A Pedra Da Loucura Benjamín Labatut
A Pedra Da Loucura Benjamín Labatut
A Pedra Da Loucura Benjamín Labatut
A pedra da loucura
tradução
Mariana Sanchez
A crise consiste precisamente no fato de que o velho está
morrendo e o novo não pode nascer: nesse interregno surgem os
sintomas mórbidos mais variados.
Antonio Gramsci
Sumário
Capa
Folha de Rosto
A extração da pedra da loucura
A cura da loucura
Créditos
A extração da pedra da loucura
Um homem com a cabeça jogada para trás. Uma faca afiada abre
seu cocuruto para revelar uma pedra: a pedra da loucura.
O infeliz estica o pescoço, se contorce para tentar ver o
cirurgião que está de pé atrás dele e, ao fazer isso, seus olhos
afundam nas órbitas, cada vez mais fundo, até que tudo o que se
pode distinguir é o branco de sua esclera, a boca escancarada
enquanto ele grita: “Cuidado! Cuidado! Deus nos vê!”.
Diante do homem há um frade grisalho com a moleira
tonsurada; ele veste uma túnica de veludo preto, segura uma jarra
metálica na mão esquerda e com a outra parece estar dando uma
bênção. É secundado por uma freira que se inclina para a frente e
apoia os cotovelos em uma mesa de pedra finamente entalhada
enquanto observa a trepanação com uma expressão de nojo no
rosto, embora talvez seja apenas tédio, esse enorme cansaço que
sentimos diante da absoluta incoerência do mundo. Ela apoia a
bochecha na palma da mão e mantém um grande livro
encadernado em couro carmesim equilibrado precariamente na
cabeça, coberta com um longo véu branco que ilumina seus traços
severos e cai abaixo de sua cintura. A mulher não parece nem um
pouco impressionada com a incisão pavorosa que o cirurgião fez
direto no crânio do paciente. Mas, será uma tulipa brotando da
ferida?
O pobre homem submetido a esse estranho procedimento
medieval usa meias escarlate e uma túnica com mangas bufantes
que mal cobre sua enorme barriga. Está sentado no meio de um
campo aberto, descalço, no que parece ser o banco de uma igreja
ou um confessionário dividido ao meio, e seus dedos apertam os
suportes dos braços enquanto o médico — embora talvez fosse
mais correto chamá-lo de torturador — segura-o por um ombro
enquanto efetua a operação com um grande jarro de cerâmica
suspenso no cinto de couro preto ao redor de sua cintura, a
cabeça protegida não por um gorro ou chapéu, mas por um
gigantesco funil de metal que aponta diretamente para o céu.
Esses quatro personagens aparecem em um pequeno quadro
pendurado no Museu do Prado, um quadro que passa quase
despercebido pela maioria dos turistas, pois está exposto ao lado
de O jardim das delícias, um grande tríptico que é, sem dúvida, a
obra mais icônica de seu autor, o incomparável mestre holandês
Hieronymus van Aken, mais conhecido como Bosch. Graças a
seus três painéis abarrotados de cenas lisérgicas do paraíso, da
terra e do inferno, O jardim das delícias é uma joia única, uma
raridade absoluta na arte medieval, tão imponente que diminui
quase tudo à sua volta, não apenas nessa sala em particular, ou
mesmo no andar inteiro, mas talvez em todo o museu. O pequeno
quadro que o acompanha é mais humilde em tamanho — mede
apenas 48 centímetros de altura e 35 centímetros de largura —,
mas não em temática: ele é conhecido por dois nomes, A cura da
loucura ou A extração da pedra da loucura, e representa uma
antiga superstição da Idade Média, a ideia de que a insanidade e a
demência eram causadas por uma hipotética pedrinha que podia
se alojar, ou talvez crescesse sozinha, no interior da cabeça. No
quadro de Bosch, a pedra que o cirurgião está tentando extrair do
crânio do paciente foi substituída por um bulbo. Podemos assumir,
quase com plena certeza, que se trata do bulbo de uma tulipa,
pois uma dessas flores majestosas — cor de amêndoa e quase
murcha — jaz sobre a mesa onde a freira cansada repousa seus
braços cansados. Michel Foucault escreveu sobre esse quadro no
livro História da loucura: Na Idade Clássica e disse que “o famoso
médico de Bosch está muito mais louco do que o paciente que ele
tenta curar, e seu falso conhecimento não faz outra coisa senão
revelar os piores excessos de uma loucura que é
instantaneamente evidente para todos, exceto para ele mesmo”.
Em meus livros costumo escrever sobre a loucura e, talvez por
isso, a cada nova publicação, homens e mulheres esquisitos
aparecem na minha vida, como mosquitos depois da chuva. Será
que me veem como um dos seus? Será que anseiam que alguém
escreva de forma elogiosa sobre suas ideias insanas? Sentem-se
justificados, vistos, apreciados? Ou simplesmente não conseguem
se controlar, como acontece tanto com os loucos quanto com os
lúcidos? Um de meus livros trata de várias descobertas científicas
que desafiam a lógica e que alteraram profundamente nossa visão
de mundo. Quando chegou às livrarias, diversas pessoas entraram
em contato comigo: um sujeito muito empolgado me escreveu
para perguntar se por acaso eu conhecia a “desmaterialização”,
uma prática que, segundo ele, os maias usavam para fugir do
tempo e que fora redescoberta por um neurofisiologista mexicano
nos anos 1960, que um dia entrou em seu laboratório e
desapareceu sem deixar rastro; um homem chamado John, de
Vermont, na Nova Inglaterra, insistiu com veemência para que eu
lesse suas ideias, orgulhosamente leigas, sobre os “quarks como
estruturas tetris interconectadas”, as “brocas dimensionais” ou
como “as elípticas revelam informações que permitem que os
universos evoluam a partir de um ponto”; um médico chileno de
sobrenome alemão me convidou para tomar um café, pois tinha
certeza de que eu poderia me beneficiar por conversar “com uma
pessoa comum e silvestre”; mas a mensagem mais curiosa de
todas veio de uma mulher, cujo nome omitirei por motivos que se
tornarão óbvios.
Ela mandou um e-mail para o tradutor dos meus livros para o
inglês, que rapidamente o encaminhou para mim, junto com uma
nota irônica: “Pois então, acabo de receber este e-mail de uma
pessoa evidentemente louca”.
Olá:
Você é um escritor melhor do que eu, e respeito seu
trabalho, mas estou tendo problemas com uma pessoa que
roubou tudo o que enviei para uma comunidade de leitura
online, fez uma miscelânea e vendeu a alguém que está
usando isso para “construir sua marca literária”. Tenho certeza
de que você não faz a menor ideia de como essa pessoa age,
mas acredito que talvez possa saber quem ela é, pois você foi
treinado pela mesma comunidade orientada à segurança. Se
puder fazer alguma coisa para me ajudar ou me aconselhar
nesse assunto, te agradeço muito. Onde quer que eu vá,
batem a porta na minha cara. Essa pessoa fez com que
reescrevessem meu romance em três versões diferentes: uma
foi autopublicada, a outra acaba de ser lançada pelo escritor
de best-sellers Matt Haig e uma outra vai sair nesta primavera
como um “romance conceitual vanguardista” sobre uma linda
jovem que frequenta uma escola de floricultura e é casada
com um homem bastante desatento que viaja muito. Estou
entrando em contato contigo porque o romance que você
acaba de traduzir parece ter sido inspirado em algo que postei
nessa comunidade literária online. Claramente não foi
plagiado e adota uma perspectiva diferente sobre o tema, mas
aprendi a prestar atenção em semelhanças incomuns e a usá-
las para criar hipóteses sobre como as ideias são
disseminadas pelas pessoas. Uma das ideias que desenvolvi
nos últimos tempos é que existe um mercado paralelo para
livros que pessoas como você são contratadas para escrever,
e que esses livros são vendidos para meninos chilenos idiotas
e ricos que querem parecer inteligentes. Isso não é problema
meu, mas quero que você saiba que a pessoa que está
orquestrando tudo isso roubou grande parte de sua matéria-
prima de gente como eu.
capa
Celso Longo
ilustrações de capa e verso de capa
Bruna Canepa
imagem da p. 8
Hieronymus Bosch, A extração da pedra da loucura, c. 1501-5.
Óleo sobre painel de carvalho. Museu do Prado, Madri.
preparação
Julia Passos
revisão
Jane Pessoa
Erika Nogueira Vieira
versão digital
Booknando
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
ISBN 978-65-5692-362-8
CDD CH864