Entre A Discursividade e o Estigma Andrea Guerra
Entre A Discursividade e o Estigma Andrea Guerra
Entre A Discursividade e o Estigma Andrea Guerra
DISCURSIVIDADE E O ESTIGMA.
Andrea Máris Campos Guerra
Introdução
Interessa-nos pensar a função do autor articulada ao tema do leitor que sempre na sua
captação interpretativa vai estabelecer um destino, uma reconfiguração para a ação/autoria.
Podemos pensar que, no caso das leituras dos atos infracionais, o sistema judiciário constrói
uma ficcção, a partir de provas, sobre um sujeito criminal. E essa narrativa, contida no
processo criminal pode estabelecer pontos de fixações que aprisionam o sujeito no estigma
de sujeito criminal. Vejamos como a ideia de autor atravessa e é concebida pela filosofia na
análise literária.
Foucault (1969), ao destacar o lugar vazio a partir do qual a função autor é exercida,
apresenta importantes considerações passíveis de serem aplicadas à discussão aqui tratada.
Uma primeira questão destacada por ele diz respeito ao fato de que, no que ele considera
ser a escrita, encontra-se a “abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não pára de
desaparecer” (p. 7). Em nosso caso, se considerarmos que atribui-se ao jovem uma autoria,
e por conseguinte, algo que se faz análogo a escrita no processo judiciário e no percurso
socioeducativo, temos nesse ato um apagamento constante do sujeito por trás do que lhe é
atribuído.
Além disso, ao rastrear, acompanhar e “localizar o espaço assim deixado pela
desaparição do autor” (p. 10), Foucault analisa a distinção e relação entre os pólos de
descrição e de designação nos quais se encontram o nome próprio e o nome do autor. O que
implica em uma “ligação específica” e em uma certa condição do nome do autor que o
distingue do nome próprio. Ao autor são conferidos predicados e todo um âmbito de
sentido e de funcionamento que o revela em certa medida delicado, uma vez que ele
“exerce um papel em relação ao discurso” e “assegura uma função classificatória”, “se trata
de uma palavra que deve ser recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada
cultura, receber um certo status” (Foucault, 1969, p. 13).
Verificamos, em nossas pesquisas, em que medida recai sobre o adolescente o status
e a função classificatória sobre os quais se refere Foucault (1969), conferindo-lhe e
fazendo-o exercer um papel determinado no e pelo discurso. O jovem atua no sentido de
um pertencimento a um código que lhe confere lugar e do qual ele participa ativamente em
usa manutenção. Nenhum de seus elos está fora do domínio discursivo como exercício de
poder. Assim, em nossas experiências relacionadas ao acolhimento de jovens suspeitos de
terem cometido ato infracional, verificamos no relato de profissionais, que, quando levados
sob custódia, adolescentes forneceriam nomes de irmãos ou de conhecidos como forma de
retardar ou driblar o processo de identificação para construção de sua ficha de passagem
policial. Na tentativa de ludibriar o processo de identificação criminal por parte dos
adolescentes,o que se faz manifesto é a insistência ou resistência à instauração de um
determinado discurso que tem a função-autor como característica de seu “modo de
existência, de circulação e de funcionamento (...) no interior de uma sociedade” (p. 14).
Ao fazer valer determinado discurso em torno do jovem a partir da função autor,
Foucault nos ensina que o autor se torna “objeto de apropriação” (p. 14), e em nosso, caso,
apropriação penal por excelência. Para além da questão da apropriação, se em certo período
histórico “o anonimato não constituía dificuldade”, servindo a antiguidade de um texto
literário como “garantia suficiente”, Foucault (1969) aponta que “em nossa civilização,
“não são sempre os mesmos textos que exigiram receber uma atribuição”, já que passam,
em determinado período, a só manter “valor de verdade com a condição de serem marcados
pelo nome do seu autor” (p. 15). Tal condição implica um efeito importante para o recorte
aqui adotado, uma vez que as marcas e índices que certos nomes de autores carregam
podem aqui ser entendidos como importante precondição para o nascimento do sujeito
criminal, como visto em Misse (2010).
o que no indivíduo é designado como autor (ou o que faz de um indivíduo um autor)
é apenas a projeção, em termos sempre mais ou menos psicologizantes, do tratamento que
se dá aos textos, das aproximações que se operam, dos traços que se estabelecem como
pertinentes, das continuidades que se admitem ou das exclusões que se praticam. Todas
essas operações variam de acordo com as épocas e os tipos de discurso (Foucault, 1969, p.
17).
Lacan (seminário 19) no ensina que toda construção subjetiva e social que ensaia
constituir pontos de localização no discurso radica no fato de que, como sujeitos falantes,
operamos em uma lógica não identitária, mas insistimos em nos apoiar nas identidades
fixadas e constituídas, presentes no corpo social. Assim, haveria o Um, universal que
conferiria unidade identitária ao conjunto dos iguais para diferenciá-los dos demais e
constituir-se como índice de localização social, por um lado. Por outro lado, o Um seria, ao
mesmo tempo, condição de designação desse conjunto ao constituir-se como a referência
que o organiza. E, portanto, ele estaria fora do conjunto dos iguais, marcando a diferença
que os constitui. Não estaria, pois, contido no próprio conjunto que organiza. Dito de outro
modo, o adolescente não se reduz ou corresponde à materialidade da infração que cometeu,
ainda que pertença ao conjunto dos adolescentes autores de ato infracional, assim
designados pela Justiça e afirmado pelo discurso social. Por outro lado, a designação autor
de ato infracional cria um índice que organiza o conjunto desses adolescentes e os
determina - já que inclui até aqueles que carregam orégano ou pressupõe periculosidade e
reincidência do jovem negro, morador de aglomerado e do sexo masculino. Ou seja, ela não
contém todos que estão ali, nem contém ela mesma, já que exerce a função mesma de sua
organização.
Verificamos que, ao passar do princípio da não contradição para o princípio da “não
relacão”, Lacan, em ato, põe em operação uma nova lógica que implica o contraditório, o
equívoco, a diferença, como lógica político-discursiva de articulação. O mais seguro de
todos os princípios aristotélicos (Aristóteles, Metafisica, IV, 3, 1005, b, 19-23), “é
impossível o mesmo pertencer e não pertencer simultaneamente ao mesmo e segundo o
mesmo”, não pode ser demonstrado diretamente, salvo por refutação. Essa fragilidade do
universal radicar-se na univocidade do sentido e “não numa intuição de tipo lógica-
predicativa (S não é ao mesmo tempo P e nao P) ou proposicional (se todos os S sao P,
então um S não é não-P)”(Cassin, 2013, p. 15), abre a condição de sua superação, de sua
reinterpretação.
O sentido, enquanto atributo de significação, implica quem fala, implica o outro e
seus preconceitos ou conceitos prévios. E isto está oculto na lógica aristotélica. “O mundo
está estuturado como linguagem, e o ente é feito de sentido” (Cassin, 2013, p 16). Quem
enuncia, no ato de fala, realiza o universal. Por isso, o universal só pode ser verificável a
partir do particular que o afirma ou nega – e não o contrário. Portanto, em nossa análise, o
universal do sujeito criminal não pode ser tomado como condição a priori e transcendental
do que diferencia o adolescente do sistema socioeducativo dos demais. A questão, que se
desloca com Lacan, é a de que a mesma palavra simultaneamente possa ter e não ter o
mesmo sentido (Cassin, 2013, p. 15). Daí a abertura a reinterpretações, no lugar onde
poderíamos, por segurança, conforto ou covardia, fixar um sujeito. Nosso engano é tomar o
sujeito pelo signo que forjamos em seu lugar.
Em muitos casos, ocorre, como tentamos sustentar neste trabalho, que o esforço em
traduzir o outro torne-se um forte estigma social, mesmo uma sujeição, reduzindo a
experiência deste outro a um rótulo que reitera e institucionaliza hierarquias. Se o
adolescente que cometeu algum ato infracional é fixado na identidade de sujeito criminal, a
possibilidade de apreensão da diferença e a abertura para novos modos de subjetivação
deste adolescente é impossibilitada. Assim percebemos que é preciso pensar saídas e
alternativas que considerem a tríade autor-obra-leitor de uma perspectiva que suporte a
alteridade enquanto diferença em relação a um.
Neste sentido, outra leitura acerca da questão do autor que se impõe na presente
discussão diz respeito à perspectiva analítica, como destacada por Tfouni (2001), que
afirma que "o sujeito ocupa a posição de autor quando retroage sobre o processo de
produção de sentidos, procurando 'amarrar' a dispersão que está sempre virtualmente se
instalando, devido à equivocidade da língua" (p. 3). A proposta conceitual da autora, que
busca relacionar o conceito de autoria com a ideia de deriva, enuncia uma novidade no
cenário de discussão na medida em que confere ao autor a possibilidade de "conter a deriva
de sentidos e subverter o significado naturalizado" (p. 73). A partir então das habilidades de
contenção e subversão conferidos ao autor, sinaliza-se uma dimensão radicalmente singular
presente no exercício autoral, que se presta, de alguma forma, a dar um contorno pessoal à
produção, uma vez que, como afirma Tfouni (2008), "o aparecimento de uma deriva
possível não deve ser creditado ao acaso, mas antes a algo relacionado com a verdade do
sujeito: o seu sintoma" (p. 74), seja ele de um sujeito ou de uma sociedade.
As constatações da autora nos servem aqui de provocação no âmbito de análise que
nos propomos a investigar, ao nos fazer refletir sobre em que medida o ato de designação
do "autor" de ato infracional a um jovem antecipa a este sujeito uma função a qual ele ainda
não aquiesceu, mas que já investe a expectativa de que ele assim o faça, ou até mesmo
pressupoe que já o tenha feito. Se "a retroação ao já-dito e a amarração deste através de
escolhas lexicais configuram pontos em que o autor intervém" (p. 74), o estatuto de autoria
estaria no horizonte de uma resposta a ser produzida por retroação, e não no ponto de
entrada no sistema a partir de um ato infracional. Abreviar a atribuição de autor torna-se
então, potencialmente, um atalho perigoso, ao portar a possibilidade de cristalizar um
estigma sob o rótulo de autor, imbuído e aprisionado em uma discursividade exclusiva (e
excludente) que restringe verdadeiras possibilidades de escrita de autoria, ao invés de
suscitá-las. Atentarmos para o fato de que o autor pode servir de rótulo para um estigma
consolidado, ou a mera corporificação de uma função classificatória dentro de uma lógica
discursiva que des-autoriza respostas seja talvez um passo importante para empreender o
exigido ato de “retorno às origens" que deve então "redescobrir essa lacuna e essa falta" em
torno das quais algo de uma autoria possa de fato ser constituído.
No interior do sistema socioeducativo, esse ato pode ser visualizado na ação de um
diretor de segurança de uma casa de semiliberdade de Belo Horizonte. O diretor revela que
no acolhimento do adolescente, faz-se necessário perguntar sobre o jovem, seu nome e sua
história e, não sobre o ato infracional. Na acolhida do adolescente, o que deve estar no
centro na questão é o sujeito e não o ato infracional. Assim também, em uma audiência
preliminar, uma juíza pode perguntar a um jovem acerca das lágrimas que têm tatuadas no
rosto e ler nessa escrita um conflito familiar, decidindo por ciclos restaurativos, ao invés de
uma medida socioeducativa.
E fora do sistema socioeducativo, uma psicóloga pode cumprimentar um jovem,
negro e homem, que à meia noite caminha em direção a seu carro na rua, ao invés de temê-
lo ou de se esquivar dele. Assim também, uma reportagem sobre o sistema socioeducativo
pode tratar de experiências bem-sucedidas e não apenas dos crimes com requintes de
crueldade. Politicamente, podemos pautar a redução da maioridade penal e elucidar a
ausência de informação ou desfazer os mitos que circundam o discurso a favor da
menoridade. Como podemos, nos meios científicos, descobrir em pesquisas que, por trás da
ausência do pai, desvela-se uma rotina de guerrilha urbana, de estado de exceção, que
culmina na alta taxa de mortalidade juvenil do jovem negro de sexo masculino.
Nada disso previne ou impede um ato infracional, mas certamente desloca termos e
suspende sentidos onde a univocidade poderia aniquilar a potência da escrita do autor, seja
ele o jovem, seja ele o juiz, seja ele a mídia. É fundamental quebrar os estigmas que
rotulam e cristalizam o adolescente na posição de sujeito crimina. Daí a importância de o
sujeito tratar essas designações. E, na outra mão dessa via, questionarmos, junto ao corpo
social e discursivo, como se pode abrir espaços de interpretação para que um corpo, uma
práxis ou um discurso não sejam etiquetados a uma produção em série que os alienam em
formas conhecidas e, por isso, aparentemente mais seguras para figurarem contra nossos
mais primários temores.
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ESTIGMA E MARCA : COR???
Os estigmas: a deterioração da identidade social DE Zélia Maria de Melo Profa. Adjunta da
Universidade Católica de Pernambuco. Mestre em Antropologia e Doutora em Psicologia,
Universidade de Deusto, Bilbao - Espanha