vidas!
Fazendo Iho dar meia-volta, ele se afastou alguns passos para se acalmar
antes de se virar para ficar de frente para o grupo do Hetawa de novo.
— Então, vocês propõem uma aliança. Entendo como se livrar dos
kisuati vai ajudar vocês, mas o que vocês têm a oferecer para nós, Sacerdote?
Pelo que sei, o Hetawa não tem exército.
O Coletor aquiesceu.
— Lutar nunca foi o nosso costume de fato, exceto para nos
defendermos e para defender os outros. — Ele dirigiu um sorriso de
desculpas para o sacerdote de preto mais próximo, que inclinou a cabeça
coberta pelo capuz em resposta. — Porém, você sabe que o nosso apoio
sempre foi essencial para os Príncipes do passado.
— Ah, sim, eu sei — respondeu Wanahomen. — Mas vocês sempre
cobraram um preço por esse apoio, e eu me recuso a pagar. Não vou ser seu
escravo como os meus antepassados foram.
— E nós não vamos mais exigir uma coisa dessas de você. — A voz do
Coletor ficou momentaneamente mais suave, e será que era vergonha que
havia nela? — Essa corrupção foi expurgada do Hetawa. Eu e os meus
confrades nos certificamos disso com as nossas próprias mãos. Vamos tratá-
lo de forma honesta. Quanto a isso tem a minha palavra, em nome Dela.
A franqueza do Coletor surpreendeu Wanahomen. Ele ouvira falar dos
expurgos e, em seu íntimo, admirara-se… mas ouvir as palavras em voz alta,
abertamente, era outra coisa. Uma coisa mais satisfatória.
Lançando um olhar para Unte, que descera ao cânion, mas ficara para
trás, observando em silêncio, ele disse para o Coletor:
— Então vocês oferecem a sua influência sobre o nosso povo e apoio à
minha reivindicação ao trono. Tudo isso é muito bom quando eu tiver
tomado a cidade e quando os meus homens e eu tivermos derramado o
nosso sangue nesse empreendimento. Mas aliados compartilham riscos,
sacerdote, assim como a recompensa. O que vocês podem fazer por nós
agora?
— Você acha que não compartilhamos nenhum risco? Se vocês
fracassarem, os kisuati vão nos destruir.
— E, no entanto, vocês podem se retirar da aliança a qualquer momento
antes do ataque final e alegar que não tiveram participação nenhuma. —
Wanahomen fez um gesto para o leste, em direção a Gujaareh. — Vocês
sempre agiram dessa maneira, nas sombras, esgueirando-se pelas janelas à
noite, mas isto é guerra. Comprometam-se com a luta ou fiquem no seu
templo e rezem. E esperem que eu vá destruí-los quando vencer!
O Coletor inclinou a cabeça, como se Wanahomen o tivesse convidado a
compartilhar vinho.
— Podemos oferecer suprimentos e dinheiro…
Wanahomen riu.
— Já roubamos mais do que precisamos dos kisuati. Ofereça algo útil,
homem do templo. Talvez vocês pudessem coletar Sunandi Jeh Kalawe e seu
marido general?
O rosto do Coletor endureceu.
— Eles não foram julgados corruptos.
Wanahomen não esperara realmente que ele fosse concordar.
— Então o quê?
O Coletor ficou calado por um longo instante antes de enfim suspirar.
— Que seja. — Ele afastou o cavalo alguns passos e depois parou,
virando-se para olhar para os dois sacerdotes vestidos de vermelho que
haviam estado atrás dele. — Esses dois ficam com você até recuperar o
trono.
Os sacerdotes de vermelho ficaram tensos, assim como Wanahomen. Ele
fez uma carranca, seus homens cochichando ao fundo.
— Isso é algum tipo de truque?
— O maior trunfo do Hetawa, e de Gujaareh, é a nossa magia —
respondeu o Coletor. — Um Coletor não seria de grande utilidade para
você, mas Compartilhadores poderiam salvar a vida de homens que, caso
contrário, talvez morressem nas batalhas que estão por vir.
Dois Compartilhadores. Wanahomen fitou os sacerdotes de vermelho,
dividido entre o entusiasmo e o desespero. O Coletor estava certo: dois
Compartilhadores poderiam reduzir em muito as perdas. E (sua mente
saltou a outra possibilidade com uma rapidez vergonhosa) um
Compartilhador poderia salvar mamãe.
E entretanto…
Dois Compartilhadores, jogados aos seus pés como prêmios. Dois
espiões do Hetawa bem no coração do seu acampamento.
Ele se virou para Unte, tentando se disciplinar para demonstrar
indiferença para que a decepção doesse menos.
Unte fez seu cavalo avançar, fitando pensativamente os sacerdotes.
Wanahomen lhe ensinara bastante gujaareen ao longo dos anos; ele
provavelmente fora capaz de entender a conversa toda. Mesmo assim, falou
em chakti com Wanahomen.
— Eu ouvi direito? O seu povo de repente viu vantagens na
comercialização de escravos?
Wanahomen, que estivera observando o Coletor, chacoalhou a cabeça. O
sacerdote estreitou os olhos; ele aparentemente sabia chakti o suficiente para
reconhecer a palavra escravo quando a ouviu.
— Não escravos, mas reféns para selar a nossa aliança. Para serem
libertados quando atingirmos o nosso objetivo.
Unte se remexeu na sela e suspirou.
— Nunca fui muito inclinado a pegar reféns. Trabalho demais para
pouco ganho. Mas, se eles podem fazer magia como ele diz, seriam de valia.
— Eles também poderiam passar os nossos segredos para o Hetawa.
Teríamos que levá-los para o nosso acampamento; mais tarde eles poderiam
revelar a localização — forçou-se a pontuar Wanahomen.
Unte sorriu.
— Ainda não conheci um morador da cidade que conseguisse achar os
próprios pés na areia sem a ajuda de um homem do deserto. E que motivos
eles teriam para nos espionar? Temos o mesmo inimigo.
Era verdade. Mas não escapara à atenção de Wanahomen o fato de que
esta era a única razão possível para terem trazido dois Compartilhadores
com eles. Apesar de toda a dissimulação, o Coletor tivera a intenção de
oferecê-los como prêmios desde o começo.
— Eu simplesmente não confio neles, Unte.
— Você não confia em ninguém, meu filho de alma. Diga a esse sujeito
de rosto bonito que vamos ficar com eles.
Wanahomen sobressaltou-se.
— O senhor tem… — Ele interrompeu a própria pergunta e curvou a
cabeça em submissão quando Unte lhe lançou um olhar brando. — Sim,
Unte.
Ele fez um gesto para dois dos seus homens avançarem e flanquearem os
Compartilhadores. Mas um dos sacerdotes de preto saltou do cavalo e se
moveu para bloquear o banbarrano, irradiando ameaça, e um dos sacerdotes
de vermelho tirou o capuz e gritou bruscamente:
— Nijiri!
O Coletor (Nijiri, memorizou Wanahomen) suspirou.
— Sinto muito, Mni-inh. Mas eu não ia deixar a sua aprendiz ir com
eles sozinha, por mais que ela tenha concordado.
— Ela concordou… — O Compartilhador olhou para a companheira,
incrédulo. — Hanani, é verdade?
O outro Compartilhador pareceu aflito demais para falar… assim como
Wanahomen, cujos pensamentos logo se inflamaram devido à desconfiança.
Ela?
Mas foi inconfundivelmente a voz de uma mulher, tremendo de medo,
que enfim respondeu.
— Eu… É, Irmão. Mas não me dei conta… — Os nós dos dedos de
suas mãos já pálidas, apoiadas sobre a sela, haviam ficado ainda mais
brancos. — Achei que…
— Eu disse que haveria risco, Aprendiz. — O rosto do Coletor não
demonstrava nenhuma emoção sequer. — O Príncipe acha que você é uma
espiã. Talvez ele fique menos inclinado a pensar assim quando perceber que
você não foi preparada para isso. — E o Coletor fitou Wanahomen.
Maldição. Wanahomen cerrou o maxilar, odiando ainda mais o Coletor.
Aquele homem sabia muito bem o que significava mandar uma mulher
gujaareen para um acampamento banbarrano. Mesmo mandar o
Compartilhador do sexo masculino junto seria de pouca ajuda para ela:
Compartilhadores não lutavam. Recairia sobre Wanahomen a
responsabilidade de protegê-la. Estamos no meio de uma guerra, que as sombras
o levem! Não tenho tempo para ser o guarda-costas de uma mulher inútil da
cidade!
Mas não havia outra escolha: Unte ordenara e a cooperação do Hetawa
sem dúvida dependeria de quão bem os reféns seriam tratados.
Suspirando irritado, Wanahomen avançou com a égua, parando ao se ver
diante do Sentinela (ou Sentinela-Aprendiz: o jovem mal parecia ter idade
para ter se juntado àquele caminho). Ele mal podia ver os olhos do rapaz
dentro do capuz, mas o fitou mesmo assim e, após um longo instante, o
jovem suspirou e se afastou.
Aproximando Iho do cavalo da mulher, ele estendeu a mão e puxou seu
capuz. Era ela… a moça Compartilhador que ele encontrara na cidade. Ela
olhou para ele, temerosa; com o véu cobrindo o rosto, ele provavelmente
parecia qualquer outro banbarrano para a jovem.
— Vá com eles — ordenou-lhe Wanahomen em gujaareen, indicando
seus homens com a cabeça. Ela sobressaltou-se, um medo instintivo nos
olhos; por um momento, ele achou que ela poderia fugir. Mas então ela
respirou fundo e assumiu uma máscara de calma que teria sido perfeita, não
fosse pelo brilho em seus olhos. Aquiescendo, ela cavalgou para se juntar aos
homens dele. O acompanhante dela, um homem no fim da meia-idade que
tinha um cabelo brilhante, quase liso como o dos nortenhos, fez cara feia
para Wanahomen, mas também cavalgou, permanecendo protetivamente
perto da garota.
— A aliança está selada, então? — O Coletor falou com Unte, mas seus
olhos se desviaram para Wanahomen.
— Entre o Hetawa gujaareen e os banbarranos da tribo Yusir, está —
respondeu Unte em um gujaareen com sotaque carregado. Wanahomen
também concordou com a cabeça, lembrando-se das palavras do Sentinela
aquele dia na colina: a aliança seria com você.
O Coletor inclinou a cabeça.
— Esperamos o seu ataque, então. Quando chegar a hora, os nossos
lutadores e a nossa magia vão apoiá-los durante a batalha que se seguirá.
Acontecerá em breve?
— Sim — respondeu Wanahomen.
— Logo após o solstício — acrescentou Unte, para decepção de
Wanahomen.
— Andem na paz Dela até lá — falou o Coletor, e acenou para os
Sentinelas. Eles o cercaram obedientemente e os seis viraram os cavalos para
a direção de onde haviam vindo. Unte fez um rápido sinal e os cavaleiros
banbarranos se afastaram, deixando o grupo do Hetawa partir.
Quando haviam desaparecido sobre a colina mais distante, Unte virou-se
para Wanahomen e suspirou.
— Bem, está feito.
— Ainda há a votação, Unte.
Unte olhou para Wanahomen, surpreso, um quê de divertimento em sua
expressão.
— Então você não pressupõe tranquilamente que vamos obter êxito na
votação? Nunca teria imaginado você tão inseguro.
— Estou tão confiante como sempre, Unte, mas eu nunca ousaria prever
as ações dos líderes das seis tribos. Se a votação não sair como espero… —
Ele olhou para os vultos cada vez menores do grupo do Hetawa, inquieto.
Unte sorriu.
— Bem, nós simplesmente vamos ter que esperar que saia. Essa aliança
vai ajudar. Vamos para casa?
Com um aceno de obediência, Wanahomen deu o sinal para eles
seguirem para Merik-ren-aferu com os Compartilhadores como reféns no
centro da formação.
14
MERIK-REN-AFERU
UM CHAMADO À LUTA
O PREÇO DE UM COMPARTILHADOR
A NEGOCIAÇÃO DE AÇO
A NEGOCIAÇÃO DO SILÊNCIO
BÁRBARA
Na superfície espelhada de uma chapa de metal havia uma mulher: não alta,
com cabelo cor de mel e pele cor de amêndoa, e lábios tão exuberantes
quanto os campos do vale do rio Sangue. Seus olhos estavam marcados por
kohl e sua boca, por uma tintura marrom. A metade de cima do cabelo
havia sido penteada no coque habitual, embora presa com fios de conchas
brancas do longínquo Oceano Oeste. A metade de baixo fora separada em
uma dúzia de cachos ou mais, cada um sustentando na ponta um ornamento
de ouro pesado, em formato de lágrima. Eles produziam um barulho sutil,
chamando a atenção sempre que ela virava a cabeça.
— Isso vai servir — disse a mulher banbarrana ao lado de Hanani em
um gujaareen com sotaque. Ela passou um dedo sobre um dos cintos
entrecruzados que prendiam as novas saias de muitas camadas de Hanani
em volta do quadril. Hanani sobressaltou-se com o toque, desviando os
olhos do espelho… mas depois de apenas um instante seus olhos voltaram
ao reflexo. Ela não conseguia deixar de fitar aquela estranha ali.
Yanassa fez um som de satisfação.
— Você poderia ficar vaidosa nesse ritmo!
Hanani virou-se para a mulher, mexendo-se cautelosamente com aquelas
saias estranhas. Como ela evitava pisoteá-las? Teria de aprender.
— Yanassa, eu… eu nunca… — Ela olhou para si mesma. — Não
consigo nem pensar em como reagir a isto. Essa mulher não sou eu. — Ela
ergueu os braços cobertos de braceletes e tecidos com franjas. Como é que
poderiam ser seus? Seus braços deveriam estar desnudos e suas mãos,
desimpedidas, para serem rápidas e hábeis e salvarem vidas. No entanto,
eram os mesmos braços, as mesmas mãos.
Yanassa sorriu. A mulher banbarrana viera até Hanani aquela manhã,
depois que Charris levou embora seu colarinho e o de Mni-inh para o
“mestre contador” da tribo, o que quer que fosse aquilo. Junto com Yanassa
viera uma pequena horda de mulheres banbarranas tagarelas que invadiram
a tenda de Hanani em massa e a atacaram com roupas, maquiagem e joias.
Quando Hanani debilmente questionou a repentina atenção, Yanassa fora
sucinta:
— Você ofereceu valor para a tribo — respondeu ela, fazendo um gesto
em torno da garganta da moça para indicar o colarinho de Hanani. — Seu
sacerdote-homem informou que a riqueza dele e a sua deveriam ser
compartilhadas igualmente. E Hendet adotou você como sendo dela. Você
agora é uma mulher rica de um bom clã e, entre o meu povo, isso muda
tudo.
Estava claro que mudava. Durante o processo, homens e crianças
banbarranos continuaram chegando à tenda de Hanani, trazendo objetos
extras: enxergas, almofadas, lamparinas, tapetes, recipientes de alimentos…
um penico. Todas as necessidades e confortos que a tenda antes não tinha.
Sob ordens de Yanassa, as mulheres haviam saído e voltado com mais roupas
do tipo que Hanani usava agora, inclusive peças de roupa íntima e sandálias
e uma profusão de joias maior do que jamais vira na vida.
— Valor por valor — falou Yanassa em seu sotaque rápido e agitado. Ela
inspecionara cada pacote que chegara, mandando alguns de volta com
reclamações ruidosas, enquanto Hanani ficava abismada. — Não gostamos
muito de convidados, mas nunca vão poder dizer que os banbarranos
trapaceiam nas negociações.
Foi por meio dessas declarações mordazes, feitas como pronunciamentos
do Hetawa, que Hanani enfim começou a entender alguns dos traços
peculiares do comportamento banbarrano. A prática masculina de usar o
véu, por exemplo, não era simples hostilidade. Yanassa explicou que um
homem podia trazer os resultados da caça e das pilhagens, mas era dever das
mulheres da família (as quais menos provavelmente seriam reconhecidas,
presas ou mortas) transformar essas matérias-primas em riqueza útil
negociando nas cidades. Portanto, os homens cultivaram o hábito de
encobrir-se entre estranhos, enquanto as mulheres aprenderam as
habilidades que as ajudariam a barganhar pelas necessidades da tribo.
— Minha mãe me ensinou gujaareen e quatro outras línguas, além de
escrita, algarismos e investimento — contara Yanassa a Hanani com
orgulho. — Ela não se deu ao trabalho de ensinar aos meus irmãos. Mas a
mim ela idolatrava, pois sabia que no futuro eu traria grande riqueza para o
nosso clã.
Parecia-lhe, apesar de todos os banbarranos que vira até agora, até as
outras mulheres, que havia se submetido a Yanassa pelas regras de alguma
hierarquia incompreensível.
— Agora, ratinha — disse Yanassa. (Hanani não gostava desse termo,
mas pelo menos parecia carinhoso.) — No festival de hoje à noite, você deve
tomar o cuidado de não se exibir. Isso é o que as mulheres da cidade fazem e
nossos homens não têm respeito por essa atitude. O seu valor anuncia a si
próprio, não há necessidade de se esforçar mais.
Hanani franziu a testa, confusa.
— Eu nunca “me exibiria” — retorquiu ela, falando devagar caso algo
tivesse ficado embolado na tradução. — Nem sei o que você quer dizer.
— Então deve ser fácil para você. Os homens não vão se aproximar de
você… não agora, que todos podem ver que você é uma mulher de verdade.
Se eles te pressionarem, me avise. — Ela fez uma careta. — Alguns deles são
tolos. Os sensatos vão revelar o interesse deles de formas sutis. Você vai
saber: um toque, um olhar, uma gentileza inesperada. Se você o desejar
também, tudo o que tem a fazer é derrubar algum enfeite ou faixa perto
dele.
— Desejá-lo?
Yanassa estava pendurando as bolsas de cores vivas que continham o
novo guarda-roupa de Hanani ao longo da armação da tenda. Ela não viu o
olhar de choque de Hanani.
— Esse é o costume. Se houver muitos homens por perto, olhe nos olhos
daquele que você quer antes de deixar cair seu objeto. Depois, simplesmente
volte para a sua tenda e espere. Se ele desejar você também, ele deve vir até a
sua tenda para trazer o que você “perdeu”. Muitas vezes vai trazer algum
outro presente. — Ela deu um sorriso a Hanani por cima do ombro. — Aí
você o deixa entrar. Mas, veja bem, ele precisa ir embora de manhã. — Ela
parou, franzindo a testa para si mesma. — E é melhor não se dar ao
trabalho com Wana, se ele é do seu gosto. Já o vi jogar os sinais das
mulheres de volta aos pés delas quando estava de mau humor: ele é exigente
e não tem modos. Mas isso significa que a maioria das mulheres o deixa em
paz, o que eu acho que é o que ele quer.
— Eu… — Hanani procurava as palavras, por um instante atordoada
demais para falar. Em Gujaareh, as pessoas simplesmente sabiam que os
Servos de Hananja faziam voto de celibato. Ela jamais tivera que explicar
antes. — Yanassa, eu não posso.
— Hein? — Yanassa parou de fazer as amarrações, franzindo a testa para
Hanani.
— Não posso ficar com um homem. Não desse jeito. É proibido.
Yanassa encarou-a pelo intervalo de uma longa respiração, boquiaberta.
— Nunca?
— Não — respondeu Hanani. — Os que seguem o meu caminho… os
curadores, quero dizer… absorvemos a magia Dela dentro de nós e a
compartilhamos com os outros. Geralmente temos que compartilhar algo
das nossas próprias almas no processo. Isso é tudo o que a grande Hananja
permite, o resto de nós pertence a Ela.
— Quantos anos você tem?
— Já vi vinte inundações do rio.
— Pelos deuses das nuvens e do vento frio. — Yanassa parecia
horrorizada. — Você nunca sente desejo por um homem? Você tem
permissão pelo menos para dar prazer a si mesma?
Hanani sentiu as bochechas pegarem fogo. Ninguém em Gujaareh fazia
perguntas tão incisivas.
— Eu… já… senti desejo, sim. Mas é uma medida da nossa força e
disciplina o fato de conseguirmos superá-lo — explicou ela, citando Mni-
inh. — E, e… se o desejo se torna grande demais para ser suportado, posso
pedir para um dos meus irmãos ou para um Coletor compartilhar sangue
onírico comigo. Isso acalma todas as paixões. Mas nunca precisei… pelo
menos não por enquanto. — Ela ponderou. — Talvez seja porque sou
mulher e as paixões não sejam tão ardentes em mim.
Yanassa falou algo em chakti. Hanani não entendeu, mas soou muito
rude.
— É essa a bobagem que ensinam para vocês em Gujaareh? — Yanassa
chacoalhou a cabeça. — Não é de admirar que as mulheres da cidade não
tenham orgulho! E você… nenhum homem? Mulheres, pelo menos; eles
devem permitir que você tenha prazer com mulheres.
— N-não existe nenhuma outra mulher no Hetawa.
— Então você não tem nem amigas com quem compartilhar os seus
problemas? Que crueldade!
Hanani passava o peso de uma perna para a outra, desejando de todo o
coração que aquela conversa terminasse.
— Tenho meu mentor e… eu nunca, ah, me arrependi da minha
escolha…
— Unu-vi. Como poderia se não sabe o que está perdendo? — Yanassa
suspirou e veio mexer no cabelo de Hanani. — Que pena. Mas se esses são
os seus costumes, então que seja. — Ela parou e franziu a testa, pensativa.
— Devo contar a todo mundo sobre esse seu voto? Caso contrário, os
homens vão ficar curiosos sobre você. E também as pessoas que desejarem o
seu sacerdote-homem podem ficar ofendidas com a recusa dele.
— Deve, por favor — respondeu Hanani, aliviada. — Não quero ofender
ninguém… isto é, bom, todos estão se sentindo ofendidos. — Era muito
melhor Yanassa agir como intermediária do que Hanani suportar essa
conversa outra vez.
Yanassa sorriu e bateu em seu ombro.
— Tudo bem. Coitadinha, isso deve ser difícil para você. Somos um
povo apaixonado, nós, banbarranos, e a paixão é o que o seu povo parece
recear mais. É uma pena que mais de vocês não sejam como Wanahomen,
mas ele me avisou muito tempo atrás que não era um típico morador da
cidade.
Uma chance de mudar de assunto. Hanani a agarrou de maneira tão
tranquila quanto possível. Ela já aprendera que fazer uma pausa para falar
significava apenas ser interrompida.
— Você o conhece bem, o Príncipe?
— Tão bem quanto qualquer banbarrano pode conhecer aquele lá. —
Havia uma combinação de pesar e carinho na voz da mulher quando ela se
virou para o espelho de Hanani para verificar o próprio cabelo, com seu
penteado elaboradamente trançado preso no alto da cabeça. — Nós fomos
próximos um dia, mas aí eu o julguei mal no que me parecia uma questão
sem importância e ele nunca me perdoou por isso. Esse homem
decididamente gosta de um ressentimento.
De repente, Hanani intuiu uma coisa.
— A criança que estava cuidando da mãe dele ontem à noite. — Como o
Príncipe a chamara? — Tassa.
— É meu — confirmou Yanassa em tom afetuoso. — Ele estava
cuidando de Hendet? Criança de coração mole… tão diferente do pai.
Ainda não sei se deveria ser grata por isso.
Se o filho não havia herdado o humor colérico e afiado do pai, Hanani
não conseguia ver aquilo como nada além da bênção da Deusa.
— A aliança da qual o Coletor Nijiri falou. — Ela quase se esquecera em
meio ao choque dos últimos dias. — O Hetawa o apoia, então… o Príncipe.
Mas os kisuati jamais iriam embora pacificamente.
Yanassa dirigiu-lhe um olhar estranho.
— Claro que não. O seu “Príncipe” pediu para todas as tribos dos
Banbarra se unirem a ele em uma grande batalha para mandar os kisuati de
volta para a terra deles. Vão votar sobre a guerra no final do solstício.
Hanani conteve a respiração; sua pele ficou arrepiada. Guerra… isso era
anátema para Hananja. A guerra transformava o reino da vigília no mais
sombrio dos pesadelos e condenava suas vítimas às sombras na vida após a
morte também. Poderia o Hetawa realmente apoiar uma coisa dessas?
— Não acredito nisso — sussurrou ela.
— O quê? — perguntou Yanassa. Mas, antes que Hanani pudesse
responder, Yanassa piscou e franziu a testa, desviando os olhos ao ouvir
gritos e agitação do lado de fora. — O que é agora?
Ela saiu, e Hanani foi atrás, para ver que a tribo começara a se reunir na
borda norte da plataforma principal. Por sobre as cabeças dos membros da
tribo que iam e vinham, na saliência de observação, ela viu um homem em
postura rígida, segurando um objeto cônico e comprido. Em princípio,
Hanani pensou que fosse um chifre, mas o homem levou o apetrecho ao
olho.
— Hanani. — Ela se virou e, chocada, encarou Mni-inh. O mentor
sorriu de volta para ela, encabulado, envolto dos pés à cabeça em
vestimentas banbarranas e com um lenço na cabeça. Tinham até lhe dado
um véu, embora estivesse solto em volta do queixo. Então ela viu que ele a
estava fitando, um sorriso lento invadindo seu semblante.
— Eu sabia que tinha que ser você — continuou ele. — Ninguém mais
aqui tem esse cabelo. Mas isso… Ora, ora. — Ele pôs as mãos no quadril,
sorrindo, e ela baixou os olhos para ele não ver seu rosto pegando fogo.
Yanassa, ao seu lado, fez um barulhinho de quem achava graça.
Então os murmúrios dos membros da tribo abrandaram quando o
Príncipe apareceu, saído da multidão junto com Unte. Hanani mal notou o
líder da tribo, pois a raiva abrasadora no comportamento do Príncipe deixou
seu coração apertado de apreensão. Havia sangue nas roupas dele e morte
nos olhos.
O Príncipe parou nesse momento e Hanani percebeu que ele a vira. Ele
olhou para baixo e depois para cima de novo. Jamais na vida ela quisera ser
menos notada.
Mas ele não falou nada, inclinando a cabeça primeiro para Yanassa,
então, depois de uma pausa momentânea, para Hanani. Em seguida virou-
se e caminhou a passos largos para o ponto de observação. Unte demorou-se
um pouco mais, os olhos enrugando-se no que era inconfundivelmente um
sorriso por trás do véu. Na sequência, dirigiu-se para o ponto de observação
também.
— Estou começando a questionar seriamente o julgamento dos
Coletores — murmurou Mni-inh, fitando o Príncipe. — Se foi ele o
escolhido…
Hanani lembrou-se do seu pensamento anterior — o Hetawa apoia a
guerra — e manteve silêncio, perturbada demais para fazer outra coisa.
Yanassa gritou para alguns companheiros da tribo em chakti. O homem
respondeu logo e as pessoas ao seu redor murmuraram, surpresas e
alarmadas, em resposta. A própria Yanassa pareceu surpresa.
— Apareceu uma caravana — ela informou a eles em gujaareen. — Eles
mandaram os sinais corretos de saudação. Mas nenhuma das delegações das
outras tribos deveria estar aqui por pelo menos uma quadra de dias.
Unte fez um sinal com a mão do alto do ponto de observação e os
membros da tribo que o viram se alegraram.
— O quê? — indagou Mni-inh. — Delegações?
— Existem seis tribos do povo banbarrano — respondeu Yanassa. —
Normalmente, a tribo só se reúne no Conclave da Primavera no oeste, mas
Unte pediu para os líderes de tropas de todas as seis virem até aqui e
decidirem se devem se juntar à guerra de Wana. O primeiro desses grupos
parece ter chegado cedo.
Mni-inh sobressaltou-se, como Hanani fizera antes, ao ouvir a palavra
guerra. Ele franziu o cenho, estreitando os olhos ao contemplar a paisagem.
Só então ela notou a tensão no ar à sua volta, a tribo esperando por algo. O
quê?
O homem com a estranha engenhoca disse alguma coisa para Unte, que
sorriu e virou para encarar a multidão.
— Dzikeh! — gritou ele, e ouviu-se outra onda de vivas. Mas Yanassa
não estava mais sorrindo, percebeu Hanani.
— Os Dzikeh-Banbarra são contrários à união — comentou ela
baixinho. — Para chegarem cedo… Eles pretendem combatê-la.
— O que isso vai significar para o Príncipe? — perguntou Mni-inh.
Yanassa chacoalhou a cabeça.
— Impossível dizer com certeza. Mas ele não pode conquistar sua cidade
de volta sem mais guerreiros e ajuda do que tem agora.
Enquanto Unte dispersava os membros da tribo para começarem a se
preparar para a chegada dos novos convidados, Hanani viu o Príncipe se
voltar para a sua direção. Era impossível ter certeza de longe e com o véu no
lugar, mas, onde os olhos não alcançavam, a intuição compensava: ele estava
sorrindo para si mesmo. Ela não sabia como sabia aquilo, mas tinha certeza.
E, quando os olhos dele a encontraram no meio da multidão, sentiu-se
igualmente convencida de que ele abrira um sorriso maior ainda e de que
não havia nada de bom nisso.
20
ISCA
ARMADILHA PREPARADA
Hanani achou Mni-inh na tenda dele, sentado sobre uma pilha de enxergas
novas que os banbarranos haviam trazido, os olhos fechados e a cabeça
caída. Ele poderia estar realmente dormindo, mas era mais provável que
estivesse rezando. Era um lembrete para Hanani de que ela própria não
rezava há dias. Mas quando se agachou no tapete para fitar o rosto do
mentor, descobriu que não tinha vontade de tentar naquele momento. Para
encontrar paz em Ina-Karekh, era necessário ter paz dentro de si mesmo.
Ela não conseguia se lembrar da última vez que estivera em paz.
No entanto, era um consolo estar perto do corpo de Mni-inh, mesmo
que sua alma estivesse em outro lugar. Ela se encolheu sobre as enxergas ao
lado dele, repousando a cabeça em sua coxa como não fazia desde que era
uma acólita. Ele começara delicadamente a evitar os abraços dela e outros
gestos infantis de carinho mais ou menos na época em que seus ciclos férteis
haviam começado. Não porque não os aceitasse, ele lhe garantira, mas
porque, como a única mulher que passara da infância no Hetawa, ela
precisava manter não apenas a substância, mas a aparência de decoro o
tempo todo. “Você é uma filha para mim”, ele lhe dissera, “mas, nos vilarejos
rio acima, não é incomum um homem da minha idade tomar uma esposa da
sua idade. Outros vão se lembrar disso, mesmo que eu e você não pensemos
assim”.
Ela jamais pensara nele daquela forma antes ou desde então. Jamais
tivera tais pensamentos sobre nenhum dos seus confrades do Hetawa,
nenhuma vez durante todos os anos em que vivera entre eles.
Mas agora o gosto do Príncipe estava em seus lábios.
Hanani estremeceu, odiando a lembrança do beijo, porém vendo-o em
sua mente, sentindo-o repetidas vezes. O Príncipe a estava usando. Isso
estava claro até mesmo para os seus olhos ignorantes. Ele odiava a ela e a
tudo o que ela estimava. E, no entanto, ela ainda sentia os dedos dele
colocando seu cabelo atrás de uma orelha.
Ela fechou os olhos e desejou de todo o seu coração ter dito não ao teste
de Nijiri. Gostaria de voltar para a sua pequena cela no Hetawa, onde
estivera a salvo do caos do mundo.
Uma mão pousou sobre o seu cabelo e afagou-o de leve, fazendo os
ornamentos dourados estrepitarem.
— Vamos conseguir voltar para casa logo — falou Mni-inh. Ele sempre
fora bom em intuir seu estado de espírito. Ela fechou os olhos e se esforçou
para não chorar porque essa era uma coisa que os Servos de Hananja não
faziam.
Ele suspirou, ainda afagando o cabelo dela.
— Ajudaria se você soubesse que eu venho conversando com Nijiri?
— O quê?
— Em sonhos — disse ele. — É uma técnica simples. Nós escolhemos
de comum acordo um local de encontro em Ina-Karekh, alguma imagem
singularmente forte, importante para ambos por motivos parecidos, e depois
especificamos um horário em que os dois vão viajar para lá. Nesse caso, o
Salão de Bênçãos, na véspera de uma nova Lua da Vigília.
Hanani franziu a testa.
— O Coletor Nijiri falou com antecedência para você encontrá-lo?
— Falou. — O sorriso de Mni-inh tornou-se amargo. — Ele não me
contou por que precisávamos marcar um encontro, só que seria necessário.
Falei poucas e boas para ele quando chegou lá, isso eu posso te dizer.
Hanani sentou-se, embora não tão rápido a ponto de desalojar a mão
dele.
— Por que ele fez isso com a gente, Mni-inh-irmão? Essas pessoas
podem nos matar. Elas não têm nem um pouco de paz dentro de si…
— Eu sei — concordou ele. — Mas estamos fazendo tudo certo até
agora, não estamos? Sinceramente, pelo que Nijiri me contou, talvez a gente
esteja até mais seguro aqui do que em Gujaareh.
Hanani franziu o cenho.
— O pesadelo afetou mais pessoas?
— Afetou, há trinta pessoas doentes com ele agora, o Salão de Cuidados
Temporários está cheio delas, mas não era disso que eu estava falando.
Ontem, os próprios Coletores fizeram a demanda e a coleta dos dízimos dos
dois soldados kisuati que ameaçaram você.
Hanani conteve a respiração, sua mente enchendo-se de imagens do
Hetawa em chamas.
— O-os kisuati — sussurrou ela. — Eles avisaram durante a conquista
que qualquer mal feito aos seus soldados seria revidado em quádruplo. Se
atacarem o Hetawa…
— Não, Hanani. Eles não são tolos o bastante para colocar a ocupação
de Gujaareh em risco por conta de homens tão corruptos. Os soldados
abordaram uma Irmã antes de o Coletor Nijiri julgá-los: como resultado, as
tensões estão elevadas na cidade. Nijiri acha que os kisuati vão esperar até o
povo ter se acalmado antes de agir. — Ele suspirou, esfregando os olhos
com uma das mãos. — E, quando agirem, quem pode dizer o que
acontecerá? Então peço aos deuses que o nosso jovem amigo principesco
esteja pronto para retomar a cidade logo e que ele consiga quando
finalmente começar.
A menção ao Príncipe lembrou Hanani da cura da tarde e do que se
seguiu. Ela baixou os olhos e afastou a lembrança, concentrando-se na
questão mais importante.
— Irmão, tem uma coisa que você deve saber. Eu curei o Príncipe hoje à
tarde. Ele tinha um ferimento superficial na barriga, acho que foi com faca.
Mas não foi isso o que me deixou preocupada. — Ela chacoalhou a cabeça.
— Mni-inh-irmão, ele tem o dom do sonho.
— Ele o q… — Mni-inh franziu a testa de repente, pensativo. — O
dom corre nessa linhagem. O Coletor Ehiru era tio dele. Que intensidade
você diria que ele tem?
Hanani engoliu em seco, recordando o sonho de cura. Ela tentara impor
um simples construto na paisagem onírica dele: uma tenda banbarrana com
um rasgo em uma parede de pele de camelo. Mas, antes que ela pudesse
persuadir a mente dele a reparar a tenda, ele tomou violentamente dela o
controle do sonho, atirando-a em uma Gujaareh das sombras sobre a qual
uma nuvem monstruosa, como uma boca devoradora, agitava-se no céu.
— Eu não consegui direcionar o sonho dele — respondeu ela. — Ele me
levou para onde quis dentro de Ina-Karekh. Ele não tem controle, acredito
que não teve intenção. Mas, se tivesse sido treinado, se tivesse tentado, acho
que poderia ter me segurado lá pelo tempo que quisesse.
Mas ela sentiu aquilo no momento que a Gujaareh sombria se
manifestou: o Príncipe também não tinha desejado estar lá. Algo naquela
paisagem onírica o assustava… a ele, um homem tão cheio de raiva que ela
se admirava de haver algum espaço sequer para o medo em seu íntimo.
Todavia, por causa daquele medo, ele permitira a ela levá-lo de volta ao
sonho mais suave e mais simples dela sobre o deserto e um céu tranquilo de
manhã e a tenda rasgada. Ele a reparou quase como uma reação posterior.
— Nunca senti tanta força a não ser com o Coletor Nijiri — acrescentou
ela por fim. E, na verdade, ela não sabia ao certo se o Coletor Nijiri era
igualmente forte.
— Um dom desses. Pela Deusa sagrada. Mas sempre tivemos cuidado
com a linhagem do Ocaso. Tal como são as coisas, existem muitos loucos
entre eles. Não acredito que deixamos esse passar. — Ele ficou sério de
repente. — Por outro lado, o Príncipe… hum, Rei, quero dizer, o pai de
Wanahomen… tramou contra o Hetawa durante décadas. Se Wanahomen
foi testado, o Príncipe sem dúvida encontrou uma maneira de subornar ou
corromper os examinadores.
Hanani apenas chacoalhou a cabeça, esvaziada demais pelos
acontecimentos do dia para continuar pensando. Anoitecera: a tenda de
Mni-inh estava quase escura, iluminada pela única lamparina que ele devia
ter acendido antes de rezar. Em algum lugar lá fora, um músico tocava uma
melodia animada em algum tipo de alaúde. Ela podia ouvir pessoas batendo
palmas e cantando no tempo da música. O festival do solstício banbarrano
começara.
— Ele não é louco — disse ela.
— Não, imagino que esses bárbaros não o abrigariam se fosse. Mas, se o
dom dele é tão poderoso, pode ser só uma questão de tempo.
Hanani chacoalhou a cabeça e se pôs de pé, tendo um pouco de
dificuldade com a estranha constrição das saias.
— Preciso descansar, Irmão. — A estranheza dos banbarranos, o caos
incontrolado dos costumes e modos de pensar deles haviam-na deixado
exausta. Ela não contaria a Mni-inh sobre o beijo; ela mesma não o
entendia. Em todo caso, o Príncipe provavelmente fizera aquilo só para
atormentá-la.
Mni-inh observou-a levantar-se, uma ligeira linha de preocupação visível
em sua testa.
— Tudo bem. Apenas se lembre de que isso vai acabar logo. Não vai
demorar muito para você estar entretendo a Casa das Crianças com histórias
sobre as suas façanhas e convencendo-as a se juntarem aos
Compartilhadores aos montes.
Hanani concordou com a cabeça e conseguiu dar um sorriso em resposta
à tentativa dele de animá-la.
— Bom descanso, Irmão.
— Vá na paz Dela, Hanani.
Ela se preparou antes de sair da tenda dele; contudo, não estava
preparada para a profusão de sensações que a recebeu. Ali por perto, havia
um grupo de pessoas ao redor de uma fogueira ardente, aplaudindo
enquanto dançarinos pisavam e saltavam próximo às chamas. Um
aglomerado de crianças passou correndo, três delas levando algum tipo de
brinquedo enfeitado com fitas compridas; ela teve de parar ou seria
atropelada. O ar estava carregado de aromas agradáveis: fumaça de madeira,
carne tostada, incenso, chá. Mais distante, um grupo menor se reunira em
torno de outra fogueira, onde dois músicos cantavam algo ululante e
discordante. Pela atenção extasiada de sua plateia banbarrana, Hanani podia
ver que eles adoravam a música, mas, para os seus ouvidos gujaareen, aquilo
era só barulho.
Ela se virou em direção à própria tenda e parou quando alguém saiu da
turba e apareceu à sua frente. Charris.
— Onde você esteve? — perguntou ele com um toque de comando na
voz. Ela ouvira dizer que ele era o indivíduo escravizado do Príncipe,
embora a ideia de um gujaareen mantendo um escravizado fosse abominável
em e por si, mas essa não era a primeira vez que via pistas de que Charris
tivera um status mais alto em sua vida pré-banbarrana. Talvez até fosse
zhinha, o que significava que ela deveria tratá-lo com mais respeito… mas
estava cansada demais para se importar.
Sem dizer uma palavra, Hanani apontou para a tenda do seu mentor. Ele
arregalou os olhos, pegou-a pelo braço e virou-a bruscamente.
— Nesta tribo, homens e mulheres sem parentesco não se misturam —
falou ele ao ouvido dela — a não ser para um propósito. Se quer que a tribo
trate você como uma prostituta que está disposta a receber qualquer homem
que te quiser, então continue passando tempo com o seu amigo sacerdote
em particular!
Aquilo era demais. Ela soltou o braço da mão dele com um puxão.
— Estas pessoas não pensam em outra coisa? As mulheres não podem
ter nenhum outro propósito? Será que o mundo inteiro para além de
Gujaareh não passa de violência e prazer e dinheiro e… — Ela chacoalhou a
cabeça. — Não é de admirar que o Rei Eninket quisesse conquistar tudo.
Eu quase gostaria que ele tivesse conseguido!
Ela se afastou dele e, para seu grande alívio, ele não veio atrás.
Sua tenda, felizmente, estava do lado oposto à de Mni-inh, de costas
para a música e as danças mais altas. Do lado de dentro estava escuro. Ela
tropeçou nos tapetes, com os quais não estava acostumada, deixando-se
enfim cair sobre a pilha de enxergas e cobertores que de algum modo eram
seus. Comprados e pagos com o colarinho de aprendiz que ela passara a vida
conquistando. Ela riu amargamente da ideia e abraçou um travesseiro em
busca de qualquer conforto insignificante que pudesse oferecer.
Quando a aba da tenda se abriu, derramando a luz da fogueira no rosto
dela, a moça ergueu o travesseiro para bloquear a claridade.
— Por favor, me deixe em paz.
— Elin aanta? — A voz era grave e não era a de Charris. Ela levantou a
cabeça, franzindo o cenho, quando o homem disse outra coisa, uma longa
sequência em chakti. Em meio à confusão de palavras, ela pensou ter
captado o nome Wanahomen.
— Eu não entendo você — falou ela. — Você tem alguma mensagem do
Príncipe? — Parecia errado usar o primeiro nome de Wanahomen.
Enquanto o Príncipe de Gujaareh habitava o reino da vigília, ele não tinha
nome, só depois da morte se tornava mais do que o seu ofício. No entanto,
era esse o nome que aqueles bárbaros conheciam. — Do Wanahomen?
Ela podia ver o vulto grande de um homem contra a luz. Ele a observou
por um momento e depois acenou para si mesmo, mas, se não falava
gujaareen, não poderia tê-la compreendido. Mas por quê…
O homem entrou na tenda dela, deixando a aba se fechar após sua
passagem.
Hanani sentou-se, alarmada.
— O que você está fazendo? — A moça conseguia ouvi-lo aproximando-
se no escuro, embora as sombras da tenda fossem densas demais para ela ver.
— Charris disse que os homens aqui não…
Então ele retrucou alguma coisa, tão próximo que ela arquejou: ele estava
bem em frente a ela. Com o coração acelerado, ela tentou afastar-se, mas
uma mão calosa agarrou seu tornozelo. A mão a puxou em direção a ele,
jogando-a de costas. Ela gritou e outra mão tapou sua boca, os dedos
tateando por um momento antes de apertar com firmeza. Depois o corpo do
homem recaiu sobre ela, tão pesado que ela mal conseguia respirar.
Ela estava de volta a Gujaareh, diante dos soldados kisuati. Um deles
inclinou-se para perto, irradiando ameaça. “Se você fosse mais bonita, sabe o que
eu faria?”
O homem estava puxando suas roupas. Ela ouviu o tecido se rasgando e,
de repente, uma de suas pernas estava livre. Ela chutou com aquela perna
cegamente, em pânico, mas era como chutar uma pedra. Ele apenas
resmungou e mudou de posição de alguma forma e, de súbito, estava entre
as pernas dela…
Você não está indefesa, Hanani, nem mesmo agora, a voz de Mni-inh
sussurrou em sua mente.
Ela segurou braços tão compactos quanto as colunas do Salão de
Bênçãos, arranhando-os. Ele grunhiu e sentou-se e, repentinamente, tudo
ficou branco quando um golpe a atingiu… por quanto tempo, ela não sabia
dizer. Mas, quando recobrou os sentidos, pôde sentir que o tecido que
cobria sua pelve sumira e que o homem estava ocupado tirando as próprias
calças e roupas íntimas. Pareceu requerer grande esforço, mas ela tentou se
libertar dele. O sujeito simplesmente puxou-a de volta para o lugar.
Ela chorou ao perceber que não tinha força para impedi-lo…
Os que curam podem machucar com a mesma facilidade.
Em sua mente, tendas se rasgavam. Insetos mastigavam. Colunas se
estilhaçavam.
Virando-se, Hanani cravou uma das mãos no peito do homem. Todo o
medo e horror e raiva e dor que ela sentira… sim, raiva, cada coisa terrível
que já sentira em toda a sua vida, tudo reunido em um nó dentro de si e
então
estilhaçou
E o homem foi jogado para trás como se a mão da própria Deusa o
tivesse golpeado.
Um interminável período depois, a aba da tenda de Hanani foi aberta
outra vez e outro homem entrou, esse com uma lamparina. Ele falou, mas as
palavras eram sem sentido, uma confusão que sua mente não interpretava.
Seus olhos estavam fixos no vulto imóvel na escuridão, que se converteu em
um homem banbarrano desconhecido quando a luz se aproximou. Seu lenço
e seu véu haviam caído; sua túnica estava desajeitadamente puxada para
cima e a calça, abaixada; os olhos e a língua saltavam do rosto.
O homem que havia entrado… Charris, o nome dele era Charris…?
olhou para ela, depois olhou para o cadáver por um longo instante. Sem
dizer uma palavra, ele pôs a mão na túnica, tirou uma faca de uma prega
oculta e ajoelhou-se para cravá-la no peito do homem morto.
Hanani gritou.
22
REPERCUSSÃO
A NEGOCIAÇÃO DA MAGIA
LEGADO
A NEGOCIAÇÃO DA DOR
Tiaanet percebeu o perigo assim que entrou na sala onde o pai e três outros
nobres estavam tramando a queda kisuati.
A mulher que falava era alta, pálida, arrogante e pouco mais velha que
Tiaanet, embora usasse um diadema em seu cabelo trançado que indicava
que era a chefe de sua família. Iezanem, zhinha e filha de lady Zanem, que
ficara recentemente órfã com a misteriosa morte de seus pais durante o
sono. Seu tom de voz soou mordaz quando ela disse para Sanfi:
— De que isso nos serve agora? Com uma única tacada, o Hetawa
ganhou de volta o coração do povo como se os últimos dez anos não
tivessem acontecido.
O perigo estava escondido atrás da máscara de calma do seu pai, notou
Tiaanet, mas estava lá. Ele não podia se dar ao luxo de hostilizar Iezanem,
que falava em nome do punhado de famílias zhinha que haviam conseguido
manter algum poder real sob o domínio kisuati. No entanto, ele jamais
gostara que qualquer mulher lhe falasse em um tom daqueles e, enquanto
Iezanem o fazia agora, Tiaanet sentiu um aperto de apreensão na barriga.
— O coração do povo é volúvel — respondeu ele, fazendo um aceno de
agradecimento para Tiaanet enquanto ela reenchia sua taça de vinho doce.
— Eles vão odiar o Hetawa de novo assim que os kisuati começarem a
matá-los em retaliação pela morte dos soldados.
— Você não pode garantir isso — contestou outro dos convidados de
Sanfi. Esse era Deti-arah, das castas shunha e militar, que um dia estivera a
ponto de se tornar o próximo general de Gujaareh. O fato de que ainda não
alcançara o posto foi a única coisa que o salvou de uma execução kisuati
após a conquista. — Nem que os kisuati vão retaliar, nem que as pessoas vão
se voltar contra o Hetawa. Eu me encontrei com Sunandi Jeh Kalawe e o
marido dela, Anzi Seh Ainunu. Anzi é soldado, é verdade, pode ser que
queira sangue pela morte dos homens dele. Mas Sunandi entenderá o perigo
de fazer isso. Aqueles soldados roubaram, espancaram e violentaram
cidadãos gujaareen. Retaliar contra o Hetawa por matar uma indecência
dessas enfureceria a cidade toda.
— Anzi controla o poder militar da cidade — falou Sanfi, tomando um
gole de vinho. — Qual é a probabilidade de um homem ouvir a sua mulher,
por mais sensatos que os conselhos dela possam ser, quando está bravo e
tem o poder de agir com base na raiva?
— Sunandi fala em nome do Protetorado — retorquiu Ghefir, outro
shunha que devia a Sanfi um empréstimo substancial. Ele mordiscou o lábio
inferior enquanto falava, a testa franzida pelo desconforto, e não olhou para
Tiaanet quando ela lhe serviu mais vinho. — Eles a designaram exatamente
para impedir que ele cometesse esses erros. Se ele a ignorar e as coisas
derem errado, vai ter que responder mais tarde aos Protetores.
— Mas o estrago estaria feito — argumentou Sanfi.
— Isso é irrelevante — opinou Iezanem bruscamente em um tom
agitado que fez Tiaanet estremecer. — Estamos indo devagar demais. As
nossas tropas se reuniram na borda do deserto, por que estamos esperando
para atacar? Quanto mais adiamos, mais poder o Hetawa obtém. Nesse
ritmo, mesmo que vencermos, as pessoas vão nos aplaudir como seus
libertadores e depois vão se voltar para os sacerdotes em busca de
orientação.
— Ou a quem quer que o Hetawa apoie — disse Deti-arah. Ele suspirou
e encostou os dedos, as mãos em forma de campanário. — Há um boato se
espalhando pela cidade de que os banbarranos estão do nosso lado agora e
são liderados por um homem da Linhagem do Ocaso. Isso é obra sua,
Sanfi?
Tiaanet foi até uma mesa de serviço no extremo da sala para encher a
garrafa. No longo período de silêncio antes da resposta de Sanfi, o som do
vinho derramando pareceu muito alto.
— Não — respondeu Sanfi enfim, e havia um trovão em sua voz agora,
escuro e crescente. — Essa foi uma informação que concordamos em omitir
até a hora do ataque final. Alguém entre nós abriu a boca.
Deti-arah chacoalhava a cabeça quando Tiaanet se virou para ficar de
frente para a sala.
— Eu ouvi isso do Hetawa — declarou ele. — Fui com o meu filho doar
alguns sonhos como dízimo dois dias atrás. O sacerdote que pegou a doação
me falou que a Deusa em breve responderia as minhas preces porque o
Avatar Dela voltaria para restaurar a liberdade da cidade. O sujeito parecia
quase alegre com aquilo, bem diferente de um homem do templo.
Houve silêncio. Tiaanet viu a mão de Sanfi apertar a taça.
— Mas… eles só saberiam disso e estariam contentes se o retorno do
Príncipe servisse aos propósitos deles — comentou Ghefir, mordendo o
lábio com mais força agora. — Não é?
— É — concordou Sanfi em voz baixa. — Parece que o Hetawa e o
Príncipe fizeram sua própria aliança. Isso é… lamentável.
— Lamentável? — Iezanem levantou-se; estava trêmula de raiva. — É
esse o nome que você dá? Quem nesta cidade vai querer um Protetorado
Gujaareen agora, quando o Hetawa está fazendo o retorno de Wanahomen
parecer algum tipo de profecia muito anunciada? Isso é o resultado dos seus
adiamentos, Sanfi. Não temos escolha a não ser agir…
— Não. — Sanfi olhou feio para ela, não mais se dando ao trabalho de
ser educado. — Os kisuati na cidade estão em alerta, com medo de uma
revolta a qualquer momento. Precisamos esperar até que estejam
desprevenidos.
— Poderia levar meses!
— Não vai. Vai levar só uns dias.
Ghefir revirou os olhos, exasperado.
— Sanfi, velho amigo, do que você está falando?
Deti-arah foi mais direto quando se inclinou para a frente.
— O que você está escondendo?
Sanfi suspirou, apertando a ponte do nariz entre os dedos como se
estivesse cansado. Tiaanet era mais sensata. Ele estava furioso, mas precisava
soar calmo, parecer confiante.
— Uma quadra de Protetores está vindo para Gujaareh — revelou ele,
enfim. As demais pessoas na sala reagiram com murmúrios de preocupação;
ele esperou que se acalmassem. — Um dos meus contatos entre os
mercadores de lá mandou avisar, embora estejam viajando em segredo por
uma questão de segurança; ele lida com tráfego de barcaças naquela parte do
rio e foi contratado para trazê-los aqui. Eles devem chegar no final da oitava
de dias do solstício. E estão vindo no mínimo para avaliar Sunandi Jeh
Kalawe e decidir se ela deve continuar no comando da cidade. A chegada
deles pode trabalhar a nosso favor. Qualquer transição de poder é um
momento de confusão.
E existe uma praga à solta na cidade. — Ele parou e inclinou a cabeça
solenemente para Iezanem, que cerrou o maxilar. Ela não usava as cores do
luto porque os zhinha não se importavam com a tradição, mas seu pesar
ainda estava claro. — Mais uma vez um contato meu me contou um
segredo: o Hetawa tem duas ou três dúzias de leigos isolados no Hetawa
interior, dormindo até morrer. Os sacerdotes dizem que estão estudando a
doença, procurando alguma cura para ela. Mas e se não houver cura?
Iezanem ficou muito quieta. Deti-arah franziu a testa.
— Não estou entendendo.
— Um Coletor morreu vários dias atrás. Sonta-i.
— Sim — falou Deti-arah com ar de impaciência. — O que você está
insinuando? Sonta-i era velho para os padrões dos Coletores. Não há nada
de fatídico no fato de ele dar o Dízimo Final agora.
— E se ele não tiver dado o Dízimo Final? — perguntou Sanfi. — E se
ele também morreu dessa doença? E se se espalhasse o boato de que o
Hetawa, com toda a sua magia, não consegue controlar nem deter a
disseminação dessa doença? O que aconteceria nesse caso?
Deti-arah arregalou os olhos. Confusa, Iezanem chacoalhou a cabeça,
fazendo seus brincos de ouro e lápis-lazúli chocalharem.
— A cidade ficaria repleta de medo e inquietação — comentou ela — e
os Protetores provavelmente se voltariam contra o Hetawa, uma vez que não
consegue mais realizar sua função básica de manter a cidade saudável e
satisfeita. Mas nenhuma dessas coisas aconteceu, Sanfi.
Sanfi encolheu os ombros, embora Tiaanet pudesse ver a tensão em seus
ombros.
— E se pudessem acontecer?
— Você — disse Deti-arah, a voz trêmula e horrorizada. — Você causou
essa doença?
Iezanem virou-se para Sanfi, o corpo enrijecendo.
— Não — respondeu Sanfi com firmeza, olhando para Iezanem
enquanto falava. — A doença é magia. Quem controla a magia em
Gujaareh? O Hetawa. Talvez eles mesmos tenham causado a doença de
alguma maneira. Só estou sugerindo que a gente encontre uma forma de
lembrar as pessoas, os Protetores, disso.
Iezanem conteve a respiração; sob seu semblante carregado, seus olhos
brilhavam, cheios de lágrimas não derramadas. Ghefir parou de mordiscar o
lábio. Só Deti-arah continuou olhando para Sanfi com algo próximo a
desconfiança, mas ele não expressou suas preocupações em voz alta, fossem
quais fossem.
Havia pouco mais a ser dito depois daquilo. Iezanem e Ghefir
concordaram em espalhar o boato por meio de suas conexões. Sanfi, como
um dos nobres mais proeminentes da cidade, ofereceu-se para marcar uma
reunião com os Protetores visitantes, assim que chegassem, a fim de
expressar suas preocupações quanto ao Hetawa. Então Tiaanet ofereceu aos
convidados uma bandeja com pequenos petiscos para revigorá-los e eles se
despediram, deixando Tiaanet a sós com o pai.
Sanfi permaneceu na sala de recepção onde estivera ao longo da reunião,
olhando para as mãos cruzadas enquanto Tiaanet fazia a limpeza. Ele ficou
em silêncio por tanto tempo que ela se assustou quando ele disse:
— A Tantufi foi acomodada?
Tiaanet quase derrubara um vaso com suas repentinas palavras. Ela o
arrumou depressa, concentrando-se no objeto para não franzir a testa. Ele
estava acostumado demais a ver uma serenidade vazia no rosto dela; a
mudança chamaria excessiva atenção.
— Sim, pai. Eu a coloquei no porão de depósito.
— Me leve até ela. — A voz dele estava muito suave.
Tiaanet virou-se para encará-lo com o vaso nas mãos, tensa. Ele olhou
para ela; um músculo de seu maxilar se contraiu.
— Não me desafie, Tiaanet — aconselhou ele. — Não hoje à noite.
Pousando o vaso, Tiaanet ficou onde estava um instante a mais para
mexer no arranjo de flores que havia dentro do objeto. Enquanto isso, sua
mente estava acelerada, tentando encontrar algum modo de acalmar a ira
que ela conseguia sentir irradiando dele como o calor de uma fogueira. Mas,
quanto mais demorasse, mais quente a ira ficaria. Por fim, ela virou-se para
ele, curvou-se e caminhou em direção ao porão.
Ela podia ouvi-lo andando atrás, o passo dele tão compassado e
tranquilo quanto o seu, embora a respiração dele fosse irregular e áspera. O
corredor que levava ao porão era mal iluminado; na pequena escada que ia
para baixo da casa a iluminação era ainda pior. No escuro, ele não podia ver
as suas mãos tremerem, mas ela sabia que ele sentiria seu medo mesmo
assim. Essa era a única coisa que ainda podia deixá-la com medo e ambos
sabiam disso.
Dentro do pequeno porão, uma lamparina solitária queimava
continuamente em uma prateleira repleta de potes fechados. O óleo da
lamparina tinha cheiro de hissopo, mas não era suficiente para mascarar o
odor de mofo que vinha do chão e das paredes de barro. O porão nunca se
secava de todo de uma estação de inundação para a outra; eles usavam o
espaço apenas para armazenar itens que eram à prova daquele cheiro. E os
itens que não eram considerados importantes, como a menininha
acorrentada à parede mais distante.
Sanfi entrou no porão atrás de Tiaanet e parou, estreitando os olhos. A
garota estava encostada à parede, a cabeça balançando, mas, no silêncio,
dava para ouvir seus murmúrios baixos, assim como o som das correntes em
seu tornozelo, chocalhando enquanto ela esfregava metodicamente a perna
contra a parede de pedra.
— Por que ela não está dormindo? — indagou ele.
Tiaanet engoliu em seco. Mas, antes que pudesse formular uma resposta,
Tantufi ergueu a cabeça. Ela se concentrou nas vozes deles com esforço,
piscando com grandes olhos remelentos.
— Sem sono — murmurou a menina. — Sem sono sono sono tanta
gente perto, tanta.
Sanfi flexionou o maxilar, cerrando os punhos. Ele deu um passo em
direção à garota, sua postura inteira advertindo sobre sua intenção. Tiaanet
rapidamente entrou na frente dele.
— É o hábito, pai — explicou ela. — Ela só está acostumada que os
guardas a mantenham acordada. Ela não entende que o senhor quer que ela
durma agora.
— Saia da minha frente — ordenou ele.
— Ela não vai conseguir evitar, pai, vai ter que acabar dormindo…
Ele ergueu a mão para afagar a bochecha de Tiaanet e ela se calou,
paralisada.
— Quero que ela durma agora — disse ele baixinho. — A magia dela
funciona igualmente bem se estiver inconsciente.
Não. Tiaanet fechou os olhos, ouvindo seu coração latejar em seus
ouvidos. Tão poucas coisas podiam machucá-la agora, mas contra essa ela
não tinha defesa. Deusa, por favor, não. Não posso suportar ver de novo
enquanto ele bate nela, a menina quase morreu da última vez, não. Hananja, por
favor me ajude.
Então, como que em resposta à sua prece, ela encontrou a solução.
— O senhor prometeu, pai — falou ela. Na quietude fechada do porão,
sua voz soou anormalmente alta, perigosamente áspera… muito semelhante
à da zhinha Iezanem. Ela o viu franzir o cenho em resposta a isso, viu a
raiva dele começar a se concentrar em um novo alvo.
Isso. Eu, não ela.
— O senhor prometeu que não ia machucá-la de novo depois da última
vez. — Ela ajeitou os ombros e ergueu o queixo. Era um dedo mais alta do
que ele e normalmente mantinha a cabeça baixa para evitar fitá-lo de cima
para baixo. Agora o fez de propósito, de um modo agressivo. — E eu não te
agradei naquela noite, pai? Eu não paguei bem o suficiente pela segurança
dela?
Ele arregalou os olhos, o corpo todo tenso com a fúria.
— Como ousa? — sussurrou ele.
— Se quer que ela durma, posso dar uma bebida de ervas — propôs a
moça. Deliberadamente, Tiaanet se aproximou dele, comprimindo-o,
olhando nos olhos dele. — Aí você pode ter a sua praga. Mas você não quer
que ela durma, não é? Você quer que ela morra. Você está tão bravo para
pensar neste exato momento, pai, porque Wanahomen roubou de você a
marcha sobre a cidade, mas por que isso te irrita tanto? Ele vai ser um bom
genro. Ele usa os outros e mente como você. Como você vai fazer se
machucar a Tantufi quando prometeu não fazer isso, ou nenhuma das suas
promessas na cama tem valor? Não me surpreenderia, nada mais do que
você faz na cama tem qualquer…
Foi quase um alívio quando a tempestade desabou. Ela estava ficando
sem opções para insultá-lo. Ele grunhiu, furioso, e bateu nela com tanta
força que ela girou e caiu em meio a vários sacos empilhados de areia branca
decorativa que deveria ser usada no jardim do átrio. Os sacos eram macios o
suficiente para evitar que ela quebrasse alguma coisa ao cair sobre eles, mas
perdeu a respiração, e entre isso e o golpe que ele deu, a visão dela ficou
turva por algum tempo.
Em meio à turvação, Tiaanet ouviu Sanfi gritando alguma coisa sobre
como ela era um veneno assim como a mãe, uma maldição sobre a linhagem
dele, uma maldição que ele não merecia. Ele agarrou o quadril dela e ela
esperou que a arrastasse para fora dos sacos, até o chão onde poderia
terminar de descarregar a raiva. Mas ele a deixou onde estava. Em vez disso,
ela sentiu a parte de trás do vestido sendo rasgada e as pernas sendo abertas.
Seguiram-se mais movimentos atrapalhados e tecido rasgado e então sentiu
uma nova dor atordoante, quatro vezes pior do que o golpe que ele lhe dera,
quarenta vezes pior do que a primeira noite em que ele entrara em seu
quarto, tantos anos antes que ela quase não se lembrava de nada, a não ser
da vergonha que sentira um dia. Havia potencial para sentir vergonha ali
também, e talvez um pouco de repulsa enquanto ele grunhia e gemia e se
esfregava nas costas dela, mas ela não sentiu nenhuma das duas coisas,
apesar da dor. A época em que sentira vergonha dele e de si mesma por ser
filha dele passara anos antes. Agora a única coisa que importava era que
fosse ela a suportar a dor, não Tantufi. Não Tantufi.
Felizmente, ele estava bravo demais para tentar agradá-la, como fazia
com tanta frequência para tentar aliviar a culpa. Isso fez com que fosse
rápido.
Quando terminou, ela esperou, ouvindo-o respirar e se recompor,
sabendo que os pedidos de desculpa não viriam agora. Durante algum
tempo, ele ainda a culparia por tê-lo provocado. Por fazê-lo machucá-la. No
máximo poderia se preocupar que ela fosse deixá-lo e então ela teria de
tolerar ser seguida pelos guardas dele aonde quer que fosse. Ele a advertira
desde a infância que mandaria assassinos para persegui-la se algum dia
tentasse fugir. Mas eles não usariam armas; ele autorizaria os métodos mais
lentos e brutais como presente de despedida para sua única e amada filha.
(Ela não temia aquele destino para si mesma. O que significava mais
dor? Mas ele faria aquilo com Tantufi também e isso ela não podia
suportar.)
Só mais tarde é que a culpa substituiria a raiva do pai e então ele pediria
desculpas que não queriam dizer nada, daria presentes que ela não queria e
faria mais promessas que nunca seriam cumpridas.
Depois de algum tempo, ele se levantou e saiu do porão. Tiaanet ficou
onde estava, sentindo a umidade resfriar em seu corpo, esperando os últimos
resquícios da dor desaparecerem da sua cabeça e das suas costelas e das
outras partes. Por um tempo, seu pensamento vagou, achando ter imaginado
o toque de dedos delicados em seus lábios e o suave tamborilar de lágrimas
em sua bochecha. Mas as lágrimas não podiam ser suas, já que não chorava
mais.
— Dorme — sussurrou uma voz em seu ouvido. — Dorme agora,
dorme. Vou ficar acordada por você. Segura segura segura. Dorme.
Tiaanet dormiu.
26
PROFESSORA
***
Então mais tarde naquela noite, após uma refeição absolutamente deliciosa
na fogueira comunitária para aqueles que não tinham escravizador, Hanani
seguiu o jovem Tassa por uma longa trilha que era pouco mais do que uma
série de saliências vagamente conectadas ao longo da parede oriental do
Merik-ren-aferu. Tassa, nascido e criado para uma vida no cânion, subia as
pilhas de pedras e as encostas íngremes como um lagarto, rindo de Hanani
sempre que ela empacava ou tinha de parar e descansar. Mas ele não a
deixava, pelo que ela estava agradecida.
Durante um descanso, enquanto ela estava sentada em uma laje plana de
pedra e rezava para que as cobras e as aranhas ali embaixo ficassem onde
estavam, ele veio se sentar ao seu lado, os olhos brilhantes e curiosos.
— Por quê? — perguntou ele. — Ir, Wana. Você. — Ele apontou para o
alto da colina, que Hanani não conseguia ver; a lamparina que ela levava
difundia um círculo luminoso, mas para além dele havia escuridão. Ela só
podia ter esperança de que estivessem perto.
— Para ensinar para ele — respondeu ela, usando palavras simples. —
Sonhos. — Ela fez um gesto indicando o sono, pousando o rosto sobre as
mãos encostadas.
Ele franziu a testa ao ver isso, pensando.
— Porque… — Ele ficou procurando as palavras por um instante. — Ir,
Wana. Para, para Gujaareh. Você ensina sonhos, por quê?
Era difícil explicar. Mesmo se Tassa falasse gujaareen fluentemente, ele
era só uma criança. Mas ela vira o quanto era doloroso para o Príncipe
esconder sua herança gujaareen do menino. Então ela ergueu os dedos
diante dos olhos de Tassa, embora não os estendesse ao rosto dele.
— Posso?
Ele franziu a testa, muito parecido com o seu progenitor nesse momento,
mas finalmente a curiosidade venceu: ele fez que sim com a cabeça e fechou
os olhos. Hanani pousou os dedos nas pálpebras dele e teceu-lhe um rápido
e delicado sonho de ensinamento. Ela estivera no palácio Yanya-iyan
algumas vezes na vida, em geral como parte da procissão anual do Hetawa
na Hamyan. Ela mostrou isso para Tassa, passando no sonho pelos
reluzentes portões do palácio, entrando no vasto pátio e parando diante da
plataforma de onde tradicionalmente o Príncipe de Gujaareh observava a
celebração anual. Não havia nenhum príncipe na plataforma há dez anos,
mas Hanani vislumbrara o velho Príncipe, o pai de Wanahomen, uma vez
quando era criança. Então se baseou naquela lembrança para criá-lo, esguio
e orgulhoso e imóvel como uma estátua sobre o assento branco em forma de
ferradura que era seu trono, com a Auréola do Sol Poente dourada e âmbar
atrás e acima dele.
Depois aos poucos substituiu aquele Príncipe por outro: Wanahomen.
Ele estava sentado no mesmo trono, o rosto cheio de presunção e poder,
vestindo uma camisa de seda vermelha e um colarinho de placas de ouro,
um lenço vermelho na cabeça fazendo um retrato do rosto dele sob a coroa
de marfim semelhante a uma cúpula.
Quando ela encerrou o sonho, Tassa fitou-a, admirado.
— Wana?
Hanani sorriu e confirmou com a cabeça.
— Gujaareh é a cidade dos sonhos. Wana, ele precisa ter bons sonhos,
sonhos saudáveis, para nos governar. Para ser o nosso Príncipe. Você
entende?
Tassa franziu o cenho, mas não por não ter entendido, pensou Hanani.
Ele dobrou os joelhos e Hanani viu melancolia nos olhos dele.
— Príncipe aqui — falou ele em tom taciturno. — Líder de caça antes,
no governo de Unte, é líder da tribo depois de Unte. Mas…
Ele jamais poderia se satisfazer com isso, Hanani sabia. Ela viu essa nova
percepção nos olhos de Tassa e então se arrependeu de mostrar a verdade ao
menino. O Príncipe fora criado em meio a uma magnificência que nem a
mais rica tribo banbarrana poderia igualar. Tassa poderia ter aquela glória
também, como filho do Ocaso… mas só a um custo terrível. Yanassa
explicara: as crianças banbarranas pertenciam ao clã da mãe, com tias e avós
para ajudar a criá-las e tios para ensinar aos meninos os costumes dos
homens. Os homens banbarranos não tinham direitos sobre os filhos que
geravam, apenas sobre aqueles nascidos das mulheres da sua própria família.
Para dar a Tassa seu direito de nascença gujaareen, o Príncipe teria de
roubar dele seu direito de nascença banbarrano e toda a família que ele
conhecia e amava.
Quando eu voltar para Gujaareh, vou perder o meu filho. Recordando as
palavras do Príncipe, Hanani entendeu duas coisas ao mesmo tempo: que
Yanassa era generosa e valente de permitir que Tassa tivesse tanto contato
com o pai e que o Príncipe era menos egoísta e arrogante do que parecia.
Hanani suspirou e tocou a mão de Tassa.
— Meus pais me venderam quando eu era mais nova do que você —
contou ela. — Você tem muita sorte de ter pais que te amam tanto como os
seus.
O menino não entendeu, ela viu isso em sua expressão confusa. Mas
então ele arregalou os olhos e levantou-se de um salto e pegou um pedaço
de pedra lascada (uma faca caseira, percebeu Hanani enquanto se levantava
também) de uma das dobras de sua túnica. Ele se virou para ficar de frente
para uma parte escura da trilha fora do alcance da luz da lamparina, tenso e
trêmulo.
Mas era só o Príncipe que saía silenciosamente da escuridão. Tassa
conteve a respiração e relaxou com um alívio visível.
O Príncipe se aproximou deles com um olhar de divertimento enquanto
fitava a faca insignificante de Tassa. Ele falou alguma coisa em chakti e
Tassa se contorceu de vergonha e tentou guardar a faca. Mas, antes que
pudesse fazê-lo, o Príncipe tomou sua mão e agachou-se, tirando a faca dele
para examinar. O rapaz chacoalhou a cabeça, mas então seus olhos se
abrandaram ao contemplar Tassa. Ele levou uma das mãos à bochecha do
menino e, contra a sua vontade, Hanani não pôde deixar de se lembrar do
afeto da mão de Mni-inh.
Depois o Príncipe se pôs de pé e desamarrou uma das facas ao redor da
cintura. O cabo era de osso polido; a bainha, de couro lindamente
trabalhado. Ele desembainhou a lâmina por um momento e o brilho do aço
refletiu a luz. Em seguida, guardou-a de novo, enrolou as cordas com franjas
em volta do cabo e entregou-a a Tassa.
Tassa respirou bruscamente, pegando a faca com as duas mãos. Fez uma
pergunta em tom respeitoso; o Príncipe aquiesceu. Tassa, com os olhos
brilhando, tagarelou, balbuciou um agradecimento entusiasmado e quase
incoerente e depois saiu correndo para a escuridão, apertando a faca ao peito
e sorrindo como um pateta.
O Príncipe observou o menino ir embora, suspirando com força
suficiente para levantar o véu.
— A insensatez de Wujjeg vem a calhar. Mas Yanassa vai querer
conversar comigo.
— Uma faca é um presente perigoso para uma criança.
— É. Mas, entre os banbarranos, os meninos que querem ser guerreiros
normalmente ganham uma mais ou menos na idade dele. — Ele examinou
a faquinha de pedra, pouco mais do que uma pedra afiada, e depois a jogou
na escuridão. — E, se ele está tão determinado a ter uma faca, deveria ter
uma que não vá falhar quando ele precisar.
Ele parecia estranhamente sombrio; Hanani não conseguiu detectar nem
um pouco da cisma e do desdém de costume em seu comportamento. Ela
arriscou:
— Se é tradicional, então Yanassa…
— Yanassa quer que ele seja contador-mestre ou guardião de histórias ou
ferreiro. Qualquer coisa, menos guerreiro. Mas ele é meu filho, por mais que
ela possa se arrepender disso agora.
Ele entreouvira a conversa dela com Tassa, ela se deu conta. As pedras
ecoavam o som; em uma noite silenciosa daquelas, cada palavra devia ter
ficado clara.
— Bem, as crianças raramente crescem como seus pais gostariam —
continuou ele, movendo-se para se sentar de frente para ela, acomodando-se
o melhor que pôde contra a superfície inclinada de uma rocha. — Os seus
devem estar espantados com você.
Hanani cruzou as mãos sobre o colo.
— Os meus provavelmente não pensam muito em mim, se é que
pensam.
Ele hesitou.
— Você disse que eles te venderam.
— É. Eles eram da casta lavradora; certo ano, as nossas safras foram
perdidas. É dever de uma menina garantir o bem-estar da família em
tempos difíceis. Então eu pedi para eles me venderem.
Ele franziu a testa.
— Ouvi falar que essas coisas aconteciam entre os baixa-castas, mas…
Quantos anos você tinha?
— Eu tinha visto seis inundações do rio.
— Seis! — Ele chacoalhou a cabeça. — Você não tinha como saber o
que estava pedindo.
Ela encolheu os ombros. Não tinha, mas não importava mais.
— Por que o Hetawa? — perguntou ele. — Eles quase não precisam de
meninas… ou, pelo menos, esse era o caso antes de você. Com certeza seus
pais poderiam ter conseguido mais vendendo você para outra família da
casta lavradora que não tivesse filhas, ou para uma casa de timbalin, ou para
outro lugar.
Hanani observou a chama da lamparina dançar ao sabor da brisa gelada.
O movimento era quase tão hipnotizante quanto um feitiço para dormir.
— Foi escolha minha — falou ela. — O Hetawa sempre pareceu tão
magnífico para mim. Todos aqueles sacerdotes esplêndidos e sábios, e a
magia, e a chance de aprender tanto quanto eu quisesse… mesmo que só
por alguns anos, eu queria.
— E os seus pais fizeram o que te deixaria mais feliz, mesmo que isso
tornasse você menos valiosa para as necessidades deles. — Os olhos dele
sobre o véu a observavam constantemente.
Aquela ideia nunca tinha passado pela cabeça de Hanani. Para as
crianças adotadas pelo Hetawa, a Deusa Hananja se tornava mãe; os Servos,
pais; os outros adotados, um exército de irmãos. Acreditar naquilo, e
esquecer a família em que nascera, ajudara durante aquelas primeiras noites
solitárias e nostálgicas. Com o passar do tempo, tornara-se verdade. Mas
talvez ela também tivesse tido a sorte de ter pais que a amavam tanto que a
sua felicidade era mais importante do que os desejos deles.
Ela inclinou a cabeça para o Príncipe, grata pelo discernimento dele. O
rapaz pareceu nervoso por um breve instante, depois se empertigou.
— Vamos começar essa aula?
— Ah. Vamos. — Era uma transição brusca e chocante na conversa. Ela
jamais conhecera um gujaareen tão deselegante. Até os kisuati tinham mais
delicadeza. — Bem, posso examinar você?
Ele aquiesceu, e ela se levantou e foi até ele. Foi difícil para ela se
posicionar apropriadamente com as saias estorvando, mas conseguiu fazê-lo
pousando uma das mãos em seu ombro. Isso o fez fitar a mão dela com uma
expressão estranhamente pensativa nos olhos.
— Não ficou um hematoma — disse ele.
— O quê?
— O lugar onde o soldado kisuati me acertou. Você se ofereceu para me
curar aquele dia, se bem me lembro.
Hanani se esquecera. Aquilo a chocou, especialmente considerando que
ele tentara salvá-la naquele momento do mesmo tipo de tratamento que
Azima infligira depois.
Ela não podia, não iria, torturar-se com aquele pensamento.
— Feche os olhos — pediu ela. As palavras e o tom foram tão
desastrados quanto fora a tentativa dele de mudar de assunto, e sua voz
soara fria até mesmo aos seus próprios ouvidos. Os olhos dele se tornaram
igualmente frios em resposta. Mas, sem dizer mais uma palavra, ele recostou
a cabeça na rocha e fechou os olhos.
Há muita raiva em meu coração para isso, percebeu Hanani. Mas agora as
palavras estavam ditas e a aula, começada; ela não tinha escolha a não ser
prosseguir.
Então ela colocou os dedos nas pálpebras do rapaz e procurou a sua
alma. Havia camadas e camadas dele para vasculhar, não só carne, mas
constrições de vontade e emoção. Teria sido mais fácil se ela pudesse fazê-lo
dormir, mas era importante que ela o reconhecesse na vigília tanto como no
sonho… mais importante até, Mni-inh a advertira, porque era para o eu da
vigília que ela ensinaria, não importando o reino onde entrassem. Então ela
mergulhou na impetuosidade e na solidão e no orgulho e no protecionismo
dele e, quando adentrou no fluxo da grande artéria acima do coração,
encontrou a alma dele e em seguida…
O quê?
Alguma coisa se mexeu.
Em vez da escuridão atrás das pálpebras dele, ela se viu à deriva em uma
escuridão ainda mais profunda. Por um momento ficou desorientada, e
depois percebeu: não estava mais dentro do Príncipe. A conexão continuava,
ela viu: um fio brilhante em tom vermelho-sangue atravessava o espaço. O
fio dele, o umblikeh, que ligava a alma ao corpo. O de Hanani também
estava visível naquele lugar sem forma.
Ela não gostava da ausência de forma. Mas, no momento que lhe
ocorreu esse pensamento, o espaço ao seu redor se iluminou,
transformando-se no Salão de Bênçãos outra vez. Todo cinzento.
O reino intermediário. Alarmada, Hanani virou-se para as alcovas do
Salão, onde antes avistara — ela agora sabia — a força que matara
Dayuhotem. Mas não havia nada lá. Aliviada, voltou para a estátua de
Hananja e para a plataforma e viu a si mesma, outra dela, vestida com roupas
volumosas que inflavam com um vento que não se sentia.
Ajoelhada aos pés da Deusa e usando uma faca, a faca que o Príncipe
acabara de dar ao filho, para furar repetidamente uma figura minúscula
diante dela, que já estava em um estado irreconhecível de profanação
vermelha.
Hanani gritou. A outra Hanani parou, fitou-a e sorriu entre lágrimas e
salpicos de sangue.
Não! Eu nunca! Desvairada, Hanani agarrou o próprio fio e…
… Voltou para dentro de si mesma de forma tão rápida e tão intensa que
se afastou bruscamente de Wanahomen com um arquejo.
Ele abriu os olhos, surpreso e confuso.
— O que foi?
— Eu… eu não… — Ela estava desorientada, letárgica; não conseguia
organizar os pensamentos. Será que ele não tivera aquela visão de horror?
Será que não tinha nenhuma lembrança dos próprios sonhos? — Não sei.
Eu estava…
— Pelos deuses, você está cambaleando como um bêbado. — O Príncipe
estendeu as mãos para firmá-la, pondo uma das mãos na cintura e outra na
coxa.
Na coxa, como as mãos de Azima…
O pânico tomou conta dela antes que ela pudesse pensar.
— Não me toque! — Sua voz era quase ininteligível, um grito com
palavras, e ela se agitou e chutou para se afastar dele. Tropeçando nas saias,
ela caiu no meio das pedras e da poeira, ofegando e arquejando e tremendo
tanto que mal conseguia respirar. Ela continuou a se arrastar, apoiada nas
mãos e nos joelhos, parando apenas quando chegou a uma grande laje que
bloqueava a trilha.
Seguiu-se um longo silêncio atrás dela e, naquele silêncio, o pavor de
Hanani começou a passar.
— Não vou tocar em você — assegurou o Príncipe. Ele falava em um
tom suave, a voz baixa. — O que devo fazer para ajudá-la? Eu poderia ir
buscar o seu mentor, mas isso significa deixá-la aqui sozinha.
Ela começara a recobrar o controle de si mesma. Os tremores foram se
acalmando enquanto ela se levantava devagar, procurando por dignidade
enquanto se virava para encará-lo.
— N-não — disse ela. — Sinto muito. Eu, eu não sei por que… — Ah,
mas ela sabia o porquê. Os dois sabiam. — Me desculpe.
— Entre todas as pessoas, você não deveria pedir desculpas para mim —
falou ele. Só mais tarde é que ela pensaria nas palavras dele ou reconheceria
arrependimento nelas. — É seguro aqui, Compartilhador-Aprendiz. Não
vou permitir que mais ninguém a machuque, nunca mais.
Incrivelmente, impossivelmente, aquelas palavras de fato a
reconfortaram. Não deveriam. Ela não tinha nenhum motivo para confiar
nele. No entanto, o fato de ele ser o único homem ali e não ter feito
nenhum movimento para voltar a tocar nela tinha o seu próprio poder,
embora sem palavras, e ela ficou mais calma. Ele se calou então, o que
ajudou mais ainda: ela podia fingir que ele não estava ali e procurar paz
dentro de si mesma. Dessa forma, por fim ela respirou fundo e mudou de
posição para se sentar sobre os joelhos.
— Acho que deveríamos terminar a aula por aqui esta noite — declarou
ela, enunciando com cautela.
O Príncipe viera agachar-se perto da lamparina esvaecente. Ele
aquiesceu. Para alívio dela, ele não perguntou outra vez sobre a estranheza
que ela encontrara nos sonhos dele, nem se estava bem.
— Deixe-me acompanhá-la de volta.
Ela anuiu, levantando-se. O Príncipe pegou a lamparina e chegou perto
o bastante para que ela pudesse ver através da luz, mas não perto o suficiente
para tocá-la. Ela não olhou para ele. Em silêncio, ele a conduziu de volta ao
acampamento.
27
SONHANDO ACORDADO
MISERICÓRDIA
***
OS PROTETORES
***
NOME DE ALMA
O PESADELO
MORTE
***
A noite caíra quando Wanahomen foi procurar Hanani. A essa altura, ele
estava suado e com calor, cheirando a óleos e ervas, e cansado demais para
tomar outro banho antes do período da manhã. Por outro lado, também
estava preocupado com a mulher. Ele não achava que ela era do tipo que se
machucaria… ou pelo menos não ali e naquele momento. Ao menos, como
uma boa hananjana, ela ia querer doar seu sangue onírico antes de morrer.
Ele avistou Yanassa em meio a um pequeno grupo com outras mulheres,
ouvindo música não muito longe da tenda de Hanani. Com várias centenas
de convidados no cânion e o desastre evitado, parecia que Unte havia dado
permissão para as celebrações do solstício continuarem. Mesmo assim, havia
um toque de moderação na festança. A instrumentista, Neapha Sete-Dedos,
tocava um lamento baixo e pesaroso. Wanahomen não viu ninguém
dançando, tampouco as celebrações mais alegres e barulhentas que eram
comuns na penúltima noite do solstício. Na noite de amanhã talvez eles
voltassem à alegria habitual, especialmente se a votação fosse a favor da
guerra. Na noite de hoje, a atmosfera na tribo era melancólica.
Yanassa avistou Wanahomen e fez um gesto de desculpas para as
companheiras antes de se levantar e vir ao encontro dele.
— Você vai vê-la?
Ele confirmou com a cabeça.
— Você a viu? Como ela está?
— Ela me deixou entrar por algum tempo, mas não falou sobre a sua
dor. — Yanassa baixou os olhos. — Nós tivemos uma discussão antes sobre
a mulher shadoun e acho que ela não confia mais em mim. Talvez você se
saia melhor.
As coisas estariam de fato ruins se esse fosse o caso.
— Vou lá agora.
Houve uma movimentação imediata do lado de dentro quando
Wanahomen tamborilou na aba da tenda de Hanani. Ela abriu para ver
quem era.
— Príncipe, você veio para a próxima aula?
Ele se sobressaltou; essa fora a última coisa que lhe passara pela cabeça.
— Esta noite não me parece o momento…
— Yanassa me contou que os líderes de tribo votam daqui a dois dias.
Não resta muito tempo para eu te ensinar. Entre. — Ela saiu da tenda e
contornou-a, dirigindo-se ao círculo de fogo outra vez.
A an-sherrat ainda tinha quatro tendas, percebeu Wanahomen. Ele
pediria aos seus homens que retirassem a de Mni-inh pela manhã.
A mulher estava se comportando melhor agora do que à tarde. Não havia
nenhum sinal externo de dor em seus movimentos ou em sua conduta,
nenhum sinal de emoção nenhuma. Ela também parecia melhor
fisicamente, embora isso provavelmente fosse um feito de Yanassa. O
penteado fora refeito com cachos, os ornamentos pesados substituídos por
minúsculas moedas douradas de enfeite que tilintavam de leve quando ela
andava. Os banbarranos usavam o tilintar das moedas para afastar a má
sorte em tempos de luto.
Suspirando, ele se sentou em uma das pedras ao lado da fogueira. Ela se
sentou de frente para ele.
— Cuidei do corpo do seu mentor da melhor forma que pude — disse
ele. — Eu não me lembrava de todos os ritos, não tinha os envoltórios, mas
o tratei com dignidade. Meus homens estão recolhendo lenha hoje à noite;
de manhã vamos levá-lo a um lugar para acender a pira. Você quer vir junto?
Ela não falou nada por um momento, a linguagem corporal tão
impossível de interpretar quanto o rosto.
— Não.
Nem uma lágrima, nem um tremor, nem um único sinal de tristeza. Se
ele não houvesse passado a conhecer a combinação peculiar de força e
incerteza que era normal dela, não saberia que havia algo de errado.
— Você encontrou portadores do dízimo?
— Yanassa — respondeu ela. — E Charris também, quando veio fazer
uma visita. E alguns outros.
— Você tem o suficiente agora?
— O suficiente de tudo, menos de sangue onírico, mas isso é de se
esperar sem a ajuda de um Coletor. Os vivos podem ceder muito pouco do
próprio sangue onírico.
Wanahomen tivera a esperança de desviar a conversa da morte.
— Esta aula. Vai ser tão desconfortável quanto a outra? — Ele conseguiu
dar um sorriso, mas ela não respondeu com outro.
— Isso depende de você — respondeu ela. A inexpressividade de sua voz
era verdadeiramente inquietante, comparada ao seu tom compassivo de
costume. — Por favor, durma agora.
Mais fácil falar do que fazer, pensou ele com azedume, mesmo assim se
virou para se sentar no chão, apoiando as costas na pedra. Embora estivesse
exausto, o sono demorava para chegar. Estava demasiado consciente dos
olhos dela sobre ele, do crepitar do fogo, do desconforto do chão.
— Você não consegue dormir.
O som da voz dela.
— Vai acabar acontecendo — retrucou ele. — Se estou demorando
demais para o seu gosto, podemos terminar a aula amanhã.
— Imagine uma coisa importante para você.
Ele franziu a testa.
— Como o quê?
— Algum objeto, ou um símbolo que tenha significado para você. Um
pictoral talvez. Imagine-o. Contemple seus contornos em sua mente.
Ele pensou por um momento, depois cautelosamente, reverentemente,
desenhou a imagem da Auréola do Sol Poente em sua mente. Não a
imitação da mãe, mas a coisa real: o bastão entalhado de nhefti branco, uma
madeira usada apenas para objetos sagrados. A moldura de metal, feita por
um artesão há tanto tempo que seu nome fora esquecido. Placas de âmbar
polido, cada uma entalhada a partir de pedras que deviam ser do tamanho
de melões e cada uma valendo o equivalente a toda a riqueza de um reino
menor para representar os raios sobrepostos do sol. Oito em âmbar
vermelho, oito em amarelo-claro. Ele se lembrava de ouvir quando era
criança, extasiado, enquanto o pai explicava que a placa central, o
semicírculo dourado com dois palmos de largura e quase tão vermelho
quanto o sangue, representava o Sol, que fundara a linhagem deles com uma
bela garota mortal que encheu seus olhos sempre inquietos. Fora extraída de
uma montanha onde a camada de neve era grossa o bastante para alguém se
afogar…
Niim.
A voz da mulher não o perturbou desta vez. Algo mudou dentro dele.
De repente, sua pele arrepiou com um calafrio muito mais profundo do que
aquele da noite do deserto e o ar tinha um sabor seco e amargo, como metal
enferrujado. Ele abriu os olhos e encontrou a an-sherrat em tons de branco e
cinza. Mesmo o fogo que ardia lento aos seus pés havia ficado
estranhamente sem cor. Mais branquidão, cintilante e estranha, cobria as
paredes da tenda e cada superfície. Ele tocou uma massa que havia ali perto
e a frieza dela ferroou seus dedos. Neve? Nunca a vira, mas estava pensando
nela, recordando as histórias do pai… De pronto, entendeu.
— Estou sonhando.
— Está. Mas não em Ina-Karekh. — A mulher do templo, quando ele
olhou em volta, estava a alguns metros de distância. Havia algo estranho em
sua forma onírica, que cintilava de vez em quando, como que tentando
assumir uma forma diferente, mas no momento ela a tinha sob controle.
— Este é o reino entre a vigília e o sonho — explicou ela. — A sua alma
me trouxe para cá várias vezes em vez de me levar para Ina-Karekh.
Acredito que seja um sinal de que alguma parte de você está desalinhada. —
Ela fez uma pausa. — Você tem visões com frequência?
Wanahomen estremeceu e mentiu.
— Não.
Ela ficou em silêncio por tanto tempo que ele soube que ela não havia se
deixado enganar. Mas ele não tinha nenhuma intenção de admitir a verdade
diante dela.
— Não importa — disse ela por fim. — De qualquer forma, pretendo
ensinar você a se curar.
Ele franziu a testa, confuso, envolvendo o corpo com os braços. O frio
atravessava as suas vestes.
— Não gosto disso.
— Então mude — falou ela. — Este é o seu reino.
— Não entendo.
— Um Coletor é aquele cuja mente cria novos mundos por meio do ato
de sonhar. Fazer isso é natural para eles. Na verdade, se não fosse pelo poder
equilibrador do sangue onírico, alguns deles passariam o tempo inteiro nos
mundos criados por suas mentes. Você chamaria isso de loucura.
Ele estremeceu, ou arrepiou. Ela não parecia afetada pelo frio por
alguma razão, embora vestisse menos roupa.
— Não sou um Coletor. — Quando ela não disse nada em resposta, ele
fez cara feia e mudou de assunto. — Como saio deste lugar?
— Crie outro. Assim como criou este.
Ele se lembrara das histórias do pai e imaginara uma paisagem onírica
coberta de neve. Decidiu tentar outra lembrança de infância: os jardins do
Kite-iyan, o palácio de suas mães e irmãos. Em sua visão mental, ele viu as
delicadas palmeiras em miniatura, sentiu a fragrância das flores das videiras
e do rio próximo, sentiu a terra entre os dedos dos pés…
Os dedos dos pés. Ele estivera usando sandálias, mas agora seus pés
estavam descalços. O ar estava tépido. Ele abriu os olhos para ver o Kite-
iyan… incolor, sombreado, mas inconfundível.
Hanani olhou ao redor, acenando no que poderia ter sido aprovação.
— A sua vontade é forte. Mas isso nunca esteve em questão. — Então
ela andou pelo jardim, incongruente com seu elegante vestuário bárbaro e
sua disciplina do Hetawa, passando os dedos pelas plantas, pelos
pedregulhos, por uma parede de pedra. — O que você está vendo aqui? Está
tudo em ordem?
Ele franziu a testa, perguntando-se do que em nome dos deuses ela
estava falando.
— Está como eu me lembro, sim, exceto por esse tom feio de cinza.
— Nada fora do lugar? Tem certeza?
— Claro que não tenho certeza, não venho aqui faz dez anos. — Ah,
mas como sentira falta de lá! Brincara naqueles jardins quando criança, de
esconde-esconde com os irmãos e de construir castelos de areia com as
irmãs. Ouvira a mãe, naqueles tempos muito antes de a doença e a velhice
enfraquecerem a sua voz, cantar as músicas da sua terra natal em suua. Ele
ouvira…
Um barulho. Algo no jardim não soava certo.
Girando para se orientar pelo som, ele começou a andar entre as
palmeiras e as samambaias. Água. Sim, a velha fonte; ele quase se esquecera.
Fixa na parede, uma cabeça de leopardo despejava água na boca aberta de
três filhotes, que então derramava em uma piscina abaixo.
— Está fraco demais — murmurou ele, meio para si mesmo. — Não há
água suficiente, está gotejando devagar demais.
— Conserte. — Em silêncio, a mulher viera para o seu lado. Será que ela
caminhara ou simplesmente se manifestara ali?
Wanahomen olhou ao redor da fonte, procurando algum mecanismo,
embora ela houvesse sido construída séculos antes e ele jamais tivesse sabido
nada sobre o seu funcionamento. Mas Hanani tocou seu braço.
— Este é o seu mundo — afirmou ela. A estranha turvação na forma
onírica da moça cessara; ela estava focada por inteiro nele agora. Ele se
sentiu indiretamente lisonjeado. — Conserte.
De repente, Wanahomen entendeu. Ele não precisava de mecanismos e
conhecimento sobre construção quando controlava tudo o que via apenas
com a força de vontade. Então se concentrou em lembrar-se de como
funcionava o fluxo de água, afinando a imaginação. Quando o som da fonte
correspondeu ao som de sua lembrança, desceu-lhe pela espinha um calafrio
que não tinha nada a ver com os flocos de neve que ainda derretiam em seu
cabelo. Por puro instinto, ele ergueu a cabeça, o olhar atraído para o céu.
Aquilo também estava errado. Ele dera ao cenário o céu causticante e sem
nuvens dos desertos em torno do Merik-ren-aferu. Em vez disso, desejou
um azul mais intenso e algumas nuvens finas de umidade que
desapareceriam ao redor do meio-dia, mas sempre voltariam à noite.
O calafrio percorreu seu corpo outra vez, mais forte agora, e com ele veio
uma sensação de conformidade tão poderosa que ele conteve a respiração.
— O que você está sentindo é equilíbrio — explicou Hanani. — Paz.
Lembre-se. Quando essa sensação mudar ou desaparecer, volte para este
lugar e faça o que acabou de fazer. Ou crie um lugar diferente, não importa.
Quando invoca o seu nome de alma, você se despe do artifício do seu eu da
vigília. Quando cria um domínio neste lugar vazio, tudo… todas as coisas
que você vê… é você. Mude-o e mudará a si mesmo.
Ele respirou fundo, saboreando a sensação de conformidade. Admirou-se
de não ter notado sua falta antes. Será que isso significava que estava
enlouquecendo aos poucos? Um pensamento assustador.
— Não entendo como isso funciona.
— Não precisa entender. Nenhuma outra pessoa entende. — Quando
ele a fitou, surpreso, ela sorriu, embora fosse um sorriso com pouco humor.
Ele tinha a sensação de que aquela expressão era mais um reflexo. — Aqui é
o sonho, Príncipe. Estes são os reinos dos deuses. Apenas os mais fortes
Coletores têm alguma esperança de entender: eles nascem para o poder da
Deusa de uma maneira que o resto de nós só consegue se esforçar por
imitar. É por esse motivo que eles nos conduzem… e é por esse motivo que
temos tanta esperança em você, Avatar de Hananja.
Ele franziu a testa ao ouvir aquilo, mas, ao mesmo tempo que o fazia,
percebeu que os sinais estiveram ali o tempo todo, tão claros quanto os
círculos sob os olhos da shadoun. Ele achara que o interesse do Hetawa nele
era puramente político. Eles precisavam de um novo testa de ferro e ajuda
militar para se livrar dos kisuati. Mas agora sabia: acreditavam de fato que
ele era um deles. Amaldiçoado pela magia deles, sem treinamento nem
controle, mas abençoado pelo favor da Deusa também. Para o Hetawa,
aquilo era tudo.
Wanahomen nunca acreditara em Hananja de verdade. Ah, ele sonhava,
e tinha visto o poder da magia do Hetawa, mas a ideia de que uma deusa
pudesse se importar com criaturas minúsculas que se esgueiravam nos
sonhos Dela parecia absurda. Aquela questão do avatar sempre fora apenas
outro título para ele, mais sem sentido do que o resto. Mas, se era a razão
pela qual o Hetawa concordara em ajudá-lo, então o título tinha de fato
poder real. E se existisse alguma verdade nesse título? E se o poder que esses
sacerdotes ficavam dizendo que ele tinha, um poder que deveria tê-lo
tornado um Coletor, tivesse algum outro propósito mais sagrado? Qual era
esse propósito? E por que Ela o dera a ele?
Wanahomen chacoalhou a cabeça e levantou-se. Ele pensaria em tudo
aquilo depois.
— Então é isso? Agora vou conseguir evitar a loucura?
— Você pode usar este método para manter os seus humores em
equilíbrio, sim. Mas fique vigilante, pois a loucura tem muitas formas e nem
todas são afetadas pelo sangue onírico. A corrupção do seu pai é prova disso.
Ele ficou tenso e um súbito vento cortante soprou pelo jardim.
— Ele não era louco.
— Então você acredita que ele simplesmente era mau? Nem nós
chegamos tão longe, Príncipe.
Ele se virou para ela, fazendo cara feia.
— Também não acredito nisso.
— Você sabe o que ele tentou fazer. Torturou um Coletor duas vezes até
aquele Coletor se transformar em um monstro. Soltou aqueles monstros
tanto sobre os inimigos como sobre os aliados, condenando todos a destinos
muito, muito piores do que a morte…
— Não foi assim! Ele não era assim! Ele era…
O jardim mudou, banhando-se com uma luz do sol intensa, porém ainda
incolor. Agora ele estava nos andares superiores do Kite-iyan, na sacada do
suntuoso apartamento com muitos quartos que um dia fora seu. Olhou para
si mesmo e viu roupas de uma vida diferente: seu sobrepano de pele de
leopardo favorito e uma camisa solta de seda importada, sobreposta pelo
colarinho de jaspe que sua mãe lhe dera para a sua cerimônia da idade do
amadurecimento. Suas mãos estavam mais macias e os braços, menos
musculosos do que haviam se tornado nos dez anos de vida difícil de
guerreiro…
— Wanahomen — disse uma voz às suas costas e seu coração parou.
Então ele se virou.
Eninket, agora Rei do Trono dos Sonhos de Gujaareh, atravessou o
quarto com suas passadas largas de costume. Havia um sorriso em seu rosto
e os braços estavam estendidos para abraçar o filho favorito. Quase
paralisado pelo choque e pela lembrança e pela dor ainda muito viva,
Wanahomen correspondeu ao abraço, os olhos enchendo-se de lágrimas,
uma vez que o sonho fornecia muitos detalhes importantes que ele quase
esquecera. O cheiro do pai, suor e olíbano e óleo de cravo. O tinido de
minúsculos cilindros dourados entrelaçados no cabelo dele. A força dos
braços dele, que, naquela época, mesmo como um jovem adulto que já
passara das ilusões da mocidade, Wanahomen acreditara que jamais pudesse
esmorecer.
O dia. Sim, ele se lembrava disso também. Foi um dia antes daquele em
que os exércitos de Kisua e Gujaareh deveriam se encontrar em Soijaro, no
norte de Kisua. O dia anterior à morte do seu pai.
— Pai — sussurrou Wanahomen, abraçando-o com força. — Pai. —
Quando abriu os olhos, porém, viu algo que o abalou: a mulher do templo.
Ela os observava, sua forma ainda cinza e branca e incolor, do outro extremo
do quarto. Enquanto ele olhava, ela se turvou de novo e, desta vez, ele
conseguiu vislumbrar lampejos do outro eu da moça: uma figura chorosa e
plangente. Uma figura extenuada com olhos cheios de uma compaixão
amarga.
Isso mesmo. Ela também sabia o que significava perder um pai.
Wanahomen afastou-se do abraço do pai, fitando o rosto do homem que
fora o deus do seu mundo por tanto tempo. Será que realmente houvera
tanta tristeza escondida atrás do sorriso largo do pai naquela época? Ou
seria aquilo apenas um truque da memória?
— O que há de errado, Wana? — perguntou seu pai, meio que sorrindo
de espanto ao ver a expressão dele.
— Nada — respondeu ele. — Só estou feliz de te ver. — Então seu pai
sorriu e passou um braço amigável ao redor do seu ombro, conduzindo-o
para a sacada.
Este é o seu mundo, dissera Hanani. Ele veria o que quisesse ver. Naquela
época, quando ele era o filho mimado de um príncipe, houvera muita coisa
que não quisera ver no que se referia ao pai. Agora…
Hesitando por mais um instante, Wanahomen fechou os olhos e desejou
que a sua lembrança se tornasse certa.
Quando abriu os olhos, o pai havia se afastado, apoiando-se no parapeito
da sacada enquanto contemplavam juntos o sol poente. Agora Wanahomen
via as linhas de preocupação em volta dos olhos do pai, lia a tensão atípica
no corpo dele. Agora Wanahomen notava, enfim, que o pai não olhava em
seus olhos.
— Quero que você saiba — falou o pai — que, o que quer que eu faça
amanhã, é por você.
A Ceifa dos exércitos. Seu pai fizera aquilo para alcançar a imortalidade
por meio de um conhecimento mágico tão antigo e proibido que a maior
parte do mundo havia se esquecido de sua existência; embora Wanahomen
não soubesse disso na época, Charris confessara a verdade para ele nos anos
que se seguiram. Se Eninket houvesse se tornado imortal, Wanahomen teria
sido condenado ao destino que esperava a maioria dos seus irmãos: uma vida
de precária inutilidade, riqueza e privilégio sem propósito. Como filho
favorecido, ele poderia ter se casado com alguém de alguma linhagem
elevada para consolidar os laços daquela família com o trono, mas jamais
poderia ter alcançado poder ou aclamação próprios, nem mesmo se
abraçasse uma profissão ou arte. Qualquer filho do Príncipe cuja glória se
equiparasse à do pai era uma ameaça potencial ao Trono do Ocaso.
E será que seu pai teria convocado assassinos para matá-lo nesse caso,
como ditava a tradição?
Seu pai dirigiu-lhe um olhar naquele momento. Como é que
Wanahomen nunca notara a vergonha naqueles olhos que eram tão
parecidos com os seus?
— Quero manter você em segurança — disse Eninket em tom baixo. —
Quero que a sua vida seja pacífica. Os fardos de governar… — Ele suspirou.
— Eu os manteria longe de você se pudesse, eu te manteria como você está
agora, sem mácula.
Me manter como estou, pai? Um menino no corpo de um homem? Um animal
de estimação?
Atrás de seu pai, a mulher do templo desviou o olhar.
— Wana? Você entende? — O pai olhou para ele, perturbado com o seu
silêncio.
Sim, eu entendo. Que tipo de homem escolhe um destino desses para o filho?
Entendo exatamente o que você pretendia fazer.
E, no entanto, Wanahomen suspirou, esfregou os olhos, então estendeu
uma das mãos para apertar o ombro do pai. Essa mão, não de todo para
surpresa de Wanahomen, era a mão que ele possuía agora. Não era mais
macia. Estava marcada e desgastada pelo vento, escurecida pelo sol, toda
cortada de cicatrizes adquiridas ao aprender a usar a faca, praticar luta com a
espada, lutar mão a mão. Ele se tornara o homem que seu pai jamais quis
ver.
— Eu te amo, pai — falou ele, e era verdade. — Eu nunca te disse isso o
suficiente. Mas a incorreção aqui neste mundo que é a minha alma… — Ele
fechou os olhos, odiando-se por essa traição, ao menos da própria imagem
que tinha quando jovem do pai. — É você.
E, fechando os olhos, desejou que a incorreção, toda ela, desaparecesse.
Eles flutuaram de novo no espaço entre os reinos, que se despira de sua
aparência e mostrava sua verdadeira natureza como uma escuridão infinita e
amorfa. Isso combinava com o seu estado de ânimo.
— Sinto muito — veio a voz dela de algum lugar.
— Como é que você consegue estar aqui? — perguntou ele. O rapaz se
sentia vazio dentro da parede de cristal que protegia o seu eu mais íntimo.
Toda a sua raiva se extinguira. Ele não conseguia sequer odiar o Hetawa…
pois agora enfim entendera que eles estavam certos em matar seu pai. — Se
este lugar é meu para controlar.
— Alguma parte de você deve me querer aqui. Mas posso ir embora
agora e deixar você dormir. A aula terminou.
— Não. — Ele desejou que a parede de cristal do seu nome de alma
afinasse e se tornasse permeável, um convite. — Fique. Podemos consolar
um ao outro.
De repente, ele sentiu as paredes do eu dela se manifestarem, sólidas,
porém quebradiças como ossos.
— Eu não preciso de consolo.
Ele nunca a ouvira mentir.
Mas antes que pudesse confrontá-la sobre isso, ela se afastou.
— Bom descanso, Príncipe. Em paz. — Rápida como a luz, ela se foi.
— E que a paz Dela esteja com você também — falou ele. Mas sabia que
isso também seria uma mentira por um longo tempo.
33
CONVITE
***
***
CANTO FÚNEBRE
***
CONSOLO
***
Hanani abriu os olhos na penumbra da tenda. Não sabia dizer que horas
eram, mas o barulho da celebração do lado de fora desvanecera. Ainda havia
bastante atividade no acampamento, mas a música estava mais suave e mais
lenta agora. Ela não conseguia ouvir nenhuma criança correndo ou gritando,
o que significava que no mínimo já passara da hora de dormirem.
Ao seu lado — sua cabeça ainda repousava sobre o ombro dele —,
Wanahomen dormia, os olhos se mexendo sob as pálpebras. Ela se
perguntava o que o Coletor Nijiri teria achado da sua decisão de treiná-lo.
Será que Mni-inh havia contado para ele? Conhecendo Mni-inh, ela
duvidava. Aliás, ela se perguntava o que Nijiri acharia de Wanahomen em
sua cama, por mais inocente que fosse. Ela não seria a primeira no Hetawa a
suportar boatos constrangedores. Havia o próprio Coletor Nijiri, e diziam
que o Sentinela Renamhut tinha uma mulher e uma filha no distrito dos
artesãos, e o Professor Ide era conhecido por gostar de aprendizes escuros
como os shunha. Na realidade, a julgar pelos boatos, vários dos acólitos e
dos sacerdotes do Hetawa tinham casos secretos, embora boa parte talvez
fosse exagero. Hanani jamais entendera por que Mni-inh tivera tanto
cuidado em manter distância dela quando metade do Hetawa desconfiava
deles mesmo assim e o resto tinha seus próprios segredos a esconder.
Ela suspirou, contemplando o peso do braço de Wanahomen contra as
suas costas. O Coletor Nijiri teria entendido, concluiu ela. Wanahomen não
era Coletor nem tinha sangue onírico para lhe dar, mas tinha o dom de um
Coletor para perceber quando o consolo era necessário. Ela teria
desmoronado se não fosse por ele. Mni-inh: ela fechou os olhos, permitindo
que a dor tomasse conta por um momento. Era como se alguém houvesse
invadido seu íntimo e esvaziado sua alma. As bordas do lugar vazio estavam
em carne viva, moldadas para ele caber nelas. No entanto, a presença de
Wanahomen aliviava a dor.
Agitada com os próprios pensamentos, ela se mexeu para ficar mais
confortável. Sua mão sentiu uma linha áspera sobre a barriga dele: uma
cicatriz. Intrigada (o ferimento no abdômen que ela curara não deveria ter
deixado cicatriz), ela rastreou e se deu conta de que era um machucado
diferente. Esta não era comprida, mas a espessura e o formato da cicatriz
eram perturbadores, assim como sua localização, logo abaixo da caixa
torácica. Fora profundo esse ferimento, e cicatrizara mal, reabrindo pelo
menos uma vez.
— Foi uma faca serrilhada — contou Wanahomen.
Ele falara baixinho, mas Hanani sobressaltou-se mesmo assim, surpresa.
Ela sentiu a mão dele afagando suas costas, tranquilizadora, o que quase a
fez dar um pulo. A moça notara que os banbarranos tocavam uns nos outros
com frequência, de formas que os gujaareen não se tocavam: eles se davam
os braços de maneira casual, cutucavam-se, faziam um carinho afetuoso nas
crianças e até nos animais. Wanahomen estivera entre eles por tempo
suficiente para pegar alguns daqueles hábitos. Ela achava os toques fáceis e
despreocupados dele exóticos e perturbadores.
Então ela se concentrou nas palavras dele.
— Uma faca serrilhada? Por que alguém usaria uma coisa dessas em um
homem?
— Para causar dor, imagino. Provavelmente facilita a inflamação
também. Eu quase morri só por causa da febre. — A voz dele estava pesada
de sono; sob a luz da Lua, ela pôde ver que ele não abrira os olhos. — É um
tipo de coisa tola para se usar em uma batalha… muito fácil de pegar em
alguma coisa no momento errado. Mas o homem que a usou em mim não
era um guerreiro. Só um covarde, corrupto como qualquer outro
escravizador.
Hanani chacoalhou a cabeça, no fundo admirada de que ele houvesse
sobrevivido sem a ajuda de um Compartilhador.
— Você foi escravizado?
Ele aquiesceu e bocejou, despertando mais.
— Por um breve período, eu e minha mãe e Charris. Fomos capturados
ao fugir da cidade pelos mercadores Damlushi, que tinham acampado ao
longo das trilhas para o norte como abutres para pegar qualquer gujaareen
que pudessem porque sabiam que o nosso exército estava ocupado em outro
lugar. Ao que parece, os gujaareen são conhecidos por darem bons
escravizados: saudáveis, educados, não violentos — escarneceu
Wanahomen. — E apesar de termos levado o resto da Guarda do Ocaso
junto, fomos vencidos. Eles tinham esperança de pegar riquezas nossas
também.
Hanani franziu a testa e olhou para os punhos dele. Ela notara marcas ali
antes, embora fossem tênues. Vestígios de cicatrizes.
— Eles acorrentaram você.
Ele aquiesceu outra vez, abrindo enfim os olhos.
— Estavam nos levando para o sul, com medo de nos vender tão perto
de casa. No sul, talvez tivessem nos separado e teria sido muito mais difícil
escapar ou comprar a nossa liberdade. Então desafiei o líder da caravana em
algum jogo. Não lembro o quê. Se eu ganhasse, ele tinha que nos vender por
essas bandas. Eu ganhei, mas ele era um mau perdedor. Quando nos
prepararam para a venda, ele me esfaqueou e amarrou a ferida para não
aparecer. Tive que fingir que não estava sentindo nada e parecer saudável ou
ninguém ia me comprar.
Hanani conteve a respiração. Um ato desses era de fato corrupto… mas,
por outro lado, ali fora, longe do alcance dos Coletores, almas corruptas
pareciam tão numerosas quanto formigas.
— E os banbarranos compraram vocês?
— Uhum. A primeira esposa de Unte, Widanu. Ela ficou furiosa quando
descobriu sobre o meu ferimento. Minha mãe nos salvou então, porque eu já
estava ficando doente e com febre por conta da ferida e Widanu teria me
matado para acabar com o meu sofrimento. Minha mãe fez um acordo com
Widanu pela minha vida, oferecendo todas as joias que tinha trazido de
Gujaareh: nós as tínhamos escondido em uma caverna no sopé das colinas
antes de os Damlushi nos pegarem. Isso a estabeleceu como uma mulher de
valor aos olhos dos banbarranos e me deu valor também como filho dela,
então fomos libertados. O Charris… Bom. Widanu tinha que trazer alguma
coisa de volta. Mas assim que a minha mãe adquiriu riqueza suficiente… ela
sempre foi astuta… nós o compramos de volta. Ele não nos deixa libertá-lo
porque ter escravizados aumenta o prestígio do nosso clã. Velho teimoso.
Hanani assimilou aquilo, localizando a cicatriz outra vez com os dedos
pela simples novidade da coisa: ela não vira muitas cicatrizes. A magia não
deixava cicatrizes. Então seus olhos captaram outra marca na pele dele: um
torrão do tamanho de uma moeda de vidro arrancado da carne logo abaixo
da clavícula. Ela se sentou, curiosa, e depois notou duas outras marcas: uma
logo acima da bacia e outra perigosamente próxima do coração. Se todas
elas tivessem uma história como a primeira, ela entendia melhor por que
havia tão pouca paz nele.
A pele dele era macia como camurça ao redor das cicatrizes. Uma coisa
frágil demais para ter resistido a tanta violência. Ela passou os dedos pela
clavícula dele até o ombro, depois por um dos braços, deslizando-os pelos
contornos dos músculos. Ela estudara os corpos das pessoas Coletadas como
parte do seu treinamento, sabia os nomes de cada tendão e osso, vasculhara
partes que não tinham nome para encontrar a sede sempre cambiante da
alma… mas aquilo era diferente, de certo modo, de contemplar o todo
cálido e vivente de um ser humano. Era tão fácil reduzir toda aquela
vitalidade sólida a cinzas. Algum dia, Wanahomen seria como Mni-inh, um
potinho de nada. Tudo o que importava nele teria ido para Ina-Karekh.
Era tão importante valorizar a vida, protegê-la, entendê-la plenamente
enquanto ainda persistia.
— Príncipe — disse ela. Os olhos dele ainda estavam sobre ela,
ligeiramente intrigados agora. Tocar de forma casual era o costume
banbarrano, não gujaareen. Ela o confundira com suas explorações. — Você
é gujaareen?
Ele se retesou, zangado de repente.
— Você sabe muito bem que eu sou…
— Você age mais como os banbarranos do que percebe, eu acho —
comentou ela, ainda examinando o corpo dele, rastreando sua respiração. —
Eu entendo por que… aqui fora, é mais seguro ser banbarrano do que
gujaareen. É mais seguro ser qualquer coisa do que gujaareen. — Ela parou
então, a mão no ventre dele. Sob seus dedos, os músculos do abdômen dele
estavam mais tensos do que deveriam. — Mas é encenação? Algo que você
usou para cobrir o seu verdadeiro eu como um manto? Ou você se tornou o
manto? Pergunto porque você foi gentil comigo, e você também foi cruel, e
eu não sei qual deles é o seu verdadeiro eu.
O ventre dele soergueu-se de leve com a respiração, embora ele tenha
ficado calado por um momento.
— Os dois, suponho eu — respondeu ele por fim. — Essa é uma coisa
em que eu não penso muito. Vivi entre os banbarranos durante quase
metade da minha vida; quando estou com eles, penso como eles. Eu até
penso em chakti. Mas, quando estou perto de você, do seu mentor… — Ele
suspirou. — Acho que preciso me tornar um pouco mais gujaareen. É uma
sensação estranha a de ser dois homens. — Ele hesitou mais um instante,
então estendeu a mão e pegou a dela. Ela o sentiu examinando seu rosto. —
Mas a crueldade não é uma coisa banbarrana, Hanani, se é isso que você
quer saber. Essa parte de mim é toda gujaareen e vem do meu pai. Você me
ajudou a entender isso nesses últimos dias.
Ela anuiu.
— Isso agrada você? Ser cruel como o seu pai?
Ele não respondeu pelo intervalo de várias respirações; quando falou, a
palavra soou muito suave e impregnada de vergonha.
— Não. Eu preciso dessa crueldade, não teria sobrevivido por tanto
tempo sem ela. Mas não gosto.
Hanani aquiesceu. Depois se levantou e tirou os sapatos, começando o
laborioso processo de tirar todas as pulseiras e joias tilintantes que Yanassa a
fizera usar. Ela as deixou cair na sacola decorativa onde deveriam ser
guardadas.
— Então você não é corrupto.
Wanahomen apoiou-se sobre um cotovelo, franzindo o cenho para ela.
— Bom saber. Mas o que você está fazendo?
— Me despindo. — Ela ficou surpresa com a própria calma.
Seguiu-se um súbito silêncio perplexo às suas costas. Ela tirou a blusa e
pendurou-a em uma estaca; quando se virou de novo, ele a fitava.
— Essa não é uma boa ideia, Hanani.
Ela estava profundamente farta de pessoas que falavam com ela como se
não pudesse entender as implicações de seus próprios atos.
— Eu não exijo, peço. — Ela deixou as saias caírem; ele as seguiu com os
olhos até o chão, como se não conseguisse acreditar no que estava vendo. —
Peço ao seu eu banbarrano, ou ao seu eu mais gentil, como preferir pensar.
Eu gostaria de fazer sexo. Faz isso comigo?
Quando ela terminou de pendurar as saias e se virou, a expressão de
Wanahomen mostrou algo semelhante a susto. Ele pegara a própria camisa,
agarrando-a com as mãos como se pretendesse afastar a moça com ela.
— Você enlouqueceu de novo?
— Eu nunca enlouqueci. — Ele a ajudara a voltar daquele precipício e
ela estava feliz por isso. Talvez fosse injusto de sua parte pedir mais dele,
mas não havia mais ninguém que entenderia. Ela precisava ter esperança de
que a parte dele que era um Coletor, por menos refinada que pudesse ser,
fosse querer ajudar outra vez.
— Você está falando sério. Isto é… — Ele ficou paralisado quando ela
desamarrou a tanga e a deixou cair em um cesto. — Você está falando sério.
Hanani tirou a combinação que vestira debaixo da outra blusa. Estava
usando apenas as ataduras ao redor dos seios debaixo da combinação e,
quando terminou de colocá-la a um lado, achou graça de ver que os olhos
dele haviam se fixado diretamente nessa parte, como se nunca a houvesse
visto com as vestimentas de Compartilhador. Talvez seus seios não lhe
houvessem parecido atraentes naquele momento, emoldurados por roupas
masculinas? Ela começou o laborioso processo de desenrolar as ataduras
enquanto ele a fitava como um homem sedento no deserto.
— É claro que estou, Príncipe.
Ele arrastou o olhar mais para cima e havia uma evidente cautela em sua
expressão.
— Você não me ama.
Ao ouvir isso ela parou, surpresa.
— Não, não amo. Preciso amar?
No rosto dele estampou-se meio que um sorriso, meio que uma careta.
— Imagino que não. Ninguém pode acusar você de falta de sinceridade,
mulher do templo. Admito isso. — Ele se levantou e se virou para enfim
ficar de frente para ela, ainda segurando a camisa, embora não fizesse
nenhum movimento para vesti-la. — Mas precisa pelo menos confiar em
mim para isso e… — Ele desviou os olhos. — E, como você disse, eu fui
cruel com você.
Hanani suspirou e começou a se perguntar se havia cometido um erro.
Ele tinha sentimentos tão profundos, tão acelerados, esse homem. Ela
esperara que ele fosse simplesmente agir com base no desejo, não conversar
sobre as coisas até enjoar. Contudo, ela deveria ter esperado por isso
também: um homem tão dominado por suas emoções devia, claro, atendê-
las antes de tomar qualquer decisão. Mni-inh ensinara-lhe isso muito tempo
antes, quando ela lhe perguntara por que ele se oferecera para ser seu
mentor. Não foi uma coisa pensada, ele lhe contara. Eu apenas vi você
precisando de um mentor e os outros Compartilhadores se recusando como se a sua
feminilidade fosse uma praga que os macularia. Esse tipo de tolice… acho que me
deixou zangado, eu agi com base nisso.
A ideia de que Wanahomen tivesse algo de Mni-inh dentro de si, por
mais importuna que ele achasse a comparação, fez Hanani se sentir melhor
quanto à sua decisão.
— Eu deixei você entrar nos meus sonhos — disse ela. — Vi os segredos
da sua alma e mostrei alguns dos meus. O corpo… — Ela encolheu os
ombros. — Ele pode ser curado, modificado, destruído. É uma coisa fácil de
manipular. Mas a alma tem significado e permanência… — Ele franziu
ainda mais a testa e ela se calou. Era difícil explicar. Ela não era nenhuma
Professora.
— Isto não é nada para você, então. — Ele pareceu amargurado e ela não
sabia por quê. Ela se aproximou, tocando o braço dele para tentar entender,
mas ele não a olhava nos olhos. Estaria ele ofendido por ela querer usá-lo
daquela forma? Talvez. Mas talvez ela ainda pudesse persuadi-lo com a
verdade.
— Não, Príncipe. — De perto, ele cheirava a suor e areia… mas também
a ervas, como aquelas usadas pela maioria dos gujaareen para banhos e
remédios. Erva-doce e calêndula, que ela vira crescendo em torno do
cânion, e alguma coisa mais refinada que ele devia ter comprado em
Gujaareh: âmbar cinzento envelhecido. Era um cheiro que a lembrava do
Hetawa, onde era queimado como incenso. Outro luxo que ela não
questionara, como suas vestimentas vermelhas de Compartilhador; ela vira o
âmbar cinzento no mercado e era incrivelmente caro. Mas não a surpreendia
nem um pouco o fato de que Wanahomen, apesar do exílio e da existência
bárbara simples, ainda encontrasse alguma pequena maneira de tratar a si
mesmo como um príncipe.
Ela sorriu e tocou a cicatriz debaixo da clavícula outra vez. Ele se
endireitou, talvez surpreso. Pele bárbara, sangue e ossos gujaareen. Ele
pensava em si mesmo como dois homens, mas ela via um só.
— Isto é vida para mim. — Ela olhou nos olhos dele, tentando dialogar
com a cautela que havia neles. — Isto é carne. É… dor e fraqueza e coisas
que me assustam. Mas a carne é algo que eu consigo controlar, Príncipe.
Posso deixá-la mais forte. Posso curá-la quando as coisas vão mal. Preciso
disso, dessa certeza, neste exato momento. Faz sentido para você?
Várias expressões cruzaram o rosto dele, todas rápidas e complexas
demais para ela interpretar.
— Eu… Faz. Por mais estranho que pareça, faz. Mas e o seu juramento
de Servo, Compartilhador-Aprendiz? Já tirei tanto de você. Eu não ia
querer acrescentar mais coisas à lista.
— O juramento é meu para descartar, não seu para tirar. — Hanani
flexionou o maxilar. — Amanhã talvez eu seja capaz de me doar por inteiro
para Hananja outra vez sem receio. Hoje à noite… — Ela suspirou,
sentindo-se velha e jovem, e incomparavelmente solitária. — Hananja
também tirou muito de mim, Príncipe.
Mais do que Ela tinha o direito de tirar. Mas Hanani não falou isso em voz
alta porque ele era gujaareen o suficiente para que as palavras o
perturbassem.
Wanahomen olhou para a mão dela em seu ombro, depois para o rosto
dela, procurando. Hanani não fazia ideia do que ele buscava, mas, depois de
um momento, ele suspirou. De forma muito proposital, ele deixou a camisa
cair de novo no chão.
— Carne não é apenas dor — disse ele baixinho. — Você não deveria
pensar nela desse jeito.
Ela encolheu os ombros e voltou a desenrolar as ataduras dos seios.
— É a única coisa que eu conheço.
— Eu posso te mostrar mais. — Ele pareceu quase tímido ao dizer
aquilo.
Mesmo sem querer, ela sorriu.
— Eu ficaria agradecida.
Quando ela deixou a última parte da atadura dos seios cair ao chão, ele a
fitou por um longo tempo, examinando-a com os olhos assim como ela o
examinara com os dedos. Quando ele deixou a calça cair, bem pronto para
ela, a jovem se virou em direção às almofadas para se deitar. Ele a deteve
pousando uma das mãos no ombro dela, depois, para grande surpresa da
moça, ajoelhou-se aos pés dela. A respiração dele estava mais forte, mas
havia tanto reverência como necessidade em seu olhar.
— As mulheres são deusas — disse ele. — O prazer é o seu dízimo por
direito. Esse é o costume gujaareen, afinal… eu me lembro disso. E é meu
dever como Príncipe garantir que o dízimo seja entregue de forma
adequada. — Ele disse aquilo sem nenhum toque de ironia ou deboche.
Hanani fitou-o, admirada. E, quando ele abriu os braços, erguendo o queixo
e oferecendo a si mesmo, algo dentro dela que estava tenso, apesar de suas
palavras, relaxou.
Ela se aproximou e os braços dele a envolveram no mais cuidadoso dos
abraços.
Esta foi então a manifestação da paz: silêncio. Eles eram gujaareen. Não
sentiam necessidade de gritos, gemidos, nomes murmurados como
declarações de orgulho ou devoção. Ele não forçou nada que ela não
quisesse, não conteve nada que ela desejasse. Enquanto ele roçava contra ela,
ela estudava a constante flexão dos músculos dele, o ritmo e o tom da
respiração dele, o modo como cada suspiro e toque seu redirecionava os
humores dentro do milagre da carne dele. Aquilo era a verdadeira magia,
não elemento de sonhos, escrita em sangue e bílis e icor e semente sólidos e
conscientes. No clímax, Hanani canalizou essa nova magia em uma prece
por Mni-inh, para que a Deusa pudesse trazer a alma dele de volta para
casa. E, naquela respiração sustida, enquanto Hanani pairava quase fora de
si mesma, o Avatar de Hananja a segurou com firmeza e estremeceu dentro
dela e soltou um sussurro quente em seu ouvido:
— Isso.
Ela fechou os olhos, agradecida e em paz.
36
LEGADO
Não foi difícil para Sunandi providenciar certas coisas dentro do Yanya-iyan
quando os Coletores e o Superior foram detidos. Os Protetores não se
importavam com o local onde os prisioneiros eram mantidos, contanto que
estivessem seguros, e então Sunandi os instalou em um conjunto de quartos
de hóspedes que aparentemente haviam sido construídos para atender aos
gostos nortenhos: com portas robustas que tinham fechaduras e apenas as
mais estreitas janelas. Os quartos teriam sido desagradavelmente quentes
durante os meses de cultivo — havia um motivo pelo qual os gujaareen não
colocavam portas nos quartos —, mas, nesses dias que ainda não chegavam
a ser os da estação da inundação, eram confortáveis o bastante. Além do
mais, ela escolhera quartos bem espaçados e colocara um guarda do lado de
fora de cada porta, de maneira que ninguém fosse considerá-la negligente.
Todavia, pedira a ajuda de Anzi para selecionar guardas com certas
características úteis. O que ela colocou no quarto do Superior era o filho
secreto de um Professor do templo hananjano em Kisua. Dois outros eram
eles mesmos hananjanos; talvez um quinto de todos os kisuati eram devotos
da fé. O quarto era um homem gujaareen, um dos poucos membros da casta
militar que conseguira encontrar emprego no exército kisuati. Ele era um
soldado raso agora; no exército de Gujaareh, fora oficial.
Esses guardas, ela diria aos Protetores se eles perguntassem — ela
duvidava que fossem perguntar, mas era sempre prudente ter explicações
prontas —, garantiriam que os Coletores e o Superior não fossem
maltratados durante o confinamento. Já haviam acontecido incidentes nos
dois dias desde que os Coletores haviam sido levados sob custódia: uma
avalanche de prisões, uma vez que os artesãos se recusavam a entregar
trabalhos encomendados por cidadãos kisuati e mercadores rejeitavam
compradores kisuati ou deixavam de aceitar moedas kisuati. Depois que
várias duplas de soldados foram atacadas e espancadas por gangues de
gujaareen bravos, Anzi ordenara que os soldados patrulhassem apenas em
grupos de dezesseis e havia colocado uma tropa em cada bairro da cidade.
Apesar dessas ações, um toque de recolher e uma proibição de reuniões não
haviam evitado um tumulto, o primeiro que ocorrera em séculos, no Distrito
dos Infiéis. Só mais tarde eles descobriram que uma armaria fora saqueada
durante o caos. O distrito estava sendo vasculhado, mas nenhuma das armas
havia sido encontrada ainda. Sunandi desconfiava que elas já haviam
passado pelo muro e se espalhado pelo resto da cidade.
A única coisa que a surpreendia era que a violência não houvesse se
tornado generalizada. Parecia-lhe que a cidade estava segurando o fôlego,
esperando, embora ela não soubesse dizer pelo quê.
O corredor onde os sacerdotes eram mantidos estava em silêncio quando
ela chegou… bem diferente dos agitados e movimentados andares
superiores, onde os Protetores estavam morando e trabalhando desde a
chegada. Na realidade, o silêncio lembrou Sunandi do Jardim de Pedra, um
espaço para oração dentro do Salão dos Coletores no Hetawa: o corredor
tinha a mesma calma dominante. Três dos guardas acenaram solenemente
para ela quando se aproximou; ela os cumprimentou de volta. O quarto
guarda, que deveria estar à porta de Nijiri, sumira.
Sunandi parou e olhou para os outros guardas. Eles ainda não haviam
dado o alarme, nem sequer pareciam preocupados.
Um momento depois, a porta do quarto se abriu e o guarda, o gujaareen
da casta militar, saiu. Avistando Sunandi, ele inclinou a cabeça para ela de
maneira respeitosa.
— O jantar, Oradora — explicou ele em um suua com sotaque.
— Ah. — Ela o fitou por mais um instante, até ele começar a parecer
desconfortável. Já havia passado da meia-noite: tarde para o jantar, mesmo
para um Coletor de hábitos noturnos. Mas ela enfim avançou e ele abriu a
porta para deixá-la entrar.
Lá dentro, o quarto estava silencioso, iluminado por uma única
lamparina e pela luz da Sonhadora que entrava pela janela. Ela viu uma
refeição sobre a mesa: então o guarda pelo menos tivera a perspicácia de ser
sincero sobre aquilo. Nijiri estava sentado na cama ali perto, as costas
apoiadas na parede, observando-a com a expressão mais inocente que pôde.
Isso para ele não era grande coisa.
Ela cruzou os braços.
— Boa noite, pequeno assassino. Ou deveria ser pequeno conspirador?
Ele sorriu quase que para si mesmo.
— Pedi ao guarda que me ajudasse a mandar uma mensagem para um
amigo, nada mais — disse ele. Depois ficou sério. — Mas o amigo não…
estava lá.
Ela franziu a testa, confusa.
— O guarda já entregou a mensagem para você?
— Por meio dos sonhos dele, já. É uma coisa que narcomancistas
habilidosos conseguem fazer. — Ele cruzou as mãos, os olhos pousando
sobre os três pergaminhos que ela carregava debaixo do braço. — Você me
trouxe um presente, Jeh Kalawe?
Ela ignorou a pergunta.
— Quanto tempo vai demorar até você ficar sem sangue onírico?
Há muito acostumado com a grosseria dela, ele não pestanejou.
— Três ou quatro oitavas de dias para todos nós. Lembre-se, tivemos
tempo para nos preparar.
Aquilo era um alívio.
— E quando chega a tempestade que você invocou?
Ele ergueu as sobrancelhas, todo inocência de novo.
— Tempestade?
— Sei que os nobres estão tramando alguma coisa. E está ficando cada
vez mais óbvio que esta cidade está se preparando para uma luta. Você está
influenciando todos eles em seus sonhos?
Essas palavras provocaram um sorriso genuíno.
— Nenhum Coletor tem tanto poder assim, Jeh Kalawe.
— Ehiru tinha.
Uma pausa.
— Ehiru não era um Coletor naquele momento. — A voz dele tornara-
se fria, o sorriso desvanecendo. Instantaneamente, Sunandi se arrependeu de
suas palavras, mas não havia como corrigir o erro. De qualquer modo, ele
era gujaareen: deixaria aquilo passar em nome da paz entre eles. O perdão
demoraria mais, mas então que assim fosse.
Ela soltou um suspiro e continuou.
— Mais cedo você insinuou que um dos filhos de Eninket ainda estava
vivo e entre os banbarranos. As minhas fontes dizem que há boatos sobre
isso se espalhando pela cidade também… de que está vindo um novo
Príncipe que vai libertar Gujaareh. É verdade?
Ele baixou os olhos.
— Eu disse que ia perdoar você, Jeh Kalawe. Essa promessa continua de
pé mesmo que eu não responda às suas perguntas e você me castigue pelo
meu silêncio.
— Não vou castigar você, seu tolo! Estou tentando ajudar nós dois! —
Ela aproximou-se, abaixando a voz. — Os Protetores trouxeram mais mil
soldados com eles, Nijiri. Estão sendo empregados na cidade agora para
manter a paz e receberam ordens para responder a qualquer problema com
muita severidade: morte para qualquer um que resistir. E estão planejando
mais alguma coisa, caso aconteça algum tipo de ataque ou revolta em toda a
cidade. Alguma coisa para alquebrar o espírito do povo. — Ela flexionou o
maxilar. — Não sei o quê. Não estou nas boas graças deles neste exato
momento, nem Anzi.
Nijiri levantou-se e foi até a janela, olhando para cima como que para
verificar a posição da Sonhadora. Era o mais perto da inquietude que ela já
vira um Coletor chegar.
— Você não vai reconquistar as boas graças nos ajudando, Jeh Kalawe.
Então por que está fazendo isso?
Sunandi revirou os olhos.
— Estou ajudando Kisua. Esta terra se tornou perigosa demais para nós
a mantermos. Alguns dos membros mais gananciosos do nosso povo, alguns
dos quais estão aqui agora, no comando, vão ficar ricos à medida que as
tensões aumentarem, mas o resto de Kisua é que sofrerá quando Gujaareh
devorar os nossos recursos e soldados e não nos devolver nada além de dor
de cabeça. E estou apavorada com a ideia de que essa praga do pesadelo
chegue ao nosso povo. Você sabe que não temos defesa contra magia.
— Nós ajudaríamos vocês se isso acontecesse, quando aprendêssemos
como lutar contra ela, apesar de que poderia exigir que o seu povo tentasse
usar magia outra vez.
— Não vamos precisar de magia. Só de um milagre.
Ele se virou para ela devagar, examinando o rosto dela, e então seus
olhos passaram para os pergaminhos que carregava debaixo do braço.
— Você achou alguma coisa.
Ela aquiesceu, contendo o entusiasmo, depois foi até a mesa, colocando a
bandeja de comida no chão.
— Em sua busca pelo segredo da imortalidade, Eninket reuniu uma
coleção e tanto de crenças sobre todo tipo de curiosidades mágicas.
Nijiri fez uma careta, ajudando-a a abrir os pergaminhos.
— Como o Ceifador.
— E mais coisas interessantes. Isto, por exemplo. — Ela apontou para
um pergaminho coberto de pictorais arcaicos desenhados com grossas linhas
pretas. Não conseguira ler nem metade deles, mas o acadêmico que lhe dera
a tradução ficara tão empolgado de ver as palavras de seus ancestrais que
cobrara um quarto a menos do que a sua taxa habitual só pelo privilégio. —
Este fala de uma praga que quase consumiu a cidade, uma praga que
nenhum curador conseguia combater, passada por meio dos sonhos. Ele
menciona centenas de vítimas, desespero por todo o território… Isso já
aconteceu antes, Nijiri.
Ele ficou tenso.
— Nós não temos nenhum registro de uma praga dessas no Hetawa.
— Vocês também não têm nenhuma sabedoria popular sobre a
imortalidade; no entanto, Eninket descobriu um jeito. Alguém,
provavelmente muitos alguéns ao longo dos séculos, manteve os seus
registros do Hetawa muito limpos e organizados. A sujeira e a verdade estão
todas aqui. — Ela deu outra batidinha nos pergaminhos.
Ele suspirou, embora não protestasse contra a maneira como ela
caracterizara a questão.
— Eles devem ter encontrado alguma forma de combater o sonho
naquela época ou Gujaareh seria uma ruína abandonada agora. Existe
alguma menção da cura?
— Existe. — Sunandi remexeu os pergaminhos e abriu outro, este
esfarrapado e manchado, escrito em hieráticos rabiscados. Esse ela
conseguia ler sozinha, e leu até tarde da noite, com um cartaz na porta
advertindo Anzi e mesmo os criados para não entrarem. Seus olhos ainda
doíam. — Este diz aqui: “Uma criança abrigava o sonho, atraindo e
prendendo todos os outros dentro dele. Quando a criança sonhava com
coisas horríveis, todos sofriam com essas coisas e muitos morriam. Outros
morriam dormindo, incapazes de comer ou beber. Só quando a criança foi
morta é que as vítimas foram libertadas”. — Ela se endireitou, olhando para
ele com firmeza. — O texto prossegue dizendo que apenas alguns poucos
sabiam disso e que a solução foi descoberta pelo Superior da época. Ele
matou a criança, Nijiri… e depois ordenou a morte de qualquer um que
soubesse do ocorrido.
Nijiri franziu ainda mais a testa.
— Por quê?
— Não se sabe. Isso foi escrito por um antigo acólito do Hetawa… Ele
testemunhou a morte da criança, mas ninguém notou sua presença. Se
tivessem notado, ele teria sido morto também. — Ela pôs uma das mãos
sobre o pergaminho, espalmando-a sobre os hieráticos para chamar a
atenção dele. — Esse Superior não era corrupto, Nijiri. Ele veio a fundar o
caminho dos Compartilhadores, escreveu algumas das preces mais bonitas
da sua fé e promulgou leis que melhoraram a cidade. Era um homem bom.
Pessoas boas só matam para guardar os segredos mais perigosos.
Ele alçou o olhar até ela devagar.
— O que está tentando dizer, Jeh Kalawe?
— Que você precisa estar aberto a soluções que, do contrário, não levaria
em consideração. Que a corrupção tem a ver com o intuito, não com a ação,
como me falou o seu mentor muito tempo atrás.
Houve um momento de silêncio.
— O acadêmico que te ajudou com esses documentos. O que você fez
com ele?
Ela já havia decidido responder, se ele perguntasse… embora houvesse
esperado que não perguntasse.
— Ele vai receber o funeral adequado junto com as outras vítimas da
praga, pois esse foi o motivo da morte dele, mesmo que não tenha sido o
modo. — Quando Nijiri apertou os lábios, Sunandi inclinou-se para a
frente, apoiando as mãos na mesa e colocando propositalmente o rosto ao
alcance das mãos compridas e mortais do Coletor. — E quantas pessoas
você matou para guardar os segredos de Eninket ao longo dos anos?
Ele não tentou agarrá-la nem estremeceu, é preciso reconhecer. E ela se
forçou a não estremecer ao encarar a morte fria nos olhos dele, o que era um
bálsamo para o seu próprio orgulho.
— Coletores não matam — disse ele baixinho com um toque de ironia
na voz que a fez sentir ainda mais calafrios. — Tudo o que fazemos é uma
bênção dada por Hananja para o povo Dela.
No rescaldo daquelas palavras, Sunandi não podia fazer nada além de
permitir um momento de apropriado silêncio gujaareen. Havia algo de bom
no costume, concluíra ela anos antes, de deixar que uma breve passagem de
tempo limpasse o ar depois que palavras e pensamentos perigosos o tivessem
maculado.
— Não tenho nenhuma pretensão de ser santa, mas também faço o que
preciso para manter a paz — falou ela por fim. Ela bateu o dedo no
pergaminho esfarrapado. — O homem que escreveu isso jamais deveria ter
colocado essas coisas no papel. Ele escreveu para aliviar a consciência, e a
fraqueza dele pode nos salvar… Mas, quando encontrarmos quem está
usando essa pestilência como arma agora, precisamos ser mais vigilantes do
que os nossos ancestrais. Precisamos garantir que essa magia maligna morra
aqui. Você concorda com isso?
Ele aquiesceu.
— Isso é corrupção do mais alto nível. O Hetawa precisa fazer o que for
necessário para que seja depurada.
— Mesmo que a depuração signifique matar uma criança?
— Essa pode não ser a única forma.
Era um alívio que ele hesitasse, concluiu Sunandi, embora não pudesse
permitir que ele continuasse teimando quanto a esse ponto. Ela saberia que
deveria temê-lo só quando a consciência dele morresse… ou se ela algum
dia fizesse alguma coisa prejudicial sem um propósito. Então ele viria buscá-
la. Ela sempre soubera disso e aceitara o fato.
— É a única forma infalível. Você vai fazer isso se for preciso? Coletar
um inocente?
Outro momento necessário se passou.
— Não sou o meu mentor — respondeu ele baixinho. Ela ficou surpresa
ao ler vergonha no rosto dele. — Nunca tive a honra dele.
Ela hesitou, mas então estendeu a mão e pousou-a no ombro dele.
— Você é diferente de Ehiru, é verdade, mas isso não é uma coisa ruim.
Ele só pensava em Hananja, enquanto você pensa primeiro no povo de
Hananja.
Ele lhe deu um sorriso tênue cuja tristeza a surpreendeu.
— Não se deixe enganar, Jeh Kalawe. Eu só penso em mim mesmo.
Preciso ser capaz de olhar nos olhos dele quando o encontrar de novo em
Ina-Karekh.
Ela jamais se acostumaria com o modo como os Coletores
constantemente ansiavam pela própria morte.
— Há mais coisas nos registros. — Uma transição desajeitada desta vez,
mas inevitável. Ela tirou o terceiro pergaminho do fundo da pilha e abriu-o
em cima dos outros dois. — Você reconhece isto?
Nijiri franziu a testa ao ver o documento, que estava coberto por alguma
espécie de tabela. Pictorais de nomes se espalhavam pela página, ligados por
linhas diretas e precisas.
— Eu deveria? Não sou Professor. — Ele parou então, avistando o
pequeno carimbo do criador em um dos cantos inferiores da página, e ficou
tenso.
— Inunru. — Sunandi o observava. — O nome era mais comum
naquela época, mas existe motivo para acreditar que esse era de fato o
mesmo Inunru que fundou a sua fé, a narcomancia e o caminho dos
Coletores. — E o homem que havia criado os primeiros Ceifadores, ela não
acrescentou… porque, de qualquer maneira, ele sabia e porque evitar
assuntos dolorosos era costume tanto em Kisua como em Gujaareh.
Nijiri flexionou o maxilar mesmo assim, mas não comentou nada, os
olhos percorrendo as linhas do pergaminho.
— O que é isto? Mães, pais, tios… — Ele fez uma careta, impaciente.
— Eu nasci na casta servil, Jeh Kalawe; nós procriávamos como quiséssemos
e nunca ficávamos obcecados com linhagens como vocês, alta-castas. O que
significa?
— Pelo que sei, o seu fundador estava pesquisando certas linhagens. O
dom do sonho é de família, não é?
Ele anuiu, distraído.
— Mais por parte de pai do que de mãe, é. Sempre que a linhagem
paterna produz uma criança adequada aos caminhos da narcomancia, nós a
observamos dali em diante.
Ela apontou para um minúsculo pictoral de pássaro ao lado de alguns
nomes.
— Esse é o primeiro caractere da sua palavra para sonho. Pode significar
que Inunru desconfiava que essas pessoas tinham o dom.
Nijiri tocou uma descendência, uma de várias que haviam sido
desenhadas em vermelho em vez de preto.
— Mas esta é a linhagem materna — disse ele. — A irmã de um
Sentinela que tinha um dom forte… — Ele seguiu a linha. — Produziu três
crianças, todas meninas… — O dedo dele parou em um espaço vazio abaixo
daquela linha. — Ele perdeu o rastro aqui. Mas isso não é de surpreender;
nós nunca observamos as mulheres.
— Porque as mulheres herdam o dom mais raramente? — perguntou
Sunandi, cruzando os braços. — Ou porque a sua fé rejeita as mulheres?
Ele pareceu irritado.
— Nós reverenciamos as mulheres.
— Se vocês deixam passar despercebidas as mulheres que têm o dom, é a
mesma coisa. Aquela garota que vocês acolheram como Compartilhador…
Qual era o nome dela?
— Hanani.
— O dom de Hanani é forte?
Nijiri ponderou por um instante.
— Forte o suficiente — respondeu ele, enfim. — Mni-inh… — Ele
inexplicavelmente se deteve para respirar. — Mni-inh nunca reclamou da
habilidade dela, apenas da confiança.
— Ela poderia ter se tornado um Coletor em vez de Compartilhador?
O rosto dele se contorceu, embora tenha dominado sua reação depois
disso.
— Ela não tem o temperamento. Mas Coletar e Compartilhar são dois
lados da mesma moeda, no final das contas. — Ele suspirou. — Então,
poderia.
Sunandi bateu com o dedo no pergaminho perto dos nomes das três
sobrinhas do Sentinela.
— Então uma dessas mulheres pode ter tido um dom forte como o de
um Coletor ou Compartilhador? As mulheres costumam enlouquecer aqui
em Gujaareh?
Nijiri desviou o olhar, perturbado.
— Não com frequência, mas também não é algo sem precedentes. —
Um tanto na defensiva, ele acrescentou: — Nós damos sangue onírico para
elas para controlar a loucura, igual faríamos com qualquer homem.
— Mas os homens com o dom são encontrados cedo e levados para o
Hetawa, antes que possam sofrer muito. Eles são valorizados, cuidados.
Porém, isolados… — Um novo pensamento passou pela cabeça dela então e
era desagradável. Ela fez uma careta enquanto o revirava em sua mente. —
As restrições do seu Hetawa contra Servos mulheres podem ter sido
intencionais. Os homens com o dom se tornam celibatários no Hetawa, mas
as mulheres com o dom não vivem sob a mesma restrição, a maioria delas
faz filhos e filhas. Não é diferente de deixar éguas úteis no rebanho
enquanto os garanhões mais encrenqueiros que têm os mesmos traços são
abatidos! Essas mulheres — ela apontou para as linhagens maternas em
vermelho — mantêm o dom do sonho em Gujaareh. Caso contrário, o Hetawa
pegaria todos e em pouco tempo não haveria mais Compartilhadores nem
Coletores.
Nijiri não falou nada pelo intervalo de várias respirações. Sunandi notou
que os olhos dele estavam na tabela de linhagens, fixos no pictoral do
criador no canto inferior.
— Foi Inunru quem decretou que as mulheres não deveriam servir —
comentou ele por fim. — Foi o que me ensinaram na Casa das Crianças.
Ele disse que era porque as mulheres são deusas e a magia delas é como o
reino dos sonhos: poderosa, mas imprevisível. Instável demais para usar na
narcomancia. É por isso que tantos culparam Hanani quando… — Ele
parou de falar, franzindo o cenho para si mesmo.
— Hanani é a prova de que mulheres com o dom do sonho não são
diferentes dos homens — declarou Sunandi com firmeza. — Quantas
outras como ela existem por aí, eu me pergunto. Talvez algumas tenham se
casado com homens cujas próprias linhagens carregam o dom. Os filhos
delas podem se tornar Coletores e as filhas, lunáticas.
Ele estremeceu ao ouvir isso, mas depois chacoalhou a cabeça; Sunandi
queria bater nele por conta dessa resistência.
— Nem todo mundo que tem o dom enlouquece, Jeh Kalawe.
— Não, mas aqueles que enlouquecem não precisavam enlouquecer.
Suponho que a sua fé considere esse um pequeno preço a se pagar. — Ela
deu um suspiro amargo; ele não falou nada. — E, volta e meia, nasce uma
criança com um dom tão forte a ponto de ser um perigo para todos por
perto. — Ela bateu o dedo no pergaminho. — Eu apostaria a minha fortuna
que o seu fundador estava procurando uma criança assim.
— Procurando uma? Por que ele…
— Pela mesma razão pela qual ele guardava anotações sobre o potencial
dos Ceifadores! Imortalidade, magia, sonhos que podem matar exércitos…
ou nações. Poder. O seu fundador era fascinado por isso.
E, em seu íntimo, Sunandi estava feliz pelo fato de que Inunru estava
morto havia muito tempo. Ela não ia querer enfrentar um homem tão
brilhante e tão profundamente cruel. Ainda bem que seus colegas Servos de
Hananja o haviam matado por seus muitos crimes, mas ele havia visto quase
trezentas inundações do rio antes de esse dia chegar, usando seu próprio
conhecimento de magia para estender sua vida. Ele passara a maior parte
desse tempo moldando o Hetawa e Gujaareh para atender aos seus projetos.
Um longo tempo para semear o mal.
Se ao menos o fruto envenenado não amadurecesse na minha época.
Nijiri deu um suspiro profundo.
— Esse conhecimento deixou Ehiru magoado quando ele descobriu —
disse o rapaz. — Ele tinha a nossa fé em tão alta conta. Isso me perturba
menos porque eu sempre soube do mal que podemos fazer, mesmo assim…
— Ele suspirou. — Indethe ne etun’a Hananja. Está claro que a Senhora não
nos observa com atenção suficiente, minha Deusa.
Sunandi olhou para a porta, tentando estimar quanto tempo havia se
passado. Ela não podia ficar afastada dos andares dos Protetores ou dos seus
aposentos por muito tempo, não sem levantar suspeitas.
— Você consegue enviar essas informações para os seus confrades no
Hetawa? Por meio dos sonhos ou do que for?
— Consigo. Nós temos acólitos espalhados pela cidade, longe do
Hetawa, onde podem sonhar em segurança. Vou entrar em contato com um
deles. — Ele se sentou na cama de novo, solene. — Você quer que os
Professores vasculhem os registros de nascimento da cidade em busca das
linhagens que produziram narcomancistas fortes, mas desta vez seguindo as
mulheres.
— Só as mais fortes ou as que geraram Coletores ou Compartilhadores
mais recentemente. Não há tempo para vasculhar todas. Pode ser que vocês
não encontrem nada, mas a alternativa é revistar todas as casas da cidade
para ver se conseguem encontrar a criança que têm pesadelos escondida em
um armário.
— Muito bem, Jeh Kalawe. Vamos fazer o que você sugeriu.
Sunandi aquiesceu e logo começou a recolher os pergaminhos,
observando-o furtivamente enquanto o fazia. Ele parecia deprimido, mas
isso poderia ser apenas o confinamento e a incerteza. No entanto, ela não
pôde deixar de perguntar:
— Há alguma coisa que eu possa fazer por você? Alguma coisa de que
você precise?
Ele chacoalhou a cabeça.
— Você se arriscou o suficiente. — Mas o semblante dele não mudou,
então ela não ficou surpresa quando ele voltou a falar. — Tem uma coisa que
me preocupa.
— Que é?
— Inunru fez muitos decretos na época em que conduzia a nossa fé.
Quanto mais o conheço, mais percebo que cada um desses decretos tinha
algum propósito oculto. — Sunandi aquiesceu, feliz de não ser a única que
pensara nisso. Ele esfregou as mãos como se estivesse com frio, embora o
quarto não estivesse gelado. — Há uma linhagem paterna na cidade que o
Hetawa nunca reivindica… não completamente. Por tradição e por decreto
de Inunru, todos os Príncipes do Ocaso devem ter o dom do sonho em
alguma medida. Só o Conselho dos Caminhos do Hetawa sabe do
decreto… mas, como herdeiros de Inunru, nós trabalhamos para cumprir a
vontade dele todos esses séculos. Na verdade, essa foi uma das várias razões
pelas quais decidimos apoiar Wanahomen: o pai dele tentou esconder de
nós, mas o garoto é um sonhador vigoroso. — Ele suspirou. — Alguns de
nós até tomaram isso como um sinal da Deusa.
Sunandi franziu a testa.
— Por que Inunru daria uma ordem dessas?
— Não sei, Jeh Kalawe. Mas tenho suspeitas e elas me assustam.
Ela adivinhou com base na hesitação dele. Era óbvio, na verdade. Se
Inunru não conseguia encontrar um Sonhador Desenfreado, pretendera criar
um. Os Príncipes do Ocaso tomavam muitas esposas e geravam muitos
filhos: isso por si só devia ter tornado a linhagem perfeita para os propósitos
de Inunru. Uma criança dessas nas mãos erradas, mesmo não treinada, era
uma arma viva formidável. Nas mãos de Inunru… Sunandi estremeceu só
de pensar.
E agora o Hetawa estava ajudando Wanahomen, descendente de loucos
e mágicos, herdeiro de outro monstro que fugira ao controle deles. Outro
dos perigosos segredos de Inunru.
Sunandi pôs os pergaminhos debaixo do braço e suspirou.
— Guarde essa para a próxima guerra, seu tolo — disse ela. — Já não
temos problemas suficientes?
Ele a encarou, depois riu. Era a primeira risada genuína que ela
conseguia se lembrar de ter ouvido.
— Bom descanso, Sunandi. Vou rezar por você hoje à noite.
E, até onde Sunandi recordava, ele jamais a chamara pelo primeiro
nome. Ela não ficara ofendida por aquela camada extra de formalidade entre
eles apesar dos anos de amizade; ele era gujaareen. No entanto…
— Em paz, Nijiri — respondeu ela, e conteve o sorriso até sair do
quarto.
37
LÍDER DE GUERRA
***
Já fazia tempo que o sol havia se posto quando Wanahomen voltou cansado,
porém satisfeito, para a saliência do acampamento dos Yusir. Passara a tarde
discutindo estratégias com os outros líderes de guerra, agora seus tenentes,
enquanto os homens das tropas faziam os preparativos finais para a guerra.
Mal conseguia pensar em outra coisa além de uma refeição e sua cama, mas
claro que isso mudou quando Yanassa apareceu e tomou o braço dele.
— Yanassa — disse ele em um cumprimento cansado. — O ar fica mais
fresco por causa da sua presença.
Ela deu um sorriso doce, embora ele não houvesse se deixado enganar
nem um pouco. Ela queria alguma coisa.
— Que presente você trouxe para a Hanani?
Hanani. Ele pensara na mulher do templo, claro, mas com tantas outras
preocupações em sua mente, essa escapara. Era o costume banbarrano
compensar uma mulher pela sua virgindade. E, embora Hanani não fosse
banbarrana e talvez não se importasse, estava claro que Yanassa pretendia
garantir que ele fizesse o certo pela moça.
— Pelas sombras — murmurou ele.
Ela deu uma batidinha em seu ombro.
— Acho que aquela sua tornozeleira de âmbar vai servir muito bem.
Ele sobressaltou-se, franzindo a testa para ela. Ele dera a tornozeleira
para Yanassa anos atrás, quando se tornaram amantes. Ela a devolvera
quando eles brigaram, mas ele sempre tivera a esperança…
— Não sei — respondeu ele.
— Então você não se importa nem um pouco com ela? Ela foi só o alívio
de uma noite para você?
— Não, eu apenas… — Ele parou, preocupado. Passara a gostar de
Hanani mesmo sem ter a intenção, mas de que servia isso? Ela não o amava.
Ela o usara, na verdade, embora ele houvesse permitido. Era justo depois do
que ele fizera com ela… Mas, no final das contas, ela voltaria para o Hetawa
e acabaria se esquecendo dele, e ele, dela. — Eu tinha pensado em dar a
tornozeleira para uma das minhas esposas — terminou.
Yanassa parou de andar, fazendo cara feia para ele.
— É sempre a mesma coisa com você. Uma noite nos braços de uma
mulher e você quer trancá-la em um palácio em algum lugar. E, se por
algum motivo você não consegue ter isso, ela não significa nada para você.
Por que você nunca pode apenas aceitar o que foi oferecido, Wana, sem
exigir tantas coisas mais?
Ele parou também, pondo as mãos no quadril, sem se importar com o
fato de que eles estavam no meio de uma passagem e metade da tribo
provavelmente estava observando.
— Porque não sou um banbarrano atirando a minha semente em
qualquer mulher disposta e me gabando da minha pontaria!
— Ela também não é banbarrana! — retrucou Yanassa. — Pelos deuses,
nenhuma mulher banbarrana é burra o bastante para tolerar você depois de
ver o que eu passei. Mas a Hanani é como você, zangada, machucada e
solitária debaixo de toda aquela presunção e precisa que alguém se preocupe
com ela mesmo que seja justo você, de todas as pessoas. Então, se você
despedaçar o coração dela, vou desprezar você para sempre. — Dito isso, ela
virou as costas e foi embora em um turbilhão de faixas e joias penduradas,
deixando-o boquiaberto.
Charris saiu do meio de duas tendas e veio se postar ao lado dele.
— Meu pai nunca teve tantos problemas assim com as mulheres, teve?
— perguntou Wanahomen entredentes.
— Não, milorde. Mas pode ser porque ele mantinha todas as mulheres
dele trancadas em um palácio em algum lugar.
Wanahomen lançou-lhe um olhar penetrante, mas Charris manteve seu
rosto educadamente neutro.
Ele suspirou e esfregou os olhos por cima do véu.
— Quer pegar a tornozeleira de âmbar para mim, por favor? — Quando
Charris não saiu do lugar, Wanahomen olhou para baixo e viu que havia um
pacotinho na palma da mão do velho.
Com um último olhar azedo, Wanahomen pegou o pacote e foi à tenda
de Hanani.
Ela não estava lá. Algumas perguntas pelo acampamento revelaram que
ela aparecera mais ou menos no momento do descanso do meio-dia, fora
tomar banho, depois voltara e pedira a vários dos banbarranos para
compartilhar humores oníricos com ela.
— Como ela parecia estar? — indagou ele a um dos anciãos de quem ela
coletara sangue onírico.
— Bem o bastante — respondeu o idoso, então sorriu. — Não parecia
insatisfeita, se é que você tem esperanças de outra noite ocupada. —
Contendo uma resposta mal-educada, Wanahomen desejou boa tarde ao
homem.
Por fim, conversou com alguém que a vira se dirigindo para as alturas.
Encontrou-a no meio da subida, nas saliências onde lhe dera aquela
primeira aula de narcomancia somente uma quadra de dias antes. Na
verdade, estava sentada na mesma laje de pedra, abraçando os joelhos,
contemplando o cânion à medida que as últimas cores do pôr do sol se
dissipavam do horizonte que escurecia.
Wanahomen foi até ela e sentou-se ao seu lado; ela se assustou quando
ele se sentou, voltando de uma distância de um milhão de quilômetros.
— Ah — disse ela. — Boa noite, Príncipe.
Ele reprimiu o impulso de tirar do rosto dela um cacho espesso de cabelo
cor de areia. Apesar da noite anterior, parecia um tanto estranho tomar a
liberdade de tocá-la. Ele manteve as mãos embaraçosamente no colo.
— Como você está?
— Bem, obrigada — respondeu ela. Seu tom não era nada além de
cortesia. De repente, o rapaz se perguntou se ela estava insatisfeita com ele.
Então se lembrou das palavras de Yanassa e percebeu que ela poderia não
estar pensando nem um pouco na noite anterior.
— A votação foi a seu favor — falou ela, confirmando a suposição dele.
— Todo mundo está comentando.
Ele aquiesceu.
— Vai acabar logo, de um jeito ou de outro. — Olhando para ela, ele
acrescentou: — Então você vai poder voltar para o Hetawa. — Observando
o rosto dela, Wanahomen vislumbrou um breve baixar de olhos.
— É.
Ele se preparou e então perguntou:
— Arrependimentos no fim das contas?
Ela apertou os lábios.
— Preocupações.
— Preocupações com…?
Ela chacoalhou a cabeça devagar, como se insegura de suas palavras.
— A paz que um dia eu senti como Serva de Hananja se foi. Estava
sumindo antes, mas a morte de Mni-inh acabou com ela de vez. A morte
me segue como uma sombra. Sou uma curadora, deveria trazer vida, não
deveria? O que significa o fato de que não trago?
Wanahomen ficou perplexo por algum tempo. Será que ela passara o dia
inteiro ali ruminando uma pergunta dessas? E como é que ele, que não era
um sacerdote em nenhum sentido, deveria responder?
Ele suspirou e tirou o véu, contemplando o cânion também.
— Você não causou a morte de Mni-inh — disse ele. — E Azima
provocou a dele quando te atacou.
— Se eu mesma tivesse curado a shadoun, Mni-inh não teria morrido.
Ele a encarou.
— Porque você teria morrido no lugar dele! Hanani… — Ele chacoalhou
a cabeça, suspirou e estendeu o braço na direção dela. Ela ficou tensa e ele
parou, deixando a mão no ar até ela relaxar. Depois ele a puxou para que ela
se sentasse em seu colo. Ele teve a impressão de que ela só permitiu aquilo
porque a pegara de surpresa.
— Príncipe, o que…
— Wanahomen.
— Como é?
— Eu estive na sua tenda e dentro do seu corpo. Você pode pelo menos
me chamar pelo meu nome amaldiçoado pelas sombras.
Aquilo com certeza a tirou da melancolia. Uma vermelhidão forte o
suficiente para se ver mesmo na penumbra espalhou-se pelo rosto dela. Seu
sorriso tímido veio a seguir; ele o contou como uma vitória secundária.
— Pois muito bem, Wanahomen.
— Ótimo. — Ele a envolveu frouxamente com os braços. — Agora você
está sendo tola. E da última vez que estava sendo tola, abraçá-la pareceu
trazer o seu juízo de volta. É a única coisa que eu sei que posso tentar. —
Ele ficou aliviado de ver o sorriso dela se alargar.
— Sim, P… Wanahomen. É estranhamente útil.
Tranquilizado, ele se mexeu para se acomodar na pedra dura, de modo
que suas pernas não fossem ficar dormentes.
— A guerra começou — falou ele em tom mais sério. — Nenhum de
nós pode se dar ao luxo de ser tolo agora. Apenas passar por isso vai trazer
de volta a paz.
Ela aquiesceu, ficando séria também.
— Eu tomei providências para cavalgar na retaguarda do seu exército
com os escravizados e os ferreiros e os outros que não vão lutar.
Não ocorrera a Wanahomen que ela iria junto quando ele fosse viajar.
Mas, por outro lado, esse foi o motivo pelo qual o Hetawa lhe dera os
Compartilhadores para começar, não foi? Preocupado, ele se atreveu a
pousar uma das mãos na lombar da moça, pensando nos perigos.
— Continue usando essa roupa — disse ele. — Ninguém vai incomodar
uma mulher banbarrana, não com centenas de guerreiros banbarranos por
perto. Mas uma gujaareen solitária seria vista como vulnerável.
Ela franziu o cenho.
— Um Compartilhador deveria ser fácil de encontrar — pontuou ela. —
As vestes vermelhas… todo gujaareen sabe o que elas significam. No meio
da batalha, isso poderia me ajudar a chegar aos feridos…
— Eu não quero que você seja fácil de encontrar — retorquiu ele,
fazendo cara feia; ela recuou, surpresa. — Não confio nos meus aliados da
cidade, Hanani. Eles podem querer estragar a minha aliança com o Hetawa
fazendo mal a você.
— Ninguém… — Mas parou sem terminar a frase. Ela vira o suficiente
agora para saber que não devia.
Não gostando do fato de que ela ficara tensa, ele estendeu a mão para
massagear seu pescoço e seus ombros.
— Durante a batalha, vou mandar levarem os feridos para onde quer que
a gente faça acampamento. Você pode curá-los lá. Quando tivermos passado
pelos muros da cidade, vou te levar de volta para o Hetawa. Até isso
acontecer, você é a minha curadora e só serve aos meus homens. Entendido?
Hanani fitou-o por um longo tempo, e só depois é que ele ficou
pensando no que poderia fazer se ela dissesse não.
— Vou esperar até você considerar seguro antes de ajudar qualquer um
além dos banbarranos — concordou ela, enfim. — Mas só porque fazer o
contrário poderia causar mais danos.
Wanahomen soltou o ar e aquiesceu. Eles ficaram assim por um bom
tempo, até a curva superior vermelho-sangue da Lua dos Sonhos começar a
encher o céu sobre o cânion.
— Você está machucada? — indagou ele quando se passara tempo
suficiente para poderem discutir algo mais íntimo.
— Alguns pontos doloridos. Não o suficiente para ter o trabalho de
curar. — Ela encolheu os ombros. — Você foi muito cuidadoso. Obrigada.
Ele ficou incomodado com o fato de ela parecer surpresa com o seu
cuidado. Incomodava-o mais ainda que ela parecesse completamente
impassível com relação ao que acontecera entre eles, poderia ter sido apenas
mais uma aula de sonho, apesar de toda a ternura do comportamento dela.
Por conta disso, ele disparou:
— Você lamenta alguma coisa, Hanani? Agora que a luz do dia clareou
os seus pensamentos?
Ela suspirou, mas para alívio dele chacoalhou a cabeça.
— Você lamenta?
Ele sentiu uma ligeira tensão no corpo da moça e ficou surpreso com o
quanto isso lhe agradava. Pelo menos gostava dele o suficiente para se
preocupar com o que ele pensava dela.
— Só o fato de que você precisa voltar para o seu Hetawa.
Esse comentário pareceu trazer de volta parte da tristeza dela e o fez
ficar sério também.
— O que vai acontecer com você? — perguntou ele. — No Hetawa?
Ela suspirou.
— Vou contar ao Superior tudo o que fiz. Ele vai decidir qual será a
minha penitência, apesar de que os anciãos do meu caminho vão opinar
também… e os Coletores, considerando que tirei uma vida. A notícia vai se
espalhar de um jeito ou de outro e a minha reputação vai ser mais
prejudicada. Existem aqueles que sempre disseram que uma mulher não tem
a disciplina para servir a Deusa de forma apropriada e agora eu provei que
eles estavam certos em muitos sentidos.
Ele não gostou de saber que os Coletores estariam envolvidos na decisão
do destino dela. Nem um pouco.
— Mais tolice — comentou ele com uma indiferença que não sentia de
verdade. — Para começar, você não poderia ter se tornado Compartilhador
sem disciplina.
— Mas eu não sou Compartilhador, ainda não. E agora pode ser que eu
nunca me torne um. Mni-inh… Ele era o meu defensor no Hetawa. Ele…
— Ela estremeceu e se calou; ele a sentiu tremer.
— O seu mentor e eu, nós não éramos amigos — começou Wanahomen,
constrangido. Mas sentiu que ela estava prestando atenção. — Talvez ele
visse o meu pai em mim. Eu com certeza via o Hetawa nele… e em você, no
começo. Mas ele era firme e enérgico em suas convicções, até eu devo
admitir que o admirava por isso. Não consigo imaginar um homem desses
apoiando você se não acreditasse que você é digna de servir Hananja.
— De que adianta se ninguém mais acredita? — Não havia força na voz
de Hanani, apenas resignação, e enfim Wanahomen percebeu que o que ela
estava reprimindo não era arrependimento, mas um desespero tão intenso
que era como pedras em sua alma. Ela ainda era uma mulher de luto, por
mais incomum que fosse o método que escolhera para desligar sua mente do
sofrimento. Era tão fácil agravar suas feridas.
— Então eles não merecem ter você no convívio deles — retrucou
Wanahomen, zangado por ela. — Mas pare e pense: os Coletores
escolheram você para realizar uma missão de grande importância, não é
verdade? O seu mentor considerou você digna das suas vestes vermelhas,
isso ficou claro para mim. Unte e os banbarranos respeitam você, até a
minha mãe respeita… e essa não é uma coisa fácil de conquistar, acredite.
Hanani não falou nada, mas ele sentiu parte da tensão diminuir nas
costas dela. Satisfeito, Wanahomen mudou de posição e pôs uma das mãos
na barriga dela.
— E… os banbarranos não entendem isso, mas não me deito com
qualquer mulher. Você pode se tornar a mãe do próximo rei de Gujaareh,
afinal.
Wanahomen não pôde ver as nuances do rosto dela no escuro, mas teve a
impressão de que ela desviou o rosto.
— Não vai haver uma criança — declarou ela —, não é a época certa.
Ele piscou, surpreso, mas ela era uma curadora, é claro que saberia. Pelo
espaço de uma respiração, ele ficou desapontado, antes que o bom senso se
reafirmasse.
— Mesmo assim — disse ele. Afagou a coxa da jovem por cima da saia,
depois acariciou a bochecha dela. — Por mais adorável que você seja, por
mais deliciosa que você estivesse ontem à noite, eu jamais teria atendido ao
seu pedido se não tivesse visto sua força e sua inteligência e não as tivesse
desejado para os meus herdeiros.
Ela deu um sorriso estranho, mas havia um divertimento genuíno nele.
— Não sei ao certo como responder a isso.
— Diga “obrigada” — falou ele com uma presunção fingida. — E eu
também apreciaria um elogio pela minha habilidade, pelo gosto impecável e
pelo bom senso.
Ele ficou contente de vê-la soltar uma risada suave, mas ainda mais
satisfeito quando ela pôs os braços ao redor do seu pescoço.
— Obrigada por ser gentil comigo — sussurrou ela em seu ouvido. E
então ela o beijou.
Surpreso, Wanahomen abraçou-a e correspondeu ao beijo, admirando-se
mais uma vez com a forma como ela colocou todo o seu ser naquele
momento. Talvez porque estar com ele fosse uma traição ao seu juramento:
se estivesse em seu lugar, ia querer saborear cada momento também. Para
fazer a traição valer a pena.
Então ele suspirou, delicadamente a fez recuar um pouco e tirou o pacote
de Charris da roupa.
— Eu é que agradeço — disse ele, abrindo o tecido dobrado. Ela conteve
a respiração quando ele pegou a tornozeleira; mesmo sob a tênue luz da
Sonhadora ela podia ver o brilho dos pingentes. Ele o amarrou ao redor do
tornozelo dela e teve de admitir que ficou melhor do que esperara em sua
pele pálida.
— Mas por quê? — perguntou ela, finalmente parecendo emocionada
com alguma coisa que ele fizera. Aquilo por fim satisfez o orgulho dele.
— Você me deu prazer — respondeu ele. Acariciou a panturrilha dela;
era a única parte do seu corpo que ousava tocar para não se sentir tentado a
prosseguir. Uma noite era tudo o que podia esperar dela e isso já estava
feito. Ele se viu desejando que pudesse haver mais. — E me deu a honra de
ser o seu primeiro amante. Mesmo sem contar o seu juramento ao Hetawa,
essa é uma coisa poderosa e especial.
Ela chacoalhou a cabeça.
— Foi um presente mútuo, Príncipe. Wanahomen. Você também me
deu prazer.
— Verdade. Mas, entre os banbarranos, nada é de graça… — Ela pôs os
dedos sobre os lábios do rapaz, para sua grande surpresa.
— Você não é banbarrano — pontuou ela. Levantou-se e ficou ali
parada, parecendo selvagem e bárbara, embora sua determinação calma
fosse toda gujaareen. — As Irmãs dizem que o prazer honra Hananja
porque traz paz. Hoje à noite pretendo orar para que essa guerra termine
rápido. Se quiser… — Ela baixou a cabeça, sua timidez voltando apenas por
um instante, mas então olhou para ele por entre os cílios de um jeito que fez
todas as lamentações dele desaparecerem. — T-talvez a gente possa orar
junto.
Ela se virou e desceu a trilha em um ritmo não exatamente pacífico, e
estava a meio caminho do acampamento antes que a mente de Wanahomen
compreendesse que ele acabara de ser seduzido.
Em seguida, tão rápido quanto podia sem colocar a vida em risco, desceu
a encosta íngreme atrás dela.
38
SEGREDOS
Não fazia nem metade de um dia que Tiaanet e seu pai haviam voltado para
a propriedade no campo quando servos vieram informá-la de que havia
visitantes se aproximando da casa.
— Uma oitava de soldados, senhora, e um homem com uma lança —
detalhou a menina de olhos arregalados. — Todos kisuati.
O pai de Tiaanet estava se preparando para viajar para o sopé das
colinas, onde os exércitos dos nobres estavam se reunindo para a sua
tentativa de retomar Gujaareh. Não havia tempo para esconder os alforjes
ou os suprimentos empilhados no pátio da casa; ela teria de pensar em uma
desculpa adequada para explicá-los.
— Convide-os para entrar quando chegarem — falou ela para a menina.
— Trate-os como convidados, mas, se fizerem perguntas, apenas responda
que não sabe de nada. — A menina aquiesceu e saiu correndo; outro servo
estava por perto, parecendo igualmente ansioso. — Informe o meu pai —
ordenou ela, e ele saiu depressa no mesmo momento.
Era impróprio para uma mulher dos shunha receber os convidados
quando havia servos à disposição para cuidar dessa atividade doméstica.
Posicionando-se de frente para a entrada da sala de recepção, Tiaanet se
recompôs para esperar e perguntou-se o que faria se os kisuati houvessem
descoberto os planos do pai. Nessa hipótese, eles o matariam,
provavelmente em público e devagar, na justiça tipicamente brutal dos
kisuati. A linhagem então seria dela para administrar e sua mãe e Tantufi
ficariam sob seus cuidados. Mas isso só aconteceria se os kisuati não a
julgassem culpada junto com o pai, o que fariam a menos que ela alegasse
ignorância bem o suficiente para convencê-los. Se eles tivessem prendido
algum outro conspirador, como os outros lordes e ladies que haviam
discutido a conspiração na sua frente, eles certamente apontariam Tiaanet
junto com o pai. Nesse caso, ela não alegaria ignorância, mas o controle do
pai. E, se a pressionassem, ela lhes mostraria Tantufi e todos os segredos
seriam revelados.
Se Tiaanet ainda fosse capaz de sentir, poderia ter sentido algo muito
semelhante a expectativa.
Mas houve uma agitação na frente da casa quando os soldados entraram.
Ela ouviu a voz da serva se levantar em protesto, seguida do som de carne
batendo em carne (ela conhecia esse som muito bem) e um surpreso gemido
de dor. Então os soldados apareceram na sala de recepção, flanqueando o
líder, e de repente Tiaanet começou a desconfiar que, no final das contas,
eles não haviam vindo atrás de seu pai.
O líder carregava de fato uma lança curta amarrada às costas, como a
serva informara, além da tradicional espada curva no quadril. Mas a menina
pertencia à casta servil e era ignorante: claro que a lança foi a única coisa
que ela notou. Tiaanet notou coisas completamente diferentes, como o fato
de que o homem era mais baixo do que a maioria dos kisuati, embora magro
e bem musculoso, e havia mais que um traço oestense em suas feições
arredondadas. Usava o cabelo solto, diferente da maioria das pessoas de
Gujaareh ou Kisua, penteado como um capacete untado e bem arrumado,
cortado reto à altura das orelhas. E, em lugar do tecido drapeado solto que a
maior parte dos capitães kisuati usava ao redor dos ombros, esse homem
vestia um espesso couro preto atado com um elaborado fecho de marfim. A
origem daquele couro talvez também houvesse sido o dono dos dentes que
adornavam o colar do homem.
Um caçador: um membro de uma das castas mais antigas e mais
honradas de Kisua, embora sua glória e sua quantidade houvessem
diminuído nos últimos séculos.
— Você é lady Insurret, da casta shunha e da linhagem de Insawe? —
perguntou o homem, depois verificou ele mesmo. Ele tinha um forte
sotaque suua; mesmo conhecendo a língua, Tiaanet demorou o espaço de
uma respiração para se adaptar ao gujaareen entrecortado e de flexões
estranhas do sujeito. — Não, você é jovem demais. Você seria lady Tiaanet,
filha dela.
— Sou — respondeu Tiaanet com uma cuidadosa mesura que
reconhecia a patente do homem e mais nada. — E o senhor é?
— Bibiki Seh Jofur — disse ele. — Um capitão de Kisua, ultimamente
associado ao Protetorado em Gujaareh. Onde está Insurret?
— Ela está indisposta — explicou Tiaanet. Contara essa mentira tantas
vezes que ela lhe vinha facilmente à boca, e parecia mais seguro do que
perguntar o que acontecera com a serva que atendia à porta. — Venho
cuidando dos assuntos dela há algum tempo agora, com a permissão dela e
do meu pai. Posso transmitir uma mensagem para ela em seu nome?
— Você pode acompanhar os meus homens até os aposentos dela —
replicou ele — e depois pode vir junto conosco.
Por um momento, Tiaanet estava segura de não ter ouvido direito.
— Minha mãe está…
— Ora, por favor. — Bibiki sorriu, todo cortesia. — Temos que ir para
longe e eu gostaria de estar de volta à cidade ao anoitecer.
— O que é isso? — Sanfi entrou na sala com a camisa de vestir dentro de
casa e ainda passando um pano na testa para secar a umidade do banho. Ele
parecia assustado aos olhos experientes de Tiaanet, o que significava que ele
fingia beligerância e raiva ao falar com Bibiki. — Quem é você? Os servos
me disseram…
— Ah, lorde Sanfi — disse Bibiki. — Estou feliz de enfim conhecê-lo.
Ouvi falar muito do senhor. — Com um rápido movimento de mão, ele fez
um sinal para os dois soldados à sua direita. Eles imediatamente
atravessaram a sala e passaram por Sanfi, adentrando a casa. Sanfi conteve a
respiração e virou-se para protestar, mas eles o ignoraram.
— O que é isso? — quis saber Sanfi.
— Um serviço solicitado a todas as famílias nobres gujaareen pelos seus
Protetores. — Bibiki assumiu uma postura relaxada, as mãos cruzadas atrás
das costas, uma expressão simpática no rosto que não enganava ninguém. —
Parece que alguns membros da nobreza gujaareen… não sabemos ao certo
quais, infelizmente… começaram a tramar contra o nosso governo. Acho
difícil de acreditar, em especial no caso de famílias como a sua, que se
dedicaram tão honrosamente a manter os ideais da nossa terra natal. Mas,
até conseguirmos identificar os bandidos, receio que as suas mulheres devam
desfrutar da hospitalidade dos Protetores por um período indeterminado.
A um gesto invisível de Bibiki, um dos soldados restantes foi se
posicionar perto de Tiaanet.
— Isso é ridículo. — Sanfi olhou para o soldado perto de Tiaanet, então
para o corredor onde os outros dois haviam entrado, depois para Bibiki
outra vez. Ele tremia de raiva, quase descontrolado. — Você vai levá-las
como reféns? Nós servimos Kisua fielmente…
— Certo, certo — falou Bibiki, e agora sua voz tinha uma aspereza que
deixou Tiaanet tensa, embora ele mantivesse o sorriso cortês. — Fielmente,
sem dúvida. A propósito, nós não vamos ter nenhum problema com os
soldados da sua propriedade, vamos? Nós não vimos nenhum quando
passamos pelos seus campos. Como vocês se defendem contra os
banbarranos e outros agressores?
Sanfi se calou, sua expressão rapidamente voltando-se para um cálculo
mental. Os soldados contratados da propriedade haviam partido no dia
anterior para se juntar ao exército que estava se reunindo no sopé das
colinas. Bibiki já sabia disso, percebeu Tiaanet, caso contrário não teria
vindo com apenas uma oitava de soldados. Sanfi também sabia.
— Capitão — chamou um dos soldados em suua de lá do fundo da casa.
Só então Tiaanet se deu conta do verdadeiro perigo. Desde que haviam
voltado da cidade na noite anterior, Tantufi fora abrigada temporariamente
em uma despensa até que pudessem levá-la à casa no campo, algo que
Tiaanet planejara pedir aos servos que fizessem após a meia-noite. Mas, se
os soldados estavam vasculhando a casa…
— Não — sussurrou Tiaanet. Bibiki fitou-a, especulando, então
contornou-os e adentrou a casa para ver o que seus homens haviam
encontrado. Tiaanet ouviu murmúrios e logo, alguns instantes depois, os
homens apareceram. Um dos soldados conduzia Insurret pelo braço. O
outro soldado carregava Tantufi.
Tantufi não podia andar. Anos acorrentada ao chão haviam tido seus
efeitos no corpo dela: suas pernas eram finas, com os músculos atrofiados a
ponto de não funcionarem. Apesar do sono que ela tivera permissão para
dormir em Gujaareh, o preço de anos sem descanso apropriado ainda podia
ser visto no rosto flácido e prematuramente envelhecido, nos membros
macilentos, no cabelo ralo e na pele opaca e, sobretudo, nos imensos olhos
desvairados. O soldado a segurava nos braços, apoiando-a a um lado do
quadril; a cabeça da menina pendeu para trás.
— Mamãe mamãe mamãe mamãe — sussurrou ela. A corrente que os
soldados deviam ter quebrado para soltá-la (Sanfi mantinha a chave
escondida de Tiaanet) pendia de um dos tornozelos.
Tiaanet avançou em direção a Tantufi de imediato, mas o soldado que se
posicionara perto dela segurou seu braço e puxou-a de volta. Insurret, que
viera arrastando docilmente os pés sob o controle do soldado, estremeceu ao
ouvir a voz de Tantufi.
— O que essa coisa está fazendo aqui?
Sanfi deu um passo em direção a Bibiki.
— Você não pode… — Outro soldado apontou uma espada para Sanfi
antes que ele pudesse se aproximar; Sanfi parou de pronto.
— Lorde Sanfi — disse Bibiki em um tom reprovador. Ele olhou para
Sanfi com franca curiosidade. — Me falaram que o senhor tinha apenas a
filha e a esposa.
— Por favor — pediu Sanfi. — Minha esposa está doente. E aquela
criança… — Ele olhou para Tantufi e desviou o olhar. — O senhor pode
ver que ela está doente também. Por favor, solte as duas, e a minha Tiaanet.
Em outra vida, sob outras circunstâncias, Tiaanet poderia ter dado um
sorriso. Seu pai jamais teria implorado por Insurret nem por Tantufi por elas
mesmas.
— O que há de errado com elas? — Bibiki segurou a cabeça de Tantufi e
ergueu-a com uma delicadeza surpreendente, espiando os olhos agitados da
menina. O aperto na barriga de Tiaanet diminuiu um pouco quando ele
tomou um cuidado tão evidente para não machucar a garotinha.
— Uma enfermidade antiga — respondeu Sanfi. — Aflige algumas das
mulheres da linhagem. Elas precisam de cuidado constante.
Bibiki lançou-lhe um olhar brando.
— Elas podem receber cuidado constante na cidade.
Tiaanet deu um passo à frente outra vez, embora não tão à frente a
ponto de o soldado puxá-la de volta.
— Com todo o respeito, senhor, meu pai e eu e os nossos servos sabemos
a melhor forma de cuidar delas. Na cidade…
— Não vou levá-las para o Hetawa para serem curadas, se é esse o seu
medo. Naturalmente nós, caçadores, como os shunha, jamais poderíamos
aprovar uma coisa dessas. — Bibiki acenou para o soldado, indicando que
ele mesmo deveria segurar a cabeça de Tantufi, o que o homem fez. Depois
Bibiki fez um gesto para os dois homens saírem com Tantufi e Insurret.
Em um piscar de olhos, Insurret ficou descontrolada, precipitando-se
sobre Tantufi, as mãos em forma de garras.
— Tire esse monstro da minha frente! Afogue, queime, espanque, mate,
leve embora, tire de dentro da minha cabeça, tire deste mundo!
O soldado que a segurava ficou tão surpreso que quase a soltou. Isso foi o
suficiente para Insurret pôr as mãos nos poucos cachos de Tantufi. Ela deu
um forte puxão na cabeça da menina, claramente tentando quebrar o
pescoço dela. Seu rosto era um ricto de exultação; sua voz, um guincho.
— Afogue, queime, espanque…
— Não! — Tiaanet segurou o braço da mãe antes que ela pudesse dar
outro puxão em Tantufi. — Mãe, não!
O soldado conteve Insurret outra vez e arrastou-a para trás, mas Insurret
agarrou o cabelo de Tantufi como uma sanguessuga, rosnando violências
incoerentes agora. De todos eles, apenas Tantufi estava quieta… e calma,
mesmo quando Insurret conseguiu dar outro puxão em sua cabeça. Sanfi
deu um passo à frente, fazendo cara feia; Bibiki levou a mão à pequena
lança, mas Tiaanet estava farta.
Colocou o rosto diante do rosto enlouquecido de Insurret, forçando a
mãe a olhar para ela.
— É por isso que ele te odeia — disparou ela.
Insurret recuou. Parou de resistir, os braços ficando frouxos.
— O-o quê?
— Olhe para si mesma. — Tiaanet encheu a voz de desdém. Não foi
difícil. — Uma fera egoísta, cheia de ódio, cega à dor da sua própria família,
tão rancorosa que até mataria uma criança. Por que algum homem iria te
querer?
Os olhos de Insurret se encheram de lágrimas.
— Mas, mas… — O rosto dela se contorceu. Ela soltou o cabelo de
Tantufi e cobriu o rosto com aquela mão. — Você não entende qual foi a
sensação. Carregar você, os seus sonhos sempre sussurrando para mim,
empurrando e puxando a minha alma… — Mas então seu humor voltou a
mudar, rápido como um sonho, e ela olhou feio para Tiaanet por entre os
dedos. — Ah, mas eu me esqueço. Você sabe qual é a sensação, não sabe?
Vagabunda traidora.
Ela afastou a cabeça e teria cuspido em Tiaanet, mas a filha lhe deu um
tapa tão forte que o rosto dela virou. Insurret piscou, parecendo surpresa.
Tiaanet voltou-se para Bibiki.
— Como o senhor pode ver, meu pai tinha razão. — Ela tentou manter
o tom inexpressivo e não conseguiu: estava zangada demais, zangada de
verdade, com o que a mãe fizera com Tantufi. Sua voz reverberava com a
força de sua fúria. — Só ele e eu podemos cuidar desses membros da família
da maneira apropriada.
Mas Bibiki estava encarando-a. Ele olhou para Tantufi, depois para
Tiaanet outra vez, e estreitou seus olhos de caçador.
— Entendo — comentou ele em um tom suave. — A criança é sua filha,
não sua irmã.
Tiaanet não falou nada, embora em seu íntimo um grande nó de tensão
houvesse se desfeito. Será que era alívio? Ela achou que talvez fosse. Fez de
tudo para não sorrir para Bibiki. Continue, pensou, ansiou, suplicou. Você
entende tanto tão bem, caçador. Quer fazer o favor de entender o resto? Diga em
voz alta.
Sanfi ficou tenso ao lado dela, embora sorrisse.
— O senhor está certo — confirmou Sanfi. Ele pôs o toque exato de
constrangimento na voz: o nobre respeitável forçado a admitir um segredo
de família vergonhoso, porém secundário. Tiaanet se perguntou se ele vinha
praticando aquelas palavras em sua mente nos últimos seis anos. — Nós a
mandamos para ir morar com parentes em Kisua por um ano quando
descobrimos sua condição. Algum rapaz do local, nem um pouco adequado;
nós tínhamos que manter as perspectivas de casamento dela desimpedidas.
Com certeza o senhor entende, se for um homem de família.
— Ainda não sou — respondeu Bibiki, dirigindo-lhe um olhar de frio
desdém. — Mas, se eu fosse, duvido que seria tão depravado a ponto de
engravidar a minha própria filha.
Tiaanet fechou os olhos por um momento, saboreando a sensação de
viver sem segredos. Ela poderia amar esse tal de Bibiki, se ainda fosse capaz
de amar alguém além de Tantufi.
Sanfi estremeceu ao ouvir aquilo, verdadeiramente desconcertado pela
primeira vez desde que Tiaanet tinha lembrança.
— Eu… — começou ele. Abriu a boca mais uma ou duas vezes, mas no
final calou-se. Talvez não houvesse praticado aquela resposta em particular.
Bibiki meneou a cabeça para si mesmo.
— Bem. Parece que o senhor tem muitas coisas para pensar, lorde Sanfi.
— Ele se virou então, fazendo um sinal para que os soldados o seguissem.
Aquele que estava perto de Tiaanet estendeu a mão para pegar em seu
braço. Ela começou a andar antes que ele pudesse tocá-la.
— Tiaanet… — A voz de Sanfi estava angustiada. Tiaanet virou-se para
trás para fitá-lo; ele deu um passo à frente. — Tiaanet, eu nunca quis… Não
era… Você entende, não é?
Ela jamais entendera. Durante todos aqueles anos desde a primeira vez
que ele subiu em sua cama e todas as crueldades desde então, ela nunca
entendera o que o levara a fazer as coisas que fez. Depois de um tempo, ela
deixara de se preocupar, pois que importância tinha o motivo pelo qual ele
as fazia? No entanto, o hábito de obedecer ao pai, agradá-lo, estava
arraigado demais para Tiaanet ignorar, mesmo agora.
— Entendo, pai — respondeu ela. O rosto dele se iluminou
imediatamente de alívio e alegria.
— Não se preocupe — assegurou ele, a expressão ferrenha. — Vou eu
mesmo até os Protetores, se preciso, para libertar vocês. Não se preocupe.
Ela não estava preocupada. Não se importava com o que aconteceria
consigo, nem com ele ou com Insurret, na verdade. Não se importava com o
que os kisuati, que nunca lhe haviam feito nenhum mal, pensariam do fato
de ela ter dado à luz uma filha do seu próprio pai. Eles já haviam
demonstrado mais gentileza e atenção com Tantufi do que a própria família
dela. Nada do que lhe fizessem poderia ser pior do que o que ela já passara.
Mas Tiaanet inclinou a cabeça para o pai. Ele ainda poderia lhe ser útil,
afinal. Depois aproximou-se de Tantufi.
Bibiki a observou reflexivo durante essa interação, como se houvesse
adivinhado a linha de raciocínio dela. Talvez houvesse; ela jamais fizera
muito esforço para esconder esse tipo de coisa. (Nunca precisara. Sanfi via o
que queria ver.) Quando Bibiki inclinou a cabeça para ela em um gesto que
poderia ter sido de respeito ou simples cortesia, ela respondeu inclinando a
cabeça de volta. Ele também poderia lhe ser útil. Essa fora a lição mais
importante que o pai lhe ensinara há muito tempo: qualquer um podia ser
usado. Não dava para confiar em ninguém.
Os kisuati saíram, levando Tiaanet, a mãe e a filha embora.
39
A GUERRA COMEÇA
Hanani acordou ao som de uma mão batendo nas paredes de sua tenda.
— Acorde, ratinha — disse a voz de Yanassa através do couro de camelo.
— Sei que aquele tolo não te deu tempo para dormir, mas você tem muito a
fazer.
Piscando para espantar a sonolência, Hanani sentou-se e encontrou-se
coberta por um tecido fino. O espaço entre as almofadas onde Wanahomen
se deitara estava vazio e ele deixara as abas da tenda desamarradas ao sair.
— Entre — falou ela, distraída. Yanassa passou a cabeça pela aba, depois
se esgueirou para dentro.
— Ele deve ter saído antes do amanhecer — explicou Yanassa em um
tom gentil, interpretando a confusão de Hanani. Ela se aproximou e se
ajoelhou ao lado do Compartilhador, estendendo a mão peremptoriamente
para começar a desembaraçar o cabelo da jovem. — Muitos preparativos a
serem feitos antes da partida do exército. Ah, ele deu de presente para você!
— A perna de Hanani havia escapado do cobertor; Yanassa apontou para a
tornozeleira de âmbar.
Hanani sentiu as bochechas pegarem fogo, embora tenha resistido ao
impulso de esconder a tornozeleira: não fazia sentido agora que Yanassa já a
havia visto.
— Deu.
Yanassa deu uma batidinha no ombro de Hanani.
— Ele deveria ter dado o presente para você logo de cara, claro, mas não
leve a mal. Nunca ensinaram para ele o comportamento apropriado de um
homem. Agora você entende como devem ser as coisas entre vocês? — Ela
soltou o cabelo de Hanani e se levantou para pegar novos enfeites de cabelo
da caixa de joias ali perto.
— Ser? — Perplexa, Hanani pegou as faixas para enrolar em seus seios e
começou a procurar a ponta com o nó. Após a morte de Mni-inh, Yanassa
viera lhe oferecer consolo… e um pedido de desculpas por suas palavras
duras quanto à mulher shadoun. Em Gujaareh, Yanassa teria de pedir
desculpas à Deusa também por sua vontade nada pacífica de ver outra
pessoa assassinada de um modo horrível. Os Coletores talvez houvessem se
envolvido, avaliando a alma dela em busca de sinais de corrupção; era quase
certo que ela teria de pagar um dízimo extra e passar por um ritual de
purificação no Hetawa ou em um templo satélite, no mínimo. Mas ali, no
deserto, a questão foi resolvida apenas com o pedido de desculpas e Yanassa
retomara a amizade delas como se o incidente nunca houvesse acontecido.
Hanani ainda estava se esforçando para acompanhar tudo aquilo.
— Você não pode se deitar com outro homem durante um mês inteiro
ou até quando o seu sangue descer de novo, o que acontecer primeiro —
explicou Yanassa, penteando o cabelo de Hanani com os dedos. As torções o
haviam deixado com os cachos emaranhados, mas Yanassa felizmente
parecia saber lidar com eles. — Um homem merece pelo menos esse tempo
de chance para provar seu valor antes de você descartá-lo. Bem, você
obviamente já viu que não precisa fazer um convite em público outra vez.
Você também pode visitar a tenda dele se estiver disposta e a dona da an-
sherrat concordar. — De repente, ela suspirou. — Apesar de que, com essa
guerra, conhecendo o Wana, ele pode rejeitar você. Ele nunca se permite
um luxo quando os homens dele estão sem nenhum.
Abandonando o esforço de se vestir com dignidade, Hanani encolheu as
pernas e abraçou os joelhos enquanto Yanassa cuidava do seu cabelo.
Wanahomen passara horas com ela na noite anterior, massageando-a e
afagando-a muito depois de passado o primeiro arrebatamento. Quero que
você sinta a minha falta quando voltar para o Hetawa, ele lhe dissera enquanto
fazia coisas que a deixaram sem fôlego e com vontade outra vez. Se tiver que
enfrentar uma punição por se deitar comigo, então eu deveria pelo menos te dar
um prazer que valha o preço, não deveria? Então ele lhe dera mais, e mais
ainda, até ela enfim cair em um sono exausto e sem sonhos.
Serviria, decidira ela, como despedida.
— Não vai haver outra vez — declarou ela. Foi quase um sussurro. As
mãos de Yanassa pararam de mexer em seu cabelo.
— Eu tinha planejado aconselhar você a não o amar — disse Yanassa, a
voz cheia de compaixão. — Ele prende demais, isso é inadequado em um
homem. Mas o amor nunca foi um risco para você?
Hanani apertou as mãos no colo. Ela não conseguia encontrar as palavras
para expressar o turbilhão dentro de si. Wanahomen cometera uma quadra
completa de erros com ela. No entanto, desde então ele fora atencioso com
ela ao seu modo rústico, até gentil. A consideração a deixara confusa; a
gentileza transformara a raiva dela em algo totalmente diferente.
Incomodava-a perceber que o perderia também quando tudo aquilo
terminasse, tão certo como já perdera Mni-inh e Dayuhotem.
Mas Wanahomen não seria como eles em um aspecto crucial. Ela
poderia jamais voltar a vê-lo se ele sobrevivesse àquela guerra, mas pelo
menos teria o consolo de saber que estava vivo.
Yanassa suspirou, tomando o silêncio dela como uma resposta por si só.
— Estou feliz que o meu povo não siga a sua deusa genuinamente —
comentou ela por fim. — Ela exige demais de vocês.
— Ela nos concede um grande poder. É justo que exija um preço alto
por ele.
Yanassa fez um som de afronta.
— Não existe justiça nisso. — Ela prendeu alguma coisa na cabeça de
Hanani e deu a volta para ficar de frente para a moça. — Você não pode
deixar o seu Hetawa? Nós acolheríamos você.
Hanani encarou Yanassa, surpresa demais para se sentir ofendida.
— O Hetawa me criou desde a minha sexta inundação. É o meu lar. Os
Servos de Hananja são a única família que eu conheço.
— A família faz o que é melhor para você! Que boa família censura uma
mulher por seguir a sua natureza? Você aprendeu o seu valor, encontrou
algum orgulho em si mesma. Se vivesse entre nós, poderia criar filhos e
filhas, construir um clã abastado com as suas habilidades como curadora,
viver rodeada por aqueles que te honram como você merece. O seu Hetawa
algum dia vai te dar isso?
— Filhos e filhas não, e qualquer riqueza que eu ganhe vai para o
Hetawa, mas… — Ela franziu a testa, pensando nas palavras de Yanassa.
Quando voltasse ao Hetawa, se lhe fosse permitido continuar servindo,
receberia uma penitência por suas más ações. Caso se redimisse por
completo, talvez algum dia lhe permitissem obter o status de
Compartilhador. Então ela poderia construir uma reputação baseada em sua
habilidade, conseguir acólitos e aprendizes para guiar, aprender o
conhecimento mais profundo do seu ofício, talvez até chegar ao Conselho
dos Caminhos…
Mas ela franziu o cenho, preocupada. Esse poderia ser o caminho natural
para qualquer homem que servisse à Deusa, mas seria para ela? Que acólito
serviria a ela depois de Dayu? Que aprendiz ia querer a única e difamada
mulher do Hetawa como mentora? Será que seria capaz de algum dia
conseguir respeito suficiente de seus irmãos de caminho a ponto de lhe
permitirem representá-los em importantes questões do Hetawa? Nem Mni-
inh fora capaz de fazer isso, e ele não fora prejudicado pela controvérsia.
Mas foi pensar em Mni-inh que silenciou suas dúvidas.
— Eles são a minha família — repetiu ela com mais firmeza. — Meu
mentor passou metade da minha vida me treinando, acreditando em mim.
Ele queria que eu usasse o colarinho de rubi e me tornasse, enfim, um
Compartilhador pleno. Não posso apenas deixar isso de lado, Yanassa.
Yanassa suspirou, acomodando-se sobre os calcanhares.
— Isso eu entendo. Às vezes, honrar as nossas famílias significa olhar
além das nossas próprias necessidades. — Ela juntou os enfeites de cabelo
que haviam sobrado e se levantou para guardá-los. Hanani olhou no espelho
e viu que os cachos haviam sido puxados para trás e presos com um anel de
placas de bronze sobrepostas. Um bom penteado para viajar. Mas ela parou,
intrigada, ao avistar um fino cordel vermelho entre os cachos. Ela o pegou e
descobriu que ele estava pregado em seu cabelo, e que havia um segundo
cordel ao lado daquele.
— Um para os seus ciclos menstruais — explicou Yanassa, notando sua
confusão. — O outro é para o sangue da sua virgindade. O terceiro não virá
a menos que você dê à luz uma criança e o quarto seria pelo fim dos seus
ciclos. São seus cordéis de marcação.
— De marcação…?
— Uhum. Os homens têm um grande ritual extravagante no décimo
segundo ano deles. Fazem alguma coisa com o pênis, dançam com os tios e
irmãos, soltam grunhidos e peidos e dizem uns para os outros que são
homens. Nós, mulheres, só precisamos olhar para os nossos próprios corpos.
— Yanassa terminou de guardar os enfeites e se aproximou para pousar as
mãos nos ombros de Hanani, sorrindo para ela no espelho. — Me perdoe se
vocês têm os seus próprios costumes gujaareen para essas coisas. Não tive
intenção de desrespeitar. Entre nós, os cordéis são um emblema da condição
feminina. — Ela se virou para que Hanani pudesse ver os três cordéis
entrelaçados em um cacho trançado do seu cabelo.
Hanani não fazia ideia se havia costumes gujaareen para essas coisas. Ela
fitou os cordéis de Yanassa, depois os seus próprios, e sua vista se turvou.
— U-um dos sacerdotes do Hetawa — começou ela. Parou de falar,
sentindo um aperto na garganta, e então respirou fundo. — Ele falou que eu
nunca seria uma mulher de verdade.
Yanassa ficou boquiaberta.
— O que, em nome das sombras, ele saberia sobre a condição feminina?
Você não deu ouvidos a essa estupidez, deu?
— Eu…
Yanassa chiou e virou Hanani para que ficassem de frente.
— Me escute. Trazer honra para o seu clã… ou para o Hetawa, seja qual
for… isso faz de você uma mulher. Alegrar-se com a própria beleza, dominar
o poder do seu corpo, tomar conta do mundo ou pelo menos da parte dele
que está por perto… Os cordéis apenas marcam as etapas mais óbvias. —
Ela deu um sorriso pesaroso a Hanani. — Eu sempre disse que deveria
haver mais cordéis: um por suportar tolos, um para cada criança insolente…
mas ai de nós, porque aí as nossas cabeças ficariam sobrecarregadas de
cordéis vermelhos.
Hanani não pôde deixar de sorrir ao ouvir isso, embora em pouquíssimo
tempo sentisse de novo um aperto na garganta. Ela engoliu em seco e
deixou os cordéis voltarem a se misturar com o cabelo, e decidiu deixar sair
outra coisa também.
— Yanassa, obrigada. Ainda existem muitas coisas que eu não entendo
sobre você, mas você foi gentil comigo e isso é o mais importante. — Uma
ideia lhe passou pela cabeça; ela fez um gesto, apontando para a tenda. —
Todas essas coisas que eu tenho. Não posso levar de volta comigo. Posso dar
para você?
Yanassa sobressaltou-se, arregalando os olhos.
— Você me daria toda essa riqueza? Mas eu nem sou do seu clã!
— De onde eu venho, família é uma questão de coração, não de laços de
sangue. Você é minha amiga, a única amiga mulher que já tive. Isso tem
muito valor para mim, vale mais do que a riqueza.
Yanassa chacoalhou a cabeça e inclinou-se para a frente para abraçá-la.
— Isso é muito acertado — disse ela no ouvido de Hanani. — Qualquer
mulher pode enfrentar o mundo sozinha, mas por que deveríamos?
Hanani abraçou-a com força, tentando não desejar o que não era possível
e notando que conseguia apenas em parte.
Finalmente, Yanassa a soltou, fungando e esfregando os olhos com uma
manga de blusa perfumada.
— Bem. Mais um pouco disso e o exército vai deixar você para trás.
Hanani aquiesceu com a cabeça, incapaz de falar, e virou-se para
terminar de arrumar as coisas. As sacolas estavam apenas parcialmente
cheias quando ela terminou, embora houvesse colocado ali suas vestimentas
do Hetawa, seus pequenos itens de higiene pessoal e ornamentos de cura, e
os pacotes de ração que Yanassa trouxera do intendente da tribo para a
viagem.
— E isso aqui? — perguntou Yanassa, erguendo a caixa que dera a
Hanani para guardar as joias.
— É seu também.
— O quê? Você precisa delas… — Yanassa fez uma careta. — Ah, por
Hananja, eles vão fazer você usar aquela roupa vermelha estúpida outra vez,
não vão?
Hanani fez uma careta, consternada, mas lembrou a si mesma que esse
era o perigo de fazer amizade com uma bárbara.
— Meu papel no Hetawa é o papel de um homem. Em Gujaareh,
quando um homem segue o caminho de uma mulher ou uma mulher segue
o de um homem, essa pessoa deve assumir uma aparência adequada.
Yanassa revirou os olhos.
— Eles pretendem te dar um pênis de barro também e grandes bolas de
bronze? Lembre-se, Wanahomen vai ficar muito zangado se o seu for maior.
E ele vai comparar, acredite em mim.
A ideia era tão absurda, a imagem que trazia à mente era tão ridícula —
e a caracterização que Yanassa fizera de Wanahomen, tão exata — que
Hanani não pôde deixar de rir.
— Não, claro que não!
— Muito bem, então. — Yanassa foi até uma das sacolas, abriu-a e jogou
as joias de Hanani lá dentro. — Já vi os homens da sua terra: eles gostam
tanto de enfeite quanto as mulheres. E aqui… os homens usam pintura nos
olhos, não usam? Isso significa que você também pode usar. — Ela jogou
cosméticos por cima das joias.
Hanani não sabia se ria ou se resmungava.
— Os homens não usam tintura nos lábios, Yanassa.
— Eles que comecem a usar, então!
Fechando o alforje, Yanassa foi até Hanani e pegou as mãos dela.
Demorou um pouco para Hanani lutar contra o riso o suficiente para ver a
seriedade no rosto da mulher banbarrana.
— Não se esqueça de si mesma quando voltar para aquele lugar — disse
Yanassa, os olhos atentos. — Se você deve voltar para eles, volte nos seus
próprios termos. Sirva à sua Deusa do seu jeito.
Hanani ficou séria e desviou o olhar.
— Está tudo bom e certo para os leigos — respondeu ela. — Mas sou
um Servo de Hananja. Como eu posso quebrar a tradição, perturbar a
ordem do Hetawa e ainda alegar que sigo o caminho da paz?
— Você nunca será um homem, Hanani, não importa o quanto aperte os
seus seios. Você não quer ser um homem. E eles podem nunca aceitar você,
não importa o quanto corretamente siga as regras deles e imite o
comportamento deles. Então, por que você não deveria abraçar o que é? E
servir de qualquer maldito jeito que quiser!
Hanani se calou, confusa com a ideia. Só então lhe ocorreu uma coisa: o
que ela fizesse seria considerado um precedente se algum dia outra mulher
procurasse se juntar ao Hetawa. Tudo o que fizesse, tudo o que alcançasse,
estabeleceria o padrão.
E Yanassa estava certa sobre todo o resto. Ela tentara, repetidas vezes,
fazer as coisas da maneira como seus colegas Compartilhadores as haviam
feito. Ela se esforçara mais, treinara por mais tempo, humilhara-se e
reprimira-se em um esforço para ser perfeita… e ainda assim Yehamwy
tivera receio dela. Ainda assim alguns de seus companheiros a viam não
como um Servo de Hananja, mas como uma mulher fingindo ser um.
Não havia paz em continuar fazendo algo que já se mostrara inviável. Às
vezes a própria tradição perturbava a paz e apenas o novo podia suavizar o
caminho.
Ouviu-se um dedilhar na aba da tenda e uma voz de homem chamar o
nome de Yanassa.
— Estou aqui — gritou Yanassa, e um homem jovem, não muito mais
velho que Hanani e com os mais belos olhos com cílios longos sob o véu,
enfiou a cabeça para dentro. Ele falou alguma coisa em chakti e Yanassa
aquiesceu. O rapaz inclinou a cabeça para Hanani também, depois se
retirou.
— Ele é bonito, não é? — Yanassa sorriu para Hanani, que estivera
observando. Ela corou.
— E-ele tem belos olhos.
— Ha! Tire os olhos desse aí, ratinha, ele é meu. O ceramista da tribo,
então ele não vai para a guerra, graças aos deuses. Wana foi o último
guerreiro com quem me envolvi e acabou me levando a ter essa ideia anos
atrás. — Ela se afastou de Hanani e pegou um dos alforjes, indicando que
Hanani deveria pegar o outro. — E os ceramistas podem usar muito bem as
mãos no que se refere a outros tipos de artes…
Hanani arquejou, cobrindo a boca para sufocar uma risada.
— Yanassa!
— Bem, é verdade. — Com um sorriso presunçoso, Yanassa segurou a
aba da tenda para Hanani. — Agora venha comigo e vou mostrar uma
maravilha para você.
Hanani seguiu Yanassa pelo acampamento, acenando com a cabeça para
os banbarranos com quem conversara ou a quem curara. Alguns ainda não
respondiam ao seu cumprimento e várias mulheres jovens em particular a
vinham ignorando desde sua primeira noite com Wanahomen. Mas houve
mais pessoas que acenaram para ela do que pessoas que viraram as costas, e
Hanani se surpreendeu ao perceber quantas ela passara a conhecer, mesmo
que pouco. Estivera entre eles durante menos de um mês. Parecia muito
mais.
Elas chegaram à saliência que dava uma ampla visão para o cânion, onde
Hanani parou, admirada.
O cânion estava cheio de uma parede a outra e dos dois lados do rio de
fileira após fileira de homens. O que ela estava vendo devia ser só uma
porção do todo, pois eles estavam se locomovendo devagar enquanto saíam
em fila do cânion para começar a viagem. Hanani quase conseguia sentir o
cheiro da avidez deles para lutar, pairando no ar como a poeira levantada
pelos cascos dos cavalos. Era uma sensação bastante perturbadora… e,
contudo, Hanani não conseguia desaprová-la. Em vez disso, para sua grande
surpresa, ela se sentia empolgada, esperançosa. Com certeza Gujaareh seria
libertada com a ajuda daqueles guerreiros. Com certeza eles poderiam
restaurar a paz no território por mais mil anos.
Yanassa lhe deu um susto terrível ao pôr a mão em alguma dobra
invisível de sua roupa e pegar uma faca. Ela a ergueu sobre a cabeça e soltou
um grito estridente e melodioso: “Bi-yu-eh!”. Antes que Hanani pudesse
entender o que ela estava fazendo, outros gritos se ergueram à sua volta e ela
olhou ao redor e viu que a maioria das mulheres da tribo havia vindo se
juntar a elas na saliência para ver o exército partir. Elas também ergueram
armas e soltaram aquele grito sobrenatural.
Alguém tocou o braço de Hanani, e ela se virou e viu Hendet ao seu
lado.
— Grite — falou Hendet em seu gujaareen baixo e aristocrático. — Pela
vitória dos guerreiros. Pela paz e por poucas baixas, se isso a agrada mais, e
por um fim rápido para essa bagunça toda. Pense nisso como uma prece…
mas grite. — E, para choque de Hanani, Hendet também ergueu a voz em
um grito mais profundo, embora não soasse menos bárbaro. Algo em suua.
Parecia um costume estranho, mas Hanani entendeu o significado dele.
Ela não tinha nenhuma arma, uma vez que se recusara a levar uma mesmo
depois do incidente com Azima. Essas coisas não tinham outro propósito
que não causar dor, em sua opinião. Mas ela matara Azima apenas com a
mão, não matara? A magia era tanto uma ferramenta útil quanto uma arma
letal, nada diferente de uma arma, apesar de ser um presente da Deusa.
E então, hesitante, ela levantou a mão. Fechou os olhos, tomou fôlego,
deixou de lado o decoro e se juntou à despedida das mulheres. Ela gritou o
nome de Hananja e transformou a palavra em uma oração, pensando:
Permita que volte a haver paz em breve, para mim e para todas estas pessoas, e
quando a Senhora tiver feito isso, não tire mais nada de mim.
Quando ficou sem ar e os gritos das outras mulheres começaram a se
dissipar, Yanassa segurou seu ombro. Curvando-se sobre as mãos para se
despedir de Hendet, que respondeu à mesura com uma graça majestosa,
Hanani e Yanassa correram para as escadas e desceram ao nível do chão.
Tassa estava esperando ao lado do curral, segurando a rédea do cavalo selado
de Hanani e parecendo ansioso. Ele e outros dois meninos logo ajudaram
Hanani a amarrar os alforjes. Depois Hanani montou em Dakha, que bateu
os pés, impaciente para ir embora com os companheiros. Os últimos
guerreiros estavam começando a passar, seguidos pelos ferradores e pelos
caçadores e por outros que haviam escolhido viajar com o exército para dar
apoio.
Finalmente pronta, Hanani olhou para Yanassa e Tassa com um aperto
na garganta.
— Yanassa…
Yanassa chacoalhou a cabeça.
— Sem despedida. Traz má sorte.
Hanani aquiesceu, mas não pôde resistir a pelo menos uma bênção, se
não uma despedida.
— Ande na paz Dela no sonho e na vigília, Yanassa. Saiba que vou ver
você de novo em um ou na outra.
Yanassa sorriu.
— Você vai me ver na vigília, garota boba. Quando Wana tiver a cidade
de volta, pretendo ir lá para fazer negócios e ficar rica, e eu prometo, vou
procurar você no seu Hetawa. É melhor você estar usando pelo menos
brincos! Agora vá.
Engolindo em seco e endireitando a postura como convinha tanto a uma
mulher de valor como um Servo de Hananja, Hanani virou-se e saiu
cavalgando para se juntar ao exército.
40
ALIANÇA
PAZ ROMPIDA
No quarto dia do ano novo, o pôr do sol trouxe uma grande mudança a
Gujaareh.
A batalha começou com um rumor de fim de tarde, que rapidamente se
transformou em alarme. Uma trilha de poeira fora avistada contra o
horizonte, diminuindo em vez de aumentar com a proximidade, e ela
acabou se tornando por fim um exército passando dos poeirentos sopés das
colinas para as áreas cultiváveis mais úmidas, depois acompanhando as
veredas de irrigação rumo à cidade. Ele chegaria em uma questão de horas.
Unidades kisuati que haviam se dispersado pela cidade para manter a paz
responderam rapidamente quando os mensageiros trouxeram novas ordens
do Yanya-iyan. Algumas foram até os muros para a defesa; outras se
prepararam para defender os defensores, cientes de que a cidade
representava um perigo maior do que o exército do lado de fora. Outras
ainda foram ao Yanya-iyan, para lá organizarem as forças para a maior
batalha de todas.
Quando os rumores se tornaram relatos confirmados, os cidadãos de
Gujaareh saíram para as ruas, reunindo-se em mercados e parques e praças
de dança. Muitos haviam levado armas ou ferramentas que poderiam servir
como armas; a maioria não levara nada além de sua raiva. Isso se mostrou
formidável o bastante, uma vez que os soldados kisuati recuaram. Os
soldados de má sorte ou lentos demais se viram cercados por turbas de
cidadãos que apenas um mês antes teriam sido facilmente intimidados.
Agora essas mesmas turbas espancavam homens até a morte ou os
despedaçavam e carregavam os pedaços ensanguentados pelas ruas como
troféu. O mesmo destino esperava quaisquer civis kisuati que não
houvessem visto os sinais de alerta e fugido com antecedência. Lojas de
mercadores foram saqueadas. As casas de vários negociantes foram
queimadas com mulheres, crianças e pessoas escravizadas ainda lá dentro.
Cidadãos gujaareen caíam também, principalmente por conta das espadas e
facas e flechas dos soldados, mas havia muito, muito mais deles do que dos
kisuati e, para cada gujaareen que morria, outros quatro vinham lutar no
lugar dele ou dela.
E em meio às multidões raivosas andavam aqueles que estavam
esperando exatamente por essa circunstância. Nos degraus do Hetawa, os
Professores pregavam a turbas entusiastas e as exortavam a ser tão rápidas e
decisivas quanto os Coletores em sua violência e a não prolongar o
sofrimento dos inimigos mais que o necessário. No portão oeste, guerreiros
da casta militar vestidos como cidadãos comuns atacaram os kisuati,
encorajando multidões que gritavam a ultrapassar as posições defensivas.
Dando um apoio silencioso, porém decisivo, as Irmãs de Hananja atiravam
nos arqueiros kisuati a partir das entradas de lojas e cúpulas de timbalin.
Seus confrades do Hetawa do caminho dos Sentinelas emboscavam e
desarmavam reforços a partir das sombras das vielas, impedindo que os
kisuati formassem uma defesa eficaz. Eles também salvavam das turbas os
agora indefesos sobreviventes dessas emboscadas quando podiam, embora
nem sempre fosse possível. O povo de Gujaareh estava zangado demais e
não havia muita paz no coração deles.
Enquanto a escuridão chegava e as ruas ardiam, os últimos defensores do
portão perderam para um grupo de meninos que mal haviam chegado à
puberdade armados com tijolos e cacos de cerâmica quebrada. O portão foi
imediatamente aberto e, em menos de uma hora depois, o primeiro de três
mil salvadores começou a cavalgar pela cidade. A vanguarda era composta
por bárbaros ferozes com vestes pálidas de deserto que brandiam espadas
reluzentes e soltavam gritos crescentes de vitória enquanto se espalhavam
pelas ruas. Esses gritos foram logo sufocados pelos aplausos dos próprios
gujaareen à medida que o líder dos banbarranos avançava e se espalhava a
notícia de que ali estava enfim o Avatar de Hananja. O Príncipe há muito
perdido de Gujaareh: um belo jovem de aparência nobre carregando a
espada do Sol da Manhã.
Ele parou o cavalo no centro de um mercado lotado, olhou para a
multidão que o observava com a respiração contida e disse quatro palavras
que percorreram todas as ruas e vizinhanças à velocidade do sonho:
— Eu voltei para casa.
***
***
***
RETORNO
***
A BATALHA DA CARNE
A BATALHA DA ALMA
***
***
***
A BATALHA DO SANGUE
Tiaanet andou sozinha pela cidade com a faca do caçador na mão. As ruas,
povoadas apenas pela fumaça remanescente e pelas sombras saltitantes,
ecoavam levemente o barulho dos seus pés calçados com sandálias. Várias
vezes ela ouviu outros passos ou vozes nas ruas adjacentes, mas nenhum
deles chegou perto. A cidade ainda estava zangada, mas não com ela, então
a deixaram em paz.
Ela deixara o corpo de Tantufi para trás, naquele quartinho, para os
membros do templo o encontrarem. Eles veriam a carne negligenciada e
cheia de cicatrizes da criança e demonstrariam bondade, talvez até
contratando pranteadores para chorar as lágrimas que ninguém mais
derramaria. Talvez fossem usar a magia deles para ver de algum modo como
haviam sido as suas últimas horas; Tiaanet ouvira falar que eles podiam
fazer isso. Então talvez pudessem ver que Tantufi gritara pela mãe uma vez
das profundezas do sono. Talvez vissem que Tiaanet erguera Tantufi nos
braços depois de encontrar o rosto dela coberto de lágrimas; veriam que
Tantufi se aconchegara mais perto, enterrando o rosto no seio da mãe e
soltando um suspiro de profundo contentamento. E talvez experimentassem
aquele terrível e magnífico momento em que alguma força inexplicável
perpassou Tantufi e, através de Tantufi, chegou a Tiaanet. Aquela força
tocara velhas e profundas cicatrizes dentro de Tiaanet e as suavizara um
pouco, talvez diminuindo uma ou duas das mais antigas e espessas. Mas,
quando aquele momento passou, havia uma nova ferida viva para substituí-
las, pois Tantufi estava morta nos braços de Tiaanet.
Ela virou uma esquina, entrando no distrito alta-casta.
Os soldados kisuati haviam deixado o Hetawa quando ela foi embora.
Teria sido fácil para Tiaanet ficar onde estava e esperar que os Servos de
Hananja a encontrassem; ela não tinha mais motivos para temê-los com
Tantufi morta. Mas, em vez disso, quando a Lua dos Sonhos começou a
segunda metade de seu percurso noturno pelo céu, Tiaanet saiu do Hetawa
passando pela Casa das Crianças vazia. Seu caminho serpenteou desde
então, principalmente para evitar áreas de fogo e barulho, mas ela soubera
desde o início aonde pretendia ir.
A casa da cidade estava escura quando ela chegou. Ela se preparara para
usar a chave escondida na área para convidados — a maioria dos gujaareen
não trancava suas portas, mas Sanfi sempre exigira isso —, mas a porta
principal se abriu quando ela tentou. Ela a fechou e ficou ouvindo na
entrada por um instante. Vinham sons furtivos dos corredores da parte de
trás da casa e, ao fundo de um, ela pôde ver uma luz tênue. Uma única
lamparina, provavelmente, a chama mantida baixa por alguém que esperava
evitar a atenção dos vizinhos.
Tiaanet caminhou em direção à luz.
Seu medo voltara. Esse fora o desafortunado efeito colateral do poder
que matara Tantufi… ou talvez fosse obra de Tufi, de algum modo. A noção
confusa que a criança tinha de um presente. E talvez algum dia Tiaanet
agradecesse a volta das emoções que perdera tanto tempo antes, mas não
agora. Não com o coração martelando em seus ouvidos e memórias
desagradáveis desfilando atrás de seus olhos.
Mas não seria aquilo adequado? Ela parou à entrada do estúdio,
observando em silêncio enquanto o pai revirava papéis de folha de junco e
resmungava para si mesmo. Ao longo de todos os anos de tormentos do pai,
Tiaanet se recolhera à ausência de emoções, mas Tantufi não tinha esse
refúgio. Se Tiaanet houvesse mantido sua autodepreciação, poderia ter
vencido a inércia que a mantinha obediente à vontade do pai. Uma boa mãe
não teria encontrado de alguma maneira a chave que Sanfi usava para
manter sua filha acorrentada? Uma boa mãe não teria contratado seus
próprios assassinos?
Uma boa mãe não teria matado Tantufi ela mesma, se não havia
nenhuma outra forma de escapar de tanto sofrimento?
Tiaanet certificou-se de que a faca estivesse fora de vista atrás da
moldura da porta.
— Pai — disse ela.
Sanfi levou um grande susto, deixando cair com estardalhaço um
pergaminho e quase derrubando a lamparina. Quando ele a viu, porém, o
medo em seu rosto foi substituído pela alegria.
— Tiaanet! Os olhos da Deusa recaíram sobre mim! O que… Como…
Você fugiu dos soldados? Eu fui ao Yanya-iyan, implorei aos Protetores, mas
eles não queriam me escutar…
Tiaanet olhou em volta quando entrou no cômodo. Três dos vasos de
flores haviam sido movidos para o lado ou derrubados, expondo
compartimentos que ela não sabia que estavam lá. Um dos compartimentos
estava aberto; dentro dele, ela pôde ver um pequeno baú vazio. Uma bolsa
aberta — ela pôde ver que havia dinheiro, joias e pergaminhos com um selo
e um nó de propriedade nela — estava no chão ao lado de Sanfi, bem como
uma chave familiar em um barbante comprido.
— Tantufi está morta — falou ela, passando os olhos da chave para o
rosto dele.
Um lampejo de júbilo perpassou seu rosto antes que ele pigarreasse e
fingisse desconforto.
— É, bem, a saúde da sua irmã era…
— Filha, pai. Não tem mais ninguém aqui, não precisamos mentir um
para o outro. — Dobrando o corpo da maneira exata, ela contornou um
banco de madeira, aproximando-se dele. — Minha filha, e sua.
Ele fez cara feia, como sempre fazia quando o lembravam de suas
perversões.
— E a sua mãe?
— Ainda no Hetawa. Eles vão curá-la, imagino, até onde é possível. —
Ela viu-o franzir ainda mais o cenho ao ouvir aquilo, viu-o calcular a chance
de uma Insurret racional contar aos sacerdotes os muitos, muitos crimes de
seu marido.
— Precisamos sair da cidade — afirmou ele por fim, virando-se para
pegar os pergaminhos caídos. — Tenho conhecidos nos vilarejos rio acima e
em Kisua que podem nos ajudar. Pode haver uma forma de salvar os nossos
planos se…
Tiaanet enfiou a faca do caçador kisuati nas costas dele. Ela usou as duas
mãos e movimentou o braço de cima para baixo, embora a faca fosse afiada,
porque precisava ter certeza de que atravessaria as costelas dele.
Ele girou para encará-la, parecendo mais perplexo do que qualquer outra
coisa.
— Tiaanet? — Ele levou a mão às costas e tateou em busca da faca,
depois trouxe a mão de volta para a frente, arregalando os olhos ao ver o
próprio sangue. — O que… Você…
Ela não acertara o coração. Sem demora, antes que ele pudesse se
recuperar, ela o empurrou para trás com as duas mãos. Ele cambaleou para
trás, tropeçou na bolsa aberta e caiu de maneira desajeitada entre os baús e
pergaminhos. Enquanto se esforçava para se levantar, ela pegou um dos
vasos de flor de metal. Era pesado demais para ser erguido, mas ela podia
carregá-lo até ele, o que ela fez.
— Tiaanet! — A confusão dele dera lugar ao medo. Ele se arrastou para
longe dela em pânico, esquecendo-se de todos os seus esforços para ser
discreto. — Tiaanet!
Ela deixou cair o vaso. Ele ergueu um braço diante do rosto no último
instante, o que fez o vaso pousar sobre a sua garganta e o seu peito em vez
de acertar sua cabeça. Ele soltou um gemido forte, inarticulado e
borbulhante, provavelmente quando a faca penetrou mais fundo no pulmão
ou em outro órgão, mas ainda estava tentando se libertar, embora
debilmente agora. Tiaanet observou por um momento, ponderando, e então
foi sentar-se sobre o vaso.
A lamparina se apagou durante o tempo que levou para o seu pai morrer.
A luz da Sonhadora entrando pela janela alta era um substituto suficiente,
mas Tiaanet descobriu que não gostava de observar. Observou mesmo assim
porque, de outro modo, nunca saberia ao certo que ele estava morto. Mas,
por mais que se obrigasse a se lembrar das coisas que ele fizera, por mais que
seu coração ecoasse com o ódio que ela jamais ousara sentir antes, sua visão
se turvou enquanto ela o via gargarejar e tentar respirar. Suas mãos tremiam
quando ela enfim tocou a garganta dele para ver se o coração havia parado.
Ficou sentada sobre o vaso por mais um tempo só para garantir, mas enfim
teve de se levantar quando sentiu náusea.
Morto. Ele estava morto. Morto. Morto.
Depois da náusea, ela chorou por algum tempo.
Quando se recuperou, pegou a bolsa e encheu o restante do espaço com
roupas para viagem e comida. Pegou a chave da corrente de Tantufi
também, amarrando-a ao redor do pescoço e escondendo-a no brocado do
vestido. Esse não foi um gesto pensado. Ela não esperava lembrar-se da filha
pela ferramenta usada para escravizá-la. Simplesmente pareceu certo e, para
Tiaanet, que sobrevivera o tempo que sobrevivera confiando na razão e não
na emoção, sendo mais esperta que o pai, quando não o derrotando, deixar o
sentimento guiar suas ações era novidade e, de certo modo, um alívio.
À entrada ela parou, abruptamente atrapalhada, pois não pensara além
da morte do pai. Mas, quando a última porção da Lua dos Sonhos
desapareceu entre os telhados da cidade, ela alçou o olhar e notou a estrela
mais alta da constelação chamada Enlutada. Ela só aparecia durante a
primeira estação de um novo ano; a Lua da Vigília já estava se esgueirando
para fora do esconderijo para encobri-la. Por enquanto, todavia, a estrela
brilhava mais do que qualquer outra, baixa no horizonte oeste.
Virando-se para segui-la, Tiaanet começou a andar.
46
PRÍNCIPE DO OCASO
***
***
UM SERVO DA PAZ
***
***
Ele não gritou. Não exigiu explicações. Mais tarde, Hanani descobriria que
Yanassa, Hendet, Ezack e Unte estavam por trás disso. Eles haviam se
recusado a levar Wanahomen até o acampamento dela até ele prometer ficar
calmo. Ele não estava bravo o suficiente para declarar guerra contra as seis
tribos, mas foi por pouco.
Em vez disso, sentou-se ao lado de Hanani na saliência, os dois deixando
as pernas dependuradas sobre uma queda de uns nove metros. Ele estava
resplandecente com um enfeite de contas lápis-lazúli na cabeça, luvas feitas
de trançado e um manto de brocado que chegava até o chão. Ela usava
apenas uma simples vestimenta bege; isso a fez sentir-se uma pavoa sem
graça, dada a plumagem brilhante dele.
Ainda assim, ele continuava olhando para ela. Ela não sabia o que isso
significava.
— Me desculpe — disse ela por fim.
Ele suspirou.
— Te pressionei demais e muito depressa. Eu é que devo um pedido de
desculpas.
Essas palavras surpreenderam Hanani, pois ela não esperara que ele
pedisse desculpas por nada, menos ainda por aquilo. Ao vê-la boquiaberta,
em estado de choque, Wanahomen fez cara feia, e Hanani se virou com
rapidez para esconder seu sorriso. Ela sentira uma falta tremenda das caras
feias dele.
— Eu desconfiei que você poderia estar aqui — comentou ele quando ela
se recuperou. — Aonde mais você poderia ter ido com tanta facilidade? Mas
não vim porque estava zangado.
— Compreensível — falou Hanani.
— E porque eu esperava que você fosse mudar de ideia algum dia e
voltar para mim.
Ela olhou para as sandálias, que pendiam sobre o vale, e chacoalhou-as
um pouco.
— Como eu fiz, pelo menos em parte.
— O que então você quer de mim? — Wanahomen se virou para fitá-la,
a expressão cautelosa e soberba, mas ele ainda não perdera de todo sua
personalidade banbarrana. Sua tensão estava nítida no modo como seus
olhos nunca desviavam do rosto dela e na força com que suas mãos
seguravam a saliência, os nós dos dedos empalidecendo.
— Eu, eu gostaria de voltar a ser sua amante — respondeu ela, sentindo
as bochechas pegarem fogo. — E sua amiga, e talvez mais. Se me quiser.
A desconfiança que passou pelo rosto dele foi dolorosa de ver.
— Depende — disse ele em um tom neutro demais. — Você me ama?
Ela confirmou com a cabeça e o viu relaxar.
— Você fazia parte do espaço vazio dentro de mim — explicou ela. —
Eu não percebi no começo porque o vazio era muito grande. Mas o Coletor
Nijiri estava certo: o tempo e os amigos trouxeram alívio e agora eu vejo que
sou mais feliz com você do que sem.
Ele flexionou um músculo do maxilar.
— Se é esse o caso, então peço que se case comigo. — Quando Hanani
olhou surpresa, ele cerrou ainda mais o maxilar. Ela havia se esquecido da
teimosia dele. — Sinto necessidade de ter laços com você, Hanani, por
algum motivo incompreensível.
Ela quase sorriu, mas o momento era sério demais para isso.
— Estou disposta a me casar, apesar de não saber nada sobre como é o
casamento. Eu não deveria conhecer as suas outras esposas primeiro? Para
ter certeza de que haverá paz entre nós, pelo menos.
— Não tenho outras esposas.
Hanani franziu a testa. Passara-se um ano desde a libertação de
Gujaareh e qualquer príncipe tinha inimigos.
— Não é… bom, irresponsabilidade o Príncipe do Ocaso não ter
esposas? Nem herdeiros?
— Eu já tenho um filho da minha carne e uma esposa que me ama e me
quer, mas os dois são meio selvagens. Eles fogem para o deserto sempre que
eu tento corresponder o amor deles. Se eu fosse um homem menos
confiante, poderia ficar preocupado.
Hanani baixou a cabeça para ocultar o sorriso. Wanahomen enfim se
revelara um pouco. Ele tocou a mão dela, que estava sobre a coxa, depois
deslizou os dedos pela perna abaixo, puxando as saias para cima. Ela corou
quando percebeu o que ele estava procurando: a tornozeleira de âmbar, que
ela ainda usava. Ao vê-la, ele pareceu satisfeito e depois deu um suspiro
profundo.
— Não fuja de mim de novo, Hanani — pediu ele, sua voz quase um
sussurro.
Ela pôs a mão dela sobre a dele.
— Não vou fugir.
— E você vai ser a minha primeira esposa?
— Eu… — Isso a sobressaltou; as implicações de ele não ter outras
esposas haviam passado batido. — Primeira esposa? Mas eu não sou alta-
casta. Não tenho conexões importantes, minha riqueza entre os banbarranos
é uma ninharia pelos cálculos gujaareen.
— Eu não me importo.
— Mas…
— Mulher, eu não me importo. Mas, se agradar você, as pessoas comuns
vão ficar felizes por eu ter tomado uma primeira esposa baixa-casta. Vai
deixar claro que eu não esqueci quem me ajudou a voltar ao poder. E o
nosso casamento pode simbolizar a reconciliação entre o Hetawa e o Ocaso
ou algo do tipo. — Ele fez um gesto impaciente. — Bom, qual é a sua
resposta?
Ela não conseguiu se forçar a falar. Havia um aperto em sua garganta,
mas não era causado por tristeza, então ela fez que sim com a cabeça. Ele
soltou um suspiro longo e pesado, a última tensão visivelmente deixando seu
corpo.
— Vou organizar uma cerimônia, então. Algo rápido, senão você muda
de ideia, e com bastante vinho, já que sei que os banbarranos vão
transformar a festa em uma loucura. Talvez duas cerimônias: uma na cidade,
para os membros do templo poderem comparecer, e uma aqui… — Ele
parou de falar, pensando. — Depois você prefere morar no Yanya-iyan ou
em Kite-iyan?
Surpreendeu Hanani o quanto aquela decisão foi fácil. Ou talvez só fosse
fácil por comparação.
— Coloque as suas outras esposas nos palácios. Vou ficar aqui e ser
curadora dos banbarranos.
— Ficar e ser… — Ele a encarou, incrédulo. — A primeira esposa de
um Príncipe não deveria macular as mãos com trabalho.
— Uma primeira esposa que nasceu na casta camponesa, e foi criada
pelo Hetawa, e é aliada dos banbarranos, naturalmente se sentiria realizada
com o trabalho que serve à Deusa e aos demais. Isso não deixaria as pessoas
comuns felizes também?
— Mas e se eu quiser ver você, em nome dos pesadelos?
Ela encolheu os ombros.
— Então venha para cá. Não é uma viagem mais longa do que para o
Kite-iyan, é? Mas aqui você pode ter que se privar de servos: esta saliência
não é grande o suficiente para outra tenda…
Ele resmungou alto o suficiente para a sua voz ecoar na parede do
cânion.
— Pelos demônios e pelas sombras, você é realmente a mulher mais
estranha que eu já conheci! Não faz sentido nenhum eu te querer.
— Fico feliz que você me queira — falou ela bem baixinho. Ele olhou
para ela e a raiva desvaneceu de seu rosto. Então voltou a pegar a mão dela e
ela não retirou.
Eles contemplaram as sombras se alongarem nas paredes vermelhas do
Merik-ren-aferu em silêncio. Uma transição adequadamente pacífica para o
começo de uma nova vida. Então Hanani se levantou, oferecendo a mão
para ajudar Wanahomen a fazer o mesmo. Ele fez uma carranca de leve
irritação em princípio, depois finalmente aceitou e deixou que ela o ajudasse.
Quando a luz se apagou do céu, ela o levou para a sua tenda, onde ele a
puxou para perto e houve mais silêncio. Isso era agradável a Hananja, pois
mesmo o menor ato de paz é uma bênção sobre o mundo.
GLOSSÁRIO
Acólitos: garotos que têm entre doze e dezesseis inundações e foram
escolhidos para seguir o Serviço de Hananja, mas que ainda não
fizeram o juramento para dedicar-se a um dos quatro caminhos.
Alta-casta: as famílias reais gujaareen, shunha e zhinha; em Kisua,
inclui soonha e caçadores.
Anzi Seh Ainunu: um general de Kisua, designado para
supervisionar a ocupação de Gujaareh.
Aprendizes: jovens que passaram para a idade do amadurecimento e
começaram o treinamento superior na vocação adulta.
Atador: cintas usadas para manter o sobrepano no lugar.
Auréola do Sol Poente: símbolo da autoridade e da divindade da
linhagem do Ocaso. Emblema que consiste em gravuras alternadas
em vermelho e dourado no formato de raios ao redor de um
semicírculo de ouro, localizado sobre um bastão entalhado em nhefti
branco.
Baixa-casta: membro de qualquer das castas na base da pirâmide
social gujaareen. Inclui agricultores e empregados.
Banbarra: uma tribo do deserto, antigos inimigos de Gujaareh.
Consiste em seis tribos autônomas que dominam o comércio nos Mil
Vazios. Em disputa com os shadoun.
Bílis onírica: um dos quatro humores oníricos que formam a base da
magia gujaareen. Extraída de pesadelos, útil para desencorajar o
crescimento nocivo e destruir tecidos desnecessários do corpo.
Casta: as classes sociais/vocacionais de Gujaareh e de Kisua,
atribuídas no nascimento. Um indivíduo só pode transcender sua
casta se entrar no serviço público (como o Hetawa ou o serviço
militar).
Ceifador: narcomancista cuja alma foi devorada pela ânsia por sangue
onírico. Dotado de grande poder e grande corrupção. Abominação.
Cidade de Hananja: outro nome para a capital de Gujaareh.
Cidade dos Sonhos: nome coloquial para a capital de Gujaareh.
Também conhecida como “Cidade de Hananja”, o nome oficial é
apenas “Gujaareh”.
Cirurgia: um ritual de cura perigoso, mas periodicamente necessário,
que apenas os Compartilhadores plenos e os aprendizes mais
avançados do caminho podem invocar.
Colarinho: item de decoração usado em Gujaareh e ocasionalmente
em Kisua. Consiste em uma faixa ao redor do pescoço e ornamentos
pendentes que formam drapeados em torno do peito e dos ombros.
Coletores: um dos quatro caminhos no Serviço de Hananja,
responsáveis por fazer cumprir a Lei.
Compartilhadores: um dos quatro caminhos no Serviço de Hananja,
responsáveis pela saúde da cidade. Usam narcomancia e, às vezes,
cirurgia e fitoterapia.
Conselho dos Caminhos: junto ao Superior, forma o conselho
administrativo do Hetawa. Inclui membros seniores dos Sentinelas,
Professores e Compartilhadores, bem como uma intermediária (sem
direito a voto) das Irmãs. Por cortesia, os Coletores trabalham sob a
autoridade desse conselho, embora oficialmente sejam autônomos.
Cordéis de marcação: para as mulheres banbarranas, uma série de
cordéis decorativos para marcar as etapas da vida: menarca, perda da
virgindade, parto e menopausa.
Cura: qualquer arte de cura não mágica, inclusive a fitoterapia e a
cirurgia. Em Gujaareh, essas artes são praticadas principalmente
pelos Compartilhadores de Hananja.
Deusa, A: em Gujaareh, outro termo para Hananja. Em Kisua, pode
referir-se a qualquer divindade feminina.
Dízimo: a oferenda devida por um cidadão gujaareen a Hananja.
©Laura Henifin
Publicado em comum acordo com a autora e The Knight Agency, através de Yañez, parte da
International Editors’ Co. S.L. Literary Agency.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares, organizações e situações são
produtos da imaginação do autor ou usados como ficção. Qualquer semelhança com
fatos reais é mera coincidência.
ISBN: 978-65-86015-78-2
1. Literatura americana — Romance. 2. Ficção americana. I. Storto Pereira, Aline. II. Título.
CDD 813
Todos os direitos desta edição reservados à:
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Produzido no Brasil
2023