Os Conflitos No Processo de Transição Do Génos para A Pólis: O "Velho" E O "Novo" Na Trilogia Tebana de Sófocles
Os Conflitos No Processo de Transição Do Génos para A Pólis: O "Velho" E O "Novo" Na Trilogia Tebana de Sófocles
Os Conflitos No Processo de Transição Do Génos para A Pólis: O "Velho" E O "Novo" Na Trilogia Tebana de Sófocles
ISBN: 978-85-99680-05-6
REFERÊNCIA:
1
Cidade-Estado era a forma de vida social mais característica dos gregos da época clássica, e pode ser
definida, como um corpo político baseado na idéia de cidadania: quer dizer, era uma comunidade
constituída por uma pluralidade de pessoas juridicamente iguais.
2
Entende-se por sociedade gentílica o regime da gens cujos membros, unidos por cerimônias sagradas,
ajudavam-se em todas as necessidades da vida e na qual o vínculo de nascimento garantia o nome dos
antepassados, estando os parentes ligados uns aos outros por deveres de solidariedade, tendo a terra como
propriedade coletiva (COULANGES, 1975, p. 93).
3
“Estados autônomos e autárquicos aos quais os helenos davam o nome de pólis, ora traduzido por
cidade-Estado, ora apenas por cidade [...] ... a tendência hoje é para aceitar que a pólis teria surgido no
século VIII a.C. – primeiro na Ásia Menor, mas em breve espalhado por toda Hélade” (FEREIRA, 1992,
p. 14/33).
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formação do homem da pólis e ao patrocínio do Estado na produção artística, tanto do
teatro e da literatura, como da arquitetura e da escultura.
Não obstante, a sociedade grega do período clássico não se desprendeu por
completo do seu passado. Ainda havia influências da antiga tradição nesta sociedade, as
quais estavam presentes na religião, na política e na cultura da cidade. Isso acabou por
causar a instabilidade da comunidade e provocou no homem grego um estado de
constante conflito.
Tais conflitos eram vividos não só em relação a seu mundo exterior, ou seja,
com as transformações ocorridas na estrutura da cidade e na organização da sua
comunidade, mas também surgiram quando o homem dessa comunidade se deparou
com mudanças na forma de entender qual deveria ser o seu papel nessa nova sociedade.
E foi no estado de conflito do homem grego diante das transformações na sua
sociedade que Sófocles foi buscar o assunto para criar suas obras. Isto pode ser
verificado nas suas peças, principalmente nas tragédias Édipo Rei, Édipo em Colono e
Antígona.
Nelas o poeta ateniense procurou mostrar os conflitos vividos pelo homem
grego nesse período de transição e de mudanças que provocaram um estado de conflito
no homem na sua tentativa de se desprender da antiga ordem social e se adaptar às
novas relações que estavam sendo postas.
Ao representar o herói trágico nas suas peças, Sófocles estava personificando o
homem da cidade-Estado grega. A luta do herói mítico diante do seu destino era a
representação da luta do homem-cidadão da pólis diante das mudanças na estrutura
social.
Este conflito foi gerado porque a nova ordem democrática da cidade-Estado já
não aceitava as antigas formas de organização da sociedade, baseadas no patriarcalismo.
Eis que se deu o embate entre o “velho” (organização gentílica) e o “novo” (a pólis
democrática).
Nas três obras sofoclianas Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona, que formam
a “Trilogia Tebana”4, foi que o poeta procurou mostrar o conflito do pai contra o filho,
base destas peças:
... o tema das três tragédias é o conflito entre pai e filho. Em Édipo
Rei, Édipo mata o seu pai Laio que lhe tenta tirar a vida. Em Édipo em
Colono expande o seu ódio terrível contra os filhos, Etéocles e
Polinice, e em Antígona aparece o mesmo ódio entre pai e filho, entre
Creonte e Hêmon. [...] Se, portanto, analisarmos Édipo Rei no
conjunto da trilogia, chegaremos à conclusão de que o problema em
Édipo Rei é o conflito entre pai e filho, entre Laio e Édipo ...
(BRANDÃO, 1999, p. 47).
O pai representa nas peças de Sófocles a antiga tradição que entra em atrito com
o filho, personificação da nova ordem social. É este conflito que acaba por gerar o efeito
trágico nas peças sofoclianas, como no caso de Édipo Rei, onde é narrado a história de
4
Cf.: Mario da Gama Kury, a Trilogia Tebana é formada pelas três peças (Édipo Rei, Édipo em Colono e
Antígona) que reúnem os dramas ambientados na velha Tebas grega e/ou em torno da família tebana do
rei Édipo. (KURY, 1990)
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Édipo, em que o herói é conduzido ao trono da cidade de Tebas ao desvendar o enigma
da Esfinge 5, livrando a cidade do flagelo causado pela “Cruel Cantora”:
CORO
... pois conseguiu
matar a virgem misteriosa,
de garras curvas e enigmas bárbaros.
Quando ele veio de longes terras
sua presença foi para nós
aqui em Tebas um baluarte;
graças a ele sobrevivemos.
Desde esse tempo, Édipo heróico,
nós te chamamos de nosso rei
e nos curvamos diante de ti,
senhor supremo da grade Tebas (Édipo Rei, vv. 1406-1416, p. 83).
No entanto, a cidade governada por Édipo é assolada por uma peste provocada
pelos deuses. Ao tentar desvendar as causas do castigo que os deuses haviam imposto à
cidade, Édipo acaba por descobrir a existência de um culpado que maculou a cidade e
provocou a ira divina:
CREONTE
Revelarei então o que ouvi dos deuses.
Ordena-nos Apolo com total clareza
que libertemos Tebas de uma execração
oculta agora em seu benevolente seio,
antes que seja tarde para erradicá-la (Édipo Rei, vv. 118-122, p. 25)
Então o rei começa a buscar o culpado para livrar a cidade da maldição, até que
descobre ser ele mesmo o responsável pelos males que recaíam sobre Tebas, pelos
crimes que cometera.
Na peça o protagonista atinge o efeito trágico, não pelo incesto cometido com
sua mãe Jocasta, a qual tomara como esposa ao assumir o trono da cidade tebana sem
saber que fora gerado por ela. Mas por ter assassinado o próprio pai, o antigo rei de
Tebas, Laio, o que pode ser entendido como um ato de revolta contra a antiga ordem
que já não tem forças para governar e deve ser substituída pela nova organização:
5
“Esfinge: a “Cruel Cantora” como é chamada na peça de Édipo-Rei era um monstro com cabeça e busto
de mulher, corpo de garras de leoa, cauda em forma de serpente, asas de ave, e voz humana. Fixara-se
numa vizinhança de Tebas e mantinha toda região alarmada pior causa dois enigmas que cantava,
devorando quem não os decifrasse. Um oráculo declarara que a Esfinge se destruiria as si própria no dia
em que seus enigmas fossem decifrados. Um deles era “que animal anda com quatro pernas de manhã,
duas ao meio-dia e três a tarde?” Diante da situação calamitosa criada pelos enigmas da Esfinge, Creonte,
que em conseqüência da morte de Laio detinha o poder em Tebas, teria prometido em o trono e sua irmã
Jocasta (viúva de Laio) em casamento a quem livrasse a região do monstro, decifrando-lhe os enigmas.
Édipo teria conseguido vencer a Esfinge, respondendo que o animal aludido descrito acima era o
“homem”, que na infância (manhã da vida) usava as mãos e os pés para engatinhas, depois (meio-dia)
usava os dois pés para andar, e na velhice (tarde) tinha de recorrer a um bastão para poder caminhar,
assumindo assim o trono de Tebas e casando-se com Jocasta” (KURY, 1990, p. 91).
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paterna da família patriarcal. O casamento de Édipo com sua mãe
Jocasta é um elemento secundário na tragédia: apenas um dos
símbolos da vitória do filho, que ocupa o lugar do pai, e, com isso,
todos os privilégios deste (BRANDÃO, 1999, p. 47).
Para Sófocles, a nova organização é o filho (Édipo) tomando para si o que antes
fora ocupado pelo pai (Laio):
CORO
Tu és o filho que atravessou
a mesma porta por onde antes
teu pai entrara: nela te abrigas ... (Édipo Rei, vv.1423-1425)
CREONTE
Possa, na minha idade, receber lições
de sensatez de alguém da natureza dele?
HÊMON
Se houver razões. Sou jovem? Olha mais então
para os meus atos que para os meus poucos anos.
CREONTE
Crês que exaltar rebeldes é ato louvável?
HÊMON
Eu não te exortaria a respeitar os maus.
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CREONTE
E por acaso ela não sofre desse mal?
HÊMON
Não falam desse modo os cidadãos de Tebas.
CREONTE
Dita a cidade as ordens que me cabe dar?
HÊMON
Falaste como se fosse jovem demais!
CREONTE
Devo mandar em Tebas com a vontade alheia?
HÊMON
Não há cidade que pertença a um homem só.
CROENTE
Não devem as cidades ser de quem as rege?
HÊMON
Só, mandarias bem apenas num deserto (Antígona, vv.826-839, p.
227).
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ÉDIPO
... Tebas baniu-me dessa vez com violência
– muito mais forte – meus dois filhos que podiam
ter me ajudado – filhos ajudando pai –
nada fizeram então, por nada terem dito
uma simples palavra, passei a viver
errante por terras estranhas, exilado,
como um mendigo ... (Édipo em Colono, vv. 481/487, p. 126)
É nessa peça, também, que poder ser constatado que as leis que anteriormente
vigoravam na antiga ordem gentílica já não têm mais influência na condução da pólis.
Mesmo sendo o primeiro na linha de sucessão, Polinices não herda o trono de Édipo.
Etéocles, aliando-se ao seu tio Creonte, assume o trono da cidade de Tebas, rompendo
com a lei gentílica da tradição, onde o filho primogênito era por direito o herdeiro do
trono na sucessão:
ISMENE
... O mais novo, menos dotado de direito
pela idade, privou do trono o primogênito
Polinices, e o expulsou de sua pátria ... (Édipo em Colono, vv. 400-
402, p. 122).
Isso se verifica na atitude de Polinices dentro da peça que tenta manter à força
os direitos que não mais vigoram. Polinices, para fazer valer suas prerrogativas de
primogênito, forma um exército e volta à Tebas para tentar recuperar o trono, que
considerava seu por direito:
ISMENE
... Este, se acreditarmos em fortes rumores,
foi para Argos rodeado de Colinas,
e lá, como exilado, conseguiu formar
uma aliança nova graças aos amigos,
que lhe proporcionará muitos soldados;
ele imagina que dentro de pouco tempo
Argos conquistará gloriosamente Tebas
ou esta será lembrada até nós céus (Édipo em Colono, vv. 403-410, p.
122).
POLINICES
... Fui banido da minha terra e me exilei
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por ter querido como filho primogênito
subir ao trono e reinar soberanamente.
Por isso, Etéocles, apesar de mais jovem,
expulsou-me de minha pátria sem tentar
persuadir-me graças a bons argumentos
e sem mostrar-se mais valente e poderoso,
somente por haver seduzido a cidade (Édipo em Colono, vv.1516-
1523, p. 169).
São os cidadãos da pólis, e não o chefe patriarcal, que expulsam Édipo para o
exílio, pois seus crimes causam a desordem social, ou seja, a peste que assola a cidade
de Tebas, provocada pela ira dos deuses contra as transgressões do seu rei.
Este ato de banir Édipo da cidade é um exemplo da aplicação de uma das
primeiras leis criadas para a administração da cidade-Estado, que é a lei do
“ostracismo”6, instituída pelo povo de Atenas para expulsar do convívio social qualquer
cidadão que representasse perigo ou ameaça à manutenção da ordem e da organização
da pólis democrática:
O poder para aplicação da justiça na pólis não está mais centrado nas mãos de
um único legislador ou de um rei. Sófocles mostra isso ao narrar a chegada de Édipo na
cidade de Colono.
Ao ser abordado pelos primeiros habitantes de Colono Édipo quer saber quem
tem o poder para tomar as decisões na cidade: “Quem é o dono da palavra e do poder?”
6
“Com as mãos erguidas, o povo votava e decidia a conveniência de uma ostrakophoria. Uma segunda
votação, esta secreta, indicava aquele que a opinião popular considerava perigoso. A primeira vítima foi
um tal Hiparcos, que Aristóteles reputava como “amigo dos tiranos”. Posteriormente, contudo, o
ostracismo viria a constituir uma temível arma nas mãos do povo, e os inúmeros ostraka que chegaram
até nós demonstram que nenhum político ateniense escapou à desconfiança popular” (MOSSÉ, 1997, p.
23).
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(Édipo em Colono, vv. 77, p. 106) e questiona se esta cidade é governada por um único
homem, ou o poder é do povo: “Alguém os rege, ou a palavra está com o povo?” (Édipo
em Colono, vv. 75, p. 106).
A resposta a estas questões de Édipo é encontrada na fala da personagem do
“Estrangeiro” que esclarece ao rei destronado que nenhuma decisão pode ser tomada
individualmente por nenhum cidadão, mas deve antes passar por um processo público
de avaliação de todos que compõem a “cidade”. E após passar pelo julgamento público,
toda “cidade” deveria dar o veredicto sobre a questão em julgamento:
ESTRANGEIRO
Por mim não tenho a pretensão de remover-te
sem ordem da cidade; antes perguntarei,
à luz dos fatos, o que deverei fazer (Édipo em Colono, vv. 53-55, p.
106).
REFERÊNCIAS
BRANDÃO. Teatro grego: tragédia e comédia: 7ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
KURY, Mário da Gama. Introdução. In: SÓFOCLES. Trilogia Tebana. Trad. Mario da
Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 7-17.
MOSSÉ, Claude. Atenas: a história de uma democracia. Trad: João Batista da Costa.
3ed. Brasília; Editora da Universidade de Brasília, 1997.
SÓFOCLES. Antígona. Trad. Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro; Editora Jorge
Zahar, 1990.
________. Édipo em Colono. Trad. Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro; Editora
Jorge Zahar, 1990.
________. Édipo-Rei. Trad. Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro; Editora Jorge Zahar,
1990.
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