Veredas Do Sagrado

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VEREDAS DO SAGRADO:

Interfaces entre Imaginário, Ecologia e Religião


universidade de são paulo
Reitor: Vahan Agopyan
Vice-Reitor: Antonio Carlos Hernandes

faculdade de filosofia, letras e ciências humanas


Diretor: Paulo Martins
Vice-Diretora: Ana Paula Torres Megiani

HUMANITAS editora humanitas


Presidente: Ieda Maria Alves

Apoio institucional

HUMANITAS
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05508-080 – São Paulo – SP – Brasil integral desta obra por qualquer meio
Telefax: 3091-0458 eletrônico, mecânico, inclusive por
e-mail: [email protected] processo xerográfico, sem permissão
expressa do editor (Lei nº. 9.610, de
19/02/98).

Foi feito o depósito legal


Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Abril 2021
Organização
Jorge Miklos

VEREDAS DO SAGRADO:
Interfaces entre Imaginário, Ecologia e Religião

História Diversa - 23

HUMANITAS
São Paulo, 2021
Copyright © 2021 dos autores

História Diversa, 23
Direção: André Figueiredo Rodrigues

Catalogação na Publicação (CIP)


Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Maria Imaculada da Conceição – CRB-8/6409

V489 Veredas do sagrado : interfaces entre imaginário, ecologia e religião /


Organização: Jorge Miklos. -- São Paulo : Humanitas, 2021.
288 p. -- (História Diversa ; v. 23)

ISBN 978-65-89853-00-8

1. Comunicação. 2. Religiões. 3. Ecologia. 4. Interação social. I.


Miklos, Jorge. II. Série

CDD 302

Revisão Técnica, Metodológica e Correção de Provas:


André Figueiredo Rodrigues

Capa
Luciano Pessoa, sobre fotografia de Ana Carmen Foschini

Comissão Editorial da Série História Diversa

André Figueiredo Rodrigues (UNESP) – presidente


Ana Maria de Almeida Camargo (USP)
Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi (UNESP)
Carla Maria Junho Anastasia (UFMG / UNIMONTES)
Cecília Helena Lorenzini de Salles Oliveira (USP)
Francisco Eduardo Alves de Almeida (EGN)
Juciene Ricarte Apolinário (UFCG)
Luciano Raposo de Almeida Figueiredo (UFF)
Maria Cristina Mineiro Scatamacchia (USP)
SUMÁRIO

O sagrado na encruzilhada .................................................................7

A servidão tecnológica o encantamento da mídia na era


cibercultural ........................................................................................ 21
Jorge Miklos

O Sagrado Colonizado: religiões de mercado e o mercado


das religiões ..........................................................................................41
Jorge Miklos
Ronivaldo Moreira de Souza

Sob o Signo de Narciso: religião midiatizada e a idolatria do eu ..61


Jorge Miklos

O Louvor à Grande Mãe Nazaré: um espetáculo na


cultura midiática..................................................................................79
Jorge Miklos
Ariana Nascimento Silva

Ecologia da Comunicação: uma teia de vínculos ............................95


Jorge Miklos
Agnes Arruda

Ecologia da Comunicação na Marcha Mundial das Mulheres .... 123


Jorge Miklos
Maria Aparecida Cunha
O Ambiente Comunicativo da Casa Comum: Ecologia da
Comunicação na Agenda Midiática do Papa Francisco ............... 143
Jorge Miklos
João Fortunato Freire

“Nós Não Temos Teologia, Nós Dançamos!”................................. 163


Jorge Miklos
Tatiana Penna

Lila e Maya: em busca da sacralidade dos processos criativos e


participativos.......................................................................................181
Jorge Miklos
Tadeu Rodrigues Iuama

O Senhor dos Dois Mundos: Steve Jobs, o herói tecnológico......201


Jorge Miklos
Leonardo de Souza Aloi Torres

“Tudo que ofereço é a Verdade”: Matrix e o imaginário


tecnológico..................................................................................... 223
Jorge Miklos
Gislene Lima Pereira

Dentro e fora da Casa Comum: imaginário simbólico na


Missa dos Quilombos .......................................................................245
Luciano Pessoa
Jorge Miklos

A estereotipia dos povos originários na mídia hegemônica ....... 269


Sandra Penkal
Jorge Miklos
O SAGRADO NA ENCRUZILHADA

Encruzilhada é um símbolo universal. Na avaliação de Cheva-


lier, é para onde converge o centro do mundo. Um lugar de passagem
e de encontro entre o sagrado e o profano, a vida e a morte, o mundo
interior e o mundo exterior. Um lugar onde se imbricam a imanên-
cia e a transcendência. O sagrado se manifesta na encruzilhada.
A potência simbólica da encruzilhada se faz presente em quase
todas as tradições religiosas. “Nas tradições de todos os povos, a
encruzilhada é o lugar onde se erigiram obeliscos, altares, pedras,
capelas, inscrições, lugar que leva à pausa e à reflexão.” 1 No Brasil, a
encruzilhada está presente na cruz, símbolo dos cristianismos, e nos
lugares onde são feitas as oferendas nas tradições espirituais afro-
-brasileiras. Encruzilhada é a poética do mistério.
A comunicação humana e suas gramáticas transcorrem no es-
paço da encruzilhada. Exu, Ganesha, Hermes e Toth, originariamen-
te partes integrantes das tradições africana, indiana, grega e egípcia,
respectivamente, ligam os mundos inferiores com os mundos su-
periores e caminham nas encruzilhadas. Expressam a comunicação
em todos os âmbitos.
Falar de ecologia é falar de encruzilhada devido ao cruzamento
das diversas e variadas possibilidades de vida. Na Encíclica Lau-
dato Si, o Papa Francisco alude para a possibilidade de se pensar
em ecologia integral, cruzando a dimensão ambiental, econômica
e social. A possibilidade do olhar cruzado em paralelo com a crise
sistêmica exorta a pensar eco teologicamente em uma ecologia da
comunicação.

7
VEREDAS DO SAGRADO

Pensar pelo viés da encruzilhada é ser desafiado a compreender


que tudo é interligado e interdependente em uma complexa rede
de eventos que, nem sempre, estão sincronizados, mas como muito
bem percebeu Carl G. Jung, estão em sincronicidade, ou seja, sem
causalidade, mas com significado.
Foi na encruzilhada que se deu o encontro deste livro, uma co-
letânea de treze textos que divulga ao público interessado os resulta-
dos das reflexões realizadas no interior do Grupo de Pesquisa Mídia
e Estudos do Imaginário, vinculado ao Programa de Pós-graduação
em Comunicação da Universidade Paulista.
A produção deste material contempla dois momentos distintos
e interligados. No primeiro momento, a pesquisa investigou o ima-
ginário religioso na sociedade midiatizada sob a perspectiva do que
Muniz Sodré chamou de Bios Midiático, a saber, a criação de uma
eticidade (costume, conduta, cognição, sensorialidade) estetizante
e vicária. Para Sodré: “o ethos midiatizado é essa forma pela qual
interagimos, conhecemos, aprendemos, comunicamos. Nova forma
como nos constituímos como sujeitos na contemporaneidade.”2
Dito de outra forma, a comunicação estrutura as atividades
humanas das mais prosaicas às mais acentuadas, transformando a
convivência e os vínculos entres os seres humanos. A comunicação
modula a percepção do tempo e do espaço. Em suma, a comuni-
cação define nossa maneira de viver, o modo como as pessoas se
relacionam, como entendem a si mesmas e ao mundo onde vivem.
Sendo assim, seria impossível imaginar que a comunicação não te-
ria interferido nas percepções e nas vivencias sociais localizadas no
campo religioso.
Assim, partindo da premissa que estamos atravessados pela
comunicação alterando percepções, sentidos e valores, coube-me
investigar de que maneira o ethos midiatizado interferiu nos proces-
sos que envolvem a religião e a religiosidade brasileira.

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O SAGRADO NA ENCRUZILHADA

A pesquisa trouxe resultados frutíferos. Apresentações de tra-


balhos, participação e coorganização de congressos científicos, pu-
blicações em periódicos e livros, orientações de pesquisas em nível
de mestrado e um diálogo intenso com uma subárea da comunica-
ção que não para de crescer: a investigação da interface entre comu-
nicação e religião. Pesquisa realizada no banco de teses da Capes
mostrou que, entre 2013 e 2018, foram defendidas 86 dissertações de
mestrado e 17 teses de doutorado na área de Comunicação e Infor-
mação. A despeito da variedade temática e metodológica, todos os
trabalhos estudaram o entrelaçamento entre Comunicação e Reli-
gião no Brasil.
Ao final, percebeu-se que a religião brasileira estava colonizada
pelo Bios Midiático. Identificou-se que, da mesma forma que outras
esferas da vida social, há uma colonização do sagrado que enaltece a
técnica, a sociedade de mercado e o individualismo. E as pesquisas,
em grande maioria, são cegas para esse contexto e se limitam a apre-
sentar uma análise da sintaxe dos códigos ou uma descrição.
Acerca desse obscurecimento do contexto histórico e da su-
premacia teórica do simbólico e da técnica, Sodré (2006) considera
que:

A astúcia das ideologias tecnicistas consiste geralmente na tentati-


va de deixar visível apenas o aspecto técnico do dispositivo midiá-
tico da “prótese”, ocultando a sua dimensão societal comprometida
como uma forma específica de hegemonia, onde a articulação entre
democracia e mercadoria é parte vital de estratégias corporativas.
Essas ideologias costumam permear discursos e ações de conglo-
merados transnacionais e de ideólogos dos novos formatos do Es-
tado (2006, p. 22).

No limite, a ciência converte-se em ideologia e dispositivo de


dominação. Esse diagnóstico lúgubre nos chamou a atenção para um
comunicólogo espanhol, Vicente Romano, ainda pouco conhecido

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VEREDAS DO SAGRADO

no Brasil, que asseverou que diante da colonização do biotempo pela


mídia: “é preciso resgatar a dimensão ecológica da comunicação.”3
O chamado de Romano foi o pressuposto, para prosseguir a in-
vestigação a partir da noção de Ecologia da Comunicação. Supomos
que há processos comunicacionais culturais e religiosos que não se
situam no eixo hegemônico do Bios Midiático, que é servil à lógica
do capital. Esses fenômenos privilegiam as estratégias de vinculação
nos grupos sociais que legitimam o tempo compartilhado, os ritos
da cultura, a produção comunicacional colaborativa e solidária fun-
dando imaginários radicais, ou seja, a capacidade de produzir novas
relações de esperança, de transformação social e de criação do novo.
Nesse sentido, esta etapa da investigação procurou examinar
grupos religiosos (católicos, evangélicos, espíritas, afro-brasileiros,
indígenas, entre outros) que se estabelecem no campo da religio-
sidade popular, que trafegam externamente ao contexto da mídia
hegemônica (bios midiático) e que se posicionam na tensão com
o sistema econômico, no contrafluxo da autoridade clerical (insti-
tucional, apenas devocional e sem compromisso com a justiça dos
pobres) e na contra-hegemonia da lógica midiática, constituindo
territórios concretos e imaginários de resistência. O objetivo foi ob-
servar estratégias contra-hegemônicas nos imaginários de resistên-
cia presentes na cultura popular. A perspectiva que orientou a pro-
posta foi a Ecologia da Comunicação sugerida por Vicente Romano.
Essa fase da pesquisa foi penosa e muito prazerosa. Penosa uma
vez que a área científica da comunicação demonstrou aversão ao
olhar para os processos contra-hegemônicos. Da mesma forma que
o fazer comunicacional é submisso aos interesses do mercado, os
cientistas da comunicação não adotam a teoria crítica, ao contrá-
rio, atuam como ideólogos do mercado. O argumento mais comum
usado nos pareceres é que a Teoria Crítica está datada, obsoleta. E
como o mercado é implacável, até mesmo com os seus servos, os pu-

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O SAGRADO NA ENCRUZILHADA

blicitários travestidos de pesquisadores amargaram, depois de 2019,


a sequela do epistemicídio crítico.
Se as artes já haviam sido devoradas pela indústria cultural,
agora são as ciências e as técnicas que também se encontram sub-
metidas à lógica empresarial. Não só a pesquisa se transformou em
commodity e posse de instrumentos para intervir e controlar alguma
coisa, mas também depende diretamente dos investimentos empre-
sariais, os quais são determinados pelo jogo estratégico da com-
petição no mercado. Com raras e nobres exceções (Muniz Sodré,
Raquel Paiva, Eugênio Trivinho, Malena Contrera, Norval Baitello
Jr., Sérgio Amadeu, Eugênio Menezes, entre outros) os produtores
de conhecimentos e tecnologias na área da Comunicação absorvem
a lógica da competição empresarial e dão a ela sua adesão, negando,
portanto, a autonomia racional que dava autoridade à intervenção
crítica dos intelectuais. Isolados em suas baias, contabilizando as
milhagens de pontuação dos critérios de avaliação da Capes.
Esse clima de sujeição explica a rejeição que o tema da pesquisa
encontrou na área de comunicação. Recebemos pareceres hostis e
ofensivos de artigos e muito descrédito de que essa pesquisa “não
vale a pena” ou “não vale nada”. Para quem cavalgou no dorso da
esperança, há de enfrentar as tempestades.
A despeito dos percalços, as pesquisas ampliaram horizontes e
consolidaram parcerias intelectuais colaborativcas que se transfor-
maram em sólidas amizades.
O primeiro texto, A servidão tecnológica: o encantamento da
mídia na era cibercultural, de minha própria lavra, buscou refletir
acerca do contexto religioso e comunicacional contemporâneo no
qual se observa a migração das práticas religiosas tradicionais para
o espaço virtual, cenário no qual a religião reaparece reconfigurada
por uma ambiência capitalista, individualista, consumista e regida
pela gramática do espetáculo e do entretenimento. Perguntamos:
será possível a prática de ritos virtuais com sentido de transcen-

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VEREDAS DO SAGRADO

dência? As considerações apontam que a migração das experiências


religiosas tradicionais para o âmbito do ciberespaço indica uma in-
tegração entre as práticas religiosas e os valores do capitalismo con-
temporâneo. Em uma sociedade abarcada pela lógica do mercado,
do espetáculo e do consumo em que todos estão, de maneira cons-
ciente ou inconsciente, mergulhados no Bios Midiático; a religião,
para sobreviver, promove uma abundante indulgência teológica e
cria sucessivas pseudonecessidades espirituais que serão supridas
no virtual. A primeira versão dessa reflexão foi acolhida e publicada
no livro Mídia, Religião e Cultura da Editora Prismas em 2016. Para
esta edição, o texto foi ampliado e revisto.
O segundo texto, O Sagrado Colonizado: religiões de mer-
cado e mercado de religiões, escrito em parceria com Ronivaldo
Moreira de Souza, Mestre em Ciências da Religião e Doutor em Co-
municação Social, teve como desafio a investigação a respeito das
sociedades contemporâneas e a compreensão da interface entre o
comunicacional e o religioso articulados a outros sistemas culturais
híbridos que moldam a convivência entre seres humanos, institui-
ções, comunidades e fluxos globais de consumo e tecnologia. Par-
tindo de uma provocação deixada por Malena Contrera: será que a
midiatização é um sintoma de que o sagrado ainda quer sobreviver?
Consideramos que se esses processos saírem do Bios Midiático e
privilegiarem as estratégias de vinculação nos grupos sociais que
legitimam o tempo compartilhado, os ritos da cultura, a produção
comunicacional colaborativa e solidária fundando imaginários ra-
dicais, então, podemos considerar uma resposta afirmativa: o sa-
grado quer sobreviver. A primeira versão dessa reflexão foi acolhida
e publicada pela Revista Paulus em 2018. Esta versão foi revista e
modificada.
O terceiro texto, Sob o Signo de Narciso: religião midiatizada
e a idolatria do eu, de minha autoria, há uma reflexão sobre a in-
terferência da cultura narcisista, conceito proposto por Christopher

12
O SAGRADO NA ENCRUZILHADA

Lasch, no campo religioso. Entendemos que a cultura do narcisis-


mo agencia a substituição de DEUS pelo EU, ou seja, promove a
idolatria do ego humano acima do divino: um homem que se vê e
se enxerga como se fosse o próprio DEUS. Na sociedade líquido-
-moderna, na qual a religião é midiatizada e dominada por apelos
à imagem e ao sucesso, os ídolos são abundantes, mesmo dentro de
igrejas, é comum ver o culto para adoração a pastores, padres ou
cantores que são lembrados como grandes celebridades. Idolatram
o dinheiro, a fama, o sucesso. O culto do sagrado é transporto para
o culto ao eu, ou seja, a adoração de si próprio. A primeira versão do
texto foi apresentada no Encontro de grupos de pesquisa da Fapcom
de 2019 e publicada no livro Diálogos entre a comunicação, filosofia
e tecnologia: reflexões sobre tecnologia, religião e sociedade nas prá-
ticas comunicacionais contemporâneas. Esta versão foi modificada e
revisada.
O quarto texto, O Louvor à Grande Mãe Nazaré: um espe-
táculo na cultura midiática, em parceria com a Doutora em Co-
municação Ariana Nascimento Silva traz uma reflexão acerca da
midiatização do cenário religioso brasileiro. Neste novo cenário, os
fiéis recriam a fidelidade religiosa, construindo novas crenças, no-
vas imagens, novas ambiências e novos ritos. O corpus de análise
foi a festa popular e religiosa do Círio de Nazaré e o seu produto
midiático: o cartaz do ano 2011. O resultado considerou que o cartaz
traduz o fenômeno cultural denominado de iconofagia, no qual os
homens devoram imagens e as imagens devoram os homens. A ver-
são original foi publicada na Revista Ciências da Religião: história e
sociedade em 2016. Esta versão sofreu revisão e alterações por parte
dos autores.
A quinta proposta, O Ambiente Comunicativo da Casa Co-
mum: Ecologia da Comunicação na Agenda Midiática do Papa
Francisco, foi escrita em parceria com o mestre e jornalista João
Fortunato Freire e teve por objetivo investigar a agenda midiática

13
VEREDAS DO SAGRADO

do Papa Francisco, buscando interpretar a fisionomia das relações


entre a Comunicação e a Igreja Católica. Na Argentina, o cardeal
Jorge Mário Bergoglio mantinha distância estratégica da imprensa,
receava ter suas palavras manipuladas. Agora, Papa Francisco, líder
da Igreja Católica, é seguido diuturnamente pelos jornalistas, com
quem mantém diálogo equilibrado, mas em tom crítico. É pop nas
redes sociais digitais. Francisco responsabiliza a imprensa por parte
dos problemas atuais da humanidade. É crítico do Capitalismo, que
estimula o consumo desenfreado e, ainda que seja pop nas redes
sociais digitais, critica a manipulação da informação e a propagação
de fake news. Os resultados da investigação apontam que as ideias,
discursos e gestos de Francisco são, em muitos pontos, semelhantes
ao pensamento de Vicente Romano expressos na noção de Ecolo-
gia da Comunicação uma vez que, para o comunicólogo, o excesso
de comunicação desestimula o espirito crítico, elimina o dialogo
pessoal, mitiga o envolvimento comunitário, tornando as pessoas
vítimas fáceis do consumismo. O texto foi pensado para ser apre-
sentado no Pensacom em 2017.
O sexto texto, Ecologia da Comunicação: uma teia de víncu-
los, escrito em parceria com a Doutora em Comunicação Agnes Ar-
ruda é um tributo ao pensamento de Vicente Romano. A intenção
foi articular a interseção entre comunicação e cidadania na perspec-
tiva integrada com as ecologias: profunda, integral, dos saberes e da
comunicação. A proposta era pensar a Ecologia da Comunicação
como um desafio e uma possibilidade de revigorar os vínculos hu-
manos sociais e robustecer a cidadania.
O texto foi submetido para ser apresentado no encontro da
Compós em 2017, foi aprovado por um parecerista e rechaçado por
outro com o argumento de que “não tem método”, uma herança do
velho positivismo eurocêntrico que ainda modula a estreita visão de
muitos comunicólogos brasileiros. De fato, para uma mente estrei-
tada pelas fórmulas acabadas que iguala comunicação à quantidade

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O SAGRADO NA ENCRUZILHADA

de informação, pensar pelo viés da ecologia e da complexidade é


tarefa árdua, que exige coragem e desapego por cargos, privilégios
da ossificada e corporativista universidade pública brasileira, apare-
lhada pela vaidade intelectual. Entretanto tivemos o aceite de uma
instituição de vanguarda e o artigo foi publicado na PAULUS: Re-
vista de Comunicação da FAPCOM em 2018. Esta versão é revisada
e ampliada.
O sétimo texto, Ecologia da Comunicação na Macha Mun-
dial das Mulheres, em coautoria com a Mestre em Comunicação
Maria Aparecida Cunha versou sobre as relações entre comunica-
ção e o movimento feminista, especificamente, a Marcha Mundial
das Mulheres (MMM) e suas ações nas ruas e nas redes digitais.
Considerou-se que a MMM se apropria dos meios de comunicação
em busca de maior visibilidade, mobilização e engajamento para a
discussão de suas pautas, construindo, assim, uma cidadania midiá-
tica identificada com uma Ecologia da Comunicação. O trabalho foi
aceito e publicado na Revista Líbero em 2016. A versão aqui apre-
sentada está revisada e ampliada.
O oitavo texto, “Nós Não Temos Teologia, Nós Dançamos!”,
escrito em parceria com Tatiana Pena, Mestre em Comunicação e
Cultura e pesquisadora no campo afro-religioso, preenche uma la-
cuna no campo que se dedica a pesquisar as interfaces entre Co-
municação e Religião, uma vez que as pesquisas desse campo são
marcadas pelo monopólio do cristocentrismo e ignoram outras tra-
dições espirituais. A reflexão se dedica a pensar os aspectos comuni-
cacionais presentes nas práticas espirituais da Umbanda.
A Umbanda resulta de uma fusão cultural reunindo uma he-
terogeneidade espiritual, expressa no universo simbólico desenha-
do e associado à criatividade do imaginário popular brasileiro. A
Umbanda sincretiza, de forma criativa, elementos de várias tradi-
ções religiosas de nosso país, evidenciando-se como uma religião
profundamente ecológica, que devolve ao ser humano o sentido de

15
VEREDAS DO SAGRADO

reverência face às energias cósmicas. Nesse sentido, o tema deste


estudo volta-se para compreensão dos fenômenos ecológicos da
comunicação na Umbanda. Por sua premissa diversa e ecológica,
a Umbanda se desenvolveu para além de um texto cultural escri-
to (livro sagrado), pautando seus ritos, cânticos, vestes, alimentos,
saberes por meio da oralidade, da comunicação pelo corpo, cor-
roborando com Vicente Romano, quando conceitua a Ecologia da
Comunicação, referenciando que a mesma expressa formas dura-
douras e compatíveis de comunicação com o ser humano, com a
sociedade, com a cultura e o meio natural. O texto foi pensado para
ser apresentado no 1º Encontro Nacional do Centro de Estudos em
História Cultural das Religiões (CEHIR). Esta versão foi ampliada
e modificada.
O nono texto, Lila e Maya: em busca da sacralidade dos pro-
cessos criativos e participativos, escrito em parceria com o Doutor
em Comunicação e Cultura Tadeu Iuama, visou observar a relação
entre o brincar e o sagrado. Uma vez que o sagrado pode se mani-
festar por meio do jogo, assim como as religiões possuem estruturas
com uma base que pode ser vista como originária do jogo, práticas
como o larp. Ressaltou-se o desprendimento do viés de qualquer
religião específica, ao olhar não apenas ao transcendente, mas tam-
bém à imanência da religiosidade como edificação de vínculos entre
os homens. Os larps poderiam ser possíveis tutores de resiliência,
papel também presente nas religiões. Encerra ao propor a existência
de, no larp, uma criação de áreas transicionais entre o concreto e o
imaginário, abrindo espaço para futuras discussões à respeito do
potencial contra-hegemônico desse processo. O texto foi pensado
para ser apresentado no Pensacom em 2017; após revisões, foi aceito
para publicação na Revista Tríade em 2018. A presente versão teve
pequenos ajustes formais.
O décimo texto, O Senhor dos Dois Mundos: Steve Jobs, o he-
rói tecnológico, escrito em parceria com o Doutor de Comunicação

16
O SAGRADO NA ENCRUZILHADA

Leonardo Aloi Torres, teve por intenção desvelar a presença de uma


forma peculiar de relação com instâncias do sagrado arcaico nas
narrativas sobre Steve Jobs, presentes no imaginário contemporâ-
neo. Por meio do método da psico-história-arquetípica sugerido
por Carl Gustav Jung, os momentos da vida de Steve Jobs foram
comparados com o monomito do herói proposto por Joseph Cam-
pbell. Como resultado, entende-se que Jobs é percebido como um
herói, um salvador e um mago pelos tecnofiéis, seguidores da marca
Apple, o que implica uma remitologização contemporânea da saga
do herói. O texto foi apresentado no 42º Congresso Brasileiro de
Ciências da Comunicação, em 2019, e esta versão foi corrigida.
O décimo primeiro texto, “Tudo que ofereço é a Verdade”: Ma-
trix e o Imaginário Midiático, escrito em parceria com a Mestre
em Comunicação Gislene Pereira, teve por escopo o estudo da nar-
rativa no filme Matrix conjecturando a existência da perenidade
entre as antigas mitologias e as narrativas modernas correntes na
literatura, no cinema e em outros produtos culturais. Ainda que o
mito não seja nomeado ou apareça diretamente nessas narrativas,
ele está presente, em um nível latente, sustentando o sentido desses
textos culturais. A intenção do estudo foi desvelar o mito que sub-
jaz no personagem Thomas A. Anderson, o Neo, interpretado por
Keanu Reeves. O texto foi apresentado no 42º Congresso Brasileiro
de Ciências da Comunicação, em 2019, e esta versão foi corrigida e
ampliada.
O décimo segundo texto, Dentro e Fora da Casa Comum: Ima-
ginário Simbólico na Missa dos Quilombos, de lavra minha e de
Luciano Pessoa, nasceu das longas conversas que tivemos, em que
eu lembrava a ele a importância que o álbum Missa dos Quilombos
teve na minha vida. Criada por Dom Pedro Casaldáliga e Pedro
Tierra, com música de Milton Nascimento, a missa foi celebrada
pela primeira vez em 1981, em Recife. O ato religioso denunciou as
consequências da escravidão e do preconceito no Brasil e se trans-

17
VEREDAS DO SAGRADO

formou numa cerimônia de fé, comunhão, música e ritmo, a partir


da atitude progressista de membros da Igreja Católica, em favor da
introdução das referências culturais de diferentes povos na liturgia.
A Missa dos Quilombos contraria a versão de Marx e Freud de que
a religião é ópio do povo. Em chave transdisciplinar, o texto trata
do imaginário simbólico e um oikos cultural em torno da Missa dos
Quilombos. No contexto de um país de tradição escravagista em
que a Igreja se manteve ao lado do opressor, e pelo olhar de uma
ecologia do comum, comunitária e comunicacional, o autor procu-
rou elaborar aspectos simbólicos desse rito que reuniu concepções
distintas do sagrado. O texto foi apresentado ao Grupo de Trabalho
Ecologia Comunicativa Comunitária no VI ComCult.
O décimo terceiro texto, A estereotipia dos povos originários
na mídia hegemônica é em parceria com Sandra Penkal analisa, a
partir das edições de junho a novembro de 2017 da Revista Exame,
como o povo indígena do Brasil é representado na mídia hegemôni-
ca brasileira, O objetivo foi demonstrar como essa mídia se apropria
do imaginário indígena. O método apoia-se na análise de conteúdo
de Bardin e nas proposições teóricas de Harry Pross e de Vicente
Romano. Conclui-se que tal narrativa tende a esvaziar e estereotipar
a identidade do indígena brasileiro, gerando uma perda comunica-
cional. O texto é inédito.
Latente a cada texto há um ser humano complexo, diverso e
indeterminado. Este livro é testemunha dos resultados intelectuais
tecidos nas parcerias com pesquisadoras e pesquisadores cujos ca-
minhos se encruzilharam com o meu. Além das ideias, cultivamos
amizade.
Nesses anos assistimos que um dos efeitos mais perversos das
políticas neoliberais no Brasil foi o sequestro do oikos material e
espiritual. A tecnociência atrelada dos interesses do mercado se-
questra o futuro. É mais fácil governar e dominar pessoas que se
enxergam como limitadas pelos problemas do presente. É mais fácil

18
O SAGRADO NA ENCRUZILHADA

governar um povo que acredita na sua impotência. Pesquisa pode


ser mais que produção de patentes e privilégios pessoais. A ciência
pode semear contestar e semear utopia. Aprendemos que tudo que é
possível hoje, um dia na nossa história foi impossível. O desafio é o
de não limitar a potência da criação humana aos limites do presente.
Esta é a força que une os amigos: um querer bem que estabelece
uma relação de reciprocidade, em que os defeitos do outro são en-
xergados, mas são perdoados e corrigidos, quando possível: “amigo
é uma consciência que fala quando a nossa se cala”. Na relação de
amizade se valoriza, sobretudo, as potencialidades, o valor, os dons,
a dignidade do outro. E, ao se valorizar a pessoa mais do que os seus
pecados, defeitos, falhas, erros, ou divergência de pontos de vista,
promove-se todo o bem que há nela. “Amigo fiel é refúgio seguro:
quem o encontrou, encontrou um tesouro.” Os amigos nos comple-
mentam e favorecem nosso crescimento pessoal.
Amizade é vibração e arrebatamento do mistério nos caminhos
da vida encruzilhados. No momento em que escrevo esta apresen-
tação, o mundo e o Brasil atravessam a crise mundial imposta pela
pandemia do COVID-19. Travessia no deserto. Que estas encruzi-
lhadas se convertam nas sementes que a utopia solicita: paciência
histórica e a disposição de não calar a consciência, mas continuar
regando a terra seca.

NOTAS

1 CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos: Mitos, sonhos,


costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olímpio,
2015.
2 SODRÉ, Muniz. Antropológica do Espelho: uma teoria da comunicação linear
e em rede. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2006.
3 ROMANO, Vicente. Ecologia de la comunicación. Hondarribia: Hiru, 2004.

19
A SERVIDÃO TECNOLÓGICA O
ENCANTAMENTO DA MÍDIA NA ERA
CIBERCULTURAL

Jorge Miklos

Um dos desafios da investigação a respeito das sociedades con-


temporâneas é a compreensão da interface entre o comunicacional e
o religioso articulados a outros sistemas culturais híbridos que mol-
dam a convivência entre seres humanos, instituições, comunidades
e fluxos globais de consumo e tecnologia.
No atual contexto de interações entre os vários sistemas cultu-
rais, as fronteiras entre o comunicacional e o religioso encontram-
-se, cada vez mais, borradas e indistintas. Novos contornos socio-
culturais propõem fenômenos sociocomunicacionais que instigam
o campo científico da comunicação a se reinventar heuristicamente,
o que implica o deslocamento epistemológico em direção ao para-
digma da complexidade.
A listagem de fenômenos sociocomunicacionais imbricados
ao religioso é incessante, torna-se quase impossível catalogá-los. A
abundância e a diversidade dos fenômenos apontam para a perspec-
tiva na qual não é mais possível estudar comunicação no Brasil sem
levar em conta o lugar da religião, bem como não é mais possível
estudar religião sem levar em conta os processos comunicacionais
que com ela interagem.

21
JORGE MIKLOS

Assim, dessa maneira busca-se neste texto realizar uma reflexão


acerca do contexto religioso e comunicacional contemporâneo no
qual se observa a migração das práticas religiosas tradicionais para
o espaço virtual. O alastramento social do ciberespaço dissemina a
reconfiguração das práticas religiosas. Atualmente, são inúmeros
sites e perfis em redes sociais digitais de diferentes tradições espiri-
tuais que tornam disponíveis dispositivos digitais on line para usuá-
rios/fieis realizarem práticas religiosas virtuais, antes só possíveis na
experiência concreta.
Essa questão desdobra-se em outras: que religião é essa que
se midiatiza? Qual mídia tem um lugar privilegiado na religião?
Qual o custo humano da virtualização da experiência religiosa no
contemporâneo?
São essas as inquietações que norteiam as reflexões acerca da
experiência religiosa no âmbito do digital.

Perspectivas Teórico-Críticas

Este artigo pretende analisar o lugar ocupado pela mídia na


reconfiguração do campo religioso a partir do alastramento das
tecnologias de comunicação digitais. Compreende-se que o campo
religioso, especialmente o brasileiro, desde os meados da década de
1990, tem sofrido mutações diversas que o tornou multifacetado e
dinâmico.
Do ponto de vista estatístico (TEIXEIRA; MENEZES, 2013),
observa-se, no Brasil, o declínio da maioria absoluta católica. Como
expressão desse trânsito, nota-se a ascensão das igrejas pentecostais
e neopentecostais, o aumento dos que se declaram sem religião e da
religiosidade privada.1
Destaca-se também, na contramão das escolas que argumen-
tam a respeito da perda do lugar de matriz significante da religião

22
A SER VIDÃO TECNOLÓGICA O ENCANTAMENTO DA MÍDIA
NA ERA CIBERCULTURAL

(GAUCHET, 1985; BRUCE, 2002) e que alegam que a religião já não


tem o mesmo poder estruturante da sociedade como no passado,
um reavivamento religioso. Destaca-se também um reavivamento
religioso que vai na contramão das escolas e que alegam que a reli-
gião como no passado. De acordo com Kolakowski (1997), trata-se
da “revanche do sagrado” sobre a cultura profana, caracterizada por
uma nova forma de viver a religiosidade: mais desinstitucionaliza-
da, subjetiva, emocional, notadamente individualista e perpassada
por componentes mágicos. Fala-se em “reencantamento do mundo”
(Camurça, 2003), “dessecularização” (BERGER, 2001) e “revanche
de Deus” (OLIVEIRA, 2005).
Esse novo cenário religioso, agora reencantado, marcado pelo
trânsito, pelo pluralismo, tem suscitado um “mercado religioso” al-
tamente competitivo (MARTINO, 2003). Nesse contexto, para so-
breviver, a religião promove uma abundante indulgência teológica
e cria novos formatos nos quais as estratégias de marketing (CAM-
POS, 1997; SIEPIERSKI, 2003), a imersão da cultura do consumo
(CARRANZA, 2014), a lógica do mercado e da indústria cultural
(MIKLOS, 2012), a gramática do entretenimento e do espetáculo
(DUFOR, 2014) colonizam a esfera teológica e espiritual, reificando
a esfera do sagrado e, simultaneamente, sacralizando o mercado
graças ao bios virtual que se institui como “boca de Deus” (SODRÉ,
2006).
Uma vez que as sociedades contemporâneas, respondendo aos
apelos globalitários (SANTOS, 2001) do mercado mundial e do
“turbocapitalismo” (SODRÉ, 2006), são industriais, maciças, téc-
nicas, burocráticas, capitalistas, de classes, burguesas, consumistas
e individualistas, a cultura religiosa é convertida em mercadoria
fetichizada, nascida industrialmente e vendida comercialmente,
respondendo não apenas aos moldes culturais, mas, sobretudo, à
“guerra santa” entre as igrejas, com o objetivo de montar cada uma
o seu próprio império sobre a terra. Os bens simbólicos, agora, en-

23
JORGE MIKLOS

tram na escala da produção, difusão, consumo, próprios da Indús-


tria Cultural (MORIN, 1990).
A religião, palco de entretenimento, consumo e espetáculo,
percorre as águas do frio cálculo egoísta da midiatização. Sem per-
der de vista a moldura estrutural e estruturante que destaca os con-
tornos das mutações do campo religioso, é esse o recorte específico
desta reflexão: o fenômeno da midiatização do campo religioso arti-
culado ao cenário de financeirização do mundo.
As perspectivas sobre a “midiatização” e “midiatização da reli-
gião” vêm encontrando ambiente reservado de desenvolvimento nas
pesquisas, por exemplo, de Borelli (2010; 2012), Fausto Neto (2004;
2006; 2008), Gomes (2002; 2006; 2010), Martino (2012; 2013), Fie-
genbaum (2006), Hjarvard (2012), Hoover (2014), entre outros.
Sabemos que o debate acerca da midiatização é mais extenso
e complexo. Nosso objetivo não é afirmar ou negar este ou aquele
posicionamento, reavivando polêmicas, mas considerá-los – em li-
nhas gerais – válidos na medida em que se apresentam como visões
complementares de um fenômeno altamente complexo: a religião
e seu entrelaçamento com a mídia, em particular, após o processo
de virtualização e hipertextualização do sagrado, ou dito de outra
maneira, após a migração das experiências religiosas centradas na
tradição presencial e corpórea para o âmbito do ciberespaço.
Nesse sentido, optou-se por pensar os conceitos de midiatiza-
ção e de virtualização da religião alinhados às reflexões de Muniz
Sodré (2006) acerca do bios midiático e de Eugênio Trivinho (2007,
2009, 2013) acerca da cibercultura, respectivamente.
Entretanto, antes de chamar os autores para o diálogo, convém
ouvir o que nos diz Thompson (2014, p. 37) que adverte de que não
podemos pensar a mídia fora da moldura histórica que a produ-
ziu: “não se pode obscurecer que o desenvolvimento dos meios de
comunicação é uma reelaboração do caráter simbólico da vida”,
nesse sentido, o autor prossegue afirmando que “a comunicação

24
A SER VIDÃO TECNOLÓGICA O ENCANTAMENTO DA MÍDIA
NA ERA CIBERCULTURAL

mediada é sempre um fenômeno social contextualizando e sempre


implantado em contextos sociais que se estruturam de diversas ma-
neiras e que, produzem impacto na comunicação que ocorre”.
O que Thompson postula é que não basta fixar o olhar no con-
teúdo simbólico das mensagens da mídia, ignorando a complexa
mobilização das condições sociais que subjazem à circulação dessas
mensagens, também é insuficiente descrever como funciona o dis-
positivo. Acerca desse obscurecimento do contexto histórico e da
supremacia teórica do simbólico e da técnica, Sodré considera que:

A astúcia das ideologias tecnicistas consiste geralmente na tentati-


va de deixar visível apenas o aspecto técnico do dispositivo midiá-
tico da “prótese”, ocultando a sua dimensão societal comprometida
como uma forma específica de hegemonia, onde a articulação entre
democracia e mercadoria é parte vital de estratégias corporativas.
Essas ideologias costumam permear discursos e ações de conglo-
merados transnacionais e de ideólogos dos novos formatos do Es-
tado (2006, p. 22).

Na contramão do discurso hegemônico, Muniz Sodré - ampa-


rado por diversas matrizes teóricas - conceitua midiatização e vir-
tualização, sem perder de vista as relações materiais dominantes,
e desenvolve uma reflexão crítica a respeito do papel da mídia na
cultura tecnocapitalista. É nessa genealogia epistemológica que está
ancorada esta reflexão.
Eugênio Trivinho é mais enfático quando desmonta e desmisti-
fica o que ele chama de “descritivismo metodológico” no âmbito das
pesquisas em cibercultura:

O descritivismo metodológico equivale a uma fórmula técnica de


relato teórico desempenhada a título de cientificidade garantida,
ou, mais precisamente, de pretensa fundamentação fiduciária de
objetividade, de imparcialidade e até neutralidade no trato com o

25
JORGE MIKLOS

recorte de real em jogo, de demonstração fidedigna e supostamente


não valorativa de ausência cabal do envolvimento com o objeto
(…). Dessa forma, há pouca ou nenhuma elaboração epistemoló-
gica relevante e conseqüente nessa vertente (….) o descritivismo
assume um comportamento conservador (…) na medida em que
sempre valore, nada tensiona, o descritivismo metodológico acaba
no fringir dos pensadores, fazendo parte da própria celebração do
mundo digital. (2007, p. 30-31).

Para Trivinho, pensar a cultura digital e seus resultados civili-


zatórios (virtualização, fenômeno glocal2 e dromocracia) no aspecto
descritivo é inaceitável na medida em que coloca a ciência a serviço
de um ciberufanismo. É preciso, segundo ele, valorar tensionalmen-
te o corpus analisado, a fim de chegar a uma significação social-
-histórica da sua natureza.
Adota-se aqui, por razões de política da teoria, uma perspectiva
crítica que abdica da ilusão de um mundo melhor para o humano
graças ao emprego da tecnologia. Essa tecnoutopia legitimou e legi-
tima o avanço do capitalismo e da tecnociência; construiu e constrói
a “ideologia do progresso” (Dupas, 2006) que vê no mundo digital
e na virtualização o estágio mais avançado do progresso humano,
ignorando os resultados nefastos da racionalidade tecnocientífica.
O progresso, acumulado por séculos e perseguido incessante-
mente, tem trazido felicidade para o ser humano? Acerca do mundo
tecnológico Chellis Glendinning salienta que:

O desenvolvimento e o uso da tecnologia hoje representam perigo


não só para a pessoa individual, mas para a própria vida: para a
essência e sobrevivência das águas, do solo e da atmosfera da Terra
(...) os valores que sustentam o nosso conceito moderno de pro-
gresso com o desenvolvimento tecnológico desenfreado tornaram-
-se o imperativo moral – e a maldição – da era moderna.(…) Aque-
les que as desenvolvem (as tecnologias) não se interessam pelo

26
A SER VIDÃO TECNOLÓGICA O ENCANTAMENTO DA MÍDIA
NA ERA CIBERCULTURAL

assunto. (...) Ao que temos na sociedade moderna é um conjunto


de tabus tecnológicos que pelo menos em curto prazo, beneficiam
diretamente os criadores e disseminadores de tecnologias. O que
temos são tabus que, indiretamente, satisfazem as necessidades psí-
quicas da população com suas promessas de ‘boa vida’, excitação e
progresso. (2010, p. 140-142).

As leituras acerca da midiatização do fenômeno religioso e


de sua virtualização no contexto da civilização cibercultural que se
apegam ao seu caráter simbólico ou se restringem em pensar a mí-
dia na condição de “tecnologia de rede”, eclipsam subrepticiamente
a moldura histórica que a produziu. Tais leituras tornam orgânica a
visão de mundo dominante, formulam o pensamento hegemônico,
criam e expressam a ideologia do mercado. O conceito de midiati-
zação que não leva em consideração o contexto que o produziu, de-
fende abertamente o status quo das grandes corporações midiáticas,
na medida em que faz a apologia às mídias valorizando-as como
positivas ou favoráveis para a sociedade e, no caso das religiões, para
a evangelização.
Optar pela crítica da cibercultura e pelo bios midiático é uma
aderência explicita à fortuna crítica de Trivinho (2007) e Sodré
(2006), significa rechaçar a visão prometeica e reconhecer a com-
plexidade de uma época que, ao mesmo tempo em que vislumbra
tecnoutopias emancipatórias, agencia formas sutis e silenciosas de
violência e opressão.
Muniz Sodré, ao referir-se à midiatização, usa a expressão bios
midiático:

Partindo da classificação aristotélica (bios theoretikos – vida con-


templativa; bios politikos – vida política; bios apolaustikos – vida
prazerosa, vida do corpo), a midiatização ser pensada como tec-
nologia de sociabilidade ou um novo bios, uma espécie de quarto
âmbito existencial, onde predomina (muito pouco aristotelicamen-

27
JORGE MIKLOS

te) a esfera dos negócios, com uma qualificação cultural própria


(a “tecnocultura”). O que já se fazia presente, por meio da mídia
tradicional e do mercado, no ethos abrangente do consumo, conso-
lida-se hoje como novas propriedades por meio da técnica digital
(2006, p. 25).

Diferentemente da mediação, a midiatização envereda pelo ca-


minho da intensa utilização das tecnologias como meio articulador
da comunicação humana, ou seja, interações através dos dispositi-
vos tecnológicos que – ainda segundo Sodré (2006) – funcionam
como uma prótese que não está desligada dos sujeitos, como uma
extensão daquele sujeito, simulacros dessa sociedade que está midia-
tizada e que, de alguma forma, não consegue mais se desvencilhar
das tecnologias que gerem suas vidas sociais.
Nesse contexto, Sodré (2006) reforça que “o ‘espelho midiático’
não é simples cópia, reprodução ou reflexo, porque implica numa
forma nova de vida, com um novo espaço e modo de interpelação
coletiva dos indivíduos, portanto, outros parâmetros para a cons-
tituição de identidades pessoais”. Atualmente, é possível perceber
que a sociedade vive em função da midiatização de suas vidas, seja
no fato de fazer um check-in on-line, seja ao fotografar e publicar
suas refeições diárias. Os dispositivos que possibilitam o processo
de midiatização estão mais disponíveis do que nunca, com novos
preços, tamanhos e modelos para qualquer pessoa poder saciar sua
vontade.
O bios midiático comparece tensionando o discurso redentor
da ideologia comunicacional impulsionada pela mercadoria cultu-
ral que se estabelece e coincide, em termos econômicos, com a ex-
pansão do capital em sua fase pós-industrial e tecnológica do início
do século XXI.
Transitando pela obra de Eugênio Trivinho (2009), nota-se o
emprego do conceito de cibercultura é usado, na maioria das vezes,
para nomear o elo causal sine qua non, um encadeamento histórico-
28
A SER VIDÃO TECNOLÓGICA O ENCANTAMENTO DA MÍDIA
NA ERA CIBERCULTURAL

-cultural de emergência e ascensão da forma característica da pós-


-modernidade que passa a funcionar como um diagnóstico de épo-
ca, um diagnóstico do nosso tempo:

Atmosfera material, simbólica e imaginária típica do capitalismo


pós-industrial em sua fase comunicacional avançada, a cibercultu-
ra nomeia o presente: transnacional, põe-se partout, desdobra-se
em ritmo vertiginoso, ramifica-se sem controle e se complexiza
sem possibilidade de reversão sinalização que se põe para além
de qualquer vínculo exclusivo com o cyberspace – suas injunções
contextuais, seus processos internos, suas potencialidades –, antes
dizendo respeito à matriz virtual de dispositivos comunicacionais
e às mudanças direta ou indiretamente derivadas de sua inserção
em diferentes setores da vida humana (TRIVINHO, 2009, p. 15).

No contrapelo à atmosfera de submissão aos discursos hege-


mônicos que assentam no imaginário tecnológico digital a espe-
rança de uma interação social livre, igualitária, emancipadora e po-
tencializadora do desenvolvimento humano, a hipótese principal
desta comunicação é que a sociabilidade digital religiosa concebe
uma midiatização do campo religioso umbilicalmente relacionado
à indústria cultural contemporânea regida pela lógica do mercado,
consumo e espetáculo. Esse é o olhar que prevalece em nossa refle-
xão acerca do sagrado nas redes virtuais e da experiência religiosa
na era das conexões entre o midiático e o religioso. A migração das
experiências religiosas para o ciberespaço funciona como uma ser-
vidão voluntária ao tecnopólio engendrado no ventre do capitalis-
mo pós-industrial.

29
JORGE MIKLOS

Flagelo ou Recompensa?

O advento da internet, a integração das igrejas e das práticas


religiosas no ciberespaço suscitaram o interesse de alguns pesquisa-
dores a investigar o fenômeno. Em que medida e sob quais procedi-
mentos a comunicação virtual relaciona-se com as atuais transfor-
mações no campo das experiências religiosas?
Moisés Sbardelotto (2012) foi um dos pioneiros a ofertar ao
campo que reflete a respeito interseção entre mídia e religião, uma
valiosa reflexão acerca do fenômeno da apropriação da Internet pe-
las instituições religiosas e da vivência de experiências religiosas nos
rituais on line que impulsionam, segundo ele: “modulações, ou seja,
novas temporalidades, novas espacialidades, novas materialidades,
novas discursividades e novas ritualidades”, marcadas por um pro-
cesso daquilo que o Sbardelotto denomina de “midiamorfose da fé”
(2012, p. 15).
Carlos Eduardo Souza Aguiar também se ocupou em compre-
ender o trânsito religioso para o virtual e denominou esse fenômeno
de Sacralidade Digital. Para ele:

o advento das novas tecnologias inaugura uma relação digital com


o sagrado, afinal, defende-se, fundamentalmente, que há entre o
homem e o sagrado uma relação comunicativa, portanto, à medida
que o suporte comunicativo dessa relação se transforma, se percebe
uma mudança também no modo de experimentar o sagrado. (…)
partimos do pressuposto de que as tecnologias comunicativas não
são meros instrumentos, e sim, que há uma relação íntima e simbi-
ótica entre o paradigma tecnológico e comunicativo de uma dada
época e as transformações sociais, inclusive no âmbito da religiosi-
dade (AGUIAR, 2014, p. 45).

30
A SER VIDÃO TECNOLÓGICA O ENCANTAMENTO DA MÍDIA
NA ERA CIBERCULTURAL

Diferente de Sbardelotto, que se ocupa exclusivamente do cam-


po católico (que parece ser, para ele, sinônimo exclusivo de religião),
a investigação de Aguiar busca contrastar, a partir de um estudo
exploratório participativo, manifestações monoteístas (Catolicismo,
Protestantismo, Islamismo e Judaísmo) e politeístas (Movimento
Nova Era, Religiosidades dos Orixás e Novos Politeísmos) do sagra-
do nas redes digitais
É importante frisar o mérito na investigação de Aguiar que
rompe com o cristocentrismo da esmagadora maioria das investi-
gações entre mídia e religião. Cabe aqui lembrar a frase de Joseph
Campbell que incansavelmente advertia que “mito é a religião do
outro” (2002, p. 37).
A imensa maioria dos estudos na área da Comunicação sobre
mídia e religião no Brasil tem desprezado solenemente as tradições
afro-brasileiras. Entretanto, exceções a esse silêncio devem ser men-
cionadas, trata-se das pesquisas: “Imagens da intolerância na mídia:
apropriação dos elementos da cultura negra pela igreja universal do
reino de Deus na configuração dos programas religiosos da TV Re-
cord” de Carla Maria Osório de Aguiar e “Ciberespaço e Visibilidade
Midiática: um estudo sobre a visibilidade do Candomblé na Internet”
de Wirena Katy Bueno de Freitas, ambas dissertações de mestrado,
ainda não publicadas, orientadas por Malena Segura Contrera da
Universidade Paulista.
Carla Aguiar identificou as estratégias de comunicação utili-
zadas na apropriação e recontextualização dos elementos culturais
das religiões afro-brasileiras pela IURD por meio dos programas
de televisão. Na apropriação do universo sagrado das religiões de
matriz africana pela programação religiosa da IURD, exibida pela
TV Record e afiliadas, ocorre - na configuração da linguagem desses
programas – uma demonização dos elementos constituintes dessas
religiões, gerando uma mensagem de intolerância religiosa.

31
JORGE MIKLOS

O trabalho de Freitas conclui que o ambiente do ciberespa-


ço oferece aos integrantes um empoderamento social gradativo e,
ao mesmo tempo, ambivalente na medida em que a integração ao
ciberespaço promove maior potencial de autorrepresentação, por
um lado, mas por outro, apresenta o risco de distorção da tradição
espiritual.
Há também o trabalho, já publicado, de Ricardo Oliveira de
Freitas denominado “Web Terreiros D’Além-Mar: ciberinformatiza-
ção e transnacionalização das religiões afro-brasileiras.” Para Ricardo
Freitas, em contraponto com o trabalho de Wirena Freitas, a apro-
priação do ciberespaço pelas tradições afro-brasileiras:

cria uma nova expressão religiosa. Não mais afro-brasileira, mas


afro-braso-diaspórica (ou universal), que revela a construção de
uma nova rede de sociabilidade articulada entre gringos (ameri-
canos) e minorias (brasileiros, cubanos, nigerianos, haitianos...),
religiões afro-brasileiras e religiões afro-derivadas (candomblé,
umbanda, lukumi, santeria, palo, vodu, ifá...), centro versus pe-
riferia, global versus local, identidade e mídia, tradição e moder-
nidade, novas tecnologias de comunicação e transnacionalismos
(2014, p. 23).

Sbardelotto (2012), Carlos Aguiar (2014) e Ricardo Freitas


(2014) dedicam-se a estudar as especificidades dos meios técnicos
digitais na constituição de formas particulares de manifestação do
fenômeno religioso. Investigam as formas de elaboração e aciona-
mento dos vínculos religiosos, pensados também em seu sentido
de um “religare” na formação desses vínculos – a partir de diversos
panos de fundo – no ciberespaço, tensionado com o espaço físico,
ou “não-virtual”.
Apesar de pertinentes e relevantes, as análises de Sbardelotto,
Aguiar e Freitas são complacentes com o fenômeno da ciber-reli-
gião. Assumem a ocupação do ciberespaço e a virtualização da ex-

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A SER VIDÃO TECNOLÓGICA O ENCANTAMENTO DA MÍDIA
NA ERA CIBERCULTURAL

periência religiosa como o lugar de novas formas culturais, caindo


na cilada epistemológica denunciada por Thompson (2014) e Sodré
(2006) que veem no ciberespaço uma estrutura técnica fora da mol-
dura histórica que a produziu.
Em geral, essas reflexões sobre o ciberespaço apresentam abor-
dagens e concepções herméticas, enigmáticas e de caráter fenomeno-
lógico-pragmatista. Compreendem o ciberespaço como um tempo
e um espaço de relações comportamentalistas, um lugar não-lugar,
onde experiências igualitárias, intersubjetivas – as mais inusitadas
– ocorreriam, forcejando os contornos do futuro da humanidade.
Por meio de idealizações, esquadrinham sua concepção de
mundo em todas as épocas históricas, mantendo um olhar seletivo
que mutila as totalidades societárias, delas retendo apenas o que
confirma essa concepção. O ciberespaço é tido como uma entidade
cultural e a virtualização como o prolongamento das infinitas possi-
bilidades existenciais humanas.
Essas reflexões pretendem restringir o ser humano a um ser
comunicativo e criador de códigos e linguagens de toda ordem,
circunscrevendo-o às suas representações simbólicas. Essas repre-
sentações são esvaziadas do conteúdo das atividades primordiais
necessárias à produção e reprodução material dos homens.
As reflexões acerca da midiatização do campo religioso descon-
sideram dois pontos fundamentais: primeiro, que essa religião que
migra sistematicamente e euforicamente para o ciberespaço é a reli-
gião atravessada pela lógica do capital, pelo ethos do consumo, pelo
reencantamento do mundo por meio do culto à tecnologia e pela
gramática do espetáculo regida pela cultura de massas; segundo,
que o ciberespaço não é uma entidade neutra, mas uma estrutura
tecnológica comunicacional concebida para promover a aceleração
do fluxo do capital em escala mundial. O ciberespaço não escapa às
ambiguidades e ambivalências. Não podemos esperar purezas da
rede sendo ela constituída e de expansão geográfica e concentração

33
JORGE MIKLOS

de capital das grandes corporações midiáticas. As megacorporações


(Google, Facebook, Twiter, Yahoo – só para citar as mais conheci-
das) controlam os sites mais populares e, com isso, atraem anúncios
e patrocínios.
Muitas das concepções sobre a cultura digital e do ciberespa-
ço estão maquiadas pela lógica socioculturalista comportamental e
fenomênica que escamoteia o fato de que o advento e a apreensão
do ciberespaço são necessários para a reprodução do capital em sua
forma financeira e mundializada.
Reprodução que exige a naturalização de alguns aspectos das
necessidades do capital em seu estágio atual (armazenamento, pro-
cessamento e transmissão de informações em tempo real) e se ca-
racteriza, entre outras formas, pela tentativa de reduzir idealmente o
homem a um ser informacional comunicativo, a um ser que, desde
sempre, natural e exclusivamente, cria códigos e se comunica atra-
vés de linguagens que conteriam informações a serem processadas
e reprocessadas.
Optamos por ir de encontro a ideias como ‘sociologia do amor’,
‘reunificação da humanidade’, ‘inteligência coletiva’, ‘comunicação
todos – todos’, ‘ciberespaço como o lugar de novas formas culturais’.
Essas leituras, muito embora legítimas, são propostas por intelectu-
ais da época dos mercados e das mercadorias.
Para compreender o universo da ciber-religião, partimos da
premissa que a migração para o mundo virtual implica a integra-
ção à esfera hegemônica da reprodução do capital, novos ou velhos
paradigmas atendem às demandas de lucratividade e de exploração
do trabalho e são essas últimas que impõem, através de complexas
mediações, os paradigmas analíticos dominantes. Em outras pala-
vras, integrar-se voluntária ou involuntariamente ao ciberespaço é
integrar-se à lógica do capital mundializado que implica uma rendi-
ção do humano à tecnologia digital e seu espectro de virtualização,
o “suspiro da criatura oprimida pós-moderna”.

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A SER VIDÃO TECNOLÓGICA O ENCANTAMENTO DA MÍDIA
NA ERA CIBERCULTURAL

Günther Anders (2011) apontou que nos tornamos cegos dian-


te do apocalipse que protagonizamos. A servidão tecnológica da
humanidade é coerente com o surgimento da cibercultura, da ci-
ber-religião e da virtualização das práticas religiosas, posto que ela
evidencia melhor que nenhum outro dispositivo, o caráter obsoleto
da humanidade. Se o ícone maior dos nossos tempos, a Internet,
tornou-se também sinônimo de fé, a conexão virtual substituiu o
religare. Vivemos o reencantamento do mundo por meio da mídia
promovendo também o encantamento da mídia e do mercado.

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38
A SER VIDÃO TECNOLÓGICA O ENCANTAMENTO DA MÍDIA
NA ERA CIBERCULTURAL

NOTAS

1 O censo de 2010 indicou que o catolicismo ainda é preponderante no Bra-


sil (64,63% da população total), mas perde a cada década a sua centralidade,
passando a ser a religião da maioria dos brasileiros, mas não mais a religião
dos brasileiros (1980 - 89,0%; 1991 - 83,30%; 2000 - 73,90%). Paralelamente ao
decréscimo do catolicismo, assiste-se à expansão do campo evangélico que sal-
tou de 6,6% da população em 1980 para 22,2% em 2010; em termos absolutos,
passou de 7.886 milhões em 1980 para 42.275 em 2010. Um crescimento perto
de 540%. Além disso, o censo revelou também o crescimento da afirmação
dos sem-religião: 15,3% milhões de pessoas, ou seja, 8% da população geral. O
número dos que se declaram “agnósticos” ou “ateus” envolve 124,4 mil, ou seja,
0,07% e 615 mil, ou seja, 0,32% de pessoas. Notou-se também um crescimento
do espiritismo kardecista (de 0,70% em 1980 para 2,00% em 2010), e das re-
ligiões afro-brasileiras (de 0.60% em 1980 para 0,30% em 2010). Em poucas
palavras, observa-se uma cultura religiosa cada vez mais errante e plural.
Fonte: dados extraídos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Disponível em <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/pdf/guia_
do_censo2010>. Acesso em: 27 out 2015.
2 Ao que tudo indica, o termo “glocal” foi evocado pela primeira vez, criticamen-
te, em ciências humanas, por Paul Virilio (1995). Trata-se de um neologismo
formado pela primeira sílaba do termo “global” e pela sílaba desinencial do
termo “local”. Tal fusão no nível, do significante tem, obviamente, profundas
consequências no nível semântico. Glocal não prevê o isolamento da dimensão
do global em relação à dimensão do local, e vice-versa; não pressupõe, portan-
to, nem globalização ou globalismo, nem localização ou localismo, desatados.
A aglutinação significante e a mescla de sentidos que marcam o glocal fazem
dele invenção tecnológica de imbricação de processos contrastantes, sem que,
no entanto, se desfigure a sua condição de terceira natureza, de terceira via, não
redutível nem a um nem a outro processo implicado. (Trivinho, 2007, p. 242).

39
O SAGRADO COLONIZADO:
RELIGIÕES DE MERCADO E O
MERCADO DAS RELIGIÕES

Jorge Miklos
Ronivaldo Moreira de Souza

Introdução

Um dos desafios da investigação a respeito das sociedades con-


temporâneas é a compreensão da interface entre o comunicacional e
o religioso articulados a outros sistemas culturais híbridos que mol-
dam a convivência entre seres humanos, instituições, comunidades
e fluxos globais de consumo e tecnologia.
No atual contexto de interações entre os vários sistemas cultu-
rais, as fronteiras entre o comunicacional e o religioso encontram-
-se, cada vez mais, borradas e indistintas. Novos contornos socio-
culturais propõem fenômenos sociocomunicacionais que instigam
o campo científico da comunicação a se reinventar heuristicamente,
o que implica o deslocamento epistemológico em direção ao para-
digma da complexidade.
Consideramos que não é possível pensar a imbricação entre o
comunicacional e o religioso sem levar em consideração o ambiente
sociocultural no qual esse fenômeno ocorre.

41
JORGE MIKLOS E RONIVALDO MOREIRA DE SOUZA

Nesse sentido, convém escutar o que postula Thompson (2014)


que adverte de que não podemos pensar a mídia fora da moldura
histórica que a produziu:

não se pode obscurecer que o desenvolvimento dos meios de co-


municação é uma reelaboração do caráter simbólico da vida [...]. A
comunicação mediada é sempre um fenômeno social contextuali-
zando e sempre implantado em contextos sociais que se estruturam
de diversas maneiras e que, produzem impacto na comunicação
que ocorre (THOMPSON, 2014, p. 37).

O que Thompson postula é que não basta fixar o olhar no con-


teúdo simbólico das mensagens da mídia, ignorando a complexa
mobilização das condições sociais que subjazem à circulação des-
sas mensagens, também é insuficiente descrever como funciona o
dispositivo.
Nesse sentido, a premissa que norteia esta reflexão pressupõe
que o fenômeno da midiatização da religião não é isolado da ma-
triz histórica determinante. A proposta deste trabalho é apresentar
de forma sucinta as características da sociedade contemporânea.
O plano é apresentar os valores sociais, as angústias, os problemas
e os desafios sociais e destacar como esse cenário se reflete sobre a
religião contemporânea.

Sociedade, cultura e consumo

A natureza dicotômica da mercadoria foi percebida por Marx


logo no início do século XIX. Mesmo quando o pensamento econô-
mico ainda concebia a mercadoria como um objeto cujas proprie-
dades visavam satisfazer necessidades de ordem natural, Marx já
apontava para a dimensão imaterial da mercadoria, seu campo da
fantasia. Para o autor, o primeiro valor da mercadoria emana da sua

42
O SAGRADO COLONIZADO: RELIGIÕES DE MERCADO E
O MERCADO DAS RELIGIÕES

utilidade e é inerente à própria constituição física do objeto (ferro,


trigo, etc). Contudo, além desse valor de uso, a mercadoria possui
um valor de troca que se origina do trabalho socialmente necessário
para se produzir a mercadoria (MARX, 1996, p.165-166).
Marx pensou essa relação dentro dos limites da visão econô-
mica e sob o prisma de uma concepção teórica de superestrutura
versus infraestrutura, classe dominante versus classe dominada. Sob
essa ótica, a parte imaterial da mercadoria surge como produto ide-
ológico na superestrutura e é disseminada na infraestrutura através
da arte, filosofia e religião, como uma espécie de justificativa do real.
Em sua tentativa de tirar o véu que encobria o real e romper com
essa ideologia de domínio sobre a classe trabalhadora, Marx se li-
mitou a retomar a parte imaterial da mercadoria apenas quando
necessário para reforçar seu argumento do real. Em outros termos,
o falso era retomado sempre que se tinha necessidade de reforçar o
verdadeiro em sua concepção teórica.
A principal fragilidade da teoria marxista – e aqui admitimos
que Marx não tinha como objetivo central explicar as relações de
consumo, mas sim, as relações de produção – é que essa parte ima-
terial da mercadoria era concebida num vácuo espacial entre a supe-
restrutura e a infraestrutura. O consumo parece ficar deslocado no
tempo e no espaço e a dimensão fantástica da mercadoria é pensada
apenas como instrumento ideológico de dominação, e não como
produto para consumo.
É exatamente nesse ponto que Baudrillard é enfático. A base
que sustenta toda a sua construção teórica está na definição do lugar
do consumo:

A propósito, também podemos já definir o lugar do consumo: é a


vida cotidiana. Esta não é apenas a soma dos fatos e gestos diários,
a dimensão da banalidade e da repetição; é um sistema de interpre-
tação. A cotidianidade constitui a dissociação de uma práxis total

43
JORGE MIKLOS E RONIVALDO MOREIRA DE SOUZA

numa esfera transcendente, autônoma e abstrata (do político, do


social e cultural) e na esfera imanente, fechada e abstrata do “priva-
do” (BAUDRILLARD, 2008, p. 26 – Grifos do autor).

Essa premissa fundante no trabalho de Baudrillard nos leva a


três conclusões: 1) É no cotidiano que os objetos de consumo adqui-
rem sentidos, criando um sistema de interpretação e atribuição de
significados; 2) É no cotidiano que ocorre a constante passagem do
social para o privado e do privado para o social; 3) É no cotidiano
que o abstrato e o concreto, o real e o simulacro se tornam comple-
mentares entre si.
A vida cotidiana se alimenta das imagens e signos “multiplica-
dos da vertigem da realidade e da história” (BAUDRILLARD, 2008,
p. 27). É esse simulacro do mundo que torna a cotidianidade supor-
tável. Abrigamo-nos sob os signos na recusa do real. Em outros ter-
mos, consumimos signos atestados pela caução do real, já que “a
imagem, o signo, a mensagem, tudo o que ‘consumimos’, é a própria
tranquilidade selada pela distância ao mundo e que ilude, mais do
que compromete, a alusão violenta ao real” (BAUDRILLARD, 2008,
p. 26).
A sociedade de consumo não organiza a vida em função da
sobrevivência, mas sim, em função do sentido que dão à vida.
Desta forma, o valor do “ser” sobrepuja o valor econômico (BAU-
DRILLARD, 2008, p. 41). As ponderações do autor nos conduzem
à conclusão de que essa busca pelo sentido do ser cria um espaço
semântico entre o social e o individual, o público e o privado. É nes-
sa região fronteiriça que os objetos assumem a condição de signos.
O signo é formado pelo significante (a parte física e material)
e o significado (a parte conceitual e imaterial). Se em um primeiro
momento a teoria de Baudrillard é relevante por definir o lugar do
consumo, em um segundo momento, ela se destaca por definir o que
é consumido nos objetos: “nunca se consome o objeto em si (no seu

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O SAGRADO COLONIZADO: RELIGIÕES DE MERCADO E
O MERCADO DAS RELIGIÕES

valor de uso) – os objetos (no sentido lato) manipulam-se sempre


como signos que distinguem o indivíduo, quer filiando-o no pró-
prio grupo tomado como referência ideal quer demarcando-o do
respectivo grupo” (BAUDRILLARD, 2008, p.66).
Percebe-se que nessa proposta, Baudrillard consegue aglutinar
em uma só teoria a dimensão competitiva, e o jogo de classifica-
ção e diferenciação já apreendido pelos teóricos que o antecederam.
Sua proposta teórica consiste em analisar o processo de consumo
sob dois aspectos fundamentais: 1) Como processo de significação
e comunicação; 2) Como processo de classificação e diferenciação
social.
A antiga base de análise que via a mercadoria apenas como
tendo uma função (satisfazer necessidades através de seu valor de
uso) é insuficiente. Agora se faz necessário ver a mercadoria a partir
do seu funcionamento. Em outros termos, a mercadoria que serve
como utensílio funciona como elemento de conforto, prestígio, sta-
tus, etc. Nessa lógica dos signos, “os objetos deixam de estar ligados
a uma função ou necessidade definida, precisamente porque corres-
pondem a outra coisa, quer ela seja a lógica social quer a lógica do
desejo” (BAUDRILLARD, 2008, p.89).
Nessa proposta, percebe-se que os significantes (os materiais
que nos remetem aos objetos) se alternam a todo tempo. Já os sig-
nificados (o mundo imaginário e conceitual atribuído ao objeto)
pouco se alteram, pois, correspondem aos anseios e desejos crista-
lizados no imaginário coletivo. Sendo assim, objetos diferentes se
revezam como significantes propondo um mesmo significado. Em
outros termos, o conforto pode pertencer ao sofá na sala de estar e
ao automóvel em uma estrada acidentada; a saúde pode pertencer à
nova droga farmacêutica descoberta graças a mais inovadora tecno-
logia e ao alimento orgânico que se gaba de ser isento de tudo isto.
Em todo caso o que de fato se consome, para além das propriedades

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JORGE MIKLOS E RONIVALDO MOREIRA DE SOUZA

físicas do objeto, são os seus significados e a sua capacidade de dar


sentido ao ser.

A cultura e os significados do objeto

Não se pode pensar no consumo sem abordar a questão dos


desejos e necessidades que nos motivam em relação aos objetos dis-
postos para serem consumidos. Porém, tentaremos encontrar um
ponto de equilíbrio em nossa perspectiva que não seja nem apoca-
líptico, nem ingenuamente romântico. Para isso, ancoraremos dese-
jos e necessidades dentro das práticas sociais.
Don Slater adota uma perspectiva sobre consumo que muito
nos auxilia nessa tentativa, quando afirma que o “consumo é uma
questão de como os sujeitos humanos e sociais com necessidades se
relacionam com as coisas do mundo que podem satisfazê-las (bens,
serviços e experiências materiais e simbólicos)” (SLATER, 2002,
p.102). Isto nos possibilita falar de relações objetificadas, já que “ao
atuar sobre o mundo, os indivíduos e as sociedades o recriam em
relação às suas necessidades e projetos. Suas necessidades – sua sub-
jetividade, os significados que atribuem ao mundo – são ‘objetiva-
dos’, assumem forma material, nos objetos” (SLATER, 2002, p.103).
Portanto, o mundo dos objetos revela a subjetividade humana na
recriação do mundo a partir da visão que se tem dele (SLATER,
2002, p.103).
Porém, essa relação entre o sujeito e o objeto que culmina em
subjetivação daquilo que é objeto, e objetivação daquilo que é subje-
tivo, revela um processo cuja origem se dá nas práticas sociais:

Os objetos são assimilados na experiência subjetiva dos indivíduos


– ou da coletividade, sob a forma de cultura e produção – sendo
apropriados às finalidades humanas. Selecionamos, usamos, fabri-

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O SAGRADO COLONIZADO: RELIGIÕES DE MERCADO E
O MERCADO DAS RELIGIÕES

camos, possuímos e transformamos os objetos de acordo com me-


tas, objetivos, desejos e necessidades postulados pelos sujeitos hu-
manos. De certa forma, esse talvez seja o único significado claro do
consumo: vemos o mundo e o assimilamos tanto intelectualmente
quanto na prática à luz de projetos e desejos subjetivos (SLATER,
2002, p.102).

Essa visão faz os postulados teóricos de Baudrillard (2008)


avançarem em sua metáfora linguística dos objetos como signos.
Apesar de sua categórica percepção de que o consumo se dá no
cotidiano, Baudrillard se preocupou quase que exclusivamente em
responder à uma pergunta que surgiu de seu postulado: o que os
objetos significam?
Porém, os postulados de Slater nos levam a perguntar duas
questões mais intrigantes: “por que e como os objetos significam?”.
Primeiramente, essa questão nos desperta para a realidade de que,
como signos, os sentidos dos objetos são atribuídos pelos sujeitos, já
que o significado está sempre no outro. O que queremos deixar claro
é que essa relação não pode ser investigada reduzindo a questão do
consumo a “sujeitos que usam objetos”.
É nesse ponto que Slater avança ao perceber que os significados
dos objetos são culturalmente e socialmente constituídos. O mundo
das coisas “é realmente a cultura em sua forma objetiva, é a forma
que os seres humanos deram ao mundo através de suas práticas
mentais e materiais; ao mesmo tempo, as próprias necessidades
humanas evoluem e tomam forma através dos tipos de coisas de que
dispõem” (SLATER, 2002, p.104).
Tanto as necessidades, quanto os objetos e as práticas de con-
sumo são constituídos pela cultura, pois, a “cultura representa o
fato de que toda vida social é significativa e que as necessidades
e usos só podem surgir no interior de um determinado modo de
vida” (SLATER, 2002, p.132). Assim como no universo dos signos,
é preciso reconhecer que “as coisas não tem significados inerentes:
47
JORGE MIKLOS E RONIVALDO MOREIRA DE SOUZA

os significados e as coisas são organizados socialmente” (SLATER,


2002, p.137). Pode-se concluir, portanto, que todo consumo é um
ato interpretativo e de atribuição de sentidos constituídos dentro da
esfera cultural e social.

A individualização do consumo

Lipovetsky não nega que o consumo é um ato social e cultural,


porém, enfatiza que as motivações para o consumo estão cada vez
mais intimizadas. O objeto e seu proprietário travam uma relação
muito mais individualizada e personalizada.
As fases anteriores do capitalismo de consumo concebiam um
consumidor limitado pelas coerções sociais de sua posição, porém,
na fase atual o que se vê é um “hiperconsumidor à espreita de expe-
riências emocionais e de maior bem-estar, de qualidade de vida e de
saúde, de marcas e de autenticidade, de imediatismo e de comuni-
cação (LIPOVETSKY, 2007, p.14-15).
O objeto revestido de subjetividade torna-se tão singular e per-
sonalizado quanto a própria subjetividade de seu proprietário. Em
outros termos, o objeto funciona como um espelho perfeito que não
emite imagens reais, mas, aquelas desejadas, ou seja, “os objetos são
investidos de tudo aquilo que não pôde sê-lo na relação humana
[...]. Sem dúvida [...] neles são abolidas muitas neuroses, anuladas
muitas tensões e aflições, é isto que lhes dá uma ‘alma’, é isto que os
torna ‘nossos’” (BAUDRILLARD, 2012, p.98). Percebe-se, portanto,
que na fase atual do consumo

as motivações privadas superam muito as finalidades distintivas


[…]. Os bens mercantis funcionavam tendencialmente como sím-
bolos de status, agora eles aparecem cada vez mais como serviços à
pessoa. Das coisas, esperamos menos que nos classifique em rela-

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O SAGRADO COLONIZADO: RELIGIÕES DE MERCADO E
O MERCADO DAS RELIGIÕES

ção aos outros e mais que nos permitam ser mais independentes e
mais móveis, sentir sensações, viver experiências, melhorar nossa
qualidade de vida […]. O consumo para si suplantou o consumo
para o outro (LIPOVETSKY, 2007, p.41-42).

Sem dúvidas, a natureza social do consumo permanece, bem


como sua natureza simbólica, porém, nessa fase opera sob um novo
imaginário “associado ao poder sobre si, ao controle individual das
condições de vida [...]. Poder construir de maneira individualizada
seu modo de vida e seu emprego do tempo” (LIPOVETSKY, 2007,
p.52).

Midiatização, consumo e religião


Envolvida como está no processo de racionalização e perda
de sentido, a sociedade contemporânea experimenta uma nova at-
mosfera, na qual os meios de comunicação, no mundo midiatizado,
convergem em novas formas de sociabilidade que, quando estendi-
das ao campo das vivências religiosas, nos leva a deparar com uma
considerável alternância na relação com o espaço “sagrado”, que por
intermédio da mídia, pela lógica do tempo presente, propõe a pre-
dominância do consumo e do estímulo a emoções, dando à vivência
religiosa um novo caráter, que ultrapassa seu sentido primo de co-
nexão com o sagrado, passando a ocupar espaços de entretenimento
e espetáculo, embrionados na midiatização das religiões que, ten-
denciosamente, voltam-se para a lógica de mercado, corroborando
com uma alternação de consciência, hábito.
Por esse caminho, alicerçados nas reflexões de Muniz Sodré,
para melhor apreender esses problemas e fragilidades, amparamo-
-nos em seu conceito de Ethos Midiatizado – apreendendo que o
ethos expressa um modo de ser, e desse modo, este conceito nos
leva a compreender as funcionalidades e impactos do mundo mi-

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JORGE MIKLOS E RONIVALDO MOREIRA DE SOUZA

diatizado nos cenários contemporâneos e suas inflexões junto às


esferas: ético, político, econômico e social, particularmente, naque-
les localizados nesse estudo a partir dos processos comunicacionais
na religiosidade midiatizada, que influenciam impreterivelmente as
esferas humanas. Por assim ser, nos vem a indagação: a midiatização
poderia ser designada como uma categoria explicativa da sociedade
hodierna?
Faxina e Gomes (2016, p. 50) assumem a midiatização como
um novo modo de ser no mundo, e que se tende a superar a me-
diação como categoria para se pensar os meios hoje, mesmo sendo
esse mais que um elemento que faz ligação entre a realidade e o
indivíduo, via mídia. Sendo essa a forma como o receptor se relacio-
na com a mídia e o modo como ele justifica e tematiza essa mesma
relação, estruturada como um processo social mais complexo, traz
no seu bojo mecanismos da produção de sentido social.
Por essa conformação, com a evolução dos sistemas e das redes
de comunicação, em seus distintos estágios de significativas trans-
formações, houve implicações no modo de vida do ser humano e
em suas relações, como no trabalho, no lazer e nas próprias formas
de socialização, imbricadas pela alternância da relação entre o ser
humano e a mídia, em que a “formalização da vida” passa a ser regi-
da a partir dos meios de comunicação modernos, a priori pela orali-
dade e escrita – condições em que as informações eram meramente
representadas e apresentadas ao receptor com total isenção de sua
performance; mais tarde pelas tecnologias de som e imagem, com a
incorporação do rádio e da TV nos processos comunicacionais, de
modo que com esses aparatos o receptor via simulações, passando a
abrigar o mundo em sua fluidez, bem como os recursos que são re-
presentados e alicerçados por um tempo vivo , presentemente, pelos
novos artefatos de mídia.
Nesse sentido, o quarto âmbito existencial – bios de mercado,
configurado pela mídia moderna, que no tempo presente, está a re-

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O SAGRADO COLONIZADO: RELIGIÕES DE MERCADO E
O MERCADO DAS RELIGIÕES

boque do comércio e da tecnologia e busca uma integração social,


todavia, não aquela aristotélica, voltada para o sentido da eudai-
monia, mas sim para a integração humana entreposta pela relação
capital/consumo, implicando num novo tipo de relacionamento,
mediado por uma nova tecnologia perceptiva e mental que altera
as formas tradicionais de socialização, indicando Sodré (2013) que:

O bios midiático implica de fato uma refiguração imaginosa da


vida tradicional pela “narrativa” do mercado capitalista. Frente a
ele, é possível pensar no saber comunicacional como uma redescri-
ção da realidade tradicional pelo pensamento que incorpore a nova
ordem tecnológica, mas refigurando a experiência do indivíduo em
seu relacionamento com o mundo virtual, experimentando por sua
vez uma crítica da existência e buscando um sentido eticopolítico
para o empenho ativo de reorganização do nosso estar no mundo
(SODRÉ, 2013, p. 255).

Por essa reorganização do nosso estar no mundo, na perspectiva


de mídia, enquanto reguladora das relações sociais, Sodré (2013) vai
indicar uma alternância sistêmica, que incide diretamente nas es-
feras da cultura e do comportamento humano, no que concerne ao
uso/consumo do espaço midiatizado, denominado pelo autor como
ethos contemporâneo da humanidade.

Religião do Consumo
A maioria das igrejas cristãs (católicas e evangélicas) nos últi-
mos anos, tem buscado se adaptar às mudanças da sociedade, de-
correntes do deslocamento do formato religioso tradicional para
o mediático. O processo de secularização não resultou no fim da
experiência religiosa, mas modificou essa experiência, dando a ela
um enfoque mais mediatizado.

51
JORGE MIKLOS E RONIVALDO MOREIRA DE SOUZA

Os desafios da secularização, como a inversão dos valores con-


siderados tradicionais, no qual antes existia uma busca pelo des-
conhecido, pelas coisas do alto, por algo que conecte as pessoas a
Deus, do experimentar o religare 1, nos tempos modernos encontra-
-se o inverso, o afastamento por este modelo.
Miklos (2012) questiona este processo de mudança sofrido na
experiência religiosa:

Desapareceu a religião? O religare foi destruído? De forma alguma.


Eles permanecem e, frequentemente, exibem uma vitalidade que
se julgava extinta. Porém, no mundo desencantado, os fenômenos
religiosos se alteram. Nas sociedades pré-modernas, o religare era
parte integrante de cada um, da mesma maneira como o sexo, a cor
da pele, os membros, a linguagem. Na modernidade desencantada,
fruto do capitalismo e impulsionada pelo pensamento iluminista,
o mundo religioso foi sendo fragmentado, afastando o homem da
natureza e da realidade cósmica, em que tudo passou a ser expli-
cado, medido, cotejado, relegando ao homem o desamparo, em sua
eterna busca pela realização mítica (MIKLOS, 2012, p. 26).

Para atrair “fiéis-clientes”, muitos grupos religiosos passam


a usar a lógica da economia de mercado. Nesse cenário, algumas
tradições religiosas transformam- se em empresas prestadoras de
serviços religiosos, agências de mercado, e sofrem até a pressão por
resultados que provocam a racionalização das estruturas que visam
minimizar gastos, tempo e dinheiro.
A inserção dessas igrejas, na lógica do mercado, implicou a mu-
dança no estilo pelo qual essas igrejas interpretam as concepções de
fé e a própria missão da Igreja. A religião como produto de consumo
vendido com a utilização do marketing coincide com o surgimen-
to da Teologia da Prosperidade. Nascida nas primeiras décadas do
século XX nos Estados Unidos da América, sua doutrina afirma,
a partir da interpretação de alguns textos bíblicos, que os que são

52
O SAGRADO COLONIZADO: RELIGIÕES DE MERCADO E
O MERCADO DAS RELIGIÕES

verdadeiramente fiéis a Deus, devem desfrutar de uma excelente


situação na área financeira e na saúde.
Nesse cenário, emerge a religião a la carte em que a questão
religiosa passa a ser opcional, de acordo com a preferência do in-
divíduo, uma vez que assistimos ao desaparecimento das “verdades
de fé” e ao crescimento da emergência da subjetividade para nor-
matizar a experiência religiosa. Esta passa a ser privatizada ofere-
cendo ao fiel-consumidor no mercado religioso bens como: cura de
doenças, realização no amor, sucesso dos negócios, cotidiano sem
angústias, superação de problemas e o sentido da vida. Trata-se da
Religião do consumo conforme a reflexão de Frei Betto:

Essa apropriação religiosa do mercado é evidente nos shopping-


-centers, tão bem criticados por José Saramago em A Caverna.
Quase todos possuem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas.
São os templos do deus mercado. Neles não se entra com qual-
quer traje, e sim com roupa de missa de domingo. Percorrem-se os
seus claustros marmorizados ao som do gregoriano pós-moderno,
aquela musiquinha de esperar dentista. Ali dentro tudo evoca o
paraíso: não há mendigos nem pivetes, pobreza ou miséria. Com
olhar devoto, o consumidor contempla as capelas que ostentam,
em ricos nichos, os veneráveis objetos de consumo, acolitados por
belas sacerdotisas. Quem pode pagar à vista, sente-se no céu; quem
recorre ao cheque especial ou ao crediário, no purgatório; quem
não dispõe de recurso, no inferno. Na saída, entretanto, todos se
irmanam na mesa “eucarística” do McDonald’s2 (BETO, 2016).

Esses fenômenos têm defendido a perda do valor sagrado dos


objetos religiosos nesse deslocamento dos espaços de produção e
consumo estritamente religiosos para um espaço público mais am-
plo de comercialização e consumo profano.
Essa leitura se baseia na ideia de que os objetos produzidos em
instâncias religiosas teriam uma determinada “aura” tradicional,

53
JORGE MIKLOS E RONIVALDO MOREIRA DE SOUZA

que teria se perdido com a adoção de regras e padrões mercadológi-


cos.
Essa manipulação mercantilista em torno da fé possui grande
aceitação e aprovação dos fiéis, que acreditam na promessa de que
sua compra é muito importante para resgatar vidas.
É notório o poder de persuasão da mídia e das igrejas para
influenciar pessoas, desprezando desta forma até mesmo a ética
religiosa. Observa-se, no entanto, que isso não fica tão claro aos
fiéis, que acompanham as programações religiosas.
Coordenando o sentimento que um fiel possui, as instituições
religiosas criam vínculo capaz de exploração devido à fraqueza do
outro. O fiel que se sente parte da instituição religiosa facilmente
será de alguma forma explorado ou persuadido em decorrência da
sua fé e quanto mais envolvido estiver neste processo, menos perce-
berá a persuasão. Para Bauman (2008), “a ‘síndrome consumista’ en-
volve velocidade, excesso e desperdício”, um consumidor envolvido
pelo modelo não visualiza esses excessos e se deixa ser conduzido
pelo processo cada dia mais.
A globalização criou uma nova religião: a religião do consumo
midiatizada. É pelo processo de evangelização mediatizada envol-
vido pelo espetáculo e pelos diversos formatos de apresentação dos
produtos produzidos para trazer conforto e fidelização de membros
religiosos, que se constrói a tendência de mercado das religiões.

Espiritualidade para consumo


Pecado mortal, inferno, sacrifício e renúncia são questões que
deixaram de compor o discurso religioso cristão. A religião cujo ob-
jetivo era preparar o indivíduo para o enfrentamento do sofrimento
e da morte, mudou sua ênfase atenuando o rigorismo e a culpabili-
zação. Agora, conforme constata Lipovetsky (2007, p.131), “as ideias

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O SAGRADO COLONIZADO: RELIGIÕES DE MERCADO E
O MERCADO DAS RELIGIÕES

de prazer e desejo são cada vez menos associadas à ‘tentação’, a ne-


cessidade de carregar a sua cruz na terra desapareceu”.
Essa primeira transformação desencadeou a segunda. A religião
cristã operava sob a lógica de uma relação direta entre o presente e
o eterno, a vida no mundo e a vida no paraíso, o agora e o porvir.
Cada ação do fiel nesse mundo era contabilizada, para o bem ou
para o mal, numa espécie de poupança a ser usufruída eternamente
no paraíso. Nessa lógica, a vida ascética, os sacrifícios e renúncias se
convertiam em galardões a serem recebidos no paraíso eterno onde
cessaria todo o sofrimento, o pecado e a morte. Sacrifícios momen-
tâneos por recompensas eternas.
Já na contemporaneidade, houve um deslocamento espaço-
-temporal na questão do paraíso. O conforto, a ausência de sofri-
mento e o senso de superação e conquistas ainda fazem parte do
paraíso, porém, esse paraíso já está disponível aqui e agora. A reli-
gião cristã passou a ocupar-se com um presente eterno sem espaço
temporal entre desejo e prazer, sacrifício e recompensa. Aliás, a pa-
lavra sacrifício nessa lógica poderia ser substituída facilmente, sem
prejuízos semânticos, pela palavra investimento. Em outros termos:

De uma religião centrada na salvação no além, o cristianismo se


transformou em uma religião a serviço da felicidade intramunda-
na, enfatizando os valores de solidariedade e de amor, a harmonia,
a paz interior, a realização total da pessoa [...]. O universo hiperbó-
lico do consumo não foi o túmulo da religião, mas o instrumento
de sua adaptação à civilização moderna da felicidade terrestre (LI-
POVETSKY, 2007, p.131).

Ao deixar de lado as questões existenciais eternas e voltar sua


atenção para o presente imediato, a religião abriu mão de boa par-
te da sua natureza transcendente. Ela ainda continua lidando com
questões do espírito, porém, o abismo entre o espiritual e o mate-

55
JORGE MIKLOS E RONIVALDO MOREIRA DE SOUZA

rial, o sagrado e profano, deixaram de existir. Para ser mais pontual,


onde antes existiam abismos, hoje existem pontes.
A doutrina de tradição cristã sustentava o discurso de um Deus
soberano, detentor de todos os planos e projetos. A relação entre a
divindade e o homem era a de um senhor com um servo. A divin-
dade estava entronizada e cabia ao ser humano servi-la com toda a
dedicação e exclusividade. Já na contemporaneidade, os papeis se
invertem: o homem passa a ser senhor de seu destino e encontra
uma divindade que passa a servi-lo, atendendo aos seus desejos e
levando-o à realização pessoal plena.
Sendo assim, para justificar sua utilidade na sociedade de hi-
perconsumo, a religião precisou reinventar-se. Atualmente, o verda-
deiro valor constitutivo da religião “não é mais a sua posição de ver-
dade absoluta, mas a virtude que lhe é atribuída de poder favorecer
o acesso a um estado superior de ser, a uma vida subjetiva melhor e
mais autêntica” (LIPOVETSKY, 2007, p.133).
A religião metamorfoseou-se em uma prestadora de serviços
cujo objetivo é levar o consumidor a encontrar-se consigo mesmo
na vida mundana.

Na sociedade de hiperconsumo, mesmo a espiritualidade é com-


prada e vendida [...]. Eis que a espiritualidade se tornou mercado
de massa, produto a ser comercializado, setor a ser gerido e promo-
vido [...]. Hoje, mesmo a espiritualidade funciona em auto-serviço,
na expressão das emoções e sentimentos, nas buscas animadas pela
preocupação com o maior bem-estar pessoal (LIPOVETSKY, 2007,
p.132-133).

Como se percebe mesmo a religião transforma-se em um pro-


duto de consumo individualizado e personalizado. E nesse mercado,
transformar o fiel/consumidor em um consumidor fiel constitui um
dos principais desafios às sobrevivências das mais variadas denomi-
nações evangélicas.

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O SAGRADO COLONIZADO: RELIGIÕES DE MERCADO E
O MERCADO DAS RELIGIÕES

Conclusão

Não é a tecnologia que possibilita a veiculação dos programas


religiosos, mas sim a adoção de uma cultura midiática atravessada
pela lógica do consumo. O uso dos meios de comunicação passa a
ser uma condição sine qua non de existência e manutenção de for-
mas específicas da ação religiosa na sociedade hodierna, que tendo
alterada sua forma de religiosidade, por sua vez, transforma a reli-
gião sob o signo da cultura do consumo.
Cultura do Consumo, ethos midiatizado, o sagrado colonizado.
Religião midiatizada pelo consumo. É pelo processo de evangeliza-
ção midiatizada envolvido pelo espetáculo e pelos diversos formatos
de apresentação dos produtos/serviços religiosos produzidos para
trazer conforto e fidelização dos membros que se constrói a tendên-
cia de religiões de mercado e mercado das religiões.
No prefácio do livro de Alberto Klein (2006), Imagens de culto
e imagens da mídia: interferências midiáticas no cenário religioso,
Malena Contrera provoca para a seguinte questão: será que a midia-
tização é um sintoma de que o sagrado ainda quer sobreviver? Para
Malena (2006, p.13): “esse novo ethos deixa entrever uma saudade
das aparições divinas, das hierofanias, hoje reduzidas ao jogo das
aparências que a mídia propõe”.
Essa provocação estimula investigar se há processos comuni-
cacionais religiosos que não se situam no eixo hegemônico da mi-
diatização e da lógica do capital. Se esses processos privilegiam as
estratégias de vinculação nos grupos sociais que legitimam o tem-
po compartilhado, os ritos da cultura, a produção comunicacional
colaborativa e solidária fundando imaginários radicais, ou seja, a
capacidade de produzir novas relações de esperança, de transforma-
ção social e da criação do novo. Se a resposta a essa indagação for
sim, então podemos considerar uma resposta afirmativa, o sagrado
quer sobreviver.

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JORGE MIKLOS E RONIVALDO MOREIRA DE SOUZA

Referências

BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 2008.

BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2012.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em


mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

BETTO. Frei. Religião do Consumo. Disponível em <http://www.cienciaefe.


org.br/jornal/arquivo/betto/relig.htm>. Acesso em 10/07/2016.

CONTRERA, Malena S. Por uma crítica da Mídia não desencantada. In:


Prefácio do livro KLEIN, Alberto. Imagens de culto e imagens da mídia:
interferências midiáticas no cenário religioso. Porto Alegre: Sulina, 2006.

GOMES, P. G.; FAXINA, E. Midiatização: um novo modo de ser em


sociedade. São Paulo: Paulinas 2016.

LIPOVETSKY, Gilles. A Felicidade Paradoxal: Ensaio sobre a sociedade de


hiperconsumo. São Paulo: Cia. Das Letras, 2007.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política – Livro I. São Paulo:


Nova Cultural. 1996.

MIKLOS, Jorge. Ciber-Religião: A construção de vínculos religiosos na


ciber-cultura. São Paulo: Ideias e Letras, 2012.

SLATER, Don. Cultura do consumo & modernidade. São Paulo: Nobel,


2002.

THOMPSON, John B. A Mídia e a Modernidade: Uma Teoria Social da


Mídia. Petrópolis, Vozes, 2014.

SODRÉ, Muniz. Antropológica do Espelho. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2013.

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O SAGRADO COLONIZADO: RELIGIÕES DE MERCADO E
O MERCADO DAS RELIGIÕES

NOTAS

1 A palavra religare é formada pelo prefixo re (outra vez, de novo) e o verbo ligare
(ligar, unir, vincular). O religare, nesse sentido, é a forma primeira de vínculo,
concebida não só como vínculo entre homens e seus deuses, mas especialmente
entre os próprios homens. Embora a religião ambicione ligar, unir os homens,
ela foi e é, muitas vezes, motivo de separação e guerras entre eles. A religião une
os iguais e é pretexto para separar os diferentes (MIKLOS, 2012, p. 18).
2 BETTO. Frei. Disponível em http://www.cienciaefe.org.br/jornal/arquivo/bet-
to/relig.htm. Acesso em 10/07/2016.

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SOB O SIGNO DE NARCISO: RELIGIÃO
MIDIATIZADA E A IDOLATRIA DO EU

Jorge Miklos

Tudo que voa se derrete no ar

As principais tradições espirituais tanto do oriente como do


ocidente alertavam que os seres humanos viviam sob a constate
ameaça da hybris. Para os gregos antigos, hybris era um termo que
designava tudo que passava da medida, que transbordava os limi-
tes. Segundo eles, tratava-se uma atitude exagerada, um descomedi-
mento. Dizia respeito a uma confiança excessiva em si mesmo, um
orgulho exagerado, um comportamento arrogante e vaidoso.
Joseph Campbell (2008) apontou que nas narrativas míticas,
com frequência, os personagens deparavam-se com tentações – o
estado de hybris, nas quais eles eram tomados por uma violência
voluptuosa que emergia do orgulho. Hybris pode ser considerada
como sinônimo de um aspecto que o fundador da Psicologia Ana-
lítica, Carl Gustav Jung (1992) denominava de inflação, a arrogân-
cia humana que se apropria daquilo que é exclusivo dos deuses no
sentido de transcender os limites humanos e que termina sendo
punida.
Exemplos clássicos são as narrativas de Prometeu, Ícaro e Sísi-
fo. Prometeu conhecido por sua astuta inteligência bem como pela
arrogância, furta o fogo dos deuses e entrega aos seres humanos

61
JORGE MIKLOS

mortais. Zeus temeroso que os mortais se tornassem tão poderosos


quanto os próprios deuses, puniu Prometeu, deixando-o amarrado
a uma rocha por toda a eternidade. Uma grande águia comia todo
dia seu fígado – que se regenerava no dia seguinte. Ícaro e seu pai,
Dédalo, construíram asas artificiais a partir da cera do mel de abe-
lhas e penas de pássaros de diversos tamanhos com o objetivo de
voar e fugir da prisão do labirinto. Dédalo, porém, alertou Ícaro que
não voasse muito perto do Sol, para que esse não pudesse derreter a
cera das asas, e nem muito perto do mar, pois esse poderia deixar as
asas mais pesadas. No entanto Ícaro, também tomado pelo desejo,
voou próximo ao Sol. As asas derreteram, ele caiu no mar Egeu, e
afogou-se. Sísifo, também considerado o mais astuto de todos os
mortais, soube enganar a morte. Foi condenado a por toda a eter-
nidade, rolar uma grande pedra de mármore com suas mãos até o
cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava quase
alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até
o ponto de partida por meio de uma força irresistível, invalidando
completamente o duro esforço despendido. Junito Brandão (1986)
testemunha que Agamemnon, Aracne, Belerofonte, Cassandra, Ci-
niro, Creonte, Eco, Édipo, Faetonte, Heitor, Herácles, Jasão, Laio,
Mársias, Minos, Narciso, Níobe, Odisseu, Orestes, Oto, Paris, Pen-
teu, Polícrates, Quione, Salmoneu, Tâmiris, Tirésias, Térsites, são
personagens das narrativas gregas castigadas pela sua hybris.
Mutatis mutandis, as mitologias egressas da tradição judaico-
-cristãs expressavam uma preocupação semelhante às narrativas
gregas, ou seja, alertar o ser humano a respeito da ameaça da hybris.
Exemplos emblemáticos estão registrados nos mitos de Adão e Eva
que são tentados a ser como Deus e, por isso, expulsos do Jardim
do Éden
Na teologia cristã, o conceito de pecado associado à hybris é
apresentado por Agostinho em suas Confissões. Relembrando as
motivações que o levaram, na infância, a furtar frutos de uma pe-

62
SOB O SIGNO DE NARCISO: RELIGIÃO MIDIATIZADA E A IDOLATRIA DO EU

reira, ele afirma que não queria propriamente as peras: na verdade,


para ele o furto gerou um prazer com o ato em si mesmo, o senti-
mento de onipotência. Agostinho descreve o pecado, a inflação, a
hybris como imitação da divindade:

O orgulho imita a altura; mas só tu, Deus excelso, estás acima de


todas as coisas. E a ambição, que busca, senão honras e glorias,
quanto tu és o único sobre todas as coisas e ser honrado e glorifica-
do eternamente? A crueldade dos tiranos quer ser temida; porém,
quem há de ser temido senão Deus, a cujo poder ninguém, porém,
quem há de ser temido senão Deus, a cujo poder ninguém, em
tempo algum ou lugar, nem por nenhum meio pode subtrair-se e
fugir? As carícias da volúpia buscam ser correspondidas; porém,
não há nada mais carinhoso que tua caridade, nem que se ame de
modo mais salutar que tua verdade, sobre todas as coisas formosa e
resplandecente. A curiosidade sugere amor à ciência, enquanto só
tu conheces plenamente todas as coisas. Até a própria ignorância e
estultícia cobrem-se com o nome de simplicidade e inocência; das
quais não acham nada mais simples do que tu. E que pode haver
mais inocente do que tu, pois, até mesmo o castigo dos maus lhes
vem de seus pecados? A indolência gosta do descanso; porém, que
repouso seguro pode haver fora do Senhor? O luxo gosta de ser
chamado de fartura; mas só tu és a plenitude e a abundância ines-
gotável de eterna suavidade. A prodigalidade veste-se com a capa
da liberalidade; porém, só tu, és verdadeiro e liberalíssimo doador
de todos os bens. A avareza quer possuir muitas coisas; porém, só
tu as possui todas. A inveja litiga acerca de excelências; porém, que
há mais excelente do que tu? A ira busca a vingança; e que vingança
mais justa do que a tua? O temor aborrece as coisas repentinas e
insólitas, contrárias ao que se ama ou se deseja manter seguro; mas
haverá para ti algo de novo e repentino? Quem poderá separar de
ti o que amas? E onde, senão em ti, se encontra inabalável seguran-
ça? A tristeza definha com a perda das coisas com que a cobiça se
deleita, e não quer que se lhe tire nada, como nada pode ser tirado

63
JORGE MIKLOS

de ti. Assim peca a alma, quando se aparta e busca fora de ti o que


não pode achar puro e ilibado senão quando se volta novamente
para ti. Perversamente te imitam todos os que se afastam de ti e se
levantam contra ti. Porém, mesmo imitando-te, mostram que és
o criador de toda criatura e que, portanto, não existe lugar onde
alguém se possa afastar de ti de modo absoluto.
Que amei, então, naquele furto, e no que imitei, viciosa e imperfei-
tamente, a meu Senhor? Acaso foi o gosto de agir pela fraude con-
tra a tua lei, já que não o podia fazer por força, simulando, cativo,
uma falsa liberdade ao fazer impunemente o que estava proibido,
imagem tenebrosa de tua onipotência? (AGOSTINHO, 2007, p. 31).

Joseph Campbell que se dedicou ao estudo das narrativas míti-


cas e ao mapeamento das semelhanças que aparentemente existiam
entre as mitologias das mais diversas culturas humanas, afirmou: “o
mito não é uma mentira. O todo de uma mitologia é uma organiza-
ção de imagens e narrativas simbólicas, metáforas das possibilida-
des da experiência humana e a realização de uma dada cultura num
determinado tempo”. (CAMPBELL, 1994, p. 37). Campbell ponde-
rou ainda que:

Vejo as mitologias tradicionais cumprindo quatro funções: A pri-


meira função é a de harmonizar a consciência com as pré-condições
de sua própria existência, ou seja, a função de alinhar a consciência
despertadora com o mysterium tremendum deste universo, como
ele é. A segunda função de uma mitologia tradicional é interpreta-
tiva, apresentar uma imagem consistente da ordem do universo. A
terceira função de uma mitologia tradicional é dar validade e res-
paldo a uma ordem moral específica, a ordem da sociedade da qual
surgiu essa mitologia. Por meio desta terceira função, a mitologia
reforça a ordem moral moldando a pessoa às exigências de um
grupo social específico geográfica e historicamente condicionado.
A quarta função da mitologia tradicional é conduzir o indivíduo
através dos vários estágios e crises da vida, isto é, ajudar as pessoas

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SOB O SIGNO DE NARCISO: RELIGIÃO MIDIATIZADA E A IDOLATRIA DO EU

a compreender o desdobramento da vida com integridade. Essa


integridade supõe que os indivíduos experimentarão eventos signi-
ficativos a partir do nascimento, passando pelo meio da existência
até a morte em harmonia, primeiramente com eles mesmos, em
segundo lugar com sua cultura, em terceiro lugar com o universo
e, finalmente, com aquele mysterium tremendum que transcende a
eles próprios e a todas as coisas. (CAMPBELL, 1994, p. 137).

Dessa forma, entende-se que tanto na antiga Hélade como na


tradição judaico-cristã as narrativas e as reflexões procuravam aler-
tar o ser humano a respeito da ameaça da hybris bem como propor, a
sofrósina, ou seja, a virtude da prudência, do bom senso e do come-
dimento. Em outras palavras, as tradições espirituais procuravam
alertar o ser humano que, a despeito dos benefícios inegáveis da
inflação tais como a consciência, a civilização, a hybris nos expõem
aos riscos inexoráveis da inflação, o sofrimento. Assim, o propósito
subjacente das narrativas era provocar a deflação, ou seja, buscar a
humildade, o comedimento, a modéstia, a simplicidade, o despo-
jamento, a despretensão, a desafetação, a frugalidade, a singeleza.
Mas, obviamente que essas atitudes não se coadunariam com o es-
pírito da modernidade.

Prometeu Desacorrentado

Desde os diagnósticos de Karl Marx, Max Weber, Ferdinand


Tönnies entre outros, é sabido que o advento da modernidade no
ocidente implicou a dissolução do universo mágico e encantado e
o hasteamento de uma cultura secular, laica, racional, cientificista.
Como bem pontou Weber:

Significa principalmente, portanto, que não há forças misteriosas


incalculáveis, mas que podemos, em princípio, dominar todas as

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JORGE MIKLOS

coisas pelo cálculo. Isto significa que o mundo foi desencantado (gri-
fo nosso). Já não precisamos recorrer aos meios mágicos para domi-
nar ou implorar aos espíritos. (...) Os meios técnicos e os cálculos
realizam o serviço. Isto, acima de tudo, é o que significa a intelectu-
alização. (WEBER, 1970, p. 65).

Na esteira do diagnóstico de David S. Landes (2005), as forças


econômicas e produtivas desacorrentaram Prometeu. No ocidente, a
aliança entre o poder, o dinheiro e a pesquisa científica (devidamen-
te ancorada no paradigma cartesiano) propiciou um crescimento
econômico de larga escala e amplitude planetária.
Bauman observou que o século XX sofreu uma passagem da
sociedade de produção para a sociedade de consumo. Com isso,
também passamos pelo processo de fragmentação da vida humana.
Perdemos a comunidade e a identidade pessoal restringiu o signifi-
cado e propósito da vida e da felicidade a tudo aquilo que acontece
com cada pessoa individualmente:

A ideia de progresso foi transferida da ideia de melhoria partilhada


para a de sobrevivência do indivíduo. O progresso é pensado não
mais a partir do contexto de um desejo de corrida para a frente,
mas em conexão com o esforço desesperado para se manter na cor-
rida. (2001, p. 37).

A despeito do fato do Homo sapiens só ter sobrevivido (e sobre-


viver) graças a sua capacidade de viver em grupo, de formar redes
de pertencimento, de partilhar realidade intersubjetivas (HARARI,
2017), a cultura moderna criou um oximoro: a centralidade no eu.
As sociedades modernas produziram uma cultura centrada no eu,
na qual o outro é um mero coadjuvante. Dito de outra forma uma
hybris, uma inflação egóica produzindo uma moral hedonista pro-
vocando um eclipse da alteridade.

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SOB O SIGNO DE NARCISO: RELIGIÃO MIDIATIZADA E A IDOLATRIA DO EU

Esse indivíduo liquido-moderno centrado no eu, proclama um


desinteresse pela política, e uma obsessão pelo sucesso pessoal. A
organização do viver se dá com o eclipse do outro, não na elimi-
nação dele. Os relacionamentos são pautados na medida em que
OUTRO serve o EU. O outro é transformado em objeto de consumo
na sociedade.
O Prometeu moderno furta o fogo dos deuses não mais por
uma causa heroica: libertar a humanidade da escuridão. O fogo
prometeico ilumina um espelho cujo sentido maior é expor um re-
flexo do principal protagonista da cena moderna, Narciso. Era das
Revoluções desacorrentou Prometeu que, livre, forjou o propósito
civilizatório do ocidente. Weber reconheceu um Prometeu heroico,
fustigado pela sua hybris, construiu sua jaula de aço. Nessa mol-
dura cultural líquida-moderna, forjada em fogo e aço, o homem
prometeico transmutou-se em Narciso, voltando-se para si mesmo.
Prometeu foi desvelado por Weber. Narciso será desnudado por Sig-
mund Freud.

Narciso, ícone do nosso tempo

Em 1914, Freud publicou o artigo Introdução ao Narcisismo,


e introduziu a questão fazendo uma distinção na noção de libido
(quantidade determinada de energia de natureza sexual), estabele-
cendo o que se denominou de “libido do ego” e “libido de objeto”.
Da mesma forma como Prometeu, Ícaro, Sísifo, Narciso tam-
bém é personagem da mitologia grega. Segundo a narrativa, Nar-
ciso nasceu na região grega da Boécia. Ele era muito belo e quando
nasceu um dos oráculos, chamado Tirésias, disse que Narciso seria
muito atraente e que teria uma vida bem longa, entretanto, ele não
deveria admirar sua beleza, ou melhor, ver seu rosto, uma vez que
isso amaldiçoaria sua vida. Além de ter uma beleza estonteante, a

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JORGE MIKLOS

qual despertava a atenção de muitas pessoas, Narciso era arrogante


e orgulhoso (hybris). No lugar de se interessar por outras pessoas
que o admiravam, ele ficou apaixonado por sua própria imagem,
ao vê-la refletida num lago. A bela ninfa Eco esteve perdidamente
apaixonada por Narciso, no entanto, seu amor nunca foi correspon-
dido, posto que Narciso ficou atraído por sua própria imagem.Com
o excessivo amor por si próprio e sobre menosprezar a ninfa Eco, ela
lançou um feitiço sobre Narciso, que ficou definhando até morrer
no leito do rio.Com sua morte, o belo jovem foi transformado em
flor.
Dessa forma, compreendemos que na tradição grega, o termo
narcisismo designa amor de um indivíduo por si mesmo. Freud
escreveu que eles “tomam a si mesmos como objetos sexuais e,
partindo do narcisismo, procuram rapazes semelhantes à sua pró-
pria pessoa, a quem querem amar tal como sua mãe os amou”
(2010, p. 43).
Freud define o narcisismo como a atitude resultante da trans-
posição, para o eu do sujeito, dos investimentos libidinais antes fei-
tos nos objetos do mundo externo. Freud observou então que esse
movimento de retirada só pode produzir-se num segundo tempo,
este precedido de um investimento dos objetos externos por uma
libido proveniente do eu.
Assim, Freud fala de um narcisismo primário, infantil, que a
observação das crianças, caracterizados por sua crença na onipotên-
cia do pensamento. O narcisismo primário diria respeito à criança e
à escolha que ela faz de sua pessoa como objeto de amor, numa eta-
pa precedente à plena capacidade de se voltar para objetos externos.
Narciso corresponde ao um arquétipo que expressa e se coadu-
na com o espírito dos tempos líquidos modernos. Narciso represen-
ta o ser humano incapaz de uma empatia plena. O ato de apaixonar-
-se pela própria imagem refletida indica alienação do mundo e do
senso comunitário. Embriago pela sua própria imagem, os gregos

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SOB O SIGNO DE NARCISO: RELIGIÃO MIDIATIZADA E A IDOLATRIA DO EU

anteciparam o fenômeno da iconofagia postulado por Norval Bai-


tello Jr. (2015) no qual sob a era da reprodutibilidade técnica as ima-
gens devoram os homens. Nas redes sociais digitais empenhamos
tempo e energia para produzir, editar postar e idolatrar nossas pró-
prias imagens.
A sociedade líquida moderna é marcada por alguns princípios
e características que se orientam no narcisismo individual e midi-
ático, nas fragmentações, na troca de valores morais esvaziados, na
exclusão, no vazio, na individualização, na substituição da ética pela
estética.
Não só nos identificamos com o outro, mas damos o direito de
identificar conosco, ou seja, para colocar no meu lugar e, assim, ter
acesso à minha realidade psíquica, entender o que eu compreendo e
sentir o que eu sinto. Este reconhecimento mútuo tem três facetas:
reconhecer uns aos outros a oportunidade de avaliar a si mesmo
como eu faço isso por mim (que é o componente do narcisismo);
reconhecer a oportunidade de amar e ser amado (componente re-
lações); reconhecê-lo como o sujeito de direito (componente da re-
lação com o grupo). Trata-se de um processo de troca no qual o
sujeito se expõe a outrem, que se identifica com o sujeito e devolve
imagem e semelhança. O que acontece quando Narciso caminha
pelos labirintos do novo contrato social?

A geração EU

Em 1979, foi publicado o livro The Culture of Narcissism: Ame-


rican Life in an Age of Diminishing Expectations (A Cultura do Nar-
cisismo: a vida Americana numa era de expectativas diminuídas), no
qual o historiador Christopher Lasch explora as raízes do narcisis-
mo na cultura americana do século XX.

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JORGE MIKLOS

Para Lasch, os estadunidenses viviam num ambiente cultural


narcísico. As pessoas buscavam constante validação resultando
numa: “interminável busca de crescimento pessoal, que é, ao mes-
mo tempo, ilusória e cada vez mais infrutífera” (LASCH, 1983, p. 25).
A tese de Lasch é a de que um transtorno psicológico extrapo-
lou o âmbito da subjetividade e se espalhou pelo domínio da cultura
cotidiana da sociedade ocidental. O narcisismo tornou-se norma
cultural. Trata-se do culto ao indivíduo e ao individualismo e a bus-
ca fanática pelo sucesso pessoal e dinheiro.
Os traços narcisistas são reconhecidos em comportamentos
egoístas, pouco empáticos e exibicionistas. Narcisistas possuem
uma imagem exagerada de si mesmos, exigem atenção excessiva.
A subjetividade está centrada no “EU”, na competição e no hedo-
nismo. A cultura do narcisismo não permite que haja tantos des-
prazeres advindos de frustrações, o intuito do homem moderno é
manter-se preservado das frustrações. Cria-se a imagem de um pro-
duto que causa prazer e evita o desprazer da realidade.
A cultura narcisista promove uma ansiedade com a realização
individual, estreitamente relacionada com o universo do consumo e
as inúmeras opções que são apresentadas aos indivíduos, em detri-
mento aos ideais coletivos. E, como já havia pontuado Freud, ocorre
um investimento da libido ao próprio eu e um desinvestimento nas
relações com os outros e com o mundo da experiência.
A indústria cultural cria diversas necessidades e desejos a se-
rem alcançados e consumidos: beleza, juventude, excelente desem-
penho sexual, segurança, sucesso profissional e financeiro, entre
outros que se tornam fetiches destinados a realização do desejo. A
configuração capitalista atual exaspera os traços narcísicos, impe-
dindo a identificação mutua entre as pessoas e enfraquecendo os
laços comunitários.
A cultura narcísica impõe um rebaixamento de consciência do
comum operando positivamente para o fenômeno da despolitização:

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SOB O SIGNO DE NARCISO: RELIGIÃO MIDIATIZADA E A IDOLATRIA DO EU

O narcisista não se interessa pelo futuro porque, em parte, tem


muito pouco interesse pelo passado. Acha difícil interiorizar asso-
ciações felizes ou criar um estoque de lembranças amoráveis para
enfrentar a última parte de sua vida, a qual, embora nas melhores
condições, sempre traz tristeza e dor. Em uma sociedade narcisista
(…) a desvalorização cultural do passado reflete não só a pobreza
das ideologias predominantes, as quais perderam o pulso da reali-
dade e cederam à tentativa de dominá-la, mas a pobreza da vida in-
terior do narcisista. Uma sociedade que fez da ‘nostalgia’ uma mer-
cadoria comercial, repudia, pelo lado cultural, a sugestão de que a
vida no passado era, sob qualquer aspecto, melhor que a vida atual.
Tendo trivializado o passado, ao igualá-lo a estilos ultrapassados
de consumo, modas e atitudes, dos quais abriram mão, as pessoas,
hoje em dia, ressentem-se de qualquer um que recorra ao passado
para sérias discussões sobre as condições contemporâneas, ou que
tente usar o passado como um padrão com que julgar o presente
(...) Esta descoberta histórica reforça o critério psicanalítico de que
as recordações amoráveis se constituem numa fonte psicológica
indispensável na maturidade, e que aqueles que não conseguem
recorrer às recordações de relações amoráveis no passado sofrem,
como resultado, tormentos terríveis. A crença de que, em alguns
aspectos, o passado foi um tempo mais feliz, de modo algum ba-
seia-se numa ilusão sentimental; tampouco leva a uma paralisação
retrógada e reacionária da volição política. (LASCH, 1983, p. 15-16)

A cultura do narcisismo coloca em risco a democracia na me-


dida em que pessoas narcisistas tem dificuldades para criar empatia
e interagir com os outros. Um exemplo emblemático do declínio
e desvalorização do espaço público é citado por Jean M. Twenge,
professora de Psicologia da Universidade Estadual de San Diego.
Em seu livro Generation Me a professora relata que uma adolescente
em um reality da MTV justificou o bloqueio de uma rua para reali-
zar sua festa de aniversário, sem se importar que há um hospital no
meio: “Meu aniversário é mais importante!”

71
JORGE MIKLOS

Diante do declínio da crença nos valores culturais, a atenção


volta-se então para aqueles que detêm valor reconhecido pela cultu-
ra a cada instante: as celebridades instantâneas:

Os meios de comunicação de massa, com seu culto da celebridade


e sua tentativa de cercá-la de encantamento e excitação, fizeram
dos americanos uma nação de fãs, de frequentadores de cinema. A
“mídia” dá substância e, por conseguinte, intensifica os sonhos nar-
cisistas de fama e glória, encoraja o homem comum a identificar-
-se com as estrelas e a odiar o “rebanho”, e torna-se cada vez mais
difícil aceitar a banalidade da existência cotidiana (LASCH, 1983,
p. 43).

A sociedade narcísica mergulha no espetáculo tendo como úni-


co critério de valor a visibilidade e a fama.

Religião midiatizada e a idolatria do EU

Dada a ubiquidade da cultura do narcisismo não nos causa es-


tranheza sua presença nos campos do mercado, do consumo, da
mídia, da educação e da política. Mas causa-nos estranheza quan-
do detectamos a presença da cultura do narcisismo no campo da
religião.
Como foi dito no início desta reflexão, as tradições espiritu-
ais greco-romanas e judaico-cristãs alertavam a respeito dos riscos
espirituais, psicológicos e sociais que comportamentos arrogante,
excessivo e autocentrado poderiam trazer. A hybris, a inflação dos
desejos era tida como patológica e a pessoa que se deixasse levar por
ela seria castigada pelos deuses. Desta forma, causa espanto perce-
ber que a cultura do narcisismo está presente no discurso de líderes
religiosos. Livros, homilias, artigos em jornais e blogs assinados por
vários clérigos e destinados para a membresia de suas igrejas, argu-

72
SOB O SIGNO DE NARCISO: RELIGIÃO MIDIATIZADA E A IDOLATRIA DO EU

mentam que, o sucesso, a beleza, a juventude, o êxito profissional e


financeiro, entre outros fetiches, são atributos espirituais que devem
ser almejados pelos crédulos. Na perspectiva narcísica, o fiel não
deve olvidar que o ser humano foi edificado à imagem e semelhança
da divindade. Ou seja, para muitos líderes religiosos, a hybris, não
deve ser negada, ao contrário, deve ser cultivada como um aspecto
extraordinário da graça.
Do ponto de vista teológico, a cultura do narcisismo agencia a
substituição de DEUS pelo EU, ou seja, promove a idolatria do ego
humano acima do divino. Um homem que se vê e se enxerga como
se fosse o próprio DEUS.
Na sociedade líquido-moderna, na qual a religião é midiatizada
e dominada por apelos à imagem e ao sucesso, os ídolos são abun-
dantes, mesmo dentro de igrejas é comum ver o culto para adora-
ção a pastores, padres ou cantores que são lembrados como grandes
celebridades. Idolatram o dinheiro, a fama, o sucesso. O culto do
sagrado é transporto para o culto ao eu, ou seja, a adoração de si
próprio
A cultura do narcisismo exerceu forte pressão hermenêutica
sobre as igrejas cristãs que adaptaram sua teologia no sentido que a
mesma fosse ao encontro dos valores narcísicos. A inserção dessas
igrejas, na lógica do narcisismo, implicou a mudança no estilo pelo
qual essas igrejas interpretam as concepções religiosas e a própria
missão. Nascida nas primeiras décadas do século XX nos Estados
Unidos da América, sua doutrina afirma, a partir da interpretação
de alguns textos bíblicos, que os que são verdadeiramente fiéis a
Deus devem desfrutar de uma excelente situação na área financeira
e na saúde. A Teologia da Prosperidade considera que Deus criou
seus filhos para serem abençoados e obterem sucesso em seus em-
preendimentos. Sendo Deus o criador de todas as coisas cabe aos fi-
éis tomarem posse das coisas do mundo, pois que o mundo já é seu.

73
JORGE MIKLOS

Em vez de ouvir num sermão que “é mais fácil um camelo atra-


vessar um buraco de agulha do que um rico entrar no Reino dos
Céus” (Mateus 19,24 e Marcos 10,25), agora a novidade reside na
possibilidade de desfrutar de bens e riquezas, sem constrangimento
e com a aquiescência de Deus.
Para os pobres e desafortunados, de um modo geral, o direito
de possuir as bênçãos como filho de Deus traz alívio e esperança na
solução de todos os seus problemas. Por essa lógica, Jesus veio pre-
gar aos pobres para que estes se tornassem ricos. Arrependimento e
redenção, tema central no Cristianismo, e as dificuldades nesta vida
são temas raramente tratados.
Siepierski (2003) considera que a ênfase da Teologia da Pros-
peridade é a doação financeira, entendida como um investimento e
não como um ato de gratidão. A doação financeira para Deus torna-
-o um devedor, ficando ele obrigado a restituir em maior medida
aquilo que lhe foi dado. A igreja mobiliza esse discurso e é o recep-
táculo das doações, mas a restituição, no entanto, é responsabilida-
de de Deus. O discurso da Teologia da Prosperidade, alinhado aos
valores de mercado, enfatiza a posse de bens materiais. A pobreza é
obra do maligno e estar com Deus é livrar-se dela.
A religião narcísica, palco de entretenimento, consumo e es-
petáculo, percorre as águas do frio cálculo egoísta da midiatização.
Sem perder de vista a moldura estrutural e estruturante que desta-
ca os contornos das mutações do campo religioso, é esse o recorte
específico desta reflexão: o fenômeno da midiatização do campo
religioso articulado ao cenário de financeirização do mundo.
As perspectivas sobre a “midiatização” e “midiatização da reli-
gião” vêm encontrando ambiente reservado de desenvolvimento nas
pesquisas, por exemplo, de Borelli (2010; 2012), Fausto Neto (2004;
2006; 2008), Gomes (2002; 2006; 2010), Martino (2012; 2013), Fie-
genbaum (2006), Hjarvard (2012), Hoover (2014), entre outros.

74
SOB O SIGNO DE NARCISO: RELIGIÃO MIDIATIZADA E A IDOLATRIA DO EU

Porém, é inegável que o processo de midiatização das igrejas


encontrou eco no mercado, no consumo, no espetáculo, no entre-
tenimento e na cultura do narcisismo. No contrapelo à atmosfera
de submissão aos discursos hegemônicos que assentam no imagi-
nário tecnológico digital a esperança de uma interação social livre,
igualitária, emancipadora e potencializadora do desenvolvimento
humano, a hipótese principal desta comunicação é que a sociabili-
dade digital religiosa concebe uma midiatização do campo religioso
umbilicalmente relacionado à indústria cultural contemporânea re-
gida pela lógica do mercado, consumo e espetáculo. Esse é o olhar
que prevalece em nossa reflexão acerca do sagrado nas redes virtuais
e da experiência religiosa na era das conexões entre o midiático e o
religioso.

Considerações finais

O impacto da cultura do narcisismo é tão forte que as velhas


formas de encantamento – os mitos, rituais e as crenças – migram
dando espaço para dois fenômenos gêmeos: a religião narcísica e
o narcisismo religioso. O primeiro é a transformação dos espaços
religiosos em territórios que possibilitam a emergência de religiões
midiáticas e mais atribuladas com espaço de poder e influência so-
cial. O segundo é a transformação da EU em objeto de idolatria e
culto, com a consequente perda da eficácia simbólica.
Nesse contexto do narcisismo todos olham para si mesmo e
ambicionam o sucesso e ascender na escala de importância. Foi o
argumento decisivo da serpente para tentar Adão e Eva: “No dia
em que vocês comerem o fruto, os olhos de vocês vão se abrir, e
vocês se tornarão como deuses, conhecedores do bem e do mal”
(Gênesis 3, 5).

75
JORGE MIKLOS

Quanto mais perto se chega do pináculo, mais perto se está da


grandeza e da imagem de Deus. O sucesso, a mobilidade para cima e
ser servido seriam, nessa visão banal do mundo, sinais de fidelidade
a uma divindade hierárquica que estimula uma atitude exagerada,
um descomedimento.
Parece-nos que o caminho do cristianismo leva em outra di-
reção. O caminho do cristão não é o da mobilidade ascendente, na
qual o mundo tanto investe, mas o da humildade esvaziada de poder.
“Quem de vocês quiser ser grande deve tornar-se o servidor
de vocês, e quem de vocês quiser ser o primeiro deverá tornar-se o
servo de todos. Porque o Filho do Homem não veio para ser servido.
Ele veio para servir e para dar sua vida como resgate em favor de
muitos” (Marcos 10, 43-45).
Dar nossas vidas “como resgate em favor de muitos” significa
dar às costas ao narcisismo, à prosperidade capitalista, ao sucesso
e, ao contrário, abrir-se e colocar-se à disposição das pessoas. Esse
é, parece-nos o núcleo duro do cristianismo que está expresso no
Sermão da Montanha. Acima de tudo, significa estar inclinado ao
serviço do outro. São características do Sermão da Montanha suas
rigorosas exigências éticas e a insistência básica na caridade. Jesus
insistiu num amor incondicional a Deus e ao próximo.
Um de seus aspectos mais debatidos é a exortação de Jesus para
pagar o mal com o bem: Em todas as pregações de Jesus, a caridade
é proclamada como o mandamento-chave: “Amarás o teu próximo
como a ti mesmo” (Mateus 22,39). Repetidas vezes se enfatiza que a
caridade não deve ser expressa apenas àqueles de quem se gosta, às
pessoas da própria comunidade, ou àqueles que se encontram em
dificuldades sem ter culpa por isso. Todas as pessoas devem receber
amor – mesmo as que, segundo a opinião comum, merecem a du-
reza de seu destino. Jesus chega a dizer que devemos amar nossos
inimigos.

76
SOB O SIGNO DE NARCISO: RELIGIÃO MIDIATIZADA E A IDOLATRIA DO EU

Jesus não apenas proclamou o evangelho do reino de Deus; ele


o pôs em prática. Demonstrou o que queria dizer com “caridade”
em situações reais. Tais ações incluíam curar os doentes. Todo tipo
de religiosidade autocentrada e narcísica foi descartada por Jesus. O
homem não pode tornar a si mesmo merecedor da redenção divina.
Essa história confirma que o reino de Deus não é um mero pre-
sente de Deus ao homem, mas uma tarefa que o homem é chama-
do a realizar. Jesus não viu como seu dever simplesmente dar aos
homens uma imagem melhor de Deus; ele quis atraí-los para uma
comunhão com Deus. O amor de Deus exige que o homem imite
esse amor. E para amar, é preciso que Narciso olhe para além do seu
próprio reflexo midiático.

REFERÊNCIAS

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“Vida e obra” por José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Nova Cultural,
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FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia


e outros textos (1914-1916). tradução e notas Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010.

77
JORGE MIKLOS

HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Cia


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Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

LANDES, David S. Prometeu desacorrentado: transformação tecnológica e


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SIEPIERSKI, Carlos Tadeu. O sagrado num mundo em transformação. São


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WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1970.

78
O LOUVOR À GRANDE MÃE NAZARÉ:
UM ESPETÁCULO NA
CULTURA MIDIÁTICA

Jorge Miklos
Ariana Nascimento Silva

A midiatização da sociedade

Cada pessoa tem suas próprias percepções do mundo a sua


volta. A partir de suas experiências adquiridas, ao longo da vida,
enxergamos o mundo por meio das percepções que criamos. Os
estímulos criados pela percepção constrói uma realidade simbólica
permitindo a troca deexperiências com outros indivíduos. Peruzzo-
lo (2006) assegura que a comunicação é a iniciativa da buscar pelo
outro para um benefício próprio, a partir da relação significativa e
com a percepção de quem está envolvido no processo da comuni-
cação. A partir deste ponto de vista, pode-se dizer que o processo
de comunicação está na base da nossa existência e está intrinseca-
mente e diretamente ligada aos processos sociais que viabiliza os
fenômenos culturais com a efetiva participação dos indivíduos em
sua configuração.
A partir desse imperativo, os indivíduos desenvolvem a neces-
sidade de criar mecanismo que viabilizassem a comunicação por
meio de outros mecanismos, que não somente a fala, mas também

79
JORGES MIKLOS E ARIANA NASCIMENTO SILVA

por mecanismos simbólicos que fossem capazes de traduzir suas


intenções de comunicação com outros indivíduos do grupo.
Nesse sentido, as tecnologias estimulam novas formas de re-
lacionamento dento do mundo percebido e também pelos fatores
simbólicos de cada um, resultando numa variedade de ferramentas
tecnológicas e processos comunicacionais que reestruturam a di-
nâmica de comunicação da sociedade envolvida. E com a evolução
das técnicas a forma de se comunicar também evoluiu para novas
modalidades comunicacionais, mudanças significativas nos mode-
los culturais, na própria organização da sociedade, e na vida parti-
culardas pessoas.
Sendo assim, acabamos por agregar essas novas tecnologias as
nossas vidas como se fossem intrínsecas a ela, como se sempre fizes-
sem parte deste todo, e não apenas como mais uma possibilidade de
facilitar e aprimorar uma técnica anterior.

A sociedade que tem sua estrutura e dinâmica calcada na compre-


ensão espacial e temporal, que não só institui, como faz funcionar
um novo tipo de real, e cuja base das interações sociais não mais
se tecem e se estabelecem, através de laços sociais, mas de ligações
sócio técnicas (FAUSTO NETO, 2006, p. 3).

A partir dessas análises e afirmações, fica claro que a relação


entre as tecnologias e as formas comunicação que possibilitam uma
gama variada de possibilidades para tal evolução nos níveis de pro-
cessos comunicacionais fazendo com que a sociedade passe para
outro nível de comunicação evoluída e transcenda para a sua mi-
diatização. Podemos observar este fenômeno quando nos vemos
frente a frente com as redes sociais e suas inúmeras possibilidades
interativas e atrativas, em alta velocidade e a um clique de distân-
cia, desde é claro, que se esteja conectado a rede. Podemos perceber
claramente que mais esta evolução também mudou os moldes das
sociedades atuais, tanto no campo social quanto no cultural, e este

80
O LOUVOR À GRANDE MÃE NAZARÉ: UM ESPE TÁCULO NA
CULTURA MIDIÁTICA

fator é tão significativo que a própria técnica passa a ter um caráter


estruturador da cultura e também do espeço social. Muito embora
somente isso não seja levado como único valor, ou seja, os valores
das tecnologias não se restringem apenas aos aparatos tecnológicos,
mas na relação que a sociedade faz com eles.
O processo de evolução das tecnologias que vemos acontecer
agora é um conceito de caráter simbólico ligado aos valores de mo-
ral e cultura e também mercadológicos, que variam de acordo com
a relação dos indivíduos têm com ela. A tecnologia também pode
ser considerada como um tipo fator segregador com quem não tem
um livre acesso a ela, levando a um tipo de desigualdade ou infe-
rioridade diante aqueles que a utilizam cotidianamente. Entender
o sentido amplo da tecnologia não está na simples “preocupação”
com sua forma ou conteúdo, mas na forma como ela efetivamente
funciona, em sua constituição física e lógica e principalmente no
sentido em que modifica as relações interpessoais e culturais da so-
ciedade. Todas essas evoluções nas tecnologias trouxeram consigo
muitas mudanças profundas na sociedade, principalmente porque a
hegemonia que perdurava através da comunicação escrita nas bases
culturais ocidentais, desde a tipografia até a evolução da fotografia,
surgimento do cinema e televisão, instaurando-se assim a era das
imagens. O campo imagético, constituiu um novo código dominan-
te que evidenciou lentamente a perda da “hegemonia” da escrita e
também a uma nova percepção de entendimento de mundo.
Todas essas mudanças não são fruto de um mero acaso de de-
terminismo tecnológico, se estabeleceram como parte de um mode-
lo sociocultural. Ainda tomando como referência Peruzzolo, temos
uma nova cultura com marcas profundas de uma nova tecnologia
virtual e midiática que se estrutura com o intuito de suprir necessi-
dades e anseios dos indivíduos e ganham um caráter privilegiado na
sua construção e relação. Deste modo os campos tecnológico, virtu-
al e midiatizado agora passam a fazer parte do sistema simbólico da

81
JORGES MIKLOS E ARIANA NASCIMENTO SILVA

sociedade, fazendo com que o panorama cultural já existente ganhe


novos moldes e sentidos, modificando cada vez mais a sociedade.
Novos conceitos sobre os locais onde se manifesta a fé vão ganhan-
do novas nomenclaturas ao longo dos anos.
O Círio de Nazaré, uma festa religiosa tradicional sofre altera-
ções em decorrência do processo de midiatização da sociedade. Esse
é o contexto de nossa análise.

Um breve história do Círio de Nazaré

Tudo começou no ano de 1700 na capital paraense, que, literal-


mente para em face da ocasião do Círio de Nazaré. As lojas fecham,
casas são decoradas com as cores branca e amarela, famílias se re-
únem, o trânsito é reorganizado para dar passagem a romaria em
homenagem à “Naza”. Alguns compram roupa nova, segundo Ange-
lim Netto: “trabalha-se no Pará o ano todo, sofrendo privações, para
em outubro vestir uma roupa nova e almoçar como um príncipe ou
princesa no dia do Círio. O Pará, sem a festa de Nazaré, não seria
Pará”. (Folha do Norte, 1926). A história contada envereda por len-
das e mitos sincretizados com fatos históricos do povo amazônico
devidamente documentados. O culto à Virgem de Nazaré começou
no município de Vigia e de lá chegou à capital paraense. Em meados
de 1700, como reza a tradição, em uma estrada do Utinga (onde hoje
é a Avenida Nazaré), em Belém, um típico caboclo agricultor cha-
mado Plácido, encontrou uma pequena estatueta de barro no meio
das plantas trepadeiras às margens do igarapé Murucutu, que ficava
atrás da Basílica Santuário de Nazaré. Essa imagem hoje tida como
original, tem cerca de 38,5 cm de altura e Plácido levou-a para a sua
casa e, no dia seguinte percebeu que ela havia desaparecido; assus-
tado, voltou até o igarapé Murutucu e constatou que a imagem tinha
voltado ao seu pequeno “nicho natural”. Esse fenômeno repetiu-se

82
O LOUVOR À GRANDE MÃE NAZARÉ: UM ESPE TÁCULO NA
CULTURA MIDIÁTICA

todas as vezes que Plácido tirou-a de lá. O governador da época (não


esclarecido e identificado na lenda) ordenou que a imagem fosse
levada ao Palácio do Governo para que fosse vigiada pelos soldados,
porém foi em vão, a imagem encontrou um modo de retornar ao seu
lugar de origem.
O caboclo Plácido percebeu que a Santa queria permanecer no
mesmo local onde foi encontrada, por isso, ele decidiu construir
uma pequena capela para abrigar a imagem. A notícia do “milagre”
logo se espalhou pela capital paraense, reunindo muitos devotos a
cada ano, aumentando a fila de romeiros que traziam seus ex-votos
– objetos de cera que representam membros do corpo humano; mu-
letas ou retratos como forma de agradecimentos por uma graça al-
cançada. Durante as procissões um objeto em particular sobressaía-
-se: os Círios, ou velas de cera que tal como em Portugal, depois de
um tempo também passaram a chamar a procissão em homenagem
à santa de Círio. Esse acontecimento envolve de maneira direta ou
indireta o povo paraense (ousa-se dizer que isso independe da sua
religião) e estende sua influência até o interior do Estado, outros
estados e outros países. Embora existam outros Círios no interior
do Estado nenhum deles tem a mesma influência e amplitude do Cí-
rio de Belém, configurando-se como uma das festas religiosas mais
importantes do Brasil. E pode ser observado por diversos pontos de
vista, sejam eles: religiosos, estéticos, turísticos, culturais, sociológi-
cos, antropológicos, etc. A devoção à Virgem de Nazaré faz parte do
imaginário cultural e popular paraense, estando presente em peque-
nos altares domésticos, no tradicional Mercado do Ver-o-Peso, ban-
cas de peixe, supermercados, instituições do governo e nos meios
de comunicação e, principalmente, na distribuição e colagem dos
cartazes do Círio produzidos todos os anos.

83
JORGES MIKLOS E ARIANA NASCIMENTO SILVA

Culto à Grande Mãe “Naza” – Um espetáculo de


cultura popular

A Virgem de Nazaré é chamada carinhosamente pelos fiéis e


devotos de “Tia Naza”, “Nazica”, “Nazinha” e até mesmo “Naza”, fato
este que evidencia uma relação estreita entre o devoto e a Virgem.
A origem etimológica da palavra “Círio” vem do latim cereus, que
significa grande vela de cera, em Portugal o aglomerado de pessoas
em romaria eram chamados de Círios. A oficialização da devoção à
Virgem de Nazaré (romaria e o arraial de Nazaré) foi instituída pelo
Presidente da Província do Pará no mesmo ano em que a imagem
foi encontrada por Plácido, exaltando a popularidade da devoção à
imagem de Nossa Senhora de Nazaré. Embora a motivação inicial
do Círio seja institucional, utilizada pelo governo como forma de
firmar seu poder, desfilar nas ruas a sua autoridade, a popularidade
da romaria sobressaiu-se diante da motivação inicial e não se fir-
mou por meio do apelo institucional o qual o cercou desde o princí-
pio, mas, conseguiu se estabelecer como festa religiosa popular por
si mesma.
Muitas foram as contribuições que deram início ao Culto à
“Naza”, desde seu achado nas matas às margens do igarapé, até mes-
mo às suas “fugas” no meio da noite e o retorno ao local de origem,
como pode ser constatado no dossiê produzido pelo IPHAN em
2004:

É como se a atitude da própria imagem simbolizasse o


espaço de transgressão que marcaria o Círio ao longo de sua
história. Afinal, a própria santa teria se recusado a ficar encarcerada
no ostentoso palácio do governo, cumprindo ordens do presidente
da província, preferindo a simples ermida construída por Pláci-
do, onde poderia dedicar sua atenção a todos os devotos. (Dossiê
IPHAN Círio de Nazaré, 2004, p. 18)

84
O LOUVOR À GRANDE MÃE NAZARÉ: UM ESPE TÁCULO NA
CULTURA MIDIÁTICA

Outro fator que contribuiu fortemente para a consolidação do


Círio no imaginário cultural e popular paraense foi a condição de
humildade dos primeiros guardiões da imagem, Plácido e Antô-
nio Agostinho, eram pobres e mestiços, fato este que popularizou
o culto à “Naza”. A festa religiosa está relacionada às raízes arcaicas
da cultura, em particular, ao culto da grande mãe. O arquétipo da
grande mãe representada aqui pela Virgem de Nazaré é herança cul-
tural coletiva que segundo Jung, exerce sobre o belenense uma in-
fluência típica que vai além daquelas adquiridas por meio dos laços
de sangue ou de caráter. Existem também algumas qualidades que a
mãe possui, mas que, na concepção de Jung (2000) originam da es-
trutura arquetípica em torno de mãe e são projetadas nela pelo filho:

A teoria dos arquétipos de Jung levou-o a postular a hipótese de


que as influências que uma mãe exerce sobre seus filhos não deri-
vam necessariamente da própria mãe como uma pessoa e de seus
traços reais de caráter. Além disso, existem qualidades que a mãe
parece possuir, mas que, de fato, se originam da estrutura arquetí-
pica em torno de mãe e são projetadas nela pelo filho. (HOPCKE,
2012, p. 116).

Quando se pergunta ao romeiro o que a “Naza” representa para


ele, a resposta é quase automática: “– ela é a mãe, nossa mãezinha, a
quem podemos recorrer em todas as horas”. Tomando essa fala por
um polo positivo pode-se observar que existem resquícios de uma
solicitude e simpatia maternal, a autoridade de mãe, sabedoria e a
pura exaltação espiritual que consegue transcender a razão transfor-
mando a “Naza” como uma mãe boa e intercessora, capaz de conce-
der milagres e graças antes consideradas impossíveis. Com o passar
dos séculos a devoção à “Naza” ganhou proporções maiores, atrain-
do devotos de outros estados e países e consequentemente acabou se
misturando com outros eventos de caráter popular e profano, como
por exemplo, o Auto do Círio.

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JORGES MIKLOS E ARIANA NASCIMENTO SILVA

O Auto do Círio é um espetáculo de rua grandioso, que aconte-


ce desde 1993 pelas ruas da Cidade Velha, em Belém, na sexta-feira
que antecede o Círio. Trata-se de um cortejo cultural e popular e que
é organizado pela escola teatral da UFPA com intensa participação
da classe artística da cidade. Segundo o Dossiê IPHAN 2004, p. 56: o
cortejo percorre o bairro da Cidade Velha com “artistas fantasiados
(monstros, palhaços, anjos, diabos, bruxas, magos, ciganos, ladrões,
etc.) desenvolvendo performances teatrais”. O cortejo do auto do
Círio faz algumas paradas em estações em frente a monumentos his-
tóricos definidos previamente: os espetáculos musicais são realiza-
dos em frente à Igreja da Sé; os teatrais em frente à Igreja de Santo
Alexandre; os de dança em frente ao Solar do Barão de Guajará;
exibições folclóricas são feitas em frente à Capela de São João Batista
e a grande apoteose de carnaval é feita na rua entre os palácios do
governo estadual – Palácio Lauro Sodré e Palácio Antônio Lemos. O
auto do Círio é, na verdade, um sincretismo entre elementos profa-
nos e religiosos, com certa “pitada” de carnavalização. Ainda segun-
do o Dossiê IPHAN 2004 o auto do Círio é:

Um espetáculo que manifesta a relação entre o sagrado e o profa-


no presente durante todo o seu desenvolvimento, ou seja, começa
como uma grande procissão que, posteriormente, transforma-se
numa festa de carnaval. O cortejo teatral atrai um grande público,
formado pelos moradores da Cidade Velha e outros bairros. (Dos-
siê IPHAN Círio de Nazaré, 2004, p. 56)

Todo esse sincretismo de fé e tradições populares faz o Círio de


Nazaré ser muito mais que uma procissão católica, torna a festa uma
mistura de crenças, atitudes, pensamentos e relações singulares com
a imagem da santa. Para entender essa relação, agora, partimos para
o recorte central da discussão que é o cartaz do Círio, em especial o
cartaz do ano de 2011 que trás na sua criação publicitária uma cons-
trução de imagens, ou seja, um mosaico de imagens feitas por meio

86
O LOUVOR À GRANDE MÃE NAZARÉ: UM ESPE TÁCULO NA
CULTURA MIDIÁTICA

de fotos 3x4 doadas pelos próprios fiéis e segundo o Blog Agnus


Belém (28 de maio de 2011) “essa ideia desenvolvida pela Mendes
Comunicação quer ilustrar o cumprimento daquela profecia canta-
da pela própria Virgem Nazarena: ‘Todas as gerações, de agora em
diante, me chamarão feliz, porque o Poderoso fez para mim coisas
grandiosas’ (Lucas 1, 48-49).”

O cartaz do Círio 2011

Já é tradição. Todos os mercados, igreja, mercearias e demais


comércios têm para oferecer em outubro um cartaz do Círio e é
discurso corrente, em Belém, que nenhum católico devoto de Nossa
Senhora de Nazaré não disponha de pelo menos um cartaz colado
na porta de entrada de sua casa que representa uma insígnia de boas
vindas àqueles que chegam. O cartaz identifica que ali naquela casa
mora um devoto da Virgem Santa.
Antes de desconstruir a elaboração do cartaz de 2011 é neces-
sário que sejam esclarecidos alguns conceitos que dão suporte a
mediatização desse mesmo cartaz. Segundo WEBER (1970) todo o
precesso que desencanta o mundo, que submete todos os apectos da
vida humana à racionalidade e humanidade migrou de um universo
construído e habitado pelo sagrado, pelo mágico, pelo excepcional
e caminhou até um mundo totalmente racionalizado, materialista e
manipulado pelas técnicas e pelas ciências. O advento da moderni-
dade povoou o mundo dos deuses e mitos, a magia de outrora foi
substituída pela técnica do conhecimento científico, cartesiano e
burocratizado. Embora as religiões e todos os seus rituais, festivida-
des religosas, não tenham desaparecido com o advento da moder-
nidade, acabaram por se reorganizar ou reconfigurar sob a lógica
do mercado, sob o imperativo da midiatização e de sua visibilidade.

87
JORGES MIKLOS E ARIANA NASCIMENTO SILVA

Segundo Contrera (2010, p. 59.), a proposta da Mediosfera que visa


esclarecer os fenômenos contemporâneos considera o seguinte:

O fenômeno de como as produções da Mediosfera retroagem so-


bre a Noosfera torna-se claro também quando colhemos relatos de
festas populares tradicionais ou ainda tradições populares (qua-
se sempre orais) que após serem alvo das atenções e tratamentos
técnico-ideológicos dos meios de comunicação, especialmente da
televisão, alteram sua percepção de si mesmos, reeditam seus re-
latos e memórias segundo as edições das mídias. (CONTRERA,
2010, p. 59).

Toda manifestação religiosa conta com sua gama de símbolos, e


com o Círio não poderia ser diferente, como por exemplo:

• A imagem autêntica que foi encontrada por Plácido em 1700;


• A imagem peregrina que por motivos de segurança foi confec-
cionada para substituir a imagem original e essa versão sofreu
algumas alterações em suas feições e atualmente é essa imagem
que é levada em todas as procissões oficiais do Círio e também
é ela que é fotografada para a confecção do cartaz;
• O manto da santa que é uma oferta de famílias tradicionais
ou de pessoas do círculo político da cidade. Reza a lenda que
quando a imagem foi encontrada ela já vestia um manto e ao
longo dos anos ele foi sendo substituído;
• Berlinda que transporta a santa ao longo das romarias;
• Corda puxada pelos promesseiros. É um dos maiores ícones
da procissão do Círio e da trasladação – de um lado ficam os
homens e do outro ficam as mulheres – e é essa corda que faz a
berlinda da santa se movimentar;
• Cartazes todos são confeccionados em larga escala e distribu-
ídos gratuitamente em igrejas, supermercados e comércios em
geral, o cartaz é colado nas portas de entrada das casas como
uma homenagem do fiél à sua padroeira.
88
O LOUVOR À GRANDE MÃE NAZARÉ: UM ESPE TÁCULO NA
CULTURA MIDIÁTICA

Ao longo dos anos o cartaz do Círio assumiu um papel rele-


vante no que diz respeito a apresentação da maior festa religiosa do
mundo que vai muito além de uma simples peça publicitária criada
por uma agência tradicional da cidade de Belém. Ele ocupa lugar de
destaque nas casas, prédios públicos, empresas entre outros. E não
apenas no estado do Pará, mas, inclusive em outros estados brasi-
leiros e até em alguns países. No ano de 2011 houve uma novidade
curiosa na criação do cartaz, a organização possibilitou que os fi-
éis tivessem seus rostos publicados na arte do cartaz e, aproxima-
damente mil fotografias em formato 3x4 foram encaminhadas aos
organizadores e cerca de quinhentas delas foram selecionadas para
ilustrar o plano de fundo do cartaz de 2011. A construção faz certa
referência a uma imagem muito viva em nossas memórias, que é a
construção de um perfil de rede social, dado que essa construção
nos leva a imaginar que se trata da foto do perfil de cada um da-
queles fiéis. Levando em consideração seus aspectos simbólicos na
era midiatizada e tecnológica que presenciamos, os hibridismos que
laceiam aspectos culturais e míticos, percebe-se que o tecnológico e
o religioso estão presentes e latentes no imaginário socio-cultural e
arquetípico do paraense.
Os primeiros anos da última década abriram a possibilidade de
acesso a internet aos brasileiros de modo geral, e isso também pos-
sibilitou o advento de novos tipos de manifestações religiosas, for-
mas interativas e relações comunitárias na rede. E tal advento deixa
registro nesta sociedade, notadamente marcada pela presença mas-
siva dos meios interativos de comunicação, alterando o cotidiano,
profundamente. E as experiências religiosas também não passam
ilesas a esta midiatização. Atualmente o número de pessoas ligadas
ou não a qualquer tipo de experiências religiosas, que lançam mão
dos meios de comunicação eletrônicos como mediador dessas expe-
riências é crescente. Contrera (2010), considera que o processo de
dessacralização do mundo desembocou na sacralização da mídia.

89
JORGES MIKLOS E ARIANA NASCIMENTO SILVA

Esse fenômeno promove uma dupla contaminação entre religião e


mídia, isto é, os formatos midiáticos se apropriam de elementos do
ritual religioso submetendo-os a uma estética própria. A religião se
midiatiza e simultaneamente os meios eletrônicos de comunicação
são sacralizados.
Ocorre uma mútua influência, ou seja, os formatos midiáticos
são apropriados pelos rituais religiosos resignificando seu sentido
e os aparatos eletrônicos (televisão, rádios e os computadores com
acesso à internet) ocupam os lugares que antes eram dos altares,
como forma de explicar estas suposições. Existe uma transferência
da representação de um lugar para o outro, como forma de trans-
cender o divino deslocando antigas práticas para as novas formas de
consumo de produtos veiculados pela web, especialmente os religio-
sos. Neste caso, em particular, faz-se necessário entender quais as
tramas se escondem por trás desse fenômeno; a mística que envolve
a adoração do cartaz que envereda por conceitos que vão além da
imagem, constituem-se principalmente pelos estudos acerca da ico-
nofagia e da antropofagia impura, ou seja, os corpos que devoram
imagens e imagens que devoram corpos.

Os fiéis que devoram o cartaz versus O cartaz que de-


vora os fiéis

A tradicional agência de publicidade e propaganda Mendes


que, atua no ramo desde 1961 é a responsável pela criação da arte
do cartaz que encanta todos os anos os fiéis da Virgem de Nazaré
desde 1991, como voluntária. Pensando sobre todas as informações
disponíveis a respeito da criação do cartaz, não se pode deixar de
pensar nas consequências que acarretam no comportamento dos
fiéis, ou seja, a exagerada adoração do cartaz, a qual se torna, por-
tanto, muito mais que uma arte decorativa com data de validade

90
O LOUVOR À GRANDE MÃE NAZARÉ: UM ESPE TÁCULO NA
CULTURA MIDIÁTICA

impressa: Círio 2011. E como se não fosse o bastante a adoração exa-


gerada, juntou-se a este fato a doação espontânea de fotografias 3x4
para ilustrar o mosaico de fiéis advindo da sugestão de colaboração
pela Mendes a partir de um concurso cultural, segundo o fiel Dário
Benedito Rodrigues “A ideia foi mostrar a diversidade da fé e suas
várias faces. Participei por meio do site www.ciriodenazare.com.br/
cartaz2011 e respondi à pergunta: “Por que você quer que a sua foto
faça parte do cartaz do Círio 2011? “Fazendo o upload de uma foto.
Aqueles que tiveram as respostas mais interessantes tiveram suas
fotos selecionadas.” O resultado foi divulgado no dia 27 de maio de
2011, exatamente na ocasião do lançamento oficial do cartaz daquele
ano que atingiu a tiragem recorde de 880.000 cartazes.
O processo de iconofagia impura é facilmente percebido no
processo de criação do cartaz 2011 a partir do momento em que se
consome a representação da imagem. Segundo Baitello Jr.:

A proliferação indiscriminada e compulsiva de imagens exógenas


em todas as linguagens em todos os tipos de espaços midiáticos
gera também nos receptores a compulsão exacerbada de apropria-
ção. Todavia não se trata mais de um processo de apropriação de
coisas, mas de suas imagens, não coisas. Assim, cresce o fluxo apro-
priador de objetos de natureza distinta do corpo que se apropria.
Trata-se, portanto de um vínculo de apropriação heterodoxa, uma
alimentação que não possui a substância que requerem os corpos
para estarem alimentados. (2005, p.96.).

A apropriação exagerada do cartaz do Círio não se dá


necessariamente pela satisfação de ter a peça em formato A3 fixado
na porta de entrada, não se trata da peça, da arte ou da diagramação,
mas, da representação pessoal que imagem ali impressa representa
no imaginário pupular e cultural do paraense. O cartaz passa da ca-
tegoria de símbolo do Círio para a categoria de representação midi-
ática, tanto que, existe um evento para a sua apresentação à socieda-

91
JORGES MIKLOS E ARIANA NASCIMENTO SILVA

de, para que no momento seguinte os cartazes sejam distribuídos e


consumidos pelos fiéis, lembrando que os cartazes são distribuídos
gratuitamente, ainda segundo Baitello Jr, a palavra consumo tem
sentido de devorar e esgotar, “Isto equivaleria a dizer que devorar
imagens pressupõe também ser devorado por elas.” (2005, p. 96.).
Por outro lado, o cartaz também se alimenta daqueles que o
consomem. Essa antropofagia fica evidente no cartaz de 2011 quan-
do da construção de sua ideia criativa como peça tradicional publi-
citária, pois no momento em que a arte é composta pelas imagens
dos fiéis, o cartaz, ao mesmo tempo neste se alimenta das imagens
doadas, para ganhar corpo:

Alimentar-se de imagens significa alimentar imagens, conferindo-


-lhes substância, emprestando-lhes corpos. Significa entrar dentro
delas e transformar-se em personagem (recorda-se aqui a palavra
“persona” como “máscara de teatro”). Ao contrário de uma apro-
priação, trata-se aqui de uma expropriação de si mesmo. (BAI-
TELLO JR, 2005, p. 96).

Esse processo recíproco de devoração entre o fiel e o cartaz e o


cartaz e o fiel dura um curto espaço de tempo, pois, logo o ciclo de
festas se encerra e o cartaz continua fixado a parede fazendo exata-
mente aquilo que está destinado a fazer: nos devorar diariamente
(2005, p. 97). O cartaz acaba por se desgastar, envelhecer e descolo-
rir e consequentemente e inevitavelmente será substituído por uma
nova criação da Agência Mendes que será replicada novamente ali-
mentando o fluxo de consumo.

Considerações finais

Para entender melhor o processo de midiatização do cartaz do


Círio se faz necessário entender a dinâmica que envolve o Círio de

92
O LOUVOR À GRANDE MÃE NAZARÉ: UM ESPE TÁCULO NA
CULTURA MIDIÁTICA

Nazaré, toda a sua história de origem, costumes, rituais e aconteci-


mentos que ocorrem simultaneamente à festa para extrair a essência
cultural da manifestação religiosa. Entender como surgiu e como as
pessoas se enxergam durante o período, como se preparam e espe-
ram pela chegada do mês de outubro. Dentre todos os símbolos que
compõem o Círio, o cartaz é um exemplo emblemático acerca da
influência dos processos de midiatização no campo religioso, haja
vista que, é confeccionado por uma das agências de publicidade e
propaganda mais tradicionais de Belém e passa por um processo
criativo e tecnológico na sua criação. A grande ideia para o cartaz
2011 sem dúvida foi o concurso cultural promovido pela agência,
que possibilitou aos fiéis a oportunidade de terem suas fotos como
plano de fundo ornamentando aquele símbolo tão aguardado du-
rante dos dias que antecedem a sua apresentação, deixando estes
mesmos fiéis ansiosos por consumir suas próprias imagens junto a
imagem da santa. Na mesma medida em que o cartaz 2011 consu-
miu as imagens dos fiéis, o Círio converte em imagem consumindo
outras imagens. Os fiéis emprestam suas imagens para dar corpo
ao cartaz e ornamentação ao plano de fundo da santa e simultanea-
mente a isto, o cartaz consome as imagens emprestadas dos fiéis em
uma espécie de simbiose, uma retroalimentação iconofágica cons-
tante do criador e sua criatura, midiatizados e replicados ao longo
do mês de outubro em Belém do Pará.

Referências Bibliográficas

BAITELLO JR, Norval. A era da iconofagia: ensaios de comunicação e


cultura. São Paulo: Hackers.

CONTRERA, Malena Segura. Mediosfera: meios, imaginário e


desencantamento do mundo. São Paulo: Annablume, 2010.

93
JORGES MIKLOS E ARIANA NASCIMENTO SILVA

FAUSTO NETO, Antônio. Midiatização: prática social, prática de sentido.


Paper: Encontro Rede Prosul – Comunicação, Sociedade e Sentido, no
seminário sobre midiatização, Unisinos. PPGCC, São Leopoldo, 2006b.

HOPCKE, Robert H. Guia para a obra completa de C.G. Jung. 3. ed.


Petrópolis: Vozes, 2012.

IPHAN. Círio de Nazaré. Rio de Janeiro: IPHAN, 2006.

JUNG, Carl. Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2. ed. Petrópolis:


Vozes, 2000.

NETTO, Angelim. A Festa de Nazareth e o arcebispo Joffily. Folha do Norte.


Belém, 1926.

PERUZZOLO, Adair Caetano. A comunicação como encontro. Bauru:


Edusc, 2006.

WEBER, Max. Ciência e Política: Duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1970.

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http://agnusbelem.blogspot.com.br/2011/05/o-cartaz-do-cirio-2011.html.

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94
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO:
UMA TEIA DE VÍNCULOS

Jorge Miklos
Agnes Arruda

Introdução

“Comunicação é Tolerância” (Harry Pross)

Em 2015-16, os autores deste texto estiveram no sul do México,


especificamente nos estados de Oaxaca, com o intuito de reconhecer
o modo de vida dos povos indígenas, suas relações sociais, culturais
e comunicativas, bem como as experiências de resistência comu-
nitária. Noventa por cento da população oaxaquenha é de origem
indígena, e a região é considerada a mais pobre do país. Apesar de
estar geograficamente distante dos muros estadunidenses, trata-se
de uma população reprimida, perseguida, humilhada e explorada
pelos “gringos”. Vivem refugiados nos povoados, nas selvas e nas
pequenas cidades. Sua resistência reside no laço comunitário, na
manutenção da memória coletiva por meio da agricultura habitual,
da alimentação tradicional, do vestuário originário e da consciência
de que a Terra é uma mãe que os alimenta e os protege em suas en-
tranhas. Entre a mãe terra e seus filhos a relação não é de uma escri-

95
JORGES MIKLOS E AGNES DE SOUSA ARRUDA ROCCO

tura de propriedade, mas de pertencimento mútuo. Muito antes de


o biólogo alemão Ernst Haeckel talhar o conceito ecologia, os povos
originários já tinham uma percepção profunda da integração con-
creta e imaginária do mundo e que, numa perspectiva do sagrado, é
impossível separar a Terra dos filhos da Terra.
O ímpeto comunicativo sempre fez parte da vida do homem.
Ser gregário, que vive em bandos e precisa de seus pares para so-
breviver, seja na selva de pedra cotidiana ou na savana da época da
queda, ele encontrou na troca de sinais uma das formas de fazer sua
existência ter sentido. Foram necessários, no entanto, milhares de
anos de evolução para que estudiosos debruçassem suas pesquisas
a essa ação tão elementar para a humanidade: a comunicação. Isso
porque foi só em meados do século XX, com a Escola de Chicago,
que os primeiros estudos da área começaram a aparecer (MATTE-
LART, 1999).
À época, no entanto, interessava aos pesquisadores não a co-
municação em si, mas as maravilhas proporcionadas pela tecnolo-
gia, que naquele momento, começava a construir o sólido caminho
das telecomunicações. Isso porque o salto temporal do telégrafo à
internet foi incrivelmente mais curto que o das pinturas rupestres
ao jornal impresso; o que justificava, por si só, tê-los como objeto
de estudo.
A estrutura dos meios, suas possibilidades de transmissão e os
impactos da recepção das informações ganharam ensaios e mais
ensaios, pesquisas técnicas, de mercado, acadêmicas... Ainda mais
quando, após a segunda guerra, o imperialismo estadunidense e o
capitalismo definitivamente se tornaram realidades mundiais. Afi-
nal, que outra ferramenta poderia ser tão eficaz para influenciar
comportamentos quanto à mídia? Dessa forma, financiados pelos
governos e pelas grandes empresas, institutos de pesquisa se de-
dicaram cada vez mais a investigar e a solucionar as minúcias do
processo midiático atendendo a uma única lógica: a do mercado.

96
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO: UMA TEIA DE VÍNCULOS

Recentemente, no entanto, uma afirmação óbvia, porém re-


legada aos últimos planos nesse campo acadêmico, tem animado
debates na área. Baitello (1998, p. 11), ao dizer que “Todo processo
comunicativo tem suas raízes em uma demarcação espacial chama-
da corpo”, retorna à discussão sobre comunicação dos meios para as
pessoas, sendo elas as principais – se não únicas – agentes interes-
sadas nesse processo.

A instância “corpo” é fundante para o processo comunicativo. É


com ele que se conquista a vertical, a dimensão do espaço que
configura as codificações do poder. É com ele que se conquista a
dimensão da horizontalidade e as relações solidárias de igualdade.
É com o corpo, gerando vínculos, que alguém se apropria de seu
próprio espaço e de seu próprio tempo de vida, compartindo-os
com outros sujeitos. Mas é também aí, no estabelecimento de vín-
culos, materiais ou simbólicos, que inicia a apropriação do espaço
e do tempo de vida de outros.

Sob essa ótica, entender de comunicação é, antes de tudo, en-


tender de gente, do ser humano. Ser humano esse que, como explica
Morin (1979), é muito mais complexo do que uma mera junção de
matéria e intelecto. O autor fala, em seus próprios termos, do ho-
mem bio-psico-sócio-cultural, ou homo sapiens-demens, uma cria-
tura que, na queda, se descobriu mortal e que, desde então, vem
tentando superar essa mortalidade. Suas alternativas variam desde
se fazer imortal por seus feitos e virar mito, até a criação de siste-
mas complexos do imaginário como as religiões, que preveem em
alguns casos, na pós-morte, uma vida em paraíso ou, em outros, a
reencarnação.
Para Morin, a demência está justamente no fato de que esses
sistemas não estão relacionados ao racional. Afinal, apenas para
ilustrar, o que de racional tem em um chefe de família tirar 10% de
seu salário mínimo, utilizado para sustentar um casal mais cinco

97
JORGES MIKLOS E AGNES DE SOUSA ARRUDA ROCCO

filhos por um mês todo, e ofertar a uma igreja como prova de sua le-
aldade a um Deus que ele nunca viu, só ouviu falar? Racionalmente,
esses 10% seriam usados para comprar comida, remédio, roupa. Ou
até um plano de dados para acessar a internet pelo celular e, assim,
de acordo com os discursos otimistas deste campo de estudo, ter
acesso à informação e finalmente dar um rumo para a sua vida? Mas
na lógica do sapiens-demens, esse valor é a garantia de que, num
futuro próximo, em terra ou em outro plano, seu bem-estar e de sua
família estarão garantidos.
Assim, como determinar que os processos aos quais esse ho-
mem está inserido podem ser considerados cartesianos, técnico-
-científicos, metodologicamente testados e comprados se, por suas
características, ele é totalmente influenciado por sua bagagem
histórica-social? Como investigar aspectos de sua comunicação se
ontogênese das teorias sobre esse campo ignoram totalmente essas
questões e transformam o processo comunicacional em um mero
jogo de pingue-pongue que considera o modelo “Emissor-Meio/
Mensagem-Receptor” o único possível? E, por último, por enquan-
to, como falar de comunicação cidadã se, na lógica desses estudos,
Meio/Mensagem atendem a um único senhor: o capital?
São questionamentos que, a partir de agora, guiam este traba-
lho, que reflete sobre essas questões e discute a formulação de uma
ecologia da comunicação, interligando saberes para uma comunica-
ção social cidadã.

Uma Teia de Vínculos Comunicativos


a Terra não pertence ao homem; o homem pertence à Terra. Isto
sabemos: todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma
família. Há uma ligação em tudo. O que ocorrer com a Terra recairá
sobre os filhos da Terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele

98
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO: UMA TEIA DE VÍNCULOS

é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido, fará a si


mesmo.” (Carta do chefe indígena Seattle ao presidente dos EUA).

A conhecida carta do chefe Seattle escrita no século XIX aler-


tava para dois temas que comprometiam o futuro da espécie Homo
sapiens: 1) o desenvolvimento econômico acelerado, escorado pela
ideologia do progresso (discurso dominante das elites globais),
acarretava exclusão, desigualdades e graves danos ambientais, agre-
dindo e restringindo direitos humanos essenciais; 2) A vida é um nó
de relações. O chefe Seattle antecipou os fundamentos básicos da
ecologia profunda como demonstra Fritjof Capra:

A ecologia rasa é antropocêntrica, ou centralizada no ser humano.


Ela vê os seres humanos como situados acima ou fora da natureza,
como a fonte de todos os valores, e atribui apenas um valor ins-
trumental, ou de ‘uso’, à natureza. A ecologia profunda não separa
seres humanos — ou qualquer outra coisa — do meio ambiente
natural. Ela vê o mundo não como uma coleção de objetos isolados,
mas como uma rede de fenômenos que estão fundamentalmente
interconectados e são interdependentes. A ecologia profunda reco-
nhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres
humanos apenas como um fio particular na teia da vida. (CAPRA,
2012, p. 23)

A vida se organiza e se desorganiza por meio de redes. Um dos


fundamentos das redes são as permutas, que garantem seu movi-
mento. Essas correspondências são o que podemos apreender por
Comunicação. Esta é o que solidifica o fenômeno da vida e da so-
ciabilidade, a estratégia que permite que nos liguemos ao mundo,
nossa principal via de acesso ao ambiente.
Com o objetivo de compreendermos a emergência de um novo
paradigma comunicacional (Ecologia da comunicação Cidadã), na-
vegamos no contexto de uma visão orquestral e interdisciplinar de

99
JORGES MIKLOS E AGNES DE SOUSA ARRUDA ROCCO

comunicação que nos permita perceber que estamos enredados em


processos biológicos, psicológicos, sociais e comunicativos.
“Sem amigos”, escreveu Aristóteles em Ética a Nicômaco, “nin-
guém escolheria viver, ainda que tivesse todos os outros bens” (2011,
p. 34). Temos uma necessidade de nos afiliarmos com os outros, e
até de nos tornarmos fortemente ligados a algumas pessoas em rela-
cionamentos íntimos e duradouros. Os seres humanos têm um an-
seio de comunidade. Roy Baumeister e Mark Leary (1995) reuniram
evidências dessa profunda necessidade de pertencimento.
A necessidade de reconhecimento e o convívio são diretamente
ligadas às pulsões de existir, cunhando o ambiente propício à intera-
ção que nada mais é do que essa relação entre o eu e o outro. Segun-
do Todorov, a necessidade desse reconhecimento no outro, presente
na pulsão “existir”, nasce e morre com o indivíduo, acompanhando-
-o desde a tenra idade até o leito de morte. E, assim como se dá no
transcorrer da vida, essa pulsão cresce no início e diminui no final,
o aumento da solidão e do isolamento do idoso faz com que ocorra
a diminuição de sua existência: “o ser humano vive talvez inicial-
mente em sua pele, mas começa a existir apenas a partir do olhar do
outro” (TODOROV, 1996, p. 67).
Na relação comunitária, o indivíduo, ao partilhar da existência,
se reconhece na vida do outro. Nesse sentido, é elucidativo saber:
“se eu quero que a minha vida tenha sentido para mim é necessário
que tenha sentido para os outros” (BLANCHOT apud PAIVA, 1997,
p. 88).
Envolvidos em uma teia de vínculos, percebemos que os seres
humanos participam como sujeitos ativos da comunicação na me-
dida em que sua incompletude os obriga a constituição emergencial
e permanente de vínculo sociais e comunicativos, como sugere Ma-
lena Contrera:

100
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO: UMA TEIA DE VÍNCULOS

Considerando o vínculo “a base primeira para a comunicação”, es-


ses vínculos passam a ser uma das questões centrais dos estudos
sobre a comunicação humana, ainda que não tenham sido devi-
damente considerados até o presente momento. Nesse sentido, é
importante que façamos uma ressalva acerca do fato de que é a
desconsideração do papel do vínculo para a comunicação que cola-
bora para a manutenção de uma visão empobrecida sobre o proces-
so comunicativo, muitas vezes conferindo às trocas de informação
seu aspecto central. Ainda vemos, nos estudos da comunicação,
uma confusão entre teorias da informação e teorias da comunica-
ção, sendo que as primeiras se ocupam normalmente de aspectos
funcionais e instrumentais das trocas informativas, alinhando-se
muitas vezes aos estudos da cibernética, enquanto a segunda deve-
ria se ocupar dessa dimensão complexa da constituição e dinâmica
dos vínculos comunicativos. Isso estabeleceria uma clara distinção
entre os papéis de informar e comunicar, hoje usualmente confun-
didos. Ao considerarmos os processos de vinculação, lançamos um
novo sentido às relações comunicativas, evitando uma concepção
de que trocas comunicativas se assemelham a meras relações co-
merciais e instrumentais, e chamando a atenção para a importância
dos processos de significação constituídos nessas relações. Nesse
sentido também podemos considerar a contribuição do estudo dos
vínculos comunicativos para um alargamento da compreensão so-
bre os meios de comunicação, entendendo-os como espaços (físi-
cos ou simbólicos) nos quais essa rede de vinculação deve operar
numa escala socialmente maior do que a da comunicação interpes-
soal, e refletindo sobre se esses meios têm ou não, de fato, desempe-
nhado esse papel, ou se se tornaram meros espaços funcionais por
onde transitam informações assépticas e vazias de sentido, apenas
quantitativa e mercadologicamente consideradas. (CONTRERA,
2010, p. 354)

Retomando a premissa de que tudo está interligado e que a vida


é um nó de relações, a comunicação é basal no processo de vincula-

101
JORGES MIKLOS E AGNES DE SOUSA ARRUDA ROCCO

ção e pertencimento. Por meio dela, o ser humano explora, aprende


e constrói a sua subjetividade e reconhece o seu entorno social que,
por sua vez, o constitui e engendra sua identidade.
Nesse sentido, há um reconhecimento da relevância da comu-
nicação e da liberdade de expressão, que passa a ser entendida como
elemento fundamental na garantia dos cidadãos livres, cabendo ao
Estado estabelecer condições para assegurar seu exercício. A Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos (1948) incorporou em seu
artigo 19 como direito a ser garantido: “todo indivíduo tem direito
à liberdade de opinião e de expressão; este direito inclui a liberdade
de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmi-
tir informações e ideias por quaisquer meios, independentemente
de fronteiras” (Assembleia Geral das Nações Unidas, 1948, Art. 19).
Ao longo do século XX, ela foi sendo progressivamente incorporada
aos marcos jurídicos nacionais e internacionais.
O direito à comunicação e à liberdade de expressão assume
uma moldura cada vez mais coletiva e se une umbilicalmente ao
conceito desenvolvido pelo sociólogo francês Henri Lefebvre Direi-
to à Cidade, livro publicado pela primeira vez em 1968 no calor nas
manifestações estudantis. Lefebvre define o direito à cidade como
um direito de não exclusão da sociedade urbana das qualidades e
benefícios da vida urbana. Direito à cidade é expressão maior da
cidadania.
Nos últimos anos tem havido muitos protestos e movimentos
sociais sob o slogan ‘direito à cidade’, que aglutinam desde morado-
res de grandes capitais como São Paulo e Rio de Janeiro, resistin-
do às remoções, até artistas de rua que reivindicam o grafite como
um processo comunicativo que humaniza e transforma o espaço
urbano:
Nesse sentido, se comunicação é a peça-chave no processo de
hominização e vinculação social, o direito à comunicação não está
divorciado do direito à cidade, pois como frisa David Harvey:

102
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO: UMA TEIA DE VÍNCULOS

a questão do tipo de cidade que queremos não pode ser separada


da questão do tipo de pessoas que queremos ser, que tipo de rela-
ções sócias buscamos, que relações com a natureza nos satisfazem
mais, que estilo de vida desejamos levar, quais são os nossos valores
estéticos. (HARVEY, 2014, p. 28).

Lefebvre, Harvey, grafiteiros e militantes pelo direito à moradia,


e outros que aspiram uma cidade e uma humanidade melhor, reco-
nhecem que a comunicação e o convívio são diretamente ligados às
pulsões de existir. Isto cria o ambiente propício da “interação” que
nada mais é do que essa relação entre o eu e os outros.

2. Sobre pontes, muros e catástrofes

“A ponte não é de concreto, não é de ferro/Não é de cimento/A


ponte é até onde vai o meu pensamento/A ponte não é para ir nem
pra voltar/A ponte é somente pra atravessar/Caminhar sobre as
águas desse momento”. (Lenine)

Refletindo a respeito dos vínculos comunicacionais mídia,


Norval Baitello Jr., importante expoente do pensamento comunica-
cional brasileiro, escreveu um instigante texto:

O que são os meios, ou seja, o que é a mídia? Por que nos preocu-
pamos tanto com os meios, com esse “meio de campo” entre o um e
o outro? Porque há aí um abismo. E abismos são vazios gigantescos
e assustadores. Como temos horror ao vazio, tentamos preenche-lo
com tudo o que temos à mão: com os gestos, com a voz, com os
rastros (olfativos, visuais, auditivos ou táteis), com as imagens ar-
caicas, com escritas de todos os tipos, com as imagens produzidas
por máquinas e até mesmo com as próprias máquinas de imagens.
Mas preencher o abismo é um trabalho insano e inglório, com en-

103
JORGES MIKLOS E AGNES DE SOUSA ARRUDA ROCCO

xugar gelo ou esvaziar um rio. Há apenas lampejos de um fugaz


preenchimento, pontes fugazes que nos levam até o outro, trans-
pondo por breves relances o vazio do abismo. Como dizia Walter
Benjamin em suas “Teses sobre a Noção de História”, ‘um lampejo
no momento de um perigo’. Para conseguir esses lampejos e tais
relances é que experimentamos todos os meios, todo tipo de mídia
– dentre eles, as imagens, os sons, os gestos, os perfumes naturais e
artificiais, os rastros e os cortes, as escritas todas. A essa atividade
damos o nome de comunicação, criação de pontes para atravessar
o abismo que separa o eu do outro. (grifo dos autores). A essas
pontes, como elas se colocam no meio de campo damos o nome de
“mídia” ou “meios” ou “media”. Repetindo e resumindo, pois nunca
é demais enfatizar: mídia é meio de campo que procura superar o
abismo entre o eu e o outro. Não se esqueça de que abismos são
zonas inóspitas, tais quais os desertos. (BAITELLO JR, 2012, p. 34).

Na medida em que todos os seres vivos são sistemas abertos e


vinculantes, a metáfora da ‘ponte’ cai como uma luva para pensar a
comunicação humana. As pontes, literais e imaginárias possibilitam
o movimento, a conexão, a comunhão e a vinculação, as trocas entre
os seres vivos. Malena Contrera, na linha das pontes imaginárias,
considera:

Toda comunicação é uma tentativa de re-união com o mundo, de


estabelecer um vínculo que possa ser ponte entre a consciência e o
sentimento primordial de fazer parte, de pertencer. Toda comuni-
cação verdadeira, neste sentido, é uma ponte que se estende sobre
o nada, que só aparece na beira do abismo, para quem se atreve
a dar o passo nesse nada que se chama “ir em direção ao outro”.
Muitos não veem relação direta entre comunicação e comunhão,
mas para mim ela parece inegável. Mesmo que haja dissenso, que
haja diferença, que haja tensão, não é nada disso que nos mobiliza
a buscar uma comunicação possível. É o comum que nos aproxima,
que faz com que mesmo em meio a toda a dificuldade, como diz

104
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO: UMA TEIA DE VÍNCULOS

Chico Buarque, eu ‘ajeite o meu caminho para encostar no seu’.


(CONTRERA, 2007).

As pontes aproximam os distantes e unem os diferentes. Seres


humanos são construtores de pontes (concretas e imaginárias) que
fecundam passagens e viagens iniciáticas. Por exemplo, os mitos são
pontes que se abrem para a transcendência possibilitando a ligação
dos homens aos deuses (universo simbólico) e dos seres humanos a
outros seres humanos (universo social). É interessante notar que o
título de Pontífice (Pontifex) que era atribuído aos imperadores ro-
manos e permanece sendo o do Papa significa construtor de pontes
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002).
Porém, apesar de o ser humano ter uma natureza pontifícia, há
quem opte pelos muros imaginários e literais da exclusão, da rigi-
dez, da unilateralidade, da egolatria, da desigualdade. A muralha
da China, o muro de Berlim e o projeto do recém-eleito governo
estadunidense em construir um muro na fronteira entre os Estados
Unidos da América e o México revelam os paradoxos do que pode-
mos entender por comunicação.
O projeto do muro estadunidense esboça claramente o parado-
xo da globalização percebido por Bauman que, diferente das pontes
que ligam, pretende apartar:

Para os habitantes do Primeiro Mundo — o mundo cada vez mais


cosmopolita e extraterritorial dos homens de negócio globais, dos
controladores globais da cultura e dos acadêmicos globais — as
fronteiras dos Estados foram derrubadas, como o foram para as
mercadorias, o capital e as finanças. Para os habitantes do Segundo
Mundo, os muros constituídos pelos controles de imigração, as leis
de residência, a política de “ruas limpas” e “tolerância zero” fica-
ram mais altos; os fossos que os separam dos locais de desejo e da
sonhada redenção ficaram mais profundos, ao passo que todas as
pontes, assim que se tenta atravessá-las, revelam-se pontes levadi-

105
JORGES MIKLOS E AGNES DE SOUSA ARRUDA ROCCO

ças. Os primeiros viajam à vontade, divertem-se bastante viajando


(particularmente se vão de primeira classe ou em avião particular),
são adulados e seduzidos a viajar, sendo sempre recebidos com
sorrisos e de braços abertos. Os segundos viajam às escondidas,
muitas vezes ilegalmente, às vezes pagando por uma terceira classe
superlotada num fedorento navio sem condições de navegar mais
do que outros pagam pelos luxos dourados de uma classe executiva
— e ainda por cima são olhados com desaprovação, quando não
presos e deportados ao chegar. (BAUMAN, 1999, p. 97)

Se a comunicação implica pontes, o muro (mesmo imaginário)


sugere incomunicação. O muro é a engenharia da ignorância, do
preconceito, da misoginia, da xenofobia e do racismo, que separa
os seres humanos entre eles. A opinião do advogado e também de
muitos brasileiros demonstra que já existem muitos muros invisí-
veis que habitam dentro da consciência coletiva.
A recorrente metáfora do muro que habita o imaginário de lí-
deres políticos indica que parte da humanidade está dissociada. O
atual estado dominante no planeta constitui uma catástrofe global.
Trata-se, segundo Leonardo Boff (1995), de uma crise ecológica e de
uma crise do paradigma civilizacional.
Um conjunto de catástrofes ambientais e sociais (poluição e
mudanças climáticas, escassez de água potável, perda da biodiversi-
dade, deterioração da qualidade de vida humana e degradação so-
cial, recrudescimento da desigualdade planetária, violência urbana,)
permeia o cotidiano terrestre. O capítulo um da Encíclica do Papa
Francisco (2015) “Laudato Si”: sobre o cuidado da casa comum, bem
como de vários relatórios por entidades científicas contribuem não
apenas para evidenciar a ‘banalidade do mal’, mas, sobretudo, para
desconstruir o discurso hegemônico sobre a globalização associada
à ideia de progresso inexorável.
Se as pontes oferecem caminhos de encontro, os muros pre-
nunciam separações e desencontros. Enfrentamos um paradoxo já

106
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO: UMA TEIA DE VÍNCULOS

profetizado por Walter Benjamin (2006) e seu anjo da história e


testemunhadas por Günther Anders (2011) que diagnosticou a ob-
solescência do homem: destruição, morte e desesperança acompa-
nham incríveis inovações tecnocientíficas. Nesse cenário lúgubre,
evidencia-se o crescimento exponencial de uma catástrofe comu-
nicacional: recrudescimento dos nacionalismos xenófobos, golpes
jurídicos-midiáticos, homofobia, misoginia, toda sorte de funda-
mentalismos (político e religioso), consumolatria, espetaculariza-
ção da existência, virtualização do corpo, concentração midiática e
o oligopólio midiático. Enfim, o progresso não tem conduzido, au-
tomaticamente, a uma sociedade melhor. Tem-nos conduzido para
a destruição. Muros são constituídos de paredes grossas e imperme-
áveis. O desafio para a cidadania é construir pontes transparentes,
porosas e permeáveis, ou seja, pontes comunicacionais.

3. Construindo Pontes: emergência de um novo


paradigma
“A maior nobreza dos homens é a de erguer sua obra em meio à
devastação, sustentando-a incansavelmente, a meio caminho entre
a agonia e a beleza.” (Ernesto Sábato)

Berlim, maio de 1945. A invasão do exército vermelho na cidade


implicou a destruição de 40% dos edifícios. Na Alemanha, sobraram
apenas de 10% a 20% dos centros urbanos. Em 1º de junho de 1945,
as mulheres de Berlim receberam a ordem para remover entulhos
e selecionar material para a reconstrução. Munidas de baldes, elas
juntavam e limpavam pedras e tijolos nas cidades arrasadas pelos
bombardeios. As “mulheres dos escombros” (trümmerfrauen, como
eram chamadas) estabeleceram os fundamentos da Alemanha do
pós-guerra. Uma dessas trümmerfrauen, Käthe Linke, lembra que
essa esperança se baseava, principalmente, na coesão e na cama-

107
JORGES MIKLOS E AGNES DE SOUSA ARRUDA ROCCO

radagem entre os sobreviventes da guerra: “Queríamos poder ir ao


teatro de novo. E era bonito, também, descobrir que as mulheres
começavam a conquistar sua autonomia” (ARNOLD, 1999, p. 237).
O exemplo notável da resiliência das trümmerfrauen corrobo-
ra com a afirmação de Leonardo Boff de que “a crise é criativa e o
sofrimento nos faz pensar” (1996, p. 9). Toda catástrofe engendra
amargura, angústia, ansiedade, mas esses sentimentos podem lan-
çar pontes para sonhos, esperanças e utopias. É disso que se nutrem
os movimentos sociais. Da lucidez de que esse não é o melhor dos
mundos, mas que precisa e pode ser transformado. O psicólogo su-
íço Carl G. Jung assinalava essa presença enantiodrômica na natu-
reza humana ao afirmar que: “Não há despertar de consciência sem
dor. As pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo para
evitar enfrentar a sua própria alma. Ninguém se torna iluminado
por imaginar figuras de luz, mas sim por tornar consciente a escuri-
dão”. (JUNG, 2013, p. 182).
A humanidade enlouqueceu de vez ou apenas agora nos demos
conta do quão loucos somos? Essa pode ser uma dúvida, entre tantas
outras, que aflige aqueles que dedicam seus estudos sobre a socie-
dade contemporânea e a sua relação com os meios de comunicação.
Isso porque cada vez mais notícias sobre as mais improváveis ações
e reações dos seres humanos nas mais diversas situações são extre-
mamente frequentes. A cada semana, uma nova pauta toma conta
da mídia e cada uma aparenta ser mais surreal que a outra. Pessoas
matando suas próprias famílias a sangue frio e à queima roupa, ou-
tras que praticam crueldades com animais indefesos e são respon-
sáveis por desastres ambientais, ondas de violência, corrupção. A
pergunta que fica é se essas situações são consequência da vida con-
temporânea ou se elas sempre ocorreram, mas agora, com o acesso
aos meios de informação, também se tem acesso a essas notícias. De
toda forma, a ideia que se tem é a de que a humanidade caminha
para o caos absoluto e que, em poucos anos, não haverá mais um

108
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO: UMA TEIA DE VÍNCULOS

caminho de volta para um convívio saudável e harmonioso entre os


seres. Uma catástrofe.
No entanto, é Wulf (2014, p. 55-56) quem afirma que, pela catás-
trofe, o homem se reinventa:

Assim como indivíduos e sociedades, as espécies também são mor-


tais. Incontáveis exemplos revelam que nenhuma espécie pode so-
breviver para sempre, e o fenômeno da extinção em massa é conhe-
cido por ter-se dado diversas vezes na história do nosso planeta.
[...] podemos concluir que a extinção é necessária para a evolução,
e o princípio prevalecente era provavelmente uma extinção seletiva
das espécies que não tinham nada a ver com a capacidade de adap-
tação dos organismos.
[...]
Após o desaparecimento dos dinossauros, os mamíferos eram,
inicialmente, muito pequenos desenvolvendo-se com o tempo, em
diversas formas, tais como roedores e cavalos primitivos, morcegos
e baleias e macacos e hominídeos.
Portanto, as catástrofes desempenham um papel produtivo na
evolução.

Nesse sentido, apesar do diagnóstico pessimista, o prognóstico


pode ser visto como uma luz no fim do túnel para a inter-relação
entre os seres humanos, confiando ainda que essa inter-relação está
intimamente ligada aos processos de comunicação social.
A crise é a base de toda a evolução humana. Apesar de ela gerar
sentimentos de violência e de violação, ela é a possibilidade de to-
mada de consciência e evolução criativa. Porque a crise, de maneira
violenta, tira o indivíduo de sua rotina profana, onde a vida é vivida
sem significado e sem sentido, podendo levá-lo, pela necessidade de
superá-la, a uma dimensão de vínculo com a solidariedade e com a
empatia.

109
JORGES MIKLOS E AGNES DE SOUSA ARRUDA ROCCO

É nesse sentido que pensadores contemporâneos detectam a


necessidade de uma nova compreensão e ação que enfrentem os
problemas globais. O já citado Capra (2006) propõe a Ecologia Pro-
funda com novos valores pensamento e valores integrativos (o in-
tuitivo, a síntese, o holístico, o não linear, a cooperação, a parceria)
e uma ética do cuidado.
Leonardo Boff (1996), desconstruindo a crença do senso co-
mum de que ecologia é “coisa de rico”, recoloca a discussão do eco-
lógico no social e no político e propõe caminhos e práticas de várias
ecologias: a ecotecnologia, a ecopolitica, a ecologia social, a ética
ecológica, a ecologia mental e a mística ecológica.
Por exemplo, Boff ao refletir sobre a ecologia social denuncia
que o atual modelo de sociedade imperante no mundo:

apresenta-se profundamente dualista. Divide pessoa/natureza, ho-


mem/mulher, masculino/feminino, Deus/Mundo, corpo/espírito,
sexo/ternura. E esta divisão sempre beneficia um dos pólos, origi-
nando hierarquias e subordinações no outro. No nosso caso trata-
-se de uma sociedade de estrutura patriarcal e machista. (BOFF,
1996, p. 31).

Esse padrão excludente, binário, violento e redutor das possibi-


lidades humanas e que reduz os seres humanos a meros autômatos
e reprodutores da consumolaria, foi denunciado pelo ex-presidente
do Uruguai, José Mujica que, ao ser chamado por um jornalista eu-
ropeu de “o presidente mais pobre do mundo”, respondeu: “Eu não
sou pobre, eu sou sóbrio, de bagagem leve. Vivo com apenas o su-
ficiente para que as coisas não roubem minha liberdade”. (RABU-
FFETTI, 2015, p. 43).
A esse modelo sombrio organizado pelo deus mercado que de-
sertifica o futuro, Boff saúda a possibilidade de um modelo de so-
ciedade que propicie as múltiplas possibilidades do ser humano e da
sociedade. Um modelo no qual:

110
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO: UMA TEIA DE VÍNCULOS

a imaginação, a fantasia, a utopia, o sonho, a emoção, o símbolo, a


poesia, a religiosidade devem ser tão valorizados quanto a produ-
ção, a organização, a funcionalidade e a racionalidade. Masculino/
feminino, Deus/mundo, corpo/psique devem ser integrados no ho-
rizonte de uma imensa comunidade cósmica. (BOFF, 1996, p. 33).

Esse novo modelo não é gestado no centro do capitalismo, mas,


ao contrário, na periferia dele. São os pobres, os excluídos dos di-
reitos, as pessoas em situação de rua, que sobrevivem na sarjeta,
marginalizados, os militantes da luta social, os negros brasileiros,
os homossexuais muçulmanos, as mulheres cubanas, os refugiados
sírios na Europa, as comunidades indígenas, zapatistas de Chiapas,
os integrantes das comunidades eclesiais de base cristãs na América
Latina, entre outros. São esses seres humanos que inventam novas
formas de saberes e que concebem novas ações alternativas interfe-
rindo para uma gestação do futuro.
Quem teoriza a respeito é Santos (2010), ao dissertar sobre a
Ecologia dos Saberes. Para o autor, o conhecimento é uma constru-
ção social, e quanto maior for seu reconhecimento, “maior será sua
capacidade para conformar a sociedade, para conferir inteligibilida-
de ao seu presente e ao seu passado e dar sentido e direção ao seu
futuro. (no entanto) [...] tende a estar tanto menos quanto maior é o
seu privilégio epistemológico” (SANTOS, 2010, p. 137). No entanto,
ao privilegiar o conhecimento científico, a sociedade ocidental o
pretendeu imune às transformações do mundo, o que é impossível
de ser feito. Afinal, quanto mais a ciência intervém no mundo, mais
contaminada dele ela estará... E vice-versa.
Acontece que há uma onda de pesquisa que prevê a indife-
renciação entre as ciências naturais das ciências sociais sob uma
perspectiva antirreducionista, ou, em termos morinianos (MORIN,
1979), uma perspectiva complexa. Nesse sentido, Santos (2010) pro-
põe a renúncia a uma epistemologia geral para dar conta das coisas
do mundo (o conhecimento técnico-científico) para que se volte a
111
JORGES MIKLOS E AGNES DE SOUSA ARRUDA ROCCO

perceber que, na verdade, existe no mundo uma condição de diver-


sidade epistemológica, em uma terceira via entre a epistemologia
convencional da ciência moderna e os outros sistemas de conhe-
cimento alternativos à ciência; não ignorando o método científico,
mas resgatando aquilo que de positivo foi por ele produzido.
Trata-se de uma tomada de consciência sobre as circunstâncias
e condições particulares em que o conhecimento é produzido, con-
siderando que “a definição dos objetos do conhecimento é indistin-
guível de uma relação com os sujeitos que são constituídos como
os seus objetos” (SANTOS, 2010, p. 150). Além disso, a Ecologia dos
Saberes prevê perspectivas interculturais, considerando a existência
de saberes plurais, alternativos à ciência moderna ou que com essa
se articulam em novas configurações de conhecimentos, que Santos
aponta serem conduzidas especialmente nas áreas mais periféricas
do sistema mundial moderna.
O autor questiona o fato de os conhecimentos não científicos
serem considerados “locais, tradicionais, alternativos ou periféricos
(sendo que) todo conhecimento é parcial e situado, (dessa forma)
é mais correto comparar todos os conhecimentos [...] em função
das suas capacidades para a realização de determinadas tarefas em
contextos sociais delineados por lógicas particulares” (SANTOS,
2010, p. 153).
Nesse sentido, ele afirma que “O multiculturalismo emancipa-
tório parte do reconhecimento da presença de uma pluralidade de
conhecimentos e de concepções distintas sobre a dignidade humana
e sobre o mundo” (SANTOS, 2010, p. 154).
Assim, considera-se que a diversidade epistêmica do mundo é
potencialmente infinita, não havendo conhecimentos puros, nem
completos, mas sim, constelações de conhecimentos, em um “con-
junto de epistemologias que parte da possibilidade da diversidade e
da globalização contra hegemônicas” (SANTOS, 2010, p. 154), sendo
que não há epistemologias neutras e que a reflexão deve incidir não

112
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO: UMA TEIA DE VÍNCULOS

nos conhecimentos em abstrato, mas nas práticas de conhecimento


e seus impactos em outras práticas sociais. Dessa forma, “o reco-
nhecimento da diversidade sociocultural do mundo favorece o re-
conhecimento da diversidade epistemológica de saberes do mundo”
(SANTOS, 2010, p. 156).
Para o autor, a Ecologia da Comunicação surge com o impulso
básico de resistência prática ao capitalismo global por meio de ação.
Ela está assentada “no reconhecimento da pluralidade de saberes
heterogêneos, da autonomia de cada um deles e da articulação sis-
têmica, dinâmica e horizontal entre eles” (SANTOS, 2010, p. 157),
cruzando-se saberes e ignorâncias.

4. Ecologia da Comunicação: uma proposta de co-


municação cidadã

“La comunicación tiene una dimensión ecológica y ética”


(Vicente Romano)

É o próprio Boaventura Santos que afirma ser imperativo “re-


novar a teoria crítica para reinventar a emancipação social”. Uma
ecologia social sugere o desafio de pensar uma ecologia comunica-
cional em prol de uma vida livre.
Foi o pensador espanhol Vicente Romano (1935-2014), intelec-
tual espanhol e aluno do cientista político alemão Harry Pross, que
propôs pensar uma ecologia da comunicação. Para ele, o processo
de comunicação humana nos possibilita a conexão, a comunhão, a
vinculação com os outros. É através da comunicação que experi-
mentamos as relações sociais, a vivência em comum, os sentimentos
de pertencimento a uma comunidade.

113
JORGES MIKLOS E AGNES DE SOUSA ARRUDA ROCCO

No livro, Ecología de la Comunicación, (ainda sem tradução


em português) Romano estimula o pensamento integrativo ecolo-
gia/social/comunicação argumentando que: “Nesta experiência do
comum, a comunidade, é onde a função básica da comunicação é
dada, de acordo com a tese ecológica: comunicação cria comunida-
de, comunicação cria comunhão.” (ROMANO, 2004, p. 31). Como já
foi dito antes, para ele, como vínculo entre um ser humano e outro
ser humano a Comunicação tem uma dimensão Ecológica e Ética.
Entretanto, para Romano, a crescente dissociação comunicati-
va (oligopólios midiáticos, perda do tempo presente, dromocracia)
traz consequências contrárias ao vínculo. A técnica e a comerciali-
zação da comunicação implicaram a industrialização com o objeti-
vo de converter o indivíduo em receptor ideal. A solidão e a perda
das relações, bem como o desequilíbrio da homeostase espiritual
interna, são os efeitos mais evidentes.
Para ele, atualmente predomina a Ideologia da Morte, ou seja,
a realidade virtual satisfaz mais que o real, o dinheiro impera como
sistema simbólico totalitário, a globalização da comunicação traz
efeitos nefastos para a democracia, a diversidade cultural é amea-
çada pela crença fundamentalista, a natureza é submetida à tecno-
logia e a concepção do tempo é alterada em termos de eficiência e
velocidade.
Nesse sentido, Romano considera que a Ecologia da Comuni-
cação é uma nova crítica da economia política da comunicação. A
Ecologia da Comunicação estabelece um vínculo entre comunicolo-
gia e ecologia humana. Observa dos efeitos da técnica na comunica-
ção humana e dos impactos da comunicação eletrônica na natureza
humana, na sociedade e no meio ambiente. Tem como propósito
libertá-la do jugo de simples meio de produção, do seu aspecto tec-
nológico e lucrativo para transformá-la em comunicação que pro-
duz e conserva experiências.

114
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO: UMA TEIA DE VÍNCULOS

Na condição de um intelectual engajado, para Roma-


no criticar os efeitos negativos não significa ser apocalíp-
tico ou tampouco manter-se na perspectiva catastrófica.
Mas, ao contrário é reconhecer que a lucidez a respeito dos pro-
cessos desumanos da comunicação é o primeiro passo em direção
a uma estratégia construtiva, no sentido de ampliar a qualidade de
vida dos seres humanos na medida em que promove a saúde e a
comodidade na vida das pessoas e das coletividades e contribui para
a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.
A Ecologia da Comunicação pretende averiguar até que ponto
é possível criar com a comunicação comunidades onde o mundo
surja como um meio e onde o ser humano se sinta realizado. Para
tanto, é urgente, segundo Romano, que os seres humanos ampliem
a consciência e assumam a responsabilidade diante do seu entorno
comunicacional, pois de modo análogo como ocorreu com o domí-
nio da natureza por conta da técnica – domínio que se traduziu em
um experimento falido e fatal – observa-se uma experiência seme-
lhante na esfera da comunicação, ou seja, o domínio dos processos
comunicativos pela racionalidade técnico-econômica trouxe conse-
quências que obliteram a realização do vínculo humano, na medi-
da em que a apropriação tecnológica está submetida aos interesses
econômicos.
Vicente Romano analisa o processo de privatização dos espaços
públicos, que antes eram espaços de comunicação, festa e proximi-
dade, não associados ao consumo, mas à celebração e à comunhão
do espaço e do tempo.

A democracia, como sistema aberto, implica necessariamente es-


paços abertos, para que todos possam ter acesso. O espaço público
deve ser do público, ou melhor, de todos os públicos, o lugar de
encontro do pluralismo e da interação social. E nesse sentido, os

115
JORGES MIKLOS E AGNES DE SOUSA ARRUDA ROCCO

espaços públicos tem grande importância para o desfruto e uso


coletivo do tempo livre, da comunicação, do consumo de cultura,
comodidades de um dia de folga, etc. (ROMANO, 2004, p. 97)

A Ecologia da Comunicação trata das consequências e das


intervenções tecnológicas da comunicação sobre seres humanos;
natureza extra-humana; sociedade, cultura e comunicação. Sendo
assim, estabelece necessariamente vínculos e cria comunidades, evi-
tando o esgarçamento do tecido social e fortalecendo a cidadania.
A proposta de um Paradigma Ecológico da Comunicação apon-
ta para uma experiência na qual os seres humanos percebam que
vivem em um só mundo, isto é, são parte de uma só comunidade.
O ‘nós” é mais importante que o ‘eu’. Como prenuncia o Umbuntu,
uma antiga palavra africana que tem origem na língua Zulu (perten-
cente ao grupo linguístico Bantu) e significa que “uma pessoa é uma
pessoa através (por meio) de outras pessoas”.
A Ecologia da Comunicação persegue garantir um equilíbrio
ecológico dos meios, ou seja, adaptar as tecnologias da informação
às condições e possibilidades da comunicação primária/presencial,
o que significa, em outras palavras, adaptar as tecnologias da infor-
mação às combinações ecocomunicológicas do ser humano.
A partir de uma perspectiva ecológica distingue-se três enfo-
ques na Ecologia da Comunicação:

a) A questão do poder e do domínio – o processo de desenvolvi-


mento e aplicação das novas tecnologias são regidos por inte-
resses econômicos em benefício privado
b) O Psicológico – A comunicação é constitutiva para a formação
da identidade, a interação social e a socialização
c) O sistêmico – que responde ao caráter básico de restauração da
comunicação

116
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO: UMA TEIA DE VÍNCULOS

Isso significa que a comunicação social deve possibilitar o de-


senvolvimento da identidade, o desenvolvimento corporal e espiri-
tual, a capacidade de relacionar-se, a competência de aprender e a
ética da solidariedade. Essa ecologia propicia a resistência às pre-
tensões do poder e dominação e fortalecimento da democracia, a
responsabilidade pelo entorno e por si mesmo.
Para os sistemas social, econômico, político, cultural e comu-
nicacional contemporâneo, é interessante que sejamos monotemá-
ticos, unilaterais, maniqueístas e unidimensionais. Porém, cada ser
humano carrega a herança de sua história pessoal e de sua memória
coletiva. Somos seres poliédricos, plurais, diversos, complexos e in-
determinados. O bem e o mal de uma vida não se decidem a partir
de princípios pré-estabelecidos: eles se decidem na complexidade da
própria vida da qual se trata.
Entretanto, o sistema sócio-comunicacional atenta contra a
liberdade e a cidadania na medida em que procura encerrar cada
indivíduo no casulo da mentalidade submissa. Mas, como aponta
Castells:

Entretanto, uma vez que as sociedades são contraditórias e confliti-


vas, onde há poder há também contrapoder (...) A verdadeira con-
figuração do Estado e de outras instituições que regulam a vida das
pessoas depende dessa constante interação de poder e contrapoder.
(CASTELLS, 2013, p. 27)

Dentro dessas contradições cresce uma consciência coletiva


que anseia por liberdade e democracia. O novo emerge. A expan-
são da catástrofe, da barbárie e da brutalidade não é suficiente para
aniquilar a esperança, pois na história da humanidade cada ato de
destruição encontrou sua resposta num ato de criação. A proposta
da Ecologia da Comunicação aponta para um potencial utópico,
como dimensão do real gerando forças de construção e de acolhida
do novo.

117
JORGES MIKLOS E AGNES DE SOUSA ARRUDA ROCCO

Considerações finais
“A minha humanidade está inextricavelmente ligada à sua humani-
dade.” (Lema Umbuntu).

A reflexão de Romano nos convoca a pensar a respeito das pos-


sibilidades da Ecologia da Comunicação que aqui procura-se não
apenas traduzir, mas, sobretudo ampliar, integrando o conceito em
uma escala ecológica em interseção com todas as outras ecologias.
Um primeiro movimento está na percepção de dado que tudo
está integrado e relacionado. Os dilemas contemporâneos requerem
que a proposta da ecologia da comunicação não pode ser excluída
da ecologia ambiental, econômica, social, cultural e cotidiana. Se
tudo que acontece com a terra, acontece com os filhos da terra, a
ecologia da comunicação deve ampliar-se para uma perspectiva de
uma ecologia da comunicação integrativa.
É fundamental pensar a comunicação humana e social no âm-
bito da complexidade na qual entende-se que na mesma medida em
que a natureza, a economia, a sociedade, a cultura, o cotidiano afe-
tam a comunicação, ela também é simultaneamente afetada e afeta
seu entorno.
Os movimentos sociais que aspiram uma sociedade mais justa,
igualitária, democrática e livre podem compreender que a comuni-
cação não é um mero instrumento midiático de luta, mas um siste-
ma complexo, diverso, indeterminado e vinculante.
A ecologia da comunicação está presente no paradigma da sus-
tentabilidade, na educação ambiental, na luta pela manutenção dos
biomas e da biodiversidade, na preservação das florestas, no comba-
te contra o desmatamento, na possibilidade do uso da energia ver-
de. Está presente na permacultura, na militância de Vandana Shiva
(2003) e sua denúncia a respeito da “monocultura da mente”.
E ecologia da comunicação é inseparável da ecologia econô-
mica que propõe um outro modelo de produção e distribuição de

118
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO: UMA TEIA DE VÍNCULOS

riqueza. Os recursos são limitados e finitos. É preciso saber bem


como e quando usá-los e como fazer para repô-los. É imperativo
que o pensamento econômico considere a sustentabilidade, o con-
sumo consciente, o uso austero da energia, a reutilização dos mate-
riais descartáveis, a redução do lixo, o uso e a reutilização da água
como fundamentos das suas práticas.
O modelo econômico que ignora a proposta da sustentabili-
dade é gerador de bolsões e misérias no mundo, engendrando uma
lógica de desigualdade acirradamente desumana. Por isso, a ecolo-
gia da comunicação é intrínseca à ecologia social. Como já foi dito,
sendo a comunicação uma experiência excepcional para a consti-
tuição dos vínculos humanos, a ecologia da comunicação volta-se,
sobretudo, no sentido de restaurar a perda dos laços e dos vínculos,
valorizando o pertencimento, a comunicação presencial e o encon-
tro humano.
A globalização criou uma nova religião: a religião do consumo.
Esse padrão tende a homogeneizar, enfraquecendo a variedade cul-
tural. E a comunicação massiva hegemônica exerce um papel pre-
ponderante nesse contexto na medida em que pasteuriza os conte-
údos simbólicos. A ecologia da comunicação denuncia a síndrome
consumista protegendo a diversidade cultural contra a colonização
do mercado global.
A ecologia da comunicação emerge em todas as minorias,
excluídos. Insurge nas identidades de gênero LGTB, nos afro-bra-
sileiros, nos refugiados, nos palestinos, nos povos originários da
América Latina, nos ciclistas de Guadalajara, nos camponeses sem
terra, na mulher trabalhadora que habita as periferias das grandes
cidades, nos grafiteiros e em todos aqueles que promovem uma es-
truturação vinculativa e um modo de organizar a sociedade simbo-
licamente. Organizam-se num modelo ecológico, social e comuni-
cacional horizontal.

119
JORGES MIKLOS E AGNES DE SOUSA ARRUDA ROCCO

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122
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO NA
MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES

Jorge Miklos
Maria Aparecida Cunha

Introdução

Os dispositivos de comunicação sempre fizeram parte dos pro-


cessos de mobilização social, seja nos encontros, nas panfletagens
ou em outro meio alternativo. Com o surgimento da Internet e suas
inúmeras possibilidades no que diz respeito à produção e compar-
tilhamento de conteúdo de forma gratuita, os movimentos sociais
passaram a aproveitar os benefícios da comunicação em redes tele-
máticas para divulgação de suas ações e pautas.
Observa-se a relevância do espaço público e o papel da proxi-
midade entre os militantes para que o processo de comunicação e
vinculação de fato aconteça. Para Castells (2013, p. 16), na sociedade
atual, “o espaço público dos movimentos sociais é construído como
um espaço híbrido entre as redes sociais da Internet e o espaço ur-
bano ocupado”. É necessário conectar o ciberespaço com o espaço
urbano para que exista a interação e a constituição de comunidades.
Castells (2013) defende que a autonomia da comunicação é a essên-
cia dos movimentos sociais, ao permitir que o movimento se forme
e se relacione com a sociedade, resistindo ao controle dos detentores
do poder sobre o poder da comunicação.

123
JORGES MIKLOS E CIDINHA CUNHA

Busca-se no presente artigo apresentar a Marcha Mundial das


Mulheres, (MMM) no contexto dos movimentos sociais contem-
porâneos e esquadrinhar a diversidade identitária dos sujeitos co-
letivos, a transversalidade nas demandas por direitos, as formas de
ativismo e de empoderamento por meio de articulações em rede e a
participação política das organizações.
A primeira parte apresenta o surgimento da MMM, no ano
2000, e seus principais feitos até o ano de 2014, cujo momento é
de preparação para a quarta edição, que acontece a cada cinco anos
Para análise da atuação da Marcha e suas formas de engajamen-
to e mobilização social abordamos os conceitos de comunicação,
sob a luz da Teoria da Mídia, de Harry Pross (1972), e Ecologia da
Comunicação, de Vicente Romano (1993).
A pertinência em se estudar a comunicação a partir da pers-
pectiva da Ecologia da Comunicação, de Vicente Romano, está no
desenvolvimento de uma teoria em que todos os aspectos, tanto os
quantitativos quanto os qualitativos, e tudo o mais que venha a afe-
tar a qualidade de vida se tornam relevantes. A teoria proposta por
Romano estabelece uma ponte entre a Teoria da Mídia, de Harry
Pross, e a Ecologia Humana, num cenário em que os seres huma-
nos se veem obrigados cada vez mais a se adaptar à técnica e não
mais à natureza e as intervenções técnicas do ser humano não se
limitam à biosfera. Elas também afetam a sociosfera e o ambiente
de comunicação.
Pross (1972) defende que a comunicação começa e termina no
corpo. Sendo assim, o principal e único responsável pela comunica-
ção primária é o próprio corpo, seja pelo olfato, pela
visão, pelo paladar, pelo toque ou audição. As formas de comu-
nicação, tanto primária quanto secundária, são analisadas por meio
das ações presentes nas ruas, encontros, reuniões, confecção de car-
tazes, organização de manifestos, batucadas, reforçando os laços de
proximidade e vinculação.

124
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO NA MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES

A mídia terciária, que, por sua vez, precisa de aparatos tanto


do lado do emissor, quanto do receptor, exemplificada pelas mídias
eletrônicas e de rede, é analisada no terceiro capítulo.
Tendo como ponto positivo o encurtamento do espaço e as fa-
cilidades no transporte físico da mensagem e instantaneidade na
transmissão das informações, a comunicação em rede tem se apre-
sentado como uma forte ferramenta de apoio aos ativistas, chamada
de ativismo digital ou ciberativismo.
Mesmo apresentando problemas como a aceleração do tempo e
das sincronizações sociais, a partir do ponto de vista da Ecologia da
Comunicação (ROMANO, 1993), o ativismo digital já se tornou uma
poderosa ferramenta de articulação e visibilidade dos movimentos.
As ações realizadas nas redes sociais telemáticas pela MMM
encerram a dissertação, apresentando as formas como estas ajudam
a tornar visíveis as questões discutidas pelo coletivo e as ações reali-
zadas nas ruas, em uma relação de complementaridade.

Movimentos Sociais Contemporâneos e a nova


morfologia

Um movimento social é um esforço coletivo contínuo e organi-


zado que visa interferir na estrutura econômica, política e cultural
e promover em algum aspecto mudança ou plena ou em parte da
estrutura social. Um movimento social existe quando um grupo de
indivíduos está envolvido num esforço organizado, seja para mudar,
seja para manter alguns elementos da sociedade.
Os Movimentos Sociais Contemporâneos ou os “novos” mo-
vimentos sociais são originários das décadas de 1950 e 1960. Pos-
suem uma organização menos hierárquica, portanto acompanham
a tendência da flexibilização. Isso significa que não obedecem uma
liderança rígida. O funcionamento o mais “sem líder” possível, seja

125
JORGES MIKLOS E CIDINHA CUNHA

pela ausência de lideranças ou pela multiplicação das lideranças,


construindo um processo de tomada de decisões através do uso
de mecanismos de consulta e formação de consenso. A liderança
permanece importante mesmo que os protagonistas façam todo o
esforço para terem um design “sem líder”. Um modo de conseguir
isso é ter muitos líderes disseminados através da rede que procura
funcionar por coordenação, sem controle central ou uma hierar-
quia. Um exemplo dessa liderança descentralizada é a mensagem
expressa pelo movimento Zapatista que dizia “Marcos somos todos”
uma referência que a liderança do movimento, o subcomandante
Marcos, está diluída em cada um dos membros do movimento.
Outra extraordinária característica é que os movimentos con-
temporâneos abandonam os discursos universais e possuem pautas
de reivindicação específicas, ou seja, o movimento negro, o movi-
mento feminista, o movimento estudantil e o movimento ecológico
constroem suas agendas e suas ações próprias.
São movimentos reformistas que podem até guardar conteúdos
de crítica ao capitalismo, mas raramente são revolucionários, ou seja,
não sugerem uma transformação radical e acelerada da macroestru-
tura social, mas objetivam transformações locais e por isso possuem
uma estreita relação com as Organizações Não Governamentais.
Esses movimentos vão desenvolver uma relação estreita e dia-
lógica com a esfera da comunicação. Estreita na medida em que a
apropriação dos meios é fundamental para estabelecer diálogo com
a esfera pública. Dialógica, no trilho de Morin (2007), na medida
em que se por um lado os movimentos utilizam a mídia como es-
tratégia de visibilidade, por outro, lutam contra ela quando ocor-
re distorções e estereótipos discursivos engendrados pela mídia
hegemônica.
Esse aspecto dialógico revela a condição estratégica da comuni-
cação como instrumento de hegemonia (economia, política, cultu-

126
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO NA MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES

ra, educação, religião) e de resistência (movimentos sociais de con-


testação e insurgência).

Feminismo em Movimento

As mulheres exerceram grande impacto na melhoria da socie-


dade e para Eisler (2007), talvez o mais notável dos seus feitos seja o
Movimento Feminista que teve início no século XIX. Para a ativista,
“mesmo omitido dos livros tradicionais o trabalho de centenas de
feministas do século XIX melhorou e muito a situação do contin-
gente feminino da humanidade”. Eisler (2007) utiliza como exemplo
a considerável participação das feministas no movimento abolicio-
nista de libertação dos escravos e na melhoria do tratamento aos
deficientes mentais.
Os movimentos feministas geralmente são divididos em pe-
ríodos denominados “ondas”. Segundo Fourgeyrollas-Schwebel
(2009), a primeira onda ocorreu na segunda metade do século XIX
e no começo do século XX e a segunda onda no início na metade
dos anos 1960 e começo dos anos 1970.
A primeira onda do feminismo – conhecida como sufrágio fe-
minino – foi marcada por reivindicações pelo direito ao voto, com
muitas ações impactantes nos Estados Unidos e em alguns países
europeus.
Em relação à segunda onda – conhecida como Movimento de
Liberação das Mulheres – a autora afirma que o impacto do femi-
nismo dos anos 1970 talvez não tenha sido tanto o de afirmar novas
formas de reivindicações de direitos e sim o de questionar os domí-
nios do político. Fourgeyrollas-Schwebel (2009, p. 145) afirma que
“os movimentos feministas dos anos 1970 não se fundam na única
exigência de igualdade, mas no reconhecimento da impossibilidade
social de fundar essa igualdade dentro de um sistema patriarcal”.

127
JORGES MIKLOS E CIDINHA CUNHA

A conquista de novos direitos para as mulheres na esfera priva-


da foi acompanhada por exigências também na esfera pública, como
a reivindicação de medidas em favor de uma verdadeira igualdade
de direitos no trabalho. “Uma das prioridades dos movimentos de
liberação das mulheres é a afirmação de que o privado é político”
(FREEMAN, 1975. Apud. FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, 2009,
p. 146).
Inclui-se também como expectativas do feminismo contempo-
râneo a autonomia da sexualidade feminina e o respeito ao desejo
da “não-maternidade”, principalmente com a chegada das pílulas de
contracepção feminina, que se torna acessível na metade dos anos
1960. Segundo Fougeyrollas-Schwebel (2009, p. 147), “as campanhas
pela liberdade de abortar constituem os eventos mais importantes
e mais marcantes”. A autora também aponta como eventos de des-
taque as mobilizações contra a violência, como estupros e assédio
sexual, e o reconhecimento do estupro conjugal.
A terceira onda do feminismo, segundo Miskolci (2009), sur-
giu no final da década de 1980 e início da década de 1990 até os
dias de hoje. Foi nesse período que se começou a discutir alguns
paradigmas das outras ondas e também debates sobre o sexo para o
conceito de gênero.
Analisando o feminismo no Brasil, a divisão em ondas seguiu
uma divisão diferente dos demais países. Segundo Sarti (2001), o
Movimento Feminista no Brasil teve início nos anos 1970. A autora,
ao resgatar a origem do movimento, tido como um “feminismo de
esquerda” destaca que:

Os grupos feministas estavam articulados às diversas organizações


de influência marxista, clandestinas à época, e nasceram funda-
mentalmente comprometidos com a oposição à ditadura e com as
lutas “pelas liberdades democráticas” e pela anistia e é uma forma
de pensar seu legado e seu lugar no panorama político mais amplo
das lutas atuais (SARTI, 2001, p. 33).

128
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO NA MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES

O ano de 1975, instituído como o Ano Internacional da Mu-


lher, foi um ano contraditório no Brasil. Apesar de ser um momento
favorável à discussão da condição feminina, o País enfrentava um
período de ditadura que, segundo Sarti, “calavam, implacáveis, as
vozes discordantes”.
Embora uma confluência de fatores tenha contribuído para a
eclosão do feminismo brasileiro nos anos 1970 – como o impacto do
feminismo internacional e mudanças efetivas na situação da mulher
no país a partir dos anos 1960, que punham em questão a tradicio-
nal hierarquia de gênero –, o feminismo militante no Brasil surge
como consequência da resistência das mulheres à ditadura, depois
da derrota da luta armada e com o sentido de elaborar política e pes-
soalmente esta derrota. A presença das mulheres na luta armada, no
Brasil dos anos 1960 e 1970, implicava não apenas se insurgir contra
a ordem política vigente, mas representou uma profunda transgres-
são ao que era designado à época como próprio às mulheres (SAR-
TI, 2001, p. 33).
O movimento social de resistência ao regime militar seguiu
ampliando-se e novos movimentos se uniram às feministas para lu-
tarem por direitos específicos, como os dos negros e homossexuais.
Outros grupos populares passaram a incorporar temas ligados às
questões de gênero, como creches e trabalho doméstico.
Segundo Sarti (2001), “a expansão do mercado de trabalho e do
sistema educacional que estava em curso num país que se moder-
nizava, gerou, ainda que de forma excludente, novas oportunidades
para as mulheres”.
A antropóloga defende que todo este processo, acompanhado
pela “efervescência cultural de 1968, de novos comportamentos
afetivos e sexuais relacionados ao acesso a métodos anticoncep-
cionais e ao recurso às terapias psicológicas e à psicanálise, influen-
ciou decisivamente o mundo privado”. Para a autora, “novas experi-
ências cotidianas entraram em conflito com o padrão tradicional de

129
JORGES MIKLOS E CIDINHA CUNHA

valores nas relações familiares, sobretudo por seu caráter autoritário


e patriarcal”.
Nessas circunstâncias, o Ano Internacional da Mulher, 1975,
oficialmente declarado pela ONU, propicia o cenário para início
do movimento feminista no Brasil, ainda fortemente marcado pela
luta política contra o regime militar. O reconhecimento oficial pela
ONU da questão da mulher como problema social favoreceu a cria-
ção de uma fachada para um movimento social que ainda atuava
nos bastidores da clandestinidade, abrindo espaço para a formação
de grupos políticos de mulheres que passaram a existir abertamen-
te, como o Brasil Mulher, o Nós Mulheres, o Movimento Feminino
pela Anistia, para citar apenas os de São Paulo (SARTI, 2001).
Ainda segundo Sarti (2001), o feminismo brasileiro, também
conhecido como “movimento de mulheres”, devido a sua pluralida-
de, iniciou-se nas camadas médias e expandiu-se por meio de arti-
culação com as camadas populares e suas organizações de bairro,
“envolvendo-se, em primeiro lugar, em uma delicada relação com a
Igreja Católica, importante foco de oposição, diante do vazio políti-
co deixado pelo regime militar” (SARTI, 2001, p. 37).
Sarti (2001, p. 38) chama atenção para outro traço que marca
a trajetória particular do feminismo no Brasil, quando comparado
ao dos países europeus. Para a antropóloga, “os movimentos sociais
urbanos organizaram-se em bases locais, enraizando-se na experi-
ência cotidiana dos moradores das periferias pobres, dirigindo suas
demandas ao Estado como promotor de bem-estar social”.
As questões propriamente feministas, as que se referiam às rela-
ções de gênero, ganharam espaço quando se consolidou o processo
de abertura política no País em fins dos anos 1970. Grande parte dos
grupos declarou-se abertamente feminista e abriu-se espaço tanto
para a reivindicação no plano das políticas públicas, quanto para o
aprofundamento da reflexão sobre gênero.

130
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO NA MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES

A unidade do movimento de mulheres no Brasil permaneceu


até início dos anos 1980, quando a luta da oposição ainda era um
elemento aglutinador. As perspectivas, demandas e motivações das
mulheres engajadas no movimento eram distintas.
Parece haver um consenso em torno da existência de duas ten-
dências principais dentro da corrente feminista do movimento de
mulheres nos anos 70, que sintetizam o próprio movimento. A pri-
meira, mais voltada para a atuação pública das mulheres, investindo
em sua organização política, concentrando-se principalmente nas
questões relativas ao trabalho, ao direito e à redistribuição de poder
entre os sexos. Foi a corrente que posteriormente buscou influen-
ciar as políticas públicas, utilizando os canais institucionais criados
dentro do próprio Estado, no período da redemocratização dos anos
1980. A outra vertente preocupa-se sobretudo com o terreno flui-
do da subjetividade, com as relações interpessoais, tendo no mun-
do privado seu campo privilegiado. Manifestou-se principalmente
através de grupos de estudos, de reflexão e de convivência. Nestes
grupos ressoava a ideia de que o “pessoal é político” (SARTI, 2001,
p. 40).
A anistia de 1979 permitiu a volta das exiladas no começo dos
anos 1980, que traziam experiências políticas e também a influência
de um movimento feminista atuante, principalmente na Europa.
Segundo Sarti (2001), a própria experiência de vida no exterior, com
uma organização doméstica diferente dos padrões brasileiros, re-
percutiu decisivamente tanto em sua vida pessoal quanto em sua
atuação política.
Nos anos 1980, o movimento de mulheres no Brasil era uma
força política e social consolidada e os grupos feministas começa-
ram a fazer parte de associações profissionais, partidos e sindicatos,
legitimando o papel da mulher como sujeito social particular
A década de 1980 foi marcada pela criação de conselhos da con-
dição feminina, em todos os níveis: federal, estadual e municipal.

131
JORGES MIKLOS E CIDINHA CUNHA

A questão da violência contra a mulher começou a ser tratada em


delegacias próprias.
No fim da década de 1980 deu-se uma significativa alteração da
condição da mulher na Constituição Federal de 1988, que extinguiu
a tutela masculina na sociedade conjugal.
O feminismo teve ainda que enfrentar, problemas de desigual-
dades sociais, “sensibilizando mulheres profissionais, com educação
universitária, pertencendo a camadas sociais com alguma experiên-
cia de vida cosmopolita, associadas ao exílio político ou à formação
educacional e profissional”. (SARTI, 2001, p. 43-44)
Sarti (2001) afirma que o movimento feminista brasileiro en-
frentou o período de ditadura militar conseguindo manter sua auto-
nomia ideológica e de organização e ainda interagir com os partidos
políticos, sindicatos e outros movimentos sociais, com o Estado e
até com organismos supranacionais. E por meio de espaços con-
quistados, como conselhos, secretarias, coordenadorias, ministé-
rios, elaborou e executou políticas, reivindicou, propôs, pressionou
e monitorou a atuação do Estado, não só com vistas a garantir o
atendimento de suas demandas, mas acompanhar a forma como
estavam sendo atendidas.
Nos anos 2000, as feministas no Brasil avançaram em relação
à violência doméstica e familiar contra a mulher, com o advento da
Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, a chamada Lei Maria da Penha,
que estabelecia medidas para a prevenção, assistência e proteção às
mulheres em situação de violência.
O retorno às manifestações feministas, nos anos 2000, é mar-
cado pelo surgimento das marchas com temática especificamente
feminista, a exemplo da Marcha Mundial das Mulheres, Marcha das
Margaridas e Marcha das Vadias.

132
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO NA MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES

A Marcha Mundial das Mulheres

Militamos na Marcha Mundial das Mulheres! Estamos em luta


por nossa autonomia, nosso direito a viver livremente nossa sexua-
lidade e por uma transformação radical da sociedade! Vamos mudar
o mundo e mudar a vida das mulheres! Somos mulheres e não mer-
cadoria! (MMM, 2013)
A Marcha Mundial das Mulheres é um movimento feminis-
ta internacional, que teve início em 2000, em uma campanha que
reuniu mais de cinco mil grupos de mulheres de 159 países e terri-
tórios em uma ação comum contra a pobreza e a violência sexista.
Esta ação teve como função trazer o feminismo popular e militante
de volta às ruas, o que impulsionou as mulheres a dar continuida-
de à marcha não como uma campanha, mas como um movimento
permanente.
Dentre os princípios da MMM estão a organização das mulhe-
res urbanas e rurais e as alianças com os movimentos sociais.
É importante destacar a principal distinção entre mobilização
social e manifestações públicas. Segundo Toro e Werneck (2004,
p.13), mobilizar é “convocar vontades para atuar na busca de um
propósito comum, sob uma interpretação e um sentido comparti-
lhados”. A mobilização só ocorre quando um grupo de pessoas
decide e age com um objetivo em comum, buscando resultados
decididos em conjunto, convocando vontades para atuar na busca
de um propósito compartilhado.
O processo de mobilização social, segundo Toro e Werneck
(2004), passa pelo compartilhamento de conceitos e ideias, pela co-
letivização dos atores envolvidos, “deslocando-os do terreno indivi-
dual para o coletivo”, e pelo acompanhamento e aferição dos resulta-
dos alcançados, para a legitimação da causa e do movimento social.
Diferentemente das manifestações, o processo de mobilização social
requer continuidade.

133
JORGES MIKLOS E CIDINHA CUNHA

Participar ou não de um processo de mobilização social é um


ato de escolha. Por isso se diz convocar, porque a participação é um
ato de liberdade. As pessoas são chamadas, mas participar ou não é
uma decisão de cada um. (...) Convocar vontades significa convocar
discursos, decisões e ações no sentido de um objetivo comum, para
um ato de paixão, para uma escolha que “contamina” todo o quoti-
diano. (TORO, 2004, p. 13)
A inspiração para a criação da Marcha Mundial das Mulheres
partiu de uma manifestação realizada em 1995, em Quebec, no Ca-
nadá, quando 850 mulheres marcharam 200 quilômetros, pedindo,
simbolicamente, pão e rosas.
A ação marcou a retomada das mobilizações das mulheres nas
ruas, fazendo uma crítica contundente ao sistema capitalista como
um todo. Ao seu final, diversas conquistas foram alcançadas, como
o aumento do salário mínimo, mais direitos para as mulheres imi-
grantes e apoio à economia solidária.
Em uma tentativa de contar a história do feminismo no Brasil a
partir das vivências das militantes da Marcha, em maio de 2013, no
blog oficial do coletivo, o Comitê da Marcha Mundial das Mulheres
em São Paulo organizou o desafio de traçar uma linha do tempo, du-
rante a última plenária estadual da Marcha Mundial das Mulheres
de São Paulo. Trata-se de uma história com experiências diversas,
marcadas pela “solidariedade, pelo compromisso e por muita luta”.
Olhamos para nossa memória tentando responder à seguinte
pergunta: quando e como comecei a participar do movimento fe-
minista? Ao colocar tudo junto em pequenos cartões, ordenados
pelo tempo, aquela lembrança já não era só nossa, mas parte de uma
memória coletiva. Contar de onde viemos ajuda a pensar em quem
somos, e de que é feito o nosso movimento. Para isso, fomos longe.
Nossas lembranças alcançaram o ano de 1957 e chegaram até 2013,
nos fazendo pensar que há muito tempo o feminismo encontra eco
entre as mulheres, e que permanece atual, já que, a cada ano, mais

134
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO NA MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES

e mais companheiras se juntam a essa caminhada (COMITÊ DA


MMM/SP, 2013).
As mulheres são parte central dos processos de mobilização e
resistência em todo o Estado. Segundo o Comitê da MMM (2013),
os caminhos até o feminismo passaram também pela “vivência das
distintas facetas da divisão sexual no mundo do trabalho ou na uni-
versidade, como a ausência de creches, a presença da violência, os
salários diferentes, a maior jornada de trabalho, o assédio sexual”,
entre tantas outras representações de machismo.
Estiveram presentes nas lutas por melhores condições de tra-
balho dos anos 1970, na organização do movimento sindical enfren-
tando as perseguições, nos movimentos da Igreja, como a JOC, e
na política estudantil universitária. Passaram pelos movimentos de
saúde dos anos 1980, pelo Encontro de Mulheres em Solidariedade
a Cuba, organizado pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, nos
anos 1990, e pela organização das mulheres no interior da Central
de Movimentos Populares (CMP) e pela campanha contra a ALCA,
já nos anos 2000 (COMITÊ da MMM/SP, 2013).
A participação de diferentes mulheres de origem popular no
Encontro Feminista de Bertioga, em 1989, e a ampla mobilização
para a participação de um grupo grande de São Paulo no Encontro
Latino-Americano na Argentina, em 1991, mostraram que o femi-
nismo tinha seus plurais.
Os debates em torno da construção e da reivindicação de po-
líticas públicas nos municípios representam outra porta de entrada
para as mulheres no feminismo.
Seja pelos espaços institucionais, como a Coordenadoria Espe-
cial da Mulher de São Paulo, no início dos anos 2000, e a partir de
2008, o Núcleo de Políticas Públicas para as Mulheres em Várzea
Paulista, com o apoio do Centro de Referência Especializado de As-
sistência Social (CREAS) e da SOF – Sempreviva Organização Fe-
minista, uma organização não governamental feminista que apoia,

135
JORGES MIKLOS E CIDINHA CUNHA

estimula e facilita a organização de atividades de formação, deba-


te, cultura e intercâmbio entre os grupos participantes da Marcha
Mundial no Brasil e nas ações internacionais.
Os processos reivindicatórios, como a construção do Centro de
Convivência da Mulher de Mauá, em 1987, a 1.ª Delegacia da Mulher
em São Paulo e, desde os anos 1970, a luta por creches nos bairros
e nas universidades, também marcaram presença na trajetória da
MMM.
Essas e outras expressões de lutas auto-organizadas das mu-
lheres contribuíram para construir uma identificação das mulheres
com o feminismo.
Nesse contexto, apresenta-se a importância do Encontro da
Mulher Paulistana, nos anos 1970, e das lutas por creche em lugares
como Vila Remo e Parque Santo Amaro.
O movimento da Marcha Mundial das Mulheres serviu como
espaço para ampliar a compreensão crítica das relações sociais de
sexo em casos de violência.
Desde 1999, houve intensa articulação do que se tornaria, no
ano 2000, a Marcha Mundial das Mulheres contra a pobreza e a vio-
lência, sob o lema “Duas mil razões para marchar contra a pobreza
e a violência sexista”.
Foram várias as entidades e movimentos que atuaram nesse
processo, colocando em diálogo organizações autônomas e movi-
mentos mistos. Diferente do processo organizado pela Organização
das Nações Unidas (ONU) para as mulheres, nos anos 1990, a Mar-
cha Mundial das Mulheres emergiu com um forte questionamento
à globalização, ao dar visibilidade à estrutura do patriarcado e sua
relação com o modelo capitalista.
As posições políticas demandaram uma expansão da elabora-
ção feminista, avançando na crítica à ordem econômica. O lança-
mento da MMM em SP foi em frente à Bolsa de Valores, simbolizan-
do um feminismo que pretende pensar a sociedade como um todo.

136
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO NA MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES

As ações internacionais aparecem nesse trajeto como momen-


tos-chave de constituição da identidade feminista.

Ecologia da Comunicação

Vicente Romano (1993) conceitua a comunicação humana


como um processo que possibilita a conexão, a comunhão e a vin-
culação com os outros. É por meio da comunicação que são expe-
rimentadas as relações sociais, a vivência em comum, os sentimen-
tos de pertencimento a uma comunidade. Para o autor, é de suma
importância analisar a comunicação sob o ponto de vista do seu
entorno, seu ambiente social, para contribuir com o seu equilíbrio.
É preciso avaliar a forma como se dá o processo de comunicação,
pois é este fato o responsável por vincular ou desvincular o homem
do seu ambiente.
Vicente Romano (1993, p. 67) afirma que “o predomínio atual
da mídia terciária na sociedade tecnificada de comunicações medi-
áticas deixa clara a falta e a necessidade da comunicação elementar
humana”. Para ele, ao contrário do que se esperava, a crescente ele-
trificação das comunicações não ampliou o espaço nem o tempo das
relações de proximidade. As relações sociais mais próximas, entre
familiares e amigos, têm perdido espaço para a diversão eletrônica,
mediada por aparelhos de comunicação, criadores de distância, ge-
rando desequilíbrios e carências, que podem ser exemplificadas nas
modernas formas de violência urbana, devido à falta de vínculos.
Devido aos crescentes avanços tecnológicos dos meios de co-
municação, evidencia-se um fenômeno de descontextualização es-
paço x tempo da sociedade com o seu entorno. Romano (1998, p.
17) afirma que o tempo e o espaço não são apenas coordenados da
percepção, mas que também determinam os processos sociais da
comunicação. O autor defende a importância de se averiguar como

137
JORGES MIKLOS E CIDINHA CUNHA

os meios de comunicação influenciam na constituição do tempo e


do espaço e qual o papel desempenhado pelas novas tecnologias da
informação e da comunicação.
É no entorno comunicacional que ocorre a troca do presente
individual pelo presente coletivo: vivências e produção de sentidos
que possibilitam a compreensão do passado, da história e também
estimula a sensibilidade.
Vicente Romano (1993, p. 67) afirma que “o predomínio atual
da mídia terciária na sociedade tecnificada de comunicações medi-
áticas deixa clara a falta e a necessidade da comunicação elementar
humana”. Para ele, ao contrário do que se esperava, a crescente ele-
trificação das comunicações não ampliou o espaço nem o tempo das
relações de proximidade. As relações sociais mais próximas, entre
familiares e amigos, têm perdido espaço para a diversão eletrônica,
mediada por aparelhos de comunicação, criadores de distância, ge-
rando desequilíbrios e carências, que podem ser exemplificadas nas
modernas formas de violência urbana, devido à falta de vínculos.
Devido aos crescentes avanços tecnológicos dos meios de co-
municação, evidencia-se um fenômeno de descontextualização es-
paço x tempo da sociedade com o seu entorno. Romano (1998, p.
17) afirma que o tempo e o espaço não são apenas coordenadas da
percepção, mas que também determinam os processos sociais da
comunicação. O autor defende a importância de se averiguar como
os meios de comunicação influenciam na constituição do tempo e
do espaço e qual o papel desempenhado pelas novas tecnologias da
informação e da comunicação.
É no entorno comunicacional que ocorre a troca do presente
individual pelo presente coletivo: vivências e produção de sentidos
que possibilitam a compreensão do passado, da história e também
estimula a sensibilidade.
A importância da proximidade evidencia a necessidade da co-
municação elementar humana, aqui estudada como comunicação

138
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO NA MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES

primária (PROSS, 1972). A comunicação terciária, aqui exemplifi-


cada como as das redes telemáticas, por vezes amplia a visibilidade
e extensão da comunicação, embora não seja suficientemente capaz
de ampliar e fortalecer as relações sociais mais próximas. A crítica
feita às mídias terciárias sobre o enfraquecimento dos laços entre
familiares e amigos defende a perda de espaço do convívio, do di-
álogo, para a diversão eletrônica, mediada por aparelhos, criado-
res de distância e carências, devido à falta de vínculos, evidencia a
necessidade já apontada por Romano (1993) por uma ecologia da
comunicação.
Considerada uma das principais formas de comunicação uti-
lizadas para mobilização e engajamento social, as mídias radicais
atuam neste cenário como provocadoras de discussões que muitas
vezes são ignoradas pela mídia convencional. Seu caráter alternativo
e irreverente tem a função de dar cobertura e visibilidade às mani-
festações realizadas. São radicais porque precisam chamar o máxi-
mo de atenção possível com um orçamento normalmente reduzido
frente ao poderio da grande mídia de massa tradicional.

Considerações finais

A comunicação primária, que prima pela proximidade, pelo


contato pessoal, essencial para a motivação e encorajamento, está
presente nas marchas, caminhadas, encontros e cursos de formação,
ocupando os espaços públicos, chamando a atenção da sociedade
para as causas defendidas.
A comunicação secundária pode ser vista nas diversas mídias
radicais expostas na pesquisa, como cartas, cartazes da operação
“Lambe-lambe”, instrumentos musicais confeccionados pelas mu-
lheres para a Batucada Feminista, a “Colcha da Solidariedade”, tam-
bém produzida por elas e depois exposta em museus e eventos do
coletivo, entre outros.
139
JORGES MIKLOS E CIDINHA CUNHA

A comunicação terciária, por meio das redes, vista como es-


sencial para maior alcance e continuidade na comunicação com
os militantes e simpatizantes, é amplamente utilizada, em especial
os novos espaços das chamadas redes sociais. Seu caráter radical
contra-hegemônico possibilita a veiculação e discussão das mais
diversas pautas.
A discussão sobre o modo como a MMM se apropria das mí-
dias no intuito de promover o processo de mobilização, participação
e compartilhamento de informações e como esses meios se inte-
gram e se transformam quando empregados pelo movimento foi de-
lineada no decorrer dos capítulos, com a apresentação de imagens e
histórico das ações realizadas pelo movimento nos últimos 14 anos.
Considera-se que o ciberespaço proporciona facilidades na tro-
ca e compartilhamento de dados e na rápida transmissão de infor-
mações. No entanto, para engajar e aproximar as pessoas é preciso
convívio, afeto e corpo presente. Por isso a importância de rua e
rede. E também por isso a importância do equilíbrio na escolha das
mídias, não deixando a comunicação primária esquecida.
A rede, por meio de suas ferramentas de relacionamento e
constante troca de conteúdo, proporciona visibilidade e interesse
pelo engajamento e participação no movimento. A rua, com todo
seu potencial de comunicação primária, tende a fortalecer os víncu-
los sociais criados. Somente a presença, a proximidade, a troca de
experiências, conseguirão engajar os ativistas de fato.
A MMM se apropria de diversos meios (primários, secundários
e terciários) usando-os como estratégia de visibilidade. A Marcha
Mundial das Mulheres busca por meio de suas manifestações, nas
ruas ou em praças públicas, mobilizar a participação de ativistas
e simpatizantes. São exemplos as marchas internacionais como a
Marcha Mundial das Mulheres que realizou três marchas interna-
cionais (2000, 2005 e 2010) e agora se prepara para sua quarta edi-
ção em 2015. Organizadas a partir do chamado “2000 razões para
marchar contra a pobreza e a violência sexista”, a primeira marcha

140
ECOLOGIA DA COMUNICAÇÃO NA MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES

internacional contou com a participação de mais de 5000 grupos


de 159 países e territórios; os encontros que criam espaços de cons-
trução coletiva de análise e propostas que partem da experiência e
do momento do movimento feminista no qual o mesmo se realiza;
A batucada feminista que reúne um rupo de mulheres militantes
que criam um espaço no qual as mulheres criam e recriam músi-
cas e ritmos militantes, mostrando a irreverência do movimento
e discutindo os temas globais da sociedade como um instrumento
de reconstrução do cotidiano; O lambe-lambe que consiste em reu-
nir as ativistas para fazer a colagem dos cartazes de protesto. Essa
ação pode acontecer de duas formas: “na calada da noite, de forma
anônima ou em mutirões, o que permite cobrir áreas maiores, com
a expectativa de gerar surpresa no dia seguinte” ou “à luz do dia,
numa versão intensiva e performática, que exige contato direto com
as pessoas que estão passando pelas ruas, o que possibilita aproxi-
mação e abordagem direta, e, até mesmo, a ação de distribuição de
panfletos informativos”.
Após exposição das mídias primária e secundária utilizadas
pela MMM em busca de mais visibilidade e empoderamento das
mulheres, o próximo capítulo analisará o papel da mídia terciária,
especificamente a Internet, como ferramenta de exposição e discus-
são dos temas feministas.
Marcha Mundial das Mulheres nas redes se manifesta por meio
de lista de e-mails, blogs, Página no Facebook, Twitter, Canal no
Youtube, Rádio Web e #ButecoDasMina.
A MMM se apropria dos meios de comunicação, sejam elas
de caráter primário, secundário ou terciário (segundo a teoria da
mídia de Harry Pross) em busca de maior visibilidade, mobilização
e engajamento para a discussão de suas pautas, construindo assim
experiências no trilho de uma ecologia da comunicação (de acordo
com Vicente Romano), constituindo assim uma relação de com-
plementaridade entre redes e ruas, presentes na comunicação do
coletivo Marcha Mundial das Mulheres.

141
JORGES MIKLOS E CIDINHA CUNHA

Referências

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Zahar, 2013.

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Janeiro: Imago, 2007.

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In: HIRATA, Helena (org.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo:
Editora UNESP, 2009.

MISKOLCI, Richard. A teoria queer e a sociologia: o desafio de uma


analítica da normalização. Sociologias, Porto Alegre, ano 11, v. 1, n. 29, 2009.

MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES. O que é a Marcha Mundial das


Mulheres? Disponível em: http://marchamulheres.wordpress.com/mmm.
Acesso em: 2 fev. 2013.

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2007.

PROSS, Harry. Medienforschung. Darmstadt: C. Habel, 1972.

ROMANO, Vicente. Ecología de la comunicación. Hondarribia: Argitaletxe


Hiru, 2004.

SARTI, Cynthia. Feminismo e contexto: lições do caso brasileiro. Cadernos


Pagu (16) 2001: ps. 31-48. Recebido para publicação em setembro de 2001.

SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de movimentos sociais. São Paulo: Loyola,


1996.

TORO, José Bernardo. WERNECK, Nísia Maria Duarte. Mobilização social:


um modo de construir a democracia e a participação. Belo Horizonte:
Autêntica, 2004.

142
O AMBIENTE COMUNICATIVO
DA CASA COMUM: ECOLOGIA
DA COMUNICAÇÃO NA AGENDA
MIDIÁTICA DO PAPA FRANCISCO

Jorge Miklos
João Fortunato Freire

Introdução

Relatos da vida de Jorge Mario Bergoglio na condição de arce-


bispo de Catedral Metropolitana de Buenos Aires, Argentina, re-
velam que ele era avesso aos contatos com a mídia. Contudo, após
assumir a cadeira do Apóstolo Pedro, o posto máximo da Igreja Ca-
tólica, deixada vaga após a abdicação do Papa Bento XVI, e tornar-
-se o Papa Francisco, não somente a sua relação com os meios de
comunicação mudou, mas também a da própria Igreja Católica.

Sim, é verdade, Jorge Bergoglio não se sente a vontade dando en-


trevistas. Sempre falou isso, não sabe como suas palavras poderiam
ser manipuladas. Desconfia. “Se dou aos jornalistas quatro notas,
do-ré-mi-fá, eles podem chegar a compor uma música de casamen-
to ou de funeral,” costumava dizer. (PIQUÉ, 2013).

Apesar da desvelada desconfiança, o arcebispo Bergoglio de-


monstra consciência do papel crucial da mídia para o mundo atual

143
JORGES MIKLOS E JOÃO FOR TUNATO FREIRE

e para a Igreja Católica. Foi um dos protagonistas da V Conferência


Geral do Episcopado e do Caribe, realizada na cidade de Apareci-
da do Norte (SP), em 2007, ocasião em que foi elaborado o Docu-
mento de Aparecida1 e que apresenta, dentre temas variados relati-
vos à missão da igreja, também reflexões sobre a mídia. Segundo o
documento,

A maioria dos meios de comunicação de massa nos apresentam


agora novas imagens, atrativas e cheias de fantasias (...) Longe de
preencher o vazio produzido em nossa consciência pela falta de um
sentido unitário da vida, em muitas ocasiões a informação trans-
mitida pelos meios só nos distrai. A falta de informação só se resol-
ve com mais informação, retroalimentando a ansiedade de quem
percebe que está em um mundo opaco o qual não compreende(...)
Os meios de comunicação invadiram todos os espaços e todas as
conversas, introduzindo-se também na intimidade do lar. Ao lado
da sabedoria das tradições, em competição, localizam-se agora a
informação de último minuto, a distração, o entretenimento, as
imagens dos vencedores que souberam usar a seu favor as ferra-
mentas tecnológicas e as expectativas de prestígio e estima social.
(Documento de Aparecida, online).

Apesar do tom crítico, o Documento de Aparecida é revelador


quanto a postura e decisões do Papa Francisco a respeito dos meios
de comunicação após assumir o lugar de Bento XVI.

A revolução tecnológica e os processos de globalização formatam


o mundo atual como uma grande cultura midiática. Isso envolve
uma capacidade para reconhecer novas linguagens. Essas novas
linguagens configuram um elemento articulador das mudanças
da sociedade. Nosso século tem sido influenciado pelos meios de
comunicação social, por isso, o primeiro anúncio, a catequese ou
o posterior aprofundamento da fé não podem prescindir destes
meios, assinalam os pontos 484 e 485 do Documento de Aparecida,

144
O AMBIENTE COMUNICATIVO DA CASA COMUM

claramente inspirado em Bergoglio, e que dedica diversas reflexões


à mídia. (PIQUÉ, 2013)

Desde o Concílio Vaticano II – convocado em Dezembro de


1961 e iniciado em Outubro de 1962 no Papado de João XXIII; e
finalizado em Dezembro de 1965 já no Papado de Paulo VI – onde
foi publicado o Decreto Inter Mirifica2 (Dezembro de 1996), que
reconhece que os Instrumentos da Comunicação Social estão entre
as maravilhas da tecnologia, à época representada pela televisão,
rádio, imprensa escrita e o cinema, nenhum outro Papa teve visibi-
lidade midiática tão ampla e rápida como o Papa Francisco, graças
à cobertura diuturna da mídia tradicional, que o vê e o trata como
um dos mais importantes líderes (não apenas pelo aspecto religioso)
do mundo contemporâneo. Por esta razão, o segue espontânea e
continuamente registrando, por diferentes tipos aparelhos comu-
nicacionais, os seus gestos e as suas falas. Por outro lado, o Papa
Francisco também tem a sua visibilidade expandida pelos diferentes
meios de comunicação da própria Igreja Católica, tanto pelos meios
tradicionais como pelos mais modernos, os digitais. É importan-
te mencionar que o Papa Francisco, ele próprio, contribui para o
aumento da sua visibilidade quando participa das redes sociais, a
qual aderiu como herdeiro da conta de Bento XVI no Twitter, a @
pontifex, ainda em 2013.
O Papa Francisco, diferentemente de Bento XVI e muito pare-
cido com João Paulo II, não se furta do relacionamento direto com
os profissionais de comunicação e nem ao contato físico com os fi-
éis. Esta postura, que é pessoal e não fabricada como uma ferramen-
ta estratégica de marketing, de estar presente com o corpo, elevou
de forma considerável o seu carisma. O Papa se mostra acessível e
humano como os demais, apesar da sua autoridade como líder má-
ximo dos católicos.

145
JORGES MIKLOS E JOÃO FOR TUNATO FREIRE

Não há nada que seja estudado para a opinião pública, de mediáti-


co, é simplesmente ele próprio: é pouco conhecido porque quando
celebrava missa nas ‘villas miséria’ (bairros de lata) de Buenos Aires
ia só, não tinha jornalistas consigo(...). Estes gestos não devem ser
vistos apenas como pormenores, mas simbolizam a vontade de um
pastor em estar à frente do rebanho para o guiar, no meio, como os
outros e atrás do rebanho, para o proteger. Para ele, o pastor está
ao serviço do povo e isto já é uma mudança que pede uma auto
reforma por parte de quem vê que este é o exemplo do Papa (TOR-
NIELLI, 2013, online).

O Papa Francisco, como já mencionado, é ciente da importân-


cia da mídia tradicional para a Igreja Católica e para a sociedade.
Porém, se revela atento aos desvios da informação verdadeira e das
tentativas de manipulação, um dos males da comunicação contem-
porânea. E toda vez que surge uma oportunidade, não deixa de de-
monstrar o seu descontentamento, sempre de forma contundente,
sem medo de enfrentar o poder mediático.

Hoje o clima midiático tem suas formas de envenenamento. As


pessoas sabem, percebem, mas infelizmente se acostumam a respi-
rar da rádio e da televisão um ar sujo, que não faz bem. É preciso
fazer circular um ar mais limpo. Para mim, os maiores pecados são
aqueles que vão à estrada da mentira, e são três: a desinformação, a
calúnia e a difamação (Papa Francisco, 2014)3

O Papa Francisco reconhece que ao navegar pela mídia tradi-


cional corre risco de se deparar com tempestades, mas não demons-
tra desejo deixar de enfrenta-lo. O mesmo acontece com a sua pre-
sença frequente nas redes sociais, ambiente que igualmente oferece
riscos, sobretudo pelo fato de existir pouco ou nenhum controle
sobre os conteúdos é inseridos e compartilhados (textos, imagens
e vídeos), que podem representar violência, pornografia e até ideo-
logias contrárias a Igreja Católica, ao Santo Padre e até mesmo pro-

146
O AMBIENTE COMUNICATIVO DA CASA COMUM

moção da pessoa humana. Ao assumir estes, o Papa Francisco deixa


claro que segue, com firmeza, uma agenda midiática bem definida,
de aproveitar os meios de comunicação como canais de propagação
para as suas mensagens e as da Igreja Católica, não somente para
os católicos, visando a compreensão e construção de um mundo
melhor, mais solidário, mais igualitário e mais justo para todos os
humanos. O Papa busca o bem comum!

A informação e o conhecimento constituem a mesma essência dos


processos evolutivos. Os avanços nas tecnologias de comunicação
contribuem para redefinir a interação e o desenvolvimento huma-
nos (ROMANO, 2004, p. 37)

A metodologia deste trabalho está baseada nos documentos


(Decreto Intra Merifica, Documento de Aparecida, Carta Encíclica
Redemptoris Missio, Mensagens dos Papas Bento VXI e Francisco
em diferentes comemorações do Dia Mundial das Comunicações
Sociais) oficiais da Igreja Católica publicados pela mídia católica
e disponíveis na Internet; discursos do Papa referentes à mídia e
proferidos em eventos e durante as suas viagens internacionais. O
propósito é revelar que a postura comunicacional e o conteúdo de
seus discursos se aproximam da proposta de Vicente Romano, de-
nominada de Ecologia da Comunicação.

A Igreja Católica como protagonista e não


coadjuvante

A transformação do pensamento da igreja católica sobre a co-


municação se dá, de fato, muitos anos depois do Concílio Vaticano
II, precisamente no pontificado do polonês Karol Wojtyla, o popular
João Paulo II, a partir de 1980.

147
JORGES MIKLOS E JOÃO FOR TUNATO FREIRE

Não é suficiente usar a mídia para difundir a mensagem cristã e o


Magistério da Igreja, mas é necessário integrar a mensagem nessa
‘nova cultura’ criada pelas modernas comunicações. É um proble-
ma complexo, pois essa cultura nasce menos dos conteúdos do que
do próprio fato de existirem novos modos de comunicar com no-
vas linguagens, novas técnicas, novas atitudes psicológicas (Papa
João Paulo II, 1990).

Embora exposto a uma realidade comunicacional radicalmente


diferenciada, décadas depois, o seu sucessor, o Papa Bento XVI, ain-
da seguiu a linha básica do novo pensamento da Igreja Católica e se
manifestou, em 2011, durante o 45º Dia Mundial das Comunicações
Sociais, a favor da sua inserção no novo ambiente de comunicação
que se expande, de maneira genuinamente rápida, sobretudo entre
os jovens. A Internet, segundo ele, por sua iteratividade e bilaterali-
dade, representa a superação do modelo até então vigente, unilateral
e verticalizado, “o que leva a uma nova compreensão dos sujeitos e
destinatários da comunicação”.

As novas tecnologias estão exigindo novas relações e o desafio da


promoção de uma cultura a respeito, diálogo e de amizade (Bento
XVI, 2009).

Quando o Papa Francisco decide reformar todos os veículos de


comunicação da Santa Fé, adequando-os à realidade comunicacio-
nal do mundo contemporâneo, baseada em conexões e engajamen-
tos e que privilegia o diálogo, ou seja, a comunicação de duas mãos,
também segue, de alguma forma, a linha mestra traçada pelo Papa
João Paulo II, ele que marcou presença com o corpo, em contato di-
reto com fiéis durante as suas viagens ao redor do mundo, e também
no imaginário, por meio da ampla utilização dos meios tradicionais
de comunicação. No discurso que fez para explicar as reformas aos
40 participantes da primeira plenária da Secretaria da Comunica-

148
O AMBIENTE COMUNICATIVO DA CASA COMUM

ção, o Papa Francisco pediu que o princípio orientador fosse “apos-


tólico, missionário, com uma atenção especial às situações de mal
estar, pobreza e dificuldades, sabendo que também estas situações
precisam ser enfrentadas hoje, com soluções apropriadas”.

Assim, torna-se possível levar o Evangelho adiante a todos, valori-


zar os recursos humanos, sem substituir a comunicação das igrejas
locais e, ao mesmo tempo, apoiando as comunidades eclesiais que
têm mais necessidades (Papa Francisco, 2017).

A professora Chiara Giaccardi, docente de sociologia e antro-


pologia da mídia da Universidade Católica de Milão, em entrevista à
Rádio do Vaticano sobre as inserções do Papa Francisco na Internet,
destacou que o sentido real de sua presença constante na Internet é
criar pontes que levem todos a objetivos que são de todos.

Muitos dos seus “tuites” são simplesmente “rezem por mim”, por
exemplo, então, um pedido de proximidade; ou, afirmações que
se referem a terra, ao bem comum, coisas que podem ser compar-
tilhadas também por pessoas que talvez por outros motivos estão
longe. Esse criar pontes, esse convergir em direção a objetivos que
são de todos, que não são movidos contra aqueles dos outros: essa
acredito que seja uma presença realmente incisiva, realmente fun-
damental e realmente capaz, então, de superar aqueles muros que
depois criam desumanidade no final, que empobrecem o nosso
ambiente cultural e também aquele social (GIACCARDI, 2016,
online).

O Papa Francisco, como bem frisou a professora Giaccardi,


usa de forma clara e objetiva a comunicação, em imagens e prin-
cipalmente palavras, para construir pontes que se ligam a objeti-
vos que são de todos, na busca do bem comum. Nesse sentido, a
ação do sumo pontífice é a tradução prática do que fala Vicente
Romano a respeito do meio humano, que tem sido modelado por

149
JORGES MIKLOS E JOÃO FOR TUNATO FREIRE

homens para dirigi-lo mediante experiência comunicável, mediante


pensamentos.

O meio humano é a realidade estruturada em conhecimento trans-


missível e integrável no conhecimento de outros homens; a socie-
dade humana estruturada pela palavra (ROMANO, 2004, p. 51).

O Papa Francisco usa a comunicação, agora também de for-


ma proativa, para inspirar e influenciar o meio humano. “O Papa é
pop, o Papa não poupa ninguém”, diz uma canção de muito sucesso
do grupo brasileiro Engenheiros do Hawaíi, referindo-se ao Papa
João Paulo II, que peregrinou pelo mundo levando a mensagem da
Igreja Católica. Este bordão musical cabe igualmente para o Papa
Francisco, que é indiscutivelmente popular e que em seus contatos
diretos com a imprensa e em eventos de ampla cobertura midiática
usa a palavra, muitas vezes de forma contundente, sem preservar os
meios que lhe servem de canal, para enviar suas mensagens.

Numa sociedade frequentemente ébria de consumo e de hedonis-


mo, de riqueza e de abundância, de aparência e de narcisismo, esta
criança nos chama a ter um comportamento sóbrio, ou seja, sim-
ples, equilibrado, linear, capaz de entender e viver o que é realmen-
te importante (Papa Francisco, 2015).

Também nesta crítica ao consumismo desenfreado, o Papa


Francisco aproxima-se das percepções do pesquisador espanhol Vi-
cente Romano quando ele afirma que a música, um dos elementos
difusores de informação, que classifica como ruído, disseminam,
de maneira persistente e monótona mensagens de elogio a indi-
vidualização, a desconfiança de entorno social, a separação dos
companheiros.

150
O AMBIENTE COMUNICATIVO DA CASA COMUM

Esta fragmentação não pode senão isolar e incapacitar o ser huma-


no para a ação solidária. Mutilado do contraste de pareceres, do
diálogo enriquecedor, do intercâmbio de informações, em suma,
da interação comunicativa, se converte em presa fácil para o con-
sumismo. (ROMANO, 2004, p. 67).

Sobre o posicionamento do Papa Francisco frente à imprensa e


às mensagens que propaga, um ano após a sua ascensão à cadeira de
Pedro, refletiu o veterano jornalista português Henrique Monteiro,
num artigo publicado pelo jornal Expresso:

Quando ele não cumprir a agenda midiática que os mediáticos es-


peram, não sei como será tratado. Para já, todos o amam e todos o
querem ouvir, mesmo quando ele diz coisas que poderiam parecer
desagradáveis acaso saíssem da boca de Ratzinger ou Wojtyla. Diz
o Papa que esta ‘economia mata’ - a esquerda exulta, mas, parte
dela, não ouve o resto. E o resto é que esta economia é fruto de um
sistema relativista de valores, de uma hierarquia errada de prio-
ridades que a mesma esquerda foi estabelecendo como norma. A
outra parte é que o Papa nos incentiva – quase nos incomoda na
maneira como fala nisso – a desinstalar-nos, para que a vida possa
ser menos penosa para todos. Ora os defensores dos direitos adqui-
ridos devem sentir-se tão incomodados como os milionários. De-
sinstalar-se quer dizer o que ninguém quer ouvir: mudar de vida,
para uma forma mais frugal, mais espiritual, menos consumista e
menos materialista. (MONTEIRO, 2014, online)

Como se percebe, sobretudo pelos inúmeros exemplos e de for-


ma categórica no Papado de Francisco, ainda em curso, a igreja,
cumprindo “determinação” do Papa João Paulo II, de 1990, não é
mero coadjuvante passivo de um processo informativo, por vezes
manipulador, mas sim um “habitante permanente”, dono de um es-
paço cativo, com voz própria e poder para competir com o sistema
e influenciar pessoas conforme os seus objetivos.

151
JORGES MIKLOS E JOÃO FOR TUNATO FREIRE

A percepção da igreja católica mudou, não porque os escândalos


e os problemas já não existam, mas porque em vez dos bastidores
interessa o que está em cena. (TORNIELLI, 2013, online)

O poder de influência da igreja e em particular do Papa Fran-


cisco no combate à informação distorcida e mentirosa, no silêncio
oferecido à voz dos excluídos, na ideologização da imprensa, pode
ser constatado nos pontos 2º e 3º da declaração final do I Encontro
Internacional de Jornalistas Pro Papa Francisco realizado em Madri,
Espanha, em novembro de 2017:

Amar a verdade, viver com profissionalismo e respeitar a dignidade


humana são, como defende o Papa, chaves para o nosso trabalho.
Este é o nosso objetivo: evitar a instrumentalização ideológica e po-
lítica da informação para que esta seja oferecida à Opinião Pública
de forma rigorosa, frente a fenômenos como as ‘fake news’. Este
compromisso exige, mais do que nunca, honestidade, transparên-
cia, busca da verdade, rigor e imparcialidade (2º ponto da declara-
ção final do I Encontro dos Jornalistas Pro Papa Francisco, 2017)

Igreja Católica abre suas portas para as redes sociais

Em janeiro de 2014, na celebração do Dia Mundial das Comu-


nicações Sociais da Igreja Católica, em nota oficial, o Papa Francisco
descreve a Internet como um “presente de Deus”. Porém, na mesma
nota, como contrapeso, alerta que este espaço virtual “está longe de
ser um paraíso”. Embora a rede mundial de computadores repre-
sente um universo relativamente novo, principalmente para a igreja
católica, uma frase do Papa define muito bem a sua motivação e, por
consequência, explica a razão em correr o risco de caminhar num
terreno movediço e ainda não totalmente explorado – “O mundo

152
O AMBIENTE COMUNICATIVO DA CASA COMUM

digital pode ser um ambiente rico em humanidade; é uma rede não


de fios, mas de pessoas” (Papa Francisco, 2014). O entusiasmo da
Papa Francisco com a Internet e, em particular com as redes sociais,
não chega a causar grandes surpresas, notadamente para aqueles
que acompanham os seus movimentos, pois Jorge Mario Bergoglio,
o primeiro latino americano e o primeiro jesuíta a assumir o posto
máximo da Igreja Católica, é usuário do Twitter - microblog que
aceita mensagens com até 140 caracteres – desde março de 2013 com
a conta denominada @pontifex, hoje com mais de 40 milhões de
seguidores.
Contudo, ao contrário dos que muitos possam pensar, até mes-
mo pelo dinamismo com que atua na Internet, não foi o Papa Fran-
cisco, mas sim o seu antecessor, Papa Bento XVI, o alemão Joseph
Ratzinger, quem abriu as portas da Igreja para as redes sociais. No
dia 12/12/2012, quarta-feira, Dia de Nossa Senhora de Guadalupe,
o Papa inaugurou oficialmente a sua “conta” no Twitter com uma
benção aos católicos. A mensagem foi reproduzida em sete idio-
mas: “Queridos amigos, estou feliz por entrar em contato com vocês
pelo Twitter. Obrigada por sua generosa resposta. Eu vos abençoo
de todo o meu coração,” escreveu o Papa Bento XVI. Minutos depois
ele voltou ao microblog com duas novas mensagens para exortar os
fiéis a comemorarem o Ano da Fé em sua vida diária. “Como pode-
mos comemorar melhor o Ano da Fé do que em nossa vida diária?”
perguntou. “Conversando com Jesus em uma oração, escutando o
que ele tem a dizer no Evangelho e procurando por ele nos que pre-
cisam,” respondeu ao seu próprio questionamento, mas como orien-
tação aos seus seguidores.
Assim como o Papa Francisco, o Papa Bento XVI via na Inter-
net não somente oportunidades, mas também riscos.

As novas tecnologias permitem que as pessoas se encontrem para


além dos confins do espaço e das próprias culturas, inaugurando

153
JORGES MIKLOS E JOÃO FOR TUNATO FREIRE

deste modo todo um novo mundo de potenciais amizades. Esta é


uma grande oportunidade, mas exige também uma maior atenção
e tomada de consciência quanto aos possíveis riscos (Bento XVI,
2011).

Bento XVI, pouco antes de abdicar do seu Papado, mais exa-


tamente em janeiro de 2013, em sua última Carta, reafirmou, com
clareza, a importância das redes sociais para a igreja católica e des-
tacou as razões:

No ambiente digital, existem redes sociais que oferecem ao homem


atual oportunidades de oração, meditação ou partilha da Palavra
de Deus. Mas estas redes podem também abrir as portas a outras
dimensões da fé. Na realidade, muitas pessoas estão a descobrir –
graças precisamente a um contato inicial feito online – a importân-
cia do encontro direto, de experiências de comunidade ou mesmo
de peregrinação, que são elementos sempre importantes no cami-
nho da fé. Procurando tornar o Evangelho presente no ambiente
digital, podemos convidar as pessoas a viverem encontros de ora-
ção ou celebrações litúrgicas em lugares concretos como igrejas ou
capelas (Bento XVI, 2013).

Ao dar sequência e com frequência ainda maior à conta herda-


da de Bento XVI no microblog, o Papa Francisco deixa claro que a
decisão da Igreja Católica de inserir-se no universo virtual é parte de
uma estratégia bem definida e não um mero acaso ou mesmo von-
tade pessoal dos “comandantes da igreja”. É a compreensão de que
a Internet é um ambiente e não um instrumento e, por esta razão,
faz-se necessário habitá-la participando de suas redes sociais.

154
O AMBIENTE COMUNICATIVO DA CASA COMUM

Vaticano e a modernidade digital

O Papa Francisco, em seu discurso, enfatiza não somente que


deseja mudanças efetivas, mas também a sua importância para a
própria igreja. Ele ressaltou que a diretriz para essas reformas e essa
nova linha de pensamento tem que ser a missão apostólica, missio-
nária, com uma especial atenção sobre as situações problemáticas,
de pobreza, de dificuldade.

Este dicastério se apresenta em plena reforma e não deveríamos


ter medo dessa palavra “reforma”. Reforma não é clarear um pouco
as coisas, a reforma é dar uma nova forma às coisas, organizá-las
de outra maneira (...) Assim, torna-se possível levar o Evangelho
adiante a todos, valorizar os recursos humanos, sem substituir a
comunicação das igrejas locais e, ao mesmo tempo, apoiando as
comunidades eclesiais que têm mais necessidades (Francisco, 2017)

Para monsenhor Dario Viganó4, prefeito da Secretaria para a


Comunicação da Santa Sé, há a necessidade de se entender alguns
aspectos próprios da comunicação do Papa Francisco antes de se
tentar compreender o sentido amplo da reforma empreendida na
comunicação do Vaticano que, convém lembrar, teve início logo
após a sua ascensão ao posto abdicado por Bento XVI.

A comunicação do Papa Bergoglio, uma comunicação que pode-


ríamos dizer ‘unconventional’, nada convencional, muito pragmá-
tica. Em mais de uma vez tive a possiblidade de sublinhar como
Francisco tem a capacidade de redefinir códigos e formas de co-
municação, utilizando com criatividade, por nada convencional,
situações curiosas, parábolas e metáforas, Um modo para comu-
nicar com o outro, para diminuir as distâncias e favor o diálogo
(VIGANÓ, 2017, online).

155
JORGES MIKLOS E JOÃO FOR TUNATO FREIRE

Viganó5 diz que é relevante conhecer as características da co-


municação do Papa Francisco para se interpretar a reforma da mí-
dia da Santa Sé, uma necessidade e uma urgência.

Uma reforma que se desenvolve num novo Renascimento, fazendo


parte, hoje, de um contexto digital que modifica as práticas e as
dinâmicas de todos os âmbitos da nossa vida, daquela social àquela
política, até àquela religiosa (VIGANÓ, 2017, online)

A reforma dos meios de comunicação do Vaticano está em cur-


so e será concluída somente em 2018, com a consolidação econô-
mica. O movimento de mudança foi iniciado em 2015, quando foi
criada a Secretaria da Comunicação, onde se fundiram a Secretaria
de Imprensa e o Serviço de Internet. O Conselho Pontifício para as
Comunicações foi transformado em um departamento teológico
pastoral. A tevê e a rádio uniram suas estruturas e agora, em proces-
so, está a união do jornal L’Osservatore Romano, a livraria Editora
Vaticana, o serviço Infográfico e a tipografia.

A reforma na comunicação e nos veículos de mídia da Santa Sé é


necessária para que a entidade não se deixe vencer pela tentação de
se prender a um passado glorioso. (Papa Francisco, 2017).

Ao proceder a reforma tanto na estratégia de comunicação


como nos veículos oficiais da Igreja Católica, o Papa Francisco,
como já demonstrado, um homem consciente do poder e alcance
da mídia, busca aperfeiçoar o seu braço de comunicação para que
possa contrapor a comunicação da mídia hegemônica que serve ao
capital, sobretudo no estimulo ao individualismo, na alienação, na
comunicação sem presença e no consumo desenfreado de produtos.

A ‘sociedade da comunicação’ pode ser, em última instância, uma


sociedade de pessoas inativas e submissas, convertidas todas em
apêndices do mercado. O ‘novo mundo feliz’, cheio de emissões de

156
O AMBIENTE COMUNICATIVO DA CASA COMUM

entretenimento, adormece a atitude critica (...) Mutilado do con-


traste de pareceres, do diálogo enriquecedor, do intercâmbio de
informações, em suma, da interação comunicativa, se converte em
presa fácil do capitalismo (ROMANO, 2004, p. 67; 91).

A casa comum

Na encíclica Laudato si – Sobre o cuidado da casa comum,


o Papa Francisco, que defende ações decisivas, aqui e agora, para
interromper a degradação ambiental e o aquecimento global, se
aproxima e muito das ideias de Vicente Romano expostas no livro
Ecologia da Comunicação. Num recado claro e direto às nações in-
dustrializadas, o Papa Francisco frisa que urge reconhecer a necessi-
dade de mudanças de estilo de vida, produção e consumo.

Chegou a hora de aceitar crescer menos em algumas partes do


mundo, disponibilizando recursos para outras partes poderem
crescer de forma saudável (...) Hoje, tudo o que é frágil, como o
ambiente, está indefeso em relação aos interesses do mercado di-
vinizado, transformado em regra absoluta. (Papa Francisco, 2015)

Ao criticar o sistema econômico, que reduz seus custos com


a mecanização da produção e, com isso, faz com que ser humano
vire-se contra si próprio, o Papa Francisco defende que o valor do
trabalho tem que ser respeitado numa ecologia integral.

Uma vez mais temos que rejeitar uma concepção mágica do merca-
do, que sugere que problemas possam ser resolvidos simplesmente
por meio do aumento nos lucros de empresas ou indivíduos (Papa
Francisco, 2015)

157
JORGES MIKLOS E JOÃO FOR TUNATO FREIRE

O Papa Francisco, como por diversas vezes demonstrou, é um


homem preocupado sensível as ocorrências ambientais e ele, na cru-
zada por um mundo melhor, o que perpassa por sua bandeira pela
mitigação do sofrimento dos excluídos, não tem como não estabe-
lecer relação entre a degradação do planeta e as dificuldades vividas
pelos mais pobres.

A convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo,


a crítica do paradigma que deriva da tecnologia, a busca de outras
maneiras de entender a economia e o progresso, o valor próprio de
cada criatura, o sentido humano da ecologia, a grave responsabili-
dade da política, a cultura do descartável e a proposta de um novo
estilo de vida são os eixos desta encíclica, inspirada na sensibilida-
de ecológica de Francisco de Assis. (Papa Francisco, 2015).

Conclusão

A agenda midiática do Papa Francisco se assemelha, em dife-


rentes pontos, às teorias desenvolvidas por Vicente Romano e ex-
pressas em seu livro Ecología de la Comunicación. O sumo pontífice
preocupa-se com a qualidade e quantidade das informações que
chegam ao público por diferentes aparelhos e, tal qual Romano,
acredita que a dificuldade de compreensão, seja pela distorção ou
excesso, afeta o espírito crítico o que, por fim, torna as pessoas pre-
sas fáceis do consumismo, desenfreado e desnecessário. A preocu-
pação do Papa Francisco com os pobres e excluídos da sociedade é
notória e tema constante de suas conversas diretamente com a mídia
ou em eventos com cobertura midiática. O Papa Francisco, em que
pese o poder econômico que os grupos mediáticos hegemônicos
representam, não poupa críticas à manipulação que promovem às

158
O AMBIENTE COMUNICATIVO DA CASA COMUM

informações e nem de responsabiliza-los por parte dos problemas


da sociedade contemporânea, cada vez mais individualista.
O Papa Francisco foi o indutor das reformas da estratégia de co-
municação da Igreja Católica e de seus veículos oficiais de comuni-
cação. Afora os veículos tradicionais, de ampla penetração e influên-
cia, a mídia digital, da qual o Papa Francisco participa diretamente,
ainda é uma incógnita. Por ora, a resposta, em termos de seguidores,
é positiva. No entanto, convém lembrar, esta comunicação tem sido
feita em mão única, o Papa e nem a sua assessoria respondem às
manifestações do público que o acompanha no Twitter e no Insta-
gram. Esta relação de mão dupla pode ou não acontecer no futuro,
pois as inserções do público ainda estão em análises. É aqui que
reside o risco citado acima, que pode ser mitigado com a introdução
de elementos moderadores. Estes, com suas intervenções pontuais,
poderiam definir o que e quando responder aos seguidores do Papa.
No entanto, vale mencionar, este a moderação retarda a interação e,
por vezes, é percebida com censura. Importante frisar que a comu-
nicação do Papa não se limita a mídia terciaria, mas também a co-
municação corporal. Por inúmeras vezes o Papa Francisco rompeu
protocolos, para desespero da segurança para interagir diretamente
com o público com abraços, beijos, acenos e cumprimentos.
A humanidade vive num ambiente cada vez mais complexo e a
sua deterioração, como bem expressa Vicente Romano, não parece
ter uma data marcada para cessar. Com a manutenção deste cená-
rio, é possível imaginar que o Sumo Pontífice deva seguir com suas
críticas ao sistema capitalista, que vem se revelando cada vez mais
excludente. Da mesma forma, é possível imaginar forte reação dos
detentores do Capital, sobretudo por meio dos grandes grupos de
comunicação que funcionam com caixa de ressonância de suas pa-
lavras e ações. Urge, então, que o Vaticano e o Papa Francisco desen-
volvam novas estratégias que aproveitem a sua autoridade – é um
dos lideres mais importantes do mundo - e popularidade conquis-

159
JORGES MIKLOS E JOÃO FOR TUNATO FREIRE

tadas por sua simpatia, humildade e discurso sempre firme contra


a pobreza, desigualdade e exclusão. O Papa é “pop e top” nas redes
sociais, o que é relevante, pois este será o palco das novas batalhas
pela conquista dos corações e mentes do público.

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160
O AMBIENTE COMUNICATIVO DA CASA COMUM

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docaparecida.pdf. Acesso em: 5 dez. 2017.
2 Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_
council/documents/vat-ii_decree_19631204_inter-mirifica_po.html. Acesso
em: 5 dez. 2017.
3 Disponível em http://www.jb.com.br/internacional/noticias/2014/03/22/papa-
francisco-critica-pecados-da-imprensa/ Acesso em: 9 dez. 2017.
4 Disponível em http://br.radiovaticana.va/news/2017/08/17/muticom_
de_joinville_reforma_da_m%C3%ADdia_do_vaticano_%C3%
A9_tema_de/1331347.
5 D i s p o n í v e l e m ht t p : / / b r. r a d i ov at i c a n a . v a / n e w s / 2 0 1 7 / 0 8 / 1 7 /
muticom_de_joinville_reforma_da_m%C3%ADdia_do_vaticano_
%C3%A9_tema_de/1331347.

162
“NÓS NÃO TEMOS TEOLOGIA, NÓS
DANÇAMOS!”

Jorge Miklos
Tatiana Penna

Introdução

“Mito é a religião do outro” – Joseph Campbell

Em 2014, no Rio de Janeiro, O Ministério Público Federal re-


quereu um pedido que obrigasse o Google a retirar 15 vídeos ofen-
sivos à umbanda e ao candomblé postados no site YouTube. Segun-
do essas gravações, as religiões de origem africana estão ligadas ao
“mal” e ao “demônio”. Um dos vídeos afirma que “não se pode falar
em bruxaria e magia negra sem falar em africano” e outro associa o
uso de drogas, a prática de crimes e a existência de doenças como a
AIDS a essas religiões. Embora as opiniões sejam atribuídas a gru-
pos evangélicos, não foi possível identificar quem publicou ou di-
vulgou essas gravações na internet.
Para o Ministério Público Federal, esses vídeos disseminam
o preconceito, a intolerância e a discriminação a religiões de ori-
gem africana. Por isso, o órgão enviou recomendação ao Google no
Brasil para que retirasse as gravações da internet. Mas a empresa

163
JORGES MIKLOS E TATIANA PENNA

se negou a atender o pedido, afirmando que o material divulgado


“nada mais é do que a manifestação da liberdade religiosa do povo
brasileiro” e que os vídeos discutidos não violam as regras da em-
presa. Diante da postura do Google, o MPF foi à Justiça para pedir
a retirada dos vídeos.
O juiz federal Eugenio Rosa de Araújo, da 17.ª Vara Federal do
Rio, negou o pedido afirmando em uma sentença que “as manifes-
tações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões”
(grifo dos autores). Referindo-se à Umbanda e ao Candomblé, o
magistrado afirmou que “não contêm os traços necessários de uma
religião” por não terem um texto-base (como a Bíblia ou o Corão),
uma estrutura hierárquica nem “um Deus a ser venerado” (grifo dos
autores). “Os vídeos contidos no Google são manifestações de livre
expressão de opinião”, afirmou Araújo.
Da sentença do juiz federal podemos extrair dois sintomas: o
magistrado reproduz uma atitude típica de preconceito à cultura
afro-brasileira e incorpora uma versão eurocêntrica e etnocêntrica
de que só é cultura aquilo se expressa pelo texto, pela palavra escrita,
pelo livro. Dessa forma, qualquer manifestação cultural (artística e/
ou religiosa) que não tivesse “escrita” não é cultura, ou melhor, não
é digna do rol da civilização.

Comunicação e as Linguagens da Religião

Retomando a questão. Com todas as vênias caberia aqui in-


dagar o ilustre magistrado: as manifestações religiosas afro-brasi-
leiras pelo fato de não terem um texto-base não se constituem em
religiões?
Segundo Ivan Bystrina (1995), é por meio da criação de textos
simbólicos que os primeiros hominídeos começaram a desenvolver

164
NÓS NÃO TEMOS TEOLOGIA, NÓS DANÇAMOS!

a linguagem, as imagens, os jogos, os rituais fúnebres, e todas outras


manifestações proto-religiosas.
O mito, a linguagem da experiência humana diante do mistério
da vida, pode ser apenas expresso pelo uso dos símbolos. Os símbo-
los, por sua vez, representam as vias de comunicação que se estabe-
lecem por meio de configurações que lhe proporcionam sentido. No
caso das religiões primitivas, os símbolos englobavam o universo
das representações da tribo, refletindo as inter-relações Homem/
Natureza, humano/sobrenatural de acordo com a capacidade de en-
tendimento coletivo.

A vida de um organismo pluricelular sempre com a morte. O fato


de que a morte é mais forte que a vida constitui uma assimetria.
Apenas com a criação da 2ª realidade, ou seja, de que existe uma
forma de vida qualquer após a morte. Somente em alguns casos po-
demos dizer de sobrevivência na 1ª realidade: quando na biologia se
afirma, por exemplo, que não são os indivíduos, mas os genes que
vencem a morte (BYSTRINA, 1995, p. 15).

A eficácia simbólica das forças criativas do macrosistema


comunicativo faz da Cultura fator de autoconsciência, respon-
sável pela atuação do homem no mundo humano; e essa segu-
rança de sobrevivência em um território material, sob circuns-
tâncias físico-biológicas, foi chamada por Ivan Bystrina de
primeira realidade. O conceito de segunda realidade é usado
para designar as criações imagéticas da cultura humana ope-
radas por códigos simbólicos. Bystrina (1995) considera que as
raízes da cultura estão diagnosticadas em quatro momentos
específicos: no sonho, no jogo, nas variantes psicopatológicas
e nos estados alterados da consciência.
A segunda realidade, também pode ser tomada como a di-
mensão do imaginário, se expressa em uma gama diversa de textos
verbais e não verbais, códigos, suportes e linguagens (oralidades,

165
JORGES MIKLOS E TATIANA PENNA

gestos, danças, sons, alimentos, etc.) numa gama variada. A comu-


nicação não se reduz à escrita, como pondera Miklos (2014, p. 74):

Comunicar não é apenas uma troca de mensagens simples, como já


sabemos, mas é um jeito de estar no mundo com outras pessoas, de
estabelecer relações com o meio ambiente e com os outros seres vi-
vos (homens e animais). Do mesmo modo que a humanidade não
começa a se comunicar com a escrita, com o verbal, o indivíduo
também não começa a se comunicar apenas quando começa a falar.
Desde muito antes ele já envia sinais, estabelecendo uma espécie de
troca de significados e afetos.

As experiências religiosas midiáticas são algo tão antigo quanto


às próprias manifestações religiosas já que as cerimônias místicas
arcaicas utilizavam centralmente o corpo em seus rituais.
Harry Pross e sua obra Medienforschung (1972), explica que há
três tipos de mídia: a primária, a secundária e a terciária. Segundo a
classificação de Pross, a mídia primária é o próprio corpo. Pross for-
mula sua frase lapidar: “Toda comunicação começa no corpo e nele
termina”. Isso significa que, para ele, o corpo é a mídia primordial.
Segundo ele, toda comunicação humana começa no corpo e termi-
na no corpo. Mesmo que tenhamos um enorme aparato tecnológico
de redes que interligam boa parte do mundo e que se possa comu-
nicar por meios de fluxos eletrônicos que circulam por toda parte, o
corpo está presente nos pontos e nós da rede e essa presença marca
a comunicação de qualquer maneira em todos as suas dimensões:
o emissor, as audiências, as interações, os canais, as mensagens, as
decodificações e as resistências e apropriações diferenciadas.
A partir de Pross, Baitello (2015) descreve várias possibilidades
comunicativas da mídia primária: “O nosso corpo é de uma riqueza
comunicativa incalculável (...) sem sombra de dúvida, é esta a mídia
mais rica e complexa (...) a voz, o cheiro, o gesto”.

166
NÓS NÃO TEMOS TEOLOGIA, NÓS DANÇAMOS!

Nossos ancestrais se comunicavam como outros animais: atra-


vés de expressões faciais, gestos, posturas, vocalizações. É de se
imaginar que, como mamíferos superiores, primatas inteligentes
e bípedes artesãos, eles tinham desenvolvido, ao longo de dezenas
de milhões de anos de evolução biológica e experiência social, um
múltiplo arsenal de recursos comunicativos não-verbais: sorrisos
de simpatia, risadas de alegria, gargalhadas de galhofa, palidez e
rubor denunciando emoções fortes, caretas de medo e de dor, tes-
ta franzida de preocupação e de aborrecimento, olhares de ternura
ou de ferocidade, resmungos e rosnados, gritos e de chamamento e
de afugentamento, gestos de carinho e de ameaça. A esse conjunto
de meios, parte fixada instintivamente, parte adquirida socialmen-
te por imitação, se pode chamar de comunicação corporal que o
homem utiliza intensamente até hoje e sofistica ao máximo como
mostram as artes da mímica e da dança.
Sob esta ótica, nos atos primevos das manifestações religiosas,
a participação do sujeito, sua sensibilidade presencial é um dos ele-
mentos exigidos para se viver e conviver em comunidade. A religio-
sidade sobrevive na força desta realidade construída socialmente,
pois esta lhes serve de referência. As experiências estéticas trazem
sentido e dão significados aos atos.

Ocorre que o homem, em sua inquietude e criativa operosidade,


procura aumentar sua capacidade comunicativa, criando aparatos
que amplifiquem o raio de alcance de sua “mídia primária”. Inventa
a máscara, que lhe acentue não apenas traços faciais, mas também
lhe amplifique a voz; as pinturas corporais, as roupas, os adereços e
depois os aparatos prolongadores e/ou substitutos do próprio cor-
po inauguram um quadro de mediação mais complexo, o da “mídia
secundária”. Aí não podemos nos esquecer da escrita e todos os
seus desenvolvimentos, carta, imprensa, livro, jornal; tampouco
podem-se deixar de fora as técnicas de reprodução da imagem. A
“mídia secundária” requer um transportador extra-corpóreo para

167
JORGES MIKLOS E TATIANA PENNA

a mensagem, vale dizer, precisa de um aparato que aumente o raio


de ação temporal ou espacial do corpo que diz algo, que transmite
uma mensagem ou que deixa suas marcas para que outro corpo,
em outro espaço ou em outro tempo, receba os sinais. Já a “mí-
dia terciária” requer não apenas um aparato para quem emite, mas
também um aparato para quem recebe uma mensagem. Para que
se possa alcançar alguém e enviar uma mensagem é preciso que os
dois lados possuam os respectivos aparelhos: telefone, rádio, fax,
disco, vídeo, televisão, correio eletrônico são os exemplos eviden-
tes. (BAITELLO JR, 1999, p. 43).

Porém, mesmo corroborando com a legitimidade dos aparatos


comunicacionais, neste ensaio, ensejamos fazer um contraponto as
mídias secundária e terciária, que muitas vezes, intentam de cer-
ta forma, gerar um apagamento dos indivíduos, nos processos de
comunicação, assim sendo, para fins deste estudo tomamos como
referencia a mídia primaria, pautada no conceito de “ecología de la
comunicación”1 de Vicente Romano, presente nos elementos ritua-
lísticos religiosos, como um possível suporte mantenedor das orali-
dades e das práticas nos ritos, em especial, neste artigo, no cenário
dos rituais Umbandista.

Umbanda is for all for us

Escrever sobre a Umbanda nos é deveras um desafio, dada a


amplitude do universo simbólico desenhado e associado à criati-
vidade do imaginário popular brasileiro que, quando se volta para
essa filosofia religiosa, ganha dimensões de magnitudes imensurá-
veis que dificultam amarração teórica e conceitual sobre esta reli-
gião, que conduz em seu seio uma mística crística, que perpassa por
caminhos que se pautam em saberes, crendices e valores populares

168
NÓS NÃO TEMOS TEOLOGIA, NÓS DANÇAMOS!

que se confluem naturalmente com a condição imaginaria e cultural


brasileira.
A expressividade deste repertório cultural religioso é perceptí-
vel quando retomamos os textos que narram quanto ao surgimen-
to da Umbanda no Brasil, que ao longo deste, mais de um século
da história de sua fundação, espalha pelo país nuances diversos em
seus ritos, práticas e símbolos, que no decorrer deste período man-
tiveram-se vivos em decorrência da transmissão oral, que irrom-
peram estilos dispares quanto as formas de Umbanda, a exemplo
disso, encontramos habitualmente nas literaturas uma vasta lista de
nomenclaturas para esta religião como Umbanda Branca, Umbanda
Omolokô, Trançada ou Mista, Umbanda Esotérica, Umbanda de
Caboclo, Umbanda Eclética, entre tantas outras variações, mas que
indiscutivelmente abrigam em seu intimo a manifestação do espíri-
to para uma Umbanda: de humildade, amor e caridade.
Conquanto, para fins deste estudo tomaremos como parâme-
tro a Umbanda Originária, cognome adotado pelos autores para
referenciar a então intitulada primeira tenda de Umbanda, a Ten-
da Espírita Nossa Senhora da Piedade, na qual percebemos uma
fidelidade aos ritos que tradicionalmente foram oralizados, todavia,
não nos cabe e ou interessa fazer distinção entre certo ou errado dos
demais ritos provenientes das outras possibilidades da religião que
indubitavelmente manifesta-se “como um organismo vivo” (CUMI-
NO, 2015, p. 33).

Elementos Ritualísticos e Comunicativos da


Umbanda

Cada ritual tem um modelo divino, um arquétipo... (ELIADE, 1992,


p. 26)

169
JORGES MIKLOS E TATIANA PENNA

A Umbanda apresenta como descreve Trindade um conjunto


de “cadinhos”, observadas intensamente nas literaturas que discor-
rem sobre essa religião e nas observâncias, mesmo que advindas das
poucas experiências e vivências dos autores, quanto às práticas e
ritos, contemplados em algumas casas, tendas, centros ou terreiros,
bem como, estes espaços, a partir das raízes da sua fundação, podem
ser denominados por esse Brasil afora.
Refletir quanto às bases epistemológicas concernentes aos
elementos ritualísticos e comunicacionais das Umbandas nos é
requerido apreciar que “o estudo do fenômeno religioso necessi-
ta do trabalho em colaboração de muitos saberes, devido à imensa
complexidade, universalidade e pluralidade de suas manifestações”
(NOGUEIRA, 2012, p. 12), enredo muito presente no universo mís-
tico da Umbanda.

O fenômeno religioso revela nas mais diversas culturas a neces-


sidade humana de dar uma forma específica ao sagrado, a fim de
apreendê-lo através dos sentidos e não somente pela razão. Tanto
em religiões primevas quanto no próprio Cristianismo, notamos
uma intensa participação dos sentidos na experiência religiosa: in-
serimos nossos deuses, sentimos sua presença através do perfume
dos incensos, ouvimos suas vozes e, tomados pelo transe, falamos
línguas estranhas. (KLEIN, 2006, p. 29)

Desta forma, em posse dessa afirmativa, como delimitar as for-


mas dos rituais e expressões comunicativas da Umbanda, à medida
que ela se apresenta tão diversa em suas linguagens e composições?
Para resposta a primeira indagação, encetaremos com o conceito de
rituais como bem descreve Wulf (2013, p. 89), que define estes en-
quanto, “formas mais efetivas de comunicação e interação humana.
Podemos pensar os rituais como as ações nas quais as encenações e
performances do corpo humano desempenham um papel central”.

170
NÓS NÃO TEMOS TEOLOGIA, NÓS DANÇAMOS!

Se temos nos rituais religiosos uma forma de comunicação que


tem por efeito estimular a biologia dos indivíduos e sincronizar os
grupos (CYRULNIK, 1995, p. 106. Apud. CONTRERA, 2005, p. 115),
ao adentrarmos o universo Umbandista, esta máxima ganha expres-
sividade quando nos voltamos aos ritos sacros desta religião que
tem na natureza seu principal ponto de força.
A organização dos rituais de Umbanda decorre desde a prepa-
ração do corpo: “Somos Templos Vivos” (Mestre Rubens Saraceni,
s/ d), e por essa premissa o praticante umbandista ter o “dever de
ser sagrado”, ao espaço físico de Templo, que são “consagrados às
Divindades e aos rituais religiosos de Umbanda” (CUMINO, 2015,
p. 19), que compreendem, todo processo ritualístico e fundamental,
para a preparação do ambiente destinado a realização dos trabalhos:
o altar, as imagens, as velas, flores, ervas, raízes, vestuários, instru-
mentos e disposição dos atabaques (para as casas que fazem uso);
a defumação do espaço; e por fim a “firmeza” para a corrente me-
diúnica. Isto posto, evidencia o sentido de os rituais preconizarem
começo, meio e fim (WULF, 2013).
De maneira geral, as sessões umbandistas de trabalhos são ma-
terializadas por dois formatos que se apresentam distintos em de-
corrência das suas particulares funções:

1) Sessão de Caridade: esta caracteriza por pela presença dos espí-


ritos que descem do Astral para atender os pedidos das pessoas
(da assistência), desse modo estas podem estabelecer contato
direto com os espíritos por meio do passe ou da consulta.
2) Sessão de Desenvolvimento Mediúnico: destinada aos estudos
da doutrina umbandista, nessa sessão não há atendimento à
assistência.

Ao observar etnograficamente as sessões umbandistas, cor-


roboramos de que a comunicação, reforçada pela contribuição de

171
JORGES MIKLOS E TATIANA PENNA

Harry Pross, 1972 “começa no corpo e nele termina”, talvez pelo sen-
tido do rito de umbanda enquanto, “encantamento da Vida que se
executa no terreiro da Natureza, é a própria liturgia estabelecida
pelo cerimonial executado na Natureza em festa, refletindo docil-
mente no ritual que todos os seres comungam” (Caboclo Mirim, por
Benjamim Figueiredo, s/d., p. 21).
Deste ponto em diante, para melhor elucidar quanto aos ele-
mentos ritualísticos da umbanda e estes como rudimentos conver-
gentes de comunicação humana, apresentaremos alguns momentos
que fazem parte do corpo do ritual da religião.

A. Abertura da Sessão

No ritual de abertura de uma sessão umbanda, tanto de carida-


de como de desenvolvimento, existem elementos fundamentais para
realização sessão, por exemplo: preparação dos médiuns (banhos de
defesa, firmeza de força, vestes, etc.), organização quanto à posição
no recinto (ou no Congá), geralmente homens de um lado, mulhe-
res de outro, inclusive na assistência, tendo ao centro o/a dirigente,
bem como os pontos cantados, rezas e defumação do espaço para
purificar o ambiente e assim dar inicio aos trabalhos.
Como um elemento ritualístico, é preparado com ervas como
alecrim, arruda, alfazema, etc., é feita na abertura da sessão acom-
panhada pelos pontos cantados.
A defumação segue um padrão espacial e hierárquico para
defumar o recinto e as pessoas, conforme a seguinte prescrição: o
altar, atabaques (caso a “casa”, faça uso), os quatro cantos, os ane-
xos (espaços destinados a guardar as indumentárias, objetos usados
durante as sessões, o/a dirigente da casa, os/as médiuns e por fim a
assistência.

172
NÓS NÃO TEMOS TEOLOGIA, NÓS DANÇAMOS!

É usada para purificar o ambiente, diluindo energias negativas,


à medida que intensifica a atmosfera mágica e sacral.

B. Pontos Cantados

Os pontos cantados são as músicas e cantos entoados, utilizados


como forma de saudação aos Orixás, Entidades ou Guias da Um-
banda, estes tem como força sua representatividade oratória no que
concerne agradecer, saudar ou realizar pedidos de proteção, bem
como, por caracterizar-se como um potente aparato de estímulo à
concentração dos médiuns facilitando a incorporação, a medida que
também cria harmonia meditativa da assistência, potencializando o
campo energético da corrente vibratória.
Muitos pontos cantados foram apresentados pelas entidades/
guias que se apresentam nas sessões.

C. Transe Mediúnico: incorporação

A religião umbandista fundamenta-se no culto dos espíritos e é


pela manifestação destes, no corpo do adepto, que ela funciona e
faz viver suas divindades; através do transe, realiza-se assim a pas-
sagem entre o mundo (...) dos deuses e o mundo (...) dos homens.
A possessão é portanto o elemento central do culto. (ORTIZ, 1999,
p. 69)

A vinda das entidades/guias da umbanda por meio dos mé-


diuns tem como propósito “ajudar” na condução das sessões, dis-
ponibilizando atendimento ou passes aos consulentes, por exemplo.
No processo de incorporação são manifestos aspetos, maneiras, vo-
zes e linguagens da entidade incorporada.

173
JORGES MIKLOS E TATIANA PENNA

Neste estudo, como nota-se, optamos por selecionar quatro


momentos de uma sessão ou gira de Umbanda, apreendendo que:

Seres humanos se comunicam e interagem em praticas rituais e


representações. Rituais são corpóreos, performativos, expressivos,
simbólicos, regulados, não instrumentais, eficientes; eles são repe-
titivos, homogêneos, liminares, lúdicos, públicos e operacionais;
rituais são modelos institucionalizados nos quais praticas de ação
e conhecimentos coletivamente compartilhados são encenados e
executados e a autoprojeção e autointerpretação de ordens cultu-
rais são reafirmadas (WULF, 2002, 2005. Apud. WULF, 2013).

Por assim, sem a escolha destes fragmentos se fez, em decorrên-


cia do interesse em demonstrar metodologicamente nossa hipótese,
quanto à importância do corpo nos processos de rituais religiosos,
tendo em vista que no caso desta religião o corpo é o instrumento
que media o ritual, fazendo uso de elementos comunicativos pri-
mários como a oralidade, a dança, o canto, o uso de ervas e a re-
presentação mítica dos guias espirituais, enquanto componentes do
sagrado.

A Ecologia da Comunicação: sua interlocução com a


tradição espiritual da Umbanda

Boff (2014, s/p), descreve que a umbanda sincretiza, de for-


ma criativa, elementos de várias tradições religiosas de nosso país,
evidenciando-se como uma religião profundamente ecológica, que
devolve ao ser humano o sentido de reverencia face às energias
cósmicas.
Por esta perspectiva ecológica que traz sentido humano frente
as suas dimensões cósmicas, como forma de ligação com o sagrado,
é que este ensaio, pauta-se na “ecología de la comunicación” de Vi-

174
NÓS NÃO TEMOS TEOLOGIA, NÓS DANÇAMOS!

cente Romano, que é concebida como teoria/tese de pesquisa que


estuda: o impacto e efeito da comunicação técnica sobre a natureza
da comunicação humana, na sociedade.
Desse modo, a ecologia da comunicação, em seu intimo re-
presenta todas as “formas duradouras de comunicação compatíveis
com o ser humano, a sociedade, a cultura e o meio ambiente” (RO-
MANO, 2004, p. 152).
Na Ecologia da Comunicação, o autor incita de que ela tem
como principio o estabelecimento de uma ponte entre a teoria da
comunicação e a ecologia humana, que tece as relações dos sujeitos
com seu meio, e desta forma, quando voltamos estes elementos para
o campo religioso, observamos que o desenvolvimento da identida-
de, atrela-se ao desenvolvimento corporal e espiritual, e assim por
consequência, com a nossa capacidade de aprender a dimensão de
solidariedade. (ROMANO, 2004, p. 161), tão necessária aos rituais
religiosos por sua possibilidade “de evocar experiências emocionais
que podem ser associadas a conceitos sobrenaturais”. (SOSIS, 2005,
p. 47)
Romano (2004, p. 145) nos remete a observar de que na socie-
dade moderna está presente uma redução nos contatos pessoais, e
desta forma, sucessivamente, uma redução na comunicação primá-
ria, acarretando numa fragilidade entre o universo de informações
e a função social da comunicação, culminando no que o autor vai
descrever como uma “crescente disbiose comunicativa entre a co-
municação pessoal e técnica traz consequências sobre seres dialógi-
cos como os humanos, fazendo com que:

A solidão e perda de relacionamento são os efeitos mais óbvios.


Como afirmou, entre outros, o Sr. Klenk, homeostase espiritual
interna é desequilibrada. O resultado é o “perda de presença”, a
colonização crescente de Biotempo por monólogos permanentes
da técnica, deixando os seres humanos sem a presença da outro.
(ROMANO, 2004, p. 145)

175
JORGES MIKLOS E TATIANA PENNA

Desta maneira, a religião por meio de seus rituais, como men-


cionado anteriormente é tida como uma experiência humana. E, no
cenário umbandista, observamos que os seus processos ritualísticos
preservam uma gama de manifestações religiosas comunicativas
que estabelecem, na mesma medida em que fortalecem, o vínculo
entre os seres humanos.
Existe nos elementos ritualísticos um desejo pela preservação
de memórias ancestrais, simbolizadas na continuidade prática des-
ses ritos, que são transferidos, de geração para geração, manifestos
nos princípios da oralidade, que se caracteriza por consistir em uma
ação comunicativa responsável por manter vivas crenças, valores e
tradições de cunho cultural ou religiosas, bem como, pelas comu-
nicações pelo corpo, tornando estes dois elementos forças motrizes
na manutenção viva dos fundamentos dos ritos preconizados pela
filosofia religiosa em questão.
E assim, por sua premissa ecológica, a Umbanda se desenvol-
veu para além de um texto cultural escrito (livro sagrado) pautando
seus ritos, cânticos, vestes, alimentos, saberes, no que comungamos
com Muniz Sodré (s/d), no primeiro livro sagrado: “A Natureza”.

Caminhos a percorrer

A maior parte das pesquisas no campo da comunicação sobre


o fenômeno religioso trata da midiatização, ou seja, da apropriação
por parte das igrejas/religiões dos dispositivos midiáticos e das im-
plicações que esse fenômeno apresenta e não raríssimas exceções
ignoram as de tradições africanas e por sua vez a essencialmente
brasileira: a Umbanda.

A Umbanda difere radicalmente dos cultos afro-brasileiros ela tem


consciência de sua brasilidade, ela se quer brasileira. A Umbanda

176
NÓS NÃO TEMOS TEOLOGIA, NÓS DANÇAMOS!

aparece desta forma como uma religião nacional que se opõe às


religiões de importação: protestantismo, catolicismo e kardecismo.
(ORTIZ, 1999, p. 16)

Como uma alternativa aos estudos e pesquisas em comunica-


ção, este ensaio buscou enveredar suas reflexões, desprendendo-se
da visão eurocêntrica e etnocêntrica de que só é cultura aquilo que
se expressa pelo texto, pela palavra escrita, pelo “livro sagrado”, e
deste modo, por consequência, com a concepção de que a comuni-
cação se reduz a mídia impressa ou eletrônica.
Por este prisma, consideramos que as Umbandas por meio dos
seus elementos ritualísticos, corporeamente comunicativos, apre-
sentam-se transgressoras, à medida que rompem com as ideologias
religiosas cristocêntricas.
E desta forma, aventurando-se pela possibilidade conceitual,
teórica e ecológica da Ecologia da Comunicação, que arriscamos
afirmar ser esta, ainda, desconhecida dos estudos em comunicação
no Brasil, tomamos como referência de que “la comunicación tiene
uma dimensión ecológica y ética” (ROMANO, 2004, p. 145), e por-
tanto, sustentamos o sentido social e cultural definido por Roma-
no, quando coloca que o valor de uso da ecologia da comunicação
encontra-se em libertar-se do jugo de meios simples de produção,
de seu aspecto técnico e valioso, para transformar-se em comunica-
ção que produza e conserve as experiências relacionais, a vista disso,
servindo como um mecanismo de representatividade e ligação na-
tural entre os seres humanos.
Por sua premissa ecológica, a Umbanda se desenvolveu para
além de um texto cultural escrito (livro sagrado) pautando seus
ritos, cânticos, vestes, alimentos, saberes por meio da oralidade,
da comunicação pelo corpo, corroborando com Vicente Romano
quando conceitua a ecologia da comunicação, referenciando que a
mesma expressa formas duradouras e compatíveis de comunicação
com o ser humano, com a sociedade, com a cultura e o meio natural.

177
JORGES MIKLOS E TATIANA PENNA

Neste sentido, tomando a religião por um fenômeno humano e


inscrita no texto da cultura, apreendemos esta como uma composi-
ção de diversas expressões e linguagens comunicativas (textos, ima-
gens, sons, olfatos, paladares), e por esta premissa, dar contornos
fechados ao entendimento acerca da religião é um risco limitador as
suas várias linguagens que transcendem “ao clerical, sacerdotal, e ao
teológico” (NOGUEIRA, 2012, p. 15).
Finalizamos esta reflexão recontando uma célebre história de
Joseph Campbell. No Japão, durante um congresso internacional so-
bre religião, Campbell entreouviu outro delegado norte-americano,
um filósofo social de Nova Iorque, dizendo a um monge xintoísta:
“Assistimos já a um bom número de suas cerimônias e vimos alguns
dos seus santuários. Mas não chego a perceber a sua ideologia. Não
chego a perceber a sua teologia”. O japonês fez uma pausa, mergu-
lhando em profundo pensamento, e então balançou lentamente a
cabeça. “Penso que não temos ideologia”, disse. “Não temos teologia.
Nós dançamos.
Dirigimos a resposta do monge xintoísta a todos aqueles que
olham para a Umbanda com preconceito. Afinal, como lembrou Za-
ratustra: “Eu só poderia crer em um Deus que soubesse dançar”

Referências

BOFF, Leonardo. Tempo de transcendência: o ser humano como um


projeto infinito. São Paulo: Editora Sextante, 2000.

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CONTRERA, Malena S. Ontem, hoje e amanhã: sobre os rituais midiáticos.


Revista FAMECOS, Porto Alegre, n. 28, 2005.

178
NÓS NÃO TEMOS TEOLOGIA, NÓS DANÇAMOS!

CUMINO, Alexandre. História da umbanda: uma religião brasileira. São


Paulo: Madras, 2015.

ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. Tradução José A. Ceschin. São


Paulo: Mercuryo, 1992.

KLEIN, Alberto. Imagens de culto e imagens da mídia: interferências


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MIKLOS, Jorge. Cultura e desenvolvimento local: ética e comunicação


comunitária. São Paulo: Saraiva, 2014

NOGUEIRA, Paulo A. S. (Org). Linguagem da religião: desafios, métodos e


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ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. São Paulo: Brasiliense,


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ROMANO,Vicente. Ecologia de la comunicación. Hondarribia: Hiru, 2004.

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SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro brasileira. Rio


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TRINDADE, Diamantino Fernandes. História da Umbanda no Brasil.


Limeira, SP: Conhecimento, 2014.

WULF, Christoph. Homo pictor: imaginação, ritual e aprendizado mimético


no mundo globalizado. Tradução Vinicius Sprigio. São Paulo: Hedra, 2013.

NOTA

1 Abordaremos este conceito com mais profundidade ao final deste ensaio.

179
LILA E MAYA: EM BUSCA DA
SACRALIDADE DOS PROCESSOS
CRIATIVOS E PARTICIPATIVOS

Jorge Miklos
Tadeu Rodrigues Iuama

O estado crísico humano

O ponto de partida para o presente ensaio, elaborado a partir


de pesquisa bibliográfica, é o desligamento primordial do humano.
Sem a pretensão de esgotar o tema, preocupamo-nos em exempli-
ficar algumas narrativas, com o intuito de esclarecer a afirmação
desse desligamento percebido. Nas religiões judaico-cristãs, os hu-
manos (representados por Adão e Eva) são expulsos do Paraíso após
a desobediência da orientação de Deus sobre a proibição do consu-
mo do fruto proibido (BÍBLIA, 1980). A partir de tal queda, parte
dos fundamentos judaico-cristãos compreende um código moral
que torne os humanos dignos de voltar a esse estado de graça, re-
presentado pela volta ao Paraíso na pós-vida. Salientamos que não é
nossa intenção valorar ou desqualificar nenhuma crença específica,
cabendo ao nosso escopo apenas apontar sua narrativa. Tampouco
admitimos a capacidade de reflexões teológicas, de maneira que nos
atentamos apenas à narrativa em si. Desculpamo-nos ainda por en-

181
JORGES MIKLOS E TADEU RODRIGUES IUAMA

tendimentos errôneos por nossa parte, e nos colocamos à disposição


para aprender sobre interpretações mais acuradas.
Já na filosofia grega, um exemplo encontra-se n’O banquete, de
Platão (2003), onde tal desligamento é dado na narrativa de Aristó-
fanes. Num estágio anterior, a humanidade seria caracterizada por
seres de quatro braços e quatro pernas, duas cabeças e dois apare-
lhos sexuais. Desses aparelhos sexuais, surgiriam três gêneros: os
filhos do sol, com os dois aparelhos masculinos; as filhas da terra,
com os dois aparelhos femininos; e @s filh@s1 da lua, que continham
um aparelho masculino e um aparelho feminino. Como viviam
em completude, foram tomados pela hybris2. Zeus então os puniu
partindo-os ao meio, dividindo cada um em dois seres. Após essa
separação, esses novos humanos passariam suas vidas a procurar
pela sua antiga metade, para se sentirem completos novamente. Essa
narrativa, em certa medida, pode ser vista ainda hoje na expressão
alma gêmea.
Bóris Cyrulnik (1999) nos aponta sobre o estado indiferenciado
entre mãe e bebê nos primeiros meses de vida. A partir dessa de-
pendência total do bebê nos primeiros meses, seria constituída uma
necessidade de vincular-se a outros indivíduos, não apenas no caso
dos humanos, mas nos mamíferos em geral. Esse estado indiferen-
ciado geraria também nossa capacidade mimética, como estratégia
de nos aproximarmos uns dos outros.
No âmbito da Comunicação, podemos observar a relação me-
tafórica com a queda do Paraíso na afirmação de Norval Baitello Ju-
nior (2012) de que a filogenética humana daria relação entre nossas
bolhas sensoriais enquanto habitantes das árvores e, após a queda
das árvores para o chão (que representava o grande perigo para os
habitantes das árvores, pois era a morada dos predadores), a aquisi-
ção da noção linear de espaço e tempo (antes/causa e depois/efeito),
a partir da observação do horizonte. A partir disso, construiríamos
moradias para nos proteger dos perigos do chão, mas o desejo de

182
LILA E MAYA: EM BUSCA DA SACRALIDADE...

observar o entorno nos levaria a construir janelas. O conceito de


janela se tornaria cada vez mais abstrato até culminar nas telas con-
temporâneas. O desligamento primordial seria do espaço e do tem-
po, ao abstrair o aqui e agora, em prol de uma telepresença.
Edgar Morin (1975) nos demonstra que, ao perceber a própria
condição mortal, uma parcela do humano enlouquece. Para contra-
riar essa perspectiva de nossa natureza mortal, criamos a cultura.
Destarte, nossas produções culturais sobreviveriam à transitorieda-
de de nossa natureza efêmera. Tanto que, para o autor, mais do que
Homo sapiens sapiens (taxonomia para nossa subespécie), seriámos
melhor definidos como Homo sapiens demens (trocando a dupli-
cidade do termo que nos designa como sábios por um termo que
também abarca nossa natureza descomedida3). É a parcela demens
que nos levaria à cultura, à arte e à religião, assim como às diversas
manifestações de demência, aqui entendida como o descolamento
da realidade natural.
Esses exemplos, escolhidos por nos serem os mais conhecidos e
considerados representativos para um fenômeno, nos levam a aferir
que podemos pensar em um estado de busca desse estágio anterior,
onde conhecíamos um estado de completude, seja ele o Paraíso, a
alma gêmea, o cuidado materno, a segurança do aqui e agora das
árvores ou a ignorância de nossa mortalidade. Esse estado crísico
(do grego krínō, separar), levou alguns autores, assim como Edgar
Morin (1975), a pensarem numa taxonomia mais adequada para de-
signar o humano.
Novamente, atentamos que não é nossa presunção esgotar o
tema, mas sim atentar para alguns autores que abordam o assunto
de maneira que consideramos frutífera para a reflexão proposta.
No âmbito da Ciência das Religiões, Mircea Eliade (1992) definiu o
humano no Homo religiosus. Tal designação se dá em conta do fato
de que o humano:

183
JORGES MIKLOS E TADEU RODRIGUES IUAMA

acredita sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que


transcende este mundo, que aqui se manifesta, santificando-o e tor-
nando-o real. Crê, além disso, que a vida tem uma origem sagrada
e que a existência humana atualiza todas as suas potencialidades na
medida em que é religiosa, ou seja, participa da realidade (ELIA-
DE, 1992, p. 97).

A própria palavra religião contém em si essa busca por encer-


rar tal estado crísico. Origina-se da palavra latina religare, “forma-
da pelo prefixo re (outra vez, de novo) e o verbo ligare (ligar, unir,
vincular). O religare, nesse sentido, é a forma primeira de vínculo,
concebida não só como vínculo entre os homens e seus deuses, mas
especialmente entre os próprios homens” (MIKLOS, 2012, p. 18).
Destarte, “buscamos abranger a religião como a arte de edificação
de vínculos. Aquele que aspira ao religare tenta construir vínculos”
(MIKLOS, 2012, p. 148).
Faz-se necessário o esclarecimento do paradigma comunica-
cional com o qual concordamos, no qual comunicação é vínculo.
Após apontar para nossa queda das árvores e o consequente pro-
cesso de sedentarização (que faz valer a designação taxonômica de
Homo sedens), Baitello Junior nos leva a refletir sobre:

Por que nos preocupamos tanto com os meios, com esse “meio de
campo” entre o um e o outro? Porque há aí um abismo. E abismos
são vazios gigantescos e assustadores. Como temos horror ao va-
zio, tentamos preenche-lo com tudo o que temos à mão: com os
gestos, com a voz, com os rastros (olfativos, visuais, auditivos ou
táteis), com as imagens arcaicas, com escritas de todos os tipos,
com as imagens produzidas por máquinas ou até mesmo com as
próprias máquinas de imagens. Mas preencher o abismo é um tra-
balho insano e inglório, como enxugar gelo ou esvaziar um rio.
Há apenas lampejos de um fugaz preenchimento, pontes fugazes
que nos levam até o outro, transpondo por breves relances o vazio
do abismo (...) Para conseguir esses lampejos, e tais relances é que

184
LILA E MAYA: EM BUSCA DA SACRALIDADE...

experimentamos todos os meios, todo tipo de mídia – dentre eles,


as imagens, os sons, os gestos, os perfumes naturais e artificiais, os
sabores, os rastros e os cortes, as escritas todas. A essa atividade
damos o nome de comunicação, criação de pontes para atravessar
o abismo que separa o eu do outro. A essas pontes, como elas se
colocam no meio de campo, damos o nome de “mídia”, ou “meios”,
ou “media” (BAITELLO JUNIOR, 2012, p. 60).

Mas não apenas a Religião e a Comunicação se debruçam sobre


o tema. Gilbert Durand apontou sobre quatro setores do pensamen-
to simbólico que restabelecem o equilíbrio a esse estado crísico:

Primeiro, e na sua determinação imediata, na sua espontaneidade o


símbolo surge como restabelecedor do equilíbrio vital comprome-
tido pela inteligência da morte; depois, pedagogicamente, o sím-
bolo é utilizado para o restabelecimento do equilíbrio psicossocial;
em seguida, se examinarmos o problema da simbólica em geral,
através da coerência das hermenêuticas, apercebemo-nos que a
simbólica estabelece, através da negação da assimilação racista da
espécie humana a uma pura animalidade, ainda que racional, um
equilíbrio antropológico que constitui o humanismo ou o ecume-
nismo da alma humana. Por fim, depois de ter instaurado a vida
face à morte, o bom-senso do equilíbrio face ao desregulamento
psicossocial, depois de ter verificado a grande catolicidade dos mi-
tos e dos poemas e instaurado o homem como homo symbolicus,
o símbolo erige finalmente, face à entropia positiva do universo,
o domínio do valor supremo e equilibra o universo que passa, por
um Ser que não passa, ao qual pertence a eterna Infância, a eterna
autora, e desemboca então numa teofania (DURAND, 1995, p. 98).

Durand parece-nos o autor que melhor sintetizou as narra-


tivas de desligamento exemplificadas, uma vez que sua definição
de Homo symbolicus envolve relações tais como a morte (MORIN,
1975) e o estado infantil (CYRULNIK, 1999), além de caráter trans-
cendental que, ao mesmo tempo, observa a imanência humana.

185
JORGES MIKLOS E TADEU RODRIGUES IUAMA

Para tanto, utiliza-se do símbolo, palavra que se origina dos termos


gregos Syn (junto) e Ballein (lançar, arremessar, atirar), literalmente
lançar junto. Foi origem do termo que nos levou a refletir sobre o
jogo como sagrado.
O verbo jogar, além de designar a ação de participar de um
jogo, também se insere no mesmo campo semântico de lançar, ar-
remessar e atirar, que nos remetem imediatamente ao verbo grego
ballein. Dessa forma, refletimos sobre símbolo como jogar junto,
não apenas no sentido semântico aqui apontado, mas também para
projetarmos que o simbólico, o sagrado, é proporcionado ao jogar-
mos determinados jogos juntos.
Para tanto, tomamos como aporte a última das definições taxo-
nômicas pertinentes à nosso estudo, dada por Johan Huizinga. Para
o autor:

Em uma época mais otimista que a atual, nossa espécie rece-


beu a designação de Homo sapiens. Com o passar do tempo,
acabamos por compreender que afinal de contas não somos
tão racionais quanto a ingenuidade e o culto da razão do sé-
culo XVIII nos fizeram supor, e passou a ser de moda desig-
nar nossa espécie como Homo faber. Embora faber não seja
uma definição do ser humano tão inadequada como sapiens, ela
é, contudo, ainda menos apropriada do que esta, visto poder
servir para designar grande número de animais. Mas existe
uma terceira função, que se verifica tanto na vida humana
como na animal, e é tão importante como o raciocínio e o
fabrico de objetos: o jogo. Creio que, depois de Homo faber
e talvez ao mesmo nível de Homo sapiens, a expressão Homo
ludens merece um lugar na nossa nomenclatura (HUIZIN-
GA, 2017, s/n).

O ato de jogar foi tratado por Huizinga como elemento geni-


tivo das manifestações culturais. O autor observou características

186
LILA E MAYA: EM BUSCA DA SACRALIDADE...

no direito, na guerra, na arte, na filosofia e na religião que orien-


tam para uma possível origem em práticas lúdicas. Salientamos que
nossa posição é de discordância com tais determinismos, de modo
que preferimos uma postura complexificada (MORIN, 2007). Dessa
forma, mais do que pensar no jogo como genitivo da cultura, prefe-
rimos tomar a reflexão de Huizinga como indicativa à relação entre
as manifestações culturais: existe jogo na religião, assim como existe
religião no jogo. Orientamo-nos de pistas que a etimologia pode
nos fornecer: nosso idioma utiliza dois verbos para designar ações
que estão num mesmo campo semântico – jogar e brincar. Jogar re-
mete à ludus, que também dá origem à palavra ilusão (in ludere, em
jogo), que nos leva a tecer relações com a dimensão sagrada (ELIA-
DE, 1992), ao imaginário (DURAND, 1995) e à noosfera, realidade
das ideias no pensamento moriniano (MORIN, 2011). Brincar, por
sua vez, tem sua raíz etimológica no latim vinculum (laço). Como
afirmamos anteriormente, compartilhamos da perspectiva de que
comunicação é vinculo. Dessa forma, podemos igualmente inferir
que existe comunicação no brincar, assim como existe o brincar na
comunicação. Portanto, entendemos que as práticas lúdicas são mí-
dias, por promoverem pontes que ligam os participantes.
Sejamos demens, religiosus, symbolicus, sedens ou ludens, fato
é que diversos aportes teóricos apontam para uma busca por nos
restaurar de nossa condição crísica. Com o intuito de aproximar
diferentes searas do saber, nesse estudo nosso fôlego resume-se a
buscar aproximações entre o larp e a religiosidade popular.

Larp e religiosidade popular

Faz-se necessário definir o objeto desse estudo, o larp4 (acrôni-


mo para live action role play). Essa prática lúdica envolve a criação/
experimentação/participação de uma narrativa em uma realidade

187
JORGES MIKLOS E TADEU RODRIGUES IUAMA

simbólica, por meio de personagens. Explicado de maneira menos


hermética, seria uma atividade onde os participantes, utilizando sua
própria corporeidade, desempenham papéis numa narrativa ficcio-
nal. Dentre as suas características, destacamos duas: a espontanei-
dade, dada pela inexistência de um roteiro prévio, que engessaria
a agência dos participantes a criar/experimentar sua própria nar-
rativa, tecida em conjunto; e a participação, uma vez que não exis-
te distinção entre emissor e receptor de estímulos – todos os seus
participantes são agentes ativos da experiência, não sendo admitida
uma audiência passiva, de modo que “não é feito para ser visto... é
feito para ser vivido” (FALCÃO, 2013, p. 17).
Ao observarmos que o roleplay5 presente nos larps é feito a par-
tir de conteúdos que remetem à história de vida do indivíduo (IU-
AMA, 2018), existiria nele um processo comunicacional, onde os
indivíduos potencialmente se vinculariam uns com os outros, já que
haveria um compartilhamento de vivências prévias de cada um dos
participantes, mesmo que mascaradas por meio das metáforas que
comporiam os personagens.
Não se trata, de maneira alguma, do primeiro caso lúdico em
que existe uma relação entre as máscaras (sejam elas concretas ou
abstratas) e a formação de vínculos. Roger Caillois foi enfático ao
afirmar que “as Máscaras são o verdadeiro laço social” (CAILLOIS,
1990, p. 190). A relação entre e jogo e máscara, para o autor, está pre-
sente nos jogos de Mimicry (uma das quatro categorias de jogos por
ele propostas, ao lado de Agôn, Alea e Ilinx), descritos como “uma
variada série de manifestações que têm como característica comum
a de se basearem no facto de o sujeito jogar a crer, a fazer crer a si
próprio ou a fazer crer aos outros que é outra pessoa” (CAILLOIS,
1990, p. 39). Pertinentemente à nossa presente reflexão, o autor afir-
mou ainda que:

188
LILA E MAYA: EM BUSCA DA SACRALIDADE...

Um dos principais mistérios da etnografia reside claramente no


emprego generalizado das máscaras nas sociedades primitivas. A
estes instrumentos de metamorfose está sempre associada uma
extrema importância de carácter religiosa. Eles surgem na festa,
interregno de vertigem, de efervescência e de fluidez, onde tudo
o que há de ordenado no mundo é passageiramente abolido para
ressurgir revitalizado (...) Por ocasião de um tumulto ou de um
enorme burburinho, que se alimentam a si mesmos e se caracteri-
zam pelo seu excesso, considera-se que a acção das máscaras revi-
gora, rejuvenesce, ressuscita a natureza, e a sociedade (CAILLOIS,
1990, p. 107).

Vemos, com isso, uma aproximação clara entre os jogos de Mi-


micry e a função do ritual. De acordo com Eliade (1992), o ritual
reatualiza os mitos e, ao regressar ao tempo original (o tempo mí-
tico, transcendente), regenera a cosmogonia. Ao regenerar a cos-
mogonia, restitui a realidade profana, imanente. Não consideramos
exagero aproximar mais ainda os dois autores, de modo que vemos
os jogos de Mimicry como hierofanias, ou seja, manifestações da
realidade sagrada na realidade profana. Jogo e religião atenderiam
a um princípio recursivo, termo utilizado em concordância com o
pensamento complexo (MORIN, 2007): o sagrado se manifestaria
no jogo (CAILLOIS, 1990), ao mesmo tempo em que o ritual reli-
gioso teria uma estrutura de origem lúdica (HUIZINGA, 2017).
Destarte, procuramos observar o larp a partir da ótica da re-
ligiosidade popular. Ressaltamos que nossa reflexão não busca se
prender ao viés de alguma religião específica, de modo a direcionar
nosso olhar não apenas em direção à transcendência, mas princi-
palmente à imanência, no sentido de observar a religião como um
aporte teórico sobre a edificação de vínculos entre os homens (MI-
KLOS, 2012). Para tanto, buscamos uma definição, dentre as possí-
veis, de religiosidade popular:

189
JORGES MIKLOS E TADEU RODRIGUES IUAMA

Poderíamos definir a religiosidade popular como a experiência re-


ligiosa de comunidades pobres, socialmente oprimidas e cultural-
mente marginalizadas. A diversidade cultural entre índios, brancos
e negros nos faz lembrar aqui o assunto interculturação. A vivên-
cia comunitária da religião se dá na comunidade eclesial de base
(POEL, 2013, p. 891).

Buscamos aproximações nos termos grifados por Poel. Embora


exista uma exploração mercadológica do larp (IUAMA, 2017), ob-
servamos que tal prática ocorre também em caráter popular, fora de
grandes conglomerados midiáticos. Portanto, tomamos como para-
lela à religiosidade popular, e não à religião oficial. Enfatizamos que
o próprio protagonismo midiático, numa sociedade que privilegia o
espetáculo (DEBORD, 2003), torna o larp algo culturalmente mar-
ginalizado, sem possuir espaços próprios e ocasionalmente vítima
de estigmas. Com isso, apontamos à incredulidade em tratar algo
que pode ser chamado de jogo como cultura por vezes perpetrada, e
consequentemente à (quase) total ausência de políticas públicas, ou
mesmo iniciativas privadas, no sentido de proporcionar locais e/ou
oportunidades para a prática do larp, de maneira que muitas vezes
os praticantes de larp são compelidos a utilizar espaços cedidos por
um dos participantes ou ocupar informalmente espaços públicos,
visando a experiência lúdica, em contraponto à experiência religiosa
apontada por Poel.
Sobre a diversidade cultural, afirmamos que uma das caracte-
rísticas do larp é o desempenho do outro, o personagem. A fim de
garantir maior amplitude de papéis, é corriqueiro ao larp beber de
fontes culturais diversas. Esse convite à alteridade cultural leva a
afirmações como a do político norueguês Heikki Holmås, ex-Mi-
nistro do Desenvolvimento Internacional, para quem o “larp pode
mudar o mundo, porque ele faz as pessoas entenderem que os hu-
manos, sob pressão, podem agir diferentemente de quando estão
na vida normal, a salvo” (HOLMÅS, 2012, tradução nossa). Dentre
190
LILA E MAYA: EM BUSCA DA SACRALIDADE...

as iniciativas de Holmås envolvendo o larp e a diversidade cultural,


destaca-se o intercâmbio Noruega-Palestina, onde ao mesmo tem-
po em que a produção de larp dos países foi colocada em diálogo,
houve um interesse em produzir novos larps mostrando a cultura de
uma nação para a outra.
Além disso, existe uma tendência à antropofagia nos larps. A
partir da incorporação das histórias de vida dos participantes (IU-
AMA, 2018), metaforizadas pelos consumos de outras narrativas
culturais, podemos pensar nessa interculturação como um processo
comunicacional e cultural de caráter antropofágico (SILVA, 2007).
Por último, Poel frisa a comunidade eclesial de base. Vemos, nos
larps, uma comunidade de base. Embora não seja eclesial, algumas
de suas preocupações são similares. Por comunidade de base, pen-
samos aqui nos propositores de larps, que buscam ver a realidade
do entorno dos participantes, julgar temas que poderiam ser trans-
formados em propostas de larps, e agir aplicando-as sob a forma de
novos larps que dialogam com as demandas dessa comunidade.
Apontamos para outra característica do larp: seu potencial te-
rapêutico (BOWMAN, 2017). De acordo com a autora, uma vez que
os conteúdos dos jogos podem afetar as personalidades cotidianas
dos participantes, o larp poderia ser visto como uma prática tera-
pêutica. Sob a segurança de uma narrativa lúdica e ficcional, os par-
ticipantes poderiam tratar de temas traumáticos e/ou características
indesejáveis do psiquismo. Dessa maneira, o próprio processo tera-
pêutico poderia ser visto como um processo lúdico, como afirmou
Winnicott (1975, p. 59):

A psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar,


a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas
que brincam juntas. Em consequência, onde o brincar não é possí-
vel, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido
de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar
para um estado em que o é.

191
JORGES MIKLOS E TADEU RODRIGUES IUAMA

Por isso, os larps poderiam ser tomados como possíveis tutores


de resiliência. Para Cyrulnik (2003), os tutores de resiliência seriam
pessoas, objetos ou ações que serviriam como gatilho catalizador
dos processos de resiliência, compreendida como a ressignificação
de traumas sofridos pelo indivíduo. Tal característica cria uma res-
sonância com as práticas religiosas, que exercem a mesma função
nos processos de resiliência de diversos indivíduos.
Outro ponto de contato seria a formação de comunidades,
presente tanto no âmbito dos larps (BOWMAN, 2010), quanto no
âmbito da religião. Os interesses comuns compartilhados pelos in-
divíduos criariam um senso de pertencimento, de modo a promo-
ver um vínculo entre eles, seja no âmbito das comunidades lúdicas,
seja no âmbito das comunidades religiosas. Tomamos tal discussão
como paralela ao bando em uma Zona Autônoma Temporária (BEY,
2004), ou seja, um grupo de indivíduos orientados por afinidades
em uma comunidade intencional.
De maneira menos enfática do que as religiões, os larps também
teriam um potencial transcendental, aqui tomado como paralelo ao
processo jungiano de individuação, abordado por Bowman (2017):
impulsionado por processos imaginativos, o indivíduo poderia ex-
perimentar a transcendência. E ampliamos isso para outros jogos,
além do larp, apoiados em Caillois (1990), para quem os jogos de
Ilinx teriam uma íntima relação com o transe religioso. Além disso,
a sobreposição do mundo imaginário do larp na realidade concre-
ta nos faz, novamente, remeter ao conceito de hierofania (ELIA-
DE, 1992). A partir disso, concordamos com Poel, quando este nos
diz que “na religiosidade popular, não se separam vida e religião”
(POEL, 2013, p. 891). Pensamos ainda, juntamente com Winnicott
(1975), nos larps como fenômenos transicionais, uma vez que não
pertencem nem à realidade psíquica (subjetiva) nem à realidade
cultural (objetiva). A partir disso, poderíamos então afirmar que

192
LILA E MAYA: EM BUSCA DA SACRALIDADE...

essa área transicional estaria em algum lugar entre as dimensões


sagrada e profana.
Outras características nos fazem traçar aproximações entre os
larps e a religiosidade popular, tais como: espontaneidade, autono-
mia, linguagem corporal, linguagem simbólica, ausência de dualis-
mo, valorização das festividades, liberdade, criatividade e alegria.
Atentamo-nos a estas poucas pois, ao mesmo tempo em que apon-
tam para o alcance de nosso fôlego em abarcar tema tão vasto, tam-
bém apontam para um princípio hologramático da complexidade,
ou seja, o princípio de que “não apenas a parte está no todo, mas o
todo está na parte” (MORIN, 2007, p. 74).

De maya para lila

Pensamos que o larp é contra-hegemônico. Para dar cabo a essa


afirmação, tomamos como ponto de partida a seguinte afirmação:

Em minha opinião, nós vivemos em um mundo pré-definido, um


mundo onde regras, expectativas e comportamentos são mais ou
menos construídos para nós, mas não por nós. Quando nós cria-
mos nossas áreas transicionais, nossas zonas intermediadas onde
nós definimos as regras da realidade, nós na verdade estamos di-
zendo NÃO aos poderes estabelecidos (LARSSON, 2005, p. 244,
tradução nossa).

Elge Larsson (1944-2016) foi um acadêmico sueco que se de-


bruçou sob o larp. Tal qual a religiosidade popular, que é “chamada
religião do povo, em contraste com a religião oficial” (POEL, 2013, p.
891), Larsson nos mostrou que existe um potencial contra-hegemô-
nico no larp, sendo uma mídia construída pelos participantes, e não
para os participantes. O próprio caráter transitório (WINNICOTT,
1975), autônomo e temporário (BEY, 2004) dificultaria a coopta-

193
JORGES MIKLOS E TADEU RODRIGUES IUAMA

ção do larp pelo mercado (ou outros poderes estabelecidos), o que


serviria como uma possível justificativa para o desinteresse ao larp
tanto na esfera pública quanto na esfera privada.
A participação inerente aos larps, assim como a participação
dos membros de uma comunidade marcada pela religiosidade po-
pular, nos remete à cultura participativa (HAGGREN et al, 2009). A
proposta da obra, que teve Larsson como coautor, expande a afirma-
ção do mesmo inserida no início do intertítulo. Em resumo, opõe a
cultura espectativa, paralela ao conceito de sociedade do espetáculo
proposta por Debord (2003), onde o indivíduo é espectador de um
emissor hegemônico, à cultura participativa, caracterizada pela ação
dos indivíduos, onde ao mesmo tempo os estímulos são gerados e
consumidos pelos participantes, de maneira contra-hegemônica.
Nesse âmbito, evidenciamos que a participação é característica
essencial para a comunicação sustentável e o desenvolvimento hu-
mano, na perspectiva da ecologia da cultura (BUSTOS, 2006). Com
base na criação coletiva, em contraponto ao consumo midiático, ob-
servamos aderência com a cultura livre, definida por um contrapon-
to à transformação da criatividade humana em propriedade merca-
dológica (LESSIG, 2004). Afirmamos também que a corporeidade
inerente aos larps está em consonância com a ecologia da comunica-
ção, que visa garantir um equilíbrio entre os meios de comunicação
facilitados pelas tecnologias da informação e a comunicação pri-
mária, caracterizada pelo contato direto ou elementar humano, as-
sim como visa impedir a exclusividade da comunicação por difusão
massiva de meios de comunicação, cujo efeito negativo é a elimina-
ção da diversidade cultural (ROMANO, 2004). Atentamo-nos ainda
para o fato de que a participação é marcada por um estado de inter-
dependência, uma característica do paradigma sistêmico que marca
o pensamento ecológico, em contraponto à interação do paradigma
mecanicista (CAPRA, 2006). Por fim, apelamos à necessidade da

194
LILA E MAYA: EM BUSCA DA SACRALIDADE...

diversidade psicocultural, característica da complexidade humana,


salutar para um pensamento ecológico (MORIN; KERN, 2003).
Tomamos, por fim, a reflexão de Fritjof Capra, cujo pensamen-
to envolve a mudança para um paradigma ecológico:

O tema recorrente básico na mitologia hindu é a criação do mundo


pelo auto-sacrifício de Deus – “sacrifício” no sentido original de
“tornar sagrado” –, por meio de Deus vem o mundo que, no fim, se
torna de novo Deus. Esta atividade criativa do divino é designada
lila, o desempenho de Deus6, e o mundo é visto como palco do
desempenho divino (...) A palavra maya – um dos termos mais
importantes da filosofia indiana – foi alterando o seu significado
ao longo dos séculos. De “força”, ou “poder”, do divino actor e má-
gico, tornou-se sinónimo do estado filosófico de qualquer pessoa
sob o fascínio de um desempenho mágico (...) Maya, portanto, não
significa que o mundo seja uma ilusão, como é muitas vezes errada-
mente afirmado. A ilusão está meramente no nosso ponto de vista,
se pensarmos que as formas e estruturas, coisas e acontecimentos
que nos rodeiam são realidades da natureza, em vez de entender
que são conceitos do nosso espírito quantificador e categorizador.
Maya é a ilusão de tomar estes conceitos pela realidade, de confun-
dir o mapa com o território (CAPRA, 1989, p. 77).

Lila e Maya ligam-se à nossa reflexão. Maya seria a nossa ilu-


são acerca do mundo. Lila, por sua vez, nos remeteria à brincadeira
divina, aquela com potencial imanente (o de criar vínculos), assim
como transcendente (o de gerar hierofanias). Apoiamo-nos em
Winnicott (1975), para quem a vivência do brincar transfigura-se,
na vida adulta, nas práticas culturais. O desafio, com o qual gosta-
ríamos de encerrar a presente reflexão, é em como transformar o
jogar em brincar, ou seja, sair da lógica de ilusão promovida pela
mídia hegemônica, em busca da sacralidade dos processos criativos
e participativos.

195
JORGES MIKLOS E TADEU RODRIGUES IUAMA

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198
LILA E MAYA: EM BUSCA DA SACRALIDADE...

NOTAS

1 O uso de @ nesse caso tem a intenção de evidenciar que o gênero era


hermafrodita.
2 Hybris, ou húbris, refere-se ao termo grego para o descomedimento humano,
sobretudo ante os deuses. Pertence ao mesmo campo semântico do termo petu-
lância, de origem latina.
3 Atentamos para o fato do demens remeter ao mesmo descomedimento da hy-
bris, previamente mencionada.
4 A grafia em minúsculas tem sido adotada internacionalmente, similar ao movi-
mento que ocorreu com os acrônimos laser e radar.
5 Optamos pelo termo em inglês, dada a abrangência do termo e a imprecisão
resultante de qualquer tentativa de tradução para o português.
6 Embora tenha sido traduzido para o português como desempenho de Deus, o
termo em inglês é divine play, a ser elaborado no parágrafo subsequente.

199
O SENHOR DOS DOIS MUNDOS:
STEVE JOBS, O HERÓI TECNOLÓGICO

Jorge Miklos
Leonardo de Souza Aloi Torres

Harry Pross, importante teórico da mídia afirmou que: “os


símbolos vivem mais que os homens” (PROSS. Apud. BAITELLO,
2006, p. 7). A partir dessa afirmação podemos pensar que não há
extinção nos processos culturais. Os textos produzidos nas culturas
migram e se ressignificam de outras formas ao longo do tempo. Na
mesma ponderação, Carl Gustav Jung supôs que as imagens cultu-
rais são constituídas de uma força psíquica coletiva – arquétipo –,
que transportam a memória do passado quando renascidas e cris-
talizadas no contemporâneo. (JUNG, 2006, § 1-86). Nesse sentido,
é possível pensar a cultura formada por camadas temporais. Por
mais arcaica, nenhuma camada é perdida. Como num palimpsesto,
apesar de apagado, um texto cultural deixa suas marcas. Os textos
deixam rastros e cada um é um começo e uma repetição. Essa é o
princípio da cumulatividade cultural.
Este artigo tem como objetivo fazer um exercício de desvelar
mitos arcaicos que estão presentes nos textos culturais midiáticos
contemporâneos. Tomando por base esse cenário histórico-cultural
do imaginário tendo por base a psico-história-arquetípica proposta
por Carl Gustav Jung, buscou-se estudar como a imagem de Steve
Jobs é propagada pelos tecnofiéis, estruturalmente, equivalente à

201
JORGES MIKLOS E LEONARDO DE SOUZA ALOI TORRES

Jornada do Herói concebida por Joseph Campbell (1997). Dedica-se


neste ensaio a investigação detalhada de como a história de Steve
Jobs é entendida pelos tecnofiéis, e faz com que Jobs seja percebido
como “um herói tecnológico”. Tal investigação acontece comparan-
do os limiares propostos por Joseph Campbell sobre a Jornada do
Herói com as narrativas midiáticas a respeito de Steve Jobs.
Em seu livro Aion: estudos do simbolismo sobre o Si-Mesmo
(1982), Jung assentou as bases para uma nova disciplina a que se
pode chamar de psico-história arquetípica. Esse método estuda os
movimentos do inconsciente coletivo à proporção que se torna ma-
nifesto por meio da história política e cultural.
O título do livro advém da palavra grega éon ou era, e, como
Jung explica no prefácio, a intenção é fazer uma referência à era do
cristianismo e do desenvolvimento psiquico coletivo que o simbo-
lismo cristao representa. Jung examinou o simbolismo cristão, espe-
cialmente Cristo e o simbolismo do peixe intimamente associado a
Cristo durante o paleocristianismo, como forma de obter uma visão
mais clara de Si-mesmo, a imagem de Deus na alma humana, o ar-
quétipo da totalidade e realização.
Esse procedimento metodológico encontra-se baseado na apli-
cação das descobertas da psicologia profunda aos dados da história
cultural. O processo histórico pode ser entendido como a auto-ma-
nifestação dos arquétipos do inconsciente coletivo da maneira pela
qual emergem e se desenvolvem no tempo e no espaço por meio de
ações e imagens da humanidade.
Os textos culturais migram, morrem e renascem e se ressigni-
ficam de outras formas ao longo do tempo. As imagens culturais,
constituídas de uma força psíquica coletiva – arquétipo-, transpor-
tam a memória do passado quando renascidas e cristalizadas no
contemporâneo.
Nesse sentido, pensamos a cultura formada por camadas tem-
porais. Por mais arcaica que seja, nenhuma camada é perdida. Como

202
O SENHOR DOS DOIS MUNDOS: STE VE JOBS, O HERÓI TECNOLÓGICO

num palimpsesto, um texto cultural deixa suas marcas. Os textos


são rastros dos homens: cada um é um começo e uma repetição.
Esse o fundamento da psico-história arquetípica. Há continuidade
entre as antigas mitologias e as narrativas modernas como literatu-
ra, cinema, filosofia, política, história etc.
Ainda que o mito não seja nomeado ou apareça diretamen-
te nessas narrativas, ele está lá presente, em um nível simbólico,
sustentando o sentido desses textos, discursos e imagens. Dessa
forma, fundamentado no método junguiano da psico-história ar-
quetípica, este artigo analisa como a narrativa a respeito de Steve
Jobs, fundador da Apple tem contribuído para essa remitologização
contemporânea

O mito do herói

Joseph Campbell levou uma vida dedicada ao mito e ao estudo


e mapeamento das semelhanças que aparentemente existiam entre
as mitologias das mais diversas culturas humanas. Para Campbell:
“o mito não é uma mentira. O todo de uma mitologia é uma organi-
zação de imagens e narrativas simbólicas, metáforas das possibilida-
des da experiência humana e a realização de uma dada cultura num
determinado tempo”. (CAMPBELL, 1994, p. 37).
A partir da perspectiva de Campbell, depreendemos que o mito
cumpre, pelo menos, quatro funções específicas: 1) função mística
– fala-nos das maravilhas do universo, da maravilha que somos, o
que sempre nos deixa perplexos diante do mistério. A função mítica
nos dirige ao mistério transcendente através de circunstâncias do
cotidiano; 2) função cosmológica – explica o universo e o lugar que
ocupamos nele, produzindo senso de propósito; 3) função socioló-
gica – os mitos funcionam como suporte e validação de determina-
da ordem social; 4) função pedagógica – nos ensina como viver e

203
JORGES MIKLOS E LEONARDO DE SOUZA ALOI TORRES

nos comportar nas mais variadas circunstâncias (CAMPBELL, 1994,


p. 44-45).
Campbell sugere que nos padrões humanos universais e ver-
dades existem em mitos. O modelo de Campbell está estruturado
em torno do modelo (arquétipo) do herói. Em O herói de mil faces,
Campbell explica e analisa os pontos comuns compartilhados por
quase todos os heróis, e embora esses arquétipos podem diferir to-
dos são definidos por sua jornada de vida e seu lugar na sociedade.
Em seu estudo, Campbell desvelou que todas as histórias, ba-
sicamente, dizem o mesmo. As narrativas recontam, em variações
infinitas, a mesma aventura. Campbell concebeu o monomito, um
padrão que integra as etapas comuns, conhecida como a jornada do
herói.
Na pesquisa, Campbell encontrou o mesmo enredo em todo
o mundo, basicamente todas as histórias contam o mesmo conto.
As histórias começam com o nascimento de um herói, Campbell
afirma que “cada herói está predestinado a uma capa, ao invés de
simplesmente alcançado”(CAMPBELL, 1997, p. 319).
O monomito (às vezes chamado de “Jornada do Herói”) é um
conceito de jornada cíclica presente em mitos, de acordo com Jo-
seph Campbell. Como conceito de narratologia, o termo aparece
pela primeira vez em 1949, no livro de Campbell The Hero with a
Thousand Faces (= O herói de mil faces). A ideia de monomito em
Campbell explica sua ubiquidade por meio de uma mescla entre o
conceito junguiano de arquétipos, forças inconscientes da concep-
ção freudiana.
A proposta deste estudo segue na hipótese de que, a partir da
premissa estabelecida por Jung em sua proposição do Psico-Histó-
ria-Arquetípica, sob a narrativa contemporânea de Steve Jobs re-
pousa o mito do herói. Dito de outra forma, o a história de Steve
Jobs contada por seus seguidores é uma remitologização contempo-

204
O SENHOR DOS DOIS MUNDOS: STE VE JOBS, O HERÓI TECNOLÓGICO

rânea da saga do herói. Para tanto, na próxima seção, examinamos


a saga de Steve Jobs.
Para entender a aura heroica que Steve Jobs possui na percep-
ção dos tecnofiéis, detalha-se, a seguir, os dezessete limiares estru-
turais da Jornada do Herói proposto por Campbell: (1) Chamado à
aventura, (2) Recusa do Chamado; (3) Auxílio Sobrenatural; (4) A
Passagem pelo Primeiro Limiar; (5) O Ventre da Baleia; (6) O Ca-
minho das Provas; (7) Encontro com a Deusa; (8) A Mulher como
Tentação; (9) Sintonia com o Pai; (10) Apoteose; (11) A benção Últi-
ma; (12) Recusa do Retorno; (13) A Fuga Mágica; (14) Resgate com
Auxílio Externo; (15) A Passagem pelo Limiar do Retorno; (16) Se-
nhor dos Dois Mundos; (17) Liberdade para Viver.
A Jornada do Herói consiste em dezessete limiares de uma tra-
jetória simbólica em que um indivíduo comum se torna o escolhido
para percorrer uma jornada permeada por desafios, a fim de alcan-
çar a máxima graça (iluminação) e transformar-se, definitivamente,
em um herói. Esta estrutura está presente em diversos mitos de va-
riadas culturas, como Buda e Jesus Cristo, e também, na cinemato-
grafia como Matrix e Toy Story. Simbolicamente, um herói é produ-
to da relação entre um deus ou de uma deusa com um ser humano,
o herói representa a “união das forças celestes e terrestres”. Ele não
possui a imortalidade divina que os deuses possuem. Todavia, eles
podem adquiri-la, como fez Hércules. Os heróis tem um poder so-
brenatural, podem ser um “deus decaído ou homem divinizado”. E,
por fim, se preciso, eles podem “ressurgir dos seus túmulos e defen-
der contra o inimigo” algo que ele pôs sob sua proteção, como uma
cidade ou uma pessoa (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015).

Steve Jobs, o herói tecnológico

205
JORGES MIKLOS E LEONARDO DE SOUZA ALOI TORRES

O entusiasmo tecnológico foi o berço da empresa Apple. Pri-


meiramente nomeada de “Apple Computers”, desde sempre, ela fa-
brica computadores e produz softwares. A empresa foi fundada em
1976 na cidade de Santa Clara, por Steven Wozniak, Steven Paul
Jobs e Ron Wayne . Em 2007, com o lançamento de outros produtos
como o iPhone (um smartphone), houve a eliminação da palavra
“Computers” de seu nome, sendo denominada como “Apple inc” .
Atualmente, ela é uma multinacional estadunidense avaliada
em 534,2 bilhões de dóla-res. Ela projeta e comercializa produtos
tecnológicos e de luxo. Terceirizou a fabricação de seus produtos,
tendo suas fábricas localizadas na China. Seus produtos mais co-
nhecidos são o Mac, iPhone, iPad, iPod, iTunes e Apple Watch. A
empresa tem cerca de 424 lojas físicas oficiais pelo mundo (além das
revendedoras), em 18 países, incluindo duas lojas no Brasil.
Steve Jobs exerceu um papel importante na criação, no desen-
volvimento e na maturação da Apple. Sua trajetória na empresa tem
altos e baixos e é marcada por conflitos e sucessos. Segundo Tumbat
e Belk (2005), a história de Steve Jobs na Apple é, estruturalmente,
equivalente à Jornada do Herói de Joseph Campbell. E, ainda, é per-
cebida como tal pelos devotos Apple.
O Chamado (primeiro limiar) e a Recusa do Chamado (segundo
limiar) no monomito proposto por Campbell (1997) argumenta que,
dentro do cotidiano, algo chama o herói para uma aventura. Isaac-
son (2011), nas entrevistas de Steve, menciona quando Jobs ficava
encantado ao ter contato com os primeiros computadores pessoais.
O filme jOBS (2013) ilustra Steve com um protótipo que Wozniak
havia desenvolvido. Na cena, Steve Jobs tem uma epifania ao utilizar
a máquina. Ademais, o livro The Whole Earth Catalog corroborou
com o chamado, como já foi visto, ele mesclava entusiasmo tecno-
lógico com os movimentos hippies e hackers, e anunciava a Steve

206
O SENHOR DOS DOIS MUNDOS: STE VE JOBS, O HERÓI TECNOLÓGICO

Jobs – leitor assíduo do catálogo - um novo modo de pensar o com-


putador pessoal.
Não obstante, a busca quase que impossível por investidores
para a empresa recém-formada era desafiadora, implacável. Enten-
de-se como a recusa ao chamado: dever, obrigações, insegurança,
debilidade, medos que influenciam o herói para que ele recue ao
chamado e mantenha-se como está (CAMPBELL, 1997). Afinal, por
força, ele encara a aventura. Pode-se também considerar que Woz-
niak fez parte desta recusa: em 1976, conforme Isaacson (2011) pon-
tua, ele relutou demasiadamente em demitir-se da HP, onde traba-
lhava, para empreender a Apple Computers. Por fim, ele demitiu-se.
Para Campbell (1997), o terceiro limiar – a Ajuda Sobrenatural,
ou seja, surge um guia, um instrutor que iniciará o herói ao novo
mundo. Há uma preparação para o que vai ocorrer e oferece a ele
ferramentas e amuletos de proteção. Para Steve Jobs, este limiar é
marcado por dois instrutores, ou melhor, um guia e um instrutor.
Jobs, em sua vida espiritual zen budista, seguia os conselhos de Ko-
bun Chino, um monge zen que, na época, vivia na Califórnia.
E, o instrutor era Mike Markkula. Em Isaacson (2011), Jobs ar-
gumenta que foi Markkula quem o ensinou suas primeiras noções
de marketing e vendas. O autor discorre que Mike foi uma figura
paterna para Steve Jobs. “Mike realmente tomou-me sob sua asa”,
disse Steve.
Depois dos insucessos na busca de investidores e a impossi-
bilidade de colocar o protótipo finalizado do Apple II em produ-
ção, o que lhes exigiria uma quantidade de dinheiro que eles não
possuíam, Markkula foi o único a se interessar pela ideia de Jobs e
Wozniak, e investiu na empresa, cerca de 250 mil dólares em troca
de uma participação acionária de um terço. Markkula, já como só-
cio da Apple Computers Co, desenvolveu o primeiro rascunho da
filosofia da empresa.

207
JORGES MIKLOS E LEONARDO DE SOUZA ALOI TORRES

Campbell (1997) discorre que a Passagem pelo primeiro Limiar


(4) é marcada pelo herói ingressando na realidade da aventura, ca-
minhando em um terreno desconhecido e perigoso onde ele não
conhece regras ou limitações.
Para Apple e Jobs, este limiar é a produção do Apple II. “Achei
improvável que Mike viesse a ter aqueles 250 mil dólares de volta e
fiquei impressionado em como ele estava disposto a arriscar”, disse
Steve. (ISAACSON, 2011).
Jobs (2013) ilustra que a ideia de Steve era criar o computador
pessoal totalmente integrado: precisava de um invólucro, de um te-
clado incorporado, de fonte de alimentação, do monitor em cores e
do software. Ideia inovadora para a época, visto que os outros PCs
eram comercializados somente em placas e chips, sendo necessária
a soldagem e programação depois de adquiri-los. A intenção era
vender para as massas e seguir com a missão de tornar o compu-
tador um aparato de liberdade, como um barco que veleja contra o
sistema.
Com capital e o projeto já terminado, o quinto limiar é o Ven-
tre da Baleia – representa a separação final do cotidiano ao outro
mundo (CAMPBELL, 1997). De um simples entusiasta de compu-
tadores para um empreendedor milionário. Eis a metamorfose. Ela
aconteceu em 1977, em San Francisco, no lançamento do Apple II na
Primeira Feira de Computadores da Costa Oeste.
O Apple II foi um sucesso econômico. Ele lançou a indústria
de computadores pessoais. Em dezesseis anos de mercado, vendeu
6 milhões de unidades em diversos modelos. E ainda, ele seria o
produto de maior sucesso de vendas da empresa, mantendo-se forte
no mercado mesmo quando seus sucessores – o Lisa e o Macintosh
– foram lançados.
O sexto limiar é O Caminho das Provas. Conforme Campbell
(1997), são variadas tarefas, aparentemente impossíveis, que o herói
deve superar. O herói conquista poderes, mas corre perigos. E, o

208
O SENHOR DOS DOIS MUNDOS: STE VE JOBS, O HERÓI TECNOLÓGICO

sétimo limiar – Encontro com as Deusas – quando o herói descobre


o poderoso amor na entrega incondicional. Personificados no amor
verdadeiro. Estes dois pontos estão imbricados na história do mito
do herói de Steve Jobs.
Partindo da biografia de Isaacson (2011), pode-se observar que
estes pontos representam o momento “Macintosh” na vida de Jobs.
Inicialmente conhecido como “Annie”, o projeto foi renomeado
para “McIntosh” e posteriormente “Macintosh”, para evitar proble-
mas judiciais com a fabricante de equipamentos de áudio McIntosh
Laboratory.
Jef Raskin, o primeiro líder do projeto Macintosh, idealizava-o
destinado à grande massa, à família norte-americana. A ideia era que
ele pudesse ser utilizado nos afazeres do cotidiano e em momentos
de lazer, como guardar receitas de culinária; controlar as despesas
da família; e também para atividades lúdicas. Para tanto, ele seria
um computador de baixo custo e pouco potente. Simultaneamente
ao projeto de Jef, Steve Jobs, que estava em conflito com o líder de
projeto do Lisa (John Couch), foi aconselhado pela presidência da
Apple a não interferir no Lisa e se concentrar no Macintosh. Esta
manobra foi um modo de manter Steve afastado do projeto princi-
pal da empresa, visto que ele estava criando um ambiente inóspito
de trabalho com seus métodos de liderança, considerados inade-
quados pela presidência. Jobs (2013), Isaacson (2011) e The Man in
The Machine (2015) ressaltam os choros, gritos e violências morais
que Steve fazia com seus empregados.
Além dos conflitos internos, existiam também os externos: a
IBM acabara de lançar seu computador pessoal, o que rendeu um
anúncio da Apple, incentivada por Jobs, no Wall Street Journal, com
a frase: “Bem-vinda, IBM. Sério”. A frase era uma provocação à “Big
Blue” por demorar para entrar no mercado de computadores pes-
soais. The Man in The Machine (2015) apresenta que este anúncio
é um exemplo de como Jobs entendia que a Apple representava a

209
JORGES MIKLOS E LEONARDO DE SOUZA ALOI TORRES

rebeldia de lutar contra o sistema hegemônico da IBM. Seria Davi


contra Golias.
Segundo Isaacson (2011) no projeto Macintosh, semelhante ao
projeto Lisa, houve divergências entre o líder de projeto Macintosh
e Jobs; porém, desta vez, quem se retirou de seu cargo foi Jef Raskin.
A partir daí, Jobs modificou o protótipo. Seus componentes físicos
(hardwares) foram substituídos por outros de última geração, houve
a integração do mouse e um monitor maior. Por fim, ainda foi con-
cebido com uma interface gráfica em cores, com janelas, arquivos
e pastas. Jobs fazia questão de manter a equipe Macintosh unida,
criando um senso de grupo.
De acordo com The Man in The Machine (2015), o projeto que
era para ser de baixo custo tornou-se o mais caro e mais demorado
da Apple. Steve queria o melhor computador para a massa com um
preço acessível. Ele entendia que criar um computador era uma obra
de arte.
O lançamento do Macintosh foi marcado para o encontro anual
dos acionistas da Apple, em 24 de janeiro de 1984. Enquanto isso, o
computador era divulgado em diversas entrevistas feitas por Steve
Jobs, por comerciais de televisão e pela imprensa (THE MAN IN
THE MACHINE, 2015).
Os dois pontos mais relevantes deste lançamento foram: o co-
mercial divulgado no SuperBowl de 1983; e o dia do lançamento jun-
to à fala de Steve Jobs. A conferência tornou-se um manual de Steve
Jobs para converter indivíduos em fiéis da Apple e de sua tecnolo-
gia, revelando o próprio produto entre grandes floreios e fanfarras,
diante de uma plateia de fiéis adoradores e jornalistas já munidos
para se deixar arrebatar pelo entusiasmo (ISAACSON, 2011, p.185).
Após seu lançamento, o Macintosh fez três meses de sucesso
e depois caiu nas vendas, pois ele tinha um preço demasiado alto
de mercado e não possuía muitos softwares, dado que tal interface

210
O SENHOR DOS DOIS MUNDOS: STE VE JOBS, O HERÓI TECNOLÓGICO

gráfica obrigaria os desenvolvedores a reprogramar por inteiro seus


programas de computador.
Simultaneamente ao projeto Macintosh, Isaacson (2011) pontua
que a Apple passava por conflitos internos e externos. Jobs esta-
va insatisfeito com o conselho da presidência da Apple porque eles
não permitiram que Steve fosse o presidente da multinacional. Para
isso, ele listou alguns nomes para possíveis presidentes. Em síntese,
discorre que o escolhido foi John Sculley, o então presidente da Pep-
si Cola. Nas entrevistas, Steve menciona que perguntou a Sculley:
“você quer vender água com açúcar pelo resto de sua vida ou quer
vir comigo e mudar o mundo?”. Sculley aceitou a oferta.
Até o lançamento do Macintosh, Jobs e Sculley tinham um rela-
cionamento pacífico. Após o lançamento, Sculley aumentou o valor
do produto no mercado em 500 dólares. O Macintosh seria vendi-
do por 2445 dólares. Um valor alto para seu público-alvo. “isso vai
destruir tudo em que acreditamos”, disse Steve. “Quero fazer disso
uma revolução, não um esforço de arrancar lucro”. E complementou
na entrevista: “é a principal razão pela qual as vendas do Macintosh
diminuíram e a Microsoft dominou o mercado” (ISAACSON, 2011).
Posteriormente, John Sculley e Steve Jobs entraram cada vez
mais em conflito. Enquanto Steve queria tomar o controle, Sculley
tentava colocá-lo em setores à parte da liderança da Apple, como
um setor chamado “AppleLabs”, que fora idealizado especialmente
para Jobs, longe da Sede em Cupertino e que desenvolveria ideias de
novos produtos. Jobs recusou. (ISAACSON, 2011).
Este é o oitavo limiar – A Mulher como Tentação - Campbell
(1997) pontua que muitas atividades e recompensas tentam o he-
rói para que ele abandone sua jornada. Na jornada de Jobs, mo-
mentaneamente, ele abandona sua jornada na Apple. A máxima do
conflito, ilustra Isaacson (2011), foi quando Steve manipulou alguns
colaboradores da Apple para dar um golpe em Sculley e tomar-lhe
a presidência. O plano seria realizado em uma viagem de Sculley

211
JORGES MIKLOS E LEONARDO DE SOUZA ALOI TORRES

a negócios, na China. Entretanto, John ficou sabendo o que Steve


havia tramado e apareceu na reunião do corpo executivo da Apple.
Após uma discussão, Sculley disse: “ou eu, ou Steve. Em quem vocês
votam?” Todo o conselho posicionou-se ao lado de Sculley, julgan-
do Jobs novo demais e sem experiência para o cargo. Apesar de o
conselho ter votado em Sculley, Steve ainda permaneceu por algum
tempo na empresa. Por fim, demitiu-se.
A história da saída de Steve Jobs da Apple tem muitas diver-
gências. O filme Jobs (2013) ilustra-o sendo demitido pelo conselho
presidencial. Já, o filme Steve Jobs (2016) esclarece que ocorreu uma
discussão entre Sculley e Jobs, daí Steve demitiu-se. Contudo, a im-
prensa (manipulada por Jobs) e seus devotos acreditavam piamente
que John Sculley o havia demitido.
No filme, Sculley menciona ainda que foi demonizado1 pela mí-
dia e estava recebendo ameaças de morte por causa da demissão. De
qualquer forma, ambos os filmes ilustraram o conselho e Sculley
como inimigos de Steve Jobs.
O nono limiar – A Sintonia com o Pai - desenrola-se quando
o herói tem que enfrentar-se e é posto contra quem ostenta maior
poder que ele. O décimo – Apoteose - a metamorfose o transforma
definitivamente. O herói vai para um plano superior, bem como
sobrevive sobre calma e plenitude, prepara-se, então, para o clímax.
E, o décimo primeiro limiar – A Benção Última - desenvolve-se na
missão do herói. Todos os passos até então serviram para prepará-lo
para o momento de transcendência. (CAMPBELL, 1997).
Estes pontos são ilustrados por Steve Jobs pós-Apple e seu gru-
po de seguidores que se demitiu da multinacional logo após a saída
de seu líder. Eles criaram uma empresa de computadores pessoais
para a educação chamada NExT (MACHEADS 2009).
Além disto, de acordo com Kahney (2008), Steve comprou uma
empresa denominada Pixar por 10 milhões de dólares. Esta desen-
volvedora de filmes em computação 3D. Conhecida atualmente por

212
O SENHOR DOS DOIS MUNDOS: STE VE JOBS, O HERÓI TECNOLÓGICO

ter produzido filmes como o Toy Story, Walle e Cars. Posteriormen-


te, foi comprada pela The Walt Disney Company. Neste ponto, Jobs
consagrou-se como empreendedor e presidente da empresa Pixar.
Assim como ele sempre almejou fazer na Apple.
Para Campbell (1997), o décimo segundo e o décimo terceiro li-
miares, ou seja, a A Recusa do Retorno e a Fuga Mágica expressam
que o herói, depois de haver encontrado a felicidade e a iluminação
em outro mundo. E, o Duelo Mágico: às vezes, o herói deve escapar
com o dom conseguido fugindo dos deuses e dos perigos.
Estes pontos são retratados cerca de doze anos após a saída de
Steve Jobs, quando a Apple estava à beira da falência. Sua ausên-
cia na empresa é considerada, segundo os próprios applemaníacos2
uma época de “trevas”, de pouca inovação, contradizendo tudo o
que a Apple um dia já fora.
Nas entrevistas dadas a Isaacson (2011), Jobs mencionou que no
ano de 1995 “A Microsoft domina(va) com pouquíssima inovação. A
Apple perdeu. O mercado de desktop (computador pessoal) mergu-
lho na Idade Média”.
Retomando sobre a empresa NeXT, segundo o filme Steve Jobs
(2016), Jobs criou a NeXT com o intuito de retornar como CEO da
Apple. Para tanto, a NeXT desenvolveu um sistema operacional es-
pecífico, um que a Apple precisaria nos anos seguintes para voltar a
crescer no mercado. Ademais, em 1997, Guy Kawasaki fantasiou, em
um artigo3, sobre uma possível futura compra da NeXT pela Apple
e o retorno de Jobs.
E, de fato, a fantasia se concretizou no ano de 1996. Isaacson
(2011) discorre que, como um ato de recuperação, a Apple com-
prou a NeXT, após Jobs demonstrar o software que a empresa havia
desenvolvido. O autor descreve como “hipnótica” a capacidade de
venda de Steve Jobs; e, Amelio menciona que “os argumentos4 de
venda, do sistema operacional da NeXT, apresentados por Steve,
foram fascinantes. “Ele louvou virtudes e forças como se estivesse

213
JORGES MIKLOS E LEONARDO DE SOUZA ALOI TORRES

descrevendo uma atuação de Laurece Olivier no papel de Macbeth”


(ISAACSON, 2011). Por fim, a compra foi efetivada.
Em seguida, Steve aceitou um lugar de consultor do presidente
no conselho, trabalhando em tempo parcial, porque estava envolvi-
do com a Pixar. “o que me leva a querer fazer isso é que o mundo
será um lugar melhor com a Apple, disse Jobs” (ISAACSON, 2011).
O autor ainda discorre que houve uma articulação entre Steve
Jobs e Lerry Ellison, presidente executivo da Oracle e seu amigo
pessoal: a ideia era Ellison pontuar, em uma reportagem na Fortune,
que Jobs deveria tornar-se presidente executivo da Apple. E assim
o fez: “estou pronto para ajudá-lo no momento que ele quiser [...]
Steve é a única pessoa capaz de salvar a Apple”. Logo, a imprensa
voltou-se contra Amelio.
Segundo Kahney (2008), no mesmo mês, Amelio enfrentou o
conselho executivo da Apple. A crise não se extinguira com a entra-
da de Jobs no conselho. A situação era crítica. As vendas de compu-
tadores caíram do último ano até então. Amelio renunciou de seu
cargo em uma reunião entre o corpo executivo e colaboradores da
Apple, e Jobs assumiu o controle e subiu ao palco para discursar.
Eis o décimo quarto e o décimo quinto limiares: o Resgate com
Auxílio Externo e A Passagem pelo Limiar do Retorno, de acordo com
Campbell (1997), assim como o herói havia necessitado de instruto-
res e guias para começar a aventura, ele necessitará de assistentes e
assistências para iniciar o retorno. No sentido do regresso, o herói já
conserva a sabedoria/dádiva adquirida na jornada. Esta sabedoria/
dádiva deve ser incorporada na vida humana ou no mundo anterior,
para tanto, o herói deve encontrar uma maneira de compartilhar seu
poder em prol dos outros.
Kahney (2008) e Isaacson (2011) discorrem que após sua toma-
da de controle da Apple, Jobs começou a contratar indivíduos de sua
confiança nas posições estratégicas de chefia. “Eu queria ter certe-
za de que pessoas realmente boas que tinham vindo da NeXT não

214
O SENHOR DOS DOIS MUNDOS: STE VE JOBS, O HERÓI TECNOLÓGICO

fossem esfaqueadas pelas costas por gente menos competente, que


ocupava altos cargos na Apple”, disse. E ainda, os que eram contra
a tomada de Jobs, ou que votaram contra sua volta deveriam ser
retirados da empresa.
Atkin (2007) menciona que Jobs restabeleceu o compromisso
com a comunidade Apple, e a comunidade, por sua vez, respondeu
em devoção ao líder. Em seu retorno à Apple, Jobs reduziu, radical-
mente, 80% da equipe de Pesquisa & Desenvolvimento e destinou a
verba para a empresa de comunicações Chiat/Day. Além disto, ele
reduziu significativamente o número de produtos que a Apple ofe-
recia. E, em 1997, lançou o iMac, o produto que salvou a empresa da
falência. “O fato é que ele (Steve Jobs) sabe como trazer a magia de
volta.” Disse Wozniak (ISAACSON, 2011, p. 333).
O iMac foi o primeiro passo para o décimo sexto limiar: O Se-
nhor dos dois Mundos. Nele, de acordo com Campbell (1997), o herói
conquista uma posição entre o material e o espiritual, o cotidiano e
o excepcional, podendo assim transitar entre os mundos, bem como
servir de bom grado ao seu povo.
Na perspectiva dos fiéis, a volta de Jobs foi positiva, redentora.
“Quando Steve voltou, gerou-se uma nova energia”; “temos que ser
gratos a Steve Jobs por ressuscitar a Apple” (MACHEADS, 2009).
No cargo de presidente executivo, Steve desenvolveu diversos
produtos de sucesso no mercado. Citando uma criança fiel de sete
anos no documentário The Man in The Machine (2015): “ele fez o
Mac, Macbook Pro, o Air, o iPod, iPhone, iPad, ele fez tudo”.
O décimo sétimo e último limiar, segundo Campbell (1997),
é o equilíbrio e o entendimento que libertam o herói do Temor da
Morte. Neste, o herói opta por viver o momento.
Com a filosofia zen-budista “esteja aqui e agora”, Jobs sempre
buscou pela iluminação. “Eu não acreditava que a busca pela perfei-
ção de Steve pela máquina o traria paz ou harmonia”, disse Kobun
Chino (THE MAN IN THE MACHINE, 2011).

215
JORGES MIKLOS E LEONARDO DE SOUZA ALOI TORRES

Este último limiar pode ser ilustrado pelo discurso de Jobs em


Stanford, no ano de 20055:

Minha terceira história é sobre morte. Quando eu tinha 17 anos, li


uma frase que era algo assim: ‘Se você viver cada dia como se fosse
o último, um dia ele realmente será o último’. Aquilo me impressio-
nou, e desde então, nos últimos 33 anos, eu olho para mim mesmo
no espelho toda manhã e pergunto: ‘Se hoje fosse o meu último
dia, eu gostaria de fazer o que farei hoje?’ E se a resposta é ‘não’ por
muitos dias seguidos, sei que preciso mudar alguma coisa. Lembrar
que estarei morto em breve é a ferramenta mais importante que já
encontrei para me ajudar a tomar grandes decisões. Porque quase
tudo – expectativas externas, orgulho, medo de passar vergonha ou
falhar – caem diante da morte, deixando apenas o que é importan-
te. Não há razão para não seguir o seu coração. Lembrar que você
vai morrer é a melhor maneira que eu conheço para evitar a arma-
dilha de pensar que você tem algo a perder. Você já está nu. Não há
razão para não seguir seu coração. Há um ano, eu fui diagnosticado
com câncer. Era 7h30 da manhã e eu tinha uma imagem que mos-
trava claramente um tumor no pâncreas. Eu nem sabia o que era
um pâncreas. Os médicos me disseram que aquilo era certamente
um tipo de câncer incurável, e que eu não deveria esperar viver
mais de três a seis semanas. Meu médico me aconselhou a ir para
casa e arrumar minhas coisas – que é o código dos médicos para
‘preparar para morrer’. Significa tentar dizer às suas crianças em
alguns meses tudo aquilo que você pensou ter os próximos 10 anos
para dizer. Significa dizer seu adeus. Eu vivi com aquele diagnós-
tico o dia inteiro. Depois, à tarde, eu fiz uma biópsia, em que eles
enfiaram um endoscópio pela minha garganta abaixo, através do
meu estômago e pelos intestinos. Colocaram uma agulha no meu
pâncreas e tiraram algumas células do tumor. Eu estava sedado,
mas minha mulher, que estava lá, contou que quando os médicos
viram as células em um microscópio, começaram a chorar. Era uma
forma muito rara de câncer pancreático que podia ser curada com

216
O SENHOR DOS DOIS MUNDOS: STE VE JOBS, O HERÓI TECNOLÓGICO

cirurgia. Eu operei e estou bem. Isso foi o mais perto que eu estive
de encarar a morte e eu espero que seja o mais perto que vou ficar
pelas próximas décadas. Tendo passado por isso, posso agora dizer
a vocês, com um pouco mais de certeza do que quando a morte
era um conceito apenas abstrato: ninguém quer morrer. Até mes-
mo as pessoas que querem ir para o céu não querem morrer para
chegar lá. Ainda assim, a morte é o destino que todos nós compar-
tilhamos. Ninguém nunca conseguiu escapar. E assim é como deve
ser, porque a morte é muito provavelmente a principal invenção da
vida. É o agente de mudança da vida. Ela limpa o velho para abrir
caminho para o novo. Nesse momento, o novo é você. (...) Não
fique preso pelos dogmas, que é viver com os resultados da vida
de outras pessoas. Não deixe que o barulho da opinião dos outros
cale a sua própria voz interior. E o mais importante: tenha coragem
de seguir o seu próprio coração e a sua intuição. Eles de alguma
maneira já sabem o que você realmente quer se tornar. Todo o resto
é secundário. Quando eu era pequeno, uma das bíblias da minha
geração era o Whole Earth Catalog. [...] Era idealista e cheio de boas
ferramentas e noções. (...) Na contracapa havia uma fotografia de
uma estrada de interior ensolarada, daquele tipo onde você poderia
se achar pedindo carona se fosse aventureiro. Abaixo, estavam as
palavras: ‘Continue com fome, continue bobo.’ Foi a mensagem de
despedida deles. Continue com fome. Continue bobo. E eu sempre
desejei isso para mim mesmo. E agora, quando vocês se formam
e começam de novo, eu desejo isso para vocês. Continuem com
fome. Continuem bobos. Obrigado. (JOBS, 2005, on-line).

The Man in The Machine (2015) discorre que Jobs não se curou
do câncer; e ainda, revelou que ele não fez operação alguma para
a retirada dele. Steve buscou a cura na medicina alternativa. Viveu
mais seis anos após o discurso em Stanford e faleceu aos 56 anos em
outubro de 2011. No dia do ocorrido, a sede da Apple, em Cupertino
foi tomada por fiéis. Seus concorrentes, como Bill Gates, pronuncia-

217
JORGES MIKLOS E LEONARDO DE SOUZA ALOI TORRES

ram-se tristes sobre a sua morte. A mídia propagou questionamen-


tos se haveria um futuro para a Apple sem Steve Jobs6.
No quadro a seguir apresenta-se uma síntese da Jornada do He-
rói correlacionada a epopeia de Steve Jobs:

Etapas Limiares História de Steve Jobs


Limiar 1 Chamado à aventura Contato de Steve Jobs com
microprocessadores
Limiar 2 A Recusa do Chamado As recusas das empresas
de financiarem o projeto
de Jobs e o Medo de
Wozniak de demitir-se do
emprego da HP
Limiar 3 O Auxílio Sobrenatural Ajuda de Marketing de
Mike Markkula e ajuda
espiritual de Kobun Chino
Limiar 4 A Passagem pelo Desenvolvimento,
Primeiro Limiar Produção eLançamento do
computador Apple II
Limiar 5 O Ventre da Baleia O sucesso do computador
Apple II
Limiar O Caminho das Provas e o Desenvolvimento,
6e7 O Encontro com a Deusa produção e lançamento do
Macintosh
Limiar 8 A Mulher como Tentação Fracasso do Macintosh e a
demissão de Steve Jobs
da Apple
Limiar A Sintonia com o Pai e Criação da NexT e
9 e 10 A Apoteose Direção Executiva
da Pixar
Limiar 11 A Benção Última O sucesso com Pixar
Limiar A Recusa do Retorno e A Fuga Apple a beira da falência –
12 e 13 Mágica Primeiros rumores de que
Steve Jobs regressaria e
salvaria a Apple
Limiar 14 O Resgate como Auxílio Steve Jobs volta à Apple
Externo

218
O SENHOR DOS DOIS MUNDOS: STE VE JOBS, O HERÓI TECNOLÓGICO

Limiar 15 A Passagem pelo Limiar do O Desafio de reerguer a


Retorno Apple
Limiar 16 O Senhor dos Dois Mundos Desenvolvimento,
produção, lançamento e o
sucesso do iMac,
Macbooks, iPod, iPhone,
Ipad
Limiar 17 Liberdade para viver O enfrentamento do câncer
e o discurso de Steve Jobs
em Standford

Considerações finais

As narrativas midiáticas são fenômenos que compõem ima-


ginários, alimentam e são alimentadas pela cultura, e operam com
linguagens, discursos e imagens em pleno diálogo com símbolos,
alegorias, arquétipos e memórias ancestrais da humanidade, com-
provando o método da Psico-História-Arquetípica, proposto por
Carl Gustav Jung.
O fato é que essas narrativas midiáticas carregam arquétipos
que atravessam a história do ser humano criando formas de ser e
estar em sociedade e de se relaciona com a realidade, o outro e a
própria identidade. Do consumo que instrumentaliza rituais, mitos,
totens, temporalidades e magias para a sedução celebridades midiá-
ticas que dialogam concomitantemente com o passado.
Dessa forma, a proposta deste estudo foi apresentar a narrativas
midiática a respeito da vida e da obra e Steve Jobs, fundador da em-
presa Apple e associar a narrativa com a saga do herói e monomito,
propostos por Joseph Campbell.
Como num palimpsesto, apesar de apagadas, as marcas da nar-
rativa a respeito de Jobs revelam que os mitos resistem, circulam e
são presentificados e remodelados no imaginário contemporâneo.
Na contemporaneidade, o que resta por aqui é apenas a pálida lem-

219
JORGES MIKLOS E LEONARDO DE SOUZA ALOI TORRES

brança dos princípios antigos mediados pelos processos comunica-


tivos. Os heróis arcaicos são estereotipados em celebridades. Essa
apologia exercitada pela mídia assassina a natureza do verdadeiro
ritual primitivo e o transforma em espetáculo em série, redundante,
completamente despido do espírito original de sentido.

Referências

ATKIN, Douglas. O culto às marcas. São Paulo: Pensamento, 2007.

BAITELLO JUNIOR, Norval et alii (Org.). Os símbolos vivem mais que os


homens: ensaios de comunicação cultura e mídia. São Paulo: Annablume,
2006.

BRANT, S. The whole Earth catalog. Disponível em: http://bit.ly/1ntOOfg.


Acesso em: 13 jan. 2016.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1994.

CAMPBELL, Joseph. O herói das mil faces. São Paulo: Cultrix, 1997.

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos,


sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro:
J. Olympio, 2015.

ISAACSON, Walter. Steve Jobs: a biografia. São Paulo: Companhia das


Letras, 2011.

JUNG. C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2006.

JUNG. C.G. Aion: estudos do simbolismo sobre o Si-Mesmo. Petrópolis:


Vozes, 1982.

KAHNEY, L. A cabeça de Steve Jobs: as lições do líder da empresa mais


revolucionária do mundo. Rio de Janeiro: Agir, 2008.

TUMBAT, G; BELK, R. The cult of Macintosh. Consumption, Markets and


Culture. v. 8, p. 205-221, 2005.

220
O SENHOR DOS DOIS MUNDOS: STE VE JOBS, O HERÓI TECNOLÓGICO

Filmografia

MACHEADS. Direção: Kobi Shely. Estados Unidos, 2009. 54 min.

JOBS. Direção: Joshua Michael Stern. Five Star Institute. Bermudas,


Estados Unidos, 2013. 2h 7min.

MACHEADS. Direção: Kobi Shely. Estados Unidos, 2009. 54 min.

STEVE JOBS: COMO ELE MUDOU O MUNDO. Direção: Bertrand


Deveaud, Antoine Robin e Lauren Klein. Estados Unidos, 2011. 45 min.

STEVE JOBS: THE MAN IN THE MACHINE. Direção: Alex Gibney.


Estados Unidos, 2015. 2h 8min.

STEVE JOBS. Direção: Danny Boyle. Estados Unidos, 2016. 2h 2min.

THE SECRET OF SUPERBRANDS. Direção: Adam Boome. Estados


Unidos, 2011. 53 min. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=TdkeMpN8hOI. Acesso em: 15 mar. 2015.

NOTAS

1 Veja-se (ATKIN, 2007).


2 Veja MacHeads (2009).
3 Disponível em: http://bit.ly/1PSNPQ5. Acesso em: 3 fev. 2016.
4 O livro de Isaacson (2011) tem um capítulo sobre tal habilidade de Jobs. Con-
vencer as pessoas seria entrar no campo de “distorção de realidade” que Jobs
produzia. Com isso ele conseguia manipular, vender e configurar situações e
contornar desentendimentos.
5 Disponível em: http://bit.ly/1OsPmIV. Acesso em: 17 jan. 2016.
6 Veja em: 1 - http://bit.ly/1dwA0ai; 2 - http://bit.ly/1F8rqoj; 3 - http://bit.
ly/1BYUK0u; 4 - http://bit.ly/1B2ryuu; 5 - http://bit.ly/KauNXx; 6 - http://glo.
bo/1GyHLd2; 7 - http://glo.bo/1IFFw8d. Acessados em: 16 out. 2015.

221
“TUDO QUE OFEREÇO É A VERDADE”:
MATRIX E O IMAGINÁRIO
TECNOLÓGICO

Jorge Miklos
Gislene Lima Pereira

Introdução

É a pergunta que nos impulsiona.


Trinity

Este artigo tem como objetivo fazer um exercício de desvelar


mitos arcaicos que estão presentes nos textos culturais midiáticos
contemporâneos.
A película Matrix (The Matrix), filme de ficção científica lança-
do em 1999 e dirigido pelas irmãs Lilly e Lana Wachowski, além de
entretenimento, mostra-nos questões sobre filosofia e religião, auto-
conhecimento, indagações sobre a existência, a realidade e a verda-
de, as escolhas e a relação do homem com a tecnologia. O filme nos
convida a uma forte reflexão nos campos da filosofia e da religião e
abre espaço para as discussões filosóficas como o Mito da Caverna
de Platão, a Jornada do Herói de Joseph Campbell e a diversidade na
religiosidade, como budismo, cristianismo e taoísmo.

223
JORGES MIKLOS E GISLENE LIMA PEREIRA

De acordo com os fundamentos metodológicos da Antropo-


logia do Imaginário, com destaque à mitocrítica, proposta por Gil-
bert Durand, os mitos arcaicos, presentes no inconsciente coletivo
(JUNG, 2000) ascendem para o plano da consciência e circulam na
cultura de massa.
Para a compreensão da metodologia em questão e sua contri-
buição para os modos de interpretação do tempo presente, é neces-
sário destacar que os mesmos vêm à tona adaptados e moldados,
ainda que se encontrem arcaicos. Matrix é acima de tudo, complexo,
instigante e inovador para a época.
Matrix é acima de tudo, complexo, instigante e inovador para a
época, entretanto a intenção não é realizar uma análise fílmica nem
técnica, mas analisá-lo do ponto de visto da mitocrítica, sob a pers-
pectiva do antropólogo Gilbert Durand.

O papel da narrativa mítica

O mito o ajuda a colocar sua mente em contato com esta


experiência de estar vivo.
Joseph Campbell

As duas definições mais comuns de mito subestimam a im-


portância cultural e social do tema. A primeira define o mito como
aquilo que nunca aconteceu, uma fábula; a outra define o mito como
relatos extremamente fascinantes, mas, como história, estão presas e
ancoradas no passado.
A investigação de um mito não pode ser alçada de seu contexto
social e histórico. O mito não pode ser investigado pelo processo
de dissecação, considerando-o estritamente uma estrutura mórbida
e sem vida, que só se transforma em objeto de estudo após a sua

224
“ TUDO QUE OFEREÇO É A VERDADE”: MATRIX E O IMAGINÁRIO TECNOLÓGICO

morte, perdendo sua existência presente e aniquilando sua proje-


ção futura. Eguizábal (2012, p. 98) define o mito como “um relato
alegórico (...) que traduz uma generalidade histórica, sociocultural,
física e filosófica”. Percebe-se, a partir desta definição, que o mito
está entretecido nos liames da vida histórica, social, cultural, bioló-
gica e filosófica.
O mito cumpre, pelo menos, quatro funções específicas: 1) fun-
ção mística – fala-nos das maravilhas do universo, da maravilha que
somos, o que sempre nos deixa perplexos diante do mistério. A fun-
ção mítica nos dirige ao mistério transcendente através de circuns-
tâncias do cotidiano; 2) função cosmológica – explica o universo e o
lugar que ocupamos nele, produzindo senso de propósito; 3) função
sociológica – os mitos funcionam como suporte e validação de de-
terminada ordem social; 4) função pedagógica – nos ensina como vi-
ver e nos comportar nas mais variadas circunstâncias (CAMPBELL,
1990, p. 44-45).
Apropriando-se da música como metáfora, Joseph Campbell
(1990, p.10) defende a ideia de que a mitologia participa das esferas
da vida cotidiana de maneira dinâmica e viva, influenciando nos-
sos movimentos e nossa leitura do mundo. Na definição poética
do autor, “mitologia é a ‘canção do universo’, a ‘música das esferas’
– música que nós dançamos mesmo quando não somos capazes de
reconhecer a melodia”.
Para Eliade (1992), a narrativa mítica na religião conta uma his-
tória sagrada, oferecendo explicações para a origem de uma realida-
de. Ela revela os mistérios da criação, já que seus personagens são
divinos e heroicos. O autor afirma que o mito “proclama a aparição
de uma nova ‘situação’ cósmica ou de um acontecimento primor-
dial. Portanto, é sempre a narração de uma ‘criação’: conta-se como
qualquer coisa foi efetuada” (ELIADE 1992, p. 50).
Ao narrar essas histórias divinas e criadoras e atualizá-las no
tempo com o objetivo de eternizá-las, o mito estabelece para o ho-

225
JORGES MIKLOS E GISLENE LIMA PEREIRA

mem religioso o modelo exemplar dos deuses que impregna toda a


vida profana. O mito passa a estabelecer modelos sagrados para o
homem nas práticas mais comuns da vida profana. Lavrar a terra,
alimentar-se, descansar, viver em família, todas essas ações passam
a ser balizadas pelo modelo estabelecido pelos deuses e disseminado
por meio da narrativa mítica.
O processo de construção do sagrado na narrativa mítica se dá
pelo encadeamento de razões explicativas. Para narrar a existência
de algo é preciso descrever como essa realidade veio a existir. Para
justificar esse como é preciso explicar o porquê dessa criação. Desta
forma, em um mesmo movimento, a narrativa mítica estabelece um
propósito existencial para tudo o que existe e revela a irrupção do
sagrado nos liames da vida profana.
A virada de 1999 para 2000 trazia muitas crenças sobre o fim
do mundo e previsões apocalípticas ligadas a grupos religiosos e ao
imaginário que circula no nas representações socias. Eram convic-
ções, de tempos atrás, que afirmavam que não chegaríamos ao ano
de 2000. Dessa forma, essa data não era ainda a mudança para o sé-
culo XXI, mas apenas a mudança para a virada de milênio. E para a
época, esta virada estava com muitas crenças sobre o fim do mundo
e previsões apocalípticas ligadas a grupos religiosos e ao imaginário
inconsciente coletivo.

A Ficção Científica

Raul Fiker pondera que “a história da ficção científica moderna


é curta e suas fases se sucedem rapidamente” (FIKER, 1985, p. 73).
“O gênero, contudo, tem-se renovado e se mantido vivo, ainda que
às vezes por meio de suspensão das funções vitais e hibernação”
(FIKER, 1985, p. 76). Ainda segundo Fiker, os caminhos atuais da
ficção científica talvez sejam os de explorar o seu futuro, sem dei-

226
“ TUDO QUE OFEREÇO É A VERDADE”: MATRIX E O IMAGINÁRIO TECNOLÓGICO

xar de retornar ao que antes foi salientado por Júlio Verne, Wells e
Gernsback, considerados mitos nesse gênero. Regis (2012) explica
que a ficção científica surgiu no início do século XIX e, desde en-
tão, estimula a imaginação e aguça a curiosidade da humanidade.
Júlio Verne com Viagens Extraordinárias fascinou os dois lados do
Atlântico. A ficção científica, em 1895, estimulada pelas encantado-
ras histórias de H. G. Wells que, na época, uniu o que tinha de mais
novo na esfera da física com a teoria de Darwin, apresentou a ideia
de criar um dispositivo capaz de transportar o homem pelo tempo.
A ficção científica é um gênero de literatura que geralmente
está associada a fantasmas, mitologia, ciência, antecipação, tempo,
mente e vida artificial. O termo ficção científica é totalmente oposto,
conforme Tucherman (2003). Na sua organização tipológica, gera-
dora de uma lógica de oposição e diferenças, o próprio termo ficção
científica seria um oxímoro, já que da expressão participam proce-
dimentos de natureza totalmente diversa: o ficcional e o científico.

Ora, a ficção não tem os compromissos da ciência: nenhum projeto


de atuação prática, não sujeita às provas de falsificação nem às de
verificação, tendo exercido, no entanto, especialmente o romance
moderno, o que Steven Johnson18 chama de “cultura da interface”,
que realizaria um projeto de tradução, ou mediação, entre o de-
senvolvimento tecnológico e a vida cotidiana (TURCHERMAN,
2003).

A Ficção Científica no Cinema


Efetivamente, a ficção científica no cinema teve início, nas telas,
em 1902, com o filme Viagem à Lua, o mais famoso de Georges Mé-
liès. Chegar à lua era um desejo, há tempos, presente na história do
cinema. A obsessão da ciência em realizar esse desejo, mesmo em
1902, já tinha seus antecedentes. Em 1865, Júlio Verne escreveu Da

227
JORGES MIKLOS E GISLENE LIMA PEREIRA

Terra à Lua. E em 1901, um ano antes de Méliès estrear seu filme, H.


G. Wells escreveu O Primeiro Homem na Lua. Méliès foi um pionei-
ro dos efeitos especiais e usou efeitos como fusões, sobreposições e
tela dividida. Era espantoso, extraordinariamente inovador para a
época, pois estavam em pleno início do século XX. Viagem à Lua fez
muito sucesso nas bilheterias, e marcou a estreia da ficção científica
nos filmes de cinema.
Esses eventos, baseados na ficção científica, tanto no cinema
como nos livros e nas rádios projetam, de certa maneira, a expec-
tativa de um futuro distante da realidade. Entretanto, essa projeção
do futuro nem sempre foge à realidade pois, se for considerada a
tecnologia à disposição, percebe-se que o que antes fazia parte do
imaginário tecnológico, hoje, está presente no cotidiano do ser hu-
mano. Os temas da idade de ouro da ficção científica, como robôs
e galáxias, deram lugar à busca de uma consciência elevada e da
revitalização dos valores morais.
A ficção científica é o que é hoje graças aos textos literários so-
bre “ciência”, que já tratavam do assunto muito antes do desdobra-
mento e do desenvolvimento da tecnologia disponível atualmente.
Com o avanço dos recursos tecnológicos e o sucesso das pesquisas
desenvolvidas pelos cientistas, pode-se compreender e vivenciar es-
sas inovações e a influência dessas descobertas nas áreas culturais e
sociais, bem como na ciência e na tecnologia.

Assim como identificamos, na prática, significado de uma palavra


qualquer – mas não dispomos de um conceito operatório, capaz
de dar conta a priori das características estruturais do gênero... O
escritor e ensaísta inglês Kingsley Amis, segundo o qual a ficção
científica é uma narrativa que trata de situação que não poderia
se apresentar no mundo que conhecemos, mas cuja existência se
funda sobre a hipótese de uma inovação qualquer, de origem hu-
mana ou extraterrestre, no domínio da ciência ou da tecnologia, ou

228
“ TUDO QUE OFEREÇO É A VERDADE”: MATRIX E O IMAGINÁRIO TECNOLÓGICO

melhor, da pseudociência ou da pseudotecnologia (SODRÉ, 1973,


p. 7).

A ficção científica, por sua vez, aproveita-se das novas expe-


riências possibilitadas pela ciência e tecnologia dedicando-se à ex-
ploração do espaço informacional (REGIS, 2012). Ainda para essa
autora, o imaginário tecnológico é uma construção que envolve um
entrelaçamento de três termos: as tecnologias da informação e da
comunicação (realidade), a ficção e o próprio imaginário tecnoló-
gico, cujos pressupostos serão aqui retomados. Inspirando-se em
Wolfgang Iser (1993), Regis considera que o imaginário de uma cul-
tura se revela por meio de seus produtos ficcionais (textos literários,
imagens, jogos, entre outros).
Para o nosso imaginário, o sucesso do filme Matrix ocorre por
esse motivo, algo apocalíptico que apresentava, no imaginário cole-
tivo daquela época, preocupações com o apocalipse e a esperança da
chegada de um novo messias, que iria salvar a humanidade, traria a
restauração e o (re) estabelecimento do Reino de Deus.
Sim, Matrix refere-se aos preceitos da teologia bíblica, mas vem
moldado ao mundo contemporâneo, em que o novo Messias – Neo
– sente dúvidas sobre si mesmo, sente medo, angústia e paixão. Neo,
um novo Messias para o mundo contemporâneo, que se apaixona
pela bela Trinity e que não crê em si próprio, se é ou não O Esco-
lhido. Um Messias que também age com violência para derrotar o
sistema controlador de nossas mentes.
Assim como Jung (2019) ressalta que, no total desamparo e de-
sespero, surgirá a nostalgia do “salvador”, isto é, o conhecimento e
a integração inevitável da sombra criam um estado tal de angústia
que, de certa forma, somente um salvador sobrenatural poderá de-
semaranhar o novelo do destino.
A importância deste filme se deve também a diversas influên-
cias da literatura, animês e artes marciais, além claro, da religião e
da filosofia, já citadas, imprescindíveis para o conceito da Matrix. É

229
JORGES MIKLOS E GISLENE LIMA PEREIRA

uma fábula moderna que irá ficar, por muito tempo, no imaginário
coletivo, com discussões mitológicas. Enfim, o que é a Matrix na
análise mitocrítica? É o que veremos na sequência.

Método
Ali onde a dialética bloqueada não consegue penetrar, a imagem
mítica fala diretamente à alma.
Gilbert Durand

O método a ser estudado para este estudo é o da mitocrítica,


com ênfase na bacia semântica que explica os caminhos, as perma-
nências, mudanças e alterações míticas de determinados momentos
da vida e de uma sociedade, de um renascimento, ressurgência ou
emergência no mito conforme nos estudos do antropólogo Gilbert
Durand.
Para Durand (1994, p. 103), o conceito de “bacia semântica”
permite a integração das evoluções científicas supracitadas e, em
seguida, uma análise mais detalhada em subconjuntos (...) de uma
era e área do imaginário: seu estilo, mitos condutores, motivos pic-
tóricos, temáticas literárias etc.
Entende-se por “bacia semântica” aquilo que irriga, como se
fosse um rio dos nossos inconscientes, em que as raízes saem desta
bacia para buscar novos sentidos e novas (re) significações aos mi-
tos enraizados.
Para este método aplica-se a mitocrítica, que se percebe como
o imaginário atualizado que reprime e exclui o imaginário em po-
tencial e, com isso, se multiplica nas redundâncias para ocupar o lu-
gar de outro. Como nos filmes de James Cameron, O Exterminador
do Futuro (The Terminator) lançado em 1984 e O Exterminador do
Futuro 2: O Julgamento Final (The Terminator 2: Judgment Day) de
1991, em que o personagem John Connor será o salvador da huma-

230
“ TUDO QUE OFEREÇO É A VERDADE”: MATRIX E O IMAGINÁRIO TECNOLÓGICO

nidade contra a rebelião das máquinas, sendo o seu próprio nome


uma referência a Jesus Cristo (JC – John Connor). Dessa maneira,
em 1999 John Connor é substituído por Neo, o novo Jesus Cristo,
que está latente, velado, adormecido na bacia semântica e que se
desperta em épocas diferentes, nesta irrigação do imaginário. As
raízes se dispersam e se colocam nos campos do imaginário. São
processos míticos que se manifestam pela redundância imitativa de
um modelo arquetípico nas palavras de Durand (1994, p.74).

Resultados
Assim como um rio é formado por seus afluentes, uma corrente niti-
damente consolidada necessita ser reconfortada pelo reconhecimen-
to, o apoio das autoridades locais e das personalidades e instituições.
Gilbert Durand

Ao assistir ao primeiro filme da trilogia Matrix, foi realizado


um mapeamento para identificar as imagens, metáforas e diálogos
obsessivos na bacia semântica, como propõe Gilbert Durand. Nesse
contexto, foram analisadas quantitativamente as referências para O
Escolhido (Messias) nas profecias e nos milagres, de forma explícita
ou de forma mais velada, aludindo ao personagem Neo como o Sal-
vador da Humanidade contra a rebelião das máquinas. Segue tabela
abaixo:

231
JORGES MIKLOS E GISLENE LIMA PEREIRA

Filme: Matrix (The Matrix, 1999)

1. Trinity para Cypher: “Morpheus acha que ele é O Escolhido.”


(00h01min:03).

2. Quarto 101 referente ao número em inglês: one – único – local de morada


do personagem Neo (00h08min:40).

3. Choi para Neo: “Você é meu salvador, cara, o meu Jesus Cristo.”
(00h08min:42).

4. Sr. Rhimeheart, chefe do Neo: “Você se acha especial, como se as regras


não se aplicassem a você.” (00h12min:17).

5. Morpheus para Neo: “Eles te pegaram antes, mas eles subestimaram a


sua importância. Se eles soubessem o que sei, você já estaria morto.”
(00h22min:07).

6. Morpheus para Neo: “Você é O Escolhido. Você, por ter passado os úl-
timos anos me procurando, mas eu passei minha vida toda procurando
você.” (00: 22h19min).

7. Morpheus para Neo: “A honra é minha”. (00h26min:03).

8. Morpheus para Trinity: “Você conseguiu Trinity, nós o encontramos.”


(00h35min:24) e Trinity devolve: “Espero que sim.” (00h35min:32).

9. Inscrição na Nave Nabucodonosor: Nave Mark III nº 11 – Nebuchadnezz.


(Como a inscrição do versículo na bíblia). (00h38mim:07).

10. Morpheus para Neo: “Quando a Matrix foi construída havia um homem.

11. Tank para Neo: “Se você sobreviver, poderá conhecer (a cidade de Zion).
Nossa, falando sério, estou louco pra ver suas habilidades... Se Morpheus
estiver certo. Não deveríamos falar sobre isso, mas, se você for, é um mo-
mento muito empolgante.” (00h47min33).

12. Mouse para todos os tripulantes da Nave sobre Neo: “Minha nossa, ele é
rápido! A neurocinética dele é acima do normal.” (00h52min:32).
13. Mouse para a tripulação sobre a falha de Neo ao saltar: “O que isso signifi-
ca?” e Switch diz: “Não significa nada.” E Cypher: “Todos caem na primei-
ra vez.” (00h54min:53).

232
“ TUDO QUE OFEREÇO É A VERDADE”: MATRIX E O IMAGINÁRIO TECNOLÓGICO

14. Morpheu para Neo: “Mas, onde eles falharam, você vencerá.”
(00h58min:17).

15. Cypher para Neo: “Você está aqui para salvar o mundo.” (01h03min:00).

16. Morpheus para Neo sobre o Oráculo: “Ela é uma guia Neo. Pode te ajudar
no caminho.” (01h10mim05).

17. Neo questiona Morpheus sobre o que ela disse a ele: “Que eu encontraria
O Escolhido.” (01h10min:15).

18. Oráculo ao Neo: “Acha que é O Escolhido?” (01h13min:57).

19. Neo ao Oráculo: “Sinceramente, eu não sei. Eu não sou O Escolhido.”


(01h14min:02).

20. Oráculo ao Neo: “Você tem o dom, mas parece que você está esperando
por algo. Morpheus acredita em você, Neo. E ninguém, nem você nem eu
pode convencê-lo do contrário. Ele acredita tão cegamente que vai sacrifi-
car a própria vida para salvar a sua.” (01h15min:17).

21. Após a volta de Neo do Oráculo, Apoc lhe diz: “Neo, espero que o Oráculo
tenha te dado boas notícias.” (01h21min:00).

22. Após a chegada dos agentes ao ataque, Morpheus diz para todos: “Tirem
Neo daqui. Só ele importa.” (01h22min:48).

23. Com a traição revelada de Cypher, ele diz para Trinity, antes de tirar o
plugue do Neo: “Se Morpheus estiver certo, eu não conseguirei arrancar
este plugue. Se Neo é O Escolhido então haverá algum milagre para me
deter. Certo? Como ele pode ser O Escolhido se está morto? Você nunca
me respondeu se você acreditava no papo do Morpheus. Eu só quero um
sim ou um não.” (01h29min:51).

24. Trinity rebate para Cypher: “Sim.” Em seguida, Tank atira em Cypher, e
salva Triniy e Neo (01h30min:33).

25. Trinity para Neo: “Neo, Morpheus se sacrificou para que pudéssemos te
salvar.”. E Neo rebate: “Morpheus fez isso porque acreditava que eu fosse
algo que não sou. Não sou O Escolhido, Trinity.” (01h35min:35).

233
JORGES MIKLOS E GISLENE LIMA PEREIRA

26. Neo para Trinity: “Morpheus acreditava em algo, e estava pronto para
dar a vida por isso. Agora eu entendo isso. Por isso tenho de ir. Porque eu
acredito em algo. Acredito que posso trazê-lo de volta.” (01h36min:26).
Após Neo conseguir salvar Morpheus:

27. Tank: “Eu sabia. Ele é O Escolhido.” (01h51min:45).

28. Morpheus para Trinity: “Você acredita agora, Trinity?” (01h51min:57).

29. Morpheus para Neo: “O Oráculo disse a você o que você precisava ouvir.
Cedo ou tarde você vai perceber, como eu, que há uma diferença entre
conhecer o caminho e percorrer o caminho.” (01h51min:57).

30. Após várias lutas com o agente Smith, Neo se supera. Trinity pergunta: “O
que ele está fazendo?” e Morpheus responde: “Começando a acreditar.”
(01h54min:30).

31. Neo reafirma para o Agente Smith: “Meu nome é Neo.” (02h01min:28).

32. Morte de Neo pelo agente Smith. Morpheus afirma: “Não pode ser.”
((02h03min:16).

33. Trinity para Neo: “Neo, não estou mais com medo. O Oráculo me disse
que eu me apaixonaria e que o homem que eu amaria seria O Escolhido.
Então, veja, você não pode estar morto, não pode estar porque eu te amo.
Está me ouvindo? Eu te amo.” (02h04min:30).

34. Com um beijo de Trinity, Neo ressuscita. (02h04min:42).

35. Neo levanta e, ao ser atingido pelas balas do Agente Smith, diz: “Não.” e as
balas caem. (02h05min:00).

36. Tank ao ver essa cena diz: “Como?” e Morpheus responde: “Ele é O Esco-
lhido”. (02h05min:20).

37. Neo liga para a Matrix: “Eu sinto você agora. Sei que está com medo. (...)
Eu não conheço o futuro. (...) Vou mostrar a elas um mundo sem você.
(...) Um mundo onde tudo é possível. (...). Ascenção de Neo ao céu.”
(02h07min:52).
Fonte: DVD Matrix

234
“ TUDO QUE OFEREÇO É A VERDADE”: MATRIX E O IMAGINÁRIO TECNOLÓGICO

No primeiro filme, nota-se que há mais referências quantita-


tivas para firmar o caráter do Messias, com inserções nos diálogos
de diferentes personagens, para que o espectador também acredite
que Neo é O Escolhido. Ao assistirmos os outros filmes da trilogia,
identificamos as referências, mas não com tanta relevância e de for-
ma tão redundante quanto no primeiro filme. No segundo e tercei-
ro, elas surgem apenas para firmar o que já foi dito e as metáforas
obsessivas são mais de imagens e situações, não tanto quanto da
inserção dos diálogos.

Discussão
Uma coisa que se revela nos mitos é que, no fundo do abismo,
desponta a voz da salvação.
Joseph Campbell

No verão, às vésperas da virada do milênio, a superprodução de


ficção científica que realmente captou o estado de espírito de 1999
foi o filme Matrix. Em uma cidade anônima, futurista (filmada em
locações da Austrália), o assalariado Thomas A. Anderson (Keanu
Reeves) passa as noites como o hacker Neo. Seu nome já traz várias
interpretações, como a de um anagrama de “One” traduzido ao por-
tuguês como “o único” ou “o escolhido”, além disso, é uma abrevia-
ção de Neófito, que tem o sentido de novo. O significado aproxima
muito o personagem da figura bíblica do Escolhido, o Salvador, o
Messias. Pela tradição arcaica, espera-se na cultura ocidental pela
vinda do Messias. O filme foi sucesso de bilheteria, por captar esse
espírito da chegada do Messias, que está no inconsciente coletivo,
bem na passagem da virada do milênio, além de narrar a jornada do
herói, presente no personagem Neo.

235
JORGES MIKLOS E GISLENE LIMA PEREIRA

Para Edgar Morin (2001), os grandes temas do imaginário (ro-


mances, filmes) são eles mesmos, em certo sentido, arquétipos e
estereótipos constituídos em padrão.
A esperança escatológica de restauração, de acordo com o fi-
lósofo Paul Fontana (2003), é de novidade radical, uma reversão
completa do presente ruim – situação que Isaías e o Apocalipse pre-
viram. Além do mais, é a esperança dos exilados.
Assim, Neo é procurado por uma linda mulher vestida em cou-
ro, Trinity (Carrie-Ann Moss), em nome de Morpheus (Laurence
Fishburne), um misterioso líder rebelde. A dupla quer que ele se
junte à rebelião contra a Matrix, uma organização cujos agentes, de
terno e óculos escuros, são também os guardiões, comandados pelo
agente Smith (Hugo Weaving).

Pílula Azul X Pílula Vermelha

Tudo que ofereço é a Verdade.


Morpheus

Morpheus convida Neo para um encontro e lhe diz para desco-


brir o que é a Matrix, ninguém pode contar o que ela é, pode-se ape-
nas mostrá-la. Ele oferece a Neo uma escolha: a pílula azul, e tudo
será mantido como era antes, ou a pílula vermelha, e ele conhecerá
a verdade e não haverá mais volta. Neo escolhe a pílula vermelha. O
nome Morpheus tem origem na mitologia grega, ele é filho de Hyp-
nos - Deus do Sono – consequentemente, ele próprio é o Deus dos
Sonhos. É ele o responsável por acordar Neo do “Sonho da Matrix”
e levá-lo ao Deserto da Realidade.
Assim, Neo desperta num casulo, parte do seu corpo está co-
nectado com cabos de aço, ao lado de milhares de outros casulos

236
“ TUDO QUE OFEREÇO É A VERDADE”: MATRIX E O IMAGINÁRIO TECNOLÓGICO

com seres humanos. Neo estava vivendo como fonte de energia es-
cravizada pelos computadores, como recarregador de energia, “pi-
lhas” para a Inteligência Artificial. Neo é resgatado pela equipe de
Morpheus e levado para uma sala de recuperação.
Depois de dias de tratamento intensivo com agulhas, como se
fosse acupuntura, Neo começa a se recuperar. Ele está no interior da
nave de Morpheus, a Nabucodonosor, inscrita Mark III – nº 11 e feita
nos Estados Unidos no ano de 2069. O nome da nave, Nabucodono-
sor, remete àquele que foi o principal rei da Babilônia, responsável
pela destruição de Jerusalém. Seu reinado durou 70 anos e o rei foi
atormentado por sonhos e visões.
O mundo é dominado pelas máquinas, as inteligências artifi-
ciais que ganharam a guerra contra os seres humanos, o ano não é
1999, mas sim, próximo a 2199.
Zion, cidade subterrânea na qual as pessoas ainda nascem natu-
ralmente, localiza-se no núcleo da Terra, é o último reduto humano.
Sua existência é uma ameaça à soberania das máquinas. E os agentes
protetores e guardiões da Matrix estão à procura de Morpheus, para
localizá-la. Zion é a tradução do antigo reino de Sião, a terra sagrada
dos hebreus.

A Profecia, O Escolhido e um Novo Messias

Ele é O Escolhido.
Morpheus

Morpheus conta a Neo que, quando a Matrix foi construída, ha-


via um homem nascido nela que tinha a habilidade de mudar o que
ele quisesse, para refazer a Matrix a seu modo: “Foi ele quem libertou
o primeiro de nós e nos mostrou a verdade”. Quando ele morreu, o

237
JORGES MIKLOS E GISLENE LIMA PEREIRA

Oráculo profetizou a sua volta, afirmando que sua chegada coroaria


a destruição da Matrix, traria o fim da guerra e a liberdade para o
povo.
Morpheus acredita nessa profecia e que Neo seja O Escolhido.
Segundo Juan Antonio Rivera em sua obra O Que Sócrates Diria a
Woody Allen (2003), há outra fonte de inspiração para esse filme: a
tradição do messianismo judaico. Davi, que viveu entre 1015 e 975
a.C., foi o segundo rei hebreu, depois de Saul. Conquistou Jerusa-
lém e transformou-a em capital do reino. Davi era chamado por seu
povo de messias ou enviado de Jeová; sob seu reinado, o império
judaico atingiu seu esplendor máximo.
Segundo a lei messiânica, Jeová, o Deus dos judeus, havia pro-
metido que a dinastia de Davi não teria fim. Mas os fatos históricos
pareceram desmentir esses atraentes presságios: depois da morte de
Davi, o império judaico começou a decair e, inclusive, desapareceu
transitoriamente quando Nabucodonosor (mesmo nome da nave
de Morpheus) conquistou Jerusalém no ano de 587 a.C. e deportou
muitos judeus para a Babilônia.
Poel (2013) entende que Milenarismo e Messianismo surgem
em épocas de decadência e de grande aflição. Concordamos com
Poel sobre o termo Milenarismo, do latim “milenium”, que significa
mil anos. No Ocidente Cristão, a doutrina que anuncia a vinda de
Cristo para um reinado de paz, durante “mil anos” sobre a terra, é
uma forma de messianismo. No Milenarismo Messianista, a vinda
ou volta de um Messias redentor é essencial.
O ano de 1999, época do lançamento do filme, não marca pro-
priamente a mudança de século, mas sim a virada desse número
significativo para 2000. Na trilogia, Morpheus acredita na profecia
que afirma que O Escolhido trará a paz para a terra de Zion e com-
baterá o império do mal representado pelas máquinas. A questão
do Milenarismo está latente, sob a forma de repressão das máquinas
sobre os humanos:

238
“ TUDO QUE OFEREÇO É A VERDADE”: MATRIX E O IMAGINÁRIO TECNOLÓGICO

A resposta milenarista à adversidade social e política possui ca-


racterísticas peculiares que é preciso considerar, ou melhor, possui
três qualidades que a revestem de religiosidade: em primeiro lugar,
refere-se à ordem geral do mundo (a injustiça) e não a aspectos
isolados da vida social; em segundo lugar, indica o desejo profun-
do de mudança da ordem vigente aqui e agora (pois, é somente
quando o movimento milenarista se torna objeto de repressão que
a esperança se desloca do aqui e agora para um futuro remoto ou
para uma outra vida, o que é perfeitamente compreensível); em
terceiro lugar, exprime o sentimento dos oprimidos de que eles são
mais fracos que os opressores e que só poderão alterar a ordem vi-
gente pela união de todos, formando uma comunidade verdadeira
e nova, protótipo do mundo que há de vir. (CHAUI, Apud. POEL
1986, p. 76).

O filósofo Paul Fontana (2003) argumenta que qualquer pessoa


que tenha alguma formação religiosa consegue notar os paralelos
bíblicos no filme Matrix. O filme reproduz elementos da ideia apo-
calíptica judaica e cristã, já citadas acima.

O Oráculo

Conhece a ti mesmo
Oráculo de Delphos

Foi o Oráculo quem profetizou a chegada do Escolhido e revela


a profecia a Morpheus. No filme, o Oráculo é uma mulher (Gloria
Foster), que quando se encontra com Neo, conta-lhe que ele não
é O Escolhido, embora afirme que ele tem o dom, mas que espera
por algo. Além disso, o Oráculo também é um programa da Matrix,
revelado no segundo filme, em que ele seria a parte “humana, sen-
timental”, a mãe do programa. Com essa revelação, antes de tudo, é

239
JORGES MIKLOS E GISLENE LIMA PEREIRA

preciso que Neo saiba quem ele é, passe a acreditar em si mesmo e


se firme como O Salvador da Humanidade.

O Traidor – Cypher

A ignorância é maravilhosa.
Cypher

Na equipe de Morpheus, há um traidor, Cypher (Joe Pantolia-


no), que entrega a sua localização ao agente Smith. Sua recompensa
é voltar para o mundo da Matrix, onde quer ser rico e famoso, sem
ter que se lembrar dos momentos que viveu, quando acordou para
a realidade.
Conforme as histórias bíblicas do Novo Testamento, Judas Isca-
riotes foi um dos discípulos de Jesus Cristo, foi ele quem entregou a
sua localização aos sacerdotes do Conselho em troca de uma recom-
pensa, trinta moedas de prata. Dessa maneira, Cypher é uma alusão
ao discípulo Judas Iscariotes. Antes da traição, Judas cumprimenta
Jesus com um beijo, gesto que é um sinal para que os soldados o
capturem naquele momento. Da mesma forma, no filme, antes da
traição, Cypher dá um sorriso nervoso para Neo e Morpheus é cap-
turado pelos agentes, Cypher mata quase todos os tripulantes da
nave, mas resta Tank (Marcus Chong) que consegue se salvar e mata
Cypher.
Nesse momento, acontece o milagre, em que a vida de Neo é
poupada, e ele consegue libertar Morpheus dos agentes e provar
que, sim, ele é O Escolhido.
O nome de Trinity também tem um significado importante,
traduzido do inglês para o português significa Trindade, Trio, Três-
-Em-Um (Pai, Filho e Espírito Santo), a Santíssima Trindade. E

240
“ TUDO QUE OFEREÇO É A VERDADE”: MATRIX E O IMAGINÁRIO TECNOLÓGICO

diante da traição de Cypher, é o trio formado por Neo, Morpheus e


Trinity que sobrevive, ou seja, os elementos mais importantes.

Considerações finais

A trilogia Matrix ficará, por muito tempo, no imaginário co-


letivo, pois é um filme provocativo que, além dos efeitos especiais,
também foca as questões filosóficas e religiosas. Este ano Matrix
completou 20 anos, sua estreia nos Estados Unidos foi em 31 de mar-
ço de 1999 e, mesmo após 20 anos, ainda provoca o imaginário dos
indivíduos e, com certeza, já é considerado um clássico.
Com a mitocrítica é possível desvelar o que está mais aden-
tro da narrativa de Matrix. Por mais que a referência esteja clara
na encarnação humana do Messias ou do Salvador, é preciso que
esse mito seja readaptado para a nossa compreensão e que haja uma
releitura no mundo contemporâneo. Com a análise mais profunda
e o desvelar da insistência de palavras que fazem referência ao Es-
colhido, principalmente no primeiro filme, é que se faz um recorte
da vinda do Messias, na virada de milênio e que está presente no
imaginário (inconsciente) das pessoas.
Ainda que a religião e os filmes de ficção científica sejam tão
distantes em suas narrativas e propostas, convergem em ideias e mi-
tos. Matrix demonstrou, em algumas cenas, as passagens bíblicas,
como a morte de Neo em uma alusão a Jesus Cristo crucificado.
Em outra cena importante, durante a luta de Neo com o Agente
Smith, as luzes aparecem atrás de Neo, como se fossem as asas de
um anjo, tal imagem vem carregada com o sentido da batalha épica
e apocalíptica.
Filmes que trazem mitos, jornadas do herói, estereótipos das
narrativas de amor, estão sempre presentes no mundo contempo-
râneo. É preciso, sim, entregar-se a esses mitos, mergulhar e enten-

241
JORGES MIKLOS E GISLENE LIMA PEREIRA

der os seus mistérios para a compreensão do nosso ser, da nossa


sociedade e do mundo. Os mitos estão presentes desde sempre, nas
narrativas da mitologia, nas histórias bíblicas, nas parábolas, nos
contos de fadas, nas lendas e nos folclores, sempre moldados e adap-
tados para um novo significado, sentido e reinterpretação. Enfim, os
mitos nunca morrem, vão estar apenas adormecidos, aguardando
um despertar do inconsciente coletivo para que para que uma nova
releitura ascenda.
Apesar de todo esse universo da ficção científica presente na
trilogia Matrix e a presença de elementos religiosos ligados ao cons-
ciente coletivo, não se pode afirmar que o filme tenha sido ousado.
A ousadia se apresenta na existência de um Mito, que estava ador-
mecido, e que ressurge para uma nova narrativa, que ficará em nos-
so imaginário por muito tempo.

Referências

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BOSCOV, Isabela (Org.). Cinemateca Veja – Matrix. São Paulo: Abril, 2008.

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CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular


no Brasil: São Paulo: Brasiliense, 1986.

DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das Ciências e da Filosofia


da Imagem. São Paulo: Editora Bertrand, 2011.

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2000.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo:


M. Fontes, 1992.

242
“ TUDO QUE OFEREÇO É A VERDADE”: MATRIX E O IMAGINÁRIO TECNOLÓGICO

FIKER, Raul. Ficção Científica, ou uma Épica da época? Porto Alegre:


L&PM 1985.

JUNG, Carl Gustav. 9/1 obra completa: os arquétipos e o inconsciente


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KEMP, Philip. Tudo sobre cinema. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.

MORIN, Edgar. Cultura de massas no século xx: neurose. Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 2011. v. 1.

POEL, Francisco van der. Dicionário da religiosidade popular: cultura e


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REGIS, Fátima. Nós, ciborgues. Curitiba: Champagnat, 2012.

RIVERA, Juan Antonio. O que Sócrates diria a Woody Allen. São Paulo:
Planeta, 2003.

SODRÉ, Muniz. A ficção do tempo: análise da narrativa de science fiction.


Petrópolis: Vozes, 1973.

TURCHERMAN, Ieda. O pós-humano e sua narrativa: a ficção científica.


Revista de Comunicação, Cultura e Teoria da Mídia. São Paulo: Centro
Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia, n. 2, p. 105-124, 2003.

YEFFETH, Glenn (Org.). A pílula vermelha: questões de Ciência, Filosofia


e Religião em Matrix. São Paulo: Publifolha, 2003.

Filmes

MATRIX. Direção: Lilly e Lana Wachowski. Produção: Silver Pictures.


EUA: Warner Bros, 1999. DVD (136 min), color, dolby / surround 5.1,
original language: English.

243
JORGES MIKLOS E GISLENE LIMA PEREIRA

MATRIX RELOADED. Direção: Lilly e Lana Wachowski. Produção: Silver


Pictures. EUA: Warner Bros, 2003. DVD (138 min), color, dolby / surround
5.1, original language: English.

MATRIX REVOLUTIONS. Direção: Lilly e Lana Wachowski. Produção:


Village & Silver Pictures. EUA: Warner Bros, 2003. DVD (129 min), color,
dolby / surround 5.1, original language: English.

244
DENTRO E FORA DA CASA COMUM –
IMAGINÁRIO SIMBÓLICO NA
MISSA DOS QUILOMBOS

Luciano Pessoa
Jorge Miklos

Em nome do Pai, que faz toda carne,


a preta e a branca, vermelhas no sangue,
Em nome do Filho, Jesus nosso irmão,
que nasceu moreno da raça de Abraão
(Em Nome do Deus, Missa dos Quilombos, 1982)

Introdução

A Missa dos Quilombos teria nascido de uma sugestão de Dom


Hélder Câmara (Arcebispo Emérito de Olinda e Recife/PE) a Dom
Pedro Casaldáliga (Arcebispo de São Félix do Araguaia/MT), sendo
depois realizada por Casaldáliga e pelo poeta Pedro Tierra, com
música de Milton Nascimento. Em alguma medida dando sequência
à “Missa da Terra sem Males”, que Casaldáliga e Tierra já haviam de-
dicado à Causa dos Povos Indígenas, a Missa dos Quilombos aponta
para um resgate simbólico da sacralidade negra no Brasil, dentro de
um ritual católico, abordando também o silêncio da Igreja a respeito

245
LUCIANO PESSOA E JORGES MIKLOS

da escravidão no Brasil. A missa foi celebrada pela primeira vez na


Praça do Carmo, em Recife (mesmo local em que teria sido exposta
a cabeça do líder negro Zumbi dos Palmares, em 1695), no dia 22 de
novembro de 1981, diante de aproximadamente 8 mil pessoas (HO-
ORNAERT, 1982).
A partir dessa celebração inicial, a Missa dos Quilombos tem
sido encenada em diversas ocasiões pela companhia Ensaio Aberto1,
e já foi adaptada de modos diversos por grupos como o da Favela de
Vila Prudente/SP2 ou da Igreja de São João3 em São Luís/MA, even-
tualmente com a participação de Milton Nascimento, que gravou a
missa no disco Missa dos Quilombos (1982), em cujo encarte o texto
de Dom Pedro Casaldáliga evoca o sentido geral de resgate, de luta
e de esperança:

Em nome de um Deus supostamente branco e colonizador, que


nações cristãs tem adorado como se fosse o Deus e Pai de Nosso
Senhor Jesus Cristo, milhões de negros vêm sendo submetidos, du-
rante séculos, à escravidão, ao desespero e à morte. No Brasil, na
América, na África mãe, no Mundo. Deportados, como “peças”,
da ancestral Aruanda, encheram de mão de obra barata os cana-
viais e as minas e encheram as senzalas de indivíduos desacultu-
rados, clandestinos, inviáveis. (Enchem ainda de subgente – para
os brancos senhores e as brancas madames e a lei dos brancos – as
cozinhas, os cais, os bordéis, as favelas, as baixadas, os xadrezes).
Mas um dia, uma noite, surgiram os Quilombos, e entre todos eles,
o Sinai negro de Palmares, e nasceu, de Palmares, o Moisés negro,
Zumbi. E a liberdade impossível e a identidade proibida floresce-
ram, “em nome do Deus de todos os nomes”, “que faz toda carne, a
preta e a branca, vermelhas no sangue”. Vindos “do fundo da terra”,
“da carne do açoite”, “do exílio da vida”, os Negros resolveram forçar
“os novos albores” e reconquistar Palmares e voltar a Aruanda. E
estão aí, de pé, quebrando muitos grilhões – em casa, na rua, no

246
DENTRO E FORA DA CASA COMUM – IMAGINÁRIO SIMBÓLICO...

trabalho na igreja, fulgurantemente negros ao sol da Luta e da Es-


perança (CASALDÁLIGA, 1982).

Casaldáliga clama por um olhar reparador para a história dos


negros no Brasil, denuncia a cumplicidade da Igreja ao lado do colo-
nizador no contexto da escravidão, e lança um chamado de rebelde
esperança a todos os negros do mundo, a todos os pobres da Terra:

Para escândalo de muitos fariseus e para alívio de muitos arrepen-


didos, a Missa dos Quilombos Confessa, diante de Deus e da His-
tória, esta máxima Culpa Cristã. (...) Pelos rios de sangue negro,
derramado no Mundo. Pelo sangue do Homem “sem figura hu-
mana”, sacrificado pelos poderes do Império e do Templo, mas
ressuscitado da Ignomínia e da Morte pelo Espírito de Deus, seu
Pai. Como toda verdadeira Missa, a Missa dos Quilombos é pas-
cal: celebra a Morte e a Ressurreição do Povo Negro, na Morte e
Ressurreição do Cristo. (...) Está na hora de cantar o Quilombo
que vem vindo: está na hora de celebrar a Missa dos Quilombos,
em rebelde esperança, com todos “os Negros da África, os afros da
América, os Negros do Mundo, na Aliança com todos os Pobres da
Terra (CASALDÁLIGA, 1982).

No mesmo tom, o texto de Pe. Ricardo Rezende Figueira no


programa da peça teatral montada pela companhia Ensaio Aberto
atenta para a atualidade da escravidão no Brasil e no mundo, e para
a urgência e a pertinência dessa denúncia através da arte:

Em 2001, no Brasil, pelo menos 2.400 pessoas, denuncia a Co-


missão Pastoral da Terra, foram utilizadas como escravas. A mais
antiga ONG de Direitos Humanos no mundo, a Anti-Slavery In-
ternational, está ativa e de olhos no Brasil. A Organização Interna-
cional do Trabalho constata que nunca houve, sob o ponto de vista
absoluto, tantos escravos como agora no mundo. (...) A Missa dos
Quilombos é um manifesto abolicionista dessas e de outras escra-

247
LUCIANO PESSOA E JORGES MIKLOS

vidões; é um convite ao respeito à diversidade das manifestações


religiosas e é uma homenagem aos nossos irmãos e irmãs vindos
da África. (FIGUEIRA, s/d).

A palavra missa remete não apenas ao tradicional ritual cató-


lico, organizado pela Igreja, na presença de sua comunidade, mas
ao sentido do “cruentíssimo sacrifício do Senhor, no Calvário, para
resgate da humanidade” (BUENO, 1988, p. 2473). É precisamente
essa função de resgate evocada na Missa dos Quilombos, numa in-
tenção de retratação da Igreja Católica, historicamente cúmplice do
colonizador que impõe a escravidão, e também num sentido mais
amplo de reparação da sacralidade e da dignidade negras dentro de
um ritual católico.
Conforme Bueno, a palavra missa vem da frase latina pronun-
ciada ao final do rito, “ite, missa est”, ou seja, “ide-vos, retirai-vos, a
vossa prece foi enviada (missa est)” (BUENO, 1988, p. 2473), sendo
missa o particípio passado de enviar, mandar. O termo quilombo,
por sua vez, é de origem africana, do quimbundo ki’ lomo, “povoa-
ção” (CUNHA, 1997, p. 655). Associado à ideia de “casa”, a partir da
escravidão no Brasil adquire o sentido de “lugar onde se refugiavam
os escravos fugidos; moradia de pretos africanos” (BUENO, 1988, p.
3306).

Estudos críticos

A Missa dos Quilombos deu origem a discussões em torno de


seu caráter religioso, artístico, político e cultural, e foi objeto de pes-
quisas, além de um documentário realizado pela TV Senado em
2006. Para Eduardo Hoornaert (1982), tratou-se de uma “liturgia pe-
nitencial inédita no Brasil, na América Latina e no âmbito católico
em geral”, embora o autor discuta o alcance de uma liturgia nascida

248
DENTRO E FORA DA CASA COMUM – IMAGINÁRIO SIMBÓLICO...

não das “bases negras do povo”, mas de alguns intelectuais, e identi-


fica a permanência do quilombo nas periferias das grandes metró-
poles brasileiras, locais de moradia e refúgio urbano de populações
comumente oriundas do processo abolicionista do final do século
XIX. Selma Teixeira (1998) faz um panorama da formação étnica
brasileira, no contexto político da escravidão, das transformações
da população negra no Brasil após a Abolição, para então analisar o
ritual religioso segundo suas etapas. Aponta que a Missa dos Qui-
lombos teria optado por uma “fórmula de oração” considerada a
“mais problemática” e “mais anterior”, com o Kyrie dentro do ato
penitencial, não como “confissão de faltas”, mas como “grito de la-
mentação de uma raça”, ecoando as origens do Kyrie como “canto
comunitário” e “invocação mais fervorosa da antiga religiosidade
pagã”. Na Aleluia, como o vinho e o pão, como o Corpo e Sangue
de Cristo, o corpo negro e seus sofrimentos são oferecidos como os
“donativos maiores”.
Há o artigo de Pedro Braga (2013), que analisa o LP Missa dos
Quilombos, partindo da música, dos contrastes entre as sonori-
dades africana e europeia, para rever “traços da cultura negra em
processo de (re)significação no ato litúrgico católico”. Já Augusto
Oliveira (2015) discute a profundidade de uma “metáfora quilom-
bo” enquanto manifestação de fé, instrumento de luta política e ex-
pressão poética. No âmbito da Antropologia, observa a migração da
Missa4 para o teatro, tomando-a como pretexto para colocar ques-
tões políticas, sociais, religiosas e culturais.
Rafael Senra (2009) observa a Missa como produto cultural e
como ato político de resistência, e destaca o papel de uma ala “me-
nos conservadora” da Igreja (Teologia da Libertação) nos anos de
ditadura no Brasil, da qual D. Helder e D. Pedro Casaldáliga se-
riam adeptos. Comenta o posicionamento negativo do Vaticano em
relação à Missa em sua primeira década, em decorrência de uma
“denúncia” forjada por jornais brasileiros com material adultera-

249
LUCIANO PESSOA E JORGES MIKLOS

do. Apenas a partir da 4ª Conferência Geral do Episcopado Latino-


-Americano, em 1992, é que “a mistura dos rituais indígenas e afros
dentro do padrão da missa católica” teria sido aceita. Nesse contexto
Senra aponta a entrevista de Leonardo Boff ao Instituto Humanitas
Unisinos, em que este defende a analogia entre a diversidade religio-
sa e a biodiversidade ecológica:

Terrível seria se, na natureza, houvesse apenas pinus eliotis ou ba-


ratas. A riqueza está na biodiversidade ecológica analogamente ao
valor da diversidade religiosa. Cada expressão religiosa revela algo
do Mistério de Deus e nenhuma pode pretender possuir qualquer
monopólio, nem da revelação nem dos meios de salvação. (BOFF,
2007; também em SENRA, c.2007, p. 6)

O conceito de ecologia, oriundo das ciências naturais, trata das


“relações entre os seres vivos e o meio ambiente” (MENEZES, 2016,
p. 35), e seria depois apropriado por áreas tão diversas como a filo-
sofia, a comunicação, a religião, a biologia, como veremos abaixo.

Ecologia da comunicação e oikos cultural – a casa


comum

Associado ao nome de Ernst Haeckel, o conceito de ecologia,


ou o “estudo das relações entre o organismo vivo e seu ambiente”
(ABBAGNANO, 2007, p. 350), teria se firmado no final do século
XIX, a partir do grego oikos (casa) e logos (palavra, razão). De ori-
gem multidisciplinar, tendo os seres vivos e o meio ambiente como
preocupações centrais, o conceito teria se popularizado nos anos
1960, sendo depois ampliado, como pelo físico Fritjof Capra em A
teia da vida (1996), em que situa o conceito de ecologia profunda a
partir do filósofo Arne Naess, em distinção a uma ecologia mera-
mente antropocêntrica, em que os seres humanos estariam “acima

250
DENTRO E FORA DA CASA COMUM – IMAGINÁRIO SIMBÓLICO...

ou fora da natureza”. Conforme Capra, o sentido amplo da ecologia


profunda espelharia as revoluções científicas do início do século
XX, seus desdobramentos culturais, sociais, espirituais, e implicaria
o surgimento de um novo paradigma, não mais pautado pela “visão
de mundo mecanicista de Descartes e de Newton”, mas atento às
novas possibilidades de compreensão da matéria e sua relação com
a mente humana, num cenário em que os cientistas tornaram-se
“dolorosamente conscientes de que suas concepções básicas, sua lin-
guagem e todo o seu modo de pensar eram inadequados para des-
crever os fenômenos atômicos” (CAPRA, 1996, p. 24). Para Capra,
Naess coloca o problema central de aprofundar o questionamento
de cada aspecto do antigo paradigma em que somos “modernos,
científicos, industriais, orientados para o crescimento e materia-
listas”, e passar a abordagens ecológicas “a partir da perspectiva de
nossos relacionamentos uns com os outros, com as gerações futuras
e com a teia da vida da qual somos parte” (CAPRA, 1996, p. 26).
É nesse sentido que Capra salienta a importância de uma ecologia
social, e em particular de um ecofeminismo, crítico à histórica explo-
ração patriarcal-capitalista da natureza e das mulheres, e em que o
“conhecimento vivencial feminino” é uma das “fontes principais de
uma visão ecológica da realidade” (CAPRA, 1996, p. 27).
Nesse amplo contexto é que podemos considerar o conceito
de ecologia da comunicação, desenvolvido por Vicente Romano,
como “uma ponte entre a teoria da comunicação e a ecologia hu-
mana” (ROMANO, 2004, p. 12, tradução livre), em contraposição
ao “modo atual de produção, tão depredador do material quanto do
espiritual” e a um momento da história em que nosso “domínio da
natureza chegou a tal extremo que já se criam entornos artificiais,
isso que se denomina realidade virtual e ciberespaço”, e em que pre-
cisamos nos adaptar mais à técnica do que à natureza (ROMANO,
2004, p. 9-10, tradução livre). Ao mesmo tempo que assistimos à
progressiva invasão tecnológica sobre a comunicação humana e a

251
LUCIANO PESSOA E JORGES MIKLOS

vida em sociedade, diminuem os contatos pessoais, alterando-se a


relação entre a função informativa e a função socializadora da co-
municação. Para além dos aspectos quantitativos e dos “valores de
troca” na comunicação humana, Romano atenta para a necessidade
de observar os aspectos “qualitativos, os valores de uso, que em últi-
ma instância afetam a qualidade de vida” e a saúde mental (ROMA-
NO, 2004, p. 11, tradução livre).
Se ao longo da história, diz Romano, “os espaços da experiência
humana se definem cada vez mais de maneira mediada” (ROMA-
NO, 2004, p. 19), as experiências mediadas teriam entretanto uma
importância secundária “na formação da personalidade, na apren-
dizagem da capacidade de relacionar-se e da competência comu-
nicativa”, podendo inclusive atuar de forma negativa, nas situações
em que falta a interação direta com o meio natural e social. Daí a
importância de reivindicar-se os “espaços experimentais, os lugares
públicos, contra a retificação (rede, tecido) telemática da sociedade”
(ROMANO, 2004, p. 19, tradução livre)5.
Não sem pontos de contato com a ecologia comunicacional de
Romano, Sodré (2014) anota que em sua origem, o termo comuni-
cação não se reporta a qualquer transmissão de informação, muito
menos ao caráter tecnológico de que parece revestido em nossos
dias. Em sua raiz etimológica, o termo comunicar apontaria para um
“agir em comum”, no sentido de “vincular, relacionar, concatenar,
organizar ou deixar-se organizar pela dimensão constituinte, inten-
siva e pré-subjetiva do ordenamento simbólico do mundo” (SODRÉ,
2014, p. 9). Em A ciência do comum, Sodré discute o conceito de co-
mum como um “a priori, que não é nenhuma convenção recíproca,
mas um vazio gerativo (...) um princípio abstrato de organização”
(SODRÉ, 2014, p. 15). E as “forças vivas desse comum” se deixariam
apreender como “palavras, gestos, sinais”, eventualmente tratadas
como informação contabilizável, porém “a comunicação não se de-
fine por elas: a actio communis é um a priori, é a dimensão simbóli-

252
DENTRO E FORA DA CASA COMUM – IMAGINÁRIO SIMBÓLICO...

ca” (SODRÉ, 2014, p. 16). E o símbolo não como “figura secundária


de linguagem (...), mas como o trabalho de relacionar, concatenar
ou pôr em comum (syn-ballein) formas separadas” (SODRÉ, 2014,
p. 15).
É nesse contexto do simbólico, pois, do relacional, do comum,
das considerações em torno da ecologia da comunicação e de um
oikos cultural, que queremos observar aspectos da Missa dos Qui-
lombos, relembrando que o mesmo sentido de reunião está presente
na raiz dos termos igreja (do grego ekklesía) e assembleia.

Imaginário simbólico

O termo símbolo vem do grego symbállo (lançar junto) e guarda


o sentido antigo de uma senha, uma chave feita do encaixe de duas
peças, que mais tarde poderia servir para confirmar um negócio ou
o reconhecimento de pessoas afastadas por longo tempo. Moderna-
mente, o termo é empregado também no âmbito da psicanálise, da
antropologia, e como elemento fundamental no estudo dos fenôme-
nos psíquicos, culturais, nos estudos do inconsciente (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. XVII-XXII). Para Carl Gustav Jung, em
distinção aos conceitos de alegoria, assim como de signo, o símbo-
lo “nada encerra, nada explica”, mas remete para algo “inatingível,
obscuramente pressentido, e que nenhum vocábulo da linguagem
que nós falamos poderia expressar de maneira satisfatória” (JUNG.
Apud. CHEVALIER, GHEERBRANT, 2009, p. XXII).

A essência do símbolo consiste em apresentar uma situação que


não é totalmente compreensível em si e só aponta intuitivamente
para seu possível significado. A criação de um símbolo não é um
processo racional, pois este não poderia gerar uma imagem que
apresentasse um conteúdo, no fundo, incompreensível. A compre-
ensão do símbolo exige uma certa intuição que capta, aproximada-

253
LUCIANO PESSOA E JORGES MIKLOS

mente, o sentido desse símbolo criado e o incorpora na consciên-


cia. (JUNG, 1991, p. 111-112)

Para Chevalier e Gheerbrant, a partir de Jung, o símbolo indi-


caria certa “ultrapassagem do conhecido em direção ao desconhe-
cido, do expresso em direção ao inefável” (CHEVALIER; GHEER-
BRANT, 2009, p. XXII), mas como elemento essencialmente vivo,
mobilizador. Nas palavras de Jung, o símbolo seria “a melhor ex-
pressão possível” para algo que é vivo exatamente enquanto “pre-
nhe de significação”, e que também pode morrer caso se encontre
expressão melhor para “a coisa buscada, inesperada ou pressentida”
(JUNG. Apud. CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. XXII).
É a esse território do imaginário simbólico – conforme tem
sido elaborado a partir de Jung, de Gaston Bachelard, de Gilbert
Durand6, entre outros –, que queremos nos reportar na observação
desta Missa, enfatizando aqui o caráter simbólico na medida em que
a Missa dos Quilombos, de modo semelhante ao sentido original de
símbolo, propõe articular a separação e a reunião de duas culturas,
de duas sacralidades, num mesmo espaço sagrado, cênico e musical.

Luz e sombra

Um primeiro ponto a ser observado pode partir da distinção


entre luz e trevas logo no início do Gênesis judaico-cristão, e que
parece se refletir em toda a cultura ocidental, atribuindo certa posi-
tividade ao claro e correspondente negatividade ao escuro.

No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia


e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava a
superfície das águas. Deus disse: ‘Haja luz’, e houve luz. Deus viu
que a luz era boa, e Deus separou a luz e as trevas. Deus chamou à

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DENTRO E FORA DA CASA COMUM – IMAGINÁRIO SIMBÓLICO...

luz ‘dia’ e às trevas ‘noite’. Houve uma tarde e uma manhã: primeiro
dia. (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002, Gên. 1:1-5)

Por este pequeno trecho que abre a narrativa bíblica, podemos


observar que, se a luz é reconhecida como boa, as trevas (anteriores
à luz) não o são. Desde aqui, o termo trevas no plural (contraposto a
luz, no singular), assim como o ato de separar luz e trevas, colocam
essa ideia de divisão, de separação, comum ao termo grego diabállo
(lançar através, separar, desunir), raiz de diabólico, contraposto exa-
tamente à ideia de símbolo e de simbólico.
Já o termo negro (pelo latim niger, nigra, nigrum), pode aludir
tanto ao escuro quanto ao nebuloso, tenebroso, infeliz, mau, per-
verso, ao triste, ao funesto (TORRINHA, 1942) – além de possíveis
aproximações com radicais latinos e gregos associados à negação,
à noite, à morte etc. Não por outra via repetimos diariamente re-
verências à luz, à visão, ao pensamento claro, à ideia brilhante, ao
homem de visão, ao iluminado, à clarividência e assim por diante.
Tal elogio do luminoso pode ter ouvidos mais antigos, por exemplo
na Grécia de Platão (séc. V a.C.), em que este já procurava distinguir
o mundo intelectual (perfeito, eterno, bom, belo, solar) e o mundo
sensível (terreno, imperfeito, degradado, enganoso, perecível etc.).
De todo modo, nunca é demais lembrar que embora precisemos de
luz para enxergar, e tendo a visão a importância que tem em nosso
mundo humano, de nada adiantaria se enxergássemos apenas luz.
Não só porque a luz em si (o fenômeno físico) é invisível, mas por-
que a claridade absoluta seria também uma espécie de cegueira.
Haveria o céu sem a terra, o dia sem a noite, a vigília sem sono
e sem sonho? Haveria luz sem o contraste que a revelasse? Haveria
Europa sem América, sem África? Podemos extrair do mundo o
que interessa e ignorar que somos parte do mundo? Também dos
gregos antigos chega o mito de Perséfone, que raptada por Hades,
passa a viver parte do ano com a mãe (Deméter), parte nos mundos

255
LUCIANO PESSOA E JORGES MIKLOS

sombrios do esquecimento e da morte, dando origem às estações do


ano. Dos antigos nos chega também certa vinculação entre conhecer
e um sentido de envolvimento, de pertencimento, expresso não ape-
nas na relação entre homem e mulher, mas também na associação,
no Gênesis, entre a queda (expulsão do Paraíso) e o provar o fruto
da Árvore do Conhecimento7. Impossível não pensar na milenar
metáfora da luz como imagem da consciência, na infindável busca
cartesiana do “preto no branco”, assim como na queda (involuntá-
rio e abismal comprometimento) implicada em todo caminho de
conhecimento.
Dessa simples distinção entre luz e trevas, claro e escuro, pode-
mos observar aspectos simbólicos de sacralidades “negra” e “bran-
ca”, não apenas no que as tonalidades podem ser lidas em termos
de bem e mal, mas também nas diferenças e semelhanças com que
uma cultura vê, é vista e interage com a outra. Mircea Eliade (2008)
nos fala do sentido do sagrado que reveste, em cada grupo humano,
tudo que é “nosso”, nosso lugar, nossa gente, nosso modo de andar,
e inversamente, o profano com que vestimos os outros, seus lugares
e modos. Na especificidade a que chamamos Brasil, a história é con-
tada pelo invasor europeu, que não apenas procura destruir física e
simbolicamente as culturas dominadas como também apagar siste-
maticamente o horror praticado ao longo de cinco séculos contra
índios, negros e suas descendências. Como explicar que a cultura e
a religião desses povos escravizados, torturados e assassinados co-
tidianamente até hoje, possam ser ainda vistas – exatamente pelo
“mundo civilizado” que as atropela – como primitivas, selvagens e
demoníacas?
Para Darcy Ribeiro, os primeiros “brasileiros” nascem de pai
português e mãe indígena, não sendo, entretanto, acolhidos como
filhos nem pelo pai (para quem os índios não eram propriamente
humanos), nem pela mãe (não sendo o pai indígena). Aos poucos
surge essa “gente recém-feita, moldável”, mas também “serviçais del-

256
DENTRO E FORA DA CASA COMUM – IMAGINÁRIO SIMBÓLICO...

-rei, impositores da dominação que os oprimia”, meio-índios, numa


terra de ninguém, a que depois viriam se amalgamar os negros trazi-
dos principalmente da África ocidental (RIBEIRO, 1995, p. 108-118).

Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a mas-
turbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém – seu
capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, ini-
migos –, maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo,
sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta
era sofrer todo dia o castigo diário das chicotadas soltas, para tra-
balhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo,
pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção,
recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilações de
dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os
dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho,
sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinquenta chi-
cotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia
ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, vi-
ver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de
agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, para arder como
um graveto oleoso. Nenhum povo que passasse por isso como sua
rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado
indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne da-
queles pretos e índios suplicados. Todos nós brasileiros somos,
por igual, a mão possessa que os suplicou. (…) A mais terrível de
nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de tortu-
rador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista
e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade
brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que
lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação
nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma
sociedade solidária. (RIBEIRO, 1995, p. 119-120)

257
LUCIANO PESSOA E JORGES MIKLOS

Para Jung, a projeção seria o fenômeno psíquico pelo qual atri-


buímos a um “outro” (algo ou alguém em parte desconhecido, que
adquire a função de “espelho escuro”) determinados elementos de
nosso inconsciente, de nossa “sombra”, com os quais normalmente
não podemos lidar de modo objetivo.
Na esteira de Jung e de Ribeiro, Roberto Gambini (1988) pro-
põe que teria sido exatamente a projeção da sombra do catolicismo
europeu sobre os povos indígenas “sem alma”, o início da demoniza-
ção dos povos nativos e dominados no Brasil. Passados 500 anos do
“descobrimento”, constatamos que a projeção continua viva e forte8
sobre os índios, sobre os negros, sobre os pobres, sobre as mulheres,
sobre a terra, sobre tudo que não pareça um modelo masculino,
branco, europeu, capitalista, herdeiro de uma modernidade autor-
referente e predatória, que aos domingos, entre comunhões e confis-
sões autoindulgentes, ainda balbucia “não matarás”, “não roubarás”,
e “amarás ao próximo como a ti mesmo”.

Do corpo, do som, do sagrado

Um segundo ponto a observar seria a situação da música no ri-


tual da Missa dos Quilombos, em relação à música tradicionalmente
presente em missas católicas, em relação à situação do corpo e às
qualidades do sagrado evocadas nesses rituais.
Ao contrário das imagens visuais, de que só nos damos conta
pelo recorte do olhar, a música e o universo dos sons tende a nos
envolver, mover, tocar, a nos fazer vibrar, física e psicologicamente,
sem que para isso precisemos “abrir” ou direcionar os ouvidos para
a fonte sonora, como acontece com a visão. Disso já percebemos
uma primeira aproximação muito significativa entre o universo dos
sons e o sentido do simbólico que delineamos acima. Se a visão ten-
de a selecionar, isolar, separar (diabólico), a audição tende a reunir,
integrar (simbólico).

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DENTRO E FORA DA CASA COMUM – IMAGINÁRIO SIMBÓLICO...

Os sons convivem, interagem e se misturam em nossa audição


(daí o sentido de sinfonia), criando ambientes, espaços de convivên-
cia de ritmos, harmonias, melodias, de timbres e ruídos, de inten-
sidades, fenômenos sensíveis e também emocionais e intelectuais.
Os sons musicais em geral não são “descritivos”, não representam
diretamente pessoas ou objetos de nosso cotidiano, e talvez por isso
mesmo podem constituir, com muita facilidade, pontes entre nossas
sensações e o que elas nos despertem, entre o humano e o sobre-
-humano, entre uma realidade exterior e nosso mundo interior.
Sons entoados com leves variações, por exemplo, em andamen-
tos próximos das batidas do coração, em volumes e timbres não
muito distantes da fala, não agressivos à nossa audição, parecem
poder nos “acompanhar” num embalo de consonância e harmonia
que quase imediatamente cria estados de bem-estar, reconhecíveis
mesmo por um bebê ou por um animal.
Em diversas culturas, como na tradição judaico-cristã ou na
mitologia grega, a importância do emitir um som, de falar, cantar,
está profundamente conectada com o ato da criação primordial,
com o início do Universo, e também com a possibilidade de entrar
em ressonância com esse Cosmos, que em si já contém a ideia de
ordem e de beleza.
O canto e a fala pautam a respiração e são pautados por ela,
criando pausas, intervalos, que são também conexões, do mesmo
modo como nestas frases escritas entre vírgulas e pontos: chaves de
encaixe (em grego, harmós, harmonia), articulações, que vão permi-
tir o jogo, a relação entre peças diferentes, eventualmente dissonan-
tes, criando conjuntos complexos, menos ou mais integrados, que
podemos perceber como composições de sentido, de histórias, de
continuidades, de acidentes, de caos e de paz.
A cultura africana tem no tambor um de seus elementos fun-
damentais, e sua religiosidade não o ignora, mas glorifica. O ritmo
fala ao corpo, para quem toca e para quem ouve, e quem ouve quer

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LUCIANO PESSOA E JORGES MIKLOS

dançar, porque o corpo é antes de tudo movimento. O corpo que


dança amplia a ciência de si, de suas emoções, de sua possibilidade,
de sua transformação. O rito que dança convoca o toque, a terra, o
gesto, o pulsar, a respiração, a lembrança de um tempo em que tudo
se conecta: a vida, o viver, o agora – alegria.
Na missa católica, sem pretender buscar as raízes musicais des-
se rito celebrado no Brasil desde o século XVI, entoa-se certa mú-
sica europeia em que a melodia exerce um papel preponderante, e
em que o ritmo, diversamente da tradição africana, não tira o corpo
para dançar. O ritmo da música de igreja católica vai concordar com
as pessoas paradas, em pé ou sentadas, ouvindo em silêncio, respi-
rando pausadamente. As notas mais longas da melodia, que vagueia
entre o grave e o agudo, falam do drama dos homens, de escadas
para o céu e para as nuvens, mas se afastam do território sensível do
ritmo e do corpo. Nas notas agudas, em que o esforço do cantor e o
sacrifício do crente se aproximam, o ar escasso nos fala do sopro, da
angústia, da graça.
Estudioso das religiões de matriz africana no Brasil, Roger Bas-
tide discute também os sentidos do corpo, não como acessório, mas
como fundamento da sacralidade e do ritual religioso. Fala de uma
“oração corporal” que não é mero “acompanhamento” ou “sinal”
de uma suposta “verdadeira oração, a qual residiria tão-somente
no espiritual”, mas como um “rito total que engloba a totalidade do
homem orante” (BASTIDE, 2006, p. 157-158). Na Missa dos Quilom-
bos, a música de Milton dialoga com o corpo em duas tradições, a
começar do ritmo vivo de A de Ó, “estamos chegando do fundo da
terra”, seguido pela melodia solene de Em nome do Deus: a Missa
convoca negros e brancos, deuses e orixás para cantar e rezar entre
mortais, para dançar a História sem esquecê-la, para fazer respirar
o sopro e circular o sangue, da cabeça aos pés e de volta à cabeça,
transformada. Um outro um.

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DENTRO E FORA DA CASA COMUM – IMAGINÁRIO SIMBÓLICO...

Se a Missa coloca em movimento o símbolo de uma sacralidade


reparadora, de reunião, através da música, o sentido mais amplo
do som como fundamento do sagrado – e em seus aspectos físi-
cos, psicológicos, filosóficos – é desenvolvido por Ernst Berendt em
Nada Brahma (cujo significado em sânscrito poderia se aproximar
de Tudo é Som, ou Deus é Som). Berendt parte da expressão hindu
para estabelecer várias pontes entre fenômenos físicos e o universo
da consciência, entre a audição e os sentidos do sagrado. Defende
que na música, como no mundo, toda dissonância tende a se tornar
harmonia. Intervalos musicais tidos como dissonantes, ao longo de
séculos, pouco a pouco foram sendo integrados e passaram a ser
ouvidos como harmônicos (BERENDT, 1997, p. 141). De modo aná-
logo, dois relógios de pêndulo colocados lado a lado tendem a bater
em sincronia, pelo fenômeno físico da ressonância (BERENDT, 1997,
p. 145), uma tendência à harmonização que afeta desde osciladores
de varredura de imagem, em um aparelho de TV, até seres humanos
(por exemplo quando cantamos juntos, em uma festa de aniversário
ou em um estádio de futebol), e pode ser observado “na arquitetura
[...] na eletrônica, na acústica, na psicologia e na psicoterapia, na
biologia” (BERENDT, 1997, p. 148).
“Para o autor”, no prefácio de Fritjof Capra, “a compreensão de
que o mundo é som tem implicações profundas não só para a ciên-
cia e a filosofia, mas também para a nossa vida cotidiana” (CAPRA.
In: BERENDT, 1997, p. 13). A cultura ocidental teria dado excessiva
ênfase à visualidade, e Berendt fala de mudanças de paradigma, da
visão para a audição, de valores masculinos para femininos, da aná-
lise para a síntese, da racionalidade para a intuição, e “do domínio e
da agressividade para a não-violência e a paz” (CAPRA. In: BEREN-
DT, 1997, p. 13).

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LUCIANO PESSOA E JORGES MIKLOS

Conclusão

Fechando provisoriamente este estudo, parece justo dizer que


a Missa dos Quilombos habita também essa simbologia da casa co-
mum, de reunião, de restauração de uma sacralidade telúrica, corpo
e natureza integrados, de uma eternidade não surda às vozes da His-
tória contada pelos humilhados. E que a música vivida e convivida
na Missa dos Quilombos contribui para essa comunhão e esse oikos.
A ideia de conclusão, de fechamento, entretanto, talvez esteja um
pouco distante dos sentidos que desenvolvemos aqui em torno do
imaginário simbólico e da ecologia da comunicação. Na medida
em que tudo é som, em que tudo é movimento e relação, talvez faça
mais sentido falar em aberturas e caminhos do que em conclusões.
A Missa não interrompeu o massacre, nem resgatou definitivamente
a dignidade e a sacralidade da cultura negra no Brasil. Não operou
esse milagre, mas moveu algo nesse sentido. A simbologia da audi-
ção, da escuta, é também uma abertura para a escuta do outro, do
outro que somos todos, e dos “outros” que carregamos em nossos
sonhos. “Em nome do Povo que fez seu Palmares, e ainda fará Pal-
mares de novo”.9

Referências

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: M. Fontes, 2007.

AUGRAS, Monique. ‘Mil janelas’: Teóricos do imaginário. In: Imaginário


da magia: magia do imaginário. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC,
2009.

BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem. São Paulo: Companhia das Letras,


2006.

262
DENTRO E FORA DA CASA COMUM – IMAGINÁRIO SIMBÓLICO...

BERENDT, Joachim-Ernst. Nada Brahma: a música e o universo da


consciência. São Paulo: Pensamento, 1997.

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.

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CENSO de 1872: o retrato do Brasil da escravidão. Nexo Jornal. Disponível


em: https://www.nexojornal.com.br/especial/2017/07/07/Censo-de-1872-
o-retrato-do-Brasil-da-escravid%C3%A3o. Acesso em: 5 ago. 2018.

DOCUMENTÁRIO A Missa dos Quilombos, produzido pela TV Senado,


Brasília/DF, 2006 (80:47min, color). Direção de Liloye Boubli. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=C2GOSacI9Es. Acesso em: 15
maio 2018.

MISSA DOS QUILOMBOS: ensaio aberto. Disponível em: http://www.


ensaioaberto.com/missa_2003.htm. Acesso em: 15 maio 2018.

MISSA dos Quilombos foi um desafio de Dom Hélder a Dom Pedro,


trecho de entrevista de Pedro Tierra a Ana Helena Tavares para o livro

265
LUCIANO PESSOA E JORGES MIKLOS

“Um bispo contra todas as cercas”, biografia de Dom Pedro Casaldáliga.


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dk5EA4xy2ns. Acesso
em: 15 maio 2018.

RODA VIVA – Dom Pedro Casaldáliga, 1988, entrevista com Dom Pedro
Casaldáliga ao programa Roda Viva, TV Cultura. Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=n1ppEJxr6m8. Acesso em: 15 maio 2018.

UMA ABERRAÇÃO chamada Dom Pedro Casaldáliga, trecho de entrevista


de Edilson Martins, autor do livro “Nós, do Araguaia”, a Ana Helena Tavares.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=B3Pk8KJ5W6s. Acesso
em: 15 maio 2018.

Discografia

MISSA DOS QUILOMBOS. Milton Nascimento; Pedro Casaldáliga; Pedro


Tierra. BMG Ariola, 1982.

NOTAS

1 Conforme o blog Deborando https://bit.ly/2INkoTm, até 2011, quando iniciava


nova temporada no Rio de Janeiro, a peça já havia sido assistida por 65 mil
espectadores em apresentações pelo Brasil.
2 Ver https://www.youtube.com/watch?v=pm_TaCEQXgU.
3 Ver https://www.youtube.com/watch?v=THs-Sp7TcIU.
4 Usaremos eventualmente o termo Missa isolado, com M maiúsculo, para nos
referirmos à Missa dos Quilombos.
5 Tienen una importancia secundaria en la formación de la personalidad, en el
aprendizaje de la capacidad de relacionarse y de la competencia comunicativa.
Pueden incluso, oponerse a éstas si se carece de espacio suficiente para interac-
tuar directamente con el entorno natural y social. Por todo esto hay que rei-

266
DENTRO E FORA DA CASA COMUM – IMAGINÁRIO SIMBÓLICO...

vindicar, proteger y fomentar los espacios experimentales, los lugares públicos,


contra la retificación (red, tejido) telemática de la sociedad.
6 Como breve referência, ver CONTRERA, 2010; AUGRAS, 2009; DURAND,
2000.
7 Como breve referência, ver Gênesis, BÍBLIA DE JERUSALÉM, Paulus, 2002.
8 Para breve referência, ver: 1. https://www.bbc.com, 2. https://brasil.elpais.com/,
3. https://cimi.org.br/, 4. https://www.geledes.org.br, 5. http://observatorio3se-
tor.org.br/,
6. https://www.nexojornal.com.br.
9 Em Nome do Deus, Missa dos Quilombos, 1982.

267
A ESTEREOTIPIA DOS POVOS
ORIGINÁRIOS NA MÍDIA
HEGEMÔNICA

Sandra Penkal
Jorge Miklos

Introdução

O artigo foi desenvolvido com o propósito de aferir como o


povo indígena do Brasil é representado pela Revista Exame, da Edi-
tora Abril. Para tanto foram analisadas matérias da revista impressa
no período de julho a dezembro de 2017. O problema que guiou a
pesquisa partia do questionamento sobre quais atributos caracteri-
zam a fala da revista Exame, e de que maneira a mídia hegemônica
se apropria de um arcabouço comunicacional reducionista do índio,
da ausência de sustentabilidade cultural e do aniquilamento desse
povo na história e na essência multicultural do Brasil.
Vale ressaltar que como parte do objeto de análise foi utilizada
revista EXAME, de periodicidade quinzenal, do Grupo Abril, fun-
dado como Editora Abril em 1950 por Victor Civita.

A marca EXAME, da Editora Abril, nasceu em 1967 com a revista


EXAME, e se considera hoje a maior e mais influente publicação
de negócios e economia do país. Sob a marca EXAME estão o site
EXAME.com, a revista EXAME e o anuário Melhores e Maiores,

269
SANDRA PENK AL E JORGES MIKLOS

o principal ranking financeiro das grandes empresas no país. O


site www.exame.com.br é a principal fonte online sobre negócios
no país. Seu foco se estende a economia, mercados financeiros,
tecnologia, marketing, gestão, meio ambiente, pequenas empresas,
carreira e finanças pessoais. Traz também os blogs dos jornalistas
da revista EXAME, e vários serviços de informação financeira.A
revista EXAME, de periodicidade quinzenal, possui uma circula-
ção de cerca de 150 mil exemplares, sendo aproximadamente 115
mil assinaturas. A cada 15 dias, EXAME chega a aproximadamen-
te 700 mil leitores. Sua missão é levar à comunidade de negócios
informação e análises aprofundadas sobre temas como estratégia,
marketing, gestão, consumo, finanças, recursos humanos e tecno-
logia. Segundo uma pesquisa do instituto Ipsos-Marplan, EXAME
é lida por 91% dos presidentes das 500 maiores empresas instaladas
no Brasil. 1

Foram identificadas e estudadas treze notícias da revista se-


manal Exame, a partir de uma extensa pesquisa realizada entre ju-
lho e dezembro de 2017. As prospecções foram feitas pelo Google e
também por algumas edições da revista impressa. A investigação
proposta incidiu em apurar a maneira como o povo indígena foi
representado, conforme os critérios indicados nas matérias, o tipo
de discurso, e a ideia de senso comum sobre o índio.
O procedimento metodológico principal foi analisar de que
maneira o povo indígena é representado nessas treze matérias e,
desse modo, de que maneira a mídia hegemônica se apropria do
imaginário indígena e constrói uma representação simbólica, confe-
rindo determinada significação a esse ambiente, segundo seus inte-
resses. Através da análise dessas narrativas verbais e visuais, pode-se
perceber o apagamento das referências indígenas, humanas, cultu-
rais, substituídas por uma referência genérica aos territórios, suas
valorações, suas posses, seus usos. Estrutura-se aqui uma reflexão
em torno do poder simbólico a partir da implantação de formas

270
A ESTEREOTIPIA DOS POVOS ORIGINÁRIOS NA MÍDIA HEGEMÔNICA

simbólicas. As corporações, órgãos privados e governamentais,


agindo ou não em parceria, se apropriam do poder simbólico para o
reconstruir, direcionar, buscando dar legitimidade a seus discursos
e posicionamentos.

Ali onde se torne menos definida a energía condensada dos sím-


bolos, o poder físico deverá regular o que já não pode ser regulado
simbolicamente. (…) A segregação social se realiza por meio de
marcas, estigmas, escurecimentos, apagamentos e signos similares,
que minam a dignidade humana do sujeito ao criar imagens que
não guardam relação com o mundo real e que, portanto, o repelem.
Mas também a distinção de indivíduos ou grupos particulares se
faz mediante certa rotulação (PROSS, 1974, p. 105).

Parte do confronto e da composição das forças sociais se dará


então, no nível simbólico, por meio de narrativas deste e daquele
grupo, o que envolverá a interação permanente de agentes e sujeitos
de todos os grupos envolvidos, em graus e qualidades diversas de
alcance e de consciência desses processos. Evidentemente, há que
considerar a velocidade e a presença massiva dos símbolos organi-
zados e distribuídos por meios industriais – de que são exemplos a
mídia impressa, televisiva e a internet–, além do papel padronizador
e mesmo identitário dessas mesmas mídias industriais, cujos dis-
cursos muitos acatarão sem questionamento, como narrativas ou
informação entendidas como naturais ou aparentemente livres de
interesses secundários.
Ainda a partir de Pross, cabe lembrar que “os sistemas simbó-
licos não são apreensíveis por meio de conceitos ou descrições dis-
cursivas, mas surgem como imagens na consciência de seus intér-
pretes” (1974, p. 111), o que também implicaria que parte do poder
simbólico se realiza não apenas no embate entre narrativas, entre
grupos sociais distintos, mas especialmente na leitura acrítica por
indivíduos dentro de um mesmo grupo.

271
SANDRA PENK AL E JORGES MIKLOS

Objetivos

No artigo busca-se evidenciar alguns processos de apagamento,


deslocamento ou distorção da informação a respeito dos indíge-
nas brasileiros no veículo jornalístico estudado, processos esses que
ocorrem em camadas menos objetivas da comunicação, podendo-se
dizer, de forma indireta. Evidenciar também como essas deforma-
ções servem a determinados grupos, encaminhando posicionamen-
tos político-sociais de ataque simbólico aos povos indígenas, suas
culturas e territórios, sob as vestes supostamente isentas, transpa-
rentes, do âmbito do meramente informativo.
Em nossa assim chamada era da informação, cabe-nos observar
que essa informação quase nunca é apolítica, e carrega interesses
e perspectivas que não são expostas em sua totalidade ideológica,
mas procuram operar em modo mais suave, como se diz, como um
lobo em pele de carneiro ou como um Cavalo de Troia, construindo
imagens e formas de entendimento paralelas, veladas, comunicando
e dizendo não simplesmente pelo que é dito e mostrado efetiva-
mente no texto e nas imagens, mas também pelo não dito, pelo não
expresso, por meio de decisões editoriais de forma e conteúdo, do
que dizer e do que não dizer, desta ou daquela maneira, e que muitas
vezes passarão despercebidas ao leitor menos avisado.

Discussão teórica

Não será menos importante observar que a Revista Exame, da


Editora Abril, encarna de modo exemplar no Brasil o que possamos
entender por mídia hegemônica – ”um dos maiores e mais influen-
tes grupos de comunicação e educação da América Latina”2 –, re-
presentando historicamente os interesses amplos de uma sociedade
industrial-capitalista em que os produtos, coisas e objetos, valem

272
A ESTEREOTIPIA DOS POVOS ORIGINÁRIOS NA MÍDIA HEGEMÔNICA

mais que as pessoas, em que os valores do mercado tendem a su-


plantar os valores da vida, em que os valores materiais e financeiros
(exatamente o foco da Revista Exame) tendem a apagar os valores
da cultura.
Conscientemente ou não, o símbolo visual e o nome da editora
remetem respectivamente a uma árvore e ao início da Primavera
no hemisfério Norte, relacionado de forma geral ao assim chama-
do primeiro mundo, mas remetem também, ao mesmo tempo, e
um tanto ironicamente, ao mês em que no hemisfério Sul começa
a ocorrer o declínio das luzes, o aumento da duração da noite em
relação ao dia, o avanço da sombra e do frio que vêm com o Outono
e o Inverno, mês que no Brasil é lembrado também como aquele
em que se deu o golpe militar de 1964, no dia 1º de Abril, também
conhecido como o “dia da mentira”.
Como diz Manuel Castells (2013, p. 15), “torturar corpos é me-
nos eficaz que moldar mentalidades”. A primeira publicação da Edi-
tora Abril, de 1950, é uma revista do Pato Donald3, que traz na capa,
além do pato, o papagaio Zé Carioca, ambos personagens da extensa
fauna humanizada e infantilizada dos estúdios Disney, que teve no
papagaio Zé Carioca um esforço de internacionalização, já no perí-
odo conhecido como Guerra Fria, uma isca para fisgar ou represen-
tar uma cultura supostamente brasileira pelo olhar estadunidense, e
para vender em terras tupiniquins e em toda parte o peixe enlatado
e difuso do american way of life.
Das matérias estudadas na Revista Exame, destacamos a se-
guir algumas que parecem exemplificar alguns dos elementos aqui
discutidos.

273
SANDRA PENK AL E JORGES MIKLOS

MATÉRIA 1 – 14 nov. 2017


Alemanha e Reino Unido injetam US$153 mi na Amazônia

Aproximadamente US$ 88 mi irão para um programa que faz


pagamentos a povos indígenas e a agricultores em troca da ma-
nutenção da cobertura vegetal.

https://exame.abril.com.br/brasil/
alemanha-e-reino-unido-injetam-us153-mi-na-amazonia/

Na matéria 1, desde o título, coloca-se em pauta o valor finan-


ceiro dos investimentos estrangeiros na preservação da floresta bra-
sileira, e embora a ação possa ter aspectos positivos, a matéria não
faz qualquer referência mais aprofundada aos povos indígenas que
vivem na Amazônia, aos possíveis impactos que tais ações podem
implicar, assim como a questões culturais. Do mesmo modo, a foto
mostra o “território”, ou seja, a coisa, a mercadoria, o bem material,
que lentamente é negociado, precificado. Conforme o texto da ma-
téria: “O Brasil não pode depender da vigilância para deter o des-
matamento, e precisa lançar iniciativas financeiras para preservar a
floresta e obter mais ganhos, disse o ministro do Meio Ambiente,
Sarney Filho, no final do mês passado.”

MATÉRIA 2 – 5 out. 2017


118 indígenas foram assassinados no Brasil em 2016

O maior número de vítimas, 44, foi registrado em Roraima,


entre o povo Yanomami, que, no ano passado, contabilizou 59
mortes.

https://exame.abril.com.br/
brasil/118-indigenas-foram-assassinados-no-brasil-em-2016/.

274
A ESTEREOTIPIA DOS POVOS ORIGINÁRIOS NA MÍDIA HEGEMÔNICA

Em outra matéria, o destaque vai para o número de indígenas


assassinados no Brasil em 2016, mas a manchete não entrega a tragé-
dia de números ainda maiores como os de crianças mortas antes de
completar cinco anos de idade, por desnutrição e outras causas, ou
de índios que se suicidaram no mesmo período. Do mesmo modo,
a morte dos indígenas, anotada apenas por números, não parece
suficiente para lhes conferir um nome ou uma história. Na foto, o
índio em primeiro plano, exótico, mais estrangeiro que os investido-
res da primeira matéria, é também representado de forma genérica,
sem identidade, como um boi ou uma árvore. Ao fundo, a cidade
com suas luzes, edifícios e uma grande avenida. A matéria aponta a
existência de um site em que são mapeadas ocorrências da violência
contra os povos indígenas, Caci – Cartografia dos Ataques Contra
Indígenas, mas (ao menos até nosso acesso, em 11/12/2017) esquece
de mostrar o link.

MATÉRIA 3 – 4 out. 2017


PF desmonta esquema de exploração ilegal de madeira no
Pará

Segundo a PF, o esquema seria responsável por dano am-


biental estimado em quase 900 milhões de reais.

https://exame.abril.com.br/brasil/
pf-desmonta-esquema-de-exploracao-ilegal-de-madeira-no-para/

Numa terceira matéria, faz-se um breve relato sobre um caso


em que a madeira em território indígena era desviada de forma
ilegal por um “grupo empresarial”, e informa-se que quarenta po-
liciais cumpriram dez mandados de condução coercitiva, onze de

275
SANDRA PENK AL E JORGES MIKLOS

sequestro de bens e seis de busca e apreensão. Dos índios, de cujo


território eram levadas as árvores, pouco sabemos além do nome do
local. A foto também não diz muito, talvez apenas sobre a aparente
obrigatoriedade de vincular o texto a alguma imagem. A matéria
informa, segundo laudo da PF, que o esquema teria sido responsável
por dano ambiental no valor de “mais de 897 milhões de reais”, qua-
se como se se tratasse de uma operação bancária. No contexto da
revista, parece natural traduzir danos ambientais em valores finan-
ceiros, mas o dano ambiental vai muito além. O dinheiro, mesmo
que recuperado, nunca restituirá a floresta, nem aos índios nem a
quem quer que seja.

MATÉRIA 4 – 11 set. 2017


Funai e MPF apuram suspeita de assassinato de índios no AM

A suspeita é de que os índios, que viviam isolados no Vale do


Javari, tenham sido mortos por um grupo de garimpeiros.

https://exame.abril.com.br/brasil/
funai-e-mpf-apuram-suspeita-de-assassinato-de-indios-no-am/

Em uma quarta matéria, garimpeiros são suspeitos de terem


matado grupo indígena, após terem sido “vistos no município de
São Paulo de Olivença conversando sobre o suposto massacre”. Se-
gundo a matéria, os garimpeiros foram detidos para depoimento,
mas “não confirmaram as mortes e, até o momento, nenhuma prova
material foi encontrada”. Para além de certa estranheza na simplici-
dade do relato de que os garimpeiros “não confirmaram as mortes”,
a matéria segue dizendo que “os supostos alvos do ataque habitam a
região do Rio Jandiatuba...” e mais adiante, que nesse episódio vinte
índios, “chamados flecheiros (...) foram assassinados. E (...) corpos

276
A ESTEREOTIPIA DOS POVOS ORIGINÁRIOS NA MÍDIA HEGEMÔNICA

foram esquartejados, inclusive”. Considerando apenas o texto, dito


jornalístico, poder-se-ia perguntar por qual inversão semântica cor-
pos assassinados e esquartejados podem ser descritos como “supos-
tos alvos”.

Métodos e Resultados

A metodologia utilizada corresponde basicamente à análise do


discurso das treze matérias da Revista Exame, em texto e imagens,
apoiada em algumas proposições de Laurence Bardin (1979), em-
bora, possa-se dizer, tenha sua origem já na estruturação do argu-
mento inicial, na escolha do veículo a ser estudado (Revista Exa-
me), na medida em que essa revista pode representar, de saída, um
olhar muito específico sobre os povos indígenas do Brasil: um olhar
a partir do mercado, dos negócios, do mundo financeiro, o que im-
plicará necessariamente em uma forma de ver, em uma forma de
representar.
Para Bardin (1979), a análise de conteúdo se estrutura:

Como um conjunto de instrumentos metodológicos cada vez mais


sutis em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a ‘discursos’
(conteúdos e continentes) extremamente diversificados. O fator co-
mum destas técnicas múltiplas e multiplicadas – desde o cálculo de
frequências que fornece dados cifrados, até a extração de estruturas
traduzíveis em modelos – é uma hermenêutica controlada baseada
na dedução: a inferência. Enquanto esforço de interpretação, a aná-
lise de conteúdo oscila entre os dois polos do rigor da objetividade
e da fecundidade da subjetividade. Absolve e cauciona o investi-
gador por esta atração pelo escondido, o latente, o não aparente, o
potencial de inédito (do não dito), retido por qualquer mensagem.
Tarefa paciente de ‘desocultação’ (...) O maior interesse desse ins-
trumento polimorfo e polifuncional que é a análise de conteúdo,
reside – para além das suas funções heurísticas e verificativas – no

277
SANDRA PENK AL E JORGES MIKLOS

constrangimento por ela imposto de alongar o tempo de latência


entre as intuições ou hipóteses de partida e as interpretações defi-
nitivas (BARDIN, 1979, p. 9-10).

Segundo Bardin (1979, p. 14), a análise de conteúdo teria origem


remota na exegese religiosa, especialmente da Bíblia, na interpreta-
ção dos sonhos, na interpretação crítica de textos literários, em prá-
ticas de astrologia, nos estudos de retórica e de lógica, assim como,
modernamente, na psicanálise. No século XX, teria se desenvolvido
sobretudo nos Estados Unidos, a partir da Escola de Jornalismo de
Colúmbia, calcada principalmente em procedimentos de medida
sobre material jornalístico.

Segue-se a evolução de um órgão de imprensa, mede-se o grau de


sensacionalismo dos seus artigos, comparam-se os semanários ru-
rais e os diários citadinos. Desencadeia-se um fascínio pela con-
tagem e pela medida (superfície dos artigos, tamanho dos títulos,
localização na página) (BARDIN, 1979, p. 15).

Paralelamente ao estudo da imprensa, as duas grandes guer-


ras permitirão o surgimento do estudo da propaganda. Nome im-
portante dos estudos de análise de conteúdo, H. Lasswell pesquisa
nessas duas frentes desde 1915, e em 1927 publica Propaganda Tech-
nique in the World War, prosseguindo depois com trabalhos sobre
a análise de palavras-chave e mitologias no âmbito da política. Na
segunda metade do século XX as pesquisas se diversificam e se fle-
xibilizam, combinando indicadores numéricos e planos de análi-
se menos pré-determinados. Bardin (1979), no final dos anos 1970,
destacaria ainda a importância das abordagens com a utilização de
computadores, a percepção de limitações quanto à precisão nos tra-
balhos linguísticos, o interesse pelos estudos de comunicação não
verbal, pela via da semiótica (nos campos da imagem, da tipografia,
da música), assim como pela fundamentação teórica estruturalista
e psicanalítica.

278
A ESTEREOTIPIA DOS POVOS ORIGINÁRIOS NA MÍDIA HEGEMÔNICA

Conclusão

Nesta análise, determinados aspectos da construção da in-


formação a respeito dos indígenas brasileiros, que, sob o olhar do
veículo estudado, têm sido representados com distorções e apaga-
mentos, que por sua vez são operados de forma intencionalmente
velada, indireta, não transparente em seus processos, em suas deci-
sões, em suas ideologias. Acredita-se ter iluminado alguns aspectos
desse apagamento, por meio da análise de conteúdo, e desse modo
ter contribuído para um aprofundamento da fundamentação a res-
peito desses processos, assim como, do ponto de vista sócio-político,
contribuído para maior clareza e respeito às comunidades e povos
indígenas do Brasil. Romano definiu a informação como ferramenta
de construção de opiniões e de pessoas. Através da mídia, repetida-
mente e instantaneamente ficamos sabendo dos acontecimentos da
maneira que nos são ditos, recebemos a informação como comentá-
rios ou opiniões. “Em todos esses casos a palavra ‘informação’ tem
um significado corrente, atual, como algo relacionado com coisas
práticas, cujo conhecimento é importante para nós” (ROMANO,
2004, p. 60, tradução livre). Ou seja, a priori, tendemos a ler aqui-
lo que nos chega simplesmente sob a forma de ‘informação’ como
sendo algo isento, exato, completo e desprovido de intenções se-
cundárias. Sob um olhar mais cuidadoso, podemos perceber que a
informação nunca é apolítica, e tenderá a representar e reconstruir
supostos ‘fatos’ conforme os seus interesses e dos grupos sociais que
representa, grupos com os quais tem relacionamentos comerciais e
compartilha ideologias.
Na era da informação, vale salientar que essa informação quase
nunca é apolítica, e carrega interesses e perspectivas que não são
expostas em sua totalidade ideológica, construindo imagens e for-
mas de entendimento paralelas, veladas, comunicando e dizendo
não simplesmente pelo que é dito e mostrado efetivamente no texto

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SANDRA PENK AL E JORGES MIKLOS

e nas imagens, mas também pelo não dito, pelo não expresso, por
meio de decisões editoriais de forma e conteúdo, do que dizer e do
que não dizer, desta ou daquela maneira, e que muitas vezes passa-
rão despercebidas ao leitor menos críticos e conscientes.
Assim, observa-se que nem sempre os meios de comunicação,
com objetivos capitalistas, políticos e ideológicos coloca a ética
como ponto fundamental. Segundo Muniz Sodré, “na verdade, para
o mercado, pouco importa: a fórmula essencial da moral midiática,
pelo menos até agora, é comprar e vender” (CAPPARELLI; SODRÉ;
SQUIRRA, 2004, p. 63). No mesmo sentido, Jorge Miklos (2015)
observa como certos grupos sociais, através da mídia,

Tornam orgânica a visão de mundo dominante, formulam o pen-


samento hegemônico, criam e expressam a ideologia do merca-
do. O conceito de midiatização que não leva em consideração o
contexto que o produziu, defende abertamente o status quo das
grandes corporações midiáticas, na medida em que faz a apologia
às mídias valorizando como positiva ou favorável para a sociedade
(MIKLOS, 2015).

Nesse sentido, a abordagem da Ecologia da Comunicação (Ro-


mano 1984) traz uma análise mais ampla evidenciando a importân-
cia da cultura, comunicação e as ciências sociais de maneira geral;
propondo um diálogo considerando o tempo e espaço para os seres
humanos, como também o ambiente natural e coletivo.
A proposta de Pross coloca à manipulação de símbolos na
construção de imagens de um grupo social por outro grupo social,
onde a eficácia ou capacidade de penetração dos símbolos – isto
é, precisamente sua força e seu poder simbólico –, dependerá “da
mediação de que se servem, da regularidade de uma mediação rei-
terada, e ainda da capacidade de adaptação de seus portadores às
variáveis configurações sociais” (PROSS, 1974, p. 108).

280
A ESTEREOTIPIA DOS POVOS ORIGINÁRIOS NA MÍDIA HEGEMÔNICA

Concluindo a Ecologia parece ser um caminho seguro para a


garantia das referências sócio culturais da população indígena bra-
sileira, como também de várias minorias segregadas e até certo pon-
to invisíveis no Brasil.

Referências

BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa, Edições 70, 1979.

BETH, H; PROSS, H. Introducción a la ciencia de la comunicación.


Barcelona: Anthropos, 1987.

CAPPARELLI, S.; SODRÉ, M.; SQUIRRA, S. Livro da Compós XII: a


Comunicação Revisitada. Compós, 2004.

CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança. Rio de Janeiro: Zahar,


2013.

MIKLOS, J. O Sagrado nas Redes Virtuais: a experiência religiosa


na era das conexões entre o midiático e o religioso. V CONGRESSO
INTERNACIONAL DE COMUNICAÇÃO E CULTURA – O que custa o
virtual?, São Paulo, 2015.

PROSS, H. A sociedade do protesto. São Paulo: Annablume, 1997.

PROSS, H. Estructura simbólica del poder. Barcelona: Gustavo Gili, 1980.

PROSS, H. La violencia de los símbolos sociales. Barcelona: Anthropos, 1983.

REVISTA EXAME. São Paulo, Editora Abril, 2017. Disponível em: https://
exame.abril.com.br/.

ROMANO, V. Ecologia de la comunicación. Navarra: Argitaletxe, 2004.

ROMANO, V. Introducción al periodismo. Barcelona: Teide, 1984.

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SANDRA PENK AL E JORGES MIKLOS

NOTAS

1 Fonte: <https://exame.abril.com.br/sobre/>. Acesso em 11/12/2017.


2 Conforme apresentação da editora, em <http://grupoabril.com.br/pt/
quem-somos/historia/>.
3 Idem nota anterior.

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HISTÓRIA DIVERSA

1 - Representações do sertão: poder, cultura e identidades


Renato da Silva Dias e Jeaneth Xavier de Araújo (Org.)

2- O Brasil na monarquia hispânica (1580-1668): novas interpretações


Ana Paula Torres Megiani; José Manuel Santos Pérez e Kalina Vanderlei
Silva (Org.)

3- Um filme falado: a história e o mediterrâneo na obra de Manoel de


Oliveira
Ximena Isabel León Contrera

4- A invenção da paz: da República Cristã do duque de Sully à Federação


das Nações de Simón Bolivar
Germán A. de la Reza

5- Paulistas afrodescendentes no Rio de Janeiro pós-abolição (1888-1926)


Lúcia Helena Oliveira Silva

6- História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contem-


porâneos, novas abordagens e debates sobre religiões
André Figueiredo Rodrigues e José Otávio Aguiar (Org.)

7- Manuscritos do Mar Morto: 70 anos da descoberta


Fernando Mattiolli Vieira (Org.)

8- Os Orixás e o Senhor Jesus na casa da Mãe-de-Santo


José Antonio Boareto

9- Reinventando a autonomia: liberdade, propriedade, autogoverno e


novas identidades indígenas na capitania do Espírito Santo, 1535-1822
Vânia Maria Losada Moreira

10- Estudos marítimos: visões e abordagens


Francisco Eduardo Alves de Almeida e William de Sousa Moreira
(Org.)
11- Meio ambiente e neoliberalismo: a Enviromental Protection Agency dos
EUA (1970-1980)
Roger Domenech Colacios

12- Para a glória de Deus, e do Rei? Poder, religião e escravidão nas Minas
do Ouro (1693-1745)
Renato da Silva Dias

13- Em busca de um rosto: a República e a representação de Tiradentes


André Figueiredo Rodrigues e Maria Alda Barbosa Cabreira

14- Imprensa e política: os usos simbólicos da Conjuração Mineira em São


João del-Rei e Ouro Preto (1877-1889)
Augusto Henrique Assis Resende

15- Inconfidência Mineira: negócios, conspiração e traição em Minas Gerais


André Figueiredo Rodrigues

16- Patrimônio religioso e museus em perspectiva: Paraná e Minas Gerais


Cláudia Eliane P. Marques Martinez

17- A vida e o mundo: meio ambiente, patrimônio e museus


Paulo Henrique Martinez

18- Festas: práticas de sociabilidade e diversidade no Brasil


André Figueiredo Rodrigues e Lúcia Helena Oliveira Silva (Org.)

19- Histórias indígenas: memória, interculturalidade e cidadania na


América Latina
Izabel Missagia de Mattos, Chantal Cramaussel, Vânia Losada Moreira
e Ana Paula da Silva (Org.)

20- A escrita de um universo perdido: o percurso da obra de Orlanda


Amarílis
Fabiana Miraz de Freitas Grecco
21- Da praça ao palanque: denúncia e crítica social na poesia popular de
Leandro Gomes de Barros e Patativa do Assaré
Francisco Cláudio Alves Marques e Isabel Cristina Santos de Oliveira
Rodrigues

22- O sagrado no tempo: ensaios sobre história e práticas de religiosidades


André Figueiredo Rodrigues e Charles Nascimento de Sá (Org.)
Ficha Técnica

Formato 14 x 21 cm
Tipologia Minion Pro 11/15
Papel miolo: Pólen soft 80 g/m²
capa: Supremo 250 g/m²

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