Estudos de Linguistica Historica-CLARINDA-MAIA
Estudos de Linguistica Historica-CLARINDA-MAIA
Estudos de Linguistica Historica-CLARINDA-MAIA
ESTUDOS DE
LINGUÍSTICA
HISTÓRICA
mudança e estandardização
IMPRENSA DA
UNIVERSIDADE
DE COIMBRA
COIMBRA
UNIVERSITY
PRESS
Nesta obra reúne-se um conjunto de trabalhos que, diversos entre si, se
I nfografia da C apa
Mickael Silva
P ré ‑impressão
Jorge Neves
P rint by
KDP
ISBN
978-989-26-1755-8
ISBN digital
978-989-26-1756-5
DOI
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
clarinda de azevedo maia
SECÇÃO I
SECÇÃO II
5
Para a história de algumas perífrases verbais no discurso metalinguístico
português: de estar, andar e ficar + ‘gerúndio’ a estar, andar e
ficar + ‘infinitivo’ preposicionado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
maria helena pessoa santos
SECÇÃO III
6
Particularidades linguísticas numa aldeia do interior norte
de Portugal: o léxico do meio rural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 451
alexandra maria fernandes baltazar
7
(Página deixada propositadamente em branco)
CLARINDA DE AZEVEDO MAIA
Centro de Estudos de Linguística Geral e Aplicada
da Universidade de Coimbra (CELGA-ILTEC)
[email protected]
ORCID: 0000-0002-5887-3715
A p r e s e n ta ç ã o
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_0
de pesquisa em curso no âmbito da Linguística Histórica do português e de
alguns resultados obtidos.
Pretendendo-se, simultaneamente, que este fosse um colóquio aberto,
previu-se a possibilidade de apresentação de comunicações por toda a comu-
nidade científica nacional e internacional, devendo, no entanto, os trabalhos
enquadrar-se nas áreas temáticas propostas, designadamente a descrição de
mudanças relevantes na trajetória diacrónica do português que apresentassem
novas configurações empíricas ou que tivessem contribuído para o desenvol-
vimento de normas diferenciadas do português, aspeto que contribuiria para
a explicação histórica do pluricentrismo da língua.
No âmbito da renovação da Linguística Histórica que se tem vindo a ope-
rar nas últimas décadas, verificaram-se significativos progressos no modo de
considerar e explicar o processo que continua a ser o principal problema
de debate na Linguística Histórica e na história de cada língua particular, a
mudança linguística, ao mesmo tempo que foi também possível progredir no
conhecimento das distintas componentes, fases históricas e dimensões do
processo diacrónico de estandardização. Essa renovação é o resultado não só
dos desenvolvimentos teóricos e metodológicos que se verificaram na Linguís-
tica, mas também do facto de a aplicação de novos princípios teóricos e de
novos instrumentos analíticos a situações linguísticas do passado ter trazido
avanços e soluções para algumas questões e de, simultaneamente, ter posto a
descoberto novos aspetos que careciam de ser analisados e interpretados, o
que constituiu novos desafios para os investigadores.
As novas vias teóricas e metodológicas que se abriram na Linguística nas
últimas décadas correspondentes a novas disciplinas que se revelaram de
grande eficácia na análise linguística sincrónica, a Sociolinguística, a Pragmá-
tica e a Análise do Discurso, tiveram uma enorme repercussão na Linguística
Histórica, tendo contribuído para a sua renovação teórica e para a renovação
dos métodos de análise dos textos de fases pretéritas de cada língua singular.
A possibilidade de aplicar os novos métodos a materiais linguísticos do
passado e a extensão dos seus princípios e instrumentos analíticos à inter-
pretação de processos atestados na história das línguas permitiu a consolida-
ção de disciplinas próprias como a Sociolinguística Histórica e a Pragmática
Histórica. No primeiro caso, apesar de alguns problemas e limitações que os
10
materiais linguísticos do passado oferecem, a disciplina trouxe contributos
significativos em âmbitos fundamentais como o estudo da mudança linguís-
tica e a análise do desenvolvimento histórico de normas standard.
A aplicação dos métodos e ferramentas analíticas da Sociolinguística varia-
cionista à análise de textos escritos de fases pretéritas coloca ao investigador
alguns problemas decorrentes das próprias limitações dos dados linguísticos
do passado. Contudo, os trabalhos já realizados ao longo de três décadas
proporcionaram o desenvolvimento de princípios metodológicos que contri-
buíram para a solução de alguns dos problemas e revelaram a viabilidade de
acompanhar e reconstruir processos de mudança nas suas diferentes etapas:
foi possível ultrapassar a explicação tradicional da mudança linguística como
um resultado ou como simples passagem de um estado de língua a outro e
aceder a explicações desse fenómeno nuclear da Linguística Histórica como
um processo e desenvolver análises de tipo processual. Através de uma aná-
lise desse teor, pôde distinguir-se, também em relação aos dados linguísti-
cos do passado, a origem, a inovação, e a difusão da inovação que cria um
período – que pode ser plurissecular – de variação, resultante da convivência
entre a variante inovadora e a variante mais antiga. Evidenciou-se a relação
entre a mudança linguística e a variação, atualmente um conceito-chave para
explicar não apenas o comportamento linguístico do falante como o devir
histórico das línguas.
Por outro lado, assistiu-se também nas últimas décadas ao desenvolvi-
mento de alguns conceitos teóricos no âmbito da Romanística alemã que se
revelaram de grande capacidade explicativa para a análise das relações entre
o material linguístico e o contexto social e pragmático.
Uma vez que o material linguístico se molda de forma diferente de acordo
com a tradição discursiva a que se adscreve, na sua aplicação à Linguística
Histórica, nomeadamente de algumas línguas românicas, têm-se vindo a estu-
dar processos concretos de mudança, inclusive de mudanças sintáticas e pro-
cessos de gramaticalização, no quadro das tradições discursivas, tendo em
vista avaliar o peso de determinada tradição discursiva na aceitação, manuten-
ção ou rejeição de determinada forma ou construção inovadora. Os estudos
realizados permitiram comprovar a relação entre mudança linguística e tradi-
ção textual e a relevância do género discursivo no favorecimento da inovação
11
assim como da sua difusão. Relativamente a algumas mudanças concretas, o
género discursivo pode ser um condicionante desse processo.
Um outro conceito desenvolvido no quadro da Romanística alemã e que
teve grande impacto na consideração dos fatores de mudança linguística foi o
conceito de elaboração linguística, considerada como um processo que con-
tribui para a formação de uma língua histórica de pleno direito, passando
o seu espaço variacional a abranger as exigências de todas as situações de
comunicação, desde as que correspondem à proximidade comunicativa até às
da distância comunicativa. A língua torna-se um meio eficaz de comunicação
para qualquer tradição discursiva ou género textual.
No acesso ao meio gráfico e à cultura escrita das variedades românicas
até determinado momento confinadas às situações de comunicação imediata,
essas modalidades vão progressivamente adquirindo novos âmbitos funcio-
nais até então confinados ao latim e acedem paulatinamente às tradições
discursivas da distância comunicativa. Ao mesmo tempo que se verifica esse
processo de elaboração extensiva, de expansão a outras tradições discursi-
vas, desenvolve-se um outro, intimamente associado a este, de elaboração
intensiva, caracterizado pela ampliação de recursos linguísticos e textuais-
-discursivos que tornam a língua apta para todas as funções comunicativas.
Contrariando uma tendência muito enraizada para considerar a oralidade,
o discurso oral, como a força motora da criação de inovações, observa-se
que também no discurso elaborado se podem gerar inovações: basta pensar
nas inovações no domínio da sintaxe, nomeadamente no desenvolvimento
de processos integrativos correspondentes à hipotaxe, ou no domínio lexical,
sendo a ampliação do léxico obtida por várias vias, designadamente através
do recurso a nomes abstratos ou da introdução de cultismos greco-latinos.
Além de o processo de elaboração poder atuar como um importante fator
de mudança linguística, está também relacionado com o processo de estan-
dardização e, por esse motivo, embora sob outras designações, o reforço das
possibilidades de comunicação da variedade linguística que no decurso do
tempo se transformará em standard mediante o incremento de novas estru-
turas e de novo vocabulário foi considerado, desde as primeiras tentativas de
sistematização do estudo da estandardização, como uma importante proprie-
dade desse processo diacrónico.
12
A investigação realizada nas últimas décadas tem salientado que a estan-
dardização é um processo particularmente complexo vinculado com determi-
nados comportamentos psicológicos e afetivos (crenças e atitudes dos utentes
da língua) e dependente de circunstâncias extralinguísticas (sociais, políticas
e económicas) e que, além disso, abrange uma diversidade de dimensões (a
dimensão ideológica, a dimensão linguística e a dimensão sociolinguística), as
quais exigem diferentes perspetivas no seu estudo. Por essa razão, a análise
do processo que acompanha o desenvolvimento histórico de determinada
norma standard requer o estabelecimento de relações entre aspetos linguís-
ticos e aspetos sociais e psicossociais, constituindo um domínio privilegiado
para a investigação interdisciplinar em que intervêm distintas disciplinas que
se ocupam do estudo da linguagem e das línguas particulares. Um lugar rele-
vante tem cabido à Sociolinguística que trouxe importantes contributos para
o estudo deste aspeto da história das línguas, nas várias fases por que passa
uma determinada variedade antes da sua promoção à categoria de norma
standard. O seu contributo é sobretudo significativo para a compreensão da
seleção de uma dada variedade assim como da difusão social e geográfica dos
traços correspondentes à variedade selecionada e das suas consequências.
13
Conjugam-se, nesta obra, diferentes tipos de contribuições. Alguns textos,
apoiados em trabalho predominantemente reflexivo e teoricamente enqua-
drados e fundamentados em modelos e paradigmas atuais, ocupam-se de
questões centrais que, no presente, se equacionam na Linguística e, particu-
larmente, na Linguística Histórica. Alguns representam contributos inovadores
para o conhecimento da mudança linguística, avançando, mesmo, com novas
propostas de análise.
Nalguns dos artigos dá-se conta de linhas de pesquisa e de projetos de
investigação em curso ou desenvolvidos noutras partes do mundo, nomeada-
mente no Brasil, onde o PHPB (Projeto para a História do Português Brasi-
leiro), que implicou dezenas de investigadores, disponibilizou já à comunidade
científica vários produtos editoriais e importantes resultados empíricos.
Noutros textos estudam-se mudanças de estruturas e de usos linguísticos,
apoiando-se as análises em dados empíricos (sobretudo das variedades euro-
peia e brasileira do português), de diferentes sincronias e procedentes de
distintas fontes e de corpora diversos. Nalguns deles, descrevem-se mudanças
que explicam a configuração de normas diferenciadas em Portugal e no Brasil.
Deve relevar-se, além disso, que numa das contribuições se propõem novas
vias de abordagem dos textos de fases pretéritas, orientada para o estudo da
sua estrutura textual-discursiva, através de uma análise pragmática histórica.
Outro conjunto de trabalhos apoia-se nos instrumentos codificatórios do
português e neles se recolhe informação relevante sobre as forças de unifica-
ção e nivelação que conduzem à estandardização e sobre o papel desempe-
nhado pelos agentes da codificação e pelos próprios textos codificatórios na
elaboração da língua e na definição do padrão linguístico. Noutros casos, é
nesse tipo de textos que se obtêm elementos sobre determinados estados de
língua e sobre mudanças linguísticas relevantes na história da língua portu-
guesa, nomeadamente no domínio da sintaxe.
Finalmente, alguns artigos situam-se no âmbito das relações entre o ensino
da língua portuguesa no Brasil e a variação, a mudança e a estandardização:
além de uma reflexão sobre as questões decorrentes da acentuada polariza-
ção sociolinguística resultante de aspetos da sócio-história brasileira, a qual
coloca problemas aos agentes de ensino das escolas públicas do País, analisa-
14
-se, num outro artigo, a situação particular de uma população escolar marcada
por acentuada interferência de variedades de outras línguas.
O volume que agora se põe à disposição da comunidade científica asso-
cia, em suma, no plano teórico e no tratamento de dados empíricos, dois
importantes processos diacrónicos, a mudança linguística e a estandardização:
em conjunto, os trabalhos nele coligidos representam contributos inovado-
res para o desenvolvimento da investigação nesses domínios e enriquecem e
ampliam o conhecimento até ao momento disponível sobre aspetos histórico-
-linguísticos da língua portuguesa. Deseja-se que ele constitua um ponto de
partida para novos estudos sobre a diacronia do português e sirva para sus-
citar novos temas de pesquisa e incentivar a investigação nalgumas das vias
que nele se abrem.
Não queremos terminar esta apresentação sem agradecer às pessoas e ins-
tituições que, de diferentes modos, apoiaram a elaboração deste volume. Em
primeiro lugar, aos autores das várias contribuições assim como aos membros
da Comissão Científica do colóquio que procederam à avaliação crítica dos
textos agora editados.
Agradecemos também o apoio institucional do Centro de Estudos de Lin-
guística Geral e Aplicada da Universidade de Coimbra (CELGA – ILTEC), finan-
ciado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), que impulsionou
a concretização do colóquio, uma iniciativa da Linha Temática «História da
Língua Portuguesa e História da Consciência Linguística», e subsidiou as des-
pesas exigidas pela sua organização e, em parte, pela publicação do volume
dele resultante.
Um agradecimento também à Imprensa da Universidade de Coimbra pela
possibilidade de inclusão deste livro entre as suas publicações.
15
(Página deixada propositadamente em branco)
SECÇÃO I
(Página deixada propositadamente em branco)
CONCEPCIÓN COMPANY COMPANY
Universidad Nacional Autónoma de México
[email protected]
ORCID: 0000-0002-6351-715X
L a s i n ta x i s h i s t ó r i c a d e l a s pa l a b r a s
g r a m at i c a l e s . U n r e t o t e ó r i c o
pa r a e l c a m b i o l i n g ü í s t i c o 1
H i s t o r i c a l s y n ta x o f g r a m m at i c a l
w o r d s . A c h a ll e n g e t o t h e t h e o r y
of l anguage change
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_1
Palabras clave: palabra gramatical, preposición, gramaticalización, reanálisis, analogía,
construccionalización, exaptación, regramaticalización, cambio sintáctico, generalización,
extensión, contexto
Abstract: The paper shows that certain changes consist of the very active spreading
of a form to new contexts, without changing the category or grammatical status of the form.
This kind of change cannot be analyzed within the current theoretical models of language
change, that is, Grammaticalization, Reanalysis, and Analogy. The paper proposes that
spreading to new contexts must be included in theoretical taxonomies of linguistic change.
In addition, context is not only the locus but also a unit of language change. The empirical
evidence is the diachrony of the Spanish preposition a, ‘to’. Throughout the history of Spa-
nish, this preposition pervasively extended to a range of contexts, but the form a, ‘to’, never
changed; it has remained a grammatical preposition, and has always had a basic meaning
of ‘directive telicity towards a goal’. The paper revises various approaches to Grammatica-
lization and Analogy, showing that the spreading of context is a different kind of change.
Keywords: grammatical words, preposition, grammaticalization, reanalysis, analogy,
constructionalization, exaptation, regrammaticalization, syntactic change, context, sprea-
ding of contexts
Este trabajo tiene como objetivo general establecer un diálogo entre datos
diacrónicos sobre palabras gramaticales y teoría de cambio lingüístico, con
la finalidad de poner énfasis en dos aspectos: a) por un lado, mostrar que
una dinámica usual de cambio en aquellas es la extensión y generalización,
y con frecuencia obligatorificación, a nuevas distribuciones y nuevos contex-
tos, invadiendo o usurpando, incluso, espacios funcionales que eran propios
de otras palabras gramaticales, y b) por otro, cuestionar o poner en duda la
validez del modelo teórico de cambio gramatical imperante en las últimas
tres o cuatro décadas, Gramaticalización y su mecanismo básico, reanálisis
o recategorización, modelo que, como se sabe, ha dado cabida a un número
muy diverso de fenómenos y que tiene un alto poder explicativo, pero que,
en mi opinión, debilita su validez cuando se enfrenta a cierto tipo de datos
de corpus, como la diacronía de las palabras gramaticales, sobre todo cuando
los datos se exponen sin condicionamientos teóricos de ninguna naturaleza.
El problema teórico específico que atenderé en este trabajo es el siguiente:
un número no desdeñable de palabras gramaticales en español, en particu-
20
lar, las preposiciones denominadas gramaticales (a, de, y en menor medida
en), tienen un comportamiento diacrónico caracterizado por dos hechos: a)
un altísimo dinamismo sintáctico diacrónico, que genera muchísimas nuevas
funciones, además de preservar, así sea de una manera general y abstracta,
la función y significado etimológicos u originarios, y b) los cambios que se
documentan no pueden ser adscritos, las más de las veces, a ninguno de los
marcos teóricos actuales del cambio lingüístico, ni a Gramaticalización, ni
a Reanálisis, ni tampoco a Analogía, definidos en términos tradicionales, al
menos.
El cambio de las preposiciones gramaticales se puede caracterizar, en resu-
men, por una gran extensión a nuevas construcciones y a nuevos contextos
y, en no pocos casos, por una generalización y obligatorificación de la mar-
cación prepositiva. Siguen apareciendo, como es esperado en diacronía, de
forma consistente y con gran vitalidad, en los contextos etimológicos, ya que
una propiedad usual del cambio sintáctico-semántico es que los valores o fun-
ciones innovadoras conviven al lado de las conservadoras o etimológicas por
siglos, propiedad conocida como estratificación o acumulación.
Este trabajo analiza, de manera específica, la diacronía de la preposición a
en el español, diacronía caracterizada, en esencia, por haber experimentado
numerosos cambios sin que se haya modificado su estatus de preposición
y sin que, en la mayoría de los cambios, se haya producido un cambio de
categoría. Esto es, no ha habido una recategorización ni ha tenido lugar un
reanálisis de la preposición; la palabra a sigue siendo una preposición grama-
tical que conserva su significado básico originario, no obstante los numerosos
cambios experimentados.
Es necesario matizar la generalización anterior. En algunos cambios, los
menos, la preposición a sí ha experimentado una gramaticalización vía rea-
nálisis, con cambio de categoría. Por ejemplo, esta preposición se ha vuelto
un marcador de caso, dativo y acusativo, ya que es obligatoria para marcar las
funciones de objeto indirecto y de objeto directo, respectivamente; en el caso
del directo, el carácter de marcador de caso no se ha extendido totalmente,
ya que aquel para llevar marca prepositiva debe poseer ciertas características
léxicas, + humano, aunque, desde hace siglos, la preposición se está genera-
lizando progresivamente a objetos directos inanimados de todo tipo, prueba
21
clara de que esta preposición, en este ámbito funcional, está a punto de expe-
rimentar de forma total la recategorización: preposición > marca de caso.
Tal dinámica diacrónica es característica de otras palabras gramaticales,
además de las preposiciones gramaticales; por ejemplo, ciertos clíticos pro-
nominales, le y se, el artículo y el posesivo átono muestran una extensión de
contextos similar, sin haber experimentado gramaticalización o reanálisis. No
llegan a la “exuberancia diacrónica” de las preposiciones a o de, pero tales
diacronías similares parecen indicar que existe una pauta de cambio para las
palabras gramaticales, pauta que, hasta donde sé, no ha sido analizada a la
fecha en la bibliografía sobre Gramaticalización ni sobre Cambio Lingüístico
en general.
La pregunta de investigación que guía la exposición y análisis es, por
tanto, la siguiente: ¿cómo dar cuenta de estos cambios con alguno de los mar-
cos teóricos actuales del cambio lingüístico, particularmente con el conocido
como Gramaticalización? La propuesta que realizo a lo largo del trabajo es
que los cambios consistentes en extensión y generalización de distribuciones
y contextos no caben en ninguno de los ángulos de la Gramaticalización, sino
que requieren una caracterización teórica ad hoc, y deben ser incorporados
como un tipo distinto de cambio en las taxonomías y tipologías generales de
cambio lingüístico.
Además de establecer un diálogo entre teoría y datos para decidir qué tipo
o tipos de cambio es la extensión de las palabras gramaticales a nuevos con-
textos y qué conceptos teóricos son aplicables, otros objetivos teóricos de este
trabajo son los siguientes: a) hacer una propuesta de que las formas mantie-
nen su significado básico, general por siglos, el cual garantiza que las nuevas
extensiones y distribuciones no sean azarosas; b) proponer que la unidad de
cambio no es la forma, sino la construcción + contexto específico; c) proponer
que el locus del cambio gramatical es el contexto; d) mostrar que la polisemia
nunca es de las formas ni de las construcciones sino que se trata de amplitud
de nuevos y más contextos, de manera que sí es adecuado hablar de polifun-
cionalidad de los contextos de a pero no es adecuado hablar de polisemia de
la preposición a, y menos adecuado aun sostener, como se ha hecho en no
22
pocas gramáticas de referencia del español, que, dada tal polifuncionalidad,
existen preposiciones vacías o carentes de significado2.
Este trabajo, además de esta breve introducción, está organizado en cinco
secciones. En la primera, apartado 2, expongo los datos correspondientes a
la diacronía de la preposición a y muestro que no se trata de una variedad
de cambios inconexos, sino que siguen tres tipos o patrones recurrentes de
cambio. En el apartado 3 presento las peculiaridades y dificultades teóricas
que enfrenta la sintaxis histórica de una palabra gramatical, cuya diacronía
consiste en ampliar su esfera de empleo a nuevos y más contextos sin reca-
tegorizarse. El apartado 4 está dedicado a poner en diálogo los datos y la
teoría, mediante la revisión de las definiciones de gramaticalización, reanálisis
y analogía, existentes en la bibliografía actual, con el fin de valorar hasta qué
punto estas se adecuan a aquellos. El apartado 5, muy breve, es una propuesta
de caracterización teórica de cambios consistentes en generalización de con-
textos; la propuesta no es simplemente buscar o poner una etiqueta teórica,
sino plantear la necesidad, ya comentada, de incorporar este tipo de dinámica
diacrónica a la teoría del cambio lingüístico. Cierran unas muy breves conclu-
siones en 6.
2 Para una exposición amplia de cuáles postulados y principios guían el cambio lin-
güístico, cf. Company (2016b); para una exposición de cómo las gramáticas de referencia
del español han tratado las preposiciones gramaticales, remito a Company/Flores (2014),
Company/Sobrevilla (2014).
23
la secuencia preposicional a por con verbos de movimiento, voy a por agua,
e incluso algunas se documentan por primera vez en el siglo xx, como es
el caso de la introducción de a con ciertas frases hechas, del tipo a grosso
modo3. Todas, no obstante, tienen en común el hecho de que la preposición
a, sin dejar de ser preposición, extendió su esfera de empleo a numerosas
construcciones, mucho más allá de la que era propia de su étimo latino ad.
En (1) se ejemplifica el significado etimológico originario de meta locativa;
en (2) la preposición introduce objetos indirectos; en (3) introduce objetos
directos humanos; en (4), objetos directos inanimados; en (5) metas tem-
porales; en (6) régimen verbal, con términos diversos: oración en infinitivo,
oración con verbo conjugado y régimen nominal; en (7), perífrasis obligativas
con haber y deber, estructuras exclusivas del español medieval; en (8), la
perífrasis de futuro con el verbo de movimiento ir; en (9) perífrasis varias con
verbos de movimiento distintos de ir; (10) ejemplifica la secuencia preposicio-
nal a por con verbos de movimiento, que en el español de España sustituyó a
la construcción prepositiva simple con por + verbo de movimiento, vigente en
todo el español americano; en (11) la preposición a introduce complementos
modales, tanto con rector verbo como con rector sustantivo; en (12) se mues-
tran construcciones temporales con a + infinitivo; en (13), oraciones finales
con a + infinitivo; en (14), infinitivos yusivos introducidos con a obligatoria-
mente desde los inicios; en (15), construcciones de valor discursivo diverso
introducidas todas mediante la preposición a; en (16), construcciones adver-
biales modales en -as, introducidas desde los inicios con a; (17) presenta usos
absolutos de valor interjectivo exclamativo de frases prepositivas introducidas
por a, con la autonomía sintáctica característica de las expresiones interjec-
tivas; finalmente, (18) muestra la locución prepositiva de a encabezando un
sintagma nominal que es complemento adnominal de un sustantivo. Todas las
expresiones formadas con a, aquí ejemplificadas, están vigentes en el español
actual, con una sola excepción, las perífrasis obligativas medievales con haber
24
a y deber a –mucho más comunes con haber que con deber– que fueron sus-
tituidas por haber de y deber de, respectivamente.
(1) a. e enviavan a la villa por lo que avién meester [Alfonso X, General estoria.
Primera parte, ca. 1275, corde]
b. se manda este presso sea puesto en la carçel de corte desta Nueba España,
y se traiga a ella de donde quiera que estuviere [1618, México, cordiam]
(2) a. enviól a la villa que aduxesse ende viandas a aquellas compañas todo lo
que meester oviessen [Alfonso X, General estoria. Primera parte, ca. 1275,
corde]
b. dixeron a Calila cómmo Digna era preso [Anónimo, Calila e Dimna, 1250,
corde]
(3) a. la cosa que aveys de haser es guardar mucho a los yndios y que no les sea
fecho mal ni daño [1494, República Dominicana, cordiam]
b. y vio a las dos destraídas mozas que allí estaban [Miguel de Cervantes,
Quijote. Primera parte, 1605, corde]
(4) a. los ácidos minerales destruyen al barniz que reviste al hueso del diente
[José Antonio Alzate, Gazeta de México, 1787, cordiam]
b. Debe tener esa denominación porque designa a una función gramatical
[Español de España, conferencia]
(5) a. Estos son los Juegos Olímpicos y aquí no te puedes dar el lujo de tener
una mala mañana porque no llegas a la tarde [Excélsior, 19-09-2000, México,
crea].
b. Tres de los equipos de fútbol adelantan a hoy los encuentros del fin de
semana [El Diario Vasco, 06-01-2001, España, crea]
25
(7) a. les enviase a su ffijo que les auya a ssalvar [Alfonso X, Setenario, 1252,
corde)
b. e delos caualleros e delos otros omes a quien he a dar algo [Anónimo, Orde-
namiento Cortes de Valladolid, 1312, corde]
c. E maguer yo entiendo que todo esto devo a fazer e a vedar [Alfonso X,
General estoria. Primera parte, ca. 1275, corde]
(8) a. que por qué no voy a rreprehender aquellos [1548, México, cordiam]
b. Lope, recién venido de Italia va a besar la mano a V.E. [Santa Teresa, Cartas,
apud Company/Flores 2014]
(9) a. Despertaron algo tarde, volvieron a subir y a seguir su camino [Miguel de
Cervantes, Quijote. Segunda parte, corde]
b. ¿qué le parece?, que me viene a deçir que niegue lo que me dijo [1628,
México, cordiam]
(10) a. Y llega el rey a por su novia y ve a la negra y le dice... [Anónimo, Cuentos
populares españoles, ca. 1920, España, corde]
b. con intenciones de darle a esto una solución, sin trampas ni malas intencio-
nes, y que si no lo hacen, vamos a por ellos [Carmen Gurruchaga e Isabel San
Sebastián, El árbol y las nueces, 2000, España, crea]
(11) a. diciendole a gritos en la puerta de su Tribunal, que era un pícaro [1832,
Venezuela, cordiam]
b. La vi de espaldas con sus zapatos bajos y su falda a cuadros [Javier Marías,
Corazón tan blanco, 1992, España, crea]
(12) a. y que al salir de missa, dixo… que eran unos bobos, floxos, e inútiles [1751,
Colombia, cordiam]
b. Al irme, ya no supe qué pasó [Español general, habla espontánea]
26
(14) a. ¡Niña, a callar! [Alfonso Zurro, Farsas maravillosas, 1987, España, crea]
b. ¡Arturito! ¡A comer! ¿Dónde se escondió el niño? [Santiago Gamboa, Páginas
de vuelta, 1998, Colombia, crea]
(15) a. ¿A que no? ¿a que no? [Clarín, La Regenta, 1884-1885, España, corde]
b. A ver si vamos haciendo lo que nos corresponde [Español general, habla
espontánea]
c. ¿A cómo nos toca por cabeza? [Español general, habla espontánea]
(16) a. como a malos y cristianos que a sabiendas juran el santo nombre de Djos
en vano [1533, Venezuela, cordiam]
b. quienes cuydadosa y maliciosamente tenian siempre la recamara a oscuras
[1686, Argentina, cordiam]
(17) a. –Pues de castigo te llevamos a Garibaldi. –¡No, no! ¡Protesto! ¡Es una injus-
ticia! –¡Cómo no! ¡A huevo! [Marco Antonio Campos, Que la carne es hierba,
1982, México, crea]
b. Entonces, ponele que hubiese ganado Ñubel y...¡a la mierda!, de ahí en más
todos los pibes se hacían… [Roberto Fontanarrosa, Cuentos de futbol, 1995,
Argentina, crea]
(18) a. porque los de a caballo desampararon a los de a pie i estos perecieron
[1781, Bolivia, cordiam]
b. Esto solo pueden decidirlo los ciudadanos de a pie [Español de España,
programa de TV]
27
caso, por ejemplo, de las perífrasis incoativas empezar de/a > empezar a, o
de la alternancia genitivo subjetivo y genitivo objetivo, mucho más extendido
hoy este último, amor de dios/amor a dios > amor a dios. La segunda estra-
tegia común de expansión de esta preposición es un comportamiento que
podría llamarse invasivo, ya que aparece a en construcciones muy diversas
–verbales, nominales, adverbiales, prepositivas o discursivas– en las cuales,
aparentemente, resulta innecesaria esta preposición o, al menos, no era nece-
saria en el primitivo español. En suma, el avance o extensión de la preposi-
ción a se realizó mediante tres mecanismos básicos: a) aparición de a donde
etimológicamente no aparecía, aun cuando existiera la función desde la len-
gua madre; b) usurpación de otras marcaciones prepositivas, y c) invasión de
espacios funcionales diversos carentes de preposición, muchos de los cuales
son innovaciones romances. Los mecanismos a) y c) no son exactamente
equivalentes en cuanto al tipo de estructuras ni en cuanto a su origen, motivo
por el cual los separo, aunque, teóricamente, se solapan en parte en cuanto
a la naturaleza del proceso diacrónico. Estas estrategias suelen ser comunes
en la sintaxis histórica de otras palabras gramaticales, particularmente con la
preposición de (Company y Sobrevilla 2014).
En los ejemplos (19) a (31) pueden apreciarse mecanismos de usurpación
e invasión de a en prácticamente todas las zonas categoriales de la lengua:
sustantivo, con muy diversos valores y funciones; régimen verbal; sintagmas
prepositivos libres, sintagmas nominales y prepositivos casi fijos, secuencias
preposicionales; frases hechas, etc. Al final del ejemplo documentado, señalo
el uso conservador, estándar, normativo o más general del español, todos
ellos con una preposición distinta de a o carentes de preposición a.
28
(20) a. cada oración expresa una unidad de mensaje y este mensaje a nivel ora-
cional suele ser acerca del tópico [Español de México, escrito académico]
b. Relaciones al interior de la palabra [Español de México, título de escrito
académico]
Construcción prepositiva normativa = en
(21) a. pido y ssuplico mande que el dicho my parte sea remunerado y gratificado
de sus serbiçios en aquellas probinçias tenyendo en sí de acuerdo a la cali-
dad de su persona [1569, Perú, cordiam]
b. y yo me inclino al sentir de los últimos y ya, más por ser acorde a lo que
V. S. escribe [Francisco Borja Cabrera, Carta a Rodríguez Campomanes, 1765,
España, corde]
Construcción prepositiva normativa = con
(22) a. ¿Qué dirás a todo esto? [Fernando de Rojas, La Celestina, 1499, España,
corde]
b. Lamenta experto que diputados desistan a facultad sin cambiar la ley
[Reforma, 14-02-2018, México]
Construcción prepositiva general = de
(24) a. Nos vemos a la noche [Español de Buenos Aires, noroeste de México, País
Vasco]
Vivo al 340 de Corrientes [Español de Argentina, habla espontánea]
Construcciones prepositivas del español general = en/por
(25) a. El coloquio a realizarse en marzo trae a los mejores especialistas [Espa-
ñol de México, escrito académico]
29
b. Teléfonos superrápidos a resolver todo [Español de México, anuncio
publicitario]
c. proponen ampliar el origen de los materiales a estudiar [Español de
México, escrito académico]
Construcción normativa = oración de relativo: que se realizará, que resuelven,
que deben ser estudiados
(26) a. De qui ouiere querella de otro et non quisiere dar o tornar derecho sobre
aquella querella fasta a nueve días (Anónimo, Fuero de Molina de Aragón,
c. 1272-1283, corde]
b. anuncios pintados en el color plata del Silver Jubilee que ha alcanzado
hasta a los tradicionales autobuses de dos pisos [Triunfo, 25-06-77,
España, crea]
c. Yo no pienso ir, está hasta a casi la chingada [Español de México, habla
espontánea]
Construcción general = sin a
(27) El último ha sido el impoluto (hasta hoy) alcalde de París, el chiraquiano
Chirac, que ha desvelado a grosso modo su patrimonio [La Vanguardia,
16-03-1995, España, crea]
Construcción normativa = sin a
(28) ¿De a cuánto nos toca por cabeza? [Español de México, habla espontánea]
Hay que hacerlo de a poquito en poquito [Español de México, habla espon-
tánea]
Construcción general = sin a o sin preposición alguna
(29) Me agarré un virus al hígado que pensé que era hepatitis, y no [Español de
Argentina, habla espontánea]
Construcción general = en
30
(31) ¿Y cuánta infinidad de razones a este propósito se le alegarían a cualquier
hombre y más a el poderoso? [Francisco Gutiérrez de los Ríos, El hombre
práctico, 1686, España, corde]
Construcción general = sobre
31
empezar a > comenzar a, empezar a; fuente-separación: espidiénsse
al rey, con esto tornados son (Cantar de mio Cid, 1914), ejemplo este
último poco común y para el que cabe pensar en un posible cruce con
la preposición latina ab.
3. Formación hispano romance carente de a en sus inicios: fueron ferir >
fueron a herir.
4. Creación hispano romance con preposición a desde sus primeras docu-
mentaciones: infinitivos yusivos: ¡a comer!; infinitivos discursivos: a ver,
dime qué tienes; usos absolutos interjectivos: ¡a huevo!, ¡a la mierda!
5. Recodificación o recreación de expresiones ya prepositivas: paso por ti
> paso a por ti; ¿de cuánto nos toca? > ¿de a cuánto nos toca?
6. Inserción en espacios predicativos ya existentes pero introducidos por
un relacionante no prepositivo: relativas especificativas con antecedente
nominal de naturaleza eventiva > oración especificativa introducida por
a: el congreso que se realizará > el congreso a realizarse.
7. Inserción en expresiones nominales que se relacionaban mediante otra
preposición; muchas veces suelen convivir las dos preposiciones: en el
interior del edificio > al interior del edificio; amor de la patria > amor
a la patria; un nuevo enfoque de la gramática > un nuevo enfoque a la
gramática.
8. Inserción de a en complementos adnominales instrumentales-modales;
a desbanca a la otra preposición: falda de/con cuadros > falda a cua-
dros; camisa de/con rayas > camisa a rayas.
9. Inserción en sintagmas relacionantes casi fijos que tomaban otra prepo-
sición: de acuerdo con > de acuerdo a; con base en > en/con base a.
10. Presencia de a en locuciones y frases cultas, a priori, a posteriori, a for-
tiori, algunas de las cuales etimológicamente, y normativamente, deben
carecer de preposición: grosso modo > a grosso modo.
32
a una obligatorificación, como ya dije; en otros, sigue habiendo variación sin-
crónica entre dos usos prepositivos o entre ausencia y presencia de a4.
Este patrón-modelo diacrónico tan consistente es explicable, en buena
parte, a mi modo de ver, por el significado originario de la preposición a, ‘loca-
ción’, que constituye, como es sabido, un dominio conceptual muy básico, que
hace posible ser reelaborado mediante metáforas o metonimias y codificar
nuevos dominios con cierta facilidad. Hay que señalar que el significado de la
preposición a, locativo directivo télico, se mantiene en todos los cambios, ya
que siempre hay una meta y un evento realizado, sean metas nominales, sean
metas de régimen verbal, sean metas predicativas de diversa estructura o sean
metas discursivas (Company y Flores 2014). De hecho, la conservación de
un significado etimológico básico, así sea general y abstracto, es el modo de
garantizar que el cambio, en este caso la aparición de a en nuevos contextos,
33
no sea azaroso sino que siga patrones y dinámicas bien establecidas, como
hemos visto.
La liviandad fónica de a debió facilitar y motivar, sin duda, la extensión y
generalización de esta preposición5. Además, la posible confusión de la latina
ad, rectora de caso acusativo y étimo de a, con la latina ab, rectora de abla-
tivo, casi homónimas ambas, e idénticas tras la apócope de las consonantes
finales en el temprano romance, debió propiciar la extensión de a hacia los
numerosos ámbitos funcionales que en latín estaban codificados mediante el
caso ablativo, con el que se construía ab.
El esquema 1, abajo, tomado de Company/Flores (2014:1328), pretende
mostrar, de manera muy resumida, la extensión constante y sistemática de la
preposición a, en la diacronía pero también en la dialectología del español, en
tanto que algunos cambios diacrónicos solo se produjeron en ciertas varian-
tes diatópicas o son mucho más activos en ciertas variedades. El “crecimiento
gráfico de a” no significa que la preposición se haya vuelto polisémica en
sí misma, sólo indica la extensión a nuevos contextos y distribuciones. Se
trata de polifuncionalidad de contextos no polisemia de formas; siempre es
la misma preposición a y mantiene un significado básico constante, como
ya he dicho. El esquema intenta reflejar, asimismo, el carácter acumulativo o
estratificado de los cambios sintácticos, en tanto que una vez que surge una
codificación nueva, esta innovación convive por siglos con la construcción o
construcciones ya existentes, que son, por ello, construcciones conservadoras
respecto de la nueva estructura. El orden de avance del crecimiento sostenido
de a y la disposición de las etiquetas en el esquema intenta reproducir, en
parte, el orden diacrónico en que se produjo la extensión. El esquema no
incorpora todos los cambios reflejados en los ejemplos (1) a (31), en tanto que
se trata, justamente, de un esquema6.
5 No debe ser simple casualidad que las dos preposiciones que tienen la mayor ligereza
fónica, a y de, y un patrón de sílaba abierta prototípico, bien consonante-vocal, de, o simple
vocal, a, sean las dos preposiciones protagonistas de la asignación de caso sin papel temá-
tico en español, acorde con marcos formales de análisis dentro de la gramática generativa.
6 Las abreviaturas corresponden a: loc = locativo; oi = objeto indirecto; odh = objeto
directo humano; cct = complemento circunstancial de tiempo; pmov = perífrasis de movi-
miento; odi = objeto directo inanimado; mod = complementos modales verbales y adno-
minales; yus = infinitos yusivos; disc = construcciones discursivas diversas.
34
a a a a aa a a a
loc loc loc loc loc loc loc loc loc
oi oi oi oi oi oi oi oi
odh odh odh odh odh odh odh
cct cct cct cct cct cct
pmov pmov pmov pmov pmov
odi odi odi odi
mod mod mod
yus yus
disc
35
sino que opera como marca gramatical de caso objetivo, de manera que los
sintagmas de objeto indirecto y directo no son frases prepositivas sino verda-
deros sintagmas nominales. Entre estos dos tipos de la categoría preposición
habría, en la amplitud de usos de a, situaciones categoriales intermedias, en
tanto que se trata de una categoría internamente no homogénea.
El problema teórico fundamental, a la luz de los datos del apartado ante-
rior, es que la diacronía general de la preposición a se escapa a una caracte-
rización en términos de Gramaticalización, se escapa asimismo al proceso o
mecanismo de cambio conocido como Reanálisis y también se escapa a una
caracterización en términos de Analogía.
Una Gramaticalización, en su formulación tradicional, es un cambio
procesual mediante el cual “una palabra léxica pasa a palabra gramatical o
una palabra gramatical pasa a ser más gramatical” (Kuryłowicz, 1965/1975:
52; Hopper/Traugott, 1993/2003: cap.1, entre muchos otros). La extensión y
generalización de a no es una Gramaticalización porque no pasa de palabra
gramatical a más gramatical –con excepción de la ya comentada recategoriza-
ción como marca de caso. Esto es, en solo uno de los muchos cambios de la
diacronía de a sí se produjo este tipo de gramaticalización, pero en los otros
30 no se produjo gramaticalización alguna.
De igual modo, nunca experimentó, por ella misma, Reanálisis o reca-
tegorización, con excepción del ya comentado cambio preposición > marca
de caso objetivo. Muchos cambios sintácticos del español sí se produjeron
mediante reanálisis, prueba de la nuclearidad de este mecanismo de cambio,
tales son los casos, por citar ejemplos paradigmáticos bien conocidos, del
adverbio demostrativo latino ibi que pasó al formativo de palabra -y en el
verbo existencial hay, del sustantivo pleno latino mente que pasó al formativo
obligatorio de los adverbios largos o derivativos en -mente, o del pronombre
demostrativo latino ille-illa-illud que pasó a un simple determinante, entre
muchos otros cambios en la historia de la lengua española (Company, 2006,
2009, 2014), pero la preposición a, así como otras palabras gramaticales, no
sufrió, en lo esencial, reanálisis, no obstante el llamativo dinamismo diacró-
nico ya comentado y analizado. Como es sabido, un reanálisis, en su defini-
ción clásica, es un cambio de categoría sin que necesariamente se produzca
un cambio en la manifestación formal o superficial de la forma o estructura
36
involucrada en el cambio (Langacker, 1977:58). Si ampliamos esta definición y
salimos del sentido tradicional de este término, sí hubo reanálisis y recatego-
rización de la frase prepositiva toda en algunos cambios, pero es un reanálisis
de la construcción fp toda no de la preposición por sí misma; no se ha rea-
nalizado la preposición, pero sí hay construccionalización nueva en contextos
específicos nuevos en la mayoría de las extensiones.
Tampoco es una Analogía, porque para que esta se produzca, al menos en
su formulación tradicional (Kuryłowicz, 1945/1949; Antila, 2003), se requiere
de la existencia de un modelo de proporciones que presione, morfológica o
sintácticamente –aunque opere, las más de las veces, en el nivel de la morfolo-
gía–, para que otras formas o construcciones adopten la forma o la función, o
ambas, del modelo en cuestión. La extensión de a no ha avanzado presionada
por un modelo previo; no existe tal modelo ni en la lengua madre ni en el
primitivo castellano ni en otras lenguas románicas.
Una característica teórica de la extensión y generalización diacrónica de la
preposición a es que los cambios y el avance de los cambios tienen un muy
desigual estatus teórico, aunque en su conjunto construyen una única pauta
o modelo de diacronía: aparición de nuevas estructuras y construcciones vía
la extensión y muchas veces generalización de la palabra gramatical a nuevas
distribuciones y contextos. La desigualdad teórica consiste, básicamente, en
cuatro comportamientos, el último de los cuales es bastante problemático
desde el punto de vista de la teoría del cambio lingüístico. Veamos.
37
tres > firmó a ciegas; o del camino diacrónico que es posible postular
vía extensiones metonímicas: término meta nominal > término meta
proceso-evento > término meta pragmática-discursiva: voy a Coimbra >
voy a comer > a ver, ¿qué te ocurre?
3. En otros cambios, la preposición a entra de manera no gradual o en un
lapso tan breve que es difícil plantear una gradualidad o una jerarquía
de contextos: verbo de movimiento + a por + nominal, vamos a por
todo, se generaliza en menos de 100 años sin que se puedan establecer
de manera clara distribuciones preferentes graduales (Company/Flores,
2017).
4. Muchos cambios, una vez realizada la innovación o creación de una
nueva estructura preposicional, experimentaron un importantísimo
aumento en la frecuencia de empleo, por ejemplo: a) un aumento dia-
crónico importante de términos verbales infinitivos; b) un aumento
diacrónico muy importante de términos nominales no locativos; c) un
aumento diacrónico importante de frases prepositivas dependientes de
sustantivo y no constituyentes de oración por sí mismas; d) un aumento
diacrónico muy importante de construcciones discursivas, aumento este
que pudiera deberse al surgimiento de tipos textuales próximos a la
oralidad y no a un cambio real en las estructuras de la lengua, es decir,
siempre estuvieron, pero era imposible documentarlos. Ahora bien, un
problema teórico importante es cómo valorar cambios consistentes en
aumento de frecuencia que no impactan la gramática como tal; en otras
palabras, ¿los incrementos frecuenciales son o no parte del estableci-
miento del patrón de cambio que hemos caracterizado como extensión
y generalización? En mi opinión, la frecuencia de empleo es una valiosa
herramienta de diagnóstico de cómo se está desplazando la gramática,
pero no se puede equiparar a cambios que impactan estructuralmente
un determinado estado de lengua, sin que esto signifique que estos son
más importantes que aquellas o viceversa; sólo son cambios de muy
distinta naturaleza teórica.
38
dad y no responden teóricamente a una gramaticalización, ni a un reanálisis
ni a una analogía, definidos en su sentido tradicional.
39
Gramaticalización como “emergent grammar” (Hopper, 1987, 1998)
2.
SÍ. Bajo esta definición, todo es gramaticalización: “no hay gramá-
tica sino gramaticalización”. Es una definición interesante epistemoló-
gicamente pero vaga, inútil y casi trivial operativamente por falta de
especificidad. Todo cambio es creación o recreación de gramática, todo
cambio crea una nueva rutinización.
Gramaticalización como “the emergence of grammatical systems” (Fra-
3.
jzyngier, 2010; Hurford, 2012: cap. 7) SÍ. Mismo problema que defi-
nición anterior: carece de especificidad operativa.
Gramaticalización como “the emergence of language” (Hurford, 2012:
4.
cap. 7; Smith, 2011: 144) SÍ. Mismo problema que las dos definicio-
nes anteriores; aún peor, porque no es aplicable a cambios específicos
sino a la evolución del lenguaje humano.
Gramaticalización secundaria 1 (Hopper/Traugott 1993/2003; Breban
5.
y Kranich 2014) SÍ/ NO. “Cases of grammaticalization affecting ele-
ments that already have grammatical function and proceed to develop
a new grammatical function”. Es el caso de la preposición a. Es poco
específico qué se debe entender por “secondary grammaticalization”:
también sería el caso de formas léxicas que se gramaticalizan y adquie-
ren nuevas funciones gramaticales en etapas más tardías del proceso
(por ejemplo, epistemización de -mente). No difiere del segundo tramo
de la definición de gramaticalización tradicional: forma gramatical >
más gramatical. La extensión invasiva de a no es exactamente gramati-
calización secundaria, porque genera una pauta que no está implicada o
sugerida en la definición de ‘gramaticalización secundaria’. Los cambios
de a no necesariamente corresponden a “later stage processes in gram-
maticalization” (Breban/Kranich, 2014).
Gramaticalización secundaria 2 (Givón, 1991) NO. “The reanalysis
6.
of markers of one syntactic category into another one”. La preposición
a no experimenta reanálisis por sí misma, sino un reanálisis restringido
a la función de objeto, indirecto y directo. Esta definición, en realidad,
tampoco difiere del segundo tramo de la definición de gramaticaliza-
ción tradicional.
40
Connecting grammaticalisation (Nørgård/Heltoft/Schøsler, 2011: 5)
7.
SÍ/ NO. “Grammaticalisation: chains of grammations, regrammations
[transition from one grammatical status to another] and degrammations
are seen as one connected process: change a is a precondition for b
which again is a precondition for c and d”. Mismo problema que otros
subtipos de gramaticalización o conceptos asociados a la gramaticaliza-
ción, ya que abarca todo tipo de cambios y le falta especificidad: todo es
una gramaticalización conectada. Por otra parte, el cambio del esquema
1 arriba, final del apartado 2, no es tan lineal como definen estos auto-
res, ya que hay fuertes y sostenidos solapamientos cronológicos.
Exaptación 1 (Lass, 1990) NO. Reúso gramatical de una forma des-
8.
empleada o de “basura” (garbage, junk) gramatical, léxica o fónica. Nin-
gún cambio experimentado por fp-a surge del reúso de un desempleo o
de un residuo previo de la preposición o de la fp encabezada por esta.
Exaptación 2 (Lass, 1997: 318 ss.) SÍ. “Conceptual invention,… the
9.
model itself is what’s new”. La extensión-invasión de a sí crea una pauta
de cambio, y es un modelo porque sucede en otras áreas de diacro-
nía de palabras gramaticales: extensión de los dominios del dativo le
(Company, 2006). Traugott (2004) indica que es falsa la distinción entre
exaptación y gramaticalización. No estoy tan segura, depende de cómo
se definan los conceptos.
Functional renewal (Brinton/Stein 1995) NO. Una vieja forma resurge
10.
con un significado nuevo. La preposición a siempre ha tenido el mismo
significado básico locativo directivo télico. En el caso de a, cambian los
tipos de meta: de menor a mayor abstracción de la meta, y cambian los
contextos de aparición, pero a no cambia.
Regramaticalización (Greenberg, 1991) NO. La preposición a no es
11.
«a desemanticized item found only in a few lexical forms (…) reinterpre-
ted in a new function». La preposición a tiene altísima vitalidad desde la
lengua madre, sólo se volvió más productiva, extendiéndose a nuevos
espacios funcionales.
Capitalization (Pountain, 1997) SÍ/ NO. «The historical process
12.
by which a linguistic feature which already exists in a language comes
41
to be substantially exploited for wider purposes». Es el caso de a en la
diacronía del español, pero no es el caso de a porque no siempre a
se extendió a expensas de otras formas (ejemplo de Pountain: estar se
capitaliza/crece a expensas de ser, y crea una pauta, pattern, de cam-
bio en otros verbos). Si se considera capitalización el cambio Ø > a, la
extensión invasiva de a sí es capitalización.
Refuncionalización (Smith, 2006) NO. «A process whereby a form
13.
loses its original function and takes on a new function». La preposición
a nunca perdió su significado de preposición directiva télica y nunca
dejó de tener función de relacionante prepositivo.
Adfuncionalización (Smith, 2006) NO. «A process in which a form
14.
assumes a new function alongside or in addition to its original function».
La preposición a siempre ha sido preposición y nunca ha dejado de
tener significado de preposición directiva télica.
Construccionalización (Trousdale, 2012; Goldberg, 2013; Hoffmann/
15.
Trousdale, 2013) SÍ/NO. «Apareamiento de formas con sintaxis y sig-
nificado, que juntas mantienen un significado composicional debilitado
y que operan como una unidad esquemática con llenado léxico que
suele ser almacenada en el lexicón mental». Sí, en tanto que la sintagma-
ticidad es inherente a toda lengua y, en última instancia, todo es cons-
truccionalización; no, porque no todas las construcciones y ejemplos
aquí considerados han llegado a un cierto nivel de fijación y requie-
ren almacenamiento como construcción, sino que tienen sintaxis libre.
Analogía como “extensión local” (Brian, 2017) SÍ/ NO. Se trata
16.
de un tipo de analogía motivada por un modelo que activa el cambio
en contextos específicos. Sí podría ser en tanto que el contexto es el
locus del cambio, pero ¿cuál sería el modelo para la extensión analó-
gica a nuevos contextos por parte de la preposición? No existe, como
ya señalé, modelo previo sobre el que se modele el cambio; tampoco
existe nivelación paradigmática porque la preposición no integra un
paradigma, en sentido estricto, sino es parte de una clase de palabras.
42
produce un solapamiento parcial o total de varios conceptos: a) entre exap-
tación, refuncionalización, gramaticalización secundaria y gramaticalización
tradicional (en el segundo tramo que se da en esta definición tradicional); b)
entre adfuncionalización y capitalización, y c) entre construccionalización y
sintaxis libre y sintaxis más fija. En segundo lugar, que existe una incómoda
polisemia y vaguedad en otros varios conceptos, tales como exaptación en su
segunda acepción, gramaticalización a la Hopper o a la Hurford, gramatica-
lización secundaria y connecting grammaticalization. En tercer lugar, que el
patrón de cambio objeto de este trabajo, consistente en la extensión invasiva
a nuevos y viejos contextos por parte de una forma gramatical, no queda
totalmente explicado, o está sólo parcialmente cubierto, por los conceptos
asociados a la teoría o marco de la Gramaticalización.
Como expuse al inicio de este texto, estamos asistiendo a la ineficacia e
inespecificidad del antes útil y poderoso concepto de gramaticalización; como
dicen Breban et al. (2012: 2) el concepto de gramaticalización «risks the victim
of its own success».
43
El patrón de cambio analizado en este trabajo queda sólo parcialmente
cubierto por los acercamientos a las teorías del cambio lingüístico aquí lis-
tados y vistos. En efecto, la extensión invasiva de nuevos contextos y la
usurpación de viejos contextos por parte de una forma gramatical no queda
cabalmente explicada por los conceptos asociados a la teoría o marco de la
gramaticalización ni a otros modelos y conceptos teóricos del cambio gra-
matical, tales como reanálisis o analogía. Este vacío pone de manifiesto la
necesidad de otorgar un estatus teórico al cambio, que, de forma resumida,
podemos denominar extensión y generalización de contextos y a las tres diná-
micas o estrategias identificadas en esa extensión y generalización: aparición,
usurpación, invasión. Necesidad que deriva del hecho de que se trata de
un tipo de cambio característico de varias preposiciones y de otras palabras
gramaticales, una dinámica que crea una muy poderosa pauta de extensión
a nuevos y más contextos, sin dejar de ser la misma categoría originaria. Es
decir, no es un hecho diacrónico aislado ni al azar, asociado a la preposición
a, además de que si así fuera, el hecho de que la diacronía de esta preposición
alcance, al menos, 30 cambios no es para que el fenómeno teórico subyacente
sea ignorado por la teoría.
La pregunta obligada es, en consecuencia, ¿qué tipo de cambio es la exten-
sión y generalización de una forma a más y más contextos? Es en parte una
capitalización, es en parte una gramaticalización secundaria, es en parte “con-
necting” gramaticalización, es en parte “analogía como extensión local”; y
es, sin duda, gramaticalización a la Hopper, Frajzynger o Hurford, esto es,
‘creación de código’, es también, sin duda, “construccionalización”, pero meto-
dológicamente estas últimas propuestas son de baja utilidad. Casi todo en dia-
cronía es creación de código y todo opera en construcción y sintagmaticidad.
A partir del conjunto de reflexiones teóricas anteriores y de la información
descriptiva aportada en este trabajo, surge una serie de propuestas teóricas,
que hacen explicito cómo integrar este tipo de cambios a la teoría general de
cambio lingüístico:
Propuesta 1. Privilegiar el papel del contexto como locus del cambio (Company,
2003, 2016a; Company/Flores, 2017, 2018), ya que dará resultados diacrónicos más
finos salir del análisis del cambio dentro del ámbito de la palabra. El contexto es
44
el locus y es determinante para dar cuenta de ciertas maneras de cambio porque
las formas lingüísticas que constituyen la fuente del cambio son preexistentes y,
por ello, en el cambio sintáctico no hay creación ex novo. El cambio gramatical
consiste, básicamente, en recrear o revolver la materia léxica y/o gramatical previas
(Company, 2003), en este caso la forma gramatical a + sus varias distribuciones en
contextos específicos. No existe creación sintáctica absoluta, siempre son formas
“viejas” la base del cambio. Ninguna de las definiciones y conceptos anteriores
hace explícito el papel del contexto, ni otorga un papel protagónico al contexto,
por encima de la forma o de la palabra. En la dinámica diacrónica aquí analizada,
el contexto es la base de los cambios de la preposición.
Propuesta 2. Privilegiar el concepto de distribución como unidad del cambio y
también dar peso al concepto de construcción, aunque acotándolo a la capacidad
de apareamiento, colocación y sintagmaticidad de las formas de una lengua (Trous-
dale, 2012; Traugott/Trousdale, 2013: cap.1; Hoffmann/Trousdale, 2013; Company,
2016b). Ninguna de las definiciones y conceptos anteriores hace explícito el papel
de la construcción, quizá por obvio, ya que, en última instancia, todo es construc-
cionalización, no cambian las formas en aislado sino adscritas a distribuciones,
y juntas, forma y distribución, se construccionalizan. En la teoría del cambio lin-
güístico es común hablar del cambio de forma o de cambio de unos rasgos. Cabe
insistir en que las formas cambian insertas en construcciones –un puro núcleo de
frase es construcción– y cambian porque se usan en contextos específicos; la sin-
tagmaticidad es inherente al lenguaje humano.
Propuesta 3. La construccionalización se produce impulsada por un motor que
puede caracterizarse como una “extensión contextual”: ciertos contextos se conta-
gian de otros previos con a, cuando hay similitudes, distribucionales + semánticas,
casi imperceptibles. Podría decirse que el patrón de cambio que aquí nos ocupa es
una construccionalización que tiene como base o motor una analogía contextual,
esto es, una extensión analógica impulsada por contexto.
Propuesta 4. Cualquier forma mantiene un significado único por siglos: básico,
muy general y bastante abstracto en el caso de las palabras gramaticales. Ese
significado es el que permite que las nuevas distribuciones y contextos no sean
azarosas, sino que exista una pauta y dirección de avance del proceso: contexto
favorable > menos favorable.
45
Propuesta 5. Existe polifuncionalidad de contextos pero no es polisemia de la
forma. La preposición a en cualquiera de sus contextos y construcciones tiene el
mismo significado: locativo directivo télico hacia una meta, sea concreta o abs-
tracta, sea nominal, verbal o eventiva-discursiva.
Propuesta 6. La dinámica diacrónica aquí analizada es un fuerte patrón o modelo de
cambio, de base contextual. Este tipo de patrones de cambio que son consistentes
y que no implican recategorización ni gramaticalización deben ser incluidos en las
taxonomías del cambio sintáctico.
6. Conclusiones
46
nálisis. El diálogo ha servido para reconocer que el conjunto de los cambios
de a no han sido considerados, hasta la fecha, en ninguna perspectiva teórica.
Finalmente, hemos propuesto que la extensión de la preposición a más y
más contextos es un cambio no azaroso, sino que construye un patrón o pauta
estructural diacrónica, consistente y coherente, que debe ser incorporada en
las taxonomías y clasificaciones teóricas del cambio gramatical.
org
crea = Real Academia Española, Corpus de Referencia del Español Actual, www.rae.es
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51
(Página deixada propositadamente em branco)
ATALIBA T. DE CASTILHO
Universidade de São Paulo
[email protected]
ORCID: 0000-0002-1964-9884
S í n t e s e d o s a c h a d o s d o P r o j e t o pa r a
a História do Português Brasileiro
Resumo: Este texto trata da história do português brasileiro, tal como vem sendo
investigada pelos pesquisadores associados ao Projeto para a História do Português Bra-
sileiro, em curso desde 1998. Mencionam-se os seminários realizados por esse projeto, as
publicações que daí resultaram e, mais recentemente, a consolidação dos resultados na
série História do Português Brasileiro, 12 volumes, em curso de publicação. Finalmente,
apresentam-se os resultados do estudo diacrônico da concordância, com foco na concor-
dância por reanálise, à luz da abordagem multissistêmica.
Palavras-chave: linguística histórica, português brasileiro, diacronia da concordância
Abstract: This text looks at some findings from the project on the History of Brazilian
Portuguese, ongoing since 1998. Seminars held by this project are mentioned together with
its publications. Attention is drawn to the series of 12 volumes, in press, which consolidates
the results obtained so far. Finally, I show the results of a broad study on the agreement,
focusing on the reanalysis issue, based on the approach to language as a complex system.
Keywords: historical linguistics, Brazilian Portuguese, diachrony of the agreement
Apresentação
Este trabalho consta de três partes: (1) o Projeto para a História do Português
Brasileiro, (2) a série História do Português Brasileiro, (3) a diacronia da concor-
dância por reanálise.
Constatemos, inicialmente, que a Linguística Histórica perdeu espaço durante
o período mais forte de atuação do Estruturalismo e do Gerativismo, movimen-
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_2
tos basicamente a-históricos. Chegou-se mesmo a anunciar sua morte, dado o
forte impacto dessas teorias, que favorecem o estudo de uma dada sincronia.
É verdade, entretanto, que mesmo no interior dessas teorias algumas vozes
anunciavam a volta da velha senhora. Lembrem-se as pesquisas de A. Martinet
sobre a Fonologia diacrônica, no quadro do Estruturalismo, a teoria dos Princí-
pios e parâmetros, de N. Chomsky, no quadro do Gerativismo, os estudos sobre
gramaticalização, no Funcionalismo. No Brasil, foi profética a voz de Fernando
Tarallo (1984), que proclamou o renascimento da fênix, excelente metáfora para
uma ciência que retorna sempre.
Nesses mesmos anos 1980, sem que tivesse havido uma combinação prévia,
três respeitadas linguistas fizeram renascer a Linguística Histórica no domínio
da língua portuguesa: Clarinda Maia (1986), na Universidade de Coimbra, com
seus estudos sobre o Galego-Português; Mary Kato, na Universidade Estadual de
Campinas, juntamente com Fernando Tarallo, focalizando o Português Brasileiro
(Kato/Tarallo, 1988; Roberts/Kato, 1993); Rosa Virgínia Mattos e Silva (1989), na
Universidade Federal da Bahia, com seu estudo sobre o Português trecentista, a
que se seguiu o Programa de História do Português.
Foi nesse contexto que, a partir de 1998, tiveram início as atividades do Pro-
jeto para a História do Português Brasileiro. Os pesquisadores então reunidos
são largamente devedores a essas linguistas, tanto quanto ao desenvolvimento
da Linguística no Brasil. O tempo mostrará o peso dessa condição sobre os resul-
tados que eles alcançarem.
A partir dos anos 70, sucederam-se no Brasil vários projetos coletivos de pes-
quisa, voltados para um conhecimento mais aprofundado da identidade linguís-
tica dos brasileiros.
Inicialmente, nos perguntávamos sobre como era mesmo o português culto
falado no Brasil. O Projeto para o Estudo da Norma Linguística Urbana Culta
(Projeto NURC) tinha o propósito de oferecer respostas a isso. Assim, de 1970
a 1980, uma extensa documentação do português brasileiro foi recolhida no
Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Amostras desse mate-
54
rial foram digitalizadas e disponibilizados pelo Centro de Documentação Ale-
xandre Eulálio, da Universidade Estadual de Campinas (CEDAE) (cf. www3.iel.
unicamp.br/cedae).
O objetivo desse projeto era descrever a variedade culta do português, em seus
domínios fonológico, morfológico e sintático, para além do estudo do léxico.
Dada a dimensão hispânica e luso-americana do projeto, organizou-se um
Guia Questionário a ser utilizado por todos os pesquisadores, de forma a garantir
uma comparabilidade dos resultados.
Infelizmente, essa parte do projeto não reuniu condições para avançar, pois à
altura não havia ainda hipóteses sobre a oralidade e, além do mais, os quesitos
não se integravam numa perspectiva teórica coerente (Castilho, 1984). Os pes-
quisadores do Projeto NURC se voltaram, então, para estudos de caráter pragmá-
tico, como a Análise da conversação1.
Para retomar os objetivos daquele projeto, propus a realização do Projeto de
Gramática do Português Brasileiro, que se desenvolveu entre 1988 e 2016, com a
participação de 34 pesquisadores, recrutados em várias universidades brasileiras.
O novo projeto teve por sede o Departamento de Linguística da Universidade
Estadual de Campinas.
Os resultados parciais desse projeto foram publicados em 9 volumes de
ensaios os quais, uma vez consolidados, deram origem a uma série de sete
volumes:
A
• construção do texto (Jubran [org.], 2015);
A
• construção da sentença (Kato/Nascimento [orgs.], 2015);
Palavras
• de classe aberta (Ilari [org.], 2014);
Palavras
• de classe fechada(Ilari [org.], 2015);
A
• construção das orações complexas (Neves [org.], 2016);
A
• construção morfológica da palavra (Alves/Rodrigues [orgs.], 2015);
A
• construção fonológica da palavra (Abaurre [org.] 2013).
1 Para uma história do Projeto NURC e sua produção bibliográfica, ver Castilho (1990).
55
tas, organizei em 1995 o Projeto de História do Português Paulista, no contexto
da área de Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo.
O novo projeto deveria reconstituir o percurso histórico do português pau-
lista, que corresponde ao primeiro momento de lusitanização do Brasil, ocorrido
em 1532, na cidade litorânea de São Vicente, Estado de São Paulo.
Após intensa troca de correspondência com pesquisadores eventualmente
interessados, realizou-se em São Paulo o I Seminário do Projeto para a História
do Português Paulista, em 1997 (Castilho [org.], 1998). Nessa ocasião, por ini-
ciativa dos participantes, o projeto regional assumiu uma dimensão nacional,
mudando-se sua designação para Projeto para a História do Português Brasileiro
(PHPB).
O PHPB conta hoje com mais de 200 pesquisadores, distribuídos por catorze
equipes regionais:
Bahia:
• coordenação de Tânia Lobo, em substituição a Rosa Virgínia Mattos
e Silva (Universidade Federal da Bahia);
Ceará: coordenação de Aurea Suely Zavam (Universidade Federal do Ceará);
•
do Mato Grosso);
Minas Gerais: coordenação de Jânia Ramos (Universidade Federal de Minas
•
Gerais);
Paraíba:
• coordenação de Roseane Nicolau, em substituição a Camilo Rosa
(Universidade Federal da Paraíba);
Pará
• Oeste: coordenação de Ediene Pena Ferreira (Universidade Federal do
Oeste do Pará)
Paraná:
• coordenação de Vanderci Aguilera (Universidade Estadual de
Londrina);
Pernambuco:
• coordenação de Valéria Gomes (Universidade Federal Rual
de Pernambuco), em substituição a Marlos de Barros Pessoa (Universidade
Federal de Pernambuco);
Rio
• de Janeiro: coordenação de Dinah M. I. Callou (Universidade Federal
do Rio de Janeiro);
56
Rio
• Grande do Norte: coordenação de Alessandra Castilho da Costa, em
substituição a Marco Antonio Martins (Universidade Federal do Rio Grande
do Norte);
Santa
• Catarina: coordenação de Izete L. Coelho, em substituição a Gilvan
Muller de Oliveira (Universidade Federal de Santa Catarina);
São
• Paulo: coordenação de Clélia C. S. Jubran (Universidade Estadual
Paulista/São José do Rio Preto) e Manoel Mourivaldo Santiago Almeida
(Universidade de São Paulo), em substituição a Ataliba T. de Castilho (Uni-
versidade de São Paulo);
Sergipe:
• coordenação de Sandro Drumond Marengo (Universidade Federal
de Sergipe).
57
Os pesquisadores se dividiram por grupos de trabalho correspondentes a essa
agenda. Os resultados das investigações têm sido apresentados em seminários
nacionais, em número de nove até aqui, cujos resultados foram publicados na
seguinte série:
I Seminário,
• São Paulo, 1997 (Castilho [org.], 1998);
II
• Seminário, São José dos Campos SP, 1997 (Mattos e Silva [org.], 2001, 2
tomos);
III
• Seminário, Campinas SP, 1999 (Alkmim [org.], 2002);
IV
• Seminário, Teresópolis RJ, 2001 (Callou/Duarte [orgs.], 2002);
V
• Seminário, Ouro Preto MG, 2002 (Ramos/Alckmin [orgs.] 2007);
VI
• Seminário, Ilha de Itaparica BA, 2006 (Lobo/Ribeiro /Carneiro/Almeida
[orgs.], 2006, 2 tomos);
VII
• Seminário, Londrina PR, 2007 (Aguilera [org.], 2009, 2 tomos);
VIII
• Seminário, João Pessoa PB, 2010 (Hora/Rosa [orgs.], 2010);
IX
• Seminário, Maceió AL, 2013 (Moura/Sibaldo [orgs.], 2013).
58
2. A série História do Português Brasileiro
Nesta seção, reproduzo o sumário dos 12 volumes respectivos, para dar uma
ideia do conteúdo da série História do Português Brasileiro. Todos os volumes são
abertos com uma Introdução, em que se expõe a orientação teórica perfilhada
pelos autores. Referências bibliográficas encerram os volumes.
2 in memoriam : Rosa Virgínia Mattos e Silva; Clélia Cândida Abreu Spinardi Jubran; Kle-
bson de Oliveira.
59
Cap. 7 – Verena Kewitz e José da Silva Simões – O corpus do Projeto para a História
do Português Brasileiro: a constituição de corpora históricos baseada em critérios de tradições
discursivas.
Cap. 8 – Verena Kewitz e José da Silva Simões – Características e potencialidades dos
corpora do português paulista.
Cap. 9 – Tânia Lobo e Zenaide Carneiro – Reflexões sobre a constituição e análise de
corpora linguísticos históricos e sobre a identificação de perfis sociais de redatores do passado.
Vol. 4 – Célia Regina dos Santos Lopes (coord.) – Mudança sintática das clas-
ses de palavras: perspectiva funcionalista. São Paulo: Editora Contexto, 2018.
Célia Regina dos Santos Lopes – Introdução: Concepção funcionalista de mudança
sintática das classes de palavras
Cap. 1 – Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Marcotulio, Márcia Rumeu et
al. – A reorganização no sistema pronominal de 2.a pessoa na história do Português Brasileiro:
posição de sujeito.
Cap. 2 – Célia Regina dos Santos Lopes, Thiago Laurentino de Oliveira, Leonardo
Marcotulio et al. – A reorganização no sistema pronominal de 2a. pessoa na história do por-
tuguês brasileiro: outras relações gramaticais.
60
Cap. 3 – Raquel Meister Ko. Freitag, Josane Moreira de Oliveira e Márluce Coan
– Formas simples e perifrásticas do verbo em relação ao domínio tempo-aspecto-modalidade.
Cap. 4 – Maria Maura Cezario, Karen Sampaio Braga, Deise Moraes Pinto et. al. –
Os advérbios.
Cap. 5 – Verena Kewitz, Maria Lúcia Leitão de Almeida, Janderson Lemos de Souza
e Carlos A. Gonçalves – As preposições: aspectos históricos e usos atuais.
61
Cap. 5 – Maria Aparecida C. T. de Morais e Rosane de A. Berlinck – O objeto indireto
na história do Português Brasileiro.
Cap. 6 – Rosane de A. Berlinck e Izete Lehmkuhl Coelho – A ordem do sujeito em
construções declarativas na história do Português Brasileiro.
Cap. 7 – Sílvia Regina de Oliveira Cavalcante – Revisitando as construções com SE na
história do Português Brasileiro.
Cap. 8 – Mary Aizawa Kato – Estruturas de focalização no Português Brasileiro dos
séculos XIX e XX.
Posfácio – Charlotte Galves – O retrato da emergência de uma nova gramática.
Vol. 7 – Maria Lúcia C.V.O. Andrade e Valéria Severina Gomes (coords.) – Tra-
dições discursivas do português brasileiro: constituição e mudança dos
gêneros discursivos. São Paulo: Editora Contexto, 2018.
Maria Lúcia C.V.O. Andrade e Valéria Severina Gomes – Introdução: Tradições discur-
sivas: reflexões conceituais.
Cap. 1 – Áurea Zavam e Valéria Severina Gomes – O editorial de jornal: revisitando
a trajetória de um gênero.
Cap. 2 – Cleber Ataíde e Tarcísia Travassos – A notícia de jornal entre conservação e
inovação: Tradições Discursivas e história da língua.
Cap. 3 – Fábio Fernando Lima – Tradição, persuasão, hegemonia: o noticiário sobre as
eleições em perspectiva diacrônica.
Cap. 4 – Paulo Roberto Gonçalves Segundo – Estrutura retórico-teleológica e negocia-
ção intersubjetiva em editoriais da imprensa de bairro.
Cap. 5 – Thiago Trindade Matias – História da carta de leitor: sobre aspectos composi-
cionais, conservação e dinamismo.
Cap. 6 – Ana C. de Sousa Aldrigue e Roseane Batista Feitosa Nicolau – Práticas
histórico-discursivas na seção “annuncios”de jornais no Brasil do século XIX.
Cap. 7 – Kelly Cristina de Oliveira – Tradições discursivas: uma análise dos anúncios de
emprego publicados em jornais brasileiros.
Cap. 8 – Maria Cristina de Assis – A escrita burocrática colonial: cartas oficiais dos
séculos XVIII E XIX.
Cap. 9 – Konstanze Jungbluth – Os livros de família pernambucanos do século XIX: o
aporte das escrituras pessoais dos autores semicultos nordestinos para a pesquisa da história do
português brasileiro.
Cap. 10 – Lucrécio Araújo de Sá Júnior – O bendito em manuscritos religiosos populares
da primeira metade do século XX ao início do século XXI.
62
Vol. 8 – Eduardo Penhavel e Marcos Rogério Cintra (coords.) – Abordagem dia-
crônica dos processos de construção textual
Eduardo Penhavel e Marcos Rogério Cintra – Introdução – Princípios teórico-analí-
ticos e objetivos.
Cap. 1 – Eduardo Penhavel – O processo de organização tópica em editoriais paulistas
dos séculos XIX e XX.
Cap. 2 – Alessandra Regina Guerra – O processo de organização tópica em cartas de
leitores paulistas dos séculos XIX e XX.
Cap. 3 – Marcos Rogério Cintra – O processo de referenciação em anúncios mineiros
dos séculos XIX e XX.
Cap. 4 – Marcos Rogério Cintra e Eduardo Penhavel – O processo de referenciação em
cartas de leitores mineiros dos séculos XIX e XX.
Cap. 5 – José Gaston Hilgert – O processo de parafraseamento em editoriais baianos
dos séculos XIX e XX.
Cap. 6 – Cleide Vilanova Hanisch – O processo de parafraseamento em anúncios baia-
nos dos séculos XIX e XX.
Cap. 7 – Solange de Carvalho Fortilli – O processo de repetição em cartas de leitores
catarinenses dos séculos XIX e XX.
Cap. 8 – Eduardo Penhavel – O processo de repetição em anúncios catarinenses dos
séculos XIX e XX.
Cap. 9 – Michel Gustavo Fontes – O processo de parentetização em editoriais pernam-
bucanos dos séculos XIX e XX.
Cap. 10 – Joceli Catarina Stassi Sé – O processo de parentetização em cartas de leitores
pernambucanos dos séculos XIX e XX.
63
Cap. 5 – Dante Lucchesi e Dinah Callou – Panorama sociolinguístico do Brasil no
século XIX.
Cap. 6 – Dinah Callou, Afrânio Barbosa, Juanito Avelar e Carolina Serra – Aspectos
da história demográfica e social do Rio de Janeiro: escolarização, norma e nacionalidade.
Cap. 7 – Emílio Pagotto e Dinah Callou – O ensino escolarizado e a constituição da
norma no Brasil.
Cap. 8 – Bessa Freire – História social das línguas indígenas.
Cap. 9 – Wagner Argolo – As línguas gerais.
Cap. 10 – Margarida T. Petter – História social das línguas africanas.
Cap. 11 – Gilvan Muller – História social das línguas de imigração.
64
Cap. 14 – Maria Lúcia da C. Victório de O. Andrade -Um estudo da expressão ‘muito
obrigado(a)’ no português.
65
Fernandes, Janaína Olsen e Marcel Caldeira. Uma parte desse capítulo foi apre-
sentada ao III Congresso Internacional de Linguística Histórica (Castilho, 2017).
Tratarei aqui da concordância por reanálise, aspecto instigante e intrigante das
regras de concordância.
i) Definição de concordância
Os autores do capítulo deixaram de lado a definição tradicional segundo a
qual a concordância é uma relação de dependência entre dois termos, ilustrando
o Princípio de projeção.
Optamos por entendê-la como uma relação de compartilhamento de traços
gramaticais entre dois termos, percepção mais conforme à abordagem adotada.
Assim, um termo X compartilha traços com um termo Y, ilustrando o Princípio
da recursão.
A abordagem multissistêmica, aplicada ao estudo da concordância, prevê um
conjunto de tarefas.
66
expressar concordância; (2) comportamento das palavras invariáveis; (3) papel
de coletivos e de quantificadores.
v) Discurso e concordância
Foram consideradas as seguintes categorias discursivas, em sua correlação com
a concordância: (1) tópico discursivo; (2) participantes do discurso; (3) gêneros
discursivos; (4) correlação entre frames semânticos e expressão da concordância.
67
(1) Flexão de palavras invariáveis no PB
(a) [19,1 CR RJ] contra as arbitrariedades praticadas pelo Senhor Feijó | como ministro
da Justiça he que nos endereçamos |arguições; arbitrariedades das ques o nosso corres- |
pondente jamais poderá victoriosamente justifica-lo
(b) [21, 1 Dif TT] Quês chances perdeu o Galo nesse jogo. Incrível!
(c) [21, 1 Dif TT] Cadês os amigos com piscina em casa?
(d) [21, 1 Dif TT] Ques música tocam nas baladas, meldels?
68
• Língua falada, documentada pelo Projeto NURC (=N) e pelo Banco de
dados Iboruna (=IB);
• Sites de internet: blogs (=BLG), sites diversos (=G);
• Redes sociais: Twitter (=TT), Facebook (=FB), Yahoo Answers (=YA), You-
Tube (=Dif. Vid.).
Todos os textos foram redigidos nos séculos XIX e XX.
(a) [19,1 CL CE] Ora cubra se de pejo, se ainda e é ca- | paz d’isso, senhor doutor Miguel,
e deixe-se de | semelhantes duellos, por que a sua sorte | será sempre o de – vencido,
quando pu- | gnar com armas iguaes a essas.
(b) [20, 1 CP RN] Não recebemos mais gado de João dos Santos, a | não ser as das par-
tidas de que já lhe forneci | as listas.
69
vencido equivale a a (sorte) de vencido; por essa razão, o que se esperava é que o
sintagma preposicionado em questão se encaixasse em um demonstrativo a, e
não num o.
Em (2b), esperava-se que o sintagma preposicional das partidas se encaixasse
em um demonstrativo o sem flexão de plural, tendo em vista que é o termo mas-
culino gado que está em questão. No entanto, ocorre a forma feminina com fle-
xão de plural, que compartilha esses traços com o sintagma nominal encaixado
as partidas, processando-se uma reanálise.
(a) [19, 2 CP BA] Continuarei aqui com o meu estudo de Quimica até Agosto: nesse
tempo deixarei a França com o intuito de vezitar as prizões milhormente estabelecidos
segundo o sistema penetenciario, que ainda aqui não existem, os estabelecimentos agrico-
las, e os trabalhos das minas.
(b) [19, 2 CP BA] Os Estados Unidos tem tambem um modelo de armas muito bons.
70
Em qualquer dessas interpretações haverá uma reanálise. Na interpretação
(1), o complementizador bons compartilha traço de gênero com seu núcleo
modelo, mas compartilha traço de número com um elemento periférico armas.
Na interpretação (2), o complementizador bons compartilha traço de número
com seu Núcleo armas, mas compartilha traço de gênero com o núcleo de outro
sintagma, modelo.
O falante ressaltou aqui o sistema da Semântica, que atuou mais visivel-
mente na concordância apurada. Assim, as duas interpretações mencionadas
podem ter-se cruzado na construção da sentença e na organização dos sintagmas
encaixados.
(a) [21, 1 Dif BLG] A tarefa de treinamento do toalete raramente é fácil, e para os pais
cujos filho sofre de autismo, essa tarefa normalmente difícil pode parecer quase impossível.
(b) [18, 2 CP MG] Resebi pelo portador huá oitava cuja torno a Remeter a vossa mercê.
(c) [21, 1 Dif TT] conheço pessoas cujas ja botaram fogo em si mesmas.
(d) [21, 1 Dif TT] Sdds [saudades] do boy cujo vi hj a tarde mas n falei com ele.
Em (4a), parece haver uma CR entre cujos e pais, uma vez que não se realiza a
concordância plena aí esperada. Essa interpretação é corroborada pela presença
do verbo sofrer no singular, ou seja, há uma indicação de que a referência é feita a
um único sujeito, um filho, estabelecendo-se uma relação entre um dado filho e
cada um dos pais indicados anteriormente. Outra análise possível é a instauração
de uma CØ entre cujos e filho, uma vez que, ao se referir ao elemento posterior,
cujo não está compartilhando traços de número com filho.
Em (4b-d), cujo estabelece uma CR com o constituinte anteposto (oitava,
pessoas, boi). Esse funcionamento de cujo ocorre desde o século XVIII, podendo
ainda ocorrer no PB atual.
71
3.2. Concordância verbal por reanálise
(a) [19, 2 CP BA] O Mont’alegre, e o Euzebio estão promptos á lhe servirem, e só lhes
faltam saber o como.
(b) [21,1] O vendedor daquela loja indicaram alguns rótulos interessantes.
(c) [21,1 SP Folha de São Paulo] Tratam-se de vários processos atrasados.
No exemplo (5 a), faltar concorda por reanálise com o objeto indireto lhes,
e não com o infinitivo sujeito saber; em (5b), indicaram concorda por reanálise
com o objeto direto alguns rótulos interessantes, e não com o sujeito o vendedor;
finalmente, em (5c), tratam-se concorda com o complemento oblíquo de vários
processos, numa sentença sem sujeito.
Como pode tratar-se de casos de hipercorreção, seria necessário verificar até
que ponto estruturas como (5c) não terão surgido depois da intensa pregação
gramatical em favor da concordância entre o verbo com se e a expressão nominal
seguinte – portanto, uma questão de história social.
Por outro lado, pode-se hipotetizar que a concordância entre o verbo e o argu-
mento interno aponta para a perda do caso abstrato no PB.
(a) [19, 1 CP SP] Secenta, etantas pessoas obtiveraõ votos para Deputados deCortes, que
abun= | dancia de luzes cobrem aos Paulistas!
72
(b) [20, 2] O mistério dos crânios humanos mergulharam na noite dos tempos.
(c) [20, 2] Um ponto dessas civilizações escapam à nossa compreensão.
(d) [21,1 SP, noticiário televisivo, 2012] O preço deles são cada vez mais altos.
(e) [21,1 SP, carta-circular enviada por uma professora de Português] Pessoal,
segunda feira vai haver a divisão das salas mesmo, né? O rendimento das aulas de Por-
tuguês ficam muito prejudicado com as salas tão grande.
(f) [21,1 SP, Folha de São Paulo] O comando das forças internacionais no Afeganistão
confirmaram ontem a morte de 12 civis.
(g) [21,1] As reclamações repetidos dos moradores desta cidade me obrigou a procurar
a autoridade.
(h) [21,1 SP, de um relatório científico] O levantamento dos fatos gramaticais de
variação e mudança ocorridos no período em análise possibilitam ainda um estudo (…).
(i) [21.1, jornal de Belém do PA] A população de 250.000 habitantes vivem em treze
municípios.
(j) [19, 1 CP SP] Meu respeitado Senhor, naõ pode o meu Coraçaõ | conter ojubilo, e
contentamento com a alegre noticia do | onorifico Lugar que Sua Alteza Real elevou ao Ill.
mo Ex.mo | Senhor Mano, a boa escolha que o Augusto Senhor teve e os | meresimentos
deste grande Menistro he para mim, e para todos Bra | zilleiros digno das mais alegres
esperanças.
(1) Eles vêm encaixados no SN sujeito anteposto que exibe, em geral, a estrutura
[Esp + Nome + SP introduzido por de], ocorrendo uma CR entre o verbo
e o SP.
(2) O núcleo nominal desse SN sujeito não exibe propriedades comuns: temos
aí substantivos concretos e abstratos (mistério, ponto, preço), um coletivo
(população) e deverbais (rendimento, comando, reclamação, levantamento).
(3) O complementizador vem maiormente introduzido pela preposição de,
que exibe o caso abstrato Genitivo, seguida por um substantivo no plural.
73
Com esse substantivo o verbo estabelece uma relação de concordância
por reanálise. Em (6c), o SP dessas civilizações, constituinte periférico de
um ponto, compartilha traços gramaticais de pessoa e número com esca-
pam, “destronando” o Núcleo ponto.
(a) [13:1299 HGP 216:24] (...) áátal preito que nos dedes ende cada ũu ano .v.e quar-
teiros de pam pela midida per que rreçebemos os outros cabedaes para a dita oueẽça, e séér
hũu quarteiro ende de tríjgo e os quatro de segunda e paguardes o fforo a Santiago, (...)
74
(b) [15:1414 HGP 107:22] Et por que esto seja çerto et nõ veña em dulta, rroguey et
mandey ao notario sub escripto que fezesse ende delo esta carta de testamẽto.
(a) [13 FR 167:10] Outrosy dementres que for em corte del rey, des aquel dya que se en
partir de sa casa por todo huu dia seya y seguro (E) el con todas sas cousas, (...)
(b) [14:1310 HGP 89:38] Et que isto sseia çerto e nõ uena em dulta, mãdamos uos en
facer esta carta desta uençõ feyta per Ares Peres, (...)
(a) [13 CA 223:8] E mia senhor, al vus quero dizer/de que sejades ende sabedor:/non
provarei eu, mentr’eu vivo for’, /de lhe fogir, ca non ei én poder:/Ca pois mi-Amor ante vos
quer matar,/matar-xe-mi-á, se me sem vos achar’.//
(b) [14:1314 HGP 151:33] (...) e da froyta toda que é feyt(a) ou que uos y fecerdes
daredes ende a mea;
A autora levanta a hipótese de que nos exemplos de (9), «não temos aí a pre-
posição de, pois salvo engano, sintagmas preposicionados por de não são redupli-
cáveis. Já os locativos sofrem redobramento, juntamente com outras classes».
E mais adiante, Moraes de Castilho (2015: 13) escreve:
Ende procede da forma latina inde, de que resultou a forma monossilábica en, muito
frequente no português arcaico e ainda hoje em várias línguas românicas: cf. Italiano
ne (ende de > ende > enne > ne), Francês en (ende de > en). (…)
O clítico locativo redobrado [en + de SN] passou por um longo processo de gramati-
calização que pode ser simplificadamente dividido em duas fases: (i) fase A, ou fase
do redobramento propriamente dito, e (ii) fase B, ou fase de simplificação do redo-
bramento. (...) Estas devem ter sido as alterações fonológicas da estrutura B: [[ende de]
N]] > [endede N] > *[endde N] > [en de N] > [de N]”.
75
Segundo essa explicação, portanto, é o locativo de que ocorre na CR, tendo-se
tornado homófono à preposição de.
(a) [19, 2 CP BA] Da-me todas estas informações, que agradaveis me são por que nellas
deves julgar enteressadas meus proprios prazeres.
(b) [19,2 CL SP] Se mora, como diz na rua do Matafome, é bom que | saiba que nem
todos querem matar a fome; e que quem | já foi 3 vezes a cadêa, por 24 horas cada uma
deve | sempre andar munida de limão azedo.
76
não apresentasse flexão de gênero, no caso, ou de número, tendo em vista que o
Núcleo do SN que funciona como sujeito (quem) não exibe essas marcas, invia-
bilizando o compartilhamento de traços.
(a) [19, 2 CP PR] O nosso commercio atra- | vessa uma phase lamentavel devido á
elementos | controversos ao seu progresso: por um lado a secca | que assolam a lavoira,
tendo de se importar | feijão, farinha, milho e outros mantimentos em con- | sequencia
da precariedade dos nossos, por outro | o recrutamento aberto que faz com que os consu- |
midores se evadão dos centros commerciaes e popu- | losos, pelo pavor que lhes inspirão
a sorte de | servirem o paiz como soldados, por ser uma | classe carecedora de prestigio e
moralidade.
(b) [19, 2 CL PR] Quanto a propalada demissão, rio-me | della, não vacillo entre a defeza
de meus | brios offendidos e as vantagens que me | trazem o cargo. || Finalmente ouvio o
offendido demita o | secretario || Romão Rodrigues de Oliveira Branco.
(c) [19, 2 CP BA] Tive o prazer de receber sua presada| carta de 24 do passado, centindo
entretanto os padecimentos que lhe trouxeram a operação, da qual| o desejo restabelecido.
(d) [20, 1 CP BA] Hoje completam 20 dias de minha espectativa, que já começavam a
se tornar insuportavel.
77
gramaticais com a secca, antecedente do pronome relativo que, acaba compar-
tilhando esses traços com um elemento extrassentencial, elementos controversos.
Observa-se que o autor da carta categoriza a seca que assola a lavoura e o
recrutamento aberto como elementos controversos, apresentado prospectivamente.
Tratando dessa relação de modo análogo à relação lexical de hiperonímia/hipo-
nímia, podemos dizer que esses elementos são co-hipônimos de elementos con-
troversos. Pode-se sugerir que assolam tenha manifestado a marca de plural por
ter se combinado com o hiperônimo em vez de secca, um dos hipônimos, com-
partilhando o traço de número com o primeiro. Do ponto de vista semântico,
o verbo assolam é compatível tanto com secca como com elementos controversos, o
que pode ter dado lugar à relação com o hiperônimo.
Na segunda CR do exemplo (11 a), o recrutamento aberto que faz com que os con-
sumidores se evadão dos centros commerciaes e populosos, pelo pavor que lhes inspirão a
sorte de servirem o paiz como soldados, o verbo inspirão deixa de compartilhar traços
com seu sujeito posposto a sorte de servirem o paiz como soldados, compartilhando
traços com o argumento interno anteposto, lhes; mais um exemplo que demons-
tra que não há correlação categórica entre argumentos sintáticos e concordância.
Note-se que, neste caso, o antecedente do pronome relativo, o argumento interno
o pavor, parece não ter tido influência sobre o compartilhamento de traços, mas
a construção adjetiva pode ter contribuído para a reanálise, já que estão em jogo
três argumentos para o verbo inspirão, que sofrem a interveniência de um que com
função relativa, provavelmente já em enfraquecimento no PB.
Já nos exemplos (11 b, c), a CR envolve o argumento interno antecedente do
pronome relativo. Nesses dois casos, o argumento interno antecedente do rela-
tivo é constituído por um sintagma nominal plural (as vantagens e os padecimen-
tos), e o sujeito posposto ao verbo vem no singular (o cargo e a operação). O verbo
compartilha flexão de plural com o antecedente (as vantagens … trazem; os pade-
cimentos … trouxeram), quebrando a expectativa de CP com o sujeito posposto.
O exemplo (11d) chama atenção o fato de o próprio autor da carta ter identifi-
cado a CR que tinha produzido, encarando-a como um erro, já que o documento
registrou a correção da letra m, que representa o morfema da terceira pessoa do
plural, letra essa que aparece riscada. Este dado, apesar da correção, continua
sendo relevante, já que o real processo envolvido na manifestação da concordân-
cia é o que se procura identificar aqui.
78
Nessa reanálise, ocorreu o contrário do que se demonstrou em reanálises
em que o sintagma nominal encaixado por intermédio de um SP em outro SN
compartilha traços gramaticais com o verbo do qual não era sujeito, ou mesmo
antecedente de um pronome relativo. Aqui, quando o SN encaixado minha expec-
tativa é, de fato, antecedente de um sujeito que, ele não compartilha traços com o
verbo da sentença que esse relativo introduz; o verbo compartilha traços com o
primeiro sintagma nominal, 20 dias.
Esses diferentes exemplos mostram que a CR é um fenômeno bastante com-
plexo e que carece de estudos aprofundados para sua compreensão.
Conclusões
79
Tabela 1 – Comportamento geral da concordância na história do PB,
nos documentos analisados
Século CP CR CØ
Total por século XVIII 271/298 (90,94%) 1/298 (0,34%) 26/298 (8,72%)
– cartas particu-
lares e cartas de XIX 3579/3801 (94,15%) 17/3801 (0,44%) 205/3801 (5,39%)
leitores XX 2868/3071 (93,39%) 3/3071 (0,10%) 200/3071 (6,51%)
Total 6718/7170 (93,69%) 21/7170 (0,29%) 431/7170 (6,01%)
80
Postulamos que essas motivações ocorrem conjunta e simultaneamente, sem
determinação de umas sobre outras, evidenciando a integração dos diferentes
componentes da concordância, como uma das manifestações da complexidade
da língua.
Considerando o texto maior em que este trabalho se baseia, vejamos o que se
pode aprender nas relações entre o Léxico, a Gramática, a Semântica e o Discurso
e a concordância.
1. Léxico e concordância
As
• seguintes classes expressam concordância: substantivo, adjetivo, artigo,
pronomes, verbo.
Não
• expressam concordância as conjunções, as preposições e os advérbios,
embora alguns destes possam exibir o feminino, como em menas pessoas.
Substantivos
• que apresentam gênero natural (quando o gênero do subs-
tantivo corresponde ao sexo real do ser a que se refere) favorecem a CP
de gênero; substantivos que apresentam gênero arbitrário permitem mais
facilmente a CØ de gênero.
Substantivos
• coletivos e expressões quantificadoras relacionam-se com a CØ
de número.
2. Gramática e concordância
A
• posição dos termos X e Y relaciona-se com a regra apurada: (1) a anteposi-
ção do termo X em relação ao termo Y relaciona-se com a CP; (2) a posposi-
ção e o distanciamento relacionam-se com a CØ.
As
• categorias gramaticais de gênero e número têm um comportamento assi-
métrico, mantendo-se com mais vigor a CP de gênero.
Por
• conta disso, os especificadores mantêm os traços de número e pessoa
quando as outras classes os perdem. Isso se correlaciona com o fato de os
especificadores ocuparem a primeira posição na sentença – justamente aquela
mais suscetível de expressar traços gramaticais, dada sua relevância discursiva,
como introdutora do Tema. O trabalho de Rodrigues/Campos (2015) iden-
tificou o peso relativo .94 (= quase categórico) na expressão do plural das
classes nessa posição.
81
A estruturação desses termos correlaciona-se igualmente com a regra apurada:
•
(1) sintagmas leves relacionam-se com a CP; (2) sintagmas pesados relacio-
nam-se com a CR.
A
• CR parece apontar para uma quebra da categoria de caso no PB, tendo-
-se apurado concordância entre (i) o verbo e o argumento interno; (ii) o
verbo e o adjunto adnominal genitivo e comitativo; (iii) o verbo e o adjunto
adverbial. Estes argumentos sentenciais, portanto, vêm perdendo os casos
indicados, de manifestação abstrata, que já haviam desaparecido na morfo-
logia do substantivo latino-vulgar. Discutimos se a palavra de frequente nas
CRs é realmente uma preposição, postulando-se que se trata de um locativo
homônimo.
As
• ocorrências de CØ apontam para o desaparecimento da concordância.
Nesses casos, observa-se uma harmonia transcategorial no comportamento
do especificador nominal (= artigo, demonstrativo, possessivo, quantifica-
dor) e do especificador sentencial (= sujeito), pois esses constituintes passam
a expressar o gênero e o número.
3. Semântica e concordância
Adjetivos predicativos e verbos predicativos relacionam-se com a CP.
•
Como
• era de se esperar, as representações da categoria cognitiva de quan-
tidade assumem um papel crucial nas regras de concordância: (i) Quanti-
ficação definida se relaciona com a CP. (ii) Quantificação indefinida, com
CØ. (iii) O plural morfológico expresso pelos morfemas{-s} e {-mos} flu-
tuam nos enunciados, como em a casas/ as casa/ques coisa, devemos falar/deve
falarmos, exibindo a mesma propriedade de flutuação do item lexical todo,
tudo. Quando o falante aparenta não saber bem como operar com a expres-
são de certas categorias, ou elas estão desaparecendo, ou estão passando
por grandes alterações em sua representação – e este parece ser o caso do
PB.
Os frames semânticos se correlacionaram com a expressão da concordância.
•
4. Discurso e concordância
O tópico discursivo correlaciona-se com as regras de concordância.
•
82
Gêneros
• discursivos correlacionam-se com a concordância: nas cartas de lei-
tores prevalece a CP, por se tratar de textos mais monitorados; ao contrário,
nas cartas pessoais prevalece a CØ.
Foricidade
• e concordância compartilham propriedades, visto que ambos
exemplificam o Princípio de recursão. Isso reforça a dimensão discursiva da
concordância.
83
regras de concordância. Para além do que se disse acima, ao mesmo tempo em
que um termo de uma determinada estrutura perde a flexão, outros termos pas-
sam a adquirir flexão em outros contextos.
Concluímos que, no geral, o funcionamento diacrônico da CP, da CR e da CØ
nas Cartas particulares e nas Cartas de leitores aponta para relações relativamente
estáveis, e que a instauração de novas relações de concordância é um ponto bas-
tante complexo a ser investigado.
Acreditamos que este capítulo tenha apontado vários casos que merecem a
atenção dos pesquisadores interessados na história da concordância. Em sua
continuação, completaremos o exame do corpus do PHPB e recuaremos as análi-
ses ao século XVI.
Finalmente, ressalto que os volumes que compõem a série História do Portu-
guês Brasileiro foram preparados, em sua grande maioria, por uma nova geração
de linguistas brasileiros. Eles apresentam aqui os resultados de suas pesquisas,
tratando de novos temas, concorrendo assim para um conhecimento mais apro-
fundado da história do Português Brasileiro.
Reforça-se, mais uma vez, o modo brasileiro de fazer Linguística por meio de
projetos coletivos, em que convivem especialistas de diferentes orientações teóri-
cas, unidos num temário compartilhado.
Esses temas levantam questões típicas da România Nova, entre outras:
Qual
• é, e como é o Latim vulgar do Português Brasileiro, e quais são suas
fontes?
Que
• materiais escritos revelam traços da variedade vernacular, estritamente
falada?
Como se apresentam nesses materiais as categorias da Gramática, do Léxico,
•
84
Lembre-se por fim que a série História do Português Brasileiro fará dessa
variedade a língua mais investigada na România Nova, do ponto de vista de sua
diacronia. Já o tinha sido, do ponto de vista da descrição gramatical da língua
culta falada. O Atlas Linguístico do Brasil (ALiB) agregará a isto a descrição do PB
vernacular.
Precisaremos logo trilhar caminhos de amplitude maior, comparando a his-
tória do Português Brasileiro à história do Espanhol da América, ou seja, precisa-
remos deslocar nossa mirada para a România Nova.
Mary Kato e Francisco Ordóñez, coordenadores do grupo de trabalho homô-
nimo, da Associação de Linguística e Filologia da América Latina, deram um
passo significativo nessa direção, ao publicarem seus resultados obtidos desde
2005, aquando da primeira reunião dos pesquisadores (Kato/Ordóñez, 2016).
Como se vê, mais pesquisas aguardam os linguistas latino-americanos e os
europeus.
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AUGUSTO SOARES DA SILVA
Universidade Católica Portuguesa – Braga
[email protected]
ORCID: 0000-0001-7951-5194
P r o t o t y p e s a n d s u b j e c t i f i c at i o n i n l e x i c a l
and constructional semantic change
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_3
and exemplars that we deem more representative in our cultural and social contexts. The
motivations behind semantic change, both semasiological and onomasiological, as well as
its typical features and mechanisms can be explained in terms of prototypicality effects,
which respond to principles of cognitive efficiency. The subjectification or development
of meanings grounded in perspectives, beliefs and attitudes of the conceptualizer/speaker
is a general tendency of semantic change but, contrary to what the literature suggests, it
does not constitute an autonomous mechanism of semantic change. Rather, it is an effect
of prototypicality and of basic mechanisms of semantic change, especially metonymy. After
identifying the main dimensions of semantic change and the conceptual map of historical
semantics, and after arguing that cognition, discourse and semantic change are closely
connected, we discuss and analyze the impact of prototypicality and subjectification on
semantic change based on examples of lexical and constructional change in Portuguese.
Finally, we associate semantic change with the regular processes of grammaticalization and
constructionalization.
Keywords: semantic change, prototypicality, subjectification, cognition, historical
semantics
1. Introdução
90
bal, tanto no processo cognitivo de alteração ou inovação como no processo
social de propagação da inovação pelos membros da comunidade, pelo que
estudar a mudança semântica implica uma perspetiva centrada no uso e que
dê conta dos processos cognitivos e das estratégias pragmático-discursivas
envolvidos, para com eles se compreender o como (mecanismos) e o porquê
(motivações) da mudança semântica. Para esta abordagem centrada no uso,
cognitiva e pragmática da mudança semântica, muito tem contribuído a Lin-
guística Cognitiva (Geeraerts/Cuyckens, 2007, para uma visão de conjunto),
nos últimos 35 anos. Importantes teorias da Linguística Cognitiva, como a
teoria do protótipo, a teoria da metáfora e da metonímia conceptuais, a teoria
das redes radiais e esquemáticas, a teoria da subjetificação, combinadas com
teorias da Linguística Funcional, como a teoria da inferenciação sugerida e a
abordagem pragmático-discursiva da gramaticalização, muito têm contribuído
para o desenvolvimento da Semântica Histórica. Em Winters/Tissari/Allan
(2010) e Allan/Robinson (2012) encontram-se estudos bem representativos de
Linguística Histórica Cognitiva e de Semântica Histórica Cognitiva. O mani-
festo interesse da Linguística Cognitiva pela mudança semântica, motivado
pelo seu interesse pelo dinamismo e flexibilidade do significado linguístico
e pela natureza experiencial da linguagem, de que a experiência histórica é
uma componente essencial, tem levado a colocar os fenómenos de mudança
semântica no centro da agenda de investigação linguística e tem levado a
Semântica Cognitiva a revalorizar os temas de investigação da semântica his-
tórico-filológica do séc. XIX.
Neste estudo, analisaremos a prototipicidade e a subjetificação como moti-
vações e mecanismos fundamentais dos processos de mudança semântica,
tanto lexical como construcional. Na linha dos estudos de Geerarerts (1997)
sobre semântica do protótipo diacrónica, evidenciaremos a importância dos
efeitos de prototipicidade para as motivações conceptuais e funcionais, as
características e os mecanismos da mudança semântica. Partindo das conce-
ções cognitiva (Langacker, 1990, 1999) e pragmática (Traugott, 1989, 1995)
da subjetificação, argumentaremos que, embora represente uma tendência
geral e muito produtiva de mudança semântica, a subjetificação não é um
mecanismo autónomo da mudança semântica, mas antes um efeito de meca-
nismos cognitivos mais básicos, como a metonímia, e também um efeito de
91
prototipicidade. Mostraremos também como prototipicidade e subjetificação
evidenciam a interação e complementaridade de fatores conceptuais e fatores
pragmático-discursivos no processo de mudança semântica.
Começaremos por identificar as principais dimensões da mudança semân-
tica e, com base nelas, delinearemos o mapa conceptual da Semântica Histórica,
evidenciando os contributos da Semântica Cognitiva para o desenvolvimento
da Semântica Histórica, em comparação com outras teorias semânticas, como
a Semântica Histórico-Filológica, a Semântica Estrutural e a Semântica Gene-
rativa. Exploraremos depois as relações estreitas entre cognição, discurso e
mudança semântica. Seguidamente, estudaremos o papel da prototipicidade e
da subjetificação na mudança semântica, com base em exemplos de mudança
lexical e de mudança construcional da língua portuguesa. Finalmente, tratare-
mos da relação entre a mudança semântica e os processos regulares e produ-
tivos de gramaticalização e construcionalização.
92
siológica. Também semasiológica é a mudança bem mais recente do adjetivo
brutal de ‘próprio dos animais, cruel’ para ‘impressionante, extraordinário’. Já
o facto de o conceito de ‘permitir’ passar a ser designado, nos finais do séc.
XV, não só pelo verbo deixar, mas também pelo verbo permitir configura uma
mudança onomasiológica. E o facto bem mais recente de o conceito intensi-
ficador ‘impressionante, extraordinário’ passar a ser expresso também pelo
adjetivo brutal ou o intensificador de nomes poder ser expresso também,
sobretudo no português brasileiro, pelo adjetivo anteposto bruto ou bruto
de (como em (um) bruto susto/problema, (um) bruto de um susto/problema)
instancia uma mudança onomasiológica.
A segunda distinção é entre a dimensão qualitativa da mudança semântica,
que envolve as novas entidades quer semasiológicas (novos significados) quer
onomasiológicas (novas designações) e os mecanismos que deram origem a
essas inovações e mudanças, e a dimensão quantitativa da mudança semân-
tica, que tem a ver com diferenças de saliência dessas entidades (mudanças
implicadas por efeitos de prototipicidade) e desses mecanismos (existência de
mecanismos preferenciais).
A terceira distinção aplica-se à mudança semasiológica e dá-se entre sig-
nificado referencial ou denotacional e significado não-referencial ou cono-
tacional (emotivo, estilístico, sociolinguístico ou discursivo), daí resultando a
distinção entre mudança do significado referencial e mudança do significado
não-referencial.
Outras duas distinções devem ainda ser feitas. Uma é entre saber por que
surgem novos significados ou novas palavras ou construções, isto é, quais
as motivações ou causas da mudança, e saber como surgem esses novos sig-
nificados ou novas palavras, isto é, quais os mecanismos da mudança. Os
mecanismos da mudança não podem, pois, ser confundidos com as causas
da mudança: estas especificam as razões da realização efetiva dos desenvol-
vimentos potenciais possibilitados por aqueles. Uma última distinção tem a
ver com os mecanismos de mudança semântica e opõe os mecanismos lexi-
cogenéticos (ou gramaticogenéticos) de mudança semasiológica ou formação
de novos significados e de mudança onomasiológica ou formação de novas
designações e os mecanismos sociolexicológicos (ou sociogramaticais) de
propagação de mudanças individuais semasiológicas e onomasiológicas pela
93
comunidade linguística. Os primeiros são mecanismo cognitivos de inovação,
ao passo que os segundos são mecanismos sociais de difusão.
Estas cinco distinções permitem desenhar o mapa conceptual da Semân-
tica Histórica, sistematizado na Tabela 1. As duas dimensões estruturantes
são, por um lado, a distinção entre semasiologia diacrónica e onomasiologia
diacrónica, isto é, mudança semasiológica e mudança onomasiológica, respe-
tivamente, e, por outro lado, a distinção entre mudança qualitativa e mudança
quantitativa. O mapa vale tanto para a mudança semântica lexical quanto para
a mudança semântica construcional ou gramatical.
Qualidade: Quantidade:
entidades e relações diferenças de saliência
semasiologia novos sentidos e mecanismos de características prototípicas da
diacrónica mudança (metáfora, metonímia, etc.) mudança
onomasiologia novas designações e mecanismos mecanismos preferenciais
diacrónica de mudança (formação de palavras, (metáforas/metonímias
neologismo, empréstimo, etc.) dominantes, etc.)
94
Semântica Cognitiva amplia o mapa da semasiologia e onomasiologia diacró-
nicas para investigar também os aspetos quantitativos da mudança semasioló-
gica, especificamente os efeitos de prototipicidade na mudança, bem como da
mudança onomasiológica, concretamente mecanismos preferenciais, metáfo-
ras e metonímias dominantes, tendências de conceptualização de alvos ono-
masiológicos e trajetórias de lexicalização. Além disso, a Semântica Cognitiva
tem investigado também os mecanismos sociolexicológicos tanto da mudança
semasiológica como da mudança onomasiológica, contribuindo assim para o
desenvolvimento da onomasiologia pragmática e da sociolexicologia, pratica-
mente inexistentes nas tradições semânticas anteriores.
É interessante notar a afinidade entre a Semântica Cognitiva e a Semântica
Histórico-Filológica na conceção da mudança semântica: ambas se interessam
pela flexibilidade e contextualidade do significado, bem como pelos meca-
nismos cognitivos subjacentes à mudança semântica e à polissemia, como
a metáfora e a metonímia. Como assinala Geeraerts (2010a, 2010b), ambas
partilham de uma conceção psicológica da mudança semântica como um
processo baseado em mecanismos cognitivos e de uma conceção pragmá-
tica da mudança semântica como um processo baseado em atos individuais.
A orientação psicológica da Semântica Histórico-Filológica está bem patente
em Michel Bréal (1897): Bréal define o significado linguístico como um fenó-
meno psicológico e a mudança de significado como o resultado de proces-
sos psicológicos (Silva, 2006: 20-23). A orientação pragmática da Semântica
Histórico-Filológica é ilustrada por Herman Paul (1920): Paul distingue entre
significado usual, estabelecido e partilhado pelos membros de uma comuni-
dade linguística, e significado ocasional, que é a concretização que um con-
ceito mais ou menos geral recebe num contexto particular de comunicação;
com base nesta distinção, Paul concebe a mudança semântica em termos de
modulações de significados usuais em significados ocasionais.
95
e uma dimensão pragmática, como processo que ocorre na interação verbal
e resulta da difusão e convencionalização da alteração do uso. Todavia, tem
havido uma certa tensão entre a perspetiva pragmática e a perspetiva cog-
nitiva da mudança semântica. Argumenta-se, por exemplo, que ocorrendo a
mudança semântica necessariamente no uso, ela só pode ser explicada como
resultado da convencionalização de implicaturas conversacionais ou de infe-
rências contextualmente sugeridas. Keller (1994) e Traugott (1999) enfatizam
a dimensão pragmática da mudança semântica, preferindo entendê-la mais
como uma questão pragmática de comunicação do que como um problema
cognitivo de conceptualização. Na mesma perspetiva pragmática, Lima (1999,
2014) considera que nem a metáfora nem a metonímia podem explicar satis-
fatoriamente a mudança semântica, visto que é necessário um processo de
convencionalização para que a mudança ocorra e, durante esse processo, a
ligação à metáfora ou à metonímia pode perder-se.
Ora, sendo verdade que os aspetos pragmáticos da mudança semântica
são cruciais, pela razão fundamental de que a mudança semântica só pode
ocorrer na interação verbal, também é verdade que os falantes quando alte-
ram os significados convencionais estão, intuitiva ou inconscientemente, a
utilizar operações mentais de conceptualização e mecanismos cognitivos
para essa mudança. Efetivamente, a alteração do uso convencional implica
que o falante faça uma escolha de como conceptualizar determinada enti-
dade/situação, mais especificamente que estruturas semânticas têm que ser
alteradas e que mecanismos cognitivos têm que ser aplicados (Győri, 2002).
A mudança semântica não poderá, pois, ser inteiramente explicada apenas em
termos pragmáticos, justamente porque a linguagem não é apenas um meio
de comunicação.
Quer isto dizer que a perspetiva pragmática e a perspetiva cognitiva da
mudança semântica não são incompatíveis, como por vezes se quer fazer enten-
der, mas antes que fatores conceptuais e fatores pragmáticos são dimensões
interatuantes e complementares da mudança semântica (Silva, 2008, 2013). Os
novos significados das palavras ou construções e as novas designações emer-
gem no uso atual da língua, a nível do discurso, em termos de interpretações
que não são explicitamente expressas mas pretendidas ou, pelo menos, per-
mitidas pelo locutor e interlocutor, isto é, na forma de inferências sugeridas
96
(Traugott/Dasher, 2002). Mas a mudança semântica envolve necessariamente
também princípios gerais e mecanismos da cognição humana como a catego-
rização, a prototipicidade, a metáfora e a metonímia conceptuais, a (inter)sub-
jectificação e outras operações de perspetivação conceptual, como os estudos
diacrónicos de Semântica Cognitiva (Sweetser, 1990; Geeraerts, 1997; Blank/
Koch, 1999; Winters et al., 2010) têm demonstrado.
Relevando a importância da Linguística Cognitiva para o estudo da
mudança semântica, podemos identificar três principais contribuições da
Semântica Cognitiva para a Semântica Histórica. A primeira contribuição mos-
tra como a noção de saliência conceptual ou prototipicidade é chave descri-
tiva e explicativa dos processos de mudança semântica e como aquela noção
permite compreender como mudanças específicas interagem com o sistema
linguístico ou como a mudança implica uma dialética entre sistema e uso
(Geeraerts, 1997). Desta contribuição, ocupar-nos-emos mais adiante.
A segunda contribuição responde à questão das possíveis regularidades ou
tendências da mudança semântica, mostrando a existência de mecanismos
conceptuais de mudança semântica, sejam padrões metafóricos e metonímicos
de mudança semântica (Sweetser, 1990; Koch, 2008, 2012), sejam processos
produtivos de mudança semântica como a inferenciação sugerida (Traugott/
Dasher, 2002), a subjetificação (Traugott, 1989, 1995; Langacker, 1990, 1999),
de que falaremos mais adiante, a gramaticalização (Heine/Claudi/Hünne-
meyer, 1991; Traugott/Dasher, 2002), a lexicalização (Blank/Koch, 1999) e
a construcionalização (Traugott/Trousdale, 2013). A terceira contribuição,
sendo ainda a menos desenvolvida das três, versa os mecanismos sociais da
mudança semântica, em particular a natureza intrinsecamente social do pro-
cesso de convencionalização semântica, e conta já com promissoras áreas
de investigação, como a onomasiologia pragmática (Grondelaers/Geeraerts,
2003), a sociolinguística cognitiva (Kristiansen/Dirven, 2008; Geeraerts/Kris-
tiansen/Peirsman, 2010; Silva, 2014b) e o modelo evolucionista da mudança
linguística de Croft (2000).
Merece especial destaque o modelo evolucionista de Croft (2000), inspi-
rado no evolucionismo neodarwiniano, particularmente na Teoria Genera-
lizada da Seleção elaborada por Hull (1988), e no modelo pragmático de
máximas conversacionais de Keller (1994). Croft mostra como o uso da língua
97
é o lugar próprio da mudança linguística: não são as línguas que mudam, mas
os falantes que mudam as línguas através das suas ações linguísticas. Mostra
ainda como a mudança linguística é um processo de duas etapas, tal como o
é a evolução: a etapa da replicação alterada ou inovação rompendo com a
convenção linguística e a etapa da seleção ou propagação de alguma(s) das
novas variantes linguísticas criadas (para uma análise desenvolvida e aplicada
ao português, ver Silva, 2010, 2014a).
98
raerts, 1988): (i) densidade informativa, possibilitando máxima informação
com o mínimo esforço; (ii) flexibilidade, permitindo aos falantes adaptar a
categoria a novas circunstâncias e experiências e nela integrá-las; e (iii) esta-
bilidade estrutural, permitindo interpretar novos factos através do conheci-
mento já existente e, assim, evitar que aquela flexibilidade torne a categoria
comunicativamente ineficiente. As categorias prototípicas tornam o sistema
conceptual mais económico e têm a enorme vantagem de facilmente se adap-
tarem à inevitável variação e mudança da realidade e de funcionarem como
modelos interpretativos das novas condições, situações ou necessidades.
EXTENSIONALMENTE INTENSIONALMENTE
(a nível dos referentes) (a nível dos significados)
(1) g
raus de representatividade (2) agrupamento de significados
entre os membros de uma em “parecenças de família” e
categoria sobreposições
SALIÊNCIA
↓ ↓
(estrutura
(a) m
udança semântica como (b) mudança semântica como alte-
centro-periferia)
modulações de centros pro- ração da estrutura de significa-
totípicos dos em “parecenças de família”
e sobreposições
(3) fl
utuações nas margens de (4) impossibilidade de definições
uma categoria, ausência de em termos de “condições ne-
limites nítidos cessárias e suficientes”
FLEXIBILIDADE
↓
(problemas
↓ (d) natureza enciclopédica da
de demarcação)
(c) m
udanças semânticas eféme- mudança semântica: mudança
ras (poligénese semântica) a partir de aspetos contextuais
de significados já existentes
99
por parecenças de família e em estruturas radiais; (3) a ausência de limites
precisos entre diferentes categorias, havendo assim flutuações nas margens
de uma categoria; e (4) a impossibilidade de definição de uma categoria em
termos de um conjunto de atributos necessários e suficientes, não podendo
assim postular-se definições essencialistas.
A prototipicidade é uma das principais motivações da mudança semân-
tica. Geeraerts (1997) demonstra que os processos de mudança semasioló-
gica tomam determinadas formas implicadas por efeitos de prototipicidade
na estrutura interna das categorias. A Tabela 2 sintetiza os quatro efeitos de
prototipicidade, indicados em (1)-(4), e as quatro características da mudança
semântica, indicadas em (a)-(d), geradas por aqueles efeitos.
Primeiro, as diferenças de saliência entre os elementos do campo de apli-
cação referencial de uma categoria (1) fazem com que mudanças na extensão
de um único significado tomem a forma de modulações do seu centro proto-
típico e de uma consequente expansão deste (a). Segundo, o agrupamento de
significados em parecenças de família (2) faz com que mudanças na intensão
de uma categoria envolvam, não sentidos individuais e isolados, mas todo o
conjunto de sentidos assim agrupados (b): é esta estrutura radial que se altera,
ora na forma de desenvolvimentos a partir de vários sentidos coexistentes
e/ou desaparecimentos de sentidos periféricos, ora na forma de reorganiza-
ções de protótipos. Terceiro, a flexibilidade extensional ou ausência de limites
nítidos (3) explica que a mudança tome a forma de modulações efémeras das
margens de uma categoria, de que pode resultar uma poligénese semântica
(c), isto é, o facto de um mesmo significado surgir mais do que uma vez na
história da palavra. Finalmente, a flexibilidade intensional ou impossibili-
dade de uma definição em termos de condições necessárias e suficientes (4)
determina a natureza enciclopédica da mudança semântica (d), no sentido de
esta poder envolver qualquer informação associada a determinado item lexi-
cal e, consequentemente, um novo sentido poder surgir, não de um sentido
já existente como um todo, mas de um subconjunto pragmático ou de uma
inferência. Sintetizando as quatro características, a mudança semasiológica
pode consistir numa modulação do centro prototípico (a), numa alteração
do agrupamento de significados por parecenças de família (b), em mudanças
efémeras (c) e em mudanças a partir de matizes contextuais (d).
100
O desenvolvimento histórico do verbo deixar, que deriva do verbo latino
laxare ‘afrouxar, relaxar’, é um bom exemplo da relevância da prototipicidade
nos processos de mudança semântica (ver Silva, 1999, 2003, 2006: 185-218).
Foi a partir do sentido de ‘largar, soltar’, uma aplicação metonímica de laxare
que se tornou prototípica por volta do séc. II d.C., que se formaram, ainda
no latim pós-clássico e tardio, os dois grupos de sentidos atuais – ‘abandonar’
e ‘não intervir’. Do latim tardio ao português, o desenvolvimento semântico
de deixar envolve um processo de desprototipização de ‘largar, soltar’ e duas
reestruturações semasiológicas prototípicas à volta dos dois novos protótipos
de natureza psicossocial: ocorrem, de um lado, a prototipização de ‘permi-
tir, autorizar’ e, mais tarde, como resultado do reforço da passividade do
sujeito, a prototipização de ‘não intervir’ e, do outro lado, a prototipização de
‘abandonar’. A desprototipização de ‘largar, soltar’ deu origem a uma tensão
homonímica entre os dois novos grupos de sentidos. Mas a homonimização
de deixar (ainda) não se consumou. O fator principal que garante uma certa
coesão semântica interna são as transformações de esquemas imagéticos que
estão por trás dos dois grupos de sentidos: as duas categorias ‘abandonar’ e
‘não intervir’ estão ligadas entre si por uma inversão do participante dinâmico
(o sujeito em deixar ‘abandonar’ e o objeto em deixar ‘não intervir’).
Ilustrando os efeitos de prototipicidade na mudança semasiológica do
verbo deixar, a característica (a) vê-se nas sucessivas modulações do protó-
tipo original ‘largar, soltar’ e dos protótipos que lhe seguiram. A característica
(b) documenta-se na emergência e na perda de sentido de laxare e na rees-
truturação de protótipos. Os novos sentidos de laxare no latim pós-clássico e
tardio, como ‘abandonar’, ‘permitir’, ‘legar’, surgiram do novo protótipo ‘largar,
soltar’, mas com influências de antigas e novas aplicações: por exemplo, o
sentido normativo ‘permitir, autorizar’ formou-se daquele protótipo através do
sentido, também derivado e sociomoral, de ‘conceder (dom, direito), perdoar,
isentar’. Ao mesmo tempo, desapareceram sentidos primitivos, como ‘alargar,
estender’ e, um pouco mais tarde, ‘afrouxar, relaxar’, e ainda o sentido deri-
vado ‘perdoar, isentar’. Além disso, a desprototipização de ‘largar, soltar’ nos
finais da latinidade abriu caminho à prototipização de ‘abandonar’, de um
lado, e de ‘permitir, autorizar’, do outro, e esta reestruturação de protótipos,
consumada no português antigo, foi seguida de uma outra, que levou à proto-
101
tipização do sentido passivo de ‘não intervir’, em detrimento do sentido ativo
‘permitir, autorizar’. O desenvolvimento dos sentidos trivalentes de deixar, a
começar por ‘ir embora depois de ter deslocado (o objeto)’, ilustra a caracte-
rística (d). Este sentido espacial trivalente e, através dele, os outros sentidos
trivalentes (‘ir embora depois de ter alterado/de ter transferido a posse, isto
é, legar’) surgiram de uma reanálise de um subconjunto contextual e prag-
mático bivalente do protótipo, designadamente ‘x larga, solta y, num determi-
nado lugar’, na estrutura trivalente ‘x deixa y num determinado lugar’.
Importa notar que a inferenciação sugerida, proposta por Traugott/
Dasher (2002) como processo fundamental da mudança semântica, pelo qual
esta ocorre quando inferências que emergem em contextos específicos se
generalizam e posteriormente se convencionalizam como significado codifi-
cado associado a determinada construção, encontra aqui o seu lugar próprio.
A convencionalização de inferências sugeridas corresponde à característica
(d) da mudança semasiológica, indicada na Tabela 2, isto é, ela resulta de um
efeito de prototipicidade e toma a forma de uma mudança a partir de um sub-
conjunto pragmático de um significado já existente. Além disso, o processo de
inferenciação sugerida não é um mecanismo autónomo de mudança semân-
tica, como a literatura funcionalista sugere, mas é por natureza um processo
metonímico, participando assim da metonímia como processo cognitivo de
mudança semântica.
Os efeitos de prototipicidade determinam também a mudança onomasio-
lógica: podem diferenciar sinónimos e podem dar origem a sinónimos. A his-
tória semântica do verbo deixar nas suas relações com abandonar e permitir
(Silva, 1999) volta a ser um bom exemplo. Os verbos abandonar e permitir
entraram na língua portuguesa nos finais do português antigo: aquele como
galicismo e este como latinismo jurídico. A entrada tardia de abandonar e
permitir no português conduziu a uma situação de completa sinonímia com
dois usos de deixar. Todavia, esta situação rapidamente desencadeou uma
dissimilação semântica que tomou a forma de uma reorganização de protóti-
pos, principalmente na estrutura semasiológica de deixar. Por um lado, com
a entrada de permitir, o uso passivo de ‘não impedir’ (passividade do sujeito
de deixar) tornou-se prototípico em comparação com o sentido ativo de ‘per-
mitir’. Por outro lado, os novos verbos abandonar e permitir vieram colocar
102
os sentidos prototípicos de deixar em níveis hierarquicamente mais esque-
máticos, designadamente ‘suspender ativamente a interação não espacial com
o que se caracteriza como estático’, em deixar com complemento nominal, e
‘não se opor passivamente com o que se apresenta como dinâmico’, em dei-
xar com complemento verbal.
Há ainda diferenças de significado não referencial entre os três sinónimos.
Em relação a abandonar, deixar exprime abandono com densidade emo-
tiva menor, pelo que deixar pode ser usado como eufemismo dos processos
expressos por abandonar (uma diferença de significado emotivo). Em relação
a permitir, deixar é usado no registo não formal (uma diferença de signifi-
cado estilístico) e pressupõe uma autoridade mais familiar ou pessoal, por
outras palavras, uma autoridade subjetificada (uma diferença de significado
pragmático). Necessidades emotivas, estilísticas e pragmáticas motivaram,
assim, a emergência de permitir e abandonar e facilitaram a reorganização
de protótipos de deixar.
103
pragmática da subjetificação, ao passo que Langacker focaliza o próprio pro-
cesso de conceptualização envolvido. Por outro lado, Traugott vê o fenómeno
em termos de reforço pragmático, ao passo que Langacker prefere falar em
atenuação semântica. As diferenças entre as duas abordagens resultam sobre-
tudo da perspetiva teórica sobre a linguagem assumida por cada autor, pelo
que elas são, no essencial, compatíveis e até complementares.
Traugott (1989, 1995, 1999, 2003, 2010) focaliza o processo diacrónico e
a dimensão pragmática da subjetificação, entendendo este fenómeno como
um processo de mudança semasiológica pelo qual significados que descre-
vem uma situação externa passam a indicar perspetivas, atitudes e crenças
do locutor em relação a essa situação. Esta tendência para a subjetificação
resulta da combinação de tendências mais específicas de mudança semântica,
configurando o contínuo evolutivo proposicional > textual > expressivo. Como
tendências para a pragmatização do significado, Traugott argumenta que a
subjetificação deve ser vista como um processo de reforço pragmático (Trau-
gott, 1999: 188), resultante da convencionalização de inferências sugeridas
(Traugott/Dasher, 2002: 34-40). Entre os vários estudos de caso, sumariados
em Traugott/Dasher (2002), contam-se o desenvolvimento de verbos modais
de expressão de modalidade deôntica e/ou epistémica, o desenvolvimento de
advérbios e conjunções com função discursiva, o desenvolvimento de verbos
e construções performativos e o desenvolvimento de deíticos sociais.
Enquanto as expressões de subjetividade codificam a atitude ou perspetiva
do locutor, os marcadores de intersubjetividade codificam a atenção do locu-
tor para com o seu interlocutor. Traugott (2003: 130) define a intersubjetifica-
ção como um processo de mudança semântica pelo qual um significado passa
a codificar a relação entre locutor e interlocutor em sentido quer epistémico
quer social. Por exemplo, as expressões eu acho, eu penso, eu suponho/creio
podem ser usadas, não somente para exprimir a subjetividade do locutor, mas
também para reconhecer necessidades intersubjetivas. Outros exemplos de
intersubjetificação: a seleção de pronomes pessoais para propósitos deíticos
atitudinais e sociais e os marcadores de delicadeza.
Langacker (1990, 1998, 1999, 2003, 2006) explora o processo de concep-
tualização envolvido e entende subjetividade e subjetificação em termos da
dimensão conceptual da perspetiva ou arranjo de visão na relação assimétrica
104
entre sujeito observador/conceptualizador e objeto observado/conceptuali-
zado. Uma entidade ou situação é objetivamente construída na medida em
que é colocada “dentro de cena” e vista do exterior, como foco específico
de atenção, como objeto de per/conceção; é subjetivamente construída na
medida em que permanece “fora de cena”, como sujeito não consciente de si
mesmo e implícito de per/conceção (Langacker, 2006: 18, 2008: 77). A sub-
jetificação é, então, o processo pelo qual uma entidade passa de ‘objeto’ a
‘sujeito’ de per/conceção e, consequentemente, o conceptualizador/locutor
(ou um outro elemento do ato de fala) deixa de ser um observador/elemento
externo e passa a fazer parte do conteúdo de conceptualização.
Inicialmente, Langacker (1990) entendia a subjetificação em termos de
substituição: determinada relação dentro da situação objetiva é substituída
por uma relação correspondente subjetivamente construída, inerente ao pró-
prio processo de conceptualização. Mais recentemente, Langacker (1999,
2006) esclarece que a subjetificação não deve ser caraterizada em termos de
substituição de uma situação objetiva por uma relação subjetivamente cons-
truída, mas como um processo de debilitação semântica (“semantic blea-
ching”) ou atenuação da conceção objetiva. A razão principal, argumenta
Langacker (1999, 2006), reside no facto de que a componente subjetiva (isto
é, a perspetiva do conceptualizador) é imanente à conceção objetiva, faz
parte do próprio processo de conceptualização. A subjetificação ou atenuação
semântica é um fenómeno gradual e multifacetado que, segundo Langacker
(1999: 155-56), se carateriza relativamente a, pelo menos, quatro parâmetros
de mudança: (i) mudança de estatuto: de atual para potencial ou de especí-
fico para genérico; (ii) mudança de foco de atenção: de perfilado (focalizado,
designado) para não perfilado; (iii) mudança de domínio: da interação física
para a interação experiencial ou social; e (iv) mudança de fonte de atividade:
de entidade “em cena” para entidade “fora de cena”.
A abordagem funcionalista de Traugott e a abordagem cognitivista de Lan-
gacker complementam-se, apesar das suas diferenças de enquadramento teó-
rico. Na verdade, inferenciação contextual e reforço pragmático, no sentido de
Traugott, e perspetivação conceptual e atenuação semântica, na abordagem
de Langacker, são dimensões do mesmo processo.
105
Apesar de a (inter)subjetificação constituir uma tendência muito frequente
e produtiva de mudança semântica, vamos defender a hipótese de que não
se trata de um mecanismo autónomo de mudança semântica, mas antes um
efeito dos conhecidos mecanismos de mudança semântica como a metonímia,
a metáfora, a generalização e a especialização. Defendemos também a hipótese
de que, embora a subjetificação envolva tanto o processo de reforço pragmático
(no sentido de Traugott) quanto o processo de atenuação semântica (no sentido
de Langacker), o reforço pragmático é determinado pelo tipo de traços semân-
ticos que são atenuados, isto é, a (inter)subjetificação implica um processo gra-
dual de atenuação semasiológica. Vamos ilustrar estas hipóteses com a análise
sumária de três exemplos de subjetificação da história semântica do português.
Comecemos por um dos casos emblemáticos de gramaticalização e subjeti-
ficação: a construção ir + INF como marcador de futuro. A mudança semântica
dá-se do sentido de movimento do verbo ir para o sentido de tempo futuro
da construção ir + INF. No sentido básico de movimento de afastamento, a
noção de futuro está já presente, como traço inferido. Em termos cognitivos,
o movimento subjetivo do conceptualizador no tempo está imanente na con-
ceção do movimento objetivo do sujeito no espaço. Verifica-se nesta mudança
uma atenuação da atividade do sujeito de ir, especificamente uma atenuação
dos traços de ‘movimento’, ‘agentividade’ e ‘intencionalidade’: o ‘movimento’
perde a sua componente física, bem como a ‘agentividade’ e o ‘propósito’.
Esta atenuação da atividade do sujeito de ir + INF inclui outras mudanças
semânticas. Uma dessas mudanças dá-se por similaridade literal: a leitura de
tempo futuro é processada por similaridade com a leitura de movimento de
afastamento. Outra mudança consiste na generalização de sentido e processa-
-se através do esbatimento dos traços semânticos de ‘movimento’ e ‘propó-
sito’. Uma terceira mudança e a mais relevante é de natureza metonímica: a
transferência de estatuto do traço pragmaticamente inferível de ‘futuro’ para
o traço convencionalmente semântico de ‘futuro’, isto é, a noção de ‘futuro’, já
presente na construção como traço inferido, convencionaliza-se metonimica-
mente como significado codificado da construção ir + INF.
O processo de gramaticalização e subjetificação da construção ir + INF
resulta da metonímia e não da metáfora, contrariamente ao que defendem
Sweetser (1988, 1990) e Heine/Claudi/Hünnemeyer (1991) para a construção
106
equivalente do inglês be going to. Na verdade, em ir + INF ou be going to + INF
não há mudança do domínio espacial para o domínio temporal, mas simples-
mente retenção e convencionalização (metonímica) de uma relação temporal
que esteve sempre presente.
Passemos agora ao desenvolvimento dos significados causativos e permis-
sivos do verbo deixar na construção completiva com complemento infinitivo
ou finito (Silva, 1999). Esta evolução semântica envolve um processo gradual
de atenuação do controlo e agentividade do causador e, consequentemente,
um processo de subjetificação. A extensão semântica do significado origina-
riamente prototípico ‘largar-soltar’, exemplificado em (1), para ‘permitir que
alguém realize determinada ação’, como em (2), envolve a passagem de ces-
sação de bloqueio para não-ocorrência de barreira e configura uma primeira
atenuação da fonte de atividade, que passa do domínio do causador para o
domínio do causado. A atividade do causador sofre uma atenuação posterior,
quando deixar + INF/QUE passa a significar ‘não impedir que alguém realize
determinada ação’, como em (3): o causador abstém-se de exercer a sua força
bloqueadora, adotando assim uma atitude passiva de não intervenção. A cons-
trução causativa com indicativo de (4), típica do discurso oral, configura um
outro passo no processo de atenuação: a fonte de atividade passa agora para
o domínio da interação entre locutor e interlocutor, pelo que estamos perante
um processo de intersubjetificação.
107
der permissão. A permissão é assim conceptualizada metaforicamente como
ausência ou eliminação de barreira no percurso do movimento de um agente
em direção a uma meta.
Finalmente, observemos a (inter)subjetificação dos sufixos diminutivo e
aumentativo. Os sufixos diminutivo e aumentativo exprimem diversos senti-
dos avaliativos e interacionais, construídos a partir dos significados básicos
de ‘tamanho pequeno’ e ‘tamanho grande’ (Silva, 2006: 219-241). Os sentidos
relativizador (como cortezito), aproximativo (como quilito) e intensificador
(como pertinho) do diminutivo representam um primeiro nível de atenuação,
que envolve tanto a relação de pequenez per/concebida objetivamente quanto
o papel desempenhado pela entidade designada pelo respetivo nome. Estes
usos são já avaliativos e, por consequência, o escaneamento mental do con-
ceptualizador é já subjetivo.
Os sentidos apreciativos e depreciativos do diminutivo (como em mãezi-
nha e gentinha) e do aumentativo (como em paizão e povão) representam
uma subjetificação completa, visto que todos os parâmetros de atenuação
concorrem em grau elevado. Primeiro, o traço semântico do tamanho é com-
pletamente esbatido. Segundo, a entidade designada pelo nome perde o
seu estatuto de entidade comparável e mensurável. Terceiro, o conceptua-
lizador torna-se mais ativamente envolvido e afetado na construção da rela-
ção, havendo assim uma alteração na fonte de atividade: de uma entidade
focalizada dentro de cena, designada pelo nome, para uma entidade fora de
cena, que é o conceptualizador. Finalmente, temos uma mudança radical de
domínio: a escala da extensão de tamanho das entidades observadas pelo
conceptualizador é substituída pela escala da extensão emocional do próprio
conceptualizador.
Os sentidos interacionais do diminutivo (delicadeza, simpatia, interação
com crianças, eufemismo) e do aumentativo (simpatia, ironia, insulto) repre-
sentam o grau mais elevado de atenuação e (inter)subjetificação. Os elemen-
tos do objeto conceptualizado passam a relacionar-se com o interlocutor ou
simplesmente deixam de existir. E a fonte de atividade passa agora para o
domínio do ato de fala, mais especificamente para a atividade discursiva do
falante de aproximação e manipulação do interlocutor em ordem a obter a
adesão deste. Temos, pois, agora o processo de intersubjetificação.
108
A atenuação da relação de tamanho e o consequente reforço da perspetiva
(inter)subjetiva do locutor/interlocutor interagem com mudanças metoními-
cas e metafóricas. Ocorrem projeções metafóricas e metonímicas baseadas
na experiência da nossa interação com objetos pequenos e grandes, nomea-
damente a capacidade que temos de os controlar e a importância que lhes
atribuímos.
Os três estudos de caso – a construção ir + INF para a expressão do futuro,
a construção deixar + INF/QUE para a expressão de causalidade e permissão
e os usos avaliativos e pragmáticos dos sufixos diminutivo e aumentativo
– mostram dois resultados principais: (i) a (inter)subjetificação implica um
processo gradual de atenuação semasiológica e, a partir deste, um processo
gradual de reforço pragmático; (ii) a (inter)subjetificação é um efeito de meca-
nismos básicos de mudança semântica, como a generalização, a similaridade
literal, a metonímia e a metáfora. Como fenómeno associado ao processo de
atenuação semântica, a subjetificação relaciona-se mais frequentemente com a
generalização e a similaridade literal. Como fenómeno associado à expressão
da perspetiva ou atitude do falante e como fenómeno de mudança semântica
por convencionalização de inferências sugeridas, a subjetificação relaciona-se
mais frequentemente com a metonímia. É a metonímia o mecanismo cognitivo
que melhor explica o processo de (inter)subjetificação, o que está em sinto-
nia com a enorme produtividade da metonímia na mudança semântica, como
demonstrado por alguns autores, como Koch (2008, 2012). Não parecendo
ser um mecanismo autónomo de mudança semântica, a (inter)subjetificação
não deixa de ser uma tendência natural de conceptualização, por mudança de
perspetiva na relação entre sujeito e objeto de per/conceção, e de mudança
semântica, na medida em que toda a linguagem, como já dizia Benveniste
(1966), está inexoravelmente marcada pela subjetividade.
109
mudança semântica está tipicamente incluída no processo de gramaticali-
zação, mediante o qual uma unidade lexical adquire uma função gramatical
ou uma unidade gramatical adquire uma função ainda mais gramatical (Leh-
mann, 1982; Hopper/Traugott, 1993; Bybee/Perkins/Pagliuca, 1994; Heine/
Kuteva, 2002, entre outros). É uma mudança linguística gradual, tipicamente
unidirecional, que envolve a correlação de diversas mudanças linguísticas,
nomeadamente morfossintáticas, semânticas, pragmáticas e fonológicas. Esta
macromudança compreende geralmente reinterpretação ou reanálise estru-
tural, descategorização de propriedades morfossintáticas, generalização e
debilitação ou dessemantização do significado básico, pragmatização ou dis-
cursivização do significado e subjetificação, rotinização de aspetos pragmá-
tico-discursivos e de novas funções e construções gramaticais e, por vezes,
erosão fonética. Entre os processos de gramaticalização mais produtivos e
interlinguísticos, estão a formação de auxiliares e perífrases verbais de tempo,
aspeto e modalidade a partir de verbos de movimento ou outros verbos ple-
nos (e.g. ir, andar, ficar, passar, ter, poder, dever), a formação de preposições
e locuções prepositivas a partir de termos de partes do corpo (ingl. back,
behind; ao pé de, face a), a formação de conjunções e locuções conjuncionais
a partir de nomes, advérbios, expressões fixas ou conjunções já existentes
(e.g. logo, mal, assim, embora < em boa hora, enquanto) e a formação de
marcadores discursivos a partir de fontes lexicais ou gramaticais (tipo, pronto,
bom, bem, aí, pois).
Nas últimas três décadas, a gramaticalização tornou-se um tema preferido
de investigação, provavelmente o processo de mudança linguística mais estu-
dado, graças à sua amplitude e à diversidade de mudanças que envolve, ao
desenvolvimento paralelo de forma e significado e, particularmente, à sua
regularidade interlinguística. Os inúmeros estudos cognitivos e funcionais da
gramaticalização têm, por um lado, revelado novas e iluminadoras facetas
deste processo de mudança linguística e, por outro lado, aberto tensões e
mesmo ruturas no próprio conceito de gramaticalização. Várias questões têm
sido objeto de um amplo debate, nomeadamente a própria definição de gra-
maticalização, a hipótese da unidirecionalidade ou irreversibilidade do pro-
cesso de gramaticalização, os mecanismos da gramaticalização, entre os quais
se encontram a metonímia, a metáfora e a subjetificação, as motivações da
110
gramaticalização e a distinção entre gramaticalização e outros processo de
mudança linguística como a lexicalização, a desgramaticalização e a pragma-
tização (ver Silva, 2012a, 2012b). O que dissemos nas secções anteriores sobre
(inter)subjetificação e prototipicidade aplica-se igualmente à gramaticalização.
Não obstante os questionamentos e alguma erosão no conceito de grama-
ticalização, as recentes discussões e controvérsias têm permitido importantes
avanços na compreensão deste fenómeno. A gramaticalização deixa de ser
vista como um processo que afeta simplesmente formas lexicais e gramaticais
e passa a ser compreendida como um fenómeno que envolve necessariamente
uma construção e não ocorre senão no uso dessa construção em contextos
específicos. Itens lexicais desenvolvem funções gramaticais e itens gramaticais
desenvolvem funções ainda mais gramaticais sempre dentro de construções
particulares (Traugott, 2003; Bybee, 2007). A repetição, o uso frequente e a
rotinização são determinantes para que ocorra um processo de gramaticali-
zação: alterações pragmáticas e discursivas de uma construção passam a ser
usadas com frequência, entram na rotina, automatizam-se e, com o passar
do tempo, convencionalizam-se como novas construções, já desprovidas dos
seus condicionamentos pragmático-discursivos. A nova construção gramatical
surge, não de uma construção já existente como um todo, mas de um aspeto
pragmático-discursivo – uma inferência, por exemplo – dessa construção.
A gramaticalização consiste, pois, em fazer com que uma estratégia comu-
nicativa operando a nível pragmático ou discursivo e associada a uma cons-
trução particular se converta numa construção gramatical convencionalizada.
A gramaticalização é, assim, um efeito de prototipicidade, correspondente
ao efeito (d) da Tabela 2. A gramaticalização, como a mudança semântica em
geral, envolve fatores quer pragmático-discursivos de pragmatização e discur-
sivização quer cognitivos de conceptualização e perspetivização conceptual.
A gramaticalização, como a mudança semântica em geral, envolve mecanis-
mos linguístico-genéticos de inovação ou criação de novas construções e
novos significados e mecanismos sociolinguísticos de propagação das inova-
ções individuais pela comunidade linguística.
As novas perspetivas sobre a gramaticalização, juntamente com o desen-
volvimento do modelo cognitivo de Gramática de Construções (Goldberg,
1995, 2006; Croft, 2010; Langacker, 2008) têm permitido desenvolver a abor-
111
dagem construcionista da mudança linguística (Traugott/Trousdale, 2013),
sustentada nos princípios gerais de que (i) a mudança linguística é uma alte-
ração efetuada no uso, isto é, na interação verbal; (ii) o lugar da mudança é a
construção, entendida como unidade simbólica (associação de forma e signifi-
cado) convencional; e (iii) inovação e propagação, referidas nas secções ante-
riores, são propriedades conjuntamente necessárias da mudança linguística.
Na perspetiva construcionista da mudança, distinguem-se dois tipos prin-
cipais de mudança linguística: construcionalização e mudança construcional
(Traugott/Trousdale, 2013). Por construcionalização entende-se a criação de
uma associação de uma nova forma e um novo significado, podendo a constru-
cionalização ser lexical ou gramatical e podendo daí resultar uma nova micro-
construção ou uma nova macroconstrução ou esquema construcional. Traugott/
Trousdale (2013: 22-26) dão como exemplo da primeira cupboard ‘armário’ (de
cup ‘copo’ e board ‘pedaço de madeira’) e da segunda o desenvolvimento das
expressões partitivas a lot/bit/shred of como quantificadores. A mudança cons-
trucional é a alteração de uma dimensão interna da construção e não da cons-
trução como um todo. Assim, um processo de construcionalização é geralmente
precedido e seguido por sucessivas mudanças construcionais. Por exemplo, a
convencionalização da inferência de ‘quantidade’ é uma das mudanças cons-
trucionais de a lot/bit/shred of. Tanto a construcionalização como a mudança
construcional mostram que tanto a forma como o significado têm que ser igual-
mente tidos em conta no estudo da mudança linguística.
7. Conclusão
112
uma perspetiva cognitiva e social da linguagem. A Linguística Cognitiva, como
modelo orientado para o significado, como modelo experiencialista, funda-
mentado na natureza experiencial da linguagem, de que a historicidade é uma
componente essencial, e como modelo centrado no uso da linguagem, sendo
este a origem e a causa da mudança linguística, traz um importante contributo
para a Semântica Histórica.
A prototipicidade, como princípio geral da categorização e da conceptua-
lização, desempenha um papel fundamental na mudança semântica: a pro-
totipicidade motiva e implica a própria mudança semântica e determina as
características da mudança semântica. Cada um dos efeitos de prototipicidade,
nomeadamente a existência de diferentes graus de representatividade entre
os membros de uma categoria, a estrutura interna na forma de parecenças de
família, a ausência de limites precisos entre diferentes categorias e a impos-
sibilidade de definição de uma categoria em termos de um conjunto de atri-
butos necessários e suficientes, tem consequências específicas na mudança
semântica. Especificamente, os efeitos de prototipicidade fazem com que a
mudança semântica tome a forma de modulações do centro prototípico de
uma categoria, ou a forma de uma alteração do agrupamento de significados
por parecenças de família, que possa haver poligénese semântica e que um
novo sentido possa surgir, não de um sentido já existente como um todo, mas
de um subconjunto pragmático-discursivo ou de uma inferência.
A subjetificação ou desenvolvimento de significados ancorados nas perspe-
tivas, crenças e atitudes do conceptualizador/locutor constitui uma tendência
geral e muito produtiva da mudança semântica, tanto lexical como gramatical.
Ao contrário do que vários estudos funcionalistas e cognitivistas sugerem, a
subjetificação não constitui um mecanismo autónomo da mudança semântica,
mas antes um efeito de prototipicidade e de mecanismos básicos da mudança
semântica, especialmente a metonímia.
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DAVID GERARDS
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G r a m at i c a l i z a ç ã o , d i s tâ n c i a ,
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O caso do português caso*
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G r a m m at i c a l i z at i o n , d i s ta n c e ,
immediacy and discourse traditions.
The case of Portuguese caso
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_4
Assim, a principal hipótese deste estudo é então que a ampliação do âmbito das tradições
discursivas de um elemento deveria ser considerada um parâmetro geral em processos de
gramaticalização.
Palavras-chave: gramaticalização, tradições discursivas, mudança a partir de cima, his-
tória do português, inovação do português do Brasil
Abstract: This paper investigates the emergence and evolution of Portuguese caso (<
Lat. casus) in conditional contexts. As in similar cases in other European languages, con-
ditional constructions involving caso emerged in medieval language in juridical texts. The
paper examines the first attestations of such constructions and shows how they allow the
further evolution of caso in Portuguese into a conditional conjunction. This evolution can
be initially identified in Brazilian Portuguese from where it possibly spread to the European
variety. Other evolutions such as the emergence of a noun acaso ‘coincidence’ or ‘fate’ and a
modal particle acaso (in both Portuguese and Spanish) are also considered. The theoretical
aim of the paper is to show the interrelation between grammaticalization and discourse
traditions in the sense of Koch (1987, 1997): innovations emerge in particular textual envi-
ronments, not only in the language as an abstract entity, and they may spread from their
original textual tradition to others. The main claim of the paper is thus that the widening of
the scope of discourse traditions of an item should be considered as a general parameter of
grammaticalization processes.
Keywords: Grammaticalization, discourse traditions, change from above, history of Por-
tuguese, Brazilian Portuguese innovation
1. Introdução
1.1. Este estudo visa juntar dois paradigmas linguísticos centrais, ambos
com impacto em perspetivas históricas bem como em perspetivas sincróni-
cas, nomeadamente gramaticalização e tradições discursivas (TD, ver Koch
1987, 1997) ao longo do continuum entre distância comunicativa e imedia-
tez comunicativa (Koch/Oesterreicher, 1985) através de exemplos das línguas
românicas em geral bem como do português europeu e do Brasil.
Os estudos de gramaticalização têm-se focado largamente na evolução do
estatuto de certos elementos (palavras, construções) ao longo da história de
uma determinada língua. Nesse sentido, concentram-se normalmente na evo-
lução diacrónica, concetualizando diacronia como uma linha abstrata deter-
minada pelo fator tempo:
120
Aqui, x1 é uma palavra (ou construção) que se torna item gramatical,
x2, ou um item ainda mais gramatical, x3. Esta visão é muitas vezes acom-
panhada, numa perspetiva mais onomasiológica, por olhares paralelos para
elementos alternativos com funções similares e com evoluções paralelas, mas
deslocadas no tempo:
121
rência à ação e situação concretas–sem tal referência; fisicamente próximo–
fisicamente distante; dialógico–monológico; espontâneo–planeado, etc.; cf.
Koch/Osterreicher 1985). Imediatez e distância estão relacionadas – em cultu-
ras com língua escrita – com o falar e o escrever, embora não haja uma relação
causal, nem sequer absoluta, entre as duas. Contudo, é possível observar que
existem tendências de associação preferida. Koch e Oesterreicher, com refe-
rência a Söll (1974), explicam que, enquanto a distinção entre o meio fónico e
gráfico é uma dicotomia bem visível, a sua relação com imediatez e distância
é estatística: é mais provável encontrar textos escritos mais próximos do pólo
da distância e textos falados mais próximos do pólo da imediatez do que vice-
-versa. Isto é esquematizado da seguinte forma:
gráfico
fónico
1 O conceito de tradições discursivas foi introduzido por Koch (1987) com referência ao
trabalho anterior de Schlieben-Lange (1983) e Koch e Oesterreicher (1985). A ideia básica
é a de que, na teoria da linguagem de Eugenio Coseriu, na qual se considera crucial a
distinção tripartida entre um nível universal, histórico e individual em todas as questões
concretas da análise linguística (cf. Coseriu, 1985), se deveria introduzir no nível histó-
rico uma outra diferenciação entre historicidade da língua como sistema e historicidade
dos textos (i.e., a repetição de enunciados concretos, formas textuais, géneros, etc.). Nas
últimas décadas, inúmeras publicações na área da linguística românica incidiram sobre o
estudo de tradições discursivas e este tornou-se um dos paradigmas mais frequentemente
aplicados neste campo.
122
nos na Figura 1, em que I é, por exemplo, uma conversa informal, III uma
carta pessoal, VII uma apresentação oral formal e IX um texto jurídico escrito
(Koch/Oesterreicher, 2010: 12). As TD têm a sua própria história no seio da
diacronia de uma língua. De modo a visualizar-se esta perspetiva histórica,
propusemos a rotação do esquema da Figura 1 e a sua modificação com
a introdução de um eixo temporal esquerda-para-direita, que representa as
TD como linhas horizontais com uma dinâmica própria entre estabilidade e
mudança e com uma (possível) influência mútua:
distância comunicativa
tempo
tradições
discursivas
imediatez comunicativa
3
Figura 2 – Tradições discursivas em diacronia entre imediatez e distância
(cf. Kabatek, 2012: 92)
123
posterior é que a inovação “conquista” TD caraterizadas por um parâmetro
[±imediato/distante] diferente. Presumimos que um caminho similar possa
também aplicar-se à perda de elementos gramaticais: se o ponto inicial da
perda é uma determinada TD, é muito provável que outras TD nas quais um
elemento desaparece mostrem, ao início, uma marca similar de [± imediato/
distante], ao passo que o elemento é preservado durante mais tempo em TD
marcadas de outra forma.
É comumente aceite que o fenómeno da gramaticalização sempre emerge
“a partir de baixo” (Labov, 1994: 78) – ou seja, em TD marcadas [+imediato] –
e que estão associadas à expressividade, etc. (Mair, 1992; Koch/Oesterreicher,
1996). No entanto, em princípio, qualquer TD pode ser o locus da inovação,
e há exemplos claros de emergência “a partir de cima”, ou seja, em – TD
marcadas como [+distante]. Em Kabatek (2005a), esta dupla possibilidade foi
visualisada da seguinte forma:
124
Bordería (2008), por exemplo, mostrou como id est, um elemento do latim
formal escrito, se tornou um marcador discursivo em espanhol (esto es). Vários
estudos na área da linguística românica têm discutido questões em que a gra-
maticalização e as tradições discursivas interagem (e.g., Octavio de Toledo,
2014; Winter-Froemel, 2014). No entanto, a maioria dos estudos sobre grama-
ticalização refere-se apenas muito vagamente a registos, estilos e (in)forma-
lidade. Isto deve-se, provavelmente, à grande dificuldade de determinar a(s)
exata(s) TD(s) que deram origem a um elemento gramatical. Não obstante, é
precisamente esta a intenção do presente estudo. Iremos discutir um deter-
minado caso de gramaticalização “a partir de cima” – o do Lat. casus ‘caso’
e a sua evolução em português – e mostrar como o seu caminho de gramati-
calização só pode ser plenamente compreendido quando se tem em conta as
TD e, por consequência, o continuum da distância comunicativa e imediatez.
(3) Fumaça já não consegue mexer-se. Está de pé porque o moreno o segura por um
dos braços. Dito sabe que vão matá-lo, caso não fale.
( José Pixote Louzeiro, Infância dos Mortos, 1977; fonte: Corpus do Português)3
125
alterações no caso do português que, entre outras coisas, as faz perder a sua
conotação formal, permitindo com isso que se tornem parte da comunicação
oral quotidiana.
Este estudo está organizado da seguinte forma: a Secção 2 é dedicada às
origens das construções condicionais contendo caso em fases mais antigas
do português com observações adicionais sobre uma série de outras línguas.
A Secção 3 aborda a evolução de caso para conjunção condicional em português.
Na Secção 4, acrescentamos algumas reflexões sobre a forma acaso em portu-
guês e espanhol, que adquiriu o estatuto de partícula modalizante na língua
contemporânea. Na Secção 5, retomamos a discussão teórica. A nossa hipótese
geral é que os dois paradigmas mencionados – gramaticalização, por um lado,
e distância–imediatez e TD, por outro – deveriam ser integrados numa pers-
petiva mais completa da evolução da língua. Para além disso, não há apenas
uma coexistência paralela mas uma íntima relação entre os dois paradigmas.
126
(http://www.diarioazafata.com/2011/09/08/ de procedimientos-de-emergencia-
la-despresurizacion-las-mascarillas-y-los-ninos/ [01/22/2018])
(4c) (Ingl.) I’m sure you’ve heard the sage advice from flight attendants a hundred
times: in case of a loss in cabin pressure, put your own breathing mask on first,
then put...(Don Everts, Go and Do: become a Missional Christian, Google Books)4
4 Gostaríamos de agradecer a Lachlan Mackenzie por indicar que in case (of) [em caso
(de)] poderá não ser a melhor escolha idiomática na construção (4c) e que, pelo menos
para alguns falantes, dever-se-ia optar por in the event of [na circunstância de]. Tanto quanto
podemos afirmar, falantes de inglês de diferentes regiões do mundo mostram diferir na
prontidão com que aceitam case em vez de event (ver, e.g., a argumentação de que as duas
construções são realmente sinónimas: https://www.dailywritingtips.com/in-case-of-e-in-the-
-event-of/ [01/22/2017]).
5 A opcionalidade de um determinante é típica de locuções preposicionais (cf. e.g.,
Himmelmann, 1997: 3; Lyons, 1999: 51; para espanhol antigo, ver também Codita, 2017).
6 A menção do empréstimo do termo francês chance < Lat. cadentia , nominalização
da forma do plural neutro do particípio presente do verbo em latim cadere – e assim eti-
mologicamente também relacionado com casus e seus sucessores – certamente que não é
uma coincidência (cf. Oxford English Dictionary, s.v. case, n. 1, http://www.oed.com/view/
Entry/28393?rskey=lkTO2o&result=1#eid [23.04.2017).
127
similares: caso é uma “palavra internacional” e as respetivas construções são
facilmente transferíveis para diferentes línguas onde existem formas direta ou
indiretamente baseadas em casus.
Caso pode referir-se a eventos concretos, passados ou futuros, e a cons-
trução preposicional abre um espaço no tempo no qual o evento pode ocor-
rer. Construções com in case of funcionam como construções condicionais
e podem ser substituídas por if, onde ‘caso’ é a prótase e a consequência, a
apódose:
(5) If cabin pressure falls below a certain threshold, the masks will deploy from the
ceiling.
(http://www.telegraph.co.uk/travel/travel-truths/truth-about-oxygen-masks-on-
planes/ [01/22/2018])
Tabela 1 – Caso(s) dos séculos XIII e XIV no CdP de acordo com o texto
Total N
Século Textos
caso/casos
128
Quanto ao português antigo, tal preferência textual é corroborada pelo
inventário exaustivo de ocorrências dos séculos XIII e XIV de caso(s) no Cor-
pus do Português, não apenas em construções preposicionais mas em qual-
quer ambiente morfossintático. Na Tabela 1, visualisamos o número destas
ocorrências e os textos nos quais estas são referidas.
É deveras surpreendente que, à exceção de cinco ocorrências em Crónica
Geral de Espanha, todas as outras se encontrem claramente em textos jurídi-
cos ou pelo menos em trechos de teor jurídico (i.e., TD jurídicas)7. Em todas
as ocorrências, caso(s) é usado com o significado lexical supra mencionado.
O papel especial de textos jurídicos sugerido pelos dados apresentados na
Tabela 1, defendemos, poderá ser encontrado na relação entre casos judiciais
e condicionalidade. Basta olhar para as diferentes tradições de textos jurídi-
cos na Península Ibérica para nos apercerbermos desta relação: por um lado,
existe um sistema casuístico consuetudinário de fazanhas ou notícias, casos
concretos que em determinadas ocasiões são registados e servem de pontos
de orientação para eventos similares no futuro. Por outro lado, existe uma
tradição mais abstrata, linguisticamente mais distante, dos foros ou forays,
que, em muitos casos, consiste em listas de frases condicionais em que o
caso já não é concreto, mas sim hipotético. Por último, desde o iníco do Res-
surgimento do Direito Romano (a partir do século XII), emerge uma terceira
tradição com textos ainda mais distantes e abstratos (ver Kabatek, 2005a, para
detalhes).
129
Nas seguintes duas subsecções, preocupar-nos-emos com a diacronia de
construções condicionais portuguesas contendo caso. Neste momento, limi-
taremos as nossas observações e análises a fases mais antigas do português
(anteriores ao século XIX). A Secção 2.2 centra-se em desenvolvimentos for-
mais, ao passo que a 2.3 foca-se na atribuição destas construções a certas TD
e na sua ancoragem no continuum da distância comunicativa e imediatez.
8 A Tabela 2 não inclui 15 ocorrências de per /por caso (quatro no século XV; sete,
século XVI; uma, século XVII; três, século XIX), 63 ocorrências de a caso (10, século XVI;
42, século XVII; 11, século XVIII), ou duas ocorrências de se caso (séculos XV e XVII); ver
também Secção 4. Há duas outras construções adicionais também excluídas: 34 ocorrências
de por /per caso de (31, século XVI; duas, século XVII; uma, século XVIII) e duas ocorrên-
cias de por caso que ‘por causa do que’ (século XVI).
130
Tabela 2 – Séculos XIII-XVIII: caso no CdP de acordo com a construção 9
Outros
Século em casoN que + no casoN que + caso? que + casoConj+
N (Sg.)
de + de +
Subj. Ind. Subj. Ind. Cond. Subj. Subj.
Inf. Inf.
XIII 2
XIV 54 8
XV 397 27 5 1 2 1
XVI 1328 18 4 5 1 1 9
XVII 820 43 3 1 22 1 2 2
XVIII 642 6 2 16 1 1 9 3 1
(6) Outorgou que em caso que os dictos logares ou cada hũu deles forem ven-
çudos, que lhe cõponha ẽ nome de uîço en dobre.
(Documentos do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, século XIV)
9 Em prol da clareza, nem a Tabela 2 nem nenhuma das tabelas seguintes distinguem
diferentes construções relativizantes, i.e., na Tabela 2, no caso que contém quatro certifi-
cações de no caso em que (uma do século XVII e três do século XVIII) e uma certificação
de no caso com que (século XVII). Além disso, têm sido omitidos os pares de certificações
idênticas para garantir uma quantificação exata.
10 Há casos em que uma construção preposicional seguida de um indicativo presta-se
realmente a uma interpretação condicional. Estão esporadicamente certificadas até final do
século XVIII. Acreditamos que estas certificações se devam ao facto de, em em /no caso
que, o nome caso possa referir-se a uma exemplificação simples, concreta de um “caso”
de dado discurso (e.g., via referência anafórica). Nestes casos, caso não teve implicações
condicionais no sentido de um ‘caso hipotético’, daí o uso do modo indicativo. O facto de
um tal padrão com o indicativo estar disponível poderá ter causado, devido à identidade
formal da construção preposicional, a extensão esporádica do modo indicativo a contextos
verdadeiramente hipotéticos. No que resta deste artigo, não tornaremos a mencionar as
certificações do modo indicativo. Todas as percentagens e quantificações dadas referir-se-
-ão apenas a dados com construções conjuntivas.
131
(7) Soomente saiba-se que em caso que nas mortes dos Reys e Principes se
fazem sempre synaaes de grandes sentimentos, na deste glorioso Rey, assy em
prantos e lagrimas, como Na tristeza Das vestiduras de todos se fez por muitos com
muita spicialidade de dõr.
(Crónica de D. Duarte, Rui de Pina, final do século XV)
(8) E per semelhante guisa nom se contem em a paga do retorno do dicto dote e
arras alguũs panos nem cousas que ella tenha de moueẽs saluo ouro ou prata e
djnheiros como dicto he ante. Ella os aia e posuya como suas cousas proprias no
caso em que o dicto gomez freire moyra primeiro.
(Chancelarias Portuguesas. Dom Duarte 1-2, século XV)
132
quase três vezes mais frequentemente nos nossos dados do que este último11.
Quanto à proporção de em caso de + infinito vs no caso de + infinito, a variante
com o artigo definido parece ter sido sempre mais frequente do que o seu
equivalente indefinido. As duas construções são desenvolvimentos posterio-
res às respetivas versões com que e podem ser observadas ainda hoje. (cf.
Tabelas 5 e 6).
O século XV é interessante não apenas devido à primeira ocorrência do
concorrente preposicional no caso que, mas igualmente por causa da manifes-
tação de uma segunda alternativa formal ao mais antigo em caso que. Como
se ilustra no seguinte exemplo condicional (9), caso que + conjuntivo12, uma
variante formalmente reduzida de em caso que13, também fica disponível:
(9) [....] & caso que hy sse aconteçesse de matar alguũ pode tornar honde leyxou
na missa & acabala pois nom pecou
(Sacramental, 1488?)
133
Dada a cronologia sugerida pelos dados, é provável que caso que + conjun-
tivo e no caso que se tenham desenvolvido mais ou menos simultaneamente
a partir da preposição indefinida em caso que. Dito isto, os dois desenvolvi-
mentos, no entanto, parecem ser independentes um do outro no sentido em
que o primeiro, caso que, é uma redução formal, como se espera em casos de
gramaticalização, ao passo que no caso que na verdade reforça a substantivi-
zação de caso14. O uso de caso que diminui a partir do século XVII, e as três
ocorrências no século XVIII são os últimos casos documentados nos nossos
dados. Esta perda fica provavelmente a dever-se à génese da conjunção con-
dicional caso, que ocorre pela primeira vez (ver a primeira coluna à direita na
Tabela 2) numa carta de Alexandre de Gusmão do século XVIII.
Os desenvolvimentos formais até ao século XVIII, como revelam os dados
da Tabela 2, podem resumir-se da seguinte forma:
134
Com a Figura 4 em mente, abordaremos agora a questão de como em/
no caso que e caso que se situam no continuum imediatez–distância e de
como determinadas TD podem ser identificadas como o seu locus primário
de “rotinização”.
XVI 18 4 5 1 9
XVII 43 3 22 1 2
XVIII 6 16 1 1 3 1
135
que a anterior afirmação também se aplica às primeiras ocorrências de em
caso que: das oito ocorrências do século XIV na Tabela 3, cinco provêm clara-
mente de texto jurídicos (Documentos do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra
(3), Textos Notariais. Documentos Notariais dos Séculos XII a XVI (1), Chartu-
larium Universitatis Portugalensis (1), cf. exemplo (6)). As restantes três ocor-
rências de em caso que, que não são claramente jurídicas na sua natureza, vêm
de um texto: a tradução portuguesa de Crónica Geral de Espanha (1344)15.
A ocorrência seguinte (10), que novamente oscila entre uma interpretação
condicional e concessiva, exemplifica esse uso não jurídico:
(10) …ca bem cuidava elle que tam poderoso rey como era el rey dom Fernando
que non viria a tal logar como era Cordova sen muyta companha. E, en caso que
muyta nõ fosse, que seria boa.
(Crónica Geral de Espanha, 1344)
15 Mais uma vez, 63% (5/8) pode aparentar ser uma proporção demasiado baixa para
afirmar a origem da construção preposicional em TD jurídicas. Trata-se, à primeira vista,
de uma objeção razoável, mas veja-se nota de rodapé 7 para discussão futura.
136
• Orto do Esposo (1)
• Leal Conselheiro (1)
(11) E outrossi mando que todas as alldeas terras e propriedades que estiuerem
vagas por aforar e as que ao diante vagarem ou se adquirirem por guerra ou por
qualquer outro titolo, em caso que se aforem, não valhão os tais aforamentos (…)
sem primeiro terem confirmação minha.
(O Tombo de Diu, 1591–1597)
(12) E no caso em que o comprador perder o gado que comprar a noueado por
cõprar a pessoas que lhe não sejão nomeadas pela certidão que das camaras há
de leuar, as taes pessoas que assi lhe venderem, perderão o preço que valer o gado.
(Leis extravagantes, 1569)
16 Para uma forte e similar ancoragem das TD não jurídicas do paralelo nel caso che
em italiano antigo, ver Colella (2010: 174).
137
(13) Também instará, no caso que ache esta nomeaçao dificultosa, que se meta
sobre o trono algum Terceiro…
(Cartas de José da Cunha Brochado, 1698)
(14) E caso que buscassem sombras, ribeyras graciosas, valles amenos, altos áli-
mos, sombrios freyxos, suaves cantos de aves, o soidoso tom Dos quebrados das
agoas, O rugido dos ventos, que zunião nas concavidades das altas rochas: tudo
isto fazião, não somente pera seu gosto, mas tambem (…)
(Imagem da Vida Cristã, século XVI)
(15) Toda cousa da payxam a quem dela se rreçea & caso que se nam crea la o
sente o coraçam.
(Cancioneiro de Resende, 1516)
138
(16) Com rogos se ha de procurar a equidade, & misericordia dos Principes: & caso
que não baste sendo o agravo manifesto, remetamolo a Deos…
(Diálogos, Amador Arrais, 1589)
Com base nos dados do CdP, uma tal afirmação a favor de uma maior
adequação de caso que a contextos de imediatez comunicativa não pode ser
considerada tão perentoriamente para os séculos XVII e XVIII. No entanto,
as cinco ocorrências dos séculos XVII e XVIII pelo menos não parecem con-
tradizer muito a nossa hipótese, como se evidencia nos textos nos quais caso
que está presente (XVII: Crónica da Companhia de Jesus (1), Cartas do Padre
António Vieira (1); XVIII: Cartas do Abade António da Costa (2), Cartas de
Alexandre de Gusmão (1)). Um exemplo de uma atestação do século XVII é
apresentada a seguir:
(17) Outros levavam esta impossibilidade pela dos mares; que tinham por imensos,
e impossíveis de navegar para chegar a ela, caso que tal terra houvesse.
(Crónica da Companhia de Jesus, 1663)
Dado que o mais provável era caso que ser o antecessor direto da conjun-
ção condicional caso, a hipótese de uma ligação entre o formalmente redu-
zido caso que e a imediatez comunicativa, a ser verdade, encaixar-se-ia bem
na história da conjunção futura (ver Secção 3).
A Tabela 4 (infra) dá-nos um possível resumo da ancoragem de diferentes
construções condicionais e da categoria Outros N no continuum distância-
-imediatez e do seu grau de pertença a TD jurídicas.
Avançaremos agora para a discussão da génese da conjunção condicional
caso, que representa um passo em frente no continuum da gramaticalização
e também, tanto quanto sabemos, separa o português de qualquer outra varie-
dade românica.
Na Secção 2, mostrou-se como o nome português caso < Lat. casus passou
a ser usado em duas construções preposicionais com significado condicional
139
Tabela 4 – Séculos XIII-XVIII: caso no CdP de acordo
com construção, ± distância e ± TD jurídicas
Outros N XV
(Sg. e Pl.) XVI (Devido ao imenso volume de dados, não se anali-
XVII sou o posterior OutrosN nas certificações de caso)
XVIII
XIII
XIV +++ ++ (5/8)
e como estas construções (em caso que, no caso que) se tornaram um meio
rotinizado para codificar condições. Como dissemos, isto parece ter aconte-
cido primeiro sobretudo em TD jurídicas, a partir das quais as construções se
transferiram para contextos de distância comunicativa em geral. Além disso,
apresentámos provas que nos mostraram como em caso que ficou mais redu-
140
zido a caso que, que, fundamentalmente, revelou ser uma escolha mais acer-
tada em contextos de imediatez comunicativa do que em caso que. Caso que
perdeu-se no século XVIII. Muito provavelmente, como sugerimos de forma
resumida, isto prende-se com o facto de o complementarizador que passar a
ser omitido com regularidade, dando origem a um uso altamente significativo
de caso, ilustrado no seguinte exemplo:
(18) … que o não haver água(caso assim fosse) nada contenderia a imunidade
da Igreja.
(Cartas de Alexandre de Gusmão, 1735)
141
Atendendo à falta de investigação a respeito da conjunção caso, a presente
Secção aborda a sua diacronia em português europeu e do Brasil (3.2) e, em
paralelo com a Secção 2, o seu lugar no continuum distância–imediatez (3.3).
Esta segunda abordagem será feita tendo sempre em consideração as suges-
tões a respeito do seu antecessor caso que e realça como caso, muito diferente
de em caso que e no caso que, lenta mas inexoravelmente traça o seu caminho
pelos domínios da imediatez comunicativa. O objetivo geral da Secção 3 é
assim, pelo menos parcialmente, colmatar as (muitas) lacunas na descrição da
história da língua portuguesa e corroborar a forma como decorre o processo
de gramaticalização “a partir de cima”. A nossa análise será precedida de algu-
mas breves observações tipológicas (3.1).
romeno estejam limitadas a uma perspetiva semasiológica que apenas considera a evolução
das construções com si (cf. e.g., para o espanhol, Cano, 2014: 3909).
19 Usualmente, a etimologia das formas si do românico é o latim sī , – ou seja, sem a
adição da partícula c(e). No entanto, isto parece ser uma espécie de simplificação pois, em
determinada altura, parece ter havido uma sobreposição do sī e do sīc em latim (cf. Ernout/
142
a partir de um advérbio formalmente idêntico com o significado de ‘assim,
então, nesse caso’.20
Do nosso ponto de vista, o caminho da conjunção condicional portuguesa
caso está muito próximo do das formas românicas si. Realmente, o nome caso
significa ‘caso’, e um caso é algo que, pelo seu significado lexical, é muito pro-
vável que seja “conhecido ou dado” (para usar a formulação de Traugott). Se
se aceitar a existência de uma tal ligação cognitiva entre advérbios como sī(c)
“assim” e caso, o português moderno desenvolveu então uma nova conjunção
condicional ao reutilizar um caminho já comprovado na sua história21. Proce-
deu assim por passos intermédios que incluem a construção preposicional em
caso que, mais tarde reduzida a caso que. Este caminho análogo aqui proposto
é ilustrado no seguinte esquema, uma versão adaptada da Figura 4:
Meillet, 1959: 622–623, que sugerem esta ideia ao dizerem que «Sī est le même mot que
sīc», e mais tarde: «entre sī et sīc il y a eu une répartition»; ver também de Vaan, 2008: 561).
20 Em latim antigo o advérbio sī ( c ) ‘assim’, ‘então’, ‘neste caso’ era sei . O mais antigo
significado adverbial é conservado nas formas reforçadas do românico moderno do tipo
Port. assim, Gal./Sp. así, Cat. així, Fr. ainsi, Ital. così, Rom. așa, etc., cuja génese está
talvez relacionada com a sobreposição funcional das formas adverbiais e condicionais si.
Estas formas estão, em certa medida, ainda documentadas em antigo românico; ver Kabatek
(2005 a: 152–154).
21 Enquanto o português caso é uma ocorrência singular no domínio das línguas româ-
nicas, há outras línguas nas quais a mesma fonte lexical está certificada (e.g., alemão falls
‘se’ < Fall ‘caso’ + mais tarde acrescentado o genitivo adverbial –s. Falls emerge no século
XVII através de um caminho muito similar ao sugerido neste contributo para o caso por-
tuguês (cf. Kluge, 2002: 274 e também especialmente SHW, vol. 2: 342 para ocorrências
dialectais da etapa falls dass, formalmente paralelo ao Port. caso que).
143
3.2. A conjunção condicional caso nas variedades do português dos
séculos XIX e XX
Outros N caso?
Século em casoN que + no casoN que+ casoConj+
(Sg.) que +
Subj.
de + de + Pres./ Subj.
Subj. Ind. Subj. Ind. Cond. Subj. Adv.
Inf. Inf. Pret. Fut.
Impf.
XIX 876 1 19 23 28
XX 1451 2 1 1 28 181 2 1
22 Ao passo que os dados para os séculos XIII-XVIII visualisados nas várias Tabelas
(supra) apresentam uma quantificação exaustiva de todas as ocorrências no CdP, os dados
para os séculos XIX e XX são um exemplo consistindo em cada quarta (XIX), sexta (XX
PE) e sétima (XX PB) ocorrências produzidas pela pergunta <caso>. Visto que a Tabela 5
(infra) foi feita para dar apenas uma primeira panorâmica geral, não diferencia PE e PB
– uma distinção no CdP serve apenas para o século XX. Os dados para o século XX serão
analisados mais cuidadosamente adiante.
23 Uma única ocorrência de caso como conjunção já tinha sido descoberta no século
XVIII (cf. (19)), o que pode considerar-se um bom argumento a favor da hipótese que a
perda de caso que já havia começado no século XVIII antes de ficar completa no século XIX.
144
caso se torna frequente, o uso de no caso que diminui e parece tornar-se mar-
ginal no século XX (cf. também Hundertmark-Santos Martins, 2014: 325). Das
diferentes variantes condicionais aqui investigadas, a conjunção caso torna-
-se de longe a opção mais frequente, pelo menos quando o verbo seguinte
é conjugado. A situação para em caso de + infinito e no caso de + infinito, é,
no entanto, diferente. Em caso de + infinito é observada ainda hoje, embora
esporadicamente, enquanto o uso de no caso de + infinito parece ser ainda
frequente.
Apesar de não conseguirmos determinar de forma conclusiva por que
razão a conjunção caso emergiu, o facto de ser um desenvolvimento muito
recente dos séculos XVIII/XIX significa que, graças à existência de um grande
volume de dados disponível, somos pelo menos capazes de delinear meticulo-
samente a sua diacronia. É este o objetivo dos parágrafos seguintes, nos quais
a visão geral diacrónica apresentada até aqui será complementada substan-
cialmente através da separação dos dados do português europeu (PE) dos do
português do Brasil (PB). Visto que o CdP não separa PB e PE para o século
XIX, a Tabela 6 dá apenas um valor refinado dos dados do século XX:
Outros caso?
Século em casoN que + no casoN que+ casoConj+
N (Sg.) que +
Pres.
de + de + Conj./ Fut.
Conj. Ind. Conj. Ind. Cond. Conj. Adv.
Inf. Inf. Pret. Conj.
Impf.
PE 658 2 1 16 58
PB 793 2 1 12 123 2 1
24 Note-se que o CdP mostra proporções quase idênticas de dados em termos de sím-
bolos para o PB e PE do século XX, respetivamente, implicando a improbabilidade de as
145
circunstâncias geográficas em que a conjunção surgiu. Atendendo às frequên-
cias assimétricas entre PB e PE nos dados do século XX, consideramos que
vale a pena observar com mais atenção a origem das 29 ocorrências dos sécu-
los XVIII e XIX nos nossos dados – um período para o qual, como referido
anteriormente, o CdP não distingue variedades diatópicas. A lista seguinte
apresenta os nomes e locais de nascimento de todos os autores dos séculos
XVIII e XIX nos quais está comprovado o uso da conjunção caso. O número
de ocorrências aparece entre parêntesis.
Note-se que, sem uma única exceção, todas as ocorrências dos séculos
XVIII e XIX da conjunção caso presentes no CdP provêm de textos escritos
por brasileiros nascidos no Brasil25. Assim, parece razoável presumir que a
conjunção caso é um fenómeno de origem brasileira, de onde, no final do
século XIX, se espalha para o PE26. É importante, contudo, salientar que isto
146
não se aplica a caso que, o presumível antecessor direto da conjunção. Esta
última está documentada sobretudo em PE, e só uma ocorrência tem origem
no brasileiro de nascença Alexandre de Gusmão27.
Há também diferenças qualitativas que favorecem a assunção de que caso
é uma inovação brasileira. Ao olharmos para a coluna PB na Tabela 6, salta
imediatamente à vista a existência de certificações com tempos verbais dife-
rentes do presente ou do pretérito imperfeito conjuntivo em PB. O exemplo
(19) ilustra uma das duas certificações do PB com um verbo no futuro do
conjuntivo28:
da preposição como no exemplo O prédio que o Paulo vive (ø/nele) está a ser restaurado,
usado em vez do prescritivo O prédio em que o Paulo vive está a ser restaurado, descrito ao
detalhe em Veloso (2013: 2127–2133). Relativamente ao tipo de construção não canónica,
certificada quer em PB, quer em PE, Peres e Móia (1995: 288–297), de onde provêm os
exemplos anteriores, considera possível a influência do PB no PE. Esta possível influência
do PB para a conjunção caso não pode ser presumida para caso contrário, uma locução
adverbial que, de acordo com o CdP, emerge simultaneamente no PB e PE do século XX.
27 O facto de esta ser a única ocorrência de um autor brasileiro (que, além disso, se
mudou para Portugal aos 23 anos de idade) é algo problemático para o continuum proposto
caso que > caso. Se esta última fosse uma inovação brasileira, esperaríamos que houvesse
mais ocorrências brasileiras de caso que. No entanto, acreditamos tratar-se de um efeito do
design do corpus: caso que era relativamente frequente (embora ainda um padrão menor)
apenas no século XVI (nove ocorrências), com apenas cinco ocorrências posteriores (duas
do século XVII e três do século XVIII). Mas o factor crucial é que, para o século XVI, o
CdP quase não inclui textos do Brasil (os primeiros exploradores portugueses chegaram
ao Brasil em 1500).
28 Um uso explicitamente censurado por gramáticas normativas publicadas no Brasil (cf.
e.g., Mendes de Almeida 1978, 565: «Caso, quando equivalente ao se condicional, repele o
futuro: “Caso eu possa” (e não“caso eu puder”)»). Uma exploração preliminar do Corpus de
Referência do Português Contemporâneo (http://alfclul.clul.ul.pt/CQPweb/crpcfg16/) mostrou
que caso + futuro do conjuntivo também está documentado no português de Macau, de
Moçambique, de Angola, e de Cabo Verde. Nesta última variedade parece ser mais frequente
(9/50 casos; 18%), ao passo que os dados do português de Macau (2/69; 2,9%), de Moçam-
bique (3/55; 5,5%), e de Angola (10/primeiras 200 ocorrências; 5%) revelam percentagens
inferiores, mas ainda consideráveis. Não se encontraram exemplos de futuro do conjuntivo
para as restantes variedades de português não PB/PE (marginalmente) contidas no corpus.
Mesmo apesar de não estar documentada no CdP, a possibilidade de se usar um futuro do
conjuntivo depois de uma conjunção caso mostra ter-se também difundido lentamente no
PE. Isto é sugerido por um olhar preliminar à Secção de PE do Corpus de Referência do
Português Contemporâneo, que contém muitos mais dados do que o CdP e onde se podem
encontrar casos muito esporádicos de caso + futuro do conjuntivo.
147
Assim, os dados do CdP sugerem que a gramaticalização de caso encontra-
-se em fase mais avançada no PB do que no PE, na medida em que as restri-
ções combinatórias são agora apenas determinadas pelo modo e já não pelo
tempo. Acreditamos que isto se deve ao facto de a conjunção caso ser mais
antiga em PB do que em PE. Viramo-nos agora para o terceiro aspeto a ser
discutido nesta Secção: a ancoragem da conjunção caso no continuum da
distância comunicativa–imediatez.
148
Quanto ao PB do século XX, a conjunção caso é frequente em contextos
de distância comunicativa29, mas, fundamentalmente, continua a caminhar no
sentido de domínios de imediatez comunicativa (cf. e.g., (3), similar ao mais
antigo (20)). Considere-se a seguinte ocorrência:
(21PB) uhn um gosta mais de limpar outro gosta mais de passar outro gosta mais
de lavar escuta caso você morasse numa casa -e- pra que você dormisse sossegada
que profissional você colocaria- pra -pra sua proteção?
(orBr-LF-SP-3:251, século XX)
149
(23PE) JN: Garante que, caso não ganhe as eleições, manter-se-á como vereador
até ao fim do mandato?
CA:O que está dito, está dito.
(Oral, Entrevista com Carlos Azeredo em Jornal de Notícias, 1997)
(24PE) só se podia livrar do trabalho depois de um ano de internato (…) a não ser
por doença grave, (…) caso os braços não pudessem de todo voltar a manejar a
picareta (…).
(Prosa literária, Terra Morta, Castro Soromenho, 1949)
(25PE) … não tenho mais que explicar à senhora. (…) Usamos também uma faca
lá adiante, em caso de emergência, para cortar. E (…) uma machadinha. caso se
parta (…) o mastro (…) do bote, fazer (…) um pé para botar no seu lugar.
(Cordial-Sin, Entrevista em Bandeiras, Açores, 1979)
(26 PE) Caso esteja muito frio, amorna-se um bocadinho põe-se o coalho, espera-se
ali uma hora, conforme o tempo e a quantidade de leite que for
(Cordial-Sin, Entrevista em Unhais da Serra, 1997)
150
contrária à conclusão aqui apresentada: os dados do PE do CdP contêm uma
percentagem ligeiramente superior de certificações orais, o que poderia ser
considerado erradamente como prova de que o PE é a variante na qual a con-
junção caso avançou mais no sentido da imediatez comunicativa:
151
4. Acaso
(28) Estou à disposição dos senhores para responder às indagações e dúvidas que,
acaso, me queiram dirigir e expor.
(Luiz Beltrão, A Greve dos Desempregados, 1984)
152
(29) Acaso me ouviste reclamar?
(Martins, 2013: 2273)
Mostrámos como o Lat. casus> Port. caso passa por uma série de evolu-
ções na história do português; caso como nome torna-se parte de construções
preposicionais que expressam condição, caso como conjunção torna-se ele-
32 Poder-se-ia negar por razões sintáticas que entidades como as partículas modais
podem existir em línguas que não sejam V2 em casos em que as partículas não seguem o
verbo. Se deixarmos de parte critérios puramente sintáticos, não há dúvidas, no entanto,
de que a realização cognitiva de partículas modais pode também alcançar-se em línguas
românicas. Os meios linguísticos para o fazer são variados, e alguns, embora não todos, são
partículas (cf. Waltereit, 2006; para uma discussão de possíveis partículas modais românicas
e do critério sintático, cf. Secção 2 e 3 in Gerards/Meisnitzer, 2017). Curiosamente, uma
fonte importante para tais partículas no ibero-românico é a insubordinação (Evans, 2007),
e uma partícula prototípica com uma função modalizante criada por insubordinação é o si
(para espanhol, ver Gras Manzano, 2010). Isto não parece ser coincidência, se virmos as
nossas hipóteses relativas à relação entre caso e si em 3.1.
153
mento gramaticalizado para subordinação condicional, acaso como advérbio
torna-se nome e partícula com função modalizante. As evoluções observa-
das permitem algumas conclusões de caráter semântico e construcional bem
como de caráter mais geral relativamente à relação entre gramaticalização,
distância comunicativa–imediatez e TD.
Semanticamente, casus e os seus modernos sucessores evoluem ao longo
de dois caminhos em português (e, em parte, noutras línguas). Como numa
série de outras línguas, casus ‘evento’ ou ‘evento jurídico’ entra em constru-
ções preposicionais com em, onde a referência a futuros eventos é hipotética
e assim acompanhada pelo significado mais abstrato de hipótese ou condi-
cionalidade. A habitualização deste significado secundário faz com que se
torne o significado primário de tais construções. O segundo caminho torna-
-se manifesto em construções com a, onde caso originalmente se refere a
uma determinada situação e depois a um evento possível, casual, resultando
no significado ‘talvez’. Dá-se um passo em frente assim que acaso se torna
marcador de perguntas retóricas, ou seja, indicador de um “sentido secun-
dário” da enunciação. Com esta última função, é possível argumentar que
se se gramaticalizou formando uma partícula modal (ou partícula com fun-
ção modalizante, dependendo da importância atribuída a critérios sintáticos)
expressando um determinado tipo de modalidade epistémica interpessoal.
Sintática ou construcionalmente, caso em construções preposicionais como
em caso que /no caso que emerge em textos medievais. Em português, estas
construções passam por um processo de redução construcional como se vê
na Figura 6 (em caso que /no caso que>caso que>caso). A redução formal é
também acompanhada por uma redução da flexibilidade do meio gramatical
da construção. Quanto a acaso, esta forma é o produto da fusão duma prepo-
sição e dum nome. Como advérbio, é bastante flexível relativamente à lineari-
zação e torna-se habitual sobretudo em duas construções concretas, por acaso
e o simples acaso paralelamente com o recém-criado nome acaso.
Se examinarmos os itens observados e a sua relação com determinadas
TD e a sua ancoragem no continuum da distância comunicativa–imediatez,
podemos ver três evoluções: em primeiro lugar, o lexema espanhol e por-
tuguês caso (jurídico) surge inicialmente em tradições de distância comuni-
cativa e particularmente em TD jurídicas. Aqui, entra então em construções
154
preposicionais expressando condicionalidade. Estas são ainda indicativas de
tradições formais de distância comunicativa, mas cedo deixam de estar limi-
tadas estritamente a TD jurídicas. Presumivelmente, isto também pode ser
observado em outras línguas como o francês ou o inglês.
O segundo cenário é uma evolução posterior: em português, e especial-
mente na variedade do Brasil, a redução da construção preposicional e a sua
transformação em simples conjunção vai de mãos dadas com a sua extensão
a TD já não marcadas como [+distante]. O terceiro caso, acaso, com ou sem
função modalizante, abre o seu caminho em textos de distância e imediatez
semelhantes.
Em termos mais gerais, isto significa que a gramaticalização está intima-
mente relacionada com as TD e o continuum da distância comunicativa–ime-
diatez. Os processos de gramaticalização podem ter origem na expressividade
de TD orais e imediatas e, a partir daí, difundir-se para outras mais distantes
(Mair, 1992; Koch /Oesterreicher, 1996; Kabatek, 2012):
distância comunicativa
tempo
TD
imediatez comunicativa
4
Figura 7 – Gramaticalização e tradições discursivas: da imediatez à distância
155
distância comunicativa
tempo
TD
imediatez comunicativa
5
Figura 8 – Gramaticalização e tradições discursivas: da distância à imediatez
156
distância comunicativa
tempo
TD
imediatez comunicativa
6
Figura 9 – Gramaticalização e tradições discursivas:
emergência e perda entre imediatez e distância
157
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162
SECÇÃO II
(Página deixada propositadamente em branco)
CLARA BARROS
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Centro de Linguística da Universidade do Porto
[email protected]
ORCID: 0000-0002-4118-1683
P r ag m át i c a h i s t ó r i c a e c o n s t r u ç ão h i s t ó r i c a
do discurso: análise de alguns aspetos
do funcionamento tex tual-discursivo
d o P o r t u g u ê s m e d i e va l
H i s t o r i c a l p r ag m at i c s a n d h i s t o r i c a l
c o n s t r u c t i o n o f d i s c o u r s e : a n a ly s i s o f
some aspects of the tex tual-discursive
f u n c t i o n i n g o f m e d i e va l P o r t u g u e s e
Abstract: In medieval textual analysis (which concerns the study of textual and
discursive structures) it is important to take into account historical pragmatics since this
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_5
broadens the horizons for the analysis of texts from the past. The present study aims to
examine some specific linguistic aspects of medieval Portuguese. First, it looks at the use
of discursive connectors and their semantic and pragmatic derivations, then it moves on
to the evolution of the system of locative deixis in Portuguese. This involves discussing its
chronology, with the analysis of some examples of lexical innovation; this has been obser-
ved in texts belonging to different discursive traditions in which the origin of new word
use is evident. Some formal and functional divergence of connectors of use has been noted
within the evolution of different types of text, which suggests that this evolution depends
on specific contexts and on text typology. With regard to the analysis of locative deixis, it
becomes clear that in the medieval period the system evolved from a binary to a ternary
structure. The present analysis contributes to the establishment of parameters for the evolu-
tion of connectors in different discursive traditions, thus relating historical evolution to the
typology of texts and their history.
Keywords: historical pragmatics, discourse traditions, connectors, locative deixis, lexi-
cal innovation
166
tem de ser adequado a esse objetivo. Os textos podem ser analisados sincro-
nicamente, mas na sua historicidade, mantendo a perceção da variação em
sincronia, porque cada estado de língua tem a sua espessura histórica.
Quando procuramos fazer uma abordagem pragmática de textos do pas-
sado o problema dos dados agudiza-se, uma vez que a metodologia prag-
mática foi predominantemente aplicada à análise de textos atuais – orais e
escritos – inseridos no seu contexto empírico, e terá que ser adaptada à aná-
lise de textos – escritos – de sincronias do passado, cuja inserção contextual
só indiretamente pode ser determinada. As hipóteses analítico-descritivas for-
muladas pela Pragmática Histórica não poderão ser empiricamente susten-
tadas; é preciso, assim, encontrar informações – que se revelam, por vezes,
escassas – sobre o contexto histórico e social dos textos.
Acresce que o estudo da unidade texto/discurso não foi muito frequente
no âmbito da Linguística Histórica que, tradicionalmente, deu pouca atenção à
evolução das formas textuais e dos géneros discursivos. Quando as dimensões
textuais/discursivas foram englobadas na reflexão e caracterização praticadas
pela Linguística, no âmbito da Pragmática Linguística, da Análise do Discurso
e da Linguística Textual, o seu estudo foi inicialmente encarado numa perspe-
tiva estritamente sincrónica. Mas o alargamento da análise linguística à rela-
ção entre a linguagem e os contextos não poderia deixar de ter repercussões
na Linguística Histórica. As formas de organização textual-discursiva podem
(e devem) ser estudadas numa perspetiva histórica e é indispensável que,
em relação a textos do passado, se faça o estudo das relações entre o uso da
linguagem e os contextos, isto é, que a comunicação construída nesses textos
possa ser descrita à luz de uma metodologia enunciativo-pragmática.
A descrição linguística no âmbito da Pragmática Histórica foi uma área
científica inicialmente assim designada por Brigitte Schlieben-Lange que, em
inícios dos anos 80 (cf. Schlieben-Lange, 1983), de forma precursora, se propôs
alargar a perspetivação da história das línguas românicas a novos conceitos
da área da sociolinguística e da pragmática. Esta abordagem foi desenvolvida
pela romanística alemã ao longo dos anos 80 e assumiu um âmbito mais alar-
gado no final dos anos 90.
Na linguística portuguesa, a importância desta metodologia de análise foi
sublinhada por Clarinda Maia num artigo, fundamental, de 1995 – Sociolin-
167
guística histórica e periodização linguística – em que chamava a atenção
para a desejável utilização dessa metodologia na Linguística Histórica. Nesse
mesmo ano, foi editada por Andreas Jucker (ed. 1995) uma obra de sistema-
tização – Historical Pragmatics. Pragmatic Developments in the History of
English –, com uma apresentação programática de Daniel Jacob e Andreas
Jucker intitulada The Historical Perspective in Pragmatics ( Jacobs/Jucker,
1995).
É de notar que este quadro teórico-metodológico assinala duas perspetivas
que se têm afirmado na Pragmática Histórica: por um lado, a que se ocupa
da análise da estruturação dos discursos e da caracterização do sentido neles
construído, tendo em conta as condições da sua produção-receção; por outro
lado, a que se aplica à descrição e explicação da deriva formal ou funcional de
alguns morfemas, ao traçado do percurso diacrónico de uma forma ou função,
analisando a alteração dos sentidos discursivos e as diferentes realizações for-
mais dessa função através de diferentes estádios da mesma língua.
Estas duas perspetivas são complementares e podem cruzar-se: os dados
obtidos na análise discursivo-textual permitem descrever o significado (e o
uso) dos elementos linguísticos, e este conhecimento é fundamental para a
determinação do seu valor, porque não há formas soltas, isoladas, há discur-
sos. E é possível estabelecer comparação com outras sincronias, detetando a
variação e eventuais movimentos de evolução linguística que afetem diversas
categorias.
168
Os trabalhos de Pragmática Histórica debruçam-se sobre tipos específicos
de textos de que descrevem a estruturação discursiva e os fenómenos de
evolução histórica. Algo que se tornou patente em estudos mais recentes de
diversos autores que trabalham sobre Linguística Histórica como, por exem-
plo, o estudo de Company (2014) sobre as variáveis da difusão dos fenómenos
de mudança sintática e do cenário em que decorrem.
A conceção de que a história de uma língua se faz também de acordo com
as tradições dos textos e estas podem condicionar a seleção de elementos
linguísticos parece-me fundamental na Linguística Histórica como, aliás, na
linguística em geral. Os textos contêm também, em si mesmos, elementos do
quadro situacional e das condições de enunciação que permitem largamente
a reconstituição das intenções comunicativas que presidem à sua produção,
as coordenadas da ‘audiência’ ou ‘destinação’, ou seja, as condições típicas da
sua produção e receção.
A Pragmática Histórica e o modelo das Tradições Discursivas enriquecem o
estudo do funcionamento textual-discursivo do português medieval, em diver-
sos níveis de análise, facultando a observação de fenómenos de mudança
desde a sua fase inicial até à fase de normatização e de estabilização no uso
e sua estandardização.
Vou tentar ilustrar esse lento movimento de mudança linguística em
alguns aspetos da evolução do português medieval e renascentista, focando,
nomeadamente:
169
Afonso X – Primeyra Partida, Foro Real, Flores de Dereyto, Tempos dos Prey-
tos, editados por J. Azevedo Ferreira, e de alguns outros fragmentos das Parti-
das1 – todos eles do primeiro período do português medieval. Textos que se
integram numa prática discursiva histórica e socioculturalmente determinada
– discurso jurídico legislativo – que traduz um sistema deôntico em relação
com uma ideologia, com uma mentalidade específica.
Tenho tentado descrever e caracterizar o discurso medieval em português
tal como surge concretizado nesse corpus representativo, e considerar aspetos
de evolução linguística, com destaque para a descrição e explicação de alguns
morfemas, relevantes no tipo de textos estudados, que evidenciam derivas for-
mais ou funcionais. Este duplo objetivo releva claramente das duas vertentes,
que considero complementares, que se têm afirmado crescentemente na Prag-
mática Histórica – a que se ocupa da análise da configuração dos discursos
nas condições típicas da sua produção e receção e a que se aplica ao estudo
da deriva de estruturas ou de elementos – quer se trate de deriva em curso
quer de deriva já plenamente consumada.
170
A investigação sobre os contrastivos cruza transversalmente diversos
temas. Assim, o trabalho sobre derivas semânticas e pragmáticas de conec-
tores adversativos – mais, porém, contudo, todavia – integra-se noutro, de
âmbito mais alargado, sobre o funcionamento das construções contrastivas
em português no período medieval e em sincronias posteriores. Nas análises
está sempre presente a perspetiva diacrónica e estabeleço para cada texto
e para cada sincronia um enquadramento teórico de cariz tendencialmente
pragmático-discursivo.
O inventário de morfemas que se encontra nos textos jurídicos da legis-
lação de Afonso X é formal e funcionalmente diferente do de outros textos,
nomeadamente no caso dos contrastivos que neles apresentam uma elevada
frequência em consonância com o cariz argumentativo de muitos segmentos
textuais.
171
Assim, quando se estudam os contrastivos em Português antigo verifica-se
que há formas ainda em processo de gramaticalização. O sistema conjuncio-
nal organiza-se a partir de deslocações do sentido gramatical de partículas
discursivas de diferente natureza e um dos percursos possíveis é a evolução
de morfema conclusivo para o valor contrastivo, por surto de negação. É uma
deriva que afetou diversos morfemas como, a título de exemplo, o morfema
por ende/poren.
(1) se o capicol ou o chantre ou o uigayro ferir algũus dos clerigos do coro per
rrazõ de seu offizio nõ seeria porende scomũgado.
(Pr.P., XII, 132-133)4
(2) Se algũa molher for uiuuoa que aya senhor auodo ia ou amigo e casar depos
morte de seu padre ou de sa madre sen uoontade de seus irmaos nõ seya porẽ
desherdada.
(Fo.R., III, 45-47)
172
(3) e o deuedor nõ possa emparar per dizer ca fiador ten del, ca pero que deu
fiador nõ é poren quite da deuida.
(Fo.R., III, 1283-1285)
Estas podem ser das primeiras ocorrências de um uso que surgiu em con-
textos muito marcados ou específicos.
(4) E como quer que os bispos cada hũ tenha logar de Ihesu Cristo e seia sseu
vigayro ssobre aqueles que ssom dados en seu bispado por auer poder de legar
173
e de ssoluer, cõ todo esso o apostoligo he vigairo de Nostro Senhor Ihesu Cristo
assynaadamẽte en todo o mũdo.
(Pr.P., VIII, 96-101)
(5) E como quer que saluarsse podesse o homẽ, pero nõ fezesse tal uoto come
este, cõ todo eso teudo he de o gardar des que o fezer.
(Pr.P., XI, 43-45)
(6) Pero diz ena ley ante desta que ante deue o homẽ a dar a esmolla ao cristão
que hao outro que ffosse doutra ley, con todo esso tã grande foy o bẽ da Eygreia
mouẽdosse per rrazõ de piadade que solueo esta duuyda
(Pr.P., XXVI, 219-223)
174
Assim, o elemento linguístico que serve de base aos conectores contrasti-
vos tem significado objetivo de valorização axiológica positiva, de reconhe-
cimento de um grau elevado, e aponta para significados objetivos que se
relacionam com a ideia de ‘limite’, de quantificação universal. É o que se
passa com o anafórico todo presente na génese dos dois adversativos do por-
tuguês todavia e contudo, com formas análogas também em outras línguas
românicas.
Numa segunda fase, procurei alargar o âmbito do corpus analisado a tex-
tos de um período posterior e de uma diferente tradição discursiva, no sentido
de tentar traçar as linhas da estabilização dos novos usos destes morfemas.
Dada a sua maior frequência de utilização, segui o percurso de porem e de
contudo.
(7) Dos ovos pera esto nom ha regla certa porque a hũus aproveita e a outros
empece. E porem cada hũu huse de os comer como se deles sentir. (L.C., cap. C,
Do regimento do estamago)
175
(8) Ca em este caso aos outros do seu reyno, a que perteece de o em ella [justa
guerra] servir, nom convem mais scoldrinhar, mas sem embargo podem matar, ferir
e roubar, segundo per seu rey e senhor for ordenado. Ca esto todo he per todos
dereito determynado, que os que teem oficio de defenssores o devem fazer, husando
porem de piedade quanto mais poderem, com reguardo de seu serviço, naqueles
casos que per boons confessores e leterados nos for determinado
(L.C., cap. XVII, Do hodyo)
(9) Segunda he dos jejũus que por special devaçom se guardom, os quaaes, ainda
que nom assy como aos primeiros sejamos obrigados, porende as speriencias
bem demostram como a nosso senhor deles praz, per cujo emxempro aquelles da
cidade de Nyve forom salvos da sentença de sua destruyçom
(L.C., cap. XXXIII, Da diferença dos jejũus)
(11) E antre as muytas vyrtudes que ouve este virtuoso conde, desta foy sempre
muy louvado: que era tam circonspecto em todo que ouvesse de fazer que nom
podia com razom em myngua de avysamento e boo percebimento seer com dereito
e verdade prasmado. E com todo tal avysamento e receo do que acontecer lhe
podia, era nos medos e pellejas tam seguro e sem temor pera soportar e cometer
que outro mais nom poderia seer achado
(L.C., cap. LIII Doutros speciaaes avisamentos sobre a prudencia)
176
dor de inversão da direção argumentativa, mas permanece não aglutinado, o
que denuncia um processo recente de gramaticalização e a conservação do
hábito de representação gráfica. De facto, esse processo de gramaticalização
da expressão parece estar concluído neste período como pode observar-se
nos seguintes exemplos do discurso expositivo gramatical da Gramática da
Lingoagem Portuguesa de Fernão de Oliveira, de 1536:
(12) E agora quando a cada vogal quasi muda sua voz: não diremos logo que temos
as mesmas letras: nem tantas como os latinos: mas temos tantas figuras com’’elles:
& quasi as mesmas ou imitação dellas. E com tudo nam deixa d’ aver falta nesta
parte porque as nossas vozes requerem que tenhamos trinta & duas: ou trinta &
tres letras.
(06, 11, 12-18)
(13) E se assi e verdade que os gregos com os latinos: & os ebraycos cõ os arabigos
e nos com os castellanos que somos mais vezinhos cõcorremos muitas vezes em
hũas mesmas vozes e letras: & cõ tudo não tanto que não fique algũa particulari-
dade a cada hũu por si hũa so voz & com as mesmas letras
(07, 12, 5-11)
(14) Que diz som. He o mui nobre johã de barros & a rezão que da por si e esta:
que de som. mais perto vẽ a formaçã do seu plural o qual diz somos. com tudo
sendo eu moço pequeno fui criado em são domingos D’euora onde fazião zõbaria
de mỹ os da terra porque o eu assi pronũnciaua segũdo que o aprendera na beira
(47, 71, 21 – 72, 2)
177
2.4.2. Usos dos conectores e tipologia dos textos
178
cia da sua evolução diacrónica. A interseção destes dois aspetos parece ser
fecunda para a análise de corpora de textos do passado, porque esclarece
algumas estruturas e formas específicas de um estado histórico e simultanea-
mente dá conta de aspetos da sua evolução.
179
Nos textos portugueses medievais observam-se, além da parataxe e jus-
taposição de predicados, novas formas de organização dos enunciados, com
explicitude de mecanismos introdutórios. A elevada frequência de morfemas
em correlação no português medieval explica-se como uma forma especí-
fica de construção, observável em textos desse período da língua, que se
afasta não só da anterior fase de predomínio de parataxe com polissíndeto
como também das formas de subordinação que irá apresentar o português
nas sincronias posteriores, incluindo as que mais imediatamente seguem este
período, em que já se encontram exemplos de sintaxe com elaborada hie-
rarquização de predicados, tendência que se acentua consideravelmente ao
longo do século XVI.
As estruturas que apresentam morfemas em correlação, para além de
constituírem novas combinatórias sintáticas, correspondem a estratégias dis-
cursivas específicas. A especificidade histórica manifesta-se, portanto, nas
estruturas em que existem traços característicos, quer pela sua diferença for-
mal, quer pelo seu funcionamento nos movimentos de retoma e de progres-
são da informação no texto. O uso de morfemas em correlação denota o
enriquecimento progressivo não só do inventário de morfemas com funções
relacionais, mas também das possibilidades combinatórias entre eles (cf. Bar-
ros, 2010: 548-557).
Estas construções surgem em textos de diferentes tradições, observando-se
uma relativa disseminação da sua ocorrência, sem que me tenha sido possível
detetar, até ao momento, um predomínio destes mecanismos de correlação
em textos de algum tipo em particular.
180
completo e sugestivo estudo procurei alargar a análise aí presente e comparar
dados de um corpus do 1.º período medieval, maioritariamente de textos jurí-
dicos, com outros textos posteriores dos séculos XV e XVI, tentando precisar
o marco cronológico da estabilização dos deíticos espaciais, pela evolução
de um sistema predominantemente binário para ternário. Passo a expor, por-
tanto, uma análise da evolução do sistema da dêixis espacial do português,
através da observação de textos de diferentes tradições discursivas, numa
tentativa de dar um contributo para precisar a cronologia da sua evolução.
A partir das formas latinas originárias, o sistema dos deíticos pronominais
e adverbiais refaz-se, sendo o português uma das línguas românicas que con-
servam a organização em três graus de proximidade da situação de enuncia-
ção, enquanto outras, como o romeno ou o francês, apresentam apenas duas
dimensões de proximidade (Matos/Muidine, 1997: 214).
No período medieval tardio, o Português apresenta já eventualmente um
sistema em três dimensões com formas específicas. Este sistema foi objeto de
algumas descrições, que partem sempre de um corpus relativamente restrito
de textos. Teyssier (1981) refere o sistema do português antigo, nomeada-
mente o do século XV, a partir do estudo da Crónica de D. Pedro e ana-
lisa a sua evolução para o sistema observado no século XVI, que descreve
baseando-se sobretudo na análise da obra de Gil Vicente. Outros autores se
debruçaram sobre este tema como Matos e Muidine (1997) que estudam o
desaparecimento de acó e de aló. Mattos e Silva (2008) retoma a sua proposta
de 1983, baseada na análise de um texto apologético e filosófico, Diálogos de
S. Gregório. É também importante o contributo do estudo de Álvarez e Xove
(2008), mas é de notar que tem sobretudo uma dimensão moderna, sincrónica
e dialetal.
O estudo que aqui apresento contempla dois intervalos cronológicos,
abarcando os séculos XIII-XIV, e XV-XVI. Utilizei textos de amostras quanti-
tativamente comparáveis, incluindo textos literários e não-literários, mas ten-
tando evitar a subordinação da história da língua ao estudo de grandes obras
literárias, como recomenda Company (2014). Esta análise tem como objetivo
relacionar a tipologia dos textos com as inovações na configuração do sis-
tema dos deíticos, tentando determinar em que tipo de tradição discursiva
se observa melhor a progressiva diminuição da frequência de formas como
181
acó/aló e acá/alá, em confronto com a conservação das formas aqui/ali e
a frequência crescente da sua utilização. Também se revelou fundamental a
observação dos usos da forma hi com o aumento da sua ocorrência na cons-
trução há hi, de utilização progressivamente mais frequente, que prenuncia
o aparecimento da forma adverbial aí. No período mais ou menos extenso de
coexistência de formas, em que há sempre ajustes lentos e graduais, é impor-
tante observar quando e em que tipo de textos ocorrem pequenas fraturas e
a frequência com que se apresentam as formas mais conservadoras ou mais
inovadoras.
O sistema dos deíticos atinge, provavelmente ao longo do século XVI, a
forma que irá conservar até aos nossos dias, em que cá e lá e aqui e ali sur-
gem já claramente como adverbiais, bem como aí, com provável origem no
anafórico hi. A evolução apresenta sempre uma constante transformação que
se insere na continuidade e de que nos apercebemos pela observação dos
dados de cada sincronia e de sincronias sucessivas. Nos casos de coexistência
de formas, considerei o aumento de frequência relativa das formas como um
indicador da sua vitalidade, e a diminuição da frequência de algumas formas
tradicionais como sinal de decadência de uso.
Há, na história do português, a evolução de um sistema predominante-
mente binário para ternário. A questão central a equacionar neste domínio
consiste em estabelecer quais os primeiros textos em que o sistema moderno
aparece estabilizado com abandono das formas especificamente medievais.
esto/aquesto aquele
aqui ali
acó aló
acá alá
182
Não está aqui integrada a forma hi, embora seja muito frequente em textos
deste período, porque não tem ainda função deítica: o seu valor é anafórico.
Dois valores que virão a coexistir no sistema moderno. Outros deíticos, como
alá e lá, podem já apresentar também um valor de retoma anafórica como se
vê no exemplo sugestivo de uma conhecida cantiga de Romaria de Pero de
Viviaez:
183
É de notar também, neste texto do século XIV, a frequência elevada do
uso de este (755)/aqueste (297) e de aquele (1359), enquanto esse é mais
raro (61) e quase sempre anafórico. Nos textos jurídicos dos séculos XIII-XIV
que analisei, encontro uma situação análoga à observada por Mattos e Silva.
As percentagens divergem ligeiramente nos três textos analisados exaustiva-
mente – Foro Real, Flores de Dereyto e Primeira Partida. Os quadros abaixo
esquematizam as respetivas ocorrências.
aquesto 3
aqui 3 hi 2 aly 5
ala 1
184
No texto da Primeyra Partida verificam-se as seguintes ocorrências:
Vemos que neste texto, muito mais extenso, da Primeyra Partida, se con-
firmam as tendências de frequência já observadas, sem se registarem usos
de acó/acá nem de aló e observando-se apenas vinte ocorrências de ala8.
A frequência de hy é muito elevada: é usado como anafórico e também fre-
quentemente na construção com o verbo haver – hy haver/haver hy. Embora
não seja comparável com a frequência de este/esta nem com a de aquele/
aquela, o deítico esso/essa apresenta frequência significativa e surge também
reforçado muitas vezes pelo identificativo mesmo/mesma – esso meesmo/essa
mesma.
Os dados dos textos jurídicos do português antigo confirmam os dados
estatísticos avançados por Paul Teyssier para o português desse período com
base na análise do texto Diálogos de S. Gregório, do século XIV.
7 De notar que não são representativas, para este estudo, as 85 ocorrências de esso no
conector conclusivo por esso.
8 Acó e aló, bem como acá e alá irão sobreviver em formas diversificadas. No português
moderno, na oposição binária cá/lá. Mas no galego moderno observa-se conservação destas
formas e uma diversidade de ordem diatópica: são usadas as formas acó/aló nas regiões
mais a norte e as formas acá/alá nas regiões mais a sul, de Ponte Vedra ou Ourense. Em
distribuição dialetal como observam Álvarez e Xove (2008).
185
3.2. A evolução da dêixis espacial nos séculos XV e XVI
Nos textos do século XV o sistema binário parece já não estar a ser uti-
lizado, como também refere Teyssier, baseando-se nos dados da análise do
texto da Crónica de D. Pedro de Fernão Lopes. Procedi à análise do Leal Con-
selheiro, um texto também do século XV e igualmente em prosa, mas de uma
tradição diferente. De acordo com os dados observados nesse texto, aqui e
ali são muito mais frequentes e designam um espaço pontual; acó/aló indi-
cam igualmente um espaço pontual, mas são mais raros; acá/alá, que não são
muito frequentes, indicam zonas extensivas e direções.
A evolução para o sistema ternário, no caso dos adverbiais de lugar, passa
então pela evolução do anafórico hi para um uso deítico. O sistema binário
já não se observa no século XV, em que surgem ocorrências mais ou menos
incipientes de esse, esso e também do anafórico hi, sobretudo na construção
há hi. Teyssier não encontra essa transição no corpus analisado do século XV
(o texto da Crónica de D. Pedro). Mas refere que no caso de se encontrar uma
ocorrência de hi não tão claramente anafórico, esse seria o ‘salto’ que faria
de hi o terceiro termo da micro estrutura aqui/hi/ali 9. Em relação ao uso
de hi no século XV, encontrei no Leal Conselheiro uma situação análoga: hi
surge como anafórico, quase sempre com o verbo haver. Das 18 ocorrências
de hi no Leal Conselheiro, 17 são da estrutura haver hi. Podemos ver alguns
exemplos:
(14) E sse pode aver cobro, boa sperança, e contra as cousas grandes e fortes,
grande e boo atrevimento. Outras tres ha hi em contra: Filhando desordenada
sanha ou tristeza onde nom ha cobro nem corregimento.
(L.C., cap. VI Doutra declaraçom que faço sobre as voontades)
(15) E de todallas cousas que som fremosas nom ha hi outra que o mais seja que
hũa igualdança de toda a vyda. E esso meesmo das obras syngullares
(L.C., cap.LVIII Dos speciaaes notados do livro)
9 Cf. Teyssier (1981: 24): «Il est parfaitement possible que ce “saut” se soit produit à
l’époque de Fernão Lopes, et même avant, et que seul les limites de notre corpus nous
aient empêché de le constater».
186
(16) E enquanto [se] sentir empachado de ssobegidõoe de vyanda, nunca coima
outra nehũa pera o correger, por que nom ha hi melhor meezynha que sofrer
tanto o comer que elle per sy se correga, cobrindosse e aqueentandosse em razoada
maneira, segundo o tempo for.
(L.C., cap.C Do regimento do estâmago)
(17) E mais saberom cantar as missas que ham de dizer, e leerlas, e registar o livro,
posto que hi nom estê outro capellam que o faça.
(L.C., cap. LRVI Do rregimento que se deve teer na capeella pera seer bem regida)
187
Uma das ocorrências específicas de esso é um uso complexo com forte
reforço do valor anafórico:
(18) Da enveja vem desprazer das avantageens ou igualanças por nosso respeito
que veemos em outrem, e prazimento de sseus malles, perdas e abatymentos
E aquesto esso medês se filha per outras tres partes como a ssoberva e vãa gloria,
scilicet das virtudes, cousas meããs e dos malles
(L.C., cap. XV Da enveja)
188
Sistema ternário
este/isto esse/isso aquele/aquilo
aqueste (a)(s) aquesse aquele
aqui aí ali
hi
cá lá
189
No Catecismo de 1504 a distribuição é a seguinte:
11 No português moderno existe também acolá. Mas acolá tem restrições: é de uso oral
e exige a presença de um contexto situacional.
12 A norma do PB é um sistema binário. Usos como: Esse aqui comprovam o esbater da
fronteira entre este e esse e entre aqui e aí. Os advérbios cá e lá mantêm a estrutura binária.
190
São, portanto, segmentos meta-discursivos. Nestes processos de introdução de
neologismos, o Locutor estabelece uma correlação de identidade entre dois
termos pondo em relação o vernáculo e o latim, e em alguns casos de ino-
vação lexical por importação de vocábulo latino é mesmo possível encontrar
uma dimensão metalinguística e um discurso justificativo desse procedimento.
O uso de termos inovadores, alguns de utilização recente no idioma, é
muito elevado em momentos específicos dos textos deste corpus, nomeada-
mente em segmentos em que o desenvolvimento do texto de uma lei consi-
dera a eventualidade de ocorrência de circunstâncias diferentes, que motivam
acréscimos às designações legislativas antes formuladas, e ainda em segmen-
tos em que a competente gestão do discurso conduz o Locutor a tentar ante-
cipar e prevenir dificuldades de apreensão do sentido. Estes neologismos
inserem-se portanto em diferentes estratégias discursivas.
Observando alguns exemplos:
(20) Scrutinio chamã en latĩ a primeyra maneyra da esliçõ que quer tanto dizer en
linguagẽ como scodrinhamẽto
(Pr.P., VIII, 510)
(21) Honestidade quer tanto dizer en latĩ come conprimẽto de boos custumes
pera ffazer homẽ bõa vida
(Pr.P., IX, 881-882)
(22) Negligẽça tanto quer dizer en latĩ como quãdo homẽ leixa de fazer o que deue
e o pode fazer nõ parãdo en elle mẽtes.
(Pr.P., XIX, 215-216)
(23) som chamadas en latĩ «liquides» que quer tãto dizer como correntes.
(Pr.P., XXII, 40-41)
191
ram em língua portuguesa uma determinada tradição de escrita. Têm mar-
cada influência na evolução das formas linguísticas, a todos os níveis. Esta
introdução de terminologia constitui um domínio de particular significado
no todo do discurso legislativo expositivo, numa vertente doutrinal, já que as
terminologias conferem ao discurso legislativo uma feição técnica, que está aí
ao serviço do rigor.
A introdução precoce destes neologismos latinos tem como resultado um
evidente enriquecimento do léxico. Recorde-se que se trata de textos jurídicos
iniciais que inauguram em língua portuguesa uma determinada tradição de
escrita. Têm marcada influência na evolução das formas linguísticas, a todos
os níveis: surgem novas conjunções, novas fraseologias, novas estruturas e
inovações lexicais.
Não se pode esquecer que a análise das diferentes dimensões linguístico-
-discursivas destes textos nos informa acerca das ‘possibilidades’ linguísticas
deste período. A necessidade de traduzir conteúdos por vezes de grande sub-
tileza, como acontece, por exemplo, no recorte de noções, na definição de
termos e na formulação ajustada e rigorosa de determinações legislativas,
poderá explicar a competente utilização dos recursos disponíveis na língua e
a exploração adequada de modos de organização discursiva.
192
tada e rigorosa de conceitos próprios da uma linguagem mais abstrata. Encon-
tram-se ‘traduções’ com carácter definitório e um objetivo de inovação lexical
tendente à criação de um vocabulário da linguagem elaborada. Este processo
de ‘tradução’ é mesmo definido no texto como uma atividade de “abryr a
intelligencia das cousas”.
Está presente neste texto uma preocupação de rigor com o modo de escre-
ver de forma mais ou menos próxima do latim, como se pode observar no
seguinte passo do capítulo XCIX em que se reconhece a possibilidade de
existência, em quem escreve, de dois ‘gostos’ diferentes, um mais próximo do
Latim e outro menos literal:
(24) scripto ao pee da letera, que chamam os leterados “a contexto”, o qual a algũus
nom muyto praz, por seer scripto na maneira latinada
(L.C., cap. XCIX Da maneira pera bem tornar algũa leitura em nossa lynguagem)
(25) Da yra seu proprio nome em nossa lynguagem he sanha, que vem de hũu
arrevatado fervor de coraçom por desprazer que sente, com desejo de vyngança
(L.C., cap.XVI Da sanha)
(27) o siso, segundo nossa dereita linguagem, nom esta no entender e falar soo-
mente, mes em bem e virtuosamente obrar
(L.C., cap. VIII De quatro maneiras que os homẽes som geeralmente)
193
(28) do odio ou, segundo nossa linguagem, malquerença, que he hũu contynuado
desejo de mal, perda, abatymento de bem doutrem per qual quer guisa que viir
lhe possa.
(L.C., cap. XVII Do hodyo)
194
no século XV» (Maia, 2013b: 87). A mesma autora refere como «é importante
determinar a época e as circunstâncias da introdução e da incorporação dos
latinismos e as relações semânticas e de uso entre os dois termos de cada par
de formas duplas» (Maia, 2013b: 86).
Foi possível observar alguns casos dessa transição para o Português
moderno no corpus que analisei. Tal como os termos introduzidos nos textos
jurídicos legislativos de Afonso X, que de modo sistemático integram o léxico
do discurso jurídico contemporâneo, os neologismos do Leal Conselheiro são
ainda usados na língua portuguesa de hoje. Penetraram na língua culta em
geral e até na língua corrente, embora por vezes coexistam com o termo
tradicional que sobreviveu, como no par ociosidade/preguiça. O movimento
de evolução que representou a importação de palavras latinas, embora tenha
sido muito significativo no decurso do século XVI, não foi exclusivo desse
período, tendo ocorrido em diversos momentos da história da língua portu-
guesa. Esta análise em diversas sincronias permite observar a génese de novos
usos lexicais a partir da relação com o Latim, desde os mais antigos textos em
português e em diferentes tipologias textuais.
5. Conclusão
Julgo ter podido mostrar que a organização global dos textos mantém uma
relação de dependência com o estado histórico do tipo de discurso a que
pertencem, que é sempre em certa medida fixo, convencional, normalizado
que constitui o estilo, o padrão, a norma daquele tipo de discurso, numa dada
época. Mas apresenta também singularidades que definem a sua identidade.
É nesta dupla direção que o estudo linguístico de textos do passado pode ser
importante para analisar práticas discursivas concretas que se revestem de
maior ou menor singularidade.
É possível que uma análise que concilie o levantamento de características
específicas da tradição discursiva em que os textos se integram e das suas
características singulares dará um contributo importante no âmbito do conhe-
cimento dos textos medievais do ponto de vista do seu funcionamento textual-
-discursivo, permitindo recortar algumas das características da escrita medieval.
195
A Pragmática Histórica pode revelar-se, no desenvolvimento da investiga-
ção em Linguística Histórica, um quadro teórico-metodológico consistente,
seguro e produtivo, capaz de viabilizar o estudo linguístico histórico de formas
e da sua evolução, dos modos de organização textual-discursiva (e correspon-
dentes marcadores) e ainda a reflexão sobre tradições discursivas específicas.
A análise de aspetos envolvidos na organização textual-discursiva aponta
numa direção que importa ter em conta e explorar de modo alargado e siste-
mático na investigação linguística histórica: o cenário histórico que envolve a
produção dos textos deve ser devidamente considerado, em ordem sobretudo
a captar nexos entre a história da língua e a história em geral, nexos que inter-
vêm também na construção do sentido.
Procurei sublinhar a importância do estudo das formas textuais para a aná-
lise da evolução das formas linguísticas e para uma Linguística Histórica par-
ticularmente dedicada aos textos-discursos em português, às suas condições
de produção-receção, à construção do sentido que neles se dá, e à mudança/
evolução que neles se inscreve e que eles testemunham, porque a língua faz-
-se e refaz-se também de acordo com as formas textuais.
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(Página deixada propositadamente em branco)
MARIA HELENA PESSOA SANTOS
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro/CELGA-ILTEC
[email protected]/[email protected]
ORCID: 0000-0003-2808-4536
1 Este trabalho foi elaborado no âmbito de uma das linhas temáticas do CELGA-ILTEC
(Unidade de I&D 4887 financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia), designa-
damente, “História da Língua Portuguesa e História da Consciência Linguística”, em fun-
cionamento sob a direção científica da Senhora Professora Doutora Clarinda de Azevedo
Maia, cuja orientação, que muito agradecemos, se revelou imprescindível.
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_6
Palavras-chave: história da língua portuguesa, história da consciência linguística,
sintaxe
I. Introdução
1. Objetivos
202
Estiveram, assim, sob o nosso escopo, as perífrases constituídas por verbos
principais marcados por ‘gerúndio’ e auxiliados por estar, andar e ficar, bem
como as perífrases constituídas por formas verbais principais de ‘infinitivo’
precedidas da preposição a e semiauxiliadas por estar, andar e ficar. Embora
tenham sido registadas todas as ocorrências que envolviam os mesmos verbos
estar, andar e ficar, integrando formas verbais de ‘infinitivo’ precedidas de
outras formas de outras preposições, foi àqueles três pares perifrásticos que
demos primazia.
Pretendemos, por isso, em primeiro lugar, identificar, no discurso metalin-
guístico português, o termo a quo de uso de cada um dos termos dos pares
perifrásticos sob análise, ora no quadro da norma latente2, ora no âmbito das
normas patentes (de primeiro grau e/ou de segundo grau)3, em conformidade
com a terminologia aplicada por Maria Helena Paiva, sob o fito de dete-
tar, assim, as primeiras ocorrências de potenciais ou efetivas covariantes no
âmbito dos referidos pares perifrásticos. Em segundo lugar, propusemo-nos
refletir sobre o impacto e as consequências do número de ocorrências da refe-
rida potencial ou efetiva covariação, eventualmente tendente à instauração
de mudanças sintáticas e à manifestação pluricêntrica do que Uriel Weinreich
viria a definir, em 1954, como diassistema4.
Importa, entretanto, salientar que o corpus intervencionado não esgota
todas as produções metalinguísticas portuguesas publicadas entre as balizas
temporais indicadas, permitindo, porém, do nosso ponto de vista, colocar
hipóteses sustentadas que faremos questão de reavaliar sempre que nos depa-
rarmos com novos factos linguísticos.
2 A investigadora classifica assim «a variedade linguística tal como (…) se reflecte (…)
[nos] textos e para a constituição da qual eles próprios contribuem, na medida em que
desencadeiam processos de imitação não necessariamente conscientes ou pelo menos não
plenamente conscientes» (Paiva, 2004: 279), apresentando-se como «uma variedade de língua
que o gramático ou o ortógrafo [, ou o lexicógrafo, ou o glotólogo] considera digna não
apenas de ser estudada mas [também] de ser aprendida», dado o caráter inevitavelmente
pedagógico de todos os tipos e géneros de texto metalinguístico.
3 A norma patente de grau 1 configura, segundo a mesma investigadora, um conjunto
de juízos explícitos que verbalizam as atitudes dos estudiosos relativamente a um determi-
nado aspeto linguístico, assumindo-se tais juízos como norma patente de grau 2 quando
diretamente respeitantes à própria norma linguística descrita ou apologizada (cf. Paiva,
2004: 281-293).
4 Obtivemos esta indicação de Silva (1983: 98, nota (129)).
203
2. Metodologia
5 Muito úteis nos foram, entre outros, os dados apresentados e as reflexões expendidas
por Clarinda de Azevedo Maia, em 1995, no artigo “Sociolinguística histórica e periodização
linguística: algumas reflexões sobre a distinção entre português arcaico e português moderno”,
Diacrítica, 10, 3-30, bem como, em 2017, no texto “O português do Brasil na tradição
gramatical portuguesa. A consciência metalinguística das diferenças entre as variedades de
Portugal e do Brasil”. In Maria-Arlette Darbord (dir.), Outras Margens – A vitalidade dos
espaços de língua portuguesa/Autres Marges – La vitalité des espaces de langue portugaise,
vol. 15. Bruxelles: Peter Lang, 23-39.
204
II. Par perifrástico estar + ‘gerúndio’ e estar + a + ‘infinitivo’
205
enquanto termo representativo dos termos latinos «Ambitus,us. Circuitio,
onis», (ii) «rodeo de caminho», como correspondente ao termo latino «Anfrac-
tus, us», e (iii) «rodeo de palavras», que o Autor apresenta como equivalente
do termo latino «Ambages, um» (Pereyra, 1647: fol. 84, verso) –, nem pela sua
edição de 1697, em que a expressão «rodeo de palavras» deixa de aparecer
elencada9, nem pelo Dicionário de Raphael Bluteau (1638-1734), designada-
mente, no tomo atinente ao tratamento das letras Q a S, dado à estampa em
1720. Na verdade, depois de se referir ao significado corrente de «Rodeyo»
– «Volta no caminho. Retiro da eſtrada (…)» (Bluteau, 1720b: 358, col. 2) –, o
lexicógrafo apresenta exemplos de aplicação, entre os quais surge «Rodeyo de
palavras», expressão cujo uso ilustra, por antítese, no âmbito de uma expres-
são mais extensa que pretende, portanto, ir ao encontro do que não constituía
um “rodeio de palavras”, a saber, «Diſcurſo breve, & ſem rodeyos de palavras
(…)» (Bluteau, 1720b: 359, col. 1), logo depois de lhe fazer corresponder
expressões latinas de Quintiliano (35 E.C.-96 E.C.) e de Cícero (106 A.E.C.- 43
E.C.) – «Loquendi ambitus. Quintil. Circuitus verborum. Cic. Circuitio, onis.
Fem. Cic. Anfractus orationis. Cic.» (Bluteau, 1720b: 358, col. 2-359, col. 1).
É interessante, aliás, verificar que, nesse mesmo ano de 1720, vem a lume,
da lavra do mesmo Autor, um outro volume da sua obra lexicológica, o qual
inclui um verbete sob a entrada «PERÎPHRASIS», termo definido como «(…)
palavra Grega, que val o meſmo que Rodeyo de palavras (…)», observação a
que Bluteau acrescenta que «(…) às vezes he figura Rhetorica, que declara
com muitas palavras o que ſe podera exprimir com poucas (…)», localizando
as formas latinas correspondentes – «Periphraſis, is Fem. Circumlocutio, onis.
Fem. Loquendi ambitus, us. Maſc.» – em Quintiliano, mais exatamente, «no
cap. 6 do livro 8» (Bluteau, 1720a: 432, col. 1) da obra que identifica, em 1712,
como «Inſtituiçoens oratorias» (Bluteau, 1712a: «Summaria noticia dos anti-
guos autores latinos citados nesta obra, para exemplares da boa latinidade»,
[s.p.]). Cabe, adicionalmente, notar que, no seio da entrada «CIRCUNLOCU-
ÇAM», ocorrente precisamente em 1712, Bluteau observa que, se tal termo,
9 Esta edição foi, por nós, consultada no sítio eletrónico dedicado ao Corpus Lexicográfico
do Português – http://clp.dlc.ua.pt/Publicacoes.aspx –, o qual consubstancia os resultados
de um Projeto de investigação desenvolvido pela Universidade de Aveiro e pelo Centro de
Linguística da Universidade de Lisboa.
206
definido como «Rodeo de muytas palavras, para explicar, o que ſe podera
dizer em huma, ou duas», equivalia ao termo latino «Circunlocutio, onis. Fem.
à imitação de Quintiliano» (Bluteau, 1712b: 326, col. 1-col. 2), já não equivalia,
em termos absolutos, ao termo «Periphraſis», uma vez que este último «naõ
ſignifica[va] todo o genero de circunlocuçaõ, mas huma circunlocuçaõ figu-
rada, & que [dava] graça, & força, ao que ſe diz[ia]» (Bluteau, 1712b: 326, col. 2).
10 Veja-se a ocorrência da dita construção, por nós sublinhada: (1) «algũs eſtarão muito
eſpaço de tempo, fallando metaphoricamente» (Lião, 1606: 53; sublinhados nossos).
11 Observe-se a ocorrência: (1) «me atormenta haver homem, que ſteja pendendo do
que o vulgo diz» (Roboredo, 1619: 223, exemplo n.º 156; sublinhado nosso).
12 Analisados, por nós, apenas, os textos de acesso livre disponibilizados pelo Corpus
Lexicográfico do Português, a saber, a Folha de rosto, as Licenças, a Errata, a Dedicatória,
o texto intitulado «Ao juiz deste artificio», bem como o «Prologo e [os] capítulos que abrem
porta para todas as linguas ordenadas pelo inventor» (http://clp.dlc.ua.pt/Corpus/Amaro-
Roboredo.aspx), detetámos a seguinte ocorrência: (1) «em todas estas cousas veremos hüa
ordem admirável, e medida muito mais admirável, que com voz muda, como pode, está
louvando a arquitectura daquelle immortal Artifice» (Roboredo, 1623: 6; sublinhado nosso).
13 Seguem, por ordem, as mencionadas ocorrências da responsabilidade de Véra (1631b:
fol. 44, frente): (1) «eſtá eſperãndo»; (2) «eſtás eſperãndo».
14 Note-se o extrato em que emerge a atualização da dita construção, por nós sublinhada:
«mas iſto meſmo pode V.P. já vencer todo o tempo, em que nos eſteve enſinando a meſma
lingua». (D. Francisco de Sousa, in Bluteau, 1712a: «Copia de huma carta de D. Francisco de
207
publicado em 1712a. Verifica-se, em cada um destes casos, a atualização da
construção em causa quer enquanto reflexo das normas latentes dominadas
pelos Autores, quer no âmbito das normas patenteadas pelos mesmos.
(1) «Ficar em alguma acção v. g. em ir, partir, comprar i.e., eſtar, ou vir a ter a
reſolução final de ir, partir, &c.» (Silva, 1789: I, «FICAR», «v[erbo] n[eutro]»: 613, col.
1; negritos e sublinhados nossos).
(2) «Eſtar v. g. “fica de ſaude (...) e (...) “fica em pé a lei» (Silva, 1789: I, «FICAR»,
«v[erbo] n[eutro]»: 613, col. 1).
208
Assim, em última instância, ficar em ir, por exemplo, em (1), corresponde-
ria a estar em ir, que, por seu turno, equivaleria a estar a ter a resolução final
de ir, no sentido de ‘chegar a intencionar ir’, diferenciando-se de um outro
sentido, atestado em «Concertar ſe em alguma coiſa» (Silva, 1789: I, 613, col. 1;
cf. Silva, 1813: II, 29, col. 2).
No referente à construção estar + ‘gerúndio’, observa-se o seguinte:
– D. Raphael Bluteau utiliza essa construção, duas vezes em 1712a (uma
vez no âmbito do Prólogo dedicado ao Leitor Impaciente15 e uma vez
no seio do verbete desenvolvido sob a entrada «ANDAR»16), uma vez
em 1713 (no âmbito do verbete da entrada «ESTAR»17) e duas vezes em
1720a (no quadro do verbete sob a entrada «PARA»18), ocorrências que
ora refletem o que seria a norma latente ao seu discurso, ora patenteiam,
na tradução de exemplos do Latim, o que seria a norma culta de então;
– D. Jeronymo Contador de Argote (1676-1749) atualiza-a, cinco vezes, em
1725, no âmbito do tratamento direto de aspetos linguísticos e na exem-
plificação de alguns desses aspetos19;
– D. Luis Caetano de Lima (1671-1757), em 1732, usa a construção uma
vez, na tradução portuguesa de uma estrutura linguística do francês20,
15 (1) «Agora, que deſpois de tantos trabalhos, eſtou ſurgindo, recolhendo as velas, &
dezembarcando os effeitos da minha negociação, queixas-te» (Bluteau, 1712 a, «Prologo do
Autor a Todo o Genero de Leitores»: «Ao Leitor Impaciente»: [fol. 2, frente]; sublinhados
nossos).
16 (1) «Em quanto eſtamos falando o dia ſe vai acabando» (Bluteau, 1712 a : 368, col. 1;
sublinhado nosso).
17 (1) «Caſas, que eſtaõ cahindo» (Bluteau, 1713: 312, col. 1; sublinhado nosso).
18 (1) «Eſtá temendo, porque não conhece a vontade do seu amigo para com elle. [Tra-
dução de extrato de Plauto (ca 254-184 a.C.).]» (Bluteau, 1720 a: 247, col. 2; sublinhado
nosso). (2) «Para que ſaibamos o que eſtás fazendo. [Tradução de parte de extrato de Cícero
(106-43 a.C.).]» (Bluteau, 1720 a: 247, col. 2; sublinhado nosso).
19 Vejam-se, por ordem de ocorrência, as atualizações, que sublinhamos, da dita cons-
trução em Argote (1725: 44; 232; 233; 271; 317): (1) «ſignificaõ de ſorte, que parece eſtaõ
moſtrando a couſa que ſignificaõ»; (2) «A ferida eſtà correndo ſangue»; (3) «Os veſtidos ainda
eſtaõ eſcorrendo em agua»; (4) «em que os participios eſtaõ no caſo abſoluto, e concordando
com o pronome Me»; (5) «naõ devemos eſtar ſempre repetindo o meſmo».
20 (1) «Mataraõ-no eſtando ceando» (Lima, 1732: 10; sublinhado nosso).
209
e dezasseis vezes, na descrição portuguesa do significado de termos ou
expressões de língua francesa21;
– Fr. Antonio de Santa Maria utiliza a construção, uma vez, no âmbito de
um breve texto destinado a justificar a pertinência da publicação da obra
de Lima dada ao prelo em 173622;
– Luiz Antonio Verney (1713-1792), em 1746, atualiza, seis vezes, a cons-
trução na representação direta do pensamento que nutre a propósito de
aspetos associados à língua23;
– D. Luiz Caetano de Lima, em 1734, Bartholomeu Rodrigues Chorro (fl.
16--), em 1736, e Fr. Luis do Monte Carmelo (1715-1785), em 1767, não
atualizam a construção em causa;
– Antonio José dos Reis Lobato (17---ca 1804), em 1770, e Bernardo de
Lima e Me’lo Bacellar (ca 1736-ca 1787), em 1783, apenas a utilizam na
apresentação de exemplos próprios destinados a ilustrar o tratamento
metalinguístico de determinados itens, distanciando-se apenas pelo facto
210
de, em Lobato24, a construção surgir quatro vezes, enquanto, em Bacel-
lar25, ocorre vinte e três vezes;
– Moraes Silva aduz dois exemplos da sua lavra no verbete desenvolvido,
em 1789, sob a entrada «AUXILIAR», os quais incluem a construção sob
211
escopo – estar + ‘gerúndio’ –26, apresentando, então, uma diferença
significativa relativamente ao verbete da autoria de D. Raphael Bluteau,
uma vez que este último lexicógrafo não considerava, explicitamente, o
verbo estar, do ponto de vista taxinómico, como verbo auxiliar27;
– em 1799, Pedro José da Fonseca (1737-1816) exibe cinco ocorrências da
mesma construção28, enquanto partes integrantes de extratos de obras
de referência, utilizadas, pelo Autor, para ilustrar diferentes aspetos lin-
guísticos, designadamente, o que se prendia com o que chama de “ajun-
tamento de verbos com os particípios e gerúndios sem preposição” (cf.
[Fonseca], 1799: 241).
26 (1) «§ Verbo auxiliar na Grammatica, aquelle com que ſuprimos as variações ſimples,
que faltão a alguns verbos; são auxiliares os verbos de exiſtencia como v. g. “ser, eſtar, e
os de poſſeſsão como ter, haver, por que o meſmo he dizer-ſe, que exiſte em alguma coiſa
algum attributo, ou que ella o poſſue. Aos taes verbos ſe ajuntão os participios, e gerundios
dos verbos, cujas variações faltão v. g. “eſtou eſcrevendo, eſtive eſcrevendo, tenho eſcrito,
havia feito» (Silva, 1789: I, 153, col. 1; sublinhados nossos).
27 Apenas classificava como tais os verbos Ter e Ser (cf. Bluteau, 1712 a: 687, col. 1).
28 Seguem, por ordem e devidamente sublinhadas, as ditas ocorrências registadas em
Fonseca (1799: 95; 106; 213; 241; 338, nota XIX): (1) «Com a mesma acção, com que Deos
creou o Mundo, o esteve sempre, está e estará conservando até o fim delle» (Extrato de
exemplo de Vieira a propósito dos «Tempos do verbo»); (2) «o estão dando» [Extrato de
exemplo de António Ferreira (1528-1569), a propósito de os “gerúndios” poderem designar
«o estado do sujeito»]; (3) «em quanto o esteve ouvindo» [Extrato de exemplo de Luís de
Sousa (1555-1632), a propósito de uma questão de concordância]; (4) «estão vendo nelles»
[Extrato de exemplo de Duarte Ribeiro de Macedo (1618-1680), ilustrativo da junção de
verbos com “gerúndios” sem utilização de qualquer forma de preposição]; (5) «[“]Assi a
fermosa, e forte companhia, O dia quasi todo estão passando Nũa alma, doce, incognita
alegria[”]» [Exemplo extraído de uma obra de Luís Vaz de Camões (ca 1524-1580), para
ilustrar a silepse de número].
212
‘proximidade do termo de uma situação’, ora ‘estado de imperfeição de uma
situação’, resultarão, em parte, de uma interpretação diferenciada do papel
sintático assumido pelo verbo estar, percecionado ora como verbo “neutro”,
e, portanto, pleno, ora como verbo “auxiliar”, respetivamente.
Com efeito, no âmbito do tratamento da sintaxe de regência, observa
Moraes Silva que a preposição a apresenta, entre outros significados, «a proxi-
midade do termo; v. g. está a partir» (Silva, 1806 [1802]29: 94), tudo indicando
que o Autor encara, neste caso, estar como um verbo «de mero estado», ou
«neutro», termo que ancora na tradição gramatical coeva (Silva, 1806 [1802]:
56, 57). É assim que pensa, também, Jeronymo Soares Barboza (1737-1816),
cerca de 180330, o qual atualiza a construção estar + a + ‘infinitivo’, em três
momentos, transmitindo a ideia de que o verbo estar não funciona, aí, como
um verbo auxiliar, razão por que permite inferir a ideia de que não exprimiria
o mesmo que a construção estar + ‘gerúndio’.
Assim, observa Soares Barboza:
29 Esta obra integra a indicação seguinte: «Acabou-se este Epitome da Grammatica Por-
tugueza no Engenho novo da Moribeca em Pernambuco, aos 15 de Julho de 1802.» (Silva,
1806 [1802]: 163.) Essa observação continua a surgir na reprodução do mesmo Epítome,
à guisa de introdução à segunda edição, vinda a lume, na cidade de Lisboa, em 1813, do
Diccionario da Lingua Portugueza do mesmo Autor (cf. Silva, 1813: I, XLVIII). Persiste,
entretanto, ainda, da sua pena, no âmbito de uma outra reprodução do mesmo texto, publi-
cada, no Rio de Janeiro, em 1824, sob o título de Grammatica Portugueza (158).
30 Na senda de Leonor Lopes Fávero (1996: 203) e de Amadeu Torres («Ao reencontro
da primeira edição», in Barbosa, 2004: 12), consideramos provável que a obra estivesse
terminada ou quase terminada na data atribuída à sua «Introducção».
213
melhor com os verbos substantivos Ser e Estar, e com todos os mais, que signifi-
cão existencia ou simples, ou qualificada, quaes são os verbos intransitivos. Assim
podemos dizer: Estar em, Estar sobre, Estar sob, Estar entre, &c. Mas não podemos
igualmente dizer: Estar de, Estar a, Estar para, &c. se não por ellipse, entendendo-
-se de fóra algum antecedente proprio ás preposições, que exprimem relações, não
já de estado e existencia, mas de acção e movimento, como são estas, e outras»
(Barbosa, 2004 [1822]: 383-384 [327-328]; sublinhado nosso).
(6) «estar seguido de (...) infinitivo [impessoal da forma verbal que exprime ‘exis-
tência’], ligado á [forma] auxiliar pela preposição a» (Andrade Junior, 1850: 67), é
usado «quando denotâmos existencia cuja execução concebemos como proxima» e
quando «a proximidade que queremos exprimir é maior (...): vg. “Está a rebentar
uma guerra []”»31 (Andrade Junior, 1850: 68; sublinhado nosso).
214
o seu estatuto funcional. Mais tarde, na 9.ª (1875) e na 13.ª (1880) edições da
mesma obra32, sustenta que «Estar [- enquanto verbo auxiliar -], com [a prepo-
sição] a (...), tambem exprime acção futura; mais próxima (...) (está a partir)»
(Oliveira, 1875: 40; cf. 1880: 40; negrito nosso).
O uso, no seu discurso, da forma de advérbio de ‘inclusão’ traz à tona o
facto de que, ao longo do século XIX, se vai exibindo, com mais ou menos
explicitação, a construção estar + a + ‘infinitivo’ como covariante sintática
de estar + ‘gerúndio’.
É isso que acontece já em Moraes Silva, em 1806 [1802], o qual, num outro
caso, assere o seguinte:
32 O Autor publica vinte edições da mesma obra, algumas das quais corrigidas e melho-
radas, seguindo-se-lhes, dois anos depois da saída do prelo da vigésima edição, ou seja,
a partir de 1892, edições póstumas da responsabilidade de A. A. Cortesão. Na 2.ª edição
póstuma, mantém-se a observação oliveiriana acima aduzida (cf. Oliveira, 1893: 45).
33 Cf. Silva, 1806 [1802]: 67, nota (*), em que a vírgula é – já então – utilizada para isolar
um termo que o Autor pretende fazer equivaler a um termo imediatamente antecedente.
34 «Os verbos Estar, Ser, Ter, Haver, que ajudão a formar tempos imperfeitos, e perfeitos
chamão se auxiliares» (Silva, 1806 [1802]: 63; itálico nosso).
215
em 1802, «declarar mais o estado da acção significada pelo verbo»: o Autor
afirma que, para dar conta de estado “imperfeito” e “incompleto”, «usamos
do verbo Estar com os participios do presente, v. g. estou escrevendo, lendo;
estava, estive, estivera, estarei lendo, escrevendo» (Silva, 1806 [1802]: 61). Ora,
se estas atualizações da construção estar + ‘gerúndio’ concorrem, mediante o
significado gerado por essa construção, com atualizações da construção estar
+ a + ‘infinitivo’, depreende-se que, também aí, gerando-se o mesmo signifi-
cado, o verbo estar não fosse percecionado, implicitamente, como verbo com
valor lexical próprio, mas, antes, como verbo auxiliar.
Soares Barboza, logo depois, é, entretanto, quem regista o maior número
de ocorrências da construção estar + ‘gerúndio’ – pelo menos, cinquenta e
sete –, entendendo que, nesse tipo de construção, o verbo estar funciona como
auxiliar, por exprimir «huma existencia persistente e continuada»35 (Barbosa,
35 Eis, por ordem, as ocorrências suprarreferidas exibidas por Barbosa, com sublinhados
nossos (2004 [1822]: 44 [II]; 253 [197]; 250 [194]; 250-251 [194-195]; 251 [195]; 255 [199];
259-260 [203-204]; 260 [204]; 261 [205]; 265 [209]; 265 [209]; 267 [211]; 267 [211]; 267 [211];
269 [213]; 269 [213]; 269 [213]; 269 [213]; 270 [214]; 270 [214]; 272 [216]; 272 [216]; 272
[216]; 274 [218]; 274 [218]; 274 [218]; 274 [218]; 277 [221]; 277 [221]; 278 [222]; 279 [223];
279 [223]; 279 [223]; 283 [227]; 284 [228]; 228 [284]; 286 [230]; 286 [230]; 286 [230]; 287
[231]; 287 [231]; 288 [232]; 288 [232]; 289 [233]; 290 [234]; 235 [291]; 292 [236]; 292 [236];
293 [237]; 294 [238]; 294 [238]; 317 [261]; 340 [284]; 341 [285]; 446 [390]; 455 [399]; 464
[408]): (1) «semelhantes aos de que ainda agora se estão servindo os Chinos»; (2) «Assim
quando digo Hei de amar, Estou amando, Tenho amado; he o mesmo que dizer: Hei de
ser amante, Estou sendo amante, Tenho sido amante, onde do verbo Amar não entra se
não o adjectivo participio activo Amante, que he o attributo destas proposições»; (3) «Sou
no seu tempo presente simples não explica a mesma idea de existencia, que explicão os
presentes compostos do mesmo verbo com seus auxiliares, Hei de ser, Estou sendo, Tenho
sido»; (4) «Taes [Auxiliares] são os tres verbos Haver, Estar, e Ter, combinados com o infinito
impessoal, e participios do verbo Ser, deste modo: Haver de ser, Estar sendo, Ter sido»; (5)
«Estou amando não he o mesmo que Sou amante»; (6) «A [conjugação] composta consta da
conjugação de duas até tres, como Heide [sic!] ser, Estou sendo, Tenho sido»; (7) «foi muito
natural o fixa-la no acto mesmo da palavra, isto he, no espaço e duração em que qualquer
está falando, ou escrevendo»; (8) «o Presente, que he o [tempo] em que se está falando, ou
escrevendo»; (9) «em respeito ao presente actual, que he o [tempo] em que se está falando»;
(10) «Estando sendo»; (11) «Estou sendo amante, ou Estou amando, que he o mesmo (sum
amans)»; (12) «Estou sendo [a propósito do «Presente Imperfeito Absoluto»]»; (13) «Ha muito
tempo que Sou mestre, que Estou sendo mestre, ou ensinando [Linguagem significativa de uma
existência presente (- daí que seja considerada absoluta -) não acabada («imperfeita»)]»; (14)
«Estas Linguagens (...) Está tu sendo vigia ou vigiando, Estai vós vigiando, são imperativos
de presente, e não acabadas quanto á execução. Pertencem pois á classe dos presentes
imperfeitos. São relativas, porque notão hum mandato presente, e denotão huma execução
futura»; (15) «epocha (...) em que estou falando»; (16) «Estava sendo [- “pretérito” de uma
existência continuada, mas não acabada, e, por isso, periódica, cujo espaço vem tocar com
período atual -]»; (17) «Hontem estava eu lendo»; (18) «Agora estava eu lendo»; (19) «Eu
estaria sendo [- a propósito do «Preterito Imperfeito Condicional» -]»; (20) «As Linguagens
216
2004 [1822]: 312 [256]), razão por que, sob um prisma aspetual, o classifica de
«continuativo» (Barbosa, 2004 [1822]: 341 [285]). Não coloca, todavia, a hipó-
tese de intercambiar essa construção com a construção estar + a + infinitivo.
Por sua vez, Manoel Dias de Souza (1755-ca 1822), em 1804, faz equivaler,
seis vezes, a construção estar + a + infinitivo à construção estar + gerúndio,
precisamente nessa ordem, entendendo-as como covariantes integrantes de
um verbo auxiliar. Na verdade, (i) considera que os verbos têm, para exprimir
o «Tempo prezente» (Souza, 1804: 107), uma “forma simples” e várias “formas
compostas” (cf. Souza, 1804: 107-108), designadamente, “Eu estou a escrever”
do preterito perfeito relativo, acabadas em ra, como Fôra, Houvera de ser, Estivera sendo,
põem-se muitas vezes em lugar das condicionaes em ria»; (21) «Eu estive sendo [a propósito
do «Preterito Perfeito Absoluto»]»; (22) «Hoje estive presente ou presenciando [- a propósito
do «Preterito Perfeito Absoluto» -])»; (23) «Estive sendo mostra a cessação de hum estado ou
existencia continuada por algum espaço»; (24) «em que estou falando»; (25) «Estivera sendo
[- a propósito do «Preterito Perfeito Relativo» -]»; (26) «Estivera sendo [- exprime, no “tempo
pretérito”, uma coisa continuada por algum tempo antes de outra, pertencente ao mesmo
“tempo pretérito” -]»; (27) «como: Sei que tu estiveras sendo ouvinte, ou [estiveras] ouvindo
o meu discurso antes d’hontem»; (28) «em que estou falando»; (29) «Estarei sendo»; (30)
«Pelo que não posso dizer com verdade e exactidão: (...) Agora estarei escrevendo»; (31) «e
estão sempre pedindo outra [oração], que lhes determine e complete o sentido»; (32) «Esteja
sendo»; (33) «Estimo que estejas gozando da companhia dos teus»; (34) «Estar sendo»; (35)
«Tu estás amando»; (36) «Vós estais amando»; (37) «Estar sendo»; (38) «Estar/Estares/Estar/
Estarmos/Estardes/Estarem} Sendo»; (39) «Estando sendo»; (40) «Estou/Estás/Está/Estamos/
Estaes/Estão} Sendo»; (41) «Está tu/Estai vós} Sendo»; (42) «Estava/Estavas/Estava/Estavamos/
Estaveis/Estavão} Sendo»; (43) «Estaria/Estarias/Estaria/Estariamos/Estarieis/Estarião} Sendo»;
(44) «Estive/Estiveste/Esteve/Estivemos/Estivestes/Estiverão} Sendo»; (45) «Estarei/Estarás/
Estará /Estaremos/Estareis/Estarão} Sendo»; (46) «Esteja/Estejas/Esteja/Estejamos/Estejaes/
Estejão} Sendo»; (47) «Estivesse/Estivesses/Estivesse/Estivessemos/Estivesseis/Estivessem}
Sendo»; (48) «Estiver/Estiveres/Estiver/Estivermos/Estiverdes/Estiverem} Sendo»; (49) «Estou
sendo amado»; (50) «Estar sendo Amante (...) he o mesmo que (...) Estar Amando»; (51)
«Estou sendo Amante (...) val o mesmo que (...) Estou Amando (...) so com a differença de
as primeiras Linguagens serem analyticas [a que «[o]s Grammaticos chamão Compostas»],
e estas syntheticas [ou «Simples», segundo os Gramáticos]»; (52) «nos [tempos] compostos
(...) dos auxiliares Estar, Ter, e dos participios, o pronome nunca vai depois destes, mas
sempre com os auxiliares, ou dantes: Eu me estou louvando»; (53) «Que sejão [os particípios
portugueses] huns verdadeiros adjectivos, se mostra pelas mesmas Linguagens Latinas,
donde os houvemos; Sum amans (Estou amando) Amante me (Amando eu): e pela analyse
da Linguagem Portugueza; pois Estou amando he o mesmo que Estou sendo amante, e
Amando eu he o mesmo que Sendo eu amante»; (54) «Nossa Lingua emprega os participios
imperfeitos activos de dous modos, ou Conjugando-os, ou Conjunctando-os. Conjuga-os so
com hum dos tres verbos auxiliares, ou com o continuativo Estar, ou com o frequentativo
Andar, ou com o Inchoativo Ir, como: Estou escrevendo, Ando cuidando, Vou convales-
cendo»; (55) «estamos alimentando os homicidas de nossos monarcas» [Extrato de exemplo
de Jacyntho Freire de Andrade (1597-1657), a propósito da concordância de “proposições
parciais”]; (56) «de que estamos falando»; (57) «Este homem está sempre lendo, meditando,
e escrevendo, suppl. lendo escriptos, meditando couzas, escrevendo papeis» (Exemplo, do
Autor, exemplificativo das elipses que tinham por fundamento o uso).
217
e “Eu estou escrevendo”, as quais «equivalem a Eu escrevo», que constituiria a
correspondente “forma simples”, “resumindo” aquelas (Souza, 1804:108); (ii)
entende, também, que a “forma simples” do denominado «Passado indefinido»
(«Primeira fórma do Passado») «tem muitas expressões equivalentes, ou aná-
logas de que ela he rezumo» (Souza, 1804: 109), encontrando-se entre essas
expressões (ou “formas compostas”) estruturas como “Eu estava a escrever” e
“Eu estava escrevendo”, as quais – assevera – «equivalem a Eu escrevia» (Souza,
1804: 110); (iii) de igual modo, o «Passado proximo» (designado por «Segunda
fórma do Passado») é expresso por uma «fórma simples», como «Eu escrevi»,
bem como por uma forma «composta com o Prezente do Verbo ter, Eu tenho, e
com o Participio passivo do Verbo conjugado, (…) Eu tenho escrito», a que se
juntam outras “formas compostas”, equivalentes, de que são exemplos “Estive
a escrever” e “Estive escrevendo” (Souza, 1804: 110); (iv) quanto ao «Pas-
sado remoto» («Terceira fórma do Passado»), as “formas compostas” “Estivera
a escrever” e “Estivera escrevendo” são dadas como equivalentes da “forma
simples” «Escrevera» e das “formas compostas” «Tinha escrito», «Tivera escrito»
e «Houvera escrito» (Souza, 1804: 110, 111); (v) no respeitante à época poste-
rior mais próxima do “tempo presente”, a chamada «primeira fórma do tempo
futuro», é apresentada como sendo expressa por «Eu escreverei», bem como
por outras formas, entre as quais se encontram “Estarei a escrever”, “Estarei
para escrever” e “Estarei escrevendo” (Souza, 1804: 111, 112); (vi) acrescenta,
ainda, que «Lêio diz tanto só, como estas três: Eu estou lendo, ou estas: Eu
estou a lêr» (Souza, 1804: 196; negrito nosso).
Essa equivalência ocorre, contudo, ao nível do que constitui a chamada
norma patente de primeiro grau, pois a generalidade do seu discurso não
reflete a aplicação do ‘infinitivo gerundivo’36.
36 (1) «Ao verbo Estar em todos os seus modos e tempos se pode ajuntar o Participio
activo acabado em ndo de qualquer Verbo, assim como: Estou lendo, Estou escrevendo,
Estive lendo, Estive escrevendo, &c.» (Souza, 1804: 79; sublinhados nossos). (2) «Estou
amando» (Souza, 1804: 115; sublinhado nosso: Exemplo destinado à ilustração do facto de
se poder combinar uma forma de “particípio ativo” com um verbo auxiliar, para exprimir
um “tempo”, neste caso, o “presente”). (3) «Estou tratando da Sintaxe figurada» (Souza,
1804: 186; sublinhado nosso: Exemplo do Autor, para ilustrar o que chama de elipse de
uma forma reta – Eu – de pronome pessoal). (4) «Eu estou tratando da Sintaxe figurada»
(Souza, 1804: 186; sublinhado nosso: Estrutura oracional ilustrativa do elemento elíptico
218
João Crisóstomo do Couto e Melo (1775-1838), em 1818, apenas atualiza
a construção estar + ‘gerúndio’, ‘três vezes, no âmbito da tentativa de expli-
cação da formação de verbos37, e Francisco Soares Ferreira (1777-ca 1831),
em 1819, opta, também, unicamente, por essa construção38, que usa para
fornecer exemplos da sua lavra destinados a ilustrar as noções de tempo, de
modo e de atributo.
Em 1831, Francisco Solano Constancio (1777-1846) observa que «Estar, com
os gerundios dos verbos, indica continuidade, prolongação de acto, estado ou
acção. Ex. Está sendo o alvo do publico. Estou lendo, escrevendo, pensando,
pondo, rindo, ouvindo, pedindo; expressões equivalentes a – estou a ser, a ler,
a ouvir, etc.» (Constancio, 1831: 129-130). Daí poder considerar-se que «Estar
a fazer alguma coisa, [que] significa, no acto de fazer, etc. [- a propósito do
tratamento da preposição a -]» (Constancio, 1831: 188), reflita a interpretação
da construção estar + a + ‘infinitivo’, ‘no contexto do pensamento linguístico
do Autor, como equivalente da construção estar + ‘gerúndio’, que utiliza39
no exemplo anterior). (5) «Os Verbos activos são outras tantas fórmas elipticas: Eu lêio vale
por Eu estou lendo» (Souza, 1804: 187; sublinhado nosso).
37 (1) «Tempo Presente é aquêle, em que se-significa a existência atual: v.g. sôu ou estou
sendo, seija ou estêija sendo» (Melo, 1818: 97; sublinhados nossos). (2) Sugere a hipótese
– que não dá como confirmada – de que a forma «Louvo» seja «[d]erivad[a] de Lôuvando-
-sto contraído em Lôu-vo», apresentando, logo de seguida, sob a forma de pergunta, uma
possibilidade de fundamentação: «por que antigamente se-dizia e escrevia sto por estou,
por derivação de sto, stas, estare Lat.?» (Melo, 1818: 152.) (3) Coloca, também, a hipótese
– que, da mesma maneira, não dá como confirmada, tanto mais que surge sob a forma de
pergunta – de que a forma «Louvava» seja «[d]erivad[a] de Lôuvando-stava contraíd[a] em
Lôuv-ava» (Melo, 1818: 153).
38 (1) «O Presente mostra que o successo de que se falla se passa actualmente; isto he,
no mesmo momento em que se falla, como: Eu escrevo, ou estou escrevendo actualmente»
(Ferreira, 1819: 33; sublinhado nosso). (2) Apresentando como fonte explícita Sicard, afirma
o seguinte: «O Presente do Indicativo mostra que a acção se faz no momento actual, ou
exprime a existência coincidente com o momento em que se falla, como: Eu amo, ou estou
amando, ou sou amante, actualmente» (Ferreira, 1819: 47, nota (4); sublinhado nosso). (3)
«O Attributo he incomplexo quando a relação do Sujeito com o modo da sua existência he
exprimida por huma só palavra, quer esta existência intelectual seja exprimida ao mesmo
tempo, quer seja enunciada separadamente, como: Eu leio; eu estou lendo» (Ferreira, 1819:
115; sublinhado nosso). (4) «He complexo o Attributo quando a palavra que exprime a
relação do Sujeito com o modo da sua existência, he acompanhada de algumas palavras
accessorias que lhe modifiquem a significação, como: Leio com atenção os melhores livros;
estou lendo as tuas cartas» (Ferreira, 1819: 116; sublinhado nosso).
39 As atualizações, por Constancio (1831: 131; 132; 132; 132; 133; 134; 134; 235), dessa
construção são apresentadas, seguidamente, por ordem de ocorrência e pelo recurso ao
sublinhado: (1) «Estar sendo [- “infinito impessoal” do verbo auxiliar Ser, juntamente com
219
para exemplificar descrições/explicações metalinguísticas sobre os “tempos”
e os “modos”.
A noção da referida covariação confirma-se, plenamente, em 1836, sob
a entrada «ESTAR» do Dicionário que Constancio produz. Aí, assinala, de
forma inequívoca, o seguinte: «Estar, continuar algum acto ou acção, v. g. – a
comer ou comendo, a dormir ou dormindo, lendo, fallando, discorrendo, etc.»
(Constancio, 1836: 521, col. 1). No seio de um outro verbete, constituído sob
a entrada «AUXILIAR», Constancio elenca, entre os principais verbos auxiliares
em Português, também o verbo estar, que «ajudaria a formar os tempos com-
postos dos mais verbos» (Constancio, 1836: 143, col. 1).
António Manuel da Silva Pinto Abreu (1803-1885), em 1852 [1837]40, não
regista ocorrências de nenhuma das construções sob escopo.
Luiz Francisco Midosi (1796-1877) utiliza a construção estar + ‘gerúndio’,
quatro vezes em 183141 e uma vez em 184242, no âmbito da norma patente
de primeiro grau.
haver de ser e ter sido -] indica duração continua, e da mesma maneira todos os gerundios
usados juntamente, como andando vendo, vindo passeando, indo olhando»; (2) «Estou sendo
[- “Presente Composto do Indicativo” -] exprime a continuação do estado da pessoa»; (3)
«Estava sendo [- “Pretérito Imperfeito Composto do Indicativo” -] denota continuação do estado
passado e indeterminado»; (4) «Estive sendo [- “Pretérito Perfeito Composto do Indicativo” -]
[denota continuação do estado] passado definito»; (5) «Esteja sendo [- “Presente (não diz que
seja “Composto”) do Subjuntivo” -] denota continuação subordinada a hum estado presente ou
antecedente»; (6) «Estivesse sendo [- “Futuro Anterior do Subjuntivo” -] indica estado supposto
de continuação em tempo anterior a outro»; (7) «[Estiver sendo (- “Futuro Contingente do
Subjuntivo” -] [d]enota futuro contingente e subordinado a outro futuro anterior»; (8) «Este
homem está sempre lendo (escriptos), escrevendo (papeis), meditando (cousas)» (Exemplo,
do Autor, relativo a complementos de “verbos ativos” que podem estar subentendidos).
40 Numa observação dedicada «Ao Leitor», o Autor confessa «ter feito a presente arte
em 1837», aduzindo quer a razão que o havia demovido de a dar então ao prelo, quer os
motivos por que, em 1852, resolve publicá-la (Abreu, 1852 [1837]: [s.p.]).
41 Tendo sido escrutinadas a «ADVERTENCIA» e as Secções I, II, III, IV (até à Lição IV)
e V (105-110; 126-132) da obra em causa, seguem as ocorrências detetadas, com os nossos
sublinhados: (1) «e es-tou tra-tan-do de a-jun-tar mel pa-ra meu sus-ten-to de in-ver-no»
(Midosi, 1831: Secção II, «Lições de ler soletrando», Lição I, 46); (2) «Evita quando leres os
ems e oms nasáes entre as palavras; procurando ler da mesma maneira que se estivesses
fallando» (Midosi, 1831: Secção III, «Lições de ler em periodos», Lição I, 55); (3) «Um dia
estando a sua creada arranjando a sala, veio ella mui pé ante pé» (Midosi, 1831: Secção
III, «Lições de ler em periodos», Lição II, 56); (4) «Antiocho escutou, sem proferir uma só
palavra, a lição que lhe estavam dando» (Midosi, 1831: Secção III, «Lições de ler em perio-
dos», Lição VIII, 68).
42 (1) «P. Que é tempo presente?/R. Aquelle em que se está falando» (Midosi, 1842: 36;
sublinhado nosso).
220
Andrade Junior, em 185043, não dá conta da covariação dos termos do
par sob escopo, atualizando, oito vezes, a construção estar + ‘gerúndio’,
no âmbito da qual – afirma – «usâmos de estar [– enquanto verbo auxiliar
–], quando a continuação da existencia leva envolta a idea de permanência»
(Andrade Junior, 1850: 67).
Por seu turno, Francisco Evaristo Leoni (1804-1874), em 1858, considera,
claramente, a covariação das duas construções, no âmbito de uma circunstân-
cia sintática específica44, reunindo, afinal, as diferentes possibilidades de uma
manifestação aspetual durativa. Para além dessa circunstância sintática especí-
fica, a construção estar + ‘gerúndio’45, no seu caso, prevalece, relativamente
221
à construção estar + a + ‘infinitivo’46, sempre que aduz exemplos extraídos
de obras de referência.
A noção de consciência da possibilidade de uso em covariação das duas
construções é detetada em Bento José de Oliveira, nas obras dadas à estampa
irregular de tolher, retirado de «Itiner., Cap. 42, fol. 139», de Pantaliam Daveiro (fl. 15--)];
(5) «O ablativo do infinito, de que no texto estamos tractando, fórma-se tambem por meio
de preposições»; (6) «Tornámos aos nossos que á ponte de Jacob nos estavam esperando»
(Exemplo extraído de «Itiner. C. 81, fol. 302v» do autor suprarreferido, para ilustrar um
significado atribuído à preposição a, designadamente, o de «Logar onde»); (7) «Lhe dava
verde folha de herva ardente,/Que a seo costume estava ruminando» (Exemplo extraído de
Camões, «Lus. C. 7.º E. 58», para ilustrar o significado de Conforme, atribuído à preposição
a); (8) «Como um forno encendido está lançando chamas, etc.» [Exemplo ilustrativo do uso
do termo em itálico, extraído de «Dial. 7.º C. 35, fol. 305», de Amador Arraiz (fl. 1580)]; (9)
«Um dos muitos erros de syntaxe com que actualmente estamos vendo perverter a boa e
genuina linguagem em obras de litteratura, é o emprego da preposição por na accepção
de referencia»; (10) «á entrada della me esteve esperando, e vendo que eu ao prepassar
não olhava para elle, escarrou alto» [Extrato de exemplo destinado a ilustrar o emprego de
«PRE», com o significado de «Anterioridade, antes», em «prepassar», extraído de «Peregr. T.
2.º C. 116, p. 124», de Fernão Mendes Pinto (ca 1509-1583)]; (11) «Estiveram as montanhas
… docemente resonando com os suaves acentos que por suas concavidades retumbavam
(...)» [Exemplo destinado a ilustrar o emprego de «RE», com o significado de «Augmento,
grandeza e intensidade», em «resonar», tendo sido extraído de «Lus. Transf. L. 3.º fol. 253»,
de Fernão Álvares do Oriente (ca 1540-ca 1595)]; (12) «Vós estaes admirando e pasmando
de que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isso mesmo é o que vós fazeis»
(Exemplo ilustrativo do uso do que designa por “conjunção conclusiva”, pois, retirado de
«Serm. T. 2.º p. 328, col. 1.ª», de Vieira); (13) «Em fim, veiu a tam triste estado que fez uma
pocilga juncto de um caminho, onde estava pedindo esmola aos que passavam» [Exemplo
ilustrativo do uso do que designa por “conjunção conclusiva”, «EM FIM», retirado de «Imag.
P. 1.ª Dial. 4.º C. 5.º p. 139» de Heitor Pinto (1528?-1584?)]; (14) «O som (...) da agua que
está correndo», a propósito de «MURMURIO»; (15) «“Aposto eu que estava agora cuidando
alguem (...). Não digo eu esses arrojamentos» [Extrato de exemplo ilustrativo do emprego
do termo «ARROJAMENTO», retirado de Vieira («Serm. T. 5.º p. 90, col. 2.ª»)]; (16) «Encosta-
-se no chão: que está cahindo/A cidreira co’os pesos amarelos:/Os formosos limões ali chei-
rando/Estão virgineas tetas imitando» (Exemplo retirado de Camões, «[Lus.] C. 9.º E. 56», a
propósito do estilo resultante do distanciamento das formas verbais e da proximidade das
formas nominais); (17) «stá lambendo/Molles vellos» [Extrato de exemplo retirado de «[Os
Martyr. L. 6.º] p. 230», de Filinto Elísio, pseudónimo de Francisco Manuel do Nascimento
(1734-1819), para ilustrar o estilo onomatopaico].
46 Passam a transcrever-se as ocorrências, cujos sublinhados são nossos: (1) «que treme
actualmente, que está a tremer [- relativamente ao significado da unidade linguística «Tre-
mente» -]» (Leoni, 1858: I, 159); (2) «Os participios do pretérito denotam o individuo que
em tempo anterior soffria ou estava a soffrer a acção que actualmente tem acabado de
receber» (Leoni, 1858: I, 220); (3) «A olhos vistos; i. é, a olhos que vêem, que estão a ver» [a
propósito de muitos “particípios do pretérito” terem a propriedade de “tomar significação
ativa” (cf. Leoni, 1858: I, 221)] (Leoni, 1858: I, 229); (4) «Palavra (...) que significa o tempo
durante o qual alguma coisa cresce, ou está a crescer [- em relação ao termo «CRESCENÇA»
-]» (Leoni, 1858: II, 262); (5) «É propriamente o tempo durante o qual nasce ou está a nascer
222
em 186247, em 186448 e em 188049, evidenciando-se a preferência explícita
pela covariante estar + a + ‘infinitivo’ nas edições póstumas da mesma obra,
da responsabilidade de António Augusto Cortesão (1854-1927), publicadas a
partir de 189250. O mesmo se verifica em Francisco Julio Caldas Aulete (1826-
1878), no ano de 186451, sendo curioso constatar que, na edição de 1874 da
algum individuo [- no atinente ao termo «NASCENÇA» -]» (Leoni, 1858: II, 265); (6) «não
nos podemos eximir de dar a conhecer algumas [palavras onomatopaicas], e serão as que
‘n este momento nos ocorrem e estão a saltar dos bicos da penna» (Leoni, 1858: II, 301).
47 (1) «Além d’estes verbos auxiliares [ter, haver, ser] temos (...) Estar, que á idêa pri-
mitiva e geral accrescenta a de estado, persistencia e continuação da existencia ou acção
já começada (...), como – ”Estou lendo ou a ler» (Oliveira, 1862: 24-25, nota 1, iniciada na
p. 24; 1864: 24-25, nota 1, iniciada na p. 24; sublinhados nossos). (2) Atribui a «fumegar»,
que classifica de “verbo frequentativo derivado do verbo fumar”, o significado de «estar
a deitar fumo continuadamente» (Oliveira, 1862: 42; 1864: 47, sublinhado nosso). (3) «[O
infinitivo impessoal] [j]uncto aos verbos auxiliares fórma as frases verbaes compostas, que
exprimem as differentes modificações do seu significado, como – (...) persistencia. Ex.: (...)
[“]Estou a escrever[”]» (Oliveira, 1862: 43; 1864: 47; sublinhado nosso). (4) «Os participios
imperfeitos (...) [c]onjugam-se (...) com o continuativo estar para exprimir ora a continua-
ção ora a persistencia da acção já começada, como – “estou escrevendo, ou a escrever”»
(Oliveira, 1862: 44; 1864: 47; sublinhados nossos).
48 Vide nota anterior.
49 (1) «Estar conjuga-se com o participio imperfeito ou com o infinito impessoal do
verbo auxiliado, regido da preposição [“]a[”], para exprimir estado, permanencia ou conti-
nuação de acção começada (...), como: estou lendo ou a ler» (Oliveira, 1880: 39-40; negrito e
sublinhado nossos). (2) O Autor regista, ainda, enquanto significado do verbo frequentativo
«gottejar», «estar a deitar gottas amiudadamente» (Oliveira, 1880: 41; sublinhado nosso). (3)
Relativamente ao verbo «gravitar», que classifica de “frequentativo”, considera significar
«estar actuando o grave» (Oliveira, 1880: 41). (4) Muito curiosamente, o Autor afirma: «Nos
tempos compostos com o verbo auxiliar estar diz melhor o infinito do verbo auxiliado com
a preposição a, do que o participio imperfeito. E assim é mais usual dizer-se “tenho estado
a estudar” do que “tenho estado estudando []”» (Oliveira, 1880: 42; sublinhado nosso).
50 Quer no âmbito da 2.ª edição póstuma (a 22.ª), quer no seio da 6.ª edição póstuma
(a 26.ª), reitera-se a mesma ideia, acrescentando A. A. Cortesão que, com o auxiliar estar,
«é melhor empregar o infinitivo do verbo auxiliado, regido da preposição a, do que o par-
ticipio presente, mormente nos tempos perfeitos, pois é mais usual dizer “tenho estado a
estudar” do que “tenho estado estudando”» (Oliveira, 1893: 46; o nosso sublinhado evidencia
o acrescentamento de Cortesão ao apontado, em 1880 – pelo menos, não antes de 1876 –,
pelo próprio Oliveira: cf. registo (4) da nota anterior; cf. Oliveira, 1904: 86).
51 Seguem, ordenadamente, as ocorrências, por nós sublinhadas, que Aulete (1864:
48; 55; 55; 55; 55; 55) apresenta como covariantes: «Chamam-se tempos compostos ás
variações do infinitivo, isto é, ao infinito impessoal, ao participio presente e ao participio
passado, quando vem acompanhados por um verbo que lhes determina o modo, o tempo,
a pessoa e o numero; exemplo: tenho amado, hei amado, estou amando ou a amar, ando
a amar, acabo de amar, devia de amar»; (2) «Estou [/«Estás»/«Está»/«Estamos»/«Estais»/«E
stão»] amando ou a amar» (“Modo afirmativo”, “presente absoluto”); (3) «tenho [/«tens»/
«tem»/«temos»/«tendes»/«teem»] estado amando ou a amar» (“Modo afirmativo”, “1.º pretérito
composto do presente absoluto”); (4) «tenho [/«tens»/«tem»/«temos»/«tendes»/«teem»] de estar
amando ou a amar» (“Modo afirmativo”, “1.º futuro composto do presente absoluto”); (5)
223
sua Grammatica Nacional, este último Autor opta apenas pela construção
estar + ‘gerúndio’52, sem replicar as ocorrências desta mesma construção
plasmadas na primeira edição da mesma obra53.
Augusto Epiphanio da Silva Dias (1841-1916), em 1870, ora tende a consi-
derar as duas construções equivalentes, ora revela uma interessante consciên-
cia da existência de um ainda incipiente grau de gramaticalização do verbo
estar seguido de uma forma verbal infinitiva preposicionada por a. Assim,
por um lado, ao tratar do uso do “particípio do presente”, que faz equivaler a
‘gerúndio’, o Autor observa que se emprega «[f]ormando com alguns verbos
uma conjugação composta», indicando, de entre eles, como um dos “princi-
pais”, o seguinte: «estar, para indicar um presente de um modo preciso, ou
uma acção na sua continuidade, ex.: Estou escrevendo (a escrever[])» (Dias,
224
1870: 129). Por outro lado, ao tratar do uso do denominado “infinito impes-
soal”, salienta que pode funcionar como «complemento especial» do verbo
estar, «constituindo, com elle[], por assim dizer, uma forma verbal composta»,
no seio da qual o ‘infinitivo’ seria precedido da preposição a: «estar a» (Dias,
1870: 136). Note-se que, segundo o Autor, este configura um dos casos «em
que convem considerar o[] verbo[] [no “infinitivo impessoal”] como não for-
mando oração, e aggregá-lo[] á oração a que pertence o verbo subordinante»
(Dias, 1870: 147-148). Depreende-se, assim, que o verbo estar ainda seria
encarado, pelo Autor, como semântica e sintaticamente subordinante.
Não é, aliás, por acaso, que denomina essas construções de “formas com-
postas”, que distingue, em 1870, de “forma perifrástica”, em que enquadra
apenas a construção da ‘voz passiva’ que designamos por analítica (cf. Dias,
1870: 59).
Quanto a Francisco Adolpho Coelho (1847-1919), em 1868, não apresenta
quaisquer ocorrências das construções em causa, surgindo apenas estar +
‘gerúndio’, em 1871, duas vezes, na sua própria tessitura discursiva54 e, uma
vez, no âmbito de um exemplo de que se socorre, a partir de uma obra não
literária antiga, para ilustrar o significado tido por “antiquado” de um deter-
minado termo55. Em 1881 e em 1887, a referida construção é utilizada apenas
no âmbito do referido exemplo. Todavia, em 1891, reflete sobre a construção
estar + ‘gerúndio’, detetando-se três ocorrências da sua atualização:
54 Atente-se, por ordem, nos registos de Coelho (1871: CXXX, col. 1; CLXXXIII, col. 2;
sublinhados nossos): (1) «no caso de que estamos tractando»; (2) «[Wilhelm Paul Corssen
(1820-1875)] cujas opiniões sobre o perfeito latino estamos examinando nos fornece meio
de o criticarmos n’este ponto».
55 (1) «“Esteue esguardando huma grande peça[]”» (Exemplo extraído de «Hist. Geral, c.
6», para ilustrar o uso do termo «Peça», com «sentido de pedaço», que dá como «antiquado»
já ao seu tempo (Coelho, 1871: XXII, col. 1; sublinhado nosso; cf. Coelho 1881: 30; cf.
Coelho 1887: 67).
225
– no seio da segunda ocorrência, salienta-se o facto de que estar, além
de poder ser empregue independentemente, se usa, em certos casos,
como auxiliar, «perdendo-se ou modificando-se a sua significação pro-
pria» (Coelho, 1891: 54), situação em que «estar, seguido do participio
do presente ou do infinito presente d’outro verbo, refere uma acção
significada pelo segundo verbo a um momento dado»: os exemplos que
fornece – «Pedro estava desenhando quando fui a casa d’elle, etc. Pedro
está escrevendo (neste momento em que se falla[])» (Coelho, 1891: 55;
sublinhados nossos) – não ilustram, porém, a alternativa aduzida, isto é,
o uso do auxiliar estar com o ‘infinitivo’ presente (impessoal) de outro
verbo;
–
a terceira ocorrência contribui para a exemplificação de um “barba-
rismo”: «influencia no sentido de affluencia ou ainda de enthusiasmo,
gosto, como na phrase a festa está causando muita influencia» (Coelho,
1891:127; sublinhado nosso).
226
perifrástico sob análise, a propósito do uso de estar enquanto verbo auxiliar:
(i) «O verbo estar quando auxiliar, indica continuação de acção; como: Estou
estudando» (Brou, 1876 [1875]: 62; sublinhado nosso); (ii) «Junta-se [o “parti-
cípio do presente”] ao verbo estar para exprimir continuação ou presistencia
[sic!] da acção já começada; como: Estou escrevendo; isto é: a escrever» (Brou,
1876 [1875]: 63; sublinhados nossos).
58 Assere Barros (1540: 407; sublinhado nosso): (1) «andam um ano aprendendo por
um feito».
59 Encontramos, em Lião (1576: fol. 68, frente), o seguinte registo: (1) «qu’andais dizẽdo?».
60 Note-se o registado em Lião (1606: 6; sublinhado nosso): (1) «que por o ſoido enga-
nou a os que andauaõ buſcando aſſento a Tubal, & a ſuas gentes».
61 (1) «Muito aproposito, Illustrissimo Senhor, se me offereceo esta Porta de línguas
andando muitos dias considerando per que via com mais facilidade, e brevidade entraria
na Latina» (Roboredo, 1623: «Ao Illustrissimo Senhor D. Francisco de Castelbranco», 4;
sublinhados nossos).
62 Em Véra (1631b: fol. 19, frente, com sublinhado nosso), surge a ocorrência que segue:
(1) «[et] a letra conſoante ve (eſcrevo aſsi por ficar ſeu nome introduzido) anda variando
com todas as vogaes».
227
3. Discurso metalinguístico de Setecentos
228
bete sob a entrada «ANDAR», sem informação adicional do uso da construção
apresentada, exceto a de que andar era encarado como um “verbo neutro” e
não como um verbo auxiliar, informação que será replicada em 1813 (cf. Silva,
1813: I, «ANDÁR», «v[erbo] n[eutro]»: 132, col. 1).
229
Em 1804, Dias de Souza exibe cinco ocorrências de andar + a + ‘infini-
tivo’ e de andar + ‘gerúndio’, nessa ordem, as quais apresenta como cova-
riantes. Na verdade: (i) considera que também servem para exprimir o «Tempo
prezente» (Souza, 1804: 107) as “formas compostas” “Eu ando a escrever” e
“Eu ando escrevendo”, as quais «equivalem a Eu escrevo», que constituiria
a sua “forma simples resumida” (Souza, 1804: 108); (ii) observa que o «Pas-
sado indefinido» («Primeira fórma do Passado») (Souza, 1804: 109) pode ser
expresso pelas “formas compostas” “Eu andava a escrever” e “Eu andava escre-
vendo”, as quais faz equivaler a «Eu escrevia» (Souza, 1804: 110); (iii) entende
que também o «Passado proximo» (designado por «Segunda fórma do Pas-
sado») pode ser expresso pelas “formas compostas”, equivalentes, “Andei a
escrever” e “Andei escrevendo” (Souza, 1804: 110); (iv) para manifestação do
«Passado remoto» («Terceira fórma do Passado»), indica, adicionalmente, as
“formas compostas” “Andara a escrever” e “Andara escrevendo” (Souza, 1804:
110, 111); (v) a «primeira fórma do tempo futuro» (Souza, 1804: 111) é apre-
sentada como sendo, também, exprimível pelas “formas compostas” “Andarei
a escrever”, “Andarei para escrever” e “Andarei escrevendo” (Souza, 1804: 112).
Couto e Melo, em 1818, e Soares Ferreira, em 1819, não apresentam
ocorrências.
Constancio afirma, em 1831, que «[e]star sendo, indica duração continua,
e da mesma maneira todos os gerundios usados juntamente, como andando
vendo, vindo passeando, indo olhando» (Constancio, 1831: 131; sublinhado
nosso). Em 1836, apresenta essa combinação sob a subentrada «ANDAR-SE» da
entrada «ANDAR», sob a qual observa o seguinte: «v. r. ant., andar; it. impessoal
e usado. Anda-se dizendo, corre voz: andão-se tramando grandes intrigas,
estão-se dispondo, preparando» (Constancio, 1836: 77, col. 2). Com efeito,
andar não figura no seu elenco de verbos auxiliares, embora não dê a sua
lista como esgotada (cf. Constancio, 1836: «AUXILIAR», 143, col. 1).
Midosi exibe uma ocorrência da construção andar + ‘gerúndio’ em
183169; já não em 1842.
69 Segue o extrato que encerra a dita ocorrência: (1) «em quan-to el-las an-da-vam pas-
-tan-do pro-cu-ra-va di-ver-ti-las com os ma-vi-o-sos sons da su-a a-ve-na» (Midosi, 1831:
Secção II, «Lições de ler soletrando», Lição X, p.52; sublinhado nosso).
230
Abreu, em 1852 [1837], não exibe quaisquer ocorrências.
Andrade Junior, em 1850, observa que a “existência continuada”, enquanto
um dos pontos de vista sob os quais se considera a ideia de ‘existência’ enun-
ciável pelo verbo, era significada por várias formas verbais auxiliares, entre
as quais andar,
231
O gerundio do[] verbo[] auxiliar[] (…) andar (...) precede sempre o gerundio
dos outros verbos; como por exemplo: (…) andando apprendendo, (...), etc. Este
segundo gerundio pode ser substituido pelo supino do respectivo verbo, e dizer-se
(…) andando a apprender, etc. (Leoni, 1858: I, 269; sublinhados nossos).
297; 337; 342; 342; 342/tomo II, 13; 93 [92]; 99, nota (1); 189; 267; 285 [284]; 288; 288),
exibem-se, abaixo, as atualizações da construção em causa, sublinhadas: (1) «Pois tudo
aquillo é andarem buscando os homens como ham de comer, e como se ham de comer»
(Extrato de um exemplo de Vieira, a propósito do uso de «aquillo»); (2) «E com este
desengano espedido elle del-rei, se foi para Castella, onde tambem andou ladrando este
requerimento» [Extrato de exemplo retirado de João de Barros, que considera ser digno
de imitar, a propósito de verbos “neutros” empregados pelos «AA, beneméritos da lingua»
como “ativos”]; (3) «Alli andava eu sandejando/E suacendo e cançando» [Exemplo, de Gil
Vicente (1465?-1537), ilustrativo dos chamados “verbos imitativos”]; (4) «Os que andavam
prégando pelo reino, como então se costumava» (Exemplo, de Luís de Sousa, avançado
a propósito da formação de novos verbos); (5) «Andava garramando e cobrando suas
dividas» (Exemplo, de Luís de Sousa, para obviar ao mesmo objetivo); (6) «Tomaram duas
negras que andavam mariscando» (Exemplo, de João de Barros, aduzido com a mesma
finalidade); (7) «Os pais não querem que andem de continuo os filhos velhaqueando»
[Exemplo, de Leonel da Costa (1570-1647), enquanto tradutor das Comédias de Terêncio,
sob o mesmo fito]; (8) «Como homem soberbo e confiado andava a uma e a outra mão
escaramuçando» (Exemplo extraído de «Dec. 5.ª L. 8.º C. 7.º p. 218», de João de Barros, para
ilustrar um outro significado adscrito à preposição a, designadamente, o de «Direcção»);
(9) «Quando Saul andava buscando as jumentas de seo pae, Samuel, mandado por Deos,
o ungiu em rei de Israel» (Exemplo extraído de «Serm. T. 6.º p. 136, Col. 1.ª», de Vieira,
para ilustrar um dos significados apontados à preposição em, a saber, o de «Modo porque
alguma coisa se faz, acontece, ou subsiste; como, na forma»); (10) «Neste tempo florecia
muito um mouro (...), que poderosamente andava espancando aquelles mares, e fazendo
alguns damnos» (Exemplo extraído de «Dec. 4.ª L. 8.º C. 12, p. 412», de João de Barros,
para ilustrar o emprego do item italicizado); (11) «Bem mal póde entender isto que digo/
Quem hade andar seguindo o fero Marte» (Exemplo extraído de Camões – «El. 1.ª» –, a
propósito do uso do advérbio bem); (12) «Mas neste passo assi promptos estando/Eis o
mestre, que olhando os ares anda,/O apito toca…» (Exemplo extraído de «Lus. C. 6.º E.
70», de Camões, a propósito do termo «PASSO»); (13) «as terras viciosas/d’Africa e d’Asia
andaram devastando» (Exemplo extraído de «Lus. C. 1.º E. (...) 2.ª», de Camões, para dar
conta da «faculdade de inversão» da língua portuguesa); (14) «A noite, a confusão e o
somno, os trazia [sic!] a encontrar o perigo de que andavam fugindo: errando miseravel-
mente» (Extrato de exemplo retirado de «Castr. L. 4.º n.º 6», de J. Freire, a propósito do
estilo resultante da colocação em proximidade de formas verbais); (15) «Eis o mestre, que
olhando os mares anda,/O apito toca; acordam despertando» (Extrato de exemplo retirado
de «[Lus.] C. 6.º E. 70», de Camões, ainda a propósito do estilo resultante da colocação de
formas verbais em proximidade).
232
Quanto a Bento José de Oliveira, apresenta, logo desde a 1.ª edição da sua
obra, em 1862, apenas ocorrências em que faz equivaler as duas construções
do par perifrástico sob escopo72.
Epiphanio Dias, em 1870, ao tratar do uso do “particípio do presente”,
que faz equivaler a “gerúndio”, nota que se emprega «[f]ormando com alguns
verbos uma conjugação composta», entre os “principais” dos quais indica tam-
bém o verbo «andar, para indicar uma acção na sua continuidade, ex.: Anda
escrevendo (a escrever) uma comedia » (Dias, 1870: 129; sublinhados nossos).
A equivalência construcional verificada não lhe suscita dúvidas, uma vez que
não indica qualquer tipo de diferença entre uma e outra construções.
Também Caldas Aulete entende essas construções como covariantes em
186473, não surgindo quaisquer ocorrências, porém, em 1874.
Francisco Adolpho Coelho não apresenta ocorrências em 1868, nem em
1881 ou em 1887. Só na obra que analisámos de 1871 exibe uma ocorrência
72 (1) «Além d’estes verbos auxiliares [ter, haver, ser] temos (...) Andar, que declara ora
frequencia, ora successiva continuação da existencia do attributo ou acção do subjeito, como
– ”Ando lendo ou a ler”» (Oliveira, 1862: 24-25, nota 1, iniciada na p. 24; 1864: 24-25, nota
1, iniciada na p. 24; sublinhado nosso; cf. 1880: 40). (2) «[O infinitivo impessoal] [j]uncto
aos verbos auxiliares fórma as phrases verbaes compostas, que exprimem as differentes
modificações do seu significado, como – frequencia (...). Ex.: “Anda a cantar (...)[”]» (Oli-
veira, 1862: 43; 1864: 47; sublinhado nosso). (3) O Autor apresenta, como significado de um
verbo frequentativo – doidejar – «andar a fazer ou a dizer doidices» (Oliveira, 1864: 46; 1880:
41; sublinhado nosso). Nas edições póstumas de 1893 e de 1904, da responsabilidade de
A. A. Cortesão, mantém-se a noção de que andar, enquanto verbo auxiliar, «com participio
presente, ou com infinitivo regido da preposição a, exprime frequencia de acção» – «Ando
lendo ou a ler», «ando a estudar» –, constituindo «locuções verbais» (Oliveira, 1893: 46, 44;
cf. 1904: 86, 29; sublinhado nosso), da mesma forma que também se utiliza a construção
com ‘infinitivo’ preposicionado por a para esclarecer o significado de verbos ditos “fre-
quentativos” «derivados de adjectivos», tais como «bravejar, doidejar, andar a fazer-se bravo,
doido» (Oliveira, 1893: 83; 1904: 55).
73 Vejamos os registos de Aulete por nós sublinhados (1864: 55; 56): (1) «Ando [/«Andas»
/«Anda»/«Andamos»/«Andais»/«Andam»] estudando ou a estudar» (“Modo afirmativo”, “presente
absoluto”); (2) «tenho ou hei [/«tens ou heis [sic!]» /«tem ou ha»/«temos ou havemos»/«tendes
ou haveis»/«teem ou hão»] andado estudando ou a estudar» (“Modo afirmativo”, “1.º pretérito
composto do presente absoluto”). Essa noção de covariação justifica que se encontre uma
atualização adicional da construção apenas com ‘infinitivo’ preposicionado por a, assim
como uma atualização da construção só com ‘gerúndio’, tal como segue, pela mesma ordem,
mediante o uso de sublinhas: (4) «Chamam-se tempos compostos ás variações do infinitivo,
isto é, ao infinito impessoal, ao participio presente e ao participio passado, quando vem
acompanhados por um verbo que lhes determina o modo, o tempo, a pessoa e o numero;
exemplo: (…) ando a amar» (Aulete, 1864: 48); (5) «a formiga anda negociando» (Aulete,
1864: 91: Extrato de exemplo de uma obra não identificada de Manuel Bernardes, destinado
a ser submetido, pelo professor, à análise dos alunos).
233
de andar + ‘gerúndio’74, que não é da sua lavra, constituindo parte inte-
grante de um extrato de uma obra destinado a ilustrar o uso de um termo
antigo. Importa, porém, registar o que assevera em 1891, sendo de suma
importância o facto de encarar o par perifrástico em causa como integrando
construções covariantes.
Com efeito, Coelho afirma que andar, além de poder ser empregue inde-
pendentemente, ou seja, como verbo pleno (como diríamos hoje), se usa, em
certos casos, como auxiliar, «perdendo-se ou modificando-se a sua signifi-
cação propria» (Coelho, 1891: 54; negrito nosso):
234
registando apenas duas ocorrências da construção andar + ‘gerúndio’76 no
âmbito de exemplos extraídos de uma obra literária e de uma obra não lite-
rária de autores de referência, para ilustrar aspetos atinentes à transformação
e à natureza da língua.
Em Theofilo Braga, encontramos, em 1876, duas ocorrências apenas da
construção andar + ‘gerúndio’77.
76 (1) «“(...) Onde vos sohia ver/Andar saltando sem medo (...)”» [Extrato de exemplo
da lavra de Bernardim Ribeiro (1482-1552), para ilustrar a «considerável differença que já
fazia a lingua portugueza» relativamente ao que designa de «barbara e rude algaravia do
primitivo portuguez» (Brou, 1876 [1875]: 8, 9; sublinhado nosso)]; (2) «“(...) tres annos havia
que el-rei andava entendendo com grande cuidado em buscar pera a India os pregadores
(...)”» [Extrato de reprodução de Annaes de D. João III, de Luís de Sousa, destinado a reve-
lar «a pureza, naturalidade, elegância e perfeição do seu estylo» (Brou, 1876 [1875]: 18)].
77 (1) «Ando lendo» (Braga, 1876: 72; cf. 83: Exemplo fornecido para ilustrar o uso do
verbo andar enquanto verbo auxiliar do “particípio presente” de um outro verbo, entrando
na formação do que designa por “Tempo Composto”). (2) «Ando lendo (...).(...) Andar dá
um caracter frequentativo á acção do verbo que auxilia» (Braga, 1876: 88: Exemplo avançado
para ilustrar os “Tempos Compostos”).
78 Eis as ocorrências detetadas e destacadas: (1) «ficaria (...) parecendo melhor» (Gan-
davo, 1574: «Prologo ao Lector», [fol. 2, verso]); (2) «fique ſoando» (Gandavo, 1574: «De
como ſe ha de fazer differença na pronunciação de algũas letras em que muitas peſſoas ſe
coſtumão enganar», [fol. 3, frente]).
79 Seguem as ocorrências detetadas em Lião, com sublinhados nossos (1576: fol. 3, verso;
fol. 3, verso; fol. 7, frente; fol. 7, verso; fol. 12, verso; fol. 15, verso; fol. 15, verso; fol. 16,
frente; fol. 20, frente; fol. 27, verso; fol. 42, verso; fol. 51, frente): (1) «& fica parecendo
pequeno»; (2) «Por tanto ficamos pronũciando o .a. com aquella differẽça de pronunciação»;
(3) «parece que fica fazendo dous»; (4) «que fica ſoando»; (5) «ficarião dizendo»; (6) «fica
parecendo»; (7) «fica parecendo»; (8) «fica logo ſoando de differente maneira»; (9) «E a penas
o poderão pronunciar como ſingello, que não fique ſoando como o .z.»; (10) «Por que ficão
ſoando»; (11) «fica ſeruindo ao accuſativo»; (12) «Mas antes quanto nos deſuiamos da Latina,
tanto fica teendo mais graça, & ſendo mais noſſa como tambem dizem os Italianos da ſua».
235
2. Discurso metalinguístico da centúria seiscentista
80 As ocorrências da referida construção são as seguintes: (1) «fica parecẽndo outra» (Lião,
1606: 2; sublinhado nosso); (2) «ficão parecendo outras» (Lião, 1606: 26; sublinhado nosso).
81 Vejam-se as ocorrências identificadas e sublinhadas: (1) «fique ſabendo» (Roboredo,
2007 [1615]: [penúltima página do Prólogo]); (2) «na voz paſsiva fica ſendo nominativo
declarado, ou entendido» (Roboredo, 2007 [1615]: 41 [90]).
82 (1) «Fica ſendo ſegunda parte de Copia» (Roboredo, 1619: «Mostrador da Materia»,
[fol. 1, verso]; sublinhado nosso). (2) «A terceira parte, que fica ſendo a ſegunda de Copia
he hum exemplo Latino» (Roboredo, 1619: «Prólogo, [fol. 9, frente]; sublinhado nosso). (3)
«Fica ſendo ſegunda parte de Copia» (Roboredo, 1619: 182; sublinhado nosso). (4) «[F]icarà
ſendo a terceira parte de Copia» (Roboredo, 1619: 183; sublinhado nosso).
83 Observe-se a ocorrência: (1) «o qual traduzido ao pê da letra em outra lingua fica
servindo» (Roboredo, 1623: «Ao Juiz deste Artificio», 13; sublinhado nosso).
84 Expõem-se, a seguir, por ordem, as ocorrências, sublinhadas, da responsabilidade de
Véra (1631b: fol. 1, verso; fol. 2, verso; fol. 8, verso; fol. 9, frente; fol. 9, verso; fol. 11, verso;
fol. 12, verso; fol. 12, verso; fol. 20, verso; fol. 21, frente; fol. 31, verso; fol. 39, verso): (1)
«Deſpois de compoſtas, [et] unidas as letras ficão, sẽdo ſyllabas, [et] as ſyllabas juntas ficão
sẽdo dicções»; (2) «antes fiqua sẽdo mais perfeito»; (3) «que muitas vezes o não fica sẽdo»;
(4) «ficaſe dando a cada letra o que he ſeu»; (5) «porque fica ſoando mal»; (6) «com que
ficamos expremindo todas as vogaes de hũa meſma pronunciação»; (7) «ficarião dizendo»;
(8) «não fica ſẽdo dous ll; ſe não hum só»; (9) «[et] aſsi ficárão eſcrevendo pax [et] lex; [et]
não pacs, legs»; (10) «não nos fica ſervindo o .x. dos Latinos»; (11) «que com aquelle til
ficão fazendo ditthongo»; (12) «fica moſtrando».
85 Note-se a ocorrência: (1) «claramente ſe fica diſtinguindo do i» (Pereira, 1666: 71;
sublinhado nosso).
236
3. Discurso metalinguístico da centúria setecentista
86 Repare-se nas ocorrências: (1) «ficavaõ ſabendo» (Conde da Ericeira, in Argote, 1725:
[s.p.]; sublinhado nosso); (2) «pelo odio, que (...) ficavaõ tendo às letras» (Conde da Ericeira,
in Argote, 1725: [s.p.]; sublinhado nosso).
87 (1) «Monſieur Deſmarais diz que quando Quelque ſe ajunta a hum Adjectivo (...) fica
ſendo Adverbio» (Lima, 1733: 114-115; itálico e sublinhados nossos); (2) «e que ajuntando-ſe
a hum Subſtantivo (...) fica ſendo Adjectivo» (Lima, 1733: 115; sublinhado nosso).
88 «Diz que quando a prepoſiçaõ naõ tem caſo na oraçaõ, fica ſendo adverbio» (Chorro,
1736: 158; sublinhado nosso).
89 Observe-se: «mas agora fico formando melhor conceito deles» (Verney, 1746: I, «Carta
Primeira», 33; sublinhado nosso).
90 Registam-se, seguida e ordenadamente, as atualizações, destacadas, da construção
em causa em Fonseca (1799: X; XIII; 14; 36; 144; 192; 258; 296; 328): (1) «nem o exem-
plo ficará sendo infructuoso»; (2) «sobejamente venturosa ficaria sendo a diligencia»; (3)
«pois que as sobreditas palavras ficão sendo neste caso tão somente daquelle genero, que
lhes determinão os articulos, ou adjectivos»; (4) «ficarão sendo puramente Portuguezes»;
(5) «ficárão retendo»; (6) «que fica parecendo hum só vocabulo»; (7) «“(...) fica sendo riso
(...)”» [Extrato de um exemplo de uma obra de Diogo Bernardes (ca 1530-1596), o qual se
destinava a dar conta de um dos usos de uma preposição]; (8) «“(...) não o [=boas] ficão
sendo (...)”» [Extrato de um texto de Francisco Rodrigues Lobo (ca 1580-1622), citado a
propósito de «vocabulos (...) já hoje antiquados, e obsoletos»]; (9) “Este todavia a ficou
sempre conservando na locução plebea, dixeme, dixeme» [a propósito de formas antigas do
“pretérito perfeito” do ‘indicativo’ que Rodrigues Lobo reprovava, embora as mantivesse –
por exemplo, na Comedia Eufrosina, de Jorge Ferreira de Vasconcellos (1515-1585), cuja
terceira edição imprimiu e emendou em 1786 – em situações de comunicação representa-
tivas de um uso dito “plebeu”].
237
4. Discurso metalinguístico da centúria oitocentista
238
Depois, só no Dicionário de 1836, sob a entrada «FICAR-SE», Solano Cons-
tancio classifica esse verbo, que faz seguir de ‘gerúndio’, de «reflexo», signifi-
cando «ficar, demorar-se, não partir. (…) Fiquei-me divertindo com a criação
dos bichos da seda» (Constancio, 1836: 560, col. 1; sublinhado nosso). Não
surge, contudo, qualquer elucidação adicional sobre o papel sintático do
verbo ficar, que não prevê no quadro dos auxiliares, nem sobre o significado
resultante da combinação de elementos linguísticos na construção em causa.
Abreu, em 1852 [1837], apresenta apenas uma atualização de ficar +
‘gerúndio’93, aquando do tratamento da ‘voz passiva’ que temos por analítica.
Andrade Junior, em 1850, apresenta três ocorrências de ficar + ‘gerún-
dio’94, duas das quais no âmbito de extratos de obras não identificadas, os
quais utiliza para ilustrar determinados usos linguísticos.
Em 1858, Leoni exibe mais de vinte ocorrências de ficar + ‘gerúndio’95,
integrando apenas uma das quais um extrato de uma obra de António Vieira
239
(1608-1697), utilizado como exemplo para ilustrar o uso do verbo boquear,
que o Autor classifica como “frequentativo”. Nenhuma observação direta con-
substancia o Autor sobre o papel de ficar na construção sintática em que
surge nem sobre o significado que a construção permite computar.
Em 1862 e em 1864, Bento José de Oliveira, abordando a questão da
mudança da voz ativa para a ‘voz passiva’, utiliza apenas a construção Ficar +
a + ‘infinitivo’. Repare-se no que diz o Autor:
nomes com a corrupção da lingua latina, ficaram estes conservando somente a desinencia
do ablativo do singular»; (10) «alguns [vocábulos] ficaram conservando a desinencia latina
ario, considerada a portugueza eiro como indicativa de exercicio ou emprego menos nobre;
excepto em conselheiro, cavalleiro, e em poucos mais»; (11) «Temos (...) grande copia de
vocabulos que (...) ficam mostrando o individuo ou unidade»; (12) «já mostrámos como
com a corrupção do latim se alteraram e perderam essas fórmas terminativas de que ape-
nas ficámos conservando os vestigios nos pronomes pessoaes»; (13) «Muitos substantivos
portuguezes tomaram a fórma d’estes participios [“ativos do futuro”]; sendo notavel que
quasi todos ficaram conservando uma tal ou qual idéa de acção futura»; (14) «a duvida que
havia a respeito (...) fica subsistindo»; (15) «o peixe (...) fica preso e boqueando» (Extrato
de exemplo retirado de Vieira, para ilustrar o uso do verbo boquear, que o Autor classifica
de “frequentativo”); (16) «Modo é uma especie de movimento. E’ tambem a fórma que ficou
resultando de um certo movimento, ou impulso dado (...)» (- a propósito da preposição a
-); (17) «Preposição latina inseparável em portuguez [ - «OBS, OB» -], onde se ficou conser-
vando na composição de muitos vocabulos em que entra já com uma e já com outra fórma»;
(18) «A preposição portugueza por foi alterada da latina pro, cuja fórma ficou conservando
em composição com os verbos e nomes»; (19) «e só fica apparecendo o que [a conjunção
que, que designa por “subjuntiva”,] tem de subjunctivo»; (20) «Veremos (...) comprovada
esta procedência [do latim] não só nas fórmas materiaes que ficaram conservando, senão
nas proprias fórmas das idéas que representam [certas interjeições peculiares, do ponto de
vista do Autor, à língua portuguesa]»; (21) «É memorável, e ficou mesmo sendo proverbial
aquelle dicto do Conde de Abranches (...): “Fartar, fartar, vilanagem!”» (Extrato de exemplo
ilustrativo do valor do uso de “palavras agudas”, retirado de Duarte Nunes de Leão, «Chro.
De D. Affonso 5.º C. 122»).
240
pode servir como auxiliar, «denota[ndo] persistencia num certo estado» – «Ex.:
Ficou estudando ou a estudar» –, deixa, simultaneamente, claro o uso cova-
riante das duas construções, com ‘gerúndio’ ou com ‘infinitivo’ preposicionado
por a (Oliveira, 1880: 41, cf. 40; cf. Oliveira, 1893: 46; cf. Oliveira, 1904: 87).
V. Considerações Finais
241
Quanto à covariação do par perifrástico estar + ‘gerúndio’ e estar + a +
‘infinitivo’, Souza, depois de Moraes Silva, é seguido por Constancio, Leoni,
Oliveira, Aulete (em 1864), Epiphanio, Brou e Coelho (em 1891).
Em relação à covariação do par perifrástico andar + ‘gerúndio’ e andar
+ a + ‘infinitivo’, Souza é seguido por Leoni, Oliveira, Epiphanio, Aulete (em
1864), Brou e Coelho (em 1891).
No respeitante à covariação do par perifrástico ficar + ‘gerúndio’ e ficar
+ a + ‘infinitivo’, Souza é apenas seguido por Oliveira.
Relativamente ao facto de alguns autores não apresentarem quaisquer
ocorrências dos termos dos pares perifrásticos em causa, traz à tona uma
observação encontrada no Grande Diccionario Portuguez de Domingos
Vieira (?-ca 1854), que saiu, postumamente, do prelo, entre 1871 e 1873, numa
edição “inteiramente revista e consideravelmente aumentada”, sob a direção
de F. Adolpho Coelho e de Theophilo Braga. Aí, no âmbito do verbete com a
entrada «Auxiliar, adj, 2 gen.» (Vieira, 1871: 669, col. 1), diz-se o que segue:
242
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com outros novos catalogos, e explicaçam de muitos Vocabulos antigos e antiqua-
dos, para intelligencia dos antigos Eſcritores Portuguezes; de todos os Termos Vul-
gares menos cultos, e mais ordinarios, que ſem algũa neceſſidade nam ſe-devem
uſar em Diſcurſos eruditos; das Fraſes, e Dicçoens Cómicas de mais frequente uſo,
as quaes ſem hum bom diſcernimento nam ſe devem introduzir em Diſcurſos gra-
ves, ou ſérios; e finaʼmente dos Vocabulos, e diverſos Abuſos da Plebe, mais conhe-
244
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Pereyra, Bento (1647): Theſouro da Lingoa Portugueza. Em Lisboa: na Officina de
Paulo Craesbeeck, & à ſua cuſta.
Pereyra, Bento (1697): Theſouro da Lingua Portugueza. Évora: Tipografia da Aca-
demia. http://clp.dlc.ua.pt/Publicacoes.aspx.(http://clp.dlc.ua.pt/DICIweb/default.
asp?url=Ler&Serie=1054.) [Consultado em 2017 e em 2018]. [Thesouro da Lin-
gua Portugueza. In Proſodia in Vocabularium Bilingue, Latinum, et Luſitanum,
Digeſta, in Qua Dictionum Significatio, et Syllabarum Quantitas Expenditur. Opus
Omnino Neceſſarium Profeſſoribus Sacrarum, et Humaniorum Literarum, Medi-
cis, Juriſtis, [et] omnibus cuiuſcunque facultatis Studioſis; tum propter innumeras
dictiones, quas à Sacris, [et] profanis Auctoribus decerptas exponit; tum propter
recondita carmina omnium veterum Poetarum, [et] Recentiorum clari nominis,
quos omnes Auctor ad expendendas ſyllabas perlegit. Septima Editio Auctior, et
248
Locupletior ab Academia Eborenſi. Eboræ: cum facultate Superiorum, ex Typogra-
phia Academiæ.]
Roboredo, Amaro de (1615): Verdadeira Grammatica Latina, para se bem saber
em breue tempo, ſcritta na lingua portugueſa com exemplos na latina. Em Lisboa:
na Officina de Pedro Crasbeeck. [Roboredo, Amaro de (2007[1615]). Verdadeira
grammatica latina para se bem saber em breve tempo, scritta na lingua portuguesa
com exemplos na latina (edição facsimilada). Prefácio de Amadeu Torres e estudo
introdutório de Gonçalo Fernandes, Rogelio Ponce de León & Carlos Assunção. Vila
Real: Centro de Estudos em Letras/Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.]
Roboredo, Amaro de (1619): Methodo grammatical para todas as linguas. Em Lisboa:
per Pedro Craesbeeck.
Roboredo, Amaro de (1623): Porta de linguas ou modo muito accomodado para
as entender publicado primeiro com a tradução Espanhola. Agora acrescentada a
Portuguesa com numeros interliniais, pelos quaes possa entender sem mestre estas
linguas o que as não sabe, com as raizes da Latina mostradas em hum compendio
do Calepino, ou por melhor do Tesauro, para os que a querem aprender, e ensinar
brevemente; e para os estrangeiros que desejaõ a Portuguesa, e Espanhola. Lisboa:
Pedro Crasbeeck. http://clp.dlc.ua.pt/Corpus/AmaroRoboredo.aspx. [Extratos.]
[Consultado em 2017 e em 2018.]
Silva, Antonio de Moraes (1789): Diccionario da Lingua Portugueza composto pelo
Padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado, por Antonio de Moraes Silva,
Tomo Primeiro [I] – A=K –/Tomo Segundo [II] – L=Z –. Lisboa: na Officina de Simão
Thaddeo Ferreira.
Silva, Antonio de Moraes (1806 [1802]). Epitome de grammatica da lingua portu-
gueza. Lisboa: na Officina de Simão Thaddeo Ferreira.
Silva, Antonio de Moraes (1813): Diccionario da Lingua Portugueza, recopilado dos
vocabularios impressos ate’ agora, e nesta segunda edição novamente emendado,
e muito accrescentado, por Antonio de Moraes Silva, Tomo Primeiro [I] – A=E –/
Tomo Segundo [II] – F=Z –. Lisboa: Typographia Lacerdina.
Silva, Antonio de Moraes (1824): Grammatica Portugueza. Rio de Janeiro: na Typo-
graphia de Silva Porto.
Silva, Vítor Manuel de Aguiar e (19835): Teoria da Literatura, vol, I. Coimbra: Almedina.
Souza, Manoel Dias de (1804): Grammatica Portugueza ordenada segundo a doutrina
dos mais celebres gramaticos conhecidos, assim nacionaes como estrangeiros, para
249
facilitar á mocidade portugueza o estudo de lêr e escrevêr a sua propria lingua, e
a inteligencia das outras em que se quizer instruir. Coimbra: na Real Imprensa da
Universidade.
Véra, Alvaro Ferreira de (1631a): Breves Louvores da Lingua Portuguesa, com nota-
veis exemplos da muita ſemelhança, que tem com a lingua Latina. Em Lisboa: per
Mathias Rodriguez.
Véra, Alvaro Ferreira de (1631b): Orthographia, ou modo para escrever certo na lingua
Portugueſa. Com hum trattado de memoria artificial: outro da muita ſemelhança
que tem a lingua Portugueſa com a Latina. Em Lisboa: Per Mathias Rodriguez.
[Verney, Luiz Antonio] (1746): Verdadeiro Metodo de Estudar, para ser util à Repu-
blica, e à Igreja: proporcionado ao eſtilo, e neceſidade de Portugal. Exposto em
varias cartas, eſcritas polo R. P.*** Barbadinho da Congregaſam de Italia, ao R.
P.*** Doutor na Univerſidade de Coimbra. Tomo Primeiro [I]./Tomo Segundo [II].
Valensa: na Oficina de Antonio Balle.
Vianna, A[niceto] [dos] R[eis] Gonçalves (1890-1892): “Emprêgo dos verbos auxiliares
estar, ir, vir, seguidos de jerundio”. In Revista Lusitana, Vol. II, 76-77.
Vieira, Domingos (1871): Grande Diccionario Portuguez ou Thesouro da Lingua
Portugueza. Publicação feita sobre o manuscripto original, inteiramente revisto e
consideravelmente augmentado. Primeiro Volume. Porto/Rio de Janeiro/Pará: em
Casa dos Editores Ernesto Chardron e Bartholomeu H. de Moraes/A. A. da Cruz
Coutinho/Antonio Rodrigues Quelhas.
250
MARIA HELENA PAIVA
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
[email protected]
ORCID: 0000-0001-7051-9068
T i p o l o g i a e â m b i to d o s c u lt i s m o s
n o pa d r ã o l i n g u í s t i c o q u i n h e n t i s ta
T y p e a n d s p h e r e o f c u lt u r a l b o r r ow i n g s
i n t h e l i n g u i s t i c s ta n d a r d o f s i x t e e n t h
century Portuguese
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_7
vernacular practices of Oliveira. Therefore, it is not only the sociocultural factors operating
in relatinization but also the inherent marks of certain social groups that delineate the lin-
guistic standard. It will be important to evaluate the extent of this factor in future research.
Keywords: computational linguistics, historical sociolinguistics, history of grammar,
Portuguese in the sixteenth century, variation and change
1. Preâmbulo
252
autor e de parciais identidades de conteúdo, a primeira obra sobre a história
da língua portuguesa, publicada em 1606.
Considerou-se que a proporcionalidade entre as obras da segunda sin-
cronia deveria ser assegurada e que a retenção de um quarto de cada obra
garantiria a representatividade do conjunto. Relativamente a Pêro de Maga-
lhães de Gândavo, cada uma das obras reunidas no volume publicado em
1574 foi delimitada autonomamente e, quanto ao diálogo bilingue, só o texto
em português foi retido. Os inconvenientes de distorções resultantes de inten-
ções inexplícitas de escolha foram eliminadas por utilização de uma tabela de
números ao acaso (Müller, 1973: 169) correspondente à numeração dos fólios,
e alargada por recuo ou avanço à delimitação da frase.
A amostra foi ampliada por inclusão de dois tipos de fragmentos: o pri-
meiro reúne dedicatórias e prólogos, tipos de paratexto decorrentes de estra-
tégias discursivas próprias determinantes de opções que importa comparar
com as que se projetam nos textos propriamente ditos. O segundo engloba,
nas obras de Leão, três listas de palavras que veiculam informação pertinente
sobre o próprio cerne da pesquisa em curso: na Orthographia: «Reformação
de algũas palavras que a gente vulgar usa & screve mal» (69v-71v); na Origem:
«De algũs vocabulos antigos Portugueses que se achaõ em scripturas, & sua
interpretaçaõ» (110 22 – 115 3) e «De algũs vocabulos que usão os plebeios, ou
idiotas que os homẽs polidos naõ devem usar» (115 5 – 117 3).
Estes fragmentos podem sempre ser identificados, o primeiro porque
a referenciação indica a parte da obra em que a ocorrência se integra, o
segundo porque os juízos explícitos foram objeto de codificação específica1.
Assim sendo, a pergunta latente no título deste estudo deve ser interpre-
tada, relativamente à segunda sincronia, à luz das restrições que uma pesquisa
por amostra deve suscitar; contudo, quando há coincidência na informação
colhida em Gândavo e Leão, a probabilidade de essa coincidência refletir fac-
tos gerais sai fortemente reforçada; por outro lado, não é irrelevante que de
Leão sejam tratadas duas obras, e que entre elas haja um intervalo de 30 anos;
finalmente, enquanto o estudo da variação exige conjuntos amplos de prefe-
rência não seletivos, a definição de traços gerais a partir da amostra, tal como
253
foi caracterizada, afigura-se exequível num tipo de textos relativamente homo-
géneos, em que juízos explícitos referentes à variação foram codificados.
2. O eixo do tempo
2 A distinção entre o tempo real, ou seja, a cronologia objetiva definida pelo calendário, e
o tempo aparente, o da idade do informante relativamente a uma mudança em curso, é uma
constante na obra de W. Labov (cf. Labov, 1972, 1994 e 2001); a aplicabilidade do conceito
restringe-se a mudanças fonéticas em curso diretamente observáveis e cujo início e expan-
são, localizáveis no tempo real, são medidos também em função da idade dos inquiridos.
254
2.1. Oliveira escreveu na Gramática: «muy poucas são as cousas que durão
por todas ou muitas idades em hũ estado quanto mais as falas, que sempre se
conformão cõ os conceitos ou entenderes, juyzos & tratos dos homens» (OGR
50 2-5)3.
Embora o conteúdo da frase seja universal, não há talvez nenhuma época
como o Renascimento em que tão claramente se manifestem as relações entre
mentalidades e língua e entre variação e estandardização.
O conjunto de traços que definem a dinâmica antropocêntrica renascen-
tista traduz-se, entre outras manifestações, pela alteração do estatuto dos
vernáculos, cujo redimensionamento passa pela associação ao poder: assim,
em França, onde Francisco I, pelo edito de Villers-Cotterêts, de 1539, torna
obrigatória, nos textos jurídicos, a língua da província de Paris (Delumeau,
1983, I: 48); e em Espanha, com a política de unificação de que a gramática
de Nebrija dedicada à rainha «Doña Isabel», «Señora natural de España» cons-
titui um símbolo: como afirma o Autor no prólogo, «siempre la lengua fue
compañera del imperio»4; extravasando do âmbito românico e da esfera dire-
tamente política, na Alemanha, a ação de Lutero para tornar os textos bíblicos
acessíveis a todos os letrados passa pela utilização, e relativa unificação, dos
falares alemães (Delumeau, 1983, I: 48).
T O B G LRT LRI
linguagem 108 11 84 7 3 3
língua 253 130 36 16 25 46
‘órgão bucal’ [25] [22] [2] – [1] –
255
A observação das respetivas concordâncias revela, relativamente a língua,
apenas dois conteúdos, que foram acima assinalados, mas linguagem apre-
senta uma acentuada polissemia que é necessário ter em conta para interpre-
tar a amplitude do uso na época.
Linguagem designa ‘a faculdade humana de comunicação mediante sis-
tema de signos vocais’ (1) e também ‘o conjunto de atributos ou unidades
comuns à generalidade das línguas’ (2) e ainda ‘o conjunto ou tipo de mani-
festação verbal própria do teor ou da situação de comunicação ou de traços
individualizantes do locutor (3), (4):
(1) A lingoagem é figura do entendimento: & assi é verdade que a boca diz quanto
lhe manda o coração (OGR 4 2-4)
(2) E a esta formaçam [«letera»] chamã elles [«latinos» e «gregos»] primeiros elemen-
tos da linguágem (BGR 3R 6-7)
(3) E tirando [a] cada nome destes o seu Pronome: dizendo Ioam de Bárros escręvo
Grãmática pera Antonio, fica esta linguágem imperfeita. (BGR 15R 19-22)
(4) [Após os versos latino-portugueses 5] «F[ilho] – Parece que vay essa linguagem
hum pouco retorcida, e fóra do comũ uso que falámos? (BDL 54V 9-10)
256
A deriva tem como ponto de partida a indiscriminação dos conteúdos de
língua e de linguagem no sentido de ‘idioma’, processando-se a evolução
pela repartição semântica dos conteúdos. É esse ponto de partida que está
documentado nos passos seguintes, em que linguagem, como termo oposto
ao latim, designa especificamente um sistema de comunicação de base oral,
diversificado a partir da origem:
(7) Hum dos primeiros latῖis que me elle [o «męstre»] mandou fazer, foy este, Ó
fermósa Maria nóva ára com tua váca nóva E eu cuidava que em isto ser linguágem
não podia ser latim (BDL 54V 15-18)
Oliveira Barros
linguagem 11 84
nossa linguagem 2 30
lingua 130 36
nossa lingua 47 2
257
2.3. Como se situam os dois primeiros gramáticos relativamente ao tempo,
no plano da língua em ato?
Ter-se-á em conta que Barros é cerca de 11 anos mais velho que Oliveira e
que tem 44 anos quando é publicada a Gramática, enquanto Oliveira tem 29
anos quando publica a sua.
No plano do léxico, a resposta deverá ter em conta a quantificação da
variação relativamente a evoluções em curso atestadas em vocábulos consi-
derados representativos, como os que figuram no quadro seguinte: cá (< lat.
QUIA), conjunção conclusiva, que cairá em desuso, leixar/deixar e pera/para.
T O B G LRT LRI
leixar/deixar 40 12 18 3 2 5
leix- 18 – 18 – – –
deix- 22 12 – 3 2 5
cá/qua 54 1 46 0 5 2
ca/cá 49 1 46 – 1 1
qua 5 – – – 4 1
pera/para 225 55 108 12 28 22
pª. 18 18 – – – –
pera 128 8 107 9 1 a),b) 3c)
para 97 47 1 3 27 a) 19 c)
258
(1- 4-5) – constitui uma exceção aos hábitos do A. que fornece matéria
informativa não descurável sobre o trânsito que vai do manuscrito ori-
ginário ao produto saído da casa de imprensa;
duas outras ocorrências são particularmente esclarecedoras: pera
b)
encontra-se no capítulo intitulado «Reformação de algũas palavras que
a gente vulgar usa & screve mal» (69V 1-3), na coluna das «Erradas»,
«para» na das «Emendadas» (71R 21).
c) Na Origem[...], no cap. IX, «Dos vocabulos que tomamos dos Gregos»,
também estruturado em duas colunas, pera é já considerado um ple-
beísmo: «Para preposição, que significa acerca dos latinos .ad. porque
os vulgares dizem pera» (LRI 60 27).
T O B G LRT LRI
poer/por 140 35 78 5 19 3
inf.: 17
poer 11 1 a) 7 – 3 –
por 6 4 – 2 – –
ger.: 6
poendo 3 – 3 – – –
pondo 3 1 – 1 – 1
ind.: 4
poemos 3 – 3 – – –
pomos 1 – 1 b) – – –
fut.: 7
poerei 3 – 2 – 1 –
porei 1 – 1 – – –
poeremos 1 – 1 – – –
poremos 2 – 2 – – –
T O B G LRT LRI
todolos 62 – 55 – 5 2
259
verbo ponho pões faz o seu infinitivo em .or. dizendo pôr o qual todavia já fez
poer & ainda o assi ouvimos a alghũs velhos » (OGR 72 7-9); quanto a poemos/
pomos, o ocorrência pomos em Barros, assinalada no quadro por b), insere-
-se no capítulo consagrado às «Figuras» de retórica, e ilustra o fenómeno de
«Dieresis [que] quer dizer apartamento [como] quando dizemos, poemos, por
pomos.» (BGR 35R 3-5). Assim sendo, em Barros, o uso das variantes que serão
prevalecentes restringe-se às variantes do futuro porei (1 oc.) e poremos (2
oc.) em variação, no uso pessoal do A., com as formas em regressão, poerei
(2 ocorrências) e poeremos (1 ocorrência).Quanto a todolos, o lema agrupa as
formas do masculino e do feminino.
Respondendo à pergunta formulada no início deste subparágrafo, pode
afirmar-se globalmente que, relativamente aos usos vernaculares dos dois pri-
meiros gramáticos, ou seja, quando não está em causa a relatinização, Oliveira
é predominantemente moderno e Barros predominantemente antigo, o que se
encontra de acordo com a formulação adotada pelo Pai, cujo ponto de vista
dificilmente poderá ser diferente do de Barros, quando, no Diálogo em louvor
da nossa linguagem, afirma:
(8) A my muito me contentão os termos que se confórmam com o latim, dádo que
sejam antigos: ca destes nos devemos muito prezár, quãdo não acharmos serem tão
corrutos, que este labęo lhe faça perder sua autoridáde. Nã sómẽte os que achamos
per escrituras antigas, mas muitos que se usam antre Douro e Minho, conservador
da semente portuguesa: os quáes algũus indoutos desprezam, por nam saberem a
raiz donde nácẽ. (56V 15-23)
260
como sublinha E. Coseriu (2000), mas também filosofia da linguagem, pela
amplitude do debate sobre temas cruciais nessa área, o que pode ser ilustrado
pelo passo seguinte em que se condensa problemática essencial relativamente
ao tema em estudo:
(9) «a primeira & principal virtude da lingua é ser clara & que a possão todos
entender & pera ser bem entẽdida há de ser a mais acostumada antre os milhores
della & os milhores da lingua são os que mais lerão & virão & viverão continoando
mais antre primores sisudos & assentados & não amigos de muita mudãça.» (OGR
53 10-16).
(10) As dições que trazemos doutras linguas escrevelas emos co as nossas letras
que nellas soão como ditõgo. filosofo. gramatica: porque todo o mais é empedi-
mento aos que não sabem essas lingoas donde ellas vierão: se não quando ainda
forem tão novas antre nós que seja necessareo pronuncialas co a melodia de seu
nacimento: mas nós trabalhemos quanto poderemos de as amãsar & conformar co
a nossa. autor. rector. e outras com”estas não nas escreveremos cõ .c. ãtes de. t.
como os latinos fazẽ: porque a nossa lingua não cõsinte acabar as nossas syllabas
em .c. ou em outra alghũa letra muda: como .ac. ab. & ad. & mays poys nos taes
261
lugares soa antre nós . u. ou .i. mesturado em ditongo coa vogal que antes estava
assi o escrevamos. » (GR. 29 26 – 30 7).
(11) As dições gregas quando vem ter antre nós tã longe de sua terra: já lhes não
lembra a sua ortografia: & nós as fazemos conformar com a melodia das nossas
vozes: e com as nossas letras lhes podemos servir. (OGR 14 13-17)
(12) podemos usár dalgũus termos latinos que a orelha bęm receba porque ella
julga a linguágem e musica e ę censor dambas: e como os cõsintir hũ dia ficarám
perpetuamente. (BDL 56V 5-8)
T O B
melodia 11 11 -
música 8 6 2
[música] [5] [1] [4]
T O B G LRT LRI
contrairo 25 6 15 0 3 1
/contrario
contrairo 18 6 12 – – –
contrario 7 – 3 – 3 –
262
significação (T=33), significado (T=16), significar (T=54),
significativo (T=2)
T O B G LRT LRI
105 41 40 8 7 9
senif- 2 1 1 – – –
sinif- 71 40 31 – – –
signif- 32 – 8 8 7 9
263
determinam a seleção de um vocabulário culto importado do latim e que,
apresentando embora modificação dos traços fonológicos característicos da
evolução, não apresenta as fortes marcas de importação que caracterizam os
latinismos da segunda sincronia. Acresce que a pesquisa sistemática efetuada
indicia como não documentados antes do séc. XV 6 um muito elevado número
de latinismos; assim, seguindo a ordem do texto, entre outros: immortal,
(2 19), intento (2 22), ânimo (2 23), exercicio (2 26), prospere (3 2), cárrego
(3 4), resplandece (3 7), prólogo (3 12), presumo (3 13), notação (3 13), aqui-
rem (3 17), necessarias (3 20), particularizar (3 21), favorecerá (3 26).
Relativamente a Oliveira pode afirmar-se que as exceções aos princípios
preconizados são pontuais; um determinado número situa-se na esfera de
influência eclesiática, relacionada com o seu passado de frade dominicano;
assim rector (V. excerto 10), christão/s (6 30, 6 32, 7 6), egipto (5 23, 8 15) ou
drago ‘dragão’ (28 20).
Quanto a Barros, o carácter bipolar das suas conceções de ideal linguístico
– por um lado o princípio de integração dos termos importados ao latim na
«música» do português (Cf. quadro anterior) e por outro a valorização da lín-
gua por aproximação do latim – repercute-se numa prática não só fortemente
oscilante, como de extremos distanciados, de um lado, pelo pendor ancestral,
do outro pela heterogeneidade das relatinizações efetuadas.
O carácter insólito de determinadas modificações reside no facto de estas
afetarem a esfera de uso, o que as torna particularmente reveladoras do cri-
tério de valorização idiomática: P. Teyssier (1966: 186) destaca «la curieuse
forme minimo (qui rappelle le latin minimus), à côté de minino ou menino».
Acrescente-se que, das 18 ocorrências do vocábulo, sempre no plural, 2 têm a
forma meninos, 14 a forma mininos, com a inflexão vocálica característica do
A. e as duas restantes apresentam a forma minimos. A tendência a nobilitar
o português por aproximação com o latim deve ser enfatizada pelo facto de
as ocorrências se situarem, a primeira no paratexto da Gramática, princípio
absoluto da obra, a «introdução» propriamente dita, ainda que a designação
6 Cf. Paiva, 2002, vol. IV: cap. II, «Importações ao latim não documentadas antes do
séc. XV», 38-104.
264
falte, e a segunda no que é também a área introdutória da parte da Gramática
intitulada «Orthografia» (40R 1-2): «Em a cartinha passáda, dęmos árte pera os
minimos fácilmente aprenderẽ a ler», «nóssa tençám ę fazer algũ proveito aos
minimos que per esta árte aprenderem» (40R 8-9). De teor análogo é o uso
de causa por cousa, a que pode não ser alheio o contexto definitório: «Cha-
mamos nome Possessivo, aquelle que se nomea do possedor da causa, como
doutrina christaã, de Christo.» (7V 9-10).
No plano da estrutura fonológica do vocábulo, o sector porventura mais
imediatamente revelador é o da terminologia gramatical de base que regista
um número de ocorrências susceptível de dar apoio a juízos gerais. Final-
mente, o sector permite um confronto rápido com Oliveira e, embora de
forma não constante, com a segunda sincronia.
No quadro seguinte, os lemas, colocados entre « », representam o portu-
guês padrão contemporâneo; as particularidades gráficas não pertinentes no
âmbito da questão em análise foram reduzidas a um denominador comum.
T O B G LRT LRI
«adjectivo» 32 6 26 – – –
ajetivo – 6 26 – – –
adjectivo – – – – – –
«advérbio» 33 9 21 – 3 –
averbio – 9 20 – – –
adverbio – – 1 – – –
«substantivo» 33 7 25 – – 1
sustantivo – 7 25 – – –
substantivo – – – – – 1
«letra» 433 186 138 9 94 6
letra – 186 2 9 94 6
letera – – 136 – – –
«plural» 106 38 60 – 7 1
plural – 37 – – 4 1
plurar – – 59 – – –
plurais – 1 – – 3 –
plurales – – 1 – – –
265
cariz latino na segunda, quando os vocábulos constam da amostra ou, em
caso contrário, do português padrão contemporâneo. O testemunho é quase
monolítico, com uma excepção, em Barros, na enumeração das partes do
discurso: «Assy que podemos daquy entẽder, ser a nóssa linguágem cõpósta
destas nove pártes: Artigo [...], Nome, Pronome, Vęrbo, Advęrbio, Participio,
Cõjunçam, Preposiçam, Interjeçam» (BGR 2V 6-10).
Os dois últimos vocábulos contrastam com os anteriores pelo carácter
incomum de relatinizações privativas de Barros: relativamente à primeira, há
apenas 2 ocorrências de letra: «E assy temos esta letra .ç. que parece ser
inventada pera pronũciaçám Hebraica ou Mourisca» (3v 12 – 13); a segunda
figura como ilustração de um caso de «Bárbarismo» (34R 9) , «Sincopa, quęr
dizer cortamento, ca se córta do meo da diçã letera ou syllaba [...] como
quando dizemos, consirár, por considerár, viço, por vicio, letra por letera.»
(34 v 17-20).
Quanto à segunda, o contraste é máximo entre a forma constante no singu-
lar, plurar, documentada desde o séc. XV na Vita Christhi e a ocorrência única
plurales: «Elle, esse cõ seus pluráles chamã relativos» (15v 13-14). A projeção
da Grammatica de la lengua Castellana de Antonio de Nebrija, publicada em
1492, nas obras dos dois primeiros gramáticos não pode ser ignorada, mas
é notoriamente muito menos relevante em Oliveira do que em Barros, que o
segue de perto, desde o plano da obra e dos conteúdos até à forma de expres-
são. O confronto entre as obras revela contudo não haver projeção da forma
castelhana correspondente neste passo.
São de teor análogo a variação de escola (9 ocorrências) ~ eschola (7 ocor-
rências), < lat. SCHŎLA < gr.skholê, e, de simples, sing. e plur., (14 ocorrên-
cias), a par das 2 ocorrências de simplex (sing.) < lat. SIMPLEX, -ĬCIS.
Em matéria de relatinização, a língua de Barros contrasta frequentemente
com as dominantes da primeira sincronia (era já o caso de adverbio), pelo uso
de uma variante que constitui uma antecipação da estandardização patente
na segunda sincronia ou posteriormente, como acontece com os vocábulos
representados a seguir:
266
T O B G LRT LRI
54 14 11 7 15 7
rezão – 13 – – 2 a) –
razão – 1 11 7 15b) 7
13 3 5 1 3 1
estormento – 1 – – 1a) –
estromento – 1 – – – –
instrumento – 1 5 1 2b) 1
17 2 15 – – –
construição – 2 14 – – –
construção – – 1 – – –
a) «Reformação de algũas palavras que a gente vulgar usa & screve mal»,
coluna das «Erradas»
b) Idem: Coluna das «Emendadas».
(13) Que se póde desejar na lingua portuguesa que ela tenha? conformidade com
a latina? nestes versos feitos em louvor da nossa pátria, se pode ver quanta tem,
porque assi são portugueses que os entende o português e tam latinos que os não
estranhará quẽ souber a lingua latina.
7 O primeiro exemplo conhecido deste tipo de textos foi o discurso em prosa que o
embaixador dos Reis Católicos, Garcilaso de la Vega (pai do poeta) proferiu em 1498, perante
o papa Alexandre VI, e que devia comprovar, pela proximidade entre o castelhano e o latim,
a superioridade desta língua sobre o francês e o toscano, o que os respetivos embaixado-
res procurariam igualmente comprovar relativamente às suas línguas (Buceta, 1924: 88).
267
A voga contagia Gândavo que, no Diálogo em defensão da lingua portu-
guesa os reproduz, como argumento de Petrónio, português, contra Falêncio,
castelhano, comprovativo de que a língua portuguesa é superior à língua
castelhana.
Na Origem da Lingua Portuguesa é desenvolvido o mesmo esquema argu-
mentativo, agora enquadrado pela afirmação de ser o português, de entre as
línguas românicas, a que mais próxima é do latim – «por a muita semelhança
que a nossa lingoa tem com ella, que hé a maior que nenhũa lingoa tem com
outra» – o que é comprovado pela afirmação de «que em muitas palavras e
piriodos podemos fallar, que sejão juntamente latinos & portugueses, como
muitos curiosos já mostrarão em algũs poemas» (LRI 143 9-14 ) como o que é
transcrito a seguir, e de que reproduzimos também os três primeiros versos:
«Canto tuas palmas famosos canto triumphos,/Ursula diuinos martyr concede
fauores,/Subiectas sacra nimpha feros animosa tyrannos. » (LRI 144 10-12).
268
tratar 63 13 37 4 2 7
trautar XIV – – – – – –
traitar XV – – – – – –
tratar 61 13 37 4 – 7
tractar 2 – – – 2 –
269
curso. Relativamente aos compostos de ad-, o grupo consonântico está repre-
sentado, ainda que não de forma constante, em adjectivo, admirativo, admi-
tir, adverbial, advérbio, adversidade, advertir, mas a consoante foi eliminada
na totalidade dos lemas amoestar, aquirir, averbial. Quanto aos compostos
de sub-, a consoante terminal mantém-se, no total ou em parte das ocor-
rências, em súbdito, subjecto, subjunctivo, substantivo, subterfúgio, mas não
ocorre nunca em someter, sustância, sustancial e sotil.
4. Da variação à estandardização
8 Vejam-se principalmente W., Labov, 1972, cap. XXX e 2001, cap. VI.
9 Ver Paiva, 2004 e 2007.
10 Ver Paiva, 2004 e 2007.
270
A normatividade do discurso metalinguístico, mínima em Oliveira e
máxima em Leão, caracteriza-se não apenas por um acentuado crescendo,
como pela dimensão social que Leão lhe comunica ao elaborar as listas
anteriormente referidas (§ 1) em cujo pólo negativo figuram «a gente vulgar»
(LRT 69v e sgs) ou «os plebeios, ou idiotas» (LRI 115 e sgs) e no pólo posi-
tivo «os homẽs polidos». Os juízos de Leão poderiam servir de ilustração ao
que Labov considera o sinal de consumação dos processos de mudança: a
estratificação social da variação, e a associação estável de juízos valorativos
às variantes que, no pólo negativo passam a funcionar como “estereótipos”,
ou seja como objeto de estigmatização e no pólo positivo como marcas de
prestígio. Em Leão, a constituição de pares opostos por uma fronteira dese-
nhada por colunas gráficas encimadas por etiquetas de conteúdo performa-
tivo no tempo situado entre os dois contínuos temporais, ou seja, entre 1540
e 1574 e, para além dos fatores culturais referidos ou, em conexão com eles,
importará fazer a indagação ampla e sistemática dos fatores sócio-históricos
principalmente atuantes.
271
vezes mais conservador que Gândavo, como o atestam sobrevivências de
cá/qua, poer, todolos.
A probabilidade de que, então como hoje, os usos individuais apresentem
marcas inerentes a meios sociais originários ou de adoção é suficientemente
elevada para que a hipótese seja trabalhada.
Relativamente a Oliveira, deverão ser ampliadas as observações que ele
próprio faz à sua origem, numa «sextilha em hexâmetros latinos» (Gaspar,
2009: 33) de cuja tradução reproduzo os dois primeiros versos: «Aveiro é a
localidade onde me geraram os pais./Da classe equestre, condição modesta e
diminutos haveres». Ele próprio se declara, no prólogo da Gramática, «hum
homẽ baixo» (GR. 2 22). A sua vida é minuciosamente conhecida até 1547-
1551, data do processo que lhe é movido pela Inquisição, publicado por H.
Lopes de Mendonça (1898).
O contraste é grande com João de Barros, oriundo da «nobreza funcionária
e de corte» e tendo vivido ele próprio na corte, segundo a sua própria expres-
são, «desde a idade do peão», como moço de guarda-roupa do futuro rei D.
João III; desde 1525 foi tesoureiro da Casa da Mina e, a partir de 1533, feitor
da Casa da Índia (Coelho, 1992: 19, 28, 40).
Quanto à segunda sincronia, muito provavelmente são os usos de Gân-
davo que, excetuando traços relacionados com a sua origem bracarense, têm
carácter mais geral; relativamente a Leão, haverá que indagar em que medida
a sua situação de cristão novo afeta o seu desempenho linguístico, em que se
projeta também eventualmente a sua carreira jurídica.
6. Concluindo
272
conquista: se é certo que não há palavras para conceitos inexistentes e se tudo
pode ser expresso ao nível da frase ou do discurso, a conquista para o ver-
náculo da aptidão a exprimir um muito alargado número de conceitos fez-se
mediante a aquisição de instrumentos monoverbais que passam a pertencer à
consciência coletiva de que a língua é o testemunho histórico.
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274
ISABEL ALMEIDA SANTOS
FLUC/CELGA-ILTEC
[email protected]
ORCID: 0000-0002-6276-4239
C o d i f i c at i o n a n d c o n s c i o u s i n t e rv e n t i o n o f
m e n ov e r l a n g uag e : a m at t e r o f au t h o r i t y ?
Abstract: Since the first metalinguistic studies, natural languages have been regarded
as entities that combine sistematicity and variation; their identitary, heritage and symbolic
value are also repeatedly noted. It has been obvious since then that usage of a historical
language overrides its structural dimension; in fact, the interactional dynamics of languages
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_8
leads to value judgements, attitudes and beliefs. A timeless complaint tradition and the
development of variable forms of conscious intervention over language (language manage-
ment) are therefore understandable. Given the authority typically exhibited by their men-
tors, codification projects are particularly relevant in this context; indeed, their impact on
language dignification, unification and preservation is considerable.
Considering these assumptions, metalinguistic texts will be analysed in this work. In
selected grammars and orthographic studies (written throughout the sixteenth century and
the beginning of the seventeenth century), the Portuguese language is innovatively taken
not only as instrument but also as the descriptive object. This process brings with it a
legitimating discourse which includes the definition of authority. In this context, authority
supports not only vernacular codification process, but also descriptive options of the gram-
marian, who becomes a language manager.
Keywords: grammar codification, linguistic standardization, authority, language mana-
gement
1. Introdução
276
a sua salvaguarda está na base de uma também antiquíssima complaint tra-
dition (Milroy, 2001: 538), «an evergreen phenomenon, with the substance of
complaints remaninig remarkably similar across time and setting» (Edwards,
2014: 418) e motiva práticas que podemos globalmente descrever como sendo
de intervenção consciente sobre a língua.
2. Questões preliminares
2 Nas palavras de Jernudd e Nekvapil (2012: 33), trata-se de uma teoria que «delimits its
relationships to gramatical theory, and considerably extends its scope to include all beha-
viours toward language. While formulated as a discipline of linguistics, it opens towards
an interdisciplinar account of the societal context».
277
use of grammatical competence to generate utterances» ( Jernudd/Nekvapil,
2012: 33).
A definição deste objetivo leva a distinguir, no âmbito do quadro teórico
em causa, formas simples (simple management ou discourse-based manage-
ment ou on-line management) e formas organizadas (organized management
ou directed management ou off-line management) de intervenção sobre a
língua. No primeiro caso, a regulação ocorre no domínio do discurso, da
produção individual de enunciados; trata-se de «management of problems as
they appear in individual communication acts» (Neustupný/Nekvapil, 2003:
181). No segundo caso, essas atividades desenvolvem-se de forma organizada,
envolvendo diferentes tipos de instituições, e apresentam como característi-
cas principais a participação de mais de uma pessoa, a produção de discurso
sobre a regulação e a intervenção de coordenadas ideológicas. São exemplos
paradigmáticos deste segundo tipo de atividade os projetos de reformas lin-
guísticas e a introdução de línguas num sistema de ensino (Neustupný/Nekva-
pil, 2003: 185; Jernudd/Nekvapil, 2012: 33).
Com a expressão language management referimos então aqui, seguindo
Spolsky (2007: 4), «the explicit and observable effort by someone or some
group that has or claims to have authority over the participants in the domain3
to modify their practices or beliefs»4.
Esforços deste tipo assumem formas diversas e a atitude orientadora ou
prescritiva que, em qualquer dos casos, lhes subjaz, alinha-se num conti-
nuum, «from dictatorial fiat to broadly accepted standardization» (Edwards,
2014: 418), e envolve agentes com distinto poder de intervenção. Em função
do seu perfil, também estes se posicionam, ainda segundo Edwards (2014:
418), ao longo de um continuum, «anchored at one end by uninstructed indi-
278
vidual desires for intervention or change and, at the other, by formal agencies
and scholarly concerns».
Se, numa das extremidades deste continuum, podemos posicionar o
falante comum, que age motivado por um conjunto de crenças sobre a língua
e sobre as suas variedades e variantes, na outra extremidade posicionam-se
agentes (pessoal, institucional ou academicamente) autorizados. Entre os pro-
dutos/ferramentas da ação destes últimos encontramos, precisamente, proje-
tos de codificação gramatical, muitas vezes instrumentos ao serviço da política
e planificação linguísticas. Tradicionalmente orientados para a promoção da
invariância e uniformidade na estrutura linguística, os textos codificatórios
ocupam, então, um espaço importante nos processos de organized language
management concebidos para a estandardização e definição de uma dada
norma ou para a afirmação simbólica e institucional de um idioma.
5 Na verdade, trata-se de uma edição de autor, já que, de acordo com a notícia de New-
meyer (1986: 43), nenhum editor aceitou publicar o texto nessa época. Só 10 anos depois,
a Doubleday aceitou torná-lo público, sob o novo título de Linguistics and your Language.
279
A valorização da dimensão social e interacional dos idiomas que, entre-
tanto, ocorre no âmbito dos estudos sobre a linguagem torna, todavia, claro
que os julgamentos de valor sobre a língua fazem parte integrante do seu
uso, sendo os sistemas de crenças e atitudes, bem como o seu impacto sobre
os usos, igualmente passíveis de análise objetiva. É assim que, por exemplo,
em 1971, Fishman (no trabalho The Sociology of Language) fala de «behaviour
towards language» e, em 1972 (na obra The Ecology of Language), Haugen
lança as bases de uma ecologia da linguagem, colocando o foco na coexistên-
cia e interação de línguas, comunidades e culturas (Garner, 2014: 112)6.
Por outro lado, também a importância crescente da planificação linguística,
acompanhada da premência de, na modernidade, regulamentar e autorizar
esse trabalho associando-o à linguística académica, obriga a equacionar de
modo diferente o conceito de prescritivismo. A intervenção dos planificadores
tem de refletir os resultados da reflexão sobre a dimensão social da linguagem
e legitima-se evocando o direito de indivíduos e povos a formas socialmente
reconhecidas de comunicação verbal. A codificação de línguas minoritárias é,
simultaneamente, causa e efeito dessa alteração de perspetivas.
Compreende-se, assim, o título que Fishman apresenta, em 2006, DO NOT
Leave your Language Alone e o que o autor escreve no prefácio:
280
In earlier and more innocent times, it was widely believed that language, just as
any other gift from God, could neither be “planned” nor “improved”. (…) Today
(…) [languages] are increasingly viewed as scarce national resources (not unlike
flora and fauna, agricultural or environmental resources, and all other such impro-
vable or alterable resources whose quality can be influenced by planned human
intervention) (Fishman, 2006: ix)7.
s línguas não são entidades monolíticas; ou seja, não são faladas do mesmo modo
A
por todos os seus utilizadores. Pelo contrário, são entidades altamente diversifica-
das (…). Por motivos sociológicos, metodológicos e práticos, esta Gramática tem
principalmente como objeto de estudo o português-padrão (Raposo et al., 2013:
XXV).
7 «An ecological approach sees language as an integral part of the complex of human
behaviour, which comprises patterns that are learned through interaction within a com-
munity of users» (Garner, 2014: 112).
281
A opção por um determinado conjunto de variantes é defensável em vários
planos: tem frequentemente razões históricas, promove a unificação, favorece
a intercompreensão e é um requisito em áreas como a do ensino de lín-
gua ou a do tratamento computacional da língua (Peres/Móia, 1995: 36-40).
É precisamente por esse processo de discriminação de formas concorrentes
que os produtos codificatórios podem ser perspetivados como instrumentos
de language management.
282
3.2. O início da codificação do português e a legitimação da descrição
283
(i) a lingua e a unidade della é mui certo apellido do reino, do senhor e da irman-
dade dos vassalos (Oliveira, 1536: 44);
(ii) sendo a nossa língua corrupta da Latina, e fazendo nós desta corrupção nova
língua própria, e peculiar nossa (Leão, 1576: 51[v.]9).
(i) E assi como a nossa lingua faz tudo quanto essoutras [o latim e o grego] com
mais brevidade e facilidade e clareza, assi também é mais de louvar sua perfeição
(Oliveira, 1536: 71);
(ii) ao idioma português cabe uma prerrogativa «sobre todalas linguágẽes presen-
tes: magestáde pera cousas gráues, e hũa eficácia baroil que representa grandes
feitos. (…) A linguágem Portuguesa, que tenha esta grauidáde, nã pęrde a força
pera declarár, mouer, deleitár, e exortár a párte â que se enclina: seia em quál quęr
gęnero de escritura» (Barros, 1540 – Dialogo em louvor10: 54[v.]-55[v.]);
(iii) a língua portuguesa «para tudo tem graça e energia, e he capaz de nella se
escreuerem todalas materias dignissimamente, assi em prosa como ẽ verso» (Leão,
1606: 132).
9 Com [v.] indica-se o verso da página cuja numeração se apresenta. Em todos os casos
em que se trata de uma secção não numerada no texto, indica-se, o respetivo título (por
vezes, e pela sua extensão, apresentado sob uma forma abreviada).
10 Nas referências à obra de Barros e nas respetivas transcrições, indicar-se-á não só
o ano de publicação da edição original, mas, igualmente, o texto em causa (Grammatica
ou Dialogo em louvor). O número de página que então virá indicada corresponde ao da
edição original de cada texto.
284
Assim, a elaboração do texto codificatório sobre o vulgar representa, por si
só, um ato de language management, na medida em que reflete, mas também
promove, uma mudança de paradigma ideológico (de crenças) e de práticas.
O nosso primeiro gramático, Fernão de Oliveira, é, então, um language
manager e mostra perfeita consciência do interesse da Arte para o aperfei-
çoamento ou elaboração do idioma, ao mesmo tempo que lida com a ideia,
estruturante, de que são os homens (seus utilizadores) que fazem a língua
(Oliveira, 1536: 7). A importância que Oliveira atribui ao papel interventivo
do falante fica bem patente na afirmação de que «as linguas grega e latina
primeiro foram grosseiras; e os homens as poseram na perfeição que agora
têm» (Oliveira, 1536: 7-8).
No contexto epocal em que este trabalho se desenvolve, a autoridade dos
agentes codificadores começa por emanar do caráter de missão com que se
apresenta a gramatização do vulgar.
Assim, Fernão de Oliveira afirma dever essa tarefa à qualidade da língua
portuguesa («nossa antigua e nobre lingua» [Oliveira, 1536: 8]) e à nobreza
dos homens que a falam (o português é a «lingua de tão nobre gente e terra
como é Portugal» [Oliveira, 1536: 2]). De modo mais enfático ainda, Nunes de
Leão enaltece a tarefa de dar a uma língua, pela primeira vez, a forma de Arte,
escrevendo: «reduzir a regras geeraes, e poer em arte hũa lingoa, que atequi
não teue arte, he cousa ardua, e grauissima, e se se bẽ faz, heroica» (Leão,
1576: Ao muito illustre […]).
O reconhecimento do valor da língua na construção do Império e no traba-
lho, glorioso, de cristianização colabora igualmente no desenho desta ideolo-
gia de missão. Deste modo, e tal como vemos em Nebrija, Oliveira argumenta
que o estudo da língua vulgar, o seu cultivo e unificação é garante da perpe-
tuidade do reino, dos feitos dos seus homens e um contributo para a unifica-
ção harmónica do Império:
apuremos tanto a nossa [língua] com boas doutrinas que a possamos ensinar a
muitas outras gentes. E sempre seremos dellas louvados e amados, porque a seme-
lhança é causa do amor e mais em as linguas (Oliveira, 1536: 10).
285
As ármas e padrões portugueses póstos em Africa, e em Asia, e em tantas mil ilhas
(…), materiáes sam, e podeâs o tempo gastar: peró nã gastará doutrina, costumes,
linguágem, que os portugueses nestas tęrras leixárem» (Barros, 1540 – Dialogo em
louvor: 58).
Estes [os nomes que fazem o plural em -ãos] guardam sua antiguidade em tudo,
e aquelloutros só no plural, cuja mudança assi como doutras muitas cousas não
estranhemos, porque também o falar tem seu movimento, diz Marco Varrão, e
muda-se quando e como quer o costume (Oliveira, 1536: 68).
em cada lingua notemos o proprio do costume della [como admoesta Quintiliano];
ca esta arte de grammatica em todas as suas partes (…) é resguardo e anotação
desse costume e uso, tomada despois que os homens souberam falar e não lei
posta que os tire da boa liberdade (Oliveira, 1536: 59).
286
gramático a tolerar variantes sobre as quais tem reservas e a aceitar formas
que se subtraem ao princípio da razão e à aplicação das regras que enuncia:
(i) Item se ha de aduertir acerca d’estes articulos outra cousa, a que não se pode
dar razão, senão pedilo assi a orelha e costume, que a algũus nomes de prouin-
cias ajuntamos articulos, e a outros não (Leão, 1576: 65);
(iii) quero dizer que também só de costume, sem mais outra necessidade se acre-
centam alghũas outras letras em alghũas partes (Oliveira, 1536: 21-22);
(iv) E pelo costume (que nisto sempre hemos de seguir) ficarão fora das dictas
regras, taballiães, e scriuães que, por a dicta analogia, houuerão de fazer, taballiões,
e scriuãos (Leão, 1576: 30[v.])11.
287
função socialmente relevante da obra codificatória que, nesta outra perspe-
tiva, confere autoridade ao language manager.
Assim, no seu texto, Oliveira informa que pretende registar (notar) os usos
da língua portuguesa («o proprio do costume della» [Oliveira, 1536: 59]), mas
acrescenta que essa notação deverá servir para resguardar e ensinar, compe-
tindo à Gramática aperfeiçoar o idioma com boas doutrinas:
(i) apliquemos nosso trabalho à nossa lingua e gente (…) apuremos tanto a nossa
com boas doutrinas que a possamos ensinar a muitas outras gentes (Oliveira, 1536:
10);
(ii) E assi é verdade que a arte nos pode ensinar a falar milhor, ainda que não de
novo: ensina aos que não sabiam e aos que sabiam ajuda (Oliveira, 1536: 59).
E porque nesta parte os mais dos Portugueses saõ muy estragados e viciosos,
e com innumeraueis erros que cometem, corrompem a verdadeira pronunciação
desta nossa linguagem Portuguesa, quis fazer estas regras da orthographia (…)
pera com ellas aproueitar a toda pessoa que as quiser seguir (Gândavo, 1574 –
Regras que ensinam: 5-6)12.
288
«perque de hoje em diante se poderá fallar mais polido, e screuer mais concer-
tado» (Leão, 1606: Ao invictissimo e catholico […]). A expressão policia, para
se referir ao controlo e aprimoramento da língua, é frequentemente usada por
este ortógrafo, para quem a descrição gramatical assume um caráter nitida-
mente regulamentador.
Os limites deste corpus de referência definem-se fundamentalmente,
e desde o princípio da codificação do português, por critérios de natureza
sociocultural, surgindo a fala como modo de distinção não só dos homens
relativamente às outras espécies, mas dos homens entre si13:
ũa das mais apparẽtes vantagẽes, que os homẽes fazem aos brutos animaes, he a
H
falla, e as palauras com que hũus a outros exprimem seus conceptos. E assi como
os homẽes nisso excedem aos brutos, tanto entre si hũus dos outros se auantajão,
quanto na policia, e arte das palauras mostrão ser superiores. Estas são o toque,
em que se vee o valor das pessoas, e a differença, que ha do nobre ao plebeio,
do auisado ao indiscreto, e do vicioso ao bem instituido (Leão, 1576: Ao muito
illustre […]).
13 Esta é uma ideia que ganha destaque no contexto do paradigma ideológico dos
finais do século XVIII, como destaca Haßler (2002: 564) relativamente a textos de natureza
metalinguística então produzidos em França: «Sin mencionar el nombre de Descartes se
acepta la idea cartesiana de que el habla constituye al ser humano, aportando a esta idea
una dimensión original e importante: el arte del habla y su ejercicio asegura la perfecti-
bilidad del hombre».
14 Não obstante o reconhecimento do valor determinante do uso, um princípio que
poderemos interpretar como de patriotismo linguístico (falar mais português) leva o gramá-
tico a contestar determinados hábitos, como se pode observar no comentário que Oliveira
faz a propósito do emprego do artigo castelhano na expressão el-rei: «[não] lhe haviamos
de chamar senão o rei, posto que alghuns doces d’orelhas estranharão este meu parecer, se
não quiserem bem olhar quanto nelle vai. E contudo isto abasta para ser a minha milhor
musica que a destes, porque o nosso rei e senhor, pois tem terra e mando, tenha também
nome proprio e destinto por si; e a sua gente tenha fala ou linguagem não mal mesturada
mas bem apartada» (Oliveira, 1536: 63).
289
«não se faça lei do costume dos piores, porque as falas dos que não sabem
farão escarneo de si mesmo e de quem as faz e usa» (Oliveira, 1536: 51).
O que Oliveira aqui nos oferece é a manifestação da tensão, sempre atual,
mas também antiquíssima, e da qual Quintiliano (séc I-II), modelo de Oliveira,
fornece um exemplo precoce, entre descritivismo e prescritivismo no quadro
da reflexão sobre a linguagem: estabelece-se uma correlação entre a aceitabi-
lidade ou a correção e o uso (Oliveira fala dos usos mais acostumados), mas
clarifica-se que o uso em causa é o exibido por uma elite educada, que assim
passa a funcionar como modelo (Edwards, 2014: 422).
De modo semelhante, Barros fala do uso exemplar dos barões doutos, a
quem atribui a autoridade (a gramática é «hũ módo çęrto e iusto de falar, e
escreuer, colheito do uso, e autoridáde dos barões doutos» [Barros, 1540 –
Grammatica: 2]) e Leão (1576: 54-54[v.]) escreve que os doutos «são os que
fazem o costume», ao mesmo tempo que destaca o poder legislador e orien-
tador da corte:
eraõ antigamente quasi hũa mesma, nas palauras, e nos diphtongos, e pronun-
ciaçaõ que as outras partes de Hespanha naõ tem. Da qual lingoa Gallega a Por-
tuguesa se auentajou tanto, quãto na copia e na elegãcia della vemos. O que se
causou por em Portugal hauer Reis, e corte que he a officina onde os vocabulos se
forjaõ, e pulem, e donde manão pera os outros homẽs, o que nunqua honue em
Galliza (Leão, 1606: 32).
290
em causa o impacto das suas iniciativas legislativas e das suas práticas, no que
à língua diz respeito. Considerem-se, a este propósito, os seguintes excertos:
(i) se com a necessidade dos tempos alghũa hora [a nossa terra] se não acupou
tanto em letras por se defender de seus imigos, logo como teve paz em tempo do
mui nobre rei dom Dinis tornou aos estudos para que cria os milhores juízos que
todas as nossas terras nossas vezinhas (Oliveira, 1536: 9);
(ii) Estes (…) estudos neste tempo deste nosso glorioso principe muito mais favo-
recidos que em nenhum outro tempo nem terra avivemos nós com gloria de nossos
tempos (…) apliquemos nosso trabalho à nossa lingua e gente e ficara com maior
eternidade a memoria delle (Oliveira, 1536: 9-10);
(iii) Era a lingoa Portuguesa na saida daquelle captiueiro dos Mouros mui rude, e
mui curta, e falta de palauras, e cousas (…). Polo que sua meninice foi (…) ate o
del Rei dom Dinis de Portugal que teue algũa policia, (…), e compos muitas cousas
em metro aa imitaçaõ dos Poetas Proençaes, como se melhorou a lingoa Caste-
lhana, em tẽpo del Rei dom Afonso o sabio seu auo (…). E assi se foraõ ornando
ambas as lingoas, Portuguesa e Castelhana ate a policia em q̃ agora estão (Leão,
1606: 32-33).
291
iv) Gândavo dedica o seu trabalho a D. Sebastião, evocando, para tal, duas
razões: a natureza da obra (elaborada para a defesa do idioma vulgar)
e a qualidade de que a língua se revestirá por via do uso que dela fará
o monarca: este, que a honra e engrandece muito «pella professar e ser
senhor da mesma nação» (Gândavo, 1574 – Regras que ensinam: 4)
Assi q̃ ainda q̃ da vulgar gẽte vejamos, q̃ sta recebido, screueremse d’outra maneira,
como não deuem, attreuamonos a os screuver, como deuem sem medo, e por mem-
posteiro, digamos mamposteiro, por sorodio, serodio, e por bernio, hybernio, q̃ o
vso tudo vem abrãdar, e fazer corrente, e natural. E reuendiquemos, e restituamos
a seu lugar os vocabulos, e façamos costume do q̃ consiste ẽ razão, e analogia. Porq̃
em nenhũa cousa pode mais o costume, que na orthographia, e nas palauras, q̃ se
mudão, e varião como as moedas (Leão, 1576: 62-62[v.]).
Que tenhamos grande tẽto nos vocabulos, em q̃ entra .c.s. e .z. Porẽ a mais da
gente, e não soo a vulgar, se engana na scriptura, confundindo estas letras, e
poendo hũas por outras, sem distinção, sendo ellas differentes, e distantes na pro-
nunciação, e natureza (Leão, 1576: 58).
292
fazer muita conta do costume de seu falar» (Oliveira, 1536: 47). Assim, a rea-
lização ouvida a mestre Baltasar esclarece a estrutura morfossintática (como
vem a saber) do que soa, comummente como convém a saber e serve para
corroborar o que Oliveira dissera acerca de determinadas formas sincopadas
ou resultantes de assimilação (Santos, 2006: 404).
No entanto, noutros momentos, Oliveira não se coíbe de exprimir opinião
diferente daqueles a quem reconhece erudição e saber, não aceitando que
a autoridade destes se sobreponha à do uso comum e ao seu próprio juízo.
Assim,
293
do idioma vulgar. A defesa da língua integra, a partir desse momento, e na
expressão de Fonseca (2000: 21-23), a sua legitimidade literária, transferindo-
-se esta, igualmente, para o produto codificatório, que anota e resguarda o
idioma ferramenta de construção do património literário e cultural tomado
como modelo.
A legitimação do texto gramatical constrói-se, por outro lado, por via da
sua importância para mais uma mudança de paradigma; referimo-nos à valo-
rização do idioma nacional no interior do sistema educativo e à questionação
da primazia do latim no primeiro contacto com as letras. O estudo formal
da língua materna e o seu cultivo apresenta-se, neste contexto, como devi-
damente autorizado pelo procedimento dos clássicos e tem uma motivação
filosófica: «é pouco saber escoldrinhar as cousas alheas não nos entendendo
a nós mesmos», escreve Oliveira (1536: 12), citando Plínio (Santos, 2006: 366).
Valoriza-se, para além disso, a ideia de que, face às semelhanças estruturais
(de preceitos) entre os dois idiomas, a aprendizagem do latim se tornará mais
simples quando precedida da aprendizagem, por Arte, da língua materna.
Transcrevemos o excerto da Dedicatória ao príncipe D. Filipe onde o gramá-
tico expõe o seu ponto de vista:
os mininos destes reinos, por lhe ser mádre e nam madrásta, mádre e nam ama,
uóssa e nam alhea: com tanto amor receberám os preceitos della, que quãdo forem
aos da grãmática latina e grega, ná lhe serám trabalhósos os que cada hũa déstas
tem, por a conformidáde que antrellas á. Como se póde uer nestes preceitos da gra-
mática da uóssa lingua portuguesa (Barros, 1540 – Grammatica: Ao muito alto […]).
294
língua materna (ao serviço da qual se coloca a codificação do idioma) é um
facilitador da aprendizagem do latim. Afirma, aliás, que a sua obra «he Portu-
gueza no nome, nas palavras, e nas regras; porèm no intento, e effeyto, para
que se compoz, he Latina» (Argote, 1725: Prologo), sendo o seu intuito «ensi-
nar as regras da lingua Portugueza para facilitar aos meninos a percepçaõ, e
o uso da Grammatica Latina» (Argote, 1725: Introducçam […]). Por outro lado,
ainda na segunda metade do séc. XVIII, Lobato prossegue a defesa do ensino
da língua materna, assim justificando igualmente a necessidade de codificar a
língua portuguesa. Escreve este autor (Lobato, 1802: VII):
(i) O remedio que eu a isto posso dar é este (Oliveira, 1536: 13);
(ii) a interpretação que já demos deste nome liquido é milhor (Oliveira, 1536: 21);
(iii) Ainda que nesta nossa linguagem pela corrupção dos vocábulos, vsão muito
poucas vezes, ou quasi nunqua de c, ante t: mas quando o vocabulo o tem de sua
295
origem, e assi inteiramente foy vsurpado do latim pera nosso vso, não sera des-
necessario, nem inconueniente vsallo (como algũs querem dizer) antes vsandose
(como digo) nos taes vocabulos, sera muita perfeição (Gândavo, 1574 – Regras que
ensinam: 22-23);
(iv) E ainda que destas duas maneiras se vse, e a pronunciação toda seja hũa, toda-
via como eu digo sera melhor vsado, pois estas são as letras de sua natural origem
com que se deuem escreuer (Gândavo, 1574 – Regras que ensinam: 30)15.
4. Conclusão
296
a figura do codificador ganha uma considerável centralidade: o gramático
apresenta-se ao serviço de uma causa e a sua autoridade decorre fundamen-
talmente da missão que assume e da qualidade simbólica do corpus (do uso)
que elege. Embora, em determinados casos, se reconheça o prestígio cultural
e linguístico de alguns, o gramático não deixa de exercer o seu papel de
mediador, contrapondo-lhes opiniões e usos socialmente validados.
Em qualquer dos casos, ao longo do século XVI, o language manager
assume duas funções essenciais: promover a elaboração da língua, dando
conta dos seus recursos e estimulando atitudes positivas, e orientar usos,
corrigindo vícios.
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299
(Página deixada propositadamente em branco)
SECÇÃO III
(Página deixada propositadamente em branco)
MARILZA DE OLIVEIRA
Universidade de São Paulo
[email protected]
ORCID: 0000-0003-3279-3423
M u d a n ç a , e s ta n d a r d i z a ç ã o e o
significado social da ênclise pronominal
no Português do Brasil
C h a n g e , s ta n d a r d i z at i o n a n d s o c i a l
meaning of pronominal enclisis
in Brazilian Portuguese
Resumo: Nos últimos anos surgiu um grande número de trabalhos sobre a colocação
pronominal no Português Brasileiro dentro da abordagem da sociolinguística. Alguns explo-
raram o uso vernacular (a próclise); outros focaram o padrão linguístico (ênclise), e argu-
mentaram que as elites brasileiras adotaram a gramática do Português Europeu (Pagotto,
1998). Este artigo pretende defender que essa interpretação se assenta mais como efeito
que as gramáticas normativas produzem nos falantes do que como realidade. Comparando
os usos de escritores portugueses e brasileiros, e os usos destes com os do grupo político
mostramos a construção de uma orientação de mundo compartilhada por seus integrantes,
uma comunidade de prática. Desenvolvendo a ideia de que a prática linguística produz e
reproduz significados sociais, propomos que as elites oitocentistas usavam diferentes variá-
veis – usos locais – para alcançar uma identidade de grupo. Esta pesquisa explora a colo-
cação pronominal em discursos parlamentares e mostra que o uso da ênclise em sentenças
infinitivas preposicionadas carrega em nível local um significado social. Argumentamos que
a ênclise é um índice social de um modo distintivo de falar pautado nas relações entre os
grupos estabelecidos e outsiders (Elias, 2000).
Palavras-chave: colocação pronominal, variação, discurso parlamentar
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_9
around them, a community of practice. Drawing on the idea that linguistic practice produ-
ces and reproduces social meaning, we propose that the upper classes in the eighteenth
century used different variables – local ones – to achieve a group identity. This research
explores clitic placement in parliamentary discourse and shows that the use of enclisis in
infinitive sentences preceded by a preposition carries a social meaning on a local level. We
argue that the enclisis is a social index of a distinctive way of speaking that is based on the
relationships between established group and outsiders (Elias, 2000).
Keywords: clitic placement, variation, parliamentary discourse
1. Introdução
De seção para seção, a guerra era terrível. A revisão dizia que a redação era analfa-
beta; a tipografia acusava ambas de incompetentes; e até a impressão, que não lia
nem via originais, tinha uma opinião desfavorável sobre todas as três.
A redação não perdoava a menor falha da revisão. (Barreto, 2010:199)
304
vernáculo brasileiro: «Qual Barros, qual Vieira! _ Isso é brasileiro _ coisa muito
diversa!» (Barreto, 2010: 208)
A opção pelo vernáculo brasileiro forneceu artilharia para o Jornal do
Comércio que denunciou o concorrente como inimigo declarado da colônia
portuguesa assentada na capital brasileira de então, o Rio de Janeiro. Ale-
gava que O Globo rejeitava redatores portugueses, fornecendo como prova da
denúncia o material linguístico local refletido nos textos.
Essa acusação que caiu como uma bomba, afinal, a colônia portuguesa
dominava o comércio mais alto na Capital e, por consequência, era o maior
cliente em anúncios publicados na imprensa, alterou os planos do diretor
que encomendou a contratação de um redator diretamente de uma livraria
em Lisboa1: «Vocês sabem, sem português, nada aqui vai adiante. Os patrí-
cios exigem, é justo: eles são talvez trezentos mil, pagam rios de dinheiro em
anúncios_ É justo!» (Barreto, 2010: 213)
A pressão da colônia portuguesa, sem dúvida, impedia o alçamento do
vernáculo brasileiro como variante modelar. Se o Brasil acolhia levas e levas
de população portuguesa analfabeta, também abria suas portas a um corpo
altamente letrado de republicanos que escapando às perseguições monarquis-
tas2 encontravam asilo empregatício na imprensa brasileira, formando uma
bancada defensora – ainda que tacitamente – do Português Europeu.
A discussão sobre o padrão linguístico a ser usado pela imprensa sinaliza
o reconhecimento já naquele período de diferenças entre as variedades de
Português Europeu (PE) e Brasileiro (PB), as quais foram confirmadas pelas
pesquisas linguísticas que apontam o final do século XIX como marco da
normatização linguística (Pagotto, 1993, 1998, entre outros) e da formação de
uma variedade linguística brasileira (Tarallo, 1983) que passaria a modelar a
norma literária brasileira (Maia, 2017).
Os estudos que enfocam o vernáculo e têm por temática a colocação pro-
nominal identificam a singularização da variedade brasileira na escolha da
próclise generalizada em oposição à preferência pelo uso enclítico da varie-
1 O escritor diz que só anos após o evento seria mais fácil contratar o português letrado
no Brasil.
2 Com a mudança de regime, os monarquistas perseguidos passaram a aportar no Brasil.
305
dade lusitana que licencia a próclise em apenas alguns contextos linguísti-
cos (Cyrino, 1993, entre outros), além de vários outros fenômenos sintáticos
(Kato, 1993).
No que concerne à normatização linguística da modalidade escrita, os
trabalhos estão fundamentalmente voltados para a colocação pronominal
(Pagotto, 1993, 1998; Schei, 2000; Pagotto/Duarte, 2005; Oliveira, 2011, 2013;
Silva, 2012). Esses estudos têm mostrado a preferência, não pela próclise ver-
nacular, mas pela ênclise.
Um importante referencial para a compreensão do quadro linguístico no
Brasil oitocentista é a comparação da gramática dos textos constitucionais do
Império (1824) e da República (1891). Pagotto (1998) interpretou a padro-
nização linguística como um processo contrário à individuação brasileira:
segundo o autor, a primeira Constituição traz sedimentos linguísticos mais
próximos ao vernáculo brasileiro, como é o caso da próclise, da relativa cor-
tadora, do locativo “aonde” e do quantificador “todo o”; já o texto republicano
adota a ênclise, a relativa padrão, o locativo “onde” e o quantificador “todo”.
Assumindo que a ênclise seja um traço de colocação pronominal notada-
mente lusitano, o autor defende a ideia de que as elites brasileiras em finais
do século XIX em seu projeto de nação teriam adotado o Português Europeu
(PE) como modelo linguístico, dando às costas ao vernáculo como forma de
se afastarem dos demais segmentos da população. Teria havido, assim, uma
escolha deliberada da colocação pronominal enclítica.
Mesmo sendo reconhecida pela originalidade a tese de que a colocação
pronominal refrata as desigualdades sociais, a leitura de que as elites republi-
canas teriam aderido ao PE é objeto de controvérsia. Há sim, como bem lem-
bra Pagotto, o aprofundamento do abismo que separa o vernáculo do padrão
culto. Há também uma diferença entre os dois textos constitucionais brasilei-
ros que deixam vazar o abandono da próclise em favor da ênclise. Entretanto,
não se pode extrair dessas rupturas a conclusão de que a identidade impos-
tada pelas elites brasileiras tivesse operado com contornos lusitanos.
Se há uma filiação ao modelo linguístico português, essa deve ser buscada
na Carta Imperial que foi lastreada na Constituição portuguesa de 1822, resul-
tante do movimento constitucionalista do Porto (Cunha, 1987). Esse empare-
lhamento jurídico repercute na esfera linguística. Em uma rápida sondagem
306
da Carta Portuguesa detectamos o uso reiterado do quantificador “todo o” e
da próclise em início de oração principal posposta a uma adverbial, tal como
na Carta Imperial brasileira. Trata-se dos primeiros anos da autonomia polí-
tica brasileira e não do conturbado período republicano em que não faltaram
levantes contra a comunidade lusa em inúmeras províncias pelo fato de os
portugueses ocuparem posições chave na administração civil e militar, e por
dominar o comércio. Com efeito, a campanha antilusitana se intensifica na
segunda metade do século XIX e avança no século seguinte (Ribeiro, 1994;
Rowland, 2001; Souza, 2005; Carvalho, 2012; Marson, 2013), apesar dos esfor-
ços da Academia de Ciências de Lisboa em criar uma Confederação Lusobra-
sileira e do engajamento de João de Barros e de João do Rio na criação da
revista Atlântida que congregava escritores brasileiros e portugueses, com a
balança pendendo para o lado dos portugueses (Miranda, 2009).
Estranhamente a consolidação da autonomia política caminhava pari passu
com o triunfo da ênclise, razão pela qual Pagotto insiste na dependência lin-
guística com Portugal instanciada pelas elites brasileiras. Se, de fato, se deve
falar em “elites brasileiras”, no plural, então a atitude linguística também deve
vir no plural. Se o segmento que dominava a imprensa, que tinha por alvo
o público da colônia portuguesa, pode ter se dobrado às exigências da pre-
sença de um redator lisboeta, as outras podem ter seguido trajetória diferente.
A elite política teria o mesmo padrão modelar adotado pela imprensa? Há que
se convir ainda que, do ponto de vista estritamente linguístico, a ênclise não
é uma regra geral no PE; há vários contextos que facultam a próclise e outros
que a exigem (Martins, 2000, 2013, entre outros).
Puxando a brasa para a nossa sardinha, pretendemos mostrar que a ênclise
produzida por algumas elites brasileiras é balizada por uma norma de solu-
ção local usada como índice de marcação social do segmento que detinha
os plenos direitos de cidadania – “grupo estabelecido”, nos termos de Elias
e Scotson (2000). Dessa perspectiva, a ênclise potencializada na virada do
século XIX-XX é mais um capital simbólico do grupo estabelecido do que o
reflexo da pressão normativa que tomava como modelo o Português Europeu
moderno. Por oposição, a próclise era a colocação pronominal dos outsiders
às instâncias político-administrativas, como é o caso dos literatos que desfila-
vam nas esferas jornalísticas.
307
2. A codificação linguística: contornos indefinidos
308
Ainda da perspectiva sintática, outros gramáticos, tais como Ernesto Car-
neiro Ribeiro (1890), Otoniel Mota (1911) e Maximino Maciel (1918), apontam
para a preferência do uso da próclise no contexto de infinitivas preposiciona-
das, sem atentarem para o tipo de preposição ou pronomes envolvidos.
Esse breve panorama indicia que as regras de colocação pronominal, a
despeito das polêmicas linguísticas travadas nas últimas décadas do século
XIX, não estavam bem assentadas. Para os propósitos deste estudo, sobres-
salta a falta de descrição da colocação dos clíticos em contexto de infinitivas
preposicionadas nas gramáticas de Júlio Ribeiro (1881) e João Ribeiro (1889),
e sua codificação – pela variação linguística – nas demais gramáticas. Essa
variação encontra ressonância no português clássico, claramente evocado
como modelo pelo gramático Pereira (1907), repelindo qualquer referência
ao PE lusitano, não obstante assinalasse a existência de diferenças entre os
usos linguísticos brasileiro e português.
Esses desenhos linguísticos ganham expressividade quando focamos as
lentes para visualizar nas produções textuais a ordenação pronominal no
contexto das orações infinitivas preposicionadas. Assim, nos limites desse
ambiente sintático, passamos a descrever e analisar um conjunto de dados
extraídos de discursos parlamentares proferidos no curso do século XIX.
A amostra é constituída de 9 discursos parlamentares proferidos na Câmara
Legislativa entre 1870 e 1880, integralizando o total de 365 páginas. Para a
primeira metade do século, compusemos uma amostra de dois discursos pro-
feridos nas duas primeiras décadas, em um total de 37 páginas.
Como objeto de investigação linguística, recortamos a ordenação dos com-
plementos verbais na forma de pronomes átonos, doravante clíticos prono-
minais. Escolhemos como contexto sintático as infinitivas preposicionadas,
como: começou a X falar-X; terminou de X falar-X; depois de X falar-X; para
X falar-X em que o clítico, representado por X, pode ocupar a posição pré- ou
pós-verbal. Foram levantados 164 dados, dos quais 143 em posição pré-verbal.
A seleção do contexto sintático das infinitivas preposicionadas obedeceu
à necessidade apontada por Labov (2008) de recortar um ambiente saliente
para o linguista, mas não para os falantes, para evitar distorções conscientes.
Com efeito, na segunda metade do século XIX várias polêmicas e críticas
surgiram em torno do tema da colocação pronominal, com foco na posição
309
inicial absoluta da oração e nas orações subordinadas. No contexto das infini-
tivas preposicionadas, como mostramos nesta seção, a variação era percebida
pelos gramáticos, mas não era condenada ou incentivada, o que sugere um
ambiente promissor para observar o comportamento real da ênclise.
Para evitar leituras enviesadas, eliminamos os tempos compostos, as ocor-
rências precedidas de negação, os contextos de locução com o verbo haver
(de) e as infinitivas flexionadas. Como fatores condicionantes adotamos, do
ponto de vista linguístico, o tipo de preposição e o tipo de pronome. Como
este não se mostrou condicionante, concentramo-nos no tipo de pronome.
Como fator extralinguístico, focamos a atenção na tendência política e na
diferença entre grupos políticos e intelectuais.
Esses cuidados que tipificam a sociolinguística variacionista foram úteis
para endossarmos o paradigma indiciário de Ginzburg (1989) que privilegia o
olhar sobre “os dados negligenciáveis” somado à tese de que «o homem está
amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu» (Geertz, 2011: 4). Estas
duas orientações nos levam a buscar na ênclise nas infinitivas preposiciona-
das o marcador social da distinção da elite política brasileira, em contraste
com as demais elites letradas que circulavam no Brasil.
4 As duas ocorrências de próclise repetem a exortação “Continue para nos dar muitos
gostos”, também usada pelo senador.
310
brasileira vivente na Capital federal do oitocentos (Rio de Janeiro). As cartas de Cristiano
Ottoni, senador do Império e depois da República, e de sua esposa Bárbara aos netos
trouxeram à luz o peso do gênero (Pagotto e Duarte, 2005). Bárbara faz uso de uma sintaxe
peculiar ao vernáculo contemporâneo, como próclise em início (absoluto ou não) de oração
próclise aoda verbo
ênclise não
nos mesmos
flexionadocontextos,
de gruposinclusive nas infinitivas
verbais preposicionadas
e próclise em orações infinitivas
(89%): 4
“Continua a aplicar-te para nos dar gostos”. Tudo leva a crermesmos
que o contextos
preposicionadas (2/2) . Por sua vez, o senador faz uso da ênclise nos
emprego
inclusive nas da próclise
infinitivas pela mulher reflete
preposicionadas (89%):o Continua
vernáculo brasileiro; já apara
a aplicar-te preferên-
nos dar gostos
Tudo leva a crer que o emprego da próclise pela mulher reflete o vernáculo brasileiro; já a
cia pela ênclise pelo senador foi interpretada pelos autores, seguindo a linha
preferênciadepela ênclise
raciocínio da pelo senador
comparação foi osinterpretada
entre pelos autores,
textos constitucionais seguindo
português e bra- a linha de
raciocínio sileiro,
da comparação
como uma entreopçãoos textos
pela norma constitucionais português e brasileiro, como uma
linguística lusitana.
opção pela norma
Apesar linguística lusitana.
da diferença entre a gramática da mulher e a do esposo, como dois
Apesar da diferença
ponteiros entre a relógio
de um mesmo gramática– a da mulher
variante e a do esposo,
brasileira, como dois ponteiros de
não é inquestionável
um mesmoa relógio
aderência – aaovariante
meridianobrasileira, não é inquestionável
zero de Lisboa na unificação daagramática
aderênciaenclítica
ao meridiano zero
de Lisboa dos
na homens
unificação da da
cultos gramática enclítica
elite brasileira. Parados homens
desfazer essecultos da elite
equívoco brasileira. Para
compara-
desfazer esse
mos asequívoco comparamos
cartas pessoais do senadoras cartas
brasileiropessoais
com as do senador brasileiro
do imperador D. Pedro I com as do
imperador (IV
D. emPedro I (IVdirigidas
Portugal) em Portugal)
à marquesadirigidas à marquesa
de Santos, de Santos,
tomando como tomando como
diastímetro
diastímetroa ênclise
a ênclise pronominal.
pronominal. RestringindoRestringindo o olhar infinitivas
o olhar às construções às construções
preposi- infinitivas
preposicionadas,
cionadas, ososresultados levama refletir
resultados levam a refletir
sobresobre
a tábuaa de
tábua de da
medição medição
colocação da colocação
pronominal:pronominal:
100 89
80
60
40 25
20
0
D. Pedro S.Ottoni
Gráfico
Gráfico 1 1– -Ênclise:
Ênclise:ooimperador
imperadoree oo senador
senador
311
no contexto de infinitivas preposicionadas, a ênclise é muito mais presente no
padrão culto brasileiro do que no do PE.
Há, porém, que se perguntar por que motivo em um ambiente aparente-
mente livre para a variação, como as infinitivas preposicionadas, a gramática
do imperador retém a próclise. Integrando a noção de heterogeneidade lin-
guística (Labov, 2008) e de variação como prática estilística (Eckert, 2008),
analisamos a colocação pronominal em discursos parlamentares, acostando
os resultados com aqueles obtidos para as cartas pessoais de escritores por-
tugueses e brasileiros ao longo do século XIX (Oliveira, 2011), com os das
cartas de circulação pública (Oliveira, 2013) e do teatro (Oliveira, 2014).
Considerando que os debates nacionalistas giravam em torno do estra-
nhamento e da alteridade, de um lado, e da semelhança de outro, tomamos o
quadro do PE como norteador da análise:
312
Gráfico 3 – Ênclise: literatos brasileiros (cartas)
(Adaptado de Oliveira, 2011)
5 Embora Álvares Azevedo não fosse político, devido à morte prematura, era filho de
pais ilustres e estudou na Faculdade de Direito de São Paulo, lócus de formação da classe
política.
313
O entrelaçamento entre vida política e intelectual era tão forte, que era quase
impossível ascender ao parlamento sem ter escrito antes uns poemas. As faculda-
des de direito davam sobretudo o treino retórico e erudição em história e literatura.
Estes saberes eram nucleares da tradição imperial. Assim, a imprensa, os opúscu-
los, a poesia e a oratória eram parte do processo de socialização da elite política,
contemplando a assimilação do universo mental do Império que os cursos de
direito começavam. Os novos liberais passaram por todos estes degraus, formando
sociedades literárias, políticas e filosóficas, escrevendo poesia e se batendo em
polêmicas. (Alonso, 2002: 113)
150
100
de
50
para
0
a
Gráfico4 4––Ênclise:
Gráfico Ênclise:cartas
cartasde
de circulação
circulação pública
pública
(Adaptadode
(Adaptado de Oliveira,
Oliveira,2013)
2013)
Com efeito, a análise de correspondência de políticos nos séculos XVIII e XIX mostra
que a partir da Independência política o padrão linguístico culto no Brasil não refletia o
Com efeito, a análise de correspondência de políticos nos séculos XVIII e
Português Europeu, grelha para os textos públicos no Brasil colonial. Além disso, evidencia
XIX mostra que a partir da Independência política o padrão linguístico culto
que a ênclise não entra em queda, ao contrário, tem a sua presença intensificada abrindo o
no Brasil não refletia o Português Europeu, grelha para os textos públicos
ângulo de distância entre o padrão culto e o vernacular da variante brasileira.
A gramática enclítica dos literatos da primeira
314 metade do século XIX tem continuidade
na segunda metade do século entre os políticos, tal como se observou nas cartas do senador
Gráfico 4 – Ênclise: cartas de circulação pública
(Adaptado de Oliveira, 2013)
no Brasil
Com efeito, colonial.deAlém
a análise disso, evidencia
correspondência deque a ênclise
políticos nosnão entra XVIII
séculos em queda,
e XIX mostra
ao contrário, tem a sua presença intensificada abrindo o ângulo
que a partir da Independência política o padrão linguístico culto no Brasil não refletia o de distância
entre o padrão
Português Europeu, grelhaculto
parae os
o vernacular da variante
textos públicos brasileira.
no Brasil colonial. Além disso, evidencia
que a ênclise não entra em
A gramática queda,dos
enclítica ao literatos
contrário, tem a sua
da primeira presença
metade intensificada
do século XIX tem abrindo o
ângulo de distância entrena
continuidade o padrão
segundaculto e o vernacular
metade da variante
do século entre brasileira.
os políticos, tal como se
A gramática
observou enclítica
nas cartasdosdoliteratos
senadorda primeira
Ottoni. Não metade
se toma,do séculoo XIX
porém, modelo temlusi-
continuidade
na segunda tano
metade
como dobússola:
século aentre
mudançaos políticos,
parece tertal
sidocomo se observou
acionada nas cartas
pela preposição para,do senador
Ottoni. Nãoafinal,
se toma, porém, oque
é o elemento modelo lusitano
mais resiste como bússola:
à próclise nos textosa dosmudança
literatosparece
e o ter sido
acionada pela preposição
contexto que exibepara,umaafinal, é o elemento
ascendência que do
vertiginosa mais resiste
padrão à próclise
enclítico nos textos dos
do grupo
literatos e opolítico.
contexto que exibeo registro
A considerar uma ascendência vertiginosa
histórico, essa preposiçãodo padrão
é como umenclítico
cadinho do grupo
político. A emconsiderar
que flutuam o registro
a próclisehistórico,
e a ênclise,essa
comopreposição
mostram aséfortes
comooscilações
um cadinhonos em que
flutuam a próclise e a ênclise,decomo
índices percentuais mostram
ênclise as fortes
nas infinitivas oscilações nos
preposicionadas índices percentuais
introduzidas por de
ênclise nas infinitivas preposicionadas
“para” nos textos introduzidas
de representantes por “para”
do português nos (Melo
clássico textos19,4%;
de representantes
Bro- do
português clássico (MeloGusmão
chado 70,3%; 19,4%;51,1%;
Brochado 70,3%;
Cavaleiro Gusmão
12,9%; Costa 51,1%; Cavaleiro
86,2%) (Godoy, 12,9%; Costa
2006).
86,2%). (Godoy, Ao 2006)
puxar o fio da ênclise dos escritores do período romântico da litera-
Ao puxar
tura, sefio
o da ênclise
recupera dos de
a trama escritores do período
uma sintaxe que bem romântico da literatura,
antes já competia com ose recupera
a trama de uma sintaxe
Português que bemÉ antes
moderno. o quejámostra
competia com o Português
o desenho gráfico quemoderno.
remete aoÉuso o que mostra
o desenho gráfico queem
da ênclise remete
peçasao uso da
teatrais deênclise
Antónioem Josépeças teatrais
da Silva de António
(o Judeu), José
no início doda Silva (o
Judeu), no início
séculodo século
XVIII, e deXVIII
Martinse de Martins
Pena cerca Pena
de umcerca dedepois:
século um século depois:
100
80
60
40
20
0
Gusmão Judeu Pena
a 100 100 97
de 59 47 57
para 51.1 45 60
a de para
Gráfico
Gráfico 55 –– Ênclise:
Ênclise:da
dacolônia
colôniaaoao período
período independente
independente
(1) Se esta reforma fosse elucubrada em Campos (já vejo), bem póde ser que
a usura negra lhes apontasse ao coração a faca de Shylock, para lhes cobrar
em retalhos de carne ou no sangue vivo das veias o feijão, a tanga e a cama da
enfermaria. O projeto 12 de maio, porém, é mais humano. Constrange o senhor
a proporcionar-lhes de graça o torresmo, a aniagem e o medico. (Rui Barbosa,
1885: 31)
(2) Sempre que falava um de nós oradores catholicos, era saudado por aplausos
unanimes: ali estava a mocidade da academia para animar-nos, ali estava o fana-
tismo de uma certa porção do povo para admirar-nos. (Nabuco, 1873: 7)
316
(3) Logo que este Presidente chegou, hum dos seos primeiros actos foi a convoca-
ção do Jury extraordinario para julgar a Madeira; o Advogado, que comppareceo
para defendel-lo, foi ameaçado de ser morto, e desappareceo; huma testemunha,
que ousou depor em seu favor, foi espancada, e nenhuma mais teve o arrojo de
apresentar-se em sua defesa, defeição que ele foi julgado indefeso, e sem ser aca-
reado com seo cumplice. (Ribeiro de Andrada, 1827: 13-14)
para
de
a
0 20 40 60 80 100 120
a de para
Liberais 100 100 90.9
Conservadores 100 85.71 71.42
Gráfico66 –– Ênclise:
Gráfico Ênclise:da
da colônia
colônia ao
ao período
período independente
independente
(5) Se esta reforma fosse elucubrada em Campos (já vejo), bem póde ser que a
usura negra lhes apontasse ao coração a faca de Shylock, para lhes cobrar em
retalhos de carne ou no sangue vivo das veias o feijão, a tanga e a cama da enfer-
maria. (Rui Barbosa, 1885: 31)
(6) Mas, se, quando, no circulo da vossa bem-aventurança intima, vos estiverdes
revendo nos olhos da esposa, e acariciando os filhos estremecidos, um escravo,
andrajoso, seviciado, espavorido, irrompendo súbito, vos cahir de joelhos entre as
criancinhas, que vos afagam, e a mãe, que vos sorri, é preciso esmagar o coração,
afogar as lagrimas, carregar o semblante, e expelir o miserável, ou amarral-o, para
o entregar á justiça; que assim se prostitue este sagrado nome aos beleguins da
instituição maldicta. (Rui Barbosa, 1885: 41)
318
foram proferidos em 1825 e 1827 respectivamente, também sobrelevam o
emprego da ênclise:
a de para
Discursos 100 100 75
Lei 100 0 0
A Academia de Direito de São Paulo produziu, ainda que indiretamente, militantes políticos
Adorno 1988), constituindo-se no locus simbólico da associação de intelectuais, “espaço
5. O naipe político e seus espaços sociais
ocial no qual certas relações se ativaram” (Alonso, 2011: 120). Sob a perspectiva de que os
escritores românticos tiveram formação bacharelesca, salvo-conduto para a vida pública, a
A Academia de Direito de São Paulo produziu, ainda que indiretamente,
escola superior poderia ser interpretada como espaço social para a escolha seletiva da ênclise
militantes políticos (Adorno, 1988), constituindo-se no locus simbólico da
como marcador linguístico do grupo:
associação de intelectuais, «espaço social no qual certas relações se ativa-
ram» (Alonso, 2011: 120). Sob a perspectiva de que os escritores românticos
120
tiveram formação bacharelesca, salvo-conduto para a vida pública, a escola
100
80 ser interpretada como espaço social para a escolha seletiva
superior poderia
60
da ênclise como marcador linguístico do grupo:
40
20
0
319
escola superior poderia ser interpretada como espaço social para a escolha seletiva da ênclise
como marcador linguístico do grupo:
120
100
80
60
40
20
0
A DE PARA
parlamentares6
Gráfico 6
Gráfico88––Ênclise:
Ênclise:discursos
discursosparlamentares
6 Para compor esse gráfico, usamos os resultados obtidos por Silva (2012) para a
análise dos discursos dos presidentes da República (Campos Sales, Pedroso de Moraes e
Rodrigues Alves).
320
gramática de outros? Afinal, todos os parlamentares elencados se formaram
em Ciências Jurídicas pela Academia paulista (ou tiveram passagem por ela) e
ocuparam posição de estadistas!
Uma alternativa de análise pousa nos esquemas de ideologias conceptuais
dos diferentes grupos (Irvine/Gal, 2000). Os resultados apresentados no grá-
fico acima indicam que o repertório dos conservadores tinha como espinha
dorsal a variação na colocação pronominal. As produções textuais de Perdigão
Malheiro, José de Alencar e Paulino de Sousa apresentam um sistema dual,
bastante semelhante se bem que não idêntico ao PE. A preposição a aciona
categoricamente a ênclise e as demais favorecem a variação, em geral com
tendência à ênclise. Essa gramática, mais do que encontrar identidade no PE,
tem como suporte uma tradição gramatical que remete ao período colonial,
como alertava Pereira (1907) a respeito da adoção dos clássicos portugueses
pelos escritores brasileiros.
Quanto aos liberais e republicanos, os resultados apresentados no gráfico
acima indicam que o seu repertório ampliava o uso da ênclise categórica para
o contexto da preposição de. Nabuco o faz também no caso da preposição
para. Rodrigues Alves, porém, quebra essa regra optando pela variação lin-
guística para todas as preposições.
É o exame da posição de Rodrigues Alves que indicia o esquema ideoló-
gico que atravessa a prática da colocação pronominal. Apesar de ter ocupado
cargo da presidência da República, Rodrigues Alves era filiado ao Partido
Conservador, ocupou cargo político no Império e «representou a mais harmo-
niosa e consequente articulação entre a tradição do Império, os interesses da
cafeicultura paulista e a finança internacional» (Sevcenko, 2003: 65). Embora
abusasse da ênclise, sua gramática era modulada pela variação inclusive no
ambiente da preposição a.
A julgar pela análise realizada, o conservadorismo ideológico encontra
paralelo no conservadorismo linguístico, marcado pela variação linguística.
Assim, por iconicidade, a estabilidade da variação na colocação pronominal,
traço linguístico do período colonial, converge com a estabilidade dos conser-
vadores no poder cujo domínio, no curso do século XIX, foi ininterrupto entre
1848 e 1878. Desse modo, a maior intensidade no uso da ênclise pelos novos
321
liberais e republicanos dava-lhes uma identidade por contraste aos conserva-
dores e guardava uma unidade de sentido: oposição ao status quo.
Além dos parlamentares que frequentaram a Academia de Direito de São
Paulo, há os que estudaram Ciências Jurídicas na Universidade de Coimbra,
como os irmãos Ribeiro de Andrada e José Bonifácio. Integrando família de
forte cunho liberal, Ribeiro de Andrada intensificou o emprego da ênclise
tanto no contexto da preposição a, quanto no da preposição para, atingindo
100% de frequência. Entretanto, a gramática do também liberal José Bonifá-
cio tem comportamento mais similar ao da dos conservadores. Com longa
carreira de serviços prestados à Coroa, José Bonifácio viveu mais de 30 anos
fora da América Portuguesa. Apesar de sua longa permanência em Portugal
(a maior parte dos 30 anos), Bonifácio não assimilou o esquema da colocação
pronominal lusitana, permanecendo fiel à gramática do português clássico
identificado na escrita do diplomata setecentista, também santista, Alexandre
de Gusmão. Entretanto, usa bem menos ênclise de que seu irmão. Talvez a
sua longa permanência na Europa ou o caráter contraditório de seu programa
– «politicamente conservador, mas avançado no nível econômico e social»
(Viotti, 1998), ou as duas coisas juntas sejam condicionantes de um conser-
vadorismo linguístico em relação ao uso acentuadamente enclítico de Ribeiro
de Andrada.
Em qualquer dos casos, o uso da ênclise nas orações infinitivas prepo-
sicionadas pelos políticos brasileiros não segue o modelo do PE que lhes é
contemporâneo. Além disso, sua frequência é aumentada ao longo do século
XIX, à medida em que o espaço político vai se dilatando para acolher grupos
que se achavam marginalizados da vida política, como é o caso dos novos
liberais e dos republicanos.
O movimento intelectual da geração de 1870, que contribuiu para minar o
regime imperial e alterar as peças do tabuleiro da política brasileira, de forma
a rearranjar os grupos estabelecidos e os marginalizados, se manteve fiel à
tradição:
322
filiação mais importante do movimento à tradição consistiu em incorporar a prefe-
rência da elite imperial pela reforma em vez da revolução. Embora de novo tipo, o
movimento comungou o elitismo político com o Segundo Reinado. (Alonso, 2002:
333)
Considerações finais
323
nia portuguesa nas disputas pela hegemonia da variedade lisboeta, o padrão
culto brasileiro tendia a se descolar gradualmente do PE.
A oposição ênclise-próclise era gerada pela dinâmica das relações sociais
brasileiras. No que diz respeito especificamente aos parlamentares, o seu cri-
tério seletivo privilegiava a ênclise generalizada, avançando em contextos não
previstos pelo PE. Não se tratava de hipercorreção, mas de uma variedade
linguística local motivada pelas condições sociais de produção linguística, isto
é, pela disposição social e política desses sujeitos.
Na onda do conflituoso discurso cultural acerca da autonomia da língua
e da literatura brasileiras, iniciado no século XIX e prolongado por várias
décadas, os usos linguísticos desses sujeitos marcariam o distanciamento dos
portugueses, repercutiriam as diferenças linguísticas entre conservadores e
liberais, e se afastariam dos literatos que aderiam ao vernáculo em formação.
Em suma, os resultados acostados mostram que a colocação pronomi-
nal, no PB, é um ambiente linguístico que propicia a formação de múltiplas
variantes originárias de usos coletivos distintos e chanceladas pelos segmen-
tos letrados que a cada momento histórico articulam novos sentidos para
perpetuar a distribuição desigual de poderes (Bourdieu, 2005).
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324
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Nabuco, Joaquim (1873): A invasão ultramontana. Discurso pronunciado no Grande
Oriente Unido do Brasil em 20/5/1873. Rio de Janeiro: Typ. Franco-Americana.
Biblioteca Brasiliana.
Nabuco, Joaquim (1884): Confederação Abolicionista: Conferência do Sr. Joaquim
Nabuco a 22 de junho de 1884 no Theatro Polytheama. Rio de Janeiro: Typ. De G.
Leuzinger & Filhos. Biblioteca Brasiliana (http://www.brasiliana.uspd.br/bbd/ha).
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de Janeiro: Typ. Imparcial de F. de P. Brito. Biblioteca Brasiliana.
Souza, Paulino José Soares de (1871): Discurso proferido na sessão de 23/8/1871
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328
ROGELIO PONCE DE LEÓN ROMEO
Universidade do Porto/Centro de Linguística da Universidade do Porto
[email protected]
ORCID: 0000-0002-2392-1422
Abstract: The present work analyzes the proposals and judgements on the place-
ment of unstressed personal pronouns (considering the three modes: enclisis, proclisis and
mesoclisis) in Portuguese grammars published in the 19th century in Portugal and Brazil. It
also studies the development of grammatical thinking about this aspect of language in that
period, especially in the sense of setting – or not – prescriptive criteria for the three posi-
tions of the clitics. We thus focus on when the prescriptive criteria appear in meta-gramma-
tical texts, the degree of separation between the grammaticography of the Portuguese that
is published in Portugal and that which comes from the Brazilian presses.
Keywords: unstressed personal pronouns, grammaticography of the Portuguese lan-
guage, 19th century
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_10
1. Considerações iniciais
330
2018) –, entre aquilo que poderia ser designado como linha gramaticográfica
portuguesa e a correspondente brasileira.
Como foi dito na secção anterior, o nosso corpus é constituído por gra-
máticas da língua portuguesa, publicadas em Portugal e no Brasil1. São as
seguintes:
331
• Francisco Adolfo Coelho, Noções elementares de grammatica portugueza, Porto,
Lemos & C.ª Editores, 1891. [= Coelho]
332
(2000) – até 1822 – e Helena Santos (2010), embora estas autoras se ocupem
desta questão de forma fragmentária; por seu turno, Jéssica Santos, na sua
dissertação de mestrado3 (2011), analisou este aspeto no âmbito da gramati-
cografia do português publicada no Brasil.
333
formas da 1.ª e 2.ª pessoas e ‘lhe’/‘se’ pronomes pessoais
Reis 1866
formas acusativas da 3.ª pessoa adjectivos pronominais
formas da 1.ª e 2.ª pessoas e ‘lhe’/‘se’ pronomes pessoais
Braga 1876
formas acusativas da 3.ª pessoa artigos definidos
334
A este respeito, é possível que estas duas questões (o estatuto intercate-
gorial e a natureza fragmentária da exposição) tenham constituído, como se
verá nas páginas seguintes, um obstáculo para uma rápida gramatização dos
critérios de colocação na gramaticografia da língua portuguesa publicada no
século XIX.
335
e/ou sociais)5. O registo, nas obras do corpus, deste segundo parâmetro pres-
supõe a presença do primeiro; já a explicitação da colocação pode não ir
seguida de juízos normativos.
Relativamente ao primeiro parâmetro, naquelas obras – numerosas – em
que os critérios de colocação não aparecem explícitos, julgo relevante deduzir,
como foi acima apresentado, tendências subjacentes (ou padrões implícitos)
ao discurso metalinguístico dos autores, às amostras de língua que ilustram
as observações gramaticais, aos paradigmas verbais e ao tratamento da mesó-
clise como uma anomalia. Quanto ao primeiro aspeto, certos autores fazem
apenas menção da posição dos pronomes pessoais átonos como informação
complementar e, em certo modo, subsidiária da matéria gramatical principal
(por exemplo, a explicação dos verbos reflexivos). É o caso de Oliveira a pro-
pósito dos verbos reflexivos:
Reflexos são todos os verbos activos, quando exprimem a acção do subjeito reflexa
sobre si mesmo, e porisso têm por complemento algum dos pronomes me, te, se,
posto antes, no meio ou depois dos mesmos verbos. Ex.: «Eu me julgo feliz. Julgas-
-te. Julgar-te-ás (por julgarás-te) (Oliveira, 1862: 37).
As formas complementares o, a, os, as, sendo enclíticas (1) e precedidas das desi-
nências nasaes dos verbos, tomam um n eufónico, resultando a voz no, na, nos,
nas, ex.: amam-n’o, tremem-n’a, em vez de – amam-o, tremem-o. [Em nota de
336
rodapé: (1) Chamam-se encliticas ás particulas d’uma lingua, as quaes se reunem a
uma palavra antecedente, de tal maneira que não parecem formar na pronunciação
senão uma unica palavra com aquella a que está unida. As encliticas dos verbos são
todos os casos oblíquos dos determinativos relativos, como: me, nos, te, vos, si, o,
a, os, as, lhe, lhes] (Leite, 1887: 45).
Seja como for, a enunciação dos três tipos de colocação não é habitual
nas obras do corpus que não explicitam critérios, a não ser que – vê-lo-emos
mais à frente – a posição do pronome pessoal átono produza alterações na
forma do verbo e do clítico, tal como, na verdade, se apresenta, a propósito
da ênclise, no passo citado de Leite.
Como foi referido, outro dos aspetos que se podem ter em consideração
é a dedução de certas tendências de colocação a partir dos exemplos com
que se ilustram as regras. Vejam-se, a este respeito, as seguintes passagens de
Melo, Ferreira e Braga:
iii) O Artigo o, a, os, as, serve tambem de Pronome Relativo, e se emprega muitas
vezes como tal; como quando dizemos: o livro que te mandei he muito bom, le-o, e
depois de o ler manda-mo, isto he, manda-me-o: onde se vê que o primeiro o, que
precede a livro, he artigo indicativo; os outros em le-o, em o ler, e em manda-mo,
são pronomes relativos que se referem ao livro de que se falla (Ferreira, 1819: 27).
337
iv) Quando o pronome o representa um estado, uma função ou qualidade, torna-
-se invariável: Quem é a rainha? Eu o sou. – Estaes pobre? Eu o estou. – Sois mãe?
Sou-o (Braga, 1876: 135).
338
No exemplo selecionado, é preciso pôr em relevo as consequências do
registo da dupla série de formas verbais para cada tempo, na qual se apresenta
o uso proclítico perante o enclítico ou o mesoclítico, que se deve explicar a
partir de sequências sintagmáticas implícitas, como aquelas que, por exemplo,
subjazem aos exemplos integrados nas passagens reproduzidas das gramáti-
cas de Melo, Ferreira, Oliveira ou Braga. Convém, contudo, sublinhar que a
sistematicidade que apresenta Ferreira não é habitual na gramaticografia da
língua portuguesa do século XIX, como se pode observar no seguinte quadro:
339
Pretérito perfeito Futuro
Presente do
composto do imperfeito do Imperativo
indicativo
indicativo indicativo
Leite 1887 Eu abstenho-me Eu me tenho Eu me Abstem-te tu
ou me abstenho abstido absterei/
Abster-me-hei
Coelho 1891 -- -- -- --
340
ii) A figura Tmesis serve para dividir huma palavra em duas pondo-lhe outra de
permeio como nos exemplos indicados acima [dir-te-hei, dir-me-hão, fa-lo-hei]
(Ferreira, 1819: 112).
iii) Faz-se a transposição pelos modos seguintes: [...] 2.ª por thmese, dividindo uma
palavra para interpôr-lhe outra, como – “dir-me-ás, far-te-ei, dever-se-ia” por – dirás-
-me, farei-te, deveria-se (Oliveira, 1862: 76).
Os casos Me, Nos do Pessoal da I.ª Pessoa, os da II.ª Te, Vos, e o do Reciproco da
III.ª Se, todos com accento grave encliticos, nunca admittem preposições, e são
complementos já objectivos, já terminativos segundo o demanda a significação do
verbo ou so activa, ou tambem relativa (Barbosa, 1822: 157),
341
obliquos (1920 [1887]: 229), ou Maciel, que os designa como formas prono-
minaes syncliticas7. Estes três gramáticos brasileiros, na análise da colocação,
abrangem os três tipos, se bem que, em algum deles, como Júlio Ribeiro,
os padrões normativos parecem orientar-se para supressão da mesóclise, se
temos em consideração os paradigmas da conjugação. Esta observação ganha
maior interesse se se comparar a proposta de Júlio Ribeiro com aquela que
se regista na Grammatica portugueza de João Ribeiro – registadas as duas
no Quadro 2 –, na qual se reproduz a dupla série de formas verbais com os
pronomes em posição proclítica e mesoclítica.
No que toca aos critérios de colocação – que habitualmente, nas obras do
corpus, integram uma secção no limite entre o capítulo sobre a sintaxe e os
tratados que abordam aspetos estilísticos –, estes costumam ser, segundo os
autores, de diversa índole. Barbosa parece condicionar a colocação a quatro
parâmetros:
ou a indistinção:
nos tempos simples, em cuja primeira pessoa do plural o accento nunca passa
para traz da penultima, he couza indifferente pôr dantes ou depois do verbo o
pronome, não havendo nisto alguma cacophonia, ou equivoco. Assim póde-se dizer
7 «As variações pronominaes – me, te, se, nos, vos, lhe, lhes, o, a, os, as são fórmas
syncliticas que, por não terem accentuação tonica, giram em torno do verbo a que perten-
cem, de sorte que se antepõem (proclise), se interpõem (mesoclise) e se pospõem (enclise)»
(Maciel, 1914 [1887]: 372).
342
igualmente bem: Eu louvo-me ou Eu me louvo, Tu louvas-te ou Tu te louvas, Elle se
louva ou Elle louva-se, Nós louvamos-nos ou Nós nos louvamos, Elles louvão-se ou
Elles se louvão (Barbosa, 1822: 260);
Nos tempos compostos do auxiliar Haver e dos infinitos do verbo adjectivo, o pro-
nome póde ou preceder áquelle, ou seguir-se a estes: Eu me heide louvar, ou Eu
heide louvar-me; nos compostos porêm dos auxiliares Estar, Ter, e dos participios,
o pronome nunca vai depois destes, mas sempre com os auxiliares, ou dantes: Eu
me estou louvando; ou dantes e depois: Eu me tenho louvado, ou Eu tenho-me
louvado (Barbosa, 1822: 261);
343
no meio entre a forma primitiva ar, er, ir e a terminação final; como: – “amar-
-me-ei, amar-te-ás, amar-se-á [...], por amarei-me, amarás-te, amará-se”» (1862:
37); ou Leite:
As formas complementares me, te, se, nos, vos podem ir antes ou depois do verbo,
excepto no imperativo, em que devem ir depois; nos futuros do conjuntivo em que
vão antes; e nos futuros do indicativo e no condicional, em que, por elegância de
phrase, podem colocar-se no meio (Leite, 1887: 71).
344
modo indicativo ou no conjuntivo ou as frases de infinitivo introduzidas por
preposição. Quanto à explicitação do pronome pessoal sujeito, há disparidade
nas propostas de Freire da Silva e Júlio Ribeiro: o primeiro defende a pró-
clise das formas pronominais átonas neste contexto sintagmático: «Antepõe-se
sempre o pronome ao verbo: (...) Si o sujeito é um pronome, e está antes do
verbo: [“] Elle me chama.” “Eu me condoo de ti.” “Tu te feriste.”» (Silva, 1906
[1875]: 312); por sua vez, como viu também Jéssica Santos (2011: 68), para
Júlio Ribeiro, na esteira de Barbosa, a anteposição do pronome pessoal sujeito
pode não atrair o pronome clítico: «nos tempos simples, excepto o futuro,
antepõe-se ou pospõe-se indifferentemente, ex.: “Eu TE amo ou amo-TE”»
(Ribeiro, 1885 [1881]: 246). Nesta última observação, enuncia-se uma restri-
ção que se prende com o futuro e o condicional, com os quais, no caso de
se explicitar o pronome pessoal sujeito, é prescrita a próclise8: «[s]i o sujeito
do verbo nestes casos está claro e é representado por pronome substantivo,
melhor será construir “ELLE TE amará – ELLE TE veria”» (Ribeiro, 1885 [1881]:
248). Esta observação de Júlio Ribeiro parece-nos esclarecedora da tendência
à gramatização do uso proclítico das formas pessoais átonas, reforçada pela
combinação registada nos paradigmas dos verbos pronominais:
345
Por outro lado, nas útimas décadas do século XIX, observa-se um predomí-
nio de parâmetros de tipo sintagmático (por exemplo, a presença do pronome
pessoal sujeito anteposto ao verbo, ou, de forma mais habitual, a anteposição
de segmentos de composição diversa, como os referidos acima); tendência
esta que pode ser apreciada, de forma pormenorizada, nas gramáticas de João
Ribeiro (1920 [1887]: 229-234) e Maciel (1914 [1887]: 372-380) no Brasil, e, em
Portugal, de forma bem mais sucinta, na de Coelho9. Interessa ainda realçar a
plena gramatização dos critérios de colocação dos pronomes pessoais átonos
nestas duas gramáticas brasileiras, através de uma secção dedicada de forma
explícita a este aspeto e, na gramática de Maciel, também com a introdução de
uma expressão metalinguística para o designar: o synclitismo pronominal10.
Estes critérios na elaboração metagramatical poderão revelar uma preocupa-
ção dos autores perante a evolução divergente na colocação dos pronomes
clíticos no português do Brasil, a respeito daquela que se dava no português
europeu.
Nas gramáticas do corpus que registam critérios de colocação das formas
pronominais átonas, um traço mais ou menos geral é constituído pela inser-
ção de juízos de tipo prescritivo que, em nossa opinião, tratam de configurar
uma norma. Nas obras publicadas em Portugal, a prescrição relaciona-se com
questões estilísticas; atente-se, por exemplo, nos comentários, sobre a mesó-
clise, de Barbosa (1822: 261) ou de Leite (1887: 71), reproduzidos mais acima.
Já nos autores brasileiros a mesóclise é caraterizada, de forma neutra, como
“construcção especial” (Ribeiro, 1885 [1881]: 247) ou “caso especial” (Ribeiro,
1920 [1887]: 229), sem repercussões de tipo expressivo ou estilístico11; João
346
Ribeiro talvez avance na normativização – mas em sentido diferente daquela
que apresentam os autores portugueses – quando defende que a mesóclise
«[é] um caso especial da posposição, porque, se não é de uso dizer farei-te,
dirá-te, a anteposição é sempre de bom uso: te direi, te fará» (Ribeiro, 1920
[1887]: 229). Importa, por fim, realçar os juízos (negativos) sobre certos traços
do português do Brasil que se prendem com a colocação das formas clíticas.
Eles não aparecem, segundo os nossos dados, na gramaticografia publicada
em Portugal, mas naquelas gramáticas que saem dos prelos brasileiros; em
concreto, na de João Ribeiro. Atente-se, a este respeito, na observação deste
autor sobre o uso proclítico com formas de imperativo: “Nunca se começa
phrase ou periodo com o pronome obliquo. “Me dê”, “me faça”, etc., são bra-
sileirismos que devem ser evitados (Ribeiro, 1920 [1887]: 231).
3. Considerações finais
347
ênclise quando o verbo assume a posição inicial na oração, a próclise quando
uma forma – incluindo o pronome pessoal sujeito, se bem que não haja una-
nimidade nos autores – se antepõe ao verbo, e a mesóclise como construção
conotada em termos estilísticos. Neste contexto, o caso de Barbosa é, como
dissemos, excecional, porquanto desenvolve com pormenor, no início do
século XIX, os critérios de colocação, os quais serão parcialmente assumidos
por uma parte dos gramáticos posteriores, quer portugueses, quer brasileiros.
No âmbito da gramaticografia do português publicada no Brasil, se com-
parada com o conjunto de obras editadas em Portugal, parece-nos que desen-
volve – especialmente aquelas gramáticas que se publicam no último quartel
do século – uma análise cuidada da colocação dos pronomes clíticos, ao ponto
de ficar plenamente gramatizada em João Ribeiro e Maciel. É possível que esta
preocupação dos autores brasileiros deva relacionar-se com a divergência que
começava a acentuar-se na colocação dos pronomes clíticos, entre a variedade
do português europeia e a brasileira. A este respeito, julgamos esclarecedora
a consideração da mesóclise, em Júlio Ribeiro e João Ribeiro, como uma
construção ou caso especial sem qualquer caraterização de tipo estilístico –
como habitualmente se regista nos autores portugueses –, em substituição da
qual se vai gramatizando a próclise, se atentarmos nos paradigmas verbais
do futuro e do condicional ou nos juízos normativos. No entanto, na grama-
ticografia brasileira dos últimos anos do século, deteta-se certa tensão, tal-
vez produzida pela consciência linguística do afastamento entre o português
europeu e o do Brasil, ao ponto de começarem a registar-se juízos normativos
negativos sobre certos usos proclíticos – brasileirismos –, como acontece na
gramática de João Ribeiro.
Julgamos, em suma, que a reflexão metalinguística sobre a colocação dos
pronomes pessoais átonos na gramaticografia da língua portuguesa de Oito-
centos é (mais) uma manifestação da riqueza do património gramatical e do
pensamento linguístico do português.
348
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351
(Página deixada propositadamente em branco)
CARLA SOFIA SILVA FERREIRA
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
[email protected]
ORCID: 0000-0002-5193-3682
T r ata m e n t o d o pa r t i c í p i o pa s s a d o d u p l o e m
t e x t o s n o r m a t i v o s d o s s é c u l o s XVIII e XIX
D o u b l e pa s t pa r t i c i p l e a n a ly s i s i n n o r m at i v e
texts of the 18th and 19th centuries
Resumo: O objetivo do presente estudo é analisar alguns textos normativos dos séculos
XVIII e XIX, período posterior à gramaticalização do contexto de tempos compostos, no
sentido de (i) saber se os casos de dupla forma participial constituíam um tópico abordado
pelo discurso gramatical, (ii) compreender como se faria a prescrição para o uso de formas
participiais de verbos abundantes e, ainda, de (iii) procurar a expressão de atitudes linguís-
ticas sobre os usos da época.
A descrição codificatória mostrou-se plural, havendo não só divergências na listagem
de verbos abundantes, como ainda atitudes diferentes por parte dos agentes normaliza-
dores. Averbaram-se, ainda, passagens que testemunham usos variantes (Barbosa, 1822:
299). Monte Carmelo (1767: 58-59), por exemplo, prescreve o uso do particípio regular em
tempos compostos da voz ativa e, simultaneamente, regista que alguns eruditos utilizariam
a forma participial irregular de alguns verbos em todos os contextos.
Encontraram-se, portanto, evidências de que, nos séculos XVIII e XIX, já se prescre-
via a distribuição sintática que ainda hoje é considerada normativa (Lobato, 1770; Monte
Carmelo, 1767; Souza, 1804); porém, simultaneamente, também já se verificava uma forte
modalização na apresentação dessa distribuição sintática (Barbosa, 1822: 299). Aliás, confir-
mou-se a existência de variação nos usos participiais de vários verbos abundantes.
Palavras-chave: particípio passado duplo, gramáticas, variação diacrónica, variação
sincrónica
Abstract: The aim of the present study is to analyze some normative texts of the 18th
and 19th centuries, a period after the grammaticalization of the context of compound verb
tenses, in order (i) to know if the cases of double past participle form were a topic addres-
sed by the grammatical discourse, (ii) to understand how the use of past participle forms in
abundant verbs was prescribed, and (iii) to look for possible linguistic attitudes about the
uses in those centuries.
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_11
The codifying description of this time was found to be differentiated, with not only
divergences in the list of verbs with double participal form, but also different attitudes made
by standardizing authorities. Some writings provide evidence of variant uses (Barbosa,
1822: 299). Monte Carmelo (1767: 58-59), for example, prescribes the use of the regular
participial form for the active voice in compound verb tenses, and simultaneously notes
that some scholars would use the irregular participial form of some verbs in all contexts.
Therefore, there is evidence that in the 18th and 19th centuries the syntactic distribu-
tion that is still considered normative had already been prescribed (Lobato, 1770; Monte
Carmelo, 1767; Souza, 1804), but a strong modalization of this syntactic distribution already
existed at the same time (Barbosa, 1822: 299). In fact, the presence of variation in the past
participle uses of several ‘abundant verbs’ was confirmed.
Keywords: double past participle, grammars, diachronic variation, synchronic variation
1. Introdução
1 Cf. Blocking effect (Kroch, 1994; Lightfoot, 1999). Mark Aronoff (1976: 43) é o criador
do termo e do princípio morfológico de Blocking effect. Duarte (2010: 19) explica o princípio
de economia linguística do seguinte modo: «perante formas concorrentes que exerçam as
mesmas funções, o processo de mudança acaba por privilegiar uma delas e eliminar a outra».
2 Na verdade, em vários estudos (Laurent, 1999; Barros, 2000; Barros, 2002; Villalva/
Almeida, 2005) se refere o facto de, em diacronia, terem existido não só casos de eliminação
de formas participiais, como igualmente casos de duplicação destas. Portanto, se já existiam
casos de duplas formas participiais etimológicas, mais situações de abundância foram criadas
na língua portuguesa. Como sabemos, muitas mantiveram-se em uso até aos dias de hoje.
354
tiveram destinos diferentes. Ainda assim, muitos outros casos de abundância
participial ainda permanecem por resolver na língua portuguesa.
Lightfoot (1999) e Kroch (1994) referem ainda outro possível destino para
a dupla morfologia, que consiste no fim da situação de equivalência entre as
variantes. Caso ocorra uma distribuição por distintos contextos pragmáticos
ou sintáticos, duas formas deixam de ser equivalentes. Assim, assegura-se a
necessidade de ambas as formas, dado já não serem redundantes.
Ora, nos textos gramaticais da língua portuguesa, assinala-se, embora com
modalizações, uma distribuição funcional das duplas formas participiais, facto
que poderia, precisamente, pôr termo à situação de redundância. Ainda assim,
no caso dos duplos particípios do português, a resolução da abundância não
ocorreu, já que, na realidade, a distribuição sintática das formas participiais
não é estável, nem unívoca, na medida em que não se aplica de modo igual
a todos os verbos abundantes. Para além de diferentes grupos de verbos
apresentarem comportamentos distintos em cada um dos vários contextos de
ocorrência do particípio – facto que é assinalado em alguns textos gramaticais
contemporâneos (por exemplo, Cunha/Cintra, 1995: 441-442) –, um mesmo
verbo regista usos participiais variantes num mesmo contexto. Com efeito,
dados sincrónicos recentes comprovam a concorrência de variantes parti-
cipiais para alguns verbos abundantes (Móia, 2005; Villalva/Almeida, 2005;
Duarte, 2010), concretamente no contexto de tempos compostos da voz ativa
(Ferreira, 2012).
Na verdade, à parte da dupla morfologia, só por si, o particípio passado
é de natureza bastante complexa3. Com efeito, as suas múltiplas utilizações
originaram, desde há muito, várias discussões em torno da sua categorização
ambígua4, o que, em última análise, se relaciona com situações de variação.
3 A categoria de particípio passado foi, por isso, objeto de múltiplas investigações, que
incidem sobre propriedades diversas (morfológicas, sintáticas e semânticas) do seu funcio-
namento sincrónico, assim como sobre aspetos respeitantes ao seu percurso diacrónico.
Para obter mais pormenores e bibliografia, vide Ferreira (2012: 9-39). Em especial, sobre a
diacronia do particípio na língua portuguesa, recomenda-se a leitura dos estudos de Barros
(2000; 2002), realizados a partir de corpora extensos e diversificados.
4 A categorização sintática dos particípios é bastante controversa. Efetivamente, embora
pertença ao paradigma verbal, o particípio passado partilha inúmeras características com
o adjetivo (vide Ferreira, 2012: 24-28).
355
Senão, vejamos: o particípio passado é usado em contextos adjetivais, pre-
dicativos, passivos e ativos (hoje em dia, fazendo parte de um bloco verbal,
no caso dos tempos compostos). Nalgumas dessas situações, a concordância
com um nome é absolutamente necessária; noutras, a forma surge invariável.
Assim, características adjetivais e traços verbais vão dominando, em diferente
grau, as formas participiais. Tendo em conta que os tempos verbais compostos
surgiram de um processo de gramaticalização em que a concordância com o
nome se foi perdendo, interessa, então, saber como era analisada a existência
de duplas formas participiais nos textos normativos, imediatamente após a
estabilização do contexto de tempos compostos da voz ativa.
356
rísticas que o aproximam do adjetivo e ao salientar as suas especificidades
verbais.
Ao estudar o desenvolvimento histórico da construção com o verbo ter
seguido do particípio passado na língua portuguesa, Harre (1991: 129-147)
encontra muito frequentemente, nos textos mais antigos que investiga (século
XIV), concordância do particípio passado com o objeto direto e, à medida
que o tempo vai passando, nota uma tendência para que esta concordância
deixe de ocorrer. Naturalmente, a frequência das construções em que existe
esta concordância não desceu abruptamente, mas foi diminuindo considera-
velmente, ao passo que o número de construções com o particípio passado
invariável – ou seja, a estrutura que hoje identificamos como sendo a dos
tempos compostos – aumenta muito, sobretudo a partir dos textos de Padre
António Vieira (século XVII) e, de modo ainda mais robusto, nos textos de
Luís António Verney, no século XVIII (Harre, 1991: 132-133). Inicialmente,
apenas verbos transitivos eram utilizados nesta construção; porém, no século
XVII, Harre regista um maior número de ocorrências com verbos intransitivos
(Harre, 1991: 132).
Havendo ainda, durante os séculos XVI/XVII, variação entre uma forma
variável e uma forma invariável (Silva, 1989; 1994) em construções com o
verbo ter, não podemos considerar que se trate, plenamente, de um tempo
composto. Contudo, após o século XVII, os documentos atestam uma estabi-
lidade muito maior dessa estrutura.
Poderia, portanto, nessa altura, tornar-se mais clara a oposição entre um
contexto em que surge uma forma participial invariável e outros contextos
onde aparece um particípio variável, clarificando-se a distribuição funcional
que garantiria a sobrevivência de ambas as formas participiais.
Sendo assim, o objetivo do presente estudo é, precisamente, examinar
alguns textos normativos dos séculos XVIII e XIX, período ulterior à grama-
ticalização do contexto de tempos compostos, com o intuito de (i) saber se,
nesse momento, os casos de dupla forma participial constituíam um assunto
abordado pelo discurso gramatical, tentando, também, (ii) compreender quais
seriam os preceitos orientadores do uso de formas participiais de verbos
abundantes e, ainda, (iii) apreender eventuais atitudes linguísticas sobre os
usos da época.
357
3. Análise de textos codificatórios dos séculos XVIII e XIX
Logo de seguida, Carmelo (1767: 58) afirma que se usam as formas par-
ticipiais regulares para a significação ativa: «quando tem significaçam activa,
ou transitiva, usamos delles extensamente, como v.g. Eu tinha entregado o
velludo; Os corpos tinham enxugado as camisas: Os Militares tinham gastado
os seus soldos: Os Granadeiros tinham ja matado o primeiro Esquadrám, &c.».
O verbo auxiliar é, em todos os exemplos, o verbo ter.
Apesar de Monte Carmelo prescrever a distribuição sintática de ambas as
formas, salienta que outros eruditos utilizam a forma irregular em todos os
contextos.
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Alguns Eruditos reprovam estes Participios extensos, e usam em ambas as signifi-
cações dos abbreviados Cego, Entregue, Enxuto, Gasto, Morto, &c. e destes derivam
os Adjectivos passivos, e transitivos Entregue, Enxuta, &c. De semelhante Frase
usamos nos Participios dos Verbos Romper, e seus Compostos; porque em lugar
de Rompido, Corrompido, se pode dizer Rota, Rotas, Roto, Rotos, Corrupta, as,
Corrupto, os, v.g. A Infantaria foi rota pela cavallaria; A cavallaria tinha roto os
Granadeiros. (Monte Carmelo, 1767: 58-59)
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tico são as seguintes: «Excepção III [1.ª conjugação] Dos Verbos, que mudão
no Participio. Matar faz no preterito Matei, e toma o Participio Morto, Morta
do verbo Morrer» (Lobato, 1770: 161). As outras duas exceções apresentadas
são referentes aos verbos pagar e soltar. A lista inicial exibe, para ambos
os verbos, apenas a forma participial irregular no masculino e no feminino.
No entanto, imediatamente de seguida, surge a explicação de que estas for-
mas são contrações das formas regulares: «Pagar, Paguei, Pago, Paga. Soltar,
Soltei, Solto, Solta. O Participio Pago, Paga do verbo Pagar he contracção
de Pagado, Pagada. Também Solto, Solta he contracção de Soltado, Soltada»
(Lobato, 1770: 161). Deste modo, Lobato deixa em aberto duas possibilidades:
(i) a de as formas pagado e soltado ainda existirem; (ii) a de as formas regula-
res terem sido substituídas pelas irregulares correspondentes. Assim, Lobato
opta por não produzir juízos de valor a propósito de nenhuma das formas,
explicando apenas que uma teria nascido da outra.
Entretanto, sob um título à parte, Lobato (1770: 164-165) indica os verbos
da 2.ª conjugação que têm dois particípios: romper (rompido, roto/rota), mor-
rer (morrido, morto/morta), incorrer (incorrido, incurso/incursa), suspen-
der (suspendido, suspenso/suspensa), eleger (elegido, eleito/eleita). Para além
disso, acrescenta em nota que a forma morrido existe: «O Participio Morrido
acha-se usado» (Lobato, 1770: 164). Nesta expressão, assim como noutras, o
gramático faz-nos crer que a sua recomendação é baseada no uso registado.
Numa advertência em que explica a distribuição das duas formas participiais
pelos tempos compostos da voz ativa e pelos contextos de voz passiva, Lobato
também diz que «se usa» assim e que «costumamos dizer» dessa maneira. Não
se registam em Lobato expressões de cariz tão prescritivo como acontecia no
discurso de Carmelo.
Advertencia.
Nos verbos que tem dous Participios, (…) como v.g. no verbo Romper o Participio
indeclinavel Rompido se usa nos tempos compostos da voz activa, porque dizemos
v.g. Pedro tinha rompido o segredo; e o Participio declinável Roto, Rota junto com
o verbo auxiliar Ser se usa na voz passiva, porque costumamos dizer v.g. O segredo
foi roto por Pedro, e não rompido por Pedro (Lobato, 1770: 164-165).
360
Segundo Bernardo de Lima e Melo Bacelar (1783: 83), «dizemos cégo,
entrégue, enxuto, ganho, gasto, morto, pago, secco, sujo, e não cegado &c».
Este preceito, averbado na sua Grammatica philosophica, não fica, porém,
bem esclarecido, já que Melo Bacelar não identifica o(s) contexto(s) em que
se deve dizer assim, permitindo inferir que a recomendação será válida para
todos os contextos. Nas 2.ª e 3.ª conjugações, acrescenta a esta lista de verbos
com particípios irregulares dizer, querer, ver e fazer, apenas com as formas
dicto, quisto, visto e feito, respetivamente. A propósito do verbo corromper,
tece um comentário semelhante ao que fez sobre o conjunto de formas irre-
gulares dos verbos da 1.ª conjugação, acrescentando a informação sobre a
frequência de uso: «Dizem Corrupto, morto; e poucas vezes corrumpido &c»
(Bacelar, 1783: 91). Se, na primeira citação, Melo Bacelar se inclui nos usuá-
rios das formas participiais irregulares, no caso de corromper, opta por mudar
a pessoa verbal, tornando a forma impessoal («Dizem»).
Quanto a eleger, averba as formas elegido e eleito (Bacelar, 1783: 88).
361
«Soltar, Soltei, Solto, Solta. Contracçaõ de Soltado, Soltada» (Casimiro, 1803:
56).
Há um outro conjunto de verbos que João Casimiro explicita, neste caso
de modo inequívoco, ter duas formas participiais. Trata-se dos verbos romper,
morrer, incorrer, suspender e eleger: «Romper, Rompi, Rompido, a, Roto, a.
Morrer, Morri, Morrido, Morto, Morta. Incorrer, Incorri, Incorrido, Incurso, a.
Suspender, Suspendi, Suspendido, Suspenso, Suspensa. Eleger, Elegi, Elegido,
Eleito, Eleita. Tem dous participios» (Casimiro, 1803: 57). Atente-se no facto
de que, ao colocar a possibilidade de haver o feminino de rompido, Casimiro
deixa implícito o seu uso em contextos predicativos ou de voz passiva. Ainda
assim, esta situação não acontece para mais nenhum verbo, o que pode indi-
ciar que se tratou apenas de um lapso.
É ainda de referir que frigir e imprimir surgem a par de cobrir e abrir,
como verbos a que Casimiro reconhece apenas uma forma participial irregu-
lar (Casimiro, 1803: 58). Como veremos, outros gramáticos contemplam frigir
e imprimir entre os verbos que têm dupla forma participial.
Manoel Dias de Souza (1804: 103-105) aduz, conjugação a conjugação, uma
lista, bem mais longa, de 45 verbos com duas formas participiais: 15 verbos
da 1.ª conjugação (aceitar, entregar, enxugar, excetuar, expressar, expulsar,
gastar, exemptar, livrar, manifestar, matar, pagar, professar, soltar, sujeitar);
13 verbos da 2.ª conjugação (absolver6, absorber, acender, corromper, eleger,
encher, escrever, incorrer, morrer, prender, romper, suspender, torcer), para
além dos vários compostos de escrever, como prescrever, proscrever, subs-
crever; 17 verbos da 3.ª conjugação (abrir, afligir, concluir, contrair, cobrir,
distinguir, distrair, erigir, exaurir, expelir, extinguir, frigir, imprimir, possuir,
reprimir, submergir e suprimir), a que acrescem os compostos de cobrir,
como descobrir.
Especificamente para os verbos pagar e soltar, Souza adiciona uma nota
de rodapé em que indica que «os Participios Pago, Paga he [sic] contração
de Pagado, Pagada; Solto, Solta o he também de Soltado, Soltada» (Souza,
1804: 103). Recorde-se que já Lobato (1770) e Casimiro (1803) registavam esta
6 Para o verbo absolver surgem três formas participiais possíveis: «Absolto, ou Absoluto,
ou Absolvido» (Souza, 1804: 104).
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informação. Todavia, Lobato e Casimiro não tinham a forma regular na lista
inicial, ao passo que Souza averba de imediato as quatro formas para cada um
dos verbos em causa e deixa a informação sobre a contração apenas secun-
darizada numa nota.
Souza adverte claramente que «nos verbos que tem dois Participios, o Par-
ticipio indeclinavel de huma só fórma acabado em o serve para a vós activa;
e o declinavel de duas fórmas serve para a vós passiva» (Souza, 1804: 106).
Apresenta ainda um exemplo idêntico ao de Lobato (1770: 164-165): «No
verbo Romper, o Participio declinavel Rompido uza-se na vós activa, porque
dizemos: Pedro tinha rompido o segredo; e o Participio declinavel Roto, Rota
uza-se na vós passiva; porque costumamos dizer: O segredo foi roto por Pedro,
e não rompido por Pedro» (Souza, 1804: 106). Note-se que mesmo as expres-
sões introdutórias ao exemplo são análogas, reforçando também, como vimos,
a legitimidade advinda do uso e do costume.
Por seu lado, em 1806, António de Morais Silva, natural do Rio de Janeiro,
regista uma lista considerável de verbos abundantes. Silva (1806: 53) começa
por explicar que os «participios do preterito, ou passado» funcionam como
«attributo do verbo passivamente, completo e acabado: v.g. o livro está lido,
a casa caiada, paramentada» ou, alternativamente, como formas invariáveis
«paciente[s] dos verbos Haver e Ter», a que dá o nome de supinos. Os exem-
plos dados por Morais Silva (1806: 53) são os seguintes: «tenho lido livros,
acabado obras, visto Cidades».
Em nota, aquando da explicação das estruturas apassivantes, Morais Silva
(1806: 59) explica mais detalhadamente que «quando se apassivão os Supinos,
são invariáveis: v.g. Tem se impresso7 livros; sentido falta de gente; tem se feito
muita obra». Em tempos compostos a existência de concordância «é erro»,
mas, pelo contrário, quando o verbo ser está acompanhado do particípio pas-
sado, a concordância é necessária na medida em que o particípio funciona
como um adjetivo (Silva, 1806: 59). Assim, os exemplos «as casas tem-se ava-
liado, ou, tem sido avaliadas por vezes» «são exemplos correctos, porque os
adjectivos, que modificão o infinito ser, e os seus gerundio, e supino concor-
363
dão com o sujeito: v.g. o seres bella; em sendo minha te servirei melhormente;
as casas tem sido avaliadas» (Silva, 1806: 59).
Já no capítulo III, ao concluir a enumeração de algumas «composições
viciosas», António Silva (1806: 117) comenta que, na sua contemporaneidade,
não seria correto usar os particípios nas suas formas variáveis em tempos
compostos, como se fazia em tempos idos, e recomenda o uso dos supinos,
formas invariáveis. Ainda assim, não aduz nenhum exemplo com verbos que
considere abundantes, caso em que não haveria apenas a presença de con-
cordância a notar, mas, em princípio, a própria forma participial poderia ser
diferente.
hoje seria um Solecismo supprir os tempos compostos dos verbos, com participios
passivos, em vez dos supinos. Os nossos Autores clássicos muitas vezes o confundi-
rão dizendo: v.g. “Tinhão uns vendidas, e deixadas, outros trocadas as armas pela
mercancia, e posto a fortaleza naquelle estado” (Lucena, folio 375. Col.I.) “Depois
que tivesse vista a Rainha; e depois de a ter visto.” (A. Pinto Pereira, L. I.c.19.) “Não
tem elRei meu Senhor ganhadas as Indias, e quantos reinos tem ganhado” (Com-
ment. D’Albuq. P. I.c. 60.) Hoje compomos os tempos complexos com os supinos,
que são nomes verbaes invariaveis: v.g. tinhão vendido, deixado, trocado as armas:
depois que tivesse visto a Rainha: tem ganhado as Indias: &c. (Silva, 1806: 117-118).
Veja-se que Silva escolhe exemplos em que surgem verbos que têm apenas
forma regular (vender, deixar, trocar e ganhar8) ou verbos cuja única forma
participial é irregular (ver). Assim, ao usar verbos não abundantes, neste capí-
tulo, Silva coloca o foco apenas na variabilidade ou na invariabilidade da
forma participial, não cotejando, para já, casos de verbos com formas duplas.
Morais Silva esclarece que, para além dos tempos compostos, há uma outra
situação em que o particípio passado surge com o verbo ter. Só neste caso, em
que o verbo ter mantém o seu sentido pleno de posse, é que se permitiria o
uso das formas variáveis. No início do século XIX, a diferença entre os tempos
8 Como veremos, o verbo ganhar não está na lista dos verbos a que Silva reconhece
abundância participial.
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compostos e esta outra estrutura de tipo predicativo era, portanto, reconhe-
cida por alguns gramáticos com toda a clareza.
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140-142)11. Na 3.ª conjugação, Morais Silva regista 30 verbos abundantes:
abrir, abstrair, afligir, cobrir, concluir, confundir, contrair, difundir, dirigir,
distinguir, dividir, erigir, exaurir, expelir, exprimir, extinguir, extrair, frigir,
imprimir, incluir, infundir, inserir, instruir, oprimir, possuir, reprimir, sub-
mergir, suprimir, surgir, tingir (Silva, 1806: 158-160)12.
Assinale-se que, para alguns verbos em particular, Morais Silva considera
que a forma irregular é destinada não só a contextos adjetivais e à voz passiva,
como também aos tempos compostos. É o caso das formas roto, junto e morto
(matar) e, também, impresso, como veremos mais à frente.
• roto tambem é partic. e sup. o roto alumno; as rotas velas; vão rotos os Reis de
Sevilha e Granada: tem roto, e destroçado. Supin (Lusiada, Canto 8) (Silva, 1806:
142).
• se tinhão junto muitos varões em Veneza. (Severim, Notic.) (Silva, 1806: 134).
• Matado de Matar? Dizem: a peste tem morto muita gente; João foi morto na
briga; depois de haver morrido, ou ser morta muita gente. Morrido participio
não de diz: v.g. estou morrido; mas morto (Silva, 1806: 135).
Note-se ainda, a propósito do verbo matar, que Morais Silva (1806: 135)
ilustra os tempos compostos com a forma participial irregular morto: «a peste
tem morto muita gente». Apesar da possibilidade de existência da forma regu-
lar matado levantada por Silva, o gramático não chega a exemplificar o seu
uso. O ponto de interrogação utilizado faz crer que Silva a considera possível,
mas, na prática, ele não a ilustra. Na verdade, Morais Silva não faz juízos de
11 Para além dos verbos acima identificados, Morais Silva integra na lista de «supinos e
participios differentes, dos verbos que tem os infinitivos em er» (Silva, 1806: 140) alguns
verbos aos quais, na realidade, só reconhece um dos particípios, o regular. É o que sucede
com apprazer, caber, conhecer, encender, estender, haver, saber e ter. O verbo escrever surge
igualmente nestas tábuas de verbos; porém, Silva (1806: 141) regista apenas a forma irre-
gular, anotando que a forma «escrevido é antiq.». Acrescenta ainda jazer e ser (Silva, 1806:
141-142), que carecem de particípio e têm apenas supino, isto é, forma regular a usar em
tempos compostos. Há ainda o registo de que as formas convicto e interrupto são pouco
usadas (Silva, 1806: 141).
12 Apesar da sua integração nesta lista, há cinco verbos, dividir, instruir, oprimir, repri-
mir e suprimir, para os quais se apresenta a forma irregular como pouco usada (diviso,
instructo, opresso, represso e supresso, respetivamente).
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valor sobre nenhuma das formas, apenas apresenta o que se diz e o que não
se diz, aparentemente com base nos usos.
Mais adiante, relativamente ao verbo morrer, Morais Silva (1806: 141) con-
firma que «morrido nunca é particípio, poisque não dizemos sou, nem estou
morrido, ainda que digamos c’o Supino: tem morrido muita gente», pelo que
essa forma regular é apenas destinada aos tempos compostos.
Quanto a imprimir, salienta que «Imprimido é antiquado», pelo que «dize-
mos: “Tem se Impresso muῖtos Livros: foi o Livro impresso em Lisboa:” chitas
impressas; palavras impressas; &c» (Silva, 1806: 159).
Na Grammatica philosophica da língua portugueza, Jerónimo Soares Bar-
bosa (1822) começa por referir questões de categorização do particípio pas-
sado: o particípio tem como original a natureza adjetival; a forma participial
verbal nasceu a partir do seu uso adjetival passivo (Barbosa, 1822: 289-290)13.
Seguidamente, distingue a estrutura de tempos compostos (com o verbo
auxiliar ter) da estrutura predicativa do particípio com o verbo ter, eviden-
ciando que o processo de gramaticalização estava já bem sedimentado.
uando (…) participios passivos se juntão com o verbo Ter, então este deixa de ser
q
auxiliar, e passa á sua significação natural, e primitiva de verbo activo no sentido
de Possuir; e então em vez do substantivo, em que se exercita a acção do participio
activo, ir adiante deste, passa para traz delle. Porque he couza mui differente dizer:
Tenho escripto hum papel, Tenho feito huma carta, Terei concluido esta obra, do
que Tenho hum papel escripto, Tenho huma carta feita, Terei esta obra concluida
(Barbosa, 1822: 292-293).
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Barbosa (1822: 293) esclarece ainda que «nas primeiras expressões o verbo
Ter he auxiliar, e os participios são activos; nas segundas o mesmo verbo he
adjectivo passivo, e os participios são passivos; que porisso concordão em
genero e numero com os substantivos, que os precedem, e devem preceder
para evitar o equivoco». A ordem é, portanto, um fator importante na distinção
de ambas as construções sintáticas.
Posteriormente, Jerónimo Soares Barbosa (1822: 295-298) regista uma
lista com 96 verbos abundantes: 38 verbos da 1.ª conjugação (aceitar, afei-
çoar, agradar, anexar, aprontar, arrebatar, cativar, cegar, descalçar, entre-
gar, enxugar, escusar, excetuar, expressar, expulsar, fartar, gastar, ignorar,
infestar, isentar, juntar, limpar, manifestar, matar, misturar, molestar, ocul-
tar, pagar, professar, quietar, salvar, secar, segurar, sepultar, soltar, sujeitar,
suspeitar, vagar); 28 verbos da 2.ª conjugação (absolver, absorver, acender,
agradecer, atender, convencer, converter, corromper, defender, eleger, encher,
envolver, escrever, conter, escurecer, estender, incorrer, interromper, manter,
morrer, nascer, perverter, prender, resolver, reter, romper, suspender, torcer);
30 verbos da 3.ª conjugação (abrir, abstrair, afligir, concluir, confundir, con-
trair, cobrir, difundir, dirigir, distinguir, dividir, erigir, exaurir, expelir, expri-
mir, extinguir, extrair, frigir, imprimir, incluir, infundir, inserir, instruir,
oprimir, possuir, reprimir, submergir, suprimir, surgir e tingir).
Quanto ao uso das duas formas participiais, Barbosa (1822: 299) explica
que «não se póde estabelecer huma regra fixa e universal» e acaba por moda-
lizar bastante a apresentação da distribuição sintática ainda hoje maioritaria-
mente indicada pelos gramáticos: «So sim se póde dizer em geral, que os da
primeira forma regular são ordinariamente os verdadeiros participios, ou acti-
vos e indeclinaveis, conjugados com o auxiliar Ter; ou passivos e declinaveis,
conjugados com o verbo substantivo Ser».
Também Soares Barbosa considera que, «pela maior parte», os particípios
irregulares são «contrahidos» a partir da forma regular. As formas irregulares
são «mais huns adjectivos verbaes do que participios» e, normalmente, «indi-
cão huma qualidade subsistente no sujeito», e, por isso, «atribuem[-se] aos
sujeitos melhor com os verbos Ser ou Estar, do que com o verbo Ter, como:
Sou aceito, Sou grato, Estou prompto, Estou afflicto» (Barbosa, 1822: 299).
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Na verdade, Jerónimo Soares Barbosa decide não apenas relativizar a regra
descrita, como ainda aponta inequivocamente usos diferentes para um con-
junto específico de verbos:
Isto não obstante, alguns destes adjectivos verbaes se usão em sentido activo junc-
tos ao auxiliar Ter, como: Tenho entregue, Tenho farto, Tenho escripto, Tenho gasto,
Tenho juncto, Tenho morto, Tenho pago, Tenho acceito: e outros em sentido pas-
sivo, como: Ter Aberto, Coberto, Expulso, Extincto, Eleito, Morto, Preso, Roto, Solto,
&c. (Barbosa, 1822: 299).
O gramático explica até que alguns antigos não conheciam as formas irre-
gulares de alguns verbos, razão pela qual usavam as correspondentes formas
regulares. Barbosa reitera ainda que, em contextos adjetivais e de passiva,
os particípios têm de estabelecer concordância com um nome. Neste caso,
no entanto, o exemplo que aduz não é de um verbo abundante; contém uma
forma regular («premiados»), uma vez que é esta a única forma participial do
verbo.
Muitos destes participios contractos não erão conhecidos de nossos antigos Escrip-
tores, como Afflicto, Acceito, Erecto, Gasto, Isento, Impresso, Pago, &c. e em lugar
deles usavão dos regulares Affligido, Acceitado, Erigido, Gastado, Isentado, Impri-
mido, Pagado, &c. Seja como fôr, estes participios passivos conjugados com o
verbo substantivo em todas suas Linguagens e de seus auxiliares, e concordados
em genero e numero com os sujeitos pacientes das mesmas, fazem a voz passiva
dos verbos activos, como: Se vossos serviços são mal premiados, basta-vos… (Bar-
bosa, 1822: 299).
369
3.3. Consensos e divergências
370
Bacelar (1783: 83 e 88), por exemplo, apresenta formas participiais irregulares
de alguns verbos como preferenciais em relação às correspondentes regula-
res, dando a entender que esta preferência é válida para todos os contextos,
enquanto, para um outro verbo (eleger), indica duas formas participiais sem
pormenorizar os contextos de uso de cada uma delas. Caldas Aulete (1864)
também não esclarece a utilização a dar às duas formas dos 25 verbos que
identifica como abundantes. Do lado oposto, Barbosa (1822) e Monte Car-
melo (1767) explicam detalhadamente os usos das duplas formas participiais.
Encontraram-se evidências de que, nos séculos XVIII e XIX, já se prescrevia
a distribuição sintática que ainda hoje é considerada normativa (Lobato, 1770;
Monte Carmelo, 1767; Souza, 1804; Silva, 1806); porém, também se atesta
variação nos usos participiais. Com efeito, apesar da maior definição da opo-
sição entre o uso verbal e os usos adjetivais do particípio, averbaram-se algu-
mas passagens que comprovam a existência de usos variantes nessa altura.
Tome-se o exemplo de Monte Carmelo (1767: 58-59), que atesta a opinião
de outros eruditos de que era possível utilizar a forma irregular em todos os
contextos. Apesar desta constatação, este autor sublinha que o seu juízo é
contrário. A par da objetividade da descrição linguística, Monte Carmelo não
hesita em prescrever a distribuição sintática das formas participiais.
Pelo contrário, Bernardo Bacelar (1783: 83 e 91) é, precisamente, um dos
que optam por defender o uso da forma participial irregular de verbos como
«cégo, entrégue, enxuto, ganho, gasto, morto, pago, secco, sujo» e «corrupto».
Não identificando, ao certo, nenhum contexto para o uso destas formas, nem
apresentando nenhum exemplo, Bacelar leva-nos a concluir que advoga a
utilização da forma irregular em todos os contextos.
Monte Carmelo (1767: 58-59) dá conta de variação para o verbo ganhar.
Defende a construção «As luvas estám ganhadas» e, simultaneamente, atesta o
uso da forma participial irregular pela plebe nestes contextos.
Morais Silva (1806) atesta, igualmente, o uso de formas participiais irre-
gulares, como roto, junto, morto (matar) e impresso, em frases com tempos
compostos da voz ativa, sem, no entanto, tomar uma atitude prescritiva como
fez Monte Carmelo. Morais Silva opta por registar usos.
O texto de Jerónimo Soares Barbosa (1822: 299) é também revelador da
situação de variação que ocorria no século XIX no que concerne aos verbos
371
abundantes, pois, para além de relativizar a regra de distribuição sintática
apresentada, o autor atesta claramente o uso de «Tenho entregue, Tenho gasto,
Tenho juncto, Tenho morto, Tenho pago, Tenho acceito».
4. Conclusão
372
tempos compostos da voz ativa. Para os muitos verbos não abundantes que
têm apenas uma forma regular, é esta a forma que surge invariável em tempos
compostos da voz ativa. Por outro lado, no caso dos verbos não abundan-
tes que apresentam apenas um particípio irregular, é essa forma que ocorre,
invariável, em tempos compostos da voz ativa. Vimos que, nalguns textos
gramaticais, a apresentação do contexto referido coloca o foco precisamente
na invariabilidade das formas participiais (Silva, 1806: 53; 117-118), a partir
de exemplos com verbos não abundantes. Podemos, portanto, considerar que
este tipo de verbos desempenha um papel importante na continuidade da
redundância participial. Esta situação pode mesmo ter potenciado a situação
de variação no caso dos verbos abundantes.
É conhecido que a redundância participial tem origens muito longínquas
e que não se resolveu até ao século XXI. Sabemos, também, que o percurso
histórico dos vários verbos abundantes é bastante diversificado: uns verbos
têm uma forma regular etimológica (ex.: encarregado), para outros é a forma
irregular a mais antiga (ex.: eleito; preso), e outros, ainda, já possuíam dupla
forma participial desde a origem latina (ex.: aceite e aceitado). Os tempos
compostos estabilizaram-se com um estatuto verbal apenas nos séculos XVI/
XVII. Assim, sabendo que, durante o processo de gramaticalização, a variação
entre forma variável e invariável já existia, e que só podemos considerar que
haveria uma forma prescrita para o contexto em foco depois de este estar
estabilizado, o facto de, logo nos séculos XVIII e XIX, se registar variação
entre formas participiais regulares e formas participiais irregulares nas des-
crições que encontrámos nos textos codificatórios é revelador da histórica
propensão do particípio passado duplo para a situação de variação que, em
certa medida, impede a resolução da situação de abundância.
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phia: University of Pennsylvania Press, Oxford: Oxford University Press).
375
(Página deixada propositadamente em branco)
AMÉRICO VENÂNCIO LOPES MACHADO FILHO
Universidade Federal da Bahia1
[email protected]
ORCID: 0000-0001-7584-0598
V a r i a ç ã o , m u d a n ç a , e s ta n d a r d i z a ç ã o
linguística e ensino do português:
fa c e s d e u m pa r a d o x o
V a r i at i o n , c h a n g e , l a n g uag e
s ta n d a r d i z at i o n a n d t h e t e a c h i n g
o f P o r t u g u e s e : fa c e t s o f a pa r a d o x
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_12
Abstract: There is a biased sociolinguistic polarization in Brazil that has had a per-
verse effect on the socialization of Portuguese language teaching in its schools, especially
in the state ones, since it generates a situation of damaging imbalance with regard to
democratic access to literacy. The degree of variation, stemming from the very singular
aspects of Brazilian socio-history, has contributed to the failure of the linguistic supranor-
mal standardization process, especially in the diastratic dimension, and consequently to the
non-appropriation of the standard norm by many of the speech communities. This apparent
paradox is what we intend to discuss and then to point out possibilities, as we try to discuss
orchestration possibilities for the unsettling scenario found today between the teaching of
the Portuguese language in Brazil and its real effect on the target audience, the vast majority
of the population that probably enjoys samba and whose speech is so far from the norms
of status and the written standard that are allegedly intended to be taught. An outline of the
proposal for its teaching is presented, based on real retextualization activities.
Keywords: variation, linguistic change, linguistic standardization, teaching of Portu-
guese in Brazil
1. Introdução
a raça não melhora, que a vida piora por causa do samba, (...) que o samba tem
pecado, que o samba, coitado, devia acabar, (...) que o samba tem cachaça, mis-
tura de raça, mistura de cor, (...) que o samba é democrata, é música barata, sem
nenhum valor.
378
Primeiro, porque aqui música e fala se confundem e partilham o mesmo desa-
cato. Porque, na sociedade, a fala, assim como o samba, tem alegadamente
“pecado”, tem “mistura de raça” e, na maioria desses casos, alega-se que tam-
bém não “tem valor”, conquanto − para não já esquecer do provérbio citado
acima − possa ainda ser “a voz de Deus”. Depois, porque, além disso tudo,
existe a escola e, dentro dela, há modelos a serem seguidos, padrões a serem
eleitos e conteúdos a serem ensinados.
É sobre esse aparente paradoxo que se pretende discorrer e, consequen-
temente, buscar apontar possíveis saídas, procurando discutir possibilidades
de orquestração para o desafinado cenário hoje existente entre o ensino da
língua portuguesa no Brasil e seu real efeito sobre seu público-alvo, a grande
maioria das camadas da população que, provavelmente, gosta de samba e cuja
fala se manifesta de forma tão distante das normas de prestígio e do padrão
escrito que se pretende alegadamente ensinar.
379
(cf. Lucchesi, 1994), se se comparar essa realidade com a sua matriz europeia
hoje em uso.
Essa polarização sociolinguística criou um efeito perverso no que se refere
ao processo de socialização do ensino da língua portuguesa nas escolas do
país, especialmente nas públicas, já que engendra uma situação de dese-
quilíbrio danoso no que concerne ao acesso democrático ao processo de
letramento.
Considerando que as estruturas linguísticas das normas cultas, sobretudo
em seus aspectos morfossintáticos, estejam relativamente mais próximas das
características reguladoras do padrão escrito do que daquelas das normas ver-
náculas, torna-se, obviamente, muito mais plausível o sucesso escolar para um
aluno que tenha pais plenamente escolarizados e que esteja diariamente sub-
metido a suas características de norma, do que para o aluno que conviva em
comunidades onde, por exemplo, a regra seja a não concordância interna do
sintagma nominal ou a falta de acordo entre este e o sintagma verbal, como em
“Os menino_ fala_”, ou a construção de orações relativas cortadoras, por vezes
com pronome-cópia, como em “A menina _ que eu briguei com ela”, ao con-
trário de “A menina com quem briguei”, formatos morfossintáticos tão comuns
no Brasil e não menos em África (que se acrescente). Isso para não se falar da
questão socioeconômica, o acesso a bens e serviços e seus efeitos em cada um.
A figura 1, abaixo, representa diagramaticamente a polarização linguística
do português brasileiro e a tensão existente entre normas vernáculas e nor-
mas cultas, em face do acesso e do aprendizado do modelo proposto pela
norma-padrão. Enquanto os grupos sociais pertencentes às normas cultas ou
a ela mais expostos aproximam-se muito mais das estruturas linguísticas do
padrão escrito, as comunidades de fala de normas vernáculas situam-se no
polo oposto dessa realidade linguística, enfrentando dificuldades de diferente
ordem para sua apropriação. As portas servem de boa metáfora.
Registe-se que, estatisticamente, «menos de 10% da população adulta tem
escolaridade superior» (Faraco, 2008: 49). Ademais, a distância torna-se ainda
maior se se compreender que «a norma-padrão brasileira codificada no século
XIX não conseguiu se estabelecer de fato, isto é, não conseguiu orientar o
modo como falamos ou escrevemos a língua portuguesa no Brasil» (Faraco,
2008: 84), tampouco, plenamente, em relação aos falantes ditos cultos.
380
Figura 1 – Polarização de normas do português brasileiro
em relação à norma-padrão
381
Napoleão Mendes de Almeida (1985: 7) chega a afirmar, em sua Gramá-
tica metódica, que «se outra for a orientação de ensino, vamos cair na língua
brasileira, refúgio nefasto e confissão nojenta de ignorância». Posição precon-
ceituosa assumida na primeira edição na década de 1940 e jamais revista por
si nas mais de quatro dezenas de novas edições publicadas, mesmo depois de
a linguística ter aportado no Brasil na década de 1960.
Faraco (2008: 61), baseado em dados oficiais, adverte que «dos 10 milhões
de jovens brasileiros entre 15 e 17 anos, metade está fora da escola». Sabe-se,
entrementes, que um dos motivos para o abandono escolar é o insucesso em
disciplinas como Português e Matemática. Napoleão Mendes de Almeida e
muitos que seguiram suas pegadas são ainda referências para o aprendizado
da língua portuguesa em muitas escolas nacionais.
Ademais, como bem regista Soares (2014: 157), «o que é considerado
problema de aprendizagem dos alunos resulta, na verdade, de faltarem às
professoras conhecimentos sobre os processos cognitivos e os fundamentos
linguísticos de aprendizagem da língua escrita».
382
Figura 2 – Concepção discursiva versus meio de produção (Marchuschi, 2001: 39)
383
Essas considerações permitem assegurar que língua falada e língua escrita
distribuem-se em um continuum, observável a partir dos produtos tex-
tuais que são gerados no processo das práticas sociais de interação linguís-
tica, oralidade e letramento. A figura 4, a seguir, demonstra as bases desse
posicionamento.
384
Embora de formulação estimulante, as operações propostas não revelam,
suficientemente, de que maneira o aluno seria levado a compreender a estru-
tura linguística que estaria sendo convidado a conhecer (ou reconhecer), já
que não lhe são fornecidas regras incontestes de equivalência, prevalência,
movimento ou substituição das peças do sistema, como seria comum no
aprendizado do jogo de xadrez, por exemplo.
Mas, como o mais importante de uma ideia é a possibilidade de despertar
acrescentamentos e outras reflexões, o trabalho é um alento para aqueles que
têm procurado saídas para o ensino do português na sociedade brasileira
moderna, em especial para as camadas da população que sequer comida têm
para articular entre os dentes, ao invés das palavras.
As tentativas iniciais de aplicação do modelo marcuschiano indicaram,
logo a priori, a necessidade de uma distinção terminológica fundamental:
retextualizar e reescrever se referem a atividades distintas, embora sejam
ambas confundidas, por alguns, nas práticas de letramento. Uma metáfora
pode servir para desembaraçar esses conceitos: o texto metaforicamente inter-
pretado como uma rede de pesca.
Se se imaginar uma rede que apresente algumas falhas teciduais, por onde
possam escapar alguns peixes, quer originadas do processo de fabricação,
quer decorrentes de seu natural desgaste, cabe ao pescador providenciar sua
recuperação, em razão de sua plena adequação para o uso, ou seja, para o
melhor aproveitamento de sua habilidade pesqueira. É assim na reescrita, as
inadequações formais do texto são identificadas pelo professor que sugere
refazimentos pontuais em sua estrutura, seja na perspectiva lexical, morfoló-
gica ou sintática, seja nos aspectos pontuacionais, nos indicadores formais3
ou em função de marcas de uso. Essa é uma estratégia didática comum no
ensino de vários vernáculos no mundo.
Retextualizar, entretanto, pressupõe uma outra dimensão de trabalho. Seria
como se o pescador se visse diante de um novo desafio na vida, em razão das
alterações das condições do ecossistema da região em que desenvolvesse sua
profissão. Antes utilizada para a captura de peixe, a rede perde sua função em
385
face de uma alegada inconsequente pesca predatória que teria inviabilizado
economicamente essa atividade: coisas do destino!
No rescaldo pela sobrevivência, lhe resta, naquele habitat, como única
possibilidade de pesca, o siri, vendo-se obrigado a desfiar suas redes e reuti-
lizar os fios resultantes desse processo para a construção de jererés4. Isso
equivale dizer que o professor na atividade de retextualização deve, junto
com seu aluno, identificar, dentro do possível, todos os valores dos elementos
presentes na estrutura original, sobre a qual quer intervir, e, com base nas
operações propostas por Marcuschi (2001) em consonância a regras claras de
equivalências, movimentos e substituições, propor novos formatos, utilizando
como novelo ou fio-condutor o sentido expresso na proposição original, sem
qualquer alteração no conteúdo semântico do enunciado ou enunciados.
4 Jereré, palavra originada do tupi, indica uma rede de formato cilíndrico e côncavo,
utilizada para a pesca de crustáceos decápodes.
386
É (...) não aprendi nada (...) fui pra o colégio mais ou menos assim uns sete a
oito meses (...) cheguei lá no colégio a professora passava assunto no colégio no
quadro assim (...) explicava (...) eu fazia tudo (...) esforçava bastante pra ver que
entrava alguma coisa assim na minha mente (...) mas não entrava nada (...) eu ia
(...) chegava lá no colégio (...) muitas pessoa muitos mais novo do que eu (...) novi-
nho assim pequeno (...) eu um galalau daquele ficava sem saber nada (...) ficava
todo assim meio envergonhado.
É (...) não aprendi nada (...) fui pra o colégio mais ou menos assim uns sete a
oito meses (...) cheguei lá no colégio a professora passava assunto no colégio no
quadro assim (...) explicava (...) eu fazia tudo (...) esforçava bastante pra ver que
entrava alguma coisa assim na minha mente (...) mas não entrava nada (...) eu ia
pra casa pensando naquilo ali (...) outro dia quando eu ia pra o colégio ficava pen-
sando naquilo ali (...) chegava lá no colégio (...) muitas pessoa muitos mais novo
do que eu (...) novinho assim pequeno (...) eu um galalau daquele ficava sem saber
nada (...) ficava todo assim meio envergonhado.
não aprendi nada (...) fui pra o colégio mais ou menos sete a oito meses (...)
cheguei lá no colégio a professora passava assunto no colégio no quadro expli-
cava (...) eu fazia tudo (...) esforçava bastante pra ver que entrava alguma coisa
na minha mente (...) mas não entrava nada (...) eu ia pra casa pensando naquilo
(...) outro dia quando eu ia pra o colégio ficava pensando naquilo (...) chegava lá
no colégio (...) muitas pessoa muitos mais novo do que eu (...) novinho pequeno
(...) eu um galalau daquele ficava sem saber nada (...) ficava todo assim meio
envergonhado.
387
O que interessa didaticamente nessa operação é alertar o aluno para a
possibilidade de identificar elementos que, normalmente classificados como
advérbios ou conjunções pela ótica tradicional, possam representar, no con-
texto, meros marcadores conversacionais ou encadeadores discursivos, de
função meramente interativa, prototípicos da fala, portanto.
A segunda operação sugerida pelo autor, «introdução da pontuação com
base na intuição fornecida pela entoação das falas», uma estratégia conside-
rada de inserção, pareceu, na sua aplicação prática, bastante contraprodu-
cente, no sentido em que pode levar o aluno ao erro, sobretudo porque a
prosódia tende a contrariar comumente as regras da escrita, a exemplo da
separação entre sujeito e predicado, tão comum em textos escolares, tendo
sido, portanto, desconsiderada.
Não obstante, a terceira operação, voltada para o que chama o autor de
“condensação linguística”, prevê a «retirada de repetições, reduplicações,
redundâncias, paráfrases e pronomes egóticos», é uma das mais ricas para o
treinamento de redação em discurso indireto, para o estudo da morfologia
verbal e excelente oportunidade para conhecimento e fixação do paradigma
pronominal, uma das principais dificuldades enfrentadas pelos falantes de
normas populares na tentativa de emprego do padrão.
não 1aprendi1 nada (...) 2fui2 pra o colégio mais ou menos sete a oito meses (...)
3cheguei lá no colégio a professora passava assunto no colégio no quadro expli-
3
cava (...) [4]eu 4/5fazia5 tudo (...) 4/6esforçava6 bastante pra ver que entrava alguma
388
coisa na [7]minha mente (...) mas não entrava nada (...) [8]eu 8/9ia9 pra casa pen-
sando naquilo (...) outro dia quando [10]eu 10/11ia11 pra o colégio 10/12ficava12 pen-
sando naquilo (...) 10/13chegava13 lá no colégio muitas pessoa muitos mais novo do
que [14]eu (...) novinho pequeno (...) [15]eu um galalau daquele 15/16ficava16 sem
saber nada (...) 15/17ficava17 todo assim meio envergonhado.
Diz que não aprendeu nada. Foi para o colégio durante sete ou oito meses, mais ou
menos. A professora explicava o assunto no quadro mas, embora ele se esforçasse,
para ver se entrava alguma coisa em sua mente, ele não aprendia nada. Ia para casa
pensando nisso. Outro dia, ao se dirigir ao colégio...
6. Concluindo
Foi função deste trabalho discutir a dificuldade que muitos falantes de nor-
mas populares no Brasil enfrentam no estudo da língua portuguesa, sobretudo
na aquisição de uma competência escrita, assim como apresentar um esboço
de proposta para seu ensino, com base em atividades reais de retextualização.
389
Obviamente, a compreensão do modelo que se apresenta só pode ser
melhor alcançada a partir do detalhamento de cada uma das operações, in
medias res, ou seja, em plena ação.
Não obstante, funda-se o trabalho na certeza de que as estruturas linguís-
ticas da fala, mesmo aquelas mais distantes das normas de prestígio, servem,
se devidamente aproveitadas, de excelente material de consumo para aulas
de português, permitindo com que léxico, morfologia, morfossintaxe, sintaxe
e semântica revelem-se ao aluno a partir da sua própria intuição linguística.
É claro que o sucesso de todo o processo se apoia na habilidade, conheci-
mento e treinamento do próprio professor.
Magda Soares (2000: 30) afirma que a
discriminação das crianças das camadas populares na escola – indicada pelos altos
índices de repetência e evasão – aparece, nas sociedades capitalistas, como uma
ameaça ao ideário que as fundamenta e justifica. O princípio básico desse ideário –
a “igualdade de oportunidades” – vê-se negado, quando se evidencia que a escola
não serve igualmente a todas as crianças: crianças das classes favorecidas obtêm
sucesso, enquanto crianças das camadas populares enfrentam dificuldades de
aprendizagem, fracassam, abandonam o sistema de ensino mal iniciam o período
de escolarização obrigatória.
390
rentes normas de uso, como imanentes à própria natureza linguística, já que
não existem línguas sem variação e sem diferentes normas de fala. Depois,
assegurar o acesso democrático ao padrão linguístico que todos os cidadãos
devem efetivamente dominar.
Isso só se dá se se reconhecer que no Brasil há efetivamente uma situação
de «língua e sociedades partidas», para se citar Lucchesi (2015: 14), que diz,
ao comentar uma recente polêmica gerada por um livro aprovado pelo MEC,
em que se apresentava como normal a estrutura “nós pega o peixe”, que a
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391
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392
ANABELA LEAL DE BARROS
Universidade do Minho
[email protected]
ORCID: 0000-0002-2959-9200
A p o n ta m e n t o s l e x i c a i s s o b r e o “ L i v r o
das Propriedades” ou Tombo da Mitra
A r q u i e p i s c o pa l d e B r a g a : d e s i g n a ç õ e s d e
terras e outros aspetos das propriedades
L e x i c a l n o t e s o n t h e L i v ro da s P ro p r i e da d e s
[ B o o k o f E s tat e s ] T o m b o da M i t r a
A r q u i e p i s c o pa l d e B r a g a : l a n d d e s i g n a t i o n s
and other aspects of properties
Resumo: Analisam-se neste trabalho alguns aspetos lexicais relativos à tipologia do ter-
reno, das terras e das casas no códice inédito que se conhece como o ”Livro das Proprieda-
des”, ou Tombo da Mitra Arquiepiscopal de Braga, no qual abundam formas como campo,
lata, leira, chão, chãozinho, pedaço de chão, bouça, boucinha, devesa, lameira, vinha,
lamela, cortinha, veiga, agra, outeiro, outeirinho, souto, casal, monte; ou ainda, numa área
semântica mais ampla, corte colmada, eira, eirado, rossio, pombal, pardieiro, sobrado, casa
sobradada, estrada, etc. Albergando nos seus quase setecentos fólios de tamanho grande,
compactamente preenchidos em português, e passados a limpo, uma extensa e pormeno-
rizada relação das propriedades emprazadas e das rendas da Mesa Arcebispal de Braga,
que se estendem, em alguns casos, até bastante longe desta cidade, sobretudo nas regiões
do Minho e de Trás-os-Montes, são no manuscrito abundantíssimas e muito sistemáticas
as referências aos tipos de terreno – agrícolas, construídos, arranjados ou de mato –, aos
nomes de ruas, lugares, povoações, proprietários, e também os apontamentos biográficos
e genealógicos, as indicações dos produtos semeados, dos tipos de árvores existentes, e
ainda valiosa descrição das casas rústicas e suas caraterísticas. A edição do manuscrito, em
curso, permitirá completar e enriquecer o estudo geográfico, sociocultural, agrícola, econó-
mico, arquitetónico, religioso e linguístico de Braga e do Minho nos séculos XVII- XVIII. A
sua transcrição tornará possível a criação de uma ampla base de dados, de um glossário,
que promete ser muito rico, dos termos usados nessa relação, incluindo longas listas de
nomes das terras e respetivos proprietários, emprazadores e cultivadores, importantes para
a genealogia das famílias bracarenses, minhotas e transmontanas – entre outras, já que
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_13
as propriedades da Mesa Arcebispal de Braga se estendiam a lugares tão distantes como
Santarém, onde povoações, pessoas e propriedades foram igualmente objeto de inventário.
Palavras-chave: história do léxico, designações de terras, português setecentista
Abstract: This work focuses on some very rich lexical aspects related to the typology
of land and houses in the unpublished codex known as the Book of Estates, or Tombo da
Mitra Arquiepiscopal de Braga. Its nearly seven hundred large pages, compactly filled in
Portuguese, contain an extensive and detailed list of leased properties and incomes of the
Mesa Arquiepiscopal de Braga, which in some cases extend quite a long way from this city,
especially in the regions of Minho and Trás-os-Montes. The publication of the manuscript,
now in progress, will complete and enrich the geographical, socio-cultural, agricultural,
economic and religious study of Braga and the Minho in the 17th-18th centuries. Its trans-
cription will make it possible to create a broad database and a glossary of the terms used in
this inventory. This promises to be very rich and should include long lists of the names of
plots of land and their owners, long-term holders and farmers, important for the genealogy
of families in Braga, the Minho and Trás-os-Montes, among others, since the estates of the
Mesa Arquiepiscopal de Braga extended to places as far away as Santarém, where settle-
ments, people and estates were also subject to inventory.
Keywords: history of the léxicon, land designations, 17th century Portuguese Language
1. Introdução
394
A imponência, resistência e qualidade do volume relacionam-se facilmente
com a importância do seu conteúdo e com o seu valor legal e patrimonial, de
referência. Daí também o facto de ser uma obra passada a limpo e de apre-
sentação cuidada e rigorosa, embora manuscrita. Sendo raras, as emendas no
texto limpo apresentam-se sempre sem rasura, como é comum nos documen-
tos notariais (sublinhados meus):
• por nomeação que nella fez a emprazadora Margarida da Rocha sua filha digo
sua tia (291)
• leuará de semeadura dous digo seis alqueires (292v)
• que entesta do sul co’ Casa delle Martim alres’, e do poente co’ Cortes delle
Yoão Lopes digo do poente co’ Caminho da igreẏa (381)
• A Leyra de So o Mato, que tem de comprido de Nacente a poente vinte digo
nouenta e duas varas de comprido (570v)
395
nado e partilhado pela comunidade, durante a visita aos locais. Veja-se esta
passagem relativa ao couto de S. Mamede de Riba-Tua, em Trás-os-Montes
(mais precisamente no Alto Douro):
396
Arcebpo’ Dom João Afonso de Menezes 11-3-1585, Manoel de Lemos
Arcebispo Dom frey Agostinho de Jesus 18-2-1594; 2-8-1597, Manoel
de Lemos
8-10-1600, Feleciano Carualho
Para além das referências a esses escrivães (”Manoel de lemos escriuão dos
prazos da Mesa Arcebispal”; ”feleciano de Carualho escriuão dos prazos da
397
Meza”, etc.), menciona-se igualmente como escrivão do Livro das Proprieda-
des ou Tombo da Mitra o nome de Gaspar de Medeiros: ”por me constar por
fe de Gaspar de Medeyros escrivão deste tombo” (572v).
398
• campo da Macejra
• Campo da Madanella
• Campo da Paurda
• Campo da Rabadejra
• campo da Refeita
• Campo da Sobresa
• Campo da sẏnoga
• campo de Ardegões
• Campo de Bracellejros [?]
• Campo de Cansinoga de baixo
• campo de Carualha
• Campo de Cernados de baixo
• Campo de Domes
• Campo de freyos
• Campo de Paula
• campo de Pereiras
• Campo de Ribas
• Campo de Santa Anna
• Campo de Seposa e so a longra
• Campo de So a longra
• Campo de So a Regueira
• Campo de Valinho/Balinho
• Campo de Villar
• Campo do Amarelal
• Campo do ameal de Baixo
• Campo do Barrejro
• campo do Cortinhal (outro)
• Campo do Cortinhal de cima
• campo do Couello
• Campo do enxido
• campo do foyo de cima
• Campo do heido Velho
• campo do Panelejro
• Campo do Picoto
• campo do Redolho
• Campo do Rio
399
• campo dos Merlões
• Campo dos Moinhos
• Campo que se chama da Lauandejra de Baixo
• Campo que se chama de Rendejros (vd. Casal...)
• Campo que se chama foẏo de Baixo
• Campo sobre sy a que chamão a lamella grande
• Campos das Portellas
• Campos de Casais
400
propriedades rurais, incluindo ou não casas. No que respeita às terras ou
terrenos, opta-se nesta abordagem inicial pela mais vaga apresentação alfa-
bética, embora sendo já evidente que, transcrito todo o códice, será muito
produtiva a sua organização e estudo por campos semânticos e lexicais de
menor âmbito, já que as terras recebem designações determinadas pelo seu
formato (como chave, manguela ou bico de terra); divisíveis pelo tipo de
plantas ou espécimes botânicos que nelas se encontram ou cultivam (como
ameal, feijoal, nabal, rabaçal, linhar, pomar, touça, bacelo ou vinha); dosea-
das pelo seu tamanho (bouça, boucinha; chão, chãozinho; campo, campinho;
cortelho, cortelhinho; lamella, lamelinha; leira, leirinha); condicionadas pelos
acidentes do terreno (chão, uma terra plana, de planum; comaro, combro,
cumarejro, em forma de lomba), pela existência ou não de água, etc. São os
seguintes aqueles que se recensearam até à data:
• agra
Na lexicografia portuguesa conhece-se-lhe frequentemente apenas um sen-
tido geral e vago, enquanto ‘terreno cultivado ou cultivável’ – em latim,
ager, agrī designa a ‘terra cultivada, campo, terreno’, representando agrāris
o ‘agricultor’ e agro, de agrum, ‘campo, brejo’. Corominas e Pascual (1980:
s.v. agro) referem atestações de agro em castelhano desde 1645, como cul-
tismo, tendo-se a forma tornado popular apenas na Galiza, na primeira
acepção de ‘extensión de tierra labrantía’, a que se segue a de ‘territorio
de una ciudad’. Em galego e em português consideram-nos frequentes nos
séculos XIV-XVI, dando agra também como muito usada em Santiago por
vega y ‘grandes heredades’ (la agra de Padrón, la agra de Seaia). Pode
incluir várias leiras.
No Dicionario da Real Academia Galega, o substantivo agra, sempre dife-
rente de agro, remete para uma forma antiquíssima de aproveitamento
comunal dos terrenos agrícolas: ‘Grande extensión de terra de cultivo divi-
dida en leiras ou agros que pertencen a distintos donos’ – Todas as aldeas
de Galicia teñen a súa agra.1
1 https://academia.gal/dicionario/-/termo/busca/agra
Documentação antiga em galego pode achar-se no Dicionario de Dicionarios de Galego
Medieval: http://sli.uvigo.es/DDGM/ddd_pescuda.php?pescuda=agra&tipo_busca=lema
401
(1) Titulo das propriedades que estão na Agra da Barroza // Item Hua’
Leira, que parte do Nacente co’ o Caminho... (297)
(2) Na dita Agra da Ceposa outra leira que esta ao longo do Mato (293v)
(3) Na Agra de Mouris a leira chamada de Gostim (381v)
• agro
Em Bluteau (1712-21), ‘campo de terra frutifera’. Na parte já transcrita do
códice figura apenas como topónimo.
parte do nacente co’ terra de Belchior ledo e co’ o Caminho que uay pera
Redondello, e do poente co’ a Veiga do Agro (298)
• ameal
‘Lugar ou terreno povoado de amieiros’, amieiral. No Dicionario de Dicio-
narios registam-se em galego as variantes ameal, amial, amenal, almenal e
amieiral.
(1) do poente parte com terra da ygreẏa e do Norte co’ outro Campo, e do
sul co’ ameal e co’ a Veiga (293)
(2) parte do Nace’te com outro ameal, e do poente co’ ameaes de franco da
Rocha (293v)
• bacello
Machado (19672) regista bacelo, do latim bacillu-, desde 1001, todavia,
apenas refere o sentido original de ‘pequeno bastão’ e ‘vara conduzida pelos
lictores’. Como propriedade menciona apenas bacelar, ‘plantação de bacelo’,
todavia, no códice em estudo o substantivo parece designar já o ‘terreno
plantado de bacelo ou vides com raiz que se transformarão em videiras’, isto
é, vinha ou ‘terreno destinado a vinha’. Bluteau (1712-21) reserva bacello
para a ‘vide (plantada ou a plantar)’ e bacellada para o ‘lugar plantado de
bacello’.
(1) e Na mesma Cortinha outro bacello, parte co’ Martim goncalues e co’
caminho da portella tem de comprido oytenta e quatro uaras, e de largo
quarenta e duas. leuara de Caua cinquo homes (240)
(2) Dentro deste campo esta hu’ bacello que se uaj fazendo, aonde se desfez
hu’ pardiejro e hu’ repartimto de horta (381v)
402
(3) E logo ahi contra o Nacente hum bacello cerrado Sobre sẏ (...) te’ quatro
oliveyras (573)
• bouça
Machado (19672) atesta bauza em 944 e bouça em 1098, propondo como
étimo baltea, o plural neutro do adjetivo balteus, substantivado (‘o que
cinge’). Mencionado como termo minhoto na acepção de ‘terreno onde se
cria mato para adubo, por não ser próprio para cultura’, tem, a seu ver,
sentido mais lato, já que também se lhe atribui o fornecimento de mato
e lenha, noutra fonte. Também é termo corrente em Trás-os-Montes. Ora,
neste códice a bouça é claramente ‘pedaço de terra cultivada e cercada,
onde crescem cereais’:
(1) Hua’ Bouça logo acima cercada de Parece com carualhos ao Redor
(384v)
(2) Laura estas Bouças fruitoso dias laurador e Morador em Villarinho
(571v)
(3) tem esta Bouça chamada de Santo Estevão e por outro nome o casal
Novo (572)
(4) iunto a esta Bouça outra Bouça toda cercada sobre sy. Parte do Nacente
co’ o Mo’te e do poente com terras deste casal e do Norte com terras do
cabido, e do sul tambe’ leuara de semeadura dez alquejres de centeo pouco
mais ou Menos tem Uuejras ao Redor (572v)
• boucinha
Duas Boucinhas pegada hua’ na outra co’ hu’ Mato pello meo trazenas
os herdeiros de João Antunes, leuarão ambas de semeadura oito alquejres
(294)
• campo
Do lat. campus, etimologicamente ‘planície; praça, na cidade de Roma;
campo livre, espaço largo’ (Machado, 19672). Substantivo que designa no
códice vários tipos de terra ou de terreno de cultivo.
403
hum Campo a que chamão do Salguejral, (...) leuara de Semeadura seis
alquejres tem dous repartimentos pello meo (574v)
• campinho
(1) Vai por entre ele pelo caminho abaixo, e entre o campinho da eyra
Velha do terço (573)
(2) hu’ campinho a que chamão de traz a Adega (575)
• Campo Lauradio
esta Deuesa leuara doze pera quatorze alquejres fazendose e’ Campo
Lauradio (382)
• campo Razo
parte do Nacente co’ a lamella e do poente co’ campo Razo (293)
• casal
Machado (19672) documenta casal desde 870. Derivado de casa (< lat.
casa, ‘choupana, casebre’), o substantivo casale- transporta o significado
de ‘relativo, pertencente a casa’ e, substantivamente, ‘limites de uma proprie-
dade; quinta, fazenda, herdade, granja’, a que se veio somar, por extensão, o
par dos donos dessa propriedade rural, marido e mulher’. Corominas e Pas-
cual (1980: s.v. casa) documentam-no desde o século XIV, nas acepções de
‘conjunto de casas, casa solariega’, ‘ruinas, lugar que había estado habitado’.
Nessa mesma linha se apresenta o seu significado no Dicionario da Real
Academia Galega: ”casal s.m. 1. Casa de campo con todas as súas terras
e pertenzas. Moitas xeracións se criaron nese casal. 2. Conxunto de casas
que forman un pequeno grupo no campo ou dentro dun pequeno núcleo
de poboación. Os veciños do casal xúntanse na pequena praza. SIN. quin-
teiro, rueiro. SIN. casar3, casarío”.
404
e Ao Valecinho hua’ terra, que leua de semeadura oito alquejres (...) e Ao
Mesmo Ribejro do Moinho hua’ Vinha que leua seis homes’ de Caua (240v)
• chão
Do latim planu-, designa uma ‘terra plana, não acidentada’.
hu’ pedaço de deueza Cortadia com hu’ chãosinho que se chama das for-
migas (291v)
• chaue
Não se achou nas obras lexicográficas esta acepção de ‘tira ou faixa de terra
em forma de ferrolho, chave ou barra de lagar (?)’ dos termos llave ou chave,
do lat. clave-.
(1) e dahi uay partindo do poente co’ a dita quebrada ate o Canto da parede
da quebrada que se mudou mais abaixo do que era, e uay pello combro e
parede, ao caminho que uay da igreya (236v)
405
(2) parte do Norte co’ Mato e do sul co’ terras da Igreya de santa locaya e
Comarejro e do Norte co’ terras e Mato de Antonio Soejro (298v)
(3) per hu’s penedos grandes Redondos q. estão no Comaro do sul hum
defronte do outro (570)
(4) Esta Bouca chamada da Costa de Baixo está tapada e cercada sobre sy
per comaros e Matos (571)
• cortelho
Apesar de provir do diminutivo latino cohorticula/-u, de cohorte, ‘cur-
ral, pocilga’, não aparenta nomear em português um terreno especialmente
pequeno, diminutivo de corte, já que pode apresentar um tamanho maior
do que outros tipos de terreno (vd. ex. 1), incluindo leiras, e tendo em aten-
ção que estava em uso em português a sua forma diminutiva cortelhinho.
Segundo Corominas e Pascual (1980: s.v. corte), a forma feminina parece
ser a primitiva. Referem cortijo no cast. desde o século XIII, atestando
cortelho e cortelha no português e cortello no galego. García de Diego
(19893) define o cast. cortijo como ‘finca rural’ e ‘tierra de labor con casa’.
Machado (19672) atesta cortelho desde 1299, precisamente num documento
do âmbito das propriedades que revertiam para a Igreja: ”Mando a mha
casa, e hum coitello (sic), ao Cabidoo por pitança”.
(1) O Cortelho, que se chama o talho todo cercado sobre si per uallo, parte
do Norte com estrada que uay pera Villa de Conde, e de Nacente poente e
sul co’ terras do mostrº de Villa de Conde tem de Nacente a poente vinte
e oito uaras, e de largo pella parte do poente quatorze varas e pella do
Nacente hua’. leuara de semeadura tres quartos de centeo (382)
(2) Iunto a Agra de São Sebastião está hum Cortelho q’ chamão o Cortelho
do Rego de Rilho no qual esta hua’ leira desta propriedade (298v)
• cortelhinho
Logo abaixo caminho em Meo hu’ Cortelhinho cerrado sobre si (...) tem de
comprido de Norte a sul trinta e tres Varas e de largo Vinte hua’ e leuara de
Semeadura alquejre e meo. digo hu’ alquejre. Regasse E limasse co’ a sobre-
dita agoa (573v)
• cortinha
De corte, ‘terreno cercado ou tapado, junto da habitação’; ‘courela lavradia
estreita e alongada’ (Costa e Melo, 1982). Em Morais Silva (19906), ‘leira de
406
terra’. Corominas e Pascual (1980: s.v. corte) referem, em galego, cortiña,
‘tierra cercada, para el cultivo de legumbres y cereales’ e curtiña (‘pequeña
huerta cerrada’; e já desde o século XIII cortynna, com o mesmo significado
ou o de ‘quinta de placer’; no transmontano e no minhoto registam, de Leite
Vasconcelos e Viterbo, cortinha, ‘campo junto da povoação’, ‘terra de semea-
dura, cercada de parede’. García de Diego refere o gal. cortiña (de cohors,
cohortis, ‘curral’), na acepção de ‘prado’.
(1) e hua’ Cortinha pegado nas casas tapado de parede, que leuara de
semeadura tres alqres (136v)
(2) a torgueda hua’ Cortinha, que leua de Semeadura des alqueires (240v)
• cortinhal
Tanto pode corresponder a uma cortinha como a várias: ‘propriedade divi-
dida em cortinhas; cortinha vedada’ (Costa e Melo, 19825’); Corominas e Pas-
cual (1980, s.v. corte) registam apenas cortinal no castelhano, oferecendo
a definição de Covarrubias: ‘pedazo de tierra cercada, cercano al Lugar’. Em
Morais Silva (19906), ‘terra aproveitada e adubada, cercada de paredes; à
maneira de horta ou jardim’. No códice pode conter vários campos:
(1) parte do Nacente co’ Vinha de Antonio enes, e do poente co’ Diogo
pereira, e do Norte co’ o dito Domingos Afonso e do sul co’ campos do
Cortinhal (294v)
(2) parte do Nacente co’ as suas casas e do poente co’ terra de Catarina
fernandes, e do Norte co’ o souto e do sul co’ Caminho que uay pera os
cortinhaes (295)
• couto
Substantivo formado por via popular, atestado desde 1082 (e com variante
coito conhecida desde 1311) e que tem o adjetivo cauto como forma diver-
gente culta, do latim cautu- (Machado, 19672). Propriedade ampla, englo-
bando diversos tipos de terras e casas, incluindo o casal.
407
(3) parte de todas as partes co’ monte do Mesmo Couto (292v)
• devesa
Corominas e Pascual (1980) registam dehesa, ‘tierra destinada a pastos’, e
oferecem documentação medieval de defesa e dehesa no castelhano, em
português defesa e devesa, sendo esta a única forma atestada no galego; do
lat. tardio defensa, na acepção medieval de ‘proibição’, ”porque la dehesa
está comúnmente acotada”. No Dicionario da Real Academia Galega põe-se
em evidência a florestação de tal terreno, todavia, as atestações do códice
em estudo ora no-lo apresentam florestado ora semeado (seja totalmente
livre das primitivas árvores ou apenas delimitado por elas): ”devesa. s.f.
Terreo extenso, poboado de árbores non moi mestas, normalmente valado
ou cercado. Cortaron as últimas faias que quedaban na devesa”. Machado
(19672) oferece atestação de devesa desde 961.
(1) e semeandosse esta na forma Deuesa leuara doze pera quatorze alque-
jres fazendose e’ Campo Lauradio (382)
(2) hu’ pedaço de deueza Cortadia com hũ chãosinho (291v)
(3) outro pedacinho de Deueza, que serão cincoenta pés de Carualhos e
Castanhejros (574v)
• eido
Do latim aditu-, ‘acesso, entrada’, sendo forma divergente da culta ádito;
documentada desde o século XIII, apresenta no século XIX a variante aido,
em Eça de Queirós; regista-se também em galego na acepção de ‘morada,
tierra nativa’ (Machado, 19672). Em Morais Silva (19906), ‘recinto para ani-
mais, anexo às casas aldeãs; pátio; quinteiro, quintal’; em Costa e Melo
(19825) figura também ‘sítio’. No dicionário manuscrito de 1769 correspon-
dente ao códice 2126 da Livraria, Arquivos Nacionais-Torre do Tombo, que
acabo de editar (Barros, 2018), o significado é, de facto, mais abrangente:
”Eido, ou heido – A minha quinta, o meu eido” (fl. 173).
408
• eira (vd. recio; recio dejra)
Do latim area, que possuía não apenas o significado de ‘espaço para bater
cereais, ou eira’, mas também os de ‘superfície, solo unido, plano’; ‘local
para edificações’; ‘canteiro’, etc. (Machado, 19672).
(1) Item o Pumar e a Eira que ficou de João Antunes que agora está de
Vinha leuara de semeadura dous alquejres (294v)
(2) da parte do sul entesta com o Recio e portello por onde passão pera a
igreya e do Nacente co’ o Recio da ejra (381)
(3) logo pegado com a eyra hum campo cerrado sobre sẏ, que também se
chama da eyra, parte do Nacente com a dita eyra (573)
• eirinha
O Campo da eyrinha cercado sobre sẏ parte todo a Roda com Caminhos
públicos (573)
E Hum eirado aonde viue’ estes casejros que he seruentia delles e seruese
pera o Norte aonde esta a ejra deste assento, e laurandosse este Recio leuara
de semeadura hu’ alquejre de pão
• feijoal
Derivado de feijão.
Item So o feiyoal no campo da Refeita hua’ Leira Marcada por Marcos (297)
• fojo
Do lat. fodiu-, de fodere (Machado, 19672); ‘cova, buraco’ ou ‘terra que
evidencia uma’.
409
parte’ do Nacente co’ o Monte do Pombal, e do poente co’ caminho da Villa,
e do Norte co’ Caminho da Veiga, e do sul co’ foyos (294)
• herdade
Morais Silva (19906) define-a como ‘prédio rústico, vulgarmente constante
de montados e terras de semeadura; quinta grande’. De hereditate-,
‘herança, acto de herdar e o que se herda’. Em Bluteau (1712-21) tem acep-
ções vagas quanto ao tipo de propriedade, sendo de tamanho grande no
contexto alentejano: ‘quinta, campo, cerro, que se tem herdado de seus
pays’; no Alentejo, ‘campos, que constão de montados, sorvaes, & terras de
pão, e por serem dilatadas, e renderem muito, se chamão Herdades’.
(1) Outra herdade de Cortinha (...) e Mais outra herdade centeejra (238)
(2) hum Campo a que chamão do Salguejral, que parte do Nacente co’ pro-
priedade de fellipe de coimbra, (...) e do Norte com herdade de Belisenda
de Olivejra (574v)
(3) E No meo deste campo está hu’ pedaço de herdade dizimo a Deos (575)
• horta
De horto (< hortu-, ‘horta, pomar’, cujo plural, horta, também signifi-
cava ‘parque; casa de campo, herdade’); documentada por Machado (19672)
desde 1064.
Iunto a este pardiejro está hua’ Vinha pumar horta e prado tudo cercado
sobre sẏ de parede e Mato, a qual Vinha era antes pumar e horta (296)
• lamejra
De lama.
e uay partindo do poente por Marcos, ate a lamejra das favas co’ a terra do
dito yorge tejxejra e encerra a dita lamejra pello cimo (236v)
• lamejro
De lama. Pode subdividir-se em leiras:
(1) No mesmo lamejro outra leira centeejra, que leuara de semeadura cin-
quo alquejres de Centeo (239)
410
(2) E o Campo das quintans de Baixo todo cercado sobre sẏ (...) tem algum
Monte e alguns ameejros, e hu’ lamejro e hua’ fonte no fim do lamejro
(382)
• lamella
Provém provavelmente do diminutivo latino lamella, que Machado (19672)
atesta desde 1094, marcando a forma comprida do terreno, retangular e
direito, não acidentado, como a lata. Ou então um derivado de lama, como
lameiro e lameira.
parte do Nacente co’ Bouça de Perejra, e do poente co’ lamella dos her-
dejros de João Antunes, e do Norte co’ a lamella de tras e do sul co’ a pro-
pria lamella dos herdejros de João Antunes (293)
• lamelinha
E outro Campo a que chamão a lamelinha que tras Catarina fernandes e
leuara de semeadu[ra] dous alquejres de Centeo (293)
• lata
Corominas e Pascual (1980: s.v. lata) refere o caráter autóctone de lata
em hispano-português e considera provável que esta palavra, do termo do
baixo latim latta, comum ao céltico e ao germânico, e espalhada por toda
a Península Ibérica, França, Alpes Centrais e partes de Itália, tenha origem
no celta. Além do sentido original de ‘vara o palo largo’, apresenta outros
(como ‘chapa de metal, lâmina’, etc.), mas nenhum referente a propriedades
ou terrenos. A mais próxima é uma das que refere para o português lata,
citando Moraes: ‘renque de videiras altas, dispostas em armação, aos dois
lados do caminho’, provavelmente decorrente da primeira acepção, ‘cada
uma das varas ou canas transversais da parreira’. E daí também latada, já
em Bluteau. Menciona ainda lato, em Viana do Castelo (‘caibro ou vara de
madeira apodrecida na vinha e que só serve para queimar’). Em mirandês
continua a utilizar-se correntemente llata na acepção de ‘terreno cultivado,
ou cultivável, direito (não acidentado), mais comprido do que largo, geral-
mente retangular’, podendo ser horta ou lameiro. É comum o seu uso no
plural, llatas, surgindo contiguamente diversas parcelas dessa natureza.
411
(1) Iunto aos ditos pardiejros da parte do Nacente e Norte hua’ lata, que
parte do Nacente e Norte co’ o Caminho que uay pera as portellas, e das
mais partes co’ a emprazadora (291v)
(2) Defronte destas Casas pera a parte do Poente ao longo da estrada hu’
pedaco de pomar e lata (574)
• leira
De origem obscura, Machado sugere o lat. glarea ou, com Corominas e
Pascua, area, documentando larea em 870, laria em 921 e leira em 984.
A acepção relativa a propriedades em Morais Silva (19906) é bastante vaga:
‘extensão maior ou menor de terreno’. Bluteau é mais preciso (1712-21):
”He hũ taboleiro de terra, estreito, & comprido, o qual a divide de outro
comarosinho de terra, que tem pelas ilhargas’.
(1) Na Mesma Veiga, acima da terra de São Romão estão cinco leiras (293v)
(2) Na Agra de Mouris a leira chamada de Gostim (...) leuara de semeadura
vinte alquejres (381v)
(3) esta hua’ leira a que agora chamão a leira dos açucres que antigamte
não tinha este Nome [aonde Mora Pero Glz› açucres] (382)
• leirinha
E logo abaixo outra leirinha, que tem de comprido de Nacente a poente
Sesenta e quatro varas, e de largo quatro e Mea, leuara de semeadura quarto
e meo de centeo (571)
• lugar
Forma divergente popular, ao lado da culta local, ambas de locale-, mas
somente a primeira usada nesta acepção de ‘propriedade’, ‘terra’, seja a ‘terra
com casas e moradores, localidade, povoação’, seja o mero ‘terreno de cul-
tivo, propriedade rural’. No Dicionario da Real Academia Galega surge neste
sentido apenas como sinónimo de aldea: “2. Núcleo pequeno de poboación
412
en que se divide unha parroquia, con poucos veciños e de carácter rural. No
meu lugar vivimos quince familias. SIN. aldea”. No entanto, no Dicionario
de Dicionarios acham-se reunidos sentidos vários e até opostos, como os de
‘aldea’, ‘población pequeña menor que villa y mayor que aldea’ ou ‘tierras
de labor con casa vivienda’ (lugar acaseirado). Em Portugal e em algumas
partes da Galiza é ainda o ‘núcleo habitado mais pequeno, inferior à aldeia/
aldea, e podendo corresponder às construções de uma única propriedade’.
No Tombo da Mitra surgem atestações de tipos de lugar que incluem terras,
casas, casais, hortas, vinhas, pombais, devesas, latas, leiras e eiras, e que
por vezes se dizem transformados ou transformáveis em vinha ou campo,
figurando também lado a lado com divisões populacionais designadas como
aldea, villa e cidade.
(1) Camara de Santa Maria d’Aluara Sita no lugar das choças termo da Villa
dos Arcos de Val devez (44v)
(2) Titulo de certas Casas que a Meza Arcebpal’ tem No lugar de Sto Esteuão
(238)
(3) parte do Nace’te com a estrada que uay pera chaues, e do poente co’
terras deste lugar (239)
(4) Este Casal possuem franca fernandes e Isabel Rodrigues do Mesmo lugar
de são Pedro (240)
(5) e o lugar que ficou de fernão Afonso e Agora he de Antonio pires fer-
rejro Gaspar fernandes e Domingos Roiz’ todo cerrado sobre sy e leuara de
semeadura oito alquejres esta posto de Vinha (293v-294)
(6) O lugar de Isabel pires, que leuara cinco alquejres de centeo de semea-
dura (294)
(7) E o lugar de baixo que ficou de João Antunes está cercado de parede e
cheo de Vinha e tem casas e pombal e deueza terreste [sic] leuara todo de
semeadura quinze alquejres (294v)
(8) E o lugar de Maria da Rocha em que ella Viue esta todo cerrado sobre sy
per parede. e sendo campo leuara de semeadura quatro alquejres de Centeo
(294v)
(9) O lugar de Domingos anes, que leuara de semeadura tres alquejres de
centeo que são casas horta e Vinha, parte do Nacente co’ yoão pires [...] E o
lugar de João pires, latas e Ejra (294v)
413
(10) O lugar de Domingos Coelho e Gaspar Goncalues leuara de semeadura
seis alqres’ entrando Vinha Casas e Ejra parte do Nacente co’ Souto e cami-
nho da Villa, e do poente co’ lugar de João pires, e do Norte co’ o Mesmo
Souto e do sul co’ a Mesma Aldea. E o lugar de Isabel fernandes Viuua que
está cerrado sobre sẏ e leuara de semeadura meo alqre (294v)
(11) Outro lugar que ficou de João Antunes, que está todo cercado sobre si
de parede e tudo Vinha e lata, e leuara de Semeadura tres alquejres (295)
(12) No lugar da Mata que he Na ferguesia de Touguinhó aonde Mora Pero
Glz’ açucres. esta hua’ leira a que agora chamão a leira dos açucres que
antigamte não tinha este Nome (382)
• manguella
Parece tratar-se do diminutivo de manga < manica, ‘manga’, derivado de
manus, ‘mão’. Corominas e Pascual (1980) não recenseia, porém, man-
guela s.v. manga. Na primeira atestação que oferece de manga (comum
a todos os romances e épocas), de 1104, refere aparecer aplicado a um
campo, podendo ter o mesmo significado dos termos usados em espanhol, e
nomeadamente na Argentina, no Chile e em Cuba, de ‘espacio comprendido
entre dos estacadas que van convergiendo hasta la entrada de un corral’.
(1) Mais Outro Monte a que chamão a deueza do Couco (...) leuara de
semeadura cento e cincoenta alqres de centeo, tem Vinha (237)
(2) parte de todas as partes co’ monte do Mesmo Couto (292v)
• monte maninho
parte do poente com herdejros que ficarão de Briatis Martins e do Nacente
co’ Yoão Afonso, e das mais partes com Monte Maninho (239v)
414
• outeiro
e daly ao Outejro de Val de meão (238)
• outeyrinho
e dali ao Outejrinho pegado na Cortinha (238)
• pedacinho de deveza
• pedaço de chão
• pedaço de deueza
• pedaço de Monte
• pedaço de terra
• pedaco de terra que se laura
• pequena de terra
• piquena de vinha
• prado
Do lat. pratu-, ‘prado, pradaria’. Documentado desde 959 por Machado
(19672).
Iunto a este pardiejro está hua’ Vinha pumar horta e prado tudo cercado
sobre sẏ de parede e Mato, a qual Vinha era antes pumar e horta (296)
• propriedade
Do lat. proprietate-, é provavelmente a designação mais geral no códice,
indicando a ‘coisa possuída’, neste caso, ‘qualquer tipo de terra possuída ou
emprazada, com ou sem casa’.
(1) Na Agra do Sopipe hua’ Leira desta propriedade parte do Nacente co’
terras de Go’callo Barbosa (297v)
(2) parte do Nacente co’ o Monte Maninho, (...) e do sul co’ propriedades
deste casal (383v)
• pumar
Machado (19672) pressupõe um lat. *pomare-, equivalente a pomariu- e
com o mesmo sentido, e documenta pumares desde 803. Pode englobar
uma lata.
415
(1) Iunto a este pardiejro está hua’ Vinha pumar horta e prado tudo cercado
sobre sẏ de parede e Mato, a qual Vinha era antes pumar e horta (296)
(2) logo pegado com as Cortes pera o Nacente e Norte hum Pomar cercado
sobre sẏ (...), tem hu’ poco e hua’ lata (573)
(1) e dahi pella estrada acima partindo sempre co’ a dita quebrada ate cer-
rar no canto da Vinha della (236v)
(2) Titulo da Quebrada de São Jorge. // Esta quebrada está iunto ao Assento
de são yorge de que atras se faz menção (237)
(3) e as propriedades da dita quebrada e demarcação della, todo he o que
abaixo se segue (237)
(1) Pegado co’ estas casas pera a parte do poente está hua’ lata e Recio que
tem de co’prido de Nacente e poente quatorze uaras, e de largo oito (295).
(2) e laurandosse esse Recio leuara de semeadura hu’ alquejre de pão
(381v)
(3) parte do Nacente co’ o Recio que uay pera o pumar, e do sul co’ o Adro
da igreya (381)
(4) e Mais ahi hu’ Recio, em que estão dous Carualhos, e diante da porta
do Vigairo outros dous e outro Recio em que estão Uvejras e neste Recio
estiverão antigamte Casas (384)
416
(2) da parte do sul entesta com o Recio e portello por onde passão pera a
igreya e do Nacente co’ o Recio da ejra (381)
• relho
Do latim regulum, ‘parte do arado que rompe a terra’. Em Bluteau (1712-
21) é o ‘cinto com que se cingiam as mulheres nobres da Lusitânia’, sem
qualquer referência a terras; no códice, porém, parece indicar uma ‘faixa ou
tira de terra’.
parte do Nacente co’ o Relho dos ditos herdejros, e do poente co’ Caminho
da Villa, e do Norte co’ o lugar de Bastião fernandes, e do sul parte com o
lugar de Isabel pires (294)
• repartimento
De repartir. Machado (19672) atesta-o desde o século XV, na Crónica Geral
de Espanha de 1344.
• repartimento de horta
Dentro deste campo esta hu’ bacello que se uaj fazendo, aonde se desfez hu’
pardiejro e hu’ repartimto de horta (381v)
• sitio
De origem obscura, Machado (19672) só o documenta desde o século XVI.
(1) Dicerão os ajuramentados, que nesta freiguesia de São Pedro auia hu’
Sitio apartado cuias p’priedades pagauão alem do disimo a Meza Arcebispal
tambem o quarto das Nouidades de pão, e Vinho, e linho (238)
(2) E que outrosi dentro neste Mesmo sitio auia casais que pagauão foro
ao dito snor’ Arcebispo (...) E que o dito Sitio comecaria aonde chamão as
Campinas (238)
• terço
Do lat. tertiu-, ‘terceiro’, representa ‘um terço’, ou a ‘terça parte’.
417
(1) parte do Nacente com a dita eyra, e do poente com campo do terco do
prior (573)
(2) parte do Nacente co’ o prado E com o terço do Priorado, e do poente
com o Caminho da fonte de Capim, e do Norte com Payo gonçalues çapatej-
ro, e do sul com estes dous terços (573v)
• terra
Do lat. terra, designação geral para ‘prédios ou propriedades rurais’, ates-
tado por Machado (19672) nesta acepção desde 924.
(1) e Hua’ Vinha a Calhelha com hua’ pequena de terra e lamejro tudo
yunto (238)
(2) e Ao Val de Bugalho hua’ terra q’ tras a dita Maria gonçalues, leuara de
Semeadura tres alqres (240v)
(3) O Campo da Maceira que esta Marcado e circuitado sobre sẏ parte de
todas as partes co’ terras do Mosteiro de Villa de conde (382v)
• terrasteira
Derivado de terrestre, com dissimilação (como também terreste). Machado
(19672) não dá conta desta forma.
• touça
De *taucia, pré-romano, segundo Machado (19672); ‘moita’, ‘maciço de
árvores’, englobando, aparentemente, ‘a terra em que se encontram’.
(1) te’ [a vinha] doze Carualhos, e no meo hu’ Pombal sem Pombas e hua’
touça de castanho (296)
418
(2) tem na cabeça do Norte trinta varas e dous pinhejros e alguas’ touças de
Carualhos (383)
3. tem [o campo] touças de castanhejros e outras Aruores (385)
(1) e dali ao Outejro do Prado, por onde uay hu’ Valado, está hu’ Marco
(238)
(2) Na Agra de Mouris a leira chamada de Gostim que parte do Nacente co’
Vallado e terra do Mosteiro de santa clara (381v)
• valle
Valle, de vallis, em Corominas e Pascual (1980): ”En latín se decía vallis
o valles, siempre como femenino, género conservado hasta hoy en cat. y
demás romances; sólo el fr. y el port., con el cast., cambiaron el género,
seguramente por influjo del contrapuesto mons”. Mantém o fem. em topó-
nimos antigos na França (Vautorte), Espanha (Valbuena) e Portugal (Valle
Pequena, Vall Boa, Da Balle). Machado (19672) documenta-o desde 897
(ualongo). No códice valle alterna com a forma apocopada val nos topóni-
mos, seguido de consoante.
419
• valesinho
(1) Outra leira Centeejra ao Vallesinho (239)
(2) e Ao Valecinho hua’ terra, que leua de semeadura oito alquejres (240v)
• valinho
(1) Campo de Valinho (292)
(2) Vinhas do Valinho (292v)
(3) Outro campo do Balinho, que traze’ João pires Antonio fernandes Gas-
par fernandes Baltesar fernandes e Gaspar Goncalues, este campo está ora
de vinha (292v)
• veiga
Do vasco-ibér. ibaika. Morais Silva (19906) refere as aceções gerais de ‘vár-
zea; planície cultivada e fértil’ e uma regional, precisamente do Minho: ‘terra
de cultura de centeio ou de milho serôdio’. Pode incluir vessadas, leiras, etc.
(1) A Veiga de Cernados que serão tres veçadas de terra as duas dos her-
dejros de João Antunes, e hua’ de Bastião glz’ leuarão de semeadura Mais
de trinta alquejres (292)
(2) Na Mesma Veiga, acima da terra de São Romão estão cinco leiras (293v)
• vessada/veçada
De vessar < versare, ‘virar repetidamente’, ‘lavrar fundo; lavrar para semear’.
Documentada desde o séc. XIII (Machado, 19672), usa-se nas aceções de
420
‘terra fértil e regadia’; ‘terra que uma junta de bois lavra num dia; jeira, ves-
sadela’ e ainda, como regionalismo, ‘terra que se lavra antes da semeadura’,
(Morais, 1990).
(1) A Veiga de Cernados que serão tres veçadas de terra as duas dos her-
dejros de João Antunes, e hua’ de Bastião glz’ leuarão de semeadura Mais
de trinta alquejres (292)
(2) Os Campos de Casais, que serão Veçada e mea (293)
(3) Os Campos das Portellas que são quatro Vessadas são de João Barbosa
de Carrejras são dous e tem hum Mato pello meo (294)
• vinha
Do lat. vinea, tanto no sentido de ‘vinha, terra plantada com videiras’, como
de ‘pé de vinha, cepa’.
(1) Item Iunto a este pardiejro está hua’ Vinha pumar horta e prado tudo cercado
sobre sẏ de parede e Mato, a qual Vinha era antes pumar e horta (296)
(2) A Bouça da sobrejra acima das casas a qual agora esta de Vinha (291v)
(3) este campo está ora de vinha (292v)
421
Os nomes por que foram ficando conhecidas as propriedades são desde
logo um bom indício dessa miscelânea de categorias, prometendo adensar
a problemática da destrinça e organização deste campo lexical: Campo da
Bouça (572v); Os campos dos ameaes (293v); Bouça chamada de Santo Este-
vão e por outro nome o casal Novo (572); a Bouça da lamella de tras (293);
Campo sobre sy a que chamão a lamella grande (293), etc.
A evidente mistura desses tipos de terras, que nos são descritas umas
encaixadas nas outras, torna bastante complexa a sua distinção com vista ao
estabelecimento de definições rigorosas num glossário amplo, pelo menos
antes de completa a transcrição do códice; vejam-se casos como os seguintes:
(1) No Campo que se chama de Casal esteufe hu’ pedaço de deueza Cortadia com
hũ chãosinho que se chama das formigas (291v)
(2) e esta parede uen a hua’ chaue, e dahy uai pello dito campo, pella dita chaue
entestar com o caminho que uem pera a igreya (381v)
(3) No Campo da lameira hua’ leira, que possuem os Caseiros deste asento (382v)
(4) Dentro desta cerca esta a Boucinha Noua, que de Nacente a poente tem oitenta
varas e de Norte a sul quatorze leuara de semeadura a terra q’ se semea dentro
desta Deuesa cinco alqres, e semeandosse esta Deuesa leuara doze pera quatorze
alquejres fazendose e’ Campo Lauradio (382)
(5) Item Iunto desta Vinha pera a parte do poente está hu’ campo co’ hu’ pedaço
de deueza (296)
• está cerrada sobre sy, por Matos & Comaros, e a Muito tempo, que não se semea
segundo della se mostra (570)
• Item o Pumar e a Eira que ficou de João Antunes que agora está de Vinha (294v)
• Iunto a este pardiejro está hua’ Vinha pumar horta e prado tudo cercado sobre
sẏ de parede e Mato, a qual Vinha era antes pumar e horta (296)
• A Leyra de So o Mato (...) he terra fraca (570v)
• tem agoa de Regar que lhe ue’ do valle e he terra arrezoada e da Nouidade (298v)
422
• leuara de semeadura quarto e meo de centeo. he terra arrezoada (571)
• he terra, que da toda a Nouidade (297v)
• a seruentia deste campo he por lourido e he bom campo (298v)
• A Bouça que está no Monte Soejro (...) esta cerrada sobre si. He Muito Roim terra
(570)
• e dahi uay partindo do poente co’ a dita quebrada ate o Canto da parede da
quebrada que se mudou mais abaixo do que era (236v)
• Hua’ Vinha toda cercada sobre sẏ co’ hu’ pedaço de Deueza (...) e leuara de Caua
cinco homes (296)
• te’ doze Carualhos, e no meo hu’ Pombal sem Pombas e hua’ touça de castanho
e algus’ Marmelejros, leuara a Vinha de Caua oito homes’ na primejra Caua (296)
• tem agoa de lima, e leuara de semeadura cinco alquejres (570v)
• he terra não muito boa’ tem en si hua’ fonte d’Agoa. tem este campo e Vinha
agoa de Rega, que uem dos enxertos (296v)
• leuara de semeadura a terra lauradia, e a que não se laura tudo tres Alquejres.
tem agoa de Regar e he onesta terra (297v)
423
• Casal de Rendejros (vd. Campo)
• Casal do Castanhal
• Casal do Pynhejro
• Casal dos Paços
• lugar da Mata
• Lugar da Moeda
• lugar da Vrtigueira
• lugar das choças
• lugar de baixo
• lugar de Gostem
• lugar de Paradella
• lugar de Penegate
• lugar de São Pedro
• lugar de Sesmil
• lugar de Sto Esteuão
• lugar de Ventozello
• lugar do Couello
• lugar do Salguejro
• lugares de Villaça e São Pedro do Rio
• Casas
• Casas de herdade
• Casas de Morada Sobradadas e telhadas
• Casa torre
• Casas de Palheyros
• Casinha
• Colmaça que serue de Palhejro [casa colmada]
• Casa toda colmada que serue de despeyo
• hua’ Corte toda colmaça
424
• Casa grande, que serue de Cosinha duas partes colmadas e hua’ telhada. e tem a
seruentia pera a ejra
• Casa que serue de Cosinha e viuenda (...) e esta a mayor parte della telhada
• Casa pequena que serue de adega
• Adega
• Casa que serue de despeẏo e Celejro
• Corte colmada
• Cortes colmadas (...) pegadas hua’ Na outra
• Casa que serue de Gado que são tres Casas que tem tres repartimentos está a
seruentia pera a ejra
• Casa que serue de Corte de Gado toda Colmada e seruese por duas portas e tem
hua’ parede no meo e a serventia pera o Caminho que uay pera a igreya
• e Pegado a esta casa outra casa que serue de lagar e forno
• Curral terrejro telhado E bem Repairado
• Curral de Gado telhado
• Moinhos
• paço; paços
• Pardiejros Velhos
• hu’ Pardiejro que foy casa
• Pombal
• torre de dous sobrados
425
pardieiros velhos e pardieiro que foi casa, a investigar comparativamente no
conjunto do corpus.
É ainda digno de nota se a casa era sobradada, telhada ou colmada, entre
outras indicações do seu valor, tamanho, formato, estilo e traços decorativos.
Não cabe, porém, na economia deste trabalho a exploração de todo o
léxico relativo às casas, que se mostra, contudo, merecedor de aprofunda-
mento, dada a sua variedade e variação, não somente no códice, mas também
em relação ao português contemporâneo.
4. Conclusão
426
minação rigorosa e comparativa de aceções, sendo notório o caráter vago e
algo divergente da informação contida nas obras lexicográficas consultadas.
A variedade de designações aumenta, contudo, a cada novo fólio transcrito,
pelo que se foi já tornando inegável a importância do Livro das Propriedades
da Mesa Arcebispal de Braga para uma definição mais precisa do campo lexi-
cal e semântico das designações de terras, com ou sem casas, e de parcelas
ou unidades de terreno.
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427
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nario. Ou Vocabolario da Lingoa Portugueza... (editado por Barros, 2018).
428
CLEMILTON LOPES PINHEIRO
Universidade Federal do Rio Grande do Norte1
[email protected]
ORCID: 0000-0003-4285-9932
D i ac h r o n i c s t u dy o f t e x t : a n a n a ly s i s o f
t o p i c a l a r t i c u l at i o n i n r e a d e r ’ s l e t t e r i n
the press of Rio Grande do Norte – Brazil
Resumo: Nosso objetivo, neste trabalho, é propor uma discussão sobre o estudo dia-
crônico de fenômenos de natureza textual e defender que deve ser considerado um aparato
teórico específico para esse tipo de estudo. Nesse sentido, a partir da proposta de Eugenio
Coseriu sobre os níveis da linguagem, entendemos que um processo de construção textual
como tal não pertence a nenhuma língua (nível histórico), mas ao nível individual dos tex-
tos. Assim, um dado processo de construção pode, ao longo do tempo, se repetir em um
conjunto de textos relacionados a um gênero, e se configurar como uma tradição discursiva,
e apenas nesse sentido pode ser analisado em perspectiva diacrônica. Como ilustração,
analisamos permanências, modificações ou exclusões dos mecanismos de articulação tópica
em um conjunto de cartas de leitor pertencente ao corpus do projeto Para a história do
Português Brasileiro no Rio Grande do Norte (PHPB-RN).
Palavras-chave: articulação tópica, diacronia, tradições discursivas
Abstract: Our objective in this work is to propose a discussion about the diachronic
study of textual phenomena and to argue that it should be considered a specific theoretical
approach for this type of study. In this respect, we consider Eugenio Coseriu’s conception
about the levels of language and we understand that a process of textual construction as
such does not belong to any language (historical level), but to the individual level of texts.
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_14
Seen in these terms, a given process can be repeated over time in a number of texts related
to a genre and be configured as a discursive tradition. By way of illustration, we analyze
the continuance, modification, or exclusion of mechanisms of topical articulation in a set
of reader’s letters contained in the corpus of the Project History of Brazilian Portuguese in
Rio Grande do Norte (PHPB-RN).
Keywords: discursive tradition, diachrony, topical articulation
Introdução
430
entendemos que um processo de construção textual como tal não pertence a
nenhuma língua (nível histórico), mas ao nível individual dos textos. Assim,
um dado processo de construção pode, ao longo do tempo, se repetir em um
conjunto de textos relacionados a um gênero, e se configurar como uma tradi-
ção discursiva, e apenas nesse sentido pode ser analisado em uma perspectiva
diacrônica.
Os mecanismos de articulação tópica, entendidos como os diferentes
recursos para articular os tópicos e subtópicos de um texto de forma a que
eles continuem e progridam (Pinheiro, 2005), foram tomados como um caso
particular para discussão. Nesse sentido, analisamos permanências, modifi-
cações ou exclusões dos mecanismos de articulação tópica em um conjunto
de cartas de leitor pertencente ao corpus do projeto Para a História do Por-
tuguês Brasileiro no Rio Grande do Norte (PHPB-RN), um dos subprojetos
vinculados ao PHPB.
Do ponto de vista metodológico, trata-se de um trabalho que se insere no
âmbito da pesquisa qualitativa. Portanto, não recorremos a recursos e técnicas
estatísticas. Dado o caráter propositivo, o trabalho se situa também no campo
da pesquisa exploratória.
A discussão se textualiza em três momentos: abordamos, de início, a noção
de diacronia de processos de construção do texto; em seguida, situamos os
mecanismos de articulação tópica como um desses processos em diacronia; e,
por fim, apresentamos o resultado a que chegamos com a análise das cartas
de leitor.
431
competência comunicativa, que se manifesta na contingência da efetivação
da atividade linguística do sujeito e é caracterizável a partir de regularida-
des, observáveis no texto e nas operações envolvidas em sua produção, que
evidenciam um sistema de desempenho linguístico constituído de vários sub-
sistemas: o fonológico, o morfossintático e o textual. Através dos dados pre-
sentes no texto, é possível identificar os indícios do modo de funcionamento
desse sistema de desempenho ( Jubran, 2006).
Seguindo o percurso de análise que toma o texto como objeto global,
para dele serem depreendidas regularidades configuradoras das estruturas
e das formas de processamento das estratégias de composição e inferidas
funções pragmáticas relativas a essas estratégias, desenvolveu-se uma série
de estudos que dizem respeito às atividades de formulação e elaboração
do texto. Essas atividades de formulação e elaboração, interacionalmente
situadas, são, então, entendidas como os processos de construção do texto:
repetição, correção, paráfrase, parentização, topicalidade e referenciação
( Jubran/Koch, 2006).
Para abordar diacronicamente esses processos, Jubran (2010) propõe
acrescentar o “filtro” da noção de gêneros textuais.
a) verificarmos que processos são propiciados por cada gênero sob estudo, e se
eles permanecem estáveis ou não, em decorrência da determinação que o gênero
exerce na possível ocorrência ou exclusão de determinados processos textuais, em
virtude de alterações ou não dos usos sociais do gênero;
432
b) descrevermos as funções textuais-interativas dos processos de elaboração de
texto que se mostrarem significativas para a caracterização do gênero estudado, a
fim de verificarmos correlações entre elas e a finalidade comunicativa do gênero;
433
os textos são influenciados pelos universos de discurso – o que não acontece
com as línguas – e têm tradições particulares, diferentes das tradições das
línguas históricas.
Considerando essas noções, Coseriu ([1980] 2007) distingue ainda dois
conceitos de texto: o texto como nível autônomo da linguagem e o texto como
nível de estruturação idiomática, superior à oração, ao sintagma, à palavra e
aos elementos mínimos portadores de significado. Consequentemente, a aná-
lise do texto em cada um desses níveis pressupõe um método diferenciado.
Kabatek (2005) retoma a proposta de Coseriu sobre os três níveis de
conhecimento envolvidos na linguagem para fazer uma discussão específica
sobre como os diferentes autores situam a noção de tradições discursivas
nesses níveis, que, em última análise, relaciona-se à noção de historicidade.
Nesse sentido, ele julga fundamental, antes de tudo, esclarecer as diferentes
concepções de historicidade, também propostas por Coseriu, quando discute
a questão da historicidade dos atos de linguagem (Kabatek, 2005: 151):
434
disso, há também uma diferença qualitativa entre uma língua particular e as
tradições textuais.
Um texto, mesmo se compreende várias línguas, é sempre intralinguístico. Ele não
pode ser mais ou menos intralinguístico. Em relação às tradições textuais, ao con-
trário, isso é gradual: um soneto é uma forma fortemente definida, já uma conversa
informal em um bar parece ser bem mais aberta e menos fixada a uma tradição
textual (Kabatek, 2005: 154)4.
435
O plano da genericidade, que assegura “ares de família” (sem incluir, sublinhe-se,
obrigatoriedades nem ambições universalizantes) e o plano da singularidade, atra-
vés do qual cada texto se constitui como um caso único (semelhante, em última
análise, ao texto literário, cuja singularidade se evidencia em primeiro lugar por
razões de ordem estética). Deste ponto de vista, trata-se de definir instrumentos de
análise que permitam lidar, de forma controlada, com a entidade não ontológica
que é o género e com a duplicidade de objectos de análise – género e texto(s)
(Coutinho, 2007: 639-40).
436
que pode se tornar como tal uma tradição textual. Segundo Coseriu ([1980]
2007: 302), «há procedimentos comuns para todos os textos em geral que são
definidos apenas no nível dos textos como tais»5, ou seja, são traços universais
dos textos através dos quais um texto é um texto e não outra coisa. Nesse
sentido, como princípio geral de construção textual, a organização tópica de
um texto é imutável e atemporal. Não se pode, portanto, falar em diacronia.
Algumas características relativas à construção do texto, como o grau de
complexidade do tópico, por exemplo, parecem ser determinadas pela situa-
ção comunicativa e, por isso, pertencem ao nível individual dos textos. Nesse
sentido, uma forma mais ou menos complexa de desenvolver um tópico pode,
ao longo do tempo, se repetir em um conjunto de textos e se configurar uma
tradição discursiva.
Segundo Kabatek (2006), as tradições discursivas são formas ou estruturas
recorrentes em determinadas situações comunicativas com fins pragmáticos
específicos. Essas formas não são específicas de uma língua particular, pois
são transferidas por grupos culturais, contrariamente a fatos puramente lin-
guísticos, que são transferidos por comunidades linguísticas. Nessa perspec-
tiva, o grau de complexidade do tópico de um texto pode ser tratado como
tradições no nível individual dos textos.
Finalmente, pode-se pensar ainda em mecanismos que são próprios de
uma língua e que atuam na construção do texto. Pensemos, por exemplo, nos
marcadores discursivos como mecanismos regulares de articulação textual
em português. Trata-se de um recurso gramatical que atua no nível textual
da língua, ou seja, um recurso que faz parte das relações constitutivas que
caracterizam uma ordem própria do texto. O texto, nesse caso, é tomado
como um nível gramatical da língua (Coseriu, [1980] 2007). Nesse caso, pode-
-se falar de historicidade linguística e o uso de um marcador discursivo pode
ser estudado na perspectiva da diacronia da língua: um dado marcador dis-
cursivo pode atuar na articulação textual em uma determinada época e deixar
de atuar em outra.
437
1.1. Os mecanismos de articulação tópica
438
dades do tópico. O segmento tópico é, portanto, a unidade textual que, em
termos de centração, revela concernência e relevância no conjunto de seus
elementos e se localiza num determinado ponto do texto.
Apenas para ilustrar, tomamos um exemplo hipotético de texto cujo tópico
central ou supertópico é ocupações com os filhos. Esse tópico apresenta, em
um primeiro nível da organização tópica hierárquica, dois subtópicos: proble-
mas de João e novidades de Ana. Cada um desses tópicos apresenta ainda um
segundo nível de desdobramento: o tópico problemas de João se desdobra em
problemas de João na faculdade (atualizado no segmento 1) e problemas de
João no trabalho (atualizado no segmento 2); o tópico novidades de Ana se
desdobra em o carro novo de Ana (atualizado no segmento 3) e o casamento
de Ana (atualizado no segmento 4). O quadro 1 resume a organização hierár-
quica desse texto hipotético.
439
No que diz respeito a marcadores discursivos, Pinheiro (2005) acompanha
a definição de Risso, Silva e Urbano (1996: 55-56): «mecanismos verbais da
enunciação, atuam no plano da organização textual-interativa, com funções
normalmente distribuídas entre a projeção das relações interpessoais (...) e a
proeminência da articulação textual». Os marcadores discursivos são elemen-
tos que exercem a função de unir segmentos tópicos ou unidades intratópi-
cas, contíguos ou não, na superfície textual. A essa função de organizador da
estruturação do texto se congregam outras, de natureza pragmática.
Em relação às formas referenciais, o autor se situa nos recentes estudos
sobre referenciação e defende que os referentes são construções complexas
que ocorrem no processo comunicativo, negociadas pelos locutores e interlo-
cutores. Os processos referenciais fundam duas funções gerais de expressões
referenciais: introduzir formalmente um novo referente no universo discursivo
e promover a continuidade referencial. Considerando esse ponto de vista,
Pinheiro (2005) identifica três tipos de processos de referenciação que atuam
na articulação tópica: a) encadeamento de referentes vinculados a um con-
texto central, b) reiteração de um mesmo referente e c) conferição de estatuto
de referente a um conjunto de informações difundidas no cotexto anterior.
O terceiro tipo de mecanismo de articulação tópica, sugerido por Pinheiro
(2005), acontece pelo emprego de formulações metadiscursivas, ou seja,
construções com propriedades autorreflexivas, que reúnem, por vezes, tra-
ços sequenciais dos marcadores discursivos e traços de retomada e mudança
das formas referenciais. As formulações metadiscursivas se dobram sobre o
próprio dizer na medida em que remetem o interlocutor para determinados
pontos da superfície textual, ao mesmo tempo em que podem retomar refe-
rentes e acrescer conteúdos a eles. Sinalizam para a reintrodução de um dado
(sub)tópico, assim como anunciam um novo (sub)tópico a ser desenvolvido.
As perguntas, como componentes do denominado par adjacente Pergunta-
-Resposta, considerado uma unidade dialógica mínima, são comumente defi-
nidas como um enunciado que pode exigir uma resposta. Na sua proposta,
Pinheiro (2005) entende pergunta como um enunciado atualizado em um
contexto particular, caracterizado por pronomes interrogativos, entonação
ascendente, no caso de texto falado, e o ponto de interrogação, no caso de
texto escrito.
440
A paráfrase, concebida como relação de equivalência semântica entre um
enunciado de origem, a matriz, e um enunciado reformulador, a própria pará-
frase, constitui mais um mecanismo de articulação tópica. Segundo o autor,
as paráfrases ocorrem em contextos de sequenciação e mudança tópica, arti-
culando tópicos e enunciados e marcando diferentes objetivos interacionais.
441
De acordo com Penhavel e Diniz (2014: 25), os segmentos tópicos mínimos
que compõem as cartas de leitores estão vinculados ao seu propósito central:
«discorrer sobre determinada situação, exposta como sendo um problema,
e solicitar que alguma medida seja tomada no que se refere a tal situação».
Trata-se, nesse sentido, de uma unidade que envolve a construção de uma
situação-problema e, por essa razão, compreende quatro subunidades: aber-
tura, explicação, avaliação e interpelação. Essa forma de estruturação cons-
titui uma regra geral de estruturação intratópica prototípica. É possível, no
entanto, haver cartas que não apresentam todas as subunidades.
Há, ainda, segundo Penhavel e Diniz (2014: 31), uma segunda regra possí-
vel baseada no princípio de que os segmentos «são estruturados internamente
com base em uma alternância entre grupos de enunciados que constroem
referências centrais e grupos de enunciados que constroem referências sub-
sidiárias em relação à ideia nuclear». Essa segunda regra está, nesse sentido,
fundada na relação posição-suporte, que são as duas subunidades a partir das
quais se estrutura o segmento.
Vejamos a carta 017. O autor inicia o segmento, apresentando o tópico:
prestação de contas do prefeito («deixa de | fazer a necessária prestação de
| contas de importancia recebida | do Tesouro Estadual, quando | no exer-
cicio de Prefeito do Mu- | nicipio de São Rafael»). Os enunciados que se
seguem constituem o desenvolvimento desse tópico, que é tratado como uma
situação-problema. Nesse caso, a estruturação interna do segmento obedece à
primeira regra e apresenta as quatro subunidades: abertura, explicação, ava-
liação e interpelação. Já a carta 02 apresenta como tópico natureza religiosa
da yoga. A estrutura do segmento segue a segunda regra: uma unidade de
posição e outra unidade de suporte. A posição é a de que a yoga não é uma
religião. Na unidade de suporte, figuram as evidências para essa posição.
Reproduzimos, a seguir, os dois textos de modo que essa subdivisão seja
visualizada.
7 Para a análise, não consideramos local e data, saudação inicial e despedidas, porque
essas são componentes da estrutura retórica da carta não relacionados à categoria do tópico.
442
Carta 01
explicação
|| Não tenho, portanto, moti- | vos para temer qualquer de- | vassa em minha
curta vida pu- | blica, o que talvez não acon- | teça com o meu gratuito des- |
conhecido caluniador, que, não | tendo coragem de me atacar | pessoalmente,
procura guarida | nas colunas de um jornal para | atraçalhar a honra de um cida-
| dão que jamais lançou mão de | expedientes escusos em seu | proveito ou de
quem quer que | sêja. ||
443
Agradecendo, de antemão, a | atenção que vier dispensar ao | assunto, valho-me
da oportuni- | dade para apresentar-lhe os | meus protestos de elevada es- | tima
e devida consideração. || Cordialmente | Pio Marinheiro de Sousa”
Carta 02
posição
Sou leitor assíduo deste | Jornal corajoso e imparcial | na notícia de nosso Estado.
|| Quero através desta | fazer comentários a respeito | das declarações prestadas
| pela Professora de Psicolo- | gia, Senhora Maria de Fá- | tima Cortez, ora descri-
tas no comentário sobre os | Mercenários da fé, com- | parando grosseiramente os
| praticantes de YOGA como seita religiosa | ou “coisa” parecida. ||
suporte
Queria deixar claro que | YOGA não é religião e | muito menos seita religio- | sa.
Yoga é sim uma filoso- | fia milenar que teve sua | origem no século III A.C. E que
é praticada em todos | os países do mundo, seja | capitalista ou socialista, | seus
praticantes de di- | versas religiões e que tem | sua formação hoje asse- | gurada
pelas Universidades | onde são preparados os | futuros instrutores desta filosofia.
É comum nas nossas práticas encontrar | adeptos de várias religiões | entre elas
os católicos, pa- | dres, freiras, pastores e protestantes. Gostaria muito que o |
meu esclarecimento fosse | aceito no espaço de cartas | destinadas aos leitores. ||
Carlos Alberto Honorato de | Carvalho || Rua Pte Pamplona, 1834 || Candelária
444
prefeito. Esse mecanismo textual permite também que se instaure um movi-
mento pragmático, que é a indicação da forma contínua e progressiva como
as informações devem ser assimiladas. O interlocutor é orientado a perceber
a montagem do texto, ou seja, apresentação do tópico e seu desenvolvimento
em unidades contínuas.
Já a articulação entre as unidades avaliação e interpelação é estabelecida
pelo marcador discursivo portanto. A unidade interpelação faz o texto avan-
çar através do estabelecimento de uma relação de conclusão. Além de indicar
a sequenciação textual, esse marcador exerce a função pragmática de assina-
lar a maneira como o locutor pretende que o interlocutor perceba a relação
entre informações, nesse dado contexto (Pinheiro, 2005).
Na carta 02, a articulação entre as unidades posição e suporte é estabele-
cida pela reiteração dos referentes yoga e religião. Essa reiteração está atre-
lada ao objetivo de aumentar o efeito de presença do tópico. Salientando a
presença do tópico, o locutor prepara o interlocutor para o desenvolvimento
do tópico, no processo de sequenciação tópica (Pinheiro, 2005).
As formas referenciais e os marcadores discursivos foram os mecanismos
de articulação tópica mais frequentes em todas as cartas analisadas. Os con-
textos de emprego desses mecanismos são também os mesmos. No quadro da
primeira regra de estruturação intratópica, as formas referenciais são o meca-
nismo de articulação entre as unidades abertura, explicação e avaliação.
O expediente empregado na articulação entre a avaliação e a interpelação é o
marcador discursivo. No quadro da segunda regra, a articulação entre as duas
unidades (posição e suporte) é realizada basicamente por formas referenciais.
As cartas 01 e 02 foram escritas na segunda metade do século XX. A carta
03 foi escrita na segunda metade do século XIX. Reproduzimos esse texto,
a seguir, para mostrar a recorrência do mesmo procedimento no quadro da
regra 01. O tópico da carta é recusa de pagamento de vencimento da pro-
fessora (na quali- | dade de inspector da thesouraria pro- | vincial, recusar-
-me injusta e capri- | chosamente a mandar pagar os venci- | mentos da
professora da Ribeira, D. | Izabel Gondim). A articulação entre as unidades
abertura, explicação e avaliação é estabelecida por formas referenciais que
reiteram os referentes professora e vencimentos. Esse procedimento textual,
como na carta 01, apresenta também uma função pragmática: apontar a forma
445
de montagem do texto. O marcador discursivo portanto marca a articulação
entre a avaliação e a interpelação e orienta o interlocutor para a interpreta-
ção de relação discursiva específica entre as informações.
Convém assinalar que, apesar de o mesmo marcador ser usado nos dois
casos, não é o marcador portanto que nos interessa, mas o mecanismo em si,
que é um fato textual. A discussão acerca do marcador utilizado compete à
análise de fatos propriamente linguísticos, pertencentes ao nível histórico da
língua portuguesa.
Carta 03
abertura
Sr. Redactor. –No noticiario do | penultimo numero do jornal Ceará | mirim, sob a
epígraphe –Injustiças – | sou [ílegivel] accusado de, na quali- | dade de inspector
da thesouraria pro- | vincial, recusar-me injusta e capri- | chosamente a mandar
pagar os venci- | mentos da professora da Ribeira, D. | Izabel Gondim, que de
balde tem al- | legado o seu direito perante mim. || Zelando a minha reputação
de em- | pregado publico, não posso deixar de | vir á imprensa restabelecer a
verdade | dos factos tam impudentemente adul- | terados, e patentear ao publico
de que | lado está o capricho e a obstinação.
explicação
446
me assiste, declarou-me ultima- | mente que aceitaria o pagamento par- | cial, e
depois que reunisse uma quan- | tia mais avultada, faria a competente | entrega.
avaliação
|| Importa não esquecer que não é de | hoje que essa professora [ilegível] essa
pre- | tenção, tal sendo a razão por que se | acha em grande atraso. || Sou infor-
mado, que o Sr. Major Pi- | nheiro, quando inspector da thesoura- | ria, lhe man-
dara pagar a quantia de | 800$ rs,. Que foi regeitada. || O mesmo se deu com o
Sr. Joaquim | Peregrino quando esteve interinamente | na inspectoria.
interpelação
|| Veja, por tanto, o publico de que | lado está o capricho, se da parte do | inspec-
torou da d’essa professora, que, | sem attender á penuria do cofre, quer| receber de
uma só vez um ou dous | contos de reis., ficando os outros em- | pregados sem um
vintem. || Sou felismente muito conhecido, o | sabem quantos me conhecem que
não | tenho caprichos quando se trata do | cumprimento dos meus deveres; sobre
| tudo para com uma senhora que nunca | me offendeo. || José Alves da Silva.
447
um fenômeno da segunda historicidade, para a qual, segundo Kabatek (2015:
198), o conceito de tradição é, sem dúvida, muito apropriado: «essa repetibi-
lidade pode ser tanto de expressões curtas como de expressões complexas e
longas. Ela pode ser integral ou parcial e se reportar tanto a elementos formais
(fórmulas ou formas textuais) como a elementos de conteúdo (topoï, etc)» 8.
A noção de tradição discursiva fornece, portanto, um quadro teórico ade-
quado para interpretar as permanências, modificações ou exclusões de fenô-
menos próprios da construção do texto, concebido como nível autônomo da
linguagem.
Considerações finais
Nosso ponto de partida para este trabalho foi a proposta de análise diacrô-
nica de fenômenos textuais desenvolvida no contexto do PHPB. Ao discutir-
mos essa proposta, defendemos que o estudo diacrônico, no que diz respeito
a fatos de natureza textual, requer um aparato teórico específico. O pressu-
posto segundo o qual uma concorrência de formas de valor igual ou seme-
lhante pode acarretar a substituição de uma por outra ao longo do tempo
não se aplica à análise de processos de construção textual. Por outro lado, a
partir da proposta de Coseriu sobre os níveis da linguagem, entendemos que
um processo de construção textual como tal não pertence a nenhuma língua.
Constitui um traço universal dos textos através do qual um texto é um texto e
não outra coisa. Nesse sentido, é imutável e atemporal. Não se pode, portanto,
falar em diacronia.
Outros processos de construção podem, ao longo do tempo, se repetir em
um conjunto de textos relacionados a um gênero e se configurar como uma
tradição discursiva, e apenas nesse sentido podem ser estudados em uma
perspectiva diacrônica. Os mecanismos de articulação tópica foram tomados
como um caso particular para ilustrar o raciocínio.
Isso posto, analisamos os mecanismos de articulação tópica em 20 cartas
de leitores de jornais do estado do Rio Grande do Norte, organizadas em três
448
grupos de 5.000 palavras, conforme o intervalo de tempo em que foram escri-
tas: segunda metade do século XIX e primeira e segunda metades do século
XX. Constatamos que o emprego de formas referenciais e de marcadores
discursivos se repete no conjunto das cartas como expedientes articulatórios,
vinculado a funções pragmáticas, o que constitui uma tradição discursiva e,
no caso em questão, uma tradição estável.
Considerando a natureza propositiva deste trabalho, não podemos defen-
der o caráter geral desse resultado. Preferimos tomá-lo apenas como uma
reflexão sobre a possibilidade de aplicação da noção de tradição discursiva ao
tratamento diacrônico de fenômenos textuais. Esperamos que a relevância e o
alcance dessa proposição sejam avaliados em trabalhos futuros.
Referências bibliográficas
449
Jubran, C. C. A. S. (2010): “Abordagem diacrônica dos processos constitutivos do texto
– Introdução”. In A. T. Castilho/D. da Hora (orgs.). História do português brasileiro:
versão preliminar. João Pessoa: UFPB, 268-273.
Kabatek, J. (2005): “A propos de l’historicité des textes”. In A. Murguía (ed.), Sens et
références. Tübingen: Mélanges Georges Kleiber, 149-157.
Kabatek, J. (2006): “Tradições discursivas e mudança linguística”. In T. Lobo et al.
(orgs). Para a história do português brasileiro, 6. Bahia: EDUFBA, 513-554.
Penhavel, E./T. C. G. Diniz (2014): “O processo de estruturação interna de segmentos
tópicos mínimos em cartas de leitores mineiras do início do século XXI”, Revista
(Con)Textos Linguísticos, 8, 11, 21-38.
Pinheiro, C. L. (2005): Estratégias textuais-interativas: a articulação tópica. Maceió:
EDUFAL.
Risso, M. S./G. M. de O. Silva/H. Urbano (1996): “Marcadores discursivos: traços defi-
nidores”. In I. V. Koch (org.), Gramática do português falado, vol VI. Campinas:
UNICAMP, 21-94.
450
ALEXANDRA MARIA FERNANDES BALTAZAR
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
[email protected]
ORCID: 0000-0003-2566-012
Abstract: This study aims to identify linguistic particularities, more specifically in the
field of the lexicon relating to activities in rural areas, in the village of Vila Novinha, in the
parish of Rio de Mel, municipality of Trancoso and district of Guarda. European standard
Portuguese is taken as reference. The research work was based on the empirical observa-
tion of particular phenomena in the use of the Portuguese language, by the residents of this
small village in the hinterland of northern Portugal, and aims to improve understanding
of the phenomenon of variation and linguistic change and thus our knowledge of earlier
phases of this language. The survey applied to the 90 inhabitants of this village provided
us with a distinct lexicon from the sphere of the rural world that results from the contact
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_15
of languages and from other factors of the language itself. The vitality of this lexicon in
the various age groups together with the attitude of the informants towards their linguis-
tic behavior are analyzed, enabling us to consider the symptoms of an ongoing linguistic
change.
Keywords: sociolinguistics, language contact, variation and change
1. Introdução
452
1.1. Contextualização: a língua portuguesa no território português
Como refere Ivo Castro (2004: 84), a língua portuguesa não nasceu ao
mesmo tempo em todos os espaços que hoje ocupa, tendo tido como berço
a Galécia Magna (que inclui a Galiza atual, parte do norte de Portugal e o
ocidente das Astúrias).
Refletindo a história da ocupação do território, a língua portuguesa, em
contacto com outras línguas, foi enriquecendo e mudando no seu léxico, na
pronúncia, na morfologia e na sintaxe, pelo que habitualmente são reconhe-
cidos, neste processo evolutivo, quatro períodos ligados por épocas de tran-
sição (desde o português antigo ao português moderno) (Mateus, 2005: 5).
Embora este modelo de compartimentação da história da língua seja frequen-
temente adotado pela literatura da área, também é necessário referir, tal como
expõe Carvalho (2002: 25), que qualquer divisão acarreta artificialidade, pre-
cisamente se atentarmos numa «conceção de língua em constante devir e que
adquire contornos mais definidos quando do presente se lança um relance
pelo passado».
Nesta excursão pela história da língua portuguesa, deparamo-nos, pois,
com momentos que marcaram uma viragem no curso desta língua. Falamos,
por exemplo, da separação que hoje se verifica entre o português e o galego,
ocorrida por volta dos séculos XIV-XV. Enquanto alguns especialistas (Mon-
teagudo, 2002) consideram a existência de duas línguas, outros (Cintra, 1971)
admitem uma unidade (galego-português), dividida em dois grupos de diale-
tos (dialetos galegos e dialetos portugueses).
Com efeito, uma das constatações acerca das variedades nacionais de uma
língua é o facto de não apresentarem uniformidade interna, mas serem cons-
tituídas por variedades geográficas, os dialetos, isto é, diferentes formas de
falar uma língua conforme a região a que pertence o falante. Ao contrário das
descrições linguísticas de cariz estruturalista (baseadas no pressuposto saus-
surreano da homogeneidade do sistema), é hoje teórica e metodologicamente
integrada a evidência de que qualquer língua, falada por qualquer comuni-
dade, exibe variações, estando sujeita às transformações advindas da relação
entre o homem e a sociedade.
453
No que à variação geográfica diz respeito, ao percorrermos o nosso país
– falamos não só de Portugal continental, mas também das ilhas da Madeira
e dos Açores – apercebemo-nos da existência de especificidades no falar1
de cada região: estas especificidades são não só de índole fonética, fonoló-
gica, mas também de índole sintática, semântica, morfológica e lexical. Algu-
mas destas atualizações linguísticas distintas provêm de épocas mais antigas,
tendo sobrevivido devido ao menor contacto dos informantes com a norma
culta e permitindo-nos conhecer um pouco mais sobre a história da nossa
língua (Gouveia, 2011: 1). Veja-se, a este propósito, o exemplo: i) de algumas
aldeias fronteiriças que conservam variedades dialetais do português e que
são examinadas por Clarinda de Azevedo Maia em Os falares fronteiriços do
Concelho de Sabugal e da vizinha região de Xalma e Alamedilla (1977); ii) da
região de Olivença, descrita por Maria de Fátima Resende Matias em Bilin-
guismo e níveis sociolinguísticos numa região luso-espanhola (Concelhos de
Alandroal, Campo Maior, Elvas e Olivença) (1984); iii) da região de Barrancos,
que se distingue por ser uma vila onde existe um falar fronteiriço, matizado
com elementos portugueses e espanhóis (Castro, 2004: 26).
Não procuramos com este trabalho traçar áreas e limites lexicais. Contudo,
na senda daquelas investigações, procuramos também nós, ainda que numa
escala bastante mais reduzida, debruçar-nos sobre o léxico utilizado numa
aldeia em particular, a aldeia de Vila Novinha, situada no distrito da Guarda.
Não sendo necessariamente exclusivo desta aldeia, o léxico em causa reflete
toda uma herança cultural de uma comunidade e perpetua aspetos de uma
vida mais rural, mais próxima de um tempo passado, mas que nos poderá
fornecer pistas para o entendimento da heterogeneidade linguística, no tempo
presente.
1 Para Boléo/Silva (1962), o termo dialeto é utilizado para designar a fala de uma
determinada região que apresenta um elevado número de caraterísticas distintas da norma
padrão, pelo que nos casos em que as diferenças são menos evidentes é utilizada a desig-
nação de falar. No âmbito do nosso trabalho, utilizaremos a designação de falar para nos
referirmos à fala dos habitantes da aldeia de Vila Novinha.
454
2. Enquadramento teórico
2 Conceito cunhado por Uriel Weinreich ([1953] 1979: 1): «those instances of deviation
from the norms of either language which occur in the speech of bilinguals as a result of
their familiarity with more than one language».
3 Para Uriel Weinreich ([1953] 1979: 1), «the practice of alternately using two languages
will be called bilingualism, and the persons involved, bilinguals».
455
Embora as causas exteriores ajudem a explicar grande parte do léxico
português, é nas forças internas evolutivas do sistema linguístico, valorizadas
desde cedo pelo estruturalismo diacrónico (Martinet, Jakobson), que encon-
tramos explicação para muitos dos vocábulos em uso. Não há dúvida de que
encontramos, frequentemente, léxico criado com recursos formais próprios,
ou ainda resultante de associações semânticas, surgindo designações mais
expressivas que substituem, muitas vezes, designações mais correntes. É
prova deste processo de criação/inovação lexical o vocábulo escova terra,
atualizado pelos informantes da aldeia alvo do nosso estudo, em detrimento
da designação comum de toupeira.
456
dos falantes para com as línguas e/ou variedades em uso nas comunidades e
a que Julio Borrego Nieto (apud Cardoso, 1997: 135-136) chama de “imagen
lingüística”:
457
guarmos a atitude dos informantes perante o seu falar, procedemos à reali-
zação de um inquérito por questionário, aplicado no seio da comunidade de
falantes4 que integra a referida aldeia.
Importa desde já salientar que estamos perante uma aldeia do interior
norte de Portugal, situada no distrito da Guarda, no concelho de Trancoso e
freguesia de Rio de Mel5, onde as atividades económicas dominantes são a
agricultura, a pecuária e a construção civil.
Destacamos a importância estratégica de Trancoso, um dos pontos mais
avançados da reconquista cristã para sul, tendo sido uma das mais importan-
tes vilas medievais portuguesas. Quanto à freguesia, Rio de Mel, o nome apa-
rece já citado em documentos do século XIII, como na doação feita em 1293
por D. Aldara Pinhel ao Convento de Salzedas (Costa, 1992). À semelhança da
sede de freguesia, também a aldeia alvo do nosso estudo, isto é, Vila Novinha,
se localiza junto ao Rio Távora, e tem a sua origem num grupo de pessoas que
ali se estabeleceram após a destruição da vila romana dos Quartos, destruição
causada pelas invasões francesas6. Tratando-se de uma aldeia anexa, Vila
Novinha apresenta uma dimensão reduzida, quer em termos geográficos, quer
em termos populacionais. Referimo-nos a um total de 90 informantes (41 do
sexo masculino e 49 do sexo feminino, com idades compreendidas entre os
7 e os 90 anos).
4 De notar que não são incluídas neste estudo quatro crianças cujas idades se situam
entre os dois e os quatro anos de idade.
5 Rio de Mel é uma freguesia portuguesa do concelho de Trancoso, com 23,31 km² de
área e 323 habitantes.
6 Informação disponível em http://municipiosefreguesias.pt/index.php/show/junta/3507/
rio-de-mel [23.5.2017].
458
lidades do meio rural. A formulação das questões do inquérito obedeceu ao
princípio da clareza (perguntas claras e concisas), de modo a assegurar-se a
sua compreensão.
Para a elaboração do referido inquérito, socorremo-nos do nosso conheci-
mento da realidade etnográfica desta comunidade, em particular do conheci-
mento de vocábulos/expressões em uso naquela comunidade, tendo também
consultado a base de dados lexical Tesouro do léxico patrimonial galego e por-
tugués (Álvarez – coord.) para verificarmos até que ponto algumas destas for-
mas linguísticas poderiam ser atualizadas, ou não, noutras áreas geográficas.
Em primeiro lugar, optámos pela apresentação de algum léxico, distribuído
por secções, com o intuito de percebermos se o mesmo continua em uso e é
conhecido pelos elementos que integram as diversas faixas etárias da comuni-
dade. Em segundo lugar, consideramos que o confronto com esse léxico nos
permitirá também recolher, junto dos informantes, outras formas linguísticas,
relacionadas com aquelas que integram o inquérito.
O inquérito encontra-se organizado em três partes: i) a primeira parte
possibilitar-nos-á obter informações para caracterizarmos os informantes em
estudo (idade, sexo, habilitações académicas e profissão); ii) a segunda parte
encontra-se estruturada em secções, cada uma correspondendo a áreas lexi-
cais específicas, relacionadas com as atividades agrícolas, nomeadamente,
animais, alimentos, recipientes, instrumentos agrícolas, extensões de terreno,
entre outras. A última parte do inquérito corresponde a uma pergunta de
resposta aberta, visando, assim, a obtenção da opinião dos informantes rela-
tivamente ao seu falar.
459
linguístico por nós aplicado.
Como podemos verificar, é na faixa etária dos 61-70 que encontramos o maior número
de informantes, seguida da faixa etária dos 71-80.
91-100 1%
81-90 8%
71-80 18%
61-70 23%
51-60 6%
41-50 10%
31-40 17%
21-30 2%
11-20 10%
7-10 5%
Faixa etária 6
20
18
16 14
14 12
12
10 9
Homens
8 7
6 6 Mulheres
6 5 5
4 4 4 4
4 3
2 2
2 1 1 1
0 0
0
7-10 11-20 21-30 31-40 41-50 51-60 61-70 71-80 81-90 91-100
Faixa etária
Gráfico 2 - Distribuição dos informantes por faixa etária e sexo (em valores absolutos)
Gráfico 2 – Distribuição dos informantes por faixa etária e sexo
(em valores absolutos)
Posteriormente, ao considerarmos o fator habilitações académicas, verificamos que uma
larga percentagem dos informantes concluiu apenas a 4.ª classe antiga (64%) e outros 11%
não concluíram a mesma, pelo que estamos perante informantes com uma escolaridade
Posteriormente, ao considerarmos o fator habilitações académicas, verifica-
precária e de nível sociocultural baixo.
mos que uma larga percentagem dos informantes concluiu apenas a 4.ª classe
antiga (64%) e outros 11% não concluíram a mesma, pelo que estamos perante
informantes com uma escolaridade reduzida e de nível sociocultural baixo.
64%
460
não concluíram a mesma, pelo que estamos perante informantes com uma escolaridade
precária e de nível sociocultural baixo.
64%
11% 9%
1% 3% 4% 3% 3%
1% 1%
Gráfico
Gráfico 3 – Habilitações
3 - Habilitações académicas
académicas dos informantes
dos informantes
461
civil (4%), no setor fabril (3%), no transporte de mercadorias (1%), bem como no setor
agrícola (16%). Para além destes, encontramos informantes que já foram emigrantes (na
França e na Suíça), estando, agora, de regresso à aldeia (7%).
31%
462
Outras expressões Trabalhar muito e depois encostar-se
Escanar o milho
Arrecadar o milho
Ensinar as estremas
Abrir ao chapuço
Atar o molho com um bancilho
Ugar a erva em gavelas
Taça
Almotriga
Recipientes
Malga
Alguidar
Barranha
Fonte
Restolha
Extensões
de terreno
Lameiro
Regada
Quelho
Gacho
Alimentos
Botelho
Míscaros
Carrapatos
Gravanço
Badana
Chiba
Pita
Animais
Escova terra
Bácoro Faixa etária 31-40
Reco Faixa etária 21-30
Abespra
Faixa etária 11-20
Alecrairo
Mangual Faixa etária 7-10
Gadanha
Instrumentos
agrícolas
Pedoa
Enxada ("ainxada")
Sacho
Seitoira
Prantar a mesa
Matança do porco
Acincho
queijo
463
Trabalhar muito e depois encostar-se
Outras expressões Escanar o milho
Arrecadar o milho
Ensinar as estremas
Abrir ao chapuço
Atar o molho com um bancilho
Ugar a erva em gavelas
Taça
Almotriga
Recipientes
Malga
Alguidar
Barranha
Fonte
Restolha
Extensões
de terreno
Lameiro
Regada
Quelho
Gacho
Alimentos
Botelho
Míscaros
Carrapatos
Gravanço
Badana
Chiba
Pita
Animais
Escova terra
Bácoro
Reco Faixa etária 61-70
Abespra Faixa etária 51-60
Alecrairo
Faixa etária 41-50
Mangual
Instrumentos
Gadanha
agrícolas
Pedoa
Enxada ("ainxada")
Sacho
Seitoira
Prantar a mesa
Matança do porco
Abrir à presa
Tirar água da açude
Tirar água da rigueira
Atupir as batatas
Abrir o rego com a sachola
Fazer as leiras
Agradar a terra
Francela
Ferrada
Produção de
Acincho
queijo
464
revelaram conhecer e utilizar os vocábulos que integram a secção dos instru-
mentos agrícolas (cf. gráfico 5). Tal facto não é de estranhar tendo em conta
que estamos numa região onde uma das principais atividades económicas é
a agricultura e onde praticamente toda a população continua a desenvolver
uma agricultura de subsistência.
À medida que avançamos nas faixas etárias dos informantes (41-50/51-
60/61-70), é notória a vitalidade deste léxico, estando bem presente no dia a
dia destes habitantes. Quando questionados sobre atividades agrícolas como
o cultivo das batatas, a matança do porco, os informantes demonstraram, na
generalidade, um conhecimento profundo do léxico que apresentamos no
gráfico 6. Leia-se o relato de uma informante, situada na faixa etária dos 61-70
anos, sobre a atividade do cultivo das batatas:
rimeiro agrada-se a terra para ficar direita. Ó depois, é preciso fazer as leiras.
P
Fazem-se os regos com a sachola e ó depois pega-se no caldeiro e deitam-se as
batatas no rego. Se for com a máquina de semear batatas é mais depressa, mas
ó depois é preciso fazer o cadabulho com a sachola e às vezes tem que se atupir
as batatas para a sementeira ficar bem feita.(…) Dantes regava-se com a água da
rigueira (…) porque havia água na açude, mas agora temos a água do poço.
Por último, no que concerne às faixas etárias mais elevadas (71-80, 81-90,
91-100), verifica-se que os informantes reconhecem e dominam os vocábulos/
expressões apresentadas, embora vocábulos como prantar, gravanço e cacho
não sejam reconhecidos por alguns informantes. De notar que os informantes
situados na faixa etária dos 81-90 mencionaram atualizar outro vocábulo no
domínio dos instrumentos agrícolas, alfanje8, que consideram ter o mesmo
significado que o vocábulo gadanha. O mesmo se verificou na secção res-
peitante ao cultivo de batatas onde os informantes da faixa etária dos 71-80
referiram conhecer e atualizar outra expressão, nomeadamente fazer o cada-
bulho9, como se pode verificar no gráfico seguinte.
8 Alfanje: [Do árabe al-khanjal.] s.m. 1. Sabre de folha larga e curta. 2. Brasil. Foice,
roçadeira (Ferreira, 1986 2: 82).
9 Cadabulho: s.m. Reg. Porção de terra onde o arado não chega e que tem de ser cavada
(Simões, 1984: 602).
465
100
10
20
30
40
50
60
70
80
90
0
Meter as ovelhas à carreira
Produção de
queijo Surricar as ovelhas
Fazer a cama às ovelhas com carumba e fieitos
Acincho
seguinte.
outra expressão, nomeadamente fazer o cadabulho9, como se pode verificar no gráfico
cultivo de batatas onde os informantes da faixa etária dos 71-80 referiram conhecer e atualizar
o mesmo significado que o vocábulo gadanha. O mesmo se verificou na secção respeitante ao
Gráfico 7 - % de informantes que reconhece e compreende léxico da esfera rural (faixas etárias 71-80/81-90/ 91-
Ferrada
Francela
Agradar a terra
Fazer as leiras
Cultivo de batatas
porco
Ir ao cortelho do porco
Fazer um laço com um rabeiro
Botar o porco no banco
Prantar a mesa
Seitoira
Sacho
Instrumentos
agrícolas
Enxada ("ainxada")
Pedoa
Gadanha
Faixa etária 81-90
Mangual
Outras (alfanje)
100)
Alecrairo
Abespra
Reco
Animais
Bácoro
Escova terra
Pita
Faixa etária 91-100
Chiba
Badana
Gravanço
Alimentos Extensões
Carrapatos
Míscaros
Botelho
Gacho
Quelho
de terreno
Regada
Lameiro
Restolha
Fonte
Recipientes
Barranha
Alguidar
Malga
Almotriga
Taça
Ugar a erva em gavelas
Outras expressões
466
Os dados apresentados, associados ao nosso conhecimento desta realidade
linguística, permitem-nos afirmar, de um modo geral, que estamos perante
léxico que revela ainda muita vitalidade nas diversas faixas etárias.
Considerando que muito do léxico aqui apresentado se afasta da norma
culta do português europeu, importa desde já analisar os fatores linguísti-
cos e extralinguísticos que estão na origem deste falar diferenciado (cf. 2.1.
A constituição do léxico português: fatores internos e externos).
Desta forma, foi possível identificar vocábulos de origem latina (ex. acin-
cho, leira e sacho), vocábulos de origem árabe (ex. badana, almotriga, açude),
bem como francesismos/galicismos (ex. vianda) e castelhanismos (ex. carra-
pato, gravanço).
Entre o léxico recolhido, encontramos ainda outras formas linguísticas
identificadas como regionalismos, nas fontes consultadas10 (ex. chapuço,
reco, rabeiro), notando, contudo, que os materiais lexicográficos consultados
apresentam, muitas vezes, origens distintas para a mesma forma.
Porém, é inegável que estamos perante léxico salpicado de influências
diversas, que resulta, principalmente, do contacto de línguas (vocábulos como
o verbo ensinar, presente na expressão andemos a ensinar as estremas, acu-
sam um processo de substituição semântica, neste caso de influência cas-
telhana, significando ‘mostrar’), mas também revelando aspetos inovadores
que emanam, muitas vezes, da capacidade criadora dos falantes. Veja-se, a
este propósito, e a título de exemplo, o recurso à composição para a criação
de novas palavras (ex. escova terra11, para ‘toupeira’, revelando a associa-
ção mental dos informantes à ação realizada pelo animal – escovar/escavar a
467
terra), ou ainda o vocábulo rigueira12, significando, nas palavras dos infor-
mantes desta aldeia, ‘o rego por onde corre a água que vem da ribeira’.
No léxico em análise, encontramos também formas linguísticas que sofre-
ram alterações de género13. Veja-se, a este propósito, o vocábulo o açude,
atualizado pelos informantes desta aldeia como a açude, levando-nos a colo-
car a hipótese, tal como refere Gouveia14 (1998), que a vogal inicial possa
ter influenciado a atribuição do género. Outros vocábulos como o restolho e
a botelha apresentam também género divergente, face ao consagrado pela
norma, sendo atualizados como a restolha e o botelho, muito possivelmente
como resultado da analogia (a restolha, para os habitantes da aldeia de Vila
Novinha, designa o terreno onde existe o restolho15) e da associação de aspe-
tos linguísticos com a vida real, como a repartição macho/fêmea que se veri-
fica na natureza (a botelha/o botelho). O género parece aqui funcionar como
mecanismo para distinguir grandezas, sendo que a botelha é maior quando
comparada com o botelho, na aceção dos informantes desta aldeia16.
Centrando agora a nossa atenção na última parte do inquérito, isto é, na
atitude dos informantes perante o comportamento linguístico, realçamos o
entusiasmo e o sentimento de orgulho com que os informantes mais velhos
descreveram estas atividades do mundo rural, reconhecendo que os seus
netos de Lisboa desconhecem tais realidades.
468
Apesar de afirmarem que estes vocábulos/expressões fazem parte das suas
tradições e da sua identidade cultural, quando interpelados no sentido de
emitirem um juízo de natureza valorativa sobre o comportamento linguístico
da aldeia, os informantes foram explícitos na subvalorização destes recursos
linguísticos, afirmando que estamos perante um português rural, atrasado,
pouco apurado, numa clara atitude depreciativa face a este português que
associam a um mundo rural, distante dos centros de poder. Uma das constata-
ções foi, também, a aguda consciência linguística das mulheres, que optaram
por adjetivos como maltratado e pouco apurado, por oposição aos homens
que preferiram adjetivos como diferente e mais antigo.
100 100
90
80
80
70 67
60 5656 57
50 50 49
50 43 44
40 40
40 33 31 Faixa etária 7-10
31 29
30 Faixa etária 11-20
20 22 20 22
19 Faixa etária 21-30
20 13 13
6 6 Faixa etária 31-40
10 4
Faixa etária 41-50
0
Faixa etária 51-60
l"
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do
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Po
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co
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io
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ês
gu
rtu
Po
É na faixa etária acima dos 41 anos de idade que se verificam atitudes mais
negativas, inclusivamente de natureza estética, uma vez mais por parte das
mulheres (feio por oposição ao português de Lisboa, que é bonito e melodioso).
469
No que concerne às faixas etárias mais baixas, estas optaram, principalmente,
pelos adjetivos antigo e diferente. De salientar que 80% dos informantes da
faixa etária dos 7-10 anos referiram encontrar poucas ou nenhumas diferen-
ças. É importante notar que estamos perante jovens ainda numa fase inicial da
sua formação, denotando-se ausência de uma consciência linguística.
4. Conclusões
470
aldeia. De facto, os jovens demonstraram uma atitude depreciativa perante
vocábulos mais antigos, levando-nos a inferir que valorizam o seu comporta-
mento linguístico em detrimento destas realizações linguísticas. A ausência de
conhecimento de algum deste léxico, por parte das faixas etárias mais jovens,
associada a uma valoração negativa destas formas, poderão ser sintomas de
uma mudança linguística, ainda que lenta, tendo em conta que estamos no
seio de uma população que se caracteriza por um modo de vida sedentário e
que se encontra ligada por fortes laços afetivos.
Acreditamos que a reflexão apresentada sobre o comportamento linguís-
tico deste microcosmo rural, poderá ajudar a aprofundar o conhecimento, não
só sobre a história da língua portuguesa, como também sobre os processos
linguísticos a que os falantes frequentemente recorrem para conferir maior
expressividade a determinadas realidades.
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473
(Página deixada propositadamente em branco)
ROBERTO FRANCISCO NASI
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
[email protected]
ORCID: 000-0002-4559-0329
A l t e r n a t i va d e i n t e r p r e t a ç ã o d o g r a f e m a
c o m o i n d í c i o d e e l e va ç ã o d e v o g a i s m é d i a s
pretônicas no português brasileiro
s u l - r i o - g r a n d e n s e d o s é c u l o XIX
A lt e r n at i v e i n t e r p r e tat i o n o f g r a p h e m e s
a s a r e p r e s e n tat i o n o f p r e t o n i c m i d ‑ v o w e l
r a i s i n g i n S u l -R i o -G r a n d e B r a z i l i a n
Portuguese in the 19th century
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_16
Abstract: This research investigates the phonological process of pretonic mid-vowel
raising /e/ and /o/ in Sul-Rio-Grande Brazilian Portuguese through written records from
the 19th Century. The work started in Nasi (2012) based on the belief that graphemes
indicate the phonological processes in accordance with Marquilhas (2000) and Monaretto
(2005). It is believed that some cases where the vowels <i> and <u> replace <e> and <o>
based on the current spelling are indicators of a vowel-raising process, like the one found
in spoken language. The raising of the pretonic mid-vowels in Rio Grande do Sul is descri-
bed, and a methodology for working in diachronic phonology is proposed through written
corpora from the 19th century based on historical linguistics researchers such as Romaine
(1982), Lass (2000), Schneider (2002) and Montgomery (2007). Data collection was based
on the phonological phenomena studied by Bisol (1981), Battisti (1993), Schwindt (1995),
Casagrande (2003) and Klunck (2007), such as vowel harmony, vowel raising in the initial
syllable and vowel raising with no apparent motivation. Written text corpora are available
in a digital archive. The article discusses whether the words found in the nineteenth cen-
tury corpora reflect the spoken language or the first modifications to Brazilian Portuguese
orthography from that time, by examining data in contemporaneous grammar books and
dictionaries.
Keywords: sul-rio-grande Brazilian Portuguese; nineteenth century, pretonic mid-
-vowels, diachronic phonology
1. Introdução
1 Meus sinceros agradecimentos à Profa. Dra. Valeria Neto de Oliveira Monaretto, que
me apresentou e orientou à pesquisa em Linguística Histórica.
476
enfrentam certas dificuldades. Umas das que mais se destaca é a dificuldade
na formação e obtenção de corpora, o que parece implicar numa metodologia
específica apropriada a cada tipo de texto que os constitui.
Análises de estágios passados da língua contribuem para a formação histó-
rica e linguística da variedade brasileira da língua portuguesa (doravante PB).
Pesquisas brasileiras como as de Tarallo (1983), Mattos e Silva (1989) den-
tre outros, retratam o comportamento linguístico do português brasileiro de
forma histórica através de textos escritos. Além destes, especificamente, Bisol
(1981, 1983), Monaretto (2005, 2013) e Nasi (2012, 2016) realizam análises
linguísticas da variedade regional sul-rio-grandense do português brasileiro
por meio de dados escritos de um passado linguístico.
Em Nasi (2012), por exemplo, foram analisados alguns títulos de jornais
do acervo do Arquivo Histórico Moysés Vellinho em Porto Alegre, capital do
estado brasileiro do Rio Grande do Sul. Foram coletados, em 275 exemplares
de jornais, 154 ocorrências de registros escritos sobre os quais acredita-se
possuírem algum valor fonológico em relação a diversos fenômenos já descri-
tos na fala. Em Nasi (2016), pesquisa que norteia este artigo, foram coletadas,
em 240 periódicos e 118 manuscritos, 179 ocorrências escritas que podem ser
consideradas indícios de registro da elevação das vogais médias pretônicas no
século XIX. Um exemplo do tipo de dado selecionado pode ser visualizado
na figura a seguir:
477
A presença de registros escritos de variação de <e> grafado como <i>
e de <o> grafado como <u> em diversos documentos, atesta uma série de
formas que figuram como indícios de possíveis casos de alçamento vocá-
lico de médias átonas em que /e,o/ realizam-se respectivamente como [i,u].
Estes casos parecem se enquadrar como vestígios de um processo fonoló-
gico corrente na variedade falada do português do Brasil, conhecido como
alçamento ou elevação da vogal média átona. Segundo pesquisadores como
Bisol (1981), Battisti (1993), Schwindt (1995), Casagrande (2003), Klunck
(2007), Silva (2012) e Monaretto (2013), inúmeros fatores motivam esse
processo. Com base em pressupostos teóricos da Sociolinguística Histórica
de Romaine (1982) e em uma coleta de dados fonologicamente significati-
vos, conforme Lass (2000), expomos a seguir os objetivos e hipóteses desta
pesquisa.
1.1. Objetivos
478
Além disso, esta pesquisa pretendeu formar corpora digitalizados de tex-
tos oitocentistas produzidos no Rio Grande do Sul através de fotografia para
oferecer em formato de mídia para a comunidade em geral. Através destes
corpora, propõe-se um retrato da elevação de vogais médias pretônica no
português sul-rio-grandense do século XIX, além da construção de uma meto-
dologia de análise nos corpora de língua portuguesa escrita no Rio Grande
do Sul, Brasil. O retrato é feito através da coleta de registros dos grafemas
em textos oitocentistas que possam ser representativos de vestígios de ora-
lidade sobre o fenômeno de alçamento de vogais médias pretônicas através
da análise qualitativa destas ocorrências de acordo com os tipos de elevação
já conhecidos na língua falada em sincronias recentes, com base em estudos
sobre elevação de vogais médias pretônicas como por exemplo os de Bisol
(1981), Battisti (1993), Schwindt (1995, 2002), Casagrande (2003), Klunck
(2007), Silva (2012) e Monaretto (2013).
Este retrato também é feito por meio da verificação se o referido processo
de alçamento vocálico já se manifestava no português brasileiro oitocentista
como um possível reflexo de oralidade ou se este poderia se tratar de uma
aplicação de certo padrão gráfico existente na época dentro de um período
histórico no qual se tentava a construção de uma norma brasileira. Para tal,
buscaram-se evidências metalinguísticas sobre a realização linguística das
vogais em obras tais como gramáticas, dicionários e glossários de língua por-
tuguesa publicadas entre os séculos XVIII e XIX. Pretendeu-se, desse modo,
inferir se as ocorrências grafemáticas das vogais pretônicas altas <i> e <u> ao
invés do emprego de médias <e> e <o> (contrastantes com a ortografia atual)
podem ser consideradas casos de reflexo de oralidade ou interpretadas como
tentativas de ajustes a uma norma escrita em construção na época, isto é, não
formalizada até então. O exame de ocorrências foi feito em dicionários oito-
centistas de forma semelhante ao feito em Barbosa (1999) e Lima (2014) nos
quais verificaram-se escritas etimológicas.
A escolha do processo de elevação de vogais médias pretônicas como
objeto deste estudo se justifica pela presença bastante conhecida do fenômeno
na fala do português brasileiro sul-riograndense, assim como sua presença na
escrita do português brasileiro sul-rio-grandese no século XIX, conforme Nasi
(2016). A seguir, expomos as hipóteses que nortearam esta pesquisa.
479
1.2. Hipóteses
480
2. A
Linguística Histórica através da Fonologia Diacrônica no Bra-
sil: estudos recentes
481
Figura 2 – Trecho de Echo do Palmar (Santa Vitória do Palmar, 31 de dezembro
de 1892) com elevação vocálica em indiscriptivel. Fonte: do autor
482
As ocorrências acima ilustradas, trazidas em Nasi (2016), apontam grafias
alternativas das vogais médias pretônicas <e> e <o>, sendo grafadas como
<i> e <u> no período oitocentista em diversas localidades do Rio Grande do
Sul, exemplos tais como imminente e concurrencia (Pelotas, 1879), disfruta
(Porto Alegre, 1852) surtimento, espiculadores (Porto Alegre, 1884) e indis-
criptivel (Santa Vitória do Palmar, 1892). Os registros encontrados apontam
vestígios de harmonia vocálica no português sul-rio-grandense do século XIX.
Estes registros são semelhantes a certos casos encontrados na fala desta
variedade regional do português. Considerações teórico-fonológicas acerca do
fenômeno, além dos estudos de fala, são expostas na seção a seguir.
483
Nesta representação, percebe-se que a realização de sete vogais não é
mantida devido ao processo de neutralização, que é a perda do traço que dis-
tingue dois fonemas. O sistema de sete vogais tônicas do português brasileiro
reduz-se a cinco vogais, tendo /e/ e /o/ como vogais médias.
O processo de elevação vocálica das médias, isto é, quando uma vogal
média realiza-se como alta na língua, é descrito pelas teorias fonológicas por
meio da geometria de traços na fonologia autossegmental. Nesta, para Cle-
ments (1989) é necessário um traço que diferencie as vogais quanto à aber-
tura além da altura. O traço de abertura possui marcação binária, sendo esta
representada pela presença da marcação (+) ou sua ausência (-).
Bisol (2013: 50) analisa a harmonização vocálica como um processo de
assimilação regressiva do nó de abertura, que é flutuante. O gatilho do pro-
cesso é uma vogal alta, sendo o alvo a vogal média em contexto pretônico.
Ocorre a assimilação vocálica do nó de abertura da vogal posterior. Desse
modo, seu nó de abertura é desligado. Isso acontece em palavras que pos-
suem em seu interior contexto de vogal média seguida por alta, por exemplo
na pronúncia de ‘pepino’ por pipino, de ‘coruja’ por curuja, de ‘peregrino,
peregrinação’ por pirigrino, perigrinação, de ‘educar’ por iducar e ‘engolir’
por engulir.
484
Figura 9 – perigrinação, de America (Rio Grande, 7 de novembro 1870)
A seguir vê-se outro tipo de processo que ocorre na elevação das médias
pretônicas, a redução vocálica sem condicionador fonético. Neste, a eleva-
ção sem motivação aparente apresenta-se como um caso de elevação sem
a presença de vogal alta na palavra, como por exemplo em colégio~culégio,
coração~curação. Segundo Bisol (2009: 79), este é um processo categórico
de neutralização no qual os traços da vogal média pretônica são desligados e
preenchidos por default por uma vogal alta. Pronúncias como fumenta para
fomenta demonstram que alguns vocábulos parecem ser mais atingidos que
outros em relação à alternância da pretônica. Segundo Bisol, este é um pro-
cesso categórico de neutralização no qual os traços da vogal média pretônica
são desligados e preenchidos por default por uma vogal alta, conforme a
figura exposta.
485
Figura 11 – Elevação sem motivação aparente, segundo Bisol (2009)
486
Em relação ao alçamento vocálico de pretônicas no Brasil, foram revisados
os trabalhos sociolinguísticos sobre o fenômeno no português brasileiro em
sincronias recentes, a fim de se verificar as relações existentes entre grafias
significativamente fonológicas e alguns fatores condicionantes da variação na
fala. Foi revisado 1 trabalho por região, com exceção do Rio Grande do Sul,
do qual foram revisadas 7 pesquisas.
Os estados brasileiros contemplados em nossa análise foram Rio de Janeiro,
conforme Callou/Leite/Coutinho (1991); Distrito Federal, conforme Bortoni/
Gomes/Malvar (1992); Pará, conforme Campos (2008), São Paulo, segundo
Tenani/Silveira (2008); Piauí, conforme Silva (2009); Acre, com a pesquisa de
Hosokawa/Silva (2010); Minas Gerais, segundo Rezende/Magalhães (2011);
Goiás, conforme Silva (2013) e Rio Grande do Sul, conforme as pesquisas de
Bisol (1981), Schwindt (1995, 2002), Casagrande (2003), Klunck (2007), Silva
(2012) e Monaretto (2013).
Embora se verifiquem algumas diferenças notáveis entre os trabalhos,
como o número de informantes, por exemplo, verifica-se que o alçamento
vocálico de pretônicas brasileiro, em linhas gerais, é uma regra que ocorre,
em maior ou menor grau, em todas as regiões do Brasil, não possuindo condi-
cionamento extralinguístico relevante, conforme os trabalhos de Callou/Leite/
Coutinho (1991); Bortoni/Gomes/Malvar (1992); Tenani/Silveira (2008), Silva
(2009) e Rezende/Magalhães (2011).
Percebe-se que a vogal /e/ eleva-se, geralmente, mais do que /o/, sendo
a presença de vogal alta na sílaba seguinte fator que favorece a elevação da
vogal média pretônica. Em relação aos sons consonantais envolvidos nos con-
textos, palatais precedentes favorecem a elevação de /e/, conforme Bortoni/
Gomes/Malvar (1992) e Silva (2009). Além disso, palatais seguintes favorecem
a elevação de /o/, segundo Tenani/Silveira (2008) e Silva (2009).
Como a presente análise tem como objeto o português brasileiro oitocen-
tista utilizado no Rio Grande do Sul, faz-se mister apresentar – com maior
ênfase – os trabalhos feitos acerca do comportamento variável das vogais
médias pretônicas no dialeto sul-rio-grandense.
487
3.1.1. C aracterísticas do alçamento no português brasileiro sul-rio-
-grandense e considerações históricas sobre Rio Grande do Sul
488
favorecem a elevação por harmonia vocálica. As átonas permanentes demons-
traram ser mais propícias a este tipo de elevação.
Além disso, palavras do mesmo paradigma tendem a elevar-se regular-
mente. Em relação a sufixos, a probabilidade de harmonização é maior quando
há presença de sufixos verbais com vogal alta.
Em relação à elevação de vogais médias em posição inicial, em hiato e em
prefixo, sílabas fechadas por /n/, a presença de vogal alta na sílaba seguinte
e das dorsais /k/ e /g/ seguintes favorecem a elevação das médias, conforme
Battisti (1993).
Vários fatores condicionadores foram verificados nas pesquisas sociolin-
guísticas de língua falada. Embora não possamos aplicar os fatores sociais a
corpora linguísticos escritos desta pesquisa, acreditamos que condicionado-
res linguísticos como a presença de vogal alta na palavra possam auxiliar na
explicação de ocorrências escritas oitocentistas como reflexos de oralidade.
Após tratarmos de sincronias recentes, trataremos a seguir da construção
de metodologia para análise linguística de corpora escritos.
489
que este movimento também causou o mesmo fenômeno há milhares de anos.
Uma interpretação linguística do princípio uniformitarista é a de Whitney
(1874: 184), vista a seguir:
A natureza, os usos da fala e as forças que sobre ela atuam e produzem suas
mudanças não podem, senão, serem essencialmente as mesmas durante todos os
períodos de sua história, em meio a todas as suas circunstâncias de mudança e
fases variáveis; e não existe modo no qual seu passado desconhecido possa ser
investigado, exceto por meio de um estudo cuidadoso de seu presente vivo e de
seu passado registrado, além da extensão e da aplicação de remotas condições de
leis e princípios deduzidas através deste estudo2.
2 Traduzido de: «The nature and uses of speech, and the forces which act upon it and
produce its changes, cannot but have been essentially the same during all the periods of
its history, amid all its changing circumstances, in all its varying phases; and there is no
way in which its unknown past can be investigated, except by the careful study of its living
present and its recorded past, and the extension and application to remote conditions of
laws and principles deduced by that study».
3 Traduzido de: «General Uniformity Principle: Nothing that is now impossible in prin-
ciple was ever the case in the past».
490
agora». Igualmente, a escolha de domínio geral da Uniformidade ou Probabi-
lidade mostra-se também dependente da qualidade e detalhamento da infor-
mação pelo pesquisador obtida acerca do presente de língua.
Ao pesquisar o passado pelo presente linguístico, percebe-se um retorno
deste tempo pretérito – priorizado até então pela Linguística Histórica (dora-
vante LH) – ao centro das atenções dos estudos sociolinguísticos através da
Sociolinguística Histórica. Romaine (1982) acredita que esta sociolinguística
seja uma disciplina mais integrativa metodologicamente com outras áreas do
conhecimento linguístico. Conforme Romaine (1982: 9) os sociolinguistas que
analisam a fala vernacular do presente não detêm monopólio no estudo da
variação. Ademais, a Sociolinguística Histórica considera a escrita um meio
tão legítimo quanto à fala para estudo variacionista, sendo fala e escrita con-
sideradas manifestações de uso discursivo de um mesmo continuum linguís-
tico, mesmo que cada meio possua suas especificidades.
Trabalhar com testemunhos do passado para pesquisa linguística implica
na composição e formação de corpora de textos escritos, tema sobre o qual
trataremos a seguir.
491
Figura 13 – exemplar rasgado de Album de Domingo
(Porto Alegre, 1878) e O Pharol (Porto Alegre, 2 de setembro de 1897)
492
Desse modo, as tentativas de preparação de um corpus para análise foram
diversas. As variáveis extralinguísticas que desejávamos formar a partir do que
se dispunha de material eram as seguintes:
493
periódicos deste corpus foi tratado como um todo. Como solução final, foram
contados manualmente os exemplares de jornais e foi consultado o máximo
de títulos possíveis de periódicos – assim como o número de manuscritos –
durante o tempo disponível de pesquisa. Além disso, os documentos foram
fotografados para que uma leitura minuciosa sem o limite de tempo autori-
zado em um turno de pesquisa nos museus (muitas vezes restrito a apenas
seis títulos diários durante uma tarde de pesquisa) fosse possível. Maiores
especificações sobre as fontes escritas em instituições gaúchas podem ser
vistas na seção seguinte.
4 Expresso meu profundo agradecimento a Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite, Coor-
denador do Setor de Imprensa do MUSECOM.
494
Tabela 2 – Memória escrita oitocentista nos arquivos de Porto Alegre.
Fonte: do autor
495
Além destes, foram analisados 73 documentos da Família Prates de Casti-
lhos e 45 documentos da Revolução Federalista. Todos os manuscritos foram
lidos na íntegra.
A composição desta amostra envolveu os processos de fotografia e digita-
lização, o que resultou no material acessório a esta pesquisa, do qual se veem
exemplos de documentos completos ilustrados na figura que segue.
496
4.2. Interpretação fonológica de grafemas: indícios de um processo
fonológico
497
Estas grafias devem possibilitar o levantamento da seguinte questão: um
falante de um determinado local e inserido em certo contexto social e
histórico do passado pôde produzir palavras tais como purpurio, bagens
e muchila? Acredita-se, com base na fala atual, que seria possível.
498
e mudança de língua por detrás dele), uma tarefa primária será ‘remover o filtro’
tanto quanto possível, isto é, acessar a natureza do processo de registro de todas
as maneiras possíveis e relevantes; e avaliar e levar em conta seu impacto provável
na relação entre evento de fala e registro para reconstruir o próprio evento de fala,
de forma tão precisa quanto possível. (Tradução do Autor).
Percebe-se, então, que a grafia traz o ato de fala que gostaríamos de ter
ouvido e que, sem registro, teria se perdido totalmente. A seguir, especifica-
-se o tipo de dado relevante para esta pesquisa: o dado fonologicamente
significativo.
499
A ideia desta autora dá margem à suposição de que os grafemas podem
desempenhar uma função distintiva do sistema alfabético ou apresentar-se
como um reflexo da oralidade. Desse modo tomam-se formas alternativas
de representação gráfica como evidência de processos fonológicos, o que é
abordado a seguir.
Impressos Manuscritos
Jornais Prates de Castilhos Revolução Federalista
ocorrências 103 31 8
/e/ como <i>
palavras 76 21 8
/o/ ocorrências 26 8 3
como <u>
palavras 19 8 1
N. de Docs 240 exemplares 73 documentos 45 documentos
500
como <u>, nos corpora oitocentistas, conforme se atesta em estudos de língua
falada, refletindo situação similar.
Sobre a grafia da vogal /o/ grafada como <u> o corpus de jornais registrou
26 ocorrências em 19 palavras, sendo mais frequentes as palavras concurren-
cia (3x), cuberto (2x) e ocurrência (2x). Nos Manuscritos da Família Prates
de Castilhos, registraram-se oito palavras: cumarca, custume, Juaquin, ocur-
ridos, prumessa, pudia, subrinhos e susiedade. Os Documentos da Revolução
Federalista apresentaram somente 3 ocorrências em duas palavras: pucivel
(2x) e subrinho.
Estes dados foram apresentados seguindo categorias como o período de
publicação do jornal (1.ª ou 2.ª metade do século), além da década (1820 a
1900) e o local de produção de cada jornal (metropolitanos ou interioranos).
Esta categorização proposta não permitiu a realização de grandes conclusões
sociolinguísticas do fenômeno estudado, devido à escassez de dados mais
imediatos e precisos; porém nos permite afirmar que indícios da elevação de
vogais médias pretônicas podem ser encontrados em jornais durante todo o
século XIX, de 1820 a 1900.
Desse modo, categorizações extralinguísticas dos jornais foram deixadas
à parte, tendo o exame grafológico das palavras encontradas como principal
objetivo da análise. Este exame, no qual a ocorrência da palavra foi conside-
rada um dado a ser coletado quando apresentava grafia de <i> para represen-
tar <e> e <u> para representar <o>, ilustra indícios da realização de alçamento
das vogais médias <e> e <o>, como [i] e [u], respectivamente.
A seguir, expõem-se como evidências metalinguísticas contribuem na inter-
pretação dos registros escritos para que sejam considerados mais próximos
do que se espera de um vestígio significativamente fonológico.
501
(2014: 40) percebeu que “a etimologização gráfica era uma categoria impor-
tante para os autores da época”.
Embora a Academia fosse mais favorável a uma escrita etimológica do
que fonética, o autor observa que, em determinada época, a relação mais
próxima entre oralidade e ortografia refletia o período oitocentista, quando
havia muitas discrepâncias entre as fontes metalinguísticas existentes acerca
da ortografia da LP.
Segundo Lima (2014: 46), «entre o séc. XIX e XX viu-se uma aproximação
da ortografia à oralidade. Até 1911 havia grafias, orientações de como deveria
ser a ortografia. O resultado das disputas foram as reformas ortográficas do
século XX».
Nesta conjuntura, interpretar fonologicamente uma ocorrência escrita
como indício de variação baseia-se na equiparação com fenômenos fonológi-
cos frequentes em uma sincronia recente, já descritos em estudos linguísticos.
A pronúncia específica de uma das variantes/alternâncias de uma variável
fonológica deve ser algo presente na fala e passível de representação gráfica
no passado. Desse modo, na interpretação dos indícios de alçamento vocálico,
verificamos nossa segunda hipótese, que afirma que evidências metalinguísti-
cas diretas acerca do fenômeno podem atestar ocorrências grafemáticas como
registros de tentativas de construção da norma ortográfica da época.
As obras analisadas foram em suma:
Realizou-se, com base em Lima (2014), a comparação da grafia subjetiva
das palavras encontradas nos corpora com a grafia objetiva dos seguintes
dicionários: Bluteau (1712), Cannecatim (1804), Silva (1813) e Coelho (1890).
Foi consultada nos dicionários a grafia das palavras coletadas nos corpora,
a fim de se examinar se os registros escritos dos corpora eram ou não coinci-
dentes ao das fontes metalinguísticas. Este exame não foi realizado em Coruja
(1856) e Corrêa (1898) devido à reduzida abrangência lexical das obras, pois
esta é constituída somente por vocábulos regionais e aquela possui apenas
32 páginas.
Ademais, foram consultadas nesta pesquisa as gramáticas de Sousa (1804),
Melo (1818), Barbosa (1822), Aulete (1864) e Coelho (1868), além de obras
variadas acerca de descrições linguísticas como Leão (1878) e Coelho (1881).
Em relação a essas obras, Coruja (1856) e Corrêa (1898), além de seus glos-
502
sários, tratam de referências dialetológicas do português utilizado no Rio
Grande do Sul. Leão (1878: 13) propunha uma reforma ortográfica “sônica”,
baseada inteiramente na língua falada. Coelho realizou descrições dos diale-
tos românicos, incluindo o português brasileiro.
A seguir, discutem-se brevemente os resultados da análise proposta.
1712 Rafael Vocabulario portuguez e Portugal 8000 p., 43,6 mil verbetes.
Bluteau latino, aulico, anatomico, 8 volumes. Bilíngue
architectonico, bellico, (português e latim)
botanico, brasilico (...),
autorizado com exemplos
dos melhores escritores
portuguezes, e latinos
1804 Bernardo Diccionario da lingua Portugal 744 páginas, 1 volume.
Maria de bunda ou angolense, Trilíngue (português, latim
Cannecatim explicada na portugueza e angolense)
e latina
1813 Antônio de Diccionario da Lingua Brasil 1749 páginas. 2 volumes.
Morais Silva Portugueza Monolíngue (português).
1856 Antônio Collecção de Vocábulos e Brasil 32 páginas. Monolíngue
Álvares Frases usados na Província (português brasileiro sul-
Pereira de S. Pedro do Rio Grande rio-grandense; dicionário
Coruja do Sul no Brazil de regionalismos)
1890 Adolpho Diccionario Manual Portugal 1272 páginas, 2 volumes.
Coelho Etymologico da Lingua Monolíngue (português).
Portugueza Contendo a Contém etimologia e
Significação e Prosodia indicação de pronúncia
dos verbetes.
1898 José Vocabulario Sul Rio- Brasil 261 páginas, 1 volume.
Romaguera Grandense Monolíngue (português
da Cunha brasileiro sul-rio-gran-
Corrêa dense; dicionário de
regionalismos)
503
5.3. Discussão dos resultados
Considerações finais
504
XIX no Brasil foi um período de tentativas de construção de norma padrão,
já que não existiam acordos ortográficos do PB. Especificamente, atingiu-se
o objetivo de propor uma alternativa de interpretação para o trabalho em
Fonologia Diacrônica por meio de organização dos corpora com base na Lin-
guística Histórica.
Entretanto, em relação à proposição de metodologia como um trabalho de
Sociolinguística Histórica por meio dos corpora em questão, além do acesso
restrito aos textos, e a falta de uniformidade em relação aos corpora para
representatividade de fatores extralinguísticos (históricos e sociais), acredita-
-se que a metodologia para o trabalho com textos escritos gaúchos oitocentis-
tas deve estar em construção e aperfeiçoamento constantes.
Ao passo que esta pesquisa envolveu coleta de vocábulos nos quais se
registraram vogais altas <i, u> em contextos nos corpora como ilustração de
uso linguístico do português brasileiro no Rio Grande do Sul oitocentista,
retratou-se, em parte, o comportamento das vogais médias pretônicas dessa
variedade do português nessa época, ao menos nesses corpora. Foram cole-
tadas ocorrências gráficas em textos representativos do fenômeno de eleva-
ção de vogais médias pretônicas, analisando qualitativamente os registros de
acordo com os tipos de elevação já abordados na língua falada, verificando
nos dicionários os registros que podem ser considerados ou casos de reflexo
de oralidade ou possível ajuste a uma norma escrita.
Grande parte dos estudos de fonologia histórica do português brasileiro
detém-se até o século XVIII, tornando necessárias mais descrições acerca do
crítico período do século XIX, especificamente descrições fonológicas. Desse
modo, esta pesquisa contribui para a descrição histórica da fonologia do por-
tuguês brasileiro oitocentista.
Em suma, percebe-se que alguns registros de indício de elevação no exame
grafemático são coincidentes com algumas realizações da língua falada. Isto
demonstra que contextos favorecedores do alçamento na fala aparecem na
escrita do português brasileiro do Rio Grande do Sul oitocentista. Percebem-se
nos registros coletados nos corpora analisados vários exemplos de palavras
escritas que expressam condicionamentos de casos encontrados na língua
falada, abordados em pesquisas sociolinguísticas.
505
A ocorrência desse tipo de registro torna possível a sua interpretação como
fonologicamente significativo, ou seja, como um indício de marca de orali-
dade supostamente ouvida no passado, que se confirma em tendências do
comportamento variável na elevação de vogais médias pretônicas em estudos
linguísticos de sincronias mais recentes.
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meteorologico, nautico, numerico, neoterico, ortographico, optico, ornithologico,
poetico, philologico, pharmaceutico, quidditativo, qualitativo, quantitativo, retho-
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511
(Página deixada propositadamente em branco)
MARIZETE BORTOLANZA SPESSATTO
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina/Universidade
do Estado de Santa Catarina1
[email protected]
ORCID: 0000-0003-0213-833X
Resumo: Este trabalho discorre sobre a relação entre ensino e variação linguística, por
meio da análise das ações de educadores diante da presença em sala de aula de um fenô-
meno em variação socialmente estigmatizado (Spessatto, 2011). A comunidade na qual se
encontra a escola, no interior de Santa Catarina-Brasil, mantém características culturais e
linguísticas de descendentes de italianos, com uma acentuada interferência da coiné vêneta
(constituída por uma mescla de dialetos do norte da Itália, especialmente o vêneto) na fala
em português. Essa interferência se evidencia em aspectos lexicais, mas, sobretudo, em um
fenômeno de variação fonológica que leva à produção de tepe em contextos de vibrante
múltipla, o que contraria o padrão fonológico do português brasileiro. Bastante comum
na região em estudo, esse fenômeno em variação enfrenta o preconceito social. Na aná-
lise das ações dos professores, observamos uma lacuna entre a concepção desses acerca
do fenômeno em variação e as ações que desenvolvem em sala de aula. Os resultados da
pesquisa apontam para a necessidade de formação dos educadores para que compreendam
e oportunizem aos estudantes a compreensão da diversidade linguística, destituindo-se do
preconceito e tornando os estudantes competentes no uso das variedades de prestígio do
português brasileiro.
Palavras-chave: educação linguística, português no Brasil, ensino de língua materna
1 Bolsista PNPD/CAPES-Brasil.
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_17
Abstract: This paper discusses the relationship between teaching and linguistic varia-
tion by analyzing how educators act when faced by the presence in the classroom of a
phenomenon in socially stigmatized variation (Spessatto, 2011). The community in which
the school is located, in the interior of Santa Catarina-Brazil, retains the cultural and linguis-
tic characteristics of descendants of Italians, with a marked interference of Venetian koiné
(consisting of a mixture of dialects of the north of Italy, especially Venetian) in spoken
Portuguese. This interference is seen in lexical aspects, but mostly in a phenomenon of
phonological variation that leads to tepe production in contexts of multiple vibration, which
is contrary to the phonological pattern of Brazilian Portuguese. Quite common in the region
under study, this changing phenomenon faces social prejudice. In the analysis of teachers’
actions, we noted a gap between the teachers’ conception regarding the phenomenon in
variation and their actions in the classroom. The results of the research indicate that educa-
tors should be trained so that they understand and can then enable students to understand
linguistic diversity, thereby eliminating prejudice and giving students the skills to use the
prestigious forms of Brazilian Portuguese.
Keywords: linguistic education, Portuguese in Brazil, mother tongue teaching
1. Introdução
2 A coiné vêneta possui estrutura fonológica, morfológica e lexical vêneta com caracte-
rísticas estruturais dos dialetos vicentivo, padovano, trevigiano e feltrino-bellunese, mais a
influência dos dialetos lombardos e do português (Frosi, 1987: 147). A coiné teve grande
representatividade na fala da população da chamada Região de Colonização Italiana do
Rio Grande do Sul-RCI, muita da qual migrou mais tarde para o oeste de Santa Catarina,
foco deste trabalho (Frosi/Mioranza, 1983: 111). Ao longo deste trabalho, quando se faz
referência à interferência deste dialeto na fala em português, também é usada a denomi-
nação dialeto vêneto.
514
história por um narrador inibido, que fala com o rosto escondido pela folha
de papel manuscrita na qual está o texto da peça.
A apresentação, feita no primeiro semestre de 20083, organizada sob o
acompanhamento de um dos professores do quadro docente daquele ano, faz
a conexão entre história e língua. Uma associação também presente neste tra-
balho que discorre sobre um fenômeno em variação linguística que caracteriza
uma comunidade de falantes do português brasileiro. A análise da variação
não pode ser feita sem que o processo histórico que a constitui seja, mesmo
que brevemente, recuperado e compreendido para, em seguida, analisar-se
como (e se) a escola intervém diante desse processo.
Esta análise atém-se a um fenômeno específico de variação linguística,
marcado pelo uso de tepe4 em contextos de vibrante múltipla, que constitui
o falar de comunidades caracterizadas pela predominância de descendentes
de italianos no sul do Brasil e, nesse recorte, foi selecionada uma região
da cidade de Chapecó5, no oeste de Santa Catarina, conhecida pelas mani-
festações de valorização da cultura italiana deixadas pelos migrantes e seus
descendentes. Na escola definida como campo da pesquisa e na qual foram
coletados os dados aqui em análise, há a predominância de sujeitos de des-
cendência italiana sobre o grupo escolar, em mais de 80%, de acordo com os
registros escolares. O nome da escola também presta uma homenagem a um
3 Os dados empíricos e análise apresentados neste trabalho retomam parte dos resul-
tados da tese de doutorado Variação Linguística e Ensino: por uma Educação Linguística
Democrática, defendida pela autora deste artigo junto à Universidade Federal de Santa
Catarina-UFSC, em 2011.
4 Tepe indica o som de “r” produzido quando a ponta ou lâmina da língua se levanta
horizontalmente e bate na área alveolar. Por exemplo, o som de areia e prato é produzido
em português do Brasil geralmente como tepe. Tepes são também denominados de vibrantes
simples, por serem produzidos com apenas uma batida em um articulador, em oposição à
vibrante múltipla “R” que é produzida com várias batidas (Callou/Leite, 2000). Para efeitos
de padronização, adota-se neste trabalho a convenção de /r/ para indicar a produção de
tepe e de /ʀ/ para a realização de vibrante múltipla. Assim, nas transcrições das falas dos
sujeitos entrevistados, será usada essa codificação para marcar as produções da vibrante,
da seguinte forma: [ʀua] e [kaʀo], quando o informante usar a vibrante múltipla ou [rua] e
[karo] quando o informante usar o tepe. A vibrante em outros contextos como em encontro
consonantal (prato), coda silábica (corda) e final de palavra (ensinar) não será marcada.
5 Foram omitidos os nomes da escola e das comunidades/bairros nos quais os sujeitos
habitam. Por outro lado, como este trabalho é proveniente de um estudo de tipo etnográ-
fico, procurou-se inserir o maior número de informações possíveis sobre o contexto da
pesquisa, assegurando aos leitores a compreensão do cenário no qual a variação linguística
está sendo analisada.
515
colonizador italiano, nascido no Rio Grande do Sul, em 1902, e que passou
a habitar no município em 1927, construindo o primeiro prédio da escola da
comunidade, em 1933.
Como a coleta de dados envolveu um estudo longitudinal, foi acompa-
nhada uma turma de sétimo/oitavo ano escolar ao longo dos anos de 2008 e
2009 (em 2009, o grupo encerrou as atividades na escola, concluindo o Ensino
Fundamental6). Os vinte estudantes tinham, durante o período da coleta de
dados, idade entre 12 e 16 anos. Nove deles viviam em uma mesma comu-
nidade rural e os demais em dois bairros da periferia da cidade, vizinhos à
escola na qual estudavam.
Em acompanhamento do cotidiano da escola, averiguou-se a relação entre
a posição adotada pelos educadores frente à variação em estudo na fala dos
estudantes e a preservação dessa variedade linguística em um grupo de
adolescentes. Em relação à presença do fenômeno em variação linguística,
a análise quantitativa dos dados linguísticos mostrou, em primeiro lugar,
uma acentuada variação na fala dos estudantes, que produziram tepe em
76% dos contextos de vibrante múltipla tanto em início de palavra, como
em Roma, quanto em posição intervocálica de vibrante múltipla, como em
terra. Observou-se, ainda, uma lacuna entre a concepção dos educadores
acerca do fenômeno em variação e as ações que efetivamente desenvolvem
em sala de aula. Embora os educadores tenham afirmado, em entrevista,
a existência de preconceito social em relação à variedade da qual os alu-
nos são detentores, não foram identificadas ações efetivas em sala de aula
na explicitação das questões sociais, históricas e políticas que envolvem a
variação linguística.
Faz-se, a seguir, a retomada do percurso histórico da imigração italiana
para o Brasil e da interferência dos dialetos trazidos pelos imigrantes na fala
em português desse grupo étnico e dos demais brasileiros em seu entorno.
516
2. Migração italiana para o Brasil e as interferências linguísticas
no português brasileiro
517
É assim que se constitui a comunidade apresentada neste artigo, situada na
cidade de Chapecó, no oeste de Santa Catarina. A constituição geográfica tal-
vez os tenha atraído, já que não difere em muito das áreas do vizinho estado
do Rio Grande do Sul em que habitavam e das cidades do norte italiano, de
onde os antecessores vieram. O grupo trouxe na bagagem costumes e tradi-
ções e, também, as características linguísticas definidas pela interferência dos
dialetos italianos na fala em português.
Quanto às condições linguísticas, os italianos que migraram para o Brasil
eram em sua quase totalidade analfabetos e não dominavam o italiano, língua
oficial, após o primeiro movimento de imigração em massa. Dessa forma, eles
trouxeram na bagagem apenas os dialetos de suas regiões de origem, dando
surgimento à coiné vêneta, como aqui já descrito. Em solo brasileiro, foram,
assim como outros grupos de imigrantes, alvo da Campanha de Nacionali-
zação8, que proibiu o uso das línguas estrangeiras em território nacional,
levando ao fechamento de escolas e até à prisão daqueles que desrespeitas-
sem essa determinação, usando línguas estrangeiras (maternas para eles, até
então).
A partir da Campanha de Nacionalização e em seguida com a Segunda
Guerra Mundial, falar os dialetos italianos trazidos pelos imigrantes (assim
como as outras línguas de imigração) passou a ser visto como algo não-patrió-
tico. Daí foi um passo para serem considerados feios, especialmente porque
remetiam ao contexto rural do qual provinham e para o qual se destinaram os
imigrantes, na Itália chamados de contadini9 e, no Brasil, de colonos10.
518
A ameaça aos que falavam línguas estrangeiras gerou um sentimento de
inferioridade, especialmente porque o fato de falar outras línguas, até então
comuns em contexto familiar e comunitário, passou a ser visto como um
sinônimo de negação da condição de brasileiros. Isso explica porque, com
o passar do tempo, especialmente a partir da metade do século passado, os
dialetos italianos já não foram mais ensinados aos filhos e, também, evidencia
o motivo do preconceito repassado às características desses dialetos incorpo-
radas pelo grupo à fala em português.
Pesquisas realizadas com falantes descendentes de italianos residentes em
áreas urbana e rural do oeste de Santa Catarina, iniciadas nos anos 199011,
apontam que, nessa região, uma característica, em específico, marca a fala do
grupo: esses falantes praticamente não fazem distinção entre a vibrante múl-
tipla /ʀ/ e o tepe /r/. A inexistência das geminadas é uma das características
que diferenciam, também na Itália, o vêneto do italiano oficial12. Dessa forma,
entre os imigrantes e seus descendentes, na fala em português, produz-se
caro tanto para designar o preço de um eletrodoméstico quanto para referir-
-se ao veículo estacionado na garagem.
Embora esse fenômeno em variação, foco de análise neste texto, seja bas-
tante comum na região em estudo, enfrenta o preconceito social em diferentes
contextos. Por um lado, há um discurso explícito de negação da variação em
espaços públicos e, por outro, observa-se que a variação característica desse
grupo étnico se manifesta de diferentes formas e em falantes de diferentes
níveis de ensino.
A pesquisa desenvolvida por Freitas (2006) com estudantes dos anos finais
do ensino fundamental na região aqui em análise mostra que esse fenômeno
em variação não apenas aparece na oralidade como apresenta reflexos na
escrita, em contextos de vibrante múltipla em posição intervocálica, quando
há a exigência gráfica de rr, como na palavra bairro. A pesquisa de Melo
(2007) evidenciou também a presença do tepe em contextos de vibrante múl-
tipla na fala de estudantes de graduação. Os informantes da pesquisa disse-
519
ram à pesquisadora sofrerem preconceito tanto por parte dos colegas como
dos professores por serem detentores dessa variação, mesmo tendo passado
mais de 11 anos na escola (somando-se ensino fundamental e médio), sem
terem sido alertados para o estigma relacionado à variante da qual são usuá-
rios, nem no sentido de correção, nem na reflexão para que tenham argumen-
tos para explicitar o uso dessa variante (/r/ para /ʀ/) relacionado a questões
familiares, étnicas e históricas. Em pesquisa desenvolvida com professores da
educação superior da região (Spessatto, 2007), esses educadores informaram
ser comum a presença do fenômeno em variação entre os universitários.
Diante desses dados, observamos que, em relação ao fenômeno específico
em variação linguística em análise, o sistema escolar, na maioria das vezes,
não possibilita aos sujeitos a apropriação da variante fonológica de prestí-
gio, marcada pela diferenciação entre os usos da vibrante múltipla/tepe, em
contextos de início de palavra (rua) e posição intervocálica de contexto de
vibrante múltipla (carro) para uso em situações formais de comunicação. Esses
dados justificam a proposta de análise, a ser apresentada na seção que segue.
520
as dúvidas do grupo em uma questão de interpretação de texto (professora
Lúcia, 05/10/09). Assim, em manifestações espontâneas como essas, foram
registradas interferências lexicais da coiné vêneta na fala em português dos
estudantes e dos professores do grupo em estudo.
Em situações do cotidiano da sala de aula ou de eventos culturais reali-
zados na escola, no período de 2008/2009, a ascendência italiana da maioria
das pessoas que vive na comunidade sempre foi colocada em destaque. Assim
também o foi nas entrevistas de estudantes e professores da turma, gravadas
em diferentes períodos do desenvolvimento da pesquisa de campo. “Aqui
tudo é italiano, a gente é italiano, que nós é ... como se diz, vamos continuar
nossa história, não vamos deixar para trás”, afirma um estudante ao descre-
ver a comunidade onde mora (Leandro, entrevista gravada em 05/12/2009).
“Eles têm uma tradição italiana, eles trazem já de berço essa língua que vem
para a escola e eles são também ajudados pelos pais, são cobrados e por isso
são uma turma bem melhor de trabalhar, com mais educação, mais respeito”,
afirma uma das professoras ao descrever a turma durante entrevista (profes-
sora Lúcia, entrevista gravada em 11/12/2009).
Essa associação feita entre cultura e língua pode ser uma das razões pelas
quais, como será apresentado na sequência, os professores não intervêm na
presença do fenômeno em variação na fala dos estudantes, mesmo que eles
mesmos, como será apresentado adiante, vejam com preconceito essas carac-
terísticas linguísticas do grupo. O fato pode evidenciar, desde já, as lacunas
na formação de professores quanto ao papel da escola na formação linguística
dos sujeitos que por ela passam.
Pesquisas desenvolvidas a partir da perspectiva sociolinguística têm inves-
tigado a posição dos educadores diante da variação linguística em sala de
aula. Bortoni-Ricardo (2004: 38) categoriza as ações adotadas pelos professo-
res frente à realização de uma regra não-padrão na fala de estudantes. Para
a autora, são quatro as atitudes mais comuns dos professores em casos de
variação linguística em sala de aula:
1) O professor identifica erros de leitura, mas não faz distinção entre dife-
renças dialetais e erros de decodificação, ou seja, não intervém para
corrigir o aluno.
521
2) O professor não percebe o uso de regras não-padrão, ou porque não
está atento ou porque ele próprio usa-as na sua linguagem.
3) O professor percebe o uso de regra não-padrão, mas acha melhor não
intervir para não constranger o aluno.
4) E, por último, o professor percebe o uso dessa regra, não intervém, mas
em seguida repete a fala da variante-padrão (Bortoni-Ricardo, 2004:
38).
Não foi identificada na observação das aulas, de acordo com o que foi apre-
sentado anteriormente, nenhuma discussão específica acerca da presença da
variação linguística na fala dos estudantes (e da comunidade na qual vivem).
Diante disso, uma forma para que eles visualizem a existência de regras para
a produção da vibrante (/r/ e /ʀ/) se dá pelo uso dessa variante pelos profes-
sores. Foram observadas situações nas quais isso acontece, em sala de aula,
ou seja, o professor percebe o uso da regra não-padrão, não intervém, mas em
seguida complementa usando a variante adequada ao contexto:
522
Jandira: Cortar as raízes [raízes]?
Professor Matheus: Se eu cortar a raíz [ʀaíz], aquela desapareceria. (Aula de
26/08/09)
Nesta subseção, são apresentados alguns dos eventos nos quais os profes-
sores não fizeram nenhum tipo de intervenção diante da presença da variação
linguística na fala dos alunos. Ao dar continuidade ao diálogo com o estu-
dante produtor do enunciado, sem chamar a atenção para o emprego de uma
forma desprestigiada, Bortoni-Ricardo (2004: 38) identifica duas posições do
523
educador. Segundo a autora, ou ele não percebe o uso de regras não-padrão
por não estar atento ou por ele próprio usá-las na sua linguagem ou, então,
toma essa opção, para não constranger o aluno.
Analisando as ações dos professores, em diferentes contextos da aula,
ao longo dos dois anos de observação, reconhecem-se as diferenças entre
as duas categorias de ações. Porém, optou-se por não diferenciá-las porque
se considera que as razões para a não-manifestação dos professores não
modificam o resultado final: a manutenção, na fala dos estudantes, da varie-
dade linguística característica da comunidade, sem a apreensão de uma nova
variedade, aquela detentora de prestígio social. A opção também foi feita
para evitar a exposição dos professores, quando esses também fazem uso da
variante desprestigiada.
Nos casos relatados abaixo, procura-se evidenciar como se dá a continui-
dade do diálogo, diante da presença da variação na fala dos estudantes:
524
3.3. O professor interlocutor que não se manifesta diante da variação
linguística: a não-continuidade do diálogo
Eduarda: Você fez a rosa [rosa]? Ficou legal? A minha ficou tudo errado [erado].
(Fala para uma colega) (Aula de Inglês, 16/05/08).
525
das operações que ele fazia no quadro. A escrita e o silêncio, nesses casos,
caracterizaram a resposta do professor.
Já nos exemplos a serem apresentados a seguir, os enunciados produzidos
pelos estudantes são dirigidos para a turma, de um modo geral, incluindo
colegas e professores. O primeiro caracteriza-se como um comentário a res-
peito do cotidiano doméstico, o segundo como um apelo para encontrar um
objeto desaparecido, enunciado que também ficou sem resposta. Só o terceiro
encontrou resposta na atitude de um colega, que atende ao pedido alcan-
çando o objeto solicitado:
Elvis: Lá em casa não tem para onde correr [corê]. Se tu corre [core] para a rua
[rua] te atropelam. Tem que correr [corê] dentro de casa. (O professor acompanha
a conversa, enquanto aguarda a realização de trabalhos em grupos, mas não se
manifesta) (Aula de 05/10/09).
João: Dá aqui pra eu. Eu não vou recortar [recortá] (Pedia papel para a confec-
ção de cestas de Páscoa. É atendido por um colega, que passa o papel) (Aula de
09/04/09).
526
manifestação por parte da professora, nem mesmo para evitar o constrangi-
mento diante da afirmação feita pela aluna:
Marcos: E os pretos?
527
professores, nos exemplos apresentados anteriormente, apenas o silêncio
encerrou o debate. Nesse jogo, os estudantes caminharam para a conclusão
do Ensino Fundamental sem refletirem sobre a variedade linguística da qual
são detentores.
Se a escola, como espaço de cultura, silencia-se diante das manifestações
nas quais os estudantes fazem uso de uma variante desprestigiada, e esse
silenciamento pode ser interpretado como um reforço à variedade da qual são
usuários, o que dizer desse silêncio quando o emprego de uma variante fono-
lógica desprestigiada se dá em eventos de leitura em voz alta? Nos exemplos
encontrados dessa atividade no período de desenvolvimento da pesquisa de
campo, não foi identificada nenhuma ação dos professores diante do emprego
da variante /r/ em contextos de /ʀ/, como nos casos apresentados abaixo:
528
Elvis: Chegou em um lugar e se assustou: era um terreno [tereno] baldio com um
pouco de mato. (Aula de 10/07/2009)
Suzana: E eu tive que fazer sozinha o trabalho de Artes para entegrar, etregar....
Professora: Entregar!
Luís: O Benito Mussolini, ele queria ficar cada vez com mais poder, então ele foi
falar com o rei [rei] da Itália. (Aula de 28/08/2009)
529
tepe e vibrante múltipla, em função dos contextos de emprego de cada uma
delas, no padrão fonológico da língua portuguesa.
Como as intervenções voltadas especificamente à linguagem nos eventos
de leitura só se dão em casos de problemas de decodificação (entegrar para
entregar, por exemplo), os estudantes passam a assumir os demais traços
característicos da comunidade como os mais prestigiados, incluindo a produ-
ção do tepe em contextos de vibrante múltipla, que marca a variação caracte-
rística da comunidade. É um quadro que ajuda a entender a alta incidência de
tepe (76%) em contexto de vibrante múltipla na fala dos estudantes15.
Os resultados da análise das ações dos educadores diante da variação
linguística em sala de aula diferem do que apresenta Bortoni-Ricardo (2006).
Para a autora, o padrão de comportamento do professor diante do uso de
regras não-padrão pelos alunos depende do tipo de evento em que elas ocor-
rem, sendo mais presentes em eventos de leitura, os mais monitorados em
relação ao uso da língua em sala de aula: «Como regra geral, observamos
que quase nunca os professores intervêm para corrigir os alunos durante a
realização de um evento de oralidade, que, como já vimos, são realizados sem
exigência de muita monitoração» (Bortoni-Ricardo, 2004: 38).
Em entrevistas, foi perguntado aos professores se a influência da cultura
italiana, característica da comunidade, aparecia, de alguma maneira, no coti-
diano da sala de aula. Os seis professores entrevistados16 foram unânimes em
responder que sim, há características próprias do grupo étnico no cotidiano
da sala de aula. Desses, cinco apontaram diretamente a questão linguística
como uma característica que diferencia a turma (e a escola como um todo) de
outras nas quais trabalham ou trabalharam em anos anteriores. Apenas uma
professora iniciou a descrição das características da turma destacando aspec-
530
tos gerais como “A maneira de ser, de tratarem o outro. Na maneira de ação
deles, na maneira de agirem” (Professora Lúcia).
Um dos professores entrevistados, inclusive, apontou para o fato de que
“apenas os que vêm de fora” percebem a diversidade na fala local, “eles estra-
nham a nossa forma de falar. Então eu vejo assim, eu estou habituada nesse
meio e às vezes a gente não percebe, não se dá conta porque nós estamos
habituados a isso, mas aparece muito, pelos comentários do pessoal de fora”
(Professora Suelen).
Até aqui, poder-se-ia avaliar como coerentes as ações dos educadores em
sala de aula. Se existe o reforço das características positivas atribuídas à comu-
nidade, de algum modo justifica-se a não-intervenção nas questões linguísti-
cas que a caracterizam, conforme indicaram as análises já apresentadas. Como
língua e identidade estão intrinsecamente relacionadas, poder-se-ia avaliar
que, mesmo inconscientemente, os professores optam por não intervir diante
da variação linguística em respeito à diversidade que constitui a comunidade.
Labov (2008) afirma que as comunidades desenvolvem, além dos condicio-
namentos de classes sociais e castas, categorias mais concretas para situar os
indivíduos. «Em comunidades rurais (ou em bairros periféricos), a identidade
local é uma categoria de pertencimento extremamente importante – muitas
vezes impossível de reivindicar e difícil de conquistar» (Labov, 2008: 343).
Dessa forma, é justo que apenas os que vêm de fora percebam a variação, em
uma paráfrase do que diz a professora.
Porém, a coerência entre discurso e prática dos educadores ficou fragili-
zada quando, ao longo das entrevistas, eles apontaram, de forma espontânea,
(1) a consciência da existência da diversidade entre a variedade de prestí-
gio da língua e a variedade falada na comunidade; (2) a certeza de que os
estudantes enfrentarão a necessidade de mudar o seu modo de falar, ao se
inserirem em outros contextos, como ao cursar o Ensino Médio fora da comu-
nidade; e (3) a consciência de que há preconceito em relação à variedade que
caracteriza o grupo, preconceito este evidenciado até mesmo no discurso de
alguns professores.
Três dos seis professores da turma citaram especificamente a variação no
uso do fonema vibrante como a principal característica que identifica o grupo,
diferenciando-o dos estudantes de outras escolas nas quais trabalham/tra-
531
balharam. Como não havia sido identificada nenhuma situação de correção
ou diálogo dos professores com os estudantes, em sala de aula, sobre essa
questão, o fato foi visto com surpresa. Questionado sobre a existência ou não
de características que remetem à questão étnica, entre o grupo, um dos pro-
fessores afirmou:
Prof. Júnior: Tem na fala. Então, na dicção existe a dificuldade na pronúncia para
eles pesa bastante, porque eles têm, sim, influência na dicção deles, né? O erre,
então, para escrever, a influência dos dois erres é a principal, que mostra direiti-
nho no texto quem tem o italiano bem presente na sua cultura. Trocam na hora de
escrever, não escrevem com dois erres. A pronúncia, também, quando eles vão ler,
é uma dificuldade enorme, mesmo eles sabendo. A gente fala, repete e eles não
conseguem. É a dicção deles que é assim.
Entrevistadora: O quê, em relação à pronúncia?
Prof. Júnior: O erre arrastadinho: “O rato [rato] roeu [roeu] a roupa [ropa] do rei
[rei] de Roma [roma]”.
Prof. Joelson: Esses dias eu estava na oitava série e um menino empurrou o outro
e daí ele disse: “Para de me empurá”. E o outro “Fala direito, que coisa feia, parece
colono”. Essa contextualização do falar erado, esses erres mais puxados para eles é
algo errado. Eles não percebem que é um regionalismo, uma característica própria.
Eduarda: Oh, professor, ficam riscando [riscando] o caderno dos outros. Quero
enfiar a mão na cara, colonagem! (Aula de 09/04/09)
532
Ana Maria: Aff, aff, eu não aguento esse aff. Não entro mais no MSN por causa
desse aff. Cada trinta palavra é aff, qualquer colono fala aff. (Aula de 24/08/2009)
Eduarda: Olha as colonada que pisa no barro [baro]. Bando de colono. (Aula de
08/07/09)
O que mudar? Como mudar? Não aparecem nas entrevistas pistas da exis-
tência de ações efetivas desenvolvidas pela escola com o intuito de levar
os estudantes a conhecerem uma variedade da língua da qual não são
detentores.
533
4. Considerações finais
534
Bortoni-Ricardo (2004) chama a atenção para uma pedagogia cultural-
mente sensível aos saberes dos alunos. Diante da realização de uma regra
não-padrão pelo aluno, a estratégia deve incluir identificação e conscientiza-
ção. A identificação da diferença é muitas vezes prejudicada pelo desconheci-
mento que os professores demonstram a respeito daquela regra. Para muitos
professores, principalmente com antecedentes rurais, regras do português
próprias de uma cultura predominantemente oral são invisíveis – estão em
seu repertório. Em relação à conscientização da diferença, afirma a autora, é
preciso esclarecer o aluno quanto às diferenças, para que ele possa começar a
monitorar seu próprio estilo, sem prejuízo do processo ensino-aprendizagem.
É nesse aspecto que se mostrou fragilizada a ação dos educadores aqui em
análise.
Tem-se uma escola que valoriza os saberes dos estudantes, incluindo a
variedade da língua que os constitui como sujeitos falantes, mas sem nenhum
tipo sólido de intervenção capaz de assegurar a esses sujeitos a capacidade
de monitoramento. Também, a partir da análise dos dados, pode-se afirmar
que os estudantes têm uma frágil segurança linguística, pois não foram con-
duzidos a reflexões acerca da diversidade linguística da qual são detentores e
das razões sociais e históricas de sua constituição. Então, empregam com tran-
quilidade a variedade da qual são detentores, mas muito provavelmente não
saberiam justificar a sua variedade, diante de manifestações de preconceito.
Os dados confirmam o que aponta Faraco (2008), quando indica que falta
à educação brasileira a construção de uma pedagogia adequada para o traba-
lho com a variação linguística em sala de aula: «Parece que não sabemos, de
fato, o que fazer com a variação linguística na escola. E o que temos feito é
seguramente bastante inadequado» (Faraco, 2008: 179).
Entre uma intervenção desrespeitosa e a não-intervenção, a segunda opção
é a mais adequada (cf. Bortoni-Ricardo, 2004). Porém, alerta-se para a preocu-
pação com a formação linguística dos estudantes para que tenham argumen-
tos para defender-se diante de possíveis intervenções preconceituosas diante
da fala que caracteriza a comunidade. Os dados não mostraram nenhuma
ação nesse sentido. O caminho para uma educação linguística democrática
passa por essa possibilidade de acesso a diferentes variedades linguísticas e,
como diz Faraco, depende «acima de tudo, de uma pedagogia que sensibilize
535
as crianças e os jovens para a variação, de tal modo que possamos combater
os estigmas lingüísticos, a violência simbólica, as exclusões sociais e culturais
fundadas na diferença lingüística» (Faraco, 2008: 182).
É imprescindível que os educadores tenham a compreensão de que uma
educação linguística democrática se caracteriza pela ampliação dos conheci-
mentos linguísticos que os estudantes trazem de casa. Somente a partir dessa
compreensão compartilhada será possível evidenciar aos estudantes (e, assim,
à população brasileira) a compreensão das diferentes variedades que consti-
tuem o português falado no país e do valor social atribuído a cada uma delas.
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Porto Alegre/Caxias do Sul: Escola Superior de Tecnologia/Educs.
537
(Página deixada propositadamente em branco)
SUSANA MARGARIDA NUNES
CELGA-ILTEC (Universidade de Coimbra)/IPLeiria
[email protected]
0000-0003-4425-9535
Resumo: Oriundo da preposição latina super, o item lexical sobre- é utilizado generi-
camente, em português, com a mesma semântica de localização espacial herdada do latim.
No entanto, na fase atual da língua, sobre- afigura-se também como um item lexical que,
quando acoplado a bases lexicais (geralmente à esquerda da base), desenvolve outros sen-
tidos, inexistentes em latim. O nosso estudo baseia-se na conceção teórica da linguagem de
Jackendoff (2002), que defende a articulação estreita entre a estrutura formal e o significado
da palavra, assente na interatividade das diferentes componentes da gramática, permitindo
adotar a conceção da análise lexical como um domínio dinâmico, construído por compo-
nentes de estrutura diversa, o que confere aos itens lexicais uma capacidade geratriz, res-
ponsável pelos processos de variação e mudança lexicais. Baseámo-nos num corpus com
cerca de 400 vocábulos, extraído maioritariamente de fontes lexicográficas de diferentes
épocas (do século XVIII até à atualidade). O estudo do corpus recolhido evidencia que
sobre-, quando acoplado a uma base lexical, ainda que denotando maioritariamente o sen-
tido de localização espacial oriundo da preposição latina super, desenvolveu, ao longo do
tempo, outros sentidos. Esta variação semântica tem repercussões na classificação funcional
e categorial deste item lexical, conferindo-lhe um papel de relevo na formação de palavras
em geral e na formação de linguagens de especialidade em particular.
Palavras-chave: semântica lexical, variação, mudança, afixo sobre-
Abstract: Originating from the Latin preposition super, the lexical item sobre- is gene-
rally used in Portuguese with the same semantics of spatial location inherited from Latin.
However, in the present state of the language, sobre- is also a lexical item which, when
coupled with lexical bases (generally to the left of the base), conveys other meanings not
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1756-5_18
found in Latin. Our study is based on Jackendoff’s (2002) theoretical conception of lan-
guage, which advocates a close relationship between the formal structure and the meaning
of the word, based on the interface of the different grammar components. This approach
made it possible to adopt the theory of lexical analysis as a dynamic domain, made up of
components from a diverse structure, and imparting to the lexical items a generative capa-
city responsible for the processes of variation and lexical change. Our study is based on
a corpus of approximately 400 expressions, mostly taken from lexicographic sources from
different periods (from the 18th century to the present). The study of the corpus garnered
evidence demonstrating that sobre-, when coupled to a lexical base, although largely deno-
ting the meaning of spatial location originating from the Latin preposition super, conveyed
other meanings, over periods of time. This semantic variation has ramifications for the func-
tional and categorical classifications of this lexical item, giving it an important role in the
formation of words in general and in the formation of specialized languages in particular.
Keywords: lexico-semantics, variation, change, affix sobre-
I – Introdução
1 Tivemos também em conta (cf. secção 2.2.1. do capítulo III), de acordo com os mesmos
parâmetros de análise, e pela relação estabelecida com o prefixo sobre-, as formas prefi-
xadas por super-, que totalizam cerca de 250 vocábulos, relativamente aos quais tecemos
algumas considerações (cf. notas 8, 9 e 12).
540
bases de dados dicionarísticas, publicadas entre o início do século XVIII e a
atualidade.
1. Corpus
O nosso estudo baseia-se num corpus constituído por 414 vocábulos pre-
fixados por sobre-, extraído dos seguintes dicionários:
2. Pressupostos teórico-metodológicos
541
O referencial teórico que fundamenta a dilucidação desta e de outras ques-
tões está ancorado no modelo associativo de formação de palavras desen-
volvido por Booij (2000; 2005), Corbin (1991, 2001), Feliu Arquiola (2003a),
Martín García (1998a), Montermini (2009), Pena (1999), Rio-Torto (1993;
1998), Spencer (2000) e Varela e Ortega (1999) e na conceção de linguagem
desenvolvida por Jackendoff (2002), no programa arquitetura paralela, adap-
tado por Rodrigues (2008).
O modelo associativo que aqui adotamos defende a articulação estreita
entre a estrutura formal e o significado da palavra. Deste modelo, adotamos a
conceção da análise genolexical como um domínio dinâmico em que a geração
de produtos derivacionais (neste caso prefixados) não se constrói com base
numa relação derivacional entre categorias sintática e semanticamente rígidas,
mas entre componentes das diversas estruturas e das fiadas que as constituem,
as bases e os operadores afixais, e dos processos de mudança e variação lexi-
cais que lhe estão subjacentes. Neste modelo, a linguagem é uma arquitetura
constituída por estruturas com capacidade geratriz. Esta característica equa-
ciona uma conceção de genolexia mais dinâmica, que nos permite explicar as
significações dos produtos prefixados do português, partindo do pressuposto
de que os operadores afixais transportam uma especificidade semântica pró-
pria. Esta especificidade semântica, que se organiza sistemicamente à volta de
um determinado operador afixal, é adscrita a traços semânticos do operador
prefixal em causa na sua correlação com traços inscritos lexicalmente nas
bases. Consideramos assim os operadores afixais como agentes portadores
de carga semântica própria, corresponsáveis pela formatação semântica final
do produto. Efetivamente, a carga semântica afixal pode, em contacto com
a carga semântica dos itens a que se agregam os afixos, desenvolver varia-
ções, sendo assim possível que os afixos sejam encarados enquanto unidades
semânticas sujeitas a variação e mudança. As peculiaridades semânticas, que
se organizam sistematicamente à volta dos operadores afixais, são adscritas a
traços semânticos do operador afixal em causa e à sua correlação com traços
inscritos lexicalmente nas bases, concebendo-se assim o operador afixal como
agente corresponsável pela formatação semântica final do produto e pelo seu
processo de variação e mudança lexicais.
542
II – Análise do corpus
1. Representatividade dicionarística
543
De entre os itens em posição prefixal que atualmente coincidem com preposições
configuracionalmente homólogas, sobre- é o segundo item com maior representatividade
lexical (Nunes, 2011; 2018). A observação do gráfico 1 permite-nos verificar que sobre-, em
posição prefixal, apresenta uma produtividade considerável na língua portuguesa2, tendo
vindo a registar, nas fases mais recentes na língua (desde o início do século XXI), um
fases mais
crescendo recentes3. na língua (desde o início do século XXI), um crescendo
de utilização
de utilização3.
300
284
250
231
211
200
171
150 154
163
100
86
50 57
0
Bluteau 1716 Domingos Moraes 1878 Cândido Academia Aurélio 2001 Houaiss 2003 Porto Editora
Vieira 1871 Figueiredo 2001 2007
1939
544
2.1. Informação semântica: herança
545
386) que se dá uma operação de localização conceptual6, efetuada por sobre-
e considerada por Amiot como o ponto de partida para as operações de varia-
ção e mudança de significado (Amiot, 2005: 105), que vão permitir que este
item lexical adquira, noutros contextos, outras significações. Afirma, a este
respeito, a autora:
S ur est un opérateur qui sert à localiser un élément (le dérivé) par rapport à un
autre (la base). Pour que l’opération de localisation puisse avoir lieu, l’opérateur
pose la base qui repère (quel que soit le domaine dans lequel s’effectue l’opération
de repérage: domaine de la norme ou de la valeur, de la hiérarchie sociale, de
l’espace et du temps) sur un axe fictif orienté de bas en haut (du négatif vers le
positif) et indique que le dérivé se situe du côté positif de l’axe. Selon le domaine
auquel appartient la base, l’effectuation de ces opérations construit une interpré-
tation en termes d’excès, de supériorité quantitative, qualitative, hiérarchique, spa-
tiale ou autre.
6 Amiot (2005: 105) considera sobre- um prefixo localizador, já que é exemplo de «un
opérateur qui sert à localiser un élément (le dérivé) par rapport à un autre (la base à
laquelle il s’applique)».
546
apresenta, sobretudo em algumas bases de dados, uma representatividade
considerável.
7 Martín García (1998 b : 113) considera que «el valor intensivo de sobre- procede de
significados locativos asociados originariamente al prefijo. Por ejemplo, el prefijo sobre-
puede dar lugar a formaciones con un claro contenido locativo parafraseable como ‘por
encima de’ (sobrevolar) o con un valor intensivo como en sobrecargar». Também Val Álvaro
(1993: 490) considera que, «en este sentido [+avaliativo], el valor aportado por sobre- hace
abstracción de la noción de superioridad espacial y se produce el paso de una pura rela-
547
mas também (6) a noção de excesso que ativa, frequentemente, uma avalia-
ção excessiva, de pendor máximo e, por isso, que adquire uma conotação
negativa.
Nos exemplos de (5), o produto expressa algo que ultrapassa o que é con-
vencionalmente tido como norma, mas a interpretação daí resultante não vei-
cula a noção de excesso. Deste modo, a superioridade é aqui vista como algo
melhor e não como algo que está ‘em excesso’, daí considerar-se como uma
avaliação de pendor positivo8. Pelo contrário, nos exemplos de (6), o produto
ción locativa a una expresión gradativa de rango que conlleva superioridad sobre lo ya
contenido en el significado de la base».
8 Note-se que, com esta aceção avaliativa, de pendor positivo, o prefixo sobre- tem
vindo a perder terreno relativamente a super- que apresenta uma produtividade elevada na
fase atual da língua. Sobre a relação sobre-/super-, Martín García (1998 b: 110) afirma que
«el prefijo sobre- con valor de intensidad ha sido desplazado por el prefijo super-, por lo
que sólo se encuentra en algunos verbos derivados y adjetivos deverbales» e que «las bases
verbales que pueden prefijarse con el sobre- de intensidad admiten igualmente el prefijo
super-». Prossegue a autora afirmando que «al tener un mismo origen [la preposición super
del latín], sobre- y super- se han especializado para unos determinados usos y significados.
Así, sobre- expresa la locación (el avión sobrevuela el lago) y, en menor medida, la intensi-
dad (Juan sobrecarga el camión), valor que presenta productivamente super- (superfeliz)»
(Martín García 1998b: 113). Também Oliveira (2004) considera que «sobre- com o sentido de
‘excesso’ não é um processo produtivo no estágio atual da língua já que se observa, tanto
em jornais e revistas como na fala coloquial, que o significado de ‘excesso, intensificação’
está sendo veiculado cada vez mais pela forma super-» (Oliveira, 2004: 158). A este respeito,
Rodríguez Ponce (2002: 423) afirma que «con el valor nocional intensivo, super- se muestra
realmente productivo en neología».
548
expressa algo que ultrapassa, em demasia, os limites da norma, o que, con-
trariamente aos exemplos de (5), configura uma avaliação de teor negativo9.
Ainda que pouco frequente, sobre- pode também ativar uma informação
de teor temporal, nomeadamente uma segunda ocorrência do designado pela
base. Nestes casos, a base é preenchida por (i) um verbo télico, temporal-
mente delimitado, ou por (ii) um nome simples que denote uma entidade
discreta ligada a um processo. A acoplagem de sobre-, como é visível em (8),
coloca em relevo a existência prévia de uma ação (designada pela base) ou
uma primeira ocorrência de um processo, denotando o produto uma segunda
ocorrência, suplementar, do denotado pela base.
9 Não obstante a maior produtividade de super- face a sobre-, registe-se, como sublinha
Alves (2001), que sobre- e super- não são exatamente sinónimos já que «sobre- imprime
à base não apenas uma ‘valorização superior à habitual ou esperada’, (...) mas também
uma ‘valorização exagerada’, um ‘excesso de valorização’». Já super- atribui uma «qualidade
excecionalmente boa» à base, veiculando, por isso, «uma avaliação de teor positivo (ao
contrário de sobre- que pode desencadear quer uma interpretação de pendor positivo, quer
uma interpretação de teor negativo)». Veja-se Alves (2001: 324).
549
sobrecoser: coser uma segunda costura;
sobre-infeção: segunda infeção, que ocorre após uma primeira;
sobrepartilha: nova partilha feita nos autos de um inventário;
sobrerronda: segunda ronda; fiscalização sobre uma primeira ronda;
sobretaxa: taxa adicional; imposto que acresce a outro já aplicado.
550
• se o prefixo se acopla a uma base (de)verbal, que tenha por referente
uma norma sociocultural de pendor avaliativo, o produto designará
uma propriedade ou um processo de qualidade superior (sobreluzir,
sobrealimentar, sobrecarregado) ao expresso pela base;
• se a base se situa num eixo de verticalidade e tem como referente um
nome que pode ser inserido numa organização hierárquica, o refe-
rente do produto situa-se numa escala de superioridade (sobrejuiz)
relativamente ao expresso pela base;
• se a base é um nome denotador de um processo télico, temporal-
mente delimitado, o produto explicitará uma segunda ocorrência
desse processo (sobreceia).
10 Sobre a noção de ‘instrução semântica’, Amiot (2002) refere que «un préfixe possède
un sens abstrait (une instruction sémantique), apte à se réaliser dans différents domaines
pourvus d’un même principe de structuration» (Amiot, 2002: 271). No caso de sobre-, este
prefixo constrói palavras «qui s’interprètent en termes de supériorité (le dérivé désigne
toujours quelque chose qui est situé au-dessus d’un autre élément (…) et ceci est dû au fait
qu’il met toujours en jeu la même instruction sémantique, quels que soient les domaines
conceptuels [domaine de l’espace et domaine de la valeur] auxquels peuvent être rattachés
les mots auxquels ils s’adjoignent» (Amiot, 2002: 280). Relativamente a esta questão, termina
a autora afirmando que «ce préfixe met en oeuvre la même instruction sémantique, quelle
que soit l’interprétation (spatiale ou non) du dérivé»: sobre- «oblige à poser un repère sur
un axe fictif orienté verticalement et ce repère sert de point de départ à une opération de
localisation [spatiale ou conceptuelle] vers le pôle positif» (Amiot, 2002: 281).
551
(i) quando acoplado a bases com propriedades espaciais, potencia uma
operação de localização espacial superior relativamente ao denotado
pela base;
(ii) quando acoplado a bases suscetíveis de serem avaliadas, estabelece
uma relação de pendor avaliativo (geralmente) positivo relativamente
ao denotado pela base;
(iii) quando acoplado a bases dotadas de propriedades hierarquicamente
estabelecidas, situa o produto num nível superior ao denotado pela
base;
(iv)
quando acoplado a bases com propriedades processuais, potencia
uma operação de localização temporal posterior relativamente ao pro-
cesso denotado pela base.
552
a reforma pombalina ou a revolução industrial), agora refletida nestes instru-
mentos de normatização linguística.
553
Como referimos anteriormente, dos 414 vocábulos recolhidos nas bases
de dados dicionarísticas, 84 (ou seja 20,2%) pertencem a linguagens de espe-
cialidade. Aqui, encontramos termos (9) da Náutica, (10) da Jurisdição, (11)
da Anatomia, (12) da Marinha, ou (13) da Botânica, entre outros, nos quais o
operador ativa predominantemente o sentido locativo (14), oriundo da prepo-
sição latina de que é proveniente, havendo, sobretudo no caso da Jurisdição, a
ativação de outros sentidos, que não exclusivamente o da localização espacial,
como a posterioridade temporal (15) ou a hierarquia (16).
554
• constroem uma entidade que pode apresentar um referente distinto do
expresso pela base, estabelecendo contudo uma relação de localização
espacial com a mesma (um sobrenervo não é um tipo de nervo que se
situa por cima de outro, mas sim ‘um tumor que se localiza em cima do
nervo’), o que substancia construções exocêntricas, concebidas como
formações em que entidade designada pelo produto não se refere a um
subtipo do designado pelo Nbase.
III – Conclusão
555
tes da norma, pode, em alguns casos, veicular uma informação de pendor
negativo. O segundo caso diz respeito à acoplagem do operador (ii) a bases
nominais que designem profissões ou nomes de pessoa. Neste caso, e porque
o operador permite colocar o referente no ponto máximo de uma escala, o
produto passará a designar alguém de uma hierarquia superior, mais elevada
relativamente a outrem. A última situação diz respeito à acoplagem de sobre-
a (iii) bases nominais que designem uma entidade discreta associada a um
processo télico, temporalmente delimitado. Neste caso, o produto designará
uma segunda ocorrência do expresso pela base, estabelecendo com a mesma
uma relação de posterioridade temporal.
Do seu sentido predominantemente espacial, com valor preposicional
(herdado da preposição latina super), sobre- foi adquirindo outros matizes
semânticos (designadamente a avaliação/gradação, a hierarquia e a posterio-
ridade temporal), que fizeram deste operador, nestes contextos, um operador
eminentemente modificador. Esta variação e mudança de significado, com
apresentação de sentidos inexistentes ou pouco comuns em latim, faz de
sobre- um elemento multifacetado, com um papel de relevo ao longo da his-
tória da língua, não só no que diz respeito à formação de palavras em geral,
mas também no que concerne ao contributo para a formação de linguagens
de especialidade.
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no Brasil e no Portuguez da India. Lisboa: Typographia de Joaquim Germano de
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gua Portugueza. Porto: Casa dos editores Ernesto Chardron e Bartholomeu H. de
Moraes.
559
(Página deixada propositadamente em branco)
Clarinda de Azevedo Maia é professora catedrática jubilada da Univer-
XIII ao século XVI. Coimbra: INIC, 1986; FCG e JNICT, 1997; Coimbra: