DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx (Pesquisã¡vel)

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JACQUES DERRIDA

Espectros de Marx
O Estadodadívida, o trabalho
do luto e a nova Internacional

TRADUÇÃO
Anamaria Skinner

RELUME géts DUMARÁ


Título original: Spectres de Marx — L'État de la dette,
le travail du deuil et la nouvelle Internationale.
O Copyright 1993, Éditions Galilée

O Copyright da tradução, 1994


DUMARÁ DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LTDA.
Rua Barata Ribeiro, 17 — sala 202
22011-000 — Rio de Janeiro, RJ
tel.: (021) 542-0248 fax: (021) 275-0294
Sumário
Revisão
Sandra,Paiva
Henrique Tarnapolsky

Editoração
Carlos Alberto Herszterg

Capa
Gustavo Meyer
Exórdio 9

1. Injunções de Marx 15

2. Conjurar — o marxismo 73

3. Desgastes (quadro de um mundo sem idade) 107


CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacionaldos Editores de Livros, RJ.
4. Em nome da revolução, a dupla barricada
Derrida, Jacques, 1930- (impura “impura impura história de fantasmas”) 131
D48e Espectros de Marx:o estado da dívida, o trabalho
do luto e a nova Internacional / Jacques Derrida; tra-
dução de Anamaria Skinner. — Rio de Janeiro: Relu- 5. Aparição do inaparente:
me-Dumará, 1994. a “escamoteação” fenomenológica 169
|
Tradução de: Spectres de Marx
1. Marx, Karl, 1818-1883. 2. Comunismo.
3. Pós-comunismo. 1. Título.
CDD - 335.4
94-0917 CDU - 330.85

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada


desta publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial,
constitui violação dalei 5.988.
Um nome por um outro, uma parte pelo todo: poder-se-á sempre
tratar a violência histórica do apartheid como uma metonímia. Em
seu passado como em seu presente. Segundo diversas vias (conden-
sação, deslocamento, expressão ou representação), poder-se-ão
sempredecifrar por meio de sua singularidadetantas outras violên-
cias em andamento. Ao mesmo tempo parte, causa, efeito, sintoma,
exemplo, o que lá ocorre traduz o que tem lugar aqui, sempre aqui,
onde quer que se esteja e que se olhe, o mais próximo de si. Respon-
sabilidade infinita, desde então, repouso inadmissível para todas as
Na origem deste livro, uma conferência pronunciada em duas formas da reta consciência.
sessões, nos dias 22 e 23 de abril de 1993, na Universidade da Mas se não há-de falar nunca do assassinato de um homem como
Califórnia (Riverside). Esta conferência abria, então, um simpó- de uma figura, nem mesmo de uma figura exemplar em uma lógica
do emblema, uma retórica da bandeira ou do martírio. A vida de um
sio internacional, organizado por Bernd Magnus e Stephen Cul-
homem, única assim como sua morte, sempre será mais do que um
lenberg, com um título brincalhão e ambíguo, “Whither mar-
paradigmae outra coisa que não um símbolo. E é isto mesmo que um
xism?”: “Para onde vai o marxismo?”, é certo, mas também,
nome próprio sempre deveria nomear.
sub-repticiamente, “O marxismo está perecendo (wither)”º E no entanto. E no entanto, guardando isso na memória, e recor-
Ampliado, verificado, este texto guarda, contudo, a estrutura rendo a um certo nome comum, que não é qualquer nome comum,
argumentativa e a forma oral da conferência. Suas notas foram lembro que se trata de um comunista enquanto tal, um comunista
acrescentadas a posteriori, evidentemente. Alguns desenvolvi- como comunista, que um imigrante polonês e seus cúmplices, todos
mentos novos aparecem entre colchetes.
$g JACQUES DERRIDA

os assassinos de Chris Hani, mataram, há alguns dias, no dia 10 de


abril. Os assassinos declararam que se pegaram com um comunista.
Em seguida, tentaram interromper negociações e sabotar uma de-
mocracia em andamento. Este herói popular da resistência contra o
apartheid afigurou-se perigoso, ao que parece, e subitamente intole-
rável, no exato momento em que, decidindo dedicar-se novamente a
um partido comunista minoritário e eivado de contradições, renun-
ciou a altas responsabilidades no CNA,e talvez a desempenhar um
Exórdio
papelpolítico oficial, até mesmo governamental, em um país liberto
do apartheid.
Permitam-me reverenciar a memória de Chris Hani e dedicar-lhe
esta conferência. '

Alguém, vocês ou eu, se adianta e diz: eu queria aprender a viver


enfim.
Mas,por que enfim?
Aprender a viver. Estranha palavra de ordem: Quem pode dar
lição? A quem? Queisto sirva de lição, mas a quem? Servirá, alguma
vez? Saber-se-á alguma vez viver,e, primeiramente, o que quer dizer
“aprender a viver”? E por que “enfim”?
Isoladamente, fora do contexto — mas, um contexto sempre
permanece aberto, portanto,falível e insuficiente —, esta palavra de
ordem sem frase forma um sintagma quase ininteligível. Até que
ponto,aliás, essa locução idiomática se deixa traduzir?!

1. Apprendre à vivre à quelqu'un, segundo o “Thesaurus de modos de dizer


antigos e novos”(Les usuels de Robert), significa “constituir-se numa severa
lição para alguém (quando o sujeito é um nome de coisa); punir, castigar
(com um nome de pessoa como sujeito).” A idéia de base é a “lição”
assimilada à “punição”, o que é revelador, segundo Robert, “da natureza
sádica do ensino na sociedade latino-cristã [...] que teria pervertido profun-
damente o ideal socrático.”
Para mantermo-nos fiéis a essa “idéia de base”, fizemos oscilar a tradu-
10 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx u

Locução magistral, contudo — ou por isso mesmo. Pois, na boca e morte, só se há-de valer de algum fantasma.Seria preciso, então,
de um mestre, este fragmento de palavra de ordem sempre dirá dar lição aos espíritos. Mesmoe antes de tudoseisto, o espectral, não
alguma coisa sobre a violência. Vibra como umaflecha, na destreza existe. Mesmoe antes de tudo se isto, sem substância nem essência
de uma aptidão irreversível e dissimétrica, a que passa, o mais das nem existência, não está jamais presente enquanto tal. O tempo do
vezes, de paia filho, do mestre ao discípulo ou do senhorao escravo “aprendera viver”, um tempo sem presente tutor, consistiria nisto, O
(“vou te dar uma boalição, eu mesmo”). Tal aptidão vacila, então: exórdio nos encaminhapara isto: aprendera viver com os fantasmas,
entre a aptidão como experiência (aprendera viver não é precisamen- no encontro, na companhia ou no corporativismo, no comércio sem
te a experiência?), a aptidão como educação e a aptidão como comércio dos fantasmas. A viver de outro modo, e melhor. Não
treinamento. melhor, mais justamente. Mas com eles. Não há estar-com o outro,
Masaprendera viver, aprender por si mesmo, sozinho, ensinar a não há socius sem este com que, para nós,torna o estar-com em geral
si mesmoa viver (“eu queria aprender a viver enfim”) nãoé, para mais enigmático do que nunca. E este estar-com os espectros seria
quem vive, o impossível? Não vem ser isto mesmo quea lógica não também, não somente, mas também, uma política da memória, da
permite? Viver, por definição,isto não se aprende. Não por si mesmo, herança e das gerações.
da vida pela vida. Somente do outro e pela morte. Em todo caso, do Se me apresto a falar longamente de fantasmas, de herança e de
outro no limite da vida. Tanto no limite interno quanto no (limite) gerações, de gerações de fantasmas, ouseja, de certos outros que não
externo,trata-se de uma heterodidática entre vida e morte. estão presentes, nem presentemente vivos, nem para nós, nem em
Nada mais necessário, no entanto, do que esta sabedoria. Trata-se nós, nem fora de nós, é em nomedajustiça. Da justiça onde ela ainda
da ética mesma: aprender a viver — porsi só, por si mesmo. A vida não está, ainda nãoestá presente; aí ondeela não está mais, entenda-
não sabe viver de outro modo. E faz-se outra coisa, em tempo algum, se, aí ondeela não está mais presente, e aí onde ela nunca será, não
senão aprendera viver? Estranho compromisso para quem está vivo, mais do quea lei, redutível ao direito. É preciso falar do fantasma,
supostamente vivo, uma vez que tal compromisso é, ao mesmo até mesmo ao fantasma e com ele, uma vez que nenhuma ética,
tempo, impossível e necessário: “Gostaria de aprender a viver.” Não nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível, pensável e
tem sentido e não podeserjusto se não se explicar com a morte. Com
Justa, sem reconhecer em seu princípio o respeito por esses outros
a minha e com a do outro. Entre vida e morte, portanto, eis, na
que não estão mais ou por esses outros que ainda não estão aí,
realidade,o lugar de umainjunção sentenciosa que semprefinge falar
presentemente vivos, querjá estejam mortos, quer ainda não tenham
comoo justo.
nascido. Justiça alguma — não digamoslei alguma, e mais uma vez
O quese segue avança como um ensaio na noite — no desconhe-
lembro que não falamos aqui do direito! — parece possível ou
cido do que deve ficar por vir —, uma simples tentativa, pois, para
analisar com alguma consegiiência tal exórdio: “Eu queria aprender
a viver. Enfim.” Enfim, ora.
Isto só pode acontecer, se isto se há-de fazer, aprendera viver, 1 Sobre umadistinção entre justiça e o direito. sobre a estranha dissemetria
entre vida e morte. Nem na vida nem na morte apenas. O que se passa queafeta a diferença c co-implicação entre esses dois conceitos, e certas
consegiiências que se seguem (particularmente quanto a umacerta indes-
entre dois, e entre todos os “dois” que se queiram, como entre vida
construtibilidade da “justiça” — mas outros nomes cabem igualmente) que
me permitam remeter a “Force of law, “The mystical foundation of authoni-
ty” (em Desconstruction and the Possibility of Justice, tr. M. Quaintance,
ção desta expressão,da tradução literal — “aprender a viver” —, indispen- ed. D. Cornell. M. Rosenfeld, D.G. Carlson, Routledge. Nova York. Londres,
sável à economia do texto derridiano, às expressões “que isto lhe sirva de 1992. Em alemão, Gesetzeskrafi, “Der mystiche Grund der Amtoritãt?” tr. A.
lição”e “dar umaboaliçãoa alguém”. (N.T.) Garcia Diittnann, Suhrkamp. 1991). No prelo, edições Galilée, 1994.
12 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 13

pensável sem princípio de alguma responsabilidade, para além de te, estamos nos interrogando sobre este instante que não é dócil ao
todo presente vivo, nisto que desajunta o presente vivo, diante dos tempo, pelo menos ao que assim chamamos. Furtivo e intempestivo,
fantasmas daqueles que já estão mortos ou ainda não nasceram, o aparecimento do espectro não pertence a este tempo, ele não dá
vítimas ou não das guerras, das violências políticas ou outras, dos tempo, não este: “Enter the Ghost, exit the Ghost, re-enter the
extermínios nacionalistas, racistas, colonialistas, sexistas ou outros, Ghost" (Hamlet).
das opressões do imperialismo capitalista ou de todas as formas do Isso se assemelha a um axioma, mais precisamente, a um axioma
totalitarismo. Sem essa não-contemporaneidade a si do presente sobre a axiomática exatamente, a saber, sobre alguma evidência
vivo, sem isto que secretamente o desajusta, sem essa responsabilida- supostamente indemonstrável acerca do que tem preço, valor, quali-
de e respeito pela justiça com relação a esses que não estão presen- dade (axia). Assim como, e sobretudo, acerca da dignidade (por
tes, que não estão mais ou ainda não estão presentes e vivos, que exemplo, do homem como exemplo de um ser finito e racional),
sentido teria formular-se a pergunta “onde?”, “onde amanhã?” acerca dessa dignidade incondicional (Wiirdigkeir) que Kant elevava
(“whither?"”. exatamente acima de toda economia, de todo valor comparado ou
Esta pergunta chega, caso chegue,e questiona sobre o que virá no comparável, de todo preço de mercado (Marketpreis). Este axioma
por vir. Voltada para o porvir, indo em sua direção, vem também daí, pode chocar. E a objeção não se faz esperar: um dever de justiça
provém do porvir. Deve, portanto, exceder toda presença como compromete, finalmente, para com quem? E ainda que fosse para
presença a si. Ao menos,só deve possibilitar essa presença a partir além dodireito ou da norma, para com quem e com o quê, senão para
do movimento de algum desajuntamento, disjunção ou despropor- com a vida de um ser vivo? Existe, em tempo algum, justiça, com-
ção: na inadequação a si. Ora, se esta pergunta, já que ela vem até promisso de justiça ou responsabilidade em geral que tenha de
nós, não pode decerto vir senão do futuro (whither? Para onde responder porsi (por si, vivo) perante outra coisa, em últimainstân-
iremos, amanhã” Para ondevai, por exemplo, o marxismo? Para onde cia, que não seja a vida de um ser vivo, quer se a entenda, como vida
iremos com ele?), o que se mantém diante dela deve também prece- natural ou" como vida do espírito? Certamente. A objeção parece
dê-la como sua origem: antes dela. Mesmo se do porvir é a sua irrefutável. Mas o irrefutável supõe que essa justiça conduza a vida
para além da vida presente ou de seu estar-presente efetivo, de sua
procedência, este porvir deve ser, assim como toda procedência,
efetividade empírica ou ontológica: não em direção a uma morte, mas
absolutamentee irreversivelmente passado. “Experiência” do passa-
em direção a uma sobre-vida, a saber, um traço com relação ao qual
do como porvir, um e outro absolutamente absolutos, para além de
vida e morte seriam somentetraçose traços de traços, uma sobrevida
toda modificação de um presente qualquer. Se esta é possível e se
cuja possibilidade vem antecipadamente desajuntar ou desajustar a
devemos levá-la a sério, a possibilidade desta pergunta, que não é
identidadea si do presente vivo. Espíritos. Épreciso contar com eles.
talvez mais uma pergunta e que estamos chamando aqui de justiça,
Não se pode não dever, não se pode não poder contar com eles, que
deve conduzir para além da vida presente, da vida como minha vida
são mais de um: 0 mais de um.
ou nossa vida. Em geral. Pois será a mesma coisa para o “minha
vida” ou “nossa vida” amanhã,a dos outros, como foi o caso ontem,
para outros outros: para além, portanto, do presente vivo em geral.
Ser justo: para além do presente vivo em geral — e de seu simples
reverso negativo. Momento espectral, um momento quenão pertence
mais ao tempo, caso se compreenda debaixo desse nome o encadea-
mento das modalidades do presente (presente passado, presente
atual: “agora”, presente futuro). Estamos questionandoneste instan-
CAPÍTULO 1

Injunções de Marx

Exergo
“The time is out ofjoint”
(Hamlet)

Hamlet[...]: Sweare
Ghost (Beneath): Sweare [They swear]
Hamlet: Rest,rest, perturbed Spirit!
So Gentlemen, with all my loue I doe commend meto you;
And what so poore a man as Hamlet is,
Doc t'express his loue and friending to you,
God willing shall not lacke:Let us goe in together,
And still your fingers on yourlippes I pray,
The timeis out of ijoynt: Ob cursed spight,
That ever I was bome to set it right.
Nay, comelet's goe together [Exeunt)
(Ato E, cena V)

Hamlet[...]: Jurai
O espectro, debaixo da terra: Jurai [Eles juram)
Hamlet: Acalma-te, acalma-te, espírito inquieto.
Assim cavalheiros
Com toda minha amizade eu me recomendoa vós.
E tudo que puder fazer um homem pobre como Hamlet
Para mostrar-vos seu amore suafidelidade
Sendo vontade de Deus, será feito. Entremosjuntos,
E conservai, sempre, o dedo nos lábios, é o que vos peço
O mundoestá fora dos eixos. Oh! maldita sorte...
Por que nasci para colocá-lo em ordem!
Mas, vinde, entremosjuntos.
traduzido por F. Carlos de Almeida
Cunha Medeiros e Oscar Mendes
Agora os espectros de Marx. (Mas agora sem conjuntura. Um agora
desajuntado ou desajustado, “out ofjoint”, um agora desencaixado
que sempre,corre o risco de nada manter junto, na firme conjunção
de algum contexto, cujas bordas seriam ainda determináveis.)
Os espectros de Marx. Por queesse plural? Haveria mais de um?
Mais de um, isso podesignificar uma multidão, quando não massas,
-a horda ou a sociedade, ou então uma população qualquerde fantas-
mas com ou sem povo, tal comunidade com ou sem chefe — mas
também o menos de um da pura e simples dispersão. Sem reunião
alguma possível. Depois, se o espectro sempre é animado por um
espírito, pergunta-se quem se arriscaria a falar de um espírito de
Marx, ou, ainda mais seriamente, de um espírito do marxismo. Não
somente para predizer-lhe hoje um futuro, como também para invo-
car a sua multiplicidade ou, mais seriamente ainda, a sua heteroge-
neidade.
Faz mais de um anoque eu havia escolhido nomear os “espectros”
pelo seu nome a partir do título dessa conferência de abertura.
“Espectros de Marx”, o nome comum e o nome próprio estavam,
portanto, impressos, já estavam nocartaz quando, bem recentemente,
reli o Manifesto do partido comunista. Confesso-o envergonhado:
18 JACQUES DERRIDA
Espectros de Marx 19

não o fazia há décadas — isto deve, de fato, trair alguma coisa. Eu ocupado a domesticidade da Europa não tona o hóspede menos
bem sabia quenele um fantasmaesperava,e desde a abertura, desde estrangeiro. Mas não havia dentro, não havia nada dentro antes dele.
o correr da cortina. Ora, descobri há pouco, na verdade lembrei-me, O fantasmático deslocar-se-ia como o movimento dessa história. A
o quedevia obsidiar minha memória: o primeiro nome do Manifesto, obsessão caracterizaria, de fato, a existência da Europa. Abriria o
e no singular desta vez, é “espectro”: “Um espectro ronda! a Europa espaço e a relação a si do que, ao menos desde a Idade Média, é
— o espectro do comunismo.” chamado deste modo: a Europa. A experiência do espectro,eis aí
Exórdio ou incipir: esse primeiro nome abre, portanto, à primeira como,conjuntamente com Engels, Marx terá também pensado, des-
cena do primeiro ato: “Ein Gespenst geht um in Europa — das crito ou diagnosticado uma determinada dramaturgia da Europa mo-
Gespenst des Kommunismus.” Como em Hamlet, o príncipe de um derna,principalmente a de seus grandes projetos unificadores. Seria
Estado apodrecido, tudo começa pelo aparecimento do espectro. preciso mesmo dizer queele a representou ou encenou. Na sombra
Mais precisamente, pela espera deste aparecimento. A antecipação é de uma memória filial, Shakespeare terá frequentemente inspirado
ao mesmo tempo impaciente, ansiosa e fascinada: isso, a coisa (this essa teatralização marxiana. Mais tarde, mais próximo de nós, mas
thing) terminará por chegar. A aparição virá. Ela não pode tardar. segundo a mesmã genealogia, no ruído noturno de sua concatena-
Comotarda. Com maior exatidão ainda, tudo se abre na iminência de ção, rumordos fantasmas encadeados aos fantasmas, um outro des-
uma re-aparição, mas da reaparição do espectro como aparição pela cendente seria Valéry. Shakespeare qui genuit Marx qui genuit Va-
primeira vez na peça. O espírito do pai vai retomar e em pouco tempo léry (e alguns outros).
lhe dirá “Lamthy Fathers Spirit” (ato I, cena V), mas aí, no começo Mas o que se produz entre essas gerações? Uma omissão, um
da peça, ele retoma, se assim podemos dizer, pela primeira vez. estranho lapso. Da, depois fort, exit Marx. Em A crise do espírito
Trata-se de uma premiêre, a primeira vez em cena. (1919) (“Nós, civilizações, nós sabemos agora que somos mortais...
Primeira sugestão: a obsessão é histórica, certamente, mas ela não etc.””), o nome de Marx aparece uma só vez. Ele se inscreve,eis o
data, nem nunca se deixa docilmente datar, na cadeia dos presentes, nome de um crânio por vir entre as mãos de Hamlet:
dia após dia, segundo a ordem instituída de um calendário. Intempes- “Agora, em um imenso terraço de Elsinor, que vai de Basiléia até
tiva, ela não chega, não sobrevém, um dia, à Europa, comose esta, Colônia, próximo às areias de Nieuport, aos pântanos do Soma, às
em um determinado momento de sua história, viesse a sofrer de um gredas da Champanha, aos granitos da Alsácia — o Hamlet europeu
certo mal, como se houvesse deixado habitar por dentro, ou seja, olha uns milhares de espectros. Ele é, porém, um Hamletintelectual.
obsidiar por um hóspede estrangeiro. O fato de ter desde sempre Medita sobrea vida e a morte das verdades. Tem por fantasmas todos
os objetos de nossas controvérsias; sente remorso portodosostítulos
de nossa glória [...]. Caso segure um crânio, é um crânio ilustre.
1, Un spectre hante 1 Europe. Esclarecemos que, embora estejamostraduzindo Whose was it? — Este aquifoi Leonardo [...]. E este outro crânio é o
desdeo francês,é a formaverbal geht seguida de wm, do original alemão que de Leibniz, que sonhou com a paz universal. E este aqui foi Kantqui
está sendotraduzida, em português, por rondar, e não o verbo hanter. Não genuir Hegel, qui genuit Marx, qui genuit... Hamlet não sabe ao certo
discutiremos, aqui, as acepções possíveis para hanter e hantise, pois estas
o quefazer com todosesses crânios. Masseele os abandonar! ... Será
são, em parte, o tema deste livro. Limitaremo-nosa sugerir que, embora os
dicionários francês-português distinguam duas acepções para hanter (1) fre- que deixará de ser ele mesmo?”!
quentar; (2) obsedar, obsidiar; seria preciso dizer. comofará J. Derrida noutra
parte neste ensaio, que “essa distinção é antes uma co-implicação”. Assim, .
mantivemos o verbo rondar na primeira frase do Manifesto e traduzimos 1 Paul Valéry, La Crise de l'esprit, Bibliothêque de la Pléiade, Gallimard,
hanter por “obsidiar", hantise por “obsessão” e hantologie por “obsidiolo- 1957, t. 1, p. 993. Seria necessário lembrar aqui que a Oeste, perto do cabo
gia”, em outras ocorrências. (N.T.) [cap] da península européia, o reino da Dinamarca por pouco não foi,
20 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx. 21

Mais tarde, em A política do espírito (p. 1031), Valéry acaba de meio de reticências: a que nomeia Marx, no crânio de Kant (“E este
definir o homem a política. O homem: “uma tentativa de criar o que . aqui foi Kan! qui genuit Hegel, qui genuit Marx, qui genuit...”). Por
eu me arriscaria a chamar o espírito do espírito” (p. 1025). Quanto à que essa omissão,a única? O nome de Marx desapareceu. Para onde
política, esta sempre “implica alguma idéia do homem” (p. 1029). foi? Exeunt Ghost and Marx,teria notado Shakespeare. O nome do
Nessa hora, Valéry cita a si mesmo. Reproduz,então, a página sobre desaparecido deveter-se inscrito em outro lugar.
o “Hamlet europeu”;essa que ressaltamos há pouco. Curiosamente, Noquediz, bem como no que esquece de dizer dos crânios e das
com a segurança perdida, mas infalível de um sonâmbulo, só omite, gerações de espíritos, Valéry lembra-nos ao menos três coisas. Estas
então, uma frase, uma única, sem mesmo assinalar a omissão por três coisas dizem respeito justamente a essa coisa a que se chama o
espírito. Desde que se deixa de distinguir o espírito do espectro, ele
toma corpo, encarna-se, como espírito, no espectro. Ou antes, Marx
exatamente com a Inglaterra, o último Estado da resistência de uma certa mesmo o esclarece, chegaremosaté aí, o espectro é umaincorporação
Europa de Maestricht? Não, este corolário sobre a cabeça coroada orientar- paradoxal, o devir-corpo, uma certa forma fenomenal e carnal do
se-ia de preferência para outros lugares. Primeiramente, os lugares de articu- espírito. Ele toma-se, de preferência, alguma “coisa” difícil de ser
lação entre essas proposições e as de L'autre Cap (Minuit, 1991), que
nomeada: nem alma nem corpo, e uma e outra. Pois a came e a
analisava também um tratamento do capital (do chefe e da cabeça), em
particular por Valéry,para reintroduzir a questão da Europa comoquestão do fenomenalidade,eis o que confere ao espírito sua aparição espectral,
espírito — ouseja, à do espectro. E não deixaremosde insistir também, no mas desaparece apenas na aparição, na vinda mesma da aparição ou
que vem a ser o primeiro motivo, uma certa figura da cabeça, se assim se pode no retomo-do espectro. Há desaparecido na aparição comoreaparição
dizer, der Kopfe das Haupt, tal comoesta volta a se imporregularmente, em do desaparecido. O espírito, o espectro não são a mesma coisa,
muitos lugares do corpus de Marx, e entre os mais hospitaleiros ao fantasma. teremos de agudizar essa diferença, mas, quanto ao que eles têm em
De um modo mais geral e mais implícito, o presente ensaio dá continuidade comum, nãp se sabe o que é, o que é presentemente. É alguma coisa,
a encaminhamentos anteriores: de como um- trabalho do luto que seria
justamente,e nãose sabese precisamente isto é,se isso existe,se isso
coextensivo genericamente a todo trabalho (especialmente em Glas, Galilée,
1974); sobre a fronteira problemática entre incorporação e introjeção, sobre responde por um nome e corresponde a uma essência. Não se sabe:
a pertinência efetiva, mas limitada, dessa oposição conceitual, como desta não porignorância, mas porque esse não-objeto, esse presente não
outra que separa o fracasso e o sucesso no trabalho do luto, a patologia e a presente, esse estar-aí de um ausente ou Ge um desaparecido não
normalidade doluto (cf. sobre esses pontos Fors, o prefácio a Le Verbier de pertence mais ao saber. Pelo menosnão mais ao quese acredita saber
U'Homme aux Loups, de N. Abraham c M. Torok, Aubier-Flamarion, 1976, sob o nome de saber. Nãose sabe se está vivo ou morto. Eis aqui, ou
especialmente p. 26 e seguintes, Schibboleth — pour Paul Celan, Galilée,
1986, Feu la cendre, Des Femmes, 1987, De I'esprit, Heidegger et la
eisali, lá longe, uma coisa inominável ou quase: alguma coisa,entre
Question, Galilée, 1987, Mémoires — pour Paul de Man, Galilée, 1988), alguma coisa e alguém, quem quer queseja ou alguém, alguma coisa,
sobre a sobrevivência de um sobreviver que não se reduz nem ao viver nem esta coisa aqui, “this thing”, esta coisa, entretanto, e não uma outra,
ao morrer (“Survivre”, em Parages, Galilée, 1986), sobre a economia da esta coisa que nos olha vem desafiar tanto a semântica como a
dívida e do dom (Donner le temps, Galilée, 1992). Quanto à lógica da ontologia, tanto a psicanálise como a filosofia (Marcellus: Whar,
espectralidade, inseparável da idéia da idéia (da idealização da idealidade ha's this thing appear'd againe tonight? Bamardo: I haue seene
comoefeito de iterabilidade), inseparável do motivo mesmo,não digamos
nothing.”). A coisa ainda está invisível, ela não é nada de visível
mais da “idéia” da desconstrução, fez-se uso dela, de mado o mais das vezes
explícito, em todos os ensaios publicados no curso dos vinte últimos anos, (“I haue seene nothing”), no momento em quese fala dela, e para se
em particular em Do espírito. “Aparição”foi aí também a primeira palavra perguntar se ela reapareceu. Ela ainda não é nada que se possa ver
(“Falarei da aparição [...]"). Tradução brasileira de Constança Marcondes quando se fala dela. Ela não é mais nada que se possa ver quando
César, Editora Papirus. Marcelo fala dela, mas foi vista por duas vezes. E é por isso, para
22 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx a

ajustar a fala à visão, que Horácio, o cético, foi convocado. Ele mais irredutível. Outra sugestão:este algum outro espectral nos olha;
servirá de terceiro e de testemunha (terstis) “[...] if againe this sentimo-nos olhados porele, fora de toda sincronia, antes mesmo e
Apparition come, He may approue our eyes and speak to it”, “a fim para além de qualquer olhar de nossa parte, segundo umaanteriori-
de que possa confirmar nossos olhos / se o espectro voltar, devendo dade (que pode ser da ordem da geração, de mais de uma geração) e
falar com a aparição”. (Ato 1, cena1)! uma dissimetria absolutas, segundo uma desproporção absolutamen-
Esta Coisa que não é uma coisa, essa Coisainvisível entre seus te incontrolável. A anacronia faz a lei aqui. Que nos sintamos vistos
aparecimentos, não a veremos mais em came e osso quando ela por um olhar com que sempre será impossível cruzar,aíestá o efeito
reaparecer. Esta Coisa olha para nós, no entanto, e vê-nos não vê-la deviseira, a partir de que herdamosa lei. Como não vemos quem nos
mesmo quandoelaestá aí. Uma dissimetria espectral interrompe aqui vê, e quem faz a lei, quem liberta a injunção, uma injunção aliás
toda especularidade. Ela dessincroniza, faz-nosvoltar à anacronia. A contraditória; como não vemos quem ordena “jura” (swear), não
isto chamaremosefeito de viseira: não vemos quem nos olha. Embora podemosidentificá-lo com toda certeza; ficamosentreguesà sua voz.
em seu fantasmao rei se assemelhe a si mesmo “comotu te asseme- Aquele que diz “sou o espectro de teu pai” (“I am thy Fathers
lhas a ti mesmo” (“As thou art to thy selfe”), diz Horácio, isso não Spirit"), só podemosacreditar em sua palavra. Submissão essencial-
impede que ele olhe sem ser visto: seu aparecimento o faz parecer mente cega ao seu segredo, ao segredo de sua origem, eis uma
ainda invisível sob sua armadura(“Such was thg very Armour he had primeira obediência à injunção. Ela condicionará todas as outras.
on [...]”). Este efeito de viseira, não voltaremos mais, sem dúvida, a Pode sempretratar-se de algum outro. Um outro sempre pode mentir,
falar disso, ao menos diretamente e com esse nome, mas ele será pode disfarçar-se de fantasma, um outro fantasma pode também
suposto em tudo o que afirmamos, daqui em diante, sobre o espectro fazer-se passar poreste aqui. É sempre possível. Mais adiante, fala-
em geral, em Marx e noutros. Como se esclarecerá mais adiante, a remos da sociedade ou do comércio dos espectros entre eles, pois
partir de 4 ideologia alemã e da explicação com Stimer, o que sempreexiste mais de um. A armadura, esse “traje”, de que nenhuma
distingue o espectro ou a aparição do espírito, ainda que seja do encenação poderá jamais fazer a economia, vemo-la recobrir dos pés
espírito no sentido de fantasma em geral, é uma fenomenalidade à cabeça, aos olhos de Hamlet, o suposto corpo do pai. Não se sabe
sobrenatural e paradoxal, a visibilidade furtiva e inapreensível do se ela faz parte ou não da imagem espectral. Essa proteçãoé rigoro-
invisível ou uma invisibilidade de um X visível, essa sensibilidade samente problemática (problema é também um broguel), pois não
insensível de que fala O capital; voltaremosa referir-nos a ela, com permite que a percepção decida sobre a identidade que se encontra
relação a um certo valor de troca: trata-se também, sem dúvida, da tão firmemente encerrada em sua carapaça. A armadura pode nãoser
intangibilidade tangível de um corpo próprio sem carne, mas sempre outra coisa senão o corpo de um artefato real, umaespécie de prótese
de alguém como algum outro. E de algum outro que não nos adian- técnica, um corpoestranho ao corpoespectral queela veste, dissimu-
taremos em determinar como ego,sujeito, pessoa, consciência, espí- la e protege, mascarando assim até a sua identidade. A armadura não
rito etc. Isso já é o suficiente para distinguir também o espectro, não deixa ver nada do corpo espectral, mas à altura da cabeça e sob a
somente do ícone ou do ídolo, mas também da imagem, do phantas- viseira, permite ao soi-disant pai ver e falar. Fendas aí são prepara-
ma platônico, como do simples simulacro de alguma coisa em geral, das, e ajustadas, permitindo-lhe ver sem ser visto, mas falar para ser
de que está, no entanto,tão próximo e com que compartilha,de outros ouvido. O elmo (helm, o capacete), comoa viseira, além de garantir
pontos de vista, mais de uma feição. Mas isso não é tudo, e não é o uma proteção, encimava o escudo de arma e designava a autoridade
dochefe, comoo brasão de sua nobreza.
Para o efeito de elmo basta que uma viseira seja possível, e que se
1 Tr. F. Carlos de A.C. Medeiros e Oscar Mendes. jogue com gla. Mesmo quandoestá erguida, defuto, sua possibilidade
24 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 25

continua a significar que alguém, sob a armadura, pode, com segu- ontologização, toda semantização — filosófica, hermenêutica ou
rança, ver sem servisto ou sem ser identificado. Mesmo quando está psicanalítica — encontra-se enredada nesse trabalho do luto, mas,
erguida, a viseira permanece, recurso e estrutura disponíveis, sólida enquanto tal, não o pensa ainda; é neste aquém que formulamos aqui
e estável como a armadura, a armadura que cobre o corpo dos pés à a questão do espectro, ao espectro, quer se trate de Hamlet ou de
cabeça, a armadura de que faz parte e a que está presa. Eis o que Marx).É preciso saber. Épreciso sabê-lo. Ora, saberé saber quem e
distingue uma viseira de uma máscara, com que,no entanto, compar- onde, saber de quem é propriamente o corpo e onde este repousa —
tilha esse poder incomparável, talvez a insígnia suprema do poder: pois ele deve permanecer em seu lugar. Em lugar seguro. Hamlet não
poder ver sem servisto. O efeito de elmo não é suspenso quando a pergunta somente a quem tal crânio pertencia (““Whose was it?”,
viseira está erguida. Sua potência nesta hora, a saber, sua possibili- Valéry cita essa pergunta). Exige saber a quem pertence aquele
dade, ressalta somente de modo mais intensamente dramático. Quan- túmulo (“Whose grave's this, sir?"). Nadaseria pior para o trabalho
do Horácio conta a Hamlet que uma figura semelhante a seu pai
do luto do que a confusão ou a dúvida: é preciso saber quem está
apareceu “armado da cabeçaaos pés” (“Arm 'á at all points exactly,
enterrado onde — e é preciso (saber — assegurar-se) que, nisso que
Cap a Pe”), o filho se aflige e interroga. Insiste primeiramente na
resta dele, há resto. Queele se mantenhaaí e não saia mais daí!
armadurae no “da cabeça aos pés” (Hamlet: Arm'd, say you? Both:
2. Em seguida, não se podefalar de gerações de crânios ou de
Arm'd, my Lord. Hamlet: From top to toe? Both: My Lord, from head
espíritos (Kant qui genuit Hegel qui genuit Marx) a não ser sob a
to foote”"). Depois, Hamlet volta-se para sobre a cabeça, O rosto,e,
principalmente, para o olhar sob a viseira. Como se esperasse que, responsabilidadeda língua — e da voz, em todo caso do que marca
sob umaarmadura que o dissimulava e protegia da cabeçaaos pés, o o nome ou substitui (“Hamlet: Thar Scull had a tongue in it, and
fantasma não tivesse exposto nem seu rosto, nem seu olhar, nem, could sing once”).
portanto, a sua identidade (“Hamlet: Then saw you not his face? 3. Enfim (Marx qui genuit Valéry...), a coisa trabalha,quertrans-
Então não lhe pudestes vero rosto? Horácio: O yes, my Lord, he wore forme ousetransforme,quer componhaou se decomponha: o espíri-
his Beauer vp. Como não? A viseira estava erguida”. Ato I, cena IJ). to, o “espírito do espírito” é trabalho. Mas o que é o trabalho? O que
Três coisas decomporiampela análise essa única coisa,espírito ou é seu conceito, se supõe o espírito do espírito? Valéry sublinha-o:
espectro — rei, pois o rei ocupaeste lugar, aquio lugar do pai, quer “Entendo aqui por “Espírito” uma certa potência de transformação
o conserve, tome-o ou usurpe-o,e para além da repetição da rima (por [...Jo espírito [...] trabalha."
exemplo, “The Play's the thing, Wherein Ile catch the Conscience of Portanto, “Whither marxism?”, “Para onde vai o marxismo?”.
the King”). Rei é uma coisa, Coisa é o rei, aí mesmo onde ele se Eis a pergunta que nosé dirigida pelo título deste simpósio. Em que
separa de seu corpo que, contudo, não o deixa (contrato de secessão, tal questão apontaria na direção de Hamlet, da Dinamarca e da
pacto necessário para ter mais de um corpo, ou seja, para reinar, e Inglaterra? Porqueela nos instigaria a seguir um fantasma? Onde?
primeiramente herdar, seja por crime ou eleição, a dignidadereal: o Whither? O que é seguir um fantasma? E se isto significasse ser
corpo — ou 0 cadáver — está com o Rei, junto do Rei, mas o Rei não seguido por ele, sempre, perseguido, talvez em razão da caçada que
está com o corpo. O Rei é umacoisa: “The body is with the King, but lhe fazemos? Aí também o que parece na dianteira, o porvir, revém
the King is not with the body. The King, is a thing”). antecipadamente: do passado, portrás. “Something is rotten in the
Quais são portanto essas três coisas da coisa? state ofDenmark”, declara Marcelo, no momento em que Hamletse
1. Primeiramente, o luto. Não falaremos senão dele. Este consiste
sempre em tentar ontologizar os restos, torná-los presentes, em pri-
meiro lugar em identificar os despojose em localizar os mortos (toda 1 Paul Valéry, Lettre sur la société des esprits, O.C., p. 1139.
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apresta, justamente, em seguir o fantasma (“Ill follow thee”, ato 1, O outro tempo ou a outra cena, desde a véspera da peça, as testemu-
cena IV), “Whither”, logo, este também lhe perguntará: “Where wilt nhas da história temem e esperam um retorno, depois, again and
thou lead me? speak; I'll go no further. Ghost: Mark me [...J Tam thy again, uma ida e vinda (Marcellus: “What! ha's this thing appear'd
Fathers Spirit." againe tonight?” Depois: “Enter the Ghost, Exit the Ghost, Re-enter
Repetição e primeira vez, eis talvez a questão do acontecimento the Ghost"). Questão de repetição: um espectro é sempre um retor-
como questão do fantasma: o que vem a ser um fantasma? O que vem nante. Não se tem meios de controlar suas idas e vindas porque ele
a ser a efetividade ou a presença de um espectro, ou seja, do que começa por retornar. Pensemos também em Macbeth,e recordemos
parece continuar sendotão inefetivo, virtual e inconsistente que um o espectro de César. Após ter expirado,ele retorna. Brutus também
simulacro? Haverá aí, entre a coisa mesma e seu simulacro, uma diz “again” —: “Well; then 1 shall see thee again?" Ghost: — Ay,
oposição que se sustente? Repetição e primeira vez, mas também at Philippi” (ato IV, cenaIN).
repetição e última vez, pois a singularidade de toda primeira vez faz Ora,de fato, tem-se vontade de respirar. Ou de suspirar: depois da
dela também uma última vez. Cada vez, trata-se do acontecimento expiração mesma, pois vai nisso o espírito. Ora, o que parece quase
mesmo, uma primeira vez e uma última vez. Totalmente outro. impossível é sempre falar do espectro, falar ao espectro, falar com
Encenação para um fim da história. Chamemos isto de uma obsidio- ele, logo, e principalmente, fazer ou deixar falar um espírito. E a
logia. Essa lógica da obsessão não seria somente mais extensa e mais coisa parece ainda mais difícil para um leitor, um erudito, um expert,
poderosa do que uma ontologia ou um pensamento do ser (do “to umprofessbr, um intérprete, em resumo, para o que Marcelo chama
be”, supondo-se que em “to be or notto be”esteja em questão ser, de scholar. Talvez para um espectador em geral. No fundo,o último
e nada é menos certo). Ela abrigaria em si, mas como lugares circuns- a quem um espectro pode aparecer, dirigir a palavra ou prestar
critos ou efeitos particulares, a escatologia e a teleologia. Ela as atenção, é à um espectador enquanto tal. No teatro ou na escola. Há
compreenderia, mas incompreensivelmente. Como compreender razões essenciais para isto. Teóricos ou testemunhas, espectadores,
efetivamente o discurso do fim ou o discurso sobre o fim? A extre- observadores,eruditos e intelectuais, os scholars acreditam que basta
midade do extremo poderá alguma vez estar compreendida? E a olhar. Por isso, eles já não se encontram sempre na posição mais
oposição entre 10 be e not to be? Hamlet já começava pelo retorno competente para fazer o que é necessário,falar ao espectro: aí está,
esperado do rei morto. Apóso fim da história, o espírito vem ao revir, talvez, entre tantas outras, umalição indelével do marxismo. Não há
ele figura «o mesmo tempo um morto que revém e um fantasma cujo mais, nunca houve, um scholar capaz de falar de tudodirigindo-se a
retorno esperado se repete, mais e mais. qualquer um, e principalmente aos fantasmas. Nunca houve um
Ah! o amor de Marx por Shakespeare! É bem conhecido. Chris scholar quetivesse verdadeiramente, enquanto tal, lidado com fan-
Hani partilhava da mesma paixão. Acabo de sabê-lo e muito me tasma. Um scholar tradicional não acredita em fantasmas — nem em
agrada esta idéia. Mesmo se Marx cita com mais frequência Timão tudo a que se poderia chamar o espaço virtual da espectralidade.
de Atenas, o Manifesto parece evocar ou convocar, desde sua abertu- Nunca houve scholar que, enquantotal, não acreditasse na distinção
ra, a primeira vinda do fantasma silencioso, o aparecimento do definitiva entre o real e o não-real, o efetivo e o não-efetivo, o vivo e
espírito que não responde, nesse terraço de Elsinor que é então a o não-vivo,o ser e o não-ser (10 be or not to be, conforme a leitura
velha Europa. Pois se essa primeira aparição teatral já caracterizava convencional), a oposição entre o que está presente e o que não está,
uma repetição, ela implica o poder político nas dobras desta iteração por exemplo sob forma de objetividade. Para além dessa oposição,
(“In the samefigure, like the King thar's dead”, diz Bamardo,a partir não há para o scholar senão hipótese acadêmica, ficção teatral,
do momento em que acredita reconhecer a “Coisa”, em seu desejo literatura e especulação. Se nos referíssemos unicamente a essa
irreprimível de identificação). Contando disso que se poderia chamar figura tradicional do scholar, seria preciso, pois, desconfiar aqui do
28 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 29

que se poderia definir como a ilusão, a mistificação ou o complexo aptidão em geral. Eis, em todo caso, alguém bastante louco para
de Marcelo. Este não estava talvez em situação de compreender que esperar desaferrolhar a possibilidade detal aptidão.
um scholar clássico não teria meios de falar ao fantasma. Não sabia Foi, pois, um erro de minhaparte ter afastado da memória o que
o que é a singularidade de uma posição, não digamos de uma posição era mais manifesto do Manifesto. O quenele se manifesta em primei-
de classe comosefazia antigamente, masa singularidade de um lugar ro lugar é um espectro, este primeiro personagem paterno,tão pode-
de fala, de um lugar de experiência e de um lugar de filiação, lugares roso quanto irreal, alucinação ou simulacro, e virtualmente mais
e laçosa partir dos quais, unicamente, podemos nosdirigir ao fantas- eficaz do que o que se chama trangiilamente uma presençaviva. Na
ma: “Thou art a Scholler; speake to it Horatio”, diz ingenuamente, releitura do Manifesto e de algumas outras grandes obras de Marx,
como se participasse de um simpósio. Ele convoca o scholar, o disse, a mim mesmo, que conhecia poucos textos na tradição filosó-
erudito ou o intelectual instruído, o homem de cultura, como um fica, talvez nenhum outro, cuja lição parecesse mais urgente nos dias
de hoje, desde que se leve em conta o que Marx e Engels disseram
espectador quetivesse meios de calcular a distância necessária, ou-
(por exemplo, no Prefácio de Engels à reedição de 1888) sobre seu
encontrar as palavras apropriadas para observar, ou melhor, para
próprio “envelhecimento” possível e sua historicidade intrinseca-
dirigir apóstrofes ao fantasma, ou seja, também para falar a língua
mente irredutível. Que outro pensador, em tempo algum, esteve
dosreis ou dos mortos. Pois, Bernardo acaba de reconhecer a figura
atento para esse fato de forma tão explícita? Quem jamais invocou a
do rei morto, acredita tê-lo identificado, pela semelhança (““Barnar-
transformação, ainda por vir, de suas próprias teses? Não somente
do: In the samefigure, like the King that”s dead. Marcellus: Thou art
por obra dealgum enriquecimento progressivo do conhecimento, que
a Scholler: speaketo it Horatio”). Ele não lhe pede somente quefale
em nada mudaria a ordem de um sistema, mas a fim de levar em
ao fantasma, mas que o chame,que o interpele, que o interrogue, mais
conta, uma outra conta,os efeitos de ruptura ou de reestruturação”? E
precisamente, que questione a Coisa que ele ainda é: “Question it a fim de acolher antecipadamente, para além de toda programação
Horatio”. E Horácio ordena à Coisa que fale, preescreve-lhe duas possível, a imprevisibilidade dos novossaberes, das novas técnicas,
vezes, com um gesto ao mesmo tempo imperioso e acusador. Ordena, das novas distribuições políticas? Nenhum texto da tradição parece
em suma, ao mesmo tempo que conjura (“By heaven I Charge thee tão lúcido quanto à mundialização em andamentona política, quanto
speake![...] speake, speake! 1 Charge thee, speake!”). E se traduz à irredutibilidade do técnico e do midiático na Óptica do pensamento
com efeito frequentemente “I charge thee” por “eu te conjuro”, o mais pensante — e para além da estrada de ferro e dos jornais de
que nos indica um caminho em quese cruzarão maistarde a injunção então, cujos poderes foram analisados de modo incomparável pelo
e a conjuração. Conjurando-o a falar, Horácio quer arrazoar, estabi- Manifesto. E poucos textos foram tão luminosos no que concerne ao
lizar, deter o espectro em sua fala: “(For which, they say, you Spirits direito, ao direito internacional e ao nacionalismo.
oftwalke in death) Speake ofit. Stay, and speake. Stop it Marcellus.” Será sempre um erro nãoler,reler e discutir Marx. Isto é, também
Inversamente, Marcelo talvez antecipasse a vinda, um dia, uma alguns outros — e para além da “leitura” ou da “discussão” acadê-
noite, alguns séculos mais tarde, o tempo não se conta mais aqui da mica. Cada vez mais será um erro, uma falta de responsabilidade
mesma maneira, de um outro scholar. Este seria enfim capaz, para teórica,filosófica, política. Uma vez que a máquina de dogmas e os
além da oposição entre presença e não-presença,efetividade e inefe- aparelhos ideológicos “marxistas”(Estados, partidos, células, sindi-
tividade, vida e não-vida, de pensar a possibilidade do espectro, o catos e outros lugares de produção doutrinária) se encontram em
espectro como possibilidade. Melhor (ou pior), ele teria meios de se curso de desaparecimento, não temos mais desculpas, somente álibis,
dirigir aos espíritos. Saberia que tal aptidão não é somente já possí- para desviar-nos desta responsabilidade. Não haverá futuro sem isto.
vel, mas que esta terá em todos os tempos condicionado, comotal, a Não sem Marx, não há futuro sem Marx, sem a memória e sem a
30 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 31

herança de Marx: em todo caso, de um certo Marx, de seu gênio, de Aindaé noite,trata-se sempre do cair da noite ao longo das “fortale-
um ao menos de seus espíritos. Pois esta será nossa hipótese, ou zas”, sobre os battlements de uma velha Europa em guerra. Com o
antes, nosso parti-pris: há mais de um, deve haver mais de um. outro e consigo mesma.
Entretanto, em meio a todas as tentações a que eu deveria resistir Por quê? Era,já então, a mesma pergunta como pergunta final.
hoje, haveria a da memória: a de contar o quefoi para mim — e para Muitos jovens dos dias atuais (do tipo “leitores consumidores de
os da minha geração, que a têm partilhado ao longo de toda umavida, Fukuyama” ou do tipo “Fukuyama” mesmo) não o sabem, sem
a experiência do marxismo,a figura quase paterna de Marx,sualuta dúvida, suficientemente: os temas escatológicos do “fim da histó-
em nós com outrasfiliações, a leitura dos textos e a interpretação de ria”, do “fim do marxismo”, do “fim da filosofia”, dos “fins do
um mundo em que a herança marxista era — e ainda continua sendo, homem”, do “último homem” etc. eram, nos anos 1950, há quarenta
e, portanto, continuará sendo — absolutamente e de ponta a ponta anos, nosso pão de cada dia. Esse pão de apocalipse,nós o tínhamos
determinante. Não é preciso ser marxista ou comunista para render-se naturalmente na boca, já então, tão naturalmente quanto isto a que
a essa evidência. Todos nós habitamos um mundo, alguns diriam uma denominei a posteriori, em 1980, o “tom apocalíptico em filosofia”.
cultura, que conserva, de modo diretamente visível ou não, numa Qual era a sua consistência? Qual era o seu gosto? Era, por um
profundidade incalculável, a marca desta herança. lado, à leitura ou a análise destes que poderíamos denominar os
Dentre os traços que caracterizam uma certa experiência própria à clássicos dofim. Eles formavam o cânon do apocalipse modemo(fim
minha geração, isto é, uma experiência que terá durado ao menos da História, fim do Homem, fim da Filosofia, Hegel, Marx, Nietzs-
quarenta anos, e que não terminou, eu descaria primeiramente, um che, Heidegger, com o seu codicilo kojeviano e os codicilos de
paradoxo perturbador. Trata-se de umaperturbação do “déjá vu” ou Kojêve mesiho) Era, por outro lado, e indissociavelmente, o que
mesmode um certo “sempre déjà vu”. Esse mal-estar da percepção, sabíamos, ou o que alguns dentre nós, há muito tempo, não escon-
da alucinação e do tempo,o estou recordando em razão do tema que diam mais,do terrortotalitário em todosospaíses do Leste, de todos
nos reúneesta noite: “whither marxism?” Para muitos dentre nós, a os desastres socioeconômicos da burocracia soviética, do stalinismo
pergunta tem a nossa idade. Especialmente para aqueles que,este foi passado e do neo-stalinismo em curso (no atacado, dos processos de
também o meu caso, opunham-se, por certo, ao “marxismo” ou ao Moscou à repressão da Hungria, para limitarmo-nosa esses índices
“comunismo” real (à União Soviética, à Internacional dos partidos mínimos). Tal foi, sem dúvida, o elemento em que o que chamamos
comunistas, e a tudo que se seguia, ou seja, a tantase tantas coisas...), a desconstrução se desenvolveu — e só levando em conta esse
mas entendiam, ao menos, nunca O terem feito a partir de motivações enredamento histórico pode-se compreender alguma coisa desse mo-
conservadoras ou reacionárias, nem mesmo de posições de direita mento da desconstrução, principalmente na França. Desde então,
moderada ou republicana. Para muitos dentre nós, um certo (eu digo, para aqueles com quem partilhei esse tempo singular, essa dupla e
de fato, um certo) fim do comunismo marxista não esperou a desin- única experiência (ao mesmo tempo filosófica e política), para nós,
tegração recente da URSS e de tudo que disso dependia no mundo. me atreveria a dizer, o alarde midiático dos atuais discursos sobre o
Tudoisto começou — tudo isto era mesmo déjà vu, indubitavelmen- fim da história e o último homem parece-se, o mais das vezes, a um
te, desde o começo dos anos 1950. Desdeentão, a pergunta que nos tedioso anacronismo. Ao menos até um certo ponto, que deveremos
reúneesta noite (whither marxism?) ecoa como uma antiga repetição. esclarecer mais adiante. Alguma coisa desse tédio transpira, aliás,
Era esta, mas de modo totalmente diferente, a que se impunha a através do corpo da cultura mais fenomenal nos dias atuais: o que se
muitos desses jovens que éramos àquela época. A mesmapergunta já ouve,se lê e se vê, o que mais se midiatiza nas capitais ocidentais.
havia repercutido. A mesma, certamente, mas de modo totalmente Quanto a estes, que a isso se entregam com o júbilo de um frescor
diferente. E a diferença na repercussão, eis o que ecoa esta noite. juvenil, fazem figura de retardados, um pouco como se ainda fosse
32 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx . 33

possível pegar o último trem após o último trem — e de ainda estar modo ao mesmo tempo discreto e fulgurante, seus enunciados se dão
atrasado para um fim da história. menos como resposta plena a uma questão, que não se medem com
Como se pode estar atrasado para O fim dahistória? Questão de o que, para nós, é preciso responder hoje, herdeiros que somos de
atualidade. Ela é séria, pois obriga a refletir ainda, como o fazíamos mais de umafala, como de uma injunção em si mesma desajuntada.
desde Hegel, sobre o que acontece, e merece o nome de acontecimen- Consideremos, em primeiro lugar, a heterogeneidade radical e
to, após a história; e a se perguntar se O fim da história não é somente necessária de uma herança, a diferença sem oposição que deve
o fim de um certo conceito de história. Aí está, talvez, uma das caracterizá-la, um “disparate” e uma quase justaposição sem dialéti-
perguntas queseria preciso dirigir aqueles que, se me permitem, não ca (o plural do que chamaremos mais adiante os espíritos de Marx).
contentes em estar atrasadospara 0 apocalipse e o último trem dofim, Uma herança não se junta nunca, ela não é jamais una consigo
sem com isso se mostrarem esbaforidos, dão um jeito, além disso,de mesma. Sua unidade presumida, se existe, não pode consistir senão
inflar o peito, na consciência trangiila do capitalismo, do liberalismo nainjunção de reafirmar escolhendo. É preciso quer dizer é preciso
e das virtudes da democracia parlamentar — nome pelo qual desig- filtrar, peneirar, criticar, é preciso escolher entre vários possíveis que
naremos não o parlamentarismoe a representação política em geral, habitam a mesma injunção. E habitam-na de modo contraditório, em
mas as formas presentes, ou seja, em verdade, passadas de um tomo de um segredo. Se a legibilidade de um legado fosse dada,
dispositivo eleitoral e de um aparelho parlamentar. natural, transparente, unívoca,se ela não pedisse e não desafiasse ao
É preciso,para nós, complicar um pouco esse esquema. Devemos mesmo tempo a interpretação, não se teria nunca o que herdar.
adiantar uma outra leitura do anacronismo midiático e da consciência Seríamos afetados por isso como por uma causa — natural ou
trangiúila. Mas, para tornar mais sensível a desestimulante impressão genética. Herda-se sempre um segredo — quediz “leia-me, alguma
de déjà-vu, que correo risco de fazer cair das mãos toda a literatura vezserás capaz”. A escolha crítica pedida por toda reafirmação de
sobre o fim da história e outros diagnósticos semelhantes, só citarei herança diz respeito também, exatamente como a memória,à condi-
(entre tantos outros exemplos possíveis) um ensaio de 1959, cujo ção de finitude. O infinito não pode herdar e não pode ser herdado.
autor havia também publicado um relato já então intitulado, em 1957, A injunção (escolhe e decide no que herdas, dirá ela sempre) não
O último homem. Há, portanto, cerca detrinta e cinco anos, Maurice pode ser una a não ser dividindo-se, rasgando-se, diferindo de si
Blanchot dedica um artigo, “O fim dafilosofia”, a uma boa meia mesma, falando a cada vez diversas vezes — e com diversas vozes.
dúzia de livros dos anos 1950. São todos, e somente na França, Por exemplo:
testemunhos de antigos marxistas ou comunistas. Blanchot escreverá
Em Marx, e sempre vindas de Marx, vimos ganhar força e forma três
mais tarde “Sobre uma abordagem do comunismo” e “As três falas
grandesespécies defalas, que são, todasas três, necessárias, mas separa-
de Marx”.2 das e mais do que opostas: como justapostas. O disparate que as mantém
juntas, designa uma pluralidade de exigências a que, desde Marx, cada
[Gostaria de citar inteiras aqui, para subscrevê-las sem restrições, um que fala, que escreve, não se deixa de sentir submetido, salvo se se
as três páginas admiráveis que levam o título “As três falas de sentirfaltando a tudo. (p. 115, grifo meu).
Marx”. Com o sóbrio brilho de uma incomparável densidade, de
Salvo se se sentir faltando a tudo. O que isto quer dizer? E “desde
Marx”?
1. Maurice Blanchot, La fir de la philosophie, La Nouvelle Revue Française, É verdade que faltar a tudo sempre será possível. Coisa alguma
1º agosto 195P, Ano7,nº 80. jamais poderá dar-nos uma garantia contra esse risco, ainda menos
2, Maurice Blançhot, L'Amitié, Gallimard, 1971, pp. 109-117. contra esse sentimento. E um “desde Marx” continua a designar o
34 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 35

lugar de notificação desde onde estamos engajados. Mas se há tempo desregrado e louco. O mundoestá fora dos eixos, o mundose
compromisso ou notificação, injunção ou promessa, se há este apelo encontra deportado,fora de si mesmo, desajustado. Diz Hamlet. Que
desde umafala que ecoa antes de nós, o “desde” assinala um lugar e abriu deste modo uma dessas fendas, muitas vezes seteiras poéticas
um tempo que nos precedem, sem dúvida, maspara estar tanto diante e pensantes, desde onde Shakespeare terá velado sobre a língua
de nós quanto antes de nós. Desde o porvir, portanto, desde o passado inglesa e, ao mesmo tempo, no mesmo gesto sem precedente, assina-
como porvir absoluto, desde o não-saber e o não-advindo de um do seu corpo com alguma flecha. Ora, quando é que Hamlet nomeia
acontecimento,do quefalta ser(to be): fazer e decidir (o que significa assim a dis-junção do tempo, mas também da história e do mundo,
primeiramente, sem dúvida, o “to be or not to be” de Hamlet — e de a disjunção do andar do tempo,o desajuste de nosso tempo, cada vez
todo herdeiro que,digamos, venhaa jurar diante de um fantasma). Se o nosso? E cpmotraduzir “The timeis out ofjoint"? Uma arrebatante
“desde Marx” designa um por-vir assim como um passado,o passa- diversidade dispersa através dos séculos a tradução de uma obra-pri-
do de um nomepróprio, é que o próprio do nome próprio permane- ma, de uma obra de gênio, de uma coisa do espírito que parece,
cerá sempre porvir. E secreto. Permanecerá por vir não como o agora justamente, engenhar-se. Esperto ou não, um gênio opera, resiste e
futuro do que “mantém junto” o “disparate” (e Blanchot narra o desafia sempre,à semelhança de umacoisa espectral. A obra animada
impossível de um “disparate” que em si mesmo “mantémjunto”; toma-se essa coisa, a Coisa que engenha habitar sem propriamente
resta pensar como um disparate poderia ainda; em si mesmo. manter habitar, ou então, obsidiar, tal qual um incapturável espectro, a
junto, e se se pode alguma vez falar do disparate mesmo, em si memória e a tradução. Uma obra-prima sempre se move, pordefini-
mesmo, de uma mesmice sem propriedade). O quese enuncia “desde ção, à maneira de um fantasma. A Coisa obsidia, por exemplo, ela
Marx” pode unicamente prometer ou lembrar manter junto, numa conversa, habita sem residir, sem jamais aí confinar-se, as numerosas
fala que difere, diferindo não o que ela afirma, mas diferindo exata- versões desta passagem, “The time is out of joint”. Plurais, as
mente pura afirmar, por afirmar justamente, para poder (poder sem palavras da tradução organizam-se; não se dispersam de um modo
poder) afirmar a vinda do acontecimento,seu por-vir mesmo. qualquer. Desorganizam-se também pelo efeito mesmo do espectro,
Blanchot não nomcia aqui Shakespeare, mas não posso entender por causa da Causa que se chama o original e que, como todos os
“desde Marx”, desde Marx, sem entender, como Marx, “desde fantasmas, formula pedidos mais do que contraditórios, até mesmo
Shakespeare”. Manter junto o que não se mantém junto,e o disparate disparatados. Elas se distribuem aqui, ao que parece, em torno de
mesmo, O mesmo disparate, isso não se pode pensar, voltaremos algumas grandes possibilidades. Trata-se de tipos. Em “The timeis
incessantementea referir-nos a isso como à espectralidade do espec- out of.“joint”, time é umas vezes o tempo mesmo,a temporalidade do
to. senão em um tempo do presente deslocado, na junção de um tempo, outras vezes o que a temporalidade toma possível (o tempo
tempo radicalmente dis-junto, sem conjunção assegurada. Não em como história, O correr do tempo, o tempo em que vivemos, os dias
um tempo de junções negadas, quebradas, maltratadas, disfuncionan- de hoje, a época), outras vezes, por conseguinte, o mundo como ele
tes, desajustadas, segundo um dis de oposição negativa e de disjun- vai, nosso mundo hoje, a atualidade: esta onde as coisas vão bem
çãodialética, mas em um temposem junção assegurada nem conjun- (whither) e aquela onde vão de mal à pior, onde apodrecem (whither);
ção determinável. Oque se diz aqui do tempoé válido também, por esta que vai não vai, aquela onde não se vai para trás, nem tampouco
conseguinte, ou porisso mesmo, para a história, mesmoseesta última para adiante, conformese esperaria nos dias de hoje. Time: é o tempo,
pode consistir em consertar, nos efeitos de conjuntura, e se trata aqui assim como é a história e também o mundo. “The time is out ofjoint":
do mundo,a disjunção temporal: “The time is out ofjoint”, O tempo as traduções igualmente se encontram “out ofjoint”. Por corretas e
está desurticulado, demitido, desconjuntado, deslocado,o tempo está legítimas que sejam, independentemente do direito que se lhes reco-
desconcertado, consertado e desconcertado, desordenado, ao mesmo nhece,estão todaselas desajustadas, comoinjustas no desvio que as
36 JACQUES DERRIDA
Espectros de Marx , 37

afeta: dentro de si mesmas, certamente, visto que seu sentido perma- rupção da cidade, o desregramento ou a perversão dos costumes.
nece necessariamente equívoco; em seguida, na relação entre elas, e Passa-se facilmente do desajustado ao injusto. Este é o nosso proble-
portanto, em sua multiplicidade; enfim, ou primeiramente, em sua ma: comojustificar essa passagem do desajuste (valor de preferência
inadequação irredutível à outra língua e ao golpe de gênio do acon- técnico-ontológico afetando uma presença) a uma injustiça que não
tecimento que faz a lei, a todas as virtualidades do original. A seria mais ontológica? E se o desajuste fosse, ao contrário, a condição
excelência da tradução nada pode contra isso. Pior ainda, e nisto da justiça? E se esse duplo registro condensasse seu enigma, exata-
consiste todo o drama, ela só pode agravar ou chancelar a inacessibi- mente, e potencializasse sua superpotência no que confere sua força
lidade da outra língua. Alguns exemplos franceses, entre os mais inaufita à fala de Hamlet: The time is out ofjoint? Não nos surpreen-
notáveis, os mais irrepreensíveis e os mais interessantes: damos com isso, o Oxford English Dictionnary cita esta frase de
1. “Le temps est hors de ses gonds”! (O tempo está fora de seus Hamlet como exemplo da inflexão ético-política. Discernimos, nesse
gonzos?). A tradução de Yves Bonnefoy parece a mais fiel. Ela exemplo notável, a necessidade de que Austin falava: um dicionário
mantém aberta e suspensa, ao que parece, como na epoguê desse de palavras não pode nunca dar definição, ele não dá senão exemplos.
tempo mesmo, a maior potencialidade econômica da fórmula. Mais A perversão do que, out ofjoint, não anda bem ou anda derevés (de
técnica que orgânica, ética ou política (o que continua sendo um revés, portanto, antes que às avessas), vemo-la facilmente opor-se
desvio), a figura do gonzo (gond) parece a mais próxima do uso como o oblíquo, o torcido,o torto ou o atravessadoà retidão, à boa
dominante e da multiplicidade de usos do idioma que ela traduz. direção do que anda direito, ao espírito do que orienta ou funda o
2. “Le temps est detraqué”* (O tempo está alterado). Tradução direito —e impelediretamente, sem desvio, para a direção certa etc.!
antes arriscada: um certo uso da expressão faz pensar nas condições Hamlet opõe,aliás claramente, o estar “out ofjoint” do tempo ao seu
do tempó (weather). estar direito, em seu direito, ou no reto caminho do que andadireito.
3. “Le mondeest à l'envers”* (O mundoestá às avessas): um “as Chega mesmo a amaldiçoar o destino que o teria feito nascer para
avessas” muito próximo de de travers (de revés), que parece, este, consertar um tempo que anda de revés. Amaldiçoa o destino que teria
mais próximo aooriginal. justamente destinado a ele, Hamlet, a fazer justiça, a endireitar as
4. “Cette Epoque est déshonorée”S (Esta época está desonrada). coisas, a endireitar a história, o mundo, a época, o tempo, do lado
Porsurpreendente que pareça à primeira vista,a leitura de Gide está direito, no reto caminho, a fim de que, em conformidade com a regra
de acordo, no entanto, com a tradição de um idioma que, de More a de seu justo funcionamento, avance direito — e segundo o direito.
Tennyson, dá um sentido aparentemente mais ético ou político a essa Essa maldição lamentosa pareceafetada pela torção ou pela tortuosi-
expressão. “Out ofjoint” qualificaria a decadência moral ou a cor- dade que denuncia. Segundo um paradoxo que por si mesmo se
formula e se supera, Hamlet não amaldiçoa tanto a corrupção do
tempo. Amaldiçoa primeiramente,e antes de tudo,esse efeito injusto
do desregramento, a saber, a sorte que teria destinado, a ele, Hamlet,
1 Hamlet, tr. Yves Bonnefoy, 1957, Folio, Gallimard, 1992.
2. Hors de ses gonds traduz-se por “fora de si”. Em português,selecionamos recolocar nos eixos um mundo desconjuntado — e a endireitá-lo,
três traduções para “The time is out ofjoint"": 1. “Dos gonzos saiu o tempo”, segundo as regras do direito. Amaldiçoa a sua missão: fazer justiça,
Carlos Alberto Nunes; 2. “Como as coisas andam /fora dos eixos!”, de
Péricles Eugênio da Silva Ramos; 3. “O mundo está fora dos eixos”, de
F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. (N.T.) !, Devo remeter aqui para uma abordagem maissistemática dessas questões do
3. Hamlet, tr. Jean Malaplate, Corti, 1991. direito e do oblíquo,principalmente em Du droir à la philosophie (sobretudo
4. Hamlet,tr. Jules Derorquigny, Les Belles Lettres, 1989. a propósito de Kant), Galilée, 1990,pp. 80 e passim, e em Passions, Galilée,
$, Hamlet, André Gide, Bibliothêque de la Pléiade, Gallimard, 1959.
1993,pp. 33 e segs.
38 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 39

de uma de-missão do mundo. Pragueja contra um destino que o leva herdar. Não se herda nunca sem se explicar com o espectro e, desde
a fazer justiça a partir de um erro, um erro do mundo e dos tempos, então, com mais de umespectro. Com a falta mas também a injunção
corrigindo uma direção, fazendo da retidão e do direito (to set it de mais de um. Ei-la, pois, a tortuosidade originária, a ferida de
right) um movimento da correção, da reparação, da restituição, da nascença de quesofre, uma ferida sem fundo, uma tragédia irrepará-
vingança, da desforra, do castigo. Pragueja contra esse infortúnio e vel, a maldição indefinida que caracteriza a história do direito ou a
esse infortúnio não tem fim, pois não é outro senão ele mesmo, história como direito: que o tempo esteja out of joint, eis o que é
Hamlet. Hamlet está “out of joint” porque amaldiçoa sua própria atestado pelo nascimento, quando este destina alguém a só ser o
missão, O castigo que consiste em dever castigar, vingar, exercer a homem do direito, na qualidade de herdeiro reparadorde erros, isto
justiça e o direito na formaderepresálias; e o que amaldiçoa em sua é, castigando, punindo, matando. A maldição estaria inscrita no
missão diz respeito a essa expiação da expiação: primeiramente, que direito mesmo. Em sua origem assassina.
esta lhe seja inata, dada pelo seu nascimento assim como ao seu Se o direito faz questão da vingança, como pareceu queixar-se
nascimento. Portanto, determinada por (isso) que adveio antes dele. Hamlet — antes de Nietzsche,antes de Heidegger, antes de Benjamin
Como Jó (3,1), ele amaldiçoa o dia que o viu nascer: “The time is out —, Será que nãose pode suspirar por uma justiça que um dia, umdia
ofjoint: O cursed spite, That ever Iwas born to set it right” (“To set que não pertenceria mais à história, um dia quase messiânico, fosse
it right” é traduzido por “tornar a juntar” (rejointer), Bonnefoy, enfim subtraída à fatalidade da vingança? Melhor do que subtraída:
“recolocar na ordem” (rentrer dans 1 'ordre), Gide, “endireitar” infinitamente estranha, heterogênea em sua nascente? E esse dia está
(remeitre droit), Derocquigny, “recolocar no lugar” (remeitre en diante de nós, porvir, ou é mais antigo do que a memória? Se é difícil,
place), Malaplate. O golpefatal, o erro trágico queteria sidofeito em na verdade impossível, hoje, decidir entre essas duas hipóteses, é
seu nascimento, a hipótese de uma perversão intolerável na ordem de precisamente porque The time is out ofjoint: seria esta a corrupção
seu destino, consiste em tê-lo feito ser, ele, Hamlet, e nascer, para O originária do dia de hoje ou, igualmente, seria esta a maldição do
direito, emvista do direito, chamando-o assim a endireitar o mundo, justiceiro, do dia em que abri os olhosao dia. Será impossível reunir
colocá-lo no reto caminho, a pôr direito, a fazer justiça e a corrigir a em torno de um núcleo a plurivocidade aparentemente desregulada
história, a tortuosidade da história. Só há tragédia, só há essência do (ela mesma “out of join”) dessas interpretações? Será possível
trágico desde que haja essa originaridade, mais precisamente, essa encontrar-lhe uma regra de coabitação nesse núcleo, estandoclaro
anterioridade pré-originária e propriamente espectral do crime. Do que este será sempre obsidiado, antes que habitadopelo sentido do
crime do outro, um crime grave cujo acontecimento e a realidade, e original? O golpe de gênio, a insigne característica de espírito, a
a verdade, não podem nunca apresentar-se em came e osso; podem assinatura da Coisa “Shakespeare”: autorizar cada uma das tradu-
apenas se deixar presumir, reconstruir, fantasmar. Continua-se, ape- ções, torná-las possíveis e inteligíveis sem nunca reduzir-se a elas.
sar disso, a portar desde o nascimento uma responsabilidade, mesmo Seu ajuntamento reconduziria ao que, na honra, na dignidade, na boa
que seja para ter de reparar um mal, no momento preciso em que figura, no renome, no título ou nome, na legitimidade comum, no
ninguém teria meios de confessá-lo, salvo se se confessasse confes- estimável em geral, no justo mesmo,senãonodireito, supõe sempre
sando o outro, como seisto fosse a mesma coisa. Hamlet amaldiçoa O ajuntamento,a reuniãoarticulada consigo, a coerência, a responsa-
o destino que o teria destinado a ser o homem do direito, justamente bilidade.! Mas se o ajuntamento em geral, se a junção do “joint”
como se amaldiçoasse o direito mesmo que teria feito dele um
reparador de erros, aquele que não pode vir, como o direito, senão
após o crime,ou simplesmente depois:isto é, numa geração necessa- 1. Sobre a maneira comoesses valoresse reúnem. por sua vez,nosde título. cf.
riamente segunda, originariamente tardia, e desde então destinada a “Titres à preciser”, em Parages, Galilée, 1986.
40 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 4

supõe primeiramente o ajuntamento,a justeza ou a justiça do tempo, questão não se dissocia mais de todas aquelas que Hamlet apreendeu
o estar-consigo ou a concórdia do tempo, o que se passa quando o comotais, a da Coisa-espectro e do Rei (Thing, King), a do aconteci-
tempo mesmose torna “out ofjoint”, dis-junto, desajustado, desar- mento, do ser-presente e do que há em ser, ou não, to be or notto be,
monioso, em desconcerto, desacordado ouinjusto? Anacrônico? emfazer — o quequerdizer também pensar —, em mandar fazer, ou
O quenão se passa nessa anacronia! Talvez “The time”, o tempo deixar fazer, em fazer ou deixar vir, ou em dar, ainda que seja a morte.
mesmo, justamente, sempre como “nosso tempo”, a época e o Comoa preocupação com o que há em ser cruza, ainda que seja para
mundoentre nós, os nossos cada dia, no dia de hoje, o presente como ultrapassá-la, a lógica da vingança oudo direito?
nosso presente. Principalmente quando entre nós “isso não anda Trajetória necessariamente sem cabo [cap] e sem garantia. Traje-
bem”, justamente: quando “isso vai mal”, quando isso não funciona, tória de uma precipitação em cuja direção treme, vibra, se orienta e
quandoisso não se passa direito. Mas, com o outro, nãoserá preciso desorienta, ao mesmo tempo, a questão que nos é endereçada aqui
essa disjunção,esse desajuste do “isso vai mal” para que o bem se sob o nome, ou em nomeda justiça, tradução certamente problemá-
anuncie, ou pelo menos o justo? A disjunção não consiste na possi- tica para Dikê. Um dos lugares mais sensíveis, mas certamente não o
bilidade mesma do outro? Como distinguir entre dois desajustes, único, para essa singular topologia,seria talvez hoje Der Spruch des
entre a disjunção do injusto e aquela que abre a dissimetria infinita Anaximander. Heideggeraí interpreta Dikê como junção, ajuntamen-
da relação com o outro,isto é, o lugar para a justiça? Não! para à to, ajustamento, articulação do acordo ou da harmonia Fug, Fuge
justiça calculávele distributiva. Não para o direito, para o cálculo da (Die Fuge ist der Fug). Enquanto é pensada — a partir do ser como
restituição, a economiada vingança ou do castigo (pois, se Hamlet é presença (als Anwesen gedacht), Dikê conjunta, harmoniosamente,
uma tragédia da vingança e do castigo notriângulo ou no círculo de de algum modo,a junção e o acordo. Adikia, ao contrário: ao mesmo
um Édipo que tivesse dado um passo a mais/no recalque [Freud, tempo o que está desajuntado, desconjuntado, torcido e fora do
Jonesetc.], é preciso pensar ainda na possibilidade de um passo além direito, no erro do injusto, até mesmona besteira.!
do recalque; há um para além da economia do recalque cuja lei o Observemos, de passagem, que mit Fug und Rechtsignifica cor-
impele a transpor a si mesmo, no curso de uma história,seja ela a rentemente “em bom direito”, ou “a justo título”, “com razão”
história do teatro ou da política entre Édipo Rei e Hamlet). Não para versus “sem razão”. O equivalente alemão de “out of joint”, no
a igualdade calculável, portanto para a contabilidade ou a imputabi- sentido de “desarticulado, demitido, desconjuntado,fora de si, desor-
lidade simetrizante e sincrônica dos sujeitos ou dos objetos, não para denado, fora dos eixos, desajuntado, desajustado”, é “aus den Fu-
um fazer justiça que se limitaria a sancionar, a restituir e a fazer gen” “aus den Fugen gehen”. Ora, quando Heidegger insiste na
direito, mas para a justiça como incalculabilidade do dom e singula- necessidade de pensar Dikê aquém, antes ou separadamente das
ridade da ex-posição a-econômica a outrem. “A relação com outrem determinações jurídico-morais da justiça, ele encontra, em sua lín-
— ou seja,a justiça”, escreve Levinas.? Saiba-o ou não, Hamlet fala, gua, com “aus den Fugen”, as virtualidades múltiplas, reunidas e
na abertura dessa questão — o apelo do dom, da singularidade, da suspensasde ““The time is out ofjoint”: alguma coisa no presente não
vinda do acontecimento, da relação excessiva ou excedida para com
o outro — quando ele declara “The time is out of joint”. E esta
1 “Dikê, aus dem Sein als Anwesen gedacht, ist der fugend-fugende Fug.
Adikia, die Un-Fuge, ist der Un-Fug”, Martin Heidegger, “Der Spruch des
Anaximander”, em Holzwege, Klostermann, 1950, p. 329,tr. fr. W. Brok-
1 Ao lado do verbo passar, do substantivo passo,a formada negação,reiterada meier, em Chemins qui ne mênent nuliepart, Gallimard, 1962,p. 291: “Dike,
ao longo deste parágrafo é non pas. (N.T.) pensado a partir do ser enquanto presença, é o acordo quejunta e concorda.
2. Emmanuel Lévinas, Totalité et Infini, M. Nijboff, 1961, p. 62. Adikia, a disjunção,é a discórdia.”
42 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 43

anda bem, isso não anda como deveria andar. Assim: a palavra Indiquemos somente uma hipótese de leitura e O princípio de uma
a-dikia diz primeiramente que a dikê não está presente (wegbleibi). questão. O Spruch de Anaximandrosignificaria que, à presença do
É hábito traduzir dikê por “direito” (Recht). Nas traduções da fala presente, à eon dos eonta pertencea adikia, a disjunção, isso que se
(des Spruches) [de Anaximandro), traduz-se mesmo por “castigo”. traduz mais fregientemente, como o fez Nietzsche neste caso, por
Se afastarmos nossas representações jurídico-morais (juristich-mo- injustiça (Ungerechtigkeir)? Poder-se-ia concluir, a partir disso, por
ralischen Vorstellungen), se nos ativermos ao que advém à fala, algum “pessimismo” ou “niilismo” na experiência grega do ser?
então adikia diz que aí onde ela reina alguma coisa não anda bem Heidegger o imagina. Ao pessimismoniilista, como ao otimismo, ele
como deveria (dass es, wo sie waltet, nicht mit rechten Dingen contrapõe o “traço” do “trágico”, de umaessência do trágico (nunca
zugeht). O quesignifica: alguma coisa está fora dos eixos, desajun- estamos longe de Édipo e de Hamlet) que não se deixa explicar de
tada (eiwas ist aus den Fugen). No entanto, de que se trata? Do maneira “estética” ou “psicológica”,l o que querdizer também,para
presente, em sua estada transitória (Vomje-weilig Anwesenden)" 1 É Heidegger, psicanalítica. Para além do estético-psicanalítico, esse
importante lembrar aqui, a propósito da tradução publicada para traço do trágico nos convoca a pensar,a partir da interpretação do ser
“Je-weilig” (“em sua estada transitória”), que a escrita meditativa de do ente, o didonai diken [...] tes adikias (p. 330). Qual é este dom da
Heidegger passa, sem dúvida, por essa determinação do presente Dike? O que é essa justiça para além do direito? Ela vem unicamente
(Anwesend) como je-weilig (do momento, da época, cada vez etc.), compensar um erro,restituir um débito, fazer direito ou fazer justiça?
Ela vem unicamentefazerjustiça ou, ao contrário, dar para além-do
depois, por essa indispensável atribuição como esta de Weile (mo-
dever, da dívida, do crime ou da falta? Ela vem unicamente reparar a
mento, momento que passa, lapso de tempo) ou de weilen (ficar,
injustiça (adikia) ou, ao justo, rearticular como é preciso a disjunção
demorar-se,ficar, morar). Mas, mais importante ainda parece aqui a
do tempopresente (to setit right, como dizia Hamlet)?
interpretação do Weilen: uma passagem, certamente,e, portanto, um
A disjunção na presença mesma do presente, essa espécie de
momento por definição transitório, mas cuja transição vem, se assim
não-contemporaneidade do tempo presente a ele mesmo (essa intem-
se pode dizer, do porvir. Ela provém disto que, por essência, ainda
pestividade ou essa anacronia radicais, a partir de que tentaremos
não proveio, sequer ainda veio, e que, portanto, fica por vir. A
aqui pensar ofantasma), a fala de Anaximandro, segundo Heidegger,
passagem desse tempo do presente vem do porvir para ir na dire-
a “diz e não diz”.
ção do passado, na direção do ir, de retirar-se (Das Weilen ist der
A.Ela diz, certamente, “sem equívoco” (eindeutig) que o presente
Úbergang aus Kunft zu Gang. Das Anwesendeist das Je-weilige, (das Anwesende), na qualidade depresente,é na adikia, isto é, traduz
p. 323). “Mas então, prossegue Heidegger, onde pois, no ente pre- Heidegger (p. 327), desordenado,fora dos eixos (aus der Fuge: out
sente, há junções? Onde há umaúnica junção(nur eine Fuge)? Como ofjoint, se quisermos). O presenteé o que passa, o presente se passa
o presente (das Anwesende) pode ser sem junção, adikon, isto é, e se demora nessa passagem transitória (Weile), no vai-e-vem, entre
desajuntado (aus der Fuge)?” Ou seja, “out ofjoint”? Pois pode-se o que vai e o que vem, no meio do que parte e do que chega, na
traduzir Heidegger, leitor de Anaximandro, para a língua de Hamlet: articulação entre o que se ausenta e o que se apresenta, Esse entre-
como é possível que isso que é, a saber, o presente, e portanto o dois articula conjuntamente a dupla articulação (die Fuge) segundo à
tempo, seja out ofjoint? A segiência da interpretação não pode ser qual esses dois movimentos são encaixados (gefiig!). A presença
reconstituída aqui. Ela mereceria longas e minuciosas abordagens.
t

1. OC. p. 330.tr. fr.p. 291.


1 OC.pp. 326-327, tr. fr. p. 288. 22. “Ersagtes und sagt es nicht”, O.C.. p. 328, tr. fr., p. 290.
Espectros de Marx 45
44 JACQUES DERRIDA

traço desse Plotino que ele não nomeia aqui, nem quase nunca: é
(Anwesen) é prescrita (verfugt), ordenada,disposta nas duas direções
possível dar o que não se tem? “O que querdizer aqui dar? Comoisto
da ausência, na articulação disso que não é mais e disto que não é
que se demora transitoriamente, desdobrando-se na disjunção, deve
ainda. Jungir e injungir. Esse pensamento da junção é também um
dar ajuntamento (Wie soll das Je-Weilige, das in der Un-Fuge west,
pensamento da injunção.
Fuge geben kônnen?). Pode ele dar o que não tem? (Kann es geben,
B. E, no entanto, declarando isso “sem equívoco”, o Spruch diz was es nicht hat?! E,se dá, não abandona precisamenteo ajuntamen-
também outra coisa — ou não o diz senão sob condição. Ele não
to?” Resposta de Heidegger: o dar não repousa aqui senão na presença
nomearia a disjunção (adikia) ou a “injustiça” do presente senão para
(Anwesen), ele não significa somente abandonar (weggeben), mas,
dizer que é preciso didonai diken (O dever ou a dívida do é preciso
mais originariamente, conceder, isto é, aqui zugeben que caracteriza o
são talvez demais, mesmo se Nietzsche traduz,no entanto: Sie miissen
mais das vezes a adição, até mesmo o excesso, em todocaso,isto que
Busze zahlen, eles devem expiar). Trata-se, de fato, em todo caso de se oferece em suplemento, ainda por cima, fora do comércio, sem
dar. De dar a Dikê. Não de renderjustiça, de rendê-la em retribuição, troca, e isto se diz, às vezes, de uma obra musical ou poética. Esse
segundo o castigo, o pagamento ou a expiação, como se traduz mais
oferecimento é suplementar, mas sem sobrelanço, embora necessaria-
amiúde (Nietzsche e Diels). É o caso, primeiramente, de um dom sem mente excessivo com referência ao abandono ou a uma privação que
restituição, sem cálculo, sem contabilidade. Heidegger subtrai, dessa
separaria do que se poderia ter. O oferecimento consiste em deixar:
forma tal dom a todo horizonte de culpa, de dívida, de direito e até
deixar ao outro o que lhe cabe de propriedade (Solches Geben lásst
talvez de dever. Ele queria antes desviá-lo dessa experiência da vin-
einem anderen das gehôren, was als Gehôriges ihm eignet. Ibid). Ora,
gança, cuja idéia,diz, continua sendo “cara àqueles para quem somen-
esclarece então Heidegger, o que cabe de propriedade (eignet) a um
te o Vingado (das Geráchie) é o Justo (das Gerechte)”. (O que,seja
presente,seja este o presente do outro, ao presente como outro, é o
dito de passagem, não desqualificaria, certamente, em nada, neste caso
ajuntamento de sua estada, de seu tempo, de seu momento(die Fuge
como em outros, uma leitura psicanalítica ou não,da lógica da vingan-
seiner Weile). Isto que um não tem,isto que um não tem, portanto, para
ça, por exemplo, em Hamlet, e em toda parte onde ela continua sendo
abandonar, mas isso que um dá ao outro, a mais, por fora, regateio,
tão poderosa. Contudo, sem privá-la de sua pertinência, essa outra
agradecimento, comércio e mercadoria,trata-se de deixar ao outro este
leitura faz aparecerjustamente seu fechamento econômico,até mesmo
acordo consigo que lhe é próprio (ihm eignet) e lhe dá presença. Se
a fatalidade circular, o limite mesmo que torna possível a pertinência
desta palavra, “justiça” traduz-se ainda assim Dikê, e se, como o faz
ou a justeza dessa interpretação; este último limite não permite, com
Heidegger, pensa-se Dikê a partir do ser como presença, confirmar-se-
efeito, que se compreenda isso mesmo de que ele quer dar a explica-
ia quea “justiça” é antes de tudo,e finalmente,e sobretudo propria-
ção: a tragédia, precisamente, a hesitação em vingar, a deliberação, a mente, O ajuntamento do acordo: o ajuntamento próprio ao outro dado
não-naturalidade ou a não-automaticidade do cálculo: a neurose,se por quem não o tem. Injustiça seria a disjunção ou o desajuntamento
quisermos.) A questão da justiça, essa que porta sempre para além do
(citamos ainda: “Dikê, aus dem Sein als Anwesen gedacht, ist der
direito, não se separa mais, em sua necessidade assim como em suas
Jugend-fiigende Fug. Adikia, die Un-Fuge, ist der Un-Fug").
aporias, desta do dom. Este dom sem dívida e sem culpa, Heidegger
Aqui viria a nossa questão. Será que, como sempre o faz, Heideg-
interroga seu paradoxo em um movimento que gu tinha evocado
gernãodissimetriza a favor do que ele interpreta efetivamente como
noutra parte.! Ele se pergunta, então, com efeito, seguindo como um
a possibilidade do favor mesmo, do favor concedido, a saber,do

1, Cf. Donnerle temps, O.C., p. 12,n. leseg., e pp. 201-202, n. 1 e Saufle nom,
1 OC. p. 329, tr. fr.p. 290.
pp. 83e 112.
46 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 47

acordo que reúne ou recolhe harmonizando (Versammlung, Fug), samento do dom e da indesconstrutível justiça, a condição indescons-
ainda queseja na mesmice dosdiferentes e dosdiferendos, e antes da trutível de toda desconstrução, certamente, mas uma condição que
sín-tese de um sis-tema? Uma vez reconhecidas a força e a necessi- está, ela mesma, em desconstrução e permanece,e deve permanecer;
dade de pensar a justiça a partir do dom,isto é, para além do direito, trata-se da injunção,na disjunção do Un-Fug. Sem o que, ela repousa
do cálculo e do comércio, portanto, a necessidade (sem força, justa- na consciência tranquila do dever cumprido, perde a oportunidade do
mente, sem necessidade,talvez, e sem lei) de pensar o dom ao outro
porvir, da promessa ou do apelo, do desejo também (isto é, sua
“própria” possibilidade), desse messianismo desértico (sem conteú-
como o dom do que não se tem e que desde então, paradoxalmente,
não pode senão retornarao outro, não haveria aí um risco de inscre- do e sem messias identificáveis), desse deserto abissal também,
ver todo esse movimento da justiça sob o signo da presença, ainda “deserto no deserto”, de que falaremos mais adiante,! um deserto
que fosse da presença no sentido da Anwesen, do acontecimento sinalizando parao outro, deserto abissal e caótico, se o caos descreve
primeiramente a imensidão, a desmesura, a desproporção no escan-
comovinda em presença,do ser comopresençaa si mesmaajuntada,
caramento de uma boca aberta — na espera ou na chamada do que
do próprio do outro como presença? Como a presença do presente
recebido, certamente, mas apropriável como o mesmo,e assim reu- denominamos aqui, sem saber, o messiânico: a vinda do outro, a
singularidade “absoluta e inantecipável do que chega como justiça.
nido? Para além dodireito, e mais ainda do juridismo, para além da
Esse messiânico, acreditamosqueele permanece uma marca indelé-
moral, e mais ainda do moralismo,a justiça como relação ao outro
vel — que não se pode nem deve apagar — da herança de Marx, e
nãosupõe, ao contrário, o irredutível excesso de umadisjunção ou de
sem dúvida dq herdeiro, da experiência da herança em geral. Sem o
uma anacronia, algum Un-Fuge, algum deslocar-se “out ofjoint” no
ser e no tempo mesmo, umadisjunção que, por nileae sempre o mal,
que reduzir-se-ia a eventualidade do evento, a singularidade e a
alteridade do outro.
a expropriaçãoe a injustiça (adikia), contra o que não existe garantia
calculável, poderia, apenas ela, fazer justiça ou render justiça ao Sem o quea justiça corre o risco de se reduzir novamentea regras,
normas ou representações jurídico-morais, num inevitável horizonte
outro comooutro? Umfazer quenão se esgotaria na ação e um render
totalizador (movimento de restituição adequado, de expiação ou de
que não consistiria em restituir? Para dizê-lo o quanto antes e para
reapropriação). Esse risco, Heidegger corre-o, apesar de tantas
formalizar Osriscos ao extremo: aqui, nesta interpretação do Un-Fug
precauções necessárias, uma vez que reconhece a primazia, como
(a partir ou não do ser comopresença e da propriedade do próprio),
sempre ofaz, da reunião e do mesmo (Versamnlung, Fuge, legein
desenrolar-se-ia a relação da desconstrução com a possibilidade da
etc.) sobre a disjunção que minha subscrição ao outro implica, sobre
justiça, a relação da desconstrução (enquanto procedente dairredutí-
a interrupção queo respeito impõe e que a impõe porsua vez, sobre
vel possibilidade do Un-Fug e da disjunção anacrônica, enquanto ela
uma diferença cujo único, disseminado nos inúmeros carvôezinhos
aí vai buscar o recurso mesmoe a injunção de sua afirmação reafir-
mada) com isto que deve (sem dívida e sem dever) dirigir-se à
do absoluto misturado às cinzas, não estará jamais assegurado no
Um. O que,aliás, não deixa nunca também de acontecer, mas só
singularidade do outro, à sua precedência ou sua presteza absolutas,
à heterogeneidade de um pre — quesignifica, decerto, o que vem acontece notraço do que aconteceria de outro modo, e, portanto,
acontece também, como umespectro, nisto que não acontece. Hamlet
antes de mim, antes de todo presente, portanto,antes de todo presente
nãoteria meios de trangúilizar-se em um “final feliz”: pelo menos,
passado, mas também isto que, por isso mesmo, vem do porvir ou
no teatro e na história. Estar out ofjoint, quer se trate do ser ou do
como porvir: como a vinda mesma do acontecimento. A disjunção
necessária, a condição des-totalizante da justiça, é de fato a do
presente — e com isso a condição mesma dopresente e da presença
do presente. Aqui sempre se anunciaria a desconstrução como pen- 1 Capítulo5. pp. 222 e segs.
48 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 49

tempo presentes, isso pode fazer mal e fazer o mal, trata-se, sem cia em questão”, o pleno que abre mão do vazio, o demasiado-pleno
dúvida, da possibilidade mesma do mal. Mas, sem a abertura dessa feito para evitar o vazio:
possibilidade, nãoresta, talvez,para além do bem e do mal, senão a
necessidade do pior. Uma necessidade que não seria (nem mesmo) Dando resposta — a alienação, a primazia da necessidade, a história
uma fatalidade. como processo da prática material, o homem total —, ela deixa, entretan-
Injunções e fé jurada:o que procuraremos pensar aqui. Deveremos to, indeterminadas ou indecisas as questões a que responde: do mesmo
modoqueo leitor de hoje, ou o leitor de ontem, formula diferentemente
tentar compreender juntos, ajuntar, a bem dizer, dois signos em um,
o que, segundo ele, deveria instalar-se numa tal ausência de questão —
um duplo signo. Hamletdeclara “The time” “out ofjoint” justamen- preenchendoassim um vazio queantes deveria, e sempre,ser ainda mais
te na hora do juramento, da injunção para jurar, para conjurar, na esvaziado —,essa fala de Marx se interpreta tanto como humanismo,até
hora em que o espectro,e trata-se sempre de um conjurado,acaba de mesmo historicismo, tanto como ateísmo, anti-humanismo, até mesmo
ordenar, uma vez mais, de debaixo,de debaixo da terra ou de debaixo niilismo (pp. 115-116).
da cena (beneath): “jurai”, “swear”(ato I, cena V). E os conjurados
juram juntos (“They swear”). Traduzamos para essa linguagem de Blanchota hipótese queaqui se
arrisca: abertaatravés da assinatura de Marx como uma questão, mas
Continuamos sempre lendo, de um certo modo, “As três falas de também como uma promessa ou um chamado, a espectralidade de
Marx”. Não as esqueçamos. Blanchot nos chama a atenção para o queanalisaremos a “lógica” terá sido encoberta (“preenchendo um
que nos será assim porelas pedido; em primeiro lugar, que se pense vazio”, como fliz Blanchot, aí onde o vazio “antes deveria, e sempre,
o “manter junto” do disparate. Não que se mantenha juntoo dispa- ser mais esvaziado”) pela respossta ontológica de Marx. Resposta de
rate, mas quese vá até aí onde o disparate mantém, junto, sem ferir a Marx mesmo,para quem o fantasma deve não ser nada,nada simples-
dis-junção,a dispersão ou a diferença, sem apagar a heterogeneidade mente (não-ente, não-efetividade, não-vida) ou nada imaginário,
do outro. É pedido a nós (prescrito, talvez) que compareçamos ao mesmose esse nada toma corpo, um certo corpo, de que nos aproxi-
porvir, nós, de nos juntarmos nesse nós, aí onde o disparate compa-
maremos mais adiante. Mas, resposta também de seus sucessores
rece a essejuntar singular, sem conceito nem garantia de determina-
“marxistas”, em toda parte onde eles deduziram, praticamente, con-
ção, sem saber, sem ouantes da junção sintética da conjunção ou da
cretamente, de modo terrivelmente efetivo, maciço e imediato, as
disjunção. A aliança de um rejuntar sem cônjuge, sem organização,
consegiiências políticas (ao custo de milhões e milhões de fantasmas
sem partido, sem nação, sem Estado, sem propriedade (o “comunis-
mo”, a que denominaremos mais adiante a nova Internacional). suplementares que não cessarão de protestar em nós; Marx tinha os
Uma questão ainda não foi formulada. Não enquantotal. Ela seus, nós temos os nossos, mas as memórias não conhecem maistais
estaria antes dissimulada pela resposta filosófica, diríamos com fronteiras: por definição, elas atravessam paredes, essas aparições,
maiorprecisão, ontológica, de Marx mesmo. Ela vem ao encontro do diae noite, elas enganam a consciência e saltam gerações). .
que chamamos aqui — Blanchotnãoo faz — o espírito ou o espectro. Inútil, portanto, esclarecê-lo aqui, e menosainda dar muito peso a
Questão dissimulada, admitamos, por algum tempo e numa certa essainsistência: não há gosto algum pelo vazio oupeladestruição de
medida, certamente. Mas todas essas palavras traem: não é mais o parte daquele que faz jus à necessidade de “esvaziar” sempre mais e
caso, talvez, de modo algum, de uma questão-e nós visamos de de desconstruir respostas filosóficas que consistem em totalizar, em
preferência uma outra estrutura da “apresentação”, em um gesto de preenchero espaço da questão ou em denegar a sua possibilidade, em
pensamento ou de escrita, não a medida de um certo tempo. A coisa fugir exatamente a isto queela terá permitido entrever. Trata-se aí,
se passa,ela deveria se passar aí onde Blanchot fala de uma “ausên- pelo contrário, de um imperativo ético ou político, de um chamado
so JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 51

tão incondicional quanto o do pensamento, de que não se separa. aquie agora, antes mesmo, talvez, que uma decisão o confirme.Ele
Trata-se da injunção mesma — caso exista uma. responde assim, sem esperar, à exigência de justiça. Esta é, por
O que repercute assim nas “três falas de Marx” é o chamado ou a definição, impaciente,intratável e incondicional.
injunção política, o compromisso ou a promessa (O juramento, se Não há diferança sem alteridade, não há alteridade sem singulari-
quiserem: “jurai!”, “swear!””, essa performatividade originária que dade, não há singularidade sem aqui-e-agora.
não se dobra às convenções preexistentes, como o fazem todos os
performativos analisados pelos teóricos dos speech acts, mas cuja (Porque insistir na iminência, na urgência e na injunção, em tudo
força de ruptura produz a instituição ou a constituição,a lei mesma, isso quenelas não espera? Paratentar subtrair o que vamosdizer ao
ou seja, também sentido que parece, que deveria, que parece dever quecorreo risco, temos vários sinais disso, de acontecer à obra, ou
garanti-lo em retribuição. Violência da lei antes da lei e antes do Seja, também à injunção de Marx, hoje. O que corre o risco de
sentido,violência que interrompe o tempo,o desarticula, o demite, o acontecer é que se tente tratar Marx contra o marxismo, a fim de
desloca para fora de seu alojamento natural: “out ofjoint”. Aí é que neutralizar, ou de calar em todo caso, o imperativo político na
a diferança,! caso ela permaneça irredutível, irredutivelmente reque- exegese tranquila de uma obraclassificada. Sente-se vir uma moda
rida pelo espaçamento de toda promessa e pelo por-vir que a vem ou uma afetação a esse respeito na cultura, e mais precisamente, na
abrir, não significa somente, como se acreditou amiúde, e tão inge- universidade. Com o que podemos preocupar-nos aqui? O que temer
nuamente, diferimento, atraso, prazo, posposição. Na incoercível do que pode também tomnar-se uma operação de amortecimento? Este
diferança, arrebenta o aqui-e-agora. Sem atraso, sem prazo, mas sem estereótipo recente estaria destinado, queira-se ou não,a despolitizar
presença, é a precipitação de uma singularidade absoluta, singulari- em profundidade a referência marxista, a fazer o possível, tomando
dade porque diferante, justamente, e sempre outra, ligando-se neces- a feição da tolerância, para neutralizar uma força-potencial, primei-
sariamente à forma do instante, na iminência e na urgência: mesmo ramente debilitando um corpus, fazendo calar nele a revolta (aceita-
se ele se dirige para o quefica por vir, existe o penhor (promessa, se o retorno, desde que não retome a revolta que inspirou primeira-
compromisso, injunção e resposta à injunção etc.). O penhor se dá mente o levante, a indignação, a insurreição, o elã revolucionário).
Estar-se-ia prestes a aceitar o retorno de Marx ou o retorno a Marx,
contanto que se passasse em silêncio o que nisto prescreve não
! Différance foi traduzida como “diferência” por Maria Beatriz Marques somente decifrar, mas agir ou fazer do deciframento (da interpreta-
Nizza da Silva em A escritura e a diferença, e mantida por Miriam Schnai- ção) umatransformação que “modifique o mundo”. Em nome de um
derman e Renato Janine Ribeiro, na Gramatologia (São Paulo, Perspectiva, velho conceito da leitura, tal neutralização em andamento tentaria
1971 c 1973); como “diferância”, em Portugal; como “diferança” por conjurar um perigo: agora que Marx está morto,e principalménte que
Joaquim Torres da Costa e Antonio M. de Magalhães em Margens da
Filosofia (RÊS-Editora, s.d.), c ainda grafada em francês, em nossa obra
o marxismo parece em plena decomposição, parecem dizeralguns,
coletiva, Glossária de Derrida (Supervisão Silviano Santiago, Francisco vamos poder ocupar-nos de Marx sem ser incomodados — pelos
Alves, 1976). Todas essas foram tentativas de — respeitando o princípio de marxistas é, por que não, por Marx mesmo,isto é, por um fantasma
“uma discreta intervenção gráfica (a troca do e pelo a)”, indicada por que continua a falar. Vamostratar calmamente disto, objetivamente,
J. Derrida na conferência “La différance” (1968) — reproduzir em portu- sem tomar partido: segundo as regras acadêmicas, na universidade,
guês este “'neografismo” que, em francês, se lê ou se escreve, mas não se
na biblioteca, nos congressos. Vamosfazê-lo sistematicamente, res-
ouve. Aqui, optamos pela grafia diferança, pois ao que parece, assim se
preserva uma maior identidade gráfica e fônica entre diferença e diferança, peitando as normas da exegese hermenêutica,filológica, filosófica.
trocando-se, simplesmente, como em francês,o e pelo a. (N.T.) Aguçando um pouco oouvido,já se ouve murmurar: Marx,vejam só,
sz JACQUES DERRIDA
Espectros de Marx 53

foi, apesar de tudo, um filósofo como outro qualquer, e até se pode


exigência ou a urgência excessiva de que Blanchot fala com tanta
dizer, agora que tantos marxistas estão calados, um grande-filósojo,
precisão. A “revolução em permanência” supõe a ruptura do que
digno de figurar nos programas de concursos! de que durante muito
relaciona a permanência à presença substancial, e mais genericamen-
tempo foi proscrito. Ele não pertence aos comunistas, aos marxistas,
te a toda ontologia:
aos partidos; devefigurar em nosso grande cânondafilosofia política
ocidental. Retomo a Marx, vamos lê-lo, enfim, como um grande A segunda fala [de Marx] é política: ele é breve e direta, mais do que
filósofo! Já se ouviu isso e ainda vai ouvir. breve e mais do quedireta, pois curto-circuita toda fala. Não porta mais
O que eu gostaria'de tentar aqui, no momento em que torno à um sentido, mas um chamado, uma violência, uma decisão de ruptura.
Marx, ou retorno a Marx, é uma outra coisa. É sobreesta outra coisa Não diz nada propriamente falando, ela é a urgência do que anuncia,
relacionada a uma exigência impaciente e sempre excessiva, posto que o
que antes me acontecerá, e não será somente por falta de tempo ou excesso é sua única medida: convocando, deste modo,à luta e mesmo (o
lugar,deinsistir, de preferência, no que prescreve, hoje, sem demora, quenos apressamos em esquecer) postulando o “terror revolucionário”,
que não se poupem esforços para evitar a anestesia neutralizante de recomendando “a revolução em permanência”, e sempre designando a
um novoteorismo,e para impedir que prevaleça um retornofilosófi- revolução não como uma necessidadea termo, mas comoiminência, pois
co-filológico a Marx. Esclareçamos,insistamos: não poupar esforços é feição da revolução não oferecer prazo, se ela abre e atravessa o
tempo, prestando-se a ser vivida como exigência sempre presente.!
para que este não prevaleça, mas nãoevitar queeste tenha lugar, pois
ele continua sendo também necessário. Isto melevará, por enquanto,
Blanchot nqmeia, finalmente, a necessária disjunção das linguagens
a dar prioridade ao gesto político que esboço aqui, na abertura de um de Marx, sua não-contemporaneidade a si mesmas. Que estas ““se
simpósio, e a deixar, de preferência em estado de programa e de desunam” primeiramente em Marx mesmo, não se deve nem
indicações esquemáticas, o trabalho de exegesefilosófica, e toda a denegá-lo nem reduzi-lo, nem mesmodeplorá-lo. Isto a que é preciso
“scholarship” que esta “tomada de posição”, hoje, ainda requer.) incessantemente retornar, aqui como em outra parte, a propósito
desse texto, bem como de qualqueroutro (e preservamos, ainda aqui,
Mas o aqui-e-agora, isso não se desdobra nem no imediatismo, a esse valor de texto um alcance sem limite), consiste numa hetero-
nem na identidade reapropriável do presente, e ainda menos na da geneidade irredutível, umaintraduzibilidade interna de algum modo.
presença em si. Se “chamado”, “violência”, “ruptura”, “iminên- Esta nãosignifica, necessariamente, a fraqueza ou a inconsistência
cia” e “urgência” são, no parágrafo seguinte, as palavras de Blan- teórica. A falta de sistema aí não constitui erro. A heterogeneidade
chot,a exigência queele diz “semprepresente” deve implicitamente, abre, ao contrário, deixa-se abrir pela efração mesma disso que
assim nos parece, encontrar-se afetada pela mesma ruptura ou pelo arrebenta, vem oufica porvir — singularmente do outro. Não haveria
mesmo deslocar-se, o mesmo “curto-circuito”. Ela não podeestar nem injunção nem promessa sem esta disjunção. Blanchot insistia
sempre presente, ela pode ser, apenas; se existe uma exigência, esta nela então (entre 1968 e 1971, portanto) para prevenir não contra o
nãopode ser senão possível, deve mesmo permanecerno talvez para saber, mas contra a ideologia cientista que a cada momento, em nome
continuar sendoexigência. Sem o quevoltariaa ser presença, ou seja, da Ciência, ou da Teoria como Ciência, podia tentar unificar ou
substância, existência, essência, permanência, de modo algum, a purificar o “bom” texto de Marx. Se Blanchot dá a impressão aqui
de estar de acordo com alguns motivosalthusserianos,ele previne, já
então, contra o risco que, segundo ele, era-lhes inerente:
1 Agrégation: aproximadamente, concurso para ingresso no ensino superior.
(N.T.)
À Isto esteve manifesto, e de modoestrepitoso, em Maio de 68, p. 116.
54 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 55

A terceira fala é a fala indireta (portanto, a mais extensa) do discurso a isto se resume, talvez, o estranho propósito desta conferência
científico. A esse título, Marx é acatado e reconhecido pelos outros dedicada aos espectros de Marx, como distorção confessa de seu
representantes do saber. É então homem deciência, obedeceà ética do axioma, que me permitam, então, examinar sob todos os aspectos a
erudito, aceita submeter-se a qualquer revisão crítica [...]. No entanto, O objeção. A traduzibilidade assegurada, a homogeneidade dada, a
capital é uma obra essencialmente subversiva. Ela o é menos porque
coerência sistemática absolutas, eis o que torna seguramente(certa-
conduziria, pelas vias da objetividade científica, à consegiência necessá-
ria da revolução, que por incluir, sem muito o formular, um modo de mente, a priori e não provavelmente)a injunção, a herança e o porvir,
pensar teórico que desconcerta, precisamente, a idéia de ciência. Nem numapalavra,O outro, impossíveis. Épreciso a disjunção,a interrup-
a ciência, nem o pensamento saem, com efeito, intactos da obra de ção, o heterogêneo se, ao menos é preciso,se é preciso dar oportuni-
Marx, e isso no sentido mais forte, por mais que a ciência nela seja dade a qualquer “é preciso” que seja, ainda que seja para além do
designada comotransformação radical de si mesma,teoria de uma muta- dever.!
ção sempre em jogo na prática, assim como, nessa prática, mutação
Uma vez mais, aqui como em outra parte, em todo lugar onde se
sempre teórica (ibid).
trata da desconstrução, vai-se cuidar de relacionar uma afirmação
Este outro pensamento do saber, se assim posso dizer, não exclui a (especialmente política), caso exista uma, à experiência do impossí-
vel, que não pode ser senão uma experiência radical do talvez.
ciência, mas desconcerta e ultrapassa sua idéia recebida. Blanchot
reconhecenisto o exemplo de Marx. Por que o exemplo? pergunta- Blanchot, portanto, ainda; e em meio a esta elipse tão poderosa, a
ríamos, antes mesmo que saibamos por que o “exemplo de Marx”. esta declaração quase tácita, tomo a liberdade de sublinhar algumas
Antes de citar ainda, insistamos neste ponto. Um exemplo porta palavras aí onde Blanchotnão o faz, porém significativamente, senão
sempre além de si mesmo: ele abre, deste modo, uma dimensão
em múltiplas e ao mesmo tempo,isto é, como indício da contradição
sem contradição, da diferença não dialética (ou “quase”) que atra-
testamentária. O exemplo é primeiramente para os outros, e para além
de si. Às vezes, talvez sempre, quem dá o exemplo é desigual ao vessae age em toda injunção:
exemplo que dá, ainda que tudo faça para segui-lo de antemão,
Não desenvolvamos aqui, por mais tempo,essas observações. O exemplo
“servir de lição”, dizíamos nós, exemplo imperfeito do exemplo que de Marx ajuda-nos a compreender quea fala escrita, fala de contes- tação
ele dá. Queele dê, dando então o que não tem e mesmoo que nãoé.

+
incessante, deve constantemente desenvolver-se e romper-se sob muúlti-
Por isso, o exemplo, assim desunido, separa-se demasiadamente de plas formas. A fala comunista é sempre ao mesmo tempo tácita e violenta,
si mesmo ou de quem o dá para não ser mais, ou não ser ainda, política e erudita,direta, indireta,total e fragmentária, duradoura e quase
exemplo porsi só. Não temos que solicitar o acordo de Marx, morto instantânea. Marx não convive confortavelmente com essa pluralidade
paraisso antes mesmodeestar simplesmente morto,para herdar: para de linguagens que sempre se chocam e desunem-se nele. Ainda que essas
linguagens pareçam convergir para o mesmofim,elas não teriam meios
herdar isto ou aquilo, isto e não aquilo, que nos chega, todavia, por de serem retraduzidas uma na outra, e sua heterogeneidade, o desvio ou
meio dele, através dele, quando não dele. E não temos que supor que a distância queas descentram,as tornam não contemporâneas e tais que,
Marx estivesse de acordo consigo mesmo.(“O certo é que não sou produzindo um efeito de distorção irredutível, obrigam aqueles que têm
marxista”, teria ele confiado a Engels. Ainda seria preciso autorizar- de garantir sua leitura (a prática) a se submeterem a um remanejamento
se com Marx para o dizer também?) Pois Blanchot não hesita em o incessante.
dar a entender, Marx vivia mal essa disjunção das injunçõesnele, e o A palavra “ciência” volta a ser uma palavra-chave. Admitamo-lo.
Mas ressaltemos que, se há ciências, ainda não há ciência, pois a cienti-
fato de elas serem intraduzíveis umas nas outras. Como receber,
comoentender uma fala, como recebê-la por herança, uma vez que
ela não se deixa traduzir de si para si mesma? Isso pode parecer
impossível. E o é provavelmente,é preciso reconhecê-lo. Mas já que 1. Este ponto é desenvolvido em Passions, Galilée, 1993.
56 JACQUES DERRIDA Espectros de.Marx 57

ficidade da ciência permanece sempre sob a dependência da ideologia, iminência ou desejo de ressurreição. Re-nascimento ou retorno?
umaideologia que nenhumaciência particular, fosse ela ciência humana, Aocair da noite, não se sabe se a iminência significa que o esperado
teria meios de reduzir hoje, e, por outro lado, ressaltemos que escritor já está de volta. Ele já não se anunciou? Anunciar-se, aliás, já não é
algum, fosse ele marxista, teria meios de relacionar-se à escrita como a
de algum modoestar aí? Não se sabe se a espera prepara a vinda do
um saber [...).
por-vir ou se ela ressalta a repetição do mesmo,da coisa mesma como
Há mais de trinta anos, Blanchot já escrevia, portanto, O fim da fantasma (What! ha's this thing appear'd againe tonight?” Esse
filosofia. Nessa data, foi em 1959, uma nota funerária já repercutia não-saber não é uma lacuna. Nenhum progresso do conhecimento
nela, crepuscular, espectral — e, portanto, ressurrecional. Re-insur- teria meios de saturar uma abertura que não deve ter nada que ver
recional. Há nela bastante do “espírito” filosófico: seu processo com o saber. Nem portanto com a ignorância. Esta abertura deve
mesmo consiste em caminhar visivelmente à frente, no momento preservar essa heterogeneidade como a única oportunidade de um
exato de seu “desaparecimento” e de seu “cair por terra”, em porvir afirmado, ou antes, reafirmado. Ela é precisamente o porvir,
conduzir a procissão de seus próprios funerais e em erguer-se durante ela vem dele. O porvir é a sua memória. Na experiência do fim, em
essa caminhada, em esperar, pelo menos, reerguer-se ainda para sua vindainsistente, instante, sempre iminentemente escatológica, na
manter-se de pé (““ressurreição”, “exaltação””). Esse wake, essa ale- extremidade, do extremo hoje, assim se anunciaria o porvir do que
gre vigília fúnebre dafilosofia, vem a ser o duplo momento de uma há-de-vir. Mais do que nunca, pois o por-vir só pode anunciar-se
“promoção” e de uma “morte da filosofia”, de uma promoção na comotal, em sua pureza, a partir de um fim passado: para além, se
morte. A filosofia — isso é absolutamente novo? —, ei-la que se possível, da última extremidade. Se for possível, se houver, o porvir,
transforma em aparição para si própria; ela mesma obsidia seus mas como suspendertal questão ou como privar-se de tal reserva sem
próprios lugares de preferência a habitá-los. E a filosofia, sem dúvi- concluir de antemão, sem reduzir de antemão o porvir e sua oportu-
da, é sempre mais do quea filosofia. nidade? Sem totalizar de antemão? Devemos discernir aqui entre a
escatologia e a teleologia, mesmo se o que está em jogo nesta
Essa promoção da filosofia, que se transformou na toda-poderosa de diferença corre o risco incessante de apagar-se na mais frágil ou na
nosso mundoe curso de nosso destino, não pode senão coincidir com o maisligeira inconsistência — e de uma certa maneira estará sempre
seu desaparecimento, anunciando, pelo menos, o começo de seu deitar e necessariamente privado de uma garantia contra esse risco. Não há
porterra. Ao nosso tempo filosófico pertenceria, portanto, essa morte da
uma extremidade messiânica, um eskhaton cujo último acontecimen-
filosofia. Ela não data de 1917, nem mesmo de 1857, ano em que Marx,
numafaçanha de forasteiro, teria operado a volta sobre si do sistema. Há to (ruptura imediata, interrupção inaudita, intempestividade da sur-
um século e meio, em seu nome como em nome de Hegel, de Nietzsche, presa infinita, heterogeneidade sem realização) pudesse exceder, a
de Heidegger,é a filosofia mesmaqueafirma ou realiza seu próprio fim, cada momento, o termofinal, de uma physis, como o trabalho, a
quer o entenda comorealização do saber absoluto, sua supressão teórica produçãoe o telos de toda história?
relacionada à suarealização prática, o movimento niilista onde submer-
A pergunta é, de fato, “whither?”. Não simplesmente de onde
gem os valores, enfim pelo fim da metafísica, sinal precursor de uma
possibilidade outra, que ainda não tem nome. Eis aí o crepúsculo que vem o ghost, mas, em primeiro lugar, ele voltará? Já não estará
acompanha daí em diante cada pensador, estranho momentofúnebre que chegando, e para onde vai? O queé do porvir? O porvir não pode ser
o espírito filosófico celebra numa exaltação, de mais, muitas vezes senão dosfantasmas. Assim como o passado.
alegre, conduzindo seu lentofuneral, durante o qual ele conta realmente,
de um modo ow de outro, obter sua ressurreição. E, evidentemente,
Ao proporestetítulo, Espectros de Marx, pensei inicialmente em
semelhante espera,crise e festa da negatividade, experiência levada ao
seu extremopara saber quem resiste, não diz respeito somente à filosofia todas as formas de uma obsessão que me parece, precisamente,
[...]” (pp. 292-3, grifo meu). organizar isso mesmo que domina o discurso hoje. Na ocasião em
58 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 59

que uma nova desordem mundial tenta instalar seu neocapitalismo e 1848, o discurso hegeliano sobre o fim da história em meio ao saber
seu neoliberalismo, denegação alguma consegue desembaraçar-se de absoluto já havia repercutido na Europa, ele havia consonado com
todos os fantasmas de Marx. A hegemonia organiza sempre a repres- muitos outros dobres. E o comunismo distinguia-se essencialmente
sãoe, portanto,a confirmação de uma obsessão. A obsessão pertence dos outros movimentos operários pelo seu caráter internacional.
à estrutura de toda hegemonia.! Mas eu não tinha na cabeça, primei- Nenhum outro movimento político organizado na história da huma-
ramente, O exórdio do Manifesto. Em um sentido aparentemente nidade se tinha ainda, em tempo algum, apresentado como geopoltti-
diferente, Marx-Engels aíjá falava, em 1847-48, de espectro e, com co, inaugurando assim o espaço que é agora o nosso e queatinge hoje
maior precisão, do “espectro do comunismo” (das Gespenst des
os seus confins, confins da terra e confins do político.
Kommunismus). Espectro terrificante para todas as potências da
Os representantes dessas forças ou de todos esses poderes (alle
velha Europa (alle Miichte des alten Europa), mas espectro de um
Miichte), a saber, os Estados, queriam trangiilizar-se. Eles queriam
comunismo então por vir. De um comunismo, decerto, já nomeável
ter certeza. Tinham, portanto, certeza, pois não há diferença entre
(e muito antes da Liga dos Justos ou da Liga dos Comunistas), mas
“ter certeza” e “querer ter certeza”. Certos e seguros de que entre
ainda porvir para além de seu nome. Já prometido, mas simplesmen-
um espectro e uma realidadeefetivamente presente,entre um espírito
te prometido. Espectro tanto mais terrificante, dirão alguns. Sim,
e uma Wirklichkeit, a fronteira estava assegurada. Devia estar asse-
contanto que se possa em algum momento distinguir entre o por-vir
gurada. Deveria estar assegurada. Não, deveria ter estado. A segu-
e o revir de um espectro. Não esqueçamos que,por volta de 1848, a
primeira Internacional teve de permanecer quase secreta. O espectro rança dessa certeza, eles a compartilhavam com Marx mesmo (nisto
aí estava (ora, o que é o estar aí de um espectro? Qual é o modo de se resume toda a história, voltaremos a referir-nos a isso: Marx
presença de um espectro, essa é a única questão que gostaríamos de pensava sem dúvida, pelo seu lado, do outro lado, que a fronteira
formular aqui). Masisso de queeleera o espectro, o comunismo(das entre o fantasma a efetividade deveria ser transposta, como a utopia
Gespenst des Kommunismus), este não estava presente, por defini- mesma, através de umarealização, isto é, através de uma revolução;
ção. Era temido como comunismo porvir. Já se havia anunciado, sob mas, ele não terá deixado de acreditar,ele também,de tentar acreditar
esse nome, há bastante tempo, mas ainda não estava presente. Isso na existência dessa fronteira, comolimite real e distinção conceitual.
não passa de um espectro, pareciam dizer, então,para tranqiilizarem- Ele também? Não, alguém nele. Quem? O “marxista” que engendrou
se, esses aliados da velha Europa:contanto que no porvir não se torne isto que terá dominado por muito tempo,sob o nome de “marxismo”.
uma realidadeefetiva, efetivamente, presente, manifesta, não-secre- E que andou sendo obsidiado por isso mesmo que tentava rejeitar).
ta. A questão que interessava à velha Europaera,já então, a questão Hoje, perto de um século e meio mais tarde, muitos são aqueles
do porvir,a questão '“whither”, “whither communism?"", quando não que, por toda parte no mundo, parecem igualmente ansiosos quanto
“whither marxism?”. Que se tratasse então do porvir do comunismo ao espectro do comunismo, igualmente convencidos de que neste
ou do comunismono porvir, essa pergunta ansiosa não dizia simples- caso aí não se trata senão de um espectro sem carne, sem realidade
mente respeito a saber como, no futuro, o comunismo afetaria a presente, sem efetividade, sem atualidade, mas, desta vez, de um
história européia, mas também mais secretamente,já então, se ainda espectro pretensamente passado. Não passou de um espectro, ouve-
haveria simplesmente um futuro e umahistória para a Europa. Em se portoda parte, nos dias de hoje, uma ilusão, um fantasma, uma
fantasia (“Horatio saies”, ““tis but our Fantasie”, “And will not
beleefe take hold ofhim”). Suspiro dealívio ainda inquieto: façamos
!. Sobre um novo emprego, em um estilo “desconstrutivo”, do conceito de de modoqueno porvir ele não retome mais! No fundo,o espectro é
hegemonia, remeto aos trabalhos de Emesto Laclau. o porvir,ele está sempre porvir, não se apresenta senão como aquele
Espectros de Marx 61
60 JACQUES DERRIDA

para uma inacreditável expedição contra isso que terá obsidiado a


que poderia vir ou re-vir: no: porvir, diziam as potências da velha noite desses senhores. No crepúsculo, antes ou depois de uma noite
Europano séculopassado,é preciso que ele não se encare. Nem em de pesadelo, no suposto fim da história, é o caso de uma “santa
público, nem às escondidas. No porvir, ouve-se por toda parte hoje, caçada a este espectro”: ““Todas as potências da velha Europa se
é preciso queele não re-encamne: não se o deve deixar re-vir posto aliaram (verbiindet) para uma santa caçada à este espectro (zu einer
que é passado. heiligen Hetzjagd gegen dies Gespenst).”
Qual é exatamente a diferença de um século a outro? Seria a Seria, portanto, possível aliar-se em segredo contra um espectro.
diferença entre um mundo passado — quando espectro nele repre- Se Marx tivesse escrito seu Manifesto na minha língua, e se o
sentava uma ameaça porvir — e um mundo presente, hoje, em que o tivessem ajudado nisso, com o que um francês sempre pode sonhar,
espectro representaria uma ameaça que alguns gostariam de acreditar tenho certeza de que ele teria jogado com a palavra “conjuração”.
passada e da qual seria preciso ainda, ainda no porvir, conjurar o Em seguida,teria diagnosticado hoje a mesma conjuração, desta vez
retorno? não somente na velha Europa, mas na nova Europa, no Novo Mundo,
Por queo espectro é sentido, nos dois casos, como uma ameaça? a queelejá se interessava muito, há um século e meio,e por toda parte
Qual é o tempoe qual é a história de um espectro? Há um presente no mundo,na nova ordem mundial, onde se exerceria ainda a hege-
do espectro? Dispõe ele suasidas e vindas Conforme a sucessão linear monia deste novo mundo, quero dizer os Estados Unidos, uma
de um antes e um depois, entre um presente-passado, um presente- hegemonia tanto ou quanto crítica, tanto ou quanto melhor asegurada
presente e um presente-futuro, entre um “tempo real” e um “tempo do que nuncã.
diferido”? ! A palavra conjuração é propícia a fazer trabalhar o sentido e a
Se há alguma coisa como a espectralidade, há razões para duvidar produzir, sem reapropriação possível, uma mais-valia para sempre
dessa ordem tranqúilizadora dos presentes, e sobretudo da fronteira errante. Ela capitaliza primeiramente duasordens de valor semântico.
entre o presente, a realidade atual ou presente do presente e tudo o O que é uma ““conjuração”? .
que se lhe pode opor: a ausência, a não-presença, á inefetividade, a A palavra francesa “conjuração” reúne e articula entre elas as
inatualidade,a virtualidade ou mesmo o simulacro em geral etc. Há significações de duas palavras inglesas —e também de duas palavras
primeiramente que duvidar da contemporaneidadea si do presente. alemãs.
Antes de saber se se pode fazer a diferença entre o espectro do 1. Conjuração? significa por um lado “conjuration” (seu homô-
passado e o do futuro, do presente passado e do presente futuro, é nimoinglês), palavra que designa duas coisas ao mesmo tempo.
preciso, talvez, se perguntar se o efeito de espectralidade não consis- a. De uma parte, a conspiração (conspiracy, em alemão Vers-
te em frustrar essa oposição,até mesmo essa dialética,entre a presen- chwoôrung) daqueles que se alistam solenemente, às vezes, secreta-
çaefetiva e seu outro.É preciso,talvez, se perguntar se esta oposição, mente, jurando juntos, por meio de um juramento (oath, Schwur),
seja ela dialética, não foi, sempre, um campo fechado e uma axiomá- lutar contra um podersuperior. É esta conjuração que Hamlet invoca,
tica comum para O antagonismo entre o marxismo a legião ou a ao evocar a “Visão” de há pouco e o “honest Ghost”, quando ele
aliança de seus adversários. pede a Horácio e a Marcelo que jurem (“swear't”, “Consent to
swear”). Quejurem sobre sua espada (“upon my sword"), mas que
Perdoem-meesta formulação bastante abstrata para um começo.
No meio do século passado, contra esse espectro, para expulsar o
mal, umaaliança se constituiu. Marx não chamava essa coligação de
1 K Max, F. Engels, Manifesto do partido comunista, trad. de Álvaro Pina da
uma Santa-Aliança, expressão com a qual ele joga, aliás. No Mani-
edição original de 1890. Lisboa: Editorial “Avante!”, 1975.
festo, a aliança dos conjurados: ansiosos reúne, tanto ou quanto
2. Todas essas acepções existem em português. (N.T.)
secretamente, uma nobreza e um clero — no velhocastelo da Europa,
62 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 63

jurem ou conjurem a respeito da aparição espectral, e que prometam capítulo sobre o “Concílio de Leipzig — são Max” apresenta tam-
segredoa respeito da aparição de um honesto fantasma que, noutra bém, esclareceremos adiante, um curto tratado do espírito ou uma
parte da cena, conjura-se com Hamlet para pedir a mesma coisa aos interminável teatralização dos fantasmas. Uma certa “Conclusão
conjurados: “(Ghost cries under the Stage: Sweare)”. É a aparição comunista”! invoca o Timão de Atenas. A mesmacitação reaparecerá
que impõe quese conjure para calar a aparição, e prometer segredo naprimeira versão de Para a crítica da economia política. Trata-se
sobre quem pede semelhante conjuração:não se deve saber de onde de uma desencarnação espectralizante. Aparecimento do corpo sem
vem a imposição, a conjuração,o segredo prometido. Umfilho e o corpo dodinheiro: não do corpo sem vida ou do cadáver, mas de uma
“honesto fantasma” do pai, o fantasma supostamente honesto, O vida sem vida pessoal e sem propriedadeindividual. Não sem iden-
espírito do pai, se conjuram para fazer advir tal acontecimento. tidade (o fantasma é um “quem”, nãose trata do simulacro em geral,
b. “Conjuração” significa, de outra parte, a encantação mágica ele possui uma espécie de corpo, mas sem propriedade, sem direito
destinada a evocar,a fazer vir pela voz, a convocar um feitiço ou um de propriedade “real” ou “pessoal”). É preciso analisar o próprio da
espírito. Conjuração exprime, em suma,o apelo quefaz vir pela voz e propriedade, e como a propriedade (Eigentum) geral do dinheiro
portanto faz vir, por definição, o que não está presente no momento neutraliza, degencarna, priva de suadiferença toda propriedade (Ei-
presente do chamado. Essa voz não descreve, o que ela diz não gentiimlichkeil) pessoal. Essa fantasmalização do próprio,o gênio de
constata coisa alguma, sua fala faz com que chegue. É este emprego Shakespearea terá compreendido há séculos,e expressado melhor do
que se acha ainda na fala do Poeta, na abertura do Timão de Atenas. que qualquer outro. O ingenium de sua genialidade paterna serve de
Apóster perguntado “Comovai o mundo?” (“How goes theworld?”) referência, de caução ou de confirmaçãono interior da polêmica, ou
e que o Pintorlhe tenha dito “Ele se desgasta, senhor, à medida que seja, na guerra em andamento — a propósito, exatamente, do espec-
se adianta em anos” (“It wears, sir, as it grows”), o Poeta exclama: tro fiduciário, do valor, do dinheiro ou de seu signo monetário, o
“Oh! Isso é certo. Porém, que houve de raro e estranho a um tempo ouro:
que o múltiplo registro não conheça? Vede pois”.! Entram, por portas
Shakespeare sabia melhor do que nossos pequeno-burgueses apaixona-
diferentes, um joalheiro, um mercador e outros fornecedores, “f...]
dos por teoria (unser theoretisierender Kleinbiirger) quanto o dinheiro,
como é mágicaa riqueza! Por seus encantos foram conjurados todos formada propriedade mais genérica detodas(die allgemeinste Form des
11.2
estes espíritosbrilhantes (conjur'd to attend). Conheço o mercador”: Eigentums),tem poucoa ver com as particularidades da pessoa(mit der
persôniichen Eigentiimlichkeit) [...)
“Ay that's well known;
But what particular rarity? what strange. A citação também fará aparecer, benefício' suplementar mas, na
Which manifold record not matches? See, verdade, absolutamente necessário, uma fetichização teologizante;
Magic ofbounty! All these spirits thy power
Hath conjur"d to attend. | know themerchant." esta que relacionará sempre, irredutivelmente,a ideologia à religião
(ao ídolo ou ao fetiche) comoà suafigura principal, uma espécie de
Marx evoca mais de uma vez Timão de Atenas, como também O “deus visível” a que são dirigidas a adoração, a prece, a invocação
mercador de Veneza, particularmente em A ideologia alemã. No (Thou visible god). A religião, voltaremosa referir-nosa ela, nunca
foi uma ideologia entre outras para Marx. Isto que o gênio de um

1 Timão de Atenas, tr. Carlos Alberto Nunes. Obras Completas de Shakespea-


re, vol. IV, São Paulo. Melhoramentos. 1 K. Marx, F. Engels, L'ldéologie allemande, tr. fr. H. Auger, G. Badia,
2, Op.cit.p. 166. J. Baudrillard, R. Cartelle, Éditions Sociales, 1968, pp. 262-263.
64 JACQUES DERRIDA
Espectros de Marx 6s

grande poeta — e o espírito de um avô — terá enunciado num rasgo Tu, Deusvisível
profético, indo com esse gesto mais rápido e mais adiante em teoria que impossibilidades aproximas,
econômica, parece dizer Marx, de que nossos confradezinhos bur- fazendo que se beijem,
gueses, diz respeito ao tornar-se-deus do ouro, ao mesmo tempo sichtbare Gottheit
fantasma e ídolo, um deus sensível. Após ter marcadoa heterogenei- Die du Unmoglichkeiten eng verbriiderst
dade entre a propriedade do dinheiro e a propriedade pessoal (têm Zum Kusz sie zwingst!!
“tão pouco a fazer” entre si), Marx acrescenta, detalhe-não desprezí-
vel, ao que me parece, que na verdadeelas não são simplesmente Dentre todas as características desta imensa maldição. Marx deve, na
diferentes, mas opostas (entgegensetzt). E é então que, cortando no economia de umalongacitação,ter apagado estas que nosinteressam
corpo do texto, segundo escolhas queseria preciso analisar de perto, mais aqui, por exemplo,as aporias e o double bind que precipitam o
extirpa uma longa passagem dessa prodigiosa cena do Timão de ato de praguejar nahistória mesma da venalidade. Na hora de enterrar
Atenas (ato IV, cena II), Marx gosta dos nomes dessa imprecação, O ouro, tendo na mão uma pá, o coveiro-profeta, tudo exceto um
nunca se deve passar em silêncio a imprecação do justo. Nunca se humanista, não se contenta em evocar a quebra dos votos, O nasci-
deve fazê-la calar no texto mais analítico de Marx. Uma imprecação mento e a morte das religiões (“This yellow slave/Will knit and break
não teoriza, não se contenta em dizer o que é, ela grita a verdade, religions; bless the accurs"d”; “Esse escravo amarelo os sacrossan-
promete, provoca, Nãoé, seu nome o indica, nada além de umaprece. tos votos anula e quebra, lança bênção nos malditos”2); Timão
Essa prece desacredita, condena à maldição. Essas palavras da impre- conjura assim o outro, pede-lhe encarecidamente que prometa, mas
cação, Marx se lhes apropria com tal prazer que os indícios não conjura assim, perjurando e confessando seu perjúrio num único e
podem enganar. Declarando seu ódio pelo gênero humano (“I am mesmo gesto bífido. Na verdade, ele conjura fingindo a verdade,
Misanthropos, and hate mankind”), com a cólera de um profeta
fingindo, ao menos, fazer prometer. Mas se finge fazer prometer,é,
judeu, e às vezes, as exatas palavras de Ezequiel, Timão maldiz a
na verdade, fazer prometer não manter a promessa, ou seja, não
corrupção, lança o anátema, pragueja contra a prostituição: a prosti-
prometer, embora parecendo prometer: perjurar ou abjurar na hora
tuição diante do ouro — e a prostituição do ouro mesmo. Porém, não
exata do juramento; depois, na consegiiência da mesmalógica, con-
perde a ocasião de analisar, contudo, a alquimia transfiguradora;
denunciaa reversão dos valores, a falsificação, o perjúrio, principal- jura a poupar OS juramentos, como se dissesse, em suma: eu os
mente de queele é a lei. Imagina-se a paciência impaciente de Marx conjuro, não jurem, abjurem seu direito de jurar, renunciem à sua
(antes que Engels), enquantotranscreve de seu próprio punho,longa- capacidade de jurar, aliás, não lhes pedimos um juramento, pedimo-
mente, em alemão,o arrebatamento de uma imprecação profética: lhes que sejam os não-ajuramentáveis que são (“You are not oatha-
ble”), vocês, as prostitutas, vocês que são a prostituição mesma, que
Só com isto eu deixaria se dão ao ouro, que se dão pelo ouro, para quem se reserva a
o negrobranco;o repelente belo; indiferença geral, que confundem na equivalência o próprio e o
o injusto,justo; o baixo, com nobreza...
impróprio, o crédito e o descrédito, a fé e a mentira, o “verdadeiro e
Este escravo amarelo...
amável deixa a lepra — o falso”, o juramento,o perjúrio e a abjuração. Vocês, prostitutas do
-..faz que novamente dinheiro, chegariam até a abjurar (forswear) seu ofício ou sua voca-
se case a viúva idosa. A que seria
pelo hospital de chagas repugnantes
com náuseas vomitada,isto embalsama
deixando comoabril cheio de aroma...
1 Op.cit.,p. 231.
2. Shakespeare, Timão deAtenas,op.cit., p. 231.
66 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 67

ção (de prostituta perjura) por dinheiro. Como uma alcoviteira renun- trust), mas apenas na imprecação de uma hipérbole paradoxal: finge
ciaria até às suas prostitutas por dinheiro. ter fé nisso que, no âmago da abjuração, no âmago disto que nem
mesmo é capaz ou digno do juramento (“you are nor oathable"),
Este é o caso da essência mesma da humanidade. Double bind continua sendo, contudo,fiel a um instinto natural, como se houvesse
absoluto a respeito do bind ou do salto (bond). Infelicidade infinita e um engajamento do instinto, umafidelidade a si da natureza instinti-
oportunidade incalculável do performativo — aqui literalmente no- va, um juramento da natureza viva antes do juramento da convenção,
meado (“perform”, “perform none”, são as palavras de Timão, da sociedade ou dodireito. E se trata da fidelidade à infidelidade, da
quando conjura prometer não cumprir uma promessa, apelando constância no perjúrio. Essa vida se submete regularmente, pode-se
assim para O perjúrio ou a abjuração). Força, como fraqueza de um dar-lhe crédito (trust) quanto a isso, dobra-se infalivelmente à potên-
discurso inumano sobre o homem. Timão a Alcibíades (ato IV, cia indiferente, a esse poder de indiferença mortal que é o dinheiro.
cena II): Diabólica, radicalmente má nisso, a natureza é prostituição, ela se
submete facilmente, pode-se confiar nela para isso, ela se submete,
Promise me friendship, but perform none: if thou wilt not promise, the precisamente, à traição, ao perjúrio, à abjuração, à mentira e ao
gods plague thee,for thou art a man!Ifthou dost perform, confoundthee, simulacro.
for thou art a man!
| Quenuncaestão longe do espectro. Sabe-se bem:o dinheiro e, mais
Prometa-me tua amizade, mas não cumpra a promessa. Se não quiseres claramente, o sinal monetário, Marx sempre os descreveu nafigura da
prometer-me isso, que os deuses te castiguem por seres homem; e se a
aparência ou do simulacro, mas, claramente, na do fantasma. Não os
cumprires, que te confundam,por seres homem! |
| descreveu simplesmente, definiu-os também, mas a apresentação fi-

ca caSassessao
gural do conceito parecia descrever alguma “coisa” de espectral,isto
Depoisa Frinéia e a Timandra que pedem ouro — e perguntam se
é, “alguém”. Qual é a necessidade desta apresentação figural? Qual é
Timão tem mais:
a sua relação com o conceito? Será contingente? Eis a forma clássica
Enough to make a whore forswear her trade, And to make whores a de nossa questão. Como não acreditamos aqui em nenhumacontin-
bawd. Hold up, you sluts, Your aprons mountant: you are not oathable, gência, chegaremosaté a preocupar-nos com a forma clássica (kantia-
Although, 1 know, you'll swear, terribly swear into strong shudders and na, no fundo) dessa questão que parece secundarizar ou manter a
. to heaventy agues The immortal gods that hear you, spare you oath, Pl distância o esquemafigural, à medida que o leva a sério. Para a crítica
trust to your conditions: be whoresstill. da economia política! explica-nos como a existência (Dasein) da
moeda, o Dasein metálico, ou o dinheiro produz um resto. Esse resto
O bastante para uma prostituta levar a renunciar (forswear) ao próprio
nãoé,ele nãoresta, precisamente, senão à sombra de um grande nome:
ofício [seu mercado,sua profissão, na medida em que implica o engaja-
mento de uma profissão desi], c à alcoviteira a preparar mais outras para “Was úbrigbleibt ist magni nominis umbra”. “O corpo da moeda não
substituí-las. Porcalhonas, abri os aventais. Não sois capazes dejuramen- é nada mais do que uma sombra (nur noch ein Schatten).”?2 Todo o
to [you are not oathable), muito embora eu saiba que ireis jurar terrivel- movimento de idealização (Idealisierung) que Marx descreve então,
mente,a ponto de provocar celestes calafrios nos deuses imortais que vos
ouvirem. Poupai os juramentos (spare your oatks), que eu confio (JL
trust) em vosso instinto. Prostitutas sede sempre ( ibid.).
1 Paraa crítica da economia política. Traduzido do original alemão Zur Kritik
der politischen Oekonomie, por José Arthur Giannotti e Edgar Malagodi.
Dirigindo-se à prostituição ou aoculto do dinheiro, ao fetichismo ou Marx, São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Coleção Os Pensadores).
àidolatria, Timão confia. Ele tem fé, crê, querdefato dar crédito (PU 2. Paraa crítica da economia política, op. cit., p. 197.
68 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 69

querse tratasse de moeda oude ideologemas, consiste numa produção coveiros em Hamlet, quando um dentre eles sugere que a obra do
de fantasmas,de ilusões, de simulacros, de aparências ou de aparições “grave-maker” dure mais tempo do que outra qualquer: até o Juízo
(Schein-dasein do Schein-Sovereign e do Schein-gold). Mais adiante, Final. Essa cena do enterro do ouro evoca, uma vez mais, infalivel-
ele aproximará esta virtude espectral da moeda disto que, no desejo de mente, Timão de Atenas. Na retórica funerária de Marx, o “metal
entesouramento, especula sobre o uso do dinheiro após a morte, no inútil”do tesouro torna-se, depois do enterro,tal qual a cinza esfriada
outro mundo (nach dem Tode in der andern Welt).* Geld, Geist, Geiz: (ausgebrannte Asche) da circulação, como seu caput mortuum, seu
comose dinheiro (Geld) fosse ao mesmo tempoa origem do espírito resíduo químico. Nasua elucubração,no seu delírio notumo(Hirnges-
(Geist) e da avareza (Geiz). Im Geld liegt der Ursprung des Geizes, pinst), O avaro, o entesourador, o especulador, torna-se um mártir do
diz Plínio, citado por Marx logo depois. Aliás, a equação entre Gaz e valorde troca. Ele não troca mais porque sonha com umatroca pura.
Geist vem-se acrescentar à cadeia.? A metamorfosedas mercadorias (E veremos mais adiante como o aparecimento do valor de troca, em
(Die Metamorphose der Waren) já era um processo de idealização O capital, é, justamente, uma aparição propriamente espectral, caso
transfigurante a que se pode legitimamente chamar espectropoética. esta figura não nosproibisse de falar aqui propriamente do próprio.)
Quando o Estado emite o papel-moeda com curso obrigatório, sua O homem do tesouro conduz-se, então, como alquimista (alchimis-
intervenção é comparada a uma “magia” (Magie) que transforma o tisch), especula sobre os fantasmas, os “elixires da vida”, a “pedra
papel em ouro. O Estado parece,então, pois se trata de uma aparência, filosofal”. A especulação é sempre fascinada,enfeitiçada pelo espec-
até mesmo uma aparição, ele “parece agora, pela magia de seu tro. Que esta alquimia permaneça voltada para o aparecimento do
carimbo [a que sela o ouro e imprime a moeda], poder transformar espectro, a obsessão ou O retorno das aparições, isso aparece na
papel em ouro (scheint jetzt durch die Magie seinesStempels Papier literalidade de um texto que as traduções, às vezes, negligenciam.
in Gold zu verwandeln).3 Essa magia agita-se junto aos fantasmas, faz Quando, na mesma passagem, Marx descrevea transmutação,trata-se
negócios* com eles, manipula ou agita a si mesmo, torna-se um caso, aí da obsessão. O que opera de modo alquímico são os intercâmbios
um caso com o qual lida, precisamente, no elemento da obsessão. E ou as misturas entre aparições, composições ou conversões loucamen-
esse caso atrai os empregados de funerária, estes que tratam dos te espectrais. O léxico da obsessão e das aparições (Spuk, Spuken)

a
cadáveres, mas para roubá-los, para fazer desaparecer os desapareci- ocupaa frente da cena. O que se traduz por “fantasmagoria de uma
dos, o que permanece a condição de sua “aparição”. Comércio teatro louca alquimia” (“a forma fluida da riqueza e sua forma petrificada,
de coveiros.. Nas épocas de crise social, quando o “nervus rerum” elixir de vida e pedra filosofal, entremeiam-se na fantasmagoria de
social é, diz Marx, enterrado (bestastet) ao lado do corpo de que é uma louca alquimia”, trata-se de “[...] spuken alchimistisch toll
“nervo”, O enterro especulativo do tesouro não enterra senão um durcheinanker”).
“metal inútil”, privado de sua alma de dinheiro (Geldseele). Esta cena Em suma,e voltaremosa referir-nos a isso, Marx não gosta mais
do enterro não lembra unicamente à grande cena do cemitério e dos dos fantasmas que seus adversários. Recusa-se a acreditar nisso. Mas
só pensa nisso. Acredita o bastante no que supostamente osdistingue
da realidade efetiva, da efetividade viva. Acredita poder contrapô-
1 0C.p.95 los, como a morte à vida, como as vãs aparências do simulacro à
2. O.C,,p. 97. Trata-se aí de uma cadeia semântica que tinhamosanalisado em presença real. Acredita suficientemente nasfronteiras dessa oposição
Glas (em Hegel) e em De lesprit, Heideggeret la question [Do espírito,tr. para querer denunciar, expulsar ou exorcizar os espectros, mas pela
br. Constança Marcondes Cesar. Papirus Editora].
3 Op.cit.,p. 204
4. Em francês: Cette magie s'afaire, elle fait afjaire, elle manipule ou s'affaire
elle même,elle devient une afjaire [...). (N.T.) L OC, p.98.
70 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx Al

análise crítica, não por qualquer contramagia. Mas comodistinguir brada, o mais das vezes, um espírito malfeitor, um espectro, uma
entre a análise que se vale da magia e a contramagia que ela ainda espécie de fantasma que retorna ou que aindacorreo risco de retomar
corre o risco de ser? Tentaremos ainda dar uma resposta a essa post mortem. O exorcismo conjura o mal, segundo vias igualmente
questão, por exemplo,a propósito de A ideologia alemã. No “Concí- irracionais e segundopráticas mágicas, misteriosas, até mesmo mis-
lio de Leipzig — são Max”(Stimer) organiza também,ressaltemo-lo tificantes. Sem excluir, muito pelo contrário, o procedimento analíti-
ainda, antes de retornarmosa isso mais adiante, uma irresistível mas co e o raciocínio argumentativo, o exorcismo consiste em repetir, sob
interminável caçada ao fantasma (Gespenst) e à aparição (Spuk). o mododa encantação, que o morto está de fato morto. Procede por
Irresistível como umacrítica eficaz, mas também como uma compul- meio de fórmulas, e, às vezes, as fórmulas teóricas desempenham
são, interminável como se diz de umaanálise, e a aproximação nada esse papel com tal eficácia que engana quanto à sua natureza mágica,
teria, sem dúvida, de fortuita. seu dogmatismo autoritário, o oculto poder que repartem com isso
Essa hostilidade para com os fantasmas, umahostilidade aterrado- que elas pretendem combater.
ra que se defende, às vezes, do terror pela gargalhada,é talvez o que Mas o exorcismoeficaz não finge constatar a morte a não ser para
Marx sempreterá tido em comum com seusadversários. Ele também matar. Comoo faria um médico legista, ele declara a morte, mas é,
gostaria de conjurar os fantasmas, e tudo isto que não era nem a vida aqui, para dá-la. Conhece-se bem essa tática. A forma constativa
nem a morte, a saber, a re-aparição de uma aparição que nunca será tende a trangiilizar. A constatação é eficaz. Quer e deve ser com
nem Oo aparecer nem o desaparecido, nem o fenômeno nem seu efeito. Trata-se efetivamente de um performativo. Mas a efetividade
contrário. Ele gostaria de ter conjurado o fantasma como os conjura- aquise fantãsmaliza a si mesma. Trata-se, com efeito, de um perfor-
dosdavelha Europa, a quem o Manifesto declara guerra. Por inclem- mativo que procura certificar, mas, primeiramente, certificando si
ente que continue sendoessa guerra e por necessária essa revolução, mesmo ao certificar-se, pois nada é menos certo de que isto, cuja
Marx conjura-se comeles para exorçanalisar a espectralidade do morte desejaríamos,esteja de fato morto. Ele fala em nomedavida,
espectro. E este é hoje, e será talvez amanhã, o nosso problema. presume saher o que ela é. Quem o sabe melhor do que um vivo?
2. Pois “conjuração” significa, de outra parte, “conjuro” (Bes- Parece dizer sem rir. Procura convencer-(se) aí onde (se) infunde
chwôrung), a saber, o exorcismo mágico que, ao contrário, tende a medo:ei-lo, o que se mantinhavivo, diz-(se), já não vive mais, assim
expulsar o espírito maléfico que teria sido chamado ou convocado é que isso não continua sendo eficaz na morte, podem ficar trangii-
(OED: “Theexorcising of spirits by invocation”, “the exercise of los. (Trata-se de um modode não querer saberisto que todo vivo sabe
magical or occult influence”). sem aprender e sem saber, a saber, que o morto pode ser, às vezes,
Uma conjuração é primeiramente umaaliança, sem dúvida, às mais poderoso do que o vivo; e é por isso que interpretar uma
vezes umaaliança política, tanto ou quanto secreta, senão tácita, um filosofia como filosofia ou como ontologia da vida não é nunca
complô ou uma conspiração. Trata-se de neutralizar uma hegemonia simples, o que quer dizer que é sempre simples demais, incontestável,
ou de derrubar um poder (na Idade Média, conjuratio designava como o que é evidente, mas, no fundo, tão pouco convincente, tão
também fé jurada por meio da qual os burguesesse associavam,às pouco quanto à tautologia, uma tauto-ontologia bastante heterológi-
vezes contra um príncipe, para fundar as cidades francas). Na socie- ca, a de Marx ou dealguém,quenão reconduziria tudo à vida senão
dade oculta dos conjurados, certos sujeitos, individuais ou coletivos, sob a condição de nela incluir a mortee a alteridadede seu outro, sem
representam forças e 'aliam-se em nome de interesses comuns para o que ela não seria o que é.) Em suma,trata-se muitas vezes defingir
combater um adversário político temido, isto é, também para conju- constatar a morte aí onde a certidão de óbito ainda é o performativo
rá-lo. Pois conjurar quer dizer também exorcizar: tentar simultanea- de umaação de guerra oua gesticulação impotente, o sonho agitado
mente destruir e denegar uma força maligna, endemoninhada, endia- de um assassínio.
CAPÍTULO 2

Conjurar-o marxismo

“The time js out ofjoint”: a fórmula fala do tempo,ela diz também


o tempo, mas refere-se singularmente a este tempo,a estes tempos,a
um “por estes tempos”, o tempo destes tempos, o tempo deste mundo
que foi para Hamlet um “nosso tempo”, simplesmente um “este
mundo de agora”, esta época e nenhuma outra. Este predicado diz
alguma coisa do tempoe o diz no presente do verbo ser (Thetime is
out ofjoint), mas se O diz então, nesse outro tempo,no pretérito per-
feito, uma vez no passado, como isto valeria para todos os tempos?
Em outras palavras, como pode retornar e apresentar-se de novo, ou-
tra vez, como o novo? Como podeestar presente, de novo, quando
seu tempo não está mais presente? Como pode valer para todas as
vezes que alguém tenta dizer “nosso tempo”? Numa proposição pre-
* dicativa que se refere ao tempo, e claramente à forma-presente do
tempo, o presente gramatical do verbo ser, a terceira pessoa do pre-
sente do indicativo dá a impressão de oferecer uma hospitalidade
predestinada ao retomo de todos os espíritos, palavra que basta es-
crever no plural para dar as boas-vindas aos espectros. Ser, e princi-
palmente quandonoinfinitivo, subentende-se ser presente, não é um
dito espirituoso, mas é o dito do espírito, é seu primeiro corpo verbal.
Umtempo do mundo, hoje, por estes tempos: uma nova “ordem
mundial” buscaestabilizar um desregramento novo, necessariamen-
74 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 75

te novo, instalando uma forma de hegemonia sem precedente. Trata- possibilidade da res publica e a fenomenalidade do político), este
se, pois, mas como sempre, de uma forma de guerra inédita. Asseme- elemento mesmo não está nem vivo nem morto, nem presente nem
lha-se, em parte, a uma grande “conjuração” contra o marxismo, um ausente, ele espectraliza. Não pertence à ontologia, nem ao discurso
“conjuro” do marxismo: uma outra vez, uma outra tentativa, uma sobre o ser do ente, nem à essência da vida ou da morte. Ele requer
nova, sempre nova mobilização para lutar contra ele, contra isto e isto a que chamamos, portanto, por economia e não para criar uma
contra estes queele representa e continuará a representar (a idéia de palavra, uma obsidiologia. Categoria que consideraremos irredutí-
uma nova Internacional), e para combater uma Internacional exorci- vel, e em primeiro lugar, a tudo isto que ela toma possível, a ontolo-
zando-o. gia, a teologia, a onto-teologia positiva ou negativa.
Muito nova e muito antiga, a conjuração parece a um só tempo Essa dimensão dainterpretáção performativa, ou seja, uma inter-
poderosa e, como sempre, inquieta, frágil, ansiosa. O inimigo a pretação que transforma isto mesmo que interpreta, desempenhará
conjurar, para os conjurados, chama-se certamente o marxismo. Mas um papel indispensável nisto que eu queria dizer esta noite. Uma
se tem medo, daqui por diante, de não mais reconhecê-lo. Treme-se interpretaçãoque transforma o queinterpreta,eis aí uma definição do
diante da hipótese de que, valendo-se de uma das metamorfoses de performativo que é tão pouco ortodoxa com referência à speech act
que Marx tanto falou (“metamorfose” foi, durante toda a sua vida, theory quanto a XI das Teses sobre Feuerbach (“Osfilósofos apenas
uma de suas palavras favoritas), um novo “marxismo” não tenha interpretaram o mundo de formas diferentes, o que importa é trans-
mais O aspecto exterior sob o qual habitualmente era identificado e formá-lo”, Die Philosophen haben die Welt nur verschieden inter-
tirado do caminho. Talvez não se tenha mais medo dos marxistas; pretiert; es kommt aber drauf an, sie zu verândern).
masainda se tem medo de certos não-marxistas que não renunciaram Se uso dapalavra na abertura de um simpósio tão impressionante,
à herança de Marx, cripto-marxistas, pseudo- ou para-''marxistas”, ambicioso, necessário ou arriscado, outros diriam histórico; se, após
que estariam prontos a substituí-los, sob feições ou citações que os grandes hesitações, e apesar dos limites evidentes de minha compe-
experts ansiosos do anticomunismo não estariam preparados para tência, aceitei, contudo, o convite com que me honrou Bemd Mag-
desmascarar. ' nus, não é, em primeiro lugar, para entabular um discurso filosófico
Afora as razões que vimos de dar para isso, ainda seria preciso e erudito.É, primeiramente,para não fugir de uma responsabilidade.
para nós privilegiar, por outras razões,essa figura da conjuração. Elas Mais precisamente, para submeter à discussão algumas hipóteses
já foram anunciadas. Nos dois conceitos de conjuração (conjuração sobre a natureza detal responsabilidade. Qual vem a ser a nossa? Em
e conjuro, Verschwôrung e Beschwôrung), devemos levar em conta que ela é histórica? E o que tem ela que ver com tantos espectros?
uma outra significação essencial. É a que consiste no ato de jurar, de Ninguém, ao que me parece, pode contestá-lo: um dogmatismo
prestar juramento, portanto, de prometer, de decidir, de assumir uma busca instalar sua hegemonia mundial em condições paradoxais e
responsabilidade, em suma, de comprometer-se de modo performa- suspeitas. Há hoje no mundo um discurso dominante, ou antes, em
tivo. E de modo tanto ou quanto secreto, portanto, tanto ou quanto vias de se tornar dominante, acerca da obra e do pensamento de Marx,
público; aí onde esta fronteira entre o público e o privado se desloca acerca do marxismo (que é talvez outra coisa), acerca de todas as
incessantemente, permanecendo menoscerta do que nunca, como à figuras passadas da Internacional socialista e da revolução universal,
que permitiria identificar o político. E, se essa fronteira capital se acerca da destruição um tanto ou quanto lenta do modelo revolucio-
desloca, é que o medium em queela seinstitui, a saber, precisamente nário de inspiração marxista, acerca do desmoronamento rápido,
o medium dos massmídia (a informação,a imprensa,a tele-comuni- precipitado, recente das sociedades que tentaram empregá-lo, pelo
cação, a tecno-tele-discursividade, a tecno-teleiconiçidade, isto que menosaí no que porenquanto chamaremos,citando ainda o Manifes-
garante e determina em geral o espaçamento do espaço público, a to, a “velha Europa”etc. Esse discurso dominador assume repetida-
76 JACQUES DERRIDA
Espectros de Marx 7

mente a forma maníaca, jubilosa, encantatória, que Freud distinguia absolutamente inédito, em um ritmo quecoincide precisamente, sem
em certa etapa dita triunfante do trabalho do luto. A encantação dúvida de maneira não fortuita, com o da queda dos regimes de
repete-se, ritualiza-se, empenha-se por fórmulas, como requer toda modelo marxista, para que contribuiu poderosamente, mas — e não
magia animista. Recai na repetição e no refrão. Ao ritmo cadenciado é menos importante — sob formas, modos de apropriação e a uma
de um passo, proclama: Marx está morto, o comunismo está morto, velocidade que afetam também, de modo essencial, o conceito mes-
de fato morto, com suas esperanças, seu discurso, suas teorias e suas mo do espaço público nas democracias ditas liberais, e, no centro
práticas; viva o capitalismo, viva o mercado, sobreviva o liberalismo deste simpósio, a questão da tele-tecnologia, da economia e do poder
econômico e político! midiático, em sua dimensão irredutivelmente espectral, deveria atra-
Se essa hegemonia tenta instalar sua orquestração dogmática em vessar todas as discussões. O que se pode fazer com os esquemas
condições suspeitas e paradoxais, é, primeiramente, porque essa marxistas para tratar disso hoje — teórica e praticamente — e,
conjuração triunfante esforça-se, na verdade, em denegar, e para isso portanto, para mudá-los? Para dizê-lo numa palavra que resumiria,
em dissimular, que jamais, em ocasião algumada história, o horizon- no fundo, a posição que vou defender (e isto que estou adiantando
te disto cuja sobrevivência se celebra (a saber, todos os velhos agora, perdoem-me repetir, esta preocupação corresponde mais a
modelos do mundo capitalista e liberal) esteve tão sombrio, ameaça- uma tomada de partido do queao trabalho queesta implica, pressu-
dor e ameaçado. Nem de tal forma “histórico”, entendamosporisto põe ou prefigura), esses esquemas parecem, ao mesmo tempo, indis-
inscrito em um momento absolutamente inédito de um processo que pensáveis e insuficientes na sua forma atual. Marx é um dos poucos
por sua vez também se encontra submetido a uma lej de iterabilidade. pensadores do passado a ter levado a sério, pelo menos no seu
O que estamos fazendo,ao falar, desde estas primeiras palavras, princípio, a indissociabilidadeoriginária da técnica e da linguagem,
de um discurso tendenciosamente dominante e de uma evidência portanto, da tele-técnica (pois toda linguagem é uma tele-técnica).
incontestável a esse respeito? , Porém, isso em nada o denigre; antes consiste em falar de dentro do
Ao menos duas coisas. Estamos evidentemente recorrendo a con- que ousamos ainda chamar o espírito de Marx; é quase citá-lo,
ceitos prontos: 1. o de hegemonia (“discurso dominante”) e 2. o de literalmente, em suas próprias previsões, é observar um fato e con-
testemunho (“evidência incontestável”). Será preciso descrevê-los e Jirmá-lo quese diga: quantoà tele-técnica, ou seja, também quanto à
justificá-los. ciência, ele não poderia ter acesso à experiência e às ficções que
1. Referimo-nos, implicitamente, principalmente para falar do que temos hoje. .
ninguém sonharia em contestar, suponho,ao que organiza e comanda c) Existe, finalmente, a cultura erudita ou acadêmica, particular-
em todaparte a manifestação pública, o testemunho no espaço públi- mente a dos historiadores, dos sociólogos e dos politicólogos, dos
co. Trata-se de um conjunto constituído, ao menos,portrês lugares teóricos daliteratura, dos antropólogos, dosfilósofos, especialmente
ou dispositivos indissociáveis de nossa cultura. dosfilósofos do político, cujo discurso remonta à edição acadêmica,
a) Há, primeiramente, a cultura chamada mais ou menos propria- comercial, mas também midiática em geral. Pois, não passará desper-
mente de política (os discursosoficiais dos partidos e dos políticos cebido a ninguém que ostrês lugares, formas e poderes que vimos de
que estão no poder no mundo, quase portoda parte onde prevalecem identificar (o discurso expressamente político da “classe política”, o
modelos ocidentais, a palavra ou a retórica do a que se chama, na discurso midiático e o discurso intelectual, erudito ou acadêmico)
França, “a classe política”). estão, mais do que nunca, soldados pelos mesmos aparelhos ou por
b) Há também a cultura confusamente qualificada de mass-midiá- aparelhos indissociáveis. Esses aparelhos são, sem dúvida, comple-
tica: “comunicados”e interpretações, produçãoseletiva e hierarqui- xos, diferenciais, conflituais, sobredeterminados. Mas quaisquer que
zada da “informação”, em canais cujo poder aumentou de modo sejam osconflitos entre eles, as desigualdades ou as sobredetermina-
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ções, eles transmitem e afluem a cada instante em direção ao ponto nenhuma devoção passadista em lembrá-lo, nenhum sabor tradicio-
da maior força para assegurar a hegemonia ou o imperialismo em nalista. A reação,o reacionário ou o reativo, é o caso, unicamente, de
questão. Fazem-no valendo-se da mediação do que chamamos, pre- interpretações da estrutura de herança. Somos herdeiros, o que não
cisamente, os mmassmídia, no sentido mais amplo, o mais móvel, e, querdizer que temos ou que recebemosisto ou aquilo, que tal herança
considerando a aceleração dos avançostécnicos, o mais invasor deste nos enriquece um dia com isto ou aquilo, mas que o ser disso que
termo. A hegemonia político-econômica, assim como a dominação somos é, primeiramente, herança, O queiramos, saibamos ou não. E
intelectual ou discursiva, passa, como nunca o havia feito, nem a tal sobre o quê, Hôlderlin o diz tão bem, só podemos testemunhar.
grau, nem sob essas formas anteriormente, pelo podertecno-midiáti- Testemunhar seria testemunhar do que somos à medida que herda-
co — ou seja, por um poder que ao mesmo tempo, de modo diferen- mos,e aí está o círculo,aí está a oportunidade oua finitude, herdamos
ciadoe contraditório, condiciona e põe em perigo toda democracia. isto mesmo quenos permite dar testemunho. Hólderlin chamaa isso
Ora, trata-se de um poder, um conjunto diferenciado de poderes, que de linguagem, “o mais perigoso dos bens”, dado ao homem, ““a fim
não se pode analisar, e eventualmente combater, apoiar aqui, atacar de que ele testemunheter herdado / isto que ele é (damit er zeuge,
ali, sem levar em conta tantosefeitos espectrais, da nova velocidade was er sei / geerbt zu haben)”
da aparição (entendamos essa palavra no sentido fantasmático) do 2. Quando adiantamos, ao menosa título de hipótese, que o dogma
simulacro, da imagem sintética ou protética, da realidade virtual do a propósito do fim do marxismo e das sociedades marxistas é, nos
ciberespaço e do arrazoamento, das apropriações ou especulações dias atuais, tendenciosamente, um “discurso dominante”, estamos
que manifestam, nos dias de hoje, poderes inauditos. Quanto a saber ainda falando, evidentemente, no código marxista. Não devemos
se Marx e seus herdeiros ajudaram-nos a pensar e a tratar este negar ou disfarçar o caráter problemático deste gesto. Alguns não
fenômeno, se disséssemos que a resposta é, ao mesmo tempo,sim e estarão inteiramente errados em denunciar nele um círculo ou uma
não, sim a tal respeito, não a tal outro, e que é preciso filtrar, petição de princípio. Nós confiamos,efetivamente, ao menosprovi-
selecionar, diferenciar, reestruturar as questões, seria simplesmente soriamente, nesta forma de análise crítica que herdamos do marxis-
para anunciar, de modobastante preliminar, o tom e a forma geral de mo: numa situação dada, e contanto que esta seja determinável, e
nossas conclusões, a saber, que é preciso assumir a herança do determinada como a de um antagonismo sociopolítico, uma força
marxismo, assumir a mais “viva”, ou seja, paradoxalmente, o que hegemônica parece sempre representada por umaretórica e por uma
nunca se afastou da questão da vida, do espírito ou do espectral, de ideologia dominantes, quaisquer que sejam os conflitos de forças, a
a-vida-a-morte para além da oposição entre a vida e a morte. Essa contradição principal ou as contradições secundárias, as
herança, é preciso reafirmá-la, transformando-a tão radicalmente sobredeterminações ou as substituições gue podem, em seguida,
quanto será necessário. Essa reafirmação seria, ao mesmo tempo,fiel complicar esse esquema — e, portanto, nos chamar a vir a suspeitar
a algumacoisa que repercute no apelo de Marx — digamos ainda no da simples oposição do dominante e do dominado, até mesmo da
espírito de sua injunção — e conforme ao conceito da herança em determinação última das forças em conflito, até mesmo,mais radical-
geral. A herança não é jamais dada, é sempre umatarefa. Permanece mente, que a força seja sempre mais forte que a fraqueza (Nietzsche
diante de nós,tão incontestavelmente que, antes mesmo de querê-la
ou recusá-la, somos herdeiros, e herdeiros entutados, como todos os
herdeiros. Em especialdisto a que chama marxismo. Ser,esta palavra 1. Esse esboço fragmentário de Hôlderlin (1800) é citado por Heidegger em
em que víamos acima o dito espirituoso,isso querdizer, pela mesma Hólderlin und das Wesen der Dichtung (Gesamiausgabe, Bnd IV, Kloster-
razão, herdar. Todas as questões concernentes ao ser ou ao que há mann, 1981, p. 35), tr. f. por H. Corbin, em Heidegger, Approche de
em ser(ou em não ser: or not to be) são questões de herança. Não há Hôlderlin, Gallimard, 1973, pp. 44-45.
so JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 81

e Benjamin nos incitaram a duvidar disso, cada qual a seu modo, e rança crítica: pode-se deste modo, por exemplo, falar de discurso
sobretudoeste último quando associou o “materialismo histórico” à dominante ou de representações e de idéias dominantes,e referir-se
herança, precisamente, de alguma “fraca força messiânica”)!. Be- assim a um campo conflitual hierarquizado, sem necessariamente
subscrevero conceito de classe social por meio do qual Marx tantas
vezes determinou, especialmente em A ideologia alemã, as forças
que disputam a hegemonia. E até, muito simplesmente, o Estado.
1. Benjamin o faz em um texto que nos interessa aqui, entre tantas e tantas |
Quando, por exemplo, evocando a história da idéias, o Manifesto
outras coisas, pelo que diz, em seu começo, do autômato. Mais de uma vez
nos referiremos à figura do autômato, principalmente quando tratarmos da
declara que “as idéias dominantes” (die herrschenden Ideen) de uma
descrição que O capital faz de uma certa mesa: figura do valor-mercadoria, época nunca foram senão as idéias da “classe dominante” (der
espectro autômato e autômata ao mesmo tempo, origem irredutível das herrschenden Klasse), não está vedado a umacrítica seletivafiltrar a
capitalizações, quando não do capital. Aqui Benjamin começa evocando “a herança desse enunciado para dele conservar isto e não aquilo.
lenda do autômato capaz de responder, numapartida de xadrez, a cada lance Pode-se continuar a falar de dominação em um campo de forças,
de seu parceiro e de garantir o sucesso da partida”. Esse autômato repousa suspendendo não somentea referência a esse suporte último queseria
também sobre uma “mesa” que um sistema de espelhos dá a ilusão de
atravessar. Em seguida, ele busca “uma réplica” (Gegenstiick) filosófica a identidadee a identidadea si de umaclasse social, mas até suspen-
desse “dispositivo” (Apparatur). Trata-se da “boneca chamada 'materialis- dendoo crédito concedido ao que Marx chamaa idéia, a determina-
mo histórico”: “Ela pode audaciosamente desafiar qualquer um se cla toma ção da superestrutura comoidéia, representação ideal ou ideológica,
a seu serviço a teologia nosdias de hoje, sabe-se, pequenae feia e que, de até mesmo a forma discursiva dessa representação. Com mais razão
resto, não se atreve mais a mostrar-se.” O parágrafo seguinte nomeia o ainda porquê o conceito de idéia implica essairredutível gênese do
messianismo ou, mais exatamente, messiânico sem messianismo, uma “fraca
espectral que estamos projetando reexaminar aqui.
força messiânica” (eine schwache messianische Kraft, sublinha Benjamin).
Citemos essa passagem pelo queaí sc harmoniza, apesar de muitas diferenças Mas observemos provisoriamente, neste momento muito prelimi-
- e guardadas as proporções, com o que tentaremos dizer aqui de um certo nar de nossaintrodução, o esquemado discurso dominante. Se há um
desenlace messiânico, numalógica espectral da oo e das gerações; mas discurso quetende hoje a prevalecer sobre a nova cena do geopolítico
umalógica voltada, num tempo heterogêneo e disjunto, para o porvir não (na retórica política, no consenso midiático, sobre a parte maisvisível
menos que para o passado. Isso que Benjamin chama Anspruch (pretensão, e sonora do espaço intelectual ou acadêmico),é este, que diagnostica
apelo, interpelação, aptidão) não se afasta muito do que sugerimos com a em todosos tons, com umacerteza imperturbável, não somente o fim
palavra injunção: “O passado traz consigo um índice secreto (heimlichen
Index) que o remete à libertação / Erlôsung [...] Existe um entendimento
das sociedades construídas a partir de um modelo marxista, mas o fim
secreto (geheime Verabredung) entre as gerações passadas e a nossa. Éramos de toda tradição marxista, até mesmoda referência à obra de Marx,
esperados sobre a Terra. A nós, como a cada geração precedente, foi conce- para não dizer o fim da história simplesmente. Tudoisto teria, enfim,
dida uma fraca força messiânica sobre a qual o passado faz valer uma atingido seus confins na euforia da democracia liberal e da econo-
pretensão (Anspruch). É justo não desprezá-la. Aquele que professa o mate- mia de mercado. Esse discurso triunfante parece relativamente ho-
rialismo histórico sabe por que razões [sabe algumacoisa disso: Der histo- mogêneo,o mais das vezes dogmático, às vezes politicamente equi-
rische Materialist weisz darum].” (Uber den Begriff der Geschichte, em
Hluminationen, Suhrkamp, 1977, pp. 251-252,tr. fr, — aqui ligeiramente
vocado e, como os dogmatismos, como todas as conjurações,
modificada —, por M. de Gandillac, Thêses sur la philosophie de l'histoire,
em Benjamin, L'Homme, le Langage et la Culture, Denogl-Gonthier, 1971,
pp. 183-184). Seria precisocitar,e reler aqui, todas essas páginas — densas, “porta estreita” para a passagem do Messias,a saber, cada “segundo”. Pois
enigmáticas, ardentes —, até a alusão final ao espinho (estilhaço, esquírola: “para os judeus o futuro não se tornou, todavia, um tempo homogêneo €
Splitter) que o messiânico inscreve no corpo do a-presente (Jetztzei) e até a vazio” (O.C., p. 196).
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secretamente inquieto e manifestamente inquietante. O protocolo de liberal”.! Não há dúvida, ao responder “sim” à pergunta assim
nossa conferência evoca o exemplo do livro de Francis Fukuyama, formulada, Fukuyamaconfessa na mesma página, não ignorar tudo o
O fim da História e o. último Homem.! Não seria este o caso de que permite duvidar disso: as duas guerras mundiais, os horrores do
um novo evangelho, o mais barulhento, O mais midiático, o mais totalitarismo — nazista, fascista, stalinista —, os massacres de Pol
“successful” acerca da morte do marxismo como fim da história? Pot etc. Pode-se supor que ele teria aceitado ampliar essa lista
Esta obra assemelha-se muitas vezes, a bem dizer, ao subproduto desastrosa. Ele não o faz, e perguntamo-nos por quê, e se essa
consternadore tardio de uma “foornote”: Nota bene para um certo limitação é contingente ouinsignificante. Mas, segundo um esquema
Kojêve, que mereceria mais. No entanto,esselivro não é tão ruim ou que organiza de ponta a ponta a argumentação desse estranho requi-
tão ingênuo quantofaria crer uma exploração imoderada, que o exibe sitório, todosesses cataclismas (terror, opressão, repressão, extermí-
como a mais bela vitrine ideológica do capitalismo vencedor, numa nio, genocídio etc.), esses “acontecimentos” ou esse “fatos” perten-
democracia liberal tendo enfim alcançado a plenitude de seu ideal, ceriam à empiricidade, ao “fluxo empírico dos acontecimentos dessa
senão de sua realidade. De fato, embora no essencial ele permaneça segunda metade do século”,? eles permaneceriam fenômenos empí-
natradição de Leo Strauss, continuada por Allan Bloom, o exercício ricos autorizados por “testemunhos empíricos” .3 Sua acumulação
escolar de um leitor jovem, aplicado, mas tardio de Kojêve (e de em nada desmentiria a orientação ideal da maiorparte da humanidade
alguns outros), esse livro, é preciso reconhecê-lo, é aqui ou ali mais rumo à democracia liberal. Como ;a!, como telos de um progresso,
do que matizado: às vezes mesmo hesitante até a indecisão. As essa orientação teria a forma de uma finalidade ideal. Tudo o que
questões queelabora à sua maneira, ocorre-lhe acrescentar ingenua- parece contradizê-la pertenceria ao campo da empiricidade histórica,
mente, para não ser pego em erro, o que chama de uma “resposta de por maciça,catastrófica, mundial, múltipla e recorrente queestaseja.
esquerda” para uma “respostade direita”.2 Mereceria, portanto, uma Mesmose sp admitisse a simplicidade dessa distinção sumária, entre
análise que o seguisse de perto. Devemos limitar-nos esta noite ao a realidade empírica e a finalidade ideal, restaria saber como essa
que concemeà estrutura geral de umátese indispensável, justamente orientação absoluta, esse telos a-histórico da história, enseja, muito
na estrutura mesma de sua lógica, na fórmula de sua fórmula, à claramente em nossos dias, nesses tempos de agora, em nosso tempo,
conjuração antimarxista. um acontecimento de que Fukuyama fala como de uma “boa nova”,
Depropósito, evidentemente, o chamamos há pouco “um evange- e queele data muito explicitamente da “mais notável revolução deste
lho”. é último quartel do século XX” (p. 13). Reconhece,decerto, queisto
Por que um evangelho? Por que a fórmula seria, aqui, neotesta- que descreve como o desmoronamento das ditaduras mundiais de
mental? Esselivro pretende trazer uma “resposta positiva” para uma direita ou de esquerda nem sempre “abriu caminho para democracias
questão cuja formação e a formulação não são nunca questionadas liberais estáveis”. Mas acredita poderafirmar que,nesta data,e é esta
em si mesmas. Com a de se saber se uma “história da humanidade a“boa nova”, uma notícia datada, “a democracia liberal permanece
coerente e orientada” “terminará por conduzir” isto que o autor a única aspiração política coerente que une diferentes regiões e
chama tranguilamente, enigmaticamente, de modo ao mesmo tempo culturas em volta da terra”. Essa “evolução rumoà liberdade política
pudico e impudente, “a maior parte da humanidade”, à “democracia no mundointeiro” se teria feito, segundo Fukuyama, “sempre acom-

1. The End of History and the Last Man. The Free Press, New York, 1992, L OC.p. 13.
traduzido e publicado, no mesmo ano, por D.A. Canal, Flammarion. 2 OC, p. 96.
2 0C.p.22. 3. .0.C,pp. 21, 164, 324 e passim.
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panhar”,a palavra é sua [segundoa tradução francesa para “someti- mos, porelipse, sob a expressão “apropriação de Jerusalém”. A
mes followed sometimes preceded” de “uma revoluçãoliberal no guerra pela “apropriação de Jerusalém” é hoje a guerra mundial. Ela
pensamento econômico”.! A aliança da democracia liberal e do tem lugar por toda parte,trata-se do mundo,trata-se, hoje, da figura
“livre mercado”, ei-la, são ainda as palavras do autor e não é singular de seu estar “out ofjoint”. Ora, sempre de modo bastante
simplesmente uma boapalavra, a “boa nova” deste último quarto de elíptico, digamos que para determinar, em suas premissas radicais, a
século. Essa figura evangélica é notavelmente insistente. Como ela violência médio-oriental como desencadeamento das escatologias
prevalece, ou pretende prevalecer na escala geopolítica, merece ser, messiânicas e combinatória infinita das santas alianças (é preciso pôr
ao menos, sublinhada. essa palavra no plural para relatar o que move,nessas alianças, o
triângulo das três religiões ditas do Livro), o marxismo continua
(Vamos portanto sublinhá-la, assim como a da Terra Prometida sendo, ao mesmo tempo,indispensável e estruturalmente insuficien-
que se encontra, a um só tempo, próxima e dissociada; por duas te: ainda necessário, mas contanto queo transformemose o adapte-
razões que não podemosindicar aqui senão entre parênteses. Por um mos às novas condições e a um outro pensamento do ideológico;
lado, essas figuras bíblicas desempenham um papel que parece ultra- contanto que o amoldernos à análise da novaarticulação das causali-
passar O simples clichê retórico de que têm a aparência. Por outro dades tecno-econômicas e dos fantasmas relígiosos, a dependência
lado, elas chamam de tal forma mais atenção Que, de modo não do jurídico ao serviço de poderes socioeconômicos ou de Estados
fortuito, a maior concentração sintomática ou metonímica do que que, porsi só, nunca são totalmente independentes com relação ao
permanece irredutível dentro da conjuntura mundial, em que se capital (mas, não há mais, nunca houve o capital, nem o capitalismo,
inscreve hoje a pergunta “Para onde vai o marxismo?” (“Whither somente capitalismos — de Estado ouprivados, reais ou simbólicos,
marxism?"), tem seu lugar, no Oriente Médio: três outras escatolo- sempre ligados a forças espectrais — capitalizações, de preferência,
gias messiânicas nele mobilizam todas as forças do mundo e toda a cujos antagonismossão irredutíveis).
“ordem mundial” na guerra inclemente quetravam, direta ou indire- Essa transformação e essa abertura do marxismo são conformes
tamente; elas mobilizam simultaneamente, para empregá-los e pô-los ao que chamávamos, há pouco, de espírito do marxismo. Se a análise
à prova,os velhos conceitos de Estado e de Estado-Nação,do direito de tipo marxista continua sendo indispensável, portanto, ela parece
internacional, das forças tele-tecno-mídio-econômicas e científico- radicalmente insuficiente aí, onde a ontologia marxista que funda o
militares, ou seja,forças espectrais as mais arcaicas e as mais moder- projeto de ciência ou de crítica marxista comporta também ela mes-
nas. Seria preciso analisar, na amplitude sem limites de seus riscos ma, e deve comportar,é preciso,apesar de tantas denegações moder-
históricos, desde o final da Segunda Guerra Mundial, especialmente nas ou pós-modemas, umaescatologia messiânica. A essetítulo pelo
desde a criação do Estado de Israel, as violências que pelo mundo menos, paradoxalmente, e embora dela participe necessariamente,
afora a precederam, constituíram, acompanharam e seguiram, ao ela não tem meios de estar simplesmenteclassificada entre os ideolo-
mesmo tempo em conformidadee não obstante um direito internacio- gemas ou osteologemascuja crítica ou a desmistificação ela reclama.
nal que parece, portanto, hoje, ao mesmo tempo, contraditório, imper- Aodizer isso, não afirmamos que essa escatologia messiânica, co-
feito, e logo, mais insuficiente, perfectível e necessário do que nunca. mum às religiões que ela critica, e à crítica marxista, deva ser
Talanálise não poderá mais deixar de atribuir um papel determinante simplesmente desconstruída. Se ela é comuma estas,salvo diferen-
a essa guerra das escatologias messiânicas quanto ao que resumire- ça de conteúdo (mas nenhuma delas pode aceitar, evidentemente,
essa epoquê do conteúdo, ao passo que a consideramos aqui como
essencial ao messiânico em geral, como pensamento do outro e do
1 OC,p.I4. acontecimento porvir), é também que sua estrutura formal de pro-
86 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 87

messaas ultrapassa ou as precede. Bem, o que permanece igualmente Masseasciênciasfísicas modernas guiam-nos em direção às portas desta
irredutível a toda desconstrução, o que permanece tão indesconstru- “Terra Prometida" que a democracia liberal parece ser, elas não nos
tível quanto à possibilidade da desconstrução, é talvez uma certa fazem atravessá-las, porque não há nenhuma razão economicamente
necessária para que o avanço da industrialização deva produzir a liberda-
experiência da promessa emancipatória; é, talvez mesmo,a formali- de política (p. 15).
dade de um messianismo estrutural, um messianismo sem religião,
um messiânico, mesmo, sem messianismo, uma idéia da justiça — Cuidemos de não sobreinterpretar, mas levando a sério a insistência
que distinguimos sempredodireito, e até dos direitos humanos — e dessa retórica. O queela nosparece dizer? Que a linguagem da Terra
uma idéia da democracia — que distinguimos de seu conceito atual Prometida, e portanto da Terra Prometida mas ainda recusada (a
e de seus predicados determinados hoje. (Permito-me remeter para
Moisés), está, só ela, pelo menos, mais ajustada ao materialismo da
Forcede loi e L'Autre Cap). Mas aíestá, talvez, o queé preciso agora
física e da-economia. Se levarmos em contao fato de que Fukuyama
pensar, e pensar de outro modo,para se perguntar para onde vai, ou
associa um certo discurso judaico da Terra Prometida à impotência
seja, também para onde conduzir o marxismo: pára onde conduzi-lo,
do materialismo economista ou do racionalismo da ciência física; se
interpretando-o, o que não pode ocorrer sem transformação, e não
levarmos em conta o fato de que, noutra parte, ele trata como exceção
para onde podeele nos conduzir tal qual é ou tal qual terá sido. negligenciável o fato de que isto, a que chama tranguilamente “o
Retornoà retórica neo-evangélica de Fukuyama: mundo islâmico”, não faça parte de um “consenso” geral que,
segundo ele, parece tirar como consegiiência a “democracia libe-
[...] esperamos, de tal modo,que o futuro nos traga novidades catastrófi-
cas a propósito da saúde e da segurança das políticas democráticas. que ral”,! pode-se formular uma hipótese, ao menos, a partir do ângulo
temos. às vezes,dificuldades em reconhecer as boas novas. quando estas que Fukuyama escolheprivilegiar no triângulo escatológico. O mo-
nos chegam. E, noentanto, a boa nova chegou.! delo do Estadoliberal queele reivindica explicitamente não é somen-
te o de Hegel, do Hegel daluta pelo reconhecimento,é o de um Hegel
A insistência neo-evangélica é significativa a mais de um título. Um que privilegia a “visão cristã”. Se “a existência do Estado é a vinda
pouco mais adiante, essa figura cristã cruza o anúncio judaico da de Deus somundo”, comoo diz A filosofia do direito, invocada por
Terra Prometida. Mas para logo afastar-se dela. Se o desenvolvimen- Fukuyama, essa vinda tem o sentido de um acontecimentocristão. A
to da física moderna não é sem importância para o advento da boa Revolução Francesa teria sido “o acontecimento que se apoderou da
nova, principalmente, diz-nos Fukuyama, quanto ao que nesta se visão cristã de uma sociedade livre e igualitária, e o trouxe aqui para
relaciona a uma tegnologia que permite “a acumulação infinita das baixo, sobre a terra”.? Este fim da história constitui essencialmente
riquezas” e a “homogeneização crescente de todas as sociedades umaescatologia cristã. Está em consonância com o discurso atual do
humanas”, é, “em primeiro lugar”, porque essa “tecnologia confere papa sobre a comunidade européia: destinada a se tornar um Estado
vantagens militares decisivas aos países quea detêm”".2 Ora,se ela é
essencial e indispensável ao advento ou à “boa nova”, proclamada
por Fukuyama,esse dado psico-técnico-militar conduz-nos somente, - O.C..p. 245. “Mas, hoje em dia, afora o mundo islâmico, um consenso geral
dizele, às portas da “Terra Prometida”: parece emergir, que aceita a legitimidade das pretensões da democracia
liberal em ser a forma mais racional de governo...” Regulando assim por
preterição, e como de passagem, hoje, o problema de uma exceçãoislâmica,
umaobservaçãotão sumária e descuidada dá o que falar. Reconhece-se, nas
1 OC.p. 13. Grifo meu. águas em queesse discurso se banha, sualiga de intolerância e confusão.
2. OC, pp. 14-15. 2. OC. p.233e passim.
88 JACQUES DERRIDA
Espectros de Marx 39

ou um super-Estado cristão, essa comunidade pertenceria ainda a O materialismo economista ou o materialismo da física moderna
alguma Santa-Aliança. Ela não está em desarmonia com aliança de deveria assim, de acordo -com essa lógica, dar lugar à linguagem
que falava com todas as letras o Manifesto, que também nomeava o espiritualista da “boa nova”. Fukuyama julga, pois, necessário recor-
papa. Apóster distinguido entre o modelo anglo-saxônico do Estado rer ao que chama de “explicação não materialista, que ele [Hegel]
liberal (Hobbes, Locke) e o “liberalismo hegeliano,queaspira prin- propõe da história, baseada no que ele chamava““a luta pelo reconhe-
cipalmente ao “reconhecimento racional”, Fukuyamadistingue en- cimento”. Na verdade,todo o livro inscreve-se na axiomática indiscu-
tre dois gestos de Kojêve. Quando este descreve a perfeição do tida desse esquema simplificado — e fortementecristianizado — da
Estadouniversal e homogêneo, inspira-se demasiadamente em Loc- dialética do senhor e do escravo, na Fenomenologia do espírito. A
ke e em um modelo anglo-saxônico criticado por Hegel. Em compen- dialética do desejo e da consciência é contudo apresentada, com uma
sação, ele tem razão quandoafirma que a América do pós-guerra ou confiança imperturbável, como a continuação de uma teoria platônica
a Comunidade européia constituem “a realização perfeita do Estado do thymos, remontando até Hegel e para além dele, através de uma
universal e homogêneo, o Estado do reconhecimento universal”.! tradição que passaria, apesar de tantas diferenças e debatesentre todos
Ou seja, por conseguinte, em toda lógica, um Estado cristão. Uma esses pensamentos políticos, por Maquiavel, Hobbes, Locke etc. A
Santa-Aliança. concepção anglo-saxônica doliberalismo modernoseria a esse respei-
Não se vai contrapor uma evidência comumente “empírica” a to igualmente exemplar. Ela teria efetivamente buscado excluir toda
essas prédicas predizentes e predizíveis. Logo depararemos com o essa megalothymia (própria a Stalin, a Hitler e a Saddam Hussein),
problema da empiricidade. Se se leva em conta, hoje, na Europa, a ainda que ““o desejo de reconhecimento continuasse onipresente, sob
data dessas declarações, daquelas de Kojêve e destas de Fukuyama, a forma residual da isothymia”. Toda contradição seria superada,
têm-se mais dificuldades em pleitear circunstâncias atenuantes para desde que um Estado tivesse meios de conjugar o que Fukuyama
um livro publicado, e amplamente traduzido, em 1992. E esclareça- chamaos dois “pilares”? o da racionalidade econômicae o do thymos
mos ainda que é em nome de uma interpretação cristã da luta pelo ou do desejo de reconhecimento. Este seria o caso, e a coisa teria
reconhecimento,? e portanto do Estado universal, E portanto da exem- acontecido, segundo Kojêve, pelo menos do modo comoeste é inter-
plar Comunidade européia, que o autor de O fim da História e o pretado — e aprovado — por Fukuyama. Este credita a Kojêve uma
último Homem (o homem cristão) critica Marx e propõe corrigir seu “constatação justa” (tradução francesa para “important truth") “ao
economismo materialista, “completá-lo”: a este faltaria esse “pilar” afirmar que a América do pós-guerra, ou os membros da Comunidade
hegeliano-cristão do reconhecimento ou esse componente “timóti- européia, constituíam a realização perfeita do Estado universal e
co” da alma. O Estado universal e homogêneo, o do fim da História, homogêneo,o Estado do reconhecimento universal” 2
deveria estar assentado sobre o “duplo pilar da economia e do Sublinhemos essas palavras (“constatação justa”, “important
reconhecimento”.? Como à época do Manifesto, uma aliança euro- truth”). Elas traduzem bastante bem a ingenuidade sofisticada ou o
péia se forma na obsessão do que exclui, combate ou recalca. Final sofisma grosseiro que conferem seu movimento, e também seu tom,
deste parêntese. O alcance — passado ou futuro — desse neo-evan- atallivro. Privam-no,também,de todacredibilidade. Pois Fukuyama
gelismo será esclarecido mais adiante. querretirar argumento de tudo: da “boa nova” como acontecimento

! OC,p. 237. Logo voltaremosa isso. 1 0.C,p.237.


2 0.C.p.233. 2 OC,p.238.
3 0C.p.238. 3 0.C.p. 237.
90 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 91

empírico e pretensamente constatável(trata-se da “constatação jus- Pornão re-elaborar um pensamento do acontecimento, Fukuyama
ta”, a “importante verdade” da “realização perfeita do Estado uni- oscila confusamente entre dois discursos inconciliáveis. Embora
versal”) e/ou da “boa nova”, como simples anúncio de um ideal acredite em sua realização efetiva (trata-se da “importante verda-
regulador ainda inacessível, que não se poderia avaliar por meio de de”), Fukuyama não se mostra constrangido em contrapor, contudo,
nenhum acontecimento histórico, nem sobretudo por meio de insu- a idealidade deste ideal democrata-liberal a todos os testemunhos
cesso algum dito “empírico”. que mostram maciçamente que nem os Estados Unidos nem a Comu-
Por um lado, o evangelho do liberalismo político-econômico nidade européia atingiram a perfeição do Estado universal ou da
precisa do acontecimento da boa nova,que consiste nisto quese teria democracia liberal, e estão longe, a bem dizer, de chegarem perto
efetivamente passado (o que se passouneste fim de século, especial- destes. (E como ignorar,aliás, a guerra econômica que se desenca-
mente, a pretensa morte do marxismo e a pretensa realização do deia hoje entre esses dois blocos e dentro da Comunidade européia”?
Estado da democracia liberal). Ele não pode passar por alto o recurso Como minimizar os conflitos do Gatt e tudoisso que aí se concentra,
ao acontecimento; mas como, por outro lado, a história efetiva e as estratégias complexas do protecionismo chamam atenção para isso
tantas outras realidades de aparência empírica contradizem este ad- todos osdias, sem falar da guerra econômica com o Japão,e de todas
vento da democracia liberal perfeita, é preciso, ao mesmo tempo, as contradições que perturbam o comércio dos países ricos com o
assentar essa perfeição como um simples ideal reguladore transitó- resto do mundo, os fenômenos de pauperização e a ferocidade da
rio. Dependendo de como isso o favorece,e serve à suatese, Fukuya- “dívida extema”, os efeitos do que o Manifesto chamava também “a
ma define a democracia liberal, ora como umarealidade efetiva, ora epidemia da superprodução” e o “estado de barbárie momentâneo”
como um simples ideal. O acontecimento é ora a realização, ora O que esta pode induzir nas sociedades ditas civilizadas etc.? Para
anúncio de suarealização. Ao mesmo tempo em quelevamosa sério analisar essas guerras, e a lógica desses antagonismos, uma proble-
a idéia de que um anúncio ou uma promessa constituem aconteci- mática da tradição marxiana será, por muito tempo, indispensável.
mentos irredutíveis, temos que, no entanto, estar atentos para não Por muito tempo,e por que não sempre? Falamos, realmente, de uma
confundir esses dois tipos de acontecimentos. Um pensamento do problemática da tradição marxiana, em sua abertura, e na transforma-
acontecimento,eis sem dúvida o que mais fazfalta a esse discurso. ção constante que deveria e que deverá caracterizá-la; não a dogmá-
Se insistimos tanto, desde o começo, na lógica do fantasma, é tica marxista relacionadaàs estases e aos aparelhos da ortodoxia.)
porque esta acena para um pensamento do acontecimento que exce- Comoele não pode negar, sem cair no ridículo, todas as violên-
de, necessariamente, umalógica binária ou dialética, a que distingue cias, as injustiças, as manifestações lirânicas ou ditatoriais do que
ou opõe efetividade (presença, atual, empírica, viva — ou não) e chama de “megalothymia” (a desmesura ou a dissimetria no desejo
idealidade (não-presença reguladora ou absoluta). Essa lógica da de ser reconhecido como o senhor); como deve admitir que estas se
efetividade parece de uma pertinência limitada. Olimite não é novo, desencadeiam no mundocapitalista de uma democracia liberal bas-
decerto; marca-se desde sempre, tanto no idealismo antimarxista tante imperfeita; como esses “fatos” contradizem a “constatação”
como na tradição do “materialismo dialético”. Mas ele parece me- que ele havia, no entanto, qualificado como“justa” (trata-se de sua
lhordo que nunca demonstrado, hoje, pelo que se passa de fantástico, “importante verdade”); Fukuyama não hesita em resvalar de um
fantasmático,“sintético”, “protético”, virtual, na ordem científica, e discurso para outro. Assim, substitui o anúncio da “boa nova” de
portanto tecno-midiática, e portanto pública ou política. Ele se tornou fato, o seu acontecimento efetivo, fenomenal, histórico e empirica-
também mais manifesto, através do que inscreve a velocidade de uma mente constatável, pelo anúncio de uma boa novaideal, inadequada
virtualidadeirredutível em oposição com o atoe a potência no espaço a toda empiricidade, a boa nova teleo-escatológica. Já que deve deste
do acontecimento, no acontecível do acontecimento. modo des-historicizá-la, reconhece nela a linguagem de uma “Natu-
92 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 93

reza” (a palavra é sua, e se trata de um conceito maior na obra) e a vel, quando menos, porque exige o respeito infinito pela singularidade
identifica, segundo “critérios” que qualifica de “trans-históricos. e a alteridade infinita do outro assim como pela igualdade contável,
Diante de tantos desastres, diante de tantos fracassos, de faro, para calculável e subjectal entre as singularidades anônimas) e as formas
estabelecer a democracia liberal, Fukuyama ressalta que ele fala determinadas, necessárias, mas necessariamente inadequadas, do que
simplesmente “no plano dos princípios”. Contentar-se-ia, diz então, se deve medir com essa promessa. Nessa medida, a efetividade da
em definir simplesmente o ideal da democracia liberal. Chamando a promessa democrática, como a de uma promessa comunista, preser-
atenção para o seu primeiro artigo, de 1989, “O fim da História?”, vará sempre em si, e deverá fazê-lo, essa esperança messiânica abso-
ele descreve efetivamente: “Certos países modernos poderiam, real- lutamente indeterminada em seu coração, essa relação escatológica
mente, fracassar no estabelecimento de uma democracia liberal e com o por-vir de um acontecimento e de uma singularidade, de uma
outros recaírem em formas mais primitivas de governo, como a alteridade não antecipável. Espera sem horizonte de espera, espera do
teocracia ou a ditadura militar: o ideal da democracia liberal não que ainda nãose espera ou do que já não se espera mais, hospitalidade
poderia ser melhorado no plano dos princípios.”! Seria fácil demais sem restrições, cumprimento de boas-vindas dispensado de antemão
mostrar que, confrontado ao fracasso no estabelecimento da demo- para surpresa absoluta de quem chega, a quem não se pedirá contra-
cracia liberal, o desvio entre o fato e a essência ideal não aparece partida alguma, nem que se comprometa nos moldes dos contratos
somente nas formas ditas primitivas de governo, de teocracia e de domésticos de alguma potência de acolhida (família, Estado, nação,
ditadura militar (supondo-se até, concesso non ai quetoda teocra- território, solo ou sangue,língua,cultura em geral, humanidade mes-
cia seja estranha ao Estado ideal da democracia liberal, heterogênea ma), justa abertura que renuncia a qualquer direito de propriedade, a
ao seu conceito). Mas esse fracasso e esse desvio caracterizam qualquer direito em geral, abertura messiânica ao que vem,ou seja, ao
também, a priori e por definição, todas as democracias, inclusive as acontecimento que não se teria meios de esperar como tal, nem,
mais velhase as mais estáveis dentre as democracias ditas ocidentais. portanto, de reconhecer de antemão; ao acontecimento comoo estran-
É o caso do conceito mesmo de democracia, como conceito de uma geiro mesmo, para que ou para quem se deve deixar um lugar vazio,
promessa que não podesurgir senão em tal diástema (desvio,fracas- sempre, em memória da esperança — e setrata precisamente do lugar
so, inadequação,disjunção, desajuste,estar “out ofjoint”). É porisso da espectralidade. Semelhante hospitalidade sem restrições, condição,
que propomos sempre que se fale de democracia por vir, e não de no entanto, do acontecimento e, portanto, da história (nada nem
democracia futura, no presente futuro, não mesmo de uma idéia ninguém chegaria de outro modo, hipótese que não se pode nunca
reguladora, no sentido kantiano, ou de uma utopja — na medida, ao excluir, é claro), seria fácil, fácil demais, mostrar que ela vem a ser o
menos, em que sua inacessibilidade preservaria ainda a forma de um impossível mesmo,e que esta condição de possibilidade do aconteci-
presente futuro, de uma modalidade futura do presente vivo. mento é também sua condição de impossibilidade, como esse conceito
estranho do messianismo sem conteúdo, do messiânico sem messia-
[Para além mesmo da idéia reguladora em sua forma clássica, a nismo, que nos guia aqui como cegos. Mas seria igualmente fácil
idéia, caso ainda seja uma idéia, da democracia porvir, sua idéia como mostrar que, sem essa experiência do impossível, melhor seria renun-
acontecimento de uma injunção penhorada que prescreve fazervir isto ciar à justiça e ao acontecimento. Seria ainda mais justo ou mais
mesmo que não se apresentará nunca na forma da presença plena, é a honesto. Melhor seria, também, renunciar a tudo isso que ainda se
abertura deste desvio entre uma promessainfinita (sempre insustentá- pretenderia salvar na reta consciência. Melhorseria confessar o calcu-
lismo econômico e declarar todas as barreiras alfandegárias que a
ética, a hospitalidade ou os diversos messianismos instalariam ainda
1 O.C.p. 1, sublinhado por Fukuyama. nas fronteiras do acontecimento para examinar quem chega.)
94 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 95

Afinal de contas, pode parecer impossível falar de “História”, e ainda


Voltemos a Fukuyama. O que é mais original do que indiscutível,
mais de “História universal”, sem referência a um critério trans-histórico
em sua lógica, é que esse ideal, ele não o propõe como um ideal permanente, ou seja, sem a referência à natureza. A “história” não é um
reguladorinfinito e o pólo de umatarefa ou de uma aproximação sem dado, nem simplesmente um catálogo de tudo quese produziu no passa-
fim; ainda que muitas vezes, outra incoerência, declare que essa do, mas um esforço deliberado de abstração por meio de que separamos
“tendência atual para o liberalismo”, apesar de suas “voltas para O que é importante do quenãoo é! [...].
trás”, “está destinada a (“promises to”)triunfar a longo prazo”.! Esse
ideal, Fukuyamao considera também como um acontecimento. Por- Tradição sólida e durável de umalógica, segundoa qual naturalismo
queele já teria acontecido, porqueo idealjá se teria apresentado em e teologismo fundam-se um nooutro. Fukuyama rejeita o que consi-
sua forma de ideal, esse acontecimento teria, desde agora, marcado o dera calmamente como “testemunhos “empíricos” que nos oferece o
fim de uma históriafinita. Esse ideal é, a um só tempo,infinito efinito: mundo contemporâneo”.? “Devemos, pelo contrário, prossegueele,
infinito, posto quese distingue de toda realidade empírica determina- examinar diretamentee explicitamente a naturezadoscritérios trans-
da, ou permanece uma tendência “a longo prazo”; é contudo finito históricos que permitem avaliar o caráter bom ou maude todo regime
porque aconteceu, já, como ideal, e a história está, desde então, ousistema spcial”.3 A medidadetodas as coisas tem um único nome:
terminada. É por isso queesse livro se define ainda como hegeliano€ o.critério 1rans-histórico e natural a que, finalmente, Fukuyama
marxista, como uma espécie de exercício na disciplina desses dois propõe Gestor tudo, chama-se “o homem enquanto Homem”.
Assim, como se ele nunca tivesse encontrado nenhuma questão
mestres do fim da história, Hegel e Marx. Depois deter feito compa-
preocupante! sobre tal Homem, nem lido um certo Marx, nem o
recer e escutado os dois mestres, à sua maneira — um pouco expedi-
Stimer em que se obstina a Ideologia alemã, quanto à abstração
tiva, é preciso dizê-lo —,o discípulo fez a sua escolha. Escreve então:
propriamente fantasmática de tal conceito de homem, sem falar de
Hegel, bem como Marx, ambos acreditavam que a evolução das socieda- Nietzsche (constantemente caricaturizadoe reduzido a alguns mise-
des humanas não era infinita, mas terminaria no dia em que a humanidade ráveis estereótipos: por exemplo,o relativista! E não o pensador de
tivesse aperfeiçoado uma forma de sociedade que satisfaria as suas um “último homem”, que tantas vezes ele assim nomeou), sem falar
necessidades mais profundas e mais fundamentais. Os dois pensadores de Freud (evocado uma só vez, como aquele quelança dúvidas sobre
tinham estabelecido um “fim da História": para Hegel. este era o Estado a “dignidade humana”, reduzindo o homem a “puisões sexuais
liberal; para Marx, a sociedade comunista.?
profundamente escondidas”), sem falar em Husserl — simplesmen-
te passado em silêncio — ou em Heidegger (que não seria senão o
Logo,o discípulo escolheu entre os dois mestres:ficou como pensa- “sucessor” de Nietzsche,o relativista”), sem falar de um certo Hegel,
dordo Estadoliberal. Numa tradiçãocristã, já o tínhamos visto, mas de quem o mínimoquese possadizeré que ele não é um filósofo do
também, ainda queisso pareça ou não consequente com cristianis- homem naturale trans-histórico. Se a referência a Hegel domina esse
moessencial, numa tradição naturalista. livro, esta nunca é turvada por essa evidência. Para definir essa
Seria preciso analisar aqui, detalhadamente, uma ou outra página,
a que devemosnos contentar em fazer alusão, não sem ter ao menos
citado algumas desuas frases. Estas, por exemplo:
O.C., pp. 168-169.
O.C,,p. 169. As aspas em volta de “empíricos” desaparecem quandosetrata
dos “testemunhos empíricosdedesafios à democracia" na p.324.
1 OC.p. 246. 3. OC,p. 169. Literalmente repetida nap. 324.
2 QUO, p: 12. 4 OC.p. 336.
3 0.C,p.233. 5. 0.C..p. 373.
96 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 97

entidade supostamente natural, a-histórica e abstrata, esse homem cial — força e virtualidade — do a que se chamará o princípio,e até,
enquanto Homem de que fala trangiilamente, Fukuyama pretende sempre na figura da ironia, o espírito da crítica marxista. Esse
retroceder ao que chama “o primeiro homem”, ou seja “o homem espírito da crítica marxista, que hoje parece mais indispensável do
natural”. Sobre o conceito de natureza, sobre a genealogia deste que nunca,seríamostentados a distingui-lo do marxismo como onto-
conceito, Fukuyama parece, aliás, silencioso (quase tanto quanto logia, sistemafilosófico ou metafísico, como “materialismo dialéti-
Marx, é preciso dizê-lo, mesmo se o tratamento crítico a que este co”;! do marxismo como materialismohistórico ou como método; do
submete esses conceitos abstratos da Natureza, e do Homem enquan- marxismo incorporado aos aparelhos de partido, nos Estados ou
to homem, continue sendorico e fecundo). E quando, para falar desse numa Internacional operária. Mas o distinguiremos também disto a
“homem natural”, Fukuyama pretende recorrer a uma dialética “in- que poderíamos chamar, para fazer rapidamente uma desconstrução,
teiramente não materialista”, procedente do que chama “um filósofo aí onde esta, em todo caso, não é mais simplesmente uma crítica, e
desíntese novo que se chamaria Hegel-Kojêve”, o artefato que ele
nos propõe parece tão inconsistente (no sentido francês assim como
inglês desse termo) que abdicaremos de dedicar-lhe muito tempo esta
noite. Afora a ingenuidadefilosófica, sem dúvida é preciso tratá-lo, 1, Numa obra admirável, sob tantos aspectos, e de que tomo conhecimento,
justamente, como um artefato, uma montagem sintomática que res- infelizmente, após ter escrito este texto, Etienne Balibar ressalta que a
ponde, para tranqúilizá-la, a uma demanda, dir-se-ia quase a uma fórmula “materialismo dialético” não foi empregada,literalmente, nem por
encomenda. Ele deve sem dúvida seu sucesso a essa confusão apazi- Marx nem por Engels (La Philosophie de Marx, La Découverte, 1993,p.4).
Dentre todas as contribuições preciosas de um livro que interpreta também,
guante e a essa lógica oportunista da “boa nova” que ela faz passar
e desloca de modo muito denso, toda umahistória do marxismo(e principal-
oportunamente como contrabando. mente do marxismofrancêsdas últimas décadas), destacarei sistematicamen-
Apesar de tudo isso, não seria, ao que me parece, nem justo, nem te as que me importam aqui, mais de perto. 1. A necessidade de levar em
mesmo interessante, acusar Fukuyama pelo destino de seu livro. conta o motivo da “injunção” de Marx (a palavra retorna regularmente, pp.
Valeria mais a pena perguntar-se por que esse livro, com a “boa 19, 20, 24 etc.). 2. O tema do mundo “encantado”, como mundo dos
valores-mercadoria (pp. 59 e segs.), em torno do “sensível supra-sensível"”
nova” que pretendetrazer, tomou-se semelhante gadger midiático, e
(de que falaremos mais adiante). 3. A categoria da iminência — messiânica
por que faz furor em todos os supermercados ideológicos de um ou não, mas a-utópica — (pp. 38, 39, 69, 118), e sobretudo a de “transição”,
Ocidente ansioso. Compra-se esse livro, aí, como se corre atrás de categoria “entrevista por Marx” como “figura política da “não contempora-
açúcar e de óleo, quando estes ainda restam, aos primeiros rumores neidade” a si do tempo histórico, mas que permanece inscrita por ele no
de guerra. Por que essa ampliação midiática? E como um discurso provisório” (p. 104). (Sobre a “transição” e a não contemporaneidade,cf..
desse tipo é buscadopor aqueles que só cantam vitória do capitalis- supra, pp. 50-51). Certamente, não é em umanota de última bora quese pode
entabular uma discussão ou estabelecer uma concordância. Para começar a
moliberal e de sua aliança predestinada com a democracia para
fazê-lo, seria preciso ajustar o que tento dizer aqui, com essas palavras, da
dissimular, e primeiramente a si mesmos, que, em tempoalgum,esse filosofia ou da ontologia de Marx (o que permanece desconstrutível em seus
triunfo esteve mais ameaçado, nem foi tão crítico, frágil, e até filosofemas) ao que adianta Balibar, na Philosophie de Marx: “não há e não
mesmo, sob certos pontos de vista, catastrófico, e mais enlutado? haverá nunca filosofia marxista” (p. 3), o que não deve impedir de “buscar
Enlutado pelo que o espectro de Marx representa ainda hoje, e que [...] asfilosofias de Marx”(p. 7). Comoisto a que chamo aqui a filosofia ou
seria o caso de conjurar de modojubilatório e maníaco (fase neces- a ontologia de Marx não pertence, exatamente, ao espaço ou ao nível de
enunciados analisados por Balibar, os protocolos de uma discussão, para
sária em um trabalho de luto mal sucedido, segundo Freud), mas
onde quer que esta conduza, pediria uma longa e minuciosa elaboração.
também virtualmente enlutado de si mesmo. Ao dissimular-se todos Espero, porém, quetais protocolos sejam legíveis, ao menos em estado
esses fracassos e todas essas ameaças,se queria dissimular o poten- implícito, em um ensaio tão esquemático e preliminar quanto este aqui.
98 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 99

onde as questões que propõea todacrítica, e até a toda questão, nunca história, fim do homem, figura do “último homem”, entrada em um
estiveram em posição nem de se identificar, nem, sobretudo, de se certo pós-marxismo etc.) faziam parte, desde o começo dos anos
contrapor simetricamente a alguma coisa como o marxismo,a onto- 1960, da cultura elementar dosfilósofos de minha geração, não nos
logia ou crítica marxistas. encontramos hoje diante de sua simples e imóvel repetição. Pois,
Se um discursodotipo do Fukuyama desincumbe-se com eficácia também é verdade, que daquele acontecimento de fundo não era
do papel de obscurecimento e denegação duplamente enlutada que se possível deduzir, ainda menos datar, este outro acontecimento,esta
espera dele, é que, habilmente para uns, grosseiramente para outros, outra série de acontecimentos em andamento,e ainda não analisados,
passa de uma mão a outra num passe de mágica: por um lado (com que sobrevieram, três décadas mais tarde, a um ritmo que ninguém
uma mão), ele autoriza umalógica do acontecimento empírico de que no mundo poderia calcular de antemão. (Em 1981, enquanto eu me
necessita quando se trata de constatar a derrota enfim, final, dos encontrava preso em Praga,pelo poder de então,dizia a mim mesmo
Estados ditos marxistas e de tudo o que impede o acesso à Terra com um sentimento ingênuo de quasecerteza: “esta barbárie pode
Prometida dosliberalismos econômico e político; mas por outro lado
durar séculos...”). É preciso pensar nesta eventualidade, porém, é ela
(com a outra mão), em nome do ideal trans-histórico e natural, ele
que melhorresiste ao que se chama o conceito, senão o pensamento.
desautoriza essa mesmalógica do acontecimento dito empírico, deve
E ela não gerá pensada enquanto se confiar na simples oposição
suspendê-la para não pôr na conta desse ideal e de seu conceito isto
(ideal, mecânica ou dialética) da presença real do presente real ou do
que precisamente os contradiz de modotão cruel: numa palavra, todo
presente vivoe de seu simulacro fantasmático, na oposição doefetivo
o mal, tudo que não anda bem nos Estados capitalistas e no liberalis-
(wirklich) e do não-efetivo, ou seja, também, enquanto se confiar em
mo, em um mundo dominado por forças, estatais ou não, cuja hege-
uma temporalidade geral ou em uma temporalidadehistórica feita do
monia está relacionada a esse ideal pretensamente trans-histórico ou
natural (digamos, de preferência, naturalizado). Sobre as grandes encadeamento sucessivo de presentes idênticos a eles mesmos e deles
figuras do que vai tão mal no mundo hoje, diremos umapalavra daqui mesmos contemporâneos.
a pouco. Quanto ao passe de mágica entre a história e a natureza, A um só tempo jubilosa e ansiosa, maníaca e enlutada, muitas
entre a empiricidade histórica e a transcendentalidade teleológica, vezes obscena em sua euforia, essa retórica neoliberal obriga-nos,
entre a pretensa realidade empírica do acontecimento e a idealidade portanto, a interrogar uma eventualidade que se inscreve no desvio
absoluta do telos liberal, este só pode ser frustrado a partir de um entre o momento em que o inevitável de um certo fim se anunciou e
novo pensamento ou de uma nova experiência do acontecimento, e o desmoronamento efetivo dos Estadosou das sociedades totalitárias
de umaoutra lógica de suarelação para com o fantasmático. Aproxi- que figuravam como marxistas. Esse tempo delatência, que ninguém
mar-nos-emosdisto mais adiante. A lógica dessa novidade não se se pôderepresentar, ainda menoscalcular de antemão,não é simples-
opõe necessariamente à antigiidade do mais antigo. mente um meio temporal. Nenhuma cronologia objetiva e homogê-
Mas, mais uma vez, não se deveriaser injusto para com esselivro. nea teria meios de mensurá-lo. Um conjunto de transformações de
Setais obras continuam sendofascinantes, sua incoerência mesma e, toda ordem (especialmente mutações tecno-científicas-econômico-
às vezes, sua aflitiva primitividade desempenham um papel de sinal midiáticas) ultrapassa tanto os dados tradicionais do discurso marxis-
sintomático que é preciso levar na melhor conta. Despertando nossa ta quanto osdo discurso liberal que se opõe a ele. Mesmo se herda-
atenção para uma geopolítica dos riscos ideológicos do momento, mosalguns recursos essenciais para projetar sua análise, é preciso,
estendendo-os à medida do mercado cultural mundial, elas têm o primeiramente, reconhecer que essas mutações perturbam ossiste-
mérito de nos fazer voltar a essa complicação anacrônica a que fiz mas onto-teológicos ou as filosofias da técnica como tais. Elas
alusão há pouco, Esclareçamos. Se todos os temas do fim (fim da desarrumamas filosofias políticas e os conceitos correntes da demo-
100 JACQUES DERRIDA
Espectros de Marx 101

mos cuja guerra terá inaugurado, não o esqueçamos, a era da destrui-


cracia; elas obrigam a reconsiderar todas as relações entre Estado e a
ção atômica!) Segundo Kojêve, a fase final do comunismo dos.
nação, o homem e o cidadão, o privado e o público etc.
Estados Unidos do pós-guerra reduz, de fato, comoé justo, o homem
É aí que um novo pensamento dahistoricidade nos chamaria para
à animalidade. Mas ainda há algo mais chic, mais “snob”, há um nec
além do conceito metafísico de história e do fim dahistória, seja este
plus ultra no fim da história,e isto seria a pós-historicidade japonesa.
derivado de Hegel ou de Marx. É aí que se poderiam empregar, de
Esta conseguiria, graças ao “esnobismo”de sua cultura, preservar o
modo mais exigente, os dois tempos do post-scriptum kojeviano
homem pós-histórico de seuretorno à naturalidade animal. Contudo,
sobre a pós-história e os animais pós-históricos. É preciso considerar,
é devido insistir nisso, apesar do arrependimento queo fez pensar,
certamente, o barroquismo, às vezes genial, muitas vezes ingenua-
após sua viagem de 1959, que o Japão vá mais longe, permita-se-nos
mente farsante, de Kojêve. Fukuyama não o faz suficientemente,
a expressão, em sua corrida após o fim da história, Kojêve não
ainda que a ironia de certas provocações não lhe tenha totalmente
requestiona sua descrição do retorno do homem à animalidade nos
escapado. Mas, também,teria sido preciso analisar rigorosamente as
Estados Unidos do pós-guerra. Descrição extravagante, não porque
numerosas articulações cronológicas e lógicas dessa longa e célebre
compara os homens aos animais, mas, em primeiro lugar, porque põe
footnote. Kojêve,ele nos diz no post-scriptum dessa nota, vai ao
um imperturbável e arrogante desconhecimento ao serviço deefeitos
Japão em 1959.(Existe uma tradição, uma “especialidade francesa”,
duvidosos: € é neste ponto que conviria comparar a imprudência de
em diagnósticos peremptórios, na volta de uma viagem-relâmpago a
Kojêve com a encantação desses que, como Fukuyama, cantam
umpaís distante, de que não se fala nem mesmo línguae de que não
(Kojêve não canta) “a universalização da democracia liberal ociden-
se sabe quase nada. Péguy já zombava desse defeito, quando Lanson
tal como ponto final do governo humano” e a vitória de um capita-
ousou valer-se de uma viagem de algumas Semanas aos Estados
lismoquetéria “resolvido com sucesso” o “problema das classes”!
Unidos.) Ao retomar dessavisita, de funcionário graduado da Comu-
etc. Por que e como Kojêve poderia pensar que os Estados Unidosjá
nidade européia, Kojêve concluiu que a civilização japonesa “pós-
haviam atingido essa “fase final do “comunismo” marxista”? Em que
histórica” engajou-se em vias diametralmente opostas à “via ameni-
acreditava, O que queria perceber aí? A apropriação, em abundância,
cana”, e isto em razão do que ele chamaentão, com essa desenvoltura
de tudo isso que pode corresponder à necessidade ou ao desejo: a
profunda, desmiolada e patafísica, cujo gênio possui, mas cuja res-
anulação do desvio entre desejo e necessidade suspende todo exces-
ponsabilidadeé preciso deixar-lhe também,o “esnobismo em estado so, todo desajuste, em especial no trabalho. Não há nada de surpreen-
puro” do formalismo cultural da sociedade japonesa. Masele não dente em que o fim do desajuste (do estar “aut ofjoint”) “prefigure”
abre mão de sustentar o que mais conta aos seus olhos, a saber, seu
um “etemo presente”. Mas o que é do desvio entre essa prefiguração
diagnóstico anterior sobre a pós-história propriamente americana.
e isto que ela representa antes da sua presença mesma?
Simplesmente, deverá ter revisado alguma coisa de um indecente e
inacreditável quadro: o dos Estados Unidos como “fase final do [...] Praticamente [esse “praticamente” é a assinatura grand-guignolesca
'comunismo” marxista”. O que Kojêve requestiona, unicamente, é a desse sentencioso veredito], todos os membros de uma “sociedade sem
idéia de queesse fim americanorepresente, por assim dizer, a última classes” podem apropriar-se, desde agora [1946], de tudo que quiserem
figura do último,a saber, do “fim hegelo-marxista da História” como sem que porisso trabalhem mais do que lhes fala ao coração. Ora, várias
viagens comparativas efetuadas (entre 1948 e 1958) aos Estados Unidos
presente e não como porvir. Revisando e contestando sua primeira
hipótese, Kojêve chega a pensar que haveria um fim ainda mais final
da história, mais escatológico que o happy end americano(até mesmo
californiano, ele p diz, em algum lugar), e isso seria a mais do que 1 Citado por Michel Surya, em “La Puissance, les riches et la charité”, em
Lignes. “Logiques du capitalisme”, nº 18, janeiro 1993, pp. 21 e 29.
extrema extremidade japonesa (na concorrência dos dois capitalis-
102 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 103

e à URSS deram-me a impressão de que, se os americanos fazem figura justamente, porque ela vem afirmar uma imprecisão essencial, uma
de sino-soviéticos enriquecidos, é porque os russos € os chineses não
passam de americanosainda pobres, aliás, em vias de rápido enriqueci-
indeterminação que permanece a marca última do porvir: seja qual
mento. Fui levado a concluir que o American way oflife era o gênero de for a modalidade ou o conteúdo deste dever, desta necessidade, desta
vida próprio ao período pós-histórico, a presença atual dos Estados prescrição ou desta injunção, deste penhor, desta tarefa, portanto,
Unidos no Mundoprefigurando o futuro “etemo presente” da humani- também desta promessa; desta promessanecessária,é preciso este “é
dade inteira. Assim, o retomo do Homem à animalidade aparecia não preciso” e é a lei. Essa indiferença ao conteúdo não é uma indiferen-
como umapossibilidade ainda porvir, mas como umacertezajá presente.
ça, não é uma atitude de indiferença, ao contrário. Marcando toda
Foi em consegiiência de uma recente viagem ao Japão (1959) que mudei
radicalmente de opinião sobre esse ponto.! abertura ao acontecimento e ao porvir como tais, ela condiciona,
portanto, o interesse e a não-indiferença ao que quer que seja, a todo
A leitura neo-marxista e para-heideggeriana da Fenomenologia do conteúdo em geral. Sem ela não haveria nem intenção, nem necessi-
espírito feita por Kojêve é interessante. Quem o contestará? Ela dade, nem desejo etc. O conceito dessa indiferençasingular (a dife-
desempenhou um papel formador e não negligenciável, sob muitos rença mesma), nossaleitura nãoo está projetando no texto de Kojêve.
aspectos, para uma certa geração de intelectuais franceses, imediata- Este fala disso. Ela caracteriza, aos seus olhos, um porvir que se
mente antes ou imediatamente depois da guerra. As coisas são,a esse apresentariá para além do que se chamou até aquia história. Aparen-
respeito, menos simples do que se diz em geral, mas não é este o temente formalista, essa indiferença para com o conteúdo tem talvez
nosso propósito aqui. Em compensação,se se quer ler com alguma o mérito de dar a pensar a forma necessariamente pura e puramente
seriedade o que não é totalmentesério,a saber, a nota e 0 post-scrip- necessária do porvir como tal, em seu ser-necessariamente-prometi-
tum de Kojêve sobre o pós-marxismo como pós-história da humani- do, prescrito, designado, injungido, na necessidade formal de sua
dade, é preciso ainda sublinhar, ao menos, alguns pontos. Primeira- possibilidade, em suma, em sualei. É ela que desloca todo presente
mente, a última frase dessa nota, a mais enigmática também, para fora de sua contemporaneidade a si. Que a promessa seja disto
permanece um enunciado prescritivo. Vamos citá-la. Quem a leu? ou daquilo, que seja ou não mantida, ou que continue insustentável,
Trata-se,talvez, da abertura maisirresistível dessepost-scriptum. Ela há necessariamente promessae, portanto, historicidade como porvir.
define umatarefa e um dever para o porvir do homem pós-histórico, É isto que denominamos o messiânico sem messianismo. Contente-
uma vez que o que Kojêve chama de “japoneisação”dos Ocidentais mo-nos aqui, porfalta de tempo, em leresta frase a que, em um outro
* (dos russos, inclusive) tenha sido efetiva. “O homem pós-histórico contexto e um outro ritmo, teria sido necessário dispensar toda a
deve...”, diz Kojêve. O que ele deve? Deve, € “must” ou “should”? atenção meditativa que ela exige:
Seja qualfor a modalidade ou o conteúdo desse dever, seja qual for
a necessidade dessa prescrição, mesmose exige eternidades de inter- O que quer dizer que mesmo falando daqui em diante de um modo
pretação, há um “é preciso” para o porvir. Seja qual for a sua adequado de tudo o que lhe é dado, o Homem pós-histórico deve conti-
indeterminação,seja ela a de um “é preciso o porvir”, há porvir e há nuar [sublinhamos esse deve que reconduz, sem dúvida, à condição de
possibilidade comum das duas formas do necessário, must e should) a
história, há talvez mesmo começo da historicidade para o Homem
destacar [Kojeve sublinha] as “formas” de seus “conteúdos”, fazendo-o
pós-histórico, para além do homem para além da história, tais como
não mais para trans-formar ativamente esses últimos, mas a fim de
eles foram até então representados. Devemosinsistir nesta precisão, contrapor-se [Kojeve sublinha) a si mesmo como “forma” pura para ele
mesmoe para os outros, tomadosenquanto “conteúdos” quaisquer.!

1 Alexandre Kojêve, Introduction à la lecture de Hegel, Leçons surla “Phé-


noménologie de l'esprit"”, Gallimard, 1947, pp. 436-437. 1 0.C.p.437.
104 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 105

Seria possível reler de outro modo esse texto de Kojêve? Seria indestrutível mesmo do “é preciso”. É esta a condição de uma
. possível subtraí-lo a umagrosseira manipulação,esta a que menos se re-politização, talvez de um outro conceito do político.
entrega Fukuyama mesmo (que, aliás, não se interessa por essa Mas a um certo ponto a promessae a decisão,isto é, a responsa-
conclusão enigmática) do que aqueles que o exploram? Lido com bilidade, devem a sua possibilidade à prova de indecibilidade que
algum sentido da astúcia comediante, a que Kojêve exige, portanto continuará sempre sendo a sua condição. E os riscos graves, que
com mais vigilância filosófica, política ou “ideológica”, esse texto vimos de nomear em algumas palavras, caberiam dedireito à questão
resiste. Sobrevive, talvez, aos que o traduzem e o exibem em uma sobre o que se entende, com Marx e após Marx,da efetividade, do
semana como uma arma de propaganda filosófica ou um objeto de efeito, da operatividade, do trabalho [Wirklichkeit, Wirkung, traba-
grande consumo midiático. A “lógica” da proposição citada há lho, operação), do trabalho vivo em sua suposta oposição à lógica
pouco bem poderia ser responsável por uma lei, a lei da lei. Essa lei espectral que govema igualmente os efeitos de virtualidade, de simu-
nosindicaria isto: no mesmolugar, no mesmolimite,aí onde termina lacro, de “trabalho do luto”, de fantasma, de apariçãoetc. E dajustiça
a história, aí onde termina um certo conceito determinadodahistória, que lhe é devida. Para dizê-lo em duas palavras, o pensamento
aí, precisamente, a historicidade da história começa, aí, enfim, ela desconstrutor do traço, da iterabilidade, da síntese protética, da su-
tem a oportunidade de anunciar-se — de prometer-se. Aí onde termi- plementaridade etc. dirige-se para além dessa oposição, para além da
na o homem, um certo conceito determinado do homem, aí a huma- ontologia que ela supõe. Inscrevendo a possibilidade da remissão ao
nidade pura do homem, do outro homem e do homem como outro outro, portanto da alteridade e da heterogeneidade radicais, da dife-
começa ou tem, enfim, a oportunidade de anunciar-se — de prome- rança,da tecnicidade e da idealidade, no acontecimento mesmo da
presença, na presença do presente que ela dis-junta a priori para
ter-se. De modo aparentemente inumano ou ainda não humano.
tomá-la possível [portanto, impossível em sua identidade ou sua
Mesmo se essas proposições requerem ainda questões críticas ou
contemporaneidadea si], ela não se priva dos meios de o levar em
desconstrutoras, elas não se reduzem à vulgata do paraíso capitalista
comofim dahistória. conta ou de dar conta dele, os efeitos de fantasma, o simulacro, a
“imagem sintética”, ou até mesmo, para falar no código marxista,
(Que me permitam lembrá-lo, em uma palavra: um certo procedi-
seja ideologemas, ainda que nas formas inéditas que a técnica moder-
mento desconstrutor, ao menos este por que acreditei dever empe-
naterá feito surgir. É por tudo isso quetal desconstrução nuncafoi
nhar-me, consistia, desde o início, em pôr em questão o conceito
marxista, não mais do que não-marxista, embora fiel a um certo
onto-teo — mas também arqui-teleológico da história — em Hegel,
espírito do marxismo, a um dentre eles pelo menos, porque não o
Marx ou até no pensamento da epoche de Heidegger. Não para opor
repetiremos jamais suficientemente, há mais de um eles são hetero-
a isso um fim da história ou uma a-historicidade, mas, 20 contrário,
gêneos.)
para demonstrar que essa onto-teo-arqui-teleologia aferrolha, neutra-
liza, e finalmente anula a historicidade. Tratava-se, então, de pensar
uma outra historicidade — não uma novahistória ou ainda menos um
“new-historicism”, mas uma outra abertura da eventualidade como
historicidade que permitisse não mais renunciar a esta, mas, ao
contrário, promover O acesso a um pensamento afirmadorda promes-
sa messiânica e emancipatória como promessa: como promessa e não
como programa ou propósito onto-teológico ou teleo-escatológico.
Pois, muito além queseja preciso renunciar ao desejo emancipatório,
é preciso empenhar-se nisso mais do que nunca,parece,e de resto ao
CAPÍTULO 3

Desgastes

(quadro de um mundo
sem idade)

“Thetime is out ofjoint”. O mundovai mal. Está desgastado masseu


desgaste não conta mais. Velhice ou juventude — não se conta mais
com isso. O mundo tem mais de uma idade. Falta-nos a medida da
medida. Do desgaste não prestamos mais conta, não nos damos mais
conta dele como de uma única idade na progressão de uma história.
Nem maturação, nem crise, nem mesmo agonia. Outra coisa. O que
acontece acontece à idade mesma,atingindo a ordem teleológica da
história. O que vem, ou parece intempestivo, acontece ao tempo, mas
não acontece a tempo. Contratempo. The time is out ofjoint. Fala
teatral, fala de Hamlet diante do teatro do mundo, da história e da
política. O mundo está fora dos eixos. Tudo, começando pelo tempo,
parece desregulado, injusto ou desajustado. O mundo vai muito
mal, desgasta-se à medida que se adianta em anos, como diz tam-
bém o Pintor, na abertura do Timão de Atenas (a peça de Marx,
não é). Pois se trata de uma fala de pintor, desta vez como se ele
falasse de um espetáculo ou diante de um quadro. “How goes the
world? — It wears, sir, as it grows”: “O Poeta — Como vai o
mundo? O Pintor — Ele se desgasta, senhor, à medida que se
adianta em anos.”
108 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 109

Esse desgaste na expansão, no crescimento mesmo, isto é, na Provisoriamente e por comodidade, aceitemos a oposição, em
mundialização do mundo, não caracteriza o desdobramento de um desuso, entre guerra civil e guerra internacional. Quanto à guerra
processo normal, normativo ou normatizado. Não se trata de uma civil, será que ainda caberia lembrar que nunca a democracia liberal
fase do desenvolvimento, uma crise a mais, uma crise de crescimen- de forma parlamentar esteve sobremaneira minoritária e isolada no
to, uma vez que o crescimento é o mal(It wears, sir,as it grows); não mundo? Que nunca se encontrou em semelhante estado de dis-fun-
é mais um fim-das-ideologias, uma última crise-do-marxismo ou cionamento nas chamadas democracias ocidentais? A repre-
sentatividade eleitoral ou a vida parlamentar não estão unicamente
uma crise-do-capitalismo.
distorcidas, como sempre foi o caso, por um grande número de
O mundo vai mal, o quadro é sombrio, dir-se-ia quase negro.
Formulemos uma hipótese. Suponhamos que por falta de tempo (o mecanismos socioeconômicos, mas se exercem de mal a pior em um
espaço público profundamente conturbado pelos aparelhos tecno-
espetáculo ou o quadro, sempre se trata de “falta de tempo”), proje-
tele-midiáticos e pelos novos ritmos da informação e da comunica-
te-se apenas pintar, como o Pintor de Timão de Atenas. Um quadro
ção, pelos dispositivos e a velocidade das forças que elas repre-
negro sobre um quadro negro. Taxinomia ou congelamento de ima-
sentam, mas igualmente, e por conseguinte, pelos novos modos de
gem. Título: The timeis out ofjoint ou: “O que vai tão mal no mundo
apropriação queelas empregam,pela novaestrutura do acontecimen-
hoje”. A este título banal deixar-se-ia a sua forma neutra, para evitar
to e de sua espectralidade queelas produzem (que elas inventam e
” falar de crise, conceito muito insuficiente, e para evitar decidir entre divulgam, inauguram e revelam, fazem advir e trazem a lume ao
o mal como sofrimento e o mal como erro ou comocrime. mesmo tempo,at, onde elas já estavam sem estar presentes: trata-se
A este título de um quadro negro possível, acrescentar-se-iam aqui do coriceito de produção na suarelação com o fantasma). Essa
alguns subtítulos. Quais? transformação não afeta somente os fatos, mas o conceito de tais
O quadro kojeviano do estado do mundo e dos Estados Unidos “fatos”. O conceito mesmo do acontecimento. A relação entre a
após a guerra já poderia chocar. Nele o otimismo salpicava-se de deliberação e a decisão, o funcionamento do govemo, estão muda-
cinismo.Já era então insolente dizer que “todos os membros de uma dos, não somente em suas condições técnicas, seu tempo, seu espaço
sociedade sem classe podem se apropriar desde então de tudo o que e sua velocidade, mas, sem quese tenha verdadeiramente dado por
quiserem, sem porisso trabalhar mais do que lhes fala ao coração”. isso, em seu conceito. Ressaltemosas transformações técnicas, cien-
Mas o que pensar, hoje, da imperturbávelleviandade que consiste em tíficas e econômicas que, na Europa, após a Primeira Guerra Mun-
cantar vitória do capitalismo ou doliberalismo econômico e político, dial, já haviam perturbadoa estrutura topológica da res publica, do
“a universalização da democracia liberal ocidental como ponto final espaço público e da opinião pública. Elas não afetavam unicamente
do governo humano”, o “fim do problema dasclasses sociais”? Que essa estrutura topológica; elas começavam a tomar problemática a
consciência cínica, que denegação maníaca podem levar a escrever, presunção do topográfico, e o fato de que houvesse um lugar, e,
senão a crer, que “tudo que constituía obstáculo ao reconhecimento portanto, um corpo identificável e estabilizável para a fala, a coisa ou
recíproco da dignidade dos homens, sempre e em toda parte, foi. a causa pública, pondo em crise, como se diz a cada momento, a
refutado e enterrado pela história?
»1 democracia liberal, parlamentar e capitalista, mostrando assim o
caminho paratrês formasdetotalitarismo, que em seguidase aliaram,
combatidas ou combinadas de mil maneiras. Ora, essas transforma-
!, Allan Bloom, citado em Lignes (O.C., p. 30) por Michel Surya, que chamaa ções ampliaram-se desmesuradamente hoje. Esse processo,aliás, não
atenção exatamente para o fato de Bloom ter sido o “mestre e enaltecedor” corresponde mais tão-somente a uma ampliação, se se entende por
de Fukuyama. essa palavra um crescimento homogêneo e contínuo. O que não se
10 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx na

mede mais é o salto quejá nos distancia desses poderes midiáticos No quediz respeito à guerra internacional ou civil-internacional,
que, nos anos 1920,antes da televisão, transformavam profundamen- devem ainda ser lembradas as guerras econômicas, as guerras nacio-
te o espaço público, enfraquecendo perigosamente a autoridade e a nais, as guerras das minorias, o desencadeamento dos racismose das
representatividade dos eleitos, e reduziam o campo das discussões, xenofobias, os confrontós étnicos, os conflitos de cultura e dereligião
deliberações e decisões parlamentares. Poder-se-ia mesmo dizer que que afligem hoje a Europa dita democrática e o mundo? Regimentos
essas transformações já questionavam a democracia eleitoral e a de fantasmasestão de volta, exércitos de todas as idades, camuflados
representação política tais como, em parte, as conhecemos até aqui. nossintomas arcaicos do paramilitarismo e do superarmamento pós-
Se, em todas as democracias ocidentais, tende-se a não respeitar mais moderno (informática, controle panóptico por satélite, ameaça nu-
o político profissional, ou até mesmo o homem de partido enquanto clear etc.). Aceleremos. Afora esses dois tipos de guerra (civil e
tal, isso não se deve somente a certainsuficiência pessoal, a certo erro internacional), cuja fronteira nem sequerse distingue mais, denigre-
ou incompetência, a certo escândalo daí em diante altamente divul- mosainda o quadro desse desgaste além do desgaste. Designemosde
gado, ampliado, na verdade muitas vezes produzido, quando não uma vez isto que corre o risco de fazer a euforia do capitalismo
premeditado, por um poder midiático. Sucede que o político toma-se democrata-liberal ou social — democrata parecer-se com a mais cega
cada vez mais, ou até mesmo exclusivamente, um personagem de e maisdelirante das alucinações, ou até mesmo a umahipocrisia cada
representação midiática no exato momento em quea transformação vez mais gritante, em sua retórica formal ou jurídica dos direitos
do espaço público, justamente pela mídia, o faz perder o essencial do humanos. Não se vai tratar apenas de acumular os “testemunhos
poder e mesmo da competência que detinha anteriormente das estru- empíricos”, comodiria Fukuyama,não será suficiente apontar a dedo
turas da representação parlamentar, dos aparelhos de partido que se a massa de fatos irrecusáveis que esse quadro poderia descrever ou
ligavam ela etc. Qualquer que seja a sua competência pessoal, O denunciar. A questão, enunciada muito brevemente, tampouco seria
político profissional, segundo o antigo modelo,tende hoje a tornar-se a da análise, a que seria preciso então proceder em todas essas
estruturalmente incompetente. O mesmo poder midiático acusa, pro- direções, mas a da dupla interpretação, dasleituras concorrentes que
duz e amplia, ao mesmo tempo, esta incompetência do político este quadro parece suscitar e nos obrigar a associar. Se em primeiro
tradicional: por um lado, subtrai-lhe o poderlegítimo que detinha do lugar fosse permitido enunciar estas calamidades da “nova ordem
antigo espaço político (partido, partamento etc.), mas, por outro lado, mundial” em um telegramade dez palavras, mencionaríamos talvez
obriga-o a se tornar uma simples silhueta, quando não uma marione- estas.
te, no teatro daretórica televisiva. Consideravam-no ator da política;
ele corre o risco frequentemente, sabe-se bem,de não ser mais do que
ator de televisão.
o consentimento deles. Quaisquer que sejam as circunstâncias, e sem escon-
der seu mau humor, o chefe do governo,entretanto, escuta-os com atenção,
seguido pelo governo,seguido pelo Parlamento. 2. “Improvisando” o que
1, Dois exemplos recentes, tomadosde passagem no “noticiário”, no momento parece uma gafe durante uma entrevista radiofônica, à hora do café da
em que eu relia estas páginas. Trata-se de dois “deslizes” mais ou menos manhã, um outro ministro, do mesmo govemo,provoca em um país vizinho
calculados, cuja possibilidade teria sido inimaginável sem a mediação e o umaforte reação do banco central e todo um processo político-diplomático.
ritmo atuais da imprensa. 1. Dois ministros tentavam transigir com uma Deveríamos analisar também o papel que desempenham a velocidade e o
decisão governamental em perspectiva(por iniciativa de um de seuscolegas), poder da mídia no poderde tal especulador — individual ou intemacional —
explicando-se, na imprensa (essencialmentetelevisiva) sobre umacarta, tida que, todos as dias, ataca ou sustenta esta ou aquela moeda, Seus telefonemas
como ““particular'” (secreta, “pessoal” ou não oficial), que endereçaram ao e suas menoresfrasestelevisivas têm mais peso do que todosos parlamentos
chefe do governoe cujo conteúdo “lamentam”quetenha sido divulgado sem do mundo sobre o que chamamos a decisão política dos governos.
)
112 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 13

1. O desemprego, este desregramento mais ou menos bem calcu- S. O agravamento da dívida extema e de outros mecanismos
lado de um novo mercado, de novas tecnologias, de uma nova conexos geram fome ou levam ao desespero uma grande parte da
competitividade mundial, mereceria sem dúvida, assim comoo tra- humanidade. Eles tendem assim a excluí-la simultaneamente do
balho ou a produção, um outro nome em nossosdias. Tanto mais que mercado que essa lógica buscaria, no entanto,estender. Este tipo de
o tele-trabalhonele inscreve uma distribuição que perturba tanto os contradições incita muitas flutuações geopolíticas, mesmo quando
métodos do cálculo tradicional como a oposição conceitual entre o estas parecem ditadas pelo discurso da democratização ou dos direi-
trabalho e o não-trabalho,a atividade, o emprego e seu contrário. Este tos humanos.
desregramentoregular encontra-se ao mesmo tempo dominado,cal- 6. A indústria e o comércio de armamento (seja este convencional
culado, “socializado”, ou seja, a cada vez denegado — irredutível ou de ponta em matéria de sofisticação tele-tecnológica) encontram-
à previsão, exatamente como o sofrimento, um sofrimento que sofre se inscritos na regulação normal da pesquisacientífica, da economia
ainda mais e mais obscuramente por ter perdido seus modelos e sua ou da socialização do trabalho das democracias ocidentais. Salvo
linguagem habituais, uma vez que não se reconhece mais debaixo da uma inimaginável revolução, não se pode suspendê-los ou mesmo
velha palavra “desemprego” e no cenário E este designou por moderá-los, sem correr riscos maiores, começando pelo agravamento
muito tempo. A função da inatividade social, dó não-trabalho ou do do dito desemprego. Quanto ao tráfico de armas, na medida (limita-
subemprego entra numa nova era. Reclama uma outra política. E um da) em que se poderia ainda distingui-lo do comércio “normal”, |
outro conceito. O “novo desemprego” parece-se tão pouco com o continua sendo o primeiro no mundo, antes do tráfico de drogas, a
desemprego, sem suas formas de experiência e cálculo, quanto o que que nem sempreé estranho.
se chamana Françaa “nova pobreza” parece-se com a pobreza. 7. A extensão(a “disseminação”) do armamento atômico, propi-
2. A exclusão maciça dos cidadãos sem teto (homeless) de toda ciada pelos países que afirmam querer proteger-se disso, não é nem
participação na vida democrática dos Estados,a expulsão ou a depor- mesmo mais controlável, como durante muito tempo foi o caso, por
tação detantos exilados, apátridas ou imigrados, de um território dito estruturas estatais. Esta não passa apenas aolargo do controle estatal,
nacional, anunciamjá agora uma nova experiência das fronteiras e da mas de todo mercado declarado.
identidade — nacional ou civil. 8. As guerras inter-étnicas (houve jamais outras?) multiplicam-se,
3. A guerra econômicainclemente entre os países da comunidade guiadas por um fantasma e um conceito arcaicos, por um fantasma
européia, entre estes e os países europeus do Leste, entre a Europa e conceitual primitivo da comunidade, do Estado-nação,da soberania,
os Estados Unidos, os Estados Unidos e o Japão. Esta guerra coman- das fronteiras, do solo e do sangue. O arcaísmo não é um mal em si,
da tudo, começando pelas outras guerras, já que comanda uma ele conserva, sem dúvida, um recurso irredutível. Mas como negar
interpretação prática e um uso inconseguente e desigual do direito que esse fantasma conceitual esteja mais do que nunca caduco, se
internacional. Existem numerosos exemplos disso há mais de uma assim se pode dizer, na ontopologia mesma que ele supõe, por meio
década. do deslocamento tele-técnico? Entendemos por ontopologia uma
4. A incapacidade de dominar as contradições no conceito, nas axiomáticaligando indissociaveimente o valor ontológico do ser-pre-
normase na realidade do mercadoliberal (as barreiras de um protecio- sente (0n) à sua situação, à determinação estável e apresentável de
nismo e o sobrelanço intervencionista dos Estadoscapitalistas para uma localidade (o topos do território, do solo,da cidade, do corpo em
proteger seus nacionais, ou até mesmo os ocidentais ou os europeus geral). Por estender-se de modo inusitado, a cada vez mais diferen-
em geral, contra a mão-de-obra barata, muitas vezes sem proteção ciado e a cada vez mais acelerado (trata-se da aceleração mesma,
social comparável). Como salvar seus próprios interesses no mercado além dos limites de velocidade que, até então, informaram a cultura
mundial e pretender proteger suas “aquisições sociais” etc.? humana), o processo de deslocamento não menos arquioriginário,
n4 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx ns

ou seja, tão “arcaico” quanto o arcaísmo que ele desaloja desde nacional cujo fechamento genealógico aparece cada vez melhor, de
sempre. É, aliás, a condição positiva da estabilização que ele retoma modo não somente teórico-jurídico ou especulativo, mas concreto,
sempre. Todaestabilidade em um lugar consistindo numa estabiliza- prático e praticamente quotidiano. Um outro limite liga-se estreita-
ção ou sedentarização,seria preciso, de fato, que a diferança local, o mente ao primeiro:esse direito internacional e pretensamenteuniver-
espaçamento de um des-locamento produzisse o movimento. E que sal continua sendo largamente dominado, em sua operacionalização,
desse lugar e desse ocasião. Todo enraizamento nacional, por exem- pelos Estados-nações particulares. Quase sempre seu poder tecno-
plo, enraíza-se primeiramente na memória ou na angústia de uma econômico e militar prepara e aplica, em outras palavras, sobrepuja
população deslocada — ou deslocável. Out ofjoint não é somente o a decisão. Como se diz em inglês, faz a decisão. Mil exemplos,
tempo, mas o espaço,o espaço do tempo,o espaçamento. recentes ou menos recentes, o demonstrariam amplamente, quer se
9. Como ignorar o poder crescente e in-delimitável, ou seja, tratasse de deliberações e de resoluções das Nações Unidas ou de sua
mundial, desses Estados-fantasmas, supereficazes e propriamente operacionalização (enforcement): a incoerência, a descontinuidade, a
capitalistas, que são a máfia e o consórcio da droga em todos os desigualdade dos Estadosdiante da lei, a hegemonia de certos Esta-
continentes, inclusive nos antigos Estados ditos socialistas do Leste dos sobre a potência militar a serviço do direito internacional, eis o
europeu? Esses Estados-fantasmas infiltraram-se e banalizaram-se que é preciso, de fato, constatar ano após ano,dia após dia.!
em toda parte, a ponto de não se poder mais rigorosamenteidentificá- Esses fatos não são suficientes para desqualificar as instituições
los. Nem mesmo,às vezes, dissociá-los claramente dos processos de intemacionais. A justiça exige, ao contrário, que se preste homena-
democratização (pensemos — por exemplo — em uma sequência gem a alguns daqueles que nelas operam no sentido da perfectibili-
cujo esquema, aqui telegraficamente simplificado, associaria a dade e com vistas a emancipar as instituições a que não se deveria
história de uma máfia-siciliana-molestada-pelo-fascismo-de-Estado- jamais renunciar. Porinsuficientes, confusos ou equívocosque sejam
mussoliniano-portanto-intimamente-e-simbioticamente-aliada-aos- tais sinais, congratulemo-nos com o que hoje se anuncia com a
Aliados-no-campo-democrata-dos-dois-lados-do- Atlântico-assim- reflexão sobre o direito de ingerência ou intervenção,a título do que
como-na-reconstrução-do-Estado-democrata-cristão-italiano-parti- se chama obscuramente, e às vezes com hipocrisia, o humanitário,
cipando-hoje-de-uma-nova-configuração-do-capital, sobre o que — limitando assim a soberania do Estado em certas condições. Congra-
o menos que se podedizer é que nada se entenderá disso sem levar
em contaa sua genealogia). Todas essas infiltrações atravessam uma
fase “crítica”, como se diz, o que nos permite, sem dúvida,falar dela 1 Aoqueé preciso acrescentar a não-independência econômica da ONU, quer
ou esboçar sua análise. Esses Estados-fantasmas invadem não se trate de suas grandes intervenções (políticas, socioeducativas, culturais ou
militares) ou muito simplesmentede sua gestão administrativa. Ora,é preciso
somente o tecido socioeconômico, a circulação geral dos capitais,
saber também que a ONU atravessa uma grave crise financeira. Nem todos
mas também as instituiçõesestatais ou interestatais. os grandes Estados pagam o que devem. Solução: campanha para atrair o
10. Pois sobretudo, sobretudo, seria preciso analisar o presente suporte de capitais privados, constituição de councils (associações de gran-
estado do direito internacionale de suas instituições: apesar de uma des capitães da indústria, do comércio e da finança) destinadosa sustentar,
feliz perfectibilidade, apesar de um inegável progresso, essas institui- em certas condições, declaradas ou não declaradas, uma política da ONU que
ções internacionais sofrem ao menos de dois limites. O primeiro e o podeir (a cada vez, aqui ou lá, antes aqui doque lá. justamente) no sentido
dos interesses do mercado. Muitas vezes,é preciso sublinhá-loe refletir sobre
mais radical dos dois provém do fato de suas normas, suas regras de
isto, os princípios que guiam em nossos dias as instituições intemacionais
organização, a definição de sua missão dependerem de uma certa afinam-se com tais interesses. Por que, como, e dentro de que limites o
cultura histórica. Pode-se dissociá-la de certos conceitosfilosóficos fazem? O que significam esses limites? É a única pergunta que podemos
europeus, e principalmente de um conceito de soberania estatal ou formular no momento.
6 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 17

tulemo-nos com esses sinais e desconfiemos cuidadosamente das continuará sendo inadequado,às vezes hipócrita, em todo caso formal
manipulaçõesou das apropriações de queessas novidades podem ser e inconsegiiente para consigo mesmo, enquanto a lei do mercado, a
objeto. ' “dívida externa”, a desigualdade do desenvolvimento tecno-científi-
Retomemosagora mais de perto o tema de nossa conferência. Meu co, militar e econômico mantiveram uma desigualdade efetiva tão
subtítulo, “a nova Internacional”, refere-se a uma transformação monstruosa como esta que prevalece hoje, mais do que nunca, na
profunda, projetada no longo prazo,do direito internacional, de seus história da humanidade. Pois é preciso gritá-lo, no momento em que
conceitos e de seu campo de intervenção. Assim comoo conceito dos alguns ousam neo-evangelizar em nome do ideal de uma democracia
direitos humanosfoi-se determinandolentamente ao longo dos sécu- liberal tendo enfim vindo a ser ela mesma como o ideal da história
los, através de muitos seísmos sociopolíticos (quer se trate do direito humana: jamais a violência, a desigualdade, a exclusão, a fomee,
ao trabalho ou de direitos econômicos, dos direitos da mulher e da portanto, a opressão econômica afetaram tantos seres humanos, na
criança etc.), do mesmo modo o direito internacional deveria estender história da terra e da humanidade. Em lugar de cantar o advento do
e diversificar seu campo até incluir nele, se ao menos se obriga à ser ideal da democracialiberal ou do mercado capitalista na euforia do fim
consequente com a idéia da democracia e dos direitos humanos que da história, em lugar de celebrar o “fim das ideologias”e o fim dos
proclama, o campo econômico e social mundial, para além da sobera- grandesdiscursos emancipatórios, não descuidemos nunca desta evi-
nia dos Estados e dos Estados-fantasmas de que falávamos há pouco. dência macroscópica, feita de inúmeros sofrimentos singulares: ne-
Apesar da aparência, o que dizemos aqui não é simplesmente anties- nhum progresso permite ignorar que nunca, em número absoluto,
tatal: em condições dadas e limitadas, o super-Estado que uma insti- nunca tantos homens, mulherese crianças foram subjugados, passa-
tuição internacional poderia ser sempre poderá limitar as apropriações ram fome e foram exterminadossobrea terra.(E provisoriamente, mas
e violências de certas forças socioeconômicas privadas. Mas, sem a contragosto, devemos deixar de lado, aqui, a questão, contudo
necessariamente subscrever a todo discurso (aliás, complexo,evoluti- indissociável, do que vem acontecendo à vida dita “animal”,à vida e
vo, heterogêneo) da tradição marxista sobre o Estado e sua apropria- à existência dos “animais” nesta história. Essa questão semprefoi
ção por uma classe dominante, sobrea distinção entre poder de Estado grave, mas vai-se tornar massivamente fatal.)
e aparelho de Estado,sobre o fim do político, o “fim da política” ou A “nova Internacional” não é somente ao qué almeja um novo
sobre a extinção do Estado, ! e por outro lado, sem suspeitar da idéia
direito internacional através desses crimes. É um vínculo de afinida-
do jurídico em si mesma, pode-se ainda receber inspiração do “espí- de, de sofrimento e de esperança, um vínculo ainda discreto, quase
rito” marxista para criticar a pretensa autonomia dojurídico e denun-
secreto, como por volta de 1848, mas cada vez mais visível —
ciar persistentemente o arrazoamento, na realidade, das autoridades
repetidamente constatou-se isso. É um vínculo intempestivo e sem
internacionais pelos poderosos Estados-nações, pelas concentrações
estatuto, sem título e sem nome, apenas público, mesmo se não é
de capital tecno-científico, de capital simbólico e de capital financeiro,
clandestino, sem contrato, out ofjoint, sem coordenação, sem parti-
de capitais de Estado e de capitais privados. Através dessas crises do
do, sem pátria, sem comunidade internacional (Internacional antes,
direito internacional busca-se uma “nova Internacional”; desdejá eta
através e além de toda determinação nacional), sem co-cidadania,
denuncia os limites de um discurso sobre os direitos humanos que
sem pertencimento comum a uma classe. O que se designa aqui, sob
o nome de nova Internacional, é o que faz voltar à amizade de uma
aliança sem instituiçãoentre estes que, mesmose não acreditam mais,
1 Cf. sobre esses pontos Étienne Balibar, Cing études du matérialisme histori-
ou nunca acreditaram, na internacional socialista-marxista, na dita-
que, Maspero, 1974 (principalmente o capítulo sobre “A retificação do
Manifesto Comunista” e o que concerne a “O fim da política”, “A nova dura do proletariado, no papel messiano-escatológico da união uni-
definição do Estado” e “Uma novaprática política”, pp. 83 e segs.). versal dos proletários de todos os países, continuam inspirar-se em
18 JACQUES DERRIDA
Espectros de Marx 119

cos”, e tudoisso que é inadequadoaoideal, tratar-se-ia de requestio-


um, pelo menos, dosespíritos de Marx ou do marxismo (eles sabem
nar, em alguns de seus predicados essenciais, o conceito mesmo do
agora que há mais de um) para aliar-se, de um novo modo, concreto,
dito ideal. Isso se estenderia, por exemplo, à análise econômica do
real, mesmo que esta aliança não venha mais a tomar a forma do
partido ou daInternacional operária, mas a de uma espécie decontra- mercado, das leis do capital, dos tipos de capital (financeiro ou
conjuração,na crítica (teórica e prática) do estado dedireito interna- simbólico, portanto, espectral), da democracia parlamentar liberal,
cional, dos conceitos de Estado e de nação etc.: para renovar esta dos modosde representação e de sufrágio, do conteúdo determinante
crítica e, sobretudo, para radicalizá-la. dosdireitos do homem, da mulher, da criança, dos conceitos corren-
Há, ao menos, duas maneiras de interpretarisso que acabamosde tes de igualdade,liberdade,e fraternidade sobretudo (o mais proble-
chamar de o “quadro negro”, as dez chagas, o luto e a promessa mático de todos), da dignidade, das relações entre o homem e o
de que ele faz parte fingindo expor ou contar. Como escolher entre cidadão. Isto também se estenderia, na quase totalidade de seus
conceitos, até o conceito de homem (logo,do divino e do animal) e a
essas duas interpretações simultaneamente concorrentes e incompa-
tíveis? Por que não deveríamos escolher? Nosdois casos, trata-se de um conceito determinado do democrático que o supõe (não digamos
fidelidade a um certo espírito do marxismo: a um, este aqui, e não O de toda democracia nem,justamente, da democracia por vir). Então,
outro. mesmo nessa última hipótese, a fidelidade à herança de um certo
espírito marxista continuaria sendo um dever.
1. A primeira interpretação, ao mesmo tempo a mais clássica e a Aí estão duas razões diferentes para se ser fiel a um espírito do
mais paradoxal, permaneceria ainda na lógica idealista de Fukuya- marxismo. Elas não devem acrescentar-se, mas entrelaçarem-se. De-
vem entreimplicar-se no curso de uma estratégia complexa e inces-
ma. Mas paratirar outrastantas consegiências completamente diver-
santemente por reavaliar. Não haverá repolitização, não haverá mais
sas. Aceitemos provisoriamente a hipótese de que tudo o que vai mal
no mundo hoje tem que ver com o desvio entre à realidade empírica política de outro modo. Sem essa estratégia, cada uma das duas
razões poderia conduzir ao pior, ao pior que o mal, se assim se pode
e um ideal regulador, quer se defina este último comoo fez Fukuya-
dizer, a saber, a uma espécie de idealismofatalista ou de escatologia
ma, quer apuremos e transformemos seu congeito. O valor e a
abstrata e dogmática diante do mal do mundo.
evidência do ideal não estariam comprometidos, intrinsecamente,
pela inadequação histórica das realidades empíricas. Bem, mesmo Que espírito marxista, portanto? É fácil imaginar porque não
nesta hipótese idealista, o recurso a um certo espírito da crítica agradaremos aos marxistas, nem ainda menos a todos os outros,
insistindo deste modono espírito do marxismo, ainda mais se dermos
marxista continua urgente e deverá continuar indefinidamente neces-
sário para denunciar e reduzir O desvio tanto quanto possível, para a entender que entendemos entender espíritos no plural e no sentido
ajustar a “realidade” ao “ideal” durante um processo necessaria- de espectros, de espectros intempestivos que não convém expulsar,
mente infinito. Sabendo--se adaptá-la às novas condições, essacrítica mas escolher, criticar, manter perto de si e deixar voltar. E, é claro,
marxista pode permanecerfecunda, quando setratasse, por exemplo, quanto ao princípio de seletividade que deverá guiar e hierarquizar
de novos modos de produção, da apropriação de poderes e de saberes entre os “espíritos”, não devemos jamais deixar de ver que por sua
econômicos e tecno-científicos, da formalidade jurídica no discurso vez, ele também fatalmente excluirá. Aniquilará, velando (por) seus
ancestrais de preferência (a) esses outros. Neste momento, e não em
e nas práticas do direito nacionai ou internacionãl, dos novos proble-
mas da cidadania e da nacionalidadeetc. um outro. Por esquecimento (culpado ou inocente, pouco importa
aqui), por rejeição ou assassinato, essa vigília engendrará novos
2. A segunda interpretação do quadro negro obedeceria a uma fantasmas. E o fará escolhendo,já agora, entre Os fantasmas,os seus
outra lógica. Afora os “fatos”, os pretensos “testemunhos empíri-. entre os seus, portanto, matando mortos: lei da finitude,lei da decisão
120 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 121

e da responsabilidade por existências finitas, os únicos viventes-mor- gica (principalmente ao “método dialético”, ou à “dialética materia-
tais para quem uma decisão, uma escolha, uma responsabilidade têm lista”), aos seus conceitos fundamentais de trabalho, de modo de
um sentido, e um sentido que deverá fazer a experiência do indecidí- produção, de classe social, e, por conseguinte, a toda a história de
vel. É por esta razão queisto que estamos dizendo aqui não agradará seus aparelhos (projetadosou reais: as Internacionais do movimento
a ninguém, Mas quem disse, alguma vez, que alguém deveria falar, operário, a ditadura do proletariado, o partido único, o Estado e
pensar ouescreverpara agradar a alguém? E seria preciso ter enten- finalmente a monstruosidade totalitária). Pois a desconstrução da
dido de fato muito mal para reconhecer, no gesto quearriscamos ontologia marxista, digamo-lo como “bom marxista”, não denuncia
aqui, uma espécie de adesão-tardia-ao-marxismo. É verdade, eu seria somente uma camada teórico-especulativa do corpo marxista, mas
hoje, aqui, agora, menos insensível do que nunca ao apelo do contra- tudo isto que o articula à história mais concreta dos aparelhos e das
tempo oudarazão contrária, como aoestilo de uma intempestividade estratégias do movimento operário mundial. E esta desconstrução
mais manifesta e mais urgente do que nunca. “Prestar homenagem a não consiste, em última análise, em um procedimento metódico ou
Marx, é de fato o momento!": já ouço dizerem. Ou então “Não era teórico. Em sua possibilidade, como em sua experiência do impossí-
sem tempo!”, “Por que tão tarde?” Eu creio na virtude política do vel, que a terá sempre constituído, ela nunca é estranha ao aconteci-
contratempo. E se um contratempo não tiver a oportunidade, mais ou mento: pura e simplesmente, à vinda do que acontece. Certosfilóso-
menos calculada, de vir exatamente a tempo, então o inoportuno de fos soviéticos me diziam em Moscou, há alguns anos: a melhor
uma estratégia (política ou outra) pode ainda testemunhar, exatamen- tradução para perestroika é ainda “desconstrução”.
te, sobre a justiça; dar testemunho, ao menos, da justiça exigida, de Para essa análise de aparência química, que isolará, em suma, O
que,afirmávamos acima, ela deve se encontrar desajustada, irredutí- espírito do marxismo a que convirá permanecer fiel, dissociando-o
vel à exatidãoe ao direito. Mas esta não é aqui à motivação decisiva de todosos seus outros espíritos sobre os quais se constata, sorrindo
e seria preciso, enfim, romper com o simplismo desses slogans. O talvez, que eles reúnem quase tudo, nosso fio condutor esta noite
queé certo é que eu não sou marxista. Como o havia dito, há muito seria, justamente, a questão do fantasma. Como Marx tratou o fantas-
tempo, recordemo-nos, alguém cujo dito espirituoso Engels relatou. ma, o conceito de fantasma, de espectro ou de aparição? Como o
Será preciso valer-se ainda de Marx para dizer “não sou marxista'”? determinou”? Comoo ligou, finalmente,através de tantas hesitações,
Como se reconhece um enunciado marxista? e quem podeaindadizer de tensões, de contradições, a uma ontologia? Qual é este elo do
“eu sou marxista”? fantasma? Qual é a ligação desta ligação, dessa ontologia com o
Continuar à inspirar-se em um certo espírito do marxismo seria materialismo, o partido, o Estado, o tornar-se-totalitário do Estado?
permanecer fiel ao que sempre fez do marxismo, em princípio e Criticar, convocar à autocrítica interminável, ainda é distinguir
primeiramente, uma crítica radical, a saber, um método pronto à sua entre tudo e quase tudo. Ora, se há um espírito do marxismo a que
autocrítica. Essacrítica se quer, em princípio e explicitamente, aberta nunca estarei pronto a renunciar, não é somente a idéia crítica ou a
sobre sua própria transformação, sua reavaliação e sua auto-reinter- postura questionadora (uma desconstrução consegiiente deve empe-
pretação. Tal “se querer” crítico enraíza-se necessariamente; ele se nhar-se nisso, ainda que saiba, também, que a questão não é nem a
encontra investido em um solo que ainda não é crítico, mesmo sem última nem a primeira palavra). Antes se trata de uma certa afirmação
ser, ainda não, pré-crítico. Este espírito é mais do que um estilo, emancipatória e messiânica, de uma certa experiência da promessa
embora seja também um estilo. É herdeiro de um espírito das Luzes que se pode tentar liberar de todo dogmatismo e mesmo de toda
a que.não se deve renunciar. Distinguiremos este espírito de outros determinação metafísico-religiosa, de todo messianismo. E uma pro-
espíritos domarxismo, desses que o fixam 20 corpo de uma doutrina messa deve prometer ser mantida, ou seja, não continuar sendo
marxista, de sua pretensa totalidade sistêmica, metafísica ou ontoló- “espiritual” ou abstrata, mas produzir acontecimentos, novas formas
122 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 123

de ação, de prática, de orgânização etc. Romper com a “forma um certo espírito messiânico. Isso de que falávamos aqui ou noutra
partido” ou com esta ou aquela forma de Estado ou de Internacional, parte sobre a exapropriação (radical contradição de todo “capital”,
isso nãosignifica renunciar a toda forma de organização prática ou de toda propriedade ou apropriação, como de todos os conceitos que
eficaz. É exatamente o contrário que nos importa aqui. dela dependem, começandoporeste de subjetividadelivre, portanto,
Dizendo isso, opomo-nos a duas tendências dominantes: por um da emancipação que se regula nesses conceitos) não justifica nenhu-
lado, às mais cuidadosas e mais modemas reinterpretações do mar- ma sujeição. É, se assim se pode dizer, exatamente o contrário. A
xismo por certos marxistas (especialmente franceses, e próximos a submissão (se) liga à apropriação.
Althusser) que antes acreditaram dever tentar dissociar o marxismo
de toda teleologia ou de toda escatologia messiânica (mas meu Ora, este gesto defidelidade a um certo espírito do marxismo,eis
propósito é precisamentedistinguir esta daquela); por outro lado,às uma responsabilidade que cabe, em princípio, certamente, a qualquer
interpretações antimarxistas que determinam sua própria escatologia um. Mal merecendo o nomede comunidade, a nova Intemacional só
emancipatória dando-lhe conteúdos ontoteológicos sempre descons- está vinculada ao anonimato. Mas essa responsabilidade parece hoje,
trutíveis. Um pensamento desconstrutor, o que me importa aqui, pelo menos nos limites de um campo intelectual e acadêmico, caber
sempre chamoua atenção para a irredutibilidade de uma certa idéia
mais imperativamente, e digamosisso para não excluir ninguém, com
da justiça (aqui dissociada do direito!). Tal pensamento não pode prioridade, com urgência, àqueles que, durante as últimas décadas,
operar semjustificar o princípio de umacrítica radical e interminável, souberam resistir a uma certa hegemonia do dogma, até mesmo da
infinita (teórica e prática, como se dizia). Essa crítica pertence ao
metafísica marxista, sob suas formas política ou teórica. E, mais
movimento de uma experiência necessariamente indeterminada, abs-
especialmente ainda, àqueles que se empenharam em conceber e
trata, desértica, entregue, exposta, dada à sua espera do outro e do
praticar essa resistência sem ceder à complacência para com tenta-
acontecimento. Na sua pura formalidade, na indeterminação que
ções reacionárias, conservadoras ou neoconservadoras,anticientífi-
requer, pode-se ainda encontrar nela alguma afinidade essencial com
cas ou obscurantistas, âqueles que, ao contrário, não desistiram de
proceder de maneira hipercrítica, eu ousaria dizer desconstrutora, em
nome das novas Luzes para o século vindouro. E sem renunciar a um
1, Sobre essadiferençaentre justiça e direito, permito-me remeter ainda a Force ideal de cado e de emancipação; antes tentando pensá-lo e
de loi(OC., acima, p. 15, nota 1). A necessidade dessadistinção não acarreta
operacionalizá-lo de outro modo.
a menor desqualificação do jurídico, de sua especificidade e das novas
abordagens que ele reclama hoje. Tal distinção parece, ao contrário, indis- - A responsabilidade, mais uma vez,seria aqui a de um herdeiro.
pensávele preliminar a toda reelaboração. Em particular em todososlugares Quer o queiram, o saibam ou não, todos os homens, sobrea terra
onde se constata isso a que se cháma nos dias de hoje, mais ou menos inteira, são hoje, numa certa medida, herdeiros de Marx e do marxis-
tranquilamente, como se se tratasse de preencher sem re-fundar de alto a mo. Ouseja, dissemo-lo há pouco, da singularidade absoluta de um
baixo, de “vazios jurídicos”. Não é surpresa quese trate, o mais das vezes, projeto — ou de uma promessa — de forma filosófica e científica.
da propriedade da vida, de sua herança e das gerações (problemas cientifi-
Esta forma é em princípio não religiosa, no sentido da religião
cos,jurídicos, econômicos, políticos do dito genomadito humano,da terapia
positiva; ela não é mitológica; ela não é, portanto, nacional — pois,
gênica, dos enxertos de órgãos, das mães de aluguel, dos embriões congela-
dos etc.). ] para além mesmo da aliança com um povo eleito, não existe nacio-
Acreditar que se trata de preencher tranquilamente um “vazio jurídico”, nalidade, ou nacionalismo, que não seja religioso ou mitológico,
aí onde se trata de pensar a lei, a lei da lei, o direito e a justiça, acreditar que digamos em um sentido amplo, “místico”. A forma dessa promessa
basta produzir novos “artigos de lei” para “regular um problema”, seria ou desse projeto continua sendo absolutamente única. Seu aconteci-
comose confiássemos o pensamento ético a um comitê de ética. mento é ao mesmo temposingular,total e indelével — indelével de
124 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 125

outra maneira que não uma denegação, e no curso de um trabalho do onde ela não é reconhecida, mesmo aí onde permanece inconsciente
luto que não pode senão deslocar, sem o apagar, o efeito de um ou denegada,esta dívida continua operando, em particular nafiloso-
traumatismo. fia política que estrutura implicitamente todafilosofia ou todo pen-
Não há nenhum precedente de semelhante acontecimento. Em samento acerca dafilosofia.
toda a história da humanidade, em todaa história do mundoe daterra, Limitemo-nos, porfalta de tempo, a certos aspectos, por exemplo,
em tudoisto a que se pode dar o nome de história em geral, seme- do que chamamos a desconstrução, na figura que foi inicialmente a
lhante acontecimento (tomemosa dizer, o de um discurso de forma sua no curso das últimas décadas, a saber, a desconstrução das
filosófico-científica pretendendo romper com o mito, a religião e a metafísicas do próprio, do logocentrismo, do lingiisticismo, do fo-
“mística” nacionalista) ligou-se, pela primeira vez e inseparavel- nologismo,a desmistificação ou a des-sedimentação da hegemonia
mente, a formas mundiais de organização social (um partido com autonômica dá linguagem (desconstrução dutante a qual se elabora
vocação universal, um movimento operário, uma confederação esta- um outro conceito do texto ou do traço, de sua tecnicizaçãooriginá-
tal etc.). Tudo isso, ao mesmo tempo em que propunha um novo ria,da iterabilidade, do suplemento protético, mas também do pró-
conceito do homem, da sociedade, da economia, da nação, diversos prio e do que se chamou à exapropriação). Semelhante desconstrução
conceitos do Estado do seu desaparecimento. Pense-se o que quiser teria sido impossível e impensável em um espaço pré-marxista. A
desse acontecimento,do fracasso,às vezes terrificante, do que esteve desconstrução nunca teve sentido e interesse, aos meus olhos pelo
deste modo comprometido, dos desastres tecno-ecpnômicos ou eco- menos, senão como umaradicalização,isto é, também na tradição de
lógicose das perversões totalitárias a que deram origem (perversões um certo marxismo, dentro de um certo espírito de marxismo. Houve
de que alguns dizem, há muito tempo, que não setrata de perversões, essa radicalização tentada do marxismo que se chama a desconstru-
precisamente, de desvios patológicos e casuais, mas do desdobra- ção (e em que,alguns O terão notado, um certo conceito econômico
mento necessário de uma lógica essencial e presente desde o nasci- da economia diferancial e da exapropriação, até mesmo do dom,
mento, de um desajustamento originário — quanto a nós, digamos, desempenha um papel organizador, como o conceito de trabalho
de modo bastante elíptico, e sem contradizer essa hipótese, o efeito ligado à diferança e ao trabalho do luto em geral). Se essa tentativa
de um tratamento ontológico da espectralidade do fantasma), o que foi prudente e parcimoniosa, mas raramente negativa naestratégia de
quer que se pense também do traumatismo que se pode seguir na suas referências a Marx,é que a ontologia marxista, a invocação de
memória do homem,essatentativa única ocorreu. Mesmoseela não Marx, a legitimação segundo Marx, se encontravam, de alguma
foi mantida, ao menos na forma de sua enunciação, mesmoseela se maneira, submetidas a sólido arrazoamento. Pareciam soldados a
precipitou na direção do presente de um conteúdo ontológico, uma uma ortodoxia, a aparelhose a estratégias cujo erro menor nãoera
promessa messiânica de um novo tipo terá imprimido uma marca somente que estivessem, enquanto tais, privadas de porvir, do porvir
inaugural e única na história. E, queira-se ou não, qualquer consciên- mesmo. Por solda, pode-se entender uma aderência artefatual mais
cia que tenhamosdisso, não podemosdeixar de ser os seus herdeiros. sólida e cujo advento constitui todaa história do mundo há um século
Não há herança sem apelo à responsabilidade. Uma herança é sempre e meio,e, portanto, toda a história de minha geração.
a reafirmação de uma dívida, mas umareafirmação crítica,seletiva e Mas uma radicalização sempre se torna devedora junto àquilo
filtrante; é por essa razão que distinguimos vários espíritos. Ao mesmo queela radicaliza.! Foi por essa razão que falei da memória
inscrever em nossogubtítulo uma expressão tão equívoca, o “Estado
da dívida”, queríamos anunciar, certamente, um certo número de
temas inevitáveis, mas antes de tudo este, de uma dívida indelével e
! Mas que querdizer “radicalizar"”? Nãoé, de modo algum, a melhor palavra.
insolúvel para com um dos espíritos que se inscreveu na memória Ela exprime, de fato, um movimento para ir mais longe, certamente, e para
histórica sob os nomes próprios de Marx e do marxismo. Mesmo aí não se deter. Mas sua pertinênciaaí se limita. O que importa é que se faça ou
Espectros de Marx 127
126 JACQUES DERRIDA

Primeiramente, já insistimos bastante nisso, não se estabelece o


e da tradição marxistas da desconstrução,de seu “espírito” marxista. estado de uma dívida, por exemplo, no que conceme a Marx e ao
Nãoé o único e não é qualquer um dosespíritos marxistas, evidente- marxismo, como se estabeleceria um balanço ou um inventário
mente. Deveríamos multiplicar e aperfeiçoar esses exemplos, mas 0
exaustivo, de modoestático e estatístico. Não se põem essas contas
tempo é curto.
em tabelas. Tornamo-nos contadores por meio de um compromisso
Se meu subtítulo particularizava o Estado da dívida, será também
que seleciona, interpreta e orienta. De formaprática e performativa.
com vistas a problematizar o conceito de Estado ou de estado, com
E por meio de uma decisão que começa por se tomar, como uma
ou sem maiúscula, e de três maneiras. responsabilidade, nas redes de uma injunçãojá agora múltipla, hete-
rogênea, contraditória, dividida — logo, de uma herança que sempre
guardará o seu segredo. E o segredo de um crime. O segredo quanto
mais, ou menos, do que “radicalizar”, de preferência outra coisa, pois o que aoseuautor mesmo. O segredo de quem diz a Hamlet:
está em jogo é precisamentea raiz e sua pretensa unidade. O que importa não
é de progredir ainda na profundidade da radicalidade, do fundamental ou do Ghost. 1 am thy Fathers Spirit,
originário (causa, princípio, arkhe), dando mais um passo na mesmadireção. Doom'dfor a certaine terme to walke the night;
Antes tentaríamosir até aí onde, em sua unidade ontológica, o esquema do Andfor the day confin'd tofast in Fiers.
fundamental, do originário ou radical, tal como continua a comandar a crítica Till thefoule crimes done in my dayes ofNature
marxista, exige questões, processos de formalização,interpretações genealó- Are bumt andpurg'd away: But that | amforbid
gicas que não são, ou não suficientemente empregados no que domina os To tell the secrets ofmy Prison-House;
discursos que se dizem marxistas. Não suficientemente na temática e na con- J could a Tale vnfold...
segiência. Pois o desdobramento questionante dessas formalizações e dessas
genealogias afeta quase todo o discurso, e de modo não somente “teórico”, Sou a alma de teu pai, por algum tempo
comosediz. O queestá em jogo aqui,e que nos serve de fjo condutor,a saber, condenada a vagar durante a noite
o conceito ou o esquema de fantasma, anunciava-se há muito tempo, e sob e de dia a jejuar na chamaardente,
seu nome, através das problemáticas do trabalho do luto,da idealização, do até queas culpas todas praticadas
simulacro, da mimesis, da iterabilidade, da dupla injunção, do double bind e em meusdias mortais sejam nas chamas,
da indecidibilidade como condição da decisão responsávelctc. ao fim purificadas. Se eu pudesse
Talvez seja aqui o lugar de sublinhá-lo:as relações entre o marxismo e à revelar-te os segredos do meu cárcere
desconstrução exigiram, desde o começo dosanos 1970,abordagens diversas as menores palavras dessa história
sob todos às pontos de vista, muitas vezes opostas ou irredutíveis umas às te rasgariam a alma.!
outras, mas numerosas. Bastante numerosas para que eu possa aqui fazer-lhes Ato, cena V
justiça, e reconhecer o que lhes devo. Afora os livros que dela fizeram seu
objeto próprio (como o de Michel Ryan, Mgrxism and Desconstruction. A
Critical Articulation, Johns Hopkins University Press, 1982 ou o Marx est
1 Hamiet, ato I, cena V,tr. Carlos Alberto Nunes, Clássicos de Bolso, p. 41.
mort, de Jean-Marie Benoist, Gallimard, 1970, cuja última parte, apesar de
Nãose sabe se “as culpas todas praticadas” (“foule crimes") que sucederam
- seu título, reverencia Marx, e se quer, ao mesmo tempo, deliberadamente
em suavida (“in »m dayes ofNature”) foram ou nãoas suas.E aí está,talvez,
“desconstrutiva” e menos negativa do que o atestado de óbito levaria a
o segredo desses “secrets of my Prison-House” que ao rei é “proibido”
pensar. O título deste livro pode ser lido como uma resposta ao de J.M.
desvelar (“! am forbid to tell the secrets”). Performativos em abismo, os
Benoist, emboraela ficasse adiada por muito tempo,entregue ao tempo, ao
juramentos, apelo a juros, as injunções e as conjurações que se multiplicam
contratempo, ou seja, à aparição), seria preciso lembrar um grande número
então — comoem todo teatro de Shakespeare, que foi um grande pensador
de ensaios, o que seria impossível enumerar aqui (especialmente os de J.J.
e um grande poeta do juramento — supõem um segredo, certamente, algum
Goux, Th. Keenan, Tp. Lewis, C. Malabou, B. Martin, A. Parker, G. Spivak, testemunho impossível e que não pode nem deve, sobretudo, expor-se numa
M. Sprinker, A. Warminski, S. Weber).
128 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 129

Toda aparição parece, aqui,vir e voltar da terra; dela vir como de sobre as ilusões de sua autonomia de direito em relação às forças
uma clandestinidade soterrada (o húmus e o esterco, o túmulo e a socioeconômicas, mas também sobre as novas formas de uma extin-
prisão subterrânea); para aí voltar, como ao mais baixo,na direção do ção, antes de uma reinscrição, de uma re-delimitação do Estado em
humilde, do úmido, do humilhado. Convém também, a nós aqui, um espaço que ele não domina mais,e que, aliás, ele nunca dominou
passar em silêncio, no mais próximo à terra, o retorno de um animal: sem divisão.
nãoa figura da velha toupeira (Wellsaid, old Mole), nem de um certo
ouriço, porém mais precisamente a de um “iroso porco-espinho”
(fretfull Porpentine) que o espírito do pai, então, apresta-se para
conjurar, subtraindo “a descrição da eternidade” aos “ouvidos de
carnee sangue” (ibid.).
Em segundo lugar, outra dívida, todas as questões da democracia,
do discurso universal sobre os direitos humanos, do futuro da huma-
nidade etc. só resultarão em álibis formais, bem pensantes e hipócri-
tas, enquanto a “Dívida externa” não for tratada de frente, de modo
responsável, consequente e tão sistemático quanto possível. Sob esse
nome ou essa figura emblemática, trata-se de juros, dos juros do
capital em geral, de juros que, na ordem mundial hoje, a saber, do
mercado mundial, mantêm uma massa da humanidade sob seu jugo,
numa nova forma de escravidão.Isto se dá dentro das formas estatais
ouinterestatais de uma organização, e sempre se vale dessas. Ora,
não setratará desses problemas da Dívida externa — e de tudo o que
este conceito metonimiza — sem, ao menos, o espírito da crítica
marxista, da crítica do mercado, das lógicas múltiplas do capital e do
queliga o Estado e o direito internacional a esse mercado.
Em terceiro lugar, finalmente, e por conseguinte, a uma fase de
mutação decisiva deve corresponder uma reelaboração profunda e
crítica do conceito de Estado,de Estado-nação, de soberania nacional
e de cidadania. Esta seria impossível sem a referência vigilante e
sistemática a uma problemática marxista, quando não às conclusões
marxistas sobre o Estado, o poder do Estado e o aparelho de Estado,

confissão, ainda menos numa prova, numa prova do crime ou em um


enunciado de constatação do tipo S é P. Mas esse segredo guarda também
segredo sobre certa contradição absoluta entre duas experiências do segredo:
digo-te que não te posso dizer, juro-o, eis aí meu primeiro crime e minha
primeira confissão, uma confissão sem confissão. Elas não excluem nenhuma
outra, acreditem-me.
CAPÍTULO 4

Em nome da revolução,
a dupla barricada

(impura “impura impura


história de fantasmas”)

“Junho de 1848, apressemo-nos em dizê-lo, foi um fato excepcional, e


quase de impossível classificação na filosofia da história [...] mas, na
essência o que é que foi junho de 1848? Uma revolta do povo contra si
mesmo.[...] Que nos seja, portanto, permitido chamar um momento a
atenção do leitor para as duas barricadas absolutamente únicas de que
falamos há pouco[...] essas duas medonhas obras-primas da guerra civil.
[...] A barricada de Santo Antônio era monstruosa [...] a ruína. Podia
dizer-se: quem construiu isto? do mesmo modoque: quem destruiu isto?
Era grandee era pequeno. Era o abismo parodiado na praça pública pela
confusão.[...] Esta barricadaera furibunda[...] descomunal e viva; e qual
lombo de um animal elétrico, saía dela uma cintilação de raios. O espírito
da revolução cobria com sua nuvem este cume onde troava esta voz do
povo que parece-se à voz de Deus; uma majestade estranha se desprendia
desta titânica cesta de entulhos. Era um monte delixo e era o Sinai.
Como dissemos acima, ela atacava em nome da Revolução, ora? A
Revolução.
[...] Ao fundo, erguia-se a extraordinária muralha fechando a rua; mura-
lha imóvele trangúila, não se via ali ninguém,não se ouvia coisa alguma,
nem um grito, nem o mínimo ruído, o mais tênue sopro. Um sepulcro.
[...] O chefe dessa barricada era um geômetra ou um espectro.
[...] A barricada do arrabalde de Santo Antônio era o tâmulo dostrovões;
a do Templo,o silêncio. Entre aqueles dois redutos bavia a diferença que
vai do que é fenomenal ao que é sinistro. Uma pareceria uma goela; a
outra, máscara.
Admitindo-se que a gigantesca e tenebrosa insurreição de junho foi
composta de uma cólera e de um enigma, sentia-se na primeira barricada
o dragão e detrás da segundaa esfinge[...].

O QUESE HÁ DE FAZER NO ABISMO,


A NÃO SER QUESE CONVERSE?
Nasubterrânea educação da revolta contavam-se já dezesseis anos; e
junho de 1348 sabia muito mais do quejunho de 1832.
[...] Não havia mais homens nessa luta agora infernal. Não eram mais
gigantes contra colossos. Isso parecia-se mais a Milton e Dante que a
Homero. Demônios atacavam, espectros resistiam.
[...] Do fundo mais obscuro dos grupos gritou uma voz [...). Cidadãos!
Façamos o protesto dos cadáveres. [...] Nunca se soube o nome do Espectros de Marx: o título desta palestra incitaria primeiramente a
homem que assim falara [...] esse grande anônimo aliado sempreàs crises falar de Marx. De Marx mesmo. De seu testamento ou de sua herança.
humanas, e aos gênesis sociais [...]. Depois do homem, quem quer que E de um espectro, a sombra de Marx, a aparição e o seu retorno, que
fosse que decretara o “protesto dos cadáveres ter falado e dado a fórmula tantas vozes se erguem em nossos dias para conjurar. Pois isto
da alma comum,saiu de todas as bocas um grito estranhamente satisfeito parece-se a uma conjuração. Em razão do acordo ou do contrato
e terrível, fúnebre pelo sentido,e triunfal pelo acento:
firmado entre tantos sujeitos políticos que subscrevem cláusulas
— Viva a morte! Fiquemos aqui todos! tanto ou quanto claras e tanto ou quanto secretas (trata-se sempre de
— Todos, para quê? disse Enjolras. conquistar um poder ou de ter à mão as suas chaves), mas, principal-
mente, porque uma conjuração dessas está destinada a conjurar. É
— Todos! Todos!"
preciso, magicamente, expulsar um espectro, exorcizar 0 retorno
Victor Hugo, Les Misérablest
possível de um poder tido em si por maléfico e cuja ameaça demo-
níaca continuaria a'obsidiar o século.
Desde logo, hoje em dia tal conjuração insiste, consenso ensurde-
cedor, no que está, segundo ela, de fato morto, continua de fato
morto, eis que desperta suspeitas. Desperta-nos aí onde gostaria de
adormecer-nos. Alerta, pois: o cadáver não está talvez tão morto, tão
simplesmente morto quanto a conjuração tenta fazer crer. O desapa-
recido sempre apareceaí,e sua aparição não é inconsiderável. Não é
sem importância. Supondo-se que os despojos sejam identificáveis,
1 Victor Hugo, Os Miseráveis, tr. br. Casimiro L.M. Fernandes. Ediouro,s.d., sabe-se hoje, melhor do que nunca,que é inevitável para um morto
col. “Universidade de bolso”, pp. 580-585. (N.T.)
134 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 135

podertrabalhar. E fazer trabalhar, talvez mais do que nunca. Há, sob uma forma messiânica ou escatológica, tanto na unidade projeta-
também, um modo de produção do fantasma, um modo de produção
da de um pensamento e de um movimento operário como na história
fantasmático. Como no trabalho do luto após um traumatismo, a
do mundo totalitário (nazismo e fascismo incluídos, adversários
conjuração deveria assegurar-se de que o morto não voltaria: empe-
inseparáveis do totalitarismo stalinista). Trata-se talvez para o ho-
nhar-se o quanto antes para que seu cadáver permaneça localizável,
mem daferida mais profunda, no corpo de sua história e na história
em lugar seguro, em decomposição aí mesmo ondefoi enterrado, ou
de seu conceito, mais traumatizante ainda do quea lesão (Krinkung)
até mesmo embalsamado, comose gostava defazer em Moscou. Um
“psicológica”, produzida sob o efeito da psicanálise,a terceira e mais
jazigo, o quanto antes, cujas chaves fiquem à mão! Chaves que não
seriam outras senão as do poder quea conjuração queria deste modo grave aosolhosde Freud,! Poisesta ferida, que traz consigo enigma-
reconstituir, em face da morte de Marx. Falamos acimade desafer- ticamente o nome de Marx, sabemos que ela acumula e reúne as
rolhagem. A lógica da chave, para que eu desejaria orientar esta outras três. Ela as pressupõe, portanto, em nossosdias, mesmo se não
keynote address, Seria a de uma politicológica do traumatismo e de o fez no século passado. Conduz para além dessas uês feridas,
uma topologia do luto. De um luto,de fato e de direito, interminável, efetuando-as; assim comotraz consigo o nome de Marx,ultrapassan-
sem normalidade possível, sem limite confiável, na realidade ou no do-o infinitamente: o século do marxismo terá sido o do descentra-
conceito, entre a introjeção e a incorporação. Mas a mesmalógica, mento tecno-científico e efetivo da Terra, do geopolítico, do antropos
conforme sugerimos, satisfaz à injunção de uma justiça que, para em suaidentidade ontoteológica ou em suas propriedades genéticas,
além do direito, ergue-se no respeito do que não está, não está mais do ego-cogito — e do conceito mesmo de narcisismo, cujas aporias
ou ainda não está vivo, presentemente vivo. são, digamos para ir mais depressa e fazer a economia de tantas
O luto segue sempre a um traumatismo. Tentei mostrar, noutra referências, o temaexplícito da desconstrução. Esse traumatismo não
parte, que o trabalho do luto não é um trabalho entre outros. Trata-se acaba mais de ser denegado pelo movimento mesmo que tenta amor-
do trabalho mesmo,o trabalho em geral, característica por que se - tecê-lo, assimilá-lo, interiorizá-lo e incorporá-lo. Neste trabalho do
deveria, talvez, reconsiderar o conceito mesmo de produção — no luto em andamento, nesta tarefa interminável, o fantasma vem a ser
que oliga ao trauma, ao luto,à iterabilidade idealizadora da exapro- o que mais dá a pensar — a fazer. Insistamos e precisemos: a fazer
priação, portanto, à espiritualização espectral que opera em toda e a fazer acontecer, assim comoa deixar acontecer.
tekhne. Tentação de acrescentar aqui um post-scriptum aporético ao Masos espectros de Marx entram em cena do outro lado. Desig-
dito de Freud, que enredou, em uma mesmahistória comparativa, três nam-se segundo outra via do genitivo — e esta outra gramática diz
dos traumatismosinfligidos ao narcisismo do homem assim descen- mais do que a gramática. Os espectros de Marx são também os dele.
trado: O traumatismo psicológico (o poder do inconsciente sobre o São, talvez, em primeiro lugar, os fantasmas que o habitaram, as
ego consciente, descoberto pela psicanálise), após o traumatismo aparições com que Marx mesmoterá se ocupado, querendo tratá-las
biológico (a descendência animal do homem descoberta por Darwin de antemão como coisa sua; o que nãosignifica que tenha disposto
— que,aliás, Engels alude no Prefácio do Manifesto de 1888), após de seus segredos; nem mesmoque tenha, por sua vez, tematizado a
O traumatismocosmológico (a Terra copemnicananãoé mais o centro recorrência obsidiante do que seria um tema, caso se pudesse dizer,
do universo,o que é cada vez mais verdadeiro, poder-se-ia dizer, para no que concemeà aparição, que esta se permite postar-se aí, expor
daí tirar várias conseguências quanto aos confins do geopolítico).
Nossa aporia admitiria, aqui, que não há mais nome nem teleologia
para designaraferida marxista e seu sujeito. Freud acreditava saber, 1 Sigmund Freud, Eine Schwierigkeit der Psychoanalyse, GW. Bd. XII, p. 8.
ele, o que é o homem seu narcisismo. A ferida marxista consiste,
Standard Edition, vol. XVII,p. 141.
136 - JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 137

diante desi, como deveriam fazê-lo um tema ou um sistema, uma tese os bens e os móveis,! tenta-se ajustar toda a política à hipótese
ou uma síntese. Ora, são todos esses valores que o espectro vem assustadora de uma visitação. Os políticos são videntes ou visioná-
desqualificar, caso ele exista. rios. Deseja-se e teme-se um aparecimento, sabendo-se queeste não
Os espectros de Marx, designaremos daqui por diante com essas apresentará pessoa alguma em pessoa, mas produzirá uma série de
palavras certas figuras que Marx terá sido O primeiro a apreender, às efeitos a serem decifrados. Constroem-se, então, todas as alianças
vezes a descrever a vinda. Algumas que anunciam o melhor e cujo possíveis para conjurar este adversário comum, “o espectro do co-
advento ele terá saudado; algumas que ameaçam,ou participam do munismo”. A aliança significa: morte ao espectro. Este é convocado
pior, cujo testemunhoele terá recusado. Há vários tempos do espec- para ser revocado; jura-se somente em seu nome, mas para conjurá-
tro. O próprio de um espectro, caso isso exista, é que não se sabe se lo. Só sefala dele. Mas, o que mais fazer, já que ele não está aí, como
ele testemunha retornando de um vivo passado ou de um vivo futuro, todo fantasma digno deste nome? E mesmo quando ele aí está, ou
pois a aparição já pode indicar o retomo do espectro de um vivo seja, aí sem estar aí, sente-se queo espectro olha, por certo através
prometido. Intempestividade ainda, e desajuste do contemporâneo. do elmo;ele espreita, observa, fita os espectadores e os videntes
Quanto isso, o comunismo sempre foi e será espectral: está sempre
cegos, mas não vemos ver, ele permanece invulnerável sob sua
por vir e distingue-se, como a democracia mesma,de todo presente armadura com viseira. Então, só se fala dele, mas para expulsá-lo,
vivo como plenitude da presença à si, como totalidade de uma
excluí-lo, exorcizá-lo. A sala, trata-se então da velha Europa que
presença efetivamente idêntica a si mesma. As sociedades capitalis- reúne todasas suas forças (alle Méchte des alten Europas). Caso se
tas sempre podem dar um suspiro de alívio, dizendo-se: o comunismo
tente exorcizar ou conjurar O espectro,ele é sem saber, no fundo,de
acabou desde o desmoronamento dos totalitarismos do século XX, e quem oude quese fala entre conjurados,a santa aliança é uma caçada
não somente acabou como também não aconteceu, isso não passou
sagrada. Comunismo é um nomepara os conjurados,a santa aliança
de um fantasma. Mal podem denegar isto, o inegável mesmo: um
é uma caçada sagrada. “Todas as potências da velha Europa se
fantasma não morre nunca,está sempre porvir ou por retornar.
aliaram (verbiindet) para uma santa caçada (zu einer heiligen Hetz-
No Manifesto do partido comunista, recordemos, um primeiro
jagd) a este espectro (gegen dies Gespenst).”
nome retorna três vezes nessa mesma primeira página, trata-se do
Quem poderia negá-lo? Se uma aliança prossegue seu curso de
“espectro” (Gespenst): “Um espectro ronda a Europa, diz Marx em
formação contra o comunismo, uma aliança da velha ou da nova
1847: o espectro do comunismo.” (Ein Gespenst geht um in Europa
Europa, ela continua sendo uma santa aliança. A figura paterna do
— das Gespenst des Kommunismus.) Marx, a menosqueseja o outro,
Santo Padre, o Papa, então citado por Marx, ainda hoje nela figura
Engels, põe então em cena, durante alguns parágrafos, O terror que
em lugar de destaque,na pessoa de um bispo polonês que se vanglo-
esse espectro inspira a todas as potências da velha Europa. Só se fala
ria, nisso confirmado por Gorbachev, de não ter assistido de braços
dele. Todos os fantasmas se projetam sobre a tela desse fantasma(isto
cruzados ao desmoronamento dototalitarismo comunista na Europa,
é, sobre um ausente, pois a tela mesma é fantasmática, como na
e do advento de uma Europa queserá, daqui pordiante, o que sempre
televisão do amanhã, que dispensará o suporte “tela” e projetará suas
deveria ter sido, segundo ele, uma Europacristã. Como na Santa
imagens — às vezes imagens de síntese — diretamente no olho,
comoo som dotelefone no fundo do ouvido). Espreitam-se os sinais,
as mesas que mexem, a louça que sai do lugar. Será que ele vai
1 Abord: Os esta cena mais adiante (capítulo V), acerca de umacerta mesa,
responder? Como no recinto de uma sala, durante uma reunião com relação à fetichização como espectralização do valor de troca. Trata-se
espírita, mas tratando-se,às vezes, do que se chama derua,vigiam-se da abertura, a primeira cena, senão a cena primitiva do Capital.
!
138 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 139

Aliança do século XIX, a Rússia poderia de novo fazer parte dela. Por freguentação. Marx vivia mais do que os outros, vamos esclarecer
isso insistiremos no neo-evangelismo — neo-evangelismo hegeliano isto, na fregientação dos espectros.
— de uma retórica do tipo “Fukuyama”. Tratava-se de um neo-evan- Um espectro parece apresentar-se durante uma visitação.
gelismo hegeliano, o que Marx terá denunciado com igual verve e Representamo-lo, mas ele não está presente, ele mesmo, em carnee
veemência na teoria stimeriana dos fantasmas. Retomaremos isso osso. Esta não-presença do espectro exige quese levem em conta seu
mais adiante, mas convém desde já indicar esse cruzamento. Acredi- tempoe suahistória, a singularidade de sua temporalidade ou de sua
tamos que seja significativo. O espectro de que falava então Marx historicidade. Quando, em 1847-1848, Marx nomeia o espectro do
estava ali sem estar ali. Ainda não estava presente. Jamais estará comunismo, inscreve-o em uma perspectiva histórica que é exata-
presente. Não há Dasein do espectro: mas não há Dasein sem a mente inversa àquela em queeutinhainicialmente pensado ao propor
inquietante estranheza, sem a estranha familiaridade (Unheimlich- um título como “os espectros de Marx”. Aí ondetive a tentação de
keit) com algum espectro. O que vem a ser um espectro? Qualé a sua nomear deste modoa persistência de um presente passado,o retomo
história e qual é o seu tempo? de um morto, uma reaparição fantasmática de que o trabalho doluto
O espectro, como seu nome o indica,é afregiiência de umacerta mundial não conseguelivrar-se, voltando-lhe as costas e caçando
visibilidade. Mas a visibilidade do invisível. E a visibilidade, por (exclui, bane,e, ao mesmo tempo, persegue), Marx anuncia e invoca
essência, não se vê, por isso é queela continua epekeina tes ousias, a presençaporvir. Parece predizere prescrever: o que, por enquanto,
para além do fenômeno oudo ente. O espectro é também,entre outras só tem a aparência de um espectro, na representação ideológica da
coisas, o que se imagina, o quese acredita ver e queé projetado: sobre velha Europa, deveria tornar-se, no futuro, uma realidade presente,
umatela imaginária, aí onde não há nadapara se ver. Nem mesmo a ou seja, viva. O Manifesto invoca, reclama esta apresentação da
tela, às vezes, e uma tela sempre tem,no fundo, no fundo queela é, realidade viva:é preciso fazer com que,no porvir, este espectro — e,
umaestrutura de aparecimento-desaparecimento. Mas eis então que em primeiro lugar, uma associação de trabalhadores obrigada ao
não se pode mais fechar os olhos, à espreita do retorno. Daí a segredoaté por volta de 1848 — torne-se uma realidade e uma
teatralização da fala e a especulação espetacularizante sobre o tempo. realidadeviva. É preciso que esta vida real se mostre e se manifeste,
Convém inverter a perspectiva mais uma vez: fantasma ou apari- que ela se apresente para além da Europa, da velha ou da nova
ção, sensível insensível, visível invisível, o espectro primeiramente Europa,na dimensão universal de uma Internacional.
nos vê. Do outro lado do olho,efeito de viseira, ele nos olha antes Mas é preciso também que ela se manifeste na forma de um
mesmo que o vejamos ou que não vejamos simplesmente. Sentimo- manifesto que seja o Manifesto de um partido. Pois Marx já dá a
nos observados, às vezes vigiados por ele, antes mesmo de qualquer forma partido à estrutura propriamente política da força que deverá
aparecimento. Sobretudo,e eis aí o acontecimento, pois o espectro ser, segundo o Manifesto, o motor da revolução, da transformação,
- pertence ao acontecimento,ele nos vê por ocasião de uma visita. Ele da apropriação e depois,finalmente, da extinção do Estado e do fim
nos visita. Uma visita atrás da outra, visto que ele volta para nos ver, do político enquantotal. (Comoessefinalsingular do político corres-
e que visitare, frequentativo de visere (ver, examinar, contemplar), ponderia a uma apresentação de uma realidade absolutamente viva,
traduz bem a recorrência ou a reaparição, a fregiiência de uma há aí uma razão a mais para se pensar que a essência do político terá
visitação. - Esta não se caracteriza sempre pelo momento de uma semprea figura inessencial, a anessência mesma de um fantasma.)
aparição generosa op de uma visão amigável; pode significar inspe- Ora,aí está, talvez, umdos motivosinsólitos de que deveríamos
ção severa ou perquisição violenta. A perseguição conseguente, a falar esta noite: o que tende,talvez,a desaparecer no mundopolítico
implacável concatenação. Ao modo social da obsessão, seu estilo que se anuncia, e talvez em uma nova época da democracia, é à
original, poderíamos chamar ainda, considerando essa repetição, a dominação desta forma de organização à que se chama partido. A
140 JACQUES DERRIDA
Espectros de Marx 141

relação partido-Estado não terá em suma durado, rigorosamente,


senão dois séculos, ou pouco mais, em um tempo a que pertencem performativo. Do sintoma, Marx extrai um diagnóstico e um prog-
alguns tipos determinados da democracia parlamentar e liberal, as nóstico. O sintoma em que o diagnóstico se autoriza é o medo do
monarquias constitucionais, os totalitarismos nazista, fascista ou fantasma comunista queexiste. Ao se observar a Santa Aliança euro-
soviético. Nenhum desses regimes foi possível sem o que se poderia péia têm-se esses sinais. Eles devem, defato,significar alguma coisa,
chamar a axiomática do partido. Ora, parece que, portoda parte no a saber, que as potências européias reconhecem, através do espectro,
a potência do comunismo (“O comunismo já é reconhecido como
mundo de hoje, a estrutura do partido vem se tornando não somente
cada vez mais suspeita (e por razões que não são mais “reacionárias” uma potência [als eine Macht] por todas as potências européias”).
sempre; as da reação individualista clássica), mas radicalmente ina- Quanto ao prognóstico, este não consiste somente em prever (gesto
do tipo constativo), mas em nomear no porvir 0 advento de um ma-
-daptada às novas condições — tele-tecno-midiáticas — do espaço
público, da vida política, da democracia e dos novos modelos de nifesto do partido comunista que, precisamente, sob a forma perfor-
representação (parlamentar e não-parlamentar) que ela reclama. Uma mativa do chamado, transformará a lenda do espectro, não ainda em
reflexão sobre o que advirá amanhã ao marxismo, à sua herança ou realidade da sociedade comunista, mas nesta outra forma de aconte-
ao seu testamento, deverá incidir, entre tantas outras coisas, sobre a cimento real (entre o espectro lendário e sua encarnação absoluta)
finitude de um conceito ou de uma certa realidade do partido. E, é que é um Manifesto do partido comunista. Parusia da manifestação
claro, de seu correlato estatal. Um movimento está em andamento, do manifesto. Como partido. Não como um partido queseria, por
que seríamos tentados a descrever como uma desconstrução dos acréscimo, neste caso, comunista. De que o comunismo fosse um
conceitos tradicionais de Estado,e, portanto, de partido e de sindica- predicado. Mas como partido que realizaria a essência do partido
to. Embora não signifiquem a extinção do Estado, no sentido marxis- como partido comunista. Eis aqui o apelo, a saber, o Manifesto com
vistas ao Manifesto, a automanifestação do manifesto, em que con-
ta ou gramsciano, não se pode analisar sua singularidade histórica
fora da herança marxista — af onde a herança é mais do que nunca siste a essência de todo manifesto que chama a si mesmo,dizendo “é
um filtro crítico e transformador, ou seja, onde está fora de questão hora”, o tempo se reúnee une aqui, agora, um agora que advém a si
ser a favor ou contra o Estado em geral, sua vida ou sua morte em mesmo, no ato e no corpo dessa manifestação; “Já é tempo” de que
geral. Houve um momento na história política européia (e, evidente- eu metorneinanifesto,de que se tome manifesto o manifesto que não
mente, na americana) em que era tido como um gesto reacionário é outro senãoeste, aqui, agora, eu, O presente que acontece, testemu-
invocar O fim do partido, assim como analisar a inadequação à nha e consorte, eis aqui, exatamente o manifesto que sou ou que
democracia das estruturas parlamentares existentes. Adiantemos opero,na operação desta obra, em ato, só sou eu mesmo nesta mani-
aqui, com muitas precauções teóricas e práticas, a hipótese de que festação, neste momento mesmo, neste livro, eis-me aqui: “Já é
não é mais assim, não é-mais sempre assim (pois essas velhas formas tempo (Es ist hohe Zeit) de os comunistas exporem abertamente ao
de combate contra o Estado poderão sobreviver por muito tempo): mundo inteiro a sua maneira de ver, os seus objetivos, as suas
convém desfazer este equívoco para que não seja mais assim, A tendências, e de contraporem (entgegenstellen) às lendas do espectro
hipótese é de que essa mutação já começou,ela é irreversível. do comunismo (den Márchen vom Gespenst des Kommunismus) um
manifesto do próprio partido.” O que testemunha o manifesto? E
O partido comunista universal, a Internacional comunista será, quem testemunhasobre o quê? Em que línguas? A frase seguinte fala
dizia o Manifesto, a encarnação final, a presença real do espectro, da multiplicidade das línguas: não de todas as línguas, mas de
portanto,o fim do espectral. Este futuro nãoé descrito,nãoé previsto, algumas,e dos comunistas de diferentes nacionalidades reunidos em
de modo constativo; ele é anunciado, prometido, invocado de modo Londres. O Manifesto será publicado em inglês, francês, alemão,
italiano, flamengo e dinamarquês. Os fantasmas também falam
“142 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 143

línguas diferentes, línguas nacionais, como o dinheiro de que são, guerra medrosae inclemente, durante a qual, endúrecidosaté a mons-
veremos adiante, inseparáveis. Enquanto moeda, o dinheiro traz truosidade de um rigor cadavérico, apenas puderam constituir-se o
caracteres locais e políticos, “fala idiomas nacionais diferentes e leninismo e depois o totalitarismostalinista. Mas a ontologia marxista
veste uniformes nacionais distintos”.! Retomemos nossa questão batendo-se também contra o fantasma em geral, em nome da presença
sobre o manifesto como fala ou língua do testemunho. Quem teste- viva como efetividade material, todo o processo “marxista” da socie-
munha sobre o quê? Em queo “quê” determina o “quem”, um nunca dade totalitária respondia também ao mesmo pânico. Parece-me que
precedendo o outro? Por que essa manifestação absoluta de si não * precisamos considerar com seriedade tal hipótese. Voltaremosa ela
toma por testemunha a si mesma, tomando partido pelo partido, mais adiante, entre Stimer e Marx, a esta fatalidade essencial do
contestando e detestando o fantasma? O que é do fantasma, desde reflexo reflexivo, do “amedrontar-se”, na experiência do fantasma. É
então, nesse combate? E quem se vê invocado como testemunha, como se Marx e o marxismo tivessem fugido, fugido de si mesmos,
mostrando-se exteriormente com elmoe viseira? como se eles amedrontassem a si mesmos. No curso da mesma
A estrutura do acontecimento assim designado fica difícil de caçada, da mesmaperseguição, da mesma busca infernal. Revolução
analisar. A lenda do espectro, a narrativa, a fábula (Márchen) abolir- contra revolução, como o sugerea figura dos Miseráveis. Mais preci-
se-iam no Manifesto, como se o espectro mesmo, sem tomar-se samente, considerando o número e a fregiiência, é como se eles
realidade (o comunismo,a sociedade comunista), depois de ter dado tivessem medo de alguém neles. Não deveriam, pensa-se um pouco
corpo a uma espectralidade de lenda, saísse de si mesmo, convidasse apressadamente. Ostotalitarismos nazista e fascista estiveram ora de
um lado, ora de outro, nessa guerra dos fantasmas, mas no curso de
a sair da lenda sem entrar na realidade de que ele é o espectro. Por
não ser nem real nem lendário, alguma coisa terá amedrontado e uma única e mesmahistória. E há tantos fantasmas nessa tragédia, nos
túmulos de todos os campos,que ninguém nuncaterá certeza de estar
continua a amedrontar no equívoco deste acontecimento, como na
de um único e mesmo lado. É melhor sabê-lo. Numa palavra, toda a
espectralidade singular deste enunciado performativo, a saber, do
história da política européia ao menos, e desde Marx ao menos, seria
marxismo mesmo.(E a questão esta noite se resumiria a isto: “O que
esta, a de uma guerra inclemente entre campossolidários e igualmente
é um enunciado marxista? Auto-intitulado marxista? Ou, mais preci-
aterrorizados pelo fantasma, o fantasma do outro e o seu próprio
samente: o que será daqui por diante tal enunciado? E quem poderá
fantasma como fantasma do outro. A Santa-Aliança está aterrorizada
dizer “sou marxista”, ou “não sou. marxista”)
pelo fantasma do comunismo e empreendecontra ele uma guerra que
Amedrontar, amedrontar-se. Infundir medo aos inimigos do Mani-
ainda dura, mas uma guerra contra um campo organizado pelo terror
festo, mas talvez a Marx e aos marxistas também.Pois poderíamosser
do fantasma, o que está diante dele e o queele traz consigo.
tentados a explicar toda a herançatotalitária do pensamento de Marx,
Não há nadade “revisionista”! em interpretar a gênese dostotali-
mas também osoutrostotalitarismos que não foram contemporâneos
tarismos comoreações recíprocas ao medodo fantasma que o comu-
deste por acaso ou por justaposição mecânica, como uma reação de
medopânico diante do fantasma em geral. Ao fantasma que o comu-
nismo representava para os Estados capitalistas (monarquistas, impe-
1 Lógica perversa, perversidade abissal de todos os “revisionismos” que
riais ou republicanos) da velha Europa em geral contrapôs-se uma
marcam este final de séculoe quenão terminarão, sem dúvida, junto com ele.
É claro,seria preciso um combate sem trégua aospiores revisionismos ou
negacionismos, estes cuja imagem interesses estão daqui em diante sufi-
1 Para a crítica da economia política (1859). Traduzido do original alemão cientemente bem determinados, mesmose suas manifestações se multiplicam
por José Arthur Giannotti e Edgard Malagodi, in Marx, Abril Cultural, 1978, e renovam incessantemente. A tarcfa seria, pois, sempre urgente, sempre
São Paulo (Os Pensadores). ratificada. Mas, percebem-se, aquie ali, sinais antecipadores de uma perver-
144 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 145

nismo inspirou desde o séculopassado,aoterror que inspirou a seus dois, de perseguir, o que é bastante compreensível, seu perseguidor,
adversários, mas que ele voltou para si mesmo e experimentou seu próprio perseguidor, seu estranho mais íntimo. Marx gostava da
“ suficientemente em si mesmo para precipitar a realização monstruo- figura do fantasma, detestava-a, tomava-a por testemunha de sua
sa, a efetuação mágica, a incorporação animista de uma escatologia contestação, era obsidiado, afligido, assediado, obsedado porela.
emancipatória que deveria ter respeitado a promessa, o ser-promessa Nele, mas, evidentemente, para repeli-la, fora dele; nele fora dele: eis
de uma promessa — e que não poderia ser um simples fantasma aí o lugar fora de lugar dos fantasmas, em toda parte onde fingem
ideológico, já que a crítica da ideologia não tinha nenhuma outra eleger domicílio. Mais do que outros, talvez, Marx tinha na cabeça
inspiração. aparições e sabia sem saber do que falavam (Mensch, es spukt in
Já que é preciso enfim chegar a este ponto, a aparição foi a Deinem Kopfe!, poder-se-ia dizer, parodiando Stirner). Mas,porisso
perseguição de Marx. Comoa de Stimer. Eles ainda não pararam,os mesmo,ele não gostava também dos espectros de que gostava. Que
gostavam dele —e observavam-no sob a viseira. Estava, sem dúvida,
obsedado (essa palavra foi empregada porele, logo chegaremoslá)
pelas aparições, mas, como fazia com os adversários do comunismo,
sidade simétrica e não menos ameaçadora. Armados de uma consciência combatia-os sem piedade.
tranquila e imperturbável, pois frequentemente envolvida em ignorância ou Como todos os obsedados, molestava a obsessão. Temos mil
obscurantismo,protegendo-se nos massmídia, de qualquer direito de resposta
indícios disso, uns mais explícitos que os outros. Para não citar senão
efetivo (penso no artigo recente de Michiko Kakutani, “When History and
Memory are Casualties: Holocaust Denial”, New Fork Times, 30 de abril, dois exemplos bastante diferentes nessarica espectrologia, poder-se-
1993), alguns não se contentam em tirar vantagem dos fantasmas que obsi- ia em primeiro lugar evocar, de passagem, a Dissertação de 1841
diam nossa mais dolorosa lembrança. Valem-se também do mesmo impulso (Diferença entre afilosofia da natureza de Demócrito e Epicuro). O
para manipular impunemente, sem nenhum escrúpulo, a palavra mesma, muito jovem Marx assina, então, uma dedicatóriafilial (pois é sempre
“revisionismo” ou pelo menos de fazer o jogo de algum “revisionismo”. o pai, O segredo de um pai, a quem uma criança assustada pede
Estão prestes a voltá-la em acusação contra aquele que formula questões
socorro contra o espectro: “I am thy Fathers Spirit... 1 am forbid to
críticas, metodológicas, epistemológicas,filosóficas, sobre a história, sobre
a maneira comoesta é pensada, escrita ou estabelecida, sobre o estatuto da tell the secrets of my Prison-House”). Nesta dedicatória ele mesmo
verdade etc. Aquele que é cuidadoso na leitura da história, aquele que se dirige como um filho a Ludwig von Westphalen, “conselheiro
complica um pouco os esquemas autorizados pela doxa ou exige que se íntimo do governo em Trêves,este “muito querido amigo partenal”
reconsiderem os conceitos, os processose as produções da verdade histórica (seinen theuren vaterlichen Freund). Fala, então, de uma prova de
ou as pressuposições dahistoriografia etc., arrisca-se a se ver acusado hoje, amorfilial (diese Zeilen als erste Zeichen kindlicher Liebe) para com
por amálgama, contágio ou confusão, de “revisionismo” ou pelo menos de alguém diante de quem “comparecem todososespíritos do mundo”
fazer O jogo de algum revisionismo. A acusação está daqui por diante à
disposição do primeiro que vier, que, nada entendendo dessa necessidade
(vor dem alle Geister der Welt erscheinen) e que nunca recuou
crítica, desejaria proteger-se dela e gostaria, em primeiro lugar, que não se assustado diante das sombras dos fantasmas retrógrados (Schlags-
atingissem sua cultura ou incultura, suas certezas ou suas crenças. Situação chatten der retrograden Gespenster) nem diante do céu freguente-
histórica queinspira cuidado, que se arriscaa atingir, apriori, com a censura, mente encoberto por nuvens sombrias nesses tempos. As últimas
a pesquisa histórica ou reflexão sobre história, em todo lugar onde estas palavras da dedicatória nomeiam o espírito (Der Geist) como “o
dizem respeito a áreas sensíveis de nossa existência presente. Urge ressaltar: grande médico mágico”(der grosse Zauberkundig Arzt) a quem este
lancesinteiros da história, a deste século em particular, na Europa e fora da
pai espiritual se confiou (anvertraut) e de onderetira toda a sua força
Europa, ainda terão deser interrogados e desocultados, questões fundamen-
tais terão de ser levantadas ou reformuladas, sem que haja nisto nada de para lutar contra o mal do fantasma. É o espírito contra o espectro.
“revisionista”. Digamos mesmo:pelo contrário. Essepai adotivo, esse herói da luta contra os fantasmas retrógrados
146 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 147

(que Marx parece implicitamente distinguir do fantasma do progres- vital mesmo ao desdobramento histórico do espírito. Pois Marx
so queserá o comunismo,por exemplo), o jovem Marx vê aí a prova herda, primeiramente, a observação hegeliana sobre a repetição em
viva e visível (argumentum ad oculos) de queo “idealismonão é uma história, trate-se de grandes acontecimentos, revoluções ou heróis
ficção, mas uma verdade”. (bem se sabe: em primeiro lugar, a tragédia, depois a farsa). Victor
Dedicatória de juventude? Uso convencional? Certamente. Mas Hugo também estava atento, já se viu, à repetição revolucionária.
as palavras não são muito comuns,parecem calculadase a contabili- Uma revolução se repete, e até mesmo repete a revolução contra a
dade estatística pode começar. A fregiência conta. A experiência, a revolução. O 18 Brumário... conclui sobre isso que, se os homens
apreensão do fantasma afina-se com afregiiência: o número (mais de fazem sua própria história, é na condição de herança. A apropriação
um), a insistência, o ritmo (ondas, ciclos e períodos). Ora, a dedica- em geral, diríamos nós,está na condição do outro e do outro morto,
tória de juventude continua a falar e a se multiplicar, parece mais de mais de um morto, de uma geração de mortos. O quese diz da
significativa e menos convencional, quando se observa, nos anos que apropriação vale também paraa liberdade, ou para a liberação ou para
se seguem,a obstinação em denunciar, ou seja, ad conjurar, e com a emancipação. “Os homens fazem sua própria história (ihre eigene
queverve, mas com que fascinação também,o que A ideologia alemã Geschichte), mas não a fazem como querem (ausfreien Stiicken); não
chamará a história dos fantasmas (Gespenstergeschichte). Logo vol- a fazem sob circunstâncias de sua única escolha mas de fato sob
taremosa isto,isso fervilha, uma multidão de apariçõesaí nos espera: aquelas com quese defrontam,legadas e transmitidas (Wberlieferten
mortalhas, almas errantes, ruídos de grilhões nanoite, gemidos, Umsiânden,). A tradição de todas as gerações mortas (aller toten
gargalhadas estridentes, tantos rostos que nos olham invisíveis, a Geschlechler) pesa (lastet) despropositadamente sobre o cérebro dos
maior concentração de todos os espectros nahistória da humanidade. vivos.! E justamente quando parecem empenhados em revolucionar- .
Marx (e Engels) tentam pôr isto em ordem, pero identificar, se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu (noch “nicht
fingem contar, vêem-se em dificuldades. Dagewesenes zu schaffen), exatamente nesses períodos de crise re-
Um pouco depois, de fato, O 18 Brumário de Luís Bonaparte irá volucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os
desenrolar-se ainda na mesma fregiência, como um espectro político espíritos do passado (beschwôren sie ângstlich die Geister der Ver-
e uma genealogia dos fantasmas, mais exatamente como uma lógica gangenheit zu ihrem Dienste herauf), tomando-lhes emprestado (ent-
patrimonial das gerações de fantasmas. Nele, Marx não pára de lehnen) os nomes, os gritos de guerra (Schlachtparole) e as roupa-
conjurar e exorcizar. Separa os hons dos maus “fantasmas”. Por gens, a fim de apresentar-se no novo palco da história sob esse
vezes, na mesmafrase,tenta desesperadamente contrapor, mas como disfarce respeitável e com essa linguagem emprestada (mit dieser
é difícil e como é arriscado, o “espírito da revolução” (Geist der erborgten Sprache).?
Revolution) ao seu espectro (Gespenst). Sim, é difícil e arriscado. Em
razão doléxico, primeiramente: como espírito e comospirit, Geist
pode significar também “espectro”, e Marx acredita poder explorar - Marx diz: “lastet wie ein Alp”, isto é, “pesa como um fantasma”, um desses
esses efeitos de retórica, ao mesmo tempo em que os controla. A seres espectrais que causam pesadelos; como acontece frequentemente nas
semântica de Gespenst obsidia a semântica de Geist. Se há fantasma, traduções, o fantasma é deixado de lado ou, no melhor dos casos, dissolve-se
é exatamente quando,entre dois, a referência vacila, indecidivelmen- em figuras aproximativas, por exemplo,a fantasmagoria, palavra que, ainda
te, ou então não vacila mais aí onde deveria fazê-lo. Mas se é difícil porcima, é despojada, geralmente, do sentidoliteral que liga à palavra e à
palavra pública.
e arriscado, para além de todo domínio possível, se os dois permane-
2 Karl Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Traduzido do inglês The
cem indiscerníveis e finalmente sinônimos, é que, aos olhos de Marx Eighieenth Brumaire of Louis Bonaparte. Tradução revista por Leandro
mesmo,o espectro terá primeiramente sido necessário, parece que Konder [uma primeira vez para a edição de Os Pensadores, e novamente para
148 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 149

Trata-se,de fato, de convocar (beschwôren) espíritos como espec-


tros no gesto de uma conjuração positiva, esta que jura para chamar
e não para recalcar. Mas pode-se considerar essa distinção? Pois se vez? Aquinãoé o lugar de discutir isto — ainda quea estranhae confiante
tal conjuração parece acolhedora e hospitaleira, uma vez que invoca, crença em tal imanência de inteligibilidade não seja estranha ao conceito de
deixa ou faz vir o morto, ela nunca acontece sem angústia. E, pois, vida quesustenta todo esselivro.) Esta dimensão “histórico-política”” (pouco
sem um movimento de repulsa ou de restrição. A conjuração nãoestá ou não filosófica) estaria manifesta, segundo M. Henry,“particularmente no
somente caracterizada;ela não se deixa determinarpor acréscimo por caso de O 18 Brumário de Luís Bonaparte,escrito para umjornal americano”
(t 1 p. 11). Ora, essa obra não parece, de nenhum modo, contida no
uma certa angústia (como faria pensar o advérbio ângsilich); ela está
fechamento dostextos “políticos” ou “histórico-políticos"”, supondo-se que
destinada à angústia que ela é. A conjuração é angústia a partir do se aceite uma distinção tão problemática, especialmente no caso de uma obra
momento em que invoca a morte para inventar O vivo e fazer viver o como a de Marx. Encontra-se particularmente a sua paradoxologia espectral,
novo, parafazer vir à presença o que ainda não esteve aí (noch nicht a que nosinteressa aqui, nos textos mais “filosóficos” e mais significativos
Dagewesenes). Esta angústia diante do fantasma é propriamente aos olhos de M. Henry; por exemplo, logo o verificaremos, na Ideologia
revolucionária. Se a morte pesa sobre o cérebro vivo dos vivos, e alemã. Ao pesar e pensar esta espectrologia, não nos estamos opondo fron-
talmente à filosofia da vida ou da “subjetividade radical, de onde toda
mais ainda sobre os cérebros dos revolucionários, ela deve, de fato,
objetividade está excluída” (t. I, p. 326), nem à sua interpretação por M.
ter alguma densidade espectral. Pesar (lasten) é também, carregar,
Henry (com quem compartilhamos aqui ao menos algumas inquietações, mas
taxar, impor, endividar, acusar, designar, ordenar. E quanto mais há sem dúvida de um ponto de vista totalmente diferente, quanto ao quefoi, até
vida mais cresce o espectro do outro; mais este toma pesada a sua então,a leitura de Marx). Mas estamostentando render-nos à necessidade de
imposição. Mais o vivo deve responsabilizar-se porele, Responder complicá-la de maneira abissal, aí onde o suplemento de uma dobra interno-
pelo morto, corresponder ao morto. Correspondere explicar-se, sem externa não permite opor simplesmente o vivo ao não-vivo. Aquele que
garantia nem simetria, à obsessão. Nada mais sério e mais verdadeiro, subscreve, como seremostentadosa fazê-lo,as últimas palavras da conclusão
final do Marx de M. Henry (“O pensamento de Marx confronta-nos à questão
nada mais justo do que esta fantasmagoria. O espectro pesa, pensa,
abissal: o que é a vida?”) está obrigado,defato, a remeter-se a este abismo,
intensifica-se, condensa-se dentro da vida mesma, dentro da mais isto é, a reproblematizar todas as proposições anteriores desse livro inteira-
viva vida, da vida mais singular (ou, se preferem, individual). Esta, mente sobre o vivo, o indivíduo vivo, a subjetividade viva, o trabalho real
desdeentão, não tem mais, e não deverá mais ter enquanto viver, uma comotrabalho vivo etc., ou seja, todo o arsenalcrítico de uma obra profun-
pura identidadea si, nem um dentro assegurado, eis o que todas as damente polêmica. Pois é finalmente em nome dessareferência unívoca ao
filosofias da vida, até mesmo doindivíduovivo ou real, deveriam na vivo queele tenta, com grande violência, desacreditar quase todas as leituras
realidade pesar.! anteriores de Marx,e sobretudo em sua dimensão política. Perguntamo-nos:
por que a questão da vida seria exatamente “abissal”? Em outras palavras,
por que esta questão? Ela não vai dar na não-identidade a si impensada do
conceito ou do ser chamados de “vida”? Na obscuridade essencial, tanto para
este livro, pois J. Derrida cita a partir da edição alemã.). In Marx, São Paulo: a ciência como para filosofia, disto a que chamamos vida? Tudoisto não
Abril Cultural, 1978, Coleção Os Pensadores, p. 329. marcaria os limites, internos ou extemos, o fechamento ou o princípio de
1 Pensamos, evidentemente, no trabalho de Michel Henry (Marx, t. Ie II, ruína de umafilosofia da vida? E da subjetividade, por mais nova que seja
Gallimard, 1976), que classifica O 18 Brumário..., assim como O manifesto sua apresentação conceitual, desde o momento em que ela se encontra
do partido comunista e algumas outras obras,entre os “textos políticos” ou determinada como essencialmente viva? Se integrássemos à vida dessa
“histórico-políticos”. Estes seriam menos filosóficos, se da mesma forma o subjetividade vivao trabalho da negatividade ou da objetividade, os fenôme-
são, porque “não trazem seu princípio deinteligibilidade neles mesmos”(t. - nos, ou sobretudo os não-fenômenos da morte etc., por que obstinar-se ainda
I, p. 10). (O quequer dizer rigorosamente para um texto trazer um princípio em chamar isto de vida? Em compensação,a esta interpretação do ser ou da
de inteligibilidade em si mesmo?* Terá havido um exemplo disso alguma produção como manifestação — ou imanência radical — de uma subjetivi-
* 150 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 151

É necessário agudizar o paradoxo: quanto mais o novoirrompe na Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de
crise revolucionária, mais a época está em crise; quanto mais está 1789-1814 vestiu-se alternadamente como a República romana e como o
império romano € a revolução de 1348 não soube fazer nada melhor do
“out ofjoint”, mais se faz necessário convocar o antigo, tomar-lhe que parodiar (parodieren) ora 1789, ora a tradição revolucionária de
“emprestado”. A herançados “espíritos do passado” consiste, como 1793-1795. De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo
sempre, em emprestar. Figuras do empréstimo, figuras artificiais, idioma traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal, mas
figuralidade como figura do empréstimo. E o empréstimofala: lin- não consegue apropriar-se (hat er sich nur angeeignet) do espírito dessa
guagem emprestada, nomes emprestados,diz Marx. Questão de cré- nova língua e nela produzir (in ihrproduzieren) livremente senão quando
puder manejá-la sem apelar para sua língua materna,e até mesmoesque-
dito, pois, ou de fé. Mas uma fronteira instável e apenas visível cer esta última.
atravessa essa lei do fiduciário. Ela passa entre uma paródia e uma
verdade, mas uma verdade como encamação ou repetição viva do De umaherança a outra. A apropriação viva do espírito, a assimilação
outro, uma revivescência regeneradora do passado, do espírito, do de uma nova língua,já se trata de uma herança. E apropriação de
espírito do passado de que se herda. A fronteira passa entre uma uma outra línguafigura aqui a revolução. Essa herança revolucioná-
reprodução mecânica do espectro e uma apropriação tão viva, tão ria supõe, decerto, que se acabe por esquecer o espectro, o da língua
interiorizante, tão assimilante da herança e dos “espíritos do passa- primitiva ou matema. Não para esquecer o que se herdou, mas a
do”, que outra nãoé senão a vida do esquecimento do materno, para pré-herançaa partir de que se herda. Esse esquecimento não é nada
fazer viver em si o espírito. Estas são as palavras de Marx. É a sua além de um esquecimento. Pois o que se tem de esquecer terá sido
língua, e o exemplo da língua não é um exemploentre outros; designa indispensável. É necessário passar pela pré-herança, ainda que seja
o elemento mesmo destes direitos sucessórios: parodiando-a, para apropriar-se da vida de uma nova língua ou fazer
a revolução. E, se o esquecimento corresponde ao momento da
apropriação viva, Marx, no entanto, não o valoriza assim tão simples-
dadeviva e monadista (cf., por exemplo,t. II, pp. 41-42), interpretação que mente quanto se poderia crer. As coisas são muito mais complicadas.
tem de se justificar amplamente, ao pé da letra realmente, em numerosos Tem-se deesquecer o espectro e a paródia, parece dizer Marx, para
textos de Marx, não pensamosque se tenha de opor algumafilosofia da morte que a história continue. Mas, se é suficiente esquecê-lo, segue-se a
(que poderia tomar por pretexto outros tantos títulos e referências nos insipidez burguesa:a vida, o que mais. Convém, portanto, não esque-
mesmos textos lidos de outra mancira). Nossa tentativa é outra. Para tentar
cê-lo, conyém lembrar-se dele, mas esquecendo-o suficientemente
conformar-se à possibilidade desta alternativa (a vida e/ou a morte), voltamos
nossa atenção para os efeitos ou exigências de uma sobrevida ou de um nessa lembrança mesma para “reencontrar o espírito da revolução
retorno de morte (nem à vida nem a morte) a partir de que se pode falar de sem fazer com que seu espectro volte (den Geist der Revolution
“subjetividade viva” (por oposição à-sua morte): falar disso, mas também wiederzufinden, nicht ihr Gespenst wieder umgehen machen; grifo
compreender que ela possa falar, e falar dela, deixar traços ou heranças para meu).
além do presente vivo de sua vida (se) fazer perguntas sobre si mesma, em Aí está a dobra de “uma diferença marcante” (ein springender
suma, dirigir-se também ao outro ou,se preferem,a outros indivíduos vivos, Unterschied), diz Marx, entre duas modalidades ou duas temporali-
a outras “mônadas”. Para todas essas perguntas,e esta é nossa hipótese de dades na conjuração do morto (Totenbeschwôrung), na evocação ou
leitura, o trabalho do espectro tece aqui, na sombra de um labirinto coberto
na convocação do espectro. É preciso realmente dizer que elas se
de espelhos, um fio condutor tênue, mas indispensável.
* Patrice Loraux dedica algumas páginas muito lúcidas de seu livro (Les
Sous-Main de Marx, Hachette, 1986, pp. 34-36) a essa estratégia de Michel
Henry, em seu capítulo de abertura, “A teoria dos textos”. Ele recorda, | O 18 Brumnário... Tradução ligeiramente modificada, p. 329, Marx (Coleção
particularmente, essa tradição. OsPensadores). Abril Cultural.
152 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 153

parecem. Contaminam-se, às.vezes, de modo tão perturbador, o die Gespenster der Rômerzeit ihre Wiege gehiitet hatten). Questão de
simulacro consistindo exatamente em arremedar o fantasma ou em cabeça, como sempre segundo Marx, questão de ponta [cap] e de
similar o phantasma do outro, que a diferença “resplandecente” espírito: na ordem amnésica da burguesia capitalista (essa que vive,
resplandece, desde a origem,e só salta aos olhos para saltar diante como um animal, do esquecimento dos fantasmas), a goela substitui
dos olhos. Para desaparecer ao aparecer, no fenômeno de seu phan- a cabeça no topo, a cabeça de toucinho de um rei burguês, gordo,
tasma. Marx,no entanto,faz questão dessa diferença, comoda vida; sedentário, substitui a cabeça política e nervosa dos revolucionários
ele a ilustra em uma dessas elogientes epopéias revolucionárias a que em marcha.
não se teria meios de fazer justiça a não ser em voz alta, até perder o
fôlego. Isto começa assim, pela conjuração (Beschwôrung) dos mor- [...] seus verdadeiros chefes militares (ikre wirklichen Heerfilhrer) sen-
tos na escala da história mundial (weltgeschichtliche Totenbeschwo- tavam-se atrás das mesas de trabalho e o cérebro de toucinho (Speckkopf)
rung): de Luís XVII era sua cabeça política (ihrpolitisches Haupt).Inteiramen-
te absorta na produção de riqueza e na concorrência pacífica, a sociedade
burguesa não mais se apercebia de que fantasmas dos tempos de Roma
O exame dessas conjurações de mortos da história do mundorevela de ,
haviam velado sobre seu berço. Mas, por menos heróica que se mostre
pronto uma diferença marcante. Camile Desmoulins, Danton, Robespier-
hoje esta sociedade, foi não obstante necessário heroísmo, sacrifício,
re, Saint-Just, Napoleão, os heróis assim comoos partidos e as massas da
terror, guerracivil e batalhas de povos para torná-la umarealidade.!
velha Revolução Francesa desempenharam a tarefa de sua época (die
Aufgabe ikrer Zeit), a tarefa de libertar e instaurar a moderna sociedade
burguesa. Os primeiros reduziram a pedaços a base feudal e deceparam Marx multiplicaentão os exemplosdessa anacronia ritmada. Analisa
as cabeças feudais que sobre ela haviam crescido. O outro criou na França as suas pulsões e impulsos. Experimenta prazer nisso, O prazer da
as condições sem as quais nãoseria possívela partir de então desenvolver repetição; e ao vê-lo tão sensível a essas ondas compulsivas, tem-se
a livre concorrência, explorar a propriedade territorial dividida [...] en-
quanto que além das fronteiras da França[...].!
a impressão de queele não somente aponta com o dedo, mas toma o
pulso da história. E escuta umafregiiência revolucionária. Por impul-
Mas a sincronia vem fora de propósito, época alguma é contemporâ- sos eua, ela passa e repassa da conjuração à abjuração dos
neade si mesma, nem esta da Revolução, que em suma nuncase teve espectros. Convoca-se; segue-se a conjuração positiva, o grande
lugar no presente, nem os tempos que seguem ou se seguem. O que espectro da tradição clássica (Roma) para situar-se à altura da tragé-
se passa? Nada,coisa alguma senão o esquecimento. Primeiramente, dia histórica, mas já agora para fingir não ver, na ilusão, o conteúdo
esta tarefa, que foi todavia a de sua época (die Aufgabe ihrer Zeit), medíocre da ambição burguesa. Depois, a coisa feita, revoga-se o
aparece em um tempo já perturbado, desconjuntado, fora dos eixos fantasma; segue-se a abjuração, esquece-se o fantasma como se se
(“out of joint” ou “aus den Fugen"): este só pode apresentar-se acordasse de uma alucinação. Cromwell já havia falado a língua dos
obsessão romana, na anacronia da frase e do traje antigos. Depois, profetas hebreus. Uma vez realizada a revolução burguesa, o povo
uma vez a tarefa revplucionária realizada, sobrevém então, necessa- inglês prefere Locke a Habacuc. Sobrevém o 18 Brumário, e a
riamente, a amnésia. Ela já estava no programa da anacronia, na repetição se repete. É então que Marx entende distinguir entre o
“tarefa de sua época”. A anacronia pratica e promete o esquecimen- espírito (Geist) da revolução e seu espectro (Gespenst), como se
to. A sociedade burguesa esquece, em sua sóbria insipidez, “que os aquele já não invocasse este, como se tudo, como todavia reconhece,
espectros das épocas romanas tinham velado sobre seu berço” (dass não conduzisse às diferenças no interior de umfantástico tão geral

1, Op.cit, pp. 327-328. Traduçãoligeiramente modificada. 1 O 18 Brunário..., p. 330.


154 JACQUES DERRIDA
Espectros de Marx 155

quanto irredutível. Em lugar. de organizar o esquema correto da anacronia fatal, e finalmente é talvez tão sensível quanto nós à
constituição do tempo, esta outra imaginação transcendental dita a contaminação essencial do espírito (Geist) pelo espectro (Gespenst).
sua lei a uma invisível anacronia. Intempestivo, “out of joint”, Masele querse verlivre dela, avalia que se pode,declara quese deve.
mesmo e sobretudose parece vir em sua hora, o espírito da revolução
Crê no futuro e quer afirmá-lo; afirma-o, impõe a revolução. Detesta
éfantástico e anacrônico de um lado a outro. Ele deve ser —e, entre
todosos fantasmas,os bons e os maus, pensa que se pode romper com
todas as perguntas determinadas por esse discurso, uma das mais
essa freqiientação. É comose nosdissesse, a nós, que não admitimos:
necessárias diria respeito, sem dúvida, à articulação entre esses con-
isto que vocês acreditam chamar sutilmente a lei da anacronia está
ceitos indissociáveis e que devem,senãoidentificar, ao menospassar
ultrapassado. Essa fatalidade pesava sobre as revoluções do passado.
de um para O outro sem atravessar nenhuma fronteira conceitual
rigorosa: espírito de revolução,realidadeefetiva, imaginação (produ- Estas queestão vindo, no presente e no porvir (a saber, isto que Marx
tiva ou reprodutiva), espectro (Geist der Revolution, Wirklichkeir, prefere sempre, como todo mundo, como a vida mesma, e vem a ser
Phantasie, Gespenst): a tautologia da preferência), estas, que se anunciam desde o século
XIX, têm de desviar-se do passado, de seu Geist como de seu
A ressurreição dos mortos (Die Totenerweckung) nessas revoluções Gespenst. Devem, em suma, deixar de herdar. Não devem nem
tinha, portanto,a finalidade de glonficar (verherrlichen) as novas lutas e mesmofazer mais o trabalho doluto, durante o qual os vivos mantêm
não a de parodiar (parodieren) as passadas; de engrandecer na imagina- os mortos, ocupam-se deles, agem comoeles; são mantidos ocupados
ção (in der Phantasie) a tarefa a cumprir, e não de fugir de sua solução
e agidos pelos mortos, falam-nos e falam-lhes, portam seu nome e
na realidade; de encontrar novamente o espírito da, revolução e não de
fazer o seu espectro caminhar outra vez. De 1848 a 1851 o espectro conservam sua linguagem. Não, não mais memória revolucionária,
(Gespenst) da velha revolução anda em todos os cantos: desde Marrast, abaixo o mônumento, desça a cortina sobre o teatro de sombras e
o republicain en gants jaunes que se disfarça no velho Bailly, até o sobre a eloglência funerária, destruamos o mausoléu para populares,
aventureiro de aspecto vulgar e repulsivo que se oculta sob a férrea quebremos as máscaras mortuárias sob esquife de vidro. Tudoisso é
máscara mortuária de Napoleão.!
a revolução do passado. Já, ainda no século XIX. Já no século XIX,
temos dedeixar de herdar deste modo, temos de esquecer essa forma
Marx visa frequentemente a cabeça,e o chefe. As figuras do fantasma
de esquecimento na frequência disto a que chamamos o trabalho do
são primeiramente rostos. Trata-se, pois, de máscaras, quando não,
luto,a visitação do espírito assim como do espectro:
desta vez, de elmo viseira. Mas entre o espírito e o espectro, entre
a tragédia e a comédia, entre a revolução em marcha e o que a instala
A revolução social do século XIX não podetirar sua poesia (ikre Poesie)
na paródia, não há senão a diferença de um tempo entre duas másca- do passado, e sim do porvir. Não podeiniciar sua tarefa enquanto não se
ras. Trata-se do espírito, quando Lutero toma a máscara (maskierte despojar de toda veneração supersticiosa do passado. As revoluções
sich) do apóstolo Paulo,trata-se do espectro, de “paródia”, de “'ca- anteriores tiveram que lançar mão de recordações da história antiga para
ricatura”” com a cabeça de toucinho de Luís XVIII ou com a máscara se iludirem quanto ao próprio conteúdo (1wm sich úber ikren eigenen
mortuária (Totenlarve) de Napoleão, o Grande, sobre o rosto de Inhalt zu betituben). A revolução do século XIX deve deixar que os
Napoleão, o Pequeno. mortos enterrem seus mortos,a fim de alcançar seu próprio conteúdo (um
bei ihrem eignen Inhalt anzukommen). Antesa frase ia além do conteúdo;
Convém dar mais um passo. Convém pensar no porvir, ou seja, na
agora é o conteúdo que vai além dafrase (Dort ging die Phrase iiber den
vida. Ou seja, na morte. Marx reconhece, certamente, a lei dessa Inhali, hier geht der Inhalt aber die Phrase hinaus))

1. O 18 Brumário... p. 330.
1 O 18 Brumário... p. 331.
156 JACQUES DERRIDA
Espectros de Marx 157

Ascoisas estão longe de ser simples. É preciso ser todo ouvidos e que ganharia, sem luto, da revolução passada: será enfim o evento, o
ler a pouca distância, contar com cada palavra da língua. Ainda advento do evento,a vinda do porvir,a vitória do “conteúdo próprio”
estamos no cemitério, os coveiros trabalham duro, desenterram-se
que terminará por arrebatá-lo sobre a “frase”. Entretanto, na revolu-
ção passada, quando os coveiros, em suma, ainda estavam vivos, a
crânios, procura-se identificá-los, um a um; Hamlet recorda queeste
frase ia além do conteúdo. Daí a anacronia de um presente revolucio-
aqui “tinha uma língua” e que cantava. O que Marx quer dizer? Ele
também está morto, não esqueçamos disso, e mais de uma vez, nário obsidiado por seus modelos antigos. Mas no porvir, e já agora
exatamente, deveríamos sabê-lo; não é assim tão fácil, visto que
na revolução social do século XIX, ainda por vir aos olhos de Marx
(toda a novidade do novo habitaria esta dimensão social, para além
acontece a todo instante e dele herdamos, a nosso modo, ao menos
da revolução política ou econômica), a anacronia ou a intempestivi-
cada um de seus vocábulos sobreviventes, de que ele não gostaria de
dadenão se apagará numa plenitude qualquer da parusia e da presen-
que viéssemos a esquecer sem ter tido, ao menos, alguma atenção
respeitosa por eles, sem ter, por exemplo, entendido a imposição ça a si do presente. O mundo ainda estará “out ofjoint”. Mas,dessa
revolucionária a deixar os mortos enterrarem os mortos, O imperativo vez, a inadequação será devida ao excesso de “conteúdo próprio”,
com relação à “frase”. O “conteúdo próprio” não infundirá mais
de um “esquecimento ativo”, como não tardará a dizer um certo
Nietzsche: o que Marx querdizer, Marx, o morto? Ele bem sabia que medo, não se esconderá mais, recalcado por detrás da retórica enlu-
tada dos modelosantigose a careta das máscaras mortuárias. Irá além
os mortos nunca enterraram ninguém. Nem vivos que não fossem
também mortais,isto é, próprios a portar em si, ou seja, fora deles e da forma,fará estalar as roupagens,irá mais rápido do que os signos,
diante deles, a impossível possibilidade de sua mgrte. Seria preciso os modelos,a elogiuência, o luto. Nada mais será afetado, aprestado:
não mais crédito nem figura de empréstimo. Mas, por paradoxal que
sempre que mortais ainda vivos enterrassem vivosjá mortos. Mortos
nunca enterraram ninguém, mas os vivos também não, vivos que isso pareça,é neste esboroamento além doslimites, no momento em
fossem somente vivos, vivos imortais. Os deuses nunca enterram que todas as junções de forma e conteúdo cederão, que este último
será propriamente “próprio” e propriamente revolucionário. Em toda
ninguém. Nem os mortos enquanto tais, nem os vivos enquanto tais
nunca levaram ninguém para terra. Se Marx não pode não sabê-lo, lógica, não st deveria reconhecê-lo por coisa alguma que nãofosse o
o queele querdizer então? O queele quer, ao certo? O quequeria ele descompasso dessa identificação intempestiva, portanto, por coisa
então,ele que está morto e enterrado? Parece que queria, primeira-
alguma existente. Por coisa alguma que seja presentemente identifi-
cável. Desde que se identifica uma revolução, ela começa a imitar e
mente, reconduzir-nos ao se-infundir-medo deste medo em si: por
ocasião das revoluções passadas, as mortas, a conjuração convocava entra em agonia. Eis aí a diferença poética, já que Marx diz-nos onde
a revoluçãosocial deverá ir buscar sua “poesia”. Aí está a diferença
os grandesespíritos (os profetas judeus, Roma etc.), mas unicamente
poética entre o ali da revolução política de ontem e o aqui da
para esquecer, para recalcar, por medo; para anestesiar a si mesma
revolução social de hoje; ou, mais precisamente,entre este iminente
(sich betduben) diante da violência do golpe que esta produzia. O
espírito do passadoprotegia-a contra seu “próprio conteúdo”; encon- hoje sobre o que lamentavelmente sabemos,agora, em nossos dias,
trava-se ali para protegê-la contra si mesma. Tudo se concentra, que no seu amanhã, há um século e meio,ela deveria ter-se exposto
então, na questão deste “conteúdo” e deste “conteúdo próprio”, a indefinidamente, imperturbavelmente, às vezes para o melhor, o mais
que Marx se refere tantas vezes, e três vezes nessas poucas linhas
das vezes para o pior, aqui, de preferência, a ali, a uma das mais
célebres. Todo o deslocamento anacrônico expõe-se na inadequação inesgotáveis fraseologias da humanidade moderna: “Dort ging die
entre a frase e o conteúdo — o conteúdo próprio, , conteúdo apro- Phrase iiber den Inhali, hier geht der Inhalt iiber die Phrase hinaus”.
priado. Marx acredita nisso. Sim e não, lamentavelmente.
Este desajuste não cessará, sem dúvida, jamais. Sem dúvida,ele Certamente teria sido necessário multiplicar os exemplos dessa
se inverterá e será a revolução dentro da revolução, a revolução futura anacronia implacável, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte (e esse
. 158 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 159

título e data já produzem o primeiro exemplo de paródia enlutada: no nalistas e a Assembléia Nacional enterra a sua onipotência no parla-
que é uma família, os Bonaparte, e a França, na articulação genealó- mentarismo. Decididamente, a frase vai além do conteúdo:
gica do público e doprivado).
Conservemos unicamente um, o mais próximo à letra, ou seja, [...] em nomeda ordem, umaagitação desenfreada e desprovida de todo,
aqui, do corpo espectral quea substitui. Trata-se, em suma,desta vez, conteúdo (inhaltslose Agitation); em nome da Revolução, os mais sole-
de uma paródia do espectro mesmo. Uma revolução se põe a carica- nes sermões em favor da ordem: paixões sem verdade, verdades sem
turizar o “espectro vermelho”, que os contra-revolucionários fize- paixões,heróis sem heroísmo.história sem acontecimentos (Geschichte
ohne Ereignisse)
ram o possível para conjurar. O “espectro vermelho” foi também o
nome de um grupo revolucionário.!
Ora, em que consiste aqui esta ausência de acontecimentos,e final-
A dobra suplementar que nos interessa aqui é a que regularmente
mente esta a-historicidade? Com o que se parece? Resposta: com
garante o recuo reflexivo de uma conjuração; aqueles que infundem
uma ausência de corpo, decerto. Mas quem perdeu seu corpo? Bem,
medo, infundem medo a si mesmo(s), conjuram este espectro mesmo
não um indivíduo vivo, não um sujeito real, como se diz, mas um
que representam. A conjuração faz seu luto de si mesma e volta-se
contra a sua própria força. espectro, o espectro vermelho que os contra-revolucionários conju-
ravam (a Europainteira na verdade: o Manifesto foi ontem). É por
Eis aquia nossa hipótese: muito além de um “18 Brumário”, isto
nunca deixou de acontecer ao que se chama o marxismo. Em lugar esta razão que convém “inverter o sentido das coisas”, inverter o
de protegê-lo do pior, esse recuo de conjuração, essa contraconjura- conto de Chamisso, A maravilhosa história de Peter Schlemihl, o
ção o terá infalivelmente precipitado nisso. No capítulo 3 do 18 homem que perdeu a sua sombra. Aqui, nos diz Marx, “tal qual um
Brumário, Marx opõe, umavez mais,a revoluçãoa 1848 à primeira Schlemihl invertido” (als umgekehrre Schlemihle), a sombra perdeu
Revolução Francesa. Uma retórica firmee eficaz multiplica os traços seu corpo no momento em quea revolução apareceu no uniforme da
de uma oposição dominada por uma figura maior; 1789 é a linha ordem. O espectro mesmo,o espectro vermelho desencarnou. Como
ascendente, a audácia ganha, sempre se vai mais adiante (constitucio- se fosse possível. Mas isso não é também a possibilidade, exatamen-
nalistas, girondinos, jacobinos), ao passo que, em 1848, segue-se te, a virtualidade mesma? E para compreendera história, ou seja, a
uma linha descendente: enquanto os constitucionalistas. conspiram pe do evento, não é preciso.contar com essa virtualiza-
contra a Constituição, os revolucionários pretendem ser constitucio- ção? Não convém pensar que a perda do corpo possa afetar o espec-
tro? A tal ponto que seja então impossível discernir entre o espectro
e o espectro do espectro, o espectro em busca do conteúdo próprio e
1, Antes que eu encontrasse esta alusão ao “espectro vermelho” em O 18 da efetividade viva? Não à noite, em quetodos os gatos-são pardos,
Brumário, Étienne Balibar me haviarevelado a existência de um jornal que mas cinzento contra cinzento porque vermelho contra vermelho. Pois
se intitulava Le Spectre Rouge (“durante a revolução de 48 [...] provavelmen- não esqueçamos nunca que, ao descrever esses recuos, inversões,
te após os massacres de junho,ou seja, o espectro dos revolucionários-prole- conversões sem borda, Marx pretende denunciar aparências. Sua
tários mortos"). “Estou anunciando a revolta dos camponeses!, escreve crítica consiste também em dizer: esses homense esses acontecimen-
Romieu, em Le Spectre Rouge. Os proletários estão prontos, emboscadosaté tos que descamam como um Schlemihlinvertido, cujo corpo desapa-
o último vilarejo, o ódio e a vontade no coração [...]” (citado por J. Bruhat,
receu (abhanden gekommen ist), é deste modo que eles aparecem
Le Socialisme Jrançais de 1848 à 1871, em Droz, Histoire gênérale du
socialisme, PUF, t. I, p. 507). “Pensa-se também, acrescenta Balibar, no (erscheinen), certamente, mas isso não passa de um aparecimento,
Spectre de la mort rouge”, de Villiers de PIsle-Adam,escrito, se não me
engano, após a Comuna, mesmo se a “morte vermelha” 'não é, provavelmen-
te, a mesma coisa que a “morte dos vermelhos”...” 1. O 18 Brumário, p. 346,traduçãoligeiramente modificada.
160 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 161

portanto também de uma aparência e finalmente de uma imagem, no tornara-se em suas cabeças umaidéia fixa, um dogma, como na cabe-
sentido dofenômeno e no sentido dafigura de retórica. Persiste que ça dos quiliastas o dia em que Cristo deveria ressuscitar (wiedererschei-
o quepareceser finalmente uma imagem é também, provisoriamente, nen sollte) e instaurar sobre a terra o reino milenar. Como sempre, a
a imagem final, o que “aparece nofinal” (endlich erscheint),cinzen- fraqueza se refugiara na crença dos milagres, imaginava o inimigo ven-
cido. quandotinha sido exorcizado em imaginação (in der Phantasie
to contra cinzento como vermelho contra vermelho,na parusia dessa weghexte) [...]!
revolução abortada:
e um pouco mais tarde — ainda é domingo, o mesmo dia, um outro
Se existe na história do mundo um período cinzento (grau in grau), é
exatamente este. Os homens e os acontecimentos aparecem como Schle- domingo,a palavra está comosfantasmas, com a fantasmagoria, com
miblinvertidos (erscheinen als umgekehrte Schlemihle), como sombras o anátema como fórmula de exorcismo (Bannformel) com feitiça-
queperderam seus corpos. A revolução paralisa seus próprios portadores ria: num abrir e fechar de olhos a sobrevivência perde a partida, eis
e dota apenas osadversários de veemência e paixão. Quandoo “espectro aqui o testamento de um povo. Em sua própria voz, de seu próprio
vermelho” (das “rote Gespenst"'), continuamente invocado e conjurado punho, um povo instantaneamente privadodevisão aceita a morte em
(heraufbeschworen und gebarnt) pelos contra-revolucionários, final- um decreto mefistofélico:
mente aparece (endlich erscheint), não traz à cabeça o barrete frígido da
anarquia, mas enverga o uniforme da ordem, os culotes vermelhos(in
[...] a cortina de relâmpagos da imprensa diária, toda a literatura. as
roten Plumphosen).!
celebridades políticas e os espiritos de renome (die geistigen Renom-
meen),o código civil e o código penal, a liberdade, igualdade, fratemi-
Dos doislados, entre revolução e contra-revolução, entre os demo- dade ço segundo [domingo de] maio de 1852 — tudo desaparecera como
cratas e Bonaparte, a guerra não opõe somente espectros e conjura- uma fantasmagoria (wie eine Phantasmagorie) diante do exorcismo
ções, feitiçarias animistas e encantamentos mágicos, mas os simula- (Bannfonnel) que seus inimigos mesmos não consideram como um
cros desses simulacros. Dos dois lados, uma reflexão especular não feiticeiro (Hexenmeister). O sufrágio universal parece ter sobrevivido
(iberlebt) apenas por um momento,a fim defazer, de seu próprio punho.
pára de reenviar o simulacro, ou seja, de diferir até o insuperável o seu testamento perante os olhos do mundo inteiro e proclamar em nome
encontro com corpo vivo, o acontecimento real, vivo, efetivo, a do próprio povo: “Tudoo que existe merece perecer.?
revolução mesma, a revolução propriamente dita, em pessoa. Isso
não impede Marx de marcar uma data. É verdade que ele indica, a O que se passa num instante? Comodescrever este passe de mágica?
cada vez entre colchetes, que se trata de um domingo. Ora, em sua Um falsofeiticeiro, tão inconsistente como umaespécie defantasma
singularidade, uma data repete, ressuscita sempre o fantasma de uma subalterno, um espectro auxiliar, uma aparição de serviço (Luís
outra de que ela porta o luto. Depois, um domingo não é um dia Bonaparte), obsidiado pela figura quase patema de um grande espec-
qualquer para uma revolução. Hegeljá havia designado uma certa tro (Napoleão Bonaparte e a Revolução de 1789), eis que, aprovei-
sexta-feira santa especulativa, Marx deixa ver o que se vê no dia do tando de um dia em que se encontrava de plantão, faz desaparecer a
Senhor, aparição esperada, o retorno do morto, a ressurreição como revolução, como uma fantasmagoria, por meio de um exorcismo
re-aparecimento: perverso, diabólicoe inaparente. Pois se sua conjuração faz desapa-
recer O povo,na verdade,assina com isso seu próprio desaparecimen-
[...] consegiiências milagrosas do segundo [domingo de, Sonntag des to, assina-o de seu próprio punho: alienação absoluta e daqui em
Monats] de maio de 1852. O segundo [domingo de) maio de 1852

1 Op. cit.p. 332.


1 O.C.p. 101. 2 Op.cit.p. 333, traduçãoligeiramente modificada.
162 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 163

diante sem corpo, alienação de si que deste modo só apropria a sua cos do que Marx chamava,nas passagens que citamos, um “conteúdo
morte e não lega senãoo patrimônio de sua expropriação. próprio” e uma “frase”. A fruição deveria não mais perder uma
Esses paradoxosrefutam umalógica consistentee irredutível? Ou centelha do espírito, do espírito de Marx (e de Engels),através e para
convém ir por partes? Esta parte faria parte de umaretórica? Trata-se além do dito espirituoso, não somente da economia do Witz, de seus
unicamente de efeitos buscados no que se acreditou, por vezes, traçose flechas, mas, através e além da transubstanciação entre Gas
ordenar (por exemplo com Michel Henry!) entre os textos “políti- e Geist.
cos” ou “históricos” de Marx, em oposição a seus textos “filosófi- Podemos somente privilegiar alguns traços numa longa e espiri-
cos”? Nossa hipótese é outra. É preciso, sem dúvida, determinar a tuosadiatribe. Trata-se ainda de uma caçada. Tenta-se, por todos os
medida da polêmica,do talento oratório, de um arsenal de linguagem
meios, ser bem-sucedido. Molesta-se sempre sem piedade, muitas
pouco comum: uma panóplia de argumentos mas também de ima- vezes sem fé nem lei, ou seja, sem muita boa-fé, alguém a quem se
gens, uma panóplia fantástica nesses tempos que conservam um acusa de pertencer a essa linhagem do neo-evangelismo de que
gosto pelas aparições (por um certo teatro de aparições, conforme falávamos acima. são Max (Stimer), no entender de Marx (e Engels)
uma cenografia historicamente determinada — pois toda época tem teria feito o Apocalipse de São João mentir. Aí onde este anunciava
a sua cenografia, temos os nossos fantasmas). Convém certamente
a mulher deBabilônia,este outro foco de nossaelipse médio-oriental
também levar em conta 0 compromissosingular na mobilidade de um
ainda hoje, o neo-evangelhista Stimer proclama o homem, o segredo
contexto histórico, tático e estratégico bastante diferenciado. Mas
(das Geheimnis), o único (den Einzigen). E segue-se então no deserto
isso não deve impedir que para além desses limites se reconheçam
doespírito (die Wiiste des Geistes), toda a história dos espíritos, dos
invariantes. Há constância, consegiiência e coerência. Há camadas
fantasmas qu das aparições: primeiramente a pura história dos espí-
discursivas cuja estratificação permite às longas sequências perma-
ritos (reine Geistergeschichte), depois a história dos possessos (die
necerem subjacentes a formações efêmeras. Mesmo se uma certa
Besessenen) comohistória impura dos fantasmas (unreine Geister-
heterogeneidade permanece estrutural, como continuamente sugeri-
geschichte), depois a impura impura história dos espíritos (unreine
mos, esta não separa os tipos de discurso; ela opera nointerior de
unreine Geistergeschichie). Stimer proclama-o: “Desde queo verbo
cada um deles. Em sua forma filosófica, a paradoxia do espectro já
se fez carne, desde que o mundo espiritualizou-se (vergeistigt),
estava no programada Ideologia alemã e continuará no de O capital.
encantou-se(verzaubert), resultou num fantasma (ein Spuk).”2 Marx
E sea fantástica panóplia lança mãoda retórica ou da polêmica em
ironiza sobre o caso “Stimer” [nomepróprio entres aspas; trata-se,
imagens ou fantasmas,isso leva a pensar quea figura do fantasma
talvez não seja umafigura entre outras. Trata-se, talvez, da figura
escondida de todas as figuras. A esse título, ela talvez não figurasse
mais uma arma trópica entre outras. Não haveria meta-retórica do 1. [...] Stimer descobre que no fim do mundo antigo “o espírito transbordou
fantasma... . como uma espuma irresistível, porque os gases (espíritos) (Gase/Geister)
desenvolviam-se em seu seio”. Marx analisa em seguida os “jogos surpreen-
Diante desses paradoxos,qualseriaa tarefa aqui? Umadastarefas,
dentes” que são Max assim descreve (L'Idéologie allemande, O.C., p. 213).
ao menos, seria, por exemplo, reconstituir um plano de batalha, o
Hegel já se tinha mostrado atento à afinidade entre Gas-Geist: o trabalho da
mapaespectrológico do quefoi, na Ideologia alemã, a mais gigantes- morte, a fermentação do cadáver em decomposição marcam a passagem de
ca fastasmaquia de toda a história dafilosofia. Seria preciso acompa- umafilosofia antiga da natureza a uma filosofia do espírito. Sobre esses
nhar o pormenornosjogosinusitadose os transbordamentosrecípro- temas, permito-meremeter a Glas, Galilée, 1974, pp. 70, 106. 263 principal-
mente, e a De I'esprit, Galilée, 1987, p. 163.
2 L'idéologie allemande, O.C., p. 177. Marx, como se sabe,entrelaça constan-
temente seu discurso polêmico com longas citações de L'Unique et sa
1, CF. nota da página 148.
Propriéte (1845).
164 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 165.

comosesabe, de um pseudônimo]: “Stimervê espíritos (sieht Geis- de Hegel, está obsidiado pelo autor de Fenomenologia do espírito e
ter)” Pois, tal qual um guia turístico ou um professor, Stimer tinha não pode suportar isso. Ele cospe fora seus fantasmas vivos como
a intenção de nosensinar as regras do método para uma boa introdu- uma baleia com indigestão. Em outras palavras,ele não compreende
ção aos fantasmas. Apóster determinadoo espírito como algo distin- Hegel, não tão bem quanto um outro de seus descendentes, adivi-
to do eu (Der Geist ist ewas Andres als Ich). Definição, atrevamo- nhem quem. Este último, igualmente perseguido pela sombra desse
nos a sublinhar, que não carece de profundidade, Stimer formula avô que retorna todas as noites, prestes também traí-lo ou a vingá-lo
ainda uma excelente pergunta(“Maseste outro,o queé isto?” Dieses (o queé, às vezes, a mesma coisa), ei-lo ocupado aqui em dar uma
Ander aber, was ist's?), uma vasta pergunta que Marx logoveio a lição de hegelianismo ao irmão Stimer. Este introduz-se sempre na
ridicularizar e de tudo fazer para exorcizar, por sua vez. Tanto mais frase hegeliana, suas palavras insinuam-se na “fraseologia bem co-
que — Marx chamaa atenção sobre ela para habilmente zombar — nhecida da ortodoxia hegeliana”.! Mas este herdeiro indigno não
essa pergunta contenta-se em modificar, numa “metamorfose” compreendeu o essencial do testamento, ele não leu com atenção a
(Wandlung) suplementar, a pergunta originária (die urspriingliche Fenomenologia doespírito, em quese inspira e sobre a qual gostaria
Frage), a questão abissal que recaía, em suma, sobre a não-presença de dar-nos-uma versãocristã (“são Max propõe-se a dar-nos uma
a si, a intempestividade desajustada desta coisa a que se chama fenomenologia do espírito cristão”). O quefoi que ele não compreen-
espírito. Marx não deveria ter zombado disso, mas eis que O faz deu? O que é o essencial? Tratando-se do tornar-se espectro do
maliciosamente, com umaingenuidade que gostarja de parecerfingi- espírito, ele não viu que para Hegel o mundo não era somente
da. Talvez o seja menos do que parece (não queiramos, portanto, - espiritualizado (vergeistigt), mas des-espiritualizado (entgeistigt),
esconder, mesmo se não é exatamente o momento, que nós levamos tese que oautor de A ideologia alemã parece, pois, aprovar: esta
a sério a originalidade, a audácia e, justamente, a seriedade filosófi- desespiritualização é muito precisamente (ganz richtig) reconhecida
co-política de Stimer, a quem seria preciso ler sem Marx ou contra por Hegel, lê-se. Hegel soube pôr em relação aos dois movimentos,
ele; mas este não é o nosso propósito aqui). Marx: mas nosso “santo dialético”, que ignora o “método histórico”, não
souhe aprender a fazê-lo. Além disso, se ele tivesse sido melhor
A perguntaestá, portanto, formulada deste modo: p que mais vem ser historiador, teria aliás terminado por romper com Hegel. Pois,criti-
O espírito senão q eu? Aopasso que à pergunta primitiva era: o que mais ca-se Stimer por não compreender Hegele, o que não é forçosamente
vema ser, por sua criação a partir do nada, o espírito senão ele mesmo? contraditório, porser hegeliano demais em sua genealogia do fantas-
(Was-ist der Geist durch seine Schôpfung aus Nichts anderes als er ma. Esse mau irmão? vê-se acusado deser, ao mesmo tempo,ofilho
selbst?) E eis aqui o que permite a são Max saltar para a seguinte por demaisfilial e um mau filho de Hegel. Um filho dócil escuta seu
“metamorfose” (p. 177, outra leitura equivalente: q espírito não se cria a
pai, copia-o, mas não entende nada dele, subentende Marx — que
partir de nenhuma outra coisa senão dele mesmo.) .
antes gostaria deter feito não o contrário, isto é, tomar-se também
um mau filho, mas outra Coisa, interrompendoa filiação. Mais fácil
Em sua primeira e simples “impureza”, a história dos fantasmas
dizer doque fazer. Em todo caso, a obra de Stimer permanece nula e
desenrola-se em vários tempos. Antes mesmode assistir bem refes-
sem acontecer. “Ainda quecle nostivesse fomecido essa fenomeno-
telado em sua cátedra ao que se tem de chamar a tepria dos espectros,
à procissão dos fantasmas de conceitos que esses conceitos de fantas-
maseriam (seus simples nomes, pensa Marx), importa acentuar que
1 OC.p. 172.
esta teoria trai sua Origem, a saber, o pai Hegel. Ela traie trai. Deixa
2. Sobre a história emaranhada e sobredeterminada das relações com Stimere
ver seu ascendente, e é indigna dele. Denuncia-o. A genealogia he- sobre o contexto histórico-político dessa polêmica, cf. Henri Arvon. Aux
geliana de Stimerseria também umaquedadofilho. Stimer descende sources de V'existentialisme, Max Stirner, PUF, 1954,pp. 128 e seguintes.
166 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 167

logia (aliás, supérflua após Hegel), não nosteria dado absolutamente pensamentos do professorberlinense”. Não passam disto, e o são em
nada.”! ' aparência. Na Fenomenologia doespírito, nesta Bíblia ou neste livro,
Maufilho e mauhistoriador, Stimerseria incapaz de romper com Hegel transfigura o indivíduo em “consciência” e o mundo em
o ascendente e com o precedente da Fenomenologia (e o que é uma “objeto”. A vidae a história são então transfiguradas, em sua diver-
fenomenologia senão uma lógica do phainesthai e do phantasma, sidade mesma, em relações da consciência ao objeto. Trata-se sem-
portanto do fantasma? Ao menos que não nos esgotemosdesespera- pre da verdade e de uma fenomenologização da verdade comoverda-
damente, como Marx,finalmente tentando distinguir o espírito do de da consciência que se encontra aqui questionada. A história do
espectro). O autor de O único e sua propriedade não vê que conceitos fantasma permanece umahistória da fantasmalizaçãoe esta será, na
tão abstratos como a Consciência de si ou o Homem são de natureza realidade, uma história da verdade. Do tomar-se-verdade de uma
religiosa. Ele faz da Religião uma causa sui, como se espectros fábula; ao menos queseja o inverso, uma afabulaçãoda verdade, em
pudessem mover-se por si mesmos. Não vê que o “cristianismo não todo caso uma história de fantasmas. A fenomenologia (do espírito)
tem nenhuma história”, nenhumahistória que lhe seja própria. Ele descreve1. a relação da consciência ao objeto como verdade ou como
não soube explicar, como deveria ter feito, as “autodeterminações” relação à verdade enquanto simples objeto; 2. a relação da consciên-
e os “desenvolvimentos” do “espírito religioso” a partir de “causas cia, na qualidade do verdadeiro que ela é, ao objeto; 3. a relação
empíricas”, de “condições empíricas”, de “formas estáticas determi- verdadeira da consciência com a verdade (wahres Verhalten des
nadas”, de “relações de troca e de relações industriais determina- Bewussiseins zur Wahrheit).
das”. Não alcançou tanto o ser-determinado, portânto “necessário”, Esta triplicidadereflete a Trindade: Deus-pai, o Cristo e o Espíri-
como a determinação (palavra-chave da acusação) e, com mais to-Santo. O espírito assegura a mediação, portanto a passagem e a
precisão, a empiricidade dessa determinação. Desconheceu deste unidade. Ele dá lugar, por isso mesmo, à metamorfose doespiritual
modoo que determina esta determinaçãodo espírito em heterodeter- em espectral: trata-se do erro de são Max. Tem-se, portanto, o
minação. O empirismo aparentemente declarado que inspira essa sentimentoque, nacrítica de Stimer em todo caso, Marx agarra-se
crítica reconduz sempre, de fato, a uma lei da alteridade. Como antes de tudoao espectro e nãoaoespírito, comose acreditasse ainda
sempre, o empirismo tem vocação para a heterologia. Reconhece-se em alguma purificação descontaminadora a esse respeito, como se o
a experiência efetiva pelo que esta encontra do qutro. Ora, por ter fantasma não espreitasse o espírito, comose ele nãoo obsidiasse,
precisamente desde o limiar da espiritualização. comose a iterabili-
ignorado essa heterodeterminação do espírito cristão, Stimer está
enfeitiçado; alucinado,elé fantasmaliza, parece queele fantasmiza o dade mesma, que condiciona tanto a idealização comoa espirituali-
zação da “idéia”, não suspendesse então toda segurança crítica
espírito. Na verdade,ele está obsidiado pela frequência hegeliana. É
quanto ao discemimento entre esses dois conceitos. Mas Marx não
habitado somente por ela. A única “alteridade” de que possa ser
abre mão de discemir. O krinein da crítica faz-se a este preço.
capaz é o “ser outro” de.umacátedra, “o ser outro dos pensamentos
do professor berlinense”. As “metamorfoses” do homem e do mun-
do stineriano consistem nahistória universal encamadana sombra de
Hegel, incorporada na “carnedafilosofia hegeliana” (in den Leib der
Hegeischen Philosophie), metamorfoseada e incorporada nos ““es-
pectros que são, somente segundo a aparência, um “ser-outro” dos

| L'ldéologie allemande. OC.p. 117.


CAPÍTULO 5

a “escamoteação” fenomenológica

Umaarticulação garante o movimento deste requisitório obstinado.


Ela entra em jogo. Joga entre o espírito (Geist) e o espectro (Ges-
penst), entre o espírito, por um lado; o fantasma ou aparição, por
outro. Essa articulação permanece muitas vezes inacessível, eclipsa-
se na sombra por sua vez, aí se agita e engana. Primeiramente,
sublinhemo-loainda, Geist pode significar tambémespectro, comoo

A
fazem aspalavras “espírito” ouspirit. O espíritoé também espírito
dosespíritos. Em seguida, A ideologia alemã vai usar e abusar desse
equívoco. É a sua armaprincipal. Depois, se ele opera com constân-
cia ou consegiiência, se é menos sustentável do que Marx O crê, o
argumento que lhe permite distinguir entre oespírito e o espectro
permanecediscretoe sutil. O espectrofaz parte do espírito, participa
dele,é do seu domínio, à medida mesmoque o segue comoseu duplo
fantasmal. A diferença entre os dois, eis justamente o que tende à
desaparecer no efeito de fantasma, como tende a esvanecer-se o
conceito de tal diferença ou o movimento argumentativo que a
emprega na retórica. Tanto mais que esta se encontra, de antemão,
votada à polêmica, em todocasoà estratégia de uma caçada. E até a
uma contra-sofística que arrisca, a cada momento a réplica: re-
produzir em espelho a lógica do adversário, no momentode retorquir;
170 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 17

acrescentar-lhe algo aí onde se acusa o outro de abusar da linguagem. por Marx, ela formaliza menos um processo de espiritualização, de
Essa contra-sofística (Marx herdeiro paradoxal de Platão, retomare- autonomização da idealidade espiritual, que. uma lei paradoxal da
mos isso) deve manipular simulacros, mimemas, fantasmas. Deve incorporação: o ideológico, assim como, mutatis mutandis, o fetiche,
espreitar, para denunciá-las, as manobras de um ilusionista, “as seria o corpo dado, ou antes, emprestado, tomado emprestado, a
escamoteações”” de um prestidigitador do conceito ou os passes de encamação segunda conferida a uma idealizaçãoinicial, a incorpora-
mágica de um retórico nominalista. ção em um corpo que não está certamente nem perceptível nem
Pode-se tentar retomar essa estratégia mais ao pé da letra, e invisível, mas permanece uma came, em um corpo sem natureza, em
primeiramente, de sua letra stineriana, no que Marx chamaa “esca- um corpo a-físico a que se poderia chamar, se confiássemos nestas
moteação” (Eskamotage) em série, tal como ele entende desmontá- oposições, um corpotécnico ou um corpoinstitucional. Comoaquele
la, no começo do “são Max” (“O concílio de Leipzig II"). A que diz, protegido por sua viseira, / am thy Fathers Spirit, trata-se
produção do fantasma, a constituição doefeito de fantasma, não se mesmo de um corpo visível-invisível, sensível-insensível, e sempre
trata aqui unicamente de uma espiritualização, nem mesmo autono- sob a dura proteção institucional ou cultural de algum artefato: o
mização do espírito, da idéia ou do pensamento, tal como esta se elmo do ideologemaou fetiche sob armadura.)
produz, por excelência, no idealismo hegeliano. Não, uma vez essa Mas isso não é tudo. A especificidade do processo pode ainda
autonomização efetuada, com a expropriação ou a alienação corres- capitalizar a espectralização. Uma vez o fantasma produzido por
pondentes, e só então, o momentofantasmal sobrevém-lhe, acrescen- encarnação do espírito (da idéia ou do pensamento autonomizado),
ta-lhe uma dimensão suplementar, um simulacro, uma alienação ou quando esse primeiroefeito de fantasma é operado,ele é, por sua vez,
uma expropriação a mais. A saber, um corpo! Uma came (Leib)! negado, integrado e incorporado pelo sujeito mesmo da operação
Pois, não há fantasma, não há jamais devir-espectro do espírito sem, que,reivindicando a unicidade de seu próprio corpo humano,toma-
ao menos, uma aparência de came, num espaço de visibilidade se então, segundo Marx crítico de Stimer, o fantasma absoluto, na
invisível, como des-aparecer de uma aparição. Para que haja fantas- verdade o fantasma do fantasma do espectro-espírito, simulacro. de
ma é preciso um retornoao corpo, mas a um corpo mais abstrato do simulacros sem fim.Issoseria, ao que diz Marx, o momento delirante
que nunca. O processo espectrógeno corresponde, portanto, a uma e alucinógenoda hybris propriamente stimeriana: em nome da críti-
incorporação paradoxal. Uma vez a idéia ou o pensamento (Gedan- ca, e às vezes da crítica política (pois Stimer mantém um discurso
ke) destacados de seu substrato, engendra-se o fantasma dando-lhe político, e conhece-se o emaranhamento infinito do debate que for-
corpo. Não voltando ao corpo vivo de que são arrancadas as idéias mou qcontexto desse “Concílio de Leipzig II — são Max”), não
ou os pensamentos, mas encarandoestes últimos em um outro corpo haveria aí senão sobrelançoda negatividade, furor de reapropriação,
artefatual, um corpo protético, um fantasma de espírito, poder-se-ia acumulação de camadas fantasmáticas. Marx denuncia a sofística
dizer um fantasma de. fantasma se, como Marx permite às vezes dessa “escamoteação”, em um dos momentos mais claros dessa
pensar, a primeira espiritualização produz também,e já então, espec- argumentação volúvel e, às vezes, vertiginosa — que parece ela
tro. Mas uma especificidade mais agudizada pertence ao fantasma, mesma ceder à vertigem para que arrasta necessariamente semelhan-
que se diria “segundo”, como incorporaçãodo espírito autonomiza- te trópica, pois um espectronão faz somente mover mesas, faz girar
do, como expulsão ohjectivante da idéia ou do pensamentointeriores. a cabeça. Agir-se-ia, na verdade, de uma “nova escamoteação”.
(Nesse sentido, há sempre trabalho do luto nessa incorporação da Marx gosta dessa palavra. Por que essa proliferação de fantasmas
interioridade, e a morte está no programa. A teoria da ideologia procede por escamoteações? Uma escamoteação, com efeito, plura-
depende, por muitos aspectos que sublinharemos, dessa teoria do liza-se, arrebata-se e desencadeia-se em série. Marx começa, depois
fantasma. Como teorema stineriano criticado, corrigido ou invertido desiste de contá-los. A palavra “escamoteação” diz o suhterfúgio ou
172 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 173

o roubo na troca de mercadoria, mas, primeiramente, o passe de instituído, exposto fora, objetivado, a saber, da idéia ou do pensa-
mágica pelo qual umilusionista faz desaparecer o corpo mais sensí- mento de uma primeira vez incorporada. Essa primeira incorporação
vel. Trata-se de uma arte ou umatécnica do fazer desaparecer. O espectral é então negadae interiorizada. O eu é quem a retoma nele
escamoteadorsabe tornar inaparente. É o expert de uma hiperfeno- (zuriicknimmi): “eu” incorporo a incorporação inicial negando ou
menologia. Ora, aqui o cúmulo da escamoteação consiste em fazer destruindo, destituindo a posição anterior de sua exterioridade obje-
desaparecer produzindo “aparições, o que não é contraditório a não tiva, desobjetivandoo fantasma. Sem dúvida alguma, Marx parafra-
ser em aparência, justamente, posto quese faz desaparecer provocan- seia aqui Stirner, em sua descrição da descoberta desi, pelo adoles-
do alucinações ou proporcionandovisões. Vimosde citar longamente cente quese torna homem. Mas somente até o ponto em que Marx, e
Stimere sé vai comentá-lo o mais próximo à sualetra, parafraseando: não Stimer, determina como fantasma o momento último, o corpo
próprio do eu, o meu, minha propriedade (als die Meinige, als Mein
Assim,após ter começado por dar aos pensamentos(den Gedanken) uma Eigentum). Aí onde Stimer vê uma reapropriação canal e viva, mais
consistência corporal (Leibhaftigkeit). ou seja, apóster feito deles fantas- vida (aí onde não haveria mais morte), Marx denuncia um acréscimo
mas (dh. sie zu Gespenstem gemacht hat), o homem, identificado aqui hiperbólico de espectralidade, mais morte (aí onde não haveria mais
ao “Único”. destruiu essa forma corporal (zerstôrt er nun wieder diese
vida): posto que o corpo vivo, o meu, o único, não é senão o
Leibhaftigkeit) reintegrando-a em seu próprio corpo, de que faz, por isso
mesmo, o corpo dos fantasmas (indem er sie| in seinen eignen Leib
lugar-comum, o espaço em que se reúnem os pensamentos ou as
zuritcknimnt und diesen somit als den Leib der Gespenster setz). É entidades ideais autonomizadas, não é ele mesmo o “corpo dos
somente através dessa negação dos fantasmas Que ele se convence da fantasmas”(Leib der Gespenster)?
existência de seu próprio corpo.Isso, de fato. mostra a verdadeira natu- Nessa sarabanda dos espectros, tentemoslimitar-nos à firmeza, ao
reza dessa construçãoabstrata: a corporeidade do homem (Leibhaftigkeit menos aparente, de algumas evidências. O que Stimer e Marx pare-
des Mannes). Para acreditar nela, é preciso, primeiramente, queele a cem ter em comum é a crítica do fantasmal. Todos dois querem pôr
“diga” para “si”, mas o queele “se diz” nem mesmoé “dito” correta-
mente. Pelo fato de que, fora de seu corpo “único”, toda espécie de umfim àaparição, todosdois esperam consegui-lo. Todos dois visam
corpos autônomos, espermatozóides, não habitem unicamente a sua ca- a alguma reapropriaçãoda vida em um corpo próprio. Essa esperança
beça, ele transfigura isso numa “fábula”: Eu somente tenho um corpo é, quando menos, o que põe em movimento a injunção prescritiva ou
(suis un corps: Ich allein bin leibhaftig). Nova escamoteação.! a promessa de seu discurso. Talvez mesmo o que dá o seu primeiro
conteúdo determinante à formalidade messiânica de seu chamado.
O efeito espectral corresponde, portanto, segundo Marx, a umaposi- Mas, enquanto Stimer parece confiar essa reapropriação a uma sim-
ção (Setzung) do fantasma, a uma posição dialética do corpofantas- ples conversão do eu que retoma nele (que não é, na verdade, senão
mal como corpopróprio. Tudo issose passaria ensrefantasmas, entre esse movimento de reuniãointeriorizante) ereanima autenticamente,
doisfantasmas. Dois segundo Marx, enquanto, para Stimer, somente de algum modo, os fantasmas objetivados, fantasmas em liberda-
O primeiro momentoseria espectral, e o eu orelgvaria na reapropria- de, Marx denunciaesse corpo egológico:aí está, exclama,o fantasma
ção de um corpo vivo e único. O corpo vivo, “o meu”, “minha de todos os fantasmas! Aíestá o local de reunião a que acorrem todos
propriedade”, está de volta, anulando ou retomando de dentro as os espectros repatriados: o fórum ou a ágora para todos esses que
projeções fantasmáticas, as próteses ideais. Esse segundo momento retomam, pois isso fala muito. Marx prescreve,então, proceder à
marca a “destruição” ou a “negação”de um fantasma anteriormente reapropriação,levando em conta todas as estruturas práticase sociais,
de todos os desvios empírico-técnicos que haviam produzido os
fantasmasiniciais. Nãoé suficiente destruir, como por encantamento,
1 O.€,pp. 147-148,tradução ligeiramente modificada. num instante, a “corporeidade” (Leibhaftigkeit) dos fantasmas para
174- JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 175

se osincorporar vivos. Essa magia de imediatez que restituiria vida substituir “nomes próprios” por “nomes pomposos”,! Marx denun-
aos espectros pela simples transição do corpo exterior ao corpo cia um excesso de alucinaçãoe uma capitalização do fantasma: o que
interior, do objetivo ao subjetivo, na simples auto-afecção do “Eu- realmente (wirklich) se destrói são unicamente representações, em
Me”,“criadore possuidor” desses pensamentos,é isso o que Stimer sua forma de representação (Vorstellung). O adolescente pode, de
parece recomendar. Na certeza absoluta do puro contato consigo fato,destruir suas alucinações ou a aparência fantasmática dos corpos
mesmo, a imediatez de um “Eu-Me”teria exorcizado o fantasma, —do imperador, do Estado,da Pátria. Ele não os destrói efetivamen-
privando-o daí em diante de qualquer interstício, de qualqueraloja- te (wirklich). E se ele deixa dereferir-se a essas realidades através das
mento, de qualquer espaçamento propício à obsessão. Isso se'parece próteses de sua representaçãoe as “lentes de sua imaginação” (durch
a. uma epoguê, a uma redução fenomenológica do fantasma, mas die Brille seiner Phantasie), se ele deixa de transformar essas reali-
Marx a critica como uma redução fenomenológica ao fantasma (à dades em objetos, em objetos de intuição teórica, ou seja, em um
fenomenalidade ou ao fantasma de um fantasma). A redução como espetáculo, então ele deverá levar em conta a “estrutura prática” do
subjetivação da forma corporal do fantasma extemonão é senão uma mundo. Do trabalho, da produção,da efetuação,das técnicas. Apenas
sobre-idealização e uma espectralização suplementar. Marx cita é essapraticillade, apenas essa efetividade (o trabalho, o Wirken ou a
comenta Stimer: Wirkung dessa Wirklichkeit), pode triunfar sobre uma came pura-
mente imaginária ou espectral (phantastische [...] gespenstige Leib-
Assim como Eu Me descubro (Ich Mick finde) (é preciso ler: o adoles-
haftigkeit).
cente se descobre) por detrás das.coisas (Dinge). enquanto espírito
Marx parece prevenir Stirner: se você quer conjurar os fantasmas,
(Geist); do mesmo modo,necessariamente, Eu Me descubro mais tarde”
(leia-se: o homem Se descobre) “por detrás dos pensamentos (Gedan- acredite-me, eu o conjuro, a conversão egológica não basta, nem a
ken), enquanto seu criador e seu possuidor(als ihr Schôpfer und Eigner). mudança de direção de um olhar, nem um pôrentre parênteses, nem
À época dosespíritos(In der Geisterzeit). os pensamentos, nascidos no a redução fenomenológica, é preciso trabalhar — praticamente, efe-
“ entanto de Meu cérebro, Meultrapassavam a Mim-Mesmo”(ultrapassa- tivamente. preciso pensar o trabalho,e trabalhar nisso. É preciso o
vam o adolescente), semelhantes a alucinações (wie Fieberphantasien), trabalho e levar em conta a realidade como efetividade prática. Não
flutuavam-em redor de Mim e Meperturbavam, potências assustadoras. se expulsam, de uma só vez, O imperador ou o papa reais exorcizan-
" Os pensamentos haviam assumido uma forma corporal (Leibhaftig); do-se ou escamoteando-se apenas a forma fantasma de seu corpo.
eram fantasmas (Gespenster). tais como Deus, o imperador, o papa, a Marx é muito firme nisto: quando se destruiu um corpo fantasmático,
pátria etc. Se destruo gua forma corporal (Leibhaftigkeit). reintegro-os em
permanece o corpo real. Quando desaparece o corpo fantasmal (die
Meucorpo g digo: Eu só possuo uma forma corporal (zerstóre Ich ihre
Leibhaftigkeit, so nehme Ich sie in die Meinige zuriick und, sage: Ich gespenstige Leibhaftigkeir) do imperador, não é o corpo que desapa-
allein bin leibhafiig). Desde então, Eu aprendo o mundo comoo queele rece, mas somente sua fenomenalidade, sua fantasmalidade (Ges-
é para Mim, como sendo o Meu, Minha propriedade: Eu refiro tudo a pensterhafiigfkeit). O imperadoré, então, mais real do que nuncae se-
Mim Mesmo (Und nun nelune Ich die Welt als das, was sie Mirist, als pode melhor do que nunca avaliar: seu poder efetivo (wirkliche
die Meinige, als Mein Eigentun: [ch beziehe Alles aufMich.): Macht). Quando se nega ou se destrói a forma fantástica ou fantas-
mática (die phantastische und gespenstige Gestalt) da pátria, ainda
Nahistória do que se diz aqui, nessa fabulosa reconstrução que não se afloraram as “referências efetivas” (wirkliche Verháltnisse),
procede.frequentemente por simples nominação e se contenta em que-a constituem. Em sua-reconstrução abstrata das idades da vida,

1 OC, p-147.º 1 OC,p. 153.


176 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 177

Stirner nos entrega somente uma “sombra fantasmática” que deve- requisitórios de Marx: “Os Possessos”, Die Besessenen [unreine
mos “confrontar” com seu corpo desaparecido, pois o que ele perdeu Geistergeschichte)). Mas um espectro, isso não consiste, desde que
nessa pretensa destruição dos espectrosfoi, muito simplesmente, seu ele consista, em não permitir ou confundir essa distinção? Em con-
corpo, a “vida” ea “realidade efetiva” (Wirklichkeit). Perdeu seu sistir. nessa indiscemibilidade mesma? Possuir um espectro não é ser
corpo por amor a seu corpo. Pois toda essa história permanece possuído por ele, possuído e nada mais? Capturá-lo não é ser porele
comandada pelos paradoxos do narcisismo e do trabalho do luto. cativado? Contudo, Marx parece de acordo no essencial com-Stimer:
' Tudo começa, tudo deveria começar e recomeçar, na axiomática é preciso dominar o espectro,é preciso dar-lhe fim. O desacordo recai
Stineriana, pelo amor de seu próprio corpo (“wenn man sich leibhaf- sobre as vias desse fim, e sobre a melhor solução. Esse diferendo
tig liebgewonnen”: “quando a pessoa se põe a amar seu próprio sobre o assassínio dos fantasmas parece metodológico, mas não
corpo, a amar a si mesma na carne”). Faz-se, então, o luto dos conhece, pordefinição, nenhum limite: torna-se infalivelmente onto-
fantasmas em quejá se tinha expropriado (as idéias, os pensamentos lógico, ético, político. Resta que um conciliábulo é um concílio
objetivados etc.), em quejá se tinha perdido sey corpo e suavida. A cismático ou herético, um concílio secreto, uma discussão animada.
esse trabalho doluto imediato,a esse luto do trabalho,a esse trabalho Conjurados,às vezes conspiradores, nele se contradizem, amontoam
do luto sem trabalho, a essa conversão imediatamente narcísica, planos,limpam suas armas ou trocam segredos. Aí, de acordo ou não
Marx opõe um trabalho sobre esse trabalho do luto que nos libere sobrea estratégia, todos esses oponentes da sombra, embora saibam
dessa hiperfantasmalidade: o ego do corpo stineriano. Essa crítica que a Europa está tremendodiante de certo fantasma, o designado
nãoelimina a morte nem a expropriação no cerne do vivo,ela ressalta pelo Manifesto. desde. que seu primeiro nome, conspiram também
O que sempre difere o trabalho doluto, oluto mesmo € o narcisismo. contra um exército -de espectros, contra a espectralidade mesma, e
Marx determina somente a diferança como peélica. e atraso à reapro- pensam todos, sem dúvida, que obedecem às regras do jogo. Sabe-se
priação. melhor agora: mais de um séculose teria passado antes que se
Essa volta atrás nos terá permitido distinguir entre vozesàs vezes começasse a exumar A ideologiaalemã, a puxá-la para fora da terra
tão próximas”? Na disputa política que Marx busca com Stirner, essas e a deslindar, nos fios emaranhados desuas raízes, O nó das cumpli-
vozes parecem fazer-se eco. Se houvesse um conciliábulo para ini- cidades e dos antagonismos entre. Marx, Engels, Feuerbach, Stimer,
ciados, ele se manteria em tono da questão de saber quem, defato, Hess, Bauer etc. Começou-se, mas não SÊ terminou. E a sombra
tirará a pele do espectro: em que ritmo, segundo que desvios e que paterna de Hegel não pára de voltar, o enredo se articula desde sua
estratagemas. Em tempo real, imediatamente, ou em tempodiferido. primeira reaparição. Acusar o outro,.nesse complô envenenado, é
Por que chamar isso de conciliábulo? Sob a discordância absoluta, sempre anunciar ou denunciar a iminência de sua volta (“[...] ifagain
infinita, aparentemente definitiva, a de que Marx faz questão antes this apparition come[...]”").
que tudo,e queele não pára de ressaltar, como se ninguém quisesse : Pois, se essa volta atrás nos tornou mais sensíveis à astúcia de tal
acreditar nele, uma proximidade é dissimulada, até mesmo uma “lógica”, a todosos seus.disfarces, às armas ou às armaduras inex-
analogia temível. Compreenda-se bem: temível para Marx. E se há pugnáveis que elaassegura aocorpo fantasma, à estratégia sem fim
conciliábulo, é que um risco comum suscita a polêmica. Chama-se o que tal volta enseja, compreende-se melhor Stimer. Compreende-se
espectro. E Marx e Stimer querem enfim terminar com ele. Eis aí o melhor como e por que ele se teria entregado a essa espectralização
axioma comum, elefica fora de discussão. É precisotirar a pele do geral e precipitada. Em todo caso, segundo Marx, Stimerteria acei-
fantasma e, para isso, é preciso tê-lo. Para tê-lo é preciso vê-lo, tado emsérie. os disfarces (Verkleidungen) daidéia hegeliana. Dan-
situá-lo, identificá-lo. É preciso possuí-lo sem se deixar possuir por do-lhes fé, autorizando-os dogmaticamente (auf Treu und Glauben),
ele, sem ser possuído por ele (besessen — é o título de um dos ele os teria tomado pelo mundo mesmo, um mundodiante do qual era
178 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 179

preciso queele, então, se afirmasse, se fizesse valer e para isso se (traduzamos aqui: fenomenologia do espectro) e que, como tal, ela
opusesse a um não-eu diante do qual se reapropriaria comodivino não pode esconder sua vocação cristã. Ele pretende analisar e des-
vivo e encarnado (als leibhaftiges Individuum). montar o queé,literalmente, aos seus olhos, uma “construção”. Ora,
Stimer foi frequentemente lido, efetivamente, como um pensa- para desconstruir o que se parece a uma edificação especulativa, às
mento fichteano. Mas esse Eu,esse indivíduo vivo, seria habitadoe vezes, simplesmente, a um discurso edificante e a uma nova forma
invadido pelo seu próprio espectro. Ele seria constituído pelos espec- do bem-pensante, Marx sugere que, debaixo dessa semelhança com
tros de que, de agora em diante, é hóspede e que ele reúne na Jesus Cristo, o fantasma stimeriano projete uma identificação, na
comunidade obsidiada de um só corpo. Eu = fantasma. Portanto,“eu verdade umaunicidade: “Sancho, Cristo moderno:ei-la, a sua “idéia
sou” queria dizer “eu sou obsidiado””: eu sou obsidiado por: mim fixa” para que “tende”, desde o ponto departida, toda essa montagem
mesmo que sou (obsidiado por mim mesmo que sou obsidiado por histórica (die ganze Geschichtskonstruktion)” (O.C., p. 419). Um
mim mesmo que sou... etc.). Em toda parte em que há Eu, es spukt, estudo sistemático o poria freguentemente.em evidência: o tema da
“isso obsidia”. (O idiomático desse “es spuktr” desempenha em alimentação, da Ceia e da hóstia, cruza a crítica da linguagem, com
todos esses textos, como em Das Unheimliche de Freud, um papel' disfarces e escamoteações que consistem sempre em dar crédito
singular. Sua tradução fracassa sempre, infelizmente, em dar conta ingenuamente apoderes discursivos (abuso da etimologia que serve
do elo entre a impessoalidade ou o quase anonirhato de uma operação de explicação, jogo com as homonímias, privilégio da nominação,
[spuken] sem ato, semsujeito ou sem objeto reais, e a produção de autonomização da linguagem etc.!).
uma figura, a da aparição [der Spuk]: não simplesmente “isso obsi- Uma questão se impõe então, e é uma questão de método, uma
dia”; como acabamos de arriscar a tradução, mas, de preferência, segunda propedêutica (Anleitung) à visão dos espíritos: como se
“isso retoma”, “isso retomante”, “isso espectra”.) O modo gssen- transforma o mundo em “fantasma da verdade”(in das Gespenst der
cial da presença a si do cogito seriaa obsessão desse “es spukt”. Wahrheit)? E como se transformar a si mesmo “em um sersantifica-
Tratar-se-ia do cogito stineriano na lógica de um requisitório, certa- do e fantasmático” (in einen Geheiligien oder Gespenstigen)? Essa
mente, mas seria esse limite intransponível? Não se pode estender questão crítica vai primeiramente de são Max (Stimer) até Szeliga,
esta hipótese -a todo cogito? O cogito iano, o “eu penso” durante um diálogo fictício. Este último se vê recriminado por isso
kantiano, o ego cogito fenomenológico?! Umapresença real se pro- mesmo que Marx recrimina a Stimer, a saber, por não ter de “sur-
mete aqui a um Narciso eucarístico. O vivo stineriano,seu Eu único, preender-se” de “não mais encontrar daqui em diante nele mesmo
seria, em.suma, visitado porsua própria aparição. O indivíduo se dá senão um espectro”(in sich “nichts als einen Spukfinde”). Uma vez
ele mesmoa ele mesmo seu “este é o meu corpo”. Sancho-Stimer e que Szeliga transfigura o objeto em verdade, ele não lida mais com
o Cristo parecem-se,aliás, como dois “seres de came” (“beleibte varejo, ele trata o objeto em geral, industrializa seu negócio, instala
Wesen"), observa Marx, que não se contenta em sublinhar incessan- a primeira “produção.de fantasmas poratacado” (Erste Gespenster-
temente a dimensão-cristã-hegeliana do empreendimento e, portanto, fabrikation im Grossen). Acredita nisso com que Stimero ameaça e
de ressaltar que toda fenomenologia é fenomenologia do espírito o acusa: de conceber a verdade como fantasma (die Wahrheit als
Gespenst). Mas é exatamente isto que Marx recrimina a são Max! É
é o que se obstinaa fazer reproduzindo essa encenação de posições e
1 Sobre a dm ãoestranhamente murmurada da morte, não somente de um
“sou moj as de um “estou morto”(je suis mort) na declaração do eu
sou (je suis), permito-me remeterraLa Voix er le Phénomêne, PUF,1967, pp. 1 CEA ideologia alemã, OU-C., principalmente, p. 181, pp. 489-490 e, sobretu-
98e segs. . . do, p. 261.
180 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 181

de oposições que desembocará em uma “série aritmética de aposi- dirigir ao princípio fenomenológico em geral. Duas conclusões,
ções” cujo “método dialético!”fingir-se-á admirar. Dissemetria portanto: 1. A.forma fenomenal do mundo mesmo é espectral. 2. O
vertiginosa: a técnica para ter visões, para ver fantasmas, é, na ego fenomenológico (Eu, Tu etc.) é um espectro. O phainesthai
verdade, uma técnica para sefazer verpelos fantasmas. Ofantasma, mesmo (antes de sua determinação como fenômeno ou como fantas-
sempre, isso olha para mim.2 “Método paraverespíritos: Transfor- ma [phantasma], portanto, como fantasma [phantôme]) é a possibili-
mar-se, primeiramente, em pobre diabo arquibesta, ou seja, posar dade mesma do espectro, ele porta a morte, ele dá a morte, ele
(sich setzen) de Szeliga, depoisfalar consigo mesmo, comosão Max trabalha no luto.!
fala'a esse mesmo Szeliga: contempla o mundo que Te cerca,e dize Consegiiência, concatenação, barulho de correntes, procissão sem
Tu-Mesmo se Tu não sentes por toda parte um espírito que Te olha! fim das formas fenomenais que desfilam, todas brancas e diáfanas,
(aus Allem Dich ein Geist anschaut!)”. * no coraçãoda noite. A-forma da aparição, o corpo fenomenal do
Segue meu olhar, parece dizero espectro com a autoridade imper- espírito, ei-la, a definição do espectro. O fantasma é o fenômeno do
turbável e a dureza de pedra de um Comendador. Sigamosesse olhar. espírito. Citemos Marx,que, citando Stimer, quer forçá-lo a confes-
Logo o perdemosdevista: desaparecido, o desaparecido, na galeria
dosespelhos em que se multiplica. Não há somente umespírito que
Te olha. Posto queele “está” em toda parte,esse espírito, posto que
1º Certamente, não se reduzirá nunca o conceito estreito e estrito do fantasma
vem de toda parte (aus Allem), ele prolifera a priori, dá lugar, ou dophantasma à generalidade dophainesthai. Preocupada com a experiên-
privando-os de lugar, a uma multidão de espectros para os quais não cia original da obsessão, uma fenomenologia do espectral deveria, em boa
se pode nem: mesmo designar um ponto de vista: elesinvadem todo lógica husserliana, recortar um campo muito determinado,e relativamente
o espaço. Número é o espectro. Mas para habitar aí mesmoonde não derivado, no interior de.uma disciplina regional (por exemplo, uma fenome-
se está, para obsidiar todos os lugares ao me: mo tempo, para ser nologia da imagem etc.). Sem contestar aqui a legitimidade, até mesmo a
atópico (louco 'e não localizável), não é preciso somente ver sob fecundidade de tal delimitação, sugerimos somente isto, sem poder ir mais
«adiante neste caminho:a possibilidade radical de toda espectralidade deveria
viseira, ver-sem ser visto de quem sefaz ver(eu, nós), é preciso falar.
ser buscada nadireção do que Husserl identifica, de modo tão surpreendente
E escutar vozes. O rumor espectral repercute então, invade tudo: o mas .tão forte, como um componente intencional mas não real do vivido
espírito do “sublime” e o espírito da “nostalgiá” passam todas as fenomenológico,a saber, o noema. Diferentemente dostrês outros termosdas
fronteiras. “Ouve-se, cita Marx, nos seres humanos as vozes de duas correlações (noese — noema, morphé-hylé) essa não-realidade (réelli-
milhões de espíritos quevos falam” (und nian hôrt aus den Menschen té), essa inclusão intencional mas não real do correlato noemático nãoestá
Millionen Geister reden). Um movimento de verruma inclemente nem “dentro” do mundo,nem ““dentro”da consciência. Mas ela é justamente
a condição de toda experiência, de toda objetividade, de toda fenomenalida-
desencadeia, então, uma série de citações para conduzir a duas
de, a saber, de toda correlação noético-noemática — originária ou modifica-
conclusões. Marx quer ao inesmotempoextraí-las do texto-testemu- da. Ela não é mais regional. Sem a inclusão não-real desse componente
nho de Stirner é utilizá-las contra ele. Como sempre, apodera-se das intencional(inclusão inclusiva e não inclusiva, portanto: o noemaestá incluí-
armas e volta-as contra aquele queacreditava ser seu único proprie- do sem fazer parte), não se poderia falar de nenhuma manifestação, de
tário. Sublinhamos aqui as objeções que poderíamosser tentadós a nenhuma fenomenalidade em geral (este ser-para-uma-consciência, esse apa-
recer aparecendo que não é nem a consciência nem o ente quelhe aparece).
Tal “irreelidade” (“irréelité”), a sua independência ao mesmo tempo com
relação ao mundo e com relação ao tecido real da subjetividade egológica,
1 O.C,p180. não vem a ser o lugar mesmo da aparição,a possibilidade essencial, geral,
2, Came-regarde — isso mediz respeito. (N.T) não regional do espectro? Não é também o que inscreve a possibilidade do
3 0C,p. 176. outro e do luto diretamente na fenomenalidade do fenômeno? *
182 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 183

sar que se identifica irresistivelmente com o adversário-testemunha Essa passagem terá esclarecido, entre outras coisas, a diferença
quecita para que compareça, o pobre Szeliga. Este não terá sobrevi- entre o espectro e o espírito. Trata-se de uma diferança. O espectro
vido ao esquecimento senão: sob umafigura inconsistente; ele não não é mais unicamente a aparição camal do espírito, seu corpo
fala mais senão por meio dessa voz indireta. Tudo se condensa, fenomenal, sua vida decaída e culpada, é também a espera impaciente
portanto, nessa locução alemã, es spukt, que as traduções francesas e nostálgica de uma redenção,a saber, ainda, de um espírito ([...] auf
são obrigadas a contomar. Seria preciso dizer: isso obsidia (ga han- Erlôsung harrt, nâmlich ein Geist[...]). O fantasma seria o espírito
te), isso retornanta (ça revenante), isso espectra (ça specire), aí diferido, a promessa ou o cálculo de um resgate. O que é.esta
dentro há fantasmas,isso cheira a morto-vivo — herdade,espiritis- diferança? Tudo ou nada. É preciso contar com ela, mas ela frustra
mo,ciência oculta, romance noir, obscurantismo, atmosfera de amea- todos os cálculos, juros ecapital. Transição entre dois momentos do
espírito, o fantasma não faz mais do que passar. Stimer leva ““a
ça-ou de iminência anônima.O sujeito que obsidia nãoé identificável,
sério”, observa Marx,citando-o, essa passagem dos “espíritos”, no
não se pode ver,localizar, deter forma alguma, não se pode decidir
singular (Sankt Max machtjetzt Ernst mit den “Geistern” welche die
entre a alucinação e a percepção, há somente deslocamentos, nos
“Kinder des Geistes sind”). Ele “se afigura”, pelo. menos, essa
sentimos olhados poraquilo que não vemos:
fantasmalidade de todas as coisas (Gespensterhaftigkeir Aller). A
toda essa progenitura, a todas gssas crianças cujo sexo nunca é
Atingindo essa fase [em que. isso conversa através de milhões de espíri-
tos, aus des Menschen Millionen reden), pode-se exclamar com Stirner:
determinado, nem por Max nem por Marx (mas tudo leva a pensar
“Sim, o mundo inteiro está, povoado de fantasmas (Ja, es spula in der que são irmãos do mesmoFilho, portanto, filhos domesmoPai, pela
Ganzen Welt)” Então, “émuito fácil ir mais adiante” (p.93), cexclamar: mediação do mesmo Espírito Santo), ele se contenta em dar nomes.
“Povoado somente? Não, o mundo mesmo é um espectro (Nur in ihr? Magia encantatória da onomástica e das appellations controlées.! Os
Nein, sie selber spula).”" (Diga sim,sim, ou não, não,isso basta. Todo o nomes são novos, os conceitos envelheceram, arrastam atrás de si
restante não serve para nada, é de umatransição lógica.) “São formas uma única idéia: a idéia de que os homens representam, precisamen,fe
fenomenais diversas que revestem um espírito, é um espectro(sie ist der sob novas denominações (appellations), conceitos gerais. Todo o
wandelnde Scheinleib eines Geistes, sie. ist ein Spuk).” Depois isso,
debate concerne aqui, evidentemente, ao estatuto da generalidade
“olha” sem temor ao redor de Ti ou fixa o horizonte, um mundo de
conceitual e do mau tratamento a que Stirner a submete, segundo
espectros Te cerca... Tu vês espíritos ([...) in die Núhe oder in die Ferne,
Dich umgibt eine gespenstige Welt [...] Du siehst Geister). [...] E então Marx, fantasmalizando-a.Esses “representantes”(Reprásentanten),
“Tu não T'espantarás”,-chegando como Tu chegaste ao cume da Szeli- quesão os homens,apresentam ou representam a generalidade dos
gualdade, em descobrir nesta ocasião que “Teu espírito, ele também,é conceitos “em estado negro” (im negerhafien Zustande). Pérfida,
um espectro que habita Teu corpo (Dein geist in Deinem Leibe spuk)”, bífida,a palavra “negra” resolve duas coisas de uma só vez. Por um
que Tu és Tu-Mesmo um fantasma (Du selbst ein Gespenst bist) “que lado, denuncia a confusãonaqual Stimer mantém o conceito, mais
espera com impaciência sua redenção, ou seja, um espírito”. Esta desco-
precisamente a apresentação do conceito, a maneira comoos concei-
berta Te permite agora ver “espíritos” e “fantasmas” em todos os
tos “entram em cena” na intuição: indeterminação do homogêneo,
- homeas,e assim visão dos espíritos terá “atingido a última meta a que
ela se tinha proposto” (pp. 46-47). Encontrar-se-á a base desse método no elemento sombrio de uma obscuridade noturna. O “estado negro”
emHegel:-História da filosofia, IN, pp. 124-125 (entre outras), mas ele é, portanto, também, algum augusto ascendente o havia dito muito
aí está expresso de modo muito mais correto.! recentemente,a noite em que todos os gatos são pardos. A insinuação

1 OC.p. 176. 1 Diz-se de umareserva especial devilhos: (NT)


184 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 185

de Mark emprega um estratagema clássico: quando se acusa alguém sacralidade ou de uma alteridade estrangeira (Fremden), eles não
de ser muito generoso com a generalidade e, por acréscimo, ocupado estão presentesuns para Os outros senão de modo fantasmático, como
demais, na penumbra; com o fantasma, tenta-se concluir pelo delito espectros (nur als gespenstige, Gespensterfiir einander vorhanden
do obscurantismo; até- mesmo do ocultismo.. Eis alguém, lança-se sind).: A humanidade não passa de uma coleção ou de uma série de
então, que continua a acreditar no fantasma: é preciso, de fato, que fantasmas. Aplicação dócil de uma lógica hegeliana? Recitação apli-
ele acredite nisto paradespendertanta energia para se desfazer dele! cada-da Fenomenologia do espírito? Marx o sugere e diverte-se em
Em nome das Luzes da Razão, erguemo-nos,então, para condenar fazer desfilar em procissão, justamente, em teoria, a parada desses
toda obscuridade na apresentação do conceito geral: “estado negro” espectros. Com umaironia de panfletante feliz e uma complacência
igual a obscurantismo mais ocultismo, mistério mais misticismo e um pouco nervosa, trabalhada no corpo, sem dúvida, por alguma
mistificação. A negrura nãoestá nunca longe do obscuro e do oculto. denegação compulsiva,ele finge contar nos dedos os espectros. Pois
O espiritualismo não é senão um espiritismo. Mas, por outro lado, haveria dez, como por acaso. Marx finge simplesmente contá-los,
“estado negro” poderia acenar para a submissão desses pseudocon- finge enumerar, pois sabe que não se pode aqui enumerá-los. Quer
ceitos que não têm autonomiaalguma. Nãose lhes reconhece nenhu- justamente fazer a demonstração do inumerável. Classificam-se es-
manecessidade intema. Pois eles trabalham unicamente como obje- ses simulacros de identidade segundo uma lógica que não deixa de
tos àserviço dos homens,para os homens: “Esses conceitos gerais lado nada que possa confundir o adversário. Pratica-se ao mesmo
começam porSe apresentar aqui em estado negro, ou seja, enquanto tempo o engaste dos conjuntose a serialização discreta e ordenada
espíritos objetivos, enquanto objetos para os:homens(als objektive, (em fila: der Reihe nach) das singularidades espectrais. Não há, em
den Menschen gegenstndiiche Geister), e, nessa fase, chamam-se suma, sem dúvida, senão um único fantasma, um fantasma dos
fantasmas ou —aparições! (und heissen aus dieser Stufe Gespenster fantasmas,e ele não é senão um conceito, nem mesmo um conceito,
oder-Spuk).” o obscuro, a “negra” apresentação de um conceito mais amplo e mais
Se o fantasma se dissemina por toda parte, a questão toma-se englobante do que todos os outros, até mesmo um nome, uma meto-
ansiosa: por onde começar a enumerar a progenitura? Ainda uma nímia se prestandoa todas as substituições (a parte pelo todo queela
questão de cabeça. O que pôrà testa entre todos esses que se põern extravasa, então; o efeito pela causa de que ele é causa, por sua vez
na cabeça? (Mensch, es spukt inDeinem Kopfe!). À testa da procissão etc.). Nominalismo, conceitualismo, realismo,tudoisso fica descon-
vem capital, a representação capital,o Filho mais velho: o Homem. certado pela Coisa ou Acoisa nomeada fantasma. A ordem taxionô-
O arquiespectro, aquele por quem isso começa e isso comanda, o mica toma-se muito fácil, ao mesmo tempo arbitrária e impossível:
fantasma capital (das Hauptgespenst), é primeiramente o Homém não se pode nem classificar nem contar o fantasma, ele é o número
mesmo, com um H maiúsculo (Das Haupigespenstist:natiirlich “der mesmo, ele é em número, inumerável como o número, não se pode
Mensch” selbst). Mas,se os homens não existem nessa lógica senão contar nele nem com ele. Só há um e há demais. Ele prolifera, não se
como os representantes (Reprisentanten) de uma generalidade abs- contam mais seus rebentosoujuros, seus suplementos ou mais-valias
trata, de uma essência, de um coriceito ou de um espírito, de uma (a mesma figura associava em grego, Platão o confirmaria, o rebento
dopaie os juros do capital, ou do Bem?). Pois o fantasmasingular, o
fantasma gerador dessa multiplicidade incalculável, o arquiespectro,
= oc, p. 181. Quando A ideologia alemã ressalta a origem hegeliana da
filosofia da história de Stimer,ela insiste em uma outra temática do negro,
esta para a qual “A negritude” (die Negerhaftigkeir) é “a erga (pp. 194 1 OC. p. 181.
esegs.). 2 Platão, República,555 e.
186 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 187

é um pai ou é o capital. Esses dois corposabstratos são todos dois identidade de um fantasma, este é justamente o “problema”(proble-
visíveis-invisíveis. Aparições sem pessoa. Isso não permite a especu- ma: ao mesmo tempo a questão,a tarefa, o programa e o broquel, a
lação, ao contrário. Nem o desejo de contar o que não se conta mais. armadura apotropaica: armadura contra armadura, um elmo pelo
O desejo aritmético aí. encontra, ao contrário, seu aguilhão, até outro fascinado, duelo sob viseira). Descrevo, portanto, esse senti-
mesmosua origem. E o desejo de classificar. E a compulsão hierar- mento: o de um Marx obsedado,obsidiado, possuído como Stirner, e
quizante que não impede, poroutro lado, de pôr os fantasmas em fila, talvez mais do queele, o que é ainda mais difícil de suportar. Ora,
horizontalmente, como tantos conceitos iguais; de direito, e prestes a Stimerfalou disso antes dele, e tão abundantemente, o que é ainda
moverem-se sobre um terrenoplano: Etiquetamo-los, costuramo-lhes mais intolerável. No sentido quea caçadá, às vezes, a essa palavra,
um número no corpo comose eles jogassem em um time de futebol, ele roubou ps espectros de Marx. Ele tentou todos os exorcismos,
numanoite de grandefinal, sob os projetores, do Fantasma nº 1 ao com que.elogiiência, com que júbilo, com que gozo! Ele amava tanto
Fantasma nº 10. Só faltaria um, pergunta-se, de fato, qual. ' as palavras do exorcismo! Pois essas palavras fazem sempre voltar,
Vamoscontar os espectros. Nos dedos de Marx. Mas não se pode elas convocam a aparição que conjuram. Vem.que eu te caço! Enten-
deixar de se interrogar, uma vez mais, na abertura dessa cena fabulo- des! Eute caço! Te persigo. Corroatrás deti para expulsar-te daqui.
sa. Por que umatal obstinação? Por que essa coça ao fantasma? Por Nãote deixarei mais. E o fantasma nãosolta sua presa, a saber, seu
queesse furor de Marx? Por queele molesta Stimer com umaironia caçador. Ele compreendeu há pouco que só o expulsam para caçá-lo.
tão irresistível? Tem-se a impressão,tanto a crítica parece insistente Círculo especular, caça-se para caçar, persegue-se,fica-se no encalço
e redundante, ao mesmo tempo resplandecente'e incômoda, que Marx de alguém somente para fazê-lo fugir, mas fazemo-lo fugir, distan-
poderia nunca mais parar de'arremessar seus dardose ferir mortal- ciamo-lo, expulsamo-lo para buscá-lo ainda e permanecer no seu
mente. Ele poderia nunca mais largar a sua vítima. Liga-se à ela de encalço. Expulsa-se alguém, põe-se-o porta afora, se o exclui ou
modoperturbador. Sua presa está cativa. A obstinação de um caçador recalca. Mas tudo isso é para caçá-lo, seduzi-lo,atingi-lo e, portanto,
consiste em dispor um chamariz animal, aqui Ocorpo vivo sem vida para guardá-lo ao seu alcance. Enviamo-lo pará longe para passar a
de um fantasma, para enganar sua presa. Bem que tenho meu senti- vida, e o mais tempo possível, a aproximar-se dele. O mais tempo é
mento sobre esse assunto (insisto bem, um sentimento, meu senti- O tempo dessa caçada a distância (comose diz caça a isso ou àquilo,
mento, e não tenho razão algumapara denegar queeste se projeta, para designar tanto a chamariz como a presa), a caçada a: distância
necessariamente, na cena que eu interpreto: minha: “tese”, minha não pode senão alucinar, diga desejar se quiser, ou diferir a proximi-
hipótese ou minha hipóstase,justamente,é a de que não é possível dade: chamariz e presa.
evitar essa precipitação, cada um lendo, pensando,agindo, escreven- Essa lógica eessa topologia da caçada paradoxal (cuja figura,
do com seus fantasmas, mesmo quando ele se responsabiliza pelos desde antes de Platão, terá atravessado toda a história dafilosofia,
fantasmas dooutro). Meu sentimento, portanto, é que Marx se infun- mais precisamente da inquirição ou da inquisição ontológica), não se
de medo, ele mesmo se obstina em alguém que-não está longe de deveria tratá-la como um ornamento retórico quandose lê o Manifes-
parecer-se com ele, a ponto de se enganar: um irmão, um: duplo, to do partido comunista: suas primeiras frases, já o vimos, associam
portanto, uma imagem diabólica. Uma espécie de fantasma de si imediatamente a figura da obsessão à da caçada. Trata-se da expe-
mesmo. Queele gostaria de afastar, distinguir: opor-se. Ele reconhe- riência mesma da conjuração. A conjuração está por todos os lados,
ceu alguém que, como ele, parece obsedado pelos espectros e pela no campodaspotências da velha Europa (que promovem uma “santa
figura do espectro e por seus nomes de consonância e referência caçada” ao espectro comunista), mas, também, no campo oposto
perturbadoras (Geist, Gespenst). Assediado, ele também, pelo mes- onde igualmente se caça. Aí, dois grandes caçadores, Marx e Stimer,
mo é por um outro, pelo mesmo que é a cada vez um outro, pois a são, em princípio, os conjurados de uma mesma conjuração. Mas o
188 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 189

primeiro acusa o outro detrair e servir ao adversário, a Europa cristã, Marx se diz um melhor expert (um melhor “erudito”, um melhor
em suma. O primeiro censura o segundo por ter sido o primeiro a “scholar” es fantasmas), ele diz, em suma, a são Max, recordemos:
colocar o espectro, ainda que fosse para expulsá-lo, no centro de seu O fantasma, isso me concerne mais que ti, entendo mais de espec-
sistema, de sua lógica e de sua retórica. Não é inadmissível? Ele o tros, se queres salvar a vida e conjurar o morto-vivo, não deves
quer mal, quer não querer a mesma coisa que o outro e não se trata proceder imediatamente, abstratamente, egologicamente,fantasmati-
de uma coisa:.0 fantasma. Como ele, e como todos aqueles que são camente, pelo verbo, pelo ato de linguagem de um phantasmagore-
ocupadospor espectros, ele só os acolhe para expulsá-los. Desde que nein, é preciso passar pela prova laboriosa do desvio, é preciso
há espectro, a hospitalidade e a exclusão vão de par. Só somos atravessar e trabalhar as estruturas práticas, as mediações sólidas da
ocupadospor fantasmas se estivermos ocupados em exorcizá-los, em efetividade real, “empírica”etc. De outro modo,só terás conjurado
pô-losporta afora. Eis o que Marx e Stirner têm em comum: nenhuma a fantasmalidade do corpo, não o corpo mesmo do fantasma, a saber,
outra coisa senão essa caçada ao fantasma, nada mais do que esse a realidade do Estado, do Imperador, da Nação, da Pátria etc. Mas,
nadasingular que permanece um fantasma. Entretanto,à diferença do evidentemente, durante esse desvio, será preciso aceitar levar em
espírito, por exemplo, ou da idéia ou do pensamento simplesmente, conta o corpo autônomo,relativamente autônomo,da realidade fan-
não o esqueçamos, esse nada é um-nada que toma corpo. E, como os tasmática.
dois adversários querem conjurar esse corpo, nada poderá suprimir Obstinando-se ele mesmo contra esse duplo apressado em ir até o
entreeles, quanto a isso, uma semelhança pordefinição perturbadora. fim e, portanto, tanto mais inconsistente, Marx arrisca-se sempre a
As críticas desconstrutoras que Marx dirigirá “construções histó- deixar-se agarrar pelo seu próprio fantasma: um espectro ao mesmo
ricas” e às “montagens” stimerianas arriscam-se a voltar-lhe em tempo especulativo e especular. Esse risco O enerva,e é preciso que
boomerang. Daí a obstinação sem fim. Sem fim porque nele mesmo multiplique jnfinitamente as marcas, as marcas distintivas e as mar-
se sustenta. Ele quer classificar, só pode caçar. A obstinação se cas polêmicas. Jamais porá um fim a isso, masé para ir até o fim,é
obstina, nós o sugeríamos, contra uma espécie de duplo ou irmão. para acertar suas contas queele faz contas.
Todosdois amam vida, o que está certo, mas nem sempre é evidente Desconta os fantasmas do outro. Há dez. Enfim, pára-se em dez.
para os seres finitos: sabem que a vida não vem sem a morte, e que a É apenas por que conta nos dedos? Operação manual tendo em vista
morte não está no além, fora da vida, exceto se se inscreve o além um manual? Mas quefaz aqui, como por “sob a mão”,! diria talvez
dentro, na essência do vivo. Todos dois partilham, aparentemente Patrice Loraux, a mão de Marx?? Por que dez?
como vocês e eu, uma preferência incondicional pelo corpo vivo.
Mas,.por isso mesmo, empreendem uma guerra sem fim contra tudo
o queo representa, o que não é ele, mas que volta ele: a prótese e a
1, Aqui, “en sous main” — em segredo, escondido (século XVI), primeiramen-
delegação,a repetição,a diferança. O eu vivo é auto-imune,eles não te par-dessous la main (século XV). (N.T.)
querem saber disso. Para proteger sua vida, para se constituir como 2. Comotentamosaquire-afirmar a herança de Marx, ajustando-a ou amoldan-
único eu vivo, para se referir, como o mesmo,ele é necessariamente do-a a um pensamento do espectral que leve em conta, especialmente na
levado a aco o outro no interior (a diferança do dispositivo apreensão política da coisa pública e de seu espaço (mais ou menos novo),
técnico, a iterabilidade, a não-unicidade, a prótese, a imagem de uma irredutível viriualidade (espaço virtual, objeto virtual, imagem desínte-
se, simulacro espectral, diferança tele-tecnológica, idealiterabilidade, traço
síntese, o simulacro, e isso começa com a linguagem, antes dele,
além da presença e da ausênciaetc.), devemosatribuir umagrande importân-
tantas figuras da morte),ele deve, portanto,dirigir ao mesmo tempo cia ao que Patrice Loraux diz, numa fórmula muito feliz, do “escrito de
por ele mesmo & contra ele mesmo as defesas imunitárias aparente- Marx” como “imagem síntese” e “objeto virtual”. Trata-se de um discurso
mente destinadas ao não-eu; ao inimigo, ao oponente, ao adversário. ” marxista que “não tem acesso por siao limiar de sualegibilidade”. O escrito
190 JACQUES DERRIDA * Espectros de Marx 191

Em toda À ideologia alemã, poder-se-ia ler, não o faremos aqui, a Gespenst Nr. 1 (Fantasma nº 1): o ser supremo (das hôchste
glosa inexaurível dessa mesa dos fantasmas. Pois pode-se considerá- Wesen), Deus. Não se perde um minuto falando dessa “incrível
la assim: como uma mesa, para uma Tábua da lei em dez tempos, o crença”, observa Marx. Nem Stimner nem Marx se detêm,aliás, na
espectro de um decálogo e um decálogo dos espectros. A nova mesa essência do crer, aqui da fé por excelência, que não pode jamais crer
senão noinacreditável, e não seria o queela é sem isso,para além de
se apresenta ainda como um quadro, uma tabularização irônica, a
taxinomia fictícia ou a estatística das aparições. Um quadro das toda “prova da existência de Deus”.
categorias do objeto ou do ente como espectro em geral. E, no
entanto, apesar da estática que convém à exposição de um quadro, Gespenst Nr. 2: o ser ou a essência (Das Wesen) [ Aparentemente,
se está descendo: do mais alto, das hôchste Wesen, ao menosalto, das
este não conhece o repouso de nenhumaestabilidade. Esse quadro
Wesen sem mais. Velho problema, desde Aristóteles, pelo menos.
dos espíritos se move à imagem de uma mesa movediça. Ela se põe
Hierarquia descendente, da teologia à ontologia. Será isto tão sim-
a dançar debaixo de nossos olhos, como uma certa “mesa” do
ples? Wesen continua sendoo conceito comum, vamos vê-lo,e o fio
Capital, vamos vê-la mexer daqui a pouco, quando seu devir-merca-
condutor dessa classificação que permanece,portanto, essencialmen-
doria abre a dimensão do segredo, da mística e do fetichismo. Pois
te ontológica, na verdade onto-teológica!,]
nesse quadro das aparições, nesse novo quadro cujas categorias
capitais se alçam em cabeças de acusação, os conceitos não se
distinguem. Eles não se acrescentam um ao Outro, eles se suplemen- 1 Seria preciso evidentemente, tarefa necessária e apaixonante.ler Stirner para
tam para passar alternadamente um dentro do outro, cada um figuran- além dostrechos que a Ideologia alemã recorta (amplamente. é verdade) e
do um circuito do outro. Não podemos ler aqui A ideologia alemã, submete, o mais das vezes, à torção da sátira. Seria preciso também recons-
que não é, no fundo, senão a exposição desenvolvida dessa mesa. truir atravessandoo texto de Stimer. uma tradição ou uma genealogia dessa
Sem mesmocitar, para aí remetendo leitor curioso, as zombarias de temática do fantasma noséculo XIX, ao menos, de Kant(não somente aquele
que interessou a Swedenborg, mas o pensador da imaginação transcendental
estilo exclamativo com que Marx acompanha cada uma das dez
e. portanto,de todos osterceiros conceituais quea fantástica introduz entre o
aparições, limitaremo-nos a algumas observações sobre esta ou aque- sensível e o inteligível. tantos lugares propícios à espectralidade) até Scho-
la marcadistintiva. Ao passo que na “pura história de espíritos (reine penhauer do Ensaio sobre osfantasmas (Versuch iiber Geistersehen und was
Geistergeschichte)”, Marx havia contado “dez teses”, eis que,algu- damit zusammenhiingt, 1851). a Nietzsche — que conhecia indiretamente os
mas páginas mais adiante, na “impura história dos espíritos”, ele faz textos de Stirner e aconselhou sua leitura a Baumgartner em 1875. ou a
Mallarmé — cuja obra vela junto a um “fantasma branco como umapágina
a conta! de dez aparições: ainda não escrita” (Mimique). Tal reconstituição excedendo aqui os limites
de nosso propósito, citemos. ao menos umavez, algumas passagens do Único
e sua propriedade: “Os Românticos sentiram de fato as consegiências da
não permanece por sob “a mão de Marx”, ao alcance de seu corpo que diminuição da fé em Deus que representava o abandono da crença nos
“desfruta retê-lo” (mas também, diríamos nós, não retê-lo, e tudo começa espíritos e nos fantasmas e buscaram remediar suas fatais consequências, não
com esse outro desfrutar, o mesmo, no entanto. Louraux esclarece então: somente ressuscitando o mundo fabuloso, mas sobretudo “abrindo as portas
“Mas, para nós, os editores fabricam um objeto completamente diferente: o de um mundosuperior” com seus sonâmbulos, videntes de Prévorst etc. Os
texto de Marx, produto de uma manipulação sofística que deve fornecer ao bonscrentes e os Pais da Igreja não imaginavam que destruir a crença nos
leitor uma imagem de síntese do escrito de Marx, pois esse último não é fantasmasera também retirar sua base à religiãoe deixá-la planar, despregada
nunca senão objeto virtual, e ninguém o tem na mão”. (O.C,, pp. 21-22. de seu solo nutriente. Quem não acredita mais em fantasmas nada mais tem
Grifo meu). a fazer senãodilatar com conseguúência sua descrença para se aperceber que
1. Nooriginal, “il table sur dix revenants”. (N.T.) não se esconde nenhum ser particular por detrás das coisas. nenhum fantasma
192 JACQUES DERRIDA
Espectros de Marx 193

Gespenst Nr. 3: a vaidade do mundo. Nadaa dizer, observa Marx,


Gespenst Nr. 7: o homem-Deus (der Gottmensch). No fundo,
senão queé para passar ao quese segue, para encadear “facilmente”,
nessa hierarquia descendente, eis o momento de conversão ou de
“levemente”, leicht, com o que segue. E que é de mais leve, com
reversibilidade (descida e ascensão). Trata-se também da categoria
efeito, de mais vão, justamente, de mais inexistente (aí, mais de
do terceiro, o meio ou a mediação para a síntese do idealismo
Wesen) que a sombra e a vaidade de um fantasma? A vaidade do
especulativo, a charneira dessa onto-teologia como antropo-teologia
mundo,portanto,justo para encadear com o que segue, a saber:
do fantasma. O homem-Deus não desempenha o mesmo papel na
Fenomenologia do espírito? Essa junção articulatória situa também
Gespenst Nr. 4: os seres bons e maus (die guten und bôsen Wesen).
o lugar do devir-came, o momento privilegiado da encarnação ou da
Das Wesenestá de volta mas, observa Marx, Max nãodiz nada dele,
incorporação espectral. Nada de surpreendente que Marx, na conti-
mesmo se há tantoa dizer. É justamente para encadear com o que
segue, a saber:
nuação de Max, dedique-lhe o comentário mais extenso, mais obsti-
nado, justamente o mais cativo. O momentocrístico,e nele o momen-
to eucarístico, não é a hipérbole da obstinação, precisamente? Se todo
Gespenst Nr. 5: 0 ser e seu reino (das Wesen und sein Reich). É a
primeira determinação do ser. Ele possui um império, daí sua meta- espectro,já o vimos bastante, distingue-se do espírito por uma incor-
morfose (Verwandlung) numa pluralidade deseres. Eis aí o primeiro poração, pela forma fenomenal de uma quase encamação,o Cristo é
nascimento doplural, o nascimento mesmo,a origem do número e da então o mais espectral dos espectros. Ele, nos diz alguma coisa da
progenitura. Evidentemente, a palavra “reino” transfere já a tá- espectralidade absoluta. Stimer mesmoestaria pronto a reconhecer-
bua dos mandamentos ou o quadro das categorias do ser em terra lhe a singularidade desse privilégio transcendental. Sem esta encar-
evangélica. nação,teria o conceito de encarnação o mínimo sentido, a mínima
chance histórica? Jesus é, ao mesmo tempo, o maior e o mais
Gespenst Nr. 6: os seres, portanto (die Wesen): passou-se para O “incompreensível dos fantasmas” (unbegreiflichste Gespenst). Marx
plural, para a proliferação da progenitura, de 5 para 6, por metamor- insiste nisso:
fose e geração espontânea (“dass es “das Wesen' ist, worauf es sich
Stirner pode dizer dele que ele “teve um corpo” (dass er “beleibr”
fiugs in Gespenst Nr. 6: “die Wesen" verwandelt.”)
gewesen ist). Se são Max não acredita no Cristo, ao menos acredita em
seu “corpo real” (an seinen “wirklichen Leib”). Segundo Stirner, o
Cristo introduziu bastantes infortúnios na história e nosso santo senti-
ou — o que dá no mesmo,tomandoa palavra em sua acepção ingênua — mental conta-nos, com lágrimas nos olhos, “o martírio quese infligiram
nenhum “espírito”.” (L'Unique et sa Propriété et autres récits, tr. P. Gallis- os mais enérgicoscristãos para compreendê-lo”. — Sim! “Jamais fantas-
saire e A. Sauge, Bibliothêque |" Age d"Homme, 1972, p. 107). E sob título ma antes dele havia torturado tanto as almas...!
“O espectro”: “Com os fantasmas, Nós entramos no reino dos espíritos, dos
seres. O que obsidia o universo,nele perseguindo suas secretas e inapreensí-
veis atividades, é o espectro misterioso que Nós chamamos de Ser supremo.
1 OC, p. 182. Marx recusa, portanto, as miragens da onto-teologiacristã de
Durante séculos, os homens se deram a tarefa de conhecer-lhe o cerne, de
são Max que já recusava as miragens da onto-teologia cristã. Todos dois
concebê-lo, de descobrir ali a realidade (de provar a “existência de Deus");
obstinam-se nos fantasmas, todos dois caçam,e são os mesmos, salvo que a
foi neste horrendo, impossívele interminável trabalho de Danaides que eles
obstinação de Marx caça (os do) outro obstinado, são Max. Mas todos dois
se obstinaram, querendo mudar um espectro em não-espectro,o irreal em
entendem expulsar o espectro onto-teológico e trinitário em nome de uma
real, o espírito em umapessoatotal, de carnee osso. Foi deste modoqueeles
ontologia mais exigente que não somente não confunde mais a aparição com
buscaram a “coisa em si”, por detrás do mundo existente, por detrás da coisa
O ente como corpovivo, em carnec osso, mas não o confunde sobretudo com
a não-coisa”(p. 112).
este arquifantasma em carne e osso que é, comoo explica tão bem são Max,
194 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 195

É fácil portanto passar dele ao “ser horrível” (zum grauenhaften Daí as contradições que tornam o humanismo insustentável. Ve-
Wesen): mospungir aquia lógica deste medo de si que orienta nosso propósi-
to. A ipseidadedosiaíse constitui. A ela ninguém terá escapado, nem
Gespenst Nr. 8: o homem. Estamos aqui o mais próximo de nós Marx, nem os marxistas, nem,é claro, seus inimigos mortais, todos
mesmos, mas também do mais terrificante. É da essência do fantasma aqueles que querem defender a propriedadee a integridade de seu
em geral infundir medo. É verdade, sobretudo do homem, do mais interior: O corpo próprio, o nome próprio, a nação, o sangue, o
“unheimlich” de todosos fantasmas, palavra de Stimer queas tradu- território e os “direitos” que aí se fundam. Marx expõea suafatali-
ções francesas ignoram o mais das vezes, e que nos importa aqui em dade, mas no outro, justamente, exposto ao oponente,defronte, em
subido grau. Trata-se da palavra da obsessão irredutível. O não-fami- são Max.! Ela se empenhana dobra fenomenológica, parece sugerir
liar torna-se o mais inquietante. O estar-em-casa (chez-soi) econômico Marx,nessa diferença, decisiva e inconsistente ao memo tempo, que
ou ecológico do oikos, o próximo, o familiar, o doméstico, até mesmo separa o ser do aparecer. O aparecer do ser enquanto tal, enquanto
o nacional (Aeimlich) infunde medoa si mesmo. Sente-se ocupado, no fenomenalidade de seu fenômeno,é e não é o ser que aparece,eis a
próprio segredo (Geheimnis) de seu dentro, pelo mais estrangeiro, o dobra do “unheimlich”:
longínquo, o ameaçador. Voltaremosa isso para concluir. Se o Cristo,
esse espectro absoluto, infunde medo e causa mal, o homem que se Fantasmanº 8, o homem. Aqui, o “horror” não larga mais nosso valente
tomaesse Gotmensch (e o homem não advém a si mesmo,aqui, senão autor... “ele tem medo de si mesmo” (er erschrickt vor sich selbst):;
em cada ser humano, vê “um espectro ternificante"” (einen “grausigen
nesse devir), eis que ele ainda infunde mais medo à medida que se Spuk"), um “espectro sinistro” (einen “unheimlichen Spuk”) e que é
aproxima de nós. É ainda mais espectral que o espectral. O homem se
faz medo. Torna-se o medoque inspira.!
resolver a contradição das duas naturezas, a divina e a humana,isto é, a
fantástica e a sensível, em suprimir esse espectro muito estranho, essa
o Cristo, o Deus feito Homem segundo a encarnação. Marx e são Max monstruosa quimera! Nunca um fantasma havia criado mais angústia. [...] Foi
parecem questionar, outros diriam bem depressa “desconstruir”. uma feno- somente com o Cristo que apareceu esta verdade queo espírito ou o fantasma
menologia onto-teológica e cristã; mas é na medida em que ela não é propriamente dito é o homem [...). Desde então, o homem não se assusta
ocupada, dizem todos dois, e portanto habitada, obsidiada senão por apari- mais, a bem dizer, com espíritos quelhe são exteriores, mas consigo mesmo:
ções. Sua “desconstrução” limita-se ao ponto em que, a essa onto-teologia cle só tem medo de si mesmo. Em seu seio reside o espírito do pecado, já
espectral, eles opõem todos dois — cada um à sua maneira, mas quaisquer então o mais fugidio pensamento — que é também um espírito — talvez um
que sejam as diferenças entre eles —,o princípio hiperfenomenológico da diabo etc. O fantasma tomou corpo, o Deus se fez homem, mas o homem
presença em came c osso da pessoa viva, do ente mesmo, de sua presença tornou-se o horrível espectro, de quem cle busca conhecer e aprofundar a
efetiva e não fantasmática. de sua presença de carnee osso. natureza, queele se esforça em cativar, em realizar, em exprimir: o homem
O programadesse diferendoé interessante em si, decerto, masnos fornece é espírito.” (O.C., pp. 112-113.).
também um modelo virtual para tantos debates em andamento hoje. E 1 Na conclusão de um livro recém-publicado, La pénultiême est morte. Spec-
importa-nos também essetítulo. trographies de la modernité (Champ Vallon, 1993), Jean-Michel Rabaté
. CitemosaindaStirner, além dotrechocitado por Marx: assinala com vigor que “Marx e Engels fingem não compreender o alcance
“A necessidade de tornar o espectro apreensível vu derealizar o non-sens crítico das análises de Stimer”(p. 223). Ao mesmo tempo em quese defende
[em francês no texto] fez nascer umfantasma em carnee osso, um fantasma de querer assim “reabilitar” são Max, Rabaté reinscreve notavelmente L'U-
ou um espírito provido de um corpo real, um fantasma corporal. Quantas nique et sa Propriété numa poderosalinhagem — espectográfica, portanto
dificuldades tiveram os espíritos mais fortes, os mais geniais dos cristãos, — quea posteridade anarquista dolivro está longede esgotar (de Sbakespca-
para conceber esta aparição fantasmática, sem nunca conseguir, contudo, re a Sade, Mailarmé, Joyce, Beckett).
196 JACQUES DERRI-DA
Espectros de Marx 197

Obsidiado (in dem es “umgehr") [é a palavra do Manifesto]. Ele se sente


inteiramente pouco à vontade. A dualidade (Zwiespalr) entre a aparência dos espectros(in der Klasse Gespenster)”. Seria possível pôr tudo à
fenomenal (Erscheinung) e o ser (Wesen) o impedede dormir. Tal Nabal, granel aí, e Stimer não se priva disso: O Espírito Santo, a verdade,.o
esposo de Abigail, sobre quem sediz, na Escritura, que seu ser é separado direito, e sobretudo, sobretudo, a “boa causa”, sob todas as suas
de sua aparência... formas (die gute Sache, de que Marx, como lúcido analista dos
tempos modernos, como sempre, acusa Stimer de não poder nunca
Tudo se dá sempre o mais próximo à cabeçae ao chefe. Esse medo esquecer, comoseele fizesse também,já ele, da reta consciência um
de si poderia ter conduzido o escritor ao suicídio. O escritor, o ofício e do bom direito uma técnica de promoção pessoal.)
homem-escritorteria podido expulsar a si mesmo: são Max esboça o O erro exemplar de Stimer,ele deveser julgado porisso, julgado
gesto de se estourar os miolos(ainda no léxico da caçada: eine Kugel pelo exemplo,seria o vício da especulação moderna. A especulação
durch den Kopfjagt), uma vez que a perseguição é interior e que o especula sempre sobre o espectro,ela especula no espelho do que ela
outro o faz sofrer na cabeça. O que salva este homem do homem é produz, sobre o espetáculo que ela se dá e se dá a ver. Ela acredita
ainda um outro fantasma. Ele recorda os Antigos que “não faziam nisso queela crê ver: nas representações. Todos os “fantasmas” que
caso algum disso na pessoa dos escravos”. Ele pensa, então, no
passamos em revista (die wir Revue passieren liessen) eram re-
espírito do povo em todo lugar ondeeste se encarna. Isso o conduz a
presentações (Vorstellungen). Nesse sentido a especulação é sempre
deduzir (Dies bringt ihn auf) o fantasma seguinte. . teóricae teológica. Para explicar a origem dessa “história dos fantas-
mas”, Marx remete a Feuerbach e à sua distinção entre a teologia
. Gespenst Nr. 9: o espírito do povo (Volksgeist). Haveria muito a vulgar que crê em fantasmas da imaginação sensível e a teologia
dizer, hoje, sobre essa dedução — não somente sobre o retorno dos especulativa que crê em fantasmas da abstração não sensível. Mas a
nacional-populismos, mas sobre o que sempre os relacionou, na teologia em geral é “crença nos fantasmas” (Gespensterglaube).
história fundadora queeles se narram, a dos aparecimentos de apari- Poder-se-ia dizer crença em geral, a crença nessa aliança do sensível
ções. O fundador do espírito de um povo, poder-se-ia mostrá-lo, tem e do insensível em que se cruzam as duas teologias, a vulgar e a
sempre O aspecto da aparição-sobrevivente. Ela obedece sempre à
especulativa. Dosensível insensível voltaremosa falar mais adiante,
temporalidade de seu retorno. Sua reaparição é esperada, mas obscu-
quando do aparecimento de uma outra mesa: nem a Tábua dos dez
ramente temida. Marx fala com tanta lucidez do nacionalismo nou-
mandamentos nem o quadro dasdez categorias, mas uma mesa de
tros lugares, mas aqui ele permanece muito lacônico. Observa so-
madeira, desta vez, uma mesa com quatro pés, uma mesa “cabeça
mente a transição necessária para a metamorfose final:
dura”!: é o nascimento, muito simplesmente, do valor de troca €
nunca se terá falado senão de cabeças, de quadros e de mesas e de
Gespenst Nr. 10: o Todo. Max terá sido bem-sucedido em trans- mesas armadas dos pés à cabeça. E a origem do valor de troca,
mutar tudo, o Todo mesmo, retornando (“Alles” in einen Spuk zu trata-se do nascimento do capital. Da mística e do segredo.
verwandeln). Então deve-se parar com as contas. E os contos. E à Em suadenúncia comum,no que esta tem de maiscrítico e de mais
narrativa e a fábula, e o romance noir. E o ocultismo numerológico
ontológico, ao mesmo tempo, Marx e são Max herdam também a
com ares de Aujklirung. Deve-se confessar que, imediatamente,
tradição platônica, mais precisamente, aquela que associa estreita-
“toda enumeração finalmente cessa”(alles Zéhlen aujnôrt), uma vez
mente a imagem ao espectro, e o ídolo ao fantasma, ao phantasma
que tudo vem Obsidiar tudo, o todo está no tudo, ou seja, “na classe
em sua dimensão fantasmática ou errante de morto-vivo. Os “phan-

1. L'Idéologie Allemande, O.C,, p. 182.


1 À latête de bois. (N.T)
198 JACQUES DERRI'DA
Espectros de Marx , 199

tasmata”, que o Phédon (81d) ou o Timeu (712) não separam dos retórica ou na pedagogia de Marx, trata-se, por uma parte, ao que
“eidôla”, são as figuras das almas mortas, são as almas dos mortos: parece, do caráter irredutivelmente específico do espectro. Este não
. quandoelas não ficam largadas ao lado dos monumentos fúnebres e se deixa derivar a partir de uma psicologia da imaginação ou uma
sepulturas (Fedon), elas obsidiam as almas de certos vivos, noite e psicanálise do imaginário, não mais do que a partir de uma onto ou
dia (Timeu). Estreito e recorrente, esse acoplamento não se deixa me-ontologia, mesmo se Marx parece inscrevê-la em uma genealogia
desfazer. Ele permite pensar que a sobrevivência e o retomo do socioeconômica ou em uma filosofia do trabalho ou da produção:
morto-vivo pertencem à essência do ídolo. À sua essência inessen- todas essas deduções supõem a possibilidade da sobrevida espectral.
cial, evidentemente. Ao que dá um corpo à idéia, mas um corpo de Trata-se por outra parte, e com isso, da irredutibilidade do modelo
mínimo teor ontológico, um corpo menosreal do quea idéia mesma. religioso na construção do conceito de ideologia. Quando Marx
O ídolo só aparece ou se deixa determinar sobre fundo de morte. evoca os espectros, na hora de analisar, por exemplo, o caráter
Hipótese sem originalidade, sem dúvida, mas.cuja consegiência se místico ou o devir-fetiche da mercadoria, nós não deveríamos, pois,
mede pela constância de uma imensa tradição, é preciso dizer do veraí somente efeitos de retórica, tomneios contingentes ou simples-
patrimônio filosófico tal comoeste se lega, através das mutaçõesas mente próprios para convencer, impressionando uma imaginação.
mais parricidas, de Platão a são Max, a Marx e para além.A linhagem Se, aliás, fosse o caso, seria preciso ainda explicar sua eficiência
desse patrimônio é trabalhada, mas não é, de modo nenhum, inter- quantoa isso. Seria preciso ainda levar em conta a força invencível e
rompida pela questão da idéia, a questão do conceito e do conceito o poderoriginal do efeito de “fantasma”. Seria preciso dizer por que
de conceito; esta mesma quealoja toda a problemática de A ideologia isso causa medo ou impressiona a imaginação, o que é o medo, a
alemã (nominalismo, conceitualismo,realismo, mas também retórica imaginação, seu sujeito, a vida de seu sujeito etc. t
e lógica, sentidoliteral, sentido próprio,sentido figuradoetc.). E essa Situemo-nos, por um momento, neste lugar em queos valores do
questão seria uma questão de vida e morte, a questão de a-vida-a- valor (entre o valorde uso e o valor detroca), do segredo, do místico,
morte, antes de ser uma questão do ser, da essência ou da existência. do enigma,do fetiche e do ideológico formam sua cadeia no texto de
Ela abriria para uma dimensão do sobre-viver ou da sobrevivência Marx, singularmente em O capital, e tentemos indicar, ao menos,
irredutível ao ser e a qualquer oposição do viver e do morrer. aindaqueseja um índice, o movimento espectral desta cadeia. Ele é
encenadoaí, justamente, onde se trata de formar o conceito do que a
O queé a ideologia? Pode-se traduzir,referindo-se a ela, a lógica cena, toda cena, subtrai aos nossos olhos cegos, no momento de
do sobreviver que acabamos de entrever com referência ao patrimô- abri-los. Ora esse conceito se constrói, de fato, na referência a alguma
nio do ídolo,e qual seria o interesse de semelhante operação? obsessão.
O tratamento do fantasmático, em A ideologia alemã, anuncia ou Grande momento, no começo do Capital, lembramo-nos: Marx se
confirma o privilégio absoluto que Marx concede sempre religião, pergunta, em suma, como descrever em seu surgimento O caráter
à ideologia como religião, mística ou teologia, em sua análise da místico da mercadoria, a mistificação da coisa mesma — e a forma-
ideologia em geral. Se 0 fantasmadá sua forma, isto é, seu corpo, ao
dinheiro de que a forma simples da mercadoria é o “germe”. Quer
ideologema, trata-se do próprio do religioso, segundo Marx, se é
analisar o equivalente cujo enigmae o caráter místico só impressio-
possível dizer, que se veio a perder apagando a semântica ou o léxico
nam o economista burguês sob a forma acabada da moeda, do ouro
do espectro, como o fazem fregiientemente as traduções, em valores
ou dodinheiro. Este é o momento em que Marx tenciona demonstrar
quese julgam tanto ou quanto equivalentes (fantasmagoria, alucina-
que esse caráter místico não deve nada a um valor de uso.
tório, fantástico, imaginário etc.). O caráter místico do fetiche, tal
É poracaso queele ilustra o princípio de sua explicação fazendo
como este marca a experiência do religioso, É primeiramente um
se mover uma mesa? Ou antes, ressaltando o aparecimento de uma
caráter fantasmal. Muito mais do que uma facilidade de exposição na
mesa movediça?
200 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 201

Conhece-se bem, conhece-se demais essa mesa, na abertura do Marx declara que a coisa em questão,a saber, a mercadoria, isto não
capítulosobre o caráter fetiche da mercadoriae seu segredo (Geheim- é tão simples (advertência que fará rir, até o final dos séculos, todos
nis!). Está gasta, esta mesa,foi explorada, sobreexplorada ou dispos- os imbecis que não acreditam nunca em nadadisso, evidentemente,
ta, fora de uso, nosantiquários ou leilões. A coisa é ao mesmo tempo segurosqueestão de ver o que se vê, tudo o que se vê, somente o que
.ordenadae desordenada. Desordenada, pois logo vamossurpreender- se vê). é mesmo muito complicado, a mercadoria; é embrulhado,
nos com isto, a tal mesa é também um pouco louca, fantástica, embaraçante, paralisante, aporético,talvez indecidível (ein sehr ver-
perturbada, out ofjoint. Não se sabe mais, sob a pátina hermenêutica, tracktes Ding). É tão desanimador, uma coisa-mercadoria, que é
para O que serve e O que vale essa peça de madeira cujo exemplo preciso aproximar-se dela com uma espécie de sutileza “metafísica”
surge de repente. e argúcias “teológicas”. Precisamente para analisar o metafísico e o
O quevaisurgir, será um simples exemplo? Sim, mas o exemplo teológico que construíam o bom senso fenomenológico da coisa
de uma coisa, a mesa, que parecesurgir,ela, dela mesmae se erguer, mesma, da mercadoria imediatamentevisível, em camee osso: como
de repente, sobre suas patas. É o exemplo de uma aparição. isto que ela é “A primeira vista” (auf den ersten Blick). Esse bom
Corramos, portanto, depois detantas glosas, o risco de uma leitura senso fenomenológico vale,talvez,pelo valor de uso. Talvez mesmo
ingênua. Tentemos ver o que se passa. Mas não é imediatamente esteja destinado a valer somente pelo valor de uso, como se a
impossível? Marx nos previne disso, desde as primeiras palavras. correlação desses conceitos satisfizesse a esta função: a fenomenolo-
Trata-se de setransportar logo, de uma só vez,para além da primeira gia comodiscursodo valor de uso para não pensar o mercado ou com
olhadae, portanto, de ver aí onde essa olhadaé cega, de arregalar os intenção de tornar-se cega ao valor de troca. Talvez. É enquanto tal
olhos aí ondenão se vê o quese vê, É preciso veristo que,à primeira queo bom senso fenomenológico ou a fenomenologia da percepção
vista, não se deixa ver. É o caso da invisibilidade mesmo.Pois o que (operando também em Marx quandoele acredita poder falar de um
à primeiravista perde é precisamente o invisível. O defeito, o engano puro e simples valor de uso) pretendem servir às Luzes, uma vez que
da primeira vista, é ver e não perceber O invisível. Se não nos o valorde uso não tem em si nada de “misterioso” (nichts Mysterid-
rendermosa essa invisibilidade, então a mesa-mercadoria, imediata- ses an ihr). Ao se limitar ao valor de uso,as propriedades (Eigens-
mente percebida,fica sendo o que ela não é, uma simples coisa que chaften) da coisa, posto que é de propriedade quese vai tratar, são
julgamos trivial e por demais evidente. Essa coisa trivial parece sempre muito humanas, no fundo, tranquilizadoras por essa razão
mesma. Estas se referem sempre ao próprio do homem, às proprieda-
compreender-se por ela mesma (ein selbstverstêndliches, triviales
des do homem: ou bem satisfazem às necessidades dos homens, e
Ding): a coisa mesma na fenomenalidade de seu fenômeno, uma
esse vem ser justamente seu valor de uso, ou bem são o produto de
mesa de madeira simplesmente. Para nos preparar para ver essa
invisibilidade, para ver sem ver, portanto, para pensar 0 corpo sem uma atividade humana queparece destiná-las a isso.
corpo dessa invisível visibilidade — o fantasma já se anuncia —, Por exemplo — eis aí a mesa que entra em cena — a madeira
continua madeira quando com ela se faz uma mesa:trata-se, então,
de uma coisa prosaica que se oferece aos sentidos (ein ordiniires
sinnliches Ding). Trata-se de uma outra coisa quando se torna mer-
1 O capital, Livro 1, cap. I, 4. Para este Primeiro Livro, nós nos referimos,
cadoria, quandoa cortina de um mercado se abre e a mesa faz o papel
daqui em diante, à tradução publicada sob a responsabilidade de Jean-Pierre
deator e de personagem, ao mesmo tempo; quando a mesa-mercado-
Lefebvre, e 20 texto estabelecido por umacentena de autores. Nósa citare-
mosna edição “Quadrige”, PUF, 1993: [Para a edição brasileira, referiremo- ria, diz Marx, entra em cena (auftritt), começa a andar e a se fazer
nos à Edição Bertrand Brasil, tradução de Reginaldo Sant" Anna, 14º edição, valer como um valor-mercadoria. Encenação:a coisa sensível ordi-
1994; algumas vezes, contudo, para acompanhar mais de pertoa citação, à nária se transfigura (verwandelt sich), toma-se alguém, toma figura.
edição francesa.) Essa densidade lígnea e obstinada metamorfoseia-se em coisa sobre-
202 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 203

natural, em coisa sensível insensível, sensível mas insensível, sensi- outras mesas de nosso patrimônio; elas são incontáveis,nafilosofia,
velmente supra-sensível (verwandelt er sich in ein sinnlich iibersinn- naretórica, na poética, de Platão a Heidegger, de Kant a Ponge e a
liches Ding). O esquema fantasmal parece, desde então, indispensá- tantos outros. Em todos, a mesma cerimônia: uma sessão da mesa.
vel. A mercadoria é uma “coisa” sem fenômeno, umacoisa em fuga Marx, portanto, acaba justamente de anunciar a sua entrada em
que passa os sentidos (ela é invisível, intangível, inaudível e sem cena e sua transmutação em coisa sensivelmente supra-sensível, e
odor); mas essa transcendência não é toda espiritual, ela conserva ei-la de pé, o que não somente realiza, mas se levanta, ergue-se e
esse corpo sem corpo de que havíamos reconhecido que ele fazia a tornaa levantar, levanta a cabeça, endireita-se e apruma-se. Diante
diferença do espectro para o espírito. O que passa os sentidos passa dos outros, e, primeiramente, das outras mercadorias, sim, ela ergue
ainda diante de nós,na silhueta do corpo sensível que, no entanto,lhe a cabeça. Parafraseemos,quase ao pé da letra, antes de citar a melhor
falta ou nos permanece inacessível. Marx não diz sensível e insensí- tradução, que é também a mais recente. Não basta a essa mesa, à essa
vel, sensível mas insensível, diz: sensível insensível, sensivelmente mesa de madeira, manter-se de pé (Er steht nicht nur), tendo seus pés
supra-sensível. A transcendência, o movimento em supra, O passo no chão; ela se ergue ainda (sondern er stellt sich) — e Marx não
além (úber, epekeina) se faz sensível no excesso mesmo. Toma o esclarece com um “por assim dizer”, como lhe concederam alguns
insensível sensível. Toca-se aí onde nãose toca,sente-se aí onde não tradutores franceses assustados com a audácia literal de sua descri-
se sente, sofre-se onde O sofrimento não tem lugar, quando pelo ção,ela se ergue também com a cabeça, uma cabeça de madeira, pois
menos este não sobrevém aí onde dói (é também, não o esqueçamos, ela se tornou uma espécie de animal com cabeça, cabeçudo, obstina-
O quese diz de um membro fantasma, esse fenômeno a que renuncia do, que enfrenta, de pé, as outras mercadórias (er stellt sich allen
toda fenomenologia da percepção). A mercadoria obsidia assim a andren Waren gegeniiber auf den Kopf). Fazendo frente a outras,
coisa, seu espectro trabalha o valor de uso. Essa obsessão se desloca suas semelhantes,aí está o aparecimento de uma estranhacriatura: ao
comoa silhueta anônima oua figura de uma figurante que poderia ser mesmo tempo Vida, Coisa, Fera, Objeto, Mercadoria, Autômato,
a personagem capital. Muda delugar, não se sabe mais, ao certo, onde Espectro numa só palavra. Essa coisa, que não é mais exatamente
está, move-se, invade a cena segundo um andamento: existe um uma coisa, ei-la que desdobra (entwickelt), ela se desdobra, desenvol-
passoe seu modo de andar pertence unicamente a esse mutante. Marx ve o que engendra por uma geração quase espontânea (partenogênese
tem de recorrer à linguagem teatral e descrever o aparecimento da e sexualidade indeterminada: a Coisa animal, a Coisa animada-inani-
mercadoria como uma entrada em cena (auftritr). Tem de descrever mada, a Cojsa morta-viva é um Pai-Mãe),ela dá à luz pela cabeça,
a mesa tornada mercadoria como uma mesa movediça, sem dúvida, extrai de sua cabeça de madeira toda unia linhagem de criaturas
durante uma sessão de espiritismo, mas também como umasilhueta fantásticas ou prodigiosas, caprichos, quimeras (Grille), papéis de
fantasmal,a figuração de um ator ou de um dançarino. Figura teo-an- composição não lígnea, isto é, a linhagem de uma progenitura que
tropomorfa de sexo indeterminado(Tisch, para mesa, é uma palavra não se parece mais com ela, invenções bem mais exóticas ou mais
masculina), a mesa tem pés, a mesa tem uma cabeça, seu corpo se maravilhosas (viel wunderlicher) quese, até a vertigem, essa mesa
anima, erige-se inteiro como uma instituição,ergue-se e dirige-se aos louca, caprichosa e ingovemnável começasse a dançar por sua própria
outros, primeiramente, às mercadorias, seus semelhantes em fantas- vontade (aus freien Stiicken!). Para quem compreende o grego e a
malidade,faz-lhes face ou se lhes opõe. Pois q espectro é social, está
mesmo engajadona concorrência ou na guerra desde a sua primeira
aparição. De outro modo não haveria nem socius, nem conflito, nem
1 “Modifica, por exemplo, a forma da madeira, quandodela faz uma mesa.
desejo, nem amor, nem paz que se mantivessem. Nãoobstante a mesa ainda é madeira, coisa prosaica, material. Mas, logo que
Seria preciso que se leiloasse essa mesa, que a submetessem à se revela mercadoria, transforma-se em algo ao mesmo tempoperceptível e
co-ocorrência ou à concorrência; seria preciso fazê-ta falar com tantas impalpável. Além de estar com os pés no chão,firma sua posição perante as
204 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 205

filosofia, essa genealogia que transfigura O lígneo em não-lígneo, A contradição principal (capitale) não se limita somente à inacre-
poder-se-ia dizer que ela põe em quadro um devir-imaterial da maté- ditável conjunção dosensível e do supra-sensível na mesma Coisa, é
ria. Hyle, a matéria, sabe-se queela é, em primeiro lugar, de madeira. a da autonomia automática, da liberdade mecânica, da vida técnica.
E uma vez que esse devir-imaterial da matéria parece não ocupar Como qualquercoisa (a partir do momento em que entra na cena de
tempo algum e operar sua transmutação na magia de um instante, de um mercado, a mesa parece-se a uma prótese dela mesma. Autono-
um só olhar, pela onipotência de um pensamento, poderíamos ser mia e automatismo, autonomia mas automatismo dessa mesa de
tentados a descrevê-lo como a projeção de um animismo ou de um madeira que se dá espontaneamente seu movimento, decerto, e pare-
espiritismo. A madeira se anima e povoa-se de espíritos: credulidade, ce, deste modo, animar-se, animalizar-se, espiritualizar-se, espiriti-
ocultismo, obscurantismo, imaturidade diante das Luzes, humanida- zar-se, mas, ao mesmo tempo, permanecendo um corpo artefactual,
de pueril ou primitiva. Mas o que seria das Luzes sem o mercado? E uma espécie de autômato, uma figurante, uma boneca mecânica e
quem jamais progrediria sem valor de troca? . dura, cuja dança obedece à rigidez técnica de um programa. Dois
Contradição capital. Na origem mesma do capital. Imediatamente gêneros, duas gerações de movimentosnela se cruzam, e é nisto que
ou a prazo, através de tantas substituições diferanciais, ela não ela figura a aparição de um espectro. Ela cumula, indecidivelmente,
deixará de induzir à dupla coerção “pragmática” de todas as injun- em sua inquietante estranheza, os seus predicados contraditórios: a
ções. Deslocando-se livremente (ausfreien Stiicken), por sua própria coisa inerte parece de súbito inspirada, encontra-se, de repente,
vontade! com um movimento da cabeça, mas que comanda todo o traspassada por umpreuma ou uma psiché. Tornando-se como viva,
seu corpo,dos pés à cabeça,lígnea e desmaterializada, a Coisa-Mesa a mesa parece-se a um cão profético que se apruma sobre as quatro
parece estar no princípio, no começo e no comando dela mesma. patas, prestes a enfrentar seus semelhantes: um ídolo queria fazera
Emancipa-se porsua própria iniciativa: completamente só, autônoma lei. Mas, inversamente, O espírito, a alma ou a vida que a animam
e autômata, suasilhueta fantástica move-se por si mesma,livre e sem permanecem tomados na coisidade opaca e pesada da hyle, na espes-
- amarras. Entra em transes ou em levitações, parece aliviada de seu sura inerte. de seu corpo lígneo,e a autonomia não é mais do que a
corpo, como todos os fantasmas, um pouco louca e desregulada
também, “out ofjoint”, delirante, caprichosa, imprevisível. Ela pa-
rece dar-se espontaneamente seu movimento, mas dá também movi- concomitância da voga espírita, que se espalhou na Europa depois da revo-
lução de 1848,e os inícios do movimento Taiping na China”. Embora, como
mento 20s outros, sim, põe tudo em movimento à sua volta, como
tínhamos observado, cada época tenha seus fantasmas (e nós temos os
“para incentivar (encourager) os outros”, esclarece Marx, em fran- nossos), sua própria experiência, sua própria mídia e seus próprios massmi-
cês, em umanota sobre essa dança do fantasma: “Quando o mundo dias obsidiológicos, embora umahistória “da epoche'" da obsessão suponha
parecia estar trangjilo, recorde-se, a China e as mesas começaram a os mesmosproblemas,e isto nãoé fortuito, que umahistória “da epoche” do
bailar, pour encouragerles autres.?” ser, essa complicação não deveria impedir uma enquete histórica sobre esse
assunto. Deveria apenas torná-la bastante prudente. É certo, por exemplo,que
os textos de Stimer, de Marx e Engels a que nos referiremos correspondem
— e obedecem — no seu tempo a uma potência “vaga”, a que chamaríamos
outras mercadorias e expande as idéias fixas de sua cabeça de madeira, sumariamente “mediúnica”. Podem-se localizar os sinais sociais,filosóficos,
fenômenoainda mais fantástico do que se dançasse poriniciativa própria. literários (ressaltemos o interesse de Stimer pelos Mystêres de Paris, de
caráter misterioso da mercadoria não provém de seu valor de uso." Eugene Sue,as tentações “espíritas” de Victor Hugo e algunsoutros) e tentar
O capital, Edição Bertrand Brasil, Op. cit., p. 79 cercá-los ou mesmo,até certo ponto, explicar sua singularidade histórica.
1, Deson propre chef: (N.T.) Mas seria preciso nãodeixar de reinscrevê-la numasequência espectrológica
2 Op cit. p. 80. Como esclarecem os editores e tradutores, “Marx evoca à muito mais ampla.
206 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 207

máscara do automatismo. Uma máscara, quem sabe uma viseira, que de outra parte entre esses espectros, que são as mercadorias? Como
pode sempre não dissimular, sob o elmo, nenhum olhar vivo. O esses a que se chama “homens”, homensvivos, existências tempo-
autômata arremedao vivo. A Coisa não está nem morta nem viva, ela rais e finitas, são submetidos, em suasrelações sociais, a esses espec-
está morta e viva, ao mesmo tempo. Sobrevive. Astuciosa, inventiva tros quesão as relações, igualmente sociais, entre as mercadorias?
e maquinal ao mesmo tempo, engenhosa e imprevisível, essa máqui- Posto que a temporalidade parece aqui essencial ao processo de
nade guerra é uma máquinade teatro, uma mekhanê. O que se acabou capitalização e ao socius em que um valor de troca se mercantiliza
de ver em cena era uma aparição, uma quase divindade — caída do espectralizando-se, posto que a existência dos homensinscritos nesse
céuou saída da terra. Mas a visão também sobrevive. Suahiperluci- processose determina antes de tudo, em O capital, como temporal,
dez insiste. indigquemos com umapalavra, de passagem,a possibilidade de uma
Desafio ou convite, “incitação” (encouragement), sedução contra herança ou de uma filiação que mereceria uma análise mais conse-
sedução, desejo ou guerra, amor ou Ódio, provocação dos outros quente. Trata-se da fórmula que, na abertura de O capital, define o
fantasmas: Marx insiste muito nisso, pois há um múltiplo dessa valor de troca e determina a mesa com “sensível supra-sensível”,
socialidade (há sempre mais de uma mercadoria, mais de um espírito sensivelmente supra-sensível. Essa formaressalta literalmente (e não
e ainda mais espectros), e o número pertence ao movimento mesmo, se pode considerar aquiesta literalidade como fortuita ou externa) a
ao processo não finito da espectralização (Baudelaire havia dito definição do tempo — do tempo como espaço —, na Enciclopédia...
muito bem o número,na cidade-formigueiro do capitalismo moderno (Filosofia da natureza, a mecânica) de Hegel. Esta submete a defini-
— o fantasma, a multidão, o dinheiro, a prostituição — e Benjamin çãokantiana a umainterpretação dialética, ou seja, à sobreimpressão
depois dele). Pois, se nenhum valor de uso pode, porele só, produzir (Aufhebung). Analisa o tempo como o queé, primeiramente, abstrato
essa misticidade ou esse efeito espectral da mercadoria, e se esse ou ideal (ein Ideelles), posto que ele é a unidade negativa do estar-
segredo é ao mesmo tempo profundo e superficial, opaco e transpa- fora-de-si (como o espaço de que é a verdade). (Essa idealidade do
rente, segredo tão mais secreto que .não esconde atrás dele, nenhuma tempo é, evidentemente, a condição de todaidealizaçãoe, por conse-
essência substancial, é que ele nasce de uma relação (ferência, guinte, de toda ideologização e de toda fetichização, qualquer dife-
diferença, referência e diferança), como dupla relação, dever-se-ia rença que seja preciso respeitar entre esses dois processos.) Ora, é
dizer como dupla ligação social. para explicitar o movimento de sobreimpressão como temporaliza-
Esse duplo socius liga de uma parte os homens entreeles. Ele os ção desse tempo abstrato e ideal que Hegel acrescenta esta observa-
associa à medida que estes se interessam em todas as épocas pelo ção: “Comoo espaço,o tempoé umapura formada sensibilidade ou
tempo, observa logo Marx, pelo tempo ou pelas horas de trabalho, do ato de intuição, o sensível não sensível (das unsinnliche Sinnli-
isso em todas as culturas e em todos os estados do desenvolvimento che)...” (8 258, tr. M. de Gandillac, Gallimard, 1970, p. 247. Eu havia
tecno-econômico. Esse socius liga, portanto, “homens” que são, proposto uma leitura desse trecho em Marges — de la philosophie,
primeiramente, experiência do tempo, existência determinada por Minuit, 1972, p. 49).
essa relação ao tempo que, por sua vez, não seria possível sem a A mesa mercadoria, o cão cabeçudo, o cabeça-dura enfrenta,
sobrevivência e a retomância, sem esse estar “out of joint” que ressaltemos, todas as outras mercadorias. O mercado é um front
deslocaa presença a si do presente vivo e instaura por meio disso a entre fronts, uma confrontação. As mercadorias lidam com outras
relação com o outro. O mesmo socius, a mesma “forma social” mercadorias, esses espectros obstinados comerciam entre eles. E não
da relação liga, de outra parte, as coisas-mercadorias entre elas. De somente em tête-à-tête. É aíquese as faz dançar. Eis a aparência. mas
outra parte, mas como? E comoisso que tem lugar de uma parte entre se o “caráter místico” da mercadoria, se o “caráter enigmático” do
os homens, em sua apreensão do tempo, se explica pelo que tem lugar produto do trabalho como mercadoria nasce da “forma social” do
208 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 209

trabalho, é preciso ainda analisar o que esse processo tem de miste- Natureigenschaften dieser Dinge). Desde então, e o comércio entre
rioso ou de secreto, e se trata do segredo da forma mercadoria (das as mercadorias não espera, a imagem remetida (deformada, objetiva-
Geheimnisvolle der Warenform). Esse segredo provém de um “qui-
da, naturalizada) torna-se a de uma relação social entre as mercado-
proquó”. A palavra é de Marx. Ele nos reconduz ainda a algum
rias, entre esses “objetos” inspirados, autônomos e automáticos que
enredo teatral: astúcia maquinal (mekhan?)ou erro de pessoa, ensaio são as mesas movediças. O especular toma-se o espectral desde o
com intervenção perversa de um ponto, palavra soprada, substitui-
limiar dessa naturalização objetivante: “ela lhes remete, deste modo,
ção dosatores ou personagens. Aqui, O giiproguó teatral conduz a
a imagem da relação social dos produtores com o trabalho global,
um jogo anormal do espelho. Há espelho, e a forma mercadoria é
como uma relação social existente fora deles, entre objetos. Este
também esse espelho, mas, comode súbito ele não desempenha mais
qiiproquó é que faz com que os produtos do trabalho tornem-se
O seu papel, como ele não devolve mais a imagem esperada, aqueles
mercadorias, coisas sensíveis supra-sensíveis,coisas sociais.”!
que se buscam nãose encontram maisaí. Os homensnão reconhecem Para a coisa como para o trabalhador em sua relação com o tempo,
mais aí o caráter “social” de seu “próprio trabalho”. É comose, por
a socialização, o devir-social passa poresta espectralização. A “fan-
sua vez,eles fantasmalizassem. O “próprio”aos espectros, comoaos
tasmagoria”” que Marx aqui se aplica a descrever, esta quevai abrir a
vampiros,! é queeles estão privados de imagem especular, da verda-
questão do fetichismoe doreligioso,é o elemento desse devir social
deira, da boa imagem especular (mas quem não o está?). Comose
e espectral; ao mesmo tempo, por isso mesmo. Perseguindo sua
reconhece um fantasma? Porele não se reconhecer em um espelho.
analogia óptica, Marx reconhece que, do mesmo modo,certamente,
Ora,isso acontece com o comércio das mercadorias entre elas. Esses
a impressão luminosa que uma coisa deixa sobre o nervo óptico se dá
fantasmas que são as mercadorias transformam os produtos humanos
também como forma objetiva diante do olho e exteriormente a ele,
em fantasmas. E todo esse processo teatral (visual, teórico, mas
não como uma excitação do nervo óptico. Mas aí, na percepção
também óptico, opticista) incita o efeito de um espelho misterioso:
visual, há efetivamente (wirklich), diz ele, uma luz que vai de uma
se este não devolve a imagem correta, se, portanto, fantasmaliza, é
coisa, o objeto exterior, a uma outra, o olho: “relação física entre
primeiramente porque naturaliza. O “misterioso” da forma-merca-
coisas físicas”. Mas a forma-mercadoria e a relação de valor dos
doria como suposto reflexo da forma social é a maneira inacreditável
como esse espelho remete a imagem (zuriickspiegelt), quando se produtos do trabalho em que esta se apresenta não têm o que fazer
acredita que ele reflete para os homens a imagem dos “caracteres nem com a “naturezafísica” nem com as “relações coísicas (mate-
sociais de seu próprio trabalho”: semelhante “imagem” “objetiva”, riais) (dinglichen Beziehungen)” que daí surgem. “Somentea rela-
naturalizando. Com isso,ei-la, a sua verdade, di mostra dissimulan- ção social determinada dos homens mesmos é que tomaaqui para
do,reflete esses caracteres comocaracteres “objetivos” (gegenstin- eles a forma fantasmagórica (die phantasmagorische Form) de uma
dliche) inscritos diretamente no produto do trabalho, como as “pro- relação entre coisas. “Essa fantasmagoria de um comércio entre as
priedades sociais naturais dessas coisas” (als geselischafiliche coisas mercadoras, no mercatus ou na ágora, quando uma mercado-
ria (merx) parece entrar em relação, divertir-se, falar (agoreuein) e
negociar com uma outra, constatamos há pouco queela correspondia
1. Em uma admirável leitura de La Peau de Chagrin, Samuel Weber assinala ao mesmo tempo a uma naturalização do socius humano, do trabalho
esse caráter vampiresco do capital, esse monstro vivo (beseeltes Ungeheuer), - objetivado nas coisas e a uma desnaturação, uma desnaturalização e
€ justamente em relação com a lógica espectral dofetiche. Cf. Umwrapping
Balzac, A Reading of “La Peau de Chagrin", University of Toronto Press,
1979, p. 86 e sobretudoas notas 1, 2,3 consagradas a Marx — c a Balzac.
1 Le Capital, O.C,,pp.82-83.
210 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 211

uma desmaterialização da coisa tornada mercadoria, da mesa de não fez?) que basta que uma mercadoria diga “Eu, eu falo” para que
madeira quando entra em cena como valorde troca e não mais como seja verdadee queela tenha uma alma, uma alma profunda e quelhe
valor de uso. Pois as mercadorias, vai ressaltar Marx, não andam por seja própria. Nós atingimos aqui esse lugar em que, entre falar edizer
si sós, elas não comparecem porsi só ao mercado paraali encontra- “eu falo”, a diferença do simulacro não opera mais. Muito barulho
rem outras mercadorias. Esse comércio entreas coisas é do campo da por nada? Much Ado about Nothing: Marx cita logo depois apeça de
fantasmagoria. A autonomia emprestada às mercadorias satisfaz a Shakespeare, fazendo um uso um pouco tortuoso da oposição entre à
uma projeção antropomórfica. Essa inspira as mercadorias, sopra fortuna (acaso ou destino) e a natureza (lei, necessidade, história,
nelas O espírito, um espírito humano, o espírito de uma fala e o cultura): “To be awellfavoured man is thegift offortune; but to write
espírito de uma vontade. and read comes by nature.” '
A. De uma fala, primeiramente, maso quedirá essa fala? O que B. Da vontade, em seguida. Como as mercadorias não andam para
dirá esta persona, esse ator, esse personagem? “Se as mercadorias comparecerem de bom grado, espontaneamente, ao mercado, seus
pudessem falar, elas diriam: nosso valor de uso pode de fato interes- “cuardas” e “possuidores” fingem habitar essas coisas. Sua “vonta-
Sar aos homens, mas a nós, enquanto coisa, não nosdiz respeito. O de” se põe a “habitar” (hAausen) as mercadorias. A diferença entre
quea nós retorna, de nosso ponto devista de coisa, é nosso valor: o habitar (hAabiter) e obsediar (hanter) se faz aqui mais inapreensível
comércio que a nós mantemos (Unser eigner Verkehr) enquanto do que nunca. A pessoa se personifica deixando-se obsidiar pelo
Coisas mercadoras mostra-o suficientemente. Nós só nos referimos efeito mesmo de obsessão objetiva, se isso se pode dizer, que ela
umas às outras (Wir beziehn uns) enquanto valores de troca!”. Este produz habitando a coisa. A pessoa (guarda ou possuidor da coisa)
artifício retórico é abissal. Marx logo vai pretender que o economista está obsidiada porsua vez, e constitutivamente,pela obsessão que ela
reflete ou reproduz ingenuamente essa fala fictícia ou espectral da produz na coisa ali abrigando, como habitantes, sua fala e sua
mercadoria,e se deixa, de algum modo,ventrilocar porela; ele “fala” vontade. O discurso do Capital sobre o “processo detroca” se abre
a partir do mais secreto da alma das mercadorias (aus der Warenseele como um discurso sobre a obsessão — e sobreasleis de suareflexão:
heraus) (ibid.). Mas, dizendo “se as mercadorias pudessem falar
As mercadorias não podem ir por si sós ao mercado,elas não podem se
(Kônnten die Waren sprechen)”, Marx subentende que elas não trocar por si sós [...] é preciso que os guardas das mercadorias se
podem falar. Ele as faz falar (como o economista a quem ele acusa), comportem uns para com os outros como pessoas cuja vontade (Willen)
mas para lhes fazer dizer, paradoxalmente, que, enquanto valor de habita (haust) essas coisas: embora cada um, alienando sua própria
troca,elas falam, e que elas só falam ou mantêm um comércio entre mercadoria, não se aproprie da de outrem senão de acordo com a E
vontade, portanto, por meio de um ato de vontade comum a todosdois.
elas enquanto falam. A elas, em todo caso, pode-se ao menos empres-
tar a fala. Falar, tomar emprestada a fala e ser valor de troca,trata-se
Marx deduz daí toda uma teoria da forma jurídica do pacto, do
aqui da mesma coisa. São os valores de uso que não falam e que, a
juramento, do contrato e das “máscaras econômicas” de que se
esse título, não dizem respeito nem interessam às mercadorias — ao
revestem as pessoas — e quenão figuram senão a “personificação
que elas parecem dizer. Nesse movimento de umaficção defala, mas
das relações econômicas” (ibid.).
de uma fala que se vende dizendo “Eu, a mercadoria, eu falo”, Marx
quer dar uma lição aos economistas que acreditam (mas ele também

1 0.C.p.95. .
2 OC,p. 96. Como Marx foi ele também. diferentemente de Shakespeare, um
1 OC, pp. 94-95. pensador do pacto e do juramento.
212 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 213

Essa descrição do processo fantasmopoético ou fantasmagórico ções” (Fieberphantasien), um mundo de fantasmas (als Gespenster-
vai contribuir para a premissa do discurso sobre o fetichismo, na welt), o adolescente da p. 20, em meio ao delírio (phantasierenden),
analogia com o “mundo religioso”! vê “os seres nascidos de sua própria cabeça (cignen Geburten seines
Mas antes de chegar até aí, voltemos um poucoatrás e formulemos Kopfer” ultrapassarem sua cabeçae ainda assim permanecerem em
algumas questões. Pelo menos duas. sua cabeça.!")?
Primeiramente: se isto que o Capital analisa aqui não é somente à Essa questão poderia desenvolver-se sem ter fim. Interrompamos
fantasmalização da forma-mercadoria, mas a fantasmalização da” suacorrida ou a sigamos em sua outra altemância.
relação social, a espectralização em paga, pelo caminho de uma Segundo:dizer que a mesma coisa, a mesa de madeira, por exem-
reflexão perturbada, então o que pensar (retrospectivamente ainda) plo, entra em cena como mercadoria, depois de ter sido somente uma
da ironia cortante com que Marx tratava Stirner quando este ousava coisa prosaica em seu valor de uso, é dar origem a um momento
falar de um devir-fantasma do homem mesmo,epara ele mesmo? De fantasmal. O valor de uso nela se encontrava, parece subentender
um homem que sentia medo de seu próprio fantasma, um medo Marx,intacto. Ela era o que era, valor de uso,idêntica a ela mesma. A
constitutivo do conceito que formava de si mesmo,e, portanto, de fantasmagoria, como o capital, começaria com o valor de troca e à
toda a sua históriade homem? Umfazer-se medo em queele se fazia forma-mercadoria. É,então, somente, que o espectro “entra em cena”.
a si mesmo, se fazendo exatamente o medo que ele se inspira? Sua Anteriormente, segundo Marx,ele não estava presente. Nem mesmo
história, comohistória e trabalho de seu luto, do luto dele mesmo, do para obsidiar o valor de uso. Mas de onde vem a certeza quanto à fase
luto que ele porta diretamente no próprio homem)?E quando descreve ' preliminar, a desse pretenso valor de uso, precisamente, um valor de
a fantasmalização da mesa de madeira, fantasma que engendra fan- uso puro quanto a tudo isso que faz o valorde troca e a forma-merca-
tasmas e os dá à luz de sua cabeça dentro de sua cabeça, nela fora doria? Quem nos garante essa distinção? Nãosetrata aqui de negar a
dela, a partir dela mesma, por meio de que reflexão Marx reproduz existência de um valorde uso oua necessidade de referir-se a ele. Mas
a linguagem literal de Stimer, esta que ele mesmo citava em A de pôr em dúvida sua rigorosa pureza. Se esta não estivesse assegura-
ideologia alemã e voltava, de alguma maneira, contra seu autor, ou da, então seria preciso dizer que a fantasmagoria começou antes do
seja, contra um acusador que se vê, então, incrirninado do libelo de dito valor de troca, no limiar do valor em geral, ou que a forma-mer-
acusação que ele mesmo havia elaborado (“Após ter encontrado cadoria começouantes da forma-mercadoria, ela mesma antes dela
diante dele um mundo que não é senão o mundo desuas “alucina- mesma. O dito valor de uso dadita coisa sensível prosaica, o hylê
simples, a madeira da mesa de madeira que Marx supõe que ainda não
começou a “dançar”, foi de fato necessário que sua forma mesma, a
1 De qualquer maneira que se interprete esse trajeto,ele remonta, ao menos,ao forma que informa sua hylê, prometesse ao menosà iterabilidade, à
que o Terceiro dos Manuscritos de 1844 diz da morte e dos sentidos da substituição, à troca,ao valor,e que ela esboçasse,por pouco que seja,
maneira como ossentidos tornam-se “teóricos” em suaprática, insensibili- uma idealização que permitisse identificá-la como a mesma através
zando assim, poder-se-ia dizer, o sensível e desfazendo com isso, antecipa- das repetições possíveis etc. Assim como não há uso puro, não há
damente,todas as oposições entre o “subjetivismoe p objetivismo,o espiri- nenhum valor de uso que a possibilidade da troca e do comércio
tualismo c o materialismo, a atividade e a passividade”. Marx pensa então,
(qualquer que seja o nome com que a chamemos,o sentido mesmo, O
e, ao que me parece não deixará jamais de pensar, que essas oposições,
julgadas insolúveis por uma filosofia que não veria ali senão uma tarefa
valor, a cultura, o espírito (!), a significação, o mundo,a relação com
teórica, são ou devem ser suprimidas pelo estado de sociedade e pela prática
social. Cf. Manuscrits de 1844, tr. E. Bottigelli, Éditions sociales, pp. 90 e
segs. 1 L'ldéologie allemande, O.C., p. 184.
214 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 215

O outro, e primeiramente a simples forma e o traço do outro) não O “caráter místico” da mercadoria se inscreve antes de se inscre-
inscreva antecipadamente em um fora-de-uso — significação extra- ver, ele se traça, antes de escrever-se com todas asletras na fronte ou
vasante que não se reduz ao inútil. Uma cultura começou antes da sobre a tela da mercadoria. Tudo começa antes de começar. Marx
cultura — e a humanidade. A capitalização também. O mesmo que quer saber e fazer saber onde, em que momento preciso, em que
dizer que, por isso mesmo,ela está destinada a sobreviver-lhes. O instante o fantasma entra em cena, e se trata de uma forma de
mesmosediria,aliás, se enveredássemos por um outro contexto, para exorcismo, um modo de mantê-lo sob a mira de uma arma: antes
o valor de troca: ele está igualmente inscrito e extravasado por uma desse limite,ele não estava presente, ele não tinha poder. Nós suge-
promessa de dom para alémdatroca. De uma certa maneira 0 equiva- rimos, ao contrário, que,antes da encenação desseinstante, antes do
lente-mercadoria paralisa ou mecaniza a dança que ela pareciainiciar. “desde que ela entre em cena como mercadoria,ela se transforme em
É para além do valor mesmo, do uso ou da troca, da técnica e do coisa sensível supra-sensível”, o fantasma havia feito sua aparição,
mercado, que a graça é prometida, quando não dada, mas, de modo sem aparecer em pessoa, evidentemente e por definição, mas já tendo
nenhum, entregue à dança. escavado no valor de uso, na obstinação (entêtement) de madeira da
Sem desaparecer, 0 valor de uso torna-se, desdeentão, uma espé- mesa cabeça-dura, a repetição (portanto, a substituição,o intercâm-
cie de limite, o correlato de um conceito-limite, de um começo puro bio, a iterabilidade, a perda da singularidade como experiência da
a que nenhum objeto não pode nem deve corresponder, e que é singularidade mesma, a possibilidade do capital) sem o que um uso
preciso, portanto, complicar em uma teoria geral (mais geral em todo mesmonãose determinariajamais. Essa obsessão não é umahipótese
caso) do capital. Tiraremos daqui uma única consegiiência, entre empírica. Sem ela, não se poderia nem mesmo formar um conceito
tantas e tantas outras possíveis: se ele mesmo conserva algum valor de valor de uso, nem o de valor em geral, nem informar qualquer
de uso (a saber, o de permitir orientar uma análise do processo matéria que fosse, nem determinar mesa alguma, nem uma mesa de
“fantasmagórico”, a partir de uma origem fictícia ou ideal, portanto, madeira, fosse ela útil ou vendável, nem quadro algum das catego-
já purificada por um certo fantástico), esse conceito-limite do valor rias. Nem Tábua alguma dos mandamentos. Não se poderia nem
de uso se encontra de antemão contaminado, isto é, pré-ocupado, mesmo, comoo faz Marx, complicar bastante, dividir ou fraturar o
habitado, obsidiado pelo seu outro, a saber, este que nascerá na conceito de valor de uso chamandoa atenção para essa evidência:
cabeça de madeira da mesa, a forma-mercadoria e sua dança de para o seu primeiro suposto proprietário, para o homem quea leva ao
fantasma. A forma-mercadoria, certamente, não é valor de uso, é mercado, enquanto valor de uso destinado aos outros, O primeiro
preciso reconhecer que Marx observa corretamente e considerar o valor de uso é um valorde troca.! “As mercadorias têm de realizar-se
poder analítico que essa distinção nos dá. Mas se ela não o é, como valores, antes de poderem realizar-se como valores de uso”
presentemente, e mesmose ela nãoestá efetivamente presente ali, ela (ibid.) E vice-versa, o que tomaa diacronia circular e wansforma a
afeta antecipadamente o valor de uso da mesa de madeira. Ela o afeta distinção em co-implicação: “Por outro lado, têm elas de evidenciar
e o enluta antecipadamente como o fantasma que ela se tornará, mas que são valores de uso antes de poderem realizar-se como valores”
é aí, justamente, que começa a obsessão. E seu tempo, e a intempes- (op.cit. p. 96). Mesmose a transformação detal mercadoria em valor
tividade de seu presente, de seu estar “our Ofjoint”. Obsidiar não de uso e de tal outra em dinheiro marca uma imobilidade inde-
quer dizer estar presente,e é preciso introduzir a obsessão na cons- pendente, umaestase na circulação, esta continua sendo um processo
trução mesma de um conceito. De todo conceito, começando pelos infinito. Se a circulação total M-A-M é uma “série sem começo nem
conceitos de ser e de tempo. Eis o que chamaríamos, aqui, uma
obsidiologia (Aqntologie). A ontologia não se opõe a isso senão em
um movimento de exorcismo. A ontologia é uma conjuração. 1 O capital, p. 97.
216 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 217

fim””, comoressalta com tanta insistência Para a crítica da economia doria começou por empregar, de um modo ou de outro,O princípio
política,! é que a metamorfose é possível em todosos sentidos entre de uma arte.
o valor de uso, a mercadoria e o dinheiro. Sem contar que 0 valor de Isto não era uma questão crítica. Antes uma desconstrução dos
uso da mercadoria-moeda (Geldware) “se desdobra” também: po- limites críticos, dos limites tranquilizadores que garantissem o exer-
dem-se substituir dentes naturais por próteses de ouro, mas isso cício necessário e legítimo do questionamento crítico. Semelhante
consiste em outro valor de uso que o que Marx chama “o valor de desconstrução não é uma crítica da crítica, senão a reduplicação
uso formal”, que provém da função social específica do dinheiro. típica da ideologia alemã pós-kantiana. E, principalmente, ela não
Todo valor de uso estando marcado por essa possibilidade de arrasta necessariamente na direção de uma fantasmagorização geral,
servir ao outro ou uma outra vez, essa alteridade ouessaiterabilidade em que tudo se tomaria indiferentemente mercadoria, na equivalên-
Projeta-o a priori no mercado das equivalências (que são sempre cia dos preços. Tanto mais que, nós o tínhamossugerido aqui e lá, o
equivalência entre não-equivalências, certamente, e supõem o duplo conceito da forma-mercadoria ou do valor de trocase vê afetado pela
socius de que falávamos acima). Em sua iterabilidade originária, um mesma contaminação extravasante. Se a capitalização não tem limite
valor de uso está de antemão prometido, prómetido à troca e para rigoroso,é também porqueela se faz extravasar. Mas, uma vez que
além datroca,Ele está de antemão lançado no mercado das equiva- os limites da fantasmagorização não se deixam mais controlar ou
lências.. Não é somente um mal, mesmo se sempre é com o risco de designar pela simples oposição da presençae da ausência,daefetivi-
perder sua alma na mercadoria. A mercadoria nasceu “cínica”, dadee da não-efetividade, do sensível e do supra-sensível, uma outra
porqueela apaga as diferenças, mas se ela é congenitamente nivela- abordagem das diferenças deve estruturar (“conceitualmente” e
dora,se ela é “de nascença, uma grande equalizadora cínica” (Ge- “realmente””) o campo assim re-aberto. Longe de apagar as diferen-
borner Leveller und Zyniker, p. 97), esse cinismo original já se ças e as determinações analíticas, essa outra lógica reclama outros
preparava no valor de uso, na cabeça de madeira do cão que se ergue, conceitos. Pode-se esperar daí uma reinscrição mais sutil e mais
rigorosa. Ela pode apenas, em todo caso, reclamar essa reestruturação
como uma mesa, sobre as quatro patas. Pode-se dizer da mesa o que
Marx diz da mercadoria. Como a mercadoria queela advirá, que ela
incessante, como,aliás, o progresso mesmo da crítica. E essa de-li-
mitação afetará também o discurso sobrea religião, a ideologia e o
é de antemão,a cínica já se prostitui, ela “está sempre a ponto de
fetichismo. Mas é preciso saber queo fantasma está aí,aindaqueseja
trocar não somente sua alma, mas seu corpo com qualquer outra, e
na abertura da promessa ou da espera, antes de sua primeira apari-
estivesse esta última coberta de mais desgraças ainda que Maritor-
ção: esta se havia anunciado,ela terá sido segunda desde a primeira
ma” (ibid.). Foi pensando nesta prostituição original que Marx gos-
vez. Duas vezes na mesma vez, iterabilidadeoriginária, virtualidade
tava de citar Timão de Atenas, recorde-se, e sua imprecaçãoprofética.
irredutível desse espaço e desse tempo.Eis por que é preciso pensar
Mas preciso dizer que se a mercadoria corrompe (a arte,a filosofia, de outro modo a “vez” ou a data de um acontecimento. Ainda, again:
a religião, a moral, O direito, quando suas obras tornam-se valores- “na's this thing appear'd againe tonight”.
mercadorias), é que o tornar-se-mercadoria já atestavao valorque ele Haveria, portanto, exorcismo na abertura do Capital? No abrir da
põe em perigo. Por exemplo: se uma obra de arte pode tornar-se cortina sobre um abrir de cortina? Desde o primeiro capítulo de seu
mercadoria, e se esse processo parece fatal, é também que a merca- primeiro livro? Tão potencial que pareça e tão preparatório, tão
virtual, esse exorcismo de premissa teria desenvolvido um poder
suficiente para assinar e chancelar toda a lógica dessa grande obra?
l Critique de "économie politique (1859), O.C., p. 349. Uma cerimônia conjuratória teria escandido o desenrolar de um
20 capital, p. 102. imenso discursocrítico? Elaa teria acompanhado, seguido ou prece-
218 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 219

dido como sua sombra, secretamente, tal qual uma sobrevivência Grundlage der Warenproduktion wmnebelr, verschwindet daher sofort,
indispensávele, se ainda se pode dizer, vital, de antemão requerida? sobald wir zu andren Produktionsformen fliichten). (ibid.)
Umasobrevivência herdada desde a origem, mas, em seguida, a cada
instante? E essa sobrevivência conjuratória não faz parte, indelevel- Pela expressão “bruma fantasmática”, a tradução recente que nós
mente, da promessa revolucionária? Da injunção ou do juramento citamos, marca bem referência literal à aparição (Spuk), aí onde
que põe em movimento O capital? tantas traduções anteriores apagavam-na regularmente. É preciso
Não esqueçamosquetudo isso que acabamos delerali era o ponto sublinhar também a imediatez instantânea com que, Marx queriaao
devista de Marx sobre um delíriofinito. Era seu discurso sobre uma menos acreditá-lo ou nos fazer acreditar, o misticismo, a feitiçaria e
loucura destinada, segundo ele, a chegar ao fim; sobre uma incorpo- a aparição desapareceriam:eles se esvanecerão (indicativo), eles se
ração geral do trabalho humanoabstrato que se traduz ainda, mas por
dissiparão na verdade, segundo ele, como por encanto, como tives-
um tempo finito, para a linguagem daloucura, em um delírio (Ver-
sem vindo, naquele exato minuto em quese veria O fim da produção
ricktheit) da expressão.! Seria preciso, declara Marx, e poder-se-á,
das mercadorias. Supondo-se mesmo, com Marx, que esta tenha, em
e dever-se-ápoder pôrfim aoque aparece “sob essa forma delirante”
tempo algum, um fim possível. Marx diz bem: “desde que”, logo
(in dieser verriickten Form[ibid.)). Ver-se-á (traduzamos: ver-se-á
que”, sobald,e, como sempre, ele fala do desaparecimento porvir do
vir) o fim dessedelírio e desses fantasmas, pensa visivelmente Marx.
fantasma, do fetiche e da religião como aparições nebulosas. Tudo
É preciso, pois essas aparições estãoligadas àscategorias da econo-
está velado de brumas, tudo está envolto em nuvens (umnebelt),
mia burguesa.
Esse delírio aqui? Esses fantasmas aí? Ou à espectralidade em começando pela verdade. Nuvensnanoitefria, paisagem ou cenário
geral? É quase toda a nossa questão e nossa circunspecção. Não de Hamlet ao aparecimento do ghost (“It is past midnight, bizterly
sabemos se Marx pensava acabar com o fantasma em geral, nem cold, and dark except for the faint light of the stars”).
mesmo se ele o queria verdadeiramente, quandoele declara sem Mesmose O capital se abrisse assim, com uma grande cena,com
ambiguidade queesse fantasma aqui, este Spuk de que O capital faz um sobrelanço de conjuração,esta fase crítica não se destruiria de
seu objeto, é somente o efeito da economia de mercado. E que, modo algum, ela não se desacreditaria. Pelo menos não anularia O
enquanto tal, ele deveria, ele deverá desaparecer com outras formas todo de seu acontecimento e de sua inauguralidade.Pois, nós aposta-
de produção. mos aqui que o pensamento nunca triunfa da pulsão conjuratória.
Antes ela nasceria daí. Jurar ou conjurar, não é a sua chance e seu
É precisamenteeste gênero de formas[delirantes, Marx acaba de dizê-lo] destino, assim como seu limite? O dom de suafinitude? Ela terá
queconstituem as categorias da economia burguesa. Sãoessas formas de alguma vez outra escolha senão entre várias conjurações? A questão
pensamento que têm uma validade social, e portanto uma objetividade, mesma,e a mais ontológica e a mais crítica e a mais arriscada de
paraas relações de produção desse modo de produção social historica-
mente determinado queé a produção da mercadoria. Se, portanto, todas, nós sabemos queela se protege ainda. Suaformulação mesma
nós
escapamos (liichten) para outras formas de produção. veremos ergue barricadas ou cavatrincheiras, cerca-se de controvérsias, mul-
desapa-
recer instantaneamente todoo misticismo do mundo da mercadoria. todos tiplica as armadilhas. Ela avança pouco, com impetuosidade. De
os sortilégios que encobrem com umabruma fantasmática os produtos
do modo mágico,ritual, obsessional, suaformalização usafórmulas que
trabalho realizado na base da produção da mercadoria (Aller Mystizismus
são, às vezes, procedimentos encantatórios. Ela marcaseu terreno,
der Warenwelt, all der Zauber und Spuk, welcher Arbeitsprodukte auf
nele dispondo estratagemas e vigias, a salvo de broquéis apotropai-
cos. A problematização mesma cuida de denegar e, portanto, de
conjurar (problema,trata-se de um broquel, uma armadura, insisti-
1 0C.p.87. mosnisso, uma fortaleza bem comoa tarefa da perquirição porvir).
220 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx . 21

A problematizaçãocrítica continua lutar contra fantasmas. Teme-os Enormerisco, inútil sublinhá-lo, o do fetichismo em sua relação
comoa si mesma. com o ideológico e o religioso. Nos enunciados que se seguem
Postasessas questões, ou antes, suspensas, podemos, talvez, voltar imediatamente, a dedução do fetichismo aplica-se também ao ideo-
ao que O capital parece querer dizer do fetiche, no mesmo trecho,e lógico, à sua autonomização como à sua automatização:
de acordo com a mesmalógica. Trata-se também, não o esqueçamos,
de demonstrar que o enigma do fetiche “dinheiro” reduz-se ao do Nesse mundo aí (o mundoreligioso),os produtos do cérebro humano [da
fetiche “mercadoria”, uma vez que este se tornouvisível (sichzbar) cabeça, ainda, dos homens, des menschlischen Kopfes, análogas à cabeça
— mas, acrescenta Marx, também enigmaticamente,visível ou evi- de madeira da mesa capaz de engendrar quimeras — na sua cabeça fora
dente até a luminosidade que torna cego:que “salta aos olhos” (crêve de sua cabeça — uma vez, ou seja, logo, que sua forma possa tornar-se
les yeux), diz corretamentea tradução francesa a que nosreferimos forma-mercadoria] parecem dotadosde vida própria (mit eignem Leben),
figuras autônomas que mantêm relações entre si e com seres bumanos
aqui:! die Augen blendende Ráttsel des Warenfetischs.
[...]. Chamoa isto de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos
Ora, sabe-se, a referência ao mundo religioso apenas permite do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da
explicar a autonomia doideológico, e, portanto, gua eficácia própria, produção de mercadorias. Esse fetichismo do mundo das mercadorias
sua incorporação em dispositivos que não são somente dotados de decorre, conforme demonstra a análise precedente, do caráter social
uma autonomia aparente, mas de uma espécie de automaticidade que próprio do trabalho que produz mercadorias. (ibid.)
não por acaso ressalta a obstinação da mesa de madeira, Relatando o
caráter “místico” e o segredo(das Geheimnisvolle) da forma-merca- Em outras palavras, desde que haja produção, há fetichismo: ideali-
doria, introduziu-se ao fetichismoe ao ideológico. Sem se reduzir um zação, autonomização e automatização, desmaterialização e incorpo-
ao outro, eles partilham uma condição comum. Ora, diz O capital, ração espectral, trabalho do luto co-extensivo a todo trabalho etc.
apenas a analogia religiosa, apenas a “região nebulosa do mundo Marx acredita dever limitar essa co-extensividade à produção de
religioso” (die Nebelregion derreligiôsen Welt) pode permitir com- mercadorias. É, aos nossos olhos, um gesto de exorcismo de que
preender a produção e a autonomização fetichizante desta forma. tínhamos falado acima e sobre o qual deixamos aqui ainda nossa
Quanto à necessidade de se voltar para essa analogia, Marx apresen- questão suspensa. . .
ta-a como uma consegiiência da “forma fantasmagórica” cuja gênese O religioso não é, portanto, um fenômeno ideológico ou uma
acaba de analisar. Se a relação objetiva entre as coisas (o quetínha- produção fantasmática entre outras. Por um lado, ele confere sua
mos chamado comércio entre as mercadorias) é, de fato, uma forma forma originária ou seu paradigma de referência, sua primeira “ana-
fantasmagórica da relação social entre os homens, então é preciso logia”, à produção do fantasma ou do fantasma ideológico. Por outro
recorrer à única analogia possível, a da religião: “É somente a lado (e primeiramente, e sem dúvida pela mesmarazão) o religioso
relação social determinada entre os homens mesmosquetoma aqui, informa também, com o messiânicoe o escatológico, ainda queseja
para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas.” na forma necessariamente indeterminada, vazia, abstrata e seca que
Consegiência: “Embora para encontrar uma analogia (eu sublinho privilegiamos aqui, este “espírito” do marxismo emancipador cuja
Um dahereine Andlogie zufinden), devamos escapar (fliichten ainda injunção reafirmamos aqui, por secreta ou contraditória que pareça.
ou já) na direção das zonas nebulosas do mundo religioso.”'2 Não podemósenveredar aqui por essa questão geral da fetichiza-
ção.! Em um trabalho porvir, sem dúvida, seria necessário relacio-

1 OC,p. 106.
2 O capital, op. cit.p. 81. 1 Em sua forma geral, tentei abordar noutra parte (cf. especialmente Glas,
JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 22

ná-la à da espectralidade fantasmática. Apesar da abertura infinita de 2. O lugar desse momento teórico no corpus de Marx. Rompe ele
todos Os seus bordos, talvez pudéssemostentar cercar o que está em ou não com o que é dito do fantasma e do ideológico em
Jogo partir de três pontos de vista, ao menos:
A ideologia alemã? Pode-se duvidar disso. A relação não é,
sem dúvida, nem de corte nem de homogeneidade.
1. A fantasmaticidade fetichista em geral e seu lugar no Capital.
3. Para além dessas dimensões, que não são somente as de uma
Antes mesmo da entrada êm cena do valor-mercadoria e à
exegese de Marx,é o caso, sem dúvida, de tudo o que liga hoje
coreografia da mesa de madeira, Marx havia definido o produto
a Religião e a Técnica numa configuraçãosingular.
residual do trabalho como uma objetividade fantasmática (ges-
penstige Gegenstândlichkeitr?).
A. Seria o caso, primeiramente, do que toma a forma original de
um retomo do religioso, seja cle ou não fundamentalista, e que
sobredetermina todas as questões da nação, do Estado, do direito
Galilée, 1974, pp. S1, 149, 231 e segs., 249 e segs., 264 e segs.). Sobre as
Telações entre fetichismoe ideologia, cf. Sarah Kofman, Camera obscura — internacional, dos direitos humanos e do Bill of Rightis, em resumo,
de Vidéologie, Galilée, 1973, especialmente o que precede e segue La table tudo o que concentra seu habitat na figura, ao menos sintomática, de
tournante (p. 21), e Etienne Balibar, Cing études du matérialisme historique
. Jernsalém, pu, aqui e ali, de sua reapropriação e do sistema de
O.C.(a propósito da “teoria do fetichismo"), pp. 206 e segs. e alianças queali se ordenam. Comorelacionar um ao outro, mas como
j1 Cf. Etienne Balibar, O.C., pp.208 e segs.
. Na figura da materialidade sensível, o corpo próprio dessa
i dissociar também os dois espaços messiânicos de que falamos aqui
objetividade
fantasmática toma forma, endurece-se, erige-se ou petrifica-se; ele cristali- sob o mesmo nome? Se o chamado messiânico pertence, em sentido
za-se a partir de uma substância molee indiferenciada, institui-se a partir de próprio, a uma estrutura universal, a esse movimento irredutível da
um resto amorfo: “Consideremos agora esseresíduo dos produtosdo traba- abertura histórica ao porvir, portanto, à experiência mesma e à sua
lho. Não subsiste deles nada mais senão essa mesma objetividade fantasmá- linguagem (espera, promessa, engajamento para com o acontecer do
tica, uma simples geléia [Gallerte: gelatina, figura da massa homog&- que vem,iminência, urgência, exigência de salvação, de justiça para
nea] de trabalho humano indiferenciado,ou seja, de ispêndio de força de
trabalho humano, indiferente à forma em que é despendida. Tudo o que é além do direito, garantia dada ao outro enquanto não-presente, pre-
ainda visível nessas coisas [tudo o que se apresenta nelas: Diese Dinge sentemente presente ou vivo etc.), como pensá-lo comas figuras do
stellen nur noch dar] é que para produzi-las despende-se a força de
traba- messianismo abraâmico? Ele figura a desertificação abstrata ou a
lho humana. Écomo cristalizações (Als Kristalle) dessa substância social
que condiçãooriginária? O messianismo abraâmico nãoseria senão uma
na) comum que são elas valores: valores-mercadorias.” (O capital. O.C.
prefiguração exemplar, o nome dado sobre O fundo da possibilidade
p. 43). .
Sobre essa “objetividade fantasmática (gespenstige Gegensiiindlichkeir), que tentamos nomear aqui? Mas,então, por que guardar o nome, ou,
cf. Samuel Weber (O.C., p. 75) que, entreBalzac e Marx, insiste, a justo ao menos, o adjetivo (messiânico, preferimos dizer, antes que mes-
título, no caráter feminino da quimera-mercadoria. Há mais de um índice sianismo, a fim de designar umaestrutura da experiência antes que
disso efetivamente. Mas comoestabilizar o sexo de um fetiche? Não passa umareligião), aí onde nenhuma figura daquele que chega, à medida
ele de um sexo para o outro? Não é ele este movimento de passagem,
mesmo que ele ou ela se anuncia, não deveria se pre-determinar,
gropi que sejam as suas cessações de atividade?
um texto Tecém-publicado, Thomas Keenan analisa també
, prefigurar, prenomear mesmo? Desses dois desertos, qual deles,
outras coisas, os sublimados dessa “realidade Canas”, Mani primeiramente, terá acenado nadireção do outro? Pode-se conceber
da
ad e oscinta sobrevivem”(“The Point is to (Ex) Change umaherança ateológica do messiânico? Existe outra mais consequen-
RS
+ em Fetishism
Preso DEas Cultural
pe LEDiscou,rse, ed. E. Apter & W. Pietz,
i Comell te? Uma herança não sendo nunca natural, pode-se herdar mais de
uma vez, em lugares e em momentosdiferentes, optar por esperar O
224 JACQUES DERRIDA
Espectros de Marx 225

momento mais apropriado, que podesertalvez q mais intempestivo


Ter-se-ia a prospectiva, mas não se esperaria mais nada nem nin-
— escrevê-la segundodiferentes linhagens,e assinar assim com mais
guém. O direito sem a justiça. Não se convidaria mais, nem corpo
de um alcance. Estas questões e estas hipóteses não se excluem. Ao
nem alma, não se receberia mais visita, não se pensaria nem mesmo
menos para nós,e por agora. A ascese despoja a esperança messiâni-
mais em ver. Em vervir. Esse “messianismo” que desespera, alguns,
ca de todas as formas bíblicas, e até de todas as figuras determináveis
de que não me excluo, acharão nele um gosto curioso, às vezes um
da espera, ela se desnuda assim com intenção de satisfazer ao que
gosto de morte. É verdade que esse gosto é antes de tudo um gosto,
deve ser a hospitalidade absoluta, o “sim” ao (à) que chega, o “vem”
um ante-gosto, e, por essência,ele é curioso. Curioso disso mesmo
ao porvir inantecipável — quenão deveser “qualquer um”, atrás do
que ele conjura — e que deixa a desejar.
qual se abrigam os fantasmas bastante conhecidos, que se deve,
B. Mas é 0 caso também, indissociavelmente, do desdobramento
justamente, exercitar em reconhecer. Aberta, à espera do aconteci- diferancial da tekhné, da tecno-ciência ou datele-tecnologia.! Ele nos
mento como justiça, essa hospitalidade não é absoluta a não ser que
obriga mais do que nunca a pensar à virtualização do espaço e do
vele porsua própria universalidade. O messiânico, inclusive sob suas tempo, a possibilidade de acontecimentosvirtuais cujo movimento e
formas revolucionárias (e o messiânico é sempre revolucionário, velocidade não nos permitem daqui em diante (mais, e diferentemen-
deve sê-lo),seria a urgência, a iminência, mas, paradoxoirredutível, te, do que nunca, pois não é, de modo algum e de ponta a ponta, novo)
uma espera sem horizonte de espera. Pode-se sempre considerar a opor a presença à sua representação, o “tempo real”ao tempo
secura quase atéia desse messiânico como a condição das religiões diferido”, a efetividade ao seu simulacro, O vivo ao não-vivo, em
do Livro, um deserto que nem mesmo foi o deles (mas a terra é suma, O vivo ao morto-vivo de seus fantasmas. Ele nos obriga à
sempre emprestada, alugada por Deus, ela nunca é possuída pelo pensar, a partir daí, um outro espaço para a democracia, Para a
ocupante, diz justamente o Antigo Testamento, cuja injunção tam- democracia porvir, e, portanto, para a justiça. Nós havíamos sugeri-
bém se deveria ouvir); pode-se sempre reconhecerali o solo árido do que o acontecimento em torno do qual giramos aqui não hesita
sobre o qual cresceram, e passaram, as figuras vivas de todos os entre o “quem” (gui) singular do fantasma e o “que” (quoi) geral do
messias, fossem eles anunciados, reconhecidos ou sempre esperados. simulacro. No espaço virtual de todas as tele-tecno-ciências, na
Pode-se, também, considerar este impulso compulsivo, e a furtivida- dis-locação geral a que o nosso tempoestá devotado, como o estão,

ESSESsig
de dessa passagem, como os únicos acontecimentos a partir dos quais daqui em diante, os lugares dos amantes, das famílias, das nações, O
nos aproximamos, e primeiramente nomeemos o messiânico em messiânico treme na borda desse acontecimento mesmo.Ele é esta
geral, desse outro fantasma de que não devemos, nem podemosabrir hesitação, não tem outra vibração, ele não “vive” de outro modo,
mão. Poderá parecerestranho, estranhamente familiar e inospitaleira mas nãoseria mais messiânico se parasse de hesitar: como dar lugar,
ao mesmotempo (unheimlich, uncanny), essafigura da hospitalidade ainda, torná-lo,este lugar, torná-lo habitável, mas sem matar o porvir
absoluta cuja promessa se queria confiar a uma experiência tão em nomede velhas fronteiras? Como os do sangue, os nacionalismos
impossível, tão pouco segura em sua indigência, a um “messianis- do solo não semeiam unicamente o ódio, eles não cometem somente
mo” tão inquieto,frágil e desprevenido, a um “messianismo” sem- crimes, eles não têm nenhum porvir, não prometem nada, mesmo se
pre pressuposto, a um messianismo quase transcendental, mas tam- mantêm, como a besteira ou o inconsciente, a vida difícil. Essa
bém obstinadamente interessado por um materialismo sem
substância: um materialismo da khôra para um “messianismo” de-
sesperador. Mas sem esse desespero,e se se pudesse contar com o 1. Sobre todos esses motivos, remetemos evidentemente para os trabalhos de
Paul Virilio, assim comopara uma obrainédita de Bernard Stiegler (no prelo,
que vem, a esperança não seria senão o cálculo de um programa.
edições Galilée).
226 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 227

hesitação messiânica não paralisa decisão alguma, responsabilidade antigos da divisão do trabalho (mesmo desta em tomo da qual Marx
alguma. Ela dá, ao contrário, a sua condição elementar. Constitui-se tanto construiu, especialmente seu discurso sobre a hegemonia ideo-
na sua experiência mesma. lógica: a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, cuja
Como é preciso precipitar uma conclusão, esquematizemos. Se pertinência não desapareceu certamente, mas parece mais limitada do
alguma Coisa parece não ter se mexido de A ideologia alemã ao que nunca.) Esses acontecimentos sísmicos vêm do porvir, eles são
Capital, são dois axiomas cuja herança igualmente nos interessa dadosa partir do fundo instável, crítico e des-locado dos tempos. De
Mas é a herança de um double bind que acena, aliás, na direção do um tempo disjunto ou desajustado sem o qual não haveria nem
double bind de toda herançae, portanto, de toda decisão responsável. acontecimento nem história nem promessa dejustiça.
A contradição e o segredo habitam a injunção (o espírito do pai, se Queo ontológico e o crítico sejam aqui pré-desconstrutivos, as
quiserem). Por um lado, Marx fez questão derespeitar a originalidade consegiências políticas disso não são talvez negligenciáveis. E cer-
ea eficácia própria, a autonomização e'automatização da idbalidade tamente, para dizê-lo bastante depressa, quanto ao conceito do polí-
como processo finito-infinito da diferança (fantasmática, fantástica tico, quanto ao político mesmo.
fetichista ou ideológica) — e do simulacro que nela não é simples- Para não indicar senão um exemplo entre tantos outros, evoque-
mente imaginário. Trata-se de um corpoartefatual, um corpo técnico mos ainda, para concluir, uma passagem de A ideologia alemã. Ela
eé preciso trabalho para constituí-lo ou para desconstituí-lo. Esse emprega um esquema que O capital parece ter incessantemente
movimento continuará sendo precioso, sem dúvida insubstituível, confirmado. Marx nela adianta que a crença no espectro religioso,
uma vez que se O ajuste, como fará todo “bom marxismo”, às portanto, no fantasma em geral, consiste em autonomizar uma re-
estruturas e às situações inéditas. Mas, por outro lado, embora ele presentação (Vorstellung) e a esquecer sua gênese, assim como O
continue sendo um dos primeiros pensadores da técnica, até mesmo, fundamento real (reale Grundiage). Para dissipar a autonomia factí-
de longe, da tele-tecnologia queela terá sempre sido, de perto ou de cia assim engendrada nahistória, é preciso reconsiderar os modos de
. longe, Marx continuaa querer basear suacrítica ou seu exorcismo do produçãoe de troca tecno-econômica:
simulacro espectral em umaontologia. Trata-se de uma ontologia —
crítica mas pré-desconstrutiva — dapresença comorealidade efetiva Nareligião, os homens metamorfosciam seu universo empírico em um
ser somente pensado e somente representado (zu einem nur gedachten,
e como objetividade. Essa ontologia crítica pretende desdobrar a
vorgestellten Wesen) que então os encara como estrangeiro (das ihnen
possibilidade de dissipar o fantasma, ousemos dizer ainda, de conju- fremd gegeniibertritt). Aquiainda, isto não se explica de modo algum por
rá-lo comoa consciência representativa de um sujeito, e de recondu- outros conceitos, pela consciência de si nem nenhuma divagação desse
zir essa representação, para reduzi-la a suas condições, ao mundo gênero, mas, na realidade, pelo conjunto do modo de produção e de troca
material dotrabalho, da produçãoe da troca. Pré-desconstrutivo aqui talcomoele existiu até o presente,e que é tão independente (unabhangig)
não querdizer falso, não-necessário ou ilusório. Mas isso caracteriza do conceito puro quanto a invenção do tear automático (selfacting mule:
em inglês no texto) co uso da estrada deferro o são dafilosofia hegeliana.
um saber relativamenteestabilizado que reclama questões mais radi-
Se ele faz questão de falar de um “ser”da religião, isto é, do fundamento
cais do quea crítica e do que a ontologia que fundaa crítica. Essas material desse não-ser (dh. von einer materiellen Grundlage dieses
questões não são desestabilizantes pelo efeito de alguma subversão Unwesen), não se deve buscá-lo no “ser do homem” (im “Wesen des
teórico-especulativa. Não são mesmo, em última análise, questões, Menschen”), não mais que nos predicados de Deus, mas, de fato, no
mas acontecimentos sísmicos. Acontecimentos práticos, aí onde o mundo material tal comoeste se encontrajá aí em cada etapa do processo
religioso (cf. supra Feuerbach). Todos os “fantasmas”” que passamos em
pensamentosefaz agir, e corpo e experiência manual (o pensamento
revista (die wir Revue passieren liessen) eram representações (Vorstel-
como Handeln, diz em algum lugar Heidegger), trabalho, mas traba- lungen). Essas representações,feita a abstração de seu fundamento real
lho sempre divisível — e compartilhável, para além dos esquemas (abgesehen von ihrerrealen Grundlage)(que Stimer, aliás, negligencia),
228 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 229

concebidas comorepresentações interiores à consciência, como pensa-


E se a cabeça, que não é nem o sujeito, nem a consciência, nem o eu,
mentos na cabeça dos bomens, uma vez saídas de sua objectalidade
(Gegenstindlichkeit) e devolvidas ao sujeito (in das Subjela zurilckge- nem o cérebro, se definisse, primeiramente, pela possibilidade de
nomumen),e elevadas da substância à consciência de si, constituem — a semelhante experiência e por aquilo mesmo que ela não teria meios
obsessão (der Sparren) ou a idéia fixa.! de conter nem de delimitar, pela indefinição do “es spukt”? Acolher,
dizíamos, pois, mas ao mesmo tempo em queapreende,na angústia
Seguindoao pé daletra o texto, a crítica do fantasma ou dosespíritos e no desejo de excluir o estrangeiro, de convidá-lo sem o aceitar,
seria, portanto, a crítica de uma representação subjetiva e de uma hospitalidade doméstica que acolhe sem acolher o estrangeiro, mas
abstração, do que se passa na cabeça, do que nãosai senão da cabeça, um estrangeiro que se encontra já dentro (das Heimliche-Unheimli-
ou seja, do queali permanece, na cabeça, à medida mesmo que daí che), mais íntimoa si que si mesmo, a proximidade absoluta de um
saiu, da cabeçã, e sobrevive fora da cabeça. Masnada seria possível, estrangeiro cujo império é singular e anônimo (es spukt), um império
começandopelacrítica, sem a sobrevivência, sem a sobrevida possí- inominável e neutro,isto é, indecidível, nem ativo, nem passivo, uma
vel dessa autonomiae desse automatismofora da cabeça. Poder-se-á a-identidade que ocupa invisivelmente e sem nada fazer os lugares
dizer que aí se situa O espírito da crítica marxista, não aquele que que não são finalmente nem os nossos nem os seus. Ora, tudo isso,
isto de que fracassamos em dizer alguma coisa logicamente determi-
contraporíamos à sualiteralidade, mas aquele quesupõe o movimen-
nável,isto que vem tãodificilmente à linguagem,isto que parece não
to mesmo de sua literalidade. Como o fantasma, ele não está nem na
querer dizer nada, isto que descarrilha nosso quererdizer, fazendo-
cabeça nem fora da cabeça. Marx sabe-o, ele faz como se não
nos regularmentefalar desde o lugar onde não queremosdizer nada,
quisesse sabê-lo. Em A ideologia alemã, o capítulo seguinte será
em que sabemos claramente isso que não queremos dizer, mas não
consagrado a essa obsessão que fazia Stimer dizer: “Mensch, es
sabemoso que gostaríamos de dizer, como se isto não fosse mais da
spuktin deinem Kopfe!” Tradução corrente: “Homem,tu tens apari-
ordem do saber nem da ordem do querer ou do querer-dizer; bem,isto
ções dentro da cabeça!” Marx acredita que basta devolver o apóstro-
volta, isto retorna, isto insiste na urgência,e isto dá a pensar, masisto,
fo contra são Max.2 que é cada vez demasiadamenteirresistível, demasiadamente singu-
“Es spukt”: difícil de traduzir, dizíamos. Questão de aparição e de
lar para engendrar tanta angústia quanto o porvir e a morte, isto é
obsessão, certo, mas, o que mais? O idioma alemão parece nomear a
menos do que um ““automatismo de repetição”(o dos autômatas que
retornância, mas ele a nomeia por meio de uma forma verbal. Esta
giram diante de nós há muito tempo) que tudo isso nos dá a pensar
não diz que há retornante, espectro,ou fantasma,ela não diz que há totalmente outro, a que pertence uma compulsão de repetição: que
aparição, der Spuk, nem mesmo queisso aparece, mas que “isso
totalmente outro é totalmente outro. A retornância impessoal do es
espectra”, “isso apariciona”. Trata-se, na neutralidade dessa forma
spuki produz automatismo de repetição, apesar de encontrar aí seu
verbal completamente impessoal, de alguma coisa ou de alguém, nem princípio de razão. Em um incrível parágrafo de Das Unheimliche,
alguém nem alguma coisa, de um“se” que não age. Trata-se antes Freud reconhece,aliás, que é por aí, por isto que diz O “es spukt”,
do movimento passivo de uma apreensão, de uma experiência passi- que ele deveria ter começado as suas pesquisas (sobre Das Unheim-
va pronta para acolher, mas onde? Dentro da cabeça? A cabeça,o que liche, a pulsão da morte, a compulsão à repetição, para além do
vema seristo antes dessa apreensão queela nem mesmo pode conter? princípio de prazeretc.!) Ele vê aí um exemplo porondeele precisaria

1 Llâtologie allemande, O.C., pp. 183-184,traduçãoligeiramente modifi- 1 Porque Freud vê na obsessão (hantise) o exemplo “talvez o maisforte”, uma
a.
ana na experiência da Unheimlichkeit? Porque, “a um grau
2 OC,p. 184. extrémo” (im allerhôchsten Grade), parece “unheimlich” para muitos ho-
230 JACQUES DERRIDA
Espectros de Marx 231

começar a pesquisar. Chega mesmoa tomá-lo comoo exemplo mais nossa inquirição pelo exemplo de Unheimlichkeit, talvez o mais
forte da Unheimlichkeit (Wir hátten eigentlich unsere Untersuchung forte.””). Mas podemos nos perguntar se o que ele chama de exem-
mit diesem, vielleicht stârksten Beispiel von Unheimlichkeit begin- plo mais forte se deixa reduzir a um exemplo — somente ao exemplo
nên kônnen: “Nós poderíamos, para falar propriamente, começar mais forte,na série dos exemplos. E se fosse a Coisa mesma, a causa
disso mesmo que se buscae quefaz pesquisar? A causa do saber e da
pesquisa, o motivo da história ou da episteme? Se ele tirasse daí a sua
força exemplar? Por outro lado, é preciso prestar atenção ao meca-
mens tudo o que está ligado à morte, ao cadáver, ao retorno dos mortos,aos
nismo conjuratório que Freud adianta para se justificar, por não ter
espíritos e aos espectros (mit Geistern und Gespenstern). Mas para grande
sofrimento dos tradutores, Freud quer ilustrar essa asserção chamando a acreditado que deveria começar ondeele teria podido começar, por
atenção não para o fato de que “es spukt” é difícil de traduzir (pelas razões ondeele deveria ter começadoe, no entanto,ele, por exemplo (quero
que indicamos acima), mas para o de que “'várias línguas modernas não dizer, acho que me entenderam: ele, Marx também).
podem dar conta de nossa expressão ein unheimliches Haus senão transcre- Freud nos explica isso no tom sereno da prudência epistemológi-
vendo-a assim: uma casa onde es spult ([...] manche moderne Sprachen ca, metodológica, retórica, como verdade psicológica:se ele teve que
unseren Ausdruck: ein unheimliches Haus gar nicht anders wiedergeben não começar por onde teria podido ou devido começar, é que com a
kônnen als durch die Umschreibung: ein Haus, in dem es spukt. “Das coisa em questão (o exemplo mais forte de Unheimlichkeir, o “es
Unheimlichem” GW XJI, pp. 254-255). Na verdade, “unheimliche” é tão
spukt”, os retornantes e as aparições) infundimo-nos bastante medo.
pouco traduzível quanto “es spula”. E isso provocoutraduções embaraçadas,
Confunde-se o que é, contraditoriamente, indecidivelmente, heimli-
e, no fundo,ininteligíveis. Por exemplo “[...] muitas línguas modernas não
podem dar conta de nossa expressão 'uma casa unheimlich' a não ser poresta che-unheimliche, com o terrível ou apavorante (mit dem Grauenhaf-
circunlocução(une maison hantée). (tr. M. Bonapartee R. Marty, “L"inquie- ten). Ora o pavor,isso não é bom para a serenidade da pesquisa, nem
tante étrangeté”, NRF,pp. 194-195) ou ainda “[...] dome languages in use para a distinção analítica dos conceitos. Seria preciso ler também por
to-day can only render the Germanexpression “an unheimlich house" by “a si mesma, e sob este ponto de vista, toda a segiiência do texto;
baunted house" (Standard Edition, vol. XVI, p. 241). Sobre o que Freud tentaremosfazê-lo alhures, cruzandoessa leitura com a de numerosos
afirma em seguida da morte mesma, voltaremos noutra parte, para relacioná- textos de Heidegger."
lo com os discursos de Heidegger e Levinas sobre isso (Apories, no prelo, Fregiente, decisivo e organizador, o recurso que este faz em Sein
edições Galilée). Outra época, outra modalidade, outro modopara os fantas-
mas: Freud observava, na mesma página, que as conferências importantes und Zeit e alhures ao valor de Unheimlichkeit, pensamos que perma-
sobre a comunicação com aparições tendiam, então, a se multiplicar. Espíri- nece, em geral, despercebido ou negligenciado. Nos dois discursos,
tos sutis, observaele,entre os homensde ciência, sobretudono final de suas no de Freud e no de Heidegger, esse recurso tomapossíveis projetos
vidas, cedem à tentação telepática ou mediúnica. Ele sabia do que estava
falando. E uma vez que Hamlet terá sido o nosso assunto, esclareçamos que
Freud julgava as aparições espectrais desprovidas de qualquer poder de 1 Freud e Heidegger. Em La Carte postale... (Flammarion, 1980, p. 206), o
Unheimlichkeit (O.C., p. 265). Comoas de Macbeth ou de Júlio César, como signatário dos Envois os dispõem como dois espectros: “Aqui, Freud e
as do Inferno de Dante, Elas podem ser terrificantes (schreckhaft) ou lúgu- Heidegger, eu os uno em mim como dois grandes fantasmas da “grande
bros (diister), certamente, mas tão pouco unheimlich quanto o mundo dos época” — os dois avôs sobreviventes. Eles não se conheceram, mas formam
deuses homéricos. Explicação:a literatura, a ficção teatral. Segundo Freud,
na minha opinião um casal, justamente por causa disso, dessa singular ana-
nós amoldaríamos então nosso julgamento às condições de realidadefictícia, cronia”. :
tais como elas são estabelecidas pelo pocta, e trataríamos “as almas, os Uma aparição sendo sempre chamada a vir e revir, O pensamento do
espíritos e os espectros” como existências, normais, instituídas, legítimas espectro, contrariamente ao que acredita o bom senso, acena na direção do
(vollberechtige Existenzen). Observação tanto mais surpreendente, pois to- porvir. Trata-se de um pensamento do passado, uma herança que não pode
dos os exemplos de Unheimlichkeit são nesse ensaio tomados daliteratura! vir senão deste queainda não chegou — daquele que está chegando.
232 JACQUES DERRIDA Espectros de Marx 233

outrajetos fundamentais. Mas ele os faz ao mesmo tempo em que podem enterrar os mortos. Apenas mortais podem vigiá-los e sim-
desestabiliza em permanência, e tanto ou quanto misteriosamente, plesmente velá-los. Fantasmas podem também, eles estão em toda
a ordem das distinções conceituais empregadas. Ele deveria inquie- parte onde isso vela, mortos não o podem — é impossível e nãoseria
tar tanto a ética quanto a política que se seguiram implícita ou conveniente.
explicitamente. Que o sem-fundo dessa impossibilidade possa, contudo,ter lugar,
Nossa hipótese é de que o mesmo acontece com a espectrologia de eis, ao contrário, a ruína ou a cinza absoluta, a ameaça que é preciso
Marx. Esta grande constelação problemática da obsessão é a nossa, pensar, e, por que não”, exorcizar ainda. Exorcizar não para caçar os
nãoé. Ela não tem limites assegurados, mas piscae cintila debaixo fantasmas, mas desta vez para dar-lhes direito, se isto significa
dos nomes próprios de Marx, de Freud e de Heidegger: Heidegger fazê-los revir vivos, como aparições que não fossem mais aparições,
que desconheceu Freud que desconheceu Marx. Isto não é sem mas como esses outros que chegam, para quem uma recordação ou
dúvida aleatório. Marx ainda não foi recebido. O subtítulo desta uma promessa hospitaleira deve dar acolhida — sem a certeza,
palestra poderia ter sido “Marx — das Unheimliche”. Marx continua nunca, de queeles se apresentem enquanto tais. Não para dar-lhes
sendo entre nós (chez nous) um imigrado, um imigrado glorioso, direito nesse sentido, mas por cuidado de justiça. A existência ou a
sagrado, maldito, mas ainda clandestino, como o foi toda a suavida. essência presentes nunca foram a condição, o objeto ou a coisa da.
Ele pertence a um tempo de disjunção,a esse “time out ofjoint” em justiça. Sem cessar é preciso ressaltar que o impossível (“deixar os
que se inaugura laboriosamente, dolorosgmente, tragicamente, um mortos enterrarem os mortos”) é, infelizmente, sempre possível. Sem
novo pensamento das fronteiras, uma nova experiência da casa, do cessar é preciso ressaltar que esse mal absoluto (a vida absoluta, a
chez-soi e da economia. Entre céu e terra. Ao imigrado clandestino, vida plenamente presente, não é, a que não conhece a morte e não
não seria preciso apressar-se em negar-lhe o visto ou, o que sempre quer mais ouvir falar dela) pode ter lugar. Sem cessar é preciso
pode vir a dar no mesmo, em domesticá-lo. De neutralizar por ressaltar que é mesmoa partir da possibilidade terrível desse impos-
naturalização. De assimilá-lo para parar de se fazer medo com ele. sível que a justiça é desejável: através, mas, então, além do direito.
Ele nãoé da família, mas não dever-se-ia reconduzi-lo, uma vez mais, Se Marx, como Freud, como Heidegger, como todo mundo, não
a ele também, à fronteira. começou por onde ele deveria “poder começar” (beginnen kônnen),
a saber, pela obsessão,antes da vida comotal, antes da morte como
Tão vivo,tão são,tão crítico, tão necessário ainda que permaneça tal, não é sem dúvida culpa sua. A culpa, em todo caso,pordefinição,
seu riso,e primeiramente diante do espectro capital ou paterno,diante se repete, ela é herdada, é preciso prestar atenção a isso. Ela sempre
do “Haupigespenst” que é a essência geral do Homem, Marx, das custa muito caro — e, precisamente, à humanidade. O que custa
Unheimliche, não deveria talvez ter caçado tão rapidamente tantos muito caro à humanidade é, sem dúvida, acreditar que se pode acabar
fantasmas. Não todos ao mesmo tempo, nem tão simplesmente, sob na bistória com uma essência geral do Homem,sobo pretexto de que
pretexto de queeles não existiam (certamente eles não existiam, e ela não representa senão um Hauptgespenst, um arquifantasma, mas
então?) — ou que tudo isso era e devia permanecer sendo passado também, o que dá no mesmo — no fundo — acreditar ainda, sem
(“Deixem os mortos enterrarem os mortos”, etc.). Tanto mais que ele dúvida, neste fantasma capital. Acreditar como o fazem os crédulos
sabia também deixá-los em liberdade, emancipá-los mesmo, no mo- ou os dogmáticos. Entre as crenças, como sempre, a porta continua
vimento. em que analisava a autonomia (relativa) do valor de troca, sendo estreita.
do ideologema ou dofetiche. Mesmo se se quisesse, não poder-se-ia Para que haja sentido em interrogar sobreo terrível preço a pagar,
deixar os mortos enterrarem os mortos: isso não tem sentido,isso é para velar elo porvir, seria preciso re-começar tudo. Mas em memó-
impossível. Apenas mortais, apenas vivos que não são deuses vivos ria, desta vez, dessa impura “impura impura história de fantasmas”. .
234 JACQUES DERRIDA

Poderíamos,para questioná-lo, dirigir-nosao fantasma? A quem?


A ele? A isso, comodiz ainda, prudentemente, Marcelo? “Thou art
a Scholler; speake to it Horaiio [...] Question it.”
A questãotalvez mereça serrestituída: poderíamosdirigir-nos em
geral se algum fantasmajá não estiver voltando? Se, ao menos, ele
“ama justiça, o “erudito” do porvir, o “intelectual” de amanhã
deveria recebera lição,e dele. Ele deveria aprendera viver aprenden-
do não a conversar com o fantasma, mas a ocupar-se dele, dela, a
deixar-lhe ou restituir-lhe a fala, seja em si, no outro, no outro em si:
eles estão sempre aí, os espectros, mesmo se eles não existem,
mesmoseeles não são mais, mesmo se eles não são ainda. Eles nos
dãoa repensar o “aí” desde que se abre a boca, mesmo em um sim-
pósio e sobretudo quandoseestá falando numa língua estrangeira:

“Thouart a scholar; speak to it, Horatio...”

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GRAPHOS
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