Contos - Teste de Avaliação
Contos - Teste de Avaliação
Contos - Teste de Avaliação
GRUPO I
PARTE A
Tirando isto, a vida do Batola é uma sonolência pegada. Agora, para ali está, diante do
copo, matando o tempo com longos bocejos. No estio, então, o sol faz os dias do tamanho
de meses. Sequer à noite virá alguém à venda palestrar um bocado. É sempre o mesmo.
Os homens chegam com a noitinha, cansados da faina. Vão direito a casa e daí a pouco toda
5 a aldeia dorme.
Está nestes pensamentos o Batola quando, de súbito, lhe vem à ideia o velho Rata. Que
belo companheiro! Pedia de monte a monte, chegava a ir a Ourique, a Castro, à Messejana.
Até fora a Beja. Voltava cheio de novidades. Durante tardes inteiras, só de ouvi-lo parecia ao
Batola que andava a viajar por todo aquele mundo.
10 Mas o velho Rata matara-se. Na aldeia, ninguém ainda atina ao certo com a razão que
levou o mendigo a suicidar-se. Nos últimos tempos, o reumatismo tolhera-lhe as pernas,
amarrando-o à porta do casebre. De quando em quando, o Batola matava-lhe a fome; mas
nem trocavam uma palavra. Que sabia agora o Rata? Nada. Encostado à parede de pernas
estendidas, errava o olhar enevoado pelos longes. Veio o verão com os dias enormes,
15 a miséria cresceu. Uma tarde, lá se arrastou como pôde e atirou-se para dentro do pego
da ribeira da Alcaria.
Aos poucos o tempo apagou a lembrança do Rata, o mendigo. Só o Batola o recorda
lá de vez em quando. Mas, agora, abandonou a recordação e o vinho, e vai até ao almoço.
Nunca bebe durante as refeições.
20 Depois, o sol desanda para trás da casa. Começa a acercar-se a tardinha. Batola, que
acaba de dormir a sesta, já pode vir sentar-se, cá fora, no banco que corre ao longo da parede.
A seus pés, passa o velho caminho que vem de Ourique e continua para o sul. Por cima, cru-
zam os fios da eletricidade que vão para Valmurado, uma tomada de corrente cai dos fios e
entra, junto das telhas, para dentro da venda.
25 E o Batola por mais que não queira, tem de olhar todos os dias o mesmo: aí umas quinze
casinhas desgarradas e nuas; algumas só mostram o telhado escuro, de sumidas que estão
no fundo dos córregos. Depois disso, para qualquer parte que volte os olhos, estende-se a
solidão dos campos. E o silêncio. Um silêncio que caiu, estiraçado por vales e cabeços, e que
dorme profundamente. Oh, que despropósito de plainos sem fim, todos de roda da aldeia,
30 e desertos!
Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”, in Conto Português. Séculos XIX-XXI –
Antologia crítica, vol. 3 (coord. Maria Isabel Rocheta, Serafina Martins),
Porto, Edições Caixotim, 2011, pp. 96-97.
A • 2023 • Sentidos 12
273
TESTE DE AVALIAÇÃO 4 (CONTOS)
a. b. c. d.
1. espaço físico 1. recorda 1. humanismo e a bondade 1. mitigados
2. tempo psicológico 2. alimenta 2. isolamento e a solidão 2. reforçados
3. espaço psicológico 3. afasta 3. interesse e egoísmo 3. garantidos
PARTE B
A figura vai-se formando aos poucos como um puzzle gasoso, inquieto, informe. Vê-se
um pedacinho bem nítido e colorido mas que logo se esvai para aparecer daí a pouco, nítido
ainda, mas esfumado. George fecha os olhos com a força possível, tem sono, volta a abri-los
com dificuldade, olhos de pupilas escuras, semicirculares, boiando num material qualquer,
5 esbranquiçado e oleoso.
À sua frente uma senhora de idade, primeiro esboçada, finalmente completa, olha-a
atentamente. De idade não, George detesta eufemismos, mesmo só pensados, uma mu-
lher velha. Tem as mãos enrugadas sobre uma carteira preta, cara, talvez italiana, italiana,
sim, tem a certeza. A velha sorri de si para consigo, ou então partiu para qualquer lugar e
10 deixou o sorriso como quem deixa um guarda-chuva esquecido numa sala de espera. O seu
sorriso não tem nada a ver com o de Gi − porque havia de ter? −, são como o dia e a noite.
Uma velha de cabelos pintados de acaju, de rosto pintado de vários tons de rosa, é certo que
discretamente mas sem grande perfeição. A boca, por exemplo, está um pouco esborratada.
Sem voz e sem perder o sorriso diz:
15 − Verá que há de passar, tudo passa. Amanhã é sempre outro dia. Só há uma coisa, um
crime, que ninguém nos perdoa, nada a fazer. Mas isso ainda está longe, muito longe, para
quê pensar nisso? Ainda ninguém a acusa, ainda ninguém a condena. Que idade tem?
− Quarenta e cinco anos. Porquê?
− É muito nova − afirma. − Muito nova.
20 − Sinto-me velha, às vezes.
− É normal. Eu tenho quase 70 anos. Como estava a chorar, pensei...
Encolhe os ombros, responde aborrecida:
− Não tive desgosto nenhum, nenhum. Um encontro, um simples encontro... © Edições ASA • 2023 • Sentidos 12
Maria Judite de Carvalho, “George”, in Conto português. Séculos XIX-XXI –
Antologia crítica, vol. 3 (coord. Maria Isabel Rocheta, Serafina Martins),
Porto, Edições Caixotim, 2011, p.119
274
TESTE DE AVALIAÇÃO 4 (CONTOS)
a. b. c. d.
1. Gi 1. viu na vila natal 1. desejos 1. envelhecimento e o da solidão
2. Carlos 2. idealizou 2. sentimentos 2. regressar a Amesterdão.
3. Georgina 3. encontrou no comboio 3. medos 3. deixar a vila natal.
PARTE C
A • 2023 • Sentidos 12
275
TESTE DE AVALIAÇÃO 4 (CONTOS)
GRUPO II
PARTE A – LEITURA
Enfrentar o oceano
da vida como um peixe
enfrenta o mar
E
m 1972, Henry Miller, o autor de
livros tão importantes como Trópico
de Capricórnio e a trilogia Rosa-
Crucifica-
5 ção (Sexus, Plexus e Nexus), publicou numa
editora minúscula, e com uma tiragem
de apenas 200 exemplares, um livrinho de
34 páginas intitulado On Turning Eighty (“So-
bre chegar aos 80 anos”). assemelha a uma forma de autismo, com as
10 Entre várias reflexões sobre a bênção que 40 suas insistências e réplicas, ecos e repetições,
representa chegar a tão vetusta idade ainda sempre na mesma toada, que é, no fim de
ativa, ainda física e intelectualmente capaz, contas, a sua voz única, depurada ao fim de
o escritor nova-iorquino escreveu o seguinte: mais de quatro décadas de atividade literária
“Com a idade avançada, os meus ideais, que e mais de três dezenas de romances, uma voz
15 normalmente nego possuir, alteraram-se 45 que por vezes se torna monocórdica, até mo-
definitivamente. O meu ideal é ficar livre de nótona, mas logo se incendeia e reinventa,
ideais, livre de princípios, livre de ‘ismos’ e uma voz que continua a ser, provavelmente,
ideologias. Quero enfrentar o oceano da vida a mais poderosa da literatura portuguesa.
como um peixe enfrenta o mar. Quando era Aos 80 anos, Lobo Antunes, apesar das
20 novo, preocupava-me muitíssimo com o es- 50 cíclicas ameaças de que o próximo livro será
tado do mundo, mas, hoje, embora ainda o último (nunca é), continua a publicar ro-
barafuste e me indigne, contento-me sim- mances a um ritmo quase anual, porque não
plesmente em deplorar o estado das coisas. sabe fazer outra coisa. O velho lugar-comum
Dizer isto pode soar a presunção, mas na ver- da escrita como respiração parece, no seu
25 dade significa que me tornei mais humilde, 55 caso, uma evidência. E talvez o sonho do
mais consciente das minhas próprias limita- Nobel também o empurre, mesmo que não
ções e das limitações dos meus semelhantes. o admita, sendo a espera anual pelo telefo-
Já não tento converter as pessoas à minha nema de Estocolmo um aguilhão. Lembre-
visão das coisas, nem procuro curá-las.” mos que, na semana passada, Annie Ernaux,
30 No passado dia 1 de setembro, também 60 a escritora francesa de 82 anos (feitos, tam-
António Lobo Antunes se tornou octogená- bém, a 1 de setembro), foi galardoada com o
rio – e não é difícil imaginá-lo a subscrever maior dos prémios literários, num momento
as palavras de Miller. Há muito que o autor em que ainda está bastante ativa – em maio
de Fado Alexandrino e Tratado das Paixões lançou a sua última obra, Le Jeune Homme.
© Edições ASA • 2023 • Sentidos 12
35 da Alma parece fechado numa cápsula que 65 Com Nobel ou sem Nobel, Lobo Antunes
o isola do mundo à sua volta, um casulo onde continuará a escrever. E talvez ainda seja ca-
tece incansavelmente a sua prosa narrativa, paz de nos surpreender, quando se calhar já
essa conversa de si para si mesmo, por vezes não o esperaríamos. […]
tão fechada e virada para dentro que quase
se
276
TESTE DE AVALIAÇÃO 4 (CONTOS)
José Mário Silva, in E – A revista do expresso, ed. nº 2607, 14/10/2022, p. 50 (com supressões).
1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.5, selecione a opção correta.
1.1 As referências a Henry Miller, no primeiro parágrafo, pretendem,
A. por contraste, introduzir a reflexão sobre Lobo Antunes.
B. por analogia, introduzir a reflexão sobre o escritor português.
C. sobretudo, destacar a figura de Henry Miller no panorama literário norte-
-americano.
D. especialmente, sintetizar e valorar a vida e a obra do escritor nova-iorquino.
1.2 O uso do itálico em “On Turning Eighty” (l. 7) e das aspas no segmento compreendido
entre as linhas 13-28 justificam-se por se tratar de
A. respetivamente, um título e uma citação.
B. duas citações.
C. um empréstimo e uma citação.
D. um título e uma frase em discurso indireto.
1.3 À medida que foi envelhecendo, Henry Miller
A. tornou-se mais insensível.
B. ficou mais despreocupado com os problemas do mundo.
C. foi perdendo a crença no ser humano.
D. foi ganhando consciência de que não poderá mudar o mundo.
1.4 António Lobo Antunes
A. é um grande escritor, mas parece demasiado egocêntrico.
B. revela uma enorme preocupação com o mundo, na sua obra.
C. produz obras pouco interessantes, mesmo sendo um grande escritor.
D. criou a sua obra à imagem e semelhança da de Henry Miller.
1.5 Segundo o autor do texto,
A. Lobo Antunes nunca ganhará o prémio Nobel, em virtude da idade.
B. a esperança de ganhar o Nobel pode funcionar como um incentivo.
C. o autor luso, em virtude da idade, virá a ganhar o prémio de Estocolmo.
D. o escritor português já não tem condições para escrever.
Coluna A Coluna B
a. A frase “O meu ideal é ficar livre de ideais, livre de 1. compreende uma metáfora e
uma comparação.
princípios, livre de ‘ismos’ e ideologias” (ll. 15-17)
A • 2023 • Sentidos 12 2. engloba uma repetição
b. A frase “Quero enfrentar o oceano da vida como anafórica e uma enumeração.
277
TESTE DE AVALIAÇÃO 4 (CONTOS)
278
TESTE DE AVALIAÇÃO 4 (CONTOS)
a. b. c. d. e.
1. diferenças 1. evita 1. fraca 1. metáfora 1. anáfora
2. semelhanças 2. recusa 2. intensa 2. anáfora 2. antonímia
3. críticas 3. ostenta 3. débil 3. personificação 3. adjetivação
A. Consciência do autor norte-americano de que não pode mudar o estado das coisas.
B. Constatação de que o escritor português é capaz de imprimir novos fôlegos à sua
obra.
C. Publicação de um livro onde Henry Miller reflete sobre si e sobre a sua evolução.
D. Manifestação da certeza de que o escritor português se mantém ativo e é impre-
visível.
E. Perceção de que a obra de Lobo Antunes é cada vez mais centrada em si mesmo.
F. Referência ao Nobel da Literatura como uma provável motivação para Lobo
Antunes.
PARTE B – GRAMÁTICA
1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.6, selecione a opção correta.
1.1 O referente do pronome em “nem procuro curá-las” (l. 28) é
A. “(d)as minhas próprias limitações e das limitações dos meus semelhantes”.
B. “(d)as minhas próprias limitações”.
C. “as coisas”.
D. “as pessoas”.
1.2 As orações introduzidas por “que” (l. 38 e l. 59) classificam-se como orações subor-
dinadas
A. adverbial consecutiva e substantiva completiva, respetivamente.
B. adverbial concessiva e substantiva completiva, respetivamente.
C. substantiva completiva em ambos os casos.
D. adjetiva relativa restritiva e substantiva completiva, respetivamente.
1.3 termo “logo” (l. 46) introduz no discurso a ideia de
A • 2023 • Sentidos 12
A. condição. C. tempo.
279
TESTE DE AVALIAÇÃO 4 (CONTOS)
B. concessão. D. conclusão.
280
TESTE DE AVALIAÇÃO 4 (CONTOS)
GRUPO III
As obras literárias inscrevem-se num determinado tempo e num certo lugar, e, portanto,
através do olhar atento e crítico do seu criador, elas podem constituir-se como retratos da
realidade em que nasceram.
Num texto de opinião bem estruturado, com um mínimo de 200 e um máximo de 300 palavras,
apresente a sua perspetiva pessoal sobre o tema apresentado, fundamentando-a em dois argu-
mentos, cada um ilustrado com um exemplo.
A • 2023 • Sentidos 12
281