Versões de Nós - Maria Luisa G. Silva

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Copyright © 2024 Maria Luisa Gonçalves Silva

Capa: Andressa Rios (@Andressa7ios)


Revisão e leitura crítica: Maria Clara Gomes
Leitura sensível: Vitória Queiroz (@literaryvi)
Diagramação: Maria Luisa Silva (@virandoapaginna)

Todos os direitos reservados. Este ebook não pode ser reproduzido de forma
alguma sem autorização expressa, por escrito, do autor.
NOTA DA AUTORA

Caro leitor,
Em maio de 2023, um mês particularmente difícil da
minha vida, decidi que se não escrevesse um livro, desistiria da
minha carreira de escritora. Eu só tinha uma ideia em mente,
uma cena específica, e o sonho de terminar uma história.
Foi então que Versões de Nós (VDN), nasceu.
Apesar de estar empolgada para que você desfrute
desta história, alguns avisos se fazem necessários. Por favor,
leia com atenção.
VDN possui cenas de crises de pânico e ansiedade,
cenas com teor sexual +18, menções à abandono
parental, homofobia e palavras de baixo calão. Se algum
desses temas é um gatilho para você, leia com atenção e
cuidado.
Se você está lendo esse livro pela Amazon, desejo, de
coração, que goste da história e aproveite ao máximo. Mas se
você escolheu baixar ilegalmente, meus mais sinceros vai se
f****, pelo menos deixa uma avaliação.
Com amor, Mari.
para todos os corações cheios de cicatrizes e
que ainda estão se curando.
VDN conta uma playlist exclusiva, disponível no Spotify.
https://open.spotify.com/playlist/1OQWt8p1QGUkIeybRx28Qn?
si=ec0e36f71b2e4380

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de Nós.
PRÓLOGO
Três anos antes
Outubro, 10:17, Londres.
Vincent acordou com o cheiro de ameixas e, ainda de
olhos fechados, sorriu.
Ele esticou a mão, os dedos tateando os lençóis e seus
lábios se tornaram uma linha fina ao perceber que o colchão
estava vazio. Sentou-se, desnorteado, a claridade súbita
irritando suas pálpebras. Alcançou o celular no carregador,
notando as várias chamadas perdidas e mensagens do melhor
amigo.
Eram dez da manhã, Vincent perdeu a hora. Fora dormir
mais tarde do que deveria na noite anterior. Além disso,
havia… Ela.
Ele mal conseguiu disfarçar o sorriso: a sensação da
pele de Amélia ainda na memória, a risada dela ecoando nos
seus pensamentos. Como tanta coisa poderia ter mudado em
um espaço tão curto de tempo por conta de um encontro com
uma desconhecida?
— Amélia?
Chamou pelo apartamento, estranhando o silêncio.
Talvez ela estivesse no banheiro, mas quando verificou, não
havia ninguém. O lugar estava vazio e se não fosse pelo cheiro
dela em suas roupas, Vincent teria certeza de que tudo aquilo
foi um sonho.
Vincent pegou o celular, mais uma vez, ignorando as
chamadas urgentes, e discou o número indicado por ela.
— Esse número não existe, ligue novamente ou tente…
Desligou, sem entender. Procurou por “Amélia Batista”
no Instagram, mas não achou registro algum na internet e o
coração de Vincent se acelerou. Ela lhe deu informações falsas,
mas por quê? O que tinha deixado escapar?
Confuso, irritação queimando na garganta, cruzou o
caminho que separava seu prédio do alojamento estudantil.
Descalço, o asfalto machucou sua pele como pequenas
agulhas, no entanto, sequer sentiu a dor, os dedos trêmulos
passando pelos cachos castanhos em uma tentativa de se
acalmar.
Não queria acreditar que Amélia partiu sem ser notada,
sem dizer adeus, sem nem… Ela foi embora sem nem olhar
para trás.
Ao ouvir os estudantes relatarem que não havia
nenhuma Amélia hospedada ali, Vincent piscou, tendo certeza
de que estava na porra de um pesadelo. Sua respiração falhou,
o ar de inverno gelado contra sua pele quente, pinicando de
ansiedade.
Vincent sempre foi o primeiro a ir embora. Estava
acostumado a fugir quando seus sentimentos eram ameaçados
ou ao menor sinal de que as coisas dariam errado. Foi a forma
que ele encontrou para evitar um coração estilhaçado.
Exatamente como naquele momento, quando centenas de
cortes atingiam seus pensamentos ao mesmo tempo.
Afinal, como figura pública desejável, recebendo
atenção constante, rodeado de tantas pessoas, Vincent sempre
se perguntava: quem sequer poderia deixá-lo? Mas dentro da
sua cabeça, assombrando-o, ecoava a verdadeira questão:
quem sequer poderia ficar?
Sozinho. Vincent estava sozinho outra vez.
01.
Dezembro
Amélia Palhares estava a um passo de se jogar pela
janela aberta da Galeria Torrisi.
Ela encarou a tela do computador, o cursor piscando da
planilha inacabada, olhando-a de volta, como se dissesse: que
trabalho de merda é esse que você está fazendo? Não sabe
fazer uma planilha simples?
Os resultados das fórmulas davam erro todas às vezes
que ela tentava inserir um número diferente, criando um caos
completo. As linhas eram uma bagunça de informações e
Amélia nem sequer se lembrava de onde cada uma delas viera.
Com um suspiro, tirou os óculos redondos, de aro
dourado, do rosto e deslizou pela cadeira do escritório,
sentindo-se frustrada.
— Perdeu a luta contra o Excel?
A voz divertida de Angela Savio ecoou pelo pequeno
escritório. Ela estava parada na porta, usando um vestido midi
preto, as tranças cor de rosa presas em um coque elaborado
na nuca.
— Estou tentando não admitir a derrota.
— Já está quase na hora de fechar, por que não deixa
isso para amanhã?
— No dia mais movimentado da semana, An? É quase
pedir pela morte.
Angela deu de ombros.
— Vou começar a trancar as portas, tudo bem? Te
espero lá embaixo.
Amélia assentiu e arrumou a postura.
Como se desarmasse uma bomba, juntou os papéis com
as informações e repetiu internamente que conseguia fazer
aquilo, não era difícil. Porra, ela era uma mulher com diploma
de graduação e especialização, podia lidar com uma planilha
simples.
A motivação funcionou um pouco e meia hora depois,
Amélia fizera um progresso considerável. Ainda faltava muita
coisa, mas sua cabeça não conseguia processar nenhum outro
número e ela desligou o computador, decidindo esquecer da
existência da matemática pelo do dia.
O fim de tarde em Mancia invadia as janelas altas do
último andar da Galeria Torrisi, os painéis de vidro permitindo a
vista espetacular do canal. As águas refletiam a luz em
diferentes direções e as pontes que ligavam os lados opostos
do rio Palesche pareciam douradas sob o toque do sol. E o céu,
pincelado de rosa, roxo e laranja, merecia ser imortalizado em
alguma pintura.
— Acabei aqui!
Angela gritou e Amélia saiu do transe da paisagem.
Desceu para o segundo andar e avistou a amiga mexendo no
celular, parada ao lado de uma tela estilo cubista.
— Acabei de falar com Pia. Descobri que temos reservas
no restaurante dela, sabia disso?
Amélia sorriu.
— Não. Bom, Pia sempre faz as reservas como bem
quer, então não é surpresa alguma. Você tinha planos?
— Agora eu tenho. Se importa se eu chamar Sancia para
o La Fratta?
— Claro que não, eu gosto da sua... Namorada? Noiva?
— Ficante, Amélia. — Angela revirou os olhos verdes. —
Você é péssima.
— É difícil acompanhar seus relacionamentos, Angela,
não me culpe.
Amélia entrelaçou o braço no de Angela e elas pegaram
o elevador para o térreo. Conferiram se as janelas estavam
mesmo fechadas e os alarmes ligados.
— O que você vai fazer amanhã?
Angela perguntou enquanto as duas mulheres já
estavam caminhando na rua.
— Me trancar no meu apartamento e estudar.
— Essa é a sua versão de fim de semana, Amélia?
— Eu faço mestrado, não sei se você lembra.
— Se você não se lembra, eu também faço e nem por
isso decidi viver como uma reclusa por conta disso.
— Olha, não parece uma ideia ruim.
Angela parou de andar e colocou as mãos nos ombros
de Amélia.
— Ames, pelo amor de Deus! Você tem 24 anos, é linda,
cheia de energia e precisa desesperadamente ir para uma
balada, beijar umas bocas, sei lá.
— Desse jeito parece que vivo em uma prisão,
enclausurada.
— E o pior, é por opção! Quando foi a última vez que
você beijou alguém? E se você disser que foi a garota da nossa
primeira noite na Itália, instalo o Tinder no seu celular agora
mesmo.
Amélia apertou os lábios, pensando em como desviar
daquele assunto, quando foi salva por uma mulher que vinha
correndo na direção delas. Ela só viu o borrão dos sapatos
vermelhos, antes que a pessoa se lançasse em cima de Angela.
— Olá, querida.
— Oi! — Angela soltou Amélia, firmando as mãos na
cintura da mulher. — Que bom que veio.
— Longe de mim desperdiçar um jantar grátis, ainda
mais no La Fratta. Especialmente com você.
— Mulher esperta.
— Oi, Amélia.
— E aí, Sancia?
Sancia sorriu. Os cabelos crespos presos em um lenço
branco, olhos castanhos escuros estreitos contornados por um
delineador da mesma cor, em um desenho geométrico. A
mulher cheirava a perfume caro e hidrantes de marca, sua pele
negra preta brilhando e Amélia podia apostar que o vestido
preto que Sancia usava, custava o salário inteiro dela.
— Trabalhando em algum editorial?
— Sim! Passei o dia tirando fotos em cima de uma moto,
foi bem divertido. Como estão as coisas na galeria?
Angela estalou um beijo no maxilar quadrado da
modelo.
— Amélia quase entrou em curto circuito ao lidar com
uma planilha, uma criança vomitou na exposição de arte
egípcia e comi o pior sanduíche do mundo no almoço.
— Caralho, empolgantes, então. Se quiser eu posso
olhar a planilha, Amélia. Fiz um curso dessa coisa há um tempo
atrás.
— Por favor, eu agradeceria você com o vinho mais caro
que meu salário pagar.
Sancia riu.
— Me mande os arquivos.
Amélia sorriu em agradecimento e andou na frente,
deixando que as duas tivessem um pouco de privacidade.
Se a vida amorosa de Amélia era um canto vazio e sem
graça, jogado às traças, a de Angela era uma sala decorada em
tons vibrantes de rosa, laranja e branco, com luzes neons e
sempre ocupada por uma pessoa nova.
Desde que se conheceram, há 2 anos, Amélia
testemunhou namoros, términos, encontros casuais, dois
noivados e um quase casamento. Angela não tinha tempo a
perder e se jogava em uma nova relação sempre que se
apaixonava por uma mulher.
— Eu gosto de estar sempre apaixonada.
Ela dizia. No fundo, Amélia sabia que sua melhor amiga
tinha medo de ficar sozinha e lidar consigo mesma. Apesar
disso, admirava a coragem de Angela de nunca desistir do
amor.
Um flash de memória cruzou a mente de Amélia. Da
última vez que cogitou ter alguma coisa romântica, durou
somente uma noite e ela estragou tudo no final. Era melhor
que ficasse sozinha, então.
— Boa noite, Toni — Amélia se inclinou no balcão da
recepção.
O atendente de pele escura e olhos azuis brilhantes,
sorriu para ela, relaxando a postura.
— Oi, Ames. Minha mãe me avisou que fez reservas
para vocês — Ele acenou para Sancia e Angela.
— Não recuso comida grátis, sou estudante.
— É por isso que eu sempre volto para casa nas férias
— Toni suspirou — Mas não deixe minha mãe saber que eu
sobrevivo com macarrão instantâneo ou ela me mata.
— Seu segredo está seguro comigo.
O La Fratta era o restaurante mais popular de Mancia e
vivia sempre lotado. À beira do canal, contava com uma linda
vista dos prédios históricos da cidade e as mesas de madeira
ultrapassavam os limites da calçada e invadiam a rua. Todavia,
o lugar era tão conhecido e tradicional que ninguém ligava
muito para aquilo e os moradores aceitavam de bom grado
essa pequena infração.
Amélia encarou o letreiro vermelho e dourado, estilo
vintage. A movimentação lá de dentro era grande para o
começo da noite. As portas duplas, abertas, deixavam que o
cheiro da comida e do vinho se misturassem no ar e a boca
dela se encheu de água, pela promessa de um jantar delicioso.
A mesa oito, a mais próxima do canal, logo ficou cheia
quando a dona do restaurante sentou-se junto com Amélia,
Sancia e Angela.
— Eu preciso que você experimente esse lote de vinhos
que acabou de chegar. Um Sassicaia de qualidade maravilhosa!
Fui à Toscana ontem para buscar. O representante foi um fofo,
ele já conhecia Mancia, é claro, mas ficou surpreso quando eu
comprei vinte garrafas de uma só vez.
Pia La Fratta, a matriarca da família, tagarelou. O cabelo
loiro estava preso em um coque alto, a pele corada pelo calor e
os olhos azuis animados enquanto falava.
— Eu diria que foi mais pela sua exigência de comprar
um lote de vinhos todos os meses, querida.
Niccolo La Fratta, marido de Pia, respondeu. Os olhos
castanhos estavam voltados para sua esposa, como um
verdadeiro homem devoto e apaixonado. Ele era bonito, o
cabelo branco, cortado rente a cabeça, lhe dava um charme
especial e mal se viam rugas na pele escura.
— Nunca se sabe. Aliás, preparei uma salada
maravilhosa para vocês, hoje.
— Obrigada, Pia. Você me salvou de comer o resto do
jantar de ontem.
Amélia disse, o cotovelo apoiado na mesa, o queixo em
cima da palma da mão.
— Tudo pelas minhas garotas preferidas — Pia piscou e
sorriu. — E quem seria sua nova acompanhante, Angela?
— Essa é a Sancia.
— Muito prazer — Sancia sorriu, alegre — Adoro seu
restaurante.
— Não conheço você de algum lugar? — Niccolo
estreitou os olhos.
— Sancia é modelo — Angela explicou — Ela está
naquele comercial que imita a história da Cinderela.
— Ah, eu sabia! Felippo é obcecado por esse comercial,
acho que ele é o seu fã — Pia riu — Ele cursa moda em Milão,
o que é uma pena, porque se não tivesse ido para longe,
poderia ter conhecido você.
— E lá vamos nós…
Niccolo suspirou, cruzando os braços.
— Só estou dizendo que ele não precisava ter ido tão
longe, meu amor. Mancia tem excelentes cursos, Ímola
também, então por que ir para o outro lado da Europa? Não
estou certa, Amélia?
— Pia, eu vim do Brasil, acho que não posso opinar
sobre sair de casa para estudar.
Enquanto Pia tornava a reclamar de seu filho mais
velho, Amélia pensou em Sofia.
Mal haviam conversado com a irmã durante a semana e
seu peito se encheu de culpa. O trabalho e os estudos
tomavam muito do seu tempo e detestava estar ausente na
vida de Sofia, quando tudo o que tinham de família era uma à
outra, e um pai que estava em algum lugar do mundo.
— Não é, Amélia?
Pia chamou seu nome e Amélia a encarou, com a testa
franzida.
— Desculpe, o quê?
— Eu estava dizendo que está na hora de você trazer
alguém para vir jantar aqui no La Fratta. Como acompanhante!
— Eu também acho — Angela acrescentou. — Amélia
precisa sair e se divertir, conhecer alguém legal.
Amélia fuzilou a amiga com os olhos.
— Estou muito bem sozinha.
— Dar um beijo na boca uma vez na vida não faz mal a
ninguém, querida. Ninguém aqui falou em namoro. Digo a ela
o tempo todo, mas Amélia não me escuta.

— Obrigada, Pia!
— Eu trabalho a semana toda, não tenho tempo para
isso.
— Mas segunda-feira é a nossa folga — Angela se
inclinou na mesa, com um sorriso maquiavélico — E Sancia
estava me dizendo agora mesmo sobre essa festa que ela foi
convidada…
— Vai ser ótima. — Sancia assentiu — Posso conseguir
convites para você também.
— Vamos, menina, diga sim! — Pia sorriu, empolgada.
Mas que grande droga.
Amélia apertou os lábios, a mesa inteira encarando-a
com expectativa e animação. Tinha certeza de que se
arrependeria amargamente das próximas palavras, apesar
disso não conseguiria negar coisa alguma com todos aqueles
olhares sobre ela.
— Tudo bem, eu vou.
— Eu vou pegar o vinho para comemorar! — Pia riu.
— Vai ser uma noite maravilhosa, você vai amar.
Angela disse, com um sorriso satisfeito no rosto.
— É, vai ser legal.
Por dentro, Amélia duvidava muito disso.
***
O homem beijava bem e era empolgado demais, mas
Vincent não estava no clima.
Ele sentiu os dedos dele em seus cabelos, a boca do
outro descendo para o pescoço e conteve um suspiro de
prazer. Segurou o rosto bonito do homem, os lábios inchados,
e sorriu.
— Acho melhor parar por aqui.
— Mas…
— Não tô a fim hoje.
— Tudo bem, então — O modelo deu um selinho
demorado na boca de Vincent e se afastou. — Foi bom o
bastante para eu conseguir seu número?
Vincent riu.
— Foi ótimo, mas ainda não vou te dar meu número.
Quando quiser te encontrar, não vou precisar disso, Benedict.
— Pelo menos deu para confirmar as fofocas.
— Qual das?
— Que você beija bem e é um puta arrogante.
— Informação básica sobre mim.
Benedict vestiu a camisa branca de volta, tirando a visão
de Vincent do peitoral musculoso do rapaz.
— Vejo você depois, pelo menos?
Ele perguntou tímido. Vincent sorriu, foi até ele e o
beijou sem gentileza alguma, segurando os quadris do homem
com força, a língua enrolando-se na dele de maneira sensual.
— Quem sabe. Agora vaza, antes que te peguem aqui e
sua reputação de galã heterosexual seja arruinada.
Quando Benedict se foi, Vincent soltou um suspiro
cansado e se jogou na cama.
Nem eram nove da noite de um sábado e ele se sentia
exausto, pronto para dormir pelo fim de semana inteiro.
Achava que não era assim que os jovens normais de vinte e
cinco anos passavam suas folgas, contudo não era como se ele
tivesse muita experiência no assunto vida comum para
comparar.
Quando seu celular tocou, ele fez uma careta e atendeu.
— Comprei nossas passagens, saímos amanhã cedo.
— Passagens?
Uma pausa e um xingamento baixinho.
— Eu não acredito que você esqueceu, Vincent.
— Você é o meu assistente. É sua função me lembrar
das coisas, Stefano.
— O casamento de Antonia, Vince. É nesse domingo.
Merda.
Vincent fechou os olhos, sentindo-se péssimo. Sua
prima favorita, Antonia, vinha comentando sobre o evento há
mais de um ano e ele simplesmente esquecera.
— Droga, preciso comprar um presente.
— Para a sua sorte, eu sabia que você ia esquecer,
então comprei um daqueles conjuntos de talheres de prata.
Mandei gravar o nome deles e tudo o mais.
— Você é o melhor.
— Eu sei. Saímos cedo, não se atrase.
— Obrigado, Stefano.
Vincent levantou, foi até o bar, e se serviu de uma dose
generosa de whisky inglês. Não era sua bebida favorita, o
gosto amargo demais, mas ele não achava que merecia algo
bom no momento. Digitou uma mensagem para Antonia,
desejando boa sorte e garantindo sua presença no dia
seguinte.
Colocou a culpa do esquecimento no volume de trabalho
absurdo dos últimos dias. Ser o atual vencedor da Fórmula 1
não lhe deu folga alguma, pelo contrário, os pedidos de
comerciais, aparições na televisão e eventos haviam duplicado.
Desde a corrida final, em novembro, ele não teve um minuto
sequer para respirar, ver a família ou se divertir.
O máximo que conseguia ter eram momentos roubados
com outras pessoas, na calada da noite, nos quartos dos hotéis
em que se hospedava durante as viagens. Às vezes, modelos
famosas e pilotos que, também iam para eventos grandes,
faziam-lhe companhia ou apenas pessoas que capturavam seu
interesse.
Vincent gostava da discrição e, principalmente, a regra
de nunca manter um relacionamento com alguém por muito
tempo.
Vinha funcionando muito bem. Apesar dos blogs de
fofoca adorarem especular sobre sua vida amorosa, inventando
affairs que jamais existiram, ele mantinha-se longe de
namoros.
O que, para sua mãe, era uma grande lástima e a
transformou em algo perigoso: uma casamenteira. No dia do
casamento de Antonia, ela resolveu exercitar seus dons.
— Aquele menino que você namorou, meu amor, está
aqui. Por que não vai dizer "oi" a ele?
— Mãe, eu nunca namorei. E o Pierre está com o marido
dele, que não parece gostar muito de mim.
— Ah, não sabia que ele tinha casado.
Vincent pressionou os lábios para não rir quando sua
mãe murchou um pouco.
O sol da manhã era forte, mesmo para o começo de
dezembro, mas o vento estava gelado o bastante para que
Vincent usasse um casaco em cima do terno vermelho sangue.
Os botões de ouro, com entalhes discretos, estavam abertos,
de forma mais despojada, e ele colocou os anéis dourados e
finos nos dedos.
— Você está ótimo.
— E você está linda — Vincent beijou a bochecha dela
com carinho — Pare de bancar o cupido por hoje, mãe.
Ela suspirou dramaticamente.
— É demais querer um genro ou uma nora?
Vincent apenas riu e deu o braço à Anna Di Castelli,
impecável em um vestido de renda azul-escuro, em contraste
com sua pele branca. As pessoas diziam que mãe e filho se
pareciam e o piloto ficava feliz ao constatar que era verdade.
Eles tinham o mesmo cabelo castanho escuro, ondulado, as
maçãs do rosto alta, lábios grossos e o com arco do cupido
marcado.
A única coisa que Vincent não havia herdado eram os
olhos. Enquanto os dele eram castanhos claros, vindos de um
pai que não se lembrava, os da mãe eram verdes e luminosos.
Os dois caminharam pela imensa casa de campo, em
direção aos jardins, transformados especialmente para o
casamento. Flores e pequenos cristais decoravam os arcos
erguidos no terreno, em tons de laranja, vermelho e branco. O
altar era uma plataforma simples de madeira com um padre
impaciente que aguardava os noivos.
— Antonia fez um trabalho incrível.
— Não seria melhor dizer que ela pagou para fazerem
um trabalho incrível?
— Vincent, não seja assim — Anna franziu a testa —
Quanto tempo você vai ficar?
— A semana toda. Stefano conseguiu liberar minha
agenda. Trabalho antes do natal, mas volto para cá para passar
o restante das festas de fim de ano.
— Bom. Estou planejando reunir a família toda no Natal,
não falte.
— Eu nem sonharia em fazer isso, mãe.
Vincent se sentou com ela ao lado dos outros parentes.
Ele não era o maior fã de casamentos, mas admitia que
o evento trouxe uma emoção ao seu peito. Quando Antonia
entrou, vestida luxuosamente em branco, ele sorriu para a
prima preferida e melhor amiga de infância. E a expressão em
seu rosto permaneceu durante o restante da cerimônia,
enquanto os noivos declaravam o amor que sentiam um pelo
outro.
— Você está linda.
Ele disse a ela, na hora de cumprimentar os noivos.
— Não acredito que você veio mesmo.
Antonia sorriu, felicidade brilhando em seu rosto.
— Não perderia seu casamento por nada, Ninha —
Vincent a chamou pelo apelido carinhoso — Guarde uma dança
para mim, está bem?
— Claro!
Antes de poder comer e beber como gostaria, o piloto
se submeteu ao ritual de cumprimentar todas as suas tias e
tios, pedindo a benção, como um bom garoto italiano. Ouviu
parabenizações pelas corridas, conversou com os primos e
escutou todas as recentes fofocas da família.
Deus, como ele sentia falta daquilo! Quando abraçou a
avó, apertado, soltou um suspiro pesado, como se libertasse
um peso de suas costas.
— Está magro demais, Vince — Teodora disse,
estreitando os olhos verdes — Você está mesmo comendo?
Aquelas corridas estão acabando com você.
— Está dizendo que estou feio, nonna?
— Não me provoque garoto — Ela apertou a bochecha
dele com um sorriso — Como é a vida de um super piloto?
— Cansativa para caralho.
— Olha a boca!
Vincent ergueu as mãos, em rendição.
— Tudo bem, tudo bem, desculpe. Estou cansado, mas
bem. Ser campeão mundial pela segunda vez não é nada fácil.
— Pobre, Vincent, bicampeão mundial, rico e cansado —
Uma voz conhecida disse, apoiando-se no ombro dele — Que
tragédia.
— Oi para você também, Emma.
Ele se virou para a garota de vestido verde escuro do
seu lado, os cabelos loiros soltos cheirando a shampoo caro.
Emma Torrisi era sua prima mais nova, além de atuar como
pedra em seu sapato quando queria.
— Bom saber que você lembrou do casamento de
Antonia.
— Eu nunca esqueceria…
— Stefano me contou — Emma o interrompeu — Mas
perdoamos você pelo título desse ano.
Teodora suspirou.
— O que seria de você sem Stefano, garoto? Preciso
pedir que ele marque um tempo para mim na sua agenda?
— Sempre tenho tempo para você, nonna.
Ele beijou a testa enrugada da senhora e foi falar com
os outros.
Os Torrisi eram uma grande família italiana tradicional,
daquelas que tinham raízes antigas e registros históricos
extensos. Eram donos de terras e mais terras, empresas
milionárias ao redor do mundo, detentores do maior patrimônio
artístico do país, queridinhos da mídia e os principais
patrocinadores de causas sociais importantes.
Mas havia um segredo entre toda a fama e o poder que
um Torrisi exalava: eram extremamente carinhosos e
acolhedores. Enquanto os jornais adoravam noticiar os incríveis
números faturados pelos integrantes da família ou os
escândalos que se envolviam, eles estavam muito ocupados
realizando festas e reuniões para se importarem.
Vincent aprendeu desde cedo, no momento em que se
assumiu pansexual para a mãe, que jamais encontraria um
espaço onde pudesse ser ele mesmo tão bem quanto com sua
família. Porque, com a mesma intensidade que um Torrisi
amava, eles defendiam os seus com unhas e dentes.
— Obrigado por ter comprado o presente de Antonia —
Vincent disse para Stefano, assim que o encontrou.
— Não foi nada. Ela é importante para mim também.
— O que você deu?
— Uma coleção de quadros antigos, de um pintor que
ela gosta.
Vincent o encarou, chocado.
— Isso é muito mais legal que um faqueiro de prata.
— Vai mesmo reclamar de um presente comprado de
última hora que te salvou?
O piloto revirou os olhos e bebeu seu champanhe.
Stefano Braccia e ele eram melhores amigos há anos e
os Torrisi tinham o acolhido quando a mãe dele morreu e
Vincent exigiu que o garoto viesse morar com a família. Ao
decorrer do tempo, aquele menino magricelo, que vivia com
medo de tudo, tinha se transformado em mais do que um
agregado.
Vincent podia confirmar que o clichê de “quase irmãos”
se aplicava a Stefano.
De soslaio, inspecionou o melhor amigo. Stefano usava
um terno bege claro, clássico, simples e elegante. O cabelo
crespo e preto estava cortado para cima, armado, fazendo com
que ele parecesse mais alto do que realmente era. Os olhos
castanhos refletiam as luzes do fim de tarde em Mancia, o
dourado característico da golden hour.
— Eu vi um convite interessante no meu e-mail e só
posso deduzir que ou você deixou passar sem querer ou quer
muito ir.
Stefano crispou os lábios grossos.
— Hum…
— Sério, Stefano, uma festa em Mancia?
— Tem uma pessoa que eu queria ver e o convite
chegou para você, não para mim.
— Quem?
— Não vou te contar.
Vincent cruzou os braços.
— Se eu vou ser obrigado a abrir mão de uma noite
com a minha família, não mereço saber quem é?
— Vincent.
— Não me venha com Vincent. Quem é?
Stefano suspirou.
— Certo, é Toni La Fratta. Por um grande acaso do
destino, eu descobri que ele vai estar por lá.
O piloto riu baixinho.
— Toni La Fratta, o cara que você vive suspirando pelos
cantos desde o colegial? Achei que tivesse tomado coragem e
finalmente pedido o número dele.
— E fiz isso, mas quero que pareça natural, caralho!
Como se não esperasse encontrar ele lá…
— E acabar enfiando a língua na garganta dele. Entendi.
Stefano engasgou.
— Pelo amor de Deus, dá para falar baixo?
Vincent riu e bebeu o resto do seu champanhe.
— Eu vou aceitar o convite, mas só porque tô te
devendo uma por hoje. Além disso, Stefano, Emma e eu não
aguentamos mais as mensagens de lamentação por esse cara.
— Dependendo de como a festa acabar, talvez eu não
precise mais mandar nada no grupo.
Stefano sorriu maliciosamente.
— Só preciso saber se vai acabar tudo bem, me poupe
dos detalhes.
— Mas eles são importantes para a história.
Stefano riu da expressão de nojo de Vincent e o piloto
pegou mais bebida.
Os sacrifícios que fazemos pelas amizades, meu Deus.
02.
Dezembro

Amélia adorava estar na Itália, especialmente em


Mancia.
Era incrível acordar, abrir a janela e respirar história
pura. Ir ao La Fratta, degustar os melhores vinhos do mundo,
ao som de cantigas antigas em um sotaque encantador. Dirigir
pelas estradas antigas e avistar as paisagens saídas
diretamente dos quadros que ela tanto admirava quando
criança.
Contudo, o café italiano era uma das coisas que mais
odiava por ali. Na primeira vez que visitou uma cafeteria e
pediu um cappuccino, não conseguiu beber dois goles sem
fazer careta. Como os italianos bebem aquela coisa? Não sabia
dizer.
E, como café era a única coisa capaz de curar seu mau-
humor matutino, obrigou-se a conseguir o produto de
vendedores brasileiros. Apesar de caro, ela se dava ao luxo de
consumir a bebida preferida da maneira correta, além de ter
um gostinho do país natal por perto.
Naquela manhã, Amélia observava a água ferver,
quando alguém iniciou uma chamada de vídeo com ela. Franziu
a testa, calculando a diferença de horário, só para descobrir
que eram 2 da manhã no Brasil.

— O que você tá fazendo acordada a essa hora?


Perguntou quando a câmera focou em um rosto
redondo, de olhos castanhos, semelhante ao dela e pertencia à
Sofia, sua irmã mais nova.
— Oi para você também, amora.
Amélia sorriu com o apelido carinhoso.
— Como você está, amora?
— Bem. Em surto de criatividade. Comecei a escrever
um livro novo e estou querendo terminar até o fim de semana.

— Você comeu hoje? Bebeu água? Não me diga que


ficou o dia todo nesse quarto, Sofia.
— Maria Cássia não deixou — Sofia virou o celular para
o lado, mostrando uma menina magra, digitando no notebook.
Amélia viu que elas estavam deitadas em uma cama e sorriu.

— Obrigada por não deixar minha irmã enlouquecer,


Cássia.
A garota sorriu, o cabelo cacheado preto preso em um
coque alto.
— De nada. Como está a Itália? Ainda italiana?
— Bem italiana — Amélia apoiou o celular na bancada
da pia e começou a preparar o café — E o Brasil?
— Você vive me mandando as notícias daqui, Amélia,
sabe mais do que a gente — Sofia respondeu, a câmera
voltando para ela — Eu quero saber é de você. Tem saído?
Conheceu outros lugares?
Amélia pensou antes de responder.
— Sim, estou sempre naquele restaurante que te contei,
com Angela. Sabia que ela tá namorando de novo? Ou ficando,
não sei.
— Eu vi! É aquela modelo maravilhosa, Sancia Venier.
Acha que é para valer mesmo?
— Não me pergunte isso, Sofia.
Amélia despejou o café pronto no coador e em seguida,
na garrafa térmica.
— O que você vai fazer hoje? É o seu dia de folga, não
é?

— É. Eu queria adiantar um artigo, mas Angela vai me


levar em uma festa.
— Uma festa?! — Sofia deu um gritinho empolgado e
uma mecha de cabelo ruivo caiu no seu rosto — Não acredito
que você finalmente vai sair nessa cidade.

— Mas eu sempre saio!


— Não para festas. Maria Cássia descobriu que tem,
tipo, umas festas secretas aí, que os famosos vão se divertir.
— É bem popular — Maria Cássia disse, o barulho dos
dedos dela nas teclas de fundo — Um monte de modelos e
cantores vão pela privacidade, é difícil de entrar pelo visto.

— Você terá que me contar os detalhes de tudo, tá?


Meu Deus, tô tão animada!
— Parece até que quem vai é você, amor — Maria
Cássia riu e se aproximou da câmera — E eu também quero
saber de tudo.

— Vocês são umas fofoqueiras.

Ela sorriu, colocando o café na xícara. O cheiro quase a


fez soltar um suspiro.
— E você precisa começar a viver mais, amora, relaxar
um pouco mais.
— Vou tentar, Sofia.
Por mais que Amélia soubesse disso, ela não conseguia
e Sofia talvez nunca a entendesse completamente.
Desde que Dora Palhares, mãe delas, adoeceu, Amélia
decidiu que seria ela a tomar conta de tudo. Não queria que a
irmã caçula se preocupasse com questões financeiras ou o
tratamento. Sofia mal tinha 13 anos e merecia viver uma
adolescência despreocupada.
Então, Amélia escolheu aliviar o fardo da mãe,
esforçando-se o máximo que podia. Ela não sabia dizer em que
momento a decisão passou a ser um hábito: característica
inerente dela. Abria tanto a mão de si mesma, por quem
amava, que não sobrava tempo algum para encarar os próprios
problemas no espelho.
Todavia, não se arrependia disso. Ou, pelo menos,
convencia-se que não.
Por isso, seguindo as dicas dos seus longos anos de
terapia, quando Amélia se percebia perdida naquele
sentimento, sabia que era hora de dar uma pausa e tentar
focar em si. E, no conjunto de ações em prol de tal, envolvia
sair para festas com seus melhores amigos e aproveitar a
folga.
Amélia alisou o tecido verde escuro, do vestido que
usava e voltou-se à Angela.
— Uau — Angela exclamou — Porra, você tá muito gata!

— Espero que seja bom o bastante para essa festa


exclusiva.
— Você tá ótima, Ames — Sancia elogiou — Pegue um
casaco, vamos sair dessa festa só de madrugada. Quero
aproveitar o máximo possível!

Amélia se olhou no espelho antes de sair. O cabelo


castanho, geralmente ondulado, estava escovado e liso. Uma
sombra dourada realçava os seus olhos escuros, as bochechas
angulosas estavam marcadas pelo iluminador e contorno da
maquiagem.
Por alguns segundos ela se deteve no seu corpo,
analisando. Não tinha o físico magro que sempre sonhou ter
quando criança, como as modelos que via na mídia. Estava
mais para um midsize com gordurinhas aparentes na barriga,
seios médios e pernas um pouco grossas.

Na adolescência, tinha xingando aquele corpo de várias


maneiras, odiando a si mesma com uma intensidade
assustadora. Das estrias na pele às dobras na barriga,
passando pelos quadris largos, ela enxergava problemas em
todos os lugares. E, embora, essa fase tivesse passado, às
vezes a insegurança a visitava, uma amiga que nunca ia
embora.
Sancia dirigiu naquela noite, o carro cortando o trânsito
de Mancia tranquilamente.
— Onde vai ser a festa?
Amélia perguntou.
— Você vai ver.

A modelo sorriu, misteriosa, o vestido branco e longo,


com tecido transparente na barriga, farfalhando enquanto
trocava de marcha.

Elas percorreram os bairros que Amélia conhecia, saindo


da cidade. Sancia virou o veículo em uma estrada de terra, que
dava para uma das fazendas que rodeavam Mancia. Alguns
quilômetros depois, pararam em uma construção antiga.

— Isso aqui não é patrimônio cultural?


— Sim. É uma das primeiras casas de Mancia.
Angela respondeu.

— Espera aí, a festa é em um monumento tombado?!


Isso não é crime? Eu tenho quase certeza que sim.
— Ah, provavelmente? Mas você não precisa se
preocupar em ser pega. Ninguém aqui vai denunciar.
— Gente rica é tão estranha.
— Essa eu concordo com você e eu sou uma ex-
herdeira. — Angela disse, encarando a imensa construção com
receio.
O casarão era grande, antigo e tinha o estilo de
arquitetura que lembrava uma Itália renascentista. Amélia ficou
interessada na mesma hora, afinal era sua área de estudos, e
pensou em como convencer Sancia a lhe dar um tour pela casa
antes de irem embora.

A modelo seguiu para trás onde quatro seguranças


guardavam uma porta de madeira escura, cheirando um pouco
a mofo. Sancia entregou os convites e eles abriram a
passagem. Elas andaram por um corredor estreito, mal
iluminado, desceram os degraus de pedra antiga e Amélia ficou
boquiaberta quando chegaram ao final.
Era um porão enorme com piso transparente embutido
com luzes de led pulsantes. O teto alto estava recoberto com
uma espuma anti-ruídos, a batida eletrônica ressoava pelo
ambiente e vibrava no ar, chegando até os ossos de Amélia.
Havia um bar, decorado com neon, uma parede de bebidas
caras atrás dele e inúmeras pessoas dançando por todos os
lugares.
— Quantas pessoas tem aqui?
Ela gritou para Angela, acima do barulho da música.
— O bastante para você beijar alguém!
Angela disse, com um sorriso maroto.
Elas pegaram uma bebida e Amélia se surpreendeu ao
encontrar Toni trabalhando como barman. Trocaram um sorriso
e ele estendeu uma dose de tequila para ela.
— Essa é por minha conta.
— Obrigada, Toni.
— Você tá linda, aliás. Não sabia que vinha também.
— Valeu. Angela me obrigou, não tive muita escolha.
— Que bom, você precisava mesmo sair mais.
Ela revirou os olhos para o rapaz. As pessoas não
podiam parar de lhe dizer isso?
A cópia jovem, loira e de olhos verdes, de Niccolo La
Fratta se inclinou na direção dela.

— Acho que tem alguém de olho em você. Aquele cara


não para de te encarar desde que veio aqui.
Amélia olhou ao redor e encontrou o rapaz. Era bonito,
muito bonito, e bebia um drink colorido. Quando o encarou,
porém, percebeu que não era o alvo dos olhares dele.
— Toni, ele tá olhando para você.

O garoto piscou, em choque.


— O quê? Você tem certeza disso?
— Sim. Você não o conhece?
— Estudamos juntos. Ele aparece, às vezes, no La Fratta
mas eu não achei… Eu não sabia que…
Amélia pensou por um segundo. Ela virou a dose de
tequila, sentindo queimar na garganta. Coragem líquida.
— Me dá um guardanapo. Você tem uma caneta?
Toni passou para ela e atendeu outro cliente.
— O que você vai fazer?
— Eu volto já, relaxa.

Talvez a confiança recém-adquirida do álcool fosse a


principal motivação, mas Amélia atravessou a pista de dança
na direção do rapaz com firmeza. Ela sorriu, tocou o braço dele
e pediu que se aproximasse.

— Boa noite! Eu tenho uma entrega para você do meu


amigo do bar.
O rapaz franziu a testa, surpreso, pegando o
guardanapo das mãos dela.
— Obrigado.
— Soube que vocês já se conhecem, então… Boa sorte.
O homem sorriu de volta e porra, Toni era sortudo.
Aquele cara é lindo.

— Posso saber o nome do meu cupido?


— Amélia.
— Sou Stefano, Amélia, é um prazer.
— O prazer é meu.
Amélia piscou para Stefano e afastou-se. Encontrou
Angela e Sancia na pista e resolveu que era hora de dançar.
Enquanto o álcool estivesse em seu sangue, nublando os
sentidos, ela ia se deixar permitir afrouxar um pouco as
preocupações do dia.

A festa não era nada comparada às do Brasil, ainda


assim, divertida. Amélia exibiu seus poucos dotes de dança,
rebolando o máximo que ela conseguia. E, depois de mais duas
doses de tequila e um drink de morango, a brasileira estava
gargalhando, vermelha, a testa ensopada de suor, o rímel
borrado.

— Eu amo você, An!


Ela disse a Angela, abraçando a amiga com força.
— Também amo você, Ames.
Sancia riu da cena.

— Meu Deus, vocês estão muito bêbadas — Ela era a


motorista da noite, então nada de álcool.
Elas riram, pularam e dançaram juntas, cantando todas
as músicas que conheciam. A playlist era excelente, indo de
clássicos da era disco, voltando para os hits pop atuais e até
um pouco de rock. Amélia estava curtindo uma batida
animada, quando alguma coisa bateu nas suas costas. Ela se
desequilibrou e um líquido gelado atingiu sua pele.
— Ames!
Angela gritou, mas a brasileira evitou a queda.
Entretanto, estava encharcada de bebida.
— Caralho!
Ela reclamou irritada, em português, o líquido
escorrendo por seus braços. Porra, com certeza tinha
manchado o vestido inteiro.
— Você tá bem?
Disse o responsável, atrás dela. A escuridão da festa e o
fato de que Amélia não usava óculos, impediram-na de
enxergar direito. Apertando os olhos, franziu a testa, tendo a
certeza de que já tinha ouvido aquela voz em algum lugar.
— Não, né?
— Merda, foi mal. Quer ajuda para se limpar? Posso te
emprestar meu casaco.
Amélia estava prestes a dizer que não, não queria
incomodar, quando Angela agarrou seus ombros.
— Sim, ela quer!
— Mas…
— Ele parece ser bonito, fez merda com você e talvez te
dê um beijo como compensação — Ela sussurrou.
Amélia precisou se segurar para não xingar a amiga em
todos os idiomas que conhecia e apenas assentiu para o
homem, um pouco envergonhada.
— Vou com ela, Sancia, você me espera?
Angela disse a Sancia, segurando a mão de Amélia.
— Por aqui.
Pela segunda vez, Amélia se perguntou de onde
conhecia aquele tom de voz. Seus pensamentos bagunçados
pelo álcool estavam lentos demais, contudo ela sentia uma
lembrança não tão antiga borbulhar.
Atravessaram a pista às cegas, desviando de pessoas
descoordenadas. O corredor do banheiro também não era
muito bem iluminado, para o azar de Amélia.
— Eu vou te esperar aqui fora. — Ele disse — Quer que
eu pegue alguma coisa?
— Não, valeu. Volto já, Angela.
Ela disse e tropeçou para dentro, trancando a porta.
Nem sequer se olhou no espelho e prendeu o cabelo suado em
coque. Era impossível tirar a mancha do vestido, mas pelo
menos os braços já não cheiravam tanto ao drink doce.
O alívio da água fria em suas mãos foi o suficiente para
que ela recobrasse os sentidos e aliviasse a tensão que crescia
no seu pescoço. Amélia se sentia exausta, estava desesperada
por um banho e sua cama macia e confortável.
— Ei! Eu tô com meu casaco aqui, não precisa me
devolver…
Amélia abriu a porta no meio da fala dele, o
interrompendo e congelou. A luz do cômodo finalmente revelou
quem era o homem e agora, ela sabia porque aquela voz
parecia familiar.
Não. Não, não, não, não. Merda. Merda. Inferno. Puta
que pariu.
Eles se encararam por alguns segundos e Amélia sentiu
as pernas fraquejarem.
Era ele mesmo.
Um pouco mais velho, mas com o mesmo brilho nos
olhos cor de âmbar, cabelo castanho bagunçado, os lábios
desenhados e abertos em surpresa. As mesmas feições que
assombram os sonhos de Amélia, desde aquela maldita noite.
A brasileira quis rir porque o universo era mesmo um
desgraçado. De todas as pessoas do mundo, tinha que ser
justamente a personificação dos arrependimentos dela.
E Amélia viu o reconhecimento o atingir também.
— Ames?
A voz de Angela a tirou dos seus pensamentos e ela
piscou, o coração martelando contra o peito. Precisava sair dali
o mais rápido possível, evaporar no ar de preferência.
— Amélia.
Ele disse o nome dela como uma poesia e o mundo de
Amélia pareceu se alinhar no lugar certo, antes de despencar
em rápida velocidade.
Agarrou a mão de Angela e a puxou, correndo e
esbarrando em um casal que se pegava perto do banheiro
masculino. Eram Stefano e Toni que a olharam surpresos.
— Amélia? — Toni a chamou, confuso.
Contudo, ela não parou. Seus pés ameaçavam perder o
controle, o estômago se revirou inteiro, a cabeça girando como
um pião. As luzes pulsantes machucaram os olhos dela e
Amélia andou às cegas, desesperada.
— Temos que sair daqui.
— Ames, o que foi? O que aconteceu?
— Angela eu explico depois, precisamos ir embora. Tipo,
agora!
Ele estava atravessando a multidão, na direção dela, os
lábios formando o nome de Amélia, o rosto agitado.
— Angela, por favor — Ela suplicou — Precisamos ir
embora, por favor!
Assustada, Angela pegou Sancia pelo pulso,
murmurando uma breve explicação. As três praticamente
correram pela pista de dança, saíram pela mesma passagem
onde entraram e Amélia nunca foi tão grata por ter uma
motorista excelente do lado dela. Em segundos, estavam na
estrada.
— Que porra foi essa, Ames?
Angela perguntou, enquanto Amélia tentava recuperar o
fôlego.
— Ele tentou alguma coisa com você?
O tom de Sancia era mortal.
— Não, ele não… Está tudo bem, eu juro. É só que… —
Ela respirou fundo, um formigamento estranho na ponta dos
dedos — Eu conheço aquele cara.
— Conhece?
— Quem é?
— De onde você conhece ele? Como não me contou isso
antes?
Amélia lambeu os lábios secos. A paisagem lá fora era
um borrão escuro e denso.
— Não fazia diferença. Ele é famoso e eu não queria
problemas.
Angela a encarou, perplexa.
— E você o encontrou aqui? Em uma festa aleatória?
— A família dele é dona da cidade, Angela.
Ela murmurou.
— Calma, espera aí. — Sancia olhou pelo retrovisor —
Dona da cidade? Quer dizer que era…
— É. Vincent Di Castelli, o piloto de Fórmula 1.
***
Vincent nunca tinha se apaixonado. Havia, porém,
pessoas que chegaram muito perto de conseguir o feito. Uma
delas, só precisou de uma noite, sorrisos e observações
inteligentes para se aproximar do coração dele. Pela primeira
vez, ele quis saber até onde iria aquele sentimento.
Só que tudo acabou no dia seguinte, quando Amélia
desapareceu como se nunca nem tivesse existido.
O piloto procurou na internet, banco de dados que tinha
acesso e até mesmo Stefano o ajudou. Para completar, Amélia
tinha lhe dado informações falsas, piorando a situação toda.
Tudo o que restava dela eram as lembranças e um coração
partido.
Três anos depois, na cidade natal dele, lá estava ela.
Amélia, de olhos brilhantes, sorriso gentil, a sabedoria do
mundo inteiro no tom de voz… E tinha fugido dele. Pela
segunda vez!
Porque você tem medo de mim, Amélia?
Vincent teve vontade de rir. Logo ele, o cara que era
sempre o primeiro a partir, sentiu o gostinho da dispensa de
uma das poucas pessoas que o piloto desejava que ficasse.
— Achou ela?
— Desculpa cara, não.
Stefano sentou-se ao seu lado, o casaco preto jogado
no ombro.
— Porra.
— Não tem nenhum sapatinho para trás não?
— Sério, Stefano?
— Uma garota misteriosa que fugiu de você no meio de
uma festa, perto da meia noite. Caralho, literalmente a
Cinderela. Mas você daria um péssimo príncipe.
Vincent revirou os olhos.
— O que Toni disse sobre ela?
— Ele não sabe onde ela trabalha. Disse que era uma
galeria de arte, o que não ajuda considerando que tem mais de
vinte dessas em Mancia, contando com a da sua família. A mãe
provavelmente deve saber exatamente.
O piloto deu uma breve olhada no garçom, limpando o
tampo vazio do balcão. A festa tinha acabado, restando apenas
os funcionários, Vincent e Stefano.
— E então, vocês dois…
— Nós dois, pois é. — Stefano sorriu. — Ele me
perguntou se eu queria sair na segunda.
— Fofo. Como é finalmente sair com o garoto mais
popular do colegial?
— Cala a boca, Vince. Mas é muito bom.
Vincent engoliu as reclamações e apenas assentiu.
Stefano escolhia as pessoas mais inacessíveis do mundo para
se apaixonar e o piloto odiava ver o melhor amigo machucado.
E considerando que o interesse no garoto La Fratta vinha de
muito tempo, tinha medo de testemunhar uma frustração e um
coração partido.
E naquele momento, sentindo os dois, Vincent percebeu
como era doloroso.
— Relaxa, Vince, vamos achar ela. Toni vai mandar uma
mensagem para a mãe e vamos descobrir.
Eles voltaram para a mansão Torrisi quando o dia estava
nascendo. As fazendas que enchiam as terras da família mais
rica da Itália começavam a acordar, os ônibus lotados de
trabalhadores rurais chegando no seu destino. O vento frio de
dezembro balançava as árvores que perdiam suas folhas com
rapidez, preparando o inverno que batia na porta.
Vincent estava exausto, mas não conseguia dormir.
Todas as vezes que fechava os olhos ele se lembrava dela e do
maldito cheiro de ameixas. Amélia, que ele ainda não sabia o
sobrenome, estava impregnada em seu sistema.
Tentando curar a noite de sono desregulada, ele optou
por descer e tomar café da manhã. A única pessoa sentada na
grande sala de jantar da mansão, era uma mulher loira, que
franziu a testa na direção de Vincent.
— Você está horrível.
— Obrigado, Emma.
— Bebeu demais naquela festa?
— Eu estava dirigindo, mal bebi um drink.
— E por que essa cara tão derrotada?
— Dá para parar de ser enxerida?
— Não.
Emma sorriu e Vincent a fuzilou com os olhos.
Emma Torrisi era insuportável, mas fazia parte do grupo
de primos preferidos de Vincent. Aos 20 anos, ela levava a vida
de filha de milionários, preocupando-se em viajar, comprar
tudo o que estivesse disponível nas tendências de moda e
apoiar causas sociais. Além de se meter na vida de todo
mundo, dando conselhos não solicitados.
— Não devia estar na Espanha? Achei que só ficasse de
férias semana que vem.
— Ah, eu larguei o curso. Direito não é mesmo a minha
praia.
Vincent não ficou muito surpreso.
Emma odiava Direito desde o primeiro dia, mas era
teimosa demais para admitir. Especialmente para a mãe, que
insistiu em planos de futuro na profissão, alegando o grande
legado Torrisi.
Apesar de terem números demais na conta bancária, os
Torrisi eram referência no meio acadêmico e quase todo
mundo da família tinha um diploma. Vincent tinha dado sua
contribuição quando se formou em Artes e Literatura, assim
como Anna e Teodora.
Ele se serviu de uma xícara de chá antes de sentar.
— Sua mãe sabe?
— Por que acha que estou aqui? Ela nem faz ideia, mas
já decidi o que vou fazer. — Emma fez uma pausa, encarando-
o com seriedade — Por favor, não ria. Engenharia automotiva.
Vincent arqueou uma sobrancelha.
— Eu sabia que você gostava de carros e
automobilismo, mas não que queria trabalhar na área.
— Sou boa com carros e números. Além disso, eu gosto
da parte mecânica, então pensei em tentar. O que você acha?
— Não tenho que achar nada, Emma. Você se dá bem
em tudo o que faz, então tente.
— Guarde uma vaga de engenheira na Redemptio para
mim.
— Nada de nepotismo ou tratamento especial. E você
nem tem carteira de motorista ainda, foi reprovada duas vezes,
como espera construir o carro que eu vou pilotar?
Vincent foi atingido por uma uva e riu.
— Você é chato para caralho.
— E você me ama mesmo assim, Em.
Emma estreitou os olhos, contudo um sorriso estampou
seu rosto. Eles comeram em silêncio, aproveitando a calma
incomum da casa.
A mansão Torrisi estava sempre repleta de risadas e
conversas. Com três andares, os inúmeros quartos abrigavam
os italianos nas festas de família, reuniões e era o palco de
vários eventos. Por mais que eles tivessem seus próprios
apartamentos e casas ao redor do mundo, quando se falava de
lar, a imagem da construção solene, de pedra cinzenta e
histórica, era o que ficava na mente de um Torrisi.
Por isso, Vincent não via a menor necessidade de ter um
apartamento ou casa em Mancia, quando vivia tão bem ali.
Além do mais, sua mãe era a responsável por ficar de olho na
avó, e ele gostava de estar por perto para ajudar com a
teimosia de Teodora.
O piloto estava pensando em entrar em contato com o
melhor amigo, para ver se Toni tinha notícias de Amélia,
quando viu oito chamadas perdidas de Arthur, o diretor-
executivo da Scuderia Redemptio, mais conhecido como seu
chefe.
— Oi.
— Vincent, posso saber porque você não atendeu?
— Bom dia para você também, Arthur. Ou noite. Não sei
que horas são no Brasil.
— São quase três da tarde. E então, onde você estava?
— De férias?
— Vincent.
— Por Deus Arthur, eu tô em Mancia. O que aconteceu?
Achei que só teríamos uma reunião ano que vem.
— Checou as últimas notícias?
— Ainda não.
A porta do quarto dele se abriu e Stefano entrou,
segurando um tablet, parecendo preocupado.
Porra.
— Stefano não tá com você?
— Vou colocar no viva voz. Pronto, ele tá aqui do meu
lado, pode falar.
— É surpreendente que Vincent Di Castelli não tenha
sido dispensado da Redemptio ainda. Embora seus resultados
sejam ótimos, a performance agressiva dentro e fora das pistas
é um verdadeiro descaso com o esporte. Ele não passa de um
garoto mimado e competitivo, que não deve durar no cenário.
Vincent piscou, confuso.
— Mas que porra é essa?!
— Não sei quando veremos o atual campeão mundial
ganhar alguma noção de responsabilidade, mas esperamos que
seja em breve. Caso contrário, tenho certeza de que ele é só
outra promessa vazia da Fórmula 1. — Arthur suspirou — Ansel
Bellini deu essa entrevista hoje cedo e falou essa merda toda
de você. Está em todos os noticiários.
— E daí?
— Como seu assessor de Relações Públicas, te garanto
que é péssimo. Você pode ser o campeão e tal, mas com o
piloto mais famoso dos anos 2000 te odiando e declarando no
grid que você é um merda…
— Ansel é só um babaca que não gostou que eu ganhei
o título. E devo te lembrar o quão homofóbico ele é, caralho?
Vincent queria muito socar alguma coisa naquele
momento. De preferência a cara de Ansel Bellini.
— Eu sei, Vincent. E não estou dizendo que isso é culpa
sua, mas alguns dos patrocinadores de Bellini pagam nosso
salário. E estão totalmente do lado dele nessa merda. Ansel se
reuniu com alguns deles recentemente e você pode imaginar o
rumo da conversa.
— Que se foda — Vincent disse, irritado — Quer dizer
que eu vou perder patrocinadores, é isso?
— Não sei, tá tudo muito incerto. Tenho reuniões hoje
com alguns deles, mas vamos começar a trabalhar uma forma
de melhorar sua imagem. Pensei em divulgar alguma das suas
ações sociais.
— Não. Você sabe que eu não gosto de levar isso a
público.
— Marquei algumas aparições em programas de
televisão para você, entrevistas — Stefano disse, os dedos
frenéticos mexendo no tablet — Podemos pensar em um
roteiro sobre a importância do esporte na sua vida, coisas mais
genéricas. Arthur, preciso de autorização para organizar um
encontro de fãs na sede da Redemptio.
— Boa ideia. Te mando as informações. Eu preciso
desligar, mas me avisem sobre o que pensarem. Vou tentar
consertar o estrago daquele babaca.
E ele desligou. Vincent encarou a parede amarela escura
do seu quarto, com intensidade demais, respirando
pesadamente. Seu peito parecia em chamas, raiva
preenchendo cada poro da pele.
— Eu odeio aquele desgraçado.
— Você e todo mundo. — Stefano disse — Não é uma
novidade que a Fórmula 1 é um esporte conservador, de
homens brancos, velhos, ricos e heterossexuais. Eu sinto
muito, Vince.
— Tá tudo bem. — Não estava — Remarque minha
agenda para essa semana ainda, precisamos resolver isso
cedo.
— Não, descanse. Ações precipitadas demais não dão
em nada, você sabe.
Vincent assentiu. Stefano o conhecia bem, sabia quando
o amigo precisava de um tempo para se acalmar, ou então
faria merda motivada pela raiva do momento. E isso sempre se
traduzia em se envolver no maior escândalo midiático possível.
O piloto não negava a merecida fama de "garoto
problema" dentro e fora dos grids.
Gostava de provocar os outros pilotos, o que criava
atrito com a maioria deles e as equipes. E a competitividade
que lhe era natural, não era tão bem vista por alguns do
esporte. Sem contar que seu nome estava quase sempre
envolto em fofocas com atrizes e atores famosos, sendo
apontado até como pivô de fins de relacionamentos.
Para Vincent, era tudo parte de um personagem
charmoso que combinava com ele. E nem se importava muito o
quanto ser aquele cara se tornava exaustivo.
Todavia, naquele momento, a imagem de Vincent
precisava ser a de um bom moço. Então ela adotou uma
postura pacífica, postando fotos tranquilas, rejeitando convites
para festas e encontros escondidos. Nem ousou pisar o pé para
fora da mansão, o que significou paz para o trabalho de
Stefano.
Com tanta coisa acontecendo, mal teve tempo de
pensar em Amélia, ou ir atrás dela. Ele só se deu conta disso
no sábado, dois dias antes de retornar à agenda de trabalho
regular, quando sua avó apareceu na porta do seu quarto.
— Você vai me levar para um passeio em Mancia hoje,
Vincent. E sem desculpa.
— Mas…
Teodora ergueu uma sobrancelha.
— O que aconteceu com "sempre terei tempo para você,
nonna" ?
Ele estalou a língua.
— Para onde vamos?
— Galeria Torrisi. Faz muito tempo que não vejo como
anda o novo prédio.
Teodora empurrou os óculos de prata no rosto e sorriu.
A Galeria Torrisi era o museu com todas as valiosas
aquisições da família. Um enorme prédio de três andares, com
alas e exposições sobre a história da Mancia, da Itália e dos
Torrisi. Recebia inúmeros eventos o ano todo, além de acervos
emprestados por temporadas inteiras, que eram
cuidadosamente estudados. E contava com uma biblioteca
completa em anexo, com edições raras e centenas de livros.
Vincent sabia detalhes precisos sobre aquele prédio,
porque foi o motivo de ter escolhido estudar artes e literatura.
E ao passar pela entrada, pensou que Amélia adoraria um
lugar como aquele.
— Ficou incrível, nonna.
— Trabalho da nova curadoria. As meninas do mestrado
têm cuidado muito bem daqui.
Apesar do sábado movimentado, como sempre, eles
seguiram em relativa tranquilidade pelo espaço.
Vincent sentiu todos os olhares em cima dos dois, o que
era bem comum quando um Torrisi aparecia em Mancia.
Felizmente, as pessoas respeitavam a família, acima de tudo, e
não se aproximavam.
Distraído, o piloto estava digitando uma mensagem para
Stefano, sobre Amélia, enquanto a avó falava com os guias. Ele
a seguiu, os pensamentos se voltando para a garota que
bagunçou sua vida. Não conseguia tirar o rosto dela da mente,
os cílios longos piscando pelo susto, os cabelos presos em um
coque bagunçado e a expressão chocada. Vincent considerou
injusto que ela fosse tão bonita.
Balançou a cabeça, se achando meio patético por
pensar nela com tanta frequência. Até porque, tinha certeza de
que já estava tendo alucinações, quando viu Amélia parada ao
lado de Teodora, em uma conversa.
Ele piscou e a imagem dela não desapareceu. Vincent se
arrepiou, calor se espalhando por seu corpo.
— Olha, Vincent, nossa casa fica aqui — Teodora
apontou para um retrato de um campo vazio e verde — Fúlvia
D ´Oro pintou a maior parte destes aqui, você sabia?
Vincent abriu a boca mas não conseguiu falar.
— Ah… Eu, sabia, sabia sim.
— Ela era extraordinária. Uma pena que morreu sem ter
o reconhecimento que merecia.
Ele assentiu, sem conseguir desviar os olhos da mulher
na sua frente. Amélia não olhava em sua direção, a atenção
voltada para Teodora.
— E tudo porque ela era uma mulher, senhora Torrisi.
Amélia disse, os óculos escorrendo para a ponta do
nariz. Era a mesma armação dourada de três anos atrás, ele
tinha certeza.
— Exato. Mas veja só, hoje em dia não tem ninguém na
Itália que não conheça o trabalho dela. Essa exposição está
maravilhosa, querida. Você e Angela fizeram muito bem.
— Fico lisonjeada, senhora Torrisi. E tenho certeza que
Angela também.
Ela sorriu para Teodora e finalmente encarou o piloto.
Seu coração acelerou, um zunido estranho nos seus
ouvidos, bloqueando o mundo ao redor dele. Amélia usava
uma calça preta de tecido, uma camisa branca de mangas
compridas, saltos finos e o cabelo esvoaçava em torno do rosto
bonito.
Amélia, é você! Caralho, eu te achei.
A mente de Vincent entrou em curto e ele não sabia se
abraçava aquela mulher, com força, ou ria pelo quão inusitado
tudo era. Assistiu sua avó, empolgada, conversar com a
responsável por tirar seu sono, sobre os detalhes da
administração da galeria.
E sua ficha caiu mais uma vez.
— Espera — Ele interrompeu — Você é a responsável
pela galeria? Desde quando?
Ela respirou fundo e tirou uma mecha de cabelo do
rosto. Vincent notou os dedos trêmulos de Amélia.
— Sim, senhor Di Castelli. Estou em Mancia há dois
anos.
Ela estava em Mancia esse tempo todo.
A porra do tempo inteiro aquela mulher estava debaixo
do nariz dele, trabalhando para sua família e Vincent jamais
soube daquilo. Tudo bem, ele estava ocupado demais
construindo sua carreira como piloto, mas como era possível
que ela estivesse tão perto assim?
— Vincent querido, eu preciso ir até o toalete. Me
espere aqui, senhorita Palhares, eu ainda não acabei nossa
conversa.
Quando Teodora se afastou, Vincent se virou para ela,
que recuou um passo.
— Amélia Palhares.
O sobrenome combinava perfeitamente.
— O-oi.
Ela gaguejou.
— Então era aqui que você estava. Sabia que eu te
procurei por muito tempo? Nunca pensei que seu destino final
seria Mancia. Irônico para caralho, não acha?
Vincent sorriu, eufórico.
— É minha área de estudo e a bolsa de mestrado era
muito ótima… É bom te ver, Vincent — Amélia mordeu o lábio
inferior, agitada — Não sabia que tinha procurado por mim.
— Por que achou que eu não faria isso?
— Por que faria? — Ela rebateu — Fui só uma estranha
de uma noite, três anos atrás. Que motivo você teria para me
procurar depois?
— Só uma noite? Para você aquilo tudo foi só uma
noite? Tá falando sério?
Vincent podia sentir uma rachadura em seu coração.
— Foi especial, Vincent, mas… Faz tanto tempo. Você é
um piloto famoso, rodou o mundo inteiro, esperava mesmo que
eu ficasse sentada esperando sua aparição mágica na minha
frente?
— Não, mas torcia para que me mandasse no mínimo
uma mensagem. Foi embora naquela noite sem nem explicar o
motivo, Amélia. E, semana passada, fugiu de mim como se eu
fosse o próprio diabo.
— Fiquei surpresa, não esperava te encontrar.
— Muito menos eu — Vincent passou a mão pelos
cachos — Não me disse o porquê foi embora. Acho que mereço
uma explicação sobre isso.
— Foi melhor assim, acredite em mim.
— Melhor? — Vincent quis rir e uma chama de raiva
crepitou em seu peito — Melhor para quem?
— E o que você esperava? Acredita mesmo que a gente
ia viver um romance? A noite foi ótima, mas vamos ser
honestos, nunca ia dar certo.
A voz de Amélia endureceu e a brasileira cruzou os
braços, na defensiva.
— Ah é? E por que?
Vincent a viu engolir em seco e avançou um passo na
direção dela, os dedos coçando para tocá-la. O cheiro de
ameixas frescas inundaram os pulmões do piloto.
— Por que você continua insistindo nisso? Já faz 3 anos,
Vincent!
— Sabe de uma coisa? — Ele abaixou o tom de voz, se
inclinando ainda mais perto — Se você consegue nem pensar
na porra de uma desculpa e continua fugindo de mim, me faz
pensar que está morrendo de medo, Amélia Palhares.
Ela piscou devagar e seus olhos escureceram. Havia
muita coisa dentro deles, além de fúria contida e energia
pulsante. Os lábios de Amélia se retorceram.
— Vai se foder, Vincent.
Foi quando Vincent percebeu que a Amélia de antes,
não existia mais. Talvez ela não passasse de uma projeção
idiota sua, uma tentativa ridícula de guardar um pouco daquela
noite tão especial. Que não parecia ter o mesmo peso para a
brasileira.
Entretanto, analisando o rosto bonito da mulher à sua
frente ele percebeu que, assim como a das suas lembranças,
ela ainda lhe afetava.
03.
Três anos atrás
Outubro, 18:56, Londres
Vincent Di Castelli estava puto. Ele sempre andava
assim, naquela época, com uma raiva profunda de muitas
pessoas, lugares e especialmente de si mesmo.
O motivo da vez, foi ter destruído seu desempenho na
semana de corridas e caído de segundo para quinto lugar na
contagem geral dos pontos. Ele saiu de Silverstone depois de
ter chutado o pneu do próprio carro, furioso e ficou meia hora
se xingando mentalmente pela performance ridícula e
expressão da raiva da forma mais idiota possível.
Tinham centenas de olheiros de equipes grandes, não
podia ter se descontrolado daquela forma. Agora, também
tinha estragado as possíveis chances de ir para a Fórmula 1.
Parabéns, Vincent, você é mesmo um merda.
Ele saiu de lá direto para Londres, refugiando-se no seu
antigo apartamento da época da faculdade e nem mesmo a
quietude da casa foi o bastante para acalmar seus nervos ou
abrandar a culpa que pesava no estômago.
Por isso ele estava ali, parado na frente do prédio,
usando um casaco preto para se proteger do frio cortante
daquela noite e encarando o céu azul escuro. Era engraçado
como nunca parecia anoitecer realmente na Inglaterra, nem
mesmo no inverno. Vincent não sabia se era tudo culpa da
poluição ou um evento natural, mas franziu a testa, pensativo.
Foi quando a viu, do outro lado da rua, sentada no meio
fio digitando furiosamente no celular.
Ele estreitou os olhos, reparando na agitação da garota.
Ela usava um casaco vermelho escuro, uma touca cor de rosa e
os joelhos estavam abraçados no peito. As botas amarelas,
impermeáveis, batiam ritmicamente contra o asfalto.
Vincent se assustou quando ela se levantou de uma vez,
cambaleando e soltou uma palavra em voz alta. Era espanhol?
Ele não soube dizer. Debateu consigo mesmo por alguns
segundos sobre intervir e aproximou-se um pouco.
— Você tá bem?
Perguntou, ainda sem atravessar a rua, não queria
assustá-la.
— Ah! Boa noite — Ela piscou, surpresa — Não sabia
que tinha outra pessoa aí, foi mal.
Vincent deu de ombros.
— Precisa de ajuda?
— Não, desculpe se te atrapalhei — Ela desviou os olhos
para o chão. — Tá tudo bem.

— Tem certeza?
— Eu…
A voz dela tremeu e Vincent se alarmou. Ela parecia
prestes a chorar e ele não tinha certeza se conseguia lidar bem
com uma completa estranha chorando.
— Olha, eu vou até aí, tudo bem?
Ela assentiu e ele se aproximou. A luz do poste foi o
bastante para ver que a garota estava mesmo chorando,
lágrimas grossas e pesadas, o lábio inferior tremendo,
tentando controlar o choro.
— Qual o seu nome?
— Amélia.
— Sou o Vincent. Quer que eu chame alguém?
Aconteceu alguma coisa grave?
Possibilidades bem ruins passaram pela cabeça do piloto
e ele rezou para que não fosse nada daquilo.
— Eu não… Eu não tenho ninguém.
Amélia tirou os óculos do rosto e enxugou as lágrimas.
Ela falou outra palavra e Vincent achou ser português.
Foi o tom de voz dela, entretanto, que o incomodou. A
voz quebrada, vazia e sem esperança, uma frase com tanto
peso atrelado, que o fez engolir em seco.
— Vamos sentar ali, pode ser?
Ele indicou o parquinho perto deles e Amélia assentiu.
Sentaram-se em um dos bancos de ferro, encarando os
brinquedos vazios. Vincent deixou que Amélia chorasse o
quanto quisesse, as leves fungadas dela cortando o silêncio.
— Nossa, me desculpe de novo. — Ela disse, enxugando
o rosto molhado. — Eu não queria mesmo incomodar.
— Não incomodou. O que aconteceu? Se quiser contar
para um completo estranho, é claro.
Amélia o encarou e Vincent percebeu que, mesmo com
o rosto levemente inchado e vermelho, ela era linda. Os olhos
castanhos escuros estavam úmidos, o cabelo da mesma cor,
ondulado, preso embaixo da touca, caindo no rosto. As maçãs
do rosto marcadas e altas, queixo redondo, o nariz levemente
achatado na ponta.
— Interessado em ouvir uma história triste e meio
patética?
— Olha só, eu também tenho uma dessas. Você
primeiro.
— É aniversário da minha irmã mais nova e eu…
esqueci, simplesmente esqueci. Ela está bem, com a
namorada, comemorando, tentei mandar uma mensagem
agora de noite, mas a internet tá uma droga. Me senti a pior
pessoa do mundo, nem sequer estou lá.
— E por que você não foi?

— Ela mora no Brasil. Só que… Eu sou a irmã que fazia


biscoito com gotas de chocolate, às dez da noite, para ela levar
para escola, que lembrava das provas escolares. A pessoa que
sempre se compromete, que não esquece aniversários e datas
importantes, e então… Eu esqueci. Eu simplesmente não
lembrei e nem tô lá! Isso parece muito patético e triste, não é?
Amélia encarou as mãos, soltando uma risada sem
humor.
— Eu diria que triste, mas não patético.
— Ah, não?
Ela o encarou, lábios curvados para cima. Vincent
reparou que os olhos dela se apertaram um pouco quando ela
sorria e se perguntou como seria ver Amélia gargalhar.
— Quer ouvir uma coisa bem patética? Eu sou piloto e
esse domingo eu fui péssimo em uma corrida que poderia ser a
chance de subir de carreira. Fiquei puto comigo mesmo e
chutei o pneu do carro, mostrando para o mundo inteiro como
sou ridículo.
— Sua história venceu, ela é mais triste. Mas não
patética.
— Um encontro de pessoas tristes, então.
Vincent e Amélia trocaram um olhar, antes de desviar
para o parquinho vazio.
— Se a sua irmã está bem, por que se preocupar tanto
com ela? Ela ficou brava porque você não foi ou esqueceu a
data?
— Na verdade não, eu acho. É que eu sou muito boa em
me preocupar. — Ela arrumou os óculos de volta no rosto. —
Tenho feito isso pela minha vida inteira.
— Justo. Já perdi alguns eventos importantes da minha
família e me senti um pedaço de merda por isso. O aniversário
da minha avó esse ano, por exemplo.
— E como se compensa não estar presente em um
momento assim?
Vincent abriu a boca para falar, mas em seguida fechou.
Ele não pensava muito sobre isso desde que a carreira como
piloto se tornou caótica.
As diversas ligações perdidas da mãe e avó, formaram
um peso no fundo da sua consciência.
— Geralmente me xingo muito, o que não recomendo.
Para ser honesto, não tenho feito um bom trabalho em
compensar o tempo que perdi. Ou seja, Amélia, só de pensar
nisso, você já está bem mais a frente do que eu.
Amélia soltou uma risadinha baixa e Vincent sentiu que
alguns dos seus neurônios queimaram. Os olhos dela
realmente se apertavam quando sorria e ele achou aquilo
adorável.
— De um estranho para outro, posso dar um conselho
não solicitado?
— Vá em frente.
— Eu sinto muito pelo que aconteceu na sua corrida,
mas geralmente a raiva é o sentimento primário que esconde
alguma coisa. Claro, você tem o direito de sentir isso, a coisa
mais humana possível é ficar puto quando não somos bons em
alguma coisa. Só que depois que ela passa, o que fica em boa
parte é arrependimento e culpa. Especialmente por coisas que
não notamos, como não passar tempo com a família e coisas
assim.
Vincent franziu a testa.
Mas que inferno, como aquela garota que tinha
conhecido em menos de meia hora parecia ser capaz de ler
seus pensamentos? E o pior, estar certa. O coração dele
apertou um pouco e o piloto precisou desviar os olhos para
disfarçar.
— Foi muito motivacional? — Amélia disse, apoiando os
cotovelos no joelhos — Deus me livre de soar como um coach.
— Não, foi perfeito e um pouco assustador. Lê
pensamentos com frequência?
— Minha irmã diz que sou boa em interpretar
sentimentos e devia ter feito psicologia no lugar de arte.
— Concordo com ela. Por coincidência, eu sou formado
em artes e literatura.
— Sério? Além de piloto de Fórmula 1?
— Eu precisava de um plano B.
Um além de ser filho de milionários.
Um vento mais forte fez o piloto estremecer. Checou a
hora pelo celular e teve uma ideia.
— Escuta, tem um café aqui perto, você quer ir lá?
— Você costuma chamar garotas tristes para tomar café
depois que elas choram?
— Só as bonitas.
Ela corou e ele sorriu.
— Hum… Tudo bem. Só para garantir, você não é um
psicopata, não é? Ou um serial killer? Seria ruim para mim caso
você fosse um.
Vincent jogou a cabeça para trás e riu.
— Se eu fosse um serial killer, não diria a você.
— Faz sentido. Mas eu já assisti muita série policial e
documentário sobre assassinos em série, só deixando claro,
então escaparia de você rápido.
Amélia se levantou, jogando o cabelo para trás em um
movimento que deixou Vincent meio hipnotizado.
— Esse é o tipo de informação que você deveria
esconder de um possível psicopata, Amélia.
— Justo. Tem certeza de que não está ocupado?
— Estava planejando me trancar em casa e lidar com a
culpa, frustração e tristeza até amanhã, mas posso abrir mão
disso para tomar um café com você.
Ele se levantou. Era cerca de quinze centímetros mais
alto que ela e Vincent a olhou limpar os óculos no casaco
vermelho vibrante e depois arrumar a postura. Amélia colocou
as mãos no bolso e o encarou.
— Você lidera o caminho, então, vamos?
A mulher disse, os pés inquietos se mexendo por contra
própria. Vincent mal conseguiu disfarçar o milésimo sorriso que
tomou conta dele
— Vamos.
04.
Dezembro
Amélia sempre foi uma boa menina.
Do tipo que não dava trabalho na infância, era
compreensiva e não precisava de ajuda para fazer suas
próprias coisas.
Meninas boazinhas não causavam incômodo, obedeciam
aos pais, não retrucavam, nem levantavam a voz além do
necessário. Meninas boazinhas ajudavam os outros o tempo
todo e nunca demonstravam estar chateadas, irritadas ou
tristes. Meninas boazinhas escolhiam desaparecer dentro dos
próprios sentimentos, enquanto sorriam, porque não podiam
contar para ninguém como se sentem.
E certamente, meninas boazinhas não mandavam
pilotos de Fórmula 1 e antigos interesses românticos se
foderem.
Entretanto, Amélia não se importava no momento,
porque Vincent Di Castelli tinha retornado à sua vida e só isso
já era o bastante para lhe causar uma dor de cabeça. Então ela
podia mandar ele se foder e estar muito bem com isso.
Exceto que não estava. Jogada no sofá da sala, com
uma garrafa de vinho pela metade e seu pijama mais
confortável, Amélia remoía o passado inteiro. Especialmente
uma certa noite de outubro, há três anos atrás, que marcou
sua vida.
Até que estragou tudo lhe dando informações falsas,
escondendo que iria embora no dia seguinte e nem entrando
em contato depois que descobriu quem ele realmente era.
Vincent Di Castelli, a próxima promessa da Fórmula 1,
herdeiro de um império milionário italiano, disputado e querido
pelo mundo inteiro. E Amélia era só… Ela. Uma recém-
graduada com sonhos altos e uma péssima relação consigo
mesma. Provavelmente receberia um pé na bunda duas
semanas depois, quando Vincent percebesse que era uma
perda de tempo.
Então, decidiu manter para si a noite como uma
lembrança bonita e seguiu sua vida. Só para, três anos depois,
acabar dando de cara com ele e, ainda por cima, Vincent se
lembrava dela.
Em sua defesa, Amélia não esperava que eles se
encontrariam. Seu mestrado estava na reta final, Vincent vivia
viajando e ela conseguiu escapar da vista dele até ali.
Amélia bebeu um gole generoso de vinho rosé, odiando
que o piloto estivesse certo sobre ela ter medo e nenhuma
desculpa na manga.
Arrombado do caralho.
No dia seguinte, para tentar aliviar a péssima sensação
da noite de bebedeira, ela recorreu a sua segunda bebida
favorita: café.
— Essa não é a sua terceira xícara, hoje?
Angela perguntou, a testa franzida. A francesa amava
visitar Amélia sempre que podia e, às vezes, passava mais
tempo na casa da amiga, do que na sua própria. A brasileira
não reclamava.
— É.
— Ames…
— Angela, estou de ressaca, tenho esse direito.
Angela suspirou e bateu as unhas no tampo do balcão.
— Ainda é sobre seu ex e a visita dele na galeria?
— Deu vontade de estrangular ele, foi tudo um
desastre. Ainda bem que Teodora não notou. E Vincent não é
meu ex.
— Ah, pelo o que você me contou, vocês viveram uma
linda história de amor estilo Antes do Amanhecer. Vou
considerar ele seu ex, sim.
Amélia fuzilou a melhor amiga com os olhos.
— Ele é um idiota. Ficou enchendo meu saco e cobrando
explicações, quando já faz três anos, pelo amor de Deus!
— Todos os sites de fofoca dizem que ele é bem babaca
e tem uma longa lista de ficantes. Acredita que ele nunca
namorou?
A brasileira desviou os olhos e bebeu um longo gole de
café com leite.
— Fiquei sabendo.
— Agora podemos falar do fato de que você não me
contou isso?! Dois anos de amizade, Amélia, e eu nunca soube
dessa sua aventura romântica.
— Eu não chamaria isso de uma aventura romântica.
Até porque foi bem mais que isso…
Angela estalou a língua.
— Não respondeu a pergunta.
— Pelo mesmo motivo que você não me contou que era
uma ex-herdeira quando nos conhecemos. Não fazia diferença,
ficou no passado.
— São duas coisas diferentes!
— Fatos pessoais do passado que não importam mais,
An. São a mesma coisa.
— Ah é? E por que você ficou toda mordida por conta
dele se Vincent é passado?
Amélia apertou a xícara mais forte entre os dedos.
— Eu não me importo, só fiquei surpresa. E aliás, o que
veio fazer aqui? É domingo, deveria estar com Sancia.
Angela suspirou, comprando a mudança de assunto.
— Ela tem um ensaio fotográfico amanhã, nem essa
fofoca conseguiu fazê-la ficar. Só sobrou você para pertubar.
— Seu amor por mim é adorável.
Domingo eram os dias em que a Galeria Torrisi passava
por limpeza, o que permitia aos funcionários uma folga extra
até o início da alta temporada de turistas. Normalmente,
Amélia e Angela se reuniam para estudar os assuntos do
mestrado, mas com o recesso do fim de ano, podiam
descansar um pouco.
— Posso perguntar só uma coisa? Prometo não
mencionar mais Vincent hoje.
— Vai perguntar mesmo se eu disser não, então vá em
frente.
— Amélia, você me disse que não esperava que ele
lembrasse de você. Já pensou que a noite deve ter significado
muito para ele? Não estou dizendo que aquele piloto não
mereça a fama de babaca, mas…
— Acredite em mim. É mais provável que ele só esteja
irritado, só isso.
— Tudo bem, não vou mencionar mais Vincent hoje,
mesmo que eu ache que vocês estão em uma versão de
Delilah Green alternativa.
— Adoro como você sempre coloca uma referência a
livros sáficos nas nossas conversas.
— É um dos meus maiores dons. Agora, tire esse
pijama, bonitinha, nós estamos indo às compras.
— Compras?
Angela inclinou-se, sorrindo, conspiratória.
— Ah sim, Amélia Palhares. Hoje é dia de estourar meu
cartão em uma loja de marca! Você tem vinte minutos para se
arrumar.
Amélia só precisou de quinze. As duas saíram
praticamente correndo pelas ruas de Mancia, agasalhadas em
casacos grossos, escolhendo quais lojas visitar. A brasileira
adorava ver a melhor amiga gastar o dinheiro que ganhava dos
pais em roupas chiques e bolsas caras.
Angela era uma ex-herdeira da poderosa família Savio,
donos de uma marca de móveis de luxo. Filha única, ganhou
um privilégio concedido à poucos: liberdade. Escolheu não ser
a próxima administradora dos negócios e estudar arte, com o
apoio constante dos pais.
A brasileira os conheceu assim que se tornou amiga de
Angela. Eles eram incríveis e acolhedores, ajudaram Amélia
com os trâmites para a permanência dela na Itália e enviavam
mensagens nas datas comemorativas.
Angela era a mistura perfeita deles. O cabelo de cachos
abertos, lábios grossos, sorriso tímido e a baixa estatura, eram
da mãe. O formato do rosto, mais quadrado, os olhos
pequenos e pele escura, de subtom quente, vieram do pai. Ela
tinha a energia explosiva e carismática dos dois, que foi o
principal motivo para Amélia se aproximar dela, na fila da
entrevista para o mestrado.
Desde então, não se separaram mais.
Às vezes, Amélia não conseguia acreditar que Angela
tinha mesmo se tornado sua amiga e era muito grata ao
universo por aquela pessoa incrível.
— Não — A brasileira disse — Essa calça fica folgada
nos lugares errados, Angela.
— Ficou bem ruim. Mas quem sabe se eu cortar,
adicionar um brilho… Ela tem potencial, vai.
— E custa cem euros. Como Sancia diz, se é caro, tem
que vir perfeita.
Angela riu.
— Me dê o vestido azul, eu gostei do estilo dele.
Amélia entregou a peça e olhou para além das vitrines
que cobriam as paredes da boutique.
O outono estava quase chegando ao fim na Itália,
dando lugar ao frio impiedoso do inverno. Os dias pareciam
cada vez mais escuros e nublados, sem nunca chegar a chover
de fato, e eram os preferidos de Amélia. Havia aquele quê de
melancolia que ela amava, além de combinar com xícaras de
café, vinhos, e sua playlist intitulada “Taylor Swift para dias
chuvosos”.
Distraída, mal notou quando um silêncio estranho se
instalou na loja. Franziu a testa e olhou ao redor. Todas as
vendedoras olhavam na direção dela.
— Ames, esse aqui ficou maravilhoso… O que foi?
Angela arregalou os olhos, sem entender.
— Eu não faço ideia.
— Você é Amélia Palhares? — Uma delas perguntou,
com um sorriso.
— Sou, por que?
— Tira uma foto comigo?
— Uma foto?
A confusão no rosto de Amélia era evidente.
— Sim! Minha irmã é fã do Vincent, ela nem vai
acreditar que conheci a namorada dele.
Demorou cinco segundos para a ficha de Amélia cair. Ela
piscou, não entendendo nada, e olhou de Angela para a
vendedora.
— Desculpa, o que foi que você falou? Namorada? De
Vincent?
— Sim, Di Castelli, é claro. O piloto.
E ela mostrou uma notícia em um blog de fofocas, com
fotos do dia em que Vincent foi na Galeria Torrisi. Primeiro,
Amélia e Teodora em um abraço gentil, como se fossem velhas
conhecidas. Em seguida, o piloto e a brasileira se encarando, a
centímetros de distância. A terceira era da festa, com
qualidade horrível, no exato minuto em que Amélia abriu a
porta do banheiro e deu de cara com Vincent.
“Romance no ar? Vincent Di Castelli é visto com morena
misteriosa em Mancia, sua cidade natal. Além de terem ido a
uma festa juntos, os dois foram flagrados na famosa Galeria
Torrisi, um museu de arte colaborativo, administrado pela
família do piloto. A morena é, pasmem, curadora do local.”
Amélia não conseguiu continuar a leitura, porque todos
os seus pensamentos estavam em branco. Ela piscou duas
vezes e seu olho direito tremeu. Angela a empurrou de lado,
olhando o celular da vendedora e parecia tão em choque
quanto ela.
— Temos que ir.
Foi tudo o que a brasileira disse, agarrando a mão de
Angela, que mal teve tempo de pegar suas coisas. Elas não se
importaram com os olhares curiosos dos moradores de Mancia
e saíram em disparada pelas ruas.
Amélia jurou que alguém gritou seu nome, mas ela não
parou para ver, os passos rápidos com um claro objetivo:
chegar em casa.
Quando fechou a porta do apartamento puxando Angela
para dentro, Amélia apoiou-se na madeira e deslizou devagar
até o chão, ofegante.
— Você viu…
— Sim.
— Você e Vincent…
— É.
— Ames…
— Angela acho que vou ter um colapso nervoso.
Mas que porra foi isso? Quem conseguiu as fotos? Quem
mandou para aqueles sites? Por acaso quem tirou, não viu a
discussão inteira? Meu Deus, estavam na internet? Quem já
tinha visto? O mundo todo? O que eu vou fazer?
A cabeça da mulher girava e ela pegou o celular para
conferir. Milhares de notificações surgiram em sua tela,
seguidores e mais seguidores no Twitter e Instagram.
O aparelho vibrou e ela o atendeu.
— Alô?
— Senhorita Amélia Palhares, aqui é do site ItalianPop,
queríamos uma declaração sobre os rumores do seu
relacionamento com o piloto Vincent Di Castelli e…
Amélia desligou, mas o celular tocou mais uma vez. Ela
desligou o aparelho e encarou a melhor amiga.

— Parece que foi um fotógrafo amador que tirou as


fotos, um paparazzi. Estão em todos os lugares, Ames.
— E o que eu faço?
Angela fechou todas as cortinas e trancou a porta.
— Primeiro de tudo, não vamos sair daqui por um
tempo. E agora, vou tentar falar com Vincent.
— Ficou doida?!
— Amélia, ele é o famoso daqui e você vai ficar
assustada pelo que uma fofoca é capaz de fazer. Mancia pode
parecer segura agora, mas a imprensa da Itália inteira vai
tentar arranjar alguma coisa de você, nem que seja uma frase.
Já que Vincent te colocou nisso, ele que lide com tudo.
— Você tem um ponto. — Amélia se levantou, as pernas
não muito firmes. — Não acredito que isso tá acontecendo
comigo! Mas que porra.
— É a coisa mais fanfic possível.
— Sofia iria adorar escrever um plot assim… Meu Deus,
eu preciso falar com a minha irmã!
— Ainda não — O celular de Angela tocou e ela atendeu
— Vamos cuidar de você primeiro. Ah, aqui, é para você.
Amélia pegou o aparelho, esperando ouvir a voz de
Vincent.
— Amélia? Aqui é Stefano Braccio, nos conhecemos na
festa.
— Ah, oi…
— Graças a Deus consegui falar com você. Sou o
assistente de Vincent e estou cuidando de tudo. Escuta,
estamos mandando uma equipe de seguranças para o seu
apartamento, okay? Peça para Angela me avisar quando
chegarem. Quero que arrume suas coisas em uma mala
pequena, para uns quatro dias de viagem.
— Viagem? E para onde eu vou?
— Roma, é mais seguro agora.
— Mas e o meu trabalho? Não dá só para negar tudo e
me dar um segurança para eu não ser atacada?
Um suspiro do outro lado da linha.
— Amélia, sinto muito, de verdade. Estamos tentando
fazer nosso melhor, mas as coisas não são tão simples. Nesse
momento você precisa ficar segura e depois podemos resolver
o resto.
Amélia encarou os próprios pés, querendo muito chorar.
De raiva, de ansiedade, de desespero.
— Stefano, o que vai acontecer comigo?
— Eu não sei — A voz dele era suave, como se falasse
com uma criança assustada. — Mas vamos ajudar você. Já
superamos algumas fofocas antes, só que precisamos seguir
todos os protocolos. Passe o celular para Angela, okay? Eu
encontro você em Roma.
A brasileira se sentou no sofá, ainda em choque. Um
zunido ressoava em seus ouvidos e ela piscava lentamente,
como se assimilar os últimos dez minutos fosse demais para o
seu cérebro.
Apenas um único sentimento restava dentro da garota,
direcionado para Vincent Di Castelli. Raiva. E sabia que ele não
tinha culpa alguma pelas fotos e detestava descontar nos
outros, mas mesmo assim não impediu a onda intensa que a
atingiu.
Vincent Di Castelli tinha bagunçado seu coração e agora
sua vida. E Amélia não tinha a menor ideia de qual seria o
próximo alvo.
***
Enquanto o mundo de Vincent Di Castelli desmoronava,
ele tirava fotos usando apenas cuecas.
Era um dos trabalhos da semana, uma sessão de fotos
para promover a campanha de uma marca de roupa íntima.
Quando saiu do estúdio, pegou o carro e dirigiu pelas ruas
lotadas de Roma em direção ao hotel.
Com sua banda italiana de rock favorita estourando no
som, ele cantarolava, animado. Depois daquela semana,
estaria oficialmente de férias e passaria o mês de dezembro
em Mancia, com a família e talvez viajasse com a mãe antes do
Natal. Anna estava pensando em visitar o Japão
O toque do celular interrompeu seus pensamentos e ele
apertou o botão do carro para atender.
— Oi.
— Onde você está?
A voz de Stefano estava tensa e Vincent ficou em alerta,
enquanto fazia uma curva.
— Indo para o hotel.
— Checou seu celular hoje?
— Hã… Não. Eu deveria? É alguma coisa importante?
— Não. Entre pela porta dos fundos, tem uma equipe de
segurança te esperando.
— Tem fãs na frente? Eu posso parar para tirar algumas
fotos e…
— Não — Stefano o cortou — Suba direto para o quarto,
quando chegar eu te explico.
O piloto franziu a testa.
— Stefano, diz de uma vez, o que eu fiz?
— Por incrível que pareça, não foi culpa sua. Dirija com
cuidado.
Vincent teve que se segurar para não parar o carro e
mexer no celular. Percorreu o caminho todo com os ombros
tensos, nervoso.
— E então, vai me contar o que aconteceu?
Ele disse, assim que viu Stefano digitando no
computador. Vincent pegou uma garrafa de água e sentou-se
no sofá cor de creme, tirando os sapatos.
— Alguém tirou fotos de você e Amélia. Estão em todos
os sites de fofoca e as pessoas acham que estão namorando.
Vincent cuspiu a água que bebia.
— Porra! Como isso aconteceu?
— É o que eu tô tentando descobrir, as filmagens da
Galeria Torrisi estão em análise.
— Desde quando?
— Umas oito da manhã, mas só consegui ver agora.
Vincent segurou a garrafa com força e limpou a boca.
— Amélia sabe? Você mandou os seguranças para ela?
— Sim para as duas perguntas. — Stefano ergueu os
olhos, a voz em tom profissional e contida. — Está vindo para
Roma nesse momento.
O piloto franziu a testa.
— Porque você só não negou os rumores?
— Porque a coisa é séria. É diferente dos outros boatos
com famosos, estamos lidando com uma pessoa que não sabe
o que é isso. Vasculharam as redes de Amélia, acharam o perfil
da irmã dela e estamos tentando controlar os danos. Pedi a
Arthur para entrar em contato com a família dela no Brasil.
Vincent bagunçou os cabelos castanhos escuros, se
sentindo culpado. Ele não queria que nada daquilo acontecesse
com Amélia, sabia o quanto a imprensa podia ser impiedosa
por uma simples fofoca. Foi tão idiota de achar que conseguiria
manter a normalidade em Mancia, não deveria ter sido
descuidado.
— Pare com isso. — Stefano se sentou ao lado dele —
Eu sei que você está se culpando, mas o que podia ter feito?
Vince, isso já aconteceu antes e talvez aconteça de novo.
Vamos lidar como sempre e tudo vai ficar bem.
— Se ela não me odiava antes, vai me odiar agora — Ele
murmurou, se encostando no sofá.
— Você vai sobreviver. Seu ego talvez não.
— Vai se foder. — Stefano riu e chutou o pé dele de
leve. — Minha mãe sabe?
— Claro que sim. Ela já deve estar chegando, falei com
ela mais cedo. Aliás, me dê seu celular.
— Para quê?
— Código vermelho, Di Castelli, você sabe o que
significa.
Vincent entregou o aparelho com um suspiro frustrado.
Não era a primeira vez que um escândalo acontecia com
um Torrisi e certamente não seria a última. Pensando nisso,
Teodora criou estratégias de segurança e centenas de
protocolos a serem seguidos. Indo de azul, para situações que
precisavam de um gerenciamento de mídia, à branco, para
atentados ou sequestros.
Vincent conhecia todos aqueles códigos de cor, desde
criança, mas Amélia com certeza estaria assustada e perdida,
sem saber o que fazer. Ele quase conseguia enxergá-la, os
olhos castanhos arregalados, mordendo o lábio inferior,
andando de um lado para o outro, prestes a abrir um buraco
no chão.
Durante todo o tempo de espera, sentiu-se ainda pior. A
situação o lembrou tanto de quando conheceu Amélia que
Vincent quase riu. Naquela época, estava aprendendo a lidar
com a raiva, frustração e culpa, saindo debaixo do sobrenome
da família e tentando conquistar algo que era verdadeiramente
seu.
E agora, anos depois, ele tentava lidar com a mesma
onda de sentimentos, indo encontrar a mesma garota que, e
ele esperava estar errado, estava com tanto medo quanto
naquela noite.
Deus, Vincent se odiava.
— Você comeu? — Anna perguntou, assim que o
encontrou no hotel Torrisi. — Parece cansado.
— E eu tô cansado para caralho, mas comi sim. E você?
A nonna veio?
— Não, mas ela sabe.
Anna segurou o rosto do filho com tanto carinho que
Vincent quase chorou.
— O quão brava ela está?
— A questão é que a minha mãe não está brava. —
Vincent piscou, confuso. — Sua avó adora Amélia, meu filho,
ela estava torcendo para esse boato ser verdadeiro.
Anna sorriu. Ah, não. Não, não, não.
— Mãe, não me diga que você também…
— São mesmo só boatos?
— Sim.
— Então só espero que tudo se resolva rápido, mas eu
não respondo pela sua avó.
A equipe de Vincent ocupou toda a cobertura e o andar
abaixo, em uma verdadeira operação. O piloto seguiu para a
sala de reunião improvisada. Esperava encontrar Amélia já o
esperando, mas no lugar dela, estava o seu chefe, Arthur
Valadares.
O quarto tinha sido transformado em uma central de
reuniões, com duas mesas redondas cheias de papéis,
advogados que Vincent reconheceu e funcionários da equipe
de marketing e imagem pessoal, gerenciados por Stefano. Que
por sinal, estava sério, dando ordens e checando seu tablet a
cada cinco segundos.
— Não me leve a mal, mas o que você tá fazendo aqui,
Arthur?
O piloto perguntou, confuso.
— Vim participar da reunião também. Oi Anna, como
está?
— Bem e você, como vai? Como estão seus filhos?
— Muito bem. Paula mandou um beijo e Henrique disse
que sente saudades.
Paula era a ex-esposa e Henrique o atual marido.
— Que lindos! Porque não passam o natal com a gente?
Iríamos adorar ter mais gente em casa.
— Desculpe interromper vocês. — Stefano disse,
chamando atenção. — Mas precisamos começar.
Arthur assentiu.
— Anna, se incomoda se eu falar com Vincent a sós,
primeiro?
— Pessoal, deem uma pausa. — Stefano mandou. — Eu
mando um alerta quando for para voltar.
Quando o quarto só tinha os três, Vincent se sentou em
uma das cadeiras, extremamente desconfiado. Os outros dois o
seguiram, em um silêncio estranho.
— Certo, o que caralhos está acontecendo aqui? Não
entendi nada.
— Vince, nós estudamos a reação do público a essa
história toda. Sempre fazemos isso, para saber como contornar
melhor a situação. — Stefano disse, encarando o amigo. — E
ao contrário do que esperávamos, a resposta foi positiva.
Vincent olhou de Stefano para Arthur.
— Eu não entendi.
— Vince, o público gostou de Amélia. — Arthur apoiou
os braços na mesa. — Ela é uma das poucas pessoas não
famosas que é vista nesse tipo de fofoca e está fazendo
sucesso. Só encontramos comentários positivos, pedindo mais
de vocês, ou então querendo conhecer ela.
— Tenho mais de 100 e-mails de marcas querendo
entrar em contato. Isso é… Surpreendente. Sem contar que
nossos patrocinadores estão curiosos e parecem gostar da
situação.
Stefano disse, os dedos longos no tampo de vidro da
mesa, em cima dos papéis.
— Certo, as pessoas gostaram de Amélia. Mas e daí? Já
tá na hora de desmentir isso, ela não merece passar por esse
tipo de exposição. Arthur, você sabe como é.
Arthur assentiu, arrumando o único fio de cabelo preto
fora do lugar.
O atual diretor-executivo da Scuderia Redemptio, era
um engenheiro disputado por todas as equipes do grid. Dono
de projetos de carros impressionantes, os modelos dele
estavam sempre no top 3 no ranking de melhores construtores
da competição.
Mesmo com toda essa fama, assim que ele terminou o
casamento com Paula e anunciou o relacionamento com
Henrique, as coisas mudaram.
Vincent era só um piloto de Fórmula 2 na época, mas
lembrava de brigar na internet em favor de Arthur, xingar
várias pessoas no processo e vibrar de alegria quando ele foi
anunciado como diretor de uma nova equipe. Dois anos depois,
Arthur bateu a porta da sua casa, em Mancia, e disse que
queria vê-lo correr.
Ele nunca tinha se sentido tão acolhido por uma equipe
como a Redemptio, que fazia um trabalho espetacular em
termos de inclusão, ao mesmo tempo que sofria o dobro de
retaliação pelos mais velhos do esporte. A exemplo de Ansel
Bellini e seu ódio por eles.
— Eu sei, garoto. Mas andei pensando e podemos
oferecer a ela um acordo, pelo menos por metade da próxima
temporada.
— Ficou maluco, porra? Stefano, fala para ele que isso é
uma ideia de merda.
— Fui eu quem deu a ideia.
— O que?!
— Vince, olha só. — O chefe de RP se levantou. — Vai
ser excelente para sua carreira, pelas nossas projeções, e
vamos oferecer total segurança para Amélia e a família dela.
Será por pouco tempo, algumas aparições oficiais e pronto, um
término amigável.
— E o que ela ganharia com isso? Devo lembrar a vocês
que no momento ela não é minha maior fã.
Vincent duvidava muito que Amélia sequer aceitasse a
ideia.
— Ela está terminando o mestrado, não está? A bolsa é
um ótimo dinheiro, mas não vai durar para sempre. — Arthur
disse. — Nós vamos bancar os estudos dela, pelo próximo ano
inteiro.
— Até o doutorado — Vincent disse — Até que ela
termine o doutorado.
— Como você sabe que ela quer continuar estudando?
— Intuição.
Ela mesma tinha dito a ele naquela noite. Vincent se
lembrava de uma Amélia animada, comentando sobre a
possibilidade de ir para um mestrado, com bolsa, e como
conseguir o mesmo em um doutorado era o sonho da vida
dela.
— Tudo bem, até o final do doutorado.
— Ela não vai aceitar.
— Na verdade, ela disse que ia pensar. — Stefano soltou
e sorriu. — Conversamos com ela, antes de falar com você.
Não especificamos as condições, mas Amélia pareceu aberta a
negociações.
— Vocês são dois traidores.
— Pense nisso com calma, Vince — Arthur relaxou na
cadeira — Stefano apresentou uma proposta de confirmar tudo
oficialmente na corrida de Erco Santinelli, antes da temporada
oficialmente começar. Até lá, não vamos negar nem confirmar
nada, só deixar algumas fotos de vocês juntos vazarem de
propósito, coisas assim.
— Só queremos que vocês sejam vistos e pareçam
apaixonados.
É mais fácil que um de nós mate o outro primeiro.
Vincent suspirou. Aquela história era cansativa, a mídia
um pé no saco, o acordo parecia algo tirado de um filme de
romance barato e ainda havia Amélia. Ele conseguiria lidar com
ela, sem que nenhum dos dois perdesse a paciência? Duvidava.
Não eram mais os mesmos que se conheceram em
Londres, por mais que Vincent quisesse acreditar que sim.
Durante muito tempo, pensou que no momento em que Amélia
surgisse de novo, eles continuariam daquele mesmo ponto, no
início de alguma coisa que ele mal teve tempo de descobrir.
Essa crença, porém, pertencia aos contos de fadas. Três
anos tinham se passado, eles mudaram, viveram coisas e era
certamente um milagre que conseguissem se lembrar daquela
noite. E Vincent tinha sido um babaca com ela, exigindo
respostas, se apegando a uma ilusão que não existia.
— Preciso falar com ela antes. E pensar sobre isso — Ele
virou-se para Stefano. — Tem certeza que isso vai ser bom
para minha imagem?
— Sim, eu tenho.
Certo, ele confiava no trabalho e capacidade de Stefano.
Restava saber se conseguiria aguentar a explosão que era
Amélia Palhares. Pior, se Vincent iria se manter longe dela.
05.
Dezembro
Amélia encarava Vincent de braços cruzados, tentando
não bocejar. Estava exausta, dormiu pouco, ainda sem celular e
tinha muito o que pensar. A razão disso tudo estava com as
mãos nos bolsos, plantado na porta do quarto do hotel luxuoso.
A viagem até Roma foi feita em uma tensão silenciosa. Os
seguranças dos Torrisi a levaram direto para o hotel da família,
montando guarda nos dois últimos andares. Havia centenas de
pessoas hospedadas, uma equipe inteira mobilizada para
resolver o problema e Amélia passou vinte minutos andando de
um lado para o outro, tentando se acalmar.
O choque tinha passado e ela só queria se livrar daquela
situação de uma vez, voltar à vida de sempre. Temia, porém,
que isso fosse impossível.
Entregaram-lhe um computador e ela pôde falar com a
irmã e amigas por meio de uma rede segura.
— Amora, como você não me contou sobre isso?! — Sofia
parecia animada demais para o gosto de Amélia. — Um piloto de
Fórmula 1? Isso sim é incrível! E eu achando que você não saía
de casa.
— Por que não é verdade? Foi só um mal-entendido,
Sofia.
— E como você está? Estão te tratando bem?
— Sim, eles me trouxeram para resolver tudo de uma vez
só. Escuta, muita gente sabe, amora?
Amélia mordeu o lábio, nervosa.
— A internet inteira. Passou até naquele canal de fofocas
que a gente assistia.
Um parafuso caiu do cérebro de Amélia.
— Acho que vou desmaiar.
— Não vai! Vai ficar tudo bem, amora. Resolva tudo e fale
comigo depois, tudo bem? Amo você!
— Amo você, amora.
Ela ainda ligou para Angela, garantindo que iriam
desfazer a confusão inteira. Logo depois, chamaram para a
reunião.
Na sala da cobertura, Stefano e Arthur Valadares
esperavam por ela e explicaram a dimensão da situação. Amélia
achou estranho que eles estivessem insistindo na receptividade
do público com ela, como o nome de Vincent estava sendo bem
visto no momento pelos patrocinadores da equipe. Permaneceu
de braços cruzados, rosto neutro.
Alguns minutos depois, entendeu o porquê.
Quando Stefano apresentou o contrato de namoro falso,
ela teve uma crise de riso que fez sua barriga doer. Aquilo era
surreal, ainda mais se a proposta fosse mesmo verdade. Só
podia estar vivendo uma realidade paralela ou uma grande
pegadinha.
— Todos os seus estudos serão pagos, inclusive o
doutorado.
Aquela informação capturou seu interesse.
— Tudo? Tipo, tudo mesmo?
— Mensalidades, eventos, custos, despesas pessoais e o
que você precisar.
Um doutorado. Aquele era um dos maiores sonhos de
Amélia, desde que se entendia por gente, mas não sabia se
conseguiria. Foi pura sorte ter conseguido o mestrado, nem
imaginava o que seria preciso para chegar no próximo estágio.
E ali estava a possibilidade de realizar seus sonhos
inteiros. Ela só precisa embarcar em um namoro de mentira com
a pessoa que deveria se manter longe.
— Vou ser sincera, é tentador. Mas preciso pensar sobre
isso com calma. Minha vida privada está em jogo e não sei se
gosto da ideia de abrir mão dela.
— Leve o tempo que precisar — Stefano disse,
compreensivo — Vou te dar uma cópia do contrato. Vamos falar
com Vincent quando ele chegar em Roma, até lá, fique à
vontade para descansar.
Depois da extensa reunião, Amélia se jogou na cama,
pronta para dormir, quando alguém bateu à sua porta. Ela
esperava tudo, menos Vincent Di Castelli em um moletom cinza,
os cachos escuros molhados.
— Posso entrar? Só quero conversar.
Amélia pensou em bater a porta na cara dele, mas
acabou abrindo. Vincent olhou para o quarto e depois para ela,
sentando-se na cama.
— Veio pedir desculpas? Você me meteu na porra de uma
confusão.
— Na verdade eu vim. Sinto muito que você esteja nessa
situação toda, eu não queria que acontecesse. Mas em minha
defesa, como eu ia saber que tinha gente tirando foto?
— Você que é o famoso, devia saber dessas coisas.
— Meu Deus, eu pedi desculpas, okay? Não espere que
eu me humilhe ainda mais. Mas se quiser uma compensação
pelos danos, podemos tentar.
— Dinheiro?
— Se você aceitar o contrato, não é isso que vai ganhar?
Ele abriu o mini bar e pegou um energético. O barulho do
lacre de metal ecoou pelo quarto inteiro. Amélia teve vontade de
jogar aquela coisa em cima dele.
— Não acha que dinheiro é o mínimo? Eu não pedi para
ter a vida virada de ponta a cabeça. Especialmente por você.
— Então diga não, simples assim.
— O que você achou da proposta?
— A porra de uma loucura. Eu nunca namorei uma
pessoa antes e Stefano acha que isso vai ajudar minha imagem
dentro do grid e com os patrocinadores. Eles andam meio putos
comigo e alguns pensam em retirar o patrocínio da Redemptio.
Mas eu nem sei se isso vai ser mesmo ajudar.
— De acordo com os tweets que me mostraram, as
pessoas estão obcecadas pela ideia de você namorando.
Vincent franziu a testa.
— Eles te mostraram tweets?
— Não — Amélia sorriu — Eu vi no tablet de Stefano
quando ele estava distraído. Pelo visto, elas pensam que eu era
uma amiga da família e que nos conhecemos há anos.
Amélia se sentou ao lado dele, bons centímetros os
separando. Ela estava totalmente consciente do seu pijama
improvisado, uma camisa larga de uma banda dos anos 90 e um
short de academia confortável, além de meias grossas nos pés.
Afinal, não era como se estivesse esperando receber uma visita.
— O que eu não entendo é porque. Não é mais fácil
contratar um ator? Ou supermodelo?

— Stefano tentou isso uma vez. A pessoa em questão foi


embora duas semanas depois, dizendo que nem todo dinheiro
do mundo valia a pena me aguentar. Acho que isso teve a ver
com o fato de que me recusei a transar com ela.
— Ego ofendido é uma constante entre gente famosa a
rica — Amélia murmurou e Vincent fez uma careta.
— Vai aceitar ou não?
— Estou me decidindo. Se você ainda se lembra, um
doutorado é o meu sonho e eu não vou ter outra chance dessas.
— Eu me lembro, Amélia, de tudo. — Os olhos dourados
do piloto faíscaram e as memórias da noite em Londres
invadiram a mente dela. — Por que você foi embora?
— Porque sim. Eu já te disse que não te devo respostas,
Vincent.
— Mulher, como você é teimosa…
Ele revirou os olhos.
— E você, um babaca arrogante! Acha que pode vir aqui
e exigir coisas de mim? Já faz três anos, Vincent.
— Sim! Faz três anos e eu ainda me pergunto porque
você foi embora sem nem ao menos se despedir. Porra, Amélia!
Eu só precisava que fosse honesta. Você me disse que a noite
foi especial, mas eu duvido muito disso.
Amélia se levantou, o maxilar tenso.
— Por isso eu não quero aceitar esse acordo. Imagine nós
dois em um namoro falso, Vincent? Eu iria te matar antes desse
negócio chegar ao fim. Nunca daria certo.
— Finalmente concordamos em algo.
Eles trocaram um longo olhar, a raiva diminuindo
gradualmente. A respiração de Amélia, antes caótica, voltou ao
normal e ela limpou a garganta, tentando clarear os
pensamentos. Precisava ser racional.
— Fiquei disposta a aceitar. Mas eu não quero ter que
passar pela dor de cabeça de expor minha vida privada para o
mundo inteiro.
— Eu estou nessa há anos, Palhares, anos. Não vou
mentir e dizer que odeio ser famoso, porque gosto. A sensação
é boa e porra, as oportunidades que aparecem compensam a
dor de cabeça. E tem o dinheiro também — Ele deu de ombros
— Eu gosto de ser rico, preciso admitir.
— Que lição de humildade.
Amélia bufou e Vincent ergueu um dedo.
— Mas é uma droga também. Não dá para confiar em
ninguém cem por cento, sua vida se torna um museu exposto a
céu aberto e o esforço de tentar proteger algo é desgastante.
— Mas você ainda assim gosta.
Ele assentiu, os cantos dos lábios curvados para cima,
relaxando.
Um tempo depois de Londres, Amélia se arrependeu de
ter sumido, então tentou procurar por Vincent nas redes sociais.
Ele tinha acabado de assinar contrato com a Redemptio, prestes
a alcançar uma carreira de sucesso e a brasileira não conseguia
enxergar nele o homem que havia conhecido.
Aquele sorriso tranquilo e leveza pareciam ter
desaparecido para sempre. Ironicamente, ali estavam eles,
longes das câmeras e ela via um pedaço do que Vincent era.
Não mudava o fato de tudo ter mudado, mas havia uma camada
embaixo da arrogância exibida para o público ou da confiança
do piloto nas pistas.
Amélia decidiu que gostava bem mais daquela versão,
mesmo que fosse insuportável.
— E aqui é a deixa para eu me desculpar por ter sido um
babaca com você na Galeria Torrisi. Me desculpe — Vincent a
olhou com sinceridade — Não foi certo te encurralar no seu local
de trabalho.
— Aceito suas desculpas, mas nunca mais fale comigo
daquela forma.
— Sem problemas.
Amélia torceu as mãos sob o colo e se levantou,
lembrando do conselho dos amigos. Ela precisava viver mais,
fazer uma pequena loucura, meter-se em uma confusão.
Então, fingindo confiança, disse:
— Vou assinar o acordo, se você quiser esse namoro de
mentira.
Vincent ergueu uma sobrancelha.
— Tem certeza disso?
— Não e se me perguntar mais uma vez eu dou para trás.
E você?
— Vai ser um desastre. Mas eu mentiria se dissesse que
não vejo os prós disso tudo.
Ela desviou os olhos para as mãos, o esmalte cor de rosa
descascado nas unhas. Não queria encarar Vincent e sentir o
peso da decisão de uma vez.
— Você revisou o contrato inteiro?
— Sim e vamos discutir ele amanhã. Tem pontos que eu
preciso mudar e coisas para acrescentar.
— Claro que tem — Ele revirou os olhos. — Eu vou deixar
você dormir.
Ela o acompanhou até a porta.
— Vincent. — O piloto se virou e Amélia respirou fundo —
Desculpe ter fugido e dado o número errado. Eu ia embora no
dia seguinte e não parecia justo manter contato com você.
Aquela noite… Foi incrível e só queria manter na memória.
E porque você estava certo sobre eu ser uma medrosa.
Ele piscou, surpreso.
— Bom, eu fiquei verdadeiramente triste de não te
encontrar depois. Pensei por muito tempo que aquilo não tinha
significado nada para você, ou que, sei lá, só tivesse me
enganado. Mas tudo bem, ficou para trás.
— E agora somos namorados de mentirinha.
Deus, a vida de Amélia parecia uma fanfic.
— Temos uma trégua, então, namorada? — O piloto
disse, apoiado no batente da porta, com um sorriso provocador.
Amélia tentou não pensar em como ele parecia atraente demais
daquele jeito.
— Trégua. Saiba que eu continuo tendo raiva de você, Di
Castelli, mas tente ser menos insuportável se quer que isso dê
certo.
— Desse jeito, eu perderia meu charme. Boa noite,
Amélia.
Quando Amélia fechou os olhos para dormir, um pouco
mais leve, pensou que aquela história maluca podia dar certo no
final das contas.
***
Aquilo não ia dar certo, Vincent tinha certeza.
Ele, Amélia, Stefano e Arthur discutiam os detalhes do
contrato, ponto por ponto, e a paciência do piloto estava sendo
testada pela mulher. Parecia que ela fazia questão de criticar
tudo, batendo o pé por coisas simples, e Vincent não sabia como
aguentaria manter um namoro falso com uma pessoa tão
teimosa.
— Por que Angela não pode saber? — Amélia perguntou,
os olhos na cópia do contrato — Ela é minha melhor amiga.
— Só nós quatro vamos saber disso, quanto menos gente
tiver essa informação, melhor. Se a imprensa sequer sonhar que
esse acordo existe, estaremos acabados.
Arthur disse, com calma, mas Vincent podia ver que ele
também estava cansado da discussão.
— Não parece muito justo para mim. Vincent tem duas
pessoas ao lado dele nesse segredo e eu fico sozinha?
— Tudo bem, então. Você pode incluir só uma pessoa,
pode ser?
— Obrigada, Arthur. Agora, sobre as aparições públicas.
— Amélia fez uma pausa e leu alguma coisa — Não preciso de
dinheiro para comprar roupas para esses eventos, eu tenho as
minhas.
— São muitos eventos, Ames — Stefano explicou — Seria
bom ter algum dinheiro extra separado só para isso, não
queremos que gaste seu salário da Galeria.
— Eu tenho o suficiente.
— Encare isso como um trabalho e use o dinheiro para o
uniforme, pode ser? — Vincent se intrometeu, cansado.
Amélia ergueu uma sobrancelha, os óculos tornando sua
expressão mais séria e profissional.
— Só que esse aqui não é um emprego, não é? Se eu
precisar de ajuda com roupas, informarei, mas não quero
receber o dinheiro diretamente. Se até o fim do contrato ele não
for mexido, doe para alguém. Acertado? E o mesmo vale para as
despesas pessoais durante o período do doutorado, prefiro que
as retirem.
Aquele era o problema principal de discutir com Amélia,
ela conseguia o que queria com facilidade e utilizando de uma
retórica impressionante. Não fazia sentido tentar rebater, por
mais que Vincent estivesse de saco cheio daquela conversa
inteira. Ele se obrigou a aguentar, especialmente porque era a
vida dela que iria mudar radicalmente, não a dele.
— Toques físicos são mesmo tão importantes assim?
— Somos namorados, Palhares. Casais se beijam e
abraçam o tempo todo, mas relaxa, isso só na frente das
câmeras e passeios públicos.
Ela assentiu.
— Eu tenho uma proposta. Antes de assinar o contrato eu
queria testar uma coisa — Stefano interferiu — Você topa um
teste do relacionamento? Uma aparição pública, ainda sem
confirmar nem negar rumores.
— Onde?
— O evento beneficente de Ímola, a Corrida de Erco
Santinelli. — Arthur disse, estendendo o celular para eles. — Vai
ser em fevereiro, antes da temporada realmente começar, e só
precisamos que vocês apareçam para a imprensa.
— Até lá, apresentamos Amélia devagar para o público,
tornando as coisas mais naturais. Podemos ir ajustando aos
poucos, é claro.
Amélia e Vincent se encararam.
— Parece bom.
— Tudo bem. — O piloto disse, mal conseguindo acreditar
que tinham chegado ao fim. — Alguma coisa para acrescentar,
Palhares, ou acabamos?
Amélia negou.
— Graças a Deus.
O piloto murmurou.
— Vou levar Amélia de volta para Mancia. Vincent, vamos
direto para o aeroporto, sua agenda tá atrasada. — Stefano
levantou, juntando os papéis e anotações.
— Então é isso, namorada de mentira — Vincent disse a
Amélia — Nos vemos… Não faço ideia, na verdade, mas Stefano
provavelmente vai te avisar.
— Cadê a parte do treinamento de namorada de mentira?
Você não tem um vídeo explicando o que eu tenho que fazer
enquanto a gente não se vê?
Vincent riu.
— Não, é só um panfleto ilustrado. E eu tenho seu
número agora, Amélia. — Ele ergueu o celular que lhe foi
entregue naquela manhã. — O que existe. Vou falando com
você e a gente decide.
Ela assentiu e o piloto foi tomado por um sentimento
estranho. Tudo na vida de Vincent era pensando em como a
imprensa reagiria, desde muito cedo. As roupas que usava, as
declarações que fazia, os lugares em que frequentava. E agora,
a vida de Amélia seria entrelaçada a dele nesse caos. Tudo bem,
ela tinha concordado, mas não se sentia menos culpado por
isso.
— Até a próxima, namorado de mentira.
— Até a próxima, namorada. — Vincent se despediu e
Amélia foi embora, levando o cheiro de ameixas junto.
Vincent, entretanto, ainda não podia descansar.
Os comentários de Ansel Bellini ressoavam na cabeça dele
desde a entrevista e a vida pública da estrela de Fórmula 1
estava voltada para tentar reparar aquele erro. As recentes
fofocas sobre ele e Amélia foram ótimas cortinas de fumaça para
disfarçar o estrago causado pelo ex-piloto, e segundo Stefano,
era a hora perfeita de usar aquilo em favor de Vincent.
Por isso, naquela mesma tarde, Vincent voou de Roma
para Nova York, para participar de um jantar oferecido aos
pilotos, todo final de temporada. Usando uma camisa branca,
com uma jaqueta despojada por cima, ele entrou no local ao
lado de Satake Yukikaze, o piloto principal da Redemptio.
— Eu odeio esses eventos.
Satake murmurou, parando para tirar uma foto na
entrada, ao lado de Vincent. Ele era mais baixo que o italiano, os
cabelos pretos sempre penteados para trás, cheios e lisos. Os
olhos castanhos, mais fundos e estreitos, exalavam um ar de
seriedade na frente das câmeras.
— Mentira, você gosta.
Vincent sorriu para um fotógrafo que gritou seu nome.
— Não é porque você adora ser o centro das atenções
que todo mundo também gosta.
— Eu não falei da imprensa, falei do evento em si. Não é
você que sempre me manda “ser mais sociável”?
— É que ninguém gosta muito de você, Vincent. E fazer
amigos no grid é importante.
— Melhor ser temido do que amado.
Satake revirou os olhos.
Todos os pilotos e as equipes eram convidados para o
evento anual. Era uma forma de encerrar a temporada em
definitivo, uma vez que, depois daquilo, todos estariam de férias
das atividades midiáticas do esporte até Janeiro.
Vincent viu alguns conhecidos das outras equipes, nas
mesas designadas. Ficou um pouco triste que Arthur não pôde
participar, pois o seu filho mais velho estava doente e sabia que
ele não sairia do Brasil enquanto o menino não estivesse melhor.
— Ora se não é o mais novo apaixonado do momento. —
Um piloto conhecido entrou no campo de visão de Vincent.
— Apaixonado? Não fiquei sabendo disso, Astier.
— Então está negando? Sabe, se eu quisesse ferrar você,
diria isso à imprensa agora mesmo.
— Se quisesse mesmo me ferrar, você diria outra coisa.
Só que sobre nós dois.
Vincent sorriu e abraçou Chase Astier com um sorriso.
O piloto da equipe rival e o italiano tiveram um pequeno
affair, logo quando Vincent entrou para a Redemptio,
alimentando diversas fanfics ao redor do mundo sobre um
romance. Os dois se divertiam enviando as sinopses das
melhores histórias que achavam na internet, criadas por uma
legião devota de fãs.
Contudo, os dois pilotos estavam focados demais na
carreira para quererem algo sério, então levaram a relação a
uma amizade tranquila.
— Como vai, Vince?
Chase perguntou, o sotaque francês marcado, os cachos
castanhos claros caindo sobre a testa. O terno azul claro tinha
ficado perfeito nele, combinando com a pele escura.
— Bem e você? Pronto para admitir mais uma derrota
para mim, ano que vem?
— Nada de falar de trabalho por hoje, Di Castelli. —
Outro piloto se intrometeu. — Só quando a nova temporada
começar. Mas podemos falar sobre seu suposto novo romance,
que tal?
— E por que você quer tanto saber da minha vida, Oliver?
— Para ganhar de você, é preciso conhecer seus pontos
fracos.
Vincent riu. Oliver Benson, um inglês baixinho e
atarracado, tinha ficado em quarto na classificação geral e
prometeu a Vincent que venceria dele no ano seguinte.
— Admiro seu esforço, Oliver, mas infelizmente para você,
sou o melhor.
— E depois ele se pergunta porque é odiado por metade
dos pilotos daqui. — Satake acrescentou, pegando uma taça de
bebida de um dos garçons que passava. — Como consegue ser
assim?
— É um talento para poucos.
Os quatro se sentaram juntos e Vincent quase esqueceu
dos problemas que os cercavam. Apesar das provocações, o
italiano sentia afeição e amizade sincera irradiando dos três,
eliminando o clima de hostilidade que sentia de alguns outros
colegas de grid.
Vincent não os culpava. Ele mantinha uma postura
arrogante fora das pistas. As câmeras adoravam seu jeito
playboy e tinha, com isso, uma camada de proteção contra o
mundo. Infelizmente, não era muito bem visto entre seus
colegas de profissão, especialmente os mais velhos e um piloto
em específico.
— Vincent.
E falando no diabo…
— Kob. Como estão suas férias?
— Bem, mas pelo visto não tão movimentadas como as
suas.
— Eu gosto sempre de me manter na ativa.
Kob cruzou os braços, encarando-o de cima a baixo com
um ar reprovação.
— É, deu para perceber bem.
Vincent sorriu mais, uma raiva fria subiu pelo seu
pescoço.
Kob Vanich, o piloto tailândes mais velho do grid
acumulava títulos e mais títulos na conta, prêmios importantes e
patrocinadores famosos. E, desde que Vincent dirigiu um carro
de Fórmula 1 pela primeira vez, mostrou que o odiava.
O italiano via isso nos olhos escuros, proeminentes, em
formato de gota. Nos comentários curtos que fazia em direção a
Vincent, sempre com uma alfinetada, até mesmo no que deveria
parecer um elogio.
No primeiro ano que Vincent correu, Kob levou o título,
deixando o italiano em segundo. Na temporada seguinte, os
papéis se inventaram e a disputa entre eles se acirrou ainda
mais. A mídia adorava criar uma rivalidade entre os dois pilotos,
comparando a trajetória inicial do mais velho com o mais novo e
como tinham estilos de pilotar semelhantes nas pistas.
Vincent admitia que provocava Kob demais, às vezes,
embora o tailândes devolvesse a altura. Hoje, porém, ele estava
mantendo um bom comportamento.
— Vejo você por aí — Eles trocaram um aperto de mão
firme antes de se afastarem.
— Dizem que o amor muda as pessoas, mas não imaginei
que era tanto — Oliver provocou — Achei que você mandaria
Kob se foder.
— Sou um novo homem.
Satake se inclinou para Vincent.
— Ansel vai fazer o discurso desse ano, você sabia disso?
— É sério?
— Alguém da Sirius me contou. Parece que eles querem
homenagear ele, uma coisa assim.
Vincent piscou, incrédulo, mas Satake estava certo. Os
quatro pilotos se entreolharam quando Ansel subiu ao palco, o
cabelo branco cortado milimetricamente, olhos azuis claros
simpáticos ao apertar a mão do presidente da FIA e assumir o
púlpito para falar.
— É uma honra estar aqui representando a tradição firme
e sólida do automobilismo. — Ansel sorriu e a voz dele ecoou
pelo salão — Sou grato pela oportunidade de mostrar a esses
queridos jovens a história da Fórmula 1, conduzi-los pelo
caminho da maior vitória que existe: o respeito às raízes do
nosso esporte.
— Acho que vou vomitar — Chase sussurrou, embora sua
postura permanecesse calma.
Vincent precisou se lembrar o tempo todo que estava ali
para mostrar que era uma pessoa melhor, um adulto
responsável e não podia mandar aquele velho desprezível à
merda. Foi duro não interromper o discurso de exaltação a um
esporte que, por Deus, “não podia se abalar pelas atrocidades
da sociedade moderna”.
Até mesmo sorriu, com os punhos apertados, quando
Ansel o encarou lá de cima.
— É nosso dever proteger o campo de batalha, as pistas,
de toda devassidão e tentativas de mudança das bases
fundamentais do automobilismo. Eu, humildemente, clamo pelo
retorno de uma Fórmula 1 centrada em conservar o que
realmente importa nesse esporte.
Quando foi obrigado a se levantar e aplaudir o discurso
de Ansel, um gosto amargo tomou sua boca. Eram caras como
aquele velho que mantinham o automobilismo um esporte
elitista, minando o progresso que Vincent e os outros pilotos
tentavam fazer todos os dias. E ainda recebiam homenagens,
como se fossem a porcaria de heróis.
Ele trocou um olhar com Chase, um vislumbre dos
verdadeiros sentimentos do francês transparecendo, e Vincent
viu que se sentia do mesmo jeito. Raiva e impotência.
Ele se sentia a pior pessoa do mundo.
06.
Três anos atrás
Outubro, 20:25, Londres.
Amélia estava tendo um dia ruim.
Eles sempre existiram e ela aprendeu a lidar com esse
fato. Viviam à espreita, com sorrisos cruéis, esperando uma
oportunidade de tornar a vida dela uma bagunça de
sentimentos que não conseguia controlar.
Geralmente, Amélia escolhia se isolar, encarando a
parede do alojamento universitário, esperando que a pressão
em seu peito aliviasse. Andava pelo local minúsculo, como um
fantasma consumido por angústia e vazio. Contava a
respiração, focando em qualquer coisa que não fosse o caos da
própria mente.
Como você é patética, Amélia. Olha só para você e seu
esforço inútil. Acha mesmo que fez o suficiente por eles? O
bastante para que essas pessoas te amem de volta? Para
ficarem perto de você? Não, porque você é só um incômodo,
um pequeno estorvo. E logo todo mundo vai perceber isso.
A cabeça dela era um turbilhão de vozes estridentes,
deixando-a paralisada. Amélia tinha medo de que, no momento
em que tentasse sair da prisão de seus próprios pensamentos,
caísse e não tivesse mais como levantar.
Então, esperava, às vezes, por horas, ou até mesmo um
dia inteiro, que o cansaço do corpo tenso finalmente a levasse
para o estado inconsciente do sono. Mas em alguns dias ruins,
como aquele, o alívio não vinha e tudo ficava demais, aqueles
pensamentos gritando e disputando para ver qual conseguia
falar mais alto.
Naquela noite de outubro, uma memória atravessou a
cacofonia de sons que a assombravam. Era o aniversário de
Sofia. Era a porra do aniversário da sua irmã mais nova e
Amélia tinha estado presa naquele torpor por tanto tempo que
esqueceu.
Ela travou o maxilar, pegou o celular e tentou enviar
uma mensagem. O sinal da internet estava horrível, então
vestiu qualquer roupa mais quente e foi para a rua. Começou a
chorar enquanto descia a escada, tão cansada, sentindo-se tão
pequena e tão… Patética.

Quando tentou falar com Sofia, por ligação, escutou o


tom carinhoso e compreensivo da irmã, para o seu alívio, mas
não a fez se sentir melhor. Na verdade, a tristeza deu lugar à
raiva de si mesma e o volume das lágrimas aumentou.
E aí, Vincent apareceu.
Amélia ainda se sentia cansada, seu corpo doía, e os
pensamentos eram uma bagunça, mas estava grata pela
companhia dele. E pela montanha de bolinhos açucarados que
Vincent comprou para acompanhar o café.
— Isso é a porra do paraíso — Ele disse, comendo um
pedaço grande.
— Sua versão de paraíso é uma cafeteria?
Ele mastigou, pensativo.
— Na verdade, poderia muito bem ser. Uma cafeteria
com doces de graça e com estoque infinito.
— Eu iria para esse céu com facilidade.
Amélia sorriu para ele, tomando um gole de café. Seus
dedos estavam aquecidos, mas ela ainda tremia, a ansiedade
que tomava seu corpo se recusando a ir embora.
— Eu sei que você disse que estava bem, mas não
parece ainda. Sério, Amélia, eu posso te acompanhar para o
hospital se você quiser.
— Ah, não precisa. Isso é… Bom, é normal. Eu tenho
alguns ataques, episódios, como você quiser chamar. E eu
estava bem no meio de um deles quando lembrei do
aniversário da minha irmã. Mas vou ficar bem, sempre fico.
Ela mordeu a parte interna da bochecha, um pouco
nervosa. Falar da sua saúde mental não era nada fácil e Amélia
já tinha tido experiências ruins o bastante para ser cautelosa
sobre o assunto.
— Isso parece grave — Ele franziu a testa e se inclinou
na mesa. — Eu deveria te levar na emergência.
— Vincent, eu já disse que tô bem. Tô acostumada com
isso, só preciso de mais açúcar, uma noite de sono e estarei
novinha em folha amanhã.
Para pegar um voo que pode decidir o restante da
minha vida.
Mas ela preferiu não revelar aquela informação no
momento.
— Tudo bem então, mas se importa se eu ficar com
você mais um pouco? Só para caso as coisas piorem.
Ela não conseguiu evitar um sorriso.
— Sua companhia é bem-vinda. E ela vem
acompanhada de café, jamais poderia recusar.
Vincent riu, os cachos escuros bagunçados. Ele era tão
bonito e toda vez que sorria Amélia se derretia um pouco mais.
O que era péssimo, considerando que ela jamais o veria depois
daquela noite.
— Então você é piloto.
— Fórmula 2. É como se fosse a segunda divisão da
Fórmula 1. Você acompanha?
— Infelizmente não, sou uma leiga total nesse assunto
— Ela sacudiu a cabeça — Mas eu vou adorar ouvir você falar
sobre.
— Eu sou piloto desde criança, acompanho o esporte há
anos. O sentimento de correr em uma pista deve ser a melhor
coisa do mundo para mim. A adrenalina de estar à trezentos
quilomêtros, numa pista e saber que você controla isso… É
foda para caralho. A parte mecânica não é o meu forte, sou
honesto, mas a prática sim. E… Eu tô falando muito?
Amélia sorriu, apoiando-se na mesa.
— Não. É bonito você falando sobre o que ama, gosto
de ouvir. Não sente medo?
Vincent olhou para o teto por alguns instantes antes de
responder.
— Hum… Sim. Quase o tempo todo na verdade. Eu
posso acabar machucando alguém, ou então me machucando
e acidentes em autódromos não são uma coisa bonita de se
ver.
Amélia sopesou aquelas palavras.
— Mas mesmo assim vale a pena, não vale? Continuar
pilotando.
— Claro que sim. É a coisa que eu mais gosto de fazer
no mundo, a única que devo ser o bom o bastante.
Bom o bastante. Aquela expressão fez a mulher soltar
um suspiro.
— Não é incrível como estamos sempre tentando achar
algo em que somos bons o bastante? Mas bom o bastante para
quem?
Vincent ergueu uma sobrancelha.
— Todo mundo tenta se provar para alguém, não acha?
Para si mesmo, para alguém que admira ou para o restante do
mundo.
— Qual a sua escolha?
​— Acha que tenho um desses?
​Amélia deu de ombros.
​— É uma dedução.
​ incent molhou os lábios e ela acompanhou o
V
movimento com os olhos.
​ Hum… Não sei se quero sair revelando meus

segredos para uma estranha. Mas eu talvez contasse para uma
garota que aceitasse um segundo encontro comigo nessa
noite.
​— Segundo encontro?
Amélia segurou uma risada.
— Contei esse como se fosse o primeiro — Ele checou a
hora no relógio. — Temos tempo ainda para três, se você
quiser.
— E por que três?
Ele deu de ombros, relaxando na cadeira. Vincent era
mais alto que ela e irradiava uma energia reconfortante, que
Amélia gostou assim que se sentou ao lado dele no parque do
prédio.

— Porque eu planejo te beijar no terceiro. — Amélia


engasgou — E quero adiantar o mais rápido possível.
— Hum… — Ela desviou os olhos, nervosa. Era agora
que devia contar que, na manhã seguinte, iria embora.
— Não diga não, por favor — Vincent pediu, com pressa
— Eu prometo que você vai se divertir e podemos ir embora
quando quiser.
Ele tinha a maior cara de cachorrinho abandonado que
Amélia já tinha visto, um golden retriever de pelos escuros
pedindo por um pouco de carinho e atenção.
— Vincent, eu…
— Então vamos em só mais um lugar. E depois você
decide o que fazer, pode ser?

Amélia soltou um suspiro pesado.


— Acho que nunca saí tanto em Londres em uma noite
só e certamente não com um estranho.
— Nos conhecemos há mais de uma hora, somos
praticamente melhores amigos — Ele se levantou e Amélia o
imitou — Estuda tanto que não consegue sair?
​ les saíram para o frio da noite e Amélia apertou o
E
casaco ao redor do corpo.
— É aqui que eu te conto que sou uma medrosa de
merda, Vincent. Vivo com medo o tempo todo, então prefiro
não arriscar e ficar entocada dentro do meu apartamento.
Os olhos dele brilharam e Vincent se aproximou,
roubando o fôlego dela.
— Essa é a sua chance de viver uma grande aventura, o
que me diz?
Amélia olhou nos olhos deles e não conseguiu dizer não.
07.
Dezembro
Ser uma namorada de mentirinha era muito fácil.
Ao voltar de Roma, as coisas ficaram relativamente
tranquilas. Amélia lia os livros para a dissertação de mestrado,
encarava planilhas complicadas, almoçava saladas de qualidade
duvidosa e tinha até regulado seu horário de sono.
E a melhor parte, não tinha que conviver com Vincent
todos os dias.

Mas quando abria seu celular, era outra história. Suas


redes sociais, que antes tinham menos de 500 seguidores,
estavam quase chegando aos dois milhões. Foi obrigada a trocar
de chip porque o número foi descoberto.
Angela tinha chorado de rir quando, em uma quarta-feira,
Amélia twittou “queria tanto que hoje fosse sexta para poder
tomar vinho com quem eu gosto” e tomou um susto. Ela nem
sequer podia usar mais o Twitter como diário pessoal sem parar
em páginas de fofocas italianas e brasileiras, sendo diretamente
ligada a Vincent.

E como se não fosse o bastante, o desgraçado tinha


twittado logo depois “tomando vinho com quem eu gosto nessa
sexta”. Amélia teve vontade de matá-lo, até lembrar que ela
mesma tinha se submetido a tudo aquilo por vontade própria.
Pense no doutorado pago, pense no doutorado pago,
pense no… Ah, que droga.
Amélia bateu a testa contra a mesa, devagar.
— Ames, você tá me ouvindo?
Stefano chamou.
— Sim — Ela murmurou, de olhos fechados — Quando eu
falei de curso para namorada de mentira eu estava brincando,
sabia?
— E eu falando de verdade. Você precisa se preparar para
todo o tipo de situação. Estou montando uma agenda tranquila
para vocês, saídas simples em lugares facilmente fotografados,
mas com segurança.
A brasileira se ajeitou, olhando o rosto de Stefano na tela
do seu celular. Ele estava sentado contra a cabeceira da cama,
mexendo no computador.
Nas últimas semanas ele tinha sido prestativo e gentil,
ensinando Amélia sobre como as coisas funcionam no mundo de
Vincent, além de enviar os melhores memes para animá-la. As
infinitas chamadas de vídeo, contando com a participação de
Angle, aproximaram o grupo, que já se considerava amigos de
longa data.
— Caramba, Stefano, ser RP é um porre mesmo.
Ele riu e a câmera tremeu.
— Sim, Ames, é um inferno.
— Espero que o salário compense, pelo menos.
— Às vezes, eu acho que sou mal pago pela dor de
cabeça que Vincent me dá, mas consigo sobreviver com o que
tenho.
— Vou pedir um adicional de insalubridade para você.
— Minha heroína. Então, sobre o natal, você vai viajar
para o Brasil? — Amélia negou com a cabeça — Quer vir para a
festa dos Torrisi?
— Não.
— Você vai precisar conhecer a família dele uma hora.
— Cedo demais para isso. Por que não adiamos isso por
um tempo? Temos uns encontros antes, sei lá.
— Tudo bem. Mas saiba que eles são boas pessoas,
Ames, vão gostar de você. Eu era só o amigo cabeça dura de
Vincent e eles me acolheram com carinho a vida inteira, sem
cobrar nada de mim por isso. Às vezes, eu me sentia deslocado,
é claro, mas não por culpa deles, em si. Bom… Se quiser vir,
estaremos esperando.
— Não tive muitas experiências boas conhecendo famílias
de namorados. Eu só… Só quero esperar um pouco.
Stefano assentiu e não insistiu mais no assunto, o que
Amélia agradeceu.
— Vou te passar o material de segurança, sobre o que
fazer em cada situação. Estude e aprenda, é importante. Está
precisando de alguma coisa?
Amélia pensou um pouco.
— Que você chame Toni para sair de uma vez, assim ele
irá parar de encher meu saco.
Stefano congelou, os dedos nos cabelos crespos e
levemente amassados.
— O quê?
— Não me venha “o que”, o garoto está morrendo de
vontade de te ver de novo. Ele não me conta, claro, mas toda
vez que vou no La Fratta, Toni pergunta por você, se está em
Mancia, se vai passar o Natal aqui. Porque não chama ele para a
festa de natal dos Torrisi?
Braccio suspirou, visivelmente ansioso e ela se
arrependeu por ter falado.
— Pelo visto, todo mundo resolveu tirar o dia para me
dizer a mesma coisa. Primeiro Vincent, depois tia Anna e agora
você.
— Considere isso um sinal divino — Amélia se esticou na
cadeira — E foi mal se eu me intrometi demais, não queria ser
invasiva.
— Tá tudo bem, Ames. É só que é complicado. Toni é um
cara ótimo, mas eu nem sei como faríamos isso funcionar. Tô
sempre viajando, ele estuda em Ímola e ainda por cima ajuda a
família. A gente nem sequer se veria.
— Stefano, porque se preocupar tanto com o futuro desse
jeito? Tente ir devagar, conheça Toni melhor e depois você vê o
que acontece. Um dia de cada vez.
Ele piscou, considerando a ideia.
— Posso tentar isso. Pode ser que Toni não entre para
estatística dos meus piores relacionamentos. Eu tenho um
histórico muito bom nessa categoria.
— Vamos ter que tomar um vinho, de novo, para você me
contar essas histórias.
Ele riu.
— Certeza de que não precisa de nada?

— Hum… Tem uma coisa que você pode ajudar, mas não
é para mim.

Amélia sorriu, conspiratória.


— Tô ouvindo.
Amélia era apaixonada por aniversários. Não só o seu,
como também o das pessoas que ela amava e sempre fazia
questão de demonstrar como eram especiais, organizando um
dia de mimos e diversão para elas.
E, no dia da sua melhor amiga, não seria diferente. Em
dezoito de Dezembro, Amélia acordou cedo e recebeu a equipe
de decoração recomendada por Stefano, que transformou sua
pequena sala em poucos minutos.
Bolas metalizadas roxas, azuis e brancas decoravam a
parede, formando um círculo em torno de um grande “A”
dourado. Uma pequena mesa de madeira abrigava o bolo de
ameixas encomendado por Amélia, assim como brigadeiros e
beijinhos que ela mesma tinha feito. O balcão da sua cozinha
virou um bar improvisado, os materiais para drink organizados
em jarros transparentes.
Pela noite, o apartamento dela reuniu os funcionários
mais próximos da Galeria Torrisi, Stefano, uma Sancia animada e
a família La Fratta. Eles esperaram até Angela chegar e
gritaram:
— Surpresa!
— Ai meu Deus, Amélia! — Angela a abraçou, os olhos
marejados. — Eu não acredito que você fez isso.
— É claro que fiz. É seu aniversário! — Amélia a apertou
com força, sorrindo — Eu tenho uma coisa para você.
A brasileira pegou uma tiara metalizada onde se lia
“Birthday Girl” e entregou para a amiga. Angela riu e arrumou o
acessório nos cabelos cacheados, mechas roxas elétricas recém
feitas entre eles.
— Amélia, que maravilha é isso aqui? — Stefano
perguntou, apontando para os brigadeiros — Eu preciso saber o
que é.
— Brigadeiro, receita brasileira. Toda festa no Brasil tem
esse doce, é nosso patrimônio cultural.
— Meu próximo aniversário vai ser lá.
Amélia riu e ergueu seu copo de drink, brindando com
Stefano, antes de beber a metade de uma vez só.

— E cadê seu namorado, Amélia? — Pia perguntou —


Achei que finalmente conheceríamos aquele menino das fotos.
Mal acreditei que era o Vincent!
— Ele está com a agenda de trabalho cheia — Amélia
fingiu um sorriso. — Não pôde vir.
Até porque ela nem sequer o convidou. Enquanto
pudesse evitar o piloto, melhor, e como ele também parecia
querer manter distância, Amélia achava perfeito.
— Que pena. Queria dizer umas coisinhas a ele, caso
machuque seu coração.

— Repasso o recado, Pia. Quer mais pastel? Tem mais na


cozinha.
— Melhor treinar o sorriso, Ames. Você não é boa atriz —
Angela sussurrou, divertida e Amélia revirou os olhos.
Não queria lembrar daquela história de namorada de
mentirinha, não hoje. Ela aumentou o som o máximo que pôde,
para não receber reclamação dos vizinhos e se encheu de álcool.
— Ai meu Deus, é a nossa música! — Ela soltou um
gritinho, apontando para Angela.

— A gente tem que dançar!


Bêbadas e sem nenhuma coordenação motora, as
meninas fizeram uma coreografia de Asereje, música que Angela
tinha ficado obcecada quando Amélia apresentou sua playlist de
clássicos brasileiros. Elas riram e a pequena plateia aplaudiu. Até
Stefano arriscou alguns passos de funk, ao som de Olha a Onda,
os olhos voltados o tempo todo para um Toni sorridente.
Na hora dos parabéns, Amélia fez uma chamada de vídeo
com os pais de Angela, que se juntaram ao coro de feliz
aniversário. E cada segundo do esforço dela valeu a pena,
quando a melhor amiga sorriu, emocionada e feliz. O coração da
brasileira se aqueceu.
De madrugada, quando a festa finalmente terminou, o
apartamento de Amélia parecia uma zona de guerra. Stefano
dormia no sofá, apagado depois de virar uma garrafa de vodca
quase sozinho e Sancia na cama de Amélia, enrolada em um
cobertor grosso. Toni ficou para ajudar a limpar a bagunça,
junto com a dona do apartamento e uma Angela cansada.
— Essa foi a melhor festa de aniversário do mundo —
Angela disse, amarrando os cachos em um coque — Obrigada,
Ames, de verdade.
— Você merece, An.
Amélia sorriu, juntando os copos plásticos em sacolas de
lixo.
— Pode deixar que eu levo lá para baixo — Toni disse —
Eu preciso ir para casa, minha mãe vai se preocupar se eu
demorar mais.
— Tem certeza, Toni? Se quiser ficar, a gente se ajeita
para dormir.
— Valeu, Ames — Ele se aproximou de Stefano e beijou a
testa dele com carinho — Me avisa se ele passar mal ou se
precisar de ajuda?
— Claro!
Amélia apertou os lábios, tentando esconder a emoção
com aquele gesto. Eles tinham ficado juntos a festa inteira,
como um casal e Stefano não parou de sorrir por um minuto
enquanto isso. A cena, além de adorável, evidenciou o que ela
já sabia: eles se queriam, mas ainda era cedo demais para
admitir. Talvez até mesmo para eles mesmos.
Ela balançou a cabeça, rindo um pouco. Amélia gostava
de casais apaixonados, sempre tentava adivinhar o que se
passava entre uma troca de olhares ou gestos pequenos. Isso
fazia dela uma intrometida, ela sabia, mas era o preço a se
pagar.

Ela decidiu encarar a pilha de louça, antes de descansar.


— Ames.
— Hum?
— Eu achei que Sancia ia se declarar para mim.
Amélia se virou para a amiga.
— O que aconteceu?
— Ela… Ela é ótima, Sancia é a mulher mais incrível que
eu conheço. Me contou que tinha uma coisa para dizer, uma
coisa importante, e eu pensei que ela ia dizer que tava
apaixonada por mim.
— E era isso?
— Não — Angela suspirou, sentando-se no banquinho do
balcão — Ela disse que estava gostando de mim. Muito.
— E isso não devia ser bom?
As unhas longas de Angela tamborilavam no balcão.
— Sim? Eu não sei. Quer dizer, eu gosto dela também.
Demais. Meu Deus, eu acho que estou apaixonada por ela. E
agora, eu faço o quê? Digo? Escondo? E se ela não sentir na
mesma intensidade que eu?
— Ei, calma — Amélia enxugou as mãos molhadas e
segurou as da amiga — Respira fundo, Angela. Isso, de novo,
meu bem.
Angela relaxou os ombros caindo em desânimo.
— Eu sou um desastre, não sou?
— Não é. Bom, eu preciso ser sincera, não sei muito o
que você deveria fazer porque todas as opções são complicadas.
Então, esperar um pouco? E Sancia dizer que gosta demais de
você é um claro sinal de que tem um sentimento grande aí.
— Lembra quando eu quase casei? — Amélia assentiu —
Eu disse que só queria ser amada de forma intensa. E você me
aconselhou…
— Um amor intenso é bom, mas um amor tranquilo é
melhor ainda.
Angela piscou, o lábio inferior trêmulo.
— Com Sancia, foi a primeira vez em muito tempo que eu
me senti confortável. Ela é tão tranquila, tão calma… Apesar de
usar vermelho e verde na mesma roupa.
Amélia riu baixinho e contornou o balcão, abraçando a
amiga com força. A cabeça de Angela descansou no ombro dela
e a brasileira fez carinho em sua testa.
— Sempre achei que o amor fosse caótico. E ela me
mostrou que pode ser calmo, como nos livros que eu leio. E eu
nem sei se ela só gosta de mim ou me ama mesmo.
— Ah, Angela. O amor vem em tempos diferentes.
Nenhuma pessoa é igual a outra. Eu sei que você demorou
muito para me amar, não faça essa cara de fingimento. Talvez
Sancia demore ou acabe não sentindo, mas não deixe de viver
coisas incríveis com ela por isso, pensando em um fim
hipotético.
Angela fungou e Amélia beijou a testa dela.
— Amélia, quando foi que você ficou tão boa em dar
conselhos?
— Desde quando minha vida virou um pequeno
espetáculo midiático por conta de um piloto desgraçado.
Angela riu, secando as lágrimas.

— Amo você, Ames. E, dando meu pitaco de opinião aqui,


você deveria fazer o mesmo sobre Vincent. Ir devagar, ver no
que vai dar.
— Vamos falar de outra coisa, An? Também amo você.
Agora vem, vamos terminar de arrumar essa bagunça. A
próxima festa não vai ser aqui, fique já sabendo!
E Amélia não sabia se tinha sido a fala dela, ou os
músculos destruídos das duas no dia seguinte, mas Angela
decidiu que a véspera de Natal seria passada em outro lugar. Os
pais dela estavam em Mancia e os La Fratta convidaram as
meninas para a ceia.
Prontamente, Amélia aceitou, mais do que feliz em se
encher da comida maravilhosa de Pia. A chef do restaurante não
hesitou em preparar uma grande mesa, com comidas típicas
italianas e, para a surpresa de Amélia:
— Isso aqui é aqui é Salpicão? E farofa?
— Minha mãe sabia que você sentia falta do Brasil, então
ela fez — Disse Felippo, o irmão mais velho. Toni não estava, o
que significava que ele devia estar na mansão Torrisi com
Stefano.
— Pia, não precisava — Amélia a abraçou, tentando não
chorar — Obrigada, de verdade.
— Não precisa agradecer, menina. Eu faço com o maior
carinho para você.
Amélia comeu, feliz, rindo com as histórias de infância de
Angela. Ela gravou áudios emocionados e cheios de saudades
para Sofia e os amigos do Brasil, compartilhando fotos das
comemorações.
Então, chegou em um impasse. Desejar feliz natal ou
não, para Vincent? Amélia encarou a tela do celular por um
minuto inteiro, quando ele tocou e o nome do piloto apareceu
na tela.
— Oi, namorada de mentira.
— Oi, namorado de mentira — Amélia encostou-se contra
a janela, observando as ruas de Mancia decoradas com luzes
amareladas.
— Você está com Angela?
— Passamos o Natal com os La Fratta. E você? Na
mansão chique da sua família?
Ele riu.
— Sim, Palhares. Stefano me disse que você não queria
vir.
— Não recebi nenhum convite.
Amélia quase podia vê-lo franzindo a testa.
— E se eu convidasse você aceitaria?
— Cedo demais para conhecer a família do meu
namorado de mentira, Di Castelli — Amélia pausou, arrastando o
dedo sobre o vidro, criando padrões irregulares — Vincent, você
acha que eu posso estragar tudo?
Ali estava, uma verdade difícil demais de admitir, mas que
pesava no estômago dela.
— Não, você não precisa se preocupar com isso. Eu que
sou o especialista nisso por aqui, lembra?
— Não, você não é. — Amélia respondeu rápido demais.
— Apesar de eu ainda estar morrendo de raiva de você, só
queria que soubesse que estou nessa.
— Que bom saber, Palhares. Eu também.
Ela escutou a respiração dele do outro lado da linha. Eles
estavam juntos naquela empreitada estranha e isso reconfortava
o coração de Amélia.
Ela escutou as badaladas do sino da igreja, era meia
noite.
— Feliz Natal, Amélia.
Podia jurar que sentiu Vincent sorrindo.
— Feliz Natal, Vincent.

***
Vincent Di Castelli amava e odiava estar com a família.
Amava porque conseguia relaxar, ser ele mesmo e
descansar. Odiava porque os Torrisi se achavam no direito de se
intrometer na sua vida.
Ele dormia, ainda com a ressaca do Natal no corpo,
quando a porta foi aberta com força e o barulho de sapatos o
tirou de um sono tranquilo. Vincent não precisou de muito para
saber quem era, só uma pessoa utilizava Dior como se fosse
parte dela.
— Emma, pelo amor de Deus — Ele murmurou, fechando
os olhos.
— Bom dia para você também, Vince. Ou boa tarde, você
escolhe.
— Vá embora.
— Já são quase duas.
— E eu estou de férias e de ressaca. Tenho direito de
dormir até tarde hoje.
Tudo ficou em silêncio e Vincent estava quase voltando
para inconsciência de novo, quando ouviu um suspiro alto.
— Emma, o que você quer?
— Sabe, você podia me tratar melhor, seu babaca. Eu
poderia ser uma prima terrível e não te contar que todas as
nossas tias estão reunidas no brunch desde cedo. E estão
começando a falar da sua namorada.
— Eu não tenho nenhuma…
Vincent se ergueu em um pulo, como um gato assustado.
Emma sorria, as mãos nos bolsos do macacão jeans.
— Parece que você acordou?
— Quem está lá?

— Sua mãe, a minha mãe, a nonna e todas as irmãs dela.


Se eu fosse você, corria antes que elas mandassem buscar sua
namorada. Como é o nome dela mesmo?
— Amélia e nós não estamos namorando. Estamos nos
conhecendo.
— Chame do que quiser.
Vincent levou menos de dez minutos para tomar um
banho, escovar os dentes, vestir uma roupa limpa e descer
correndo os degraus da escadaria principal da mansão.
Stefano e ele preferiram vender uma história simples para
a família dele: os boatos do namoro eram falsos, mas Vincent e
Amélia estavam se conhecendo depois de tudo. Depois da fase
de teste, podiam usar o título de namorados.
Anna desconfiou totalmente, mas não disse nada diante
da alegria de Teodora, quando ele chegou para o Natal.
— Finalmente você vai arrumar uma pessoa decente! Eu
estava ficando cansada de todos aqueles casos com gente
duvidosa.
A família dele inteira já sabia da existência de Amélia e
que ela morava em Mancia, trabalhando para a Galeria Torrisi.
Mas Vincent os proibiu de ir atrás, alegando que era cedo
demais, e que eles iriam decidir quando fosse a hora.
Conhecendo os Torrisi, Vincent ficou de olho na
movimentação da família. Pensou em alertar Amélia sobre, mas
não viu necessidade, especialmente pela reação tranquila deles,
ao dizer que ela não viria para o Natal. Pelo visto, ele tinha
comemorado antes da hora.

A sala de jantar da família estava lotada quando chegou e


Vincent engoliu em seco. Quase todos os seus tios e tias
ocupavam a mesa quadrada e imensa, repleta de frutas, pães
frescos e tortas de todos os sabores. Algumas crianças corriam
no cômodo ao lado e ele viu Emma lhe dar um olhar solidário,
antes de sentar-se ao lado da mãe.
— Vince, querido — Teodora finalmente o notou.
Ele sorriu e ocupou o lugar ao lado do dela.
— Boa tarde, nonna.
— Estávamos falando da sua namorada, Amélia, não é?
— Amélia não é minha namorada, nonna. Estamos
saindo, mas ainda nada sério.
— É assim que os jovens chamam namoro, hoje em dia?
— Uma de suas tias avós disse e riu.
— E quando ela vem aqui? Queremos conhecê-la — Uma
prima mais velha disse.
E de repente, o cômodo era uma bagunça de vozes
comentando sobre o quão animados eles estavam para conhecer
Amélia, a garota tão incrível que tinha fisgado o coração do
piloto.
— Vocês não acham que já chega, não? — A voz de
Antonia se sobressaiu, alta e clara — Eu me lembro quando
conheci o Dimitri e vocês acharam ruim que ele demorou demais
para vir aqui. Mas eu queria ter certeza de que era sério e olhem
só para a gente, casados. Não podem ter um pouco mais de
paciência?
Exceto que não vai ter casamento, Antonia, mas você
salvou minha vida.
A gritaria foi substituída por uma conversa mais baixa,
concordando com a afirmação dita por Antonia. Vincent pensou
por um segundo antes de falar, sabendo que Amélia entraria em
surto se soubesse o que ele ia dizer.
— Eu vou falar com ela, mas não prometo nada, nem
mesmo no Ano Novo. Depois, quem sabe, eu trago ela aqui para
um jantar calmo e tranquilo. Tudo bem?
Aquilo foi o bastante para acalmar os ânimos dos Torrisi e
Vincent suspirou de alívio.
Mas haviam duas pessoas piores que suas tias animadas
com a possibilidade dele finalmente ter um relacionamento
sério. E, assim que ele comeu e saiu, o encurralaram na sala de
música.
— Ah, você não vai escapar, Vince — Antonia sorriu e
colocou a mão no ombro dele — Vai me dizer tudo sobre ela.
— Mas não foi você que acabou de falar de paciência,
Antonia?
— Conversa fiada para elas. Como assim você diz que eu
sou sua prima preferida e não me conta nada?
— Ei, achei que eu era sua prima preferida. — Emma
reclamou, chutando a canela de Vincent.
— As duas são as minhas preferidas e não tem muito o
que dizer. — Ele deu de ombros, se sentando no banco em
frente ao elegante piano que ocupava metade da sala. — Depois
da confusão toda, nos conhecemos melhor e estamos saindo.
— Quantas vezes já saíram? Para onde você a levou?
Antonia perguntou, com brilho nos olhos.
— Cinco vezes — Nenhuma. — Fomos para alguns
restaurantes privados e só isso. Não posso me arriscar muito,
sabia? Não sei se você lembra, mas sou o atual campeão
mundial.
— Jesus — Antonia revirou os olhos — Ela é linda.
Confesso que fui atrás do perfil, mas não tem muita coisa.
— Ela é low profile.
Vincent fez uma nota mental para perguntar a Stefano se
era possível bloquear o perfil de Amélia das redes sociais da sua
família.

— Ela é muita areia para o seu caminhão — Emma disse,


ficando na ponta dos pés por alguns segundos. — Nem acredito
que, logo você, chamou atenção daquela garota.
— Era para ser um elogio, Em?
— Só estou dizendo. — Ela sorriu, dando de ombros. —
Brincadeira, Vince. Ela é sortuda por ter você.
— Espero que seja feliz, Vince, você merece. — Antonia o
abraçou. As duas pareciam genuinamente animadas por ele e o
piloto se sentiu culpado.
— Obrigado. Não sei se isso vai dar certo mesmo, mas
vou aproveitar enquanto durar.
A única da família que não engoliu aquela história, ficou
quieta sobre o assunto e Vincent estava tentando evitar a
conversa. Passou os dias jogando videogame com Stefano,
brincando nos jardins com as crianças, ajudando Emma com a
inscrição da faculdade e tomando vinho com Antonia, Dimitri e
seus outros primos.
Mas ele sabia que a hora ia chegar.
Era trinta e um de Dezembro e a mansão estava um caos
com a festa de Ano Novo. Vincent estava deitado, lendo um livro
que tinha pegado na biblioteca, quando sua mãe entrou no
quarto, agasalhada.
— Vince, vamos caminhar.
Não era um pedido e ele obedeceu. Enfiou-se em um
casaco grosso, um gorro de lã e a acompanhou.
Galhos secos estalavam sob seus pés, as árvores nuas se
agitando com as rajadas de vento. A paisagem cinza deveria ser
estranha e feia, mas o jardim foi desenhado para se adaptar a
qualquer estação do ano, e conseguia ficar incrível até mesmo
no inverno.
Ele arrancou um pequeno pedaço de madeira,
quebrando-o em pequenos pedaços, seguindo a mãe em
silêncio. Vincent não tinha problemas em lidar com a família,
mas com Anna era diferente. Ela o conhecia tão bem, em tantos
detalhes, que mentir ou esconder algo dela era impossível.
Porra. Ele devia ter pedido para incluir a mãe no contrato.
Ela parou na frente de uma construção de vidro fosca,
com detalhes dourados, e abriu a porta com um movimento
leve. A estufa estava aquecida por dentro e o ar bateu nas
bochechas de Vincent, deixando-as vermelhas.

— Quando eu conheci Amélia, ela tinha esse olhar


assustado no rosto, mas tanta determinação, que me lembrou
de você na mesma hora. — Anna disse, inspecionando uma flor
bem cuidada em cima da bancada alta. — Desde que você
começou a pilotar, eu via sua dedicação em cada detalhe,
estudar tudo o possível para ser o melhor. Às vezes, morrendo
de medo, quase sempre com muita raiva, mas determinado.
— Então foi por isso que você contratou ela?
— Não. Eu nem sabia que ela ia para a Galeria Torrisi,
não escolho os candidatos de mestrado. Mas eu gostei dela por
aquilo.
Vincent pegou uma pequena pá e entregou à mãe, que
começou a mexer na terra adubada.
— Onde quer chegar, dona Anna?
— Eu só queria entender o que mudou. Realmente
conheceu a garota depois daquilo tudo Vincent? Na foto da
imprensa, parecia que vocês dois já tinham se visto antes.
— Nos conhecemos em Londres. Mas só nos vimos uma
vez, por uma noite. Amélia foi embora no dia seguinte e eu
fiquei surpreso de ter encontrado com ela tanto tempo depois.
Porra, eu não esperava que fosse justamente na minha cidade
natal.
— Então você procurou por ela depois de Londres?
— Sim, mas ela parecia um maldito fantasma. Eu até
achei que tudo foi um grande delírio da minha cabeça.
Anna inspecionou o próximo vaso e Vincent a
acompanhou.
— Você sabe que eu não acredito no que contou aos
outros, não sabe?
— Sei.
— E se você não está me contando, significa que é uma
coisa que não vou gostar.
— Hum…
Vincent desviou os olhos.
— Pelo visto, estou certa — Anna suspirou. — Só tenha
cuidado, Vincent. Não quero que você se machuque. Ou
machuque Amélia.
— Vamos ficar bem, mãe. Eu já sou adulto, sabia?
— E eu sou sua mãe. — Ela o encarou, os olhos verdes se
estreitando. — E ainda mando em você. Se essa história não
terminar bem…
— Eu prometo que vai, mãe.
Vincent sorriu e beijou a testa dela.
Sendo honesto consigo mesmo, ele também não sabia se
tudo ficaria bem de verdade. As coisas com Amélia eram
complicadas, eles mal conseguiam ficar juntos sem discutirem. A
mais recente prova de civilidade foi no Natal e Vincent tinha
certeza que, se ele não tivesse ligado, ela certamente não o
faria. Nem sequer para o aniversário de Angela foi convidado!
A brasileira não o queria por perto e dois tipos de
sentimentos cruzavam o peito do piloto quando ele percebia
isso, alívio e incômodo. Alívio por não ter que lidar com Amélia
o tempo inteiro e incômodo em perceber que ela ainda tinha
um efeito estranho sobre ele.
— Você está lindo. — Anna disse a Vincent, quando ele
desceu as escadas para o salão de festas. Usava um terno
preto, Prada, de um tecido mais grosso para afastar o frio, mas
não menos elegante.
— E você, maravilhosa como sempre.
Anna vestia um casaco branco, longo, por cima de um
terninho da mesma cor, com bordados vermelhos e dourados.
— Mas porque preto, meu filho? Não podia usar branco,
só por hoje?
— Eu não lembrava de você ser supersticiosa.
Vincent deu o braço a ela e eles caminharam para a
direita, em direção ao imenso salão de festa dos Torrisi.
Geralmente, ele era destinado a receber as visitas de
investidores, políticos e embaixadores, que tinham interesse
em trabalhar com a família. Teodora fazia questão de decorar o
lugar com sua coleção de arte mais estimada, tornando tudo
ainda mais intimidador.
Quando, contudo, a família estava em casa, era outra
história.
Uma árvore gigante se erguia no canto, com enfeites
vermelhos e amarelos, guirlandas circulavam as paredes, junto
com candelabros de velas. As grandes janelas que revestiam as
paredes do chão até o teto, exibiam o jardim preparado para a
queima de fogos silenciosos à meia-noite, em comemoração.
Não havia nenhum clima de intimidação, apenas o
aconchego da casa de uma avó que amava demais os netos.
O piloto pegou uma taça de champanhe da mesa,
cumprimentando os funcionários com um sorriso. Eles
trabalhavam só até às seis e depois, os que quisessem, eram
convidados de honra para a festa.
— Preto, Vincent? — Teodora, em um vestido branco de
mangas longas, franziu a testa.
— Reclamar lhe dá rugas, nonna. E…
— Se você disse que já tenho muitas, garoto, vou te
deserdar.
Vincent riu.
Encontrou os primos e ficaram jogando conversa fora,
entre goles de champanhe. Quando se sentia um pouco mais
leve, puxou sua mãe para uma dança, ao som da cantora
contratada pela avó. A música, um jazz antigo, era do gosto de
Vincent, e ele se animou, dançando com Emma, Antonia e até a
avó, em seguida.
Era bom sentir um sorriso sincero no seu rosto, ao invés
da máscara que ostentava para as câmeras, os outros pilotos e
até gente que odiava. Ali, dentro da mansão Torrisi, ele via um
mundo mais quente e colorido.
Perto da meia-noite, a família se reuniu em frente às
grandes janelas para esperar e Vincent conferiu o celular. Ao
abrir o Instagram, prendeu o fôlego. Amélia tinha postado uma
foto, os cabelos ondulados ao redor do rosto, o batom vermelho
nos lábios, o brilho da lua alta refletindo na pele branca. Vincent
viu o sorriso dela, discreto, o vestido preto marcando os seios e
a cintura.
Ele agarrou o aparelho com mais força, porque, Senhor,
como aquela mulher conseguia ser tão teimosa, irritante e tão
linda ao mesmo tempo?
E tomou um susto quando o celular tocou e o número
dela fez o aparelho vibrar.
— Oi, Di Castelli. — A voz dela era animada.
— Oi, Palhares. — Ele sentiu a atenção da família em
cima de si e desviou os olhos para o jardim lá fora.
— Só passei para desejar feliz ano novo. Você me ligou
no natal, achei justo ligar no ano novo.
— Obrigação de namorada de mentirinha? Desse jeito até
parece que você não me odeia mais, Palhares.
Ele podia vê-la revirando os olhos.
— Você sabe estragar um momento, sabia Vincent? Eu te
liguei com boas intenções, mas já me arrependi.
— E você tá levando tudo para o lado pessoal, Amélia.
Por Deus, relaxe!
— Díficil fazer isso com você.
— Às vezes, você consegue ser insuportável, sabia? —
Vincent respirou fundo. — Me ligou só para desejar feliz ano
novo adiantado? Ainda não é meia noite.
— Ah, espere dez segundos.
Com o telefone na orelha Vincent ouviu a contagem
regressiva se iniciar, a voz de Amélia em seu ouvido. Um arrepio
estranho percorreu sua coluna.
— Cinco, quatro, três, dois, um!
Enquanto gritos de euforia e animação explodiam ao
redor de Vincent, tudo o que ele podia ouvir era a risada de
Amélia. Ele podia escutar aquele som por muito tempo sem se
cansar. Foi inevitável não sorrir.
— Feliz Ano Novo, Vincent.
— Feliz Ano Novo, Amélia.
08.
Janeiro
Amélia odiava tomar decisões difíceis.
Geralmente entregava para o universo e rezava pela
resposta, até que ele esfregava que ela era a responsável pela
sua vida. Isso acontecia desde criança, quando escolher entre
um sabor de sorvete parecia o fim do mundo. Mas com o
tempo, a brasileira precisou perder o medo de decidir,
especialmente, quando sua mãe passou a depender dela.
A vida adulta era cheia de momentos onde você,
eventualmente, precisava escolher entre dois caminhos
complicados. Amélia tinha a crença de que, caso escolhesse
errado, tudo inteira seria afetado, em um grande efeito
borboleta.
Quando optou se passar por namorada de mentirinha do
piloto mais famoso do mundo, sabia que teriam consequências
para si e até que estava lidando muito bem com elas. Havia se
esquecido, porém, de uma bem grande: aguentar Vincent Di
Castelli.
Ela achou que, depois do Natal e Ano Novo amigáveis,
poderiam conviver pacificamente. E até mesmo não reclamou
quando Stefano disse:
— Vocês precisam sair juntos em um local público. Vai
ser o primeiro teste como casal, então tentem não se matar.
Amélia estava altamente comprometida a ficar calma,
até que, vinte segundos depois de encontrar com Vincent, ele
soltou:
— Eu meio que disse a minha família que você ia
conhecê-los mais cedo do que a gente combinou.
— O quê?!
— Eu estava sob pressão, okay? E eles já até acharam o
seu perfil, mas eu pedi para ninguém entrar em contato
contigo.
— Uau, grande coisa — Ela revirou os olhos, cruzando
os braços sobre o sobretudo xadrez, vermelho.
O passeio programado era ao longo do rio Palesche, que
dividia Mancia pela metade e corria através do grande canal.
Pontes percorriam o trajeto inteiro, ligando os dois lados da
cidade.
Amélia pensou o quanto de força seria necessário para
atirar Vincent na água gelada. O piloto pareceu prever os
pensamentos dela, erguendo as mãos em rendição.
— Se você tivesse conhecido pelo menos a minha mãe
naquele dia, as coisas estariam menos complicadas. Precisei
criar uma história inteira sobre a gente ainda estar se
conhecendo para eles acreditarem.
— Não tente jogar a culpa para cima de mim. Você
podia ter dito, sei lá, que eu estava estudando ou trabalhando.
Inventado qualquer coisa.
— Palhares, eles viriam até você. É melhor ir antes
sabendo que vai encontrar com minha família, do que receber
a visita no meio do seu expediente.
A brasileira suspirou, frustrada e voltou a caminhar ao
lado do piloto. Era meio da tarde de um domingo frio e
cinzento, a cidade estava quase vazia e os poucos que
passavam não pareciam muito interessados nos dois. Ela sabia
que haviam fotógrafos espalhados pelo local, contratados por
Stefano, mas não conseguia localizá-los.
— É tão ruim assim a ideia de conhecer os Torrisi?
Ele perguntou, com as mãos no bolso do casaco preto, o
tom apreensivo.
— Não, Vincent, não é pela sua família em específico. Eu
não tenho boas memórias de conhecer a família das pessoas
com quem eu me relaciono, isso nunca acabou bem.
— Eu me lembro de você me dizer algo assim, em
Londres.
— A minha primeira namorada tinha pais religiosos,
minha mãe frequentava a mesma igreja que eles. Quando
descobriram, eles deram uma surra nela. Hoje ela tá bem, mas
eu lembro de ver aquilo tudo e ficar com tanta raiva… Enfim,
não é algo que quero remoer.
Amélia desviou os olhos para os ladrilhos claros do chão,
um gosto amargo na boca.
— Amélia, eu sinto muito por isso, mas você sabe que
os Torrisi não são assim. O máximo que vai acontecer é te
perguntarem se foi paga para namorar comigo, o que
tecnicamente…
— Não assinamos o contrato ainda, lembra? Não sou
sua namorada.
Ele estalou a língua.
— A internet diz o contrário.
— E o que temos que fazer, mesmo? Ficar andando e
conversando?
Vincent parou de caminhar e pegou a mão dela. Um
estranho formigamento começou nos dedos de Amélia e ela
prendeu a respiração, quando ele entrelaçou os dedos nos da
brasileira.
A sensação foi como um choque. A lembrança de
quando fizeram aquilo pela primeira vez, três anos atrás,
queimou no fundo da mente.
— Isso deve ajudar. Só para encenação, sabe?
Ele abriu um sorriso presunçoso e Amélia estreitou os
olhos, odiando o calor que irradiava da pele dele para a sua, a
maneira gentil como os dedos de Vincent estavam sobre os
seus. Era tão parecido com aquela noite em Londres, mas ao
mesmo tempo tão estranho — como olhar para uma janela e
se deparar com uma cena bonita do passado.
— Você é sempre conquistador, desse jeito?
— Estou conquistando você, Palhares?
Amélia sentiu suas bochechas queimarem, mas o
encarou.
— Definitivamente não.
Ele riu baixinho, puxando-a mais para perto.
— Que pena, essa é uma das minhas estratégias mais
eficientes.
— Isso me lembra que não tem nenhum termo no
acordo sobre outras pessoas. E, não leve a mal, por favor, mas
tem sempre alguém novo com você.
— Nossa, isso me ofendeu um pouco. Eu nunca
namorei, Amélia, mas te garanto que sua reputação está
segura comigo — Vincent pausou — Eu não sou como ele.
— Eu sei — Ela respondeu, olhando nos olhos dele para
que soubesse — Não estou te comparando a ele. É só… Você
gosta de sair sempre com pessoas novas e vou me sentir
horrível caso surja um interesse em alguém e você estiver
preso comigo. Não sou do time relacionamento aberto, foi mal.
— Não estou interessado em outra pessoa. Se isso
acontecer, minha namorada de mentira vai ser a primeira a
saber — Vincent sorriu — E eu também não sou do time do
relacionamento aberto, Palhares. O mesmo vale para você, se
estiver gostando de alguém.
— Minha vida amorosa é um limbo vazio e sem graça,
infelizmente.
Amélia suspirou. Distraída, ela nem notou o pedaço
solto do asfalto e tropeçou para frente. Tinha certeza de que ia
cair, quando sentiu o braço de Vincent em sua cintura,
puxando o corpo dela para ele.
Por alguns segundos, tudo o que pode enxergar foram
os olhos dele, que pareciam ouro líquido, brilhando nas irises.
A respiração do piloto soprou no seu rosto, uma nuvem
quente. De repente, todo o corpo dela estava ciente da
presença sólida que era Vincent.
Ela engoliu em seco.
— Jesus, Palhares, continua sendo distraída. Você tá
bem?
Vincent murmurou, soltando-a, desviando os olhos para
o chão.
— Eu tô.
Foi tudo o que ela respondeu. Mas que merda, será que
eu não posso agir feito uma pessoa normal e não uma idiota
completa?
Amélia mordeu o lábio inferior, caminhando em silêncio.
Vincent tirava sua paciência, mas ele provocava algo pior
ainda: atração. Ela dizia a si mesma que era algo normal,
considerando que ele era bonito e eles já se beijaram no
passado. Puramente físico, uma reação do seu corpo depois de
algum tempo sem namorar ninguém.
Amélia repetiu isso na cabeça, tentando se convencer.
— Está com fome? — Vincent perguntou parando em
frente a uma cafeteria.
— Na verdade, sim. — Ela ergueu uma sobrancelha. —
Uma cafeteria? Sério?
— Interessada em discutir sobre medos e inseguranças
de novo? Sempre serei todo ouvidos para você.
— Para eu te ouvir falar como você não tem nenhum
desses? Em Londres, você me disse que a adrenalina sempre
vencia o medo.
Ele pressionou os lábios em uma linha fina.
— Eu não contaria que tenho mais medos do que posso
contar enquanto tentava te impressionar — Vincent se afastou,
não deixando espaço para Amélia falar. — Por mais que eu
queira, não vamos falar disso hoje, Palhares. Agora vem, eu
preciso de um chá.
Amélia sentiu um peso estranho no fundo do estômago
e o seguiu para o pequeno estabelecimento. Lá dentro, o calor
do aquecedor ajudou seus músculos tensos a relaxar, exceto a
mente. Não gostou nem um pouco do tom das palavras de
Vincent, nem do olhar cansado estampado no rosto dele.
Sentaram em uma mesa nos fundos da cafeteria,
tirando os casacos. Amélia ouviu um arquejo de surpresa e viu
a movimentação dos dois funcionários, incrédulos.
— Acho que fomos reconhecidos.
— Os ossos do ofício. — Vincent disse, divertido —
Aposta quanto que essas fotos vão estar na internet em menos
de meia hora?
— Você por acaso usa o twitter? Eu aposto que em
menos de cinco minutos.
Uma garçonete se aproximou, os olhos arregalados.
— B-boa tarde, como eu posso ajudar vocês?
— Um café com leite grande, com bolinhos recheados
de caramelo. E um chá de… — Amélia olhou o cardápio
rapidamente — De laranja. Se tiver torta castagnaccio, traga
dois pedaços, por favor.
— Algo mais?
A funcionária olhou para Vincent, mas o piloto estava
encarando Amélia.
— Não, obrigado. — Ele esperou a mulher se afastar. —
Você realmente se lembra do meu chá preferido?
— Eu não menti sobre aquela noite, Vince, ela foi
especial. Me lembro de tudo.
— E por que você foi embora? Eu não acreditei quando
disse aquilo na galeria.
— Achei que não iríamos falar de assuntos difíceis hoje,
Di Castelli — Ela chutou o pé dele, de leve — Como estão as
coisas na Redemptio? A pré-temporada já vai começar, não é?
Vincent permaneceu em silêncio por um momento,
antes de sacudir a cabeça, como se desistisse de falar alguma
coisa. Ele relaxou na cadeira, as mãos em cima da mesa de
madeira escura.
— Só em Fevereiro. Tenho uma reunião na semana que
vem, com os mecânicos e a equipe toda. Vamos só ver os
projetos do carro, design, patrocinadores e essas coisas. Aliás,
vou te passar a data da primeira corrida do ano, libere sua
agenda no dia.
— Tudo bem. Eu vi as fotos do jantar que você foi, com
os outros pilotos. Vocês são todos amigos daquele jeito?
— A maioria só se atura. Eu não tenho muitos amigos
no grid. Satake, o piloto principal da Redemptio, diz que é
porque eu sou insuportável. Eu acho que é inveja.
— Concordo com Satake.
Vincent revirou os olhos.
— Claro que concorda.
— Quem é aquele Bellini? O que estava fazendo o
discurso. Eu vi alguns comentários sobre o cara na internet.
— Você realmente tá lendo as notícias da Fórmula 1?
— Sim, não é óbvio? Sou sua namorada, não tenho que
saber dessas coisas que são importantes para você?
Amélia não entendeu a surpresa nos olhos dele.
— Ah. Acho que sim. Enfim, Ansel Bellini é um dos
maiores pilotos da história. Ele era meu herói quando criança,
eu queria ser igual a ele, vencer corridas, conquistar troféus…
Ansel saiu do nada, literalmente, era só uma criança cheia de
sonhos e se tornou uma lenda. Não que eu esteja dizendo que
sou igual a ele, sei dos meus privilégios. Mas a ideia de
conquistar algo nasceu de assistir corridas dele.
— Só que Ansel é um babaca. Como as pessoas dão voz
para um cara homofóbico e escroto daquele jeito?
Amélia tinha visto as entrevistas e declarações de Ansel.
O papo de defensor das raízes tradicionais a enojou, assim
como a quantidade de comentários homofóbicos e racistas
contra pilotos mais novos. Vincent parecia ser o alvo constante
do homem, recebendo críticas sobre sua performance e
sexualidade.
— Velhos brancos e ricos, Palhares, a Fórmula 1 está
cheia deles. Não só eu, como Satake e Olivier sofreram
bastante nos anos de estreia. Foi a maior decepção que já tive,
crescer e perceber que meu herói era na verdade um vilão.
— E não tem nada que você possa fazer?
Ele suspirou, parecendo exausto.
— Não diretamente. Tentamos apoiar o máximo de
causas que conseguimos e participamos de eventos como a
corrida beneficente de Ímola, que ajuda diversas instituições
de caridade. Mas isso ainda parece tão pouco…
Amélia se inclinou na mesa, colocando as mãos
próximas das dele.
— Vincent, não é, eu te garanto. Não dá para salvar o
mundo inteiro de uma vez e pessoas como Ansel sempre vão
existir, mas olha só para você, dando o seu melhor para ajudar.
Você se importa. E isso é muita coisa.
O piloto abriu um sorriso largo e se inclinou, ficando a
centímetros do rosto dela. Vincent era tão bonito, que chegava
a ser injusto. E a forma como a olhava, como se Amélia fosse
preciosa e rara, era… Era algo. Algo forte.
— Obrigada, Amélia. Você é adorável quando quer, sabia
disso?
Ela revirou os olhos.
— Meu Deus, como eu odeio você.
O piloto riu.
Depois de comerem, Vincent levou Amélia de volta para
o apartamento dela. Já era noite em Mancia, o céu sem
estrelas coberto de nuvens pesadas, iluminado por uma lua
prateada e crescente.
— Me desculpe pela coisa com a minha família, Palhares
— Vincent disse, quando dobraram a esquina para o prédio
dela — Vou dizer a eles que você precisa de mais tempo, mas
ainda acho que deveríamos arrancar esse band-aid de uma
vez. Eu garanto um jantar tranquilo, sem gente demais
enchendo seu saco.
— Eu só posso prometer pensar. Mas se a gente for
fazer isso mesmo, me dê uns dias para me preparar.
— Por mim, tudo bem.
Estavam quase na porta do prédio dela, quando Vincent
sacou o celular e parou. Ele caminhou em direção ao poste
com luz amarelada e puxou Amélia.
— O que foi?
— Fique parada, Palhares — Ele deu um passo para
trás, ergueu o celular na direção dela e tirou uma foto. —
Pronto. Para alimentar nossa base de fãs.
Amélia tombou a cabeça para o lado.
— Sério?
— Sério. — Ele se aproximou de novo e a encarou. —
Obrigada por ter topado.
— O que eu não faço por um doutorado pago… Até
namorar um piloto insuportável.
— Adoro como você se declara para mim.
Amélia riu e se afastou.
— Boa noite, Vincent.
— Boa noite, Amélia.
Mas ele não se virou e foi embora. Ficou até que ela
entrasse e Amélia subiu as escadas com rapidez, o coração
batendo rápido. Quando chegou no apartamento, abriu a
janela da sala, se debruçando no parapeito.
Lá estava Vincent, sorrindo para ela. Ele acenou e
finalmente foi embora, caminhando pelas ruas de Mancia.
Amélia suspirou, assistindo o piloto desaparecer na
escuridão da noite. Ela lembrou do olhar dele, aquele carinho
de tirar o fôlego, o dourado parecendo brilhar somente para a
brasileira. Só uma única conclusão cruzou sua mente:
Eu estou fodida.

***
Quando Amélia disse que queria estar preparada para
conhecer a família dele, Vincent não achou que ela estivesse
falando tão sério, mas estava.
Desde o último encontro, Amélia mandava mensagens
para perguntar sobre os parentes dele. E nem sequer eram
perguntas como “onde ele trabalha?”, ela questionava sobre
gostos pessoais, lugares onde morou, coisas que costumavam
fazer e o que Vincent achava sobre cada um.
Ele nunca tinha pensado tanto na família como na
última semana.
Quando as mensagens dela começaram a se tornar
textos longos, Vincent perdeu a paciência e fez uma chamada
de vídeo.
— Sua mãe gosta de animais?
— Cavalos.
— Você tem cavalos? Espera, é claro que você tem
cavalos, esqueça que eu perguntei isso.
— Por que é claro isso?
— Família rica para caramba que mora no interior, em
uma propriedade gigantesca. Os cavalos são o clichê mais
típico.
Vincent riu, balançando a cabeça.
— Você anda lendo muito livro de romance, Palhares.
Ela estreitou os olhos por trás dos óculos, o aro dourado
refletindo a lâmpada. Amélia vestia um casaco vermelho, os
cabelos ondulados presos em um coque bagunçado, rosto
limpo e sem a maquiagem leve que costumava usar no
trabalho.
Linda para caralho.
Vincent relaxou contra a cabeceira da cama de hotel,
cruzando as pernas.
— Pior que não. Minha tese de mestrado não deixa que
eu leia nada além de teoria sobre pintura italiana no século
XIX. É bem chato, se você quer saber.
— Então por que escolheu esse tema?
— É chato, mas eu gosto. E não me olhe com essa cara,
eu sei que você vai me chamar de…
— Nerd. — Vincent a interrompeu. — Você é uma nerd,
Amélia, nem adianta negar.
— Mas eu não estou negando.
Ela revirou os olhos.
— O que você tá fazendo com toda a informação sobre
minha família? Planejando um plano de vilã de livros de
fantasia?
— Primeiro, que se eu fosse uma vilã de livros de
fantasia, você nem perceberia quando eu atacasse, meu plano
seria ótimo. Segundo, eu tô montando um perfil.
Ela ergueu um caderno com diversos post-its, anotações
coloridas de caneta e marca-texto. Vincent piscou e não teve
outra reação possível a não ser rir.
— Caralho, Amélia, quando eu achei que você não podia
me surpreender mais… É muito esforço para uma namorada de
mentira, sabia? Acho que nem uma de verdade faria isso tudo.
— Eu quero ser a melhor namorada de mentira, Di
Castelli. — Vincent lembrou do comentário de Anna sobre a
determinação de Amélia. — E quero que sua família goste de
mim, mesmo que seja só um contrato.
— Eles vão gostar de você, não precisa de tudo isso.
Ela mordeu o lábio inferior e Vincent lutou contra um
sorriso. A ideia de Amélia estar nervosa para conhecer os
Torrisi era um pouco encantadora para ele.
— Por que você não usa o sobrenome Torrisi, também?
— Ela perguntou, depois de alguns segundos em silêncio.
— Minha mãe continuou usando o nome de casada
mesmo depois que meu pai morreu e eu não vi motivos
nenhum para mudar. — Ele deu de ombros. — Não faz muita
diferença para mim. Continuo sendo um Torrisi no fim das
contas.
— Você ainda se sente daquele jeito? Sobre o seu pai.
Vincent sabia ao que ela estava se referindo, sobre a
noite em Londres. Ele pensou um pouco.
— Hum, eu diria que sim. Às vezes, eu penso demais
nisso, mas não tanto como naquela época. Depois de um
tempo eu só percebi que não sabia se ele estaria orgulhoso de
mim e a dúvida me matava. Bom, eu nunca vou ter como
saber.
— Ele está orgulhoso de você — Amélia respondeu,
rabiscando alguma coisa no seu caderno — Não tem nada que
os pais desejem mais do que ver os filhos fazendo sucesso e
conquistando coisas. Então, eu tenho certeza de que ele está.
Vincent soltou uma respiração pesada e alguma coisa se
aqueceu dentro dele. Amélia sempre dizia coisas assim, com
uma certeza tão inabalável, que ele acreditaria em qualquer
coisa que ela falasse.
Quando se despediram, com a brasileira sonolenta,
Vincent pensou sobre as palavras dela. Procurou no celular a
foto que tinha do pai, Matteo Di Castelli, um florista que
conquistou sua mãe pela gentileza sem tamanho.
Ele analisou a foto, o homem magro usando um avental
sujo de terra, abraçando uma versão jovem e sorridente de
Anna.
Quando criança, ele tentava achar traços parecidos com
o pai, mas tinha herdado a maior parte das suas feições dos
Torrisi. Ao ficar mais velho, porém, Anna comentava como
alguns gestos de Vincent eram iguais aos de Matteo. O revirar
de olhos, a cabeça inclinada enquanto analisava alguma coisa,
o sorriso de canto.
A lembrança do pai que nunca conheceu ficou em sua
mente até o dia seguinte e ele mal percebeu quando Arthur
chamou seu nome, no meio da reunião com a Redemptio.
— Vincent, você tá ouvindo?
— Desculpe, eu tava pensando em outra coisa — Ele
pigarreou — Pode dizer.
— Precisamos que faça alguns testes no carro desse
ano, para ver se está confortável com o novo motor. Fizemos
muitas mudanças e não queremos bater o martelo sem você e
Satake testarem.
Vincent trocou um olhar com Satake e assentiu. Ele não
era um especialista na engenharia automotiva de um carro de
Fórmula 1, mas a Redemptio só determinava mudanças
quando os pilotos aprovavam na prática.
Arthur falou sobre prestar atenção nos freios, que
sofreram alterações drásticas. Os engenheiros chefes da
Redemptio apresentaram moldes em 3D das novas peças e
Vincent estudou, atento. Ele lembrou de Emma e pensou em
convidá-la para um passeio dentro da equipe, quem sabe uma
conversa com as mentes por trás dos carros que dirigia.
— Bom, encerramos por aqui — Arthur se levantou —
Satake e Vincent, vocês ficam.
Os dois pilotos se aproximaram do brasileiro. De pé, o
diretor da Redemptio organizava os papéis da mesa de vidro
redonda.
Vincent esticou as pernas, tirou o boné da equipe e
penteou os cabelos castanhos com os dedos. Ele espiou para
as janelas do prédio, vendo o céu azul e claro do lado de fora.
Era sempre chocante que no Brasil estivesse fazendo calor,
quando ele vinha diretamente do inverno italiano.
— Fizemos o terceiro shakedown dos carros desse ano.
Mandei as filmagens para vocês dois por e-mail. Sobre a
Corrida de Erco Santinelli, está tudo pronto. Vamos voar para
Ímola uma semana antes, não se atrasem.
— Minha casa está aberta para vocês. — Vincent
comentou. — Minha mãe vai adorar receber a equipe.
— Ele me convidou. Vou levar Henrique e as crianças
para conhecerem esse ano.
Arthur sorriu e tocou a aliança prateada na mão direita.
Ele fazia isso inconscientemente, sempre que falava do marido.
— Eu faço o sacrifício de aguentar Vincent antes da
temporada se eu puder comer aqueles doces maravilhosos. —
Satake disse em um sorriso divertido.
— Confesse que você me ama, Satake.
— Prefiro que você continue se iludindo.
Arthur riu baixinho.
— Temos algumas fotos para tirar, com o uniforme da
equipe e os patrocinadores oficiais, entrevistas e material para
produzir. Passei a agenda oficial para as assistentes de vocês,
confiram, por favor. Ah, o jantar hoje é na minha casa.
Satake ficou tenso na mesma hora e colocou as mãos
no bolso da calça jeans.
— E quem vai cozinhar, só por curiosidade?
Arthur estreitou os olhos castanhos.
— Vai ser o Henrique. Que jeito mais sutil de dizer que
eu cozinho mal.
— Ei, não sou eu que estou dizendo — O japonês deu
de ombros.
— Não vou dizer nada porque a comida do meu marido
é mesmo muito boa.
Eles riram.
Enquanto Arthur conversava com Satake sobre a agenda
pessoal do principal piloto, Vincent se despediu e aproveitou
para visitar as instalações da Redemptio. Era um dos seus
lugares preferidos no mundo e ele adorava estar ali, onde a
mágica de desenvolver um carro potente de Fórmula 1
acontecia.
A equipe mais nova na competição era gerida com muito
esforço por Arthur, mas exalava modernidade e excelência.
Fosse nos resultados apresentados nas pistas ou no incentivo
ao esporte, ninguém negava a solidez e talento da Redemptio.
O piloto italiano cumprimentou os funcionários com um
sorriso e tirou algumas fotos, alegre. Era bom ver como
aquelas pessoas se esforçavam em suas funções, da limpeza
até os engenheiros. Vincent fez questão de ser o mais acessível
possível, nem que fosse em uma conversa rápida.
Ele enviava uma mensagem para Satake, quando uma
movimentação estranha chamou sua atenção.
Vincent estava em frente às portas que davam para a
sala de desenvolvimento dos carros, as mais bem guardadas
da Redemptio. Ali ficava o super motor novo, além dos projetos
da equipe. Poucas pessoas tinham autorização para entrar,
sabia bem.
Quando o piloto percebeu, congelou.
Ansel Bellini, usando uma camisa polo azul escura,
conversava com um segurança mais alto que ele. O ex-piloto
gesticulou com as mãos, irritado, apontando o dedo para o
funcionário. As pessoas que passavam pararam para ver o que
acontecia, tentando entender o que era toda aquela confusão.
Vincent travou o maxilar e resolveu se meter.
— Olá, Bellini, tudo bem por aqui?
— Ora se não é o jovem Vincent Di Castelli. — Ansel
sorriu, aqueles odiosos olhos azuis se voltando para Vincent. —
Como tem estado?
— Muito bem, obrigado por perguntar. Posso saber o
que está acontecendo?
— Nada que seja do seu interesse, rapaz.
O desprezo na voz do mais velho era evidente e Vincent
precisou reunir seu autocontrole para não mandar aquele
homem se ferrar.
— Tudo o que acontece dentro da Redemptio é do meu
interesse, Ansel. Essa é minha equipe.
— Que seja. Eu só estou dando um passeio pelas
instalações daqui, assim como faço todos os anos nas outras
equipes. E esse segurança não me deixa passar para ver a sala
dos engenheiros.
Vincent assentiu para o segurança, compreensivo. É,
cara, eu também detesto esse homem.
— Por que não conversamos em outro lugar?
Ansel acompanhou Vincent para uma área mais vazia do
andar, um pequeno pavilhão que dava acesso à área de
descanso dos funcionários. As paredes, de vidro escurecido,
garantiam um pouco de privacidade.
— O que está fazendo aqui, Ansel? Seu papel de grande
campeão da Fórmula 1 não é verificar o desempenho dos
carros e projetos, pelo que eu saiba.
— Mas o que você sabe sobre vencer, garoto? Só tem
dois títulos na conta, é o mais novo no jogo e age como um
merdinha mimado na maior parte do tempo.
— Tem certeza de que está falando de mim? Essa
descrição parece ser sobre você, na verdade é bem pior do que
isso.
Ansel deu um passo para frente. O maxilar marcado do
ex-piloto travou, os olhos irritados, a veia na testa saltando.
— Gosta de me provocar, não é, Di Castelli? Se acha
superior porque está nessa equipe de idiotas, com supostos
bons ideais, que deixam qualquer pessoa participar desse
esporte. Olhe só para você, Vincent. Pode ter ganhado dois
títulos, mas não vai muito longe.
Vincent semicerrou os olhos.
— E o que você tem a ver com isso, Ansel? É só um ex-
piloto de merda que acha que tem algum poder supremo e
gosta de intimidar os outros. Você é uma vergonha para esse
esporte, não eu.
Ansel riu, afastando-se. Ele passou a mão pelos cabelos
grisalhos e sua pose voltou a ser controlada, o sorriso nojento
nos lábios finos.
— Eu moldei esse esporte como é hoje, seu idiota.
Posso fazer e dizer o que eu quiser e meu nome ainda vai estar
em primeiro lugar, esse é o poder que tenho.
— Continue agindo como a porra de um rei, vai ser mais
divertido acabar com você.
— Você é só um viadinho de merda, assim como todos
os seus amigos. Sabe o que você pode fazer? Nada. E isso
nunca vai mudar.
Ele saiu, ereto, como se não tivesse dito nada. Vincent
cerrou os punhos, fúria percorrendo seu corpo, mas relaxou os
dedos segundos depois.
Ansel estava certo. Quem era Vincent Di Castelli? Um
piloto iniciante com dois títulos, uma reputação questionável e
o apelido de promissor. E promessas podem ter o futuro
estilhaçado com facilidade.
Ele virou-se, a testa encostada no vidro morno. Vincent
se sentia como a porra de um anti-herói, em queda livre, na
mira de um arqueiro cruel. Seu coração doía tanto, que jurou
sentir a flecha atravessando o peito, a ponta afiada rasgando
carne, tecidos, pensamentos e o que visse pela frente.
Viu Ansel sair da Redemptio, com óculos de sol e
postura impecável. Respirou fundo e a voz suave de Amélia
surgiu no fundo de sua mente, aquele tom firme e resoluto,
proferindo verdades universais distraidamente.
“Você se importa. E isso é muita coisa.”
Arrumando a postura, cansado demais de torcer pela
própria sina de anti-herói, ele decidiu que acharia um jeito de
derrubar Ansel Bellini. E estava disposto a arriscar-se por isso.
09.
Três anos atrás
Outubro, 20:50, Londres.
Uma das primas preferidas de Vincent, Antonia, dizia
que ele tinha as características perfeitas da pansexualidade:
era viciado em videogame e sabia todas as fofocas das
celebridades.
Vincent, porém, não era só um viciado em videogames.
Era um verdadeiro aficionado pelos jogos antigos e por isso,
conhecia todos os Arcades famosos das cidades onde corria,
porque quando precisava se distrair, sabia onde ir.
Geralmente, era um passeio solitário. Levava um saco
de moedas e gastava algumas horas tentando bater recordes
consagrados, ganhando fichas de papel para trocar por
prêmios na recepção. Nunca ficava com os brinquedos, doando
todos para crianças que encontrava no lugar.
Era uma das coisas que mais gostava de fazer, então ele
não conseguia disfarçar um sorriso animado ao ver Amélia
Palhares apertar os botões freneticamente, concentrada. A
máquina de Street Fighter mexeu um pouco com os
movimentos, a luta entre Sakura e Ryu seguia feroz.
Vincent riu quando ela perdeu e soltou um suspiro de
frustração.
— Foi uma luta boa. — Ela disse para o seu oponente,
um garotinho de 10 anos.
— Mas você perdeu muito feio.
— Mesmo assim, obrigada por jogar comigo.
Ela sorriu e o menino ficou atordoado. Vincent não o
culpava, ele próprio se sentia assim. Eles trocaram um aperto
de mão civilizado e Amélia caminhou até o piloto, flexionando
os dedos.
— Isso é mais difícil do que eu pensei.
— Eu disse.
— Te devo desculpas por ter subestimado uma máquina
de fliperama. — Ela colocou uma mecha de cabelo atrás da
orelha. — O que você quer jogar?
— Só tenho mais três fichas. Quer tentar Asteroids?
— Por que você não vai dessa vez?
Vincent assentiu e eles foram para a máquina.
O Arcade era dividido entre uma área do fliperama e
uma lanchonete, a iluminação neon das máquinas chamando
atenção de longe. Lá dentro, o som dos jogos e das risadas
infantis era como uma música animada e Vincent se sentiu à
vontade, apresentando alguns dos seus brinquedos preferidos.
A nave piscou na tela do jogo e logo, Vincent controlava
um pequeno triângulo que atirava em asteroides.
— Por que você gosta tanto desse lugar?
— Eu comecei a vir porque minha mãe disse que era
uma coisa que meu pai gostava, mas depois ficou divertido
demais. Não precisa pensar, é só destruir asteroides no espaço
ou pular dentro de canos sem sentido.
— Hum…
Com o canto dos olhos, Vincent viu que ela mordia o
lábio.
— Pergunte logo o que você quer saber, Amélia, dá para
ver seus pensamentos daqui.
— Como seu pai morreu?
— Foi morte súbita. Eu tinha dois meses, ele se sentiu
cansado e foi dormir cedo. Nunca mais acordou.
— Caramba.
Vincent deu de ombros, apertando os botões com força.
— Não tenho muito o que dizer dele, não me lembro de
nada. Só sei do meu pai pelos outros. — Vincent pensou antes
de perguntar. — Quando você disse que era só você e sua
irmã…
— Ah, sim. Minha mãe morreu quando eu tinha
dezessete e meu pai está em algum lugar do mundo, mas não
faço ideia de onde. Sendo honesta, espero nunca saber.
— Você o conheceu?
— Muito pouco. Eu só lembro de coisas como a cor do
cabelo dele, a mesma que a minha, e que ele tinha um carro
vermelho. Não faz diferença para mim, de qualquer forma. Por
que eu iria me importar tanto com uma pessoa que não quis
estar na minha vida?
Vincent assentiu, os dedos velozes sob os botões
endurecidos da velha máquina de fliperama. A pequena nave
atirava mais projéteis, acertando os obstáculos que surgiam de
todos os lugares. A tela ficou abarrotada de asteroides, Vincent
acabou sendo atingido por um deles e perdeu.
Eles se sentaram em uma das mesas da lanchonete, a
iluminação avermelhada deixando difícil de enxergar rostos
com clareza. As caixas de som tocavam uma música da Amy
Winehouse e Vincent cantarolou baixinho, batucando no tampo
de plástico.
— Você sente falta? Do seu pai.
Amélia perguntou, arrumando os óculos com o
indicador.
— Como sentir falta de alguém que nunca conheci? É
como você disse, ele não fez parte da minha vida em nenhum
momento, então não sobrou espaço para isso. Mas sinto falta
das coisas que podia ter tido com ele. Sempre imagino meu pai
assistindo minhas primeiras voltas em um kart, uma corrida de
Fórmula 2, essas coisas.
— Engraçado, eu fico feliz porque o meu pai não esteve
presente na minha vida, nem na da minha irmã. Tudo o que eu
e ela somos hoje foi graças a minha mãe, não a ele.
Vincent assentiu e estreitou os olhos.
— Por que eu sinto que tem um “mas” aí?
— Mas tudo seria muito mais fácil com um pai. Alguém
que amasse minha mãe, que cuidasse dela e que me deixasse
crescer como uma criança normal, sem me preocupar com o
mundo inteiro o tempo todo. — Ela suspirou. — Patético ou
triste?
— Realista. Todo mundo precisa ser um pouco egoísta,
Amélia.
A mulher deu de ombros, cabisbaixa. Vincent desviou os
olhos, percorrendo a lanchonete para procurar um novo tópico.
Uma ideia passou pela sua mente.
— Está vendo aquele casal duas mesas daqui? Não,
depois da mesa do cara de azul. Eles parecem em um primeiro
encontro, mas ela tá doida para ir embora, não para de olhar
para a porta. Patético ou triste?
— Triste. Mas vamos concordar que o cara de azul ter
pedido o número da garçonete, quando ela claramente namora
a menina que trabalha com ela, é patético.
— Justo. Vamos lá, escolha quem merece ser o próximo
patético da noite.
Amélia encarou o Arcade e escolheu o senhor que
brigava na recepção, exigindo um prêmio que suas fichas não
podiam comprar. E a atendente que estava na situação, levou o
próximo triste.
O jogo do “patético ou triste” seguiu, dando prêmios
merecidos aos diversos fregueses. Eles riam tanto, que a
barriga de Vincent doía, lágrimas nos cantos dos olhos. Uma
gota de suor escorreu pela testa do piloto e ele a limpou com
as costas das mãos, aproveitando para arrumar os fios escuros.
— Tudo bem, a última. — Vincent respirou fundo e
encarou Amélia. — Quero te levar em um terceiro encontro da
noite, mas não sei se você vai aceitar ou me mandar embora.
Patético ou triste?
Amélia arqueou a sobrancelha e Vincent se preparou
para o pé na bunda.
— Corajoso. E eu aceito, Vincent.
Ele sorriu. O seu nome nos lábios dela lhe dava arrepios
que o piloto não sabia explicar. Vincent se levantou e estendeu
uma mão para ela, em um convite.
— Muito bem, Amélia, deixe-me te impressionar com as
minhas habilidades de conseguir ótimos encontros.
Ela riu e entrelaçou os dedos nos dele.
10.
Janeiro
Quando Amélia voltou de Roma, logo após as fotos
vazarem, soltou a bomba do contrato em cima de Angela. O
que ela não percebeu, foi que sua melhor amiga estava em
uma chamada de vídeo com Sofia.
Enquanto a francesa tinha uma crise de riso, a escritora
ruiva parecia empolgada demais com os acontecimentos.
— Posso escrever um livro sobre isso? Imagina um
sáfico com essa história, seria mil vezes melhor.
— Não! Sofia eu não devia te contar, Vincent vai me
matar e o contrato nem foi assinado ainda.
— Até parece que você ia conseguir esconder isso de
mim por muito tempo, amora.
E Sofia estava certa.
Ela e Amélia eram faces opostas da mesma moeda,
dividiam uma conexão construída ao longo dos anos,
ultrapassando os limites da amizade e irmandade. Por muito
tempo, foram as únicas presenças na vida da outra,
atravessando os tempos sombrios da partida de Dora Palhares
e vibrando pelas conquistas alcançadas.
Até mesmo nas loucuras, categoria ideal da confusão
em que Amélia se meteu. Para seu alívio, Sofia embarcou nisso
de cabeça.
— Não.
— Mas porque?! É formal, bonito…
— E careta. Você consegue ser mais estilosa que isso.
— Certo, esquadrão da moda.
— Você pediu minha opinião, amora! Use o azul.
Amélia suspirou e tirou o vestido cinza que usava.
Ligou para a irmã cedo, desesperada sobre a roupa que
usaria para conhecer a família de Vincent. O problema, era a
criticidade extrema da ruiva.
— Onde tá a Angela? — A mais nova perguntou,
prendendo os cachos em um rabo de cavalo.
— Com Sancia, em Nápoles. Elas estão em um tipo de
fim de semana romântico e de jeito nenhum quero interromper
isso.
— Então você me ligou porque sou a última opção?
Magoou.
Amélia riu, vestindo a próxima peça.
— Ela é a ex-rica, esqueceu? Tem experiência com
gente assim.
— Mas não em conhecer uma família rica do seu
namorado de mentira.
Sofia provocou.
— E nem você, amora.
— Caso isso aconteça comigo um dia, vou usar o seu
caso de exemplo. Tu parece que tá gostando demais dessa
história, visse?
A estudante de arte revirou os olhos.
— Sim, amando ter que conviver com aquele cara
insuportável.
— Um cara insuportável que você beijou.
Amélia foi obrigada a contar a história inteira para
Angela e Sofia, sobre a noite de Londres.
— Isso foi há muito tempo.
— E beijaria de novo?
— Claro que não!
— Hum… Vou fingir que acredito nesse seu haters to
lovers forçado.
A estudante de arte fingiu que não ouviu. Pensar em
seus sentimentos em relação ao piloto era uma área perigosa e
ela não estava interessada em explorar aquilo no momento.
— O azul ficou bom — Trocou de assunto, encarando a
irmã pelo celular.
— Ainda muito formal.
— Mas passa uma imagem profissional. Pelo amor de
Deus, eu quero que eles gostem de mim, Sofia.
Amélia desviou os olhos para a pilha de anotações sobre
os Torrisi. As informações coletadas ainda pareciam muito
pouco para ajudá-la a entender os mais ricos da Itália, e ela
estava se remoendo em nervosismo.
O que faria se a família do seu namorado falso a
detestasse?
— Você vai se sair bem, amora. É a pessoa mais
gostável que eu conheço no mundo inteiro.
Só que apesar de tentar se convencer disso, ela suava
frio.
Em geral, ela se dava bem com as pessoas. Da última
vez que se relacionou a sério com alguém, os pais do
namorado sempre a elogiavam com muito carinho e por isso
não desconfiou dos comentários disfarçados de boa intenção.
Sua ex-sogra dizia que Amélia precisava emagrecer, que não
era bom querer tanto assim estudar e esquecer da família, que
ela deveria se esforçar mais para agradar o namorado.
E quando Amélia descobriu as traições, ela tinha lhe dito
para aguentar, porque era natural em qualquer relação. Foi ali
que a brasileira decidiu que tudo bem morrer sozinha, desde
que jamais passasse por aquela merda mais uma vez.
Amélia não acreditava que os Torrisi seriam daquela
forma, mas não podia impedir a onda nauseante de
lembranças. Ela tinha essa terrível tendência de conclusões
precipitadas e negativismo, por isso tentou adiar o máximo a
visita.
Mas depois de ter enviado uma mensagem para Vincent,
concordando em resolver aquilo de uma vez, percebeu que não
havia mais para onde correr.
Uma batida na porta a tirou dos seus pensamentos e ela
checou sua aparência pela última vez. Meia calça preta e mais
grossa, uma saia quadriculada em bege escuro, suéter justo
em um rosa chá e suas botas mais confortáveis. Bonita,
elegante, profissional.
Amélia pegou sua bolsa e saiu. O cheiro do perfume de
Vincent, caro e doce, a atingiu. Os cabelos escuros foram
cortados, mais rente, e o italiano conseguiu ficar ainda mais
bonito.
Surpreendentemente, ele não usava nem preto, nem
branco, e sim uma camisa vermelha por baixo do sobretudo.
— Vermelho?
— Alguma objeção moral à cor?
— Nenhuma, só estranhei você fugir da sua paleta de
sempre.
— Acho fofo que você estava nervosa em ser uma
péssima namorada de mentira na frente da minha família, mas
conhece até as cores das roupas que eu uso.
Ela revirou os olhos.
— Nem cinco minutos e você já está sendo insuportável.
Vincent sorriu e se inclinou na direção dela. Amélia viu
aqueles olhos, de ouro derretido, faiscarem e engoliu em seco.
— Eu estou sempre garantindo o entretenimento do dia.
E você tá linda, Palhares.
— Obrigada.
Amélia se xingou por corar, trancou a porta e
acompanhou Vincent até embaixo. Sentia os olhares curiosos
dos seus vizinhos, tentando espiar atrás das cortinas. A
brasileira soltou uma risada baixinha.
— O que foi?
Ele perguntou.
— Todo mundo tá olhando para cá.
— Depois que nossas fotos vazaram, ficou impossível. E
olha só para nós dois indo conhecer minha família, quando eles
sabem que eu nunca levei ninguém a propriedade Torrisi.
— Espera, como assim, Vince? — Amélia parou na
entrada do prédio, chocada.
— Eu nunca namorei antes Palhares, lembra? Então não
tinha motivos para apresentar minha família para ninguém.
Ele deu de ombros, como se aquilo fosse nada e seguiu
na direção de um carro estacionado. Uma Maserati novinha em
folha, reluzindo, que devia custar alguns bons milhões. Amélia
se preparou para abrir a porta, quando Vincent a impediu.
— Por favor, me deixe ser o cavalheiro dessa vez.
Ele sorriu, provocador, abrindo a porta do carro.
Segundos depois, eles dirigiam pelas ruas de Mancia.
— Me sinto mal sabendo que a primeira namorada que
sua família vai conhecer, é falsa.
— Não é o fim do mundo — Vincent ligou o som e uma
música do Vance Joy começou a tocar. — Eles me enchem o
saco a muito tempo para conhecerem alguém que eu me
relaciono. E você só precisa fingir, como se estivéssemos na
frente de câmeras.
— É mais difícil do que parece.
Ela resmungou.
— É porque você se esforça demais. Uma vez quase
contratei uma pessoa para fingir ser meu namorado de mentira
para eles, mas Stefano disse que minha família saberia.
— Mas eu estou sendo paga.
— Mas você me odeia. — Vincent lançou um olhar
divertido — E se quisesse contar a verdade sobre isso, já teria
feito, mia bella.
Amélia engasgou com as últimas duas palavras de
Vincent. Mesmo que fosse uma brincadeira, a forma como ele
dizia aquilo a deixava sem chão.
Tudo começou com as fotos que Stefano vazou para a
imprensa, do último encontro dos dois. O piloto enviou as
notícias para ela, com uma mensagem que dizia “Somos uma
ótima dupla de namorados de mentira.”.
Os cliques tinham sido certeiros. O momento em que
eles deram as mãos na caminhada ao lado do canal do rio
Palesche. Vincent segurando Amélia perto de si, quando ela
quase caiu, com um brilho tão bonito nos olhos que a brasileira
se perguntou se aquilo tinha um significado a mais e ela não
percebeu.
Mas foram as da cafeteria, tiradas pelos funcionários,
que ganharam as redes sociais. Eles dois inclinados na mesa,
se olhando, sombras de sorrisos nos lábios e na próxima foto,
Vincent encarando os lábios de Amélia. A mulher ficou olhando
para aquela foto mais tempo do que deveria.
Com isso, era praticamente uma confirmação do casal,
as redes sociais de Amélia explodiram de comentários e novos
seguidores. Stefano se ofereceu para ajudá-la com tudo aquilo,
o que ela agradeceu, e a segurança da brasileira foi reforçada.
Por Deus, ela já tinha até sido parada na rua por uma
foto!
Um dos tabloides fez uma reportagem sobre ela, com
informações autorizadas por Stefano, e havia colocado no título
“Uma história de amor: Vincent Di Castelli encontra sua bella
em Amélia Palhares.” O piloto fez questão de fazer uma
chamada de video para ela com uma cópia do jornal em mãos.
— Então, mia bella? Nossa história de amor é digna de
um livro de romance?
Ele disse, rindo, e desde então a chamava assim. Apesar
da intenção ser uma piada, Amélia estremecia quando ele dizia
o apelido com a voz rouca, o sotaque italiano do interior
acentuado o “i”, da mesma forma que Vincent fazia quando
dizia seu nome.
Aquilo a deixou tonta. E ela não gostou muito disso.
— Estamos quase chegando — Vincent disse, fazendo
uma curva com o carro.
A viagem foi silenciosa, mas confortável. Agora, porém,
Amélia sentia que podia derreter de ansiedade no banco de
couro caro.
— Hum, acho que vou vomitar. — Ela tentou soar
divertida, mas seu estômago estava mesmo revirado.
— Palhares…
— Vincent, é muita pressão! Sabemos que sou sua
namorada falsa, mas eles não sabem. E sou a primeira pessoa
que vem na mansão Torrisi como, sei lá, mais que um amigo
seu? Não vou conseguir.
O piloto apertou o volante.
— Amélia, calma. Eles não vão morder você, só te
encher de perguntas. Pense nisso como uma grande reunião
de trabalho.
— Em uma reunião de trabalho, se eu cometer um
deslize, sou demitida!
— Porra, você estraga todas as minhas comparações. —
Vincent sorriu. — E a pior parte é que você usa um ótimo
argumento. É difícil ganhar de você.
— E-eu cursei retórica e oratória na faculdade.
Ele riu e Amélia franziu a testa.
— Meu Deus, Palhares, você é tão…
Amélia nunca soube o final da frase, já que ele se
interrompeu e parou o veículo. A brasileira desviou os olhos
confusos para a imensa construção diante de si e ficou de boca
aberta.
A mansão Torrisi era quase um castelo de tão grande,
só que sem as torres e pináculos. Um jogo de luzes iluminava a
frente, lançando sombras sobre o restante da casa, envolta em
mistério, de modo que Amélia não podia ver a real extensão.
Ela se perguntou como seria a vista de dia.
Uma escadaria levava até a porta de madeira antiga, a
pedra acinzentada e atingida pelo tempo parecia ter sido
esculpida. Inúmeras janelas brilhavam em amarelo suave e
pessoas passavam por elas, contornos sem definição.
— Impressionada?
Vincent disse, debruçado sobre o volante, olhando na
direção dela.
— Não parece óbvio? Quando foi construída? Parece
algo do século XVIII.
— Final do século XVIII, quando o negócio dos Torrisi
começou a dar certo. Vê os arcos? Construídos para parecer
com os da casas na Inglaterra.
— E agora sua família inteira está lá dentro me
esperando para acabar comigo.
— Amélia…
— Não consigo evitar a sensação de que vou estragar
tudo.
Um silêncio tenso se seguiu. A brasileira quase pulou no
assento quando Vincent tomou suas mãos.
— Primeiro, essa frase é minha. Segundo, Amélia
Palhares, eu não vou deixar nada acontecer com você.
Amélia suspirou, piscando muito rápido.
— Estar nervosa para conhecer a família do meu
namorado de mentira. Patético ou triste?
O piloto sorriu, seus olhos se iluminando com a menção
ao antigo jogo que eles compartilharam na noite em Londres.
Às vezes, aquilo parecia ter acontecido em uma dimensão
paralela, ou só nos sonhos de Amélia. Mas quando Vincent
fazia algo que a lembrava do tempo, ela ainda podia alcançar a
felicidade e calor que aquelas horas lhe causaram.
— Corajoso — Vincent saiu, contornou o carro e abriu a
porta de Amélia. Estendeu a mão para ela — Vem, vamos
enfrentar a família rica do seu namorado de mentira.
Amélia riu baixinho e entrelaçou os dedos nos dele.
***
Vincent Di Castelli tinha uma dívida com a cantora
Taylor Swift.
Ele nunca foi um grande fã, gostava mais de pop dos
anos 90 e 80, mas Amélia Palhares era, e muito, e o piloto
descobriu isso logo que a conheceu. Getaway Car tocava nos
altos falantes do Arcade quando eles estavam prestes a sair e a
brasileira parou e explicou toda a história do álbum para
Vincent.
— Ela é autodepreciativa, tem um péssimo gosto para
relacionamento e sempre tenta tratar os outros com gentileza.
Somos praticamente gêmeas.
Depois da noite, Taylor sempre o lembrava de Amélia.
Ele até mesmo começou a ouvir algumas músicas da cantora e
descobriu que gostava de muitas letras, além das histórias por
trás das composições.
Para a surpresa de ninguém, a estudante de arte
continuava amando a cantora. Nas chamadas de vídeo, ele a
ouvia sempre de fundo, geralmente acompanhado de um fato
aleatório sobre a vida de Taylor, dito por Amélia.
— Você sabia que essa música é sobre o Met Gala? —
Ela disse quando Dress tocou em uma das sessões de
informações sobre a família dele.
— Tem um triângulo amoroso no álbum dessa música.
— Amélia explicou um dia, enquanto cozinhava o jantar e
combinava a agenda pública com Vincent. — São as músicas
Betty, Cardigan e August. É sobre um cara que trai a
namorada, a namorada e a menina que ele traiu a namorada.
Aquela era uma das coisas que o fazia gostar ainda mais
de Amélia Palhares, porque isso não se aplicava somente a
Taylor Swift. Ela sempre dizia algo interessante no meio das
conversas deles, fosse sobre a cantora, cinema, livros, arte ou
até mesmo o boto-cor-de-rosa e sua especificidade reservada a
floresta amazônica. A mente dela era carro de Fórmula 1 em
um circuito, sempre veloz, rápida e cheia de surpresas.
Sabia que isso não era uma coisa a se reparar na
mulher com que ele devia só encenar um romance, mas
ignorava essa essa parte.
Seja como for, Vincent fez uma nota mental para
agradecer pessoalmente a cantora. Por que, quando entrou na
mansão Torrisi com uma Amélia Palhares pálida de nervosismo
e dedos gelados de ansiedade, Emma foi a primeira a se
apresentar, usando uma camisa da Taylor Swift.
— Nossa, eu também sou fã da Taylor. — Amélia disse,
abrindo um sorriso e empurrando os óculos de volta para o
lugar.
— Vincent, estou apaixonada pela sua namorada. —
Emma declarou, puxando Amélia em direção ao mesmo
espaço onde a festa de ano novo dos Torrisi acontecia, de volta
a sua configuração original.
Minutos depois, a gargalhada da brasileira ecoava pelas
paredes da mansão, cheia de vida e não havia nenhum sinal de
nervosismo no rosto dela. Ela e Emma tagarelavam sobre a
vida da cantora, soltando gritinhos empolgados sobre o recente
álbum e impressões sobre as músicas preferidas de cada uma.
O piloto observou, com um sorriso mal disfarçado nos
lábios, quando o restante da família chegou e Amélia os
cumprimentou com gentileza e segurança. Meia hora depois,
eles estavam sentados à mesa de jantar, tomando vinho.
— Vincent não me contou que conhecia você, querida,
quando fomos na Galeria Torrisi. — Teodora mencionou, os
olhos brilhando na direção da brasileira.
— É porque nos conhecemos melhor só depois de toda
confusão.
Amélia respondeu. Do outro lado da mesa, Stefano deu
a ela um olhar de orgulho e Vincent segurou a mão dela sob a
mesa.
— E você disse que morava no Brasil, não é? Como veio
parar aqui?
Antonia perguntou.
— Eu estou fazendo mestrado em História da Arte.
Tenho graduação em Letras, mas apliquei a especialização
assim que me formei. Quando a oportunidade da bolsa surgiu,
não pensei duas vezes em aceitar.
— Menina esperta — Teodora elogiou — Qual sua área
de estudo?
— Arte do século XIX. Especificamente, artistas não
reconhecidos da época.
— Então você estudou sobre Fulvia D ‘Oro? — A mãe de
Vincent se inclinou sobre a mesa, curiosa — Ela foi uma artista
patrocinada pelos Torrisi, mas acabou indo para o Brasil depois
que o irmão roubou os créditos.
— Claro que sim! Bom, eu sou a curadora da galeria,
então é minha obrigação conhecer o trabalho dela. — Amélia
brincou, bebendo um longo gole de vinho. — Na verdade,
Fulvia está no meu trabalho de mestrado, mas ainda não posso
falar muito sobre ele, por questão de segredo de pesquisa
acadêmica. Hum… Eu só espero ajudar a contar a história dela.
— Ah, por favor, não hesite em nos mostrar quando
estiver finalizado. — Anna disse. — Eu adoraria ver. Sabe, eu
também sou pesquisadora no ramo de arte e a história de
Fulvia sempre me encantou. Minha mãe me apresentou a
pintora e…
Vincent acabou se desligando da conversa. Soltou a
mão da brasileira, que nem pareceu notar, concentrada demais
em Anna e Teodora.
O piloto analisou a mesa. Todos os olhares estavam
voltados para Amélia e sua fala empolgada e ele sabia que sua
família tinha gostado dela de verdade. Os Torrisi não
disfarçavam seus desafetos com ninguém, assim como
expressavam o carinho pelos outros de forma clara. Era fácil
notar que estavam felizes pela presença nova.
Porra, Vincent mordeu a parte interna da bochecha,
porque ele se sentia até mais do que feliz em ver Amélia tão
relaxada ao lado das pessoas que amava. E, de novo, não era
para estar seguindo aquele caminho. Era para ser um romance
encenado em primeiro lugar. O que tinha acontecido com “ela
é irritante e teimosa”?
O piloto piscou, um pouco assustado.
— Tá tudo bem?
Amélia sussurrou. O perfume dela encheu o nariz dele e
Vincent suspirou.
— Sim, tinha uma coisa no meu olho.
Stefano o encarou, a testa franzida, mas Vincent só
balançou a cabeça.
Depois do jantar Amélia pediu licença para usar o
banheiro.
— Onde você arrumou essa menina, Vincent? — Emma
se virou para ele. — Ela é ótima! Tem uma irmã, não?
— Tem, mas a irmã namora.
— Que pena. — Emma fez beicinho. — Como é
complicado gostar de mulher.
— Mas você não estava namorando até semana
passada? — Stefano provocou, digitando no celular.
— Não era sério. E quando você vai trazer aquele
menino bonito de novo para cá, Stefano?
Stefano ergueu um dedo na direção da loira.
— Calada, Emma.
— Ela é ainda melhor do que eu imaginei. — Teodora
sorriu, os cabelos grisalhos impecáveis em uma trança firme.
— Nem acredito que finalmente você vai namorar alguém que
eu aprove.
— Mas você não tem que aprovar meus
relacionamentos, nonna. E eu nunca namorei antes.
— Namorar, ficar, não sei como vocês chamam hoje em
dia. E é claro que eu preciso aprovar seus relacionamentos,
você é meu neto.
Vincent sorriu.
— Então, se você decidir namorar de novo, a gente
precisa aprovar também?
Teodora estreitou os olhos, pousando a xícara de chá no
pires.
— Garoto, você está mesmo pedindo para que eu não
deixe herança nenhuma.
— Mamãe! Não fale assim, parece até que você está
planejando morrer amanhã.
— Anna, nunca se sabe, é capaz do seu filho me matar
antes da hora.
Vincent riu e se levantou.
— Só para deixar claro, nonna, eu vou aprovar qualquer
um que a senhora escolher. Inclusive, por que não conta à
mamãe sobre aquele banqueiro que envia cartas de vez em
quando para cá? Ops, melhor eu procurar Amélia.
— Vincent, seu fofoqueiro!
Sua avó gritou e Emma pediu para saber a história
completa. Vincent saiu da sala, sacudindo a cabeça.
Quando ele chegou perto dos banheiros do térreo,
parou ao ver Amélia inspecionando a parede cheia de
fotografias dos Torrisi. Ele se encostou na parede, os braços
cruzados, e a viu arrumar os óculos dourados no rosto.
— Achou alguma coisa interessante aí, Palhares?
Ela colocou a mão no peito e se virou.
— Que susto, Vincent!
— Achei que você tinha se perdido, mas na verdade
está xeretando.
Amélia deu de ombros e imitou a postura dele. Vincent
se aproximou e viu o que a brasileira analisava. Era uma foto
com todos os primos Torrisi, ainda crianças, em um verão,
usando roupas de banho, na frente da piscina da propriedade.
— Esse aqui é você. — Ela apontou para um garoto
magrelo, com um óculos de natação e sem os dois dentes da
frente no sorriso.
— Sim, eu tinha uns oito anos.
— Sua família é enorme. — Amélia comentou, os olhos
percorrendo as fotos nas paredes. — Você tem mais primos do
que eu tenho de parentes.
— Sua irmã ainda mora no Brasil?
Ela assentiu.
— Ainda somos só nós duas contra o mundo todo, mas
Sofia agora tem Maria Cássia e a família dela. E eu tenho
Angela, Pia, Sancia, Stefano e… — Ela o encarou. — … Você,
eu acho.
— Está me colocando na lista de pessoas que você
gosta e não das que odeia? Me sinto lisonjeado.
— Você está no topo da lista de insuportáveis da minha
vida, Di Castelli.
Vincent sorriu.
— O que você achou da minha família?
— Você estava certo, eles são ótimos mesmo. Emma é
incrível, Antonia é maravilhosa e acho que quero ser adotada
pela sua avó. Sua mãe parece com você.
— Todo mundo diz. — Ele apontou para a foto do
casamento dos pais. — Esse é o meu pai.
— Os mesmos olhos. Ah, não só isso! Seu sorriso é
igualzinho ao dele, também.
Vincent apontou para outra fotografia emoldurada.
— E esse aqui sou eu na minha primeira corrida de kart.
Eu tinha dez anos e decidi que queria ser piloto depois de
assistir o que foi a melhor temporada da vida de Ansel Bellini.
Minha mãe me levou no kart no mesmo dia.
— Ela patrocinou você?
— Não, eu não deixei nenhum Torrisi se envolver com
isso diretamente. Eu tive, é claro, todos os privilégios do
mundo. Nunca me preocupei com dinheiro para aulas,
preparação e consegui a licença para pilotar, da FIA, assim que
fiz dezoito.
— E como você foi parar nas pistas? Na Fórmula 2?
Quando nos conhecemos você já era piloto.
Vincent assentiu.
— Eu comecei a faculdade e me inscrevi em corridas
amadoras, para matar o tempo e ter esperança de alguém
notar. Usei um nome falso, porque não queria que me
reconhecessem. Um olheiro me viu um dia, chamou para um
teste de equipe, passei e entrei na equipe.
— E agora tem dois títulos mundiais. — Amélia disse,
sorrindo. — Impressionante, Di Castelli.
Vincent passou os dedos entre os cabelos escuros, mais
curtos do que ele estava acostumado.
— Obrigado, eu sou mesmo impressionante.
Ela revirou os olhos.
— Jesus, você consegue ser um babaca arrogante às
vezes, sabia?
— De acordo com você, sou o número 1 da sua lista.
Amélia riu e o encarou, um sorriso ainda pendendo nos
seus lábios. De repente, Vincent notou que eles estavam
sozinhos em um corredor, os braços quase se tocando, o rosto
da brasileira muito perto dele.
O ar se encheu de eletricidade, tensão e mais alguma
coisa. Tudo ao redor deles desacelerou e Vincent não
conseguia controlar as batidas enlouquecidas do próprio
coração, nem desviar os olhos de Amélia. O cheiro dela o
atingiu mais uma vez, uma mistura de ameixas frescas e
amoras, o calor a centímetros dele.
Esperou que ela recuasse, mas Amélia soltou uma
respiração pesada, os lábios entreabertos, como se quisesse
ser beijada. Beijada por ele. E ela estava tão bonita, os olhos
brilhantes como estrelas e Vincent queria se perder dentro
daqueles lábios, porque ele sabia que eram tão doces quanto
pareciam, a memória de três anos atrás ainda viva na pele.
Deus, ele ia beijá-la. Vincent tocou a bochecha dela com
os dedos, chegando mais perto, tentando ver qualquer sinal de
hesitação e não encontrando nada. Amélia fechou os olhos e…
— Ei, onde vocês… Ah!
A voz de Stefano os assustou. Vincent piscou,
afastando-se e encarou o melhor amigo com irritação.
— E-eu já vou voltar.
Amélia saiu, apressada.
— Foi mal, aí. — Stefano disse, tentando não sorrir e
falhando. — Não queria interromper nada.
— Você não interrompeu.
— Ah não? Pareceu que sim.
— Cala a boca, Stefano.
Vincent bufou, irritado consigo mesmo. Se o amigo não
tivesse chegado, ele teria beijado Amélia Palhares de novo e,
caralho, por que diabos ele iria fazer isso? Pior, porque porra
ele sentiu vontade de beijá-la mais uma vez?
— Mas eu nem disse nada! E é normal você se sentir
atraído por outra pessoa, mesmo que ela seja sua namorada
de mentira.
— Stefano, Amélia e eu mal nos damos bem.
— Sério? Por que para mim parece que vocês finalmente
pararam de se odiar. Talvez a tensão sexual ajude.
Vincent o encarou, incrédulo.
— Não tem tensão sexual nenhuma.
— Tudo bem, minta para você o quanto quiser.
Eles encontraram a família dele novamente e Vincent
fingiu que não tinha quase beijado Amélia minutos atrás. O
piloto mal olhava na direção dela, sem que o momento o
atingisse como um tapa na cara.
— Vincent, você precisa trazer Amélia para cá mais uma
vez. — Teodora disse, na despedida.
— Não precisa que ele faça isso, nonna, vou buscá-la na
cidade. Você tem que sair em uma tarde de compras comigo,
Amélia! — Emma disse, abraçando-a
— Eu vou adorar.
— É bem-vinda sempre que quiser, querida. — Anna
abraçou a brasileira com carinho. — Nossa casa agora é sua
também.
Amélia se afastou para falar com Stefano e Antonia.
Vincent beijou a testa da mãe.
— Ela é ótima, Vince. Dá para ver que você gosta dela,
seus olhos brilham quando olha para a menina. Desculpe se
fiquei preocupada demais. Fico feliz que vocês estejam tão
bem.
Vincent quase engasgou com o comentário de Anna.
— Obrigada, mãe. A Amélia é…
A pessoa que eu deveria ter um relacionamento falso e
não querer beijar.
Anna apertou o braço do filho, como se compreendesse
a frase incompleta.
— É bom ver você feliz, meu filho. Você se cobra demais
e te ver relaxado me alivia muito.
Vincent não disse mais nada e levou Amélia embora. O
clima entre eles estava estranho e os dois mal se falaram no
caminho. A brasileira desceu do carro, deu um tchauzinho
sorrindo e subiu para o prédio.
O piloto esperou a luz do apartamento acender,
encostou a testa no volante e soltou um suspiro exausto, o
cheiro dela ainda no carro. Vincent fechou os olhos.
O quase beijo com Amélia era só uma coisa física, disse
a si mesmo, não tinha porque se preocupar com aquilo. Ela era
uma mulher bonita, claro, além de teimosa e cabeça-dura.
Vincent estava só com vontade de beijar alguém, e lá estava
ela, com a língua afiada, curiosidade e inteligência que o
prendia todas as vezes que olhava na direção dela.
Não era porque ele pensava nela constantemente, que
significava alguma coisa. Não é?
Ah, puta merda.
11.
Fevereiro
Estar em uma capa de revista não era algo que Amélia
Palhares imaginou. No máximo, ser citada como curadora da
Galeria Torrisi em alguma matéria sobre arte, ou ter um artigo
em uma revista científica.
Mas lá estava ela, encarando uma foto dela e Vincent,
com uma manchete que dizia: “Amor além das pistas, saiba
tudo sobre o casal mais amado da Fórmula 1”.
O que eles diriam se eu contasse sobre nosso contrato
que ainda não foi assinado?
Stefano entrou em contato com ela e perguntou se
Amélia queria prosseguir com a ideia, para logo depois da
Corrida de Erco Santinelli. O evento realizado em Ímola,
contava com pilotos de Fórmula 1, era beneficente e reunia
empresários famosos, para ajudar diversas instituições.
Amélia havia dito que concordava, mas por dentro,
queria sumir. O quase beijo com Vincent na mansão Torrisi a
assombrava todas as noites. Não só porque ela já sabia como
era ser beijada pelo piloto, como o fato de que, se Stefano
tivesse demorado um pouco mais, não teria se importado.
Porque queria que aquele babaca arrogante e
insuportável a beijasse. E não seria pela encenação barata que
eles deveriam fazer.
Não tinham se falado desde então e a situação inteira
era sufocante. Vincent tinha se tornado parte da rotina da
estudante e ainda era seu namorado de mentirinha. Mais cedo
ou mais tarde precisariam conversar.

— Certo, Dior ou Prada? — Emma perguntou em voz


alta, digitando no celular. — Eu gosto mais das bolsas da
Prada, mas a nova coleção da Dior está de matar. E então?
— Dior — Sancia respondeu, arrumando os óculos de
sol no rosto — Eu quero alguma coisa nova no meu guarda-
roupa.
— Mas amor, você vive com coisas novas no seu guarda-
roupa — Angela respondeu, sorrindo.
— An, roupa bonita nunca é demais.
Amélia riu, dando um passo para perto do grupo e
deixando as revistas de lado. As quatro garotas estavam
decidindo em qual loja iriam se aventurar naquela tarde. A
ideia toda foi de Emma, animada ao descobrir o namoro de
Angela e Sancia. Ela organizou uma viagem a Milão e
praticamente obrigou todas elas a irem.
— Eu não tenho uma opinião formada, então fico do
lado da maioria.
— Dior, então. — Emma sorriu, os cabelos loiros presos
em um rabo de cavalo alto.
Andaram juntas em direção à loja. Angela e Sancia iam
mais à frente, de mãos dadas, enquanto Emma e Amélia, de
braços entrelaçados, ficaram para trás.

— Então, como estão as coisas para Ímola?


— Quase prontas, na verdade. Você vai?
— Ah, não. — Emma balançou a cabeça. — Eu
provavelmente vou estar me afundando em estudos nos
Estados Unidos. Talvez no GP de Miami.
— O que você está estudando?
— Vou começar engenharia automotiva. Sei que eu já
tenho mais de vinte anos, um pouco velha para começar um
curso, mas…
— Uou, calma aí. — Amélia franziu a testa. — Você não
tá velha demais, quem disse isso?
A loira desviou os olhos.
— Bom, ninguém. Só achei que fosse um consenso
geral.

— Caralho, não! Não há uma idade para escolher uma


profissão. Na verdade, eu acho que se você tiver como adiar a
escolha até decidir o que realmente quer fazer, é uma ótima
ideia. Tentar outros cursos, trabalhos… Quem é que sabe tudo
aos dezoito anos?
— Exatamente! — Emma sorriu. — Eu sei que estou
reclamando como uma garota rica, mas eu só queria ter
certeza de que escolhi a coisa certa, de que não vou me
arrepender no futuro. Entende?

Amélia assentiu. Arrependimentos eram algo que tinha


de sobra, mas aprendeu que faziam parte do seu passado
imutável e só restava lidar com o peso das decisões erradas.
As garotas entraram na loja, seguidas de dois
seguranças, e Amélia agradeceu o aquecedor interno. Era meio
de Fevereiro e o inverno italiano ainda não dava sinais de
abandonar o país, apesar do sol quase sempre presente no céu
todas as manhãs.
As vendedoras reconheceram Emma e Sancia e
conduziram o grupo em direção a uma sala privativa. Tudo era
muito luxuoso e bonito, Amélia até aceitou o champanhe que
lhe foi oferecido, assistindo as amigas opinarem sobre as
roupas.
— Era esse vestido que eu tava procurando — Sancia
segurou uma peça vermelha, de mangas compridas, na frente
do corpo — Vi quando desfilei para a Yves Saint Laurent, mês
passado. Se eu pudesse, teria roubado dos bastidores.
— Vai ficar perfeito em você, Sancia. O que acha desse
aqui, Angela? — Emma mostrou um vestido de gola alta.
— Eu amei! Queria pintar meu cabelo de verde,
combinaria bem.
— Alguém aqui está usando o círculo cromático. —
Sancia sorriu, beijando o ombro de Angela. — Desse jeito você
me enche de orgulho, chérie.
— Você diz como se eu não soubesse me vestir antes
que você chegasse em minha vida.
— Que bom que nem precisei dizer nada.
— Sancia!
As meninas riram.
— Ames, do que você gostou? — Emma perguntou,
olhando entre as araras.
— Não, tô bem aqui. — Amélia ergueu a taça de
champanhe e bebeu um longo gole. — Champanhe de rico,
não é ótimo?
— Ah, não, Amélia. — A loira se virou para encará-la. —
Você vai se levantar e vai experimentar essas roupas aqui.
— Mas eu não preciso.
E minha bolsa de mestrado inteira deve ser o mesmo
preço que um pé desse sapato.
— Não é questão de precisar. Além disso, nonna me deu
o cartão dela e me disse “Use como vocês quiserem”. Vocês,
no plural. Ou seja, as compras de hoje serão na minha conta.

— Mas…
— Por que estou ouvindo você reclamando e não
experimentando esse casaco?
— Está criticando minhas roupas, Emma?
— Não e não tente mudar de assunto, garota.
Emma era uma adversária à altura da teimosia de
Amélia. Ela se recusava a deixar a loja sem que a brasileira
escolhesse algumas peças e não queria ouvir os protestos dela.
Quando apelou dizendo que só queria que Amélia se
divertisse e gostasse da loira, a mulher cedeu. Dentro do
provador, a estudante xingou a Torrisi baixinho.
— Caramba, Emma, eu admiro seus esforços. — Angela
disse, divertida. — Eu mesma já teria desistido.
— Nada que uma chantagem emocional bem feita não
fizesse.
— Eu ouvi isso! — Amélia reclamou.
— Agora saia, me deixe ver como ficou. — a Torrisi
pediu e Amélia saiu, incerta. — Deus, olhe só para você.
Vamos levar esse e quero ver os outros.

Enquanto Emma brincava de boneca com Amélia, a


estudante de arte não conseguiu evitar um sorriso, mesmo
com o orgulho dobrado ao meio. Ela gostava da Torrisi alegre e
cheia de energia, muito parecida com Vincent nesse quesito.
Emma tinha um olhar firme e seguro, confiança em
todos os gestos, e uma forma de falar que talvez soasse
autoritário, mas seu sorriso era simpático e caloroso. Um pouco
contrastante com a avó, Teodora, e a tia, Anna, que usavam a
calma, elegância e tranquilidade para transmitir a mesma
sensação.
Para a brasileira, que cresceu com poucas pessoas em
volta de si, foi reconfortante ser abraçada pelos Torrisi. Eles
eram mesmo como as matérias diziam, uma família cheia de
amor e carinho, e até mesmo nas provocações entre os
membros, ela sentia o quanto se importam um com o outro.
Uma pontada atravessou seu coração ao perceber que
um dia, quando o acordo acabasse e seu mestrado fosse
apresentado, ela iria embora, provavelmente nunca mais os
veria. E isso incluía Vincent.
Amélia balançou a cabeça, tentando não pensar nisso
no momento e voltou a atenção para as amigas.
— Nossa, Emma, você está tão errada — Sancia disse,
bufando — Paris Hilton não era a maior it girl dos anos dois
mil? Que tipo de pessoa diz isso?
— Pessoas com senso. Gisele Bundchen existe por
algum motivo. E a Christina Aguilera? Britney Spears?
— Usar a Gisele como referência não conta. Ela só
perde para a Naomi Campbell, é injusto.
As quatro estavam sentadas em uma pequena
confeitaria, decidindo qual seria a próxima loja, quando Emma
e Sancia embarcaram na discussão.
— Tá e a Jennifer Lopez? — Emma alegou. — Ela era
maravilhosa.
— Mas não lançou a moda da cintura baixa, lançou?
— O vestido que ela usou inventou o Google Fotos.
Encontre um argumento melhor do que esse para defender a
Paris Hilton.
Elas continuaram discutindo mesmo quando foram fazer
os pedidos perto do balcão.
— Jesus, elas são difíceis. — Angela murmurou e
arrastou a cadeira para perto de Amélia, as sacolas de grife na
mesa. — Será que se a gente sugerir decidir isso em uma
briga, elas topam?
Amélia riu.
— No Brasil, você diria que isso é uma rinha de galo.
Não com galos de verdade, é só um modo de falar.
Angela assentiu. Os cabelos dela estavam mais uma vez
em tranças, que iam até metade das suas costas, com linhas
em tons de rosa.
— Você já falou com ele depois daquele dia?
— Hum… Vou falar hoje.
— Ames, é sério? Se vocês forem fazer isso, precisam se
comunicar, sabe?
— E você falou com ela sobre aquilo? — Amélia rebateu.
— Ainda não, mas você sabe o porquê. Não tente
desviar do assunto, Ames.
— Eu sei, eu sei. Vou tentar falar com ele hoje, mas não
sei Angela… As coisas estão estranhas.
— Se você beijasse ele, não ficariam.
— Angela!
A francesa riu.
— É só admitir isso, é tão difícil assim? Você quer dar
um beijo nele.
— Eu odeio ele.
— E daí? Não dá para odiar e querer beijar ao mesmo
tempo?
Amélia arrumou os óculos e se virou para Angela.
— Você quer que eu diga a ele, “Oi, sabia que eu te
odeio? Mas não é porque eu te odeio que eu não quero beijar
sua boca.”
— Sim, exatamente assim. E seja honesta, nem você
acredita nessa mentira de odiar.
— Odiar o quê? — Sancia interrompeu, com dois copos
na mão.
— Amélia me perguntou sobre o livro que eu estou
lendo. — Angela sorriu para a modelo — E aí, chegaram em
um consenso?
— Sim. — Emma disse. — Beyoncé.
— Eu concordo.
Amélia disse e aceitou o copo de suco que Emma lhe
deu.
Tentou prestar atenção na conversa, mas seus
pensamentos voaram para longe.
Sim, Vincent Di Castelli era um babaca arrogante. Sim,
ela o considerava insuportável. Sim, ela também o achava
atraente, bonito, e admitindo, gostoso. Sim, os sentimentos
daquela noite em Londres ainda estavam ali.
O problema em reconhecer essa questão, era admitir
que ele a afetava mais do que Amélia gostaria. E do ponto de
vista dela, isso era péssimo.
Vincent era só o piloto mais famoso do mundo, com
uma carreira em ascensão e muitas facetas que Amélia ainda
estava aprendendo a conhecer. Ele não era só o cara marrento
das câmeras, era um filho amoroso, um amigo preocupado,
uma pessoa que se importava demais com o esporte que
amava.
Ela não sabia se estava disposta a atravessar o mar que
eram seus sentimentos em relação a Vincent, porque ele
sempre parecia distante demais da costa, inalcançável. Apesar
de que, quando Amélia encarava os olhos dourados e
brilhantes dele, quase mergulhava de uma só vez. A coisa toda
era exaustiva.
Odiá-lo, ou pelo menos fingir, era infinitamente mais
fácil.
Com a cabeça pesada de pensamentos complicados,
Amélia se entregou à alienação que só um dia de compras com
um cartão ilimitado podia oferecer. Deixou que Emma pagasse
um par de sapatos e um vestido da Versace, se
impressionando com as escolhas certeiras de Sancia para
Angela.
As garotas estavam decidindo se deveriam ir a mais
uma loja, quando Emma checou seu relógio e arregalou os
olhos.
— Amélia, você não tem um encontro hoje?
— Eu tô muito atrasada?
— Não, acho que se correr dá tempo de ir para onde
vocês marcaram.
— Ali não é o Vincent? — Sancia apontou para um
homem que caminhava na direção delas e Amélia teve certeza,
sem nem conseguir ver direito.

Só o piloto usaria um conjunto de calça e blazer em


bege claro, com uma camisa branca por baixo, completando
com um sobretudo marrom escuro, em pleno final de tarde. O
sol bateu nos cabelos castanhos de Vincent e Amélia quase
revirou os olhos quando as mechas ficaram mais claras,
deixando-o ainda mais bonito.
Por que ela tinha que sentir vontade de beijá-lo de
novo?
— Meninas, boa tarde.
— Oi, Vince. — Emma o abraçou. — Imagino que você
não esteja aqui para pagar um café para todo mundo.
— Temos uma hora e meia até o jantar, então dá tempo.
— Ótimo, porque Amélia precisa trocar de roupa. —
Sancia se intrometeu.
— Mas por que?
— Querida, eu não posso te deixar ir em um restaurante
de luxo usando esse suéter, seria um insulto como modelo
formada em moda. — Ela disse, com um suspiro.
— Está tão ruim assim?
— Não, mas a gente pode fazer melhor que isso.
— Tem um Torrisi aqui perto, a cafeteria de lá é
maravilhosa, venham comigo — Emma declarou, segurando a
mão de Amélia — Me dê quarenta minutos, Vince.
— Tudo bem.
O italiano sorriu e acompanhou as garotas até a
esquina, onde uma franquia dos hotéis Torrisi se erguia. Com a
confiança de quem era herdeira de um império, Emma disse
seu nome na recepção e pediu por um quarto, além de um
serviço de café completo.
— Emma…
— Amélia, não ouse. — A loira estreitou os olhos. — Eu
estou me divertindo muito hoje e preciso terminar o dia
transformando você.
— Certo, porque me sinto como a Mia Thermopolis em
Diário de Princesa? Você não vai alisar meu cabelo, não é?
— Por que eu cometeria esse crime?
Meia hora depois, Amélia descia o elevador do hotel
Torrisi se sentindo com doze anos, indo para o seu primeiro
encontro. Ela usava um vestido marrom avermelhado, com
mangas longas transparentes e folgadas nos braços, que ia até
um pouco depois das coxas. O decote, fechado até um pouco
antes da base do seu pescoço, era confortável e o tecido
quente o suficiente para a noite. Emma deixou seus cabelos
soltos, mas arrumados com fixador, e Sancia aplicou uma
maquiagem dourada e leve.
Quando Amélia se encarou no espelho, seu queixo caiu.
— Eu estou linda.
— A gente sabe. — Sancia disse, abraçando-a por trás
com um sorriso. — Agora vamos ver seu namorado se
apaixonar de novo por você.
Amélia riu, mas estaria mentindo se dissesse que não
queria ver a reação de Vincent.
Ele estava mexendo no celular quando ela chegou e
desviou os olhos na direção da brasileira, olhou o celular, e
rapidamente desviou de volta para Amélia.
— Menos de quarenta minutos, eu mereço um prêmio.
— Emma sorriu. — Agora vão, aproveitem a noite. Eu, Angela
e Sancia vamos sair para uma balada. Me liguem quando
chegarem!
Angela piscou para Amélia, como se dissesse “beije este
homem!” e saiu, rindo, acompanhando o passo animado da
loira.
— Oi. — Amélia sorriu, os dedos ansiosos.
— Oi. — Vincent colocou as mãos nos bolsos, com uma
expressão indecifrável.
Amélia engoliu em seco, o olhar dele a deixando
inquieta. O dourado na íris do piloto jamais esteve tão
acentuado e Vincent analisava o rosto da mulher, os cabelos e
o vestido, devagar e sem pressa nenhuma. O coração da
brasileira batia tanto, que ela teve medo de que ele pudesse
ouvir.
— Amélia Palhares, você está linda.
Ele disse e Amélia não soube como conseguiu ficar de
pé, porque o interior dela derreteu com a emoção de Vincent
em cada palavra, os olhos faiscando e um sorriso tão… Tão
doce nos lábios dele.
— O-obrigada.
Ela disse, sem conseguir desviar os olhos dos dele.
— Vamos, mia bella , ou perderemos a hora.
Quando Amélia segurou a mão dele, passando pelo
lobby do hotel, atraindo todos os olhares, ela sentiu flutuar.
Pensou, que, talvez um dia, tivesse coragem o bastante para
atravessar o mar de seu coração à nado e encontrar o que
estava escondido por trás do dourado de Vincent Di Castelli.
***
Vincent Di Castelli se considerava um ótimo ator.
Aprendeu a fingir sorrisos, falas e poses desde muito
cedo. Os Torrisi estavam sempre na mídia, lidar com ela era
uma parte importante da sua vida. E depois, quando a fama de
piloto cresceu, Vincent teve um treinamento especial para se
portar em entrevistas, premiações e coletivas.
Às vezes, ele sentia que abusava disso fora das
câmeras. A máscara que tinha criado era confortável, fácil de
manter perto das pessoas que se relacionava. Vincent nem
sequer se lembrava o que era se sentir relaxado perto de
alguém por quem tinha um interesse romântico.
No fundo, o piloto sabia que tudo se resumia a medo. A
impotência que o perseguia nos pesadelos, a sensação
angustiante de ser deixado por não ser o bastante, tornava
mais seguro se afastar antes, como Vincent vinha fazendo até
ali.
O problema era que o piloto falhou naquilo. Na noite em
Londres e quando reencontrou Amélia, ofereceu pedaços de si
mesmo que escondia, sem nem sequer notar. Depois de quase
beijá-la, Vincent percebeu que era hora de manter a calma, ou
os dois seriam tragados para um furacão feroz. Talvez fosse o
momento de encerrar o acordo maluco e colocar um ponto
final em tudo.
Mas descobriu que quando se tratava de Amélia, era um
completo idiota. Sua mente parecia esquecer de lembrá-lo de
que continuar seria uma má ideia.
Agora lá estava ele, sentado na frente dela, se sentindo
meio patético por não conseguir tirar os olhos dela. E, porra,
quando Amélia sorriu, ele jurou que viu faíscas brilhantes ao
redor.
— Então, quem vem hoje?
Vincent piscou e limpou a garganta.
— Dois amigos meus. Satake, o piloto principal da
Redemptio e Olivier, da primeira equipe que corri, a Razze, na
Fórmula 2. O Chase também devia vir, mas ninguém consegue
falar com ele desde ontem.
— Chase Astier?
— Esse mesmo.
— Não é o cara que você pegou? — Vincent assentiu e
Amélia riu. — Eu lia fanfics sobre vocês! Tinham umas muito
boas, sabia disso?
— Sabia. Chase e eu ficávamos enviando as histórias no
nosso grupo. A criatividade de autores de fanfic me surpreende
até hoje.
— Será que tem fanfics sobre a gente?
— Acho que sim. As pessoas estão meio obcecadas por
você.
Amélia desviou os olhos, os dedos brincando com o
guardanapo no colo.
— Elas estão obcecadas com o fato de que você está
namorando, isso sim. E eu nem acredito que tô mesmo em
uma fanfic. É um sonho realizado.
Vincent riu.
— Jesus, Palhares, você…
Você é a porra da pessoa mais incrível que eu já
conheci.
— Você sempre faz isso.
— O quê?
— Começa a dizer alguma coisa e depois para, sacode a
cabeça e nunca termina a frase — Amélia estreitou os olhos —
Algum dia você vai me contar todos esses pensamentos que
nunca completa?
O problema é justamente que eu quero te contar tudo.
— Você já sabe mais sobre mim do que muita gente
mesmo.
— O que, parando para pensar, é estranho, porque
tecnicamente te odeio.
— Tecnicamente?
Amélia deu de ombros e bebeu um pouco do vinho que
haviam pedido.
— Eu te odeio, você me acha insuportável, mas estamos
jantando juntos e somos namorados. Então, tecnicamente.
Vincent abriu a boca para falar, mas uma mão em seu
ombro o impediu.
— Então essa é a famosa Amélia Palhares?
Olivier disse, em inglês.
— Sou eu mesma. E você seria?
— Oliver Benson, a seu dispor — Olivier sorriu —
Desculpe o atraso, mas estamos aqui para livrar você de uma
noite sem graça ao lado desse cara.
Vincent revirou os olhos.
— São minha cavalaria de ouro então? — Amélia
perguntou, divertida.
— Algo assim. — Outra pessoa respondeu. — É um
prazer conhecer você, Amélia.
Satake sentou-se de frente para Olivier, abrindo os
botões do paletó cinza, um Armani impecável.
— O prazer é meu.
— Ainda dá tempo de desfazer a terrível impressão que
Vincent deixou sobre a gente? — Olivier disse, passando a mão
nos fios ruivos e recém-cortados.
— Na verdade, ele não me contou nada.
— O que? Vincent, como assim você não disse nada
sobre seus únicos amigos?
— Primeiro, por que eu diria? Segundo, eu tenho outros
amigos.
— Nossa, obrigada pela sua consideração. — Olivier
revirou os olhos.
— E depois você me pergunta porque alguns pilotos não
falam com você. — Satake disse, rindo baixinho — Mas tudo
bem, podemos expôr as piores histórias dele.
— Vocês vão corromper minha namorada. — Vincent
suspirou dramaticamente.
— Ah, eu estou ansiosa para ouvir tudo. — Amélia
sorriu, os olhos se apertando daquele jeito adorável que mexia
com Vincent. — Façam o seu melhor.
Vincent fez os pedidos alguns minutos depois. Eles
estavam em uma área privada do restaurante, então podiam
relaxar sem serem incomodados.
O piloto se encostou na cadeira, bebendo a segunda
garrafa de vinho da noite, com um sorriso suave nos lábios.
Amélia ria do dia em que Vincent ficou bêbado demais e
vomitou no vestido da Rihanna, em uma festa.
— Essa é minha história preferida. — Olivier declarou,
pegando a sua taça.
— Lógico, porque é que eu mais me fodo. — Vincent
disse.
— Eu prefiro a briga com Kob, depois do GP de Miami.
— Ah, Satake, obrigada por me lembrar dessa! — O
piloto inglês apontou para o japonês, rindo.
Vincent balançou a cabeça em negativa.
— Não foi uma briga.
— Vince, você deu um soco nele. — Satake disse. —
Eles só não foram punidos porque estavam fora da temporada,
mas a FIA teve que emitir uma nota e tudo o mais.
— Como eu nunca fiquei sabendo disso? — Amélia
encarou Vincent, as sobrancelhas arqueadas.
— Porque eu ia estragar minha reputação na sua frente,
de graça assim.
Até porque, você já me odeia. Tecnicamente.
— Foi no nosso ano de estreia. — Olivier disse. — Eu e
Vincent ainda éramos da mesma equipe, e todo mundo no grid
sabia que ele era insuportável, mas o talento não deixava
dúvidas que era bom. De cinco corridas, levou quatro pódios e
fez a Pole Position em toda quali.
— A imprensa começou a me chamar de “Jovem Kob
Vanich.” — Vincent continuou — Kob é o piloto que mais tem
vitórias da geração passada e todo mundo começou a me
comparar com ele. Eu estava feliz, é claro, mas arrogante e
disse em uma entrevista: “Não quero que me comparem ao
Kob, porque vou ser maior do que ele, um dia.”
— Você não fez isso!
Amélia o encarou, chocada.
— É, eu fiz.
— O desgraçado riu depois disso e saiu como se não
tivesse dito nada demais. — Satake prosseguiu. — Kob não
atacou Vince na entrevista, mas depois, pediu para conversar
com ele. A conversa acabou se transformando em uma gritaria
e Vince ficou puto por algum motivo.
— Kob me chamou de criança idiota. E ele estava certo,
na época eu era idiota. Fiquei bravo e dei um soco nele. No
outro dia, as fotos estavam em todos os lugares e me senti
péssimo.
— Você pediu desculpa?
— Pedi. Mas desde então tem essa rivalidade entre nós.
— Isso parece o arco de desenvolvimento de um anime.
— Amélia mencionou.

— Meu Deus, sim! — Olivier, viciado em anime, se


animou. — Eu acho a mesma coisa.
Alguns minutos depois, uma garçonete trouxe a comida
e eles comeram entre histórias, risadas, e discussões sobre a
fidelidade dos realities de Fórmula 1 com a corrida real.
Vincent percebeu que podia ficar ali pelo restante da
noite. Estava ao lado de dois amigos que confiava, uma mulher
que o enlouquecia e nunca se sentiu tão à vontade. Talvez
fosse o efeito do vinho, ou da privacidade que lhe era rara,
mas decidiu aproveitar antes que os problemas do lado de fora
lhe atingissem.
Só deixaram o restaurante depois da meia-noite, saindo
para o frio de Milão com casacos apertados. Olivier e Amélia
conversavam animadamente sobre uma série que os dois
gostavam, quando Satake parou ao lado de Vincent, com as
mãos nos bolsos.
— Você gosta dela.
— Nós namoramos, Satake.
— Eu não acreditei realmente nisso — Satake inclinou a
cabeça, os olhos pequenos analisando o italiano. — Você não
tirou os olhos dela e consigo entender o porquê.
— É?
Vincent se virou, com curiosidade.
— Ela é gentil, escutou nossas histórias a noite toda. Sei
que provoco dizendo que você deveria ser mais sociável, mas
dentro das pistas, está sempre se cobrando demais. É bom ter
um pouco de gentileza do seu lado. E eu confesso que estava
esperando uma pessoa diferente.
— Não acha que eu posso estragar tudo?
Vincent confessou e o amigo suspirou.
— O que seria estragar tudo? Você não é o tipo de
pessoa que faz algo ruim para alguém de propósito. E relações
precisam das duas partes, Vince. Eu sei que você nunca
namorou antes, mas já se envolveu com pessoas o bastante
para saber.
— Mesmo assim, Satake. Às vezes, eu acho que ela está
só esperando uma oportunidade de ir embora.
De novo.
— Então converse com ela, Vincent. Vocês jovens não
sabem o básico de uma relação com comunicação? Pelo amor
de Deus.
O piloto tailândes revirou os olhos.
— Você fala como se tivesse cinquenta anos.
— Sou seis anos mais velho que você, tenho direito de
reclamar da sua geração.
Vincent riu baixinho.
Olivier abraçou Amélia, em despedida. O inglês se
aproximou, com um sorriso no rosto.
— Sua namorada é maravilhosa.
— Eu sei, sou um cara de sorte.
Ele não escondeu o olhar nem o sorriso no rosto.
Vincent e Amélia caminharam em silêncio, de mãos
dadas, em direção ao carro do piloto. Ele tinha bebido pouco,
mas mesmo assim, pediu a um motorista para levá-los de volta
para casa. O combinado com Stefano era ir direto para Mancia,
já que a mulher trabalhava no dia seguinte.
— Tem certeza de que não quer ir para um hotel?
— Não, eu quero ir para casa.
Amélia tirou as botas dos pés, assim que entrou e soltou
um longo suspiro. Vincent sentou-se ao lado dela e acenou em
afirmativo para o motorista.
— Você gostou?
— Sim, foi incrível. Emma é parecida com você, sabia? E
seus amigos são ótimos.
— Vou ignorar seu insulto ao me comparar com Emma.
Amélia revirou os olhos, esticando os braços. Ela
encarou a janela, a paisagem de Milão passando com um
borrão de luzes e prédios.
Vincent encarou seus dedos, cobertos de anéis e pensou
por alguns segundos. Ele tinha centenas de discursos
preparados que quase disse, mas nenhum deles parecia certo.
Palavras sobre acabar de uma vez aquele relacionamento de
mentira, sobre serem amigos, sobre aquela noite de três anos
atrás, sobre a versão de quem eles eram agora.
Não encontrava a maneira certa de começar.
— Amélia. — Ele a chamou, mudando de italiano para
inglês. — Precisamos conversar.
Amélia encarou o motorista, mas depois se virou para
Vincent.
— Eu também acho. — O piloto estremeceu. — O que
aconteceu na sua casa, ou melhor, o que quase aconteceu…
— Me desculpa. — Ele a interrompeu. — Eu não devia
ter feito aquilo, ou tentado fazer. Estamos em uma fase de
teste para um relacionamento de mentira e eu tentei te beijar
por puro egoísmo. Não é justo, quando você deixou claro que
não queria contato físico além do necessário.
Amélia piscou.
— Ah… Sim, claro, obrigada. Eu… Eu ia dizer para
esquecermos isso, na verdade. Você está certo.
— Não se preocupe, não vou mais avançar seu espaço
pessoal. Até porque, você tecnicamente me odeia.
Vincent tentou sorrir, mas ele sentia seu coração
afundando como uma pedra até seu estômago.
— Pois é, Vincent, eu te odeio. — Amélia respondeu,
encostando a cabeça no banco do carro. — E você me acha
insuportável.
— Sim, Palhares, você é mesmo insuportável.
Tão insuportável que eu mal consigo me manter longe
de você.
Mas aquilo era o certo a se fazer, manter distância,
limites. E por mais que aquela fosse uma relação de mentira,
Vincent não queria colocar tudo a perder por fazer algo
estúpido, como beijar Amélia por impulso. Ele se esforçaria
para fazer tudo ficar bem, dentro do combinado. Daria certo.
E talvez isso fosse o bastante para que Amélia ficasse
mais um pouco ao lado dele.
— Vincent.
Ela o chamou.
— Oi.
— Obrigada pelo dia de hoje, foi divertido.

Vincent sorriu, encarando o sorriso dela, os olhos


sonolentos.

— Estou sempre disponível para garantir sua diversão,


mia bella.
Amélia ainda sorria quando adormeceu e Vincent
admirou o rosto bonito dela, coberto de sombras e tão pacífico.
Uma presença gentil, como Satake disse, em contraposição ao
caos de sua vida.
— Vou fazer isso dar certo, Amélia Palhares.
Ele sussurrou. E estava determinado a tornar aquelas
palavras realidade.
12.
Três anos atrás
Outubro, 21:36, Londres.
— Você vai me levar em uma exposição por que eu sou
estudante de arte?
Vincent desviou os olhos para a calçada.
— Não.
Amélia riu.
Ela e Vincent tinham saído do Arcade alguns minutos atrás e
o piloto indicou o caminho, uma exposição de arte, dois quarteirões
à frente. Andavam em um silêncio confortável e apesar da hora
avançada, cruzaram com várias pessoas, especialmente jovens. Era
sexta-feira à noite, no fim das contas, e todo mundo queria um
pouco de diversão da semana cansativa.
— Qual o tema?
— São artistas independentes. Minha família tem uma coisa
com arte, trabalham com isso, e eu gosto de ficar de olho em novos
artistas. Nunca se sabe o que pode encontrar.
— Eu concordo.
— Você já acabou sua faculdade?
— Ah, terminando na verdade. Eu quero tentar um mestrado.
— Sério?
— Meu sonho é ter o diploma de doutorado. Eu sei que não
vai ser fácil, mas é uma coisa que quero desde criança. Minha mãe
também estudava arte, mas nunca chegou até o diploma. Parte da
vontade é por ela, mas também, por mim.
Vincent assentiu.
— Isso é impressionante.
— Obrigada.
— Por que arte?
Vincent parou, encarando Amélia. Os cachos castanhos, uma
bagunça total, e teve vontade de arrumá-los, mas se controlou.
— Minha mãe tinha esse quadro em casa, que ganhou de
uma amiga. Eu achava a coisa mais bonita do mundo e quis
entender a história por trás. Infelizmente tivemos que vender o
quadro um tempo atrás, mas a ideia de saber mais sobre uma obra
de arte ficou dentro da minha cabeça. Melhor do que isso, a ideia de
contar a história do por trás.
— Então você queria saber o contexto.
— Tudo é arte, Vincent, e tudo conta uma história. Músicas
falam sobre relacionamentos fracassados, ou amores verdadeiros.
Livros passam mensagens poderosas por meio de palavras. E a
pintura? Cada pincelada em um quadro é feita da intenção de um
artista. Mas qual a intenção? Eu quero saber.
Vincent sorria e Amélia franziu a testa.
— Eu tô falando muito?
— Não, eu te ouviria por mais uma hora inteira.
Ela riu e continuou a caminhar.
— Só tem dois assuntos que consigo falar por horas sem me
cansar: Taylor Swift e arte.
A exposição estava organizada em uma rua larga, fechada
para passagem de carros. Os dois lados das calçadas se
transformaram em museus, as paredes de tijolos repletas de obras
dos artistas. Eles organizavam seus materiais em bancadas de
madeira, com inúmeros quadros e peças de artesanato.
No meio, mesas de madeira se destacam, junto com
vendedores de cachorro-quente, pipoca e sanduíches. No final da
rua, um cantor fazia um cover de Jake Bugg, um pouco desafinado,
mas pelo menos se esforçava.
Amélia sorriu para a cena, vendo crianças admirando as cores
de uma natureza morta e um casal carregando uma pintura intimista
de uma mulher chorando. A rua respirava arte, vida e energia,
vibrando no ar com intensidade. Era por aquele tipo de ambiente
que a estudante vivia e gostava, onde a arte fosse mais do que
apreciada, e sim celebrada.
— É lindo.
— Tudo bem, foi uma escolha óbvia de lugar? Sim, mas eu
queria ver o que você ia achar. — Vincent a acompanhou em direção
às barracas. — Se quiser comprar alguma coisa, fique à vontade.
Amélia não comprou, mas discutiu com Vincent sobre arte
moderna enquanto estudavam um quadro geométrico.
— Você tem especialização, por que não me disse?
— Meu lance é mais literatura.
— Vincent, você acabou de comparar a mesma técnica desse
quadro com um Picasso, eu não diria que você é leigo no assunto.
— Amélia, estou tentando ser humilde aqui e não revelar
meus talentos inteiros de uma vez.
A brasileira riu e balançou a cabeça.
— Realmente, Vincent, não tem mais humilde que você.
— Eu nem te contei que sei cozinhar, senão, seria muita
apelação.
Amélia cobriu as mãos com a boca, para esconder uma
gargalhada que lhe subiu à garganta.
Vincent Di Castelli era bom em fazê-la rir. Já tinha perdido a
conta de quantos sorrisos, risadas e gargalhadas eles tinham dado
juntos e Amélia se sentia infinitamente mais leve. Ela sabia que o
monstro chamado ansiedade ainda rondava seu corpo, mas queria
aproveitar aquele pequeno momento de diversão antes que tudo
acabasse.
Ou que ela precisasse ir embora. Droga.
O sorriso de Amélia morreu na mesma hora e ela se lembrou
que tinha um voo dali a menos de doze horas. Era para estar
dormindo, terminando de arrumar as malas e partindo para Roma,
onde sua prova para entrar no mestrado aconteceria.
Aquilo decidiria seu futuro inteiro, a chance que ela tanto
esperou, e Vincent ainda não sabia disso. Eles provavelmente nunca
mais se veriam depois de hoje e o piloto talvez jamais se lembrasse
dela, mas não era justo guardar a informação.
— Vincent.
Amélia suspirou e se virou para Vincent, pronta para falar,
mas o piloto ergueu um dedo.
— Eu adoro essa música.
Ela franziu a testa e virou-se para o cantor. Like Gold, uma
música que Amélia já se lembrava de ter ouvido antes, tocada em
um ritmo bonito.
Os olhos de Vincent brilharam, como o ouro, e ele
acompanhou a letra com os lábios. Amélia devolveu o olhar, todas as
palavras que ia dizer mortas em sua garganta.
— Eu estou com esse sentimento de que tudo é possível e
tentando entender o porquê. Mas acho que tem a ver com você,
Amélia. E acho que talvez você sente isso também.
— Sim, mas Vincent, eu preciso…
— Por favor, sem despedidas ainda.
— Mas…
— Amélia, eu quero muito beijar você.
O coração dobrou de tamanho no peito, batendo com força,
sufocando o ar dos seus pulmões. Ele ergueu a mão, devagar, tirou
o cabelo dela do ombro, os dedos passando rapidamente pelo
pescoço de Amélia, deixando um arrepio que nada tinha a ver com o
frio. Pelo contrário, sob o olhar dele, ela sentia que podia pegar
fogo.
Amélia se aproximou, quase tocando o peito de Vincent.
— Você disse três encontros, não disse? Então por que não
me leva para o próximo?
O piloto sorriu e assentiu.
— Então quer dizer que você vai ficar?
Ele segurou a mão dela, como se fosse um gesto natural e
Amélia tentou reprimir a sensação de conforto que cresceu dentro
dela.
— Sim, Vincent, eu vou.
13.
Fevereiro
Amélia coçou a testa com a caneta, querendo enfiar o
objeto no crânio.
Suas aulas de mestrado tinham retornado em grande
estilo, com exigências absurdas dos professores e uma lista de
livros gigantesca. Isso, com o desenvolvimento da tese, parecia
estar matando os neurônios dela aos poucos.
Amélia era uma das contempladas da bolsa MAECI, de
mestrado na área de artes, que cobriu os primeiros nove
meses. Por pura sorte, um dos trabalhos publicados na
faculdade chamou atenção de um professor, que a recomendou
para o programa de patrocínio da Universidade, e Amélia
passou na seleção junto com mais quinze alunos, Angela entre
eles.
Foi assim que foi parar em Mancia, trabalhando na
Galeria Torrisi, enquanto terminava o mestrado. Um que estava
prestes a desistir.
​— Chega, eu não aguento mais.
Ela disse, se levantando da cadeira e jogando as
canetas em cima da mesa.
— Ainda dá tempo de ser herdeira dos meus pais? —
Angela choramingou, esparramada na cama de Amélia,
abarrotada de papéis. — Não aguento mais.
— Pelo menos você tem herança e eu que não tenho?
Ela esticou a coluna, a cabeça latejando.
— Eu te sustento, Ames. Você pode ser minha esposa
troféu.
Amélia riu. Ela alongou as pernas, tentando melhorar a
circulação. Talvez não funcionasse, mas era uma mania que a
estudante tinha quando seus olhos se negavam a registrar uma
palavra dos materiais à sua frente.
— Eu preciso de um café.

— Que novidade.

— Então não trago para você.

Angela xingou e Amélia saiu do quarto em direção a


cozinha, enrolada em um cobertor.
O inverno italiano ainda não dava sinais de trégua. Os
dias continuavam cinzas, o estoque de casacos de Amélia
quase no final, e torcia todas as noites para o aquecedor não
quebrar.
O que ela não daria para estar em uma praia da sua
cidade natal, Coral, sob o sol escaldante de Fevereiro?
Exatamente como Sofia e Maria Cássia, que tinham acabado de
postar uma foto no paraíso azul dos sonhos da brasileira.
Sorrindo, aproveitou para verificar suas redes sociais enquanto
a água do café esquentava.
Era estranho ver a si mesma em páginas de fofoca,
fotos tiradas enquanto Amélia saía do campus da faculdade, à
noite, ou jantava no La Fratta com Angela e Sancia. Ela tinha
que ter o dobro do cuidado, agora, no que falava e curtia em
cada rede social, porque sua vida tinha se tornado mais pública
do que ela gostaria.
Stefano até mesmo citou a possibilidade de marcas
entrarem em contato com a estudante e Amélia riu com esse
pensamento absurdo. Era a última coisa que queria.
— Como está indo sua tese? — Amélia perguntou,
voltando para o quarto e entregando uma xícara para a amiga.
— Boa, só complexa demais. Por que eu decidi escolher
trabalhar com Roma Antiga? Não sei, talvez eu seja meio
masoquista.
— Mas não tem zilhões de livros sobre isso?
Angela bebeu um gole longo de café antes de
responder.
— Aí é que tá, tem zilhões de livros, mas poucos que
falam sobre o desenvolvimento da pintura a óleo. Então, tem
que filtrar, saber o que é confiável e essa porra toda. E você só
sabe dessas coisas se ler os livros, o que torna tudo pior!
— An, se você precisar de ajuda, eu acho que tenho um
material sobre isso.
— Eu amo você, me manda por e-mail. Falando nisso,
os Torrisi sabem que você estuda a pintora deles?
— Sabem, mas eu não posso contar tudo ou meus
professores vão me matar.
— Segredos acadêmicos e suas regras.
Angela murmurou. Enquanto Amélia enviava os arquivos
para a amiga, pegou seu celular e encarou o contato de
Vincent Di Castelli.
Tinham trocado poucas mensagens e os dedos dela
coçavam para enviar alguma coisa para o piloto. Mas Vincent
estava ocupado com os preparativos para a pré-temporada e
as palavras dele ainda ressoavam. Ele queria seguir o contrato,
como bons colegas, e era isso.
E não era isso o que eu queria? Certo. Perfeito. Incrível.
Amélia soltou um suspiro pesado, voltando para o
quarto, e tentando desviar os pensamentos do italiano.
— Acho que Sancia vai me pedir em namoro. — Angela
disse, organizando os papéis.
Amélia parou e virou-se para a melhor amiga.
— Isso é ótimo!
— Eu disse que acho, não tenho certeza disso.
— E por que?
— Ela acabou de me convidar para a casa dos pais e
disse que queria conversar uma coisa importante. Você não
termina com alguém na casa dos seus pais, não é? Então, eu
estou apostando esperançosamente no namoro.
— Ah, An. — Amélia abraçou Angela apertado. — Isso é
maravilhoso. Eu fico tão feliz por tudo ter dado certo.
— Eu também. — Angela sorriu e jogou as tranças
recém-pintadas de verde para trás. — Lésbicas podem
realmente ter um pouco de paz, eu mal consigo acreditar
nisso.
— Ao menos alguém está vencendo.
— As coisas ainda estão as mesmas com o Vincent?
— Ele mesmo disse os limites bem estabelecidos
naquele dia.
— E você não disse nada?!
Amélia pausou por um segundo e encarou Angela.
— Porque eu sou uma covarde que morre de medo de
que ele perceba que não sou muita coisa. E sim, eu sei,
autoestima e tal, terapia… Mas eu não consigo evitar sentir
que se eu abrir a boca, vou quebrar em um milhão de
pedacinhos. E isso não vai ser bonito de ver.
— Ah, Amélia. — Angela a abraçou, com carinho. —
Será que somos como a Taylor e a Selena? Só uma pode dar
certo no amor?
— Deus, tomara que não.
— Sempre tem a chance de um trisal acontecer.
Amélia riu, aconchegando-se nos braços de Angela.
No fim da tarde, elas decidiram assistir um filme
qualquer na cozinha e Stefano apareceu. Ele usava uma camisa
de mangas longas preta, gola rolê, com calças de alfaiataria e
um relógio prateado no pulso, claramente um Cartier.
— Para onde você vai?
Angela perguntou, sentada no sofá.
— Acabei de sair de uma reunião de publicidade, estou
exausto. — Ele suspirou. Os cabelos crespos estavam mais
volumosos e elegantes que antes, Amélia reparou.
— Brigadeiro?
Ela esticou a panela de doce para o social media, que
prontamente aceitou, sentando-se no balcão da cozinha.
— Ames, eu casaria tanto com você nesse momento…
— Não sei se Toni ficaria feliz com isso.
— Toni não tem ciúmes, pode relaxar. Animada para
Ímola?
— Não sei. Eu nunca assisti uma corrida antes na vida,
só às vezes quando passava na televisão. Mas nunca fui fã.
— Eu também não, mas é interessante quando você
começa a se acostumar com o ambiente em si. O paddock é
coisa maluca, animador de acompanhar.
Amélia pensou sobre o que sabia da Fórmula 1. Ela
precisou ir atrás das regras na internet e até mesmo leu na
Wikipédia e blogs especializados. Tinha algumas anotações
sobre a corrida em seu caderno, pelo menos os lugares, os
circuitos e as equipes.
O universo era interessante, mas não se via como uma
acompanhante de cada corrida. E olha só, que surpresa, agora
ela era a namorada de mentirinha de um piloto de Fórmula 1.
— Veremos. Isso se eu não fugir da cidade, depois de
enlouquecer fazendo minha tese.
— Me leve na mala. — Angela murmurou, lambendo
uma colher cheia de brigadeiro.
— Precisam de ajuda?
— Sim, que você escreva a tese pela gente.
Stefano riu.
— Infelizmente não posso, An, mas te ajudo com a
pesquisa.
— Eu vou fazer o jantar. — Amélia anunciou. — Olhe só
para nós, sabádo a noite, presos em casa, estudando e
trabalhando. Que adultos responsáveis.
— Que adultos miseráveis.
Angela rebateu.
Meia hora depois, os três estavam comendo uma
macarronada improvisada com vinho do La Fratta, sentados no
chão com carpete do apartamento de Amélia.
Stefano fazia o trabalho de filtragem dos conteúdos,
anotando nomes dos livros. Angela escrevia o desenvolvimento
do seu artigo, os dedos ágeis nas teclas. Amélia montava a
proposta de tese, separando as obras de Fúlvia D ‘Oro que
seriam analisadas e quais tinham a ver com seu objeto de
estudo.
Estavam tão concentrados, que os três tomaram um
susto quando o telefone de Amélia tocou. Ela pegou o aparelho
e correu para o quarto.
— Alô?
— Oi, Palhares, você tá ocupada?

— Na verdade, sim, tô estudando para o mestrado,


porque?
— Ah. — Uma pausa e som de sacolas mexendo. — Eu
trouxe uns doces para você. Stefano me mandou mensagem,
dizendo que estava aí.
— Doces para sua namorada de mentira, que atencioso.
— Sim, minha querida namorada insuportável. Vai me
deixar subir? Tô congelando aqui fora.
— Hum… Acho que vou te deixar aí fora por mais uns
minutos.
— Amélia!
Ela riu e autorizou a subida.
Quando ele entrou, lançou um olhar mortal na direção
dela, que riu ainda mais.
Vincent tinha trazido doces da cafeteria em que eles
foram e Angela soltou um gritinho quando viu a castagnaccio,
uma torta de castanhas e nozes. Decidiu que tudo bem fazer
uma pausa para apreciar aquele presente da natureza que
eram as sobremesas italianas.
— Achei que você tava viajando — Amélia disse.
— Estava, mas cheguei mais cedo que o previsto.
— Tudo certo?
— Pronto para ganhar o primeiro lugar.
Amélia revirou os olhos.
— O babaca arrogante está de volta.
— Só tô dizendo o óbvio.
— Agora eu vou torcer para você bater o carro.
— Ei, essa é a coisa mais cruel que você pode dizer a
um piloto de Fórmula 1.
Angela soltou uma risada baixa, a boca cheia de creme
da torta.
— Seria como uma resposta do universo para o seu jeito
marrento.
— Eu já disse, é parte do meu charme irresistível.
— Vincent, por que sempre tem que lembrar que te
odeio, hein?
Vincent estava prestes a dizer alguma coisa, quando
Stefano se levantou rapidamente. Todos os três se viraram
para ele, que olhava o telefone em choque.
— Stefano? — Vincent perguntou, preocupado.
O rosto dele assumiu uma expressão sombria e raivosa,
que Amélia raramente via e ela soube que alguma coisa muito
grave tinha acontecido. Seu coração pulou.
— Vazaram dados sobre o projeto novo da Razze,
Vincent. Motor, design e a tecnologia inteira que a equipe
desenvolveu para a temporada. Estão acusando a Redemptio.
***
Vincent era um especialista em escândalos de Fórmula
1.
Os que envolviam affairs eram os principais em sua lista,
além de brigas e provocações públicas com outros pilotos.
Como RP, Stefano tinha sofrido bastante naquele período,
dormindo muito pouco e quase matando Vincent quando surgia
um novo escândalo.
O piloto aprendeu muito sobre controle de danos com o
melhor amigo, sendo a principal lição: mantenha a calma e aja
com segurança.
Era por isso que caminhava pelo Autódromo Nacional de
Monza, no primeiro dia de céu azul do longo inverno europeu,
tranquilo. Um par de óculos escuros deslizavam pelo nariz do
piloto, reforçando a postura de "não tem nada acontecendo
por aqui."
A história da vez estampou os principais jornais
europeus e sites de esportes. A Redemptio foi acusada de
vazar informações da Razze, equipe de Olivier e Chase, para as
outras. E Vincent foi tratado como o playboy irresponsável que
cometeu um erro e fez tudo acontecer.
Ansel Bellini era o incentivador desse movimento,
colocando lenha na fogueira e afirmando que a Redemptio
ainda não sabia como aquele esporte funcionava. Como uma
das maiores figuras do meio, a imprensa dava atenção
exagerada para o velho, e Vincent precisou até fazer a porra de
um pronunciamento no twitter.
No dia que tudo aconteceu, Vincent ligou para Chase,
ainda na casa de Amélia, que parecia pronta para sair e matar
Ansel Bellini com as próprias mãos.
— Eu nem sei o que dizer, Chase, me desculpe.
— Por que diabos você está pedindo desculpa? Foi você
que vazou os arquivos?
— Não, mas essa situação toda é uma merda. Eu… Foi
mal, sei como as coisas estão complicadas.
Chase suspirou pesadamente.
— É uma droga, mas é meio na cara que foi armação do
Bellini. Estamos tentando lidar com tudo da melhor forma
possível.
— Se precisar de alguma coisa, me avise.
— Obrigado, Vince. E boa sorte para você com as
acusações.
No final, era óbvio que as acusações eram infundadas,
mas o estrago já estava feito. Mesmo com notas de retratação,
as pessoas continuavam falando sobre a confusão inteira e
Vincent não sabia muito bem o que fazer. A impotência diante
disso era um sussurro gritante em seu ouvido.
Stefano e a equipe de marketing da Redemptio
sugeriram focar no começo da pré-temporada e ignorar os
comentários. Com as corridas, tudo seria esquecido. Menos na
cabeça do piloto, onde todos os acontecimentos se
amplificaram.
Ele deu uma risadinha, suor se acumulando nas palmas
das mãos. Que ótimo, Vincent, mais uma coisa para uma lista
inteira de fracassos.
— Deus, que lugar incrível.
A voz de Emma o trouxe para a realidade. A Torrisi
pediu para assistir o lançamento do carro da Redemptio e
Vincent, é claro, concordou. Ele adorou a animação da prima
com engenharia automotiva e estava orgulhoso pelo progresso
que apresentava em cada aula.
— Gostou? Você pode trabalhar em um desses no
futuro.
— Depende, vou ter que usar aquele uniforme sem
graça da Redemptio?
— Nosso uniforme não é sem graça.
— Se fosse um azul mais suave…
— Se vai falar mal da minha equipe, melhor dar meia
volta, Emma.
A loira riu, os cabelos presos em um rabo de cavalo, os
olhos azuis absorvendo todos os detalhes do paddock.
— O que vocês vão fazer hoje?
— Arthur quer fazer um evento grande para o
lançamento do novo carro, para abafar os rumores. Ele
convidou os meninos e meninas que competem pela Fórmula 2
para participarem de um vídeo contando como chegaram no
esporte e fazer uma surpresa.
— Que legal. Sua equipe é boa com marketing e
agradeço a inclusão das mulheres.
Vincent sorriu.
— Arthur gosta de apoiar a maior quantidade de
categorias de base possíveis. Eu vim de uma delas, Satake
também… É bom sempre ficar atento.
— Você falando bem de mim, que milagre é esse? — A
voz de Arthur atravessou o paddock até Vincent.
— Não fique se achando, Emma precisa ter uma boa
impressão da Redemptio.
Arthur os abraçou. Os cabelos do homem estavam mais
curtos e ele parecia cansado, com olheiras fundas. Muito
provavelmente devido aos últimos acontecimentos.
— Emma, se você quiser entender melhor como os
carros funcionam, os engenheiros da Redemptio estão bem ali.
Você tem até as gravações com a Fórmula 2 acabarem, depois
vamos fazer a demonstração.
— Obrigada!
Emma acenou e foi se divertir. Arthur se aproximou de
Vincent, de braços cruzados.
— Como está, Vince?
— Bem. Só cansado.
— Amélia fez um post enorme defendendo você na
internet. Foi você que pediu?
— Não foi... Ela fez assim que eu recebi a notícia das
informações vazadas.
Mas Vincent não escondeu o sorriso ao lembrar dos
dedos rápidos de Amélia no teclado, vermelha de raiva,
xingando Ansel Bellini por quase uma hora. O post dela no
Instagram estava escrito em português, inglês, espanhol,
italiano e francês.
— Você sabe falar todas essas línguas?
Vincent perguntou, impressionado.
— Menos o francês. Eu coloquei no tradutor, mas queria
que aquelas jornalistas francesas parassem de te chamar de
traidor. Só eu posso falar mal de você, Vince.
O piloto tentou não se deixar levar por aquele gesto,
mas lá estava ele, com o coração viajando pelo céu, flutuando
como um balão, leve e encantado. Deus, ele não conseguia
mesmo se manter longe dela.
Voou para o Brasil no dia seguinte, seguido da imprensa
inteira que exigia uma entrevista exclusiva. Arthur lidou com a
situação calmamente, abrindo uma investigação interna com
todos os funcionários da Redemptio, mesmo que ele não
acreditasse que alguém de dentro faria isso.
No fim das contas, nada tinha sido encontrado, e ele
organizou uma mega coletiva onde desmentiu todas as
alegações.
— Somos uma equipe jovem, é verdade, mas a
Redemptio se preocupa com a Fórmula 1 acima de tudo. Nossa
missão é ajudar o esporte a crescer, respeitando todos os
pilotos, funcionários, equipes e público. Se alguém tiver
curiosidade de saber como tudo funciona aqui dentro, se sinta
convidado para nos conhecer. É isso que podemos oferecer.
Vincent percebeu que era por isso que admirava o
diretor executivo. Ele não se deixava abalar por uma crise, por
mais pesada que ela fosse. O piloto desejou ter metade
daquela tenacidade.
— Arthur, você tem certeza de que isso é o bastante?
— É, Vince. Escuta, eu já passei por coisas bem piores
dentro do automobilismo do que uma crise de vazamento de
informações. No meu tempo…
— Lá vamos nós.
— Calado. No meu tempo, roubaram a ideia dos carros
da Dalton e replicaram em outro. Não deu em nada, a Dalton
não conseguiu provar que a patente era deles, mas o clima do
grid ficou péssimo.
— Caralho.
Vincent arqueou as sobrancelhas.
— Vamos contornar essa situação, eu prometo. Agora
vai se trocar, vamos impressionar os garotos.
Vincent se concentrou em ser o mais simpático possível.
A equipe da Redemptio gravou Satake e ele apostando uma
corrida de dezoito voltas no autódromo, testando as
funcionalidades do novo carro.
Quando saiu, os cabelos castanhos bagunçados, deu
seu melhor sorriso, colocou o boné preto, e conversou com o
grupo sobre a corrida. Eram doze, ao todo, e tinham tanto
brilho nos olhos, dúvidas e animação, que foi fácil se deixar
contagiar.
Satake explicou um pouco sobre a rotina de piloto,
assinou alguns bonés e camisas, para a alegria deles. Tiraram
uma foto com todo mundo e o câmera da Redemptio fez mais
alguns takes com Vincent e o carro, fazendo o piloto regravar
algumas cenas.
— São desses momentos da fama que eu mais gosto. —
Satake disse, quando eles finalmente acabaram.
— São os melhores. — Vincent concordou, arrumando o
cabelo com os dedos.
— Você tá bem, Vince? Com tudo sobre a mídia
pegando no seu pé.
— Eles sempre fizeram isso, então estou tentando não
me importar. Mas é exaustivo.
Satake assentiu, os cabelos pretos espetados em várias
direções.
— Liga se precisar de alguma coisa.
— Me oferecendo conselhos, Satake? Não faz o seu
estilo.
O piloto japonês revirou os olhos.
— Retiro o que eu disse. Você não consegue ser decente
por um momento? Não sei como Amélia te aguenta.
Nem eu.
— Obrigada pela oferta, vou me lembrar disso.
Vincent voltou para Imola à tarde. Emma tinha aula e
ele estava desesperado para ir para casa, finalmente
descansar.
A mansão dos Torrisi estava silenciosa. Era final de
fevereiro, a maioria dos tios e primos de Vincent estavam
envolvidos em seus trabalhos e Teodora foi até Mancia. Ele
aproveitou para tomar um longo banho, desejando que a água
quente lavasse seus pensamentos confusos.
Quando adolescente, o italiano era um garoto irritado
com o mundo inteiro, para disfarçar o fato de que a raiva que
sentia era de si mesmo. Agora, perto dos 26 anos, se
perguntava como tinha desperdiçado tanto tempo ficando
puto, quando tudo o que havia dentro dele era culpa.
E silêncio. Um silêncio que o assustava.
Ele vestiu um conjunto de moletom limpo e abriu um
sorriso ao encontrar Anna Di Castelli sentada em uma das
poltronas do seu quarto, digitando no celular, uma xícara na
mesinha ao seu lado.
— Oi, querido.
Ela disse, com um sorriso doce. Vincent sentiu o peito
apertar na mesma hora, todos os sentimentos dos últimos dia
o acertando de uma só vez.
— Oi, mãe.
Anna se levantou, atravessou o cômodo e deu um
abraço no filho. Mesmo que ela fosse menor do que ele, o
piloto se sentiu como uma criança de novo, encolhido nos
braços calorosos e gentis.
Ela fez com que ele se sentasse na cama, lhe deu uma
xícara de chocolate quente e segurou a mão dele, em uma
massagem suave.
— Vince, querido, o que aconteceu?
Ele contou sobre como se sentia horrível em relação a
situação da Redemptio, afogado em culpa que nem era dele,
mas que sentia mesmo assim. O medo de estragar tudo, a
impotência inquietante, a possibilidade de acabar machucando
Amélia.
Anna ouviu cada uma de suas lamentações, até quando
se transformaram em lágrimas. Quando Vincent acabou, a
cabeça doendo, ele bebeu metade do conteúdo da xícara,
antes que ela falasse.
— Vincent, meu amor. Está carregando tanto peso que
não é seu e tentando controlar coisas que não pode. São só
suas ações e como reage ao mundo que devem importar.
— Mas, mãe…
— E, amor, você vai machucar outras pessoas ao longo
da sua vida, até mesmo as que mais ama. Sem querer, ou até
mesmo querendo. Quando a gente ama alguém e se permite
ser amado de volta, corre o risco de quebrar o coração.
— Isso é meio cruel, não acha?
— Não — Anna sorriu. — O amor é um risco que vale a
pena.
Vincent encarou os olhos verdes de Anna, cheios de um
calor acolhedor.
— E o que eu faço quando isso acontecer? Quando eu
machucar outra pessoa.
— Você pede desculpas, tenta reparar o melhor que
pode e segue em frente. Mas o que vai adiantar ficar
remoendo cada erro do seu passado até hoje? Só vai trazer
dor, meu amor.
Vincent suspirou, fechou os olhos e pensou em Amélia,
em Kob e até em Ansel. Lembrou de tantos momentos onde se
sentiu fraco, onde errou e depois não soube o que fazer com
aquilo.
Liberou as memórias dolorosas como se fossem
pássaros presos em uma gaiola.
— Obrigada, mãe.
— Vai ficar tudo bem.
Anna acariciou seus cabelos, repetindo com a voz
calma. Enquanto era levado para a inconsciência do sono,
Vincent decidiu acreditar naquilo.
14.
Março
As manhãs de folga para Amélia tinham um propósito
claro e justo: dormir até tarde.
Depois de um sábado intenso, organizando planilhas,
repondo estoques e conduzindo as visitas na Galeria Torrisi, ela
estava disposta a aproveitar o restinho do fim de semana
dormindo na sua cama confortável. Talvez à tarde fizesse um
passeio perto do canal, vendo o sol desaparecer entre os
prédios de pedra clara, e em seguida tomasse um bom vinho
no restaurante de Pia.
Mas quando seu celular tocou às 06:00 da manhã,
assustando-a, Amélia se enrolou nos lençóis e caiu com tudo
no chão.
— Merda.
Murmurou, piscando rapidamente, o quadril doendo pelo
impacto. Com um suspiro, desligou o som estridente e correu
para o banheiro. Debaixo da água, Amélia xingou aquela
situação inteira, o maldito Di Castelli, o fotógrafo que a tinha
colocado ali e a si mesma, por aceitar se envolver naquela
louca.
O que diabos ela tinha na cabeça para ter topado
aquilo? Agora, além da paz de espírito, perderia horas
preciosas de sono que eram essenciais para sobreviver a
semana inteira.
Quando um carro preto, de aparência muito cara, parou
em frente ao prédio dela, Amélia conseguiu abrandar um
pouco o mau-humor ao ver Stefano no volante. Os lábios se
curvaram nos cantos.
— O que aconteceu com o dinheiro de Vincent? Não
consegue pagar um motorista e tem que mandar o melhor
amigo trabalhar?
— Muito cedo para ser engraçadinha, Ames — Stefano
riu — Vamos, entra logo, trouxe café da manhã.
— Desse jeito, me faz pensar que eu devia ter aceitado
aquele acordo com você.
Amélia suspirou de alívio quando entrou e pegou um
copo térmico de café com leite, o calor aquecendo seus dedos
frios. Embora Mancia estivesse um pouco mais quente, era
cedo demais para que o sol fizesse seu trabalho e uma brisa
gelada corria pelas ruas.
Stefano saiu da cidade minutos depois, pegando a via
expressa até Ímola.
— Isso aqui parece que foi feito no Brasil. — Amélia
comentou, depois de um longo gole. — Não parece aquela
água com café que vendem por aqui.

— Porque eu fiz. Vincent disse que talvez isso ajudaria a


acalmar seu mau-humor.
— Quando você aprendeu a fazer café assim?
— Foi o único decente que eu já tomei nos GP 's. Tive
que aprender a fazer.
— Obrigada.
Amélia sorriu, bebendo metade de uma vez. Ela devorou
o bolinho que Stefano trouxe e o recheio de caramelo fez
maravilhas no seu corpo. Relaxada no banco de couro macio,
encarou a paisagem dos campos italianos, as folhas verdes
flutuando no ar da manhã, entradas de terra para as fazendas
assemelhando-se a veias que conectavam tudo.
Era bonito. Não, era lindo. E exatamente como Vincent
tinha lhe garantido na noite passada, quando acertavam os
detalhes.
— Vou pedir a um motorista autorizado para te buscar
às 07:00. — Ele disse — É antes da corrida, dá tempo de te
apresentar para algumas pessoas e os fofoqueiros fazerem o
trabalho deles. Vai gostar da paisagem, é de tirar o fôlego.
Amélia suspirou em desgosto, odiava acordar cedo.
— E não dava para ter me mandando uma mensagem
ao invés de fazer uma chamada de vídeo para eu te ver
escovando os dentes?
Vincent riu, com a boca coberta de pasta. Ele ligou há
dez minutos e Amélia quase pensou em recusar, mas acabou
atendendo. A primeira coisa que viu foi o piloto com um
conjunto de moletom cinza, o rosto coberto de sabonete facial
e mal teve tempo de perguntar o que queria, quando Vincent
desatou a falar da corrida beneficente.
— Não, porque aí eu perderia de ver a sua cara irritada.
Essa mesma que você está fazendo.
Amélia revirou os olhos e lutou contra um sorriso.
— O que você vai vestir? Preciso levar roupa extra?
— Sim. Pode ir com alguma coisa mais confortável, mas
leve uma roupa para jantar. Vamos sair com as equipes depois
que tudo acabar.
— Vai usar um dos seus ternos para correr?
— Interessada em combinar roupas?
— Não, mas vou ficar muito puta se na minha primeira
aparição como sua namorada eu estiver mal vestida e feia.
Vincent riu de novo.
— Você nunca está feia, mia bella.
Amélia desviou os olhos.
— Espero que você diga isso quando eu aparecer com
legging e top de academia.
— As fotos vão ficar ótimas, nesse caso. Estou ansioso
para nossa primeira aparição pública como casal.
— Sobre toda a história dos vazamentos, como tudo
acabou?
Amélia perguntou, com cautela. Eles não tinham se
encontrado desde aquele dia e fazia um tempo desde que a
bomba na imprensa estourou. Vincent estava ocupado com os
preparativos da nova temporada de Fórmula 1 e Emma foi a
responsável por explicar como a Redemptio estava lidando com
aquilo tudo.
— Com o foco na nova temporada, ninguém teve tempo
de falar sobre isso. Stefano espera que depois do evento, nós
dois sejamos o novo assunto preferido da mídia.
— Somos a distração, então?
Ele sorriu.
— Por isso vamos fazer um show e tanto amanhã.
Precisa de alguma coisa?
— Tenho o que eu preciso aqui.
— Tudo bem. — Vincent se jogou na cama e a câmera
focou o rosto dele inteiro. A pele brilhava pelo hidratante, os
lábios exibiam um sorriso tranquilo e os cachos castanhos
estavam bagunçados.
Amélia se perguntou se acordar ao lado dele era essa
visão que teria do piloto, mas decidiu afastar o pensamento da
cabeça. Não era bom, em uma relação contratual, sequer
cogitar dormir com a outra parte. Especialmente uma que você
não suporta.
— Só consiga um café forte para mim pela manhã e
consigo sobreviver o restante do dia ao seu lado.
— Também estou animado para te ver amanhã. Boa
noite, Amélia.
— Boa noite, Vincent.
Ela jamais admitiria em voz alta, mas o “Boa noite,
Amélia” ficou em sua cabeça por mais tempo do que deveria.
O sol já brilhava alto em Ímola quando chegaram.
Stefano seguiu por um acesso exclusivo e parou o carro no
estacionamento. Apesar da privacidade, Amélia viu que teriam
que passar por um corredor com jornalistas e fotógrafos e a
comida em seu estômago se agitou.
— Eu vou conversar com os seguranças — Stefano disse
— Volto para te pegar em alguns minutos, certo?
— Certo.
Sozinha, ela analisou a roupa. Tinha escolhido um top
preto de alças finas, calças jeans estilo mom, mais
confortáveis, botas de cano curto e um lenço estampado em
amarelo. Simples, confortável, mas com um toque de estilo.
Tentou não pensar muito nas dobrinhas da sua barriga
aparente, mesmo que a questão a incomodasse um pouco,
diante de tantas câmeras viradas em sua direção. São só fotos,
está tudo bem, nós não fazemos mais isso, lembra? Ela disse a
si mesma, respirando fundo.
Olhou para o espelho no retrovisor e debateu
internamente se deveria prender o cabelo, ou deixá-lo solto.
— Pronta, Ames?
Stefano abriu a porta do passageiro.
— Não.
— Você quer mais alguns minutos?
Ela mordeu a bochecha internamente.
— Como eu… Como eu estou?
— Linda. — Stefano se abaixou, seus olhos castanhos
brilhando. — Deixe seu cabelo solto.
Amélia saiu, esticou as pernas e seguiu ao lado de
Stefano em direção ao corredor da provação. Mas nem deu
dois passos, quando um carro que ela conhecia muito bem
parou há alguns metros dali.

Vincent desceu da sua Maserati preta, e olhou


diretamente para ela. Ele usava uma camisa branca, com os
três primeiros botões abertos, as mangas arregaçadas até os
cotovelos, exibindo todas as tatuagens de seus braços. Uma
calça preta de tecido caro, junto com sapatos da mesma cor
completam o visual.
A roupa, com os cabelos bagunçados, mas ainda sim
charmosos, o sorriso presunçoso e os olhos dourados
brilhando, deixaram Amélia com vontade de socar a cara de
Vincent. Como ele se atrevia a ser bonito e gostoso, e ainda
por cima, olhar para ela como se Amélia fosse o centro dos
pensamentos dele?
Deus, como ela o odiava.
Cruzou os braços, em uma falha tentativa de esconder
sua afetação. Amélia engoliu um bolo na garganta quando
Vincent se aproximou, devagar, com as mãos nos bolsos.
— Está atrasado, Di Castelli.
— Bom dia para você também.
— Demorou demais se arrumando?
— Não, só queria ver se você ia enfrentar todos aqueles
fotógrafos antes do seu querido namorado chegar.
Amélia desviou os olhos dele, porque toda a pose de
bad boy era demais para aguentar antes das oito da manhã.
Ela precisava de outro café e uma dose cavalar de açúcar.
— Um bom namorado jamais deixa sua querida
namorada sozinha em uma hora dessas.

— Ainda bem que cheguei a tempo, não é?


Vincent sorriu e se inclinou na direção dela. Antes que
Amélia pudesse registrar o que ele estava fazendo, o piloto
capturou sua mão direita e, encarando-a, beijou o dorso com
delicadeza.

O gesto a pegou totalmente de surpresa e ela arregalou


os olhos. Atrás dela, flashes e gritos empolgados dos
jornalistas aumentaram.

— Vamos lá, Palhares. Eles estão querendo um show,


vamos dar isso a eles, hum?
Levou menos de um segundo para Amélia se recuperar.
O contrato prestes a ser assinado, o namoro falso, a mídia.
Claro, tudo precisava ser encenado.
Ela limpou a garganta, deixou que Vincent entrelaçasse
seus dedos, sorriu e foi enfrentar sua primeira tarefa como
namorada de mentira do piloto de Fórmula 1 mais famoso da
atualidade.

***
Vincent Di Castelli estava muito acostumado a ser o
centro das atenções.
Além da fama como piloto, havia a família e as colunas
de arte e literatura que eles sempre estampavam. Ele crescera
com câmeras apontadas para o rosto, sendo cuidadoso com
tudo o que fazia e, admitia, gostando da fama. E não por
motivos inteiramente altruístas.

Lógico que o italiano era a pessoa mais feliz do mundo


por poder ajudar causas LGBTQI+, projetos de alfabetização
de crianças, bolsas de faculdade e cursos para estudantes mais
carentes. Era um legado dos Torrisi e, acima de tudo, dava a
chance de usar seu espaço em um esporte majoritariamente
branco, conservador e rico, para promover progresso.

Mas estar nas frentes das câmeras era algo que ele
gostava. Gostava dos eventos, jantares, das roupas e da
atenção da mídia. Até mesmo das entrevistas, que
costumavam ser a pior parte, se tornavam mais divertidas
quando você levava tudo com leveza e descontração.

Só que naquele dia Vincent não era o alvo dos olhares e


isso pouco o incomodava. Porque Amélia Palhares dominou o
grid no momento em que entrou de mãos dadas com ele.
— Ela é linda. — Chase disse, se aproximando dele. — É
a garota das fotos?
— O nome dela é Amélia.

— A mesma que saiu com Satake e Olivier? Eles me


encheram o saco a semana toda porque não fui.
— Onde você estava, aliás?

— Resolvendo coisas que não lhe interessam. — O piloto


deu de ombros. — E então, namorada?
— Claro.

O rosto do francês se contorceu em uma risada.

— Preciso te relembrar do que você me disse? “Nunca


vou namorar, espere e verá.”

Até porque esse é um namoro falso.


— As pessoas mudam.

Chase abaixou os óculos de sol e encarou Amélia, que


conversava alegremente com a esposa de outro piloto.
— Gostei dela.

— Você e todo mundo. — Vincent sorriu. — É meio


impossível não gostar dela.

E Vincent tinha certeza disso. Amélia parecia ter feito


amizade com todos os funcionários da Redemptio, exibindo um
sorriso gentil. Ela era mais do que educada, estava interessada
em ouvir o que os outros diziam, fazendo perguntas e
lembrando de nomes.
Era desconcertante como, em menos de uma hora, toda
sua equipe parecia ter se rendido aos pés dela. A pior parte era
que Vincent sabia que pertencia a esse grupo.
— Vincent, você precisa se trocar. — Um dos assistentes
da Redemptio disse. — Temos só dez minutos até a largada.

Ele assentiu, se despediu de Chase com um aceno, e


vestiu algo mais confortável, com o uniforme por cima. Não
dispensou o ritual de concentração, embora essa fosse só uma
corrida beneficente, queria ganhar.

Depois do alongamento e da oração, Vincent saiu,


encontrando Amélia na porta da sua sala, segurando um copo
de café.

— Café de novo? Achei que você tinha tomado quando


chegamos.

— Você bebe energético, eu bebo café. Cada um busca


sua forma de conseguir uma arritmia cardíaca antes dos 30.

O piloto riu, bagunçando os cabelos.


— O que veio fazer aqui?

— As pessoas estão pensando que você me trouxe para


ter sorte. Achei engraçado.
— Por quê?

— Ganhou o título sem mim, na temporada passada, por


que precisaria de mim para uma corrida que vale só o orgulho
de vocês?

— Se eu me lembro bem, nos conhecemos antes que eu


ganhasse o título. Quem sabe aquele seu beijo não foi o
responsável por me dar essa sorte?

Vincent sabia que estava cruzando uma linha perigosa,


mas não conseguiu evitar. Não quando Amélia estava tão
bonita e o perfume dela, doce e amadeirado, as malditas notas
de ameixas, o estava deixando maluco.

A brasileira se aproximou, os braços ao lado do corpo,


coluna ereta. Fios castanhos caíram em seus olhos e Vincent
lutou contra o impulso de tirá-los da frente do rosto dela.

— Boa sorte, Vincent.


Ela beijou o canto do seu lábio com uma delicadeza de
tirar o fôlego. O sangue dele se aqueceu e Vincent piscou,
surpreso.
— Mas o que…

— As câmeras estão olhando para a gente. — Ela disse,


as bochechas vermelhas.
Claro, a imprensa, o namoro falso, o show que eles
deveriam dar ao público. Só que naquele momento, os olhos
de Amélia brilhavam como estrelas e ela estava tão agitada,
que Vincent quase jurou que nada foi uma encenação. Preferiu
acreditar que ela era uma ótima atriz, para evitar ainda mais
problemas internos.

— Vejo você já.


Foi tudo o que ele disse, antes de se afastar e ir em
direção ao seu carro.

Como esperado, Vincent terminou em primeiro, com


Satake em segundo e um piloto da Razzo em terceiro. Ele
pousou para as câmeras com paciência, coberto de
champanhe, o cabelo grudado na nuca e um sorriso gigante no
rosto. Abraçou Satake, que reclamou na mesma hora, mas
acabou rindo com o amigo.

— Não vai dar um beijo na sua namorada?


Arthur o provocou, parado do lado de fora do paddock.

— Onde ela está?

O chefe da Redemptio apontou com o queixo para a


Amélia, perdida entre a pequena multidão que gritava o nome
dele. Um sorriso gigante estampava o rosto dela e ela o
surpreendeu ao se juntar ao pequeno coro que dizia “O
campeão de novo, e de novo”.

Carregando o pequeno troféu simbólico em mãos,


Vincent foi até ela.
— Estava torcendo por mim, Palhares?

Amélia ergueu as sobrancelhas em uma postura de


desafio.
— Talvez. Eu diria que já que sou seu mais novo
amuleto da sorte, o mínimo que eu podia fazer era torcer.
Vincent se aproximou e beijou sua testa com delicadeza,
não querendo sujar a mulher com o champanhe. Ele podia
ouvir os gritos alucinados ao seu redor, o brilho dos flashes e
de repente, tudo o que queria era sair dali e levar Amélia para
um lugar mais calmo.

— Eu vou tomar um banho. Não sai de perto do Stefano


nem do Arthur, tá certo?

Amélia assentiu e Vincent foi cumprir sua agenda padrão


depois das corridas. Conversou com alguns fãs, deu
autógrafos, encheu linguiça com empresários famosos e
cumprimentou os patrocinadores. E por último, uma rápida
entrevista com a imprensa que cobria o evento.
— Vincent, como você está?

— Muito bem.

Ele sorriu para a repórter.

— Parabéns pela corrida! Qual a importância que você


enxerga da participação dos pilotos em eventos como esse?

— Queremos mostrar que a Fórmula 1 é maior do que


os autódromos, mesmo que eu tenha acabado de ganhar uma
corrida agora mesmo. — Os jornalistas riram — Apoiar causas
sociais e usar nossas vozes para atingir lugares que,
normalmente, as pessoas não enxergam. Eu espero que todos
que vieram hoje possam fazer a sua parte para mudar a vida
de tantos jovens LBTQIA+ que passam por dificuldades.

— E você chegou acompanhado, pela primeira vez, em


uma corrida, mesmo uma não oficial. Por acaso essa moça não
é a moça mistério das fotos?

Vincent podia sentir a ansiedade de todos eles e sorriu.


— Será?

Deixando a curiosidade no ar, seguiu em direção a sua


sala, sabendo que aquilo seria tido como uma declaração
oficial, mesmo que ele não tivesse dito nada. Essa era a graça
de mexer com a imagem pública, brincar de plantar
sementinhas de dúvidas e deixar que elas fizessem seu
trabalho.
Mais tarde, ele se juntou aos outros que já esperavam
no local onde o evento pós-corrida acontecia. As roupas
esportivas foram trocadas por ternos luxuosos, camisas de
seda e peças que custavam alguns milhares de dólares. O
próprio Vincent usava um terno de corte moderno, Prada, e por
baixo, uma camisa branca aberta, os anéis dourados brilhando
nos dedos.

Uma música suave tocava entre as tendas brancas


estendidas, que abrigavam enormes mesas de jantar
quadradas. Ele viu áreas de descanso mais privadas espalhadas
sob o céu luminoso da Itália, o vento agitando as lanternas
amarelas que traziam um toque de aconchego.

— Não consigo acreditar que você foi fominha e quase


bateu no meu carro, Vince. Por uma corrida beneficente!
Lorenzo, um piloto que o acompanhava, reclamou.

— Mal foi um toque no seu carro.


— Eu quase fui para fora da pista.

— Não foi e está bem porque eu sei como fazer


ultrapassagens limpas e seguras.
Vincent pegou uma taça de vinho de um dos garçons
que passava. Para o seu azar, seco.

— Seu estilo de pilotar é maluco, Di Castelli.


— Ainda enchendo o saco, Lorenzo? — Olivier passou
um braço no ombro de cada um deles. — Nem mesmo a festa
você aproveita, vai ficar remoendo a derrota?

— Só estou dizendo que Vincent precisa se controlar na


hora das curvas.
Lorenzo suspirou.

— Você deveria dizer isso para o Kob e não para ele. —


Oliver abaixou a voz. — Ouvi dizer que ele não aceitou as
mudanças no carro que a Dalton está tentando fazer.
Os três encararam discretamente o piloto tailandês, que
bebia um whisky ao lado da sua equipe.

— Vai ser uma temporada e tanto, pelo visto. — Vincent


murmurou. — Agora, se me dão licença, preciso procurar pela
minha namorada.

— Meu Deus, Vincent Di Castelli procurando pela


namorada. — Oliver suspirou dramaticamente. — Nunca achei
que estaria vivo para ver isso.

— Oliver, cala a boca.


Mas Vincent ainda ria das provocações do amigo,
quando seus olhos se depararam com a mesa da Redemptio e
todo seu fôlego foi roubado por Amélia Palhares. Em um
vestido preto, alças finíssimas, decote baixo, justo até a
metade das suas coxas e solto no restante do comprimento. O
tecido parecia transparente, quase translúcido, mas não era
revelador e devia contar com algum forro por baixo.
Os cabelos estavam soltos e lisos, um batom vermelho
brilhava em seus lábios, curvados em um sorriso encantador.
Ele viu o pescoço gracioso dela, exposto, as clavículas que
despontavam apenas um pouco, os seios empurrados para
cima e ela parecia tão… Ela parecia uma deusa. A porra de
uma deusa.

— Finalmente, Vince. — Stefano disse. — Eu achei que


você tinha voltado para o hotel.
— Levei tempo demais para me arrumar, só isso. — Ele
respondeu, sem tirar os olhos dela.

Como era possível que Amélia conseguisse ficar ainda


mais bonita a cada segundo? E isso era péssimo, porque
atrapalhava todas as regras que Vincent tinha criado para si,
depois de Milão: não beijar Amélia Palhares fora das câmeras e
terminar aquele relacionamento o mais rápido possível.

— Porra.

Ele murmurou baixinho, sentando-se ao lado dela.


— O que foi?

O maldito cheiro de ameixas o atingiu.


— Nada, só tô cansado. Onde arrumou o vestido?

— Emma me emprestou. — Ela deu de ombros. — Não


tinha nada desse tipo no guarda-roupa, ficou bom?
Ficou espetacular, você deve ser a mulher mais bonita
dessa festa.
— Sim, está ótimo.
— Se eu passei no seu controle de qualidade de moda,
deve ser porque eu arrasei mesmo.

— Estilo é também um esporte, mia bella.


Vincent observou Amélia se remexer na cadeira.
Acontecia toda vez que ele soltava aquela expressão e o piloto
guardou a informação no fundo da mente.

— Você já jantou?

Ela mudou de assunto, brincando com o guardanapo no


colo.

— Não, o que você recomenda?

— Sinceramente eu não faço ideia do que é metade


desses pratos e tudo vem em porções pequenas demais.
Vincent riu.

— Tem alguma coisa vegetariana?

— A maior parte, na verdade. — Amélia pegou o


pequeno cardápio de cima da mesa. — Esses dois primeiros
são bons, esse aqui também… Ah, espera, esse tem carne. Não
sei o que vai nessa Panzanella, mas isso é delicioso.
Vincent pediu ao garçom os pratos que Amélia tinha
indicado.

— Estou confiando no seu bom gosto para comida,


Palhares, espero que seja tão bom quanto para moda.

— Sou sua namorada, lembra? Eu sei que tipo de


comida você gosta.
Amélia sorriu, pretensiosa, e Vincent descobriu que ela
estava certa quando a comida chegou. Todos os pratos
vegetarianos eram deliciosos, uma vasta variação de
ingredientes, mais do que as folhas que sempre empurravam
na direção dele em jantares assim.

Quando terminou de comer, Stefano sussurrou no seu


ouvido.
— Os pombinhos precisam dançar, você não acha?

O piloto assentiu.
— Me dá a honra dessa dança?

Amélia ergueu uma sobrancelha e lançou um olhar para


o RP.
— Isso está incluído no pacote de namorada?

— Com medo de dançar mal?


— Nah. — Mas Vincent viu o nervosismo brilhar nos
olhos dela.

— Relaxe, Palhares, eu não vou te deixar cair.


Eles foram para a pista de dança repleta de casais e
Vincent sabia que todos estavam olhando na direção deles.
Colocou uma mão na cintura de Amélia e segurou os dedos
dela com a outra, mas reparou em como estavam distantes.

— Isso não vai funcionar se você estiver tão longe,


Amélia.
Ela revirou os olhos e se aproximou. As luzes
amareladas refletiam na pele branca, fazendo a mulher brilhar
em dourado, os olhos castanhos infinitos o encarando com
firmeza. Amélia sempre o olhava daquela forma, como se fosse
capaz de dizer todos os pensamentos de Vincent em um só
fôlego.

O piloto engoliu em seco.

— Eu gosto dessa música.


— Como se chama?

— Autumn dream. Foi usada no filme do Titanic e escrita


por um inglês nos anos 1900 e alguma coisa. Ele dizia que a
verdadeira música estava morrendo e queria provar que uma
composição clássica ainda seria capaz de conquistar o público.
— Sério?
— Não. — Amélia sorriu. — Mas a história deixou você
interessado, não é?
Vincent não resistiu e soltou uma gargalhada, chamando
a atenção das pessoas ao redor.

— Para ser justa, a parte do Titanic é verdade.


— Deus, você é…

Minha perdição, Amélia.


Vincent balançou a cabeça e continuou conduzindo
Amélia pelo salão, no ritmo da valsa. Ela exibia um sorriso leve
e o piloto se sentia quase nas nuvens, não reparando em nada
que não fosse na música e naquela mulher em seus braços.
Era possível odiar uma pessoa e gostar dela ao mesmo
tempo? Vincent se perguntava isso dentro da cabeça, enquanto
acelerava o ritmo da valsa, relembrando os momentos
compartilhados com Amélia. Desde aquele beijo de anos atrás,
ao reencontro catastrófico, as brigas e alfinetadas, o incidente
da foto e o contrato.
Mesmo durante a época em que o piloto a achava a
pessoa mais insuportável do mundo, ela o encantava.

— Vincent.
— Sim.

— Você ainda me acha irritante, não é?

Ela sorriu e Vincent a estudou. A pergunta, feita em tom


de brincadeira, parecia esconder um pouco de verdade e, se
ele estivesse certo, era o único fio que ela parecia se agarrar, a
barreira para algo que impedia Amélia de fazer alguma coisa.

Ou talvez fosse o próprio Vincent que se agarrava


àquele sentimento.

— Claro que sim, Amélia Palhares. Você é a pessoa mais


irritante que eu conheço. — Ele respondeu, sorrindo, os dedos
mais firmes na cintura macia dela. — Eu continuo sendo seu
babaca arrogante?

— Lógico. Você é o único babaca arrogante da minha


vida.

E ela abriu o sorriso mais bonito que ele já vira,


deixando o coração de Vincent cair em queda livre por um
abismo da cor dos olhos dela.

Talvez, a irritação e aquele calor estranho em seu corpo,


que sentia só quando olhava para Amélia, pudessem realmente
existir um ao lado do outro.
15.
Três anos atrás
— Com quem foi seu primeiro beijo?

— Fácil, o filho de um amigo da minha mãe. E o seu?

— Um menino que eu gostava desde a quarta série.


— Que sortudo.

As bochechas de Amélia ficaram vermelhas e Vincent


sorriu.
Conforme a noite londrina avançava, o frio ficou
insuportável. Vincent decidiu que o último encontro deles seria
no parquinho onde se conheceram, em frente ao prédio
estudantil onde ela morava.

Ele insistiu que ela subisse e pegasse um casaco mais


quente e se surpreendeu quando Amélia voltou com duas
xícaras de café fumegante e um cobertor grosso para o piloto.
Sentaram-se nos balanços de ferro, apreciando o silêncio
confortável, preenchido pelo rugido suave do vento nas
árvores.

Vincent se sentia um pouco nervoso, como se estivesse


no seu primeiro encontro. Geralmente, seus encontros
românticos envolviam termos de confidencialidade, sexo, e
uma despedida definitiva. Ele nem se lembrava da última vez
que saiu com uma pessoa por mais de duas horas sem obrigá-
la a assinar papéis.

O piloto bebeu o café, forte demais para o seu gosto, e


fez uma careta.

— Não gosta de café?

— Na verdade, não, eu prefiro chá.


— É sério? — Amélia se virou para ele, a corrente do
balanço cobrindo uma parte do seu rosto — Você é totalmente
o tipo de cara que toma café.

— Chá de laranja com biscoitos vai ser minha última


refeição, é a melhor coisa do mundo. — Vincent franziu a testa,
curioso. — Por que pareço o tipo de cara que bebe café?

— Quando penso em pilotos de Fórmula 1, ou dois,


imagino todos eles entrando no autódromo segurando um café
e conversando sobre motores de carro.
Vincent riu e impulsionou o chão com os pés, fazendo o
balanço se movimentar.
— Desculpe estragar sua visão, mas todos eles bebem
montanhas de energético. Mas você parece o tipo de garota
que toma café.

— Claro que eu pareço, sou uma estudante de arte que


assiste romance dos anos 90 e é aficionada por chocolate. Sou
um clichê inteiro.

E Vincent estava gostando demais daquele clichê.

— Posso perguntar uma coisa?


Amélia disse, os olhos castanhos brilhando por trás das
lentes do óculos.

— Vá em frente.

— Quantas pessoas você já namorou?

Vincent ergueu uma sobrancelha.

— Por que a pergunta?


— Você é um piloto, deve viajar o mundo inteiro, e eu
fiquei me perguntando quantas pessoas você já beijou e tal.
Desculpe se eu estou sendo invasiva demais, vai ter que me
parar quando eu for sem noção.

— Sinta-se livre para perguntar o que quiser, Amélia,


vou adorar responder — Vincent parou o balanço com os
calcanhares. — E eu nunca namorei antes. Incluindo homens,
mulheres e pessoas não-binárias.

Ela o encarou, cética.


— Fala sério.

— Estou falando sério.

— Impossível, Vincent. Você é bonito, inteligente, tem


esse charme e…

— Então você me acha bonito, inteligente e charmoso?


— O italiano sorriu, interrompendo-a.

O coração do piloto se aqueceu com os elogios


inesperados.
— Como se você não soubesse disso! — Amélia revirou
os olhos.
— Eu sei, mas gostei de saber que você reparou. —
Vincent arrumou o cobertor em seus ombros. — Sua vez,
quantas pessoas você já namorou?

— Três. Mas nenhuma delas deu certo. — Ela jogou os


cabelos para trás. — Na verdade, foram todas um desastre,
sendo bem sincera. Eu deveria ter seguido o seu caminho.

— Foi ruim assim? Você não precisa me contar, se não


quiser.
Vincent disse, com suavidade.

— Não, está tudo bem. E sim, foi ruim desse jeito.


Minha irmã diz que eu tenho o dedo podre para escolher
pessoas e acho que ela tem razão. É tanta dor de cabeça que
acabo me perguntando como fui me submeter nessa situação.

— Como assim?
Amélia impulsionou o balanço, as pontas dos seus
sapatos mal tocando o chão.

— No meu último namoro, o cara me traiu um monte e


eu descobri. — A voz dela soou entrecortada — E foram muitas
vezes! Não contei para ninguém, fiquei morrendo de vergonha
de ter perdoado ele. Sendo que fui a vítima da história.
Quando vim para Londres, nós terminamos. Ele me disse que
“eu queria crescer para me aparecer e ele não queria estar
com alguém assim”, quando escolhi o mestrado.
— Nossa, mas que babaca. Por favor, me diga que você
mandou ele se foder.

Ela parou o movimento e sorriu.


— Mandei.

Vincent queria socar a cara do ex-namorado dela e


brigar com todos que machucaram o coração de Amélia.
— Que bom — Ele limpou a garganta e encarou suas
próprias mãos.

— Minha irmã me diz que sou sempre gentil demais com


quem me machuca. — Amélia disse, o ferro rangendo quando
o balanço se moveu. — Por um tempo eu achei que isso me
deixava fraca.

O rosto dela voltou-se para o céu.


— Não deixa. — Ele disse. — Minha mãe deve ser a
pessoa mais forte e gentil que eu conheço no mundo.

— Não, não deixa. Eu gosto de ser gentil, mesmo


sabendo que algumas pessoas podem se aproveitar disso.
Talvez sua mãe concorde comigo, mas experimentar alguns
infernos e continuar com vontade de ser gentil com os outros,
é ser forte e corajoso. É a minha forma de ser forte e corajosa.

Vincent sentiu aquelas palavras pesarem em seu peito e


atravessarem seu coração.

Ele conhecia a raiva por tanto tempo, se lamentando por


coisas que jamais teria, como a presença de pai, que se
esqueceu de que o mundo também tinha coisas boas. Como
sua família, as corridas, seu melhor amigo e aquela garota.
Amélia, que falava do que gostava com os olhos
brilhando, que parecia solitária e machucada, de uma forma
diferente dele, mas que continuava tendo um sorriso gentil. As
palavras dela coloriram uma parte da mente de Vincent que
andava escurecida, abrindo seu peito trancado.

O italiano se levantou e o balanço se moveu pela falta


de peso repentina. Caminhou até Amélia, com as mãos nos
bolsos, projetando uma sombra no rosto dela. A estudante
piscou, os olhos um pouco arregalados, mas sorriu, uma
permissão implícita no gesto.

Ele se inclinou, sentiu a respiração quente sob seu rosto,


causando um estremecimento por todo seu corpo, até os
ossos. Um pequeno sopro de vida em meio ao caos. Retirou os
óculos dela com cuidado, colocando no bolso da sua calça.

E então, a beijou.
16.
Março
As luzes de Sakhir eram como estrelas noturnas. Os
pontos vermelhos, amarelos e brancos piscavam sem ordem
específica, às vezes se apagando. O som de buzinas furiosas se
misturava ao de uma música estridente, que fazia vibrar as
paredes beges do hotel.
Amélia Palhares tentava absorver o máximo de detalhes
possíveis, da sacada do seu quarto, empolgada como uma
criança. Mas quem poderia culpá-la? Era a primeira vez que
visitava um país fora da Europa e ela já lamentava por não ter
mais tempo para aproveitar.
Quando o calendário da Fórmula 1 foi oficialmente
divulgado, Amélia fez todos os arranjos possíveis para estar em
Bahrein, na primeira corrida, o que resultou em adiantar
montanhas de trabalhos acadêmicos. Sem contar a nova
exposição que estava vindo para a Galeria Torrisi, e como
curadoras, ela e Angela precisavam resolver toda a papelada
legal e trâmites para que tudo corresse bem.
Em resumo, estava cansada e morrendo de vontade de
conseguir uma folga. Quando a corrida finalmente chegou, ela
embarcou feliz no avião de Ímola para Bahrein, com alguns
funcionários das outras equipes.
— Como assim você não tem um jatinho? — Amélia
disse a Vincent, por chamada de vídeo, um pouco antes da
viagem — Você não é milionário?

— É mais seguro andar de avião. — Ele cumprimentou


alguém que passou na sua frente. — E o Arthur disse que eu
seria muito filha da puta se fosse o único piloto de jatinho
particular.
Amélia riu.

— E ele está certo.

Vincent moveu o celular, o boné da Redemptio


escondendo os cabelos castanhos. Ele estava de óculos de sol,
com a camisa da equipe e tinha acabado de sair do autódromo
quando ligou para ela, para saber se a viagem estava
confirmada.

Amélia não diria em voz alta, mas sentia falta da


companhia de Vincent durante aquelas semanas. Ele era seu
amigo, ou algo próximo disso, e mesmo com as mensagens e
fotos, uma parte dela ansiava vê-lo pessoalmente.

— Você tem tudo o que precisa?

— Tenho, Stefano me passou — Amélia fez uma pausa,


pensando se devia mencionar aquilo, mas falou mesmo assim.
— Então, vou ser sua namorada de mentirinha agora? Com
todas as regras do contrato?

Vincent ficou tenso.

— Considere esse um período de teste estendido,


Palhares.
— As respostas sobre nós são boas. — Ela mencionou,
lembrando dos comentários. Havia muitos haters e garotas que
diziam estar com o coração partido pelo namoro do piloto,
mas, em geral, o público os aprovou.

Inclusive, um dos patrocinadores de Vincent, que


queriam não só conhecer Amélia, como discutir um possível
aumento de investimento na Redemptio.

— E você esperava outra coisa?

— Sim, eu pensei que iam me odiar.

— Sempre pensando o pior — Vincent suspirou —


Precisa relaxar um pouco, mia bella.

A brasileira preferiu esconder que parte do pessimismo


tinha a ver com o piloto e os sentimentos em relação a ele. E
as lembranças de Ímola, giravam na sua cabeça, um filme que
se projetava no cinema particular da sua mente, estrelado pelo
maldito Vincent Di Castelli.

Como os olhos dourados dele brilharam quando viu


Amélia naquele vestido. As mãos dele na cintura dela, firmes e
fortes. O sorriso de canto que se transformava em um enorme.
A risada dele, sonora e límpida, na orelha dela.

De alguma forma, Amélia sabia que aquilo nada tinha a


ver com o contrato, era sincero. E se perguntava se Vincent
tinha alguma ideia de que ela também não estava fingindo. Ou
de que esse fato foi quase como um tiro no peito de Amélia, a
confirmação de algo que tentou encobrir por muito tempo.
Ela gostava de Vincent. Mais do que querer beijá-lo, ela
queria unir os pontos daquele complicado mapa que era o
piloto e descobrir a rota do coração dele. Queria descobrir os
detalhes de todas as versões dele, do garoto de três anos
atrás, do piloto talentoso e, quem sabe, do amante gentil e
carinhoso.

Isso a fez querer bater a cabeça na parede.

— Mas que merda — Murmurou para a vista da cidade,


se sentindo melancólica e triste. — Muito obrigada pela
confirmação, universo, mas e agora? Eu faço o que com isso?

Contar a Vincent, por ora, estava fora de cogitação. A


atenção dele precisava estar nas corridas e Amélia jamais o
atrapalharia dessa maneira. Sua mente não ajudava, criando
um cenário ruim atrás do outro, indo de uma rejeição educada,
até o piloto rindo de sua cara e dizendo o quanto ela era
patética.

Por isso, lidou com a avalanche sentimental do jeito que


sempre fazia: colocou uma playlist triste e fingiu que estava
tudo bem.

Ao lado de Stefano, explorou o hotel na noite de


sábado, já que Vincent dormiu cedo e mergulhou na piscina de
água aquecida, iluminada pela lua e luzes artificiais que
cercavam o azulejo.

— Como vou voltar a morar no meu apartamento após


ter me hospedado em um hotel cinco estrelas?
Ela disse, mergulhada até o pescoço. Stefano, do seu
lado, riu.

— A piscina dos Torrisi é melhor do que essa, se quer


saber, mas ela só abre no verão. Até lá, você pode tentar a
hidromassagem.

— Às vezes eu esqueço que vocês são super ricos —


Amélia balançou a cabeça. — Então, Toni veio para Bahrein
também. Isso quer dizer alguma coisa, ou…

— Ou nada, quer dizer exatamente o que você está


pensando. — Um sorriso leve iluminou o rosto do Stefano. —
Não é um namoro oficial, mas é quase isso.

— Bom saber que a mesa do La Fratta ganhou mais um


convidado. — Amélia sorriu e abraçou Stefano pelo pescoço,
mal disfarçando a animação. — Eu estou feliz por vocês!

— Valeu, Ames. — Stefano devolveu o abraço com


força.

— Nem acredito que todos os meus amigos estão


namorando mesmo, pelo menos tenho Emma.

— Mas você está namorando — Ele deu um peteleco na


testa dela, que fez uma careta.

— Ah, mas você sabe. Tudo pelo doutorado.

Ela desconversou e deu um rápido mergulho para


molhar os cabelos. Mas quando emergiu, Stefano ainda a
encarava, com uma expressão cética.
— O quê?

— Você é uma péssima mentirosa, Amélia.

— Ei, eu finjo muito bem que estou apaixonada por


Vincent. — Ela sorriu, convencida.

— Finge mesmo?

— O que você quer dizer?

— Está tudo escrito na sua testa, Amélia, você não sabe


esconder sentimento nenhum.

Seu sorriso morreu aos poucos e ela soltou um suspiro


cansado.

— Por favor me diga que só você percebeu.

— Bom, provavelmente Angela e Arthur também, mas


Valadares nem vai se meter nisso.

— Eu não sei o que fazer.

— Falar com ele? — Stefano revirou os olhos. — Vocês


dois são tão cabeças-duras que mal percebem que a melhor
forma de saber como o outro se sente é perguntando.

— Não na véspera de uma corrida importante.

— Justo. Mas fale com ele, Amélia, você me promete?


Stefano estendeu o dedo para Amélia e ela entrelaçou o
mindinho no dele.

— Tudo bem, mas não me cobre quando, tá legal?


— Certo, Ames. Eu vou subir, Toni já deve tá dormindo
há horas, ele não lida bem com jet lag. Não durma tarde,
vamos sair cedo amanhã.

— Sim, senhor.

Amélia fez uma continência de brincadeira e viu Stefano


deixar a área da piscina.

Ela nadou até o meio e boiou, os membros


esparramados na superfície, a água abafando todos os sons, a
sua volta, desejando que os calasse até que sumissem. Ela
imaginou-se no mar, com ondas fortes carregando seu corpo
para um lugar longe dos seus próprios sentimentos.

Encarar a realidade não era algo que ela era boa. Mas
ninguém tinha escolha em relação a isso.

O Circuito Internacional de Bahrein era disputado à


noite, depois das seis, devido ao sol exaustivo, o que deixou a
brasileira livre no dia seguinte, para conhecer o espaço. Ela e
toda a delegação da Redemptio tinham acordado cedo, tomado
um café-da-manhã rápido, e partido para o autódromo.
Como era a primeira corrida da temporada, os pilotos
tinham um cronograma cheio e Amélia mal viu Vincent o dia
inteiro. Sem ter o que fazer, ela se deixou levar pelo clima de
animação, conhecendo melhor os funcionários da Redemptio,
ficando a par das fofocas internas do grid e reconhecendo
alguns rostos de Ímola. A melhor parte é que quase todos
eram brasileiros, o que a deixou à vontade.
Mas notou o clima estranho entre as equipes, cheio de
olhares desconfiados.
— Ninguém esqueceu o vazamento de informações. —
Um dos engenheiros da Redemptio disse a ela. — Todo mundo
está tenso para cacete.
— Não é para menos, foi uma acusação tão ridícula.
— Bellini sempre quer causar nas temporadas. — Uma
funcionária comentou, desviando os olhos para o ex-piloto,
sentado na área VIP. — Parece que faz isso de propósito.
— É o que gente sem relevância faz de melhor.
Amélia disse e eles riram.
Quando o horário da corrida se aproximou, Amélia não
conseguia ficar parada. Culpando as três xícaras de café que
tomou, a estudante passeava pelo paddock da Redemptio, sem
querer admitir que esperava ver Vincent. Ele estava em sua
sala, se trocando, fazendo os rituais antes da corrida que a
brasileira já sabia.
— Amélia, você fica lá em cima. — Disse um dos
assistentes da equipe de mídia.
— Ah, tudo bem, obrigada.
Amélia estava quase saindo pela direção indicada,
quando escutou seu nome e se virou.
Vincent veio em sua direção, vestido apenas com a
parte de baixo do macacão preto e azul, os cachos escuros
uma bagunça total. Ansiedade, emoção e expectativa
brilhavam em seus olhos dourados, um piloto pronto para fazer
o que amava.
Amélia se derreteu por dentro e abriu um sorriso.
— Oi. — Ela disse, estendendo a mão e tirando uma
mecha do cabelo dele da testa. Era macio como ela se
lembrava.
— Oi, Palhares. Desculpe não ter te visto antes, porra,
está uma loucura hoje.
— Você não precisa se preocupar com isso, Di Castelli.
Eu só queria desejar boa sorte.
— Sem um beijo?
Vincent sorriu, se aproximando. O perfume dele estava
ao redor de Amélia, preenchendo o ar, cercando-a com a
presença do piloto. Se sentindo corajosa, ela disse:
— Leve o primeiro lugar, então pode ser que você ganhe
um beijo.
O piloto sorriu, mas algo atraiu sua atenção e ele
desviou os olhos para o lado. Uma câmera filmava o casal e
Vincent acenou. Amélia engoliu em seco, o estômago pesado,
e manteve o sorriso no rosto.
Eles eram um casal de show, afinal.
— Vou esperar você com Stefano e Toni.
Ela disse e saiu para encontrar os amigos. Os lugares
eram os melhores, tão alto que ela podia ver a pista quase
toda e ali ficavam os familiares dos outros pilotos. Amélia
lamentou um pouco que nem Emma, atolada com as coisas da
faculdade, e Anna puderam vir.
— Trouxe água. — Toni estendeu uma garrafinha para
ela.
— Obrigada, aqui é um inferno de tão quente. — Amélia
se sentou, os olhos passeando pela movimentação do
autódromo. Tinha perdido a apresentação dos pilotos e carros
antigos, mas não planejava desgrudar os olhos quando a
corrida começasse. — 57 voltas e 15 curvas, muito uso de
freios e retas com noventa graus. A prova para tirar carteira de
motorista nem parece tão ruim se você comparar com isso
aqui.
— Você pesquisou sobre a pista?
Stefano disse, se virando para ela.
— Hã… Sim? Eu queria saber como seria tudo. Sabia
que Vincent e Kob estão empatados? Eles têm o mesmo
número de vitórias nessa pista.
— Sim, eles chamaram isso de o grande duelo e
estamos só na primeira corrida. Vai ser uma temporada
emocionante e cheia de trabalho para mim.
— Mas você gosta mesmo assim.
Stefano sorriu.
— Sim, eu não poderia ter um trabalho melhor.
— Disse Stefano, depois de horas reclamando sobre seu
trabalho. — Toni se intrometeu.
Amélia viu as equipes se prepararem na posição de
largada, pontinhos coloridos na pista. Vincent largaria em
segundo, pela classificação do dia anterior, com Chase Astier à
sua frente, Satake atrás e Kob em quarto. Quando o sinal ficou
verde e os carros adquiriram velocidade em questão de
segundos, a estudante ficou na ponta da cadeira, com o
coração na mão.
Ela achava que o evento seria insuportável, mas se
surpreendeu. Não só quando chegou na área da Redemptio,
mas ao perceber que em cada volta, seu estômago dava uma
cambalhota. Eles eram quase borrões, indistinguíveis de tão
rápidos, mas mesmo assim Amélia sabia quem era Vincent.
O piloto italiano tentava ultrapassar quase sempre, com
movimentos ousados e que provavelmente não foram
combinados com a equipe antes. Em uma curva, Kob passou
Satake e Amélia soltou um gritinho de frustração.
— Porra, Vincent precisa segurar ele. — Stefano
murmurou.
Vincent foi o primeiro a ultrapassar Chase, seguido de
Kob, e os dois abriram vantagem. Amélia mordia a parte
interna da bochecha, os dedos brincando com a garrafa de
plástico, a respiração falhando cada vez que o italiano e o
tailandês pareciam próximos demais.
Eles se alteraram na primeira posição até a volta 54,
quando Vincent ultrapassou e liderou até o final. Assim que a
bandeira quadriculada foi agitada, Amélia e o restante da
arquibancada inteira gritou de empolgação.
— Caralho! — Ela disse, tão orgulhosa daquele piloto
insuportável, que não parava de sorrir. Amélia enxugou as
lágrimas nos cantos dos olhos.
— Vêm, Ames!
Stefano a puxou e eles desceram a arquibancada, quase
correndo, em direção a multidão que aguardava os pilotos
perto do pódio. Passaram pelo alvoroço, algumas pessoas
acabaram a reconhecendo e gritaram o nome dela, mas Amélia
nem prestou atenção.
Na área permitida para funcionários e convidados,
Amélia viu Vincent, ainda de capacete, cumprimentar a
multidão, quase pulando em cima deles. O piloto estava em
estado eufórico e a estudante não resistiu, tirando uma foto
dele com o seu celular.
Vincent caminhou até a sua equipe e finalmente os viu.
Ele tirou o capacete e a balaclava, o cabelo grudado de suor na
testa e nuca, um sorriso estonteante nos lábios. Amélia jurou
que os olhos do italiano nunca estiveram tão dourados e vivos.
— Parabéns. — Amélia disse, sorrindo.
— Só venci porque me prometeram uma recompensa. —
Vincent arqueou uma sobrancelha.
— Jura, Di Castelli?
Ela revirou os olhos.
— Ei, você fez a promessa.
Amélia assentiu, segurou o rosto de Vincent e deu um
beijo na bochecha dele, sentindo uma das mãos do piloto em
sua cintura.
— Parabéns, campeão. — Ela sussurrou, inspirando o
cheiro familiar de Vincent. Ele exalava felicidade e aconchego,
misturado com perfume caro, o preferido dela.
Flashes de câmeras estouraram, gritos cercaram a
pequena bolha que envolvia os dois.
Vincent piscou quando Amélia se afastou, ainda
mantendo a mulher próxima do corpo. O coração dela batia em
alta velocidade, mais do que o carro do piloto, indo sem freio
por uma pista sem nenhum obstáculo.
Ele se inclinou e sussurrou no ouvido dela:
— Acho que, no fim das contas, você é mesmo meu
amuleto da sorte, Amélia.
***
Era fácil demais ser amigo de Amélia Palhares.
Depois do evento em Ímola, Vincent sentiu que
conquistou o direito de chamá-la de amiga, além de namorada
de mentirinha. Especialmente pela troca de mensagens
constantes que acontecia entre os dois, sempre sendo iniciada
por uma foto sem contexto algum. Às vezes, eles nem sequer
diziam nada, só trocavam registros por horas.
Agora, Vincent tinha uma coleção de fotos de Amélia.
As preferidas eram enviadas por Angela, quando ela
pegava o celular da amiga. Uma em que Amélia tomava vinho,
no La Fratta, rindo de uma piada de Toni, foi sua fixação por
algum tempo. Dias depois, ele recebeu outra, onde Amélia
aparece lendo um documento no escritório da Galeria Torrisi, o
sol de fim de tarde em seu rosto e refletindo no seus óculos.
Vincent podia passar horas admirando aquelas fotos e
se convencendo de que não estava morrendo de saudade de
Amélia.
— Um tolo apaixonado — Satake brincou, quando
flagrou Vincent estudando a mais recente foto que Amélia
tinha enviado. — Fofo.
— Não enche, Satake.
— Você torna minha vida no grid um exercício de
paciência, acho justo revidar.
— Não mais uma entrevista para você gravar, não?
— Só a coletiva — Satake se sentou na cadeira em
frente ao italiano — Ou seja, sou todo seu pela próxima hora.
Vincent bufou, bloqueando o celular.
Estava sendo um começo de temporada tenso e
acirrado. Com o vazamento das informações da Razze e a
desconfiança entre equipes, cada GP era como um elástico a
ponto de arrebentar a qualquer segundo. Os pilotos tentavam
aliviar, passando uma imagem de camaradagem, mas a mídia
não ajudava nem um pouco.
Os blogs e sites exaltavam a rivalidade entre Kob e
Vincent, comparando até mesmo os erros dos pilotos em cada
corrida. O italiano tentava levar tudo na brincadeira, sempre
dizendo que respeito era o que prevalecia, mas o tailandês com
cara de poucos amigos dava respostas frias, aumentando os
rumores.
Stefano até tentou conversar com a equipe de
marketing da Dalton, mas eles não queriam resolver nada. A
confusão inteira voltou os olhares para a gigante do
automobilismo, que depois de terminarem em segundo na
última temporada, estavam dispostos a tudo por mais
investimentos.
Vincent deveria estar estressado com aquilo, mas sendo
honesto consigo mesmo, não estava. Depois da vitória na
abertura, ele subiu no pódio mais duas vezes, em Portugal e na
corrida do dia, em Melbourne, com excelentes resultados. O
italiano parecia mais interessado em sua própria carreira e ele
riu, pensando como Amélia chamaria aquilo de “uma lição de
maturidade e tanto”.
Ele quase podia ouvir a voz dela, naquele tom irônico
com um agudo crescente.
— Espero que esteja pensando em contar a piada que
você tanto ri, Vince.
Satake provocou, trazendo-o de volta para o presente.
— Não sou um humorista muito bom — Vincent colocou
uma perna em cima do joelho — Você sentiu o carro meio
instável naquela curva de hoje?
O piloto assentiu.
— Arthur pediu para revisar o projeto por isso. Ele acha
que é algo relacionado ao aerofólio na parte de trás.
Vincent repassou a corrida na sua mente. Não foi uma
tão emocionante, o que permitiu que ele se encontrasse mais
no carro.
— Acho que é mais do que isso. Na hora que eu troquei
de marcha não foi suave como deveria ser, foi estranho. É
melhor analisar o câmbio.
Satake e Vincent continuaram discutindo os possíveis
problemas do carro da Redemptio, até que um assistente bateu
na porta e avisou que a coletiva tinha começado.
Eles se dirigiram para o local onde os repórteres
aguardavam e Vincent estava abrindo seu sorriso para as
câmeras, quando uma mão no seu ombro o fez parar. O piloto
conhecia aquele toque e seu corpo estremeceu.
— Ansel! — Um fotógrafo gritou e logo os flashes
estavam voltados para eles.
— Bom trabalho para vocês, pessoal. — Ansel disse,
sorrindo, a mão ainda no ombro de Vincent, com um aperto
firme. — Só vim visitar meus pilotos preferidos, saber como
estavam depois de tudo.
Como aquele velho desgraçado tinha a cara de pau de
dizer aquilo depois de acusar livremente e Redemptio de vazar
informações?
O estômago do piloto se revirou, mas Vincent se obrigou
a sorrir de volta, concordando com a cabeça. Ele teve medo
que se falasse, provavelmente xingaria aquele homem e isso
não seria muito bom para sua imagem.
— Obrigado por vir, é uma honra.
Satake disse em um tom irônico, mas carregado com
seriedade fingida.
— Sabem, eu sou quase como um pai para o Vincent,
não é garoto?
Ansel bateu no ombro dele e Vincent queria chutá-lo.
— É, quase isso.
— O que achou do desempenho dele nesse fim de
semana? — Um jornalista perguntou.
— O garoto ainda tem muita coisa para aprender, com
certeza, mas é bom ver o progresso dele. — Ansel disse,
simpático.
— E sobre as suas últimas alegações, senhor Bellini,
contra a Redemptio, o que tem a dizer?
Ansel deu uma olhada rápida e cheia de desprezo para
Vincent antes de responder.
— É bom saber como as novas equipes lidam com os
erros, principalmente um grande como esse. Eu só torço para
que tomem decisões mais acertadas ao longo dessa
temporada.
Vincent nem sequer se lembrava mais do que tinha
respondido aos jornalistas, sua mente era um quadro em
branco com a imagem de Ansel, suas palavras nojentas e
atitudes que deixavam o italiano puto.
E o que Vincent podia fazer? Porra nenhuma. Ele se
esforçava tanto para ajudar a Fórmula 1 a crescer, tentando
dar abertura para a nova geração, deixando um caminho livre
para quem viria depois dele. Mas o que tudo isso valia a pena
se caras como Bellini continuariam por aí, sendo tratados como
heróis.
— Você parece a ponto de quebrar alguma coisa. —
Arthur disse, quando voltaram para o hotel.
— Eu só não entendo porque caras tem tanta atenção,
Arthur. Você sofreu para caralho na mão daquele imbecil, ele
fodeu a nossa equipe em rede nacional e depois diz “eu sou
quase como um pai para ele”.
— Eu entendo, Vince, de verdade. Bellini só não me
expulsou dos grids, porque sou bom demais no que faço e a
Redemptio precisava de alguém.
— E você ainda consegue ficar calmo com isso.
Arthur se aproximou, tirando o boné da equipe e
penteando os cabelos pretos com os dedos.
— Eu preciso ficar. Se levantarmos a voz, seremos vistos
como responsivos e violentos, não como heróis. Sei que é uma
droga, mas se você quer atingir Bellini, vai precisar pensar em
uma maneira indireta. Eu escolho o silêncio porque sou o
diretor- executivo e muita gente depende de mim, inclusive
você. Só que você, Vincent, tem uma liberdade que não tenho
mais.
Vincent riu, sem humor algum.
— E o que eu poderia fazer?
Arthur pareceu hesitar por alguns instantes, como se
quisesse dizer uma coisa, mas acabou desistindo.
— Não é possível que o campeão da última temporada
não consiga pensar em alguma coisa. Vá dormir, saímos cedo
amanhã.
Vincent tomou um longo banho e uma memória surgiu
em sua mente, as palavras de uma garota em um balanço, três
anos atrás. O piloto vestiu um pijama, pegou um energético, e
ligou para Amélia.
— Oi, parabéns pelo pódio. — Vincent ouviu o sorriso na
voz dela. — Acho que vou mudar seu contato para campeão.
— Sempre engraçadinha, Palhares.
— Como você está?
— Cansado, cheguei no hotel há pouco tempo. O que
você está fazendo?
Ele ouviu o barulho de uma cadeira arrastar.
— Dando os últimos toques da minha dissertação de
mestrado. E você? Já comeu?
— Quando você vai me contar qual o tema? Estou
tomando um energético e sim, jantei com a equipe mais cedo.
— Segredo acadêmico, lembra? — Vincent riu.
Ele ouviu o suspiro dela e desejou que Amélia estivesse
ali, perto o bastante para abraçá-la.
— Vincent, o que aconteceu?
— Nada, Palhares.
— Achei que éramos amigos, huh? Mas não precisa
contar se não quiser.
Amigos. Amigos uma porra. Vincent queria ser muitas
coisas de Amélia, mas amigos era o termo mais básico. Apesar
disso, se aquela era a forma de se manter perto dela, o piloto
aceitava com prazer.
Vincent fez um breve resumo da entrevista de Bellini e
escutou uma série de palavrões em português.
— Você tem que me ensinar todos esses palavrões,
sabia disso?
— Não mude de assunto, Vincent. A questão é, você
não tem noção mesmo do que é capaz de fazer Di Castelli e
isso me irrita.
— Te irrita?
Vincent deitou na cama, a sobrancelha erguida.
— Sim! Vincent, não falo só por Ímola, mas por tudo o
que você faz. Pelo amor de Deus, você abriu a porcaria de um
autódromo de kart em três cidades italianas de uma só vez,
para crianças carentes.
— Como soube disso? Não divulguei na imprensa.
— Eu enchi o saco do Stefano até ele me contar, não o
culpe. Eu sei que você se enxerga menos do que é, mas você
faz coisas incríveis. Você é bom, Vincent Di Castelli, se importa
com os outros. E se aquele velho desgraçado tentar de
diminuir, lembre-se disso.
Vincent sorriu, encarando o teto, aquecido por dentro.
Ela dizia tudo no tom de certeza, como se não duvidasse nem
por um segundo daquilo. Amélia sempre tinha um jeito
estranho de encontrar cores quando ele só conseguia enxergar
o vazio. Uma pequena chama em meio a tantas sombras.
— Com certeza vou, Amélia.
— Bom. Caso você esqueça, eu estou aqui para te
lembrar.
— Amélia, como você…
Porra, Palhares, como você é capaz de me deixar mais
encantado por você?
— E voltamos as frases incompletas. — Amélia brincou.
— Você está livre no próximo fim de semana, não é?
— Sim, por que?
— Vamos em um lugar.
— Está me chamando para um encontro?
Ele esperou ouvir uma piadinha do tipo “Para você todo
convite é um encontro?”, mas Vincent foi pego de surpresa.
— E se eu estiver? — Ele se sentou na cama
rapidamente, o coração pulando — Vincent? Você não morreu,
não é?
— Não, eu estou aqui. E aceito. Para aonde vamos?
— Surpresa, mas você vai gostar.
— Como sabe disso?
— Sabendo.
Vincent esboçou um sorriso longo. Ele ouviu a voz de
Angela pedindo por alguma coisa e a resposta rápida de
Amélia.
— Vou te deixar trabalhando, mia bella. Nos vemos na
semana que vem, então?
— Combinado. Até depois, Vincent.
— Até depois, Amélia.
Quando ele desligou e a tela do celular escureceu, o
quarto já não parecia mais tão solitário.
17.
Abril
Amélia tomou a decisão assim que terminou a ligação
com Vincent: queria fazer alguma coisa pelo piloto. Ela sempre
tinha sido a garota de demonstrações. Fossem abraços,
carinho, presentes ou palavras, gostava de expressar a
importância das pessoas em sua vida.
Comprava os doces preferidos de Ângela quando a tese
dela ficava complicada. Acompanhava Sancia ao hospital, para
visitar a mãe da modelo, e depois a abraçava. Fazia uma xícara
de café para Stefano, sempre que passava por lá, porque sabia
que ele gostava. Enviava materiais de estudos para Toni,
quando encontrava algo sobre arquitetura nas pesquisas da
tese.
E a necessidade de fazer alguma coisa, qualquer coisa,
pelo piloto italiano a deixou inquieta desde Bahrein. A ideia
martelou em sua cabeça por dias, até que encontrou uma
brecha perfeita.
Tudo o que ela precisou foi da ajuda de Stefano e dos
contatos dele, além de alguns sorrisos simpáticos. Nunca
Amélia tinha sido tão grata pela fama inesperada como naquele
momento.
Nervosismo e ansiedade corroeram o interior da
brasileira até a data e ela tentava agir normalmente, se
afundando no máximo de trabalho possível. Era fácil, já que a
Galeria Torrisi receberia uma exposição em convênio com um
museu do Brasil, intitulada de Poder e Ancestralidade: Uma
exaltação da mulher negra. A estudante queria que tudo fosse
perfeito e Angela estava tão animada, que tinha até mesmo
convocado Sancia para ajudar na divulgação.
No dia em questão, ela acordou mais cedo do que o
costume e esperou por Vincent com impaciência.
— Eu te digo o caminho.
Amélia disse, assim que entrou no carro dele.
— Mas eu coloco aqui no GPS.
— Nada disso. Vamos, Di Castelli, dirija.
— Você está planejando me matar, não está? Vai me
dizer que é uma serial killer desde Londres?
Amélia riu, lembrando-se da primeira interação deles.
— Eu não te contaria se eu fosse, Vincent, essa não é a
primeira regra.
Vincent sorriu, os olhos dourados brilhando com a
lembrança.
— Se eu vou dirigir, eu escolho a playlist. — Ele
declarou, dando partida e avançando nas ruas de Mancia.
— Nada disso. Eu tô com endereço e o celular
conectado no seu carro. — Amélia sorriu — E sim, nós vamos
ouvir Taylor Swift.
Vincent revirou os olhos.
— Por Deus.
— Nem vem, Vince, você cantou Style com Emma um
dia desses. Você sabe das músicas!
— Eu admito que algumas são boas.
— Taylor Swift não tem música ruim, Vincent.
Mas Amélia sabia que aquilo era pura provocação da
parte do piloto. Ela gravou um pequeno vídeo deles dois
cantando No Body, No Crime e postou em suas redes sociais.
Atualmente, Amélia vinha se tornando a fotografa não
oficial de Vincent. A foto do GP de Bahrein, que tirou dele
depois de vencer, acabou indo para a página oficial da
Redemptio e eles quase sempre perguntavam se ela podia
enviar alguma coisa.
A brasileira encarou o perfil do italiano os olhos focados
na estrada e as mãos firmes no volante.
Olhando sua pequena coleção de fotografias, percebeu
algo. Amélia tinha conhecido várias versões de Vincent, mas
sabia que todas elas tinham uma coisa em comum, sempre
tentavam fazer mais e nunca percebiam o que já tinham. Ela
tinha percebido aquilo em Londres e depois, quando tomou
coragem para pesquisar o nome dele no google e descobriu
sua ligação com os Torrisi.
Vincent queria deixar sua marca no mundo, no esporte
que amava, mudar o mundo inteiro e achava que sempre podia
fazer mais. Era uma coisa que eles tinham em comum e Amélia
entendia bem o sentimento de impotência, de sempre tentar e
achar que não conseguiria, que todos os seus esforços não
eram o bastante.
Mas a brasileira estava disposta a mostrar ao piloto o
que ele não era capaz de enxergar, exatamente como Vincent
fazia tantas vezes por ela. E não porque era uma forma de
troca, e sim porque ela queria.
Eles chegaram à Ímola meia hora depois, indo pela via
expressa. Amélia indicou uma entrada e logo deram de cara
com um prédio grande e moderno, pintado de azul claro, as
janelas de vidro refletindo a luz do sol. Era possível ver uma
pista logo atrás, com carros de kart rodando em alta
velocidade, e mais algumas casas ao longo da extensa terra.
— Amélia, porque estamos aqui?
Vincent franziu a testa.
— Você confia em mim?
— Sim.
Ele respondeu sem hesitar.
— Então vamos.
Eles desceram do carro, o vento gelado do começo da
primavera soprando no rosto de Amélia. Na recepção, uma
mulher de cabelos pintados de rosa os recebeu, sorrindo.
— Senhorita Palhares, certo?
— Sim, mas pode me chamar só de Amélia. — Elas se
cumprimentaram com um aperto de mão.
— Então me chame de Ellen, por favor. Serei a guia de
vocês de hoje, por aqui.
Eles subiram pelo elevador até o terceiro andar.
— Os andares abaixo são áreas de creche para
funcionários, salas de descanso e enfermaria altamente
equipada. Como não acho que isso seja do interesse de vocês
agora, vou pular para a parte principal. Aqui são as salas de
aula das crianças.
Ellen apontou para as portas fechadas. Através de um
pequeno vidro, Amélia viu os estudantes uniformizados
concentrados no professor. O andar inteiro era tomado por
salas de aula, música, artesanato e um auditório moderno, em
tons de azul e branco.
Vincent, em silêncio, ouvia toda a explicação e Amélia
percebeu que os olhos do piloto percorriam as instalações.
— As crianças têm ônibus que fazem o transporte todos
os dias. — Ellen explicou, enquanto subiam os degraus para o
próximo andar. — Eles alcançam as áreas rurais de Ímola, que
é o nosso objetivo principal. Temos dois tipos de alunos, os
que ficam em regime integral e só um turno.
Eles chegaram em um grande refeitório aberto, com
janelas que deixavam o sol entrar, mesas e cadeiras coloridas
combinando com a pintura do ambiente.
— Os alunos escolhem quais as aulas, ou se querem
fazer as matérias extras. A maioria deles participa,
especialmente pela promessa do jantar no fim do dia. Algumas
famílias não têm como alimentar tantas crianças e quando elas
voltam de barriga cheia para casa é uma alegria.
Amélia ouviu Vincent soltar um suspiro e, por impulso,
entrelaçou os dedos nos dele. O piloto apertou sua mão, mas
não se virou para ela.
Ellen conduziu os dois para o térreo, em direção à pista
de kart. Havia um pátio aberto antes, com bancos, brinquedos
e áreas de recreação.
— Essa é a área preferida das crianças. — Ellen disse e
riu. — Estão vendo aquelas casinhas? São os produtores locais
que já moravam aqui antes. A vila agrícola vende comida para
a escola e os filhos têm direito a uma vaga.
— Nossa.
Amélia ficou realmente impressionada.
— Você devia ver nossa sala de descanso, depois. —
Ellen sorriu. — Eles mandam doces locais quase todos os dias
para os professores e funcionários.
— E a pista de kart?
— Ah, essa é uma das atividades mais escolhidas.
Tivemos que estender as vagas, porque haviam muitos
interessados. As crianças pequenas têm aulas práticas e
teóricas de pilotagem, as mais velhas já são direcionadas para
corridas amadoras aqui mesmo na Instituição D ‘Oro. Sou feliz
em dizer que alguns estão interessados em se profissionalizar.
O aperto da mão de Amélia ficou mais forte.
— Ellen, você pode nos deixar por um minuto?
— Claro, vou liberar os alunos para o intervalo. Por
favor, fiquem à vontade.
Ela saiu e Amélia puxou Vincent mais para perto do
Kart, observando a pequena turma de alunos que estudava um
carro com a orientação de um professor.
— Quando eu soube que você doava para uma
instituição, eu quis visitar na mesma hora. Esse lugar é incrível,
Vincent.
— Eu sei. — Ele limpou a garganta. — Eu estou sempre
recebendo atualizações daqui e de todas as instituições. Mas
você ainda não me disse o porque estamos aqui.
Gritos de crianças encheram o pátio e Amélia viu um
grupo grande delas correrem, brincando.
— Você me disse que se sentia impotente, por não fazer
nada sobre Ansel. Mas Vincent, não pode salvar o mundo todo,
mas olhe para essas crianças e tudo o que fez por elas. —
Amélia o encarou, os olhos dourados do piloto brilhando. —
Daqui vai sair o próximo piloto mundialmente famoso, uma
menina vai ter a chance de andar de kart pela primeira vez e
descobrir que quer correr. Você deu a essas crianças uma
chance que elas jamais teriam. Você é bom, Vincent.
Amélia se aproximou dele segurou a outra mão do
piloto.
— Existem outras formas de lutar, você sabe disso. O
garoto raivoso de Londres não existe mais, ele aprendeu que
tem como deixar sua marca de outra forma. — Ela o fitou —
Eu acredito em você, Vincent.
Se ela pudesse eternizar aquele momento em uma
pintura e contar a história, Amélia chamaria o quadro de “A
forma de um coração”. Os olhos dourados brilhavam de
lágrimas não derramadas, os cabelos castanhos bagunçados
pelo vento e o sorriso pequeno, cheio de emoção, nos lábios
de Vincent.
O piloto a abraçou, com os braços em sua cintura, e
Amélia encostou a cabeça no peito dele, aproveitando o cheiro
do perfume e de familiaridade. Por baixo do casaco grosso, ela
ouviu as batidas rápidas do coração dele e percebeu que
aquele som a confortava.
— Vincent Di Castelli? — Uma voz o chamou. Um grupo
de adolescentes, de uns 14 anos, os encarava com olhos
vidrados e impressionados.
— Vai lá, famoso. — Amélia murmurou.
Vincent soltou uma risada baixinha, deu um beijo nos
cabelos dela e a soltou.
Passaram o dia inteiro na Instituição D ‘Oro. Vincent
contou sobre a vida de piloto para os mais velhos, assinou
cadernos, blusas e bonés. Na hora do almoço, a mesa deles
era a mais cheia, e até os professores perguntaram
timidamente se podiam tirar fotos.
— Vocês precisam comer comida saudável? — Uma
menina perguntou. — Tipo salada?
— Pilotos têm que comer salada o tempo todo —
Vincent respondeu, com um sorriso gentil — Mas não é tão
ruim quanto parece. Sabia que eu sou vegetariano?
— Então você só come salada? Que vida triste.
Amélia e Vincent riram.
— Não, existem outros pratos vegetarianos muito
gostosos. — O piloto explicou — Eu faço um ótimo macarrão
com molho branco e cogumelos.
A conversa saiu da Fórmula 1 para culinária, as matérias
preferidas das crianças e o que gostavam de fazer quando não
estavam na escola. Todas disputavam por um pouco da
atenção de Vincent, que muitas vezes precisava pedir calma
quando começavam a falar uma por cima da outra, apressadas.
Como não era todo dia que um piloto de Fórmula 1
aparecia por ali, Ellen informou que as aulas da tarde tinham
sido suspensas, e as crianças puderam aproveitar a companhia
de Vincent. Amélia preferiu ficar só observando, registrou
alguns momentos em seu celular, mesmo que aquelas fotos
fossem apenas para a lembrança do dia.
Quando Vincent se sentou para desenhar com um grupo
de crianças pequenas, ele ergueu uma folha que ganhou.
— Uma obra de arte — Amélia disse, encarando o
desenho do piloto segurando um troféu, com um carro ao lado.
O sorriso de Vincent era capaz de iluminar a sala inteira.
Um dos meninos bateu na perna de Amélia e pediu que
a estudante contasse uma história para ele.
— Mas é claro.
Amélia ficou de pé e inventou uma história sobre uma
menina que queria ser cantora, mas os pais não deixavam,
então ela resolveu que seria mesmo assim. Acrescentou um
par de óculos vermelhos, assim como o cabelo da menina
inventada e sorriu quando mais crianças se aproximaram.
— De quem era a história que você contou? — Vincent
perguntou, quando eles conseguiram sair, no final da tarde. O
piloto ainda dirigiu um dos karts, para o deleite das crianças e
dos instrutores.
— Uma cantora brasileira, Rita Lee. Acho que você ia
gostar dela.
— Seu celular está conectado com o meu carro,
Palhares, manda a ver.
Na volta para Mancia, com o céu em tons de rosa, roxo
e azul escuro, Amélia mostrou a Vincent suas músicas
brasileiras preferidas. Ela cantarolou, com peito leve, Rita Lee,
Gal Costa, Alceu Valença, Cazuza, Marina Sena, Iza, Jão e
Alcione.
— Você é uma grande cantora, Palhares. — Vincent
provocou enquanto ela cantava Lança Perfume.
— Ai, Vincent, cala a boca. — Mas Amélia riu.
— Com fome?
— Sim!
Por Supuesto tocava baixinho no som do carro quando
Vincent parou perto do La Fratta.
— Amélia, eu preciso conversar com você. — Vincent
soltou, os dedos ainda no volante.
— Certo.
O coração de Amélia deu um salto, mas ela se virou,
tentando se manter calma. Alguns cenários desastrosos se
formaram em sua cabeça, todos eles terminando com seu
coração partido.
— Primeiro, obrigado pelo dia — Vincent a encarou —
Eu não sei dizer o quanto eu agradeço pelo que fez.
— Sempre pode contar comigo, Vincent. E não precisa
me agradecer.
— Não precisa, mas eu quero.
— Tudo bem então, campeão.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos, apenas
olhando para ela.
— Quero te levar em um lugar. Mas dessa vez, você que
tem que confiar em mim.
— Pretendendo me deixar em uma banheira sem um
rim?
Vincent franziu a testa.
— O que?!
— Uma história que eu vi na televisão quando era
criança, eu te conto depois. — Amélia riu do rosto horrorizado
do piloto. — Sim Vincent, eu confio.
O piloto desceu e pediu para que ela esperasse. Amélia
acenou para Toni, trabalhando de garçom, e viu Vincent voltar
com uma sacola de papel pardo.
Eles caíram em um silêncio confortável enquanto o
piloto dirigia por Mancia, pegando o caminho da mansão
Torrisi. Mas ao invés de tomar a entrada, ele pegou a próxima,
subindo por um pequeno morro e Amélia viu a casa ao longe,
as árvores altas encobrindo parte da sua visão.
— Onde estamos indo?
— Na casa de campo.
— Vocês tem uma casa de campo?
Amélia encarou Vincent, boquiaberta.
— Foi onde Antonia se casou. Minha avó mantém o
lugar para a família que vem no verão, final do ano e essas
coisas.
— Sua mansão não tem quartos vazios o bastante?
Vincent riu.
— Teodora gosta de manter a casa. Ela não admite, mas
é quase o refúgio da minha avó e onde ela mantém todas as
coisas do meu avô.
Amélia assentiu.
Vincent dirigiu até o topo da colina, onde estacionou.
Desceu segurando o pacote de comida e Amélia o
acompanhou. A noite estava mais quente que as outras, o céu
sem nuvens coberto de estrelas, pontos luminosos que
pareciam um pouco mais próximos da terra.
Amélia podia enxergar a mansão Torrisi de um lado,
iluminada em amarelo, e apenas a silhueta de uma grande
casa logo abaixo. Era uma visão bonita e de tirar o fôlego, as
terras da família de Vincent por toda a parte, indo além da
vista.
O piloto, sentado na grama verde e fresca de início de
primavera, abria o vinho quando ela se sentou de pernas
cruzadas, na frente dele.
— Pia mandou o seu preferido. — Ele disse, estendendo
a garrafa para ela. — Rosé suave.
— Meu Deus, eu amo Pia. — Amélia jogou a cabeça
para trás e virou a garrafa com cuidado, sem encostar os lábios
no gargalo. Quando ela encarou Vincent, ele tinha os olhos
vidrados nela. Mais especificamente, na sua boca.
A noite ficou subitamente mais quente.
— O-o que você queria conversar?
Amélia perguntou.
— Eu não sou bom com palavras, não como você. — Ele
pegou a garrafa dela e bebeu um longo gole, imitando a
estudante.
— Se eu fechar os olhos, ajuda?
— Não, preciso que você olhe para mim.
— Tudo bem, Vincent. Você não tem que ter medo de
me contar alguma coisa.
Amélia pegou o saco de comida e entregou o de
Vincent, marcado como vegetariano.
— Esse é o problema, Amélia. Eu sinto vontade de dizer
tudo a você e isso me assusta um pouco.
— Por que?
Ele balançou a cabeça, pegando os garfos de plásticos.
— Eu pedi uma lasanha para você.
— Que italiano.
Eles comeram em silêncio, o ruídos dos insetos nos
ouvidos de Amélia, o vento suave agitando as folhas das
árvores.
— Eu vou para o Azerbaijão amanhã cedo. — Ele disse.
— Tenho alguns contratos de publicidade para a Redemptio.
— Você precisa descansar mais.
— Eu vou ficar bem. Só queria ter mais tempo para
passar com você.
Amélia respirou fundo, tomando coragem.
— Por conta do namoro falso?
— Não.
— Então…
Vincent ficou pensativo por alguns segundos, tempo
suficiente para secar a garrafa.
— Por que você foi embora naquela noite? Em Londres.
Eu fiz alguma coisa que te deixou desconfortável?
— Deus, Di Castelli, se fosse isso eu nem teria falado
com você de novo. — Amélia encarou as mãos — Quer mesmo
saber?
— Por favor.
— Para ser honesta, não estava planejando ter o meu
momento Jesse Wallace naquela noite. No começo eu queria te
contar tudo e você era tão incrível… Mas só não consegui.
— Eu ainda vi aqueles filmes por sua causa, se quiser
saber.
— Fico feliz em saber que meu bom gosto te influenciou
— Amélia tomou uma longa respiração — Acontece que sou
uma medrosa e a pessoa mais covarde que vai conhecer.
— Por?
— A minha vida inteira eu fui acostumada a estar no
controle e me adaptar aos outros. Ser uma boa filha, ótima
estudante, a irmã que Sofia precisa, a amiga sempre
disponível… Essa sou eu. E então, naquela noite, você veio e
não me pediu nada em troca para ficar comigo. Vincent, você
foi tão gentil, paciente e só queria que eu ficasse, fosse eu
mesma. E eu não soube lidar com isso, eu sinto muito.
— Você não precisa pedir desculpas.
— Claro que preciso. Eu fui imatura, não só lá em
Londres mas desde que esse namoro começou. Me desculpa
ter agido feito uma idiota, não ter levado seus sentimentos em
consideração. Tenho medo de que você acorde e perceba que
merece mais, o que são questões minhas, mas eu projetei tudo
em cima de você.
— Eu fiquei decepcionado por não ter te encontrado
depois — Vincent disse e a brasileira os olhos para ele — Você
é uma das pessoas mais extraordinárias que eu já conheci,
Amélia.
O mundo de Amélia se estreitou em Vincent e ela
engoliu em seco.
— E eu sinto muito ter feito isso com você. Foi só difícil
imaginar isso na época. Eu achei seu perfil, quase mandei
mensagem, mas me convenci de que você nem iria lembrar de
mim. Então, fui para a Itália, passei na proposta de mestrado e
então… Conheci os Torrisi. Eu nem sabia que você fazia parte
da família.
— Nunca ocorreu que eu podia aparecer um dia na
galeria?
— Na verdade, sim. — Amélia riu. — Eu me escondia
sempre que eu via alguém parecido com você. Mas três anos
se passaram e nunca nos vimos, meu mestrado está na reta
final… Pareceu impossível. E olha só onde estamos.
— Olha só. — Ele murmurou. — Você ainda tem medo?
Amélia negou com a cabeça.
— O tempo todo, mas acho que sei lidar melhor com
isso. Não é culpa sua. E eu sinto muito se te fiz pensar que
era. Posso dizer que aquele não era meu melhor momento,
mas isso não me dá liberdade para ter sido uma babaca.
— Obrigado por isso.
— Sendo honesta, ainda teria ido embora no final,
mesmo se não fosse por isso. Aquelas nossas versões de antes
eram frágeis demais. E fico feliz de que eu pude encontrar
você de novo, de te conhecer de novo.
Vincent a encarou, os olhos dourados faíscas de fogo
em meio a escuridão.
— Eu não quero que você assine aquele contrato. Não
quero que você seja minha namorada de mentira.
***
Vincent Di Castelli tentou não admitir que gostava de
Amélia Palhares, mas como sempre, o universo cagou em
todos os seus planos.
Tudo começou quando Stefano e Toni oficializaram o
namoro, com direito a declaração romântica em Paris e tudo o
mais, deixando o melhor amigo de Vincent se achando um
expert em relacionamentos.
— Quando você vai admitir que gosta de Amélia?
— Eu não gosto dela.
— Você é um péssimo mentiroso.
— O que é bem ruim, já que você me colocou em um
namoro de mentira.
— Que parece um de verdade...
Vincent deu de ombros.
— Não deveria ser essa a intenção?
— Vincent. — O social media segurou seus ombros. —
Tá acontecendo alguma coisa entre vocês dois. É tão
complicado assim confessar?
— Stefano, não é para tanto. Além do mais, eu nunca
me apaixono.
— Para tudo tem uma primeira vez e eu não falei em
paixão, mencionei interesse. Talvez você só não queira se
aproximar dela e descobrir que esse sentimento é mais forte
do que pensa.
Vincent desviou os olhos, porque era exatamente isso.
Ele não se permitia ficar apaixonado, nunca se deixou
levar longe o suficiente para tentar descobrir onde isso ia dar.
Ele tinha medo. Medo de mergulhar naquele sentimento
que tanto via ao seu redor, ao mesmo tempo que se
perguntava como seria amar alguém do mesmo modo que
Mateo amou Anna, ou que seus avós se amavam.
O amor era risco, uma aposta sem garantia. Lançar
moedas para cima inúmeras vezes e nunca ter certeza se seria
cara ou coroa, se o coração dele seria recebido ou rejeitado.
“O amor é um risco que vale a pena.”
Foi com as palavras da mãe em mente que ele disse:
— Eu não quero que você assine aquele contrato. Não
quero que você seja minha namorada de mentira.
Na defesa dele, Amélia Palhares não facilitou as coisas.
Ela tinha feito tudo aquilo, com tanto carinho, dito um dos
discursos mais bonitos que Vincent já tinha ouvido, no seu tom
de certeza supremo dos fatos, e não podia esperar que ele
agisse como se nada tivesse acontecido.
E Vincent estava muito cansado de fingir.
E agora, ela encarava Vincent com os olhos castanhos
confusos, os dedos brincando com as mangas do suéter azul
escuro. O piloto piscou, ele tinha mesmo falado aquilo? Ah,
que se foda.
— Tudo bem, então.
— Por que eu quero tentar uma coisa de verdade com
você.
As sobrancelhas dela se ergueram de surpresa.
— Você tá falando sério?
— Sim e não tente negar isso aqui entre a gente.
— Isso aqui, o quê?
— Eu não sei — Ele balançou a cabeça. — Na maior
parte do tempo, fico tentando fingir que não sinto alguma
coisa por você, mas não quero fazer mais isso. E se você
assinar aquele contrato, significa seguir todas aquelas regras
estúpidas, o que eu não quero.
— E o que você quer, Vincent?
— Descobrir o que é isso, junto de você. E, juro
Palhares, se você me disser que não vê essa… Coisa entre a
gente, eu vou ter que te dar óculos novos, porque não é
possível. E, porra, eu não planejava te dizer isso assim, de uma
vez, mas você complicou tudo.
— Compliquei?
Ele suspirou.
— Sim, Palhares, complicou. Sei lá, eu esperava pelo
menos um tempo antes de realmente te propor jogar o
contrato fora. Não me leve a mal, foi um dos melhores dias da
minha vida, mas eu estava planejando uma coisa diferente.
Típico de você passar por cima dos meus planos.
— Ah é?
Amélia sorriu, se aproximando de Vincent.
— É. Me sinto meio idiota de ter dito tudo isso de uma
vez, agora e…
A fala de Vincent foi interrompida pelos lábios de
Amélia. O piloto fechou os olhos e levou um segundo para
entender o que aconteceu. Amélia tinha acabado de dar um
beijo nele.
Ela se afastou depois do longo selinho. A mente de
Vincent se transformou em um quadro em branco, apenas a
sensação do toque pairando sob sua pele. O piloto retirou os
cabelos de Amélia do rosto, em seguida seus óculos e a beijou
como ela merecia ser beijada.
O gosto de Amélia era exatamente como Vincent se
lembrava, na verdade, ainda melhor, misturado ao vinho. Os
lábios receptivos e macios se abriram, acordando cada
terminação nervosa dele. O coração do piloto era uma bagunça
de batidas descompassadas.
Segurando a parte de trás do pescoço dela, Vincent
pressionou os dedos com firmeza, aprofundado o contato. As
mãos de Amélia se apoiaram em seus ombros, acariciando os
cabelos e um arrepio reverberou por seu corpo, quando as
unhas dela rasparam a nuca dele.
Buscando ar, eles se separaram, as testas encostadas,
respirações pesadas misturando-se. Todos os sentidos de
Vincent foram tomados pela mulher em seus braços. O cheiro,
ameixas, café e casa, os dedos queimando a pele dele com o
toque febril e certeiro.
— Amélia, você não tem ideia do quanto eu queria fazer
isso.
Ele disse, trazendo-a mais para perto, embora não
parecesse que fosse o bastante. Amélia o encarou, milhares de
estrelas brilhando nas irises.
— Não tanto quanto eu.
Ela sussurrou, segurou o rosto dele, e beijou o ponto
abaixo da orelha do piloto. Vincent fechou os olhos, calor
espalhando-se em seu peito. Esperou que a brasileira se
afastasse para beijá-la de novo, mais forte, sem se importar
que estavam em cima de uma colina e à vista de quem
ousasse olhar pela janela. Não conseguiu formar um
pensamento coerente quando apertou os quadris dela e Amélia
soltou um gemido baixinho.
Vincent segurou os fios castanhos e tombou a cabeça
dela para trás, tendo acesso à curva do pescoço. Os dedos de
Amélia apertaram o bíceps dele com força, e ele a tocou com a
ponta do nariz, inspirando.
— Você me deixa louco, Palhares, sabia disso? — Ele
sussurrou e sorriu quando ela estremeceu. Vincent beijou sua
pele com delicadeza, fascinado pelos sons que ela fazia, lábios
entreabertos.
— Vincent…
Amélia murmurou.
—Sim, mia bella, quer alguma coisa? — Os lábios de
Vincent tocaram a brasileira em uma carícia leve.
— Você. Eu quero você.
— Que bom para você que eu sou ótimo em realizar
desejos.
Ele respondeu, ganhando uma risada baixinha.
Vincent segurou-a com força, pronto para se perder em
outro beijo, quando um toque de celular, alto, fez os dois
congelarem. Uma música estridente ecoou pelo ar e eles se
encararam, sem reação.
Amélia riu, deu um selinho rápido nele e alcançou o
aparelho.
— Alô?
Vincent abraçou a cintura dela, a cabeça enterrada entre
o pescoço e ombro, o cabelo roçando sua bochecha.
— Espera, o que?!
Amélia riu de novo e Vincent franziu a testa. Ela tirou o
aparelho da orelha e colocou no viva voz.
— … A minha cozinha tá um caos, Amélia! Tem água em
todos os cantos, Sancia foi desligar o registro, mas isso aqui
parece o novo canal de Mancia, e… Ai meu Deus, ali é um rato!
Angela deu um gritinho e Amélia riu.
— Eu tô indo para aí.
— Por favor, Amélia, não demore!
Ela desligou e abraçou Vincent de volta, virando o rosto
para ele.
— Acho que temos que ir.
— Temos mesmo?
Ela beijou a testa dele.
— Sim, campeão.
Eles se levantaram e recolheram as coisas antes de
entrar no carro.
Maldita Angela Savier. Porra, ela não podia ter chamado
outra pessoa, quem sabe um encanador? Vincent balançou a
cabeça, distraindo a cabeça enquanto Amélia ligava para
Angela de novo, tentando entender o que diabos tinha
acontecido.
Chegaram no prédio de Angela minutos depois e um
verdadeiro caos tinha se instalado. Um cano quebrou no
apartamento da francesa, revelando uma infestação de ratos.
Agora, além de sem água, todos os moradores tiveram que ser
evacuados às pressas por risco de infecção.
Vincent e Amélia ajudaram a estudante com os itens
principais e o piloto levou Angela para o apartamento de
Sancia.
— Obrigada por terem vindo me socorrer — Angela
agradeceu.
— De nada, An — Amélia a abraçou — Podemos
procurar apartamentos novos para você amanhã.
— Agradeço. — Ela suspirou — Pelo menos meu
computador ficou a salvo, eu cometeria um crime se minha
tese tivesse sido perdida.
— Você não faz back-up?
— Não, Vince, mas depois dessa acho que é hora de
começar. — Angela os encarou por um segundo. — Onde vocês
estavam?
— Ah, nós… A gente saiu — Amélia respondeu e suas
bochechas coraram. Vincent também não se ajudou, abrindo
um sorriso pela timidez da brasileira.
— Ai, meu Deus! — Angela riu. — Certo, desculpem ter
atrapalhado.
— Desculpas aceita.
— Você não atrapalhou.
Vincent e Amélia disseram ao mesmo tempo e trocaram
um olhar.
— Não atrapalhou, Palhares?
O piloto provocou.
— Vincent, pelo amor de Deus. — Amélia revirou os
olhos. — Vou deixar vocês duas sozinhas, a gente já vai.
Eles se despediram e Vincent levou Amélia para casa.
Já passava da meia noite e ele tinha que acordar cedo
para pegar um voo, mas Vincent não queria se despedir ainda.
— O que fazemos agora, Di Castelli?
Ela perguntou, ainda dentro do carro.
— Eu te beijo? — Amélia bateu em seu braço — Ai!
— Jesus, Vincent. Eu quis em relação ao que somos.
Amigos que se beijam mas fingem que são namorados de
mentirinha?
— É uma boa definição — Vincent se virou para ela —
Não precisamos ir com pressa, apesar de que todo mundo
acha que já namoramos. Você disse que nossas versões em
Londres eram frágeis e eu adoraria conhecer a nova Amélia
Palhares, porque gosto muito dela. Claro, se quiser desfazer o
namoro para a mídia, não vejo problema com isso.
Ela sorriu e Vincent gravou a imagem na cabeça
— Não, eu não vejo porque não continuar e eu aceito ir
devagar. E você nem me deixou te responder, Vincent, mas eu
também gosto de você. — O piloto relaxou no banco. — E eu
ainda sinto que você tem muito o que me contar, garoto
raivoso de Londres que não é mais raivoso.
Ela se inclinou e tirou uma mecha de cabelo da testa de
Vincent. O toque era delicioso.
— Quando te vejo de novo?
— Na sua próxima folga, eu acho. Só tenho pausa nos
estudos daqui a um tempo e minha dissertação não vai se
escrever sozinha, por mais que eu quisesse.
Ela suspirou, os olhos um pouco sonolentos. Vincent
esticou a mão e acariciou a bochecha dela, sentindo Amélia
relaxar.
Era um pouco desconcertante como ela sempre reagia
às palavras, toques e gestos de Vincent. Ele se perguntou, com
curiosidade, o que mais a deixaria daquela maneira? As
respostas foram cenas obscenas com a mulher ao seu lado e
ele precisou limpar a garganta com força, porque adoraria que
um dia se tornasse realidade.
— Eu vou ver uma brecha entre as corridas. Tem o
aniversário da minha avó, em maio, no dia 05.
— O que eu compro de presente para uma milionária?
— Ela gosta de diamantes e peças de crochê.
Amélia riu.
— Vou arrumar uma peça de crochê em formato de
diamante, nesse caso. Preciso ir, Vincent.
— Sem um beijo de boa noite?
Amélia se inclinou, um sorriso pairando nos lábios,
escovou os cabelos da testa do piloto e beijou a ponta do nariz
dele.
— Durma bem, Vincent. Me avise quando chegar em
casa.
A lembrança de Amélia permaneceu com Vincent
durante o resto daquela semana. Quando acordou no dia
seguinte, tinha uma foto dela na conversa dele, sorrindo, os
olhos apertados contra as maçãs do rosto altas. Ele lembrou-se
do beijo dela, o cheiro de ameixas ainda em suas roupas.
Vincent estava ficando um pouco viciado em Amélia
Palhares. E ele gostava disso.
Talvez Amélia fosse mesmo seu amuleto da sorte em
corridas, porque tudo estava conspirando a seu favor naquele
fim de semana. O céu azul violáceo, limpo e sem nuvens, era o
tempo perfeito para a pista de Baku, que tinha um grau de
dificuldade maior. Arthur concluiu as mudanças no carro da
Redemptio com sucesso, adaptando-se ao misto de retas e
curvas que o circuito exigia.
Vincent estava se sentindo mais do que bem. A
sensação de tirar um peso das suas costas foi aliviante e
combinado como os excelentes resultados nos treinos livres,
fez seu humor ficar nas alturas.
— Você está feliz, meu filho — Anna comentou, quando
Vincent ligou para ela no intervalo entre os treinos — O que
aconteceu? Você sempre reclamou de Baku e dizia como a
pista era complicada.
— Não foi nada, dona Anna, só estou feliz mesmo. E
vou ganhar esse GP, o carro da Redemptio está impecável.
— Hum… Você não está me contando alguma coisa.
Vincent riu.
— Eu nunca consigo esconder nada de você, não é?
— Sou sua mãe, te conheço melhor do que todo mundo.
— Só tive uma noite boa com Amélia antes de sair de
Mancia, só isso.
— Imaginei. Ela sempre coloca um sorriso no seu rosto.
Seu pai fazia o mesmo por mim, ele dizia que a maior alegria
dele era quando eu ria.
O piloto encarou um ponto aleatório do grid e lembrou-
se do som da risada de Amélia, os olhos se fechando enquanto
ela ria. Entendia seu pai.
— Você sente falta do meu pai?
Vincent perguntou, sem se conter.
— Claro que sim. Às vezes, quando olho para você, me
sinto triste pelo que ele perdeu, pela vida que não tivemos
tempo de viver. Mas feliz, também, porque Matteo me deixou
você.
— Amo você, mãe.
— Amo você, querido. Boa sorte na corrida de amanhã,
estarei assistindo!
E Vincent se sentia com muita sorte. Não tinha como
nada dar errado naquela corrida.
Até que, faltando 10 voltas para o final, Kob tentou
ultrapassá-lo, e Vincent segurou o tailândes, mas sentiu
alguma coisa estranha com o carro. Apesar disso, conseguiu
garantir a posição de segundo lugar.
O piloto tinha acabado de sair do pódio, quando Kob
Vanich o alcançou, irritado.
— O que foi?
Vincent perguntou, confuso.
— Estava tentando nos matar hoje, Di Castelli?
— O que?
— A fechada que você deu no meu carro, hoje, naquela
volta. Abriu um buraco na lateral, você sabia disso?
Vincent deu de ombros.
— Foi só um toque, acontece em toda corrida.
— Não depois que o design do carro na minha equipe
vaza — Kob estalou a língua, o maxilar bem marcado tenso —
Se você tem pretensão de me matar, faça fora das pistas, não
enquanto eu estou em alta velocidade.
— Kob, desse jeito fica parecendo que você é um piloto
que não sabe perder — Vincent cruzou os braço e se
aproximou.
Kob passou a mão pelos cabelos escuros, parecendo
cansado, mas Vincent não ligava. Ele fazia ultrapassagens
ousadas, todo mundo sabia, mas jamais colocaria em risco a
vida de outro piloto com movimentos que podiam machucar
alguém.
— Di Castelli, não me dê mais motivos para desconfiar
da Redemptio, especialmente depois que Arthur tentou
recrutar nosso engenheiro chefe, pelas costas da Dalton.
— Por que o Arthur faria isso?
— Me diga você. Tenha mais cuidado na pista, garoto.
Vincent trincou os dentes.
— Não me chame de garoto, porra! Eu não fiz nada de
mais.
Kob arrumou a postura.
— Então não aja como um garoto, Vincent. Ganhou dois
títulos mundiais e na maior parte do tempo você e sua equipe
tentam ferrar os outros pilotos, é assim que quer ser
lembrado? Como um trapaceiro?
— O que você quer dizer com isso?
— Você me ouviu bem.
Vincent queria muito dar um soco em Kob, mas se
controlou. Ele estava prestes a rebater, quando a voz de Chase
Astier chegou até os dois pilotos.
— Meus dois pilotos preferidos em uma conversa super
tranquila. — O francês se aproximou, rindo e em seguida,
baixou o tom de voz. — Tem câmeras viradas para cá, é
melhor vocês dois calarem a porra da boca se quiserem ter
paz.
Kob encarou Chase, depois Vincent e saiu, sem dizer
mais uma palavra, pisando duro.
— Você ouviu tudo?
— Uma parte.
— Ótimo, me explica o que está acontecendo, então. —
Vincent puxou Chase em direção a uma área mais privada. —
Por que ele me chamou de trapaceiro? O que tá rolando?
Chase suspirou antes de responder.
— Eu só queria curtir minha vitória em paz, porque
vocês me dão tanto trabalho? É só um boato Vincent, mas
depois do vazamento do carro da Dalton, as coisas ficaram
complicadas.
— E esse boato diz…
— Que a Redemptio pagou engenheiros para
danificarem as peças do carro das outras equipes.
Vincent franziu a testa, uma risada nervosa subindo pela
sua garganta.
— Isso é ridículo!
— Eu sei, mas teve muita gente que acreditou.
— Posso até adivinhar quem começou essa história
toda.
Os dois trocaram um olhar, sabendo perfeitamente a
fonte dos rumores, mas sem poder dizer em voz alta pelo risco
da acusação.
— Eu queria poder fazer alguma coisa. — Vincent coçou
a nuca. — Porra, olha o que tá acontecendo Astier e nenhum
de nós pode fazer nada. Que merda.
Chase pressionou os lábios em uma linha fina, com as
mãos na cintura.
— Um dia, Vincent, um dia. Até lá, tente ganhar de mim
pelo menos, é um avanço.
Vincent revirou os olhos.
— Vou acabar com você em Miami.
— Faça o seu melhor.
Apesar da risada, a raiva ainda borbulhava no interior de
Vincent. Tinha que existir um jeito de lutar contra o canalha de
Ansel Bellini, ao invés de suportar toda aquela merda calado.
Ele só precisava descobrir como.
18.
Três anos atrás
Outubro, 22:58, Londres.
Amélia sempre soube que os primeiros beijos são um
desastre.
Há sempre o nervosismo entre duas pessoas que jamais
compartilharam um beijo na vida, os lábios são hesitantes e
medrosos, as mãos nunca encontram um lugar certo onde ficar
e ninguém sabe muito bem o que fazer.
Por isso ela não se surpreendeu com o primeiro toque
de Vincent, leve, um selinho desajeitado e demorado. Mas
evoluiu para um beijo de verdade quando o piloto mordeu seu
lábio inferior, encaixando melhor as bocas. Amélia enterrou os
dedos nos cabelos dele, sentindo a maciez dos fios, segurando
um suspiro quando a língua do piloto encontrou a sua.
Era bom. Amélia queria ser beijada daquela maneira
pelo restante da sua vida.
O balanço rangeu quando Vincent tentou se aproximar
mais e a estudante riu nos lábios dele.
— Acho que é melhor eu sair daqui.
Vincent estendeu a mão e assim que Amélia desceu do
brinquedo, ele a puxou para si, uma risada escapando do
piloto. Os braços dele cercaram sua cintura, os dedos firmes na
parte mais baixa da lombar. Ele encostou a testa na dela, com
delicadeza.
— Qual perfume é esse?
Amélia franziu a testa.
— Porquê?
— Está me deixando louco.
Ele respirou fundo, como se tentasse capturar o cheiro
no ar. Amélia o observou, lutando contra um sorriso que
insistia em permanecer nos seus lábios.
— Eu gosto do seu sorriso. — Ela disse, tocando o rosto
de Vincent, alguns pelos arranhando a ponta dos seus dedos.
— Você fica diferente quando sorri, sabia disso?
O piloto franziu a testa.
— Sério?
Amélia assentiu e passou os braços ao redor do pescoço
de Vincent.
— Parece que você tem tanta coisa acontecendo dentro
da cabeça, que às vezes fica sério demais. Eu gosto da sua
versão sorridente.
— Bom, você foi a responsável pelos meus sorrisos hoje.
— Que bom. Eu também gosto de te fazer rir.
Amélia beijou Vincent devagar, sem se importar quando
seu único cobertor limpo caiu dos ombros dele, na grama ainda
molhada. Ela não queria pensar em nada que não fossem os
lábios dele, o gosto de Vincent, tão doce, tomando sua boca.
As mãos de Vincent deslizaram para o cós da calça de
Amélia, e ela se arrepiou por inteira com o toque leve dos
polegares dele na pele por baixo da blusa, a mão escorrendo
até sua bunda, em um aperto firme. Ela se sentiu tonta e um
suspiro escapou.
Aquilo pareceu despertar alguma coisa em Vincent,
porque ele a apertou com mais firmeza, as mãos por toda
parte do corpo da brasileira, e ela estava gostando, não,
adorando a maneira sem pressa que ele a explorava. Os seios
pesaram, quando Vincent segurou sua nuca, inclinando a
cabeça dela para trás, beijando a linha abaixo do maxilar.
Amélia mordeu o lábio inferior, joelhos fraquejando,
adrenalina percorrendo suas veias, desejo latente. Vincent
chupou o lóbulo da orelha dela, os dentes puxando a pele para
baixo, e ela gemeu.
— Esse som… Se você soubesse as coisas que eu quero
fazer com você, Amélia.
Amélia não queria saber, queria que ele mostrasse.
Vincent a beijou novamente Amélia se sentiu desejada.
Eram beijos que diziam que ele a achava bonita, toques que
deixavam sua pele pegando fogo, carícias que faziam o ponto
entre as pernas dela formigarem em expectativa.
Amélia quase soltou outro gemido quando percebeu que
Vincent estava duro, mesmo sob o jeans grosso.
A respiração do piloto, pesada, soprou em arfadas e eles
se encararam. O ar da noite, gelado, bateu nas bochechas
coradas de Amélia, que se sentia febril. Vincent tirou os
cabelos dela da frente do rosto, os lábios vermelhos e
inchados, os cachos bagunçados e a estudante imaginava que
devia estar da mesma maneira.
— Oi.
Vincent disse, um único braço ao redor da cintura dela.
— Oi.
Amélia respondeu, enterrando o rosto no peito dele.
Vincent se afastou e puxou Amélia consigo. Ele pegou o
cobertor e devolveu os óculos dela, se sentando no banco onde
tiveram a primeira conversa da noite. Dessa vez, Amélia jogou
as pernas por cima das deles, e o piloto massageou seus
joelhos.
— Você não me disse seu sobrenome.
— Hum… — Amélia desviou os olhos. — Não quer
continuar como Celine e Jesse?
— Isso é de um filme?
— Você nunca viu Antes do Amanhecer? — Amélia o
encarou, incrédula. — É nossa exata situação inteira.
Amélia resumiu o filme para Vincent e quase riu consigo
mesma ao perceber que ela daria uma de Jesse Wallace no
final da noite. Uma pontada de culpa chutou seu estômago,
mas ela fingiu que não sentia nada. Queria aproveitar as horas
ao lado dele o máximo possível, antes de se despedir.
Lidaria com o estrago emocional mais tarde.
— Então esse é um dos filmes veja antes de morrer?
— Sim! Os três na verdade. Agora só falta você me dizer
que precisa ir embora amanhã cedo.
Ela brincou, a cabeça encostada no ombro dele, as
palavras amargando na boca.
— Não, só mais tarde. Mas não vou ser burro como eles,
eu quero seu contato, Amélia.
— Você tem certeza disso?
Vincent a olhou, meio hesitante.
— Tudo bem se você não quiser.
— Ah, não é isso. É só… Na verdade, deixa para lá.
Antes de ir embora eu te passo.
Amélia sorriu, empurrando a onda angustiante que
ameaçou se abater sobre ela.
Foram emoções demais vivenciadas em um espaço de
24 horas e ela tinha certeza que iria desmoronar no minuto
que ficasse sozinha. Mas não agora. Não quando ela queria ser
beijada novamente por aquele homem.
Aqueles problemas ficaram para a Amélia do amanhã
resolver.
— Tudo bem, então.
Vincent sorriu e se inclinou, capturando a boca dela em
outro beijo lento, desejo misturado com carinho. Uma das
mãos dele subiu para a coxa dela, não passando da parte
acima do joelho, mas já era o suficiente para que pensamentos
sobre Vincent beijando seu corpo inteiro, tomassem conta de
Amélia.
Ela se deixou levar pelos lábios dele, pelos dedos em
sua pele, pela sensação de ter Vincent por algumas horas,
sabendo que jamais pertenceriam um ao outro.
Melhor assim. Ela disse a si mesma, beijando o pescoço
do piloto, descobrindo que a pele dele também estava quente.
Melhor assim.
19.
Maio
Amélia se perguntava como Vincent conseguia se meter
em tanta confusão em menos de um final de semana.
Ela e Angela leram, chocadas, as notícias sobre a
suposta briga do piloto com Kob Vanich, seu rival de corridas.
Pelas fotos, os dois pareciam irritados, se encarando e perto de
se baterem, mas foram apartados pelo vencedor daquele dia,
Chase Astier. E como se não fosse o bastante, haviam as
acusações de Ansel Bellini contra a Redemptio.
— Dá para atropelar Ansel com um carro de Fórmula 1?
— Amélia perguntou a Angela — E parecer acidental é claro.
— Claro que dá, mas morrer seria pouco para esse
desgraçado — Angela respondeu, os olhos cerrados na direção
do celular.
Ela tinha achado um novo apartamento, mais perto
ainda do prédio de Amélia, e praticamente morava ali, já que
Sancia estava em viagem de trabalho por algumas semanas.
Angela intimou Amélia no dia seguinte ao beijo com
Vincent e pediu todos os detalhes. Ela deu gritinhos
empolgados quando a brasileira contou da declaração e
abraçou a amiga apertado no final do relato.
— Ames, você merece nada menos do que isso. E eu
fico feliz de saber que Vincent finalmente abriu a boca, nem
acredito que ganhei a aposta.
— Espera, que aposta?
— Stefano e eu apostamos em quanto tempo vocês dois
iriam se tocar que gostavam um do outro. Ele disse que seria
no final da temporada e eu antes do seu aniversário.
— Não acredito! Angela, te odeio.
Angela deu a língua a Amélia.
— Me odeia nada. Agora vem, vamos assistir o desfile
da minha namorada maravilhosa. — Ela ligou a televisão em
um canal que exibia a Semana de Moda em Paris — Emma me
mandou uma foto de lá, queria tanto ter ido! Se eu não
conseguir nota máxima nesta dissertação, eu farei um
protesto.
— Queimaremos carros assim como os franceses!
Amélia completou.
O mestrado de Amélia estava da mesma forma que o
clima da primavera italiana: imprevisível. Ela nunca sabia se o
seu orientador havia gostado do que tinha escrito, assim como
não conseguia saber se seria um dia de sol infernal, ou um frio
leve.
Apesar do clima e dos estudos, estava feliz, ou muito
perto disso.
O beijo com Vincent não saia da sua cabeça e ela
precisava admitir que volta e meia imaginava como seria se
tivessem continuado ali. Em todos os cenários, Amélia
terminava sem roupa e gemendo o nome de Vincent para as
estrelas. E ela adoraria que a imaginação se tornasse
realidade.
Entretanto, a vida de Vincent estava um completo caos.
Além de lidar com acusações ridículas, aparições públicas e
eventos, ele ainda era um piloto que disputava seu terceiro
título. Amélia queria ajudar, da melhor forma que podia, mas
tanto Vincent quanto Stefano, concordaram que era melhor
que ela se mantivesse longe até as coisas se acalmarem.
— Eles são cruéis demais, Amélia, e agora mais do que
nunca. Eu não quero que você seja exposta e sua vida fique
mais complicada do que já é. — Vincent suspirou, olheiras
escuras embaixo dos olhos cor de âmbar. — Desculpe por isso,
aliás.
— Por que você tá pedindo desculpas? Tecnicamente, já
somos namorados assumidos para a mídia.
— Adoro quando você diz tecnicamente. — Ele
provocou, com um sorriso. Os cabelos loiros estavam molhados
e o piloto estava deitado na cama de algum hotel, já vestindo
um conjunto de moletom para dormir. Estavam se falando por
chamada de vídeo há algum tempo, quando entraram no
assunto.
— Tesão em gramática?
— Você fala italiano com sotaque brasileiro e eu adoro
isso. — O coração de Amélia duplicou de tamanho e ela sentiu
as bochechas vermelhas.
— Sinto sua falta.
Ela disse, relaxando os ombros.
— Eu também, Palhares. Tudo certo para o aniversário
da minha avó?
— Sim, eu até comprei um presente.
— Os diamantes?
— Espero que ela goste de versões falsificadas de
diamantes. — Vincent riu. — Não, eu vou dar uma coisa
especial.
— O que é?
— Não posso te dizer, tem a ver com o meu mestrado.
— Ah, o mestrado secreto que você não pode me contar
o tema. — Ele brincou e fez uma cara de magoado. — Vai
mesmo negar esse único favor para mim?
— Sim, eu vou. Você vai saber quando eu puder, Di
Castelli, não seja enxerido.
— Tudo bem, tudo bem, estarei esperando.
Amélia revirou os olhos, mas não desfez o sorriso.
Vincent Di Castelli era muito bom em sempre deixar um sorriso
nos seus lábios e ela gostava ainda mais dele por isso.
O aniversário de Teodora coincidiu com o fim de semana
de folga de Vincent e a família Torrisi inteira se reuniu para
celebrar os 75 anos da matriarca. Os blogs de notícias não
falavam em outra coisa há um mês, contando a vida da mulher
até mesmo na televisão. Emma mandou fotos da decoração,
em preto e branco, e contou os detalhes da luxuosa festa, que
seria dada no jardim da mansão, para 400 convidados.
E Amélia seria um deles.
— Eu escrevi a versão sáfica do seu namoro de mentira.
Sofia disse, por chamada de vídeo, na noite anterior à
festa. A irmã de Amélia deu gritinhos empolgados com os
últimos acontecimentos da história, os olhos atentos à fofoca.
— Quando posso ler, amora?
— Vou revisar e te mando uma cópia.
— Quero uma também! — Angela gritou do sofá.
— Claro que sim, Angela.
Sofia sorriu, os cachos ruivos penteados em um coque
frouxo. Ela usava um vestido cor de rosa, com estampa de
morangos, e maquiagem elaborada. Estava indo para o
lançamento do livro de um colega e ligou para Amélia
enquanto esperava a namorada se arrumar.
— Vou ser bem crítica, fique sabendo. É inspirado em
mim, quero fidelidade aos fatos.
— Vou é mandar para o seu namorado falso, para saber
se as partes de Fórmula 1 estão boas. Aliás, namorado falso,
ou de verdade?
— Não estamos namorando.
— Ainda — Sofia provocou e Amélia revirou os olhos —
Amor, o brinco de estrelas fica melhor do que as argolas.
— Você acha mesmo? — A voz de Maria Cássia ecoou.
— Aliás, oi Amélia!
— Oi Maria!
— Sim, eu acho. Vou pedir o uber, tudo bem? — Sofia se
virou para a irmã, um sorriso apaixonado nos lábios — Me
conte todos os detalhes dessa festa, visse? Eu preciso saber!
— Vai ser uma festa de gente rica e sem graça, não tem
muito o que contar.
— O que não significa que não quero saber! Preciso ir
amora, amo você.
— Amo você, amora.
No dia seguinte, Amélia se analisava no espelho do
quarto, torcendo para que não tivesse errado na roupa.
Ela usava uma combinação de cropped, com alças
grossas, e uma saia longa, com uma fenda até metade das
suas coxas. O tecido transparente era coberto com aplicações
de flores, em degradê de azul e amarelo claro, um empréstimo
diretamente da Dior, para aquela noite. O cabelo dela foi preso
pela metade em uma trança intrincada, com alguns fios soltos
emoldurando seu rosto, que brilhava em dourado pela
maquiagem.
Amélia nunca se sentiu tão bonita na vida. Ela andou
pelo apartamento com os saltos prateados, só porque podia, e
treinou poses na frente do espelho até a hora em que Vincent
bateu no seu apartamento.
E, por Deus, ele estava maravilhoso.
— Caralho.
Amélia deixou escapar. Vincent usava um terno, sem
camisa por baixo, em um bege claro e bonito, diversas
correntes douradas e longas no pescoço. Os cachos escuros
estavam maiores, finalizados com perfeição, e ele exibia um
sorriso charmoso que completava o visual.
A boca da brasileira secou.
— Acho que pela sua cara, você gostou, Palhares.
Vincent riu e Amélia revirou os olhos, fechando a porta
do apartamento.
— Às vezes eu ainda odeio você, sabia? Mas sim, você
ficou um grande gostoso, como dizemos no Brasil.
— Normal e obrigado. — Amélia estava indo em direção
às escadas quando Vincent a segurou pelo braço. — Por Deus,
mulher calma. Me deixe te olhar por um segundo.
Amélia mordeu o lábio, tentando manter uma postura
ereta e falhando. Ela estava nervosa, para cacete, e talvez isso
tivesse a ver com o que Vincent acharia. Só talvez.
O piloto deu um passo para trás, as mãos nos bolsos, os
olhos a analisando de cima a baixo, a irises escurecendo a
cada segundo. Vincent não disse nada por muito tempo,
apenas olhando, o que fez o estômago se embolar por inteiro,
porque a forma como ele a encarava… Era como se ela fosse o
começo e o final dos seus pensamentos.
Quando ele a olhou nos olhos, Amélia soltou uma
respiração pesada, eletricidade crepitando em seus braços
expostos. Ele se aproximou, e segurou o rosto dela com uma
mão, os dedos acariciando a pele com carinho.
— Mia bella. — Ele disse, as palavras não passando de
um sussurro. — Você é a obra de arte mais linda que eu já vi,
mia dea.
Amélia precisou segurar-se nos ombros dele, porque as
pernas não tinham mais força alguma. Mia dea, minha deusa.
Vincent a beijou, com leveza.
— Adoraria beijar você como eu queria, Amélia, mas
estragaria sua maquiagem e cabelo. E temos uma festa para ir.
Amélia não se importava com maquiagem ou cabelo,
queria que Vincent a beijasse e calasse a vontade urgente que
sentia dele, mas se importava com Teodora.
— Aliás, senti sua falta. — Ela disse, torcendo para que
o rubor em suas bochechas passasse depressa.
— Eu também. — Vincent deu um beijo no dorso da
mão dela, antes de entrelaçar os dedos deles. — Pronta para
ser o assunto da noite e conhecer minha família inteira?
— Nossa, obrigada, me sinto muito menos nervosa
agora.
Vincent riu.
O trajeto até a mansão foi diferente da primeira vez.
Amélia arrumava os cabelos castanhos de Vincent sempre que
tinha a chance e ele descansava a mão na coxa dela, com um
sorriso leve no rosto. Mas não só eles, como a casa dos Torrisi
tinha mudado.
Inúmeros carros de luxo estavam estacionados, as
janelas irradiavam luz amarelada suave e conversas
preenchiam o ar, acima do jazz que tocava. A noite italiana,
repleta de estrelas e com cheiro de pinheiros, parecia o cenário
perfeito para a comemoração.
Amélia se viu obrigada a parar para fotos, com Vincent,
flashes de fotógrafos autorizados pelos Torrisi e até mesmo
imprensa credenciada.
— É como se fosse o evento do século em Mancia. —
Vincent disse a ela. — O Met Gala italiano.
— E onde está a Rihanna? Não é o Met Gala sem ela.
— Ela veio há uns dois anos, na verdade. — Amélia
encarou Vincent, incrédula. — Minha tia é produtora musical e
conhece ela.
— Tá falando sério?!
— Não. — Vincent riu e Amélia revirou os olhos. — Tia
Lara conhece mesmo a Rihanna, mas ela nunca veio.
A festa de Teodora acontecia no enorme jardim Torrisi,
que Amélia tinha certeza de estar próximo do Maracanã. As
flores bem cuidadas já eram decorações por si próprias, mas
diversas lanternas espalhadas entre as folhagens, tornavam o
cenário ainda mais bonito. Mesas pontilhavam a grama, com
comidas e bebidas à vontade. E uma enorme pista de dança
abrigava os casais de jovens e adultos, dançando baladas
suaves.
— Uau. — Amélia sussurrou, impressionada.
— Está incrível. — Vincent a guiou por entre os
convidados. — Nonna!
Amélia foi surpresa por um abraço apertado de Teodora,
as jóias no vestido dela arranhando sua pele.
— Amélia querida, que bom ver você. Eu queria tanto
ter tempo de passar na Galera Torrisi, mas as coisas estão
sempre tão caóticas.
— Tão ocupada, esta senhora milionária… — Vincent
provocou e Amélia engoliu uma risada.
— Por que mesmo te convidei, Vincent?
— Por que Amélia não viria sem mim.
— No próximo ano, mando o convite só para ela. —
Amélia tentou muito não pensar se no próximo ano ela ainda
estaria com Vincent. — Como está, menina?
— Muito bem, senhora Torrisi, obrigada. — Amélia
abaixou o tom de voz. — Na verdade, eu tenho um presente
especial para entregar à senhora. Um que talvez Fúlvia D ‘Oro
tenha deixado.
Os olhos de Teodora ganharam um ar de curiosidade.
— Ficarei feliz em recebê-lo. E me chame de Teodora,
não aguento mais ouvir o senhora Torrisi hoje.
Amélia assentiu, ganhando um novo abraço.
— Feliz aniversário, nonna. — Vincent abraçou a avó e
Amélia sorriu da senhora emocionada ao receber o abraço do
neto.
— Obrigada, agora vão se divertir! Preciso que os jovens
ajudem a movimentar essa festa.
Vincent e Amélia conversaram com alguns Torrisi, que
ela ainda não conhecia, e figuras importantes da Itália. A
estudante sorria por fora, mas ao conhecer uma das artistas
modernas mais promissoras do país, quase teve um ataque de
fã e precisou se controlar.
— Ames! — Emma a abraçou e Amélia retribuiu. — Que
bom que veio.
— Depois de você ter todo o trabalho por conta do
vestido, eu não tinha como não vir.
A loira sorriu, em um vestido rosa de tecido brilhante e
sedoso, justo no corpo, com luvas combinando e um colar de
diamantes. Amélia a imaginou como uma versão da Barbie, só
que alguns centímetros mais baixa.
— Nossa mesa fica ali. — Emma abraçou Vincent
rapidamente e indicou um caminho próximo à pista de dança.
— Eu tenho que conferir se está tudo certo, vejo vocês depois!
— Cuidado com os saltos, Em. — Vincent disse a ela.
— Por favor, Vince, eu nasci andando de salto alto. — A
loira desapareceu entre os convidados.
Para o alívio de Amélia, todos os seus amigos estavam
ali.
Angela, em um vestido branco da Versace e Sancia do
seu lado, usando um longo verde escuro drapeado,
combinando com brincos de jade. Stefano e Toni, em ternos
azuis claros, com cortes que combinavam. Até mesmo os
pilotos de Fórmula 1 ocupavam a longa mesa e sorriram assim
que ela se aproximou.
— Finalmente a única pessoa com boas opiniões sobre
animes. — Olivier disse, alisando o tecido do seu terno azul
escuro.
— Olivier, o seu problema é que você não tem bom
gosto com nada, por isso ninguém concorda. — Satake
provocou, o terno de um roxo escuro caindo perfeitamente
nele.
— Não acredito que Amélia teve que aguentar vocês
dois brigando, quando ela conheceu o grupo. — Chase Astier
balançou a cabeça, arrumando o terno preto e branco, clássico.
— E depois você me pergunta porque eu não apresentei
vocês mais cedo. — Vincent reclamou, pegando uma taça de
champanhe para eles dois.
— É sempre lindo quando você se declara para a gente.
— Olivier revirou os olhos. — Tomara que as suas declarações
para Amélia não sejam assim também.
— Ah, não. — Vincent encarou Amélia, uma pequena
faísca saltando de seus olhos. Ele deu um gole no champanhe.
— Para ela eu guardo meus melhores discursos.
Amélia agradeceu pela iluminação baixa esconder suas
bochechas vermelhas.
O álcool e a comida eram excelentes, então Amélia
aproveitou. Não era todo dia que se ia em uma festa de rico
como aquelas e Deus sabe quando ela teria outra chance.
— Eu nunca comi um desses na vida. — Toni disse a ela,
quando a primeira leva de pratos foi depositada na frente
deles.
— Nem eu. — Ela respondeu, impressionada pela
porção pequena em um prato tão grande. — Isso é mesmo
uma salada?
— É o que disseram, mas desse tamanho?
Toni franziu a testa, encarando a comida e as outras
pessoas da mesa, um pouco incrédulo.
Amélia estava tentada a sugerir à Vincent que eles
deveriam passar no La Fratta depois da festa, quando Sancia
se inclinou para ela e disse:
— Vai por mim, você vai comer tanto que não vai
conseguir chegar no último prato.
— Eu duvido muito disso.
A modelo ergueu a taça de vinho que tomava, sorrindo.
— Veremos, então.
E Sancia estava mesmo certa. Uma coisa sobre as festas
de ricos que Amélia descobriu é que a porção era pouca, mas a
quantidade compensava. O menu simplesmente consistia em
12 pratos, entre saladas, sopas, peixes, carnes e massas. Era
uma das coisas mais deliciosas que ela tinha provado e a
estudante sorriu com o pensamento de pedir uma marmita
para levar para casa. No Brasil ela nem sequer hesitaria.
Amélia aproveitou a festa a cada segundo, fosse rindo
das piadas de Olivier, conversando com Satake sobre uma
banda de rock italiano que eles gostavam ou cantando as
músicas ao lado de Angela e Sancia. E é claro, havia Vincent, e
os detalhes que ela reparava, como a mão dele por cima dos
seus ombros, os sorrisos pequenos na sua direção e os olhares
que trocavam por longos segundos.
Um desses momentos foi capturado por Stefano e a foto
ficou tão bonita, que Amélia se derreteu.
— Eu precisava de um registro do Vincent apaixonado.
— Stefano disse. — Momentos inéditos.
— Vai se foder, Stefano — Vincent revirou os olhos, mas
sorria.
Perto da meia-noite, Teodora fez um pequeno discurso.
— É um prazer poder receber vocês na minha casa,
comemorar mais um ano ao lado da coisa que mais me trás
felicidade: minha família. — Os olhos dela brilhavam, lágrimas
não derramadas. — E eu sei que estou ficando mais velha, em
breve não estarei aqui para uma dessas reuniões.
— Tão dramática, nonna. — Vincent murmurou.
— Mas a certeza de que se manterão unidos,
independente das minhas broncas, me trás a certeza de que eu
consegui algo mais valioso do que qualquer uma das peças de
artes que decoram essa mansão. Amo vocês, meus amados
amigos e familiares, obrigada por compartilharem esse
momento comigo.
Ela ergueu a taça de champanhe e Amélia se juntou às
palmas.
Assim como era tradição no Brasil, todos os Torrisi se
juntaram para tirar uma foto oficial da família. Quando Vincent,
Stefano e Toni se levantaram para ir até lá, o piloto se virou em
sua direção, a mão estendida.
— O que está fazendo, Palhares? Vem.
— Mas…
— Vincent, Amélia! — Anna chamou seu nome,
posicionada ao lado de Teodora. — Venham, só faltam vocês.
A estudante engoliu a emoção que ameaçou vazar pelos
seus olhos quando se juntou aos Torrisi, entre Emma e
Vincent. Durante tanto tempo Amélia teve apenas Sofia, e não
tinha deixado de amar a irmã por um segundo, mas estar
cercada de tanto amor e carinho tampava um buraquinho do
seu coração que ela nem sabia que estava aberto.
E Amélia estava começando a gostar daquela sensação.
— Eles são sempre assim?
Amélia perguntou a Chase Astier, enquanto os dois
dançavam uma das músicas lentas da festa. Perto deles,
Vincent valsalva com Anna, e os outros casais tomavam a
pista, em um estado de animação que só muito vinho e
champanhe podiam causar.
— Os Torrisi? São, você se acostuma. — Chase sorriu, as
mãos na cintura dela — Na primeira vez que eu conheci
Teodora, ela fez Vincent contar tudo o que eu gostava e
preparou um quarto especial na mansão.
Amélia riu.
— Parece o tipo de coisa que ela faria. — Ela pensou
por alguns minutos. — Então espera aí, Vincent disse que fui a
primeira namorada a vir aqui, mas você veio antes.
— Nós nunca namoramos de verdade. — O piloto
francês a girou. — Vincent e eu queríamos coisas diferentes na
época e, pensando bem, seríamos um desastre juntos. Eu o
mataria antes do primeiro mês.
— As vezes eu sinto vontade de fazer isso.
— Que bom que é um sentimento compartilhado.
Eles trocaram um sorriso.
— Preciso dizer a você, eu li muitas fanfics do shipp de
vocês.
— Tinham umas realmente boas, para ser justo. — Ele
riu. — E bem criativas. Só não sei porque sempre me
colocavam como o cara sensível e Vincent como o playboy
marrento.
— Concordo. — Amélia se virou para o piloto italiano.
Ele ria, abraçando a mãe com carinho. — Mas é o rosto que
Vincent escolhe mostrar e eu entendo, claro, a mídia, a vida de
campeão mundial e tudo o mais. Só que às vezes ele se perde
nessa máscara, esquece de que não precisa ser assim, não
nota tudo o que existe ao redor dele.
Chase a encarou, os lábios levantados em um sorriso
que Amélia não entendeu.
— O que foi?
— Nada. — Ele sacudiu a cabeça. — Fico feliz que o
caminho dele cruzou o seu, Amélia.
— Espero que vocês não estejam falando mal de mim.
— Vincent interrompeu, as mãos nos bolsos.
— Na verdade, eu estava contando a Amélia suas piores
histórias.
— Chegou atrasado, Satake e Olivier já fizeram o
trabalho sujo.
— Não sei não, eu conheço umas ótimas. — Chase
sorriu e beijou a testa de Amélia. — Eu estou sentindo os
efeitos do álcool e vou beber água. Vejo vocês depois.
Ele passou por Vincent e disse algo no ouvido do piloto.
O italiano encarou Chase, um sorriso lento se formando nos
lábios e o abraçou antes que ele fosse embora.
— O que foi isso?
— Nada não. — Os braços dele circularam a cintura
dela. — Me daria o prazer dessa dança, senhorita Palhares?
— Uau, que cavalheiro. Já que pediu com tanta
gentileza, vou aceitar.
— Ler todos aqueles livros de época serviu para alguma
coisa, além de me dar um diploma.
Amélia riu. Ela se aninhou no peito de Vincent. As
batidas do coração dele estavam se tornando seu novo som
preferido.
Uma das músicas que a brasileira gostava começou a
tocar e ela sorriu. Vincent se movia devagar, os lábios perto
dos cabelos de Amélia, cantarolando, traduzindo os versos para
italiano.
— Tutte le luci, tutte le feste si spegnerebbero, si
spegnerebbero, se non fosse per te.
Ele beijou sua testa e o gesto irradia calor para todo o
seu corpo.
— Sabe de uma coisa, Di Castelli?
Ela se virou para ele, o âmbar dos olhos acentuados
pela iluminação dourada.
— O que?
— Você vale a pena para caralho. — Ela disse. — Queria
que soubesse disso.
Vincent sorriu e lhe deu um beijo demorado, os dedos
apertando a cintura dela.
— Obrigado, mia bella. Mesmo que você diga que não
preciso agradecer, eu faço mesmo assim. E não só por isso,
mas tudo o que fez.
Amélia o beijou e eles continuaram dançando. Naquela
noite, ela acreditou que eles eram feitos de estrelas.
***

— Dá para ver porque você gosta dela, Vince, é bom te


ver feliz.
Foi o que Chase Astier disse a Vincent e aquelas
palavras o acompanharam o restante da noite, assim como o
sorriso no rosto enquanto valsava com a mulher mais bonita da
festa em seus braços.
Dançou com Amélia, Angela, Sancia, Stefano e Emma,
antes que a maior parte dos convidados fosse finalmente
embora. Com só os mais próximos, Antonia comandou a troca
de músicas para os últimos sucessos de pop-rock, animando a
festa teoricamente social e chique.
Até mesmo funk tocou, para a alegria de Amélia, que
dançou desajeitadamente, movida por vinho, champanhe e
drinks que os primos de Vincent fizeram. Ela ria, ao lado de
Emma, cantando músicas o mais alto possível.
Eles só foram dormir quando o sol nasceu entre as
colinas da propriedade, exaustos, e bêbados. Vincent não se
lembrava bem de como tinha subido as escadas até o seu
quarto, abraçado com Satake, ou de como trocou de roupa
para um moletom confortável e apagou em segundos.
Mas ao acordar, ainda sem voltar totalmente para o seu
corpo, sentiu os braços pesados, o cheiro de ameixas que era
tão familiar e abriu os olhos de uma vez. Só para descobrir
Amélia Palhares, completamente adormecida, usando uma de
suas camisas e aconchegada nele.
Vincent piscou, a cabeça doendo, e flashes inundaram
seus pensamentos.
Amélia, nem um pouco sóbria, no meio do seu quarto,
encarando a decoração, segurando os saltos.
— É a sua cara. — Ela balançou a cabeça, rindo. — Até
mesmo as cores, meu Deus, Vincent.
Ela falava uma mistura de português e italiano adorável.
— Esperava uma cripta sombria?
— Isso eu diria de Edward Cullen. — Amélia explorou
desde os livros, até a televisão, os jogos e a poltrona ao lado
da janela. — Eu adorei.
Vincent sorriu, tropeçando até o banheiro para trocar de
roupa.
— Você vai dormir usando esse vestido? Não me leve a
mal, você fica linda nele, mas deve ser desconfortável. —
Vincent tirou uma das suas blusas do closet e estendeu para
ela.
Depois disso, ele só lembrava de ter se deitado, sentido
o peso no colchão e puxado a mulher na direção dele.
— Boa noite, Vincent.
— Boa noite, mia bella.
O piloto sorriu, levantou-se devagar para não acordar a
brasileira. Ele tinha dormido bem menos do que deveria, mas
em época de temporada, seu corpo se acostumava a despertar
em um horário específico.
A casa estava silenciosa, apenas alguns empregados
trabalhando, e Vincent aproveitou a quietude para verificar as
redes sociais. A foto dele e de Amélia, tirada por Angela, tinha
se tornado seu novo papel de parede, batendo mais de 3
milhões de curtidas desde a noite anterior.
Ele já tinha tomado chá e comido, respondido alguns e-
mails urgentes e revisado a programação da semana quando
os lençóis farfalharam. Amélia se esticou inteira e soltou um
suspiro alto. As mãos tatearam a cama, como se procurasse
por alguma coisa.
— Vincent?
Ela disse, baixinho, sem abrir os olhos.
— Aqui, Palhares.
Ela levantou um braço, chamando-o e Vincent sorriu. O
piloto se aconchegou ao lado dela, abraçando-a pela cintura, o
queixo apoiado na cabeça.
— Que horas são?
— Cedo, você ainda pode dormir mais.
— Eu não tô dormindo…
Ela sussurrou e ele riu. O cheiro dela estava por toda
parte e Vincent acariciou os cabelos da mulher, espalhados
pelo colchão dele. Aquela visão aqueceu seu peito.
— Você gostou da festa?
— Sim, eu adoraria uma assim no meu aniversário, por
favor.
— Quando é o seu aniversário?
— Descubra, Di Castelli.
Vincent revirou os olhos e fez cócegas em Amélia, até
que ela se contorcesse em seus braços, rindo.
— Vamos, me conte antes que eu roube sua identidade
e descubra.
Amélia riu, as pernas se entrelaçando com as do piloto,
o rosto ainda um pouco manchado de maquiagem.
— Que ameaça cruel. — Ela se apoiou em um cotovelo,
encarando Vincent. — É 31 de maio.
— Geminiana.
— Algo contra geminianos?
Vincent negou e se inclinou para beijar seu pescoço.
Deus, ela cheirava tão bem e a pele dela era irresistível.
— Não me julgue, mas combina com meu signo.
— Leão, não é? Como você sabe que combina?
Amélia franziu a testa.
— Primeiro, como sabe do meu signo? Segundo, eu tive
uma fase na adolescência e lia o horóscopo todos os dias. Eu
tô vendo essa risada, Palhares, eu disse sem julgamentos!
— Sua data de nascimento está na internet, Di Castelli e
em todo site de fofoca. E eu não estou julgando, só te
imaginando usando a cor do dia depois de ler em uma revista.
Vincent pressionou os lábios em uma linha, porque sim,
ele já tinha feito isso. Amélia viu o rosto dele e caiu na
gargalhada, que o piloto logo acompanhou. Eles caíram em um
silêncio confortável, apenas se olhando, interrompido pelo
toque do celular de Vincent.
— Por mais que eu goste de ter em minha cama,
Amélia, e a visão das suas pernas seja uma coisa a ser
apreciada, eu preciso resolver umas coisas. Peguei umas
roupas para você e tem uma escova extra no banheiro, fique a
vontade.
Amélia assentiu, beijando o peito de Vincent antes que
ele se afastasse.
Para a infelicidade dele, os problemas de Fórmula 1 iam
além das pistas e ele acabou enterrado em burocracia.
Deixando Amélia aproveitar o dia pós-festa com sua
família e amigos, Vincent decidiu como comemoraria o
aniversário dela. De maneira nenhuma que ia deixar a data
passar em branco, especialmente depois de saber por Stefano
e Angela o quanto ela amava aniversários.
Por sorte, a data caia logo depois da corrida de Ímola, e
o piloto ficou empolgado. Correr em casa não só era ver de
perto seus fãs, como também uma chance que sua família
aproveitava para vê-lo. E Vincent se sentia muito mais
confiante sabendo que as pessoas que ele tanto amava
estavam ali torcendo.
Apesar do pequeno caos que Maio foi, no último final de
semana do mês, Vincent estava confiante e alegre.
— Você parece uma criança. — Stefano comentou na
manhã do primeiro treino livre em Ímola.
— Vai ser um bom final de semana.
— Se tudo o que planejamos dar certo, vai mesmo.
— Obrigada por me ajudar com isso, aliás.
— De nada, Vince. E eu aceito também um adicional por
ter tomado minha folga com Toni.
Vincent riu.
— Pode deixar.
Na corrida de domingo, ele foi imbatível.
Quando pousou para o desfile de carros, viu seus
familiares empolgados nas arquibancadas, gritando o nome
dele com animação. Foi o suficiente para que, nas cinco
primeiras voltas, Vincent ultrapasse Olivier e ficasse em
primeiro durante todo o circuito, ganhando com folga e ainda
marcando o primeiro Gram Chelem da temporada.
Nem mesmo Ansel Bellini foi capaz de perturbar sua
empolgação, embora o ex-piloto tivesse se esforçado.
Vincent conversava com Amélia e Arthur, logo depois de
ter tirado o uniforme, quando o velho se aproximou, usando
um par de óculos de sol antigos, sorrindo como se fossem
amigos ou possuíssem uma relação boa.
— Então essa é a famosa garota que capturou o coração
de Vincent, que sorte — Ansel estendeu a mão e Amélia
apertou, sem retribuir a empolgação — O que achou do
primeiro Gram Chelem? Tinha que ser do piloto mais ambicioso
do grid.
— Você fala de ambição como se fosse algo ruim,
senhor Bellini. E eu acredito que quis dizer talentoso, em
primeiro lugar.
— A pressa de vencer pode acabar trazendo erros, não
concorda?
Amélia sorriu, tão doce quanto uma flor venenosa.
— Sim. Mas hoje, Vincent mostrou porque é o melhor
piloto dessa temporada. Não concorda?
O italiano teve vontade de beijá-la bem ali. Não só pelas
palavras ditas, mas porque Amélia trazia o tom de que não
aceitaria ser contestada e acreditava fielmente na sentença.
Acreditava nele.
— Você está bem?
Ele perguntou, no caminho de volta para Mancia. Ela
parecia furiosa, o rosto sério, os olhos mortais, como se
pudesse matar Ansel com as próprias mãos. O piloto não
duvidava disso.
— Sim, só queria jogar Ansel no rio Palesche. — Vincent
riu. — Como você consegue rir? Eu estou falando muito sério.
Ele beijou o dorso da mão dela, os olhos na estrada.
— Eu não duvido de você, mia bella.
— Agora eu entendo porque você se sente tão frustrado
em relação a ele. — Ela suspirou, relaxando no banco. — É
horrível não poder fazer nada.
— Não se preocupe, Palhares, um dia eu vou fazer
alguma coisa.
— O que você quis dizer com isso?
Vincent balançou a cabeça. Não era hora nem o dia
daquela conversa.
— Nada com o que precise se preocupar, aniversariante.
— Só amanhã, Di Castelli.
— Digamos que sua programação especial de
aniversário começa hoje.
— Estamos cheios de segredos, hein?
— Você vai saber, tenha paciência.
Vincent não era bom com palavras, textos e discursos
nunca foram seu forte, mas se fosse escolher uma linguagem
de demonstração de sentimentos, planejar tempo de qualidade
seria a sua. E para o aniversário de Amélia, passou o mês
inteiro organizando algo que colocaria o sorriso que tanto
gostava no rosto dela.
Contou com a ajuda de uma pessoa inesperada, Sofia
Palhares. Vincent entrou em contato com ela pelo Instagram e
conversavam por chamada de vídeo.
— Amélia gosta de festas temáticas.
— Tipo festa a fantasia?
— Muito simples, seja criativo, cunhado. — Sofia
provocou. — No último aniversário dela no Brasil, todo mundo
se vestiu como Taylor Swift em uma fase da carreira dela.
— Certo, bom saber que a obsessão é de família.
Sofia riu, colocando o celular em cima de um balcão. Ele
viu a namorada dela, Maria Cássia, cozinhando alguma coisa.
— Se acostume, Vincent. — Maria Cássia disse. — Você
começa tolerando, mas acaba se rendendo depois. É tipo uma
seita.
— Ainda bem que alguém me entende.
— Ai, por favor. — Sofia revirou os olhos. — Voltando ao
assunto, Vincent, minha irmã gosta de coisas com significado.
Amélia é clichê, use isso a seu favor, mas não seja simples. Ela
vai amar qualquer coisa que ganhar, porque é fácil agradá-la, é
por isso que você tem que se empenhar.
Modéstia a parte, Vincent tinha feito isso muito bem.
Eles passaram no apartamento dela e Vincent fingiu não
notar a frustração de Amélia ao encontrar o lugar do mesmo
jeito, não uma festa organizada bem ali. O italiano estava se
divertindo mais do que pensava, vendo a estudante, que
geralmente tinha tudo sob controle, ficando um pouco maluca
ao não saber de alguma coisa.
Vincent enviou algumas mensagens, confirmando tudo e
esperou Amélia se arrumar rapidamente. Os dois partiram para
a mansão Torrisi, as janelas do carro dele abertas, o vento
fresco da noite soprando os cabelos de Amélia para trás.
— Onde sua coleção de carros fica?
— Como você sabe que eu tenho uma?
— Você é piloto de Fórmula 1, me espanta muito não ter
uma réplica de um carro de corrida na sua sala de estar.
Vincent revirou os olhos.
— Fica em Roma, em um lugar especializado. Eu não
viajo muito, então todos os carros que tenho ficam expostos
para quem quiser ver.
— Exibido. — Ela provou, sorrindo.
— Sim, eu sou.
A mansão Torrisi estava silenciosa e tranquila quando
eles chegaram.
— Primeiro de tudo, seu presente. — Vincent disse,
tirando uma pequena caixinha do bolso da calça jeans clara. —
É só uma coisinha, Palhares, espero que goste.
— Eu vou amar, Vincent. — Amélia abriu o pacote e
sorriu, o rosto um pouco emocionado. — É… Lindo!
Ela tirou a pequena pulseira prateada da caixa, com três
pingentes pequenos pendurados na corrente, um copo de café,
uma concha e um livro aberto. O piloto pegou a mão de Amélia
e prendeu o acessório.
— A estrela para sua cidade natal, o copo de café para
Londres e o livro aberto para Itália. Fica sob sua
responsabilidade colocar mais pingentes nessa pulseira,
preencher com todos os lugares por onde você andar. Me disse
que queria conhecer o mundo inteiro, Palhares, estou contando
com isso.
Ele beijou o pulso com delicadeza,. A estudante o
abraçou, os braços ao redor do pescoço de Vincent, e beijou os
lábios dele devagar.
— Obrigada, Vincent. Eu nem sei o que dizer.
— Não precisa me agradecer.
Vincent apertou a cintura dela, retribuindo o beijo com
prazer, a boca fresca e macia contra a sua.
— Mas eu quero, campeão.
— Você vai mesmo continuar me chamando assim?
— Direito de aniversariante!
Ele riu baixinho, estalando um beijo na bochecha da
mulher. Amélia ainda ria quando cruzou as portas da sala de
jantar e seus olhos se arregalaram quando a pequena reunião
de amigos e familiares, gritou:
— Surpresa!
— Ai meu Deus! — Ela disse, se virando para Vincent. —
Não acredito que você fez mesmo uma festa surpresa.
— Achou que eu ia deixar a data passar? — Vincent
mostrou a ela a tela do celular, o horário marcando meia-noite.
— Agora sim, Palhares, feliz aniversário.
Os olhos castanhos escuros da mulher brilhavam mais
do que as luzes inteiras da mansão, repletos de animação,
carinho e alegria. Só de ver aquilo, Vincent percebeu que valeu
a pena cada segundo de planejamento maluco e estressante,
contanto que a recompensa fosse o sorriso luminoso de
Amélia.
Anna Di Castello foi a primeira a abraçar Amélia, seguida
de Teodora, Emma, Antonia e Dimitri. Angela envolveu a
melhor amiga em um aperto de urso, Sancia desejou parabéns
em uma voz suave, Stefano ergueu a mulher do chão e Toni a
envolveu com a gentileza de um irmão mais velho.
— Essa festa aqui… Não, você não fez isso! — Amélia
disse, ainda abraçada com Satake. — O bolo, os chapéus e isso
aqui é brigadeiro? Uma festa do Brasil?
— Seu namorado é maluco, Ames. — Olivier disse, rindo
do choque dela, abraçando-a em seguida. — E feliz
aniversário!
— Maluco mas criativo. — Chase alegou, bagunçando os
cabelos da estudante.
Amélia parecia-se muito com uma criança empolgada,
rindo ao notar os detalhes da decoração e Vincent sentiu uma
pontada de orgulho.
Depois de falar com Sofia, percebeu que a coisa que
Amélia mais sentia falta era do Brasil. Então, reuniu todas as
características de uma festa tipicamente brasileira, desde a
comida, até a decoração, e pediu ajuda dos amigos para
organizar. Ele podia ter muito bem contratado alguém para
aquilo, mas o piloto quis fazer sozinho.
O resultado foi um arco de bolas coloridas, chapéus
dourados, sacolinhas com balas, pirulitos, apitos e língua de
sogra. Além de um bolo quadrado enorme, coberto com glacê
branco e detalhes vermelhos, escrito “Amélia, 25 anos”,
bandejas com pão de queijo, brigadeiro, beijinho, coxinha,
empada e o que ele descobriu ser um “pão delícia”.
— Pão delícia! — Amélia soltou um gritinho. — Isso aqui
é a melhor coisa do mundo, eu tava morrendo de saudade
disso na festa de aniversário. E isso é guaraná? Eu acho que
morri e fui parar no paraíso.
— É porque você não viu a melhor parte. — Emma
disse, sorrindo e colocou a playlist que tinha preparado.
— Funk do tigrão! — A brasileira riu. — Emma, Angela,
Sancia eu preciso ensinar isso para vocês.
Vincent sentou-se ao lado dos amigos e observou sua
namorada de mentira, a primeira pessoa que ele estava se
permitindo conhecer mais a fundo, a garota marcante de
Londres. Ela dançava uma coreografia desajeitada, as
bochechas coradas e uma empolgação contagiante.
— Posso contratar você para organizar a minha festa de
aniversário? — Olivier disse, usando um chapéu dourado preso
por um elástico.
— Sim, Olivier, a sua vai ser daquela série horrível que
você gosta.
— Não fale mal de Supernatural, Vince. — Olivier
balançou a cabeça. — E eu daria tudo por uma festa com um
Impala 67 no meio do salão.
— Um piloto dando uma festa com um carro na
decoração? Brega, Benson. — Satake franziu a testa.
— Festas de aniversário são bregas, Satake — Ele puxou
um pouco do elástico do acessório.
— Não para mim.
— É por isso que ele se diverte pouco. — Chase
acrescentou, um copo de refrigerante pela metade em mãos.
— Não me olhe assim, Satake, você sempre com essa cara de
cu em toda festa.
— E você desaparece do nada e volta só no final dos
jantares e festas, como se nada tivesse acontecido. — Satake
retrucou e os olhares recaíram sobre o francês. — O que você
anda fazendo?
Chase sorriu.
— Me divertindo.
— Se vocês estão achando que vão ficar sentados o
resto da festa inteira, estão muito enganados. — Amélia disse
e Vincent sentiu as mãos dela em seus ombros, bem atrás
dele. Ele entrelaçou os dedos nos da brasileira.
— Convença Vincent a dançar primeiro, Ames, e eu
talvez me levante da cadeira — Satake disse.
— Ah, Satake. — Vincent sorriu e beijou o dorso de uma
das mãos de Amélia. — Você não sabe mesmo com quem tá
lidando.
— Até porque, Vincent não vai negar meu pedido de
aniversariante. — Amélia se inclinou, o rosto do pescoço de
Vincent. Ele podia sentir o sorriso dela e os lábios próximos a
sua orelha. — E nem você, Satake.
— Boa tentativa, Amélia, mas a resposta ainda é não.
Cinco minutos depois, Yukikaze, usando uma calça de
linho que devia custar uma fortuna, tentava acompanhar o
rebolado de Sancia, Amélia e Angela, ao som de um funk
brasileiro de letra extremamente duvidosa. Vincent e Chase
riram da cena inteira e Olivier gravou um vídeo
disfarçadamente.
Assim era o efeito Amélia Palhares.
Eles cantaram parabéns para a brasileira logo depois,
cobertos de suor e animação. Os amigos dela, do Brasil, se
juntaram em uma chamada de vídeo e Sofia, emocionada,
gritou o nome da irmã, fazendo-a derramar algumas lágrimas.
Teodora e Anna se despediram, com um enorme pedaço de
bolo, e Amélia fez questão de agradecer a elas pelo carinho.
— Menina, não é todo dia que se faz 25 anos.
Teodora disse, dando um beijo em cada bochecha de
Amélia.
— Acho que isso é válido para todas as idades.
— E é por isso que você precisa aproveitar. — Anna
completou, antes de sair. — Juízo, crianças.
A sala de jantar se transformou em uma pequena boate
de luzes acesas e Vincent dançou com Amélia, sem conseguir
parar de sorrir, ao som das músicas preferidas da estudante.
— É um dos melhores dias da minha vida. — Amélia
disse, abraçando Vincent. — Obrigada por ter feito isso por
mim, Vincent. E foda-se que eu não preciso agradecer, eu
quero.
— Você merece a porra do mundo todo, Amélia
Palheres, esse é só o minimo. — Ele beijou a testa dela. — Mas
fico feliz que gostou.
Vincent mal sentia os pés quando a festa acabou. Ele
deu carona a Sancia e Angela, apesar da insistência de Emma
que todos dormissem na mansão. Quando estacionou o carro
em frente ao prédio de Amélia, desligou o motor e encarou-a,
descobrindo que os olhos de Amélia já estavam voltados para
ele.
Mesmo na escuridão, ela atraia seu olhar e a respiração
de Vincent acelerou em antecipação, sabendo que uma palavra
negativa dela, ele iria embora.
— Você quer ficar, Vincent?
Ela perguntou, a voz baixa, um pouco rouca da cantoria
toda.
— Sim.
Amélia assentiu e saiu do carro, colocando uma mecha
de cabelo atrás da orelha. Eles subiram em silêncio, mas
Vincent sentia a vibração no ar ao redor deles, os dedos
formigando para tocar a pele da mulher. Ela se atrapalhou para
abrir a porta, um pouco trêmula, e saber que a brasileira
também se sentia afetada, fez a vontade do piloto em beijá-la,
aumentar.
E foi exatamente o que ele fez, assim que a porta se
fechou, puxando Amélia pela cintura, esmagando os lábios
dela, faminto, perdido, desesperado por ela.
— Vem comigo. — Ela sussurrou, entre beijos, as mãos
presas no cabelo dele.
Vincent a seguiu, o desejo percorrendo cada parte do
seu corpo, o pau duro nos jeans, ciente de cada detalhe em
Amélia. Parados no meio do quarto dela, apenas a luz da lua
iluminando a pele da mulher, ele se conteve, hesitante.
Precisava ter certeza antes de qualquer outra coisa.
— Amélia, o que você quer?
Ela o encarou, linda, ruborizada, os cabelos bagunçados.
A porra da pessoa mais maravilhosa que Vincent já tinha visto.
Os lábios dela se ergueram antes que ela respondesse, um
sorriso de permissão.
— Você, Vincent. Eu quero você por inteiro.
20.
Maio
Amélia adoraria dizer que Vincent Di Castelli a fodeu
pela noite inteira, do jeito que ela tanto desejava, mas não foi
isso que aconteceu.
Quando Amélia disse aquilo a Vincent, o coração
martelando no peito, o piloto deu dois passos na direção dela,
segurou sua mandíbula com uma mão e a beijou. Diferente dos
outros, aquele era um beijo de um homem que estava prestes
a devorá-la, impulsionando a língua para dentro da sua boca,
mordendo seus lábios a ponto de arrancar suspiros pesados.
Amélia segurou-se em Vincent, os dedos agarrando o
colarinho da camisa dele. O piloto a guiou em direção a cama,
as mãos descendo para os quadris. Amélia gemeu quando o
sentiu duro contra si, um arrepio de desejo correndo pela sua
coluna.
Vincent parou quando ela bateu os joelhos na beirada e
fez Amélia sentar-se, ficando entre as pernas dela. Ela viu o
brilho dourado em seus olhos, predatório.
— Se você pudesse imaginar as coisas que quero fazer
com você, Palhares…
— Vincent, você nem faz ideia do que eu quero fazer. —
Ela disse, apoiando-se nos cotovelos para olhá-lo melhor. O
piloto segurou suas bochechas com os polegares, um dedo
traçando o desenho dos seus lábios.
Amélia abriu a boca e capturou o dedo dele, chupando,
assistindo a irises escurecerem, os lábios inchados
entreabertos.
— Porra. — Vincent soltou. — Por que não me conta o
que pensou, Amélia? Fiquei curioso.
— Você de joelhos, Di Castelli. — Ela disse, evocando
sua imaginação traiçoeira dos últimos dias.
Vincent sorriu e Amélia arfou quando ele se abaixou,
separando as pernas com os braços, as mãos nos tornozelos
dela, os dedos quentes.
— E o que mais?
— Me beijando.
— Onde?
— Começando pelos meus joelhos e… Você sabe onde
termina.
Amélia o encarou, se sentindo bonita e poderosa sob o
olhar de Vincent.
— Que pensamentos sujos, Amélia. — Ele ergueu a
barra do vestido dela, devagar, os dedos subindo em toque
leve pela parte de trás da perna de Amélia, deixando arrepios
pelo caminho.
— Mas parece que você gostou deles.
Vincent se inclinou, puxando as pernas de Amélia pelas
panturrilhas, a boca na curva do joelho, o hálito quente contra
a pele dela.
— Já disse antes, mia bella, estou aqui para atender
seus desejos.
Ela riu, abrindo a boca para retrucar, mas gemeu ao
sentir os lábios do piloto em sua pele. Vincent beijou o interior
das suas coxas devagar, um longa e deliciosa trilha, a
respiração quente contra seu corpo, as mãos abrindo suas
pernas cada vez mais. Amélia mordeu o lábio com força
quando os polegares dele se engancharam na sua calcinha, o
interior queimando em expectativa.
Vincent começou a descer o tecido, quando os dois
paralisaram. Um choro estridente de criança estourou e dois
segundos depois, um homem e uma mulher começaram a
brigar.
O piloto encarou a brasileira e os dois caíram na
gargalhada.
— Porra, não é possível. — Amélia disse, ainda rindo.
— Incrível como todo mundo parece determinado a nos
atrapalhar.
Vincent suspirou e se jogou ao lado de Amélia. Ela se
virou para encará-lo.
— Na próxima vez, vamos à sua casa.
O piloto ergueu a sobrancelha, um sorriso cansado nos
lábios.
— Bom saber que você já está pensando na próxima
vez.
Amélia empurrou o ombro dele.
Os dois acabaram tomando café na cozinha de Amélia,
ouvindo a briga entre os vizinhos, que pareciam a ponto de um
divórcio, e vendo o sol surgir nos céus de Mancia. Para a
tristeza da estudante, Vincent precisou ir antes de amanhecer
totalmente, ele tinha um compromisso com a equipe de
marketing da Redemptio e não podia faltar.
Sozinha, e no meio da sua folga, Amélia tomou um
banho longo quente, imaginando como teria sido se o piloto
tivesse continuado. O pensamento da língua dele, deslizando
para dentro dela, foi incentivo o suficiente para os dedos da
estudante contornarem seu clitóris, até que ela gozasse, ainda
no chuveiro.
Amélia torcia para que a próxima chance de transar com
Vincent viesse rapidamente e desse certo, daquela vez.
O resto do dia 31 de maio, se resumiu entre cochilos,
episódios de Gilmore Girls e Heartstopper, comer o resto dos
salgados e doces da festa e responder felicitações. Olhando as
fotos da madrugada anterior, Amélia sorriu ao ver tantas
pessoas empenhadas em fazer do seu aniversário um dia
especial.
Houve um tempo, assim que chegou à Itália, em que ela
imaginou ficar novamente sozinha, como na época em que sua
mãe morreu. Ela tinha só 17 anos e precisou trabalhar para
completar o dinheiro deixado por Dora Palhares, pois sabia que
ela e Sofia não sobreviveriam se Amélia não tomasse aquele
fardo.
Os amigos, ou as pessoas que ela pensava serem suas
amigas, se afastaram de uma só vez, não se importando se
Amélia sairia ferida no processo. Ela sabia que eles tinham
todo o direito de ir embora da sua vida, mas não imaginou que
os motivos seriam a vida sempre ocupada e complicada da
estudante.
Amélia pensou que talvez a vida a estivesse
recompensando um pouquinho, por mais que ela soubesse que
as coisas não funcionam daquela forma, lhe dando uma
segunda família repleta de amor.
— Você se divertiu? — Sofia perguntou, em chamada de
vídeo, no fim da tarde.
— Sim! Foi incrível, amora, eu nem acredito que você
sabia, não sabe guardar um segredo.
— Que acusação é essa, amora? — Sofia franziu a testa,
fingindo estar ofendida. — Eu sei guardar segredo sim!
— Se você diz…
— Só te perdoo porque ainda é seu aniversário aí.
Então, o piloto gostosão já foi embora?
— Ele tem um trabalho para fazer hoje, publicidade.
— Famosos e seus compromissos.
— Sofia, você é escritora best-seller, também é famosa.
Amélia riu.
— Mas não recebo milhões de dólares para comerciais
de cueca. Se bem que eu queria.
Amélia tinha visto as fotos do ensaio de Vincent, o piloto
fez questão de enviá-las antes, perguntando o que ela tinha
achado. Ela imaginou qual reação causaria nele se dissesse
“Um gostoso, mas ficaria melhor ainda sem elas”, mas só
comentou que ficaram muito boas.
— Então, falando em guardar segredo, tudo pronto?
Os olhos castanhos de Sofia se iluminaram.
— O anel chegou hoje de manhã e eu já falei com a
organização do lugar. Só preciso esperar até o dia e… — Ela
suspirou, o sorriso gigante no rosto — Vou ser uma noiva!
Amélia riu, mudando de posição na cama.
— Sofia Palhares, noiva! Logo você que dizia para quem
quisesse ouvir que não tinha sorte no amor.
— Sou dramática, amora, é por isso que sou escritora.
— Sofia mexeu o celular. — Acha que a mamãe ficaria feliz?
— Claro que sim, Sofia! Mamãe te amava, a sua
felicidade era a dela. E ela está feliz, amora. Onde quer que ela
esteja, ela está.
Sofia sorriu e Amélia tentou conter as lágrimas que
surgiram ao ver a emoção da irmã mais nova. O amor que ela
sentia por aquela ruiva, de cachos rebeldes e cheia de sonhos,
apertou seu coração ao mesmo tempo que a saudade.
— Obrigada por ter cuidado de mim, Amélia, quando ela
se foi. Eu sei que não foi fácil, mas obrigada.
— Sofia, eu escolhi cuidar de você porque te amo e
sabia que o melhor lugar era ao meu lado. — Amélia enxugou
uma lágrima. — Não se esqueça disso, tudo bem? Agora vai,
vá planejar seu pedido de casamento.
Deitada na cama, assistindo o senhor Darcy se
apaixonar por Elizabeth Bennet, Amélia sorriu. Se voltasse no
tempo e dissesse à garota de Londres, de três anos atrás, que
as coisas ficaram mesmo bem e ela não precisava se
desesperar tanto, a menina riria.
Aquela versão dela, de 22 anos, não sabia o que queria
realmente da vida. Era uma Amélia machucada demais,
tentando lidar com a percepção de que não podia dar tudo de
si para os outros o tempo todo, por mais que ela quisesse.
Uma garota que nem sabia o que era se deixar ser cuidada e
amada.
Seu celular apitou e Amélia abriu a mensagem. Vincent
tinha mandado uma foto, uma vasilha de plástico com pão-de-
queijo e coxinha, que havia sobrado da festa dela. A estudante
riu, respondendo com outra foto dos salgados no seu
apartamento.
“Você deveria estar aqui, Palhares, para eu roubar os
seus”
“O milionário desse relacionamento é você, compre
mais”
“Sinto sua falta e te vi hoje, mas estou, como diz no
Brasil?”
“Com saudades? Eu também estou, Di Castelli.”
“Aposto que não mais que eu. Sinto saudades de você o
tempo todo.”
Ela sorriu. No fim das contas, Amélia Palhares estava
cercada de amor por todos os lados.

***
Aquela devia estar sendo a temporada mais exigente da
vida de Vincent Di Castelli e ele só tinha participado de 3.
Desde o aniversário de Amélia, ele não teve tempo de
vê-la e nem pode se juntar aos amigos para comemorar o
aniversário de Emma. O volume de reuniões, campanhas
publicitárias, entrevistas e marketing que precisava fazer, tinha
duplicado. E isso não se devia somente à rivalidade natural da
competição como ao trabalho árduo de Ansel Bellini em ferrar
com tudo.
Seu mais novo alvo era Amélia. O ex-piloto a chamava
de “a garotinha de Vincent”, falando que o relacionamento
entre os dois era fadado ao fracasso pelos impulsos
irresponsáveis do italiano.
— Ele deve ser um velho muito desocupado para se
importar tanto assim comigo. — Amélia disse, quando Vincent
perguntou como ela estava com isso — Ah, Vincent, estou
pouco me fodendo. Eu tenho uma dissertação de mestrado
para entregar, mas fico feliz de ter ocupado a mente desse filha
da puta tanto assim.
Apesar da despreocupação dela, Vincent estava de saco
cheio de tudo aquilo. Ele só queria correr em paz e não ter que
aturar Ansel com uma cordialidade forçada em todos os
Grandes Prêmios.
E com isso na cabeça, ele sentiu o gosto amargo da
derrota ao terminar a corrida em Montmeló em oitavo lugar,
um resultado totalmente inesperado.
— Vincent, dá para recuperar, não é o fim do mundo. —
Arthur disse a ele, o sol espanhol queimando a cabeça do
piloto e do diretor da Redemptio. — Você está com coisa
demais na cabeça, não foram semanas fáceis.
— Mas eu deixei isso acontecer, Arthur. Você mesmo diz,
na hora da corrida, o que importa é o carro e a pista, o resto
pode esperar. E fui ultrapassado duas vezes seguidas por falta
de atenção. Porra, quase ouvia a voz de Bellini na minha
orelha.
Vincent suspirou, frustrado.
— Você se importa demais com aquele homem.
— E você parece que não! Aquele cara fala merda atrás
de merda da gente e não que eu fique puto?
— Porque nossa resposta tem que ser nas pistas, Vince.
Sabe como as coisas funcionam, o que adianta ir agora brigar
com Ansel, se amanhã todo mundo vai sair falando de como foi
uma atitude infantil?
O piloto cruzou os braços, desviando os olhos. Odiava
como Arthur estava certo, mesmo com a irritação que o
consumia.
— Eu só tô cansado do Bellini. Queria poder resolver
essa história de uma vez.
— Vincent! Arthur!
Stefano gritou, correndo na direção deles, parecendo
um pouco pálido.
— O que foi? — Arthur perguntou, em voz profissional.
— Primeiro de tudo, não surta. — Stefano disse e
estendeu o aparelho na direção deles. — Segundo, eu já estou
tomando as medidas de imprensa para essa merda.
"ATENÇÃO, ÓLEO NA PISTA: MEGA VAZAMENTO DE
DADOS ABALA O MUNDO DA FÓRMULA 1
Cerca de 50 arquivos confidenciais foram vazados nesta
manhã, após o Grande Prêmio da Espanha, contendo
informações sobre estratégias de equipes, carros e pilotos. O
acontecimento está sendo chamado de “óleo na pista”, na
internet e, apesar dos esforços rápidos das equipes para tentar
tirar tudo de circulação, os documentos já se espalharam por
fóruns, sites e redes sociais.
"Uma fonte anônima revelou à imprensa que um dos
nomes responsáveis por esse vazamento seria Vincent Di
Castelli, o campeão mundial mais recente, e piloto italiano da
equipe Redemptio. A Scuderia ainda não se pronunciou sobre o
ocorrido, mas espera-se que…"
Vincent parou de ler, porque sua mente se tornou uma
zona vazia e silenciosa, enquanto absorvia aquelas palavras.
Ele releu o título, achando o nome “óleo na pista” sem
criatividade, tentando encontrar a onde estava a parte que
dizia que tudo não passava de uma pegadinha.
— Stefano. — Ele disse, a voz calma. — Acho que não
entendi isso.
— Leve ele para o hotel. — Arthur disse a Stefano. — Eu
cuido das coisas por enquanto.
O social media assentiu.
— Mas, Arthur, o que eu…
Arthur colocou uma mão no ombro de Vincent.
— Vincent. Você vai para o hotel, dormir hoje, e amanhã
vamos conversar. Não chegue perto da porra de uma rede
social nem de um jornal. Jogue alguma coisa, ligue para sua
mãe, ou Amélia, sei lá.
A mente de Vincent estava meio anestesiada o trajeto
inteiro até o hotel. Parecia que ela se recusava a entender o
que tinha acontecido, sentimentos conflitantes de raiva,
irritação e incredulidade se chocando em uma batida feia e
sangrenta. O italiano repassou todos os últimos dias na mente,
um pouco impressionado pela conexão deles.
Quando ele entrou, fugindo de repórteres que pediam
por uma explicação ou pronunciamento, o piloto finalmente
entendeu o que tinha acontecido. Então, riu.
— Devo me preocupar?
Stefano franziu a testa.
— Porra, eu não tô acreditando que Ansel disse. Como
ele pode ser tão idiota?
— O que você esperava dele, Vince? O cara é um
babaca.
— Que ele tivesse o mínimo de inteligência. — Vincent
enxugou uma lágrima, o abdômen doendo de tanto rir. — Lá
estava eu, xingando o cara, e ele vem me provar o porquê de
ser um imbecil. O universo gosta de me dar lições.
— Vincent, acho que você enlouqueceu.
— Provavelmente. — Vincent pegou o celular e discou o
número de Chase. — Oi, você viu?
— Está em todo lugar. Você tá bem?
— Acabei de ter a melhor crise de riso da minha vida,
mas estou bem.
— Certo…
— Não se preocupe, Astier, mas eu aceito. Aquilo que
você me disse, eu quero fazer parte.
Vincent ouviu a voz de uma pessoa e passos apressados
para longe.
— Tem certeza, disso, Vince? É um movimento arriscado
demais, principalmente nessa hora.
— Você não tá cansado, Chase? — Vincent se encostou
na parede fria do elevador. — Eu tô e para caralho. Não sei
como estão lidando com as coisas na Razze, mas pela cara que
o Stefano tá fazendo agora, ninguém da Redemptio aguenta
mais também.
Stefano sorriu, passando os dedos pelos cabelos
crespos. As olheiras embaixo dos olhos dele, evidenciavam o
trabalho que Ansel Bellini dava para toda a equipe de
marketing e assessoria da Redemptio. Vincent testemunhou de
perto o trabalho incansável do melhor amigo, e sabia o quanto
ele estava cansado de lutar contra o ex-piloto.
— Eu sei como você se sente, Vince, mas eu preciso
mesmo saber se quer se meter nisso. Não tem volta. E por
mais que você deteste, você é sim impulsivo.
— Prometo que dessa vez não estou sendo impulsivo.
Eu pensei muito desde que você falou comigo e acho que é a
melhor forma de acabar com isso. — Vincent fez uma pausa,
quando o elevador parou e caminhou pelo corredor vazio. —
Uma vez me disseram que a raiva não é a única forma de lidar
com as coisas, que existe outra forma, uma mais inteligente.
Quero fazer isso.
Chase suspirou.
— Tudo bem, então. Eu vou te mandar o plano inteiro
por e-mail, mas as coisas continuam as mesmas, nada de
contar para ninguém. Nem para Amélia. Quanto menos
pessoas souberem disso, melhor.
Vincent lembrou da conversa de meses atrás, sobre o
namoro falso e sorriu.
— Sou bom com termos de confidencialidade, mas
coloque Stefano como exceção. Ele é meu melhor amigo e a
pessoa em que mais confio nesse grid, além de um profissional
excelente.
Stefano o encarou, as sobrancelhas arqueadas em
surpresa e curiosidade.
— Compreensível. Escuta, eu preciso ir agora, mas nos
falamos depois, certo?
— Até depois.
— No que você me meteu? — Stefano perguntou assim
que fechou a porta do quarto — Eu corro o risco de ser preso?
Vincent pressionou os lábios em uma linha fina.
— Então…
— Ah, meu Deus, eu corro o risco de ser preso mesmo?!
Stefano apontou para Vincent.
— Calma, Stefano, mas meio que sim? Olha, primeiro de
tudo, você ia topar se estivesse no meu lugar.
— Eu duvido muito.
— Não quer acabar com Ansel Bellini? Eu tenho uma
forma. Vou arriscar muita coisa, até minha carreira, mas confio
em que está envolvido.
Vincent encarou Stefano, tentando transmitir confiança,
disfarçando o medo que sacudia seu estômago. Seu melhor
amigo piscou, erguendo o queixo.
— Eu confio em você, Vincent. Me conte.
O piloto sorriu, grato e feliz pela sua vida ter cruzado a
de Stefano tantos anos atrás e por ele ter permanecido.
— Chase tem um nome péssimo, chamou de “Operação
Paz ao Grid”. Mas eu prefiro o meu “Xeque-mate”.
Stefano revirou os olhos.
— Vocês tem até um nome.
— Estamos tentando derrubar um rei homofóbico e
tirano. — Vincent cruzou os braços. — A dramaticidade é
importante.
O italiano contou ao melhor amigo um resumo, o peito
queimando em expectativa e animação. Talvez tudo desse
errado e o preço a pagar seria alto demais por um mínimo
erro.
Mas Vincent estava disposto. Ele não seria mais o garoto
de Londres, impotente e raivoso, quando a chance de fazer
algo estava bem na sua frente. E ele não iria desperdiçar.
21.
Três anos atrás
Outubro, 23:40, Londres
Vincent tinha um problema sério para lidar: estava
gostando um pouco demais de beijar aquela estranha.
Ele mal conhecia Amélia, eles tinham se encontrado a
poucas horas atrás e agora Vincent não sabia o que fazer
quando fosse obrigado a parar de beijá-la. Não diria que estava
apaixonado, mas muito interessado era um bom começo.
O piloto tinha regras em seus relacionamentos para
seguir a risca. Termos de confidencialidade devem ser
assinados antes do contato físico, celulares confiscados, locais
escolhidos para segurança dele e do acompanhante da vez. Só
o fato de que Vincent estava beijando o pescoço de Amélia em
público, no meio de Londres, era o suficiente para Stefano
enlouquecer.
É por isso que não vamos contar para ele.
Eles ainda estavam no banco onde tiveram a primeira
conversa, enrolados no cobertor macio de Amélia, as pernas da
mulher jogadas em cima de Vincent. O piloto não conseguia
parar de tocá-la, fosse retirando seus cabelos do rosto ou
segurando as mãos dela por alguns segundos.
Ele se perguntou o que aconteceria quando o sol raiasse
e Vincent tivesse que viajar para outro lugar. Queria manter
contato com ela, claro, mas será que se veriam novamente?
Ou seria só uma noite esquecida dentro de suas memórias? Ele
desejou que a primeira opção se concretizasse.
— Quando termina sua especialização aqui?
Vincent perguntou, pensando em como faria para
encontrá-la novamente.
— Em breve. — Amélia desviou os olhos.
— E o que você quer fazer depois disso? Mestrado?
— Tomara que sim. A prova para mestrado é incerta,
poucos são aprovados, e a modalidade que eu quero é ainda
mais disputada. — Ela pressionou os lábios em uma linha fina.
— Entramos na conversa sonhos para o futuro?
— Da lista de temas não conversados, era o único que
faltava.
Vincent riu baixinho, arrumando o cobertor sobre os
ombros deles.
— Eu te contei quase tudo sobre meus planos para o
futuro, mas você não me disse nada sobre os seus. Parece
meio injusto, Vincent. — Ela passou os dedos nos cabelos dele.
— Vamos lá, me conte, super piloto de Fórmula 1.
— Fórmula 2, mas eu espero que em breve seja a
Fórmula 1. Não tem muito o que dizer, a não ser que quero
ganhar o máximo de corridas que eu conseguir.
— Isso me parece muita coisa.
Ele assentiu.
— Acho que sim. Nunca parei para pensar muito no
futuro, sendo honesto. Eu não planejo tão longe assim. Se
você me perguntar onde eu vou estar daqui a 10 anos, o
máximo que eu consigo dizer é em algum autódromo em uma
corrida.
— E eu responderia para essa pergunta, dando aula em
alguma faculdade enquanto termino meu mestrado em arte,
dividindo meu tempo entre museus famosos e eventos
acadêmicos.
— Você tem mesmo tudo isso planejado?
— Desde que entrei na faculdade. — Amélia arrumou os
óculos no rosto. — Sou uma pessoa muito sonhadora e assim
que acabei o primeiro período da faculdade, senti que
finalmente pertencia à algum lugar. Foi meio impossível não
querer seguir esse caminho.
Vincent sorriu, os dedos de Amélia brincando com um
fio solto do casaco.
— É um ótimo plano.
— Eu também acho.
— Sabe o que também seria ótimo? — Amélia ergueu
uma sobrancelha, inquisitiva. — Se eu te beijasse de novo.
Ela riu, deitando a cabeça no peito de Vincent.
— Essa foi uma péssima conexão, você sabe disso.
— Sim, mas eu garanto que as intenções eram as
melhores.
Amélia beijou os lábios de Vincent ainda sorrindo,
segurando o rosto dele com os dedos quentes e macios. Ele
sentiu-se derreter sob o toque e o gosto da boca dela, virando
o corpo um pouco mais, apertando o ponto acima do joelho da
mulher.
O piloto tentou muito não pensar em como o tecido
marcava perfeitamente bem as pernas grossas dela, ou como a
bunda de Amélia entre seus dedos o fez ter pensamentos nada
puritanos.
Ele se deixou ser tocado, sentindo a ponta dos dedos de
Amélia em sua testa, acariciando seus cabelos, os lábios dela
beijando os cantos de sua boca, desenhando uma trilha no
maxilar. Ela se apoiava em seus ombros, o nariz percorrendo o
pescoço do piloto, o hálito quente deixando arrepios em sua
pele.
Os dedos de Vincent se enterraram na pele de Amélia.
Ela era insuportavelmente calma em explorar o corpo dele,
delicada e gentil, e isso o estava deixando louco. Ele se
obrigou a ficar parado, engolindo em seco, suportando as
sensações inebriantes.
— Você é bonito. — Ela sussurrou, o rosto na curva do
pescoço dele, os cabelos batendo na bochecha de Vincent. —
Queria dizer isso a noite inteira.
— Você é bonita também, mas acho que sabe disso.
Bonita é pouco.
Ela riu contra a pele dele, o som reverberando pelo
corpo de Vincent, viajando pela sua coluna.
Amélia se afastou e Vincent abriu os olhos, piscando um
pouco, e encarou aquela mulher. Ela havia tirado o gorro,
prendendo os cabelos ondulados e castanhos em um coque
improvisado, os olhos brilhantes atrás das lentes dos óculos.
— O que você precisa fazer para se tornar um piloto de
Fórmula 1?
— Assinar um contrato com uma equipe. Minha família
quer se meter nisso, mas eu não deixo. Eles já têm os negócios
dele e quero conseguir isso por mim mesmo.
— Uma determinação invejável. — Ela o encarou por
alguns longos segundos. — Sei que sou uma estranha que
você acabou de conhecer e beijar, mas eu acho que você vai
conseguir realizar seu sonho.
— Ah, é? — Vincent colocou uma mecha de cabelo dela
atrás da orelha — Baseado na análise de uma noite?
— Sim, as minhas análises são precisas. Sou acadêmica,
uso uma metodologia rígida de estudo. — Ela sorriu. — E eu
nunca nem vi você correr, mas eu sei que vai conseguir. Uma
pessoa com tanta vontade de fazer algo dar certo, que ama
tanto uma coisa assim, não vai parar até chegar onde quer
estar.
Lá estava, aquele tom de voz novamente, que carregava
todas as verdades e certezas inquestionáveis do mundo.
— Se uma estudiosa desse calibre diz isso para mim, eu
não vou questionar.
— Agradeço o respeito aos meus estudos altamente
aprofundados.
Ela se inclinou para ele, os lábios próximos dos de
Vincent, pairando a milímetros de distância.
— Você vai ser ótimo, Vincent, lembre-se do que eu
disse.
E o beijou novamente. Vincent puxou Amélia para mais
perto, agarrando a cintura dela, os dedos mergulhando na pele
entre o cós da calças e a blusa, querendo mais. Quando
mordeu o lábio inferior, ouviu o gemido baixinho e contido,
aquele som quase o levou à loucura.
Amélia o beijava como se fosse a última vez e Vincent
aproveitou para tirar arquejos e suspiros da mulher, fascinado
pela forma como ela reagia a cada toque seu.
Talvez, quando o sol nascesse, a magia acabasse e
Vincent tivesse que conviver com a realidade complexa e
angustiante. Mas naquela noite, com as palavras de Amélia em
sua mente e a boca dela ao seu alcance, ele decidiu acreditar
no conto de fadas um pouco mais.
22.
Junho
Amélia conversava com o curador de um museu na França,
quando Angela entrou no escritório de Amélia e disse:
— Teodora Torrisi e Anna Di Castelli estão aqui.
Ela congelou, o sangue sumindo do seu rosto. Provavelmente
estava sendo demitida naquele exato instante e as duas mulheres
vieram dar a notícia juntas. Talvez Teodora pensasse que seria mais
gentil do que enviar um e-mail, mas Amélia preferia mil vezes uma
mensagem de texto a ouvir da boca das mulheres que mais
admirava no mundo o quanto havia fracassado.
Ao descer para encontrá-las, Amélia precisou andar devagar,
se xingando um pouco por ter escolhido um par de saltos mais altos
para trabalhar naquele dia, o nervosismo dificultando seus passos.
A Galera Torrisi estava praticamente vazia, antecipando a alta
temporada de junho e julho, que certamente viria com a nova
exposição. O sol se derramava pelas janelas de vidro, as sombras
das árvores que cercavam o lugar se projetando como pequenas
garras.
Teodora e Anna estavam na sala dedicada exclusivamente à
Fulvia D ‘Oro. Com penteados elegantes, as duas analisavam uma
grande pintura da artista, retratando um campo de trigo dourado e
um agricultor agachado, arrancando pequenos ramos da terra. As
cores sobrepostas formavam um degradê intenso, culminando no
céu azul limpo de verão, a textura das pinceladas evidente mesmo
se olhado à distância.
Era um dos quadros preferidos de Amélia.
— Acho que vocês não vieram para a visita guiada. — Ela
disse, os dedos tremendo.
Anna e Teodora se viraram, sorrindo. As duas tinham os
mesmos traços, que Amélia também via refletidos em Vincent.
— Amélia, querida, que bom ver você. Espero que não
tenhamos te atrapalhado. — Anna deu um beijo em cada bochecha
dela.
— Eu não estava muito ocupada.
— Mentira, eu sei como você se esforça para cuidar da nova
exposição. — Teodora estreitou os olhos. — Tem se alimentado?
Bebeu água hoje? Não pode ficar trancada naquele escritório o dia
todo.
Amélia riu, trocando o peso do corpo de uma perna para
outra. Talvez ela não fosse demitida no fim das contas.
— Estou bem, Teodora. A que devo a honra da visita?
— Você me deixou um presente interessante e eu adoraria
saber mais sobre ele. — Os olhos verdes de Teodora brilharam.
— E a minha mãe não conseguiu ficar de boca fechada e me
contou. — Anna completou. — Mas não a culpe, ela sabe que
estudei Fulvia durante muitos anos na faculdade.
Amélia soltou um suspiro de alívio, relaxando os ombros.
— Claro, vai ser um prazer. Gostariam de um chá? Um café?
— Que tal a cafeteria no fim da rua, querida? — Anna
sugeriu.
— Ótimo, me deem só um minuto, vou pegar minhas coisas.
Amélia estava tendo uma crise e derrubou duas vezes a chave
do seu escritório. Era como ter cinco anos e estar diante da Sailor
Moon, bem na sua frente e ela simplesmente dissesse:
— Quero falar com você, pobre mortal!
Os Torrisi não eram só os maiores patrocinadores de artes do
mundo, eles eram a família especializada no assunto. Suas vidas
eram dedicadas a resgatar artistas que foram apagados pela
história, como Fulvia, e dar chance àqueles que só precisavam de
uma oportunidade.
E é claro, havia o peso adicional de ser a primeira namorada
de Vincent Di Castelli que a família conheceu. Mas sem pressão.
Depois de passar na sala de Angela e acertar os detalhes com
a amiga, Amélia desceu e encontrou as duas mulheres. Elas
caminharam pela rua até a cafeteria e a estudante riu quando os
olhares chocados dos pedestres encontravam com o grupo. Pelo
visto não era todo dia que você via os Torrisi casualmente andando
pela cidade.
Ela se lembrou do primeiro encontro com Vincent, dos olhares
arregalados das mulheres da cafeteria e das fotos que saíram
depois. Pensar nele fazia seu coração se apertar de saudade, nem as
infinitas chamadas de vídeo eram capazes de abrandar o
sentimento. E com os últimos acontecimentos, Amélia queria estar
perto dele, ajudar ou simplesmente abraçá-lo.
A brasileira segurou um suspiro quando se sentou, deixando
Anna e Teodora fazerem seus pedidos.
— Então, Amélia, eu li o que você me mandou. Quando disse
sobre a pesquisa, eu imaginei que seria algo sobre a pintura de
Fulvia, não sobre a vida dela. — Teodora disse.
— Originalmente, esse era o meu plano, mas as coisas
mudaram um pouco.
Amélia tentou esconder sua empolgação, mas falar sobre o
tema da sua dissertação de mestrado era uma das coisas que mais
gostava no mundo.
— E o que você pode compartilhar de Fulvia conosco? —
Anna perguntou, os olhos verdes brilhando.
— Vocês já devem conhecer a história de Fulvia melhor do
que eu. A garota que pintava os campos verdes da Itália e teve todo
o crédito roubado pelo irmão mais velho. Quando isso aconteceu, ela
fugiu para o Brasil e ficou lá até perto da sua morte, quando voltou
e faleceu em Mancia. — Amélia respirou fundo. — Eu estava na
faculdade quando descobri essa história inteira, me encantei por
Fulvia logo de cara e quis saber mais sobre ela.
— Por isso você veio para Itália, garota esperta. — Teodora
comentou, uma mecha de cabelo grisalho caindo em sua testa.
— Exato. E também porque eu precisava de ajuda para
conhecer um pouco mais sobre Fulvia. Meu orientador da faculdade
e alguns professores no Brasil me ajudaram nisso e nós descobrimos
uma coisa interessante em um dos museus. Diários em forma de
cartas, que jamais foram postados.
A estudante sorriu, vendo os olhares em choque de Anna e
Teodora. Ela também ficou daquele mesmo jeito quando seu
professor de Teoria Literária lhe mostrou o conteúdo encontrado no
acervo de um dos museus.
— Onde elas estão?
A matriarca Torrisi sussurrou.
— No Brasil. Minha dissertação trabalha com o conteúdo
delas, o que eu não posso contar tudo ainda, antes da defesa.
Ajudei na tradução de algumas e vou usar o que temos para
apresentar na banca.
Anna a estudou e seu único anel prateado na mão direita
refletiu a luz da cafeteria por um instante.
— Sinto que você tem mais coisas a dizer, Amélia.
A brasileira empurrou os óculos para o lugar.
— Quero deixar claro que não me aproximei de Vincent por
causa de Fulvia. Meu plano sempre foi usar a bolsa nos estudos e
apresentar a história dela, porque merece ser contada. E depois de
tudo o que eu li, eu acho que precisa mesmo ser mostrada para o
mundo. Foi por isso que enviei o resumo da minha dissertação para
você, Teodora. Os Torrisi são o principal tema nas pinturas dela,
construíram um santuário inteiro para Fulvia, e acho justo que sejam
os primeiros a saber de tudo.
— O que vai acontecer quando você fizer sua defesa?
— Eu vou doar o trabalho inteiro para o acervo da família
Torrisi. — Teodora ergueu uma sobrancelha. — A história de Fulvia
está diretamente ligada a vocês, me deram a bolsa que eu tanto
sonhava para concluir meus estudos. Nada mais certo do que passar
para os que mais se importam com ela.
As três ficaram em silêncio por vários segundos, até mesmo
depois da garçonete entregar os pedidos na mesa.
Amélia bebeu seu café, a perna balançando freneticamente
debaixo da mesa, em uma descarga de ansiedade. Ela fixou seu
olhar nas mãos das duas mulheres, as unhas bem feitas, enquanto
elas pegavam suas próprias bebidas. A estudante notou o chá de
Teodora, laranja, e deu um sorriso para a madeira da mesa,
lembrando-se de Vincent.
— Foi o meu pai que resgatou as obras de Fulvia. — A
matriarca Torrisi disse. — Você sabe porque ele fez isso?
— Porque ela retrata os Torrisi nas pinturas, o crescimento da
família ao longo dos anos.
— Essa é a explicação para as entrevistas. O meu pai… Ele
não era um homem bom, menina. Podia parecer um empresário de
sucesso naquelas reportagens, mas eu me lembro das coisas que ele
dizia. Não fui uma filha fácil, mas me orgulho de não ter sido.
Quando eu tive meus próprios filhos, jurei a mim mesma que jamais
seria igual aquele homem.
Amélia encarou Teodora. A mulher sorridente e forte, tinha
um olhar de dor em seu rosto e a estudante apertou a mão livre
dela.
— Quando ele descobriu que as lendárias pinturas dos Torrisi
foram feitas por uma mulher, meu pai quis apagar da história da
nossa família. Eu e meus irmãos tivemos que fazer o trabalho de
desenterrar grande parte da verdade e muito se perdeu nesse
processo, já que meu pai não queria essa mancha no nosso nome.
— A maior parte do que você conhece, do que está exposto
nas galerias, foi fruto dos meus estudos. — Anna disse, inclinando-
se na mesa. — Minha mãe não vai admitir nunca, mas ela queria
que alguém continuasse a contar a história de Fulvia e eu era
apaixonada por arte. Não foi um trabalho fácil, tinha muito sobre ela
pelo mundo.
Amélia assentiu.
— Eu entendo. Quando decidi que minha dissertação de
mestrado seria sobre ela, tive que pedir ajuda para conseguir livros
que falassem sobre a história pessoal dela. Na verdade, eu li muito
do seu trabalho, Anna. — A estudante sorriu. — O que você fez na
Galeria Torrisi, indo de museu em museu, coleção por coleção, e
descobrindo os quadros dela… Foi incrível.
— Ah, foi mesmo. — Anna sorriu. — Foi o trabalho de uma
vida inteira e eu fico feliz que você se inspirou nele. Mas… Porque
uma garota brasileira escolheu uma pintora italiana para estudar?
Quando você mencionou isso no jantar, fiquei curiosa.
Amélia pressionou os lábios em uma linha fina.
— Teodora, os quadros de Fulvia na mansão Torrisi, são os
que não tem uma explicação, certo? Não estão relacionados com a
família, nem com os trabalhadores das terras e ninguém sabe o
porque ela os pintou.
— Sim, nunca foram expostos na galeria porque não tem uma
história concreta.
— Só sabemos que é de Fulvia pela assinatura e estilo das
pinturas — Anna trocou um olhar com a mãe — Está querendo dizer
que nos diários…
— Fulvia teve um amor profundo. O único da vida dela, que
morava no Brasil e ela decidiu viver seu sonho. — Amélia arrumou a
postura. — Esse é o conteúdo básico das cartas, tudo o que
realmente posso falar. Mas… Explica as pinturas que não tem relação
com as outras, o porque dela não ter voltado para a Itália. O
remetente era uma de suas melhores amigas, que morreu quando
Fulvia tinha 18 anos. Acredito que era como desabafar sobre sua
vida para alguém, mesmo que essa pessoa não estivesse lá.
— Deus, isso muda muita coisa. — Os olhos de Anna
brilhavam de empolgação. — Se pudermos ter esses documentos na
galeria, podemos completar o trabalho inteiro de Fulvia. Amélia
querida, quando podemos ter acesso a isso?
Amélia deu uma longa explicação sobre a relação da sua
universidade no Brasil e os estudos na Itália. Ela sabia que estava
soando emocionada demais, mas não se segurou. Era sempre um
prazer falar do que amava para pessoas interessadas, que tinham
tanto amor como ela para aquilo.
Em especial, para a pessoa que a tinha inspirado naquele
caminho. Nem nos seus melhores sonhos ela pôde imaginar que
conseguiria a chance.
— Me envie o contato dos seus professores. — Teodora pediu.
— Eu quero conversar com eles sobre uma possível amostra, quando
seu trabalho for publicado.
— Claro, eu vou fazer isso hoje mesmo.
Amélia tinha acabado de pegar o celular, quando Anna tocou
em seu braço.
— Ainda não respondeu minha pergunta, querida. Porque a
história de Fulvia tanto lhe interessou?
— Pessoas como Fulvia, que foram injustiçadas, merecem ter
a chance de ter suas histórias contadas. — Amélia soltou e tomou
uma respiração funda. — Ela não era só uma coitadinha que teve o
trabalho roubado pelo seu irmão mais velho e agora as pessoas
estão finalmente tendo a chance de conhecê-la. Fulvia era uma
mulher cheia de luz e energia, com tanto amor e carinho para dar…
Ela não sonhava em ser famosa, mas queria que sua arte tocasse o
coração das pessoas, as inspirasse. Alguém precisava mostrar ao
mundo quem ela é de verdade.
— E você decidiu assumir a função?
Amélia riu baixinho.
— Uma pessoa precisava, não é? Minha mãe era apaixonada
por arte, sempre me levou em museus, junto com minha irmã mais
nova. A primeira vez que eu vi um quadro dela, no Brasil, minha
mãe me contou sobre a história superficial de Fulvia. Fiquei um
pouco obcecada.
— Sua mãe parece uma pessoa especial.
— Ela era. — Lágrimas surgiram nos cantos dos olhos de
Amélia e ela piscou. A lembrança da mãe era um misto de conforto e
dor, que coexistiam em seu peito.
— Ah, menina. — Teodora sorriu e apertou a mão de Amélia.
— Ela deve estar bem orgulhosa de você.
— Gosto de pensar que sim. — Amélia sorriu.
— Porque não fala um pouco sobre ela, Amélia? Adoraria
saber mais sobre sua mãe e sua irmã. Ela é escritora, não é?
Amélia assentiu e relaxou, contando aquelas duas mulheres,
que também tinham passado por perdas, dores e tristezas, sobre
sua infância na cidade litorânea e as comidas que sua mãe fazia.
Aproveitando a deixa, Anna e Teodora falaram sobre seus maridos,
Vincent e como foi crescer em Mancia.
Apesar da dor que as memórias carregavam, Amélia sentiu o
nó em seu peito se afrouxar, sabendo que as outras também
compartilhavam da sensação. Ter pessoas que passaram pelo
mesmo que ela, estar cercada de compreensão, a fez sentir que sua
mãe estava ali, espantando velhos fantasmas com seu sorriso gentil
e amoroso.
Viva dentro dela, viva nos sonhos de Amélia.
***
O final de semana em Silverstone encheu Vincent de
memórias.
A equipe inteira pousou em Londres, para cumprir uma
agenda publicitária, e Vincent passou na mesma rua onde conheceu
Amélia Palhares. Enviou uma foto do alojamento universitário para
ela, recebendo uma sequência de emojis de choque.
Ele se viu relembrando tudo o que aconteceu naquela noite,
desde a primeira vez que viu a garota de casaco vermelho, chorando
na calçada, à quando acordou sozinho e viu que Amélia tinha ido
embora. Era engraçado perceber quanto tempo havia de passado e
como os dois se tornaram duas pessoas diferentes.
O Vincent de três anos atrás jamais imaginaria dar uma
entrevista sobre a temporada atual de Fórmula 1, embora sonhasse
com isso. Sorrindo para os fotógrafos, ele se pegou pensando
naquele garoto do passado, analisando seu trajeto em flashes
rápidos.
— Como está o humor para a corrida desse fim de semana,
Vincent? Disposto a tentar uma dobradinha da Redemptio?
Ele e Satake trocaram um olhar antes de rirem.
— Confiante de que vou vencer, mas adoraria dividir o pódio
com Yukikaze, é sempre bom.
— E sobre os vazamentos recentes, gostaria de comentar
alguma coisa?
Vincent pressionou os lábios em uma linha fina. Ele sabia o
que todas aquelas pessoas estavam esperando dele e cerrou os
punhos antes de assumir uma expressão calma e tranquila.
— Não. Já emitimos notas oficiais sobre o assunto e não
temos mais nada para falar sobre isso. Esperamos agora uma
resposta da justiça sobre o ocorrido e desejo minha solidariedade
para as equipes e pilotos afetados.
Até porque, eu não faria um estardalhaço para perder de vista
o que importa.
O piloto vinha dedicando seu tempo extra no projeto secreto
e não queria estragar tudo. Mesmo que o risco fosse alto, Vincent e
os outros jogavam com cuidado e precisão, contando com uma
equipe incrível por trás de cada parte. Ele não seria o maluco de
estragar tudo, por isso, tinha que ter cuidado redobrado com o que
falava e como agia.
— Qual o meu próximo compromisso?
— Nenhum, a não ser que você tenha mais um crime federal
para cometer. — Stefano disse, desligando o tablet.
— Ainda é cedo e nunca sabemos como a noite termina.
Eles estavam no hotel, o planner de Stefano aberto e diversos
papéis escapando de dentro dele. O social media parecia exausto e
Vincent se sentiu um pouco culpado, pela carga de trabalho extra
que deu ao amigo.
— Você vai sair?
— Sancia está na cidade e vamos em um bar. Quer ir?
— Na verdade, eu quero sim. — Vincent o encarou, surpreso.
— Não faça essa cara, Vince, eu sou o cara das festas nessa
amizade.
— Sim, mas você odeia sair em dias que não sejam sua folga.
— Atualmente, não temos mais folga, então estou me dando
o direito de furar essa regra.
Eles escolheram um bar tranquilo, nos arredores da cidade, e
distante de paparazzis e fotógrafos. A temática LGBTQIA+ estava
presente nas luzes, bandeiras penduradas nas paredes de madeira
escura, na playlist só de artistas queer e até mesmo nos drinks.
— Meu Deus, tem um drink de morango que chama lésbica
super sônica. — Sancia riu. — Eu preciso pedir um desses!
Ela estava usando um vestido de mangas compridas, roxo,
que terminava abaixo das coxas, combinando com botas brancas. O
delineador dela, prateado, brilhava na luz roxa que piscava acima da
mesa deles.
— Eu vou querer uma margayrita. — Stefano apontou para o
cardápio.
— Um soco pansexual me parece perfeito para mim. —
Vincent disse, sorrindo.
— Que bonitinho, todo mundo pedindo um drink que nos
representa.
Stefano mencionou, tirando uma das tranças recém-colocadas
do rosto. O resto do cabelo estava amarrado em um coque, na nuca,
e a pele negra retinta, brilhava pelo iluminador dourado. Ele tinha
escolhido um blazer azul escuro, com uma camisa preta por baixo, e
um lenço estampado no bolso.
— Vou mandar isso aqui no grupo da gente. — Vincent tirou
uma foto do cardápio e depois fez uma selfie deles três. — Emma
vai ficar puta porque não veio.
— Eu trago ela algum dia, é meu bar preferido da Inglaterra.
Vincent assentiu, arrumando a bandana que mantinha seus
cabelos para trás. Os fios tinham começado a crescer, estavam
quase na orelha, e ele riu quando Amélia comentou que era muito
injusto ele estar tão gostoso e ela não poder vê-lo.
Os três beberam os drinks com rapidez, dispostos a
experimentar o máximo possível do cardápio. Vincent parou no
terceiro, porque era o motorista da noite, e no dia seguinte teria
treino, mas não precisou de álcool para ficar animado com Sancia e
Stefano com ele.
A relação com Amélia permitiu que eles se aproximassem
bastante. Quando a mãe de Sancia ficou doente, todos se reuniram
para dar apoio à modelo, e a amizade entre eles foi selada. Vincent
nunca teve tantos amigos quanto naquele momento e o piloto se
sentia feliz pela companhia de cada um deles.
— Tem um Old Town X! — Stefano disse, rindo, quando Lil
Nas X começou a tocar no bar. — Sancia, a gente tem que beber
esse drink.
— Essa merda tem tequila? Isso vai me matar, mas eu topo.
Vincent riu, acompanhando a cantoria desafinada dos amigos.
— E então, piloto campeão mundial — Sancia disse, depois de
virar o drink de uma só vez — Você não disse nada sobre as corridas
desse ano.
— Não tem muito o que dizer, vou ganhar mesmo.
— Vincent, você sabe do que eu tô falando. Até meu pai falou
das acusações de Ansel Bellini, aquele velho desgraçado.
O rosto de Sancia se contorceu em desgosto.
— Ah, Sancia, ele é só um velho babaca. Dou o meu melhor
nas pistas e com certeza sou um piloto mais capaz do que Ansel,
isso me conforta.
— Meu pai disse o mesmo!
— Se ele quiser, eu consigo ingressos para a corrida no
domingo.
— Awn, você é um fofo querido. Mas meu pai não vai sair do
lado da minha mãe até ela melhorar.
Vincent sorriu.
— E como você tá lidando com isso?
— Ela vai ficar bem, o choque de ver ela no hospital que foi
maior. Mas é só questão de tempo e de cuidados em casa e ela se
recupera.
Stefano abraçou Sancia.
— Claro que ela vai ficar bem, é forte igual você. — O social
media disse.
Eles resolveram encerrar a noite no karaokê do bar, ao som
de Judas, da Lady Gaga. Stefano gravou a apresentação inteira de
Vincent e Sancia, que animaram a plateia pequena ao ponto deles se
levantarem para dançar.
O piloto deu o melhor de si, sabendo que cantar não era uma
de suas habilidades. Deixou o estresse dos últimos dias escorrerem
nas notas desafinadas, abraçando Sancia com um braço, e pulando
com ela junto na batida da música. Vincent estava realmente se
divertindo e percebeu o quanto sentia falta disso.
— Gaga é sempre um clássico. — Sancia gritou, um pouco
bêbada, o lace loiro do cabelo um pouco desarrumado. — Obrigada
por terem vindo me ver, eu sei que vocês tem uma agenda a cumprir
e tudo o mais.
— Sancia, querida, estamos sempre disponíveis para você. —
Stefano disse. — E Angela mandou dizer no grupo, que você está
gostosa demais nesse vestido.
A modelo riu.
— Essa é a deixa para eu ligar para minha namorada, se
vocês dois me dão licença…
Sancia sorriu, o celular já na orelha. Vincent e Stefano a
acompanharam para o lado de fora, encostados na parede lateral do
bar, o ar frio e inglês era refrescante. O céu nublado parecia
prenunciar uma chuva e o piloto fez uma careta, odiava correr em
pista molhada, mas seria uma chance de experimentar o jogo de
pneuS da Redemptio para essa situação.
— Vai mesmo chover. — Stefano disse. — Meu joelho tá
doendo desde que a gente chegou aqui.
Vincent riu. Era mesmo verdade, o joelho de Stefano parecia
ser capaz de prever o tempo e ele confiava mais no amigo do que
no jornal.
— Vai ser uma corrida e tanto amanhã, nesse caso, talvez
algum carro derrape. Mais emoção nas pistas é bom.
— Mais do que já tem?
Stefano franziu a testa.
— Ah, Stefano, um drama na Fórmula 1 é sempre bem-vindo.
— Vincent sorriu — Obrigado por ter topado tudo isso, aliás.
— Sou seu melhor amigo, Vincent. Eu te ajudaria nisso sem
pensar duas vezes.
Eles trocaram um abraço longo, irmandade e afeto
transmitido pelo toque. O celular do piloto tocou e ele se
surpreendeu ao ver o nome de Amélia na chamada.
— Palhares?
— Oi.
— O que você tá fazendo acordada a essa hora?
Ele ouviu uma risada baixinha do outro lado.
— Eu meio que esperava que você ainda estivesse no karaokê
e Stefano fizesse uma chamada de vídeo, porque eu queria tanto ver
isso.
O piloto riu, a parte restante da tensão se esvaindo.
— Ah, é? Então não tem nada a ver com você querendo
material para o meu aniversário.
— Por favor, eu tenho o suficiente. — Ela suspirou. — Uma
pena que você não está aqui, pensei que iríamos comemorar juntos.
— E que tipo de comemoração você queria fazer, Amélia?
Vincent sorriu, o sangue correndo mais rápido nas veias.
— Uma que envolvesse muitos beijos, de preferência, e quem
sabe uma cama disponível — A voz dela ficou mais baixa e
convidativa — Terminarmos o que não fizemos naquela vez.
— Eu adoraria, Palhares. Tenho uma ótima imaginação, sabia
disso? Consigo até ver como a noite toda seria.
— A noite toda?
— Amélia, quando eu finalmente tiver você, acha que vou
ficar satisfeito só com uma vez?
Mesmo a quilômetros de distância, Vincent sentia as faíscas
estalando no ar ao redor. A sensação da boca de Amélia Palhares
sob a dele não podia ser esquecida facilmente.
— Não acredito, estão falando putaria na minha frente?! —
Sancia gritou e Amélia riu do outro lado da linha. — Tenham
decência, crianças.
— Como se não fosse esse o assunto da sua conversa com
Angela. — Vincent provocou. — Amélia mandou um beijo.
— Diga que mandei um de volta e sinto falta dela.
— É, eu também. — O piloto respondeu baixinho, só para o
telefone. — Preciso ir, Palhares, tenho que voltar para o hotel.
— Me avise quando vocês chegarem no hotel, campeão. E eu
também sinto falta de você, Vincent.
No caminho de volta, com Sancia pensativa e Stefano
encarando a paisagem de Silverstone, Vincent colocou ‘Codinome
Beija-Flor’, uma das músicas preferidas de Amélia. A brasileira tinha
apresentado a canção a ele e traduzido para italiano, explicando
cada verso em tantos detalhes e carinho, que o piloto se apegou à
canção.
Carinho era uma palavra que definia bem Amélia. A
preocupação de saber se todos os amigos chegaram bem, em casa
ou no hotel. Mensagens no meio dia, perguntando como cada um
estava, só porque ela se importava. Fotos retiradas do fundo do baú,
enviadas de forma aleatória, para resgatar antigas lembranças de
momentos.
Sempre ações afetuosas que tinham como intenção
demonstrar carinho pelas pessoas que ela gostava.
Vincent sorriu com o refrão da música. Ele tinha a sensação
de que seu coração estava protegido nas mãos de Amélia.
E teve a prova disso, alguns dias depois.
No seu aniversário, depois de uma agenda cheia e um bolo
surpresa da equipe da Redemptio, Vincent estava ansioso por um
descanso no seu hotel. Ele achou estranho não ter tido nenhuma
mensagem de Amélia o dia inteiro e imaginou que ela estivesse
ocupada com as coisas do mestrado.
Ele realmente não se importava tanto assim com a data ou
como ela seria celebrada.
O piloto tinha acabado de sair de uma ligação com a mãe e
avó, quando abriu a porta do quarto e acendeu a luz.
— Surpresa!
Vincent arregalou os olhos. Amélia Palhares, usando um
vestido azul estampado, segurava um bolo de chocolate nas mãos,
sorrindo. O quarto tinha balões pendurados nas paredes, docinhos
em uma das mesas e alguns salgados em outra.
— Como você…
— Por favor, achou mesmo que eu não viria? — Ela revirou os
olhos, se aproximando, as velas com o número 26, acesas no bolo.
— Assopre e faça um pedido.
— Palhares, você… — Ele sorriu, o coração batendo depressa,
e apagou as duas pequenas chamas. — Eu já disse que você é
incrível?
— Sim, mas eu não vou reclamar se você repetir.
Ela riu, colocou o bolo na mesa e o abraçou. O cheio de
ameixas invadiu o sistema de Vincent, a percepção de que a
presença dela era real, macia e quente. Ele abraçou a cintura da
mulher, enterrando o rosto no pescoço dela.
Alívio, saudade e paz. Tudo de uma vez só.
— Quando você chegou aqui?
— Faz tipo, umas duas horas. Eu combinei com Stefano para
te deixar fora do hotel e organizei tudo isso. Feliz aniversário,
Vincent.
Ela o beijou no canto dos lábios, com ternura. Vincent achou
que pudesse derreter.
— Obrigado, Amélia. Eu nem sei o que dizer.
— Não precisa dizer nada. Ah, e tem um presente! Não é
nada tão chique quanto a pulseira que você me deu, mas eu não
podia deixar passar em branco.
Ela o entregou uma caixinha de madeira e Vincent franziu a
testa.
— Não precisava, você sabe disso.
— Cala a boca e abre.
Dentro, havia um carro de Fórmula 1 em miniatura e Vincent
apertou os olhos, reconhecendo. Era o carro que ele pilotava nas
corridas da temporada atual.
— Como você conseguiu fazer isso?
— Eu tenho meus segredos. — Amélia sorriu. — e Arthur foi
super gente boa comigo, me dando algumas dicas para o modelo.
Você gostou?
— Sim! — Vincent riu, analisando a impressionante
quantidade de detalhes do modelo. — Eu adorei, Amélia, obrigado.
Ela sorriu, feliz e animada.
— Só para você saber, eu trouxe salgadinhos brasileiros. Você
quer comer agora? Ou esperar…
Ele a interrompeu, partindo beijando os lábios dela.
Aquela mulher incrível tinha dado uma pausa na vida, viajado
para outro país, só para fazer uma surpresa de aniversário e Vincent
nem se importava tanto assim com a ocasião. Mas ela tinha feito
tudo aquilo, por ele, ainda por cima. O piloto nem conseguia
descrever o tamanho da emoção que sentia no peito naquele
momento.
Amélia relaxou em seus braços, os dedos enroscando-se nos
cabelos de Vincent, os lábios retribuindo o beijo na mesma
intensidade. Ele desceu as mãos para o quadril da mulher, apertando
a bunda dela.
Ele se afastou, respirando pesadamente nos lábios dela, a
expectativa crepitando no ar. Vincent encostou a testa na de Amélia,
os dedos ansiosos percorrendo a linha da sua coluna.
— Amélia, acho que comer pode esperar.
23.
Junho
Um instante de silêncio se seguiu e as batidas do
coração de Amélia ecoaram por seu corpo inteiro. Quando
organizou tudo aquilo, ela já esperava que a noite acabasse
assim. Entretanto, isso não diminuiu a tensão que se acumulou
em seu estômago.
Ela sorriu e se inclinou na direção dele.
— O desejo do aniversariante é uma ordem.
— Ah é? — Vincent passou a mão pelos cabelos curtos e
ela viu as irises douradas, escurecidas, em sua direção — Vire
de costas, por favor, mia bella.
Amélia assentiu e seus joelhos bateram na cama quando
se virou. O quarto inteiro parecia elétrico, ou talvez fosse só a
respiração dela, os dedos ansiosos se retorcendo, milhares de
pensamentos cruzando sua mente.
Sentiu a pele arrepiar quando os dedos de Vincent
retiraram seu cabelo do pescoço, percorreu e a tocou com a
ponta do nariz.
— Adoro seu cheiro, Amélia, a sensação de tocar em
você…
A brasileira mordeu o lábio inferior, derretendo. As mãos
de Vincent pairavam sob a barra do seu vestido e ela assentiu,
percebendo que o piloto esperava uma permissão.
Ele contornou suas coxas expostas com leveza e Amélia
quis gritar por mais contato, mas Vincent não teve pressa
alguma. O toque a incendiou, levantando o tecido, trilhando
um caminho ascendente. Os polegares dele se engancharam
em sua calcinha, ao mesmo tempo que os lábios do italiano
beijavam seu pescoço, os dentes arranhando o lóbulo da sua
orelha.
Desejo pulsou entre suas pernas.
— Vincent…
— Calma — A voz dele saiu rouca — Quero aproveitar
cada segundo e dessa vez não tem ninguém para nos
interromper.
Amélia riu baixinho, mas o som se transformou em um
gemido. Apoiou a cabeça no ombro dele e Vincent percorreu o
elástico da sua peça íntima, os dedos muito perto de onde ela
tanto queria. A mente da estudante era uma tela em branco,
só haviam as sensações, calor e mais calor.
— Abra as pernas para mim, mia bella.
Ele sussurrou e Amélia empinou a bunda, um pouco de
propósito, um pouco inconscientemente e arregalou os olhos
ao descobrir que Vincent já estava duro. Ela obedeceu,
separando as pernas, e o piloto pressionou o corpo ainda mais
no dela, o perfume caro se espalhando em torno dela.
Ela soltou um suspiro longo, quase na ponta dos pés,
dedos longos acariciando por cima do tecido.
— Você tá brincando demais, Vincent — Amélia disse e
ele riu, o som abafado pela pele dela.
Amélia quase perdeu a sanidade quando Vincent afastou
a calcinha de para o lado e deslizou o dedo sobre a pele
exposta. O atrito a fez soltar um gemido, os olhos fechados, o
calor insuportável em cada parte do seu corpo. Ele a explorou,
testando o ritmo e a pressão.
— Você pode ir mais forte. — Amélia disse, virando o
rosto para ele. — Um pouco mais embaixo, também.
Vincent assentiu, os dedos trabalhando no ponto certo e
a beijou, a outra mão segurando os cabelos de Amélia. A
combinação de sensações e estímulos foi o bastante para que
ela gemesse alto, pouco se fodendo para o fato de que
estavam em um hotel, ocupada demais se desfazendo.
— Um, Amélia? — Ele chupou o pescoço dela e
sussurrou no seu ouvido em seguida — Dois?
Amélia assentiu e Vincent a fodeu com dois dedos.
Entrando e saindo devagar, uma tortura lenta, ondas de prazer
invadindo suas terminações nervosas.
— Caralho — Ela xingou, o interior se contraído, as
pernas arrepiadas, o quadril se movendo no mesmo ritmo que
os dedos de Vincent. Tudo ao seu redor parou de existir, o
coração batendo forte nos seus ouvidos, faíscas queimando em
sua pele a cada toque incendiário dele.
— Mia bella, apoie o joelho na cama.
Vincent pediu e Amélia dobrou uma das pernas em cima
do colchão, usando uma das mãos como apoio. Ele se curvou
sobre ela, afastou os cabelos para o lado, pressionado contra
as costas, a boca diretamente no ouvido dela.
— Boa garota.
O piloto apertou-a contra si e Amélia fechou os olhos, se
permitindo aproveitar o momento, a pressão em seu ventre
aumentando, o gosto de Vincent em sua língua e a pele dele
contra a sua. Pontos brilhantes dançaram atrás das pálpebras
cerradas e ela gemeu, desejo derramando-se para fora.
Vincente se afastou e Amélia sentou-se na cama,
assistindo o piloto sorrir maliciosamente. Ele chupou os dedos,
encarando-a.
— Tenho pensando em fazer isso há muito tempo,
Palhares.
— Porra — A brasileira apoiou-se nos cotovelos — Mas
eu não acho que você consiga competir com as fantasias que
eu tenho sobre nós dois.
— Então você pensou em mim nesse sentido, que
pervertida. — Ele riu e lhe deu um beijo demorado — Bom
saber que eu não sou o único.
Amélia tocou o rosto dele, sua respiração ainda pesada.
— Me deixe ver você.
Ele assentiu. Vincent não desviou os olhos dos dela
enquanto se livrava da roupa. Amélia estudou as linhas do
corpo do piloto, da clavícula marcada, passando pelo abdômen
definido, mas sem exageros e as veias um pouco saltadas do
braço.
— Lindo.
Ela disse em portugês o mordeu o lábio inferior,
fascinada pela anatomia de Vincent. Se Amélia fosse uma
pintora, adoraria passar horas estudando cada detalhe do
corpo do piloto e registrando em um quadro. Ela esticou a mão
para tocá-lo, mas Vincent segurou seu pulso.
— Me deixe ver você, meu bem.
Amélia suspirou, levantou-se e desamarrou o laço do
vestido, os dedos um pouco trêmulos de nervosismo. Retirou a
peça pela cabeça, não tão graciosa quanto gostaria, e desceu a
calcinha com rapidez. Encarou seus pés por meio segundo
antes de reunir coragem para encarar Vincent.
Os olhos dele estavam escuros, como âmbar, e o quarto
inteiro esquentou.
— Você, Amélia…
— Sem frases incompletas, por favor.
Vincent riu, se aproximou, uma mão segurando sua
bochecha, a outra tocando suas costelas com movimentos
circulares.
— Você é linda. Eu poderia passar horas só olhando
para você, para cada parte sua.
— E você disse que não era bom com as palavras…
Amélia sentiu as bochechas vermelhas, mas não desviou
os olhos dele.
— Culpa sua. Não consigo nem pensar direito quando
vejo você, linda.
Ela piscou ao escutar o elogio em português, surpresa.
Mas não teve sequer de reagir, porque no segundo seguinte,
Vincent já estava devorando seus lábios com força, gemendo
na boca dela, os dedos apertando o corpo de Amélia no dele.
As intimidades se tocaram e ela suspirou, ansiosa, desejosa e
ainda sensível do orgasmo.
Sem dizer uma palavra, Amélia se separou e deitou-se,
sabendo que cada movimento seu estava sendo estudado por
Vincent. Geralmente, ela se sentia tímida, mas porque se
esconder quando aquele homem a olhava como se ela fosse
uma deusa saída diretamente de um mito antigo?
Vincent a seguiu, sem conseguir desviar os olhos dela.
Deixou beijos em sua barriga, seios e pescoço, a língua
tocando a pele dela rapidamente.
— Amélia, eu talvez não seja capaz de te dizer o quanto
eu te acho perfeita — Ele pairou a centímetros dos lábios dela
— Mas vou adorar te mostrar, mia bella.
E a beijou mais uma vez, arrancando um suspiro do
fundo da garganta de Amélia. Ela cravou as unhas nos bíceps
dele, adorando a sensação de ter Vincent tão perto, tocando-o
em todos os lugares que conseguia, o cheiro de sexo
grudando-se a pele suada de Amélia.
Vincent alcançou a mesa de cabeceira, pegou uma
camisinha e a colocou, quase tropeçando ao deitar na cama de
novo, o peito em uma respiração acelerada. Amélia riu
baixinho, enquanto ele apoiava o peso em cima dela com
cuidado.
— Oi, Vincent.
Ela disse, os narizes se tocando.
— Oi, Amélia. — Vincent beijou os lábios dela com
delicadeza. — Me avise se você se sentir desconfortável, tá
bem?
Amélia derreteu com a preocupação e carinho na voz
dele. Ela assentiu e Vincent se afastou, encarando-a, a luz
amarelada refletindo nos cabelos castanhos, deixando-o
parecido com um anjo. Um anjo devasso e sorriso malicioso.
A brasileira abriu as pernas e ele se acomodou entre
elas. Com um movimento dolorosamente lento, que fez
estrelas explodirem na cabeça de Amélia, ele entrou, soltando
um gemido longo. Vincent continuou, com mais força dessa
vez, apoiando as mãos ao da cabeça dela, gotas de suor
brotando em sua testa.
— Porra. — Ele xingou, os olhos enlouquecidos.
Amélia entrelaçou as pernas ao redor dos quadris dele,
desesperada por Vincent, soltando um arquejo quando ele
acelerou. Os dedos dele agarraram seus seios, os polegares
brincando com os mamilos e um espasmo delicioso percorreu o
corpo dela.
Ela se moveu junto com ele, buscando o ponto que lhe
dava mais prazer, um pouco desajeitados. Os dois gemeram ao
mesmo tempo, encarando-se por longos segundos, partindo
para um beijo bagunçado, os lábios afoitos em respirações
curtas. O peso de Vincent pressionou Amélia no colchão, as
unhas dela arranharam a pele das costas dele.
O limite de Amélia estava perto, uma queda de prazer.
Quando Vincent se afastou, encarando-a nos olhos, a
expressão nublada, o movimento estimulando seu clítoris, ela
se entregou pela segunda vez na noite.
— Vincent!
Ela gemeu, as pernas tensas relaxaram em volta dele,
as mãos de Vincent ao redor da cintura, segurando-a, o corpo
de Amélia se desfazendo em milhões de pedaços em cima do
colchão. O piloto a fodeu mais duas vezes antes de desabar, o
rosto nos cabelos dela.
Vincent rolou para o lado, os dedos entrelaçados aos da
brasileira. Amélia aproveitou a sensação pós-orgamo,
espasmos de prazer ainda espalhados pelo seu corpo. Virou-se
para o italiano os cabelos grudados de suor no pescoço, o
piloto a encarava.
— Você gostou?
— Não. — Ela respondeu, séria, vendo os vincos se
formarem na testa dele. — Eu adorei, Vincent.
— Caralho, mulher. — Ele a puxou pela cintura,
enquanto Amélia ria. — Quero saber melhor do que você gosta
na cama, Palhares.
— Você foi bem para uma primeira vez comigo. — Ela
sorriu e afastou os cabelos da testa dele. — Estou brincando,
Vincent, foi realmente bom. Você gostou?
Ele assentiu, beijando o maxilar dela, o rosto deitado
entre o pescoço e o ombro de Amélia.
— Foi perfeito, Amélia, você é perfeita.
— Que bom, mas só para você saber, eu tenho algumas
preferências que adoraria compartilhar com você.
— Sou todos ouvidos.
Depois de um relacionamento que minou sua saúde
mental e auto estima, Amélia aprendeu importantes lições
sobre comunicação e confiança. Um coração precisa se sentir
seguro e confortável para resolver se abrir e ali, abraçada com
Vincent e conversando sobre o que gostavam no sexo, Amélia
se sentia exatamente assim. Sem medo de mostrar suas
inseguranças, sabendo que seria acolhida com cuidado.
Ela vestiu uma das camisas de Vincent e o piloto
colocou apenas uma cueca, depois de longos minutos de
conversa. Eles comeram o bolo e os salgados, abrindo o Pinot
Noir que a brasileira comprou e bebendo direto do gargalo.
— Você sabe que Pia iria nos matar por isso aqui, não
sabe? Ela diria algo como desrespeitar o vinho e coisas assim.
Vincent riu.
— Ainda é meu aniversário, então eu faço as regras
sobre o vinho.
O piloto colocou sua playlist, que Amélia sabia ser
repleta das músicas do Fleetwood Mac e da nova obsessão
dele, Cazuza. Ela cantarolou com Vincent, admirando o sorriso
nos lábios dele.
— Preciso de um banho. — Amélia disse com um
suspiro, arrumando a bagunça que tinha se tornando a cama.
— Ah, é?
Vincent sorriu, como uma criança travessa, e Amélia o
encarou, a ficha caindo aos poucos.
— Vincent, você não vai…. Vincent!
Ela gritou. O piloto a pegou pela cintura e a arrastou
para o banheiro. Amélia riu, ouvindo o chuveiro ser ligado e
afastou os cabelos do rosto quando ele a colocou no chão, as
gotas de água quente respingando em sua pele.
— Espero que saiba que nunca vou me cansar de você.
— Vincent sussurrou, tirando a blusa que ela vestia. A pele de
Amélia se arrepiou.
— Bom, porque eu também não vou me cansar de você,
Vincent. — Ela se apoiou nos ombros dele, os seios
pressionados contra o peito nu. Amélia beijou o pescoço dele,
a água caindo em torno dos dois, e sorriu ao ouvir o suspiro,
as mãos ainda agarrando a cintura dela.
Os arquejos dele se tornaram maiores, conforme a boca
de Amélia descia pelo seu peito. Ela se ajoelhou na porcelana
fria e o tocou sob o tecido. Vincent jogou a cabeça para trás, a
boca entreaberta, os dedos segurando a nuca dela, mas sem
empurrar sua cabeça.
Ela abaixou a boxer devagar, fascinada pelas reações de
Vincent. Ele era sempre o piloto sério e concentrado, ou o
amigo engraçado e divertido, mas aquela vulnerabilidade
contida nas expressões de prazer, era novo. Determinada a
conseguir mais daquilo, Amélia pressionou-o em diferentes
lugares, descobrindo a forma que Vincent mais gostava de ser
tocado.
Os sons que ele soltava viajavam pela coluna da
brasileira, excitando-a igualmente e Amélia apertou as pernas.
Ele a encarou, ofegante, proferindo uma torrente de palavrões.
— Que boca suja, Vincent. — Ela sorriu, lambendo a
pele dele, da base até a ponta.
— Amélia…
Vincent gemeu seu nome e ela quis ouvir de novo.
Amélia o chupou, jamais desviando os olhos dele, segurando-
se da cintura de Vincent, aprofundando o contato o máximo
que ela conseguia.
Mas antes que ela pudesse continuar, Vincent a afastou,
estendeu a mão e ajudou a ficar em pé. E então, a beijou, as
mãos se fechando na bunda de Amélia, o gosto dele ainda na
sua língua, a água quente caindo em cima deles.
— Por mais que eu estivesse adorando, Palhares, prefiro
gozar junto com você — Eles tropeçaram em outro beijo,
apressado, cheio de tesão e um pouco caótico — Pode virar de
costas para mim, mais uma vez?
Ela assentiu, apoiando-se na parede, às costas
dobradas, a bunda empinada no ar, expectativa pairando e
desejando se misturando à água. Ela ouviu o barulho do
pacote de camisinha sendo aberto e olhou por cima do ombro,
vendo o italiano enterrando-se dentro dela de uma vez.
Amélia gemeu, uma onda de êxtase deixando suas
pernas trêmulas. Com uma mão, Vincent segurou seu quadril,
com a outra segurou seus cabelos molhados e a fodeu, o
prazer queimando na base da sua coluna, os seios balançando
cada vez que ele deslizava para dentro.
— Mia bella… — Vincent murmurou e estalou um tapa
sonoro contra a bunda dela. Amélia revirou os olhos, a
ardência misturando-se ao desejo. — Amélia, você é deliciosa.
O piloto tocou seu clítoris, do jeito que ela tinha o
ensinado, acelerou os movimentos e Amélia viu pontos pretos,
o clímax repentino. Ela gemeu pela última vez, relaxando o
corpo em seguida, presa em uma nuvem de prazer pura,
sentindo Vincent se desmanchar atrás dela em seguida, a
respiração alta e pesada.
Ele se afastou, jogando a camisinha fora, e os dois
tomaram banho em um silêncio tranquilo e exausto.
— Esse foi o melhor aniversário que já tive.
Vincent disse, o cabelo escuro cheio de shampoo.
— Aposto que você já teve festas melhores do que essa.
— Mas nenhuma delas tinha você, mia bella. Obrigado
por ter feito isso.
Ele sorriu e Amélia sentiu o coração inflar. Ela beijou o
peito molhado do piloto e segurou seu rosto com carinho.
— Fico feliz que tenha gostado. E não precisa agradecer,
campeão.
Ele revirou os olhos, mas não desfez o sorriso no rosto,
relaxado, alegre e genuíno. Amélia pensou que haviam poucas
coisas que não faria para ver Vincent sorrindo assim,
genuinamente feliz e a vontade. Ela sorriu e adormeceu nos
braços dele, guardando a expressão de Vincent no canto mais
brilhante de seu coração.
***
Vincent não conseguia parar de sorrir no autódromo,
pela manhã. E isso tinha sim, a ver com a mulher adormecida
no seu quarto, encolhida nos lençóis.
Ele descobriu que ela tinha um sono mais pesado do
que parecia, ao derrubar uma garrafa de água no chão e ver
que ela nem sequer se moveu. Vincent acabou quebrando a
promessa de acordá-la para assistir o treino livre, mas sabia
que Amélia não era fã das manhãs e estava exausta da
viagem.
O quarto inteiro cheirava a ameixas, o gosto dela ainda
em sua língua e as memórias da noite saltavam em sua mente
ao longo do dia. O piloto poderia escrever livros inteiros sobre
os toques, sorrisos, expressões e sons de Amélia. E ainda
assim, não seria o suficiente para descrever aquele momento.
Não era sobre o sexo. Era sobre rir, abraçado com
Amélia, e sentir que seus corações batiam no mesmo ritmo.
— Esse sorriso idiota no seu rosto quer dizer que você
gostou da visita de Amélia?
Satake o provocou, quando eles saíram dos carros e
entraram no paddock.
— Você sabia?
— Sim. Quem você acha que ajudou a reservar um voo?
Vincent bateu no ombro do amigo.
— Você me ama tanto.
— Nos seus sonhos, Di Castelli. — O piloto bufou,
arrumando os cabelos pretos.
Quando Vincent chegou no hotel, antes do meio-dia,
não se surpreendeu ao encontrar Amélia ainda dormindo. Os
cílios se emaranhavam uns nos outros, o rosto tão pacífico, que
ele não resistiu e tirou uma foto. Sentou ao lado dela e passou
os dedos pelos fios castanhos, esparramados nos travesseiros.
Deus, ele adorava o cabelo dela.
Amélia se mexeu, se esticando por inteira e Vincent riu
baixinho. Ela parecia um gato preguiçoso.
— Bom dia, mia bella.
— Bom dia… — Ela murmurou, ainda de olhos fechados,
um sorriso pequeno nos lábios — Você já tomou banho?
— Não, eu acabei de voltar do treino.
— O quê? — Ela abriu os olhos de uma vez e se sentou,
o cabelo bagunçado caindo em seu rosto — Vincent era para
você ter me acordado!
— Você estava cansada e sofrendo de fuso horário, eu
jamais me atreveria — Ele se inclinou e abraçou. Havia aquela
sensação que sempre o tomava quando Amélia estava em seus
braços, tranquilidade e alívio.
— Mesmo assim…
— Você odeia acordar cedo, Amélia.
— Mas queria ter te acompanhado no treino — Ela o
abraçou de volta, às mãos enroscando-se no cabelo de Vincent
e alguma coisa dentro do piloto se afrouxou um pouco mais. —
Que horas são?
— Quase meio-dia.
— Não acredito que perdi um dia inteiro dormindo, que
droga.
— Ainda temos a tarde toda, o que você quer fazer?
— É o seu fim de semana de aniversário, são os seus
planos, então. O desejo de aniversariante ainda vale.
O piloto sorriu e beijou o pescoço de Amélia,
desenhando a linha do maxilar dela com os lábios.
— Eu tenho algumas ideias.
Ela arqueou a coluna, dando mais acesso a ele. Vincent
adorava ver as reações de Amélia ao seu toque, sentir o corpo
dela esquentar com o seu, a pele arrepiada e saber que ela o
queria tanto quanto ele.
— Hum…
Vincent segurou a cintura dela com força, arrastando os
dedos sob a camisa que ela usava, parando bem abaixo dos
seios. Nada o tinha preparado para a visão de Amélia nua, os
detalhes do corpo dela o enlouqueciam e ele queria explorar
cada ponto com as mãos e a boca.
Ela gemeu e o corpo de Vincent se arrepiou com o som.
Aquele tinha se tornado seu vício secreto.
Encarou as irises dilatadas da brasileira, esperando por
uma confirmação. Amélia tirou a roupa em um único
movimento e Vincent a imitou. A boca secou ao ver os seios
expostos, mamilos marrons claros excitados. Beijou-a,
mordendo o lábio inferior, os dedos pressionados na base do
pescoço.
Com o gosto de Amélia queimando em sua língua,
Vincent a fez deitar nos travesseiros macios e desceu seus
lábios para os seios dela. Ele lambeu e chupou, ganhando um
gemido alto em troca, testando qual a melhor forma de fazer a
brasileira tremer.
— Você sabia que eu gosto dos seus peitos? — Ele
disse, o pau pressionado dolorosamente na cueca boxer.
— Não.
— Então preciso fazer um trabalho melhor em te
mostrar — Ela mordeu a mão para conter um gemido quando
Vincent lambeu seu outro seio, já pesado de desejo, o mamilo
endurecido.
Cada vez que Amélia se contorcia embaixo dele, a
respiração ofegante, Vincent sentia-se a porra de um vitorioso.
Ela puxou seus fios, a cabeça jogada para trás em um arquejo,
olhos fechados e o piloto sorriu contra o vale dos seios dela,
beijando o pescoço e finalmente a boca.
Amélia apertou as unhas em seus braços, os dedos em
carícias lentas no seu pescoço, firmes e Vincent pensou que
podia gozar só de ter a pele dela perto da sua. Ele se
acomodou entre as pernas dela, que se fecharam em torno
dele, a brasileira o puxou para um beijo mais fundo.
Quando ela se afastou, a boca inchada, sorriu e então
fez algo que Vincent jamais esperava. Travou os quadris contra
os dele e inverteu posições, as coxas abertas em cima dos seus
joelhos. Amélia se inclinou, beijando o pescoço dele e
sussurrou em seu ouvido:
— Pensei em tentar assim.
Vincent soltou um gemido, completamente rendido pela
voz tentadora e baixa de Amélia. Se ela tivesse lhe pedido um
milhão de dólares, ele teria dito sim.
— Por favor, Amélia — Ela riu — As camisinhas estão na
primeira gaveta.
Ela saiu da cama, tirando a calcinha antes de pegar o
pacote e voltou. Vincent se livrou das boxers, fascinado por
aquela Amélia Palhares confiante, sensual, poderosa e tão
linda. Ele não pode impedir uma onda de felicidade que o
atravessou, queria que ela se sentisse exatamente assim perto
dele.
Vincent segurou o fôlego quando Amélia colocou o
preservativo nele, os dedos roçando sua pele em uma tortura
lenta. O piloto sentou-se, a coluna encostada na cabeceira da
cama, e segurou as mãos dela, para que se ajustasse em cima
dele.
— Jesus, mulher.
— Jesus em uma hora dessas?
Vincent riu.
Ela desceu, devagar. Os dedos do piloto se cravaram na
cintura de Amélia, enquanto ela se ajustava, o movimento
enviando pontadas de prazer para a coluna de Vincent.
Vincent engoliu em seco quando ela começou a rebolar,
um pouco desajeitada, tentando encontrar a melhor forma de
fazer aquilo. Ele segurou o rosto dela, trazendo para perto,
beijando-a.
— Faça isso para você, Amélia. — Ele beijou seu lábio
inferior. — Quero que faça do jeito que preferir, tudo bem?
Ela assentiu, sorrindo para ele e aquelas palavras foram
como uma libertação. A mulher respirou fundo, e se moveu,
hesitante no começo, mas depois com confiança, acelerando o
ritmo, subindo e descendo com mais velocidade, a cabeça
jogada para trás e ela gemeu, a voz rouca.
Vincent se sentia tonto. Seu sangue era prazer jorrando
por toda a parte e ele apertou a bunda de Amélia, ajudando-a
com os movimentos, empurrando o quadril para cima, a
pressão se formando na base do seu pau, a mente enevoada.
Ele a puxou para outro beijo, engolindo um gemido de
Amélia e não se conteve, estalando um tapa na bunda dela, o
barulho ecoando pelo quarto, empurrando-o para mais perto
do clímax. Vincent deslizou o polegar, alcançando o clítoris e o
massageou, sentindo a respiração da mulher no seu pescoço.
— Vincent…
— Você está indo muito bem, mia bella.
Ele sussurrou, acelerando o movimento sobre ela, o suor
escorrendo pela sua testa. A pele entre seus dedos ficou mais
quente, Amélia estava mais molhada, os gemidos dela
aumentaram e Vincent sabia que ela estava quase lá, a
antecipação fazendo seu próprio prazer aumentar.
Quando ele chupou o pescoço dela, Amélia jogou a
cabeça para trás e se desfez em seus dedos, os olhos
fechados. Vincent se deixou ir, esquecendo de tudo por
segundos deliciosos.
Vincent piscou, controlando a respiração, a cabeça de
Amélia em seu ombro, as peles suadas reluzindo pela luz do sol
que entrava na janela. O cheiro dela, em sua pele, fez o piloto
abrir um sorriso e ele a abraçou, o êxtase do sexo ainda
percorrendo seu corpo.
— Bom dia, linda. — Ele sussurrou e escutou a risada
dela.
— Onde você aprendeu a falar essa palavra?
— Português e italiano não são tão diferentes, Amélia. E
eu queria muito ver sua cara quando eu te chamasse assim.
Ela se afastou, as bochechas coradas, os olhos
apertados pelo sorriso luminoso. Vincent nunca deixava de se
surpreender em como Amélia era bonita.
— Bom, você com certeza conseguiu me surpreender. —
Ela beijou a testa dela, com carinho. — Espero que seu plano
não seja me manter na cama o dia todo, Vincent, porque eu tô
morrendo de fome.
— Por mais que eu adorasse isso, temos um almoço
marcado com os outros pilotos. E eu acho que estamos
atrasados.
Amélia ergueu as sobrancelhas.
— E você só me diz isso agora?
Vincent riu e apertou o corpo dela contra o dele.
— Fiquei distraído.
Meia hora depois, os dois saíram de mãos dadas do
hotel e pegaram um carro para um restaurante à céu aberto,
reservado exclusivamente para os pilotos naquele dia.
— Deveria ter trazido outra roupa. — Amélia murmurou,
checando a maquiagem no celular.
— Você está linda, mia bella, eu já disse.
Ela suspirou.
— Opinião tendenciosa. E você está ótimo, sempre se
veste bem.
Vincent usava uma calças de tecido clara, tênis
confortáveis, uma camisa azul escura, os primeiros botões
abertos, e um par de óculos de sol. Seus anéis dourados
brilhavam à luz do dia, assim como a fina corrente de ouro no
pescoço, o pingente de cruz cintilando.
— Obrigado, mas não precisa se importar com o veste.
É só uma reunião de amigos.
Amélia escolheu um vestido de alças finas, o decote
mais baixo e o tecido, estampado em verde, leve, terminando
abaixo dos joelhos. Uma fenda pequena mostrava um pouco
mais de pele e suas botas de cano curto, pretas, a deixavam
saída diretamente de uma comédia romântica dos anos 90.
— Gosto de me vestir bem. — Ela deu de ombros. —
Sempre gostei, mas acabei pegando isso de você, Emma,
Stefano e Sancia.
Vincent sorriu, lembrando-se da conversa sobre moda
que tiveram. Para o piloto, as tendências eram sua arma de
expressão em um esporte conservador que geralmente jogava
contra ele. Era o mesmo pensamento que ele e Stefano
tinham, por isso se importavam tanto com o visual e aparência.
Ele sabia que isso era a coisa mais playboy do mundo,
mas a moda era a forma de mostrar ao mundo quem era, o
que acabou se tornando uma de suas paixões. Era o jeito que
cuidava de si mesmo, trabalhava sua autoestima e se sentia
bem. E se isso fazia de Vincent um mimado riquinho, tudo
bem, ele realmente não se importava.
Mas saber que Amélia tinha pegado um pouco daquela
paixão para si, fez seu coração se aquecer.
Eles realmente foram os últimos a chegarem no
restaurante e Vincent mal teve tempo de falar com Amélia,
porque seus amigos a alugaram assim que ela entrou. O piloto
sorriu, satisfeito em assistir sua namorada de mentirinha,
agora atual potencial namorada de verdade, ser o alvo das
atenções.
Vincent montou um prato de comida para Amélia e
outro para si, colocando na mesa junto dos seus amigos.
— Porque vocês demoraram tanto? — Olivier perguntou,
a camisa vermelha e estampada evidenciando o ruivo dos seus
cabelos.
— Sério, Olivier? — Satake revirou os olhos, em uma de
suas camisas de seda brancas. — Eles não se veem há um
tempão, se pudessem não teriam saído daquele quarto.
Vincent soltou uma risada, porque era mesmo verdade.
— Sinto que estão falando de mim. — Amélia sentou-se
ao lado de Vincent. — E Chase, obrigada por ter me resgatado.
— Você parece que vai desmaiar de fome a qualquer
momento, Ames. — O piloto francês disse.
Amélia deu um sorriso de agradecimento à Vincent pela
comida e o grupo caiu em uma conversa confortável sobre os
últimos acontecimentos da temporada. O piloto relaxou,
acompanhando a discussão mais do que participando.
Nem mesmo Ansel Bellini, que chegou no meio da tarde,
foi capaz de abalar o italiano. Ele ignorou, sentindo os olhos do
ex-piloto o fuzilando, a risada do homem desgraçado soando
alta e incômoda. Trocou um olhar com Chase, partilhando o
segredo das movimentações por trás das câmeras.
— Porque aqueles dois estão sozinhos?
Amélia perguntou, indicando a mesa onde Kob e outro
piloto comiam em silêncio, sem mais ninguém.
— Pilotos da Dalton. Eles vêm para parecer que está
tudo bem no grid, mas a equipe ainda está abalada depois da
confusão toda. — Satake respondeu. — Kob deve ter ganhando
uns trinta fios de cabelo branco só com essa história.
— O outro cara do lado dele é brasileiro, Ames. —
Olivier disse. — Pedro, acho que é o nome, um novato,
primeira temporada esse ano.
— Ele deve estar adorando o clima de paz e
tranquilidade. — Amélia murmurou. — Uma pena que vocês
não se dão bem. Até pela sua rivalidade com Kob, Vincent,
achei que era tudo para as câmeras.
— Kob é tipo, parte do arco de herói do Vincent.
— Pelo amor de Deus, Olivier, porque você compara
tudo com anime?
Vincent revirou os olhos.
— É o meu charme.
— Além disso, ele está certo. — Amélia disse, virando-se
para Vincent. — É o enredo ideal para um arco de vilão e outro
de herói, mas não vou dizer qual é, qual.
— Tá vendo! Amélia concorda comigo, obrigada pela
sua sensatez.
Vincent riu baixinho, aproveitando a companhia das
pessoas que gostava durante o resto da tarde.
Depois da corrida de Silverstone, que ele finalizou no
pódio, deixou Amélia no aeroporto, para sua infelicidade. Ela
precisava voltar à rotina e Vincent ainda tinha compromissos
na Inglaterra para cumprir.
— Me avise quando você pousar. — Ele pediu, beijando
a testa dela.
— Me avise quando você chegar no hotel. — Amélia o
abraçou. — Já estou com saudade antes mesmo de ir embora,
patético ou triste?
— Eu também vou sentir sua falta, mia bella.
Vincent a beijou com carinho antes de se despedirem
em definitivo.
O coração dele se apertou, assistindo Amélia
desaparecer no portão de embarque. O sentimento continuou
não só durante a volta para o hotel, permanecendo nas
publicidades do dia seguinte, entrevistas e até mesmo quando
pousou na Áustria, no fim de semana seguinte.
Ele abriu a conversa com a brasileira, um misto de
saudade e alegria no peito ao ver a última foto que ela tinha
mandando: o rosto coberto com uma máscara facial, os
cabelos presos em duas longas tranças. Vincent respondeu
com uma imagem fazendo careta, quando foi interrompido por
Stefano.
— Ansel Bellini está no aeroporto, dando entrevista.
Você quer ir pelo outro lado?
Vincent pensou.
— Está tudo bem.
A Redemptio desceu ao mesmo tempo, os jornalistas e
fotógrafos eufóricos. Vincent parou para atender alguns fãs e
pessoas da imprensa que ele sabia ser confiáveis, um sorriso
charmoso no seu rosto.
— Vincent, algumas pessoas dizem que Ansel está te
orientando depois de tudo o que aconteceu no grid, como o
consultor geral da FIA.
Uma jornalista loira disse e Vincent xingou mentalmente
Ansel
— As pessoas dizem muita coisa, essa mesmo eu não
sabia. — Ele riu. — Mas sou um cara aberto a receber
conselhos.
— Então, ansioso para trabalhar ao lado dele?
Vincent viu o ex-piloto com o canto dos olhos. Se aquela
jornalista soubesse metade dos seus planos, teria um furo de
notícias da década em mãos. Ele precisou se controlar para
não rir.
— Claro que sim. Você nem imagina o quanto.
24.
Três anos atrás
Outubro, 00:30, Londres
Amélia sempre seria grata aos serviços de 24 horas
existirem e torcia para que os funcionários fossem bem pagos.
Ela e Vincent ficaram com fome logo depois da meia-
noite, e tiveram que rodar os três quarteirões ao redor do
alojamento estudantil para encontrar alguns food trucks
estacionados.
— Adoraria te chamar para minha casa e dizer que
tenho comida, mas não tenho.
Amélia disse, dando de ombros. Ela ia embora pela
manhã, comeria no voo, e não se importou em fazer compras
naquela semana. Não estava nos planos dela beijar um cara
gostoso no último dia em Londres.
Compraram cachorro quente, energético e donuts,
colocados em uma sacola de papel pardo, e se sentaram nas
mesas perto dos carros estacionados.
— Eu não fazia a menor ideia de que isso aqui existia. —
Amélia disse, o estômago agradecendo pela comida.
— Há quanto tempo você mora em Londres?
— Cinco meses, mas eu não sou muito de sair.
Vincent bebeu um longo gole de energético.
— Escuta, você tá bem mesmo? De mais cedo. — O
piloto a encarou. — Não me pareceu que foi uma crise leve.
— Ah. Na verdade, elas são bem comuns, foi só… Um
momento ruim. — Amélia desviou os olhos. — Eu sempre achei
que ficaria curada um dia, da ansiedade, mas isso nunca
aconteceu e hoje eu sei que não vai. Preciso só aprender a
lidar com ela da melhor maneira.
O piloto assentiu, o olhar compreensivo.
— Eu tenho crises de pânico desde criança. Nunca mais
tive uma, mas sei como é achar que você está curado, quando,
na verdade, não está. Parei de tomar meus remédios depois de
um tempo, sem consultar meu médico, e tive a pior crise da
minha vida inteira. Foi quando aprendi, não importava o
tempo, eu teria que conviver com isso pra sempre.
— É um pouco assustador essa percepção, você não
acha?
— Com certeza. Ter que lidar com uma coisa que você
não tem controle, pelo resto dos seus dias, não é uma notícia
muito boa.
Amélia encarou o piloto, uma onda de empatia
atravessando seu peito. Lembrou-se da própria crise, a
respiração trancafiada na garganta, a percepção de paralisia e
o peso do mundo inteiro em suas costas.
— Às vezes tem dias em que tudo fica alto demais. —
Ela disse, amassando um guardanapo entre os dedos. —
Levantar da cama é difícil, comer é doloroso, até mesmo ficar
com os olhos abertos é… É tão…
— É um esforço que nem parece valer a pena. —
Vincent completou, os olhos um pouco vagos, imersos nos
próprios pensamentos e lembranças. — Eu só percebi que
precisava de ajuda quando comecei a correr de kart. Eu tive
um episódio no meio de uma corrida e tive que ir para o
hospital. Minha mãe me levou ao psicólogo na mesma semana.
— Eu tinha uma terapeuta no Brasil, mas desde que
cheguei aqui estava tão bem que não achei que podia desabar
a qualquer momento. E, porra, o gatilho foi tão… Tão ridículo.
— O que significa, ao meu ver, que as coisas já estavam
ruins há muito tempo, mas decidiram explodir todas de uma
vez só. — Amélia o encarou, as sobrancelhas erguidas. —
Amélia, me parece uma situação óbvia nesse sentido.
— Você pode estar certo.
E Vincent estava. Todas as vezes que dizia “tudo bem”,
ela sentia os joelhos fraquejarem com a mentira. A cabeça
gritava por dentro, acima dos pedidos de silêncio de Amélia,
que insistia em dizer a si mesma que não era nada de mais, só
precisava descansar um pouco e tudo voltaria ao normal.
Ela continuaria a enterrar os sentimentos no fundo do
coração, porque não queria ter que lidar com nenhum deles.
— Claro que estou, tenho larga experiência em martírio
pessoal. — Ele disse, se inclinando na mesa, o queixo apoiado
na palma da mão. — Como você se sente agora?
Amélia pensou um pouco.
— No quadro geral, bem. Obrigada por ter ficado
comigo, aliás, uma completa estranha chorando no meio da
rua.
— Não precisa agradecer. E eu vi que você precisava de
ajuda, Amélia, não fiz isso por pena. Mas porque parecia
perdida e sozinha e eu sei como é se sentir exatamente assim.
Amélia suspirou. Como ela deixaria aquele cara mais
tarde? Como contaria a Vincent que iria embora e eles jamais
se veriam de novo? Ele era uma pessoa boa e tinha ficado com
ela a noite toda, merecia saber da verdade.
Antes que ele acorde e perceba que sou uma fraude.
— Vincent, eu preciso…
— Não. — Ele a interrompeu. — Tô vendo nos seus
olhos que você quer ir embora, Amélia, mas por favor fique
mais um pouco. A não ser que você esteja exausta e cansada,
nesse caso eu te deixo no alojamento.
— Bebi duas latas de energético, sono é a última coisa
que eu tenho.
Ele sorriu.
— Que bom, porque Londres nunca dorme e nós ainda
temos o restante da noite, assim como aquele seu filme, até o
amanhecer.
— Antes do amanhecer. — Ela corrigiu, balançando a
cabeça. — Não estou dizendo que vou embora agora, mas…
Eu…
Amélia engoliu em seco, os dedos um pouco trêmulos.
Abriu e fechou a boca algumas vezes, as palavras se perdendo
no caminho.
— Vamos fazer assim, enquanto você pensa no que
dizer, tenho um lugar com uma vista incrível para te mostrar.
Dá para ver a cidade inteira e não fica tão longe.
— É agora que eu sou sequestrada?
Vincent riu.
— Não é sequestro se você está aceitando de boa
vontade.
— Eu tenho centenas de frases de advogados que
discordariam de você, sabia disso? Aonde vamos? E não me
diga que é surpresa, você já fez várias hoje e eu vou me sentir
mal, já que não fiz nada de especial.
Vincent murmurou alguma coisa que Amélia não
entendeu e suspirou.
— É um hotel, não fica tão longe daqui, na verdade, eu
conheço alguns funcionários e eles sempre me deixam subir.
Uma pequena última aventura da noite, Amélia, o que você
acha?
Ela assentiu, se odiando por não conseguir dizer não
para o sorriso de Vincent. Eles seguiram em uma caminhada
apressada, dedos entrelaçados, e Amélia arregalou os olhos ao
perceber que era um prédio que ela já tinha visto antes, na
caminhada para a faculdade.
Vincent disse alguma coisa na recepção e guiou Amélia
para o elevador, o lobby luxuoso vazio àquela hora. Uma
música suave acompanhou a subida deles, os botões brilhantes
do elevador chamando a atenção da brasileira, exibindo os
impressionantes 28 andares.
No vigésimo oitavo andar, eles praticamente correram
para fora, como crianças e cruzaram a escada de serviço.
Vincent empurrou a porta de ferro e o ar frio de Londres
bagunçou os cabelos de Amélia, que semicerrou os olhos e
arrumou os óculos.
Quando o piloto a puxou para perto da borda, ela soltou
um arquejo de surpresa.
— Porra, que lindo!
A voz dela se perdeu na noite de inverno, as luzes da
cidade ao redor deles, prédios, avenidas e pessoas minúsculas
pontilhando a visão infinita de Londres. Ela viu a água escura
do Tâmisa, refletindo os holofotes da London Bridge, a famosa
roda gigante parecendo pequena dali de cima.
— Você gostou?
— Tá brincando? Eu amei!
Vincent colocou as mãos nos bolsos e Amélia o encarou,
um sorriso sincero em seus lábios.
— Acho que essa é a melhor noite da minha vida. — O
piloto disse, em voz baixa.
— Não seja tão categórico, guarde essa posição para o
futuro. — Amélia respondeu, se aproximando dele. — Essa é a
melhor noite da minha vida até hoje, assim, o cargo fica aberto
à disputa.
— Amélia, você realmente…
Ela afastou as mechas escuras da testa de Vincent.
— Essa noite parece um sonho, Vincent. Não quero que
acabe. — Ela confidenciou, sabendo que uma passagem para
casa a esperava no seu alojamento, assim como as malas
arrumadas.
— Contra várias possibilidades, em uma cidade imensa,
acabamos nos encontrando. Acho que é por isso que tudo
parece um sonho. — Ele passou os braços pela cintura dela, o
nariz tocando o de Amélia. — E quando o sol nascer, a gente
vira abóboras.
Amélia riu e o beijou.
— Então vamos continuar sonhando um pouco mais.
25.
Agosto
Era oficialmente verão na Itália, o que significava alta
temporada em lugares turísticos e um calor insuportável.
Os dias eram lindos, o céu sempre de um azul quase
violeta e cegante, e as ruas de Mancia estavam cheias de
pessoas. Filhos que visitavam os pais para as férias, famílias
que queriam conhecer a cidade histórica e grupos de
adolescentes desesperados por diversão. A energia humana
vibrava no ar e era impossível não se encantar com a cacofonia
de vozes e conversas em diversas línguas, que preenchiam a
cidade.
Para Amélia, aquilo significava trabalho redobrado.
Ela e Angela tiveram que sair das salas da administração
para ajudar nas visitas guiadas pela Galeria Torrisi, porque o
número de pessoas nunca diminuía. Amélia trocou os saltos de
sempre por tênis e mesmo assim, seus pés estavam vermelhos
e cheios de bolhas depois de um dia inteiro caminhando pelo
prédio.
— Vou derreter. — Angela murmurou, os braços abertos
na frente do ventilador — Como hoje está mais quente do que
ontem?
— A previsão do tempo disse que a temperatura ia
diminuir.
— Vemos então que eles não sabem prever porra
nenhuma, nesse caso.
Amélia riu.
A pior parte era o calor e o suor em qualquer hora do
dia. Nem mesmo as noites eram frescas e ela tinha vontade de
chorar só de lembrar das praias refrescantes de Coral, sua
cidade natal.
— Stefano convidou a gente para um dia na piscina, na
casa de campo. Eu digo sim?
— Sem nem pensar, Ames. — Angela enxugou o suor da
testa. — Um dia em uma piscina de milionários era tudo o que
precisava de verdade.
E Angela não poderia estar mais correta naquela
colocação.
A casa de campo dos Torrisi era só um pouco menor do
que a mansão, com um design mais arejado e aberto. A piscina
gigantesca tinha o tamanho de um campo de futebol e uma
área luxuosa em volta dela, onde a família se reunia para as
constantes festas da estação.
— Amélia! — Anna Di Castelli a chamou, em um vestido
azul marinho solto e bordado. — Que bom que você veio,
querida.
— Eu não podia negar um convite seu, nem uma festa
na piscina.
— Angela, Sancia, é tão bom ver vocês por aqui. —
Anna abraçou as duas com carinho. — Fiquem à vontade, eu
vou pedir para servirem mais coquetéis.
Anna se afastou e Sancia empurrou os óculos de sol
para cima.
— Uma tarde inteira bebendo na beira de uma piscina,
acho que estou sonhando.
— Um sonho patrocinado por ricaços, é bom a gente
aproveitar. — Angela puxou a namorada e a amiga para a
piscina, já lotada de crianças Torrisi.
Amélia cumprimentou rostos conhecidos, com um
sorriso gentil no rosto, recebendo abraços carinhosos em troca.
Ela estava completamente relaxada na presença daquela
família, principalmente depois de começar a frequentar a
mansão até quando Vincent não estava.
Os Torrisi tinham acolhido Amélia tão bem, que ela se
sentia parte daqueles italianos efusivos e calorosos.
— Obrigada por nos ter chamado, Stefano. — A
brasileira disse ao social media, o abraçando. — Cadê o Toni?
— Em uma DR familiar complexa com a mãe e os
irmãos, que eu sinceramente não quero me meter.
Ele deu de ombros, às longas tranças balançando com o
movimento.
— Italianos, tão dramáticos.
— Ei, Ames, eu continuo sendo italiano.
— Por isso eu disse, dramáticos.
Stefano riu e entrou na piscina junto com ela. A água
fria e refrescante relaxou o corpo de Amélia na mesma hora, o
sol queimando sua pele pegajosa de protetor solar.
— Deus, eu precisava tanto disso. — Ela murmurou,
dando um mergulho rápido. — Porque a Itália é tão quente
assim? Eu nunca pensei na Europa como um inferno na terra,
associava a ideia ao Brasil.
— Arriscaria dizer que é culpa do aquecimento global. E
todo mundo acha que aqui só neva e faz frio o ano todo, então
é sempre bom ver a cara de surpresa quando percebem o
forno que esse continente pode ser.
— Uma pena não ter praias tão perto. Você ia adorar
Coral, eu e Sofia reformamos a cabana da nossa mãe, perto da
praia, é o melhor lugar do mundo.
— Hum… Acho que a data da corrida no Brasil vai ser
bem no meu aniversário. Quer abrir as portas da sua casa para
uma festa, Ames?
— Sim!
Amélia e Stefano passaram boa parte da tarde
planejando o aniversário dele, tomando batidas de morango
com vodca, ao som de uma playlist caótica controlada pelas
crianças Torrisi. Angela e Sancia se juntaram à conversa e o
grupo só deixou a piscina perto de escurecer, os dedos
enrugados pelas horas debaixo d ‘água.
Decidiram ficar para o jantar e Amélia se trocou no
quarto de Vincent, aproveitando para inspecionar o lugar.
A estante de livros tinha títulos clássicos, como os
romances de Jane Austen e os mistérios de Sherlock Holmes,
mas haviam livros policiais e de mistério mais atuais.
Miniaturas de personagens dos filmes favoritos de Vincent
estavam espalhadas pelas diversas prateleiras, De Volta Para o
Futuro e Star Wars em grande quantidade.
Amélia tirou uma foto e enviou para o piloto, que ligou
para ela segundos depois de ver a mensagem.
— Apreciando minha coleção, Palhares?
A voz dele a fez sorrir.
— Sim, ela é impressionante. Eu vi alguns livros de RPG,
posso mexer?
Vincent fez uma pausa, rindo.
— Pode. Mas agora eu percebi que isso te dá munição
para revidar um comentário que fiz no passado e espero que
você não se lembre disso.
— Ah, quando você me chamou de nerd, mas, na
verdade, a pessoa que merece o título é você? Não se
preocupe, jamais jogaria isso na sua cara.
— Que cruel, mia bella.
Amélia riu, analisando os livros do piloto.
— Onde você tá?
— Acabei de sair de um almoço com Arthur, voamos
para Hungria amanhã cedo. Como foi o dia na minha piscina
maravilhosa?
— Ótimo, na verdade, sua piscina é bem
impressionante. Acho que eu bebi drinks demais e estou um
pouco bêbada.
— Eu vi a foto que você mandou, aliás. — Vincent
abaixou o tom de voz. — Estava gostosa demais, Amélia.
Amélia quase deixou cair o livro no chão, engasgando.
Isso sempre acontecia quando Vincent falava em português, a
surpreendendo, fazendo seus joelhos fraquejarem um pouco
com o sotaque do italiano. A pior parte, é que o piloto parecia
saber o efeito que causava e usava aquela arma
constantemente.
— O-obrigada. — Amélia limpou a garganta.
— Mas você fica ainda mais gostosa sem ele, mia bella.
Estou morrendo de saudade de você.
— Eu também tô, Vince. Ainda sem previsão de quando
você vem aqui?
— Na verdade, pensei em irmos em uma pequena
viagem. Sua folga na galeria tá chegando, não é?
— Sim, semana que vem.
— Vou para Mancia depois da Hungria e pensei em
irmos para França juntos, adicionar mais um pingente na sua
pulseira. Quer conhecer Paris?
— Claro que sim! — Ela soltou um gritinho de
empolgação e ele riu.
— Eu te mando os detalhes por mensagem depois.
Preciso desligar, vou dirigir agora.
— Quando chegar, me avise. Até mais, Vincent.
— Até mais, Amélia.
Ela mal conseguia conter a empolgação durante o jantar
com os Torrisi, entrando em uma longa discussão com Emma e
Anna sobre os pontos que deveria visitar naquela viagem.
Amélia trocou mensagens durante a semana inteira com
Vincent, sonhando acordada como seria caminhar pelas ruas
parisienses ao lado dele.
Mas ela sentia que alguma coisa errada estava prestes a
acontecer.
Amélia não queria admitir, se enterrando na organização
da nova exposição da galeria, antes de finalmente folgar.
Trabalhou incansavelmente na sua dissertação de mestrado,
consertando erros e refazendo partes inteiras, ignorando todos
os sinais do seu corpo e mente.
Ela não queria ceder. Não daquele jeito, não naquele
momento, quando tinha tantos planos em vista, que
dependiam que ficasse bem. Então, Amélia se obrigava a ficar
ativa, resolvendo todos os problemas a seu alcance, distraindo
a cabeça até cair exausta de sono, sem tempo de pensar.
Mas ela sentia o peso invisível no estômago, o prenúncio
de algo ruim. Continuou agindo como se nada estivesse
acontecendo, conversando com Vincent por mensagens, por
medo da sua voz traidora lhe denunciar. Angela lhe lançava
olhares preocupados, tentando tocar no assunto, mas a
brasileira alegava calor e cansaço.
No domingo, depois de assistir à corrida de Vincent com
Anna e Teodora, Amélia chegou em casa com a cabeça
latejando. Ela vestiu seu pijama mais confortável, enviou uma
mensagem para Angela, se deitou na cama, a luz do fim da
tarde invadindo o quarto e estilhaçou-se.
Cada parte do seu corpo pesava, pressionada de dentro
para fora, e as lágrimas saiam sem controle algum, manchando
as bochechas. Ela queria gritar, o coração sendo arranhado e
apertado, os dedos trêmulos agarrando os lençóis, o vazio
interno sendo projetado ao redor dela como uma nuvem
espessa e cinzenta.
E havia tanta, tanta dor. Ela sentia que aquilo duraria
para sempre.
Tudo isso vai ruir, porque você nunca faz nada o
bastante.
Seus pensamentos se chocavam um contra os outros e
Amélia não conseguia mais se lembrar o que era verdade, o
que era projeção da sua mente cansada, porque tudo se
embaralhava em flashes. Um soluço escapou da boca dela, o
coração era um frágil pedaço de vidro pendendo por um fio.
Em algum momento, Amélia adormeceu, cansada demais de
chorar, mas quando acordou parecia que nem tinha fechado os
olhos.
Ela se forçou a ir ao banheiro, os movimentos letárgicos.
Seus pés caminhavam pelo apartamento, sem rumo algum.
Amélia se sentia um fantasma, parada no meio da sala, o ar
mal chegando em seus pulmões corretamente, tanta coisa
cruzando sua mente, ao mesmo tempo que não conseguia se
ater em nada.
Amélia estava tendo um dos seus dias ruins. A
realização a fez soltar um longo suspiro.
A brasileira não sabia por quanto tempo tinha ficado
apenas parada, quando alguém bateu em sua porta. Ela
piscou, inexpressiva, e se arrastou, abrindo a maçaneta com
movimentos mecânicos.
— Amélia.
A voz de Vincent ecoou na sua mente caótica e ela
piscou. O piloto a encarava, uma expressão preocupada e
Amélia quis sorrir, dizer que estava bem, se desculpar por tê-lo
deixado daquele jeito, quando a culpa era da mente quebrada
dela. Mas quando abriu a boca para falar, a respiração se
encurtou e ela sentiu os braços dele ao redor do corpo.
— Eu estou aqui, mia bella, eu estou aqui.
Ele murmurou, segurando-a pela cintura e Amélia se
enterrou naquele calor, derramando dor em forma de lágrimas,
o nariz ficando entupido pelo esforço.
De alguma forma, Vincent a levou para a cama, os
dedos acariciando seus cabelos com doçura, a voz sussurrando
que ele ainda estava ali. Amélia fechou os olhos, embalada
pela calmaria que ele era no mar tempestuoso dos seus
pensamentos.
Ela acordou no meio da madrugada, a brisa noturna
entrando pela janela aberta, a lua prateada brilhando no céu
azul acinzentado do verão. Amélia esticou-se, acordando os
músculos doloridos de tensão e se sentou, um gosto amargo
na boca e o estômago roncando.
Quando virou para o lado da cama e se deparou com
Vincent dormindo, um braço cobrindo o rosto do piloto. Ela o
observou, lembrando-se de ter enviado uma mensagem para
Angela sobre não estar bem, dele em sua porta e do carinho
em sua cabeça.
— Amélia? — Ele sussurrou e se sentou, alerta,
parecendo tão cansado. Uma onda de culpa se abateu sobre
Amélia. — Oi.
— Oi. — A voz dela soou rouca. — Que dia é hoje?
— Quarta-feira, precisamente, 3 da manhã.
Amélia arregalou os olhos.
— Mas você ainda tá aqui, e a sua agenda? Você tinha
compromisso e…
— Meu bem, não se preocupe com nada disso. —
Vincent segurou o rosto dela. — Está com fome? Angela deixou
comida. Acho que você não comeu nada desde domingo.
Amélia assentiu.
— Vincent, você tem uma corrida.
— Só vou para França amanhã, não se preocupe com
isso. Mas se você não quiser que eu fique aqui, vou entender.
Os olhos dele, preocupados, gentis e atentos,
penetraram o coração de Amélia.
— Fique.
Vincent beijou a testa dela.
— Vou esquentar a comida.
Amélia se arrastou para o banheiro. Ela observou a água
escorrer pelo ralo e se perguntou se seria possível lavar todos
os pensamentos indesejáveis da sua alma. Para o seu azar, ela
ainda teria que conviver com todos eles.
Ela comeu em silêncio e calma, sentada de pernas
cruzadas na cama bagunçada, o cabelo molhado enrolado em
uma toalha. Angela tinha feito seu prato favorito, lasanha de
frango com muito queijo, e Amélia comeu um pouco mais do
que deveria, sentindo a energia voltar aos poucos ao seu
corpo.
— Você toma algum remédio?
Ela assentiu.
— Acho que a dosagem precisa aumentar. — Amélia
murmurou. — Vou conversar com minha psicóloga.
Vincent desapareceu no banheiro por alguns minutos e
voltou com um pente e o creme que Amélia usava para
desembaraçar os cabelos ondulados. Ela não entendeu a
princípio e franziu a testa quando sentiu o piloto atrás de si, os
dedos dele tiraram a toalha de sua cabeça e ele começou a
pentear seus cabelos.
O coração dela se aqueceu um pouco mais e Amélia
chorou em silêncio, a atenção voltada para os movimentos de
Vincent.
— Me desculpe. — Ela murmurou. — Eu não queria te
deixar preocupado, nem bagunçar sua agenda, a viagem
também estava planejada e nossa, desmarcar tudo deve ter
sido uma bagunça.
Vincent ficou parado.
— Amélia, porque você está pedindo desculpa?
— Porque estraguei tudo.
— Mia bella, foda-se a viagem. Não era mais importante
que sua saúde mental e Paris vai ficar de pé por mais um
milhão de anos, podemos ir lá de novo, os compromissos vão
ser remarcados.
— Desculpe…
Vincent segurou seus ombros com delicadeza e a puxou
para si, as costas de Amélia contra o peito do piloto, os braços
dele em torno dela.
— Não peça desculpas.
— Eu meio que quero pedir desculpas de novo.
Ele riu e beijou a bochecha dela. Amélia virou a cabeça
para encará-lo, os olhos dourados que ela tanto tinha passado
a gostar em um misto tão cheio de carinho e preocupação.
— Obrigada por ter vindo — Ela disse, limpando o nariz.
— Estou aqui sempre que precisar Amélia. Quero que
me conte quando estiver se sentindo mal, do mesmo jeito que
me conta quando coisas boas acontecem. Não pode esconder
de mim tudo, amore mio, quero que mostre todas as suas
versões, as felizes e tristes.
Amélia assentiu, abraçando-o. Um sentimento novo
brotou em seu peito, florescendo depressa, tomando seu
coração de uma maneira gentil e bonita. Ela sabia que aquilo
não curaria as dores internas que sempre a acompanhariam,
mas tornava mais fácil suportar a angústia, tendo algo bom ao
seu lado para se agarrar.
— Às vezes é difícil pedir ajuda, Vincent, desmoronar
não deveria ser uma coisa que eu faço. Eu sou a pessoa que
resolve problemas, não há que preocupa todo mundo.
— Sempre vamos nos preocupar, Amélia, porque
gostamos de você, nos importamos — Ele passou a mão pelos
cabelos castanhos — Você me disse em Londres para não
esquecer das pessoas que eu amava e que viviam ao redor de
mim, orgulhosas dos meus feitos. Mas você também não pode
esquecer que não está sozinha.
— Eu sei — Ela mordeu o lábio. — Eu só não queria
atrapalhar ninguém, eu sempre acho que consigo lidar por mim
mesma, porque faço tão bem o tempo todo. Mas quando
chega na minha mente, só… Fico determinada a conseguir.
— Eu sei que você é forte, mia bella, mas ninguém pode
carregar o peso do mundo inteiro sem acabar desabando.
Amélia suspirou, as palavras de Vincent criando espaço
em seus pensamentos. Ela beijou a ponta do nariz dele e riu
baixinho.
— A garota de Londres chorona e ansiosa estragando
uma viagem incrível que você planejou. Triste ou patético?
— Você não é mais a garota de Londres, Amélia. É a
mulher mais bonita, corajosa e gentil que eu conheço, não que
já não fosse naquela época. — Vincent a abraçou, as mãos
apertando sua cintura. — Estou com você até nos dias ruins.
Amélia exalou, novas lágrimas se formando no canto
dos olhos. Ela teve a sensação de que, talvez, aquela dor em
seu peito não duraria para sempre.
***
Vincent Di Castelli soube que amava Amélia Palhares
quando bateu seu carro milionário em Mônaco, no meio de
uma corrida.
Ele sabia que o movimento tinha sido arriscado demais
e estava confiante de ultrapassar o segundo piloto da Dalton,
quando os dois se tocaram e derraparam. A frente do carro de
Vincent bateu diretamente na traseira do outro e o italiano
sentiu o corpo tenso com o impacto em alta velocidade.
Um zunindo tomou seus ouvidos, o sol machucou seus
olhos e ele piscou, desconcertado.
— Vincent! Vincent, você tá me ouvindo?
Arthur disse pela comunicação.
— Tô.
Gosto de sangue invadiu sua boca, ele tinha mordido o
lábio inferior.
— Consegue sair?
— Me dá um minuto.
Vincent cambaleou ao sair para a pista e o choque deu
lugar à raiva.
O campeão mundial tinha acabado de bater a porcaria
do carro em uma ultrapassagem simples. Irresponsável, uma
criança desobediente, um garoto idiota e impotente que estava
na Fórmula 1 por birra. A voz de Ansel Bellini ecoou em seus
ouvidos, os olhos azuis pingando desprezo.
Vincent cerrou os punhos, a respiração em ondas curtas
e rápidas. Arriscou um olhar para a arquibancada, na direção
onde sua família e Amélia estavam assistindo à corrida e
engoliu em seco. Eles tinham ido só para testemunhar uma
derrota catastrófica do piloto.
Ele entrou na sua sala, tirou o capacete e deixou que
uma enfermeira o examinasse, mal registrando as palavras
dela e de Arthur, os dedos apertando a balaclava, tentando
controlar aquele tremor maldito. Apesar de não ter sofrido
nada com o impacto, Vincent se sentia dolorido por dentro.
— Descanse, Vincent. — Arthur disse, apertando seu
ombro antes de sair.
O piloto assentiu e quando se viu sozinho, enterrou o
rosto entre as mãos, esvaindo sua frustração em um suspiro.
Lembrou-se dos exercícios da terapia, fixando sua atenção na
mesa de centro, tentando barrar todos os pensamentos que
insistiam em voltar.
Vincent fechou os olhos, a perna balançando em uma
descarga de adrenalina, tocou no próprio rosto, passou os
dedos entre os cabelos, apertou o tecido do uniforme, a
textura grossa contra sua pele. Era uma sacada de percepção
própria, ensinada pela sua psicóloga quando ele era criança,
para controlar as crises de pânico que o assombravam. Com o
tempo, ele usou a mesma técnica para acalmar sua mente
caótica.
Ele não era mais o mesmo garoto de Londres, raivoso e
tentando se provar a todo custo, mas em momentos como
aquele, sentia-se como ele novamente. Analisava cada erro,
julgando-se em decisões de anos atrás, que nem sequer podia
mudar, alimentando sua culpa e a raiva. Raiva de si mesmo,
mascarando a tristeza profunda que pesava no peito.
Uma batida na porta chamou sua atenção e ele franziu a
testa ao ouvir Amélia.
— Vincent, sou eu. Trouxe um remédio para dor, mas se
você ainda quiser ficar sozinho, eu te espero.
Ele mordeu o lábio. Ainda não se sentia pronto para
encarar o mundo inteiro e o gosto da decepção amargo em sua
língua.
— Mia bella, pode esperar só um pouco?
— Claro.
Vincent não sabia quanto tempo ficou ali, apenas
sentado, remoendo todos os seus momentos, os olhos
fechados. Quando a tensão finalmente o abandonou, ele
enviou uma mensagem para Amélia e segundos depois ela
entrou, segurando uma garrafa de água e uma cartela de
comprimidos.
— Oi. — Ela disse e colocou as coisas em cima da mesa.
— Oi, Palhares.
O piloto exalou, sem olhar na direção dela. Ele sentiu
quando Amélia sentou-se ao lado, em silêncio.
— Tudo bem se eu te abraçar agora?
Vincent confirmou com a cabeça e sentiu os dedos da
brasileira em suas costas, um carinho leve. Ele se permitiu
relaxar com o toque, inclinando-se na direção dela.
— Tô exausto. — Vincent murmurou.
— Não tenho certeza se você pode dormir depois de
uma batida daquelas, meu bem. Deite aqui.
Vincent a encarou e Amélia deu batidinhas no colo dela.
Ele apoiou a cabeça, os dedos dela em seus cabelos,
pressionando sua testa com suavidade.
— Foi uma batida tão idiota… Eu poderia ter só evitado
tudo. Tenho a porra de dois títulos mundiais e bati o carro na
tentativa de uma ultrapassagem. E não é nem pelos pontos,
mas pela coisa toda em si. O tempo todo eu só conseguia ouvir
a voz de Ansel dizendo o quanto era um garoto irresponsável e
mimado.
Ele encarou Amélia, lágrimas se formando nos cantos
dos olhos.
— Me sinto meio patético por estar morrendo de
vontade de chorar.
— Está tudo bem, Vincent.
O piloto riu baixinho, deixando o choro silencioso levar
embora os últimos resquícios de raiva e frustração do seu
peito. Amélia limpou suas lágrimas, o rosto gentil e repleto de
empatia.
— Eu sei que nenhum longo discurso vai tirar esses
pensamentos, Vincent, mas você não é um cara irresponsável e
ama esse esporte mais do que tudo. Ansel é só um
desgraçado, e sabe disso. Não deixe que ele dite como você se
sente em relação à Fórmula 1 e a si mesmo.
— É difícil não dar poder a ele. O cara foi meu herói por
tanto tempo e eu sinto as vezes que nunca vou chegar perto
de onde ele está.
Amélia beijou sua testa.
— Que bom. Porque você é melhor do que ele, em
todos os sentidos. Na pista e fora dela, Vincent, está acima de
Ansel. Tipo, muitos degraus.
Vincent sorriu e beijou o pulso de Amélia.
— Obrigado, mia bella.
A brasileira acariciou seu rosto.
— Você tá com dor?
— Um pouco na coluna, mas não tem nada grave.
— Ficamos muito preocupados. Sua mãe deve estar
brigando com Arthur até agora.
— Mas eu estava dirigindo o carro.
— E ele é o engenheiro responsável, segundo ela, tem
mais culpa.
Eles riram.
— Não acredito que bati o carro na frente da minha
namorada de mentira, que vergonha. Da próxima vez, tem que
ser em uma corrida onde você não esteja.
— De preferência que não tenha uma próxima vez. —
Amélia revirou os olhos. — A corrida acaba em alguns minutos,
quer que eu pegue alguma coisa para você comer antes que
tudo fique caótico lá fora?
— Por favor, eu vou trocar de roupa.
Eles se levantaram do pequeno sofá.
— Eu vi que tem chá de laranja e aquela torta de
tomate e queijo. — Amélia abriu a porta, os óculos na ponta do
nariz. — Vou pegar antes que acabe, sei que é a sua favorita.
Ela saiu com um sorriso pequeno no rosto e Vincent
prendeu a respiração. Ele a amava.
Amélia Palhares, que se lembrava de suas coisas
preferidas, que sabia quando Vincent precisava de um abraço,
silêncio ou palavras de incentivo. A especialista em
aniversários, doces, comédias românticas, Taylor Swift e fatos
aleatórios. Que tagarelava sobre tudo, mas ouvia os outros
com atenção redobrada e se atentava a detalhes que ninguém
percebia, mas que significavam muita coisa.
A gentil, teimosa, forte, linda, cabeça dura e brilhante
Amélia Palhares. Vincent a amava, desde quando não sabia,
mas sentiu o coração pesar de conforto ao perceber o tamanho
do amor que sentia por ela.
Ele se sentia como um adolescente em seu primeiro
relacionamento e guardou a informação para si. Queria dizer a
ela em uma ocasião especial, até porque, seria a primeira
declaração que Vincent faria na vida e Amélia merecia algo
incrível.
— É só ser sincero. — Stefano disse, quando Vincent lhe
contou. — Não é difícil, Vince.
— Mas eu queria fazer algo grande, sei lá, um gesto.
— O que conta são as intenções, não o tamanho do
gesto.
— Diz o cara que pediu o namorado em namoro com
uma carta da artista favorita dele.
Stefano riu.
— Só foi por acaso que Audrey Liongate estava por
perto e eu tive a ideia. Pensando em conseguir um vídeo da
Taylor?
— Será que dá certo?
— Eu diria que sim, mas sinceramente falando, acho
que Amélia vai gostar de qualquer coisa que você fizer.
— É por isso que tenho que me esforçar mais. —
Vincent sorriu, lembrando das palavras de Sofia Palhares.
— Você apaixonado é realmente uma coisa. — O social
media provocou. — Me avise se precisar de ajuda.
O piloto assentiu.
Durante as semanas seguintes, seu tempo livre era
dedicado a essa questão. Com o retorno das aulas de Amélia, e
a apresentação da dissertação de mestrado, Vincent se
perguntava se deveria contar aquilo antes ou depois, se
atrapalharia os sentimentos da estudante. Sem contar que não
sabia que resposta receberia de volta e apesar de tentar
parecer calmo quanto a isso, suas sessões de terapia giravam
em torno daquele tema nos últimos dias.
Ele estava prestes a colocar seu plano em ação,
convidar Amélia para um jantar romântico e tocar uma seleção
das suas músicas românticas preferidas, quando a brasileira,
de novo, passou por cima dele.
Aconteceu em uma noite de sexta, depois de um dia de
treino livre para o GP do Japão.
Relacionar-se com alguém à distância era complicado e
às vezes nem as infinitas chamadas de vídeo davam conta da
saudade. Por isso, o piloto e a brasileira estavam sempre
inventando novas formas de se comunicar, sendo uma delas,
os jogos online. E bastaram alguns sorrisos para que Vincent
aceitasse a proposta de Amélia e baixasse Stardew Valley no
seu switch.
O jogo era um simulador RPG de fazenda, onde você
podia customizar seu personagem, interagir com uma cidade e
ter relacionamentos, enquanto regava plantas e dava comida
aos animais. Com a opção multiplayer, Amélia, que era uma fã
declarada de Stardew Valley, convenceu o piloto a embarcar na
vida de cuidados no campo.
E Vincent precisou admitir que estava se divertindo mais
do que o esperado.
— Não tem mais palha no silo, mia bella. — Ele disse
para Amélia, por chamada de vídeo. — É o último dia do verão,
vai dar tempo de conseguir até o inverno? Ou comprar seria
melhor?
Vincent desviou os olhos para o videogame, movendo
seu personagem pela tela, inspecionando os animais da
fazenda. Quando Amélia ficou tempo demais em silêncio, ele
franziu a testa e a encarou.
— O quê?
Ela sorriu, os olhos apertados contra as bochechas, o
cabelo em um cavalo alto, o top de alças finas deixando seu
colo à mostra.
— Eu amo você.
Amélia disse, no tom das certezas universais que só ela
tinha. Vincent piscou, atordoado.
— Ah, não, você não fez isso.
— Não era para eu dizer que te amo?
Ela riu.
— Amélia, você disse que me ama e está do outro lado
da porra do mundo, nem sequer posso te dar um beijo. —
Vincent reclamou, jogando as mãos para o alto. — Sério? E
não acredito que você passou por cima de mim, de novo.
— Você tinha planos para uma declaração?
— Sim! Stefano estava pensando em me ajudar com
isso, eu até fiz uma playlist de músicas. Você está estragando
minha experiência de primeiro namoro, Amélia.
— Você ainda pode fazer a declaração, eu prometo ficar
surpresa. E só para seu conhecimento, não era minha intenção
dizer isso agora, tá legal? Mas não consigo esconder um
sentimento assim, foi mal.
Ela sorriu. Vincent não conseguiu esconder a emoção,
sabendo que parecia meio idiota, mas seu coração estava cheio
de um calor tranquilo e suave, que ele não queria disfarçar.
— Eu amo você, meu bem.
Amélia entreabriu os lábios, um pouco surpresa e
balançou a cabeça.
— Eu não estou duvidando da sua sinceridade, mas só
para você saber, não vou deixar de casar com a Leah por isso,
ela é a melhor personagem de Stardew Valley.
— Sebastian sempre ganha essa disputa, mas não
vamos entrar em discussões onde eu estou certo.
Amélia riu.
— Vincent, eu amo você. — A pele do piloto se arrepiou
quando ela disse aquilo. — E agora me arrependo um pouco,
porque também queria receber um beijo.
— Karma is a queen.
— Não use a Taylor Swift contra mim! E sobre a
fazenda, dá tempo de conseguir mais palha, é só plantar
grama.
Vincent sorriu.
— Amélia, eu amo você. Mas temos cinco animais e
você ainda quer uma ovelha, esses bichos vão morrer se não
comprarmos nada.
— Eles não vão morrer, não seja tão dramático. E eu
sou a própria wiki viva desse jogo, vai ficar tudo bem. E eu
amo você, Vincent Di Castelli.
Vincent nunca tinha se permitido ficar apaixonado tão
profundamente antes, mas ele conhecia o amor.
Estava presente nos terços e rosários que sua mãe e
avó rezam antes das corridas, para que ele não se
machucasse. No abraço carinhoso de Emma e Antonia, toda
vez que ele as via, com inúmeras novidades para dividir.
Quando conversava com Stefano sobre os sentimentos
conflitantes do seu coração e ouvia conselhos preciosos. No
sorriso contido de Arthur, os olhos brilhando com orgulho
paterno sempre que Vincent falava com ele.
Ele sempre acreditou que o amor era um risco, um jogo
implacável, que poderia ser cruel, mas era muito mais do que
isso. Também é conforto, paciência, cuidado, liberdade,
gentileza e escolha. Nunca um fardo, obrigação, um peso no
coração, ou algo que tirava seu sono a noite.
E havia aquele amor que sentia por Amélia, corajoso e
doce, um estado de graça que aquecia seu corpo. Vincent
podia sentir a verdade e a força do sentimento nas três
palavras que ela dizia com leveza, como se fosse fácil demais
amá-lo, pedindo apenas que o piloto fosse ele mesmo.
Era estranho que ele se sentia pertencente a ela, mas
não de uma maneira possessiva, e sim como retornar a um
lugar seguro depois de tempo demais andando sem rumo. E,
olhando o perfil sorridente da mulher que amava, soube que
ela também se sentia da mesma forma.
No final do dia, seus corações eram casas um para o
outro.
26.
Agosto
O fato de que Amélia amava Vincent, começou a surgir
quando ela quase deletou sua dissertação de mestrado em
meio a uma crise de síndrome de impostora.
Ela não ia realmente jogar fora o trabalho todo, mas
estava encarando o botão de excluir por muito tempo. O
sentimento de não ser boa o suficiente era o principal
motivador, assim como a proximidade dolorosa da
apresentação, lhe tirando o sono e parte da sanidade.
Foi quando Vincent lhe ligou, no hotel, depois da corrida
do México. Em chamada de vídeo, deitado na cama e com os
cabelos loiros molhados, ele parecia relaxado. Amélia imaginou
que tivesse a ver com ganhar o primeiro lugar duas vezes
seguidas, recuperando os pontos perdidos em Mônaco, e sorriu
pela empolgação do piloto.
— O que você está fazendo?
— Quase excluindo minha dissertação de mestrado e
quem sabe eu não sumo junto.
— Me parece uma medida drástica para não apresentar
um trabalho. — Ele sorriu. — Você tá bem?
— Tô, é só meu nervosismo me matando. Tenho que
ensaiar a apresentação, mas não consigo fazer isso em voz alta
sem derreter.
— Dizem que apresentar para uma plateia ajuda, porque
não me mostra?
— Me parece uma medida drástica para você finalmente
descobrir o tema do meu mestrado.
Ela revidou, com a sobrancelha arqueada, e Vincent riu.
— Tô falando sério, se você quiser eu até muto sua voz
por aqui. Mas… Eu não me importaria de finalmente descobrir
o que é. Até a minha mãe sabe, Palhares.
— Por que ela faz parte do projeto, indiretamente. —
Amélia balançou a cabeça, sorrindo. — Tudo bem, eu vou
apresentar para você. Mas quero que seja crítico, tá certo? Me
diga onde preciso melhorar e como falei, postura, você sabe.
— Vou ser um juiz meticuloso.
Amélia improvisou um espaço para o celular e colocou o
slide no seu notebook. Ela ficou de pé, ao lado do computador
e arrumou a coluna, adquirindo sua melhor expressão de
estudante super profissional que sabia o que estava fazendo.
Vincent a encarou, atento.
— Boa noite, meu nome é Amélia Palhares e eu sou
estudante de mestrado em Gestão Artística. Para a minha
dissertação, passei os últimos três anos pesquisando,
estudando e interpretando, as obras da pintora italiana Fúlvia
D ‘Oro e a relação destas com os documentos recém-
descobertos no Museu do Sertão, localizado no Brasil, em
Pernambuco.
Vincent ergueu uma sobrancelha, mas não a
interrompeu.
— E como resultados das análises, temos o seguinte
estudo: “Amor, eterno amor: reinterpretando as obras de Fúlvia
D ‘Oro à luz dos relatos pessoais ítalos-brasileiros.”
Amélia passou o slide, os dedos que antes tremiam,
agora mais calmos. Aquele era o território dela, afinal, no que
era realmente boa e precisava acreditar em si mesma se
quisesse que aquele trabalho fosse reconhecido. E ela devia
isso não só a menina sonhadora que foi um dia, mas a Fulvia D
‘Oro.
Depois de apresentar um breve panorama da história
conhecida, de como as obras de Fulvia foram creditadas para o
seu irmão mais velho e a fuga da pintora para o Brasil, ela
finalmente chegou onde queria.
— No Brasil, Fúlvia morou em Pernambuco durante 37
anos, em Recife. Ela permaneceu na cidade até sua partida
para Itália, onde viveu até falecer em decorrência de um
câncer incurável. Mas nunca se soube os verdadeiros motivos
da pintora ter permanecido tanto tempo no Brasil, ou porque
partiu tão repentinamente para a terra natal. Até três anos
atrás.
As imagens dos diários originais de Fulvia preencheram
a tela do seu computador e Amélia controlou a empolgação.
— Os diários da pintora foram descobertos em uma
doação ao Museu do Sertão, de uma parte do acervo pessoal
dela. A doadora, Eduarda Valente, se identificava como sendo
filha de Fulvia, embora não tivesse documentos que provassem
esse fato. Nos registros estudados e traduzidos, descobrimos
que a senhorita Valente estava contando a verdade, ela era
filha de Fulvia D ‘Oro e Teresa Valente.
Vincent soltou um suspiro surpreso e Amélia empurrou
os óculos no rosto, sorrindo.
— Fulvia e Teresa se conheceram ainda na Itália, em
uma visita da brasileira à Mancia. Se apaixonaram e
continuaram trocando cartas por muitos anos, quando a
pintora descobriu os créditos roubados dos seus quadros. Sem
nada mais pelo que lutar, Fulvia embarcou para o Brasil, onde
viveu com Teresa até a morte da amada. Teresa é mencionada
nas cartas-diários não postadas, como “Amor, meu eterno
amor” e descrita como a única responsável por manter Fulvia
no país.
Amélia explicou a vida de Teresa, o infeliz histórico de
violência doméstica, o nascimento da filha, Eduarda, e a fuga
para Pernambuco, onde encontrou com Fulvia e viveu feliz até
sua morte. Quando a pintora voltou para Itália, em seus
últimos anos de vida, se dedicou a pintar aquele amor em
todas as suas obras, que ficaram ocultas até que os Torrisi
fizessem o trabalho de resgate.
A estudante apresentou uma releitura das obras de
Fulvia, usando suas cartas como guia, explicando o simbolismo
escondido em algumas delas.
— A história de Fulvia D ‘Oro sempre foi descrita como
uma tragédia. Uma mulher que sofreu às custas do irmão
desonesto, que jamais recebeu reconhecimento enquanto
estava viva e morreu deixando a esperança de um dia ser
reconhecida. Mas Fulvia experimentou uma vida de plena
alegria e felicidade, ao lado de pessoas importantes. E deixou
para trás, um legado de amor verdadeiro e honesto, que
merece ser contado e mostrado. Obrigada.
Amélia soltou um longo suspiro, relaxando a postura.
Ela se sentou novamente, pegando o celular e vendo o rosto
de Vincent, procurando sinais do que ele tinha achado.
— Caralho. — Vincent riu e passou uma mão no rosto.
— Você é a porra de um gênio, Amélia Palhares. Foi a coisa
mais incrível que eu já assisti e eu podia ouvir você falando
sobre isso durante horas.
Ela sorriu, sentindo as bochechas esquentarem.
— Nenhuma crítica a fazer?
— Não, meu bem, nenhuma. Você foi incrível, sabe do
assunto, tem domínio de conteúdo e o slide está ótimo. Dá
para ver o quanto você ama arte e Fulvia, sua storyline está
ótima, começou apresentando o ponto e depois abordou o
tema.
— Não acha que eu dei muito contexto, antes de partir
para o ponto principal? Eu sinto que preciso ser mais objetiva.
— Você está contando uma história, Palhares. — Vincent
ergueu um dedo. — Eu chamo isso de ter uma licença poética
apurada. Você vai se sair bem.
— Obrigada. — Amélia sorriu.
A aprovação de Vincent não era crucial para Amélia, até
porque, o trabalho de anos era todo dela e a estudante sabia
que estava bom, mesmo com a síndrome de impostor batendo
na porta. Mas o apoio dele em um dos momentos mais
importantes da sua vida, saber que o piloto estava ali, era o
principal.
— Estou dispensado do meu papel de banca? Porque
agora precisamos conversar sobre Fúlvia D ‘Oro e como minha
mãe vai surtar com tudo isso. Acho melhor você se preparar
para escrever um artigo com ela.
— Se a sua mãe me chamar para escrever um artigo,
Vincent, eu acho que desmaio. Estou aberta a perguntas da
banca sobre o que quiser saber.
Amélia foi dormir tarde naquele dia, conversando com o
piloto sobre Fúlvia D ‘Oro e a descoberta de que a pintora
amava mulheres. Sobre o medo que ela deve ter sentido ao vir
para o Brasil, os trechos dos escritos onde ela conta como o
amor de Teresa foi sua tábua de salvação e o remetente das
cartas, Giulia Pesato, a melhor amiga de Fúlvia, que já havia
morrido.
— “Eu conheci o amor na forma mais violenta e
dolorosa possível, mas Teresa trouxe a verdadeira natureza
dele para mim. Todas as vezes que ela sorri, eu sei que o amor
é bom, é felicidade. E isso, querida Giulia, é o bastante.”
Amélia leu seu trecho preferido, os olhos marejados.
— Consigo entender porque você se aproximou de
Fulvia. — Vincent disse, com um bocejo. — E porque a história
de um amor assim, Amélia, merece ser contada.
Mesmo quando eles se despediram, ela manteve aquele
trecho em mente. Deitada no escuro do quarto, com os dedos
acima do coração, Amélia sentiu as próprias batidas ecoarem
pelo seu corpo inteiro, aproveitando a emoção de Fulvia, igual
à primeira vez que ela leu aqueles trechos.
Ela tinha mais do que se aproximado de Fulvia, tinha se
reconhecido nela.
Na jovem desamparada, que perdeu o que mais amava,
e saiu do país sem esperança alguma. Na mulher de coração
partido, escrevendo pensamentos sobre sua descrença em um
amor de verdade, sozinha e com medo de enfrentar o mundo.
Na pessoa que ainda estava quebrada, mas que estava se
curando, e que teve a sorte de conhecer como o amor era de
verdade.
Duas mulheres, que viveram em tempos diferentes,
ligadas por um fio invisível de sentimentos através de
gerações. Uma pintora que precisou de uma contadora de
histórias que mostrasse a verdade ao mundo sobre seu
trabalho. Uma contadora de histórias que teve a fé restaurada
por uma pintora que descobriu sobre o amor.
Não era curioso como o tempo funcionava?
— Sim, Fulvia. O amor é bom, é felicidade. E isso é o
bastante.
Amélia sussurrou, adormecendo com um sorriso leve no
rosto. Semanas mais tarde, encarando Vincent pela tela do
celular, ela teve a certeza de que sim, amava aquele piloto. E
ao dizer isso ao italiano, vendo o sorriso nos lábios dele e a
emoção nos olhos cor de âmbar, ela compreendeu mais uma
verdade sobre o amor romântico.
Amor era o conjunto constante de atos de coragem. E
ela merecia aquilo, a sensação de amar alguém e de ser
amada de volta. Ela finalmente se sentia pronta para
atravessar aquele mar dourado que tanto tinha evitado,
mergulhar e descobrir o que a esperava. Sem medo algum.
***
Fearless era a música que tocava no carro alugado de
Vincent, enquanto as luzes de Marina Bay passavam em
borrões pela janela. Ele batucava no volante no ritmo, sorrindo
feito um idiota.
Quando acordou naquela manhã, havia uma mensagem
de Amélia o esperando.
A: "Fiz uma playlist para você.”
V: “Obrigado, mia bella.” “Qual a ocasião?”
A: “Para combinar enquanto você dirige.” “E é
colaborativa, então é nossa playlist de viagem.”
V: “Essa é uma coisa bem de casal.”
A: “Calado. Eu estou lhe dando a experiência de
primeiro namoro completa.”
A playlist se chamava “You ‘re driving in a Getaway Car”
e já tinha cerca de 30 músicas adicionadas. Vincent colocou
suas favoritas para a estrada, mas riu quando o aleatório do
aplicativo colocou de Taylor Swift em sequência. Pelo visto, ele
não podia mesmo se livrar da cantora.
Ele estacionou, a letra da música em sua cabeça,
sentindo-se leve e ansioso. Depois do Grande Prêmio de
Singapura, ele correria em Monza e teria o fim de semana de
descanso. Além de poder, dormir até mais tarde, finalmente
veria Amélia depois de quase um mês.
— Meu Deus, como eu odeio apaixonados. — Satake
murmurou, já com o uniforme da Redemptio.
— Você precisa de um amor na vida, Satake, isso sim. —
Vincent provocou. — Eu posso arrumar alguém, se você quiser.
— Eu estou muito bem sozinho, obrigado. E eu tenho
medo do trabalho de cupido que você faria.
— Sou um ótimo cupido!
Satake estreitou os olhos fundos e balançou a cabeça.
— Se você diz… Estão querendo que a gente dê uma
coletiva, Arthur te disse?
— Sim, todos os pilotos que ainda tem chance de vencer
esse ano.
— Disseram que Ansel vai mediar.
Vincent fez uma careta.
— Não temos escolha nisso, ou temos?
O piloto japonês negou, parecendo cansado.
— Eu só queria que tudo isso acabasse de uma vez.
— Estamos quase lá, Satake, só precisamos ter um
pouco de paciência.
— Acho engraçado você mencionar paciência, o amor
muda tanto assim alguém?
Vincent riu e bateu no ombro do amigo.
— Se apaixone e descubra.
Não, Vincent não tinha mudado. Até porque a ideia de
que o amor “mudava uma pessoa para melhor”, era uma
ilusão. Mas saber que ele amava e era correspondido, trouxe
um bom humor inteiramente novo ao piloto e uma paz que ele
raramente conhecia.
O simples fato de poder enviar uma mensagem para
Amélia, dizendo “Eu amo você”, trazia um sorriso ao rosto dele.
Estar apaixonado era tão bom, que ele se perguntou o que
teria acontecido se tivesse acontecido antes.
Depois da corrida, na coletiva de imprensa, ele se
sentou na ponta, arriscando uma olhada para os outros pilotos.
Além de Satake, outros três tinham chance de levar o prêmio:
Chase, Kob e um russo chamado Misha, que Vincent não teve
muito contato. Com poucas competições pela frente, a
pontuação acirrada seria disputada até o último momento.
Vincent não pode evitar que a veia latente da
competitividade saltasse. Quanto mais alto a concorrência,
mais rápido ele teria que correr e essa frase soava ótima em
seus ouvidos.
— Então, Vincent. — Ansel o chamou, os olhos azuis
voltados para ele. — Como lidar com a pressão do final de
temporada? Todos nós sabemos que o momento não é fácil
para a Redemptio, especialmente depois dos últimos acidentes.
Vincent inclinou a cabeça e sorriu.
— Lidar com a pressão é fácil, eu sempre dou o meu
máximo na pista e foco nisso. Quando se foca em correr, em
conduzir o carro, não tem porque se preocupar com outros
pensamentos que não sejam a velocidade que você vai
conseguir na próxima curva.
— E nem mesmo a possibilidade de uma equipe
irresponsável atrapalhar?
O italiano sabia muito bem o que Ansel estava tentando
fazer, por isso seu sorriso não vacilou um só segundo.
— Confio minha vida a Redemptio, assim como fiz todos
os fins de semana desde que entrei na equipe. E como
provamos, somos umas das melhores da temporada por algum
motivo, não é mesmo, Ansel?
Satake disfarçou uma risada com uma tosse e o rosto de
Ansel se retorceu em raiva.
Era fácil não se importar com um ex-piloto decadente,
quando o cheque-mate era facilmente visualizado.
A tensão no grid, de que alguma coisa estava prestes a
acontecer, contagiava todas as equipes e era divertido ver as
pessoas se roendo de curiosidade, mas sem poder questionar
nada. E por mais que Vincent tentasse disfarçar, todos em sua
casa acabaram percebendo que ele parecia empolgado demais
nos últimos dias.
— Você está escondendo alguma coisa. — Amélia disse,
deitada na cama de Vincent, o queixo apoiado no peito dele.
— Eu já disse o quanto eu amo seu cabelo? — Vincent
correu os dedos pelas mechas — Você é tão linda.
— E você está tentando me distrair.
Ela sorriu, beijando a pele dele. Vincent a abraçou,
deitando-os de lado, as pernas nuas de ambos entrelaçadas de
tal forma, que ele não sabia dizer onde ele começava e
terminava. A sensação era incrível.
— Está funcionando?
Vincent beijou o pescoço de Amélia, aspirando o cheiro
dela, ameixas, sabonete fresco e casa.
— Hum… Você pode tentar com mais vontade.
Ele sorriu, malicioso e seus dedos dedilhavam a coluna
dela, do jeito que Vincent sabia que arrancavam suspiros
baixos de Amélia. O piloto a beijou, os lábios quentes, doces e
vorazes.
Os dedos de Amélia puxaram seus cabelos e ele gemeu,
a pele dela o enlouquecendo, as carícias indo cada vez para
baixo, o toque macio na região da cintura do piloto. Ele a
encarou, a pouca luz do quarto criando um cenário etéreo, o
rosto da brasileira em uma expressão de prazer e maliciosa
que Vincent adorou.
Vincent tocou-a por cima do tecido da calcinha, ao
mesmo tempo que os dedos de Amélia percorreram sua
extensão. Ele não se segurou, soltando outro gemido, jogando
a cabeça para trás, aproveitando o delicioso arrepio de prazer.
— Amor, é sempre bom te ver assim por minha causa.
— Porra.
Amélia riu e acelerou, uma dança torturante e lenta,
roubando o ar dos pulmões de Vincent, calor se acumulando
em suas pernas e o piloto deslizou dois dedos para dentro da
calcinha da brasileira, ganhando um gemido.
O sensorial o atingiu como um tapa e Vincent se inclinou
para beijar Amélia outra vez, sustentando o peso do corpo com
um braço, a mão dela ainda o masturbando com precisão, o
calor dela entre seus dedos. Os lábios se esbarraram de um
jeito bagunçado, gemidos entre respirações pesadas e tudo ao
redor deles parecia perigosamente perto de incendiar.
Vincent chupou o pescoço de Amélia, sentindo as costas
dela arquearem mais uma vez e afundou os dedos, gemendo
junto com ela, um tremor leve começando a se formar em suas
pernas. Ele estava perigosamente perto de se entregar, tudo
era demais para ele, ela era demais para ele.
Quando Vincent contornou o clítoris de Amélia com o
polegar e ela gemeu mais alto, as pernas relaxando, o som
viajou até seu pau e ele não se impediu de gozar junto com
ela, estrelas estourando atrás dos seus olhos fechados.
— Merda — Ele xingou, meio rindo e se levantou da
cama, zonzo. Correu para o banheiro, pegou um papel e
limpou a pele de Amélia, ainda trêmula, com cuidado.
Minutos depois, a própria Amélia foi ao banheiro e eles
deitaram-se na bagunça de lençóis, o ar do quarto inteiro mais
quente, suor grudado na pele.
— Você vai me contar, ou não?
— Sua estratégia para arrancar meus segredos era um
orgasmo?
— Não, seria mais um boquete. — Vincent riu. — Eu só
preciso saber se está tudo bem, meu bem.
— Golpe baixo.
O piloto murmurou, beijando a testa dela, sorrindo.
— Eu assino até um termo de confidencialidade se você
quiser.
Vincent suspirou. Ela nunca o deixaria em paz.
— É só complicado, mia bella, o tipo de segredo que
quanto menos pessoas souberem, melhor.
— Tem a ver com Ansel?
— Sim. Em resumo achamos uma forma de acabar com
a carreira dele, mas isso é perigoso, então tive que trabalhar
com outros pilotos por trás das câmeras por um tempo. Não
sabemos o que vai acontecer, para ser sincero, nenhum de nós
sabe bem. É só o que posso te contar, Amélia.
— Por favor, tenha cuidado. — Ela segurou o rosto dele.
— Ansel é um filha da puta, mas ainda um filha da puta com
poder demais dentro da FIA. Não quero que ele ferre nenhum
de vocês.
— Estamos tentando, prometo. Todo mundo está pronto
para brigar com Bellini, ele mal perde por esperar.
Ela assentiu, os olhos cheios de raiva e determinação.
— Bom. Ele merece ser esquecido no inferno.
— É a nossa meta principal.
Eles ficaram abraçados, em silêncio, o som dos grilos
ecoando no jardim.
— Vincent?
Amélia o chamou, a voz sonolenta.
— Sim, amor?
— Eu amo você.
Ele sorriu, abraçando-a mais perto, o cheiro de ameixas
por toda parte.
— Eu também, mia bella.
Vincent se sentia a porra do homem mais sortudo do
mundo.
27.
Três anos atrás
Outubro, 01:45, Londres
Vincent cresceu em uma dualidade, cercado de pessoas
e ao mesmo tempo sozinho.
Na mansão Torrisi, haviam sempre tios, tias, primos e
familiares para brincar e se distrair. Mas no momento em que
se trancava no quarto, uma solidão estranha o acompanhava e
pressionava sua nuca. Vincent nunca soube explicar bem
aquilo, sempre colocando tudo como o drama do menino rico
demais, obrigado a ficar com os próprios pensamentos vez ou
outra.
Só na adolescência que o peso de ser um Torrisi o
acertou e ele enfim descobriu a fonte da sensação estranha.
Vincent queria muito mais do que ser o garoto de uma família
rica, ele queria deixar sua marca no mundo, ser conhecido
como bom em alguma coisa que não tivesse a ver com o
sobrenome. E mesmo crescendo com todos os privilégios do
mundo, e era o primeiro a reconhecer isso, se perguntava
como seria ter algo só seu.
Foi isso que o motivou tanto a se esforçar nas corridas,
mas o que também o levou a guardar aquela raiva. Ele
precisava ser bom, tinha que ser bom, porque, se não fosse, o
que teria feito por si mesmo além de ser aquele garoto
patético que se arrastava por baixo da asa da mãe?
Vincent não sabia como Amélia tinha enxergado aquela
camada que ele tanto tentava manter escondido, em menos de
10 minutos de conversa no parquinho. Nem porque ela tinha
aceitado sair com ele pela noite, partilhando tanta coisa e ao
mesmo tempo, continuando um mistério.
O que seria daquele momento quando tudo acabasse?
Vincent tentava não pensar muito sobre isso, mas observando-
a de perfil, era inevitável.
— Eu aceito o fato de você ter lido Jane Austen para a
faculdade, mas nenhum livro da Isabel Allende? Sério? Nem
Clarice Lispector?
— Eu era um pouco obcecado pela Austen. Mas em
minha defesa, eu me formei com especialização em literatura
italiana.
— Italiana?
— Acho que o assunto não surgiu, mas eu sou da Itália.
Amélia desviou os olhos para as botas.
Estavam sentados na escada de emergência, abrigados
do frio cortante da madrugada londrina. A luz avermelhada da
única lâmpada na parede, lançava sombras no rosto de Amélia,
e Vincent conseguia enxergá-la pouco, apenas o fraco brilho da
armação dourada dos óculos.
— Ah, então você lia Dante.
— Porque todo mundo assume isso? Não, eu detesto
Dante, muito complicado para mim. Eu gosto de O Nome da
Rosa, Elena Ferrante, e, aqui vai uma confissão, Boccaccio.
Amélia riu.
— Eu lia Boccaccio quando era adolescente, me achava
super inteligente por ler os poemas, mas entendia pouca coisa.
E é bom saber que você lê Elena Ferrante, acho que ela é uma
das minhas autoras preferidas.
Vincent virou-se para ela, tirando os cabelos ondulados
do rosto de Amélia.
— Quantos livros você já leu na vida?
— Eu não faço ideia. Essa não é uma pergunta que os
leitores vão responder com facilidade. Você sabe o seu?
— 176.
— Porra! Como se lembra disso?
Ele deu de ombros.
— Eu gosto de anotar minhas leituras desde criança.
— Quanta organização.
Ela se aproximou mais dele, o quadril tocando o de
Vincent, o corpo em uma pressão suave contra o do piloto. Ele
a analisou, vendo que ela mordia o lábio inferior, um pouco
perdida em pensamentos.
— Posso perguntar uma coisa?
— Fique à vontade.
— Quando você mencionou que não namorou homens,
mulheres e pessoas não-binárias mais cedo…
— Ah, sim. Eu sou panssexual.
Amélia arqueou as sobrancelhas.
— Um encontro duárico. Uma bissexual e um
panssexual. Mas na verdade, eu queria perguntar o porque
você nunca namorou ninguém.
— Eu nunca me apaixonei para querer algo mais sério.
— Nem aquelas primeiras paixões de escola?
Vincent deu de ombros.
— Não que eu me lembre. Gosto de manter tudo o mais
casual possível, poder ir embora antes que a outra pessoa vá.
Não sou bom com despedidas, vivo viajando e minha vida é
instável demais para ficar em um lugar só.
Além do mais, tenho medo de ter o coração partido.
Amélia apoiou o rosto na mão, os olhos voltados para
ele, sérios.
— Eu acho que tem mais coisas, mas você não vai me
contar e eu aprecio isso. Na verdade, eu adoraria ser um pouco
mais assim, manter a casualidade da situação.
— E porque não tenta?
Vincent beijou a testa dela, contornando o corpo de
Amélia com os braços, sentindo quando ela se aconchegou
nele.
— Porque eu sou uma romântica incurável e leio mais
livros de romances do que seria considerado saudável. — Ela
riu. — Mas você não precisa se preocupar com isso hoje,
Vincent, estamos recriando a história da Cinderela, afinal de
contas.
Os lábios dela pressionaram o pescoço dele com
delicadeza e um arrepio percorreu o corpo do piloto.
— Mas a versão LGBTQI+ da história.
— O que seria muito melhor. E me levaria ao assunto,
quais princesas da Disney seriam LGBTQI+ com toda certeza?
— Além da Anna de Frozen? Hum… A Bela me parece
que seria bissexual, a Merida lésbica e talvez a Branca de Neve
se assumisse como pan.
— A Branca de Neve é a princesa mais hetero de todas
elas, mas eu concordaria que a Ariel é pan. — Amélia deitou a
cabeça no peito de Vincent. — Você tem opiniões bem
formadas sobre isso.
— Eu e minha prima temos opiniões sólidas sobre isso,
acho que ficamos a tarde inteira discutindo uma vez.
Como os primeiros netos de Teodora Torrisi assumidos,
Emma e Vincent passaram boa parte da adolescência se
perguntando quem mais era secretamente como eles. Os
ícones da cultura pop eram o principal alvo da discussão nas
infinitas conversas dos dois.
Vincent sorriu, lembrando de prima e as palavras de
Amélia pesaram mais em seu coração. Fazia muito tempo que
ele não via a prima, ou não tirava um tempo para ir à Mancia,
apenas ficar com a família. Uma que sempre o apoiou, em
todos os momentos e o amou sem pedir nada em troca.
— Você ficou pensativo, tá tudo bem? — Amélia tocou
sua testa delicadamente.
— Sim, só lembrei da minha família. Preciso tirar um
tempo para fazer uma visita.
Ela assentiu, sorrindo. O celular do piloto tocou e
Vincent desligou a chamada, mal vendo quem tinha ligado.
— Já está tarde, não acha? — Amélia sussurrou. — A
meia noite passou há muito tempo.
— Você nos comparou a um filme sobre o amanhecer,
então eu considero justo esperarmos pelo nascer do sol.
Vincent a apertou contra si. Ele não queria que aquele
momento acabasse, não agora.
— Não podemos ficar aqui para sempre, Vincent.
— Então vamos para minha casa. — O pedido pareceu a
surpreender. — Não estou te chamando para transar, mas
poderíamos continuar a conversar em um lugar mais
confortável. Se você quiser, claro.
Amélia fechou os olhos por alguns segundos e ele podia
ver as engrenagens girando na cabeça dela.
— Você sabe que eu estava falando desse sonho bonito,
não sabe? Estamos perto de acordar, mas ainda quero
continuar dormindo mais um pouco, enquanto eu puder. Tudo
bem, vamos.
Ela o beijou, os dedos puxando os cabelos dele e
Vincent sentia a decisão dela no toque, de aproveitar aquela
pequena janela de tempo enquanto pudesse, e retribuiu o
mesmo desejo. Com a língua, explorou a boca de Amélia, os
suspiros dela morrendo nos lábios do piloto, pequenas
supernovas explodindo na cabeça dele.
Segurando a mão dela, quase correndo pelas ruas de
Londres, Vincent sentiu a liberdade da incerteza das garantias,
a falta de promessas para o raiar do sol, o medo de ser de
perder uma coisa que ele nem tinha. Ouvindo a risada de
Amélia na noite, o piloto encarou aquele castelo de areia e
tentou não pensar no momento em que ele seria destruído.
28.
Setembro
As tardes de domingos para Vincent eram de corridas,
para Amélia Palhares, eram de missas.
Ela nunca foi uma pessoa religiosa, mas depois que a
mãe morreu, encontrou um pouco de conforto em igrejas.
Além da arquitetura interessante de algumas, o lugar lhe dava
uma sensação de paz curiosa, o que era engraçado,
considerando que o texto base dos templos dizia que ela
queimaria no inferno pela orientação sexual.
Era impossível fugir da religião da Itália, a veia do
catolicismo estava presente nas artes e na história em todos os
lugares. E isso servia até para os Torrisi, que além de terem
diversas capelas para Santa Cecília, padroeira dos músicos e
artistas, iam à igreja quase todos os domingos.
Amélia jamais pensou que um dia se juntaria a uma de
suas referências no mundo acadêmico, Anna Di Castelli, e sua
chefe, Teodora Torrisi, para assistir uma celebração, mas lá
estava ela. Desde o encontro na cafeteria, as duas mulheres
convidaram a brasileira para a programação dominical e ela
nem sequer pensou em recusar.
A igreja de Mancia estava lotada e o calor do final de
tarde era sufocante, mas Amélia não conseguia parar de sorrir.
Vincent segurava sua mão, o polegar traçando círculos no
dorso, os lábios pressionados em uma linha para disfarçar um
sorriso. Por mais que ela tentasse se concentrar no que o
padre dizia, o toque do piloto e o rosto maroto eram
obstáculos.
Ela ia mesmo arder no fogo do inferno.
Depois que tudo acabou, os Torrisi e ela caminharam na
larga praça em frente a igreja.
— Algum plano para esse fim de semana? — Anna
perguntou, o cabelo loiro recém-cortado na altura do pescoço.
— Vamos viajar para o Brasil. — Vincent respondeu, de
braços dados com a avó. — A próxima corrida é em São Paulo
e eu quero conhecer a irmã de Amélia.
— Ela ficou noiva essa semana e vamos fazer uma festa.
Além do aniversário de Stefano.
— Não acredito que meu neto quer passar o aniversário
longe de mim. — Teodora balançou a cabeça. — Ele está
andando demais com você, Vincent.
— Eu nunca disse que sou boa influência, nonna.
— Amélia, querida, por favor não pegue os maus
hábitos de Vincent.
— Ah, ela é pior do que eu.
Vincent riu quando Amélia revirou os olhos.
A empolgação da brasileira para voltar à sua terra natal
tinha crescido a cada dia.
Depois de Monza, Vincent estava oficialmente de férias
por um mês, antes da próxima corrida. O piloto propôs a
viagem, para aproveitar o recesso de Emma, Sancia, Angela e
Stefano, nos últimos 15 dias do mês de Setembro. E como a
próxima corrida seria no Brasil, nada mais justo do que unir o
útil ao agradável.
Amélia estava tão agitada, que não conseguiu dormir e
passou a noite reorganizando as malas em seu apartamento.
Seus pés não paravam de se mover, descarregando a
adrenalina em batidas rítmicas do sapato contra o chão.
— Mia bella, quantas xícaras de café você tomou? —
Vincent perguntou, os óculos de sol pendurados na ponta do
nariz.
— Só uma. — O piloto estreitou os olhos. — Tudo bem,
duas, mas eu só estou animada.
— Parece que você bebeu um carregamento inteiro de
energético.
— Não me culpe, eu estou indo viajar para o meu país
natal depois de anos. Nem acredito que essa viagem está
mesmo dando certo, eu meio que esperava que uma coisa
bombásticas acontecesse e a gente tivesse que cancelar.
Alguma chance do avião cair?
Vincent sorriu e beijou a testa dela.
— Seu pessimismo é adorável.
— O universo está conspirando demais a nosso favor,
acho estranho.
— É que nossos tempos de glória finalmente chegaram,
amor.
Amélia piscou e depois riu.
— Você não acabou de citar Jão!
— Eu realmente escuto nossa playlist, Palhares e gosto
das músicas.
Como ela amava aquele cara.
No final, o avião não caiu, e depois de uma conexão em
São Paulo, eles pousaram em Recife no final da tarde de
segunda.
Quando ela saiu para a cidade, as pernas um pouco
dormentes, lágrimas se acumularam em seus olhos. O céu,
pintado em um laranja forte, cheirava a casa. Os prédios
desorganizados, o sotaque melódico, as placas em português e
os sons que ecoavam por toda parte, eram a melhor coisa que
ela já tinha ouvido.
Eles tinham alugado um carro, não um esportivo como
Vincent queria, que já os esperava no estacionamento. O
funcionário, em choque, pediu uma foto para o piloto, que
gentilmente o atendeu.
— Meu país, minhas regras. — Amélia balançou as
chaves na frente de Vincent. — Eu dirijo.
— Então o som é meu.
Vincent disse, puxando-a para um beijo breve.
Cerca de 3 horas depois, e roucos de tanto cantar,
chegaram na faixa litorânea de Coral ao som de Starboy, do
The Weeknd. O acesso à Praia da Andorinha era restrito e
seguro, distante da cidade, e eles podiam relaxar sem medo de
serem incomodados.
— Vincent, meu lar. Meu lar, Vincent!
Amélia gritou, assim que desceu do carro, o vento
bagunçando seus cabelos, a boca com gosto de sal e a pele
cheirando a maresia, a lua prateada refletindo no mar agitado.
— É lindo, Palhares.
Ela travou o carro e pegou na mão dele, puxando-o em
direção à faixa de areia. Tiraram os calçados, as pedras
arranhando a pele de Amélia, e eles correram em direção à
água gelada.
— Eu cresci aqui. Os pais da minha mãe eram
pescadores e ela herdou a cabana, e nós transformamos em
casa da praia assim que conseguimos. — Ela apontou para a
construção iluminada por luzes amarelas, há alguns metros de
distância. — Vínhamos todo fim de semana, depois que ela
morreu, e realizamos o desejo dela antes que eu fosse à Itália.
Espalhamos as cinzas dela bem aqui. Ela queria se juntar ao
mar e eu gosto de pensar que agora, todo esse oceano
também é ela. Então, essa é a minha mãe.
Vincent a abraçou pela cintura, uma expressão solene
no rosto, os olhos ainda dourados, mesmo na escuridão. Ela
passou as pontas dos dedos na face dele, sorrindo, tão feliz e
leve, que poderia ser levada pelas ondas.
— Obrigado por me deixar vir aqui, Amélia. Eu amo
você.
— Eu amo você, campeão. — Vincent riu e ela o beijou,
ficando na ponta dos pés, quase se desequilibrando. A água
gelada contrastou com o calor que se espalhou no corpo dela,
começando pelos lábios, e sua pele se arrepiou inteira.
Os dois só se separaram quando o nome de Amélia foi
chamado, em um grito, da casa de praia.
— É agora que você me diz que para eu ter cuidado
com sua irmã, porque ela pode me ameaçar?
Ela riu.
— Ah, não, Sofia não fica só nas ameaças. — Amélia
sorriu diabolicamente. — Quando se trata do meu coração,
minha irmã cumpre tudo o que promete. E ela sabe que eu
também sou a porra de uma maluca em relação a ela.
— As irmãs Palhares são ferozes.
Vincent sorriu e Amélia retirou os cabelos castanhos que
caiam no rosto do piloto.
— Protegemos uma outra.
A casa de praia saiu de uma simples cabana de madeira,
da infância de Amélia, para uma propriedade de andar, com
uma piscina e churrasqueira nos fundos. Nada tão chique
quanto a mansão Torrisi, mas acolhedora da mesma forma.
As paredes eram pintadas de branco, o alpendre na
parte da frente tinha redes coloridas armadas, além de espaço
para cadeiras de palha. Lá dentro, a cozinha e a sala em
conceito aberto foram abastecidas com móveis modernos e de
cores claras, as janelas abertas deixando o ar frio da praia
ventilar os cômodos. No andar de cima, sacadas com proteção
de vidro se projetavam dos quatro quartos que constituíam o
piso, cortinas azuis balançando com suavidade.
E, correndo em direção à Amélia, uma garota gorda, de
cachos vermelhos vibrantes e pele queimada de sol, vinha em
toda velocidade. Mesmo a distância, a semelhança entre elas
era visível: os mesmos formatos de olhos e boca, o maxilar
marcado, o sorriso largo e gentil.
Deixando Vincent para trás, a estudante foi ao encontro
dela e a recebeu em um abraço forte.
— Amora! Você tá mesmo aqui!
— Oi, Sofia.
Amélia murmurou, o abraço caloroso da irmã
preenchendo os buracos de saudade abertos em seu coração.
Ela não impediu as lágrimas de rolarem pelas bochechas, entre
risadas de incredulidade, porque não conseguia acreditar que
estava ali, o cheiro de morango de Sofia em seu nariz, a voz
aguda dela em seus ouvidos.
— Você tá linda, Amélia, seu cabelo cresceu tanto!
— E você também, amora. Deus, eu senti tanto a sua
falta!
Amélia beijou a testa de Sofia, sem conseguir parar de
chorar, felicidade extravasando.
— E eu a sua! Caralho, Amélia, você veio mesmo, eu
mal consigo acreditar.
— Não ia deixar de comemorar seu noivado. — Amélia
segurou a mão de Sofia e encarou a aliança rosé no dedo dela.
— Noiva, Sofia!
— Sim! Eu não vou morrer sozinha, dá para acreditar?
— Bom, eu acredito. — Amélia ergueu os olhos para
Maria Cássia, os braços cruzados e um sorriso largo no rosto.
— Não tinha como negar um pedido bonito daqueles, eu diria
sim mesmo se tivesse acabado de te conhecer.
— Mentira, se você tivesse acabado de me conhecer, iria
dizer que era tudo brega e ridículo, mas por dentro ficaria
morrendo de vontade de receber uma declaração dessas.
Maria Cássia revirou os olhos.
— Amor, quer mesmo falar de declaração aqui?
Esqueceu como eu te pedi em namoro?
— Sua primeira vez sendo uma garota romântica e
brega? Não tem como esquecer.
Elas trocaram um sorriso, apaixonadas, e Amélia desviou
os olhos, sentindo que presenciava um momento privativo.
No passado ela teve medo que Sofia, perdida nas
aspirações de viver um grande romance, não se entregasse à
vida de verdade. Desejava que a irmã se apaixonasse
perdidamente, mas por alguém que compreendesse seu
coração enorme e cheio de brilho. E Maria Cássia não só fazia
isso, como amava Sofia de forma intensa e especial.
Amélia se perguntou o que a mãe acharia das duas
vivendo o amor da forma que Dora tanto quis.
— Esse é o tal piloto? — Maria Cássia apontou para
Vincent, que estava sem jeito alguns passos atrás.
— Ele mesmo. — Amélia o chamou. — Vincent, essa é
Maria Cássia, noiva de Sofia e essa é Sofia, minha irmã.
— Um prazer conhecer você. — Ele lançou um sorriso
charmoso, mas arrumou o cabelo em um gesto nervoso —
Desculpe por não entender português.
— Para a sua sorte, gringo, somos boazinhas. — Sofia
apertou a mão dele com entusiasmo — E qualquer um que fez
aquela surpresa para a minha irmã e veio até falar comigo,
merece ser tratado bem na nossa casa.
— Que bom, porque eu ouvi boatos sobre ameaças.
— Não se deixe enganar, Vincent, nós ainda vamos ter
uma conversa sobre o que vai acontecer se você quebrar o
coração de Amélia.
O piloto engoliu em seco e Amélia riu.
Depois de colocarem as malas em um quarto, eles
jantaram misto quente e suco de laranja, exaustos demais para
pensar em uma refeição melhor. Vincent acabou dormindo
assim que saiu do banho e se deitou, o cabelo ainda molhado.
Amélia o observou por alguns minutos, pensando em como era
surreal que o cara que ela conheceu três anos atrás estivesse
bem ali.
Maria Cássia declarou que arrumaria a cozinha e Sofia
arrastou Amélia para o lado de fora. As duas dividiram o
assento na rede vermelha e branca, a noite gelada se
estendendo pelo horizonte.
— Como está o seu mestrado?
— Terminei essa semana, o orientador está revisando
tudo. Angela também terminou o dela e se tudo der certo,
seremos mestres.
Amélia e Angela secaram uma garrafa inteira de vinho
tinto, com muitas lágrimas, quando finalizaram a dissertação
no apartamento da italiana. Elas se abraçaram, relembraram o
caminho difícil e rir de quando acharam que não conseguiriam
terminar tudo.
— Estou orgulhosa de você, amora.
Sofia a beijou na bochecha com carinho.
— Parece que nada mudou. — Amélia estudou a
paisagem. — O caminho todo até aqui, desde Recife, vi poucas
coisas fora do lugar.
— O que você esperava que mudasse em Coral? No
máximo, temos algumas novas lojas e finalmente cafeteria
decentes.
Amélia riu baixinho, passando um braço em torno de
Sofia e deixando que a irmã mais nova se aconchegasse nela.
A estudante deu um impulso suave com o pé e elas
começaram a balançar suavemente.
— Não sei. Mostrei à Vincent onde eu estudei, alguns
pontos da cidade que a gente brincava quando era criança.
— O parquinho que a mamãe ia?
— Isso! Contei até quando eu quebrei meu dente no
escorregador.
— Você deve amar mesmo esse cara para contar a sua
maior vergonha de infância.
— Eu o amo mesmo. — Amélia sorriu e brincou com os
cachos de Sofia por um instante. — Posso te contar uma coisa?
Sofia a encarou, os olhos castanhos como os de Amélia,
sérios.
— Claro!
— Eu sempre me perguntava se merecia todo o seu
amor, minha amora. Constantemente, minha cabeça cai nesse
lugar de culpa e dor, e eu começo a duvidar se estava tudo
bem aceitar afeição e carinho, mesmo sem dar nada em troca,
sem sacrifícios.
— Mas o amor não se merece, Amélia. — Sofia sorriu. —
Não é uma relação em troca. Você ainda se sente assim?
— Não, os anos de terapia foram muito úteis. Mas
também teve você, Sofia. Depois da mamãe, você foi a pessoa
que me mostrou o que é ser amada de verdade, até mesmo os
meus piores defeitos.
— Ah, irmã. — Sofia a apertou. — Eu odeio saber que
você pensou nisso e, ao mesmo tempo, feliz que deixou para
trás. Por que não me disse antes?
— Não era seu fardo para lidar. E além disso, você
estava tentando ser escritora e estava tão cansada, o tempo
todo. Eu não quis atrapalhar e não me olhe com essa cara.
— Você usa demais as palavras atrapalhar e incomodar.
Amélia estalou a língua.
— Eu sei, eu sei. Mas a questão aqui é, você é minha
maior inspiração, amora.
— Eu?
Sofia arqueou uma sobrancelha.
— Além de me amar sem reserva alguma, ver você,
minha escritora preferida, seguir seu sonho tão corajosamente,
me fez perceber que eu precisava fazer alguma coisa por mim.
Por isso aceitei aquele mestrado.
Os olhos de Sofia brilharam e Amélia beijou a testa da
irmã.
— Estamos na noite das declarações de amor entre
irmãs, é isso?
Elas riram.
— Sim, sua besta. Eu senti falta de falar isso para você
pessoalmente.
— Também é bom ter você, aqui, amora e eu te amo. E
fico feliz que esteja tão leve e sorrindo, Amélia, porque você
merece isso.
Amélia sorriu.
— Ela estaria feliz, sabia disso? As duas filhas bem-
sucedidas na casa de praia que ela mais amava.
Mamãe adoraria conhecer o Vincent, ela viraria uma
maria gasolina na hora. E ela e Maria Cássia seriam melhores
amigas, trocando receitas e fazendo bolinhos de chuva juntas.
— E ela com certeza colocaria os dois para fazer
artesanato com ela!
— Eu pagaria milhões para ver nossos queridos amores
fazendo bordado. Lembra quando eu fiz aquela flor de ponto-
cruz, tenebrosa? E ela ainda mostrou no grupo das amigas
dela? Aquela foi minha vergonha de infância.
— Não ficou tão feio. E mamãe, amou ela, até colocou
em um pano de prato depois.
— Amélia, nem parecia uma flor! Você só diz isso
porque é igualzinha a ela. E o pano ainda pegou fogo depois,
acho que o universo não queria aquele crime contra os
bordados existindo.
Elas riram mais uma vez, embaladas pelas lembranças e
amor de Dora Palhares, que depois de uma vida inteira
correndo, teve como refúgio o mar infinito, sendo levada pelas
marés para onde ela sempre quis estar. E deixou para trás duas
meninas, que ainda sentiam falta dela mais do que tudo, mas
que guardavam o que ela tinha de sobra: amor.
Abraçada à Sofia, Amélia sorri. Teve certeza que ouviu
os sussurros da mãe em meio ao som das ondas que se
quebravam contra a areia da praia. Uma oração bonita sobre
orgulho, felicidade e paz.
***
Vincent estava em um jogo perigoso e perdendo.
Ele encarou suas cartas, amarelas e azuis e tentou não
xingar quando Sofia colocou uma roda de cores em cima do
baralho e disse, com um sorriso triunfante:
— Vermelho.
— Passo — Maria Cássia suspirou, segurando doze
cartas em mãos.
— Passo também.
Ele disse, a contragosto. A próxima a jogar, Amélia,
gritou:
— Uno!
— Ai, amora, tão bonitinho você achar que vai ganhar
mesmo. — Sofia, com três cartas em mãos revelou seu
segredo. Quatro “+2” jogados de uma só vez — Ganhei, porra!
— Ah, de novo não, Sofia! Não é justo.
— Não é justo que eu seja boa? Você só não sabe
perder, Amélia.
— Eu vou ver esse baralho do começo, não é possível.
Vincent riu quando Amélia começou a inspecionar o
monte de descarte, brigando com a irmã e contando as
jogadas. Ele alcançou sua cerveja gelada e bebeu um longo
gole, molhando a garganta seca.
— Elas são terríveis juntas. — Maria Cássia disse,
pegando sua própria bebida — Você tinha que ver o dia em
que jogamos Monopoly. Amélia quase foi à falência, mas não
admitia derrota de jeito nenhum.
— Ela fica do mesmo jeito quando jogamos pôquer com
meus primos.
— Acha que é de família?
O piloto pensou um pouco.
— Possivelmente.
A vida nunca tinha sido tão boa para Vincent. 1 semana
vivendo à beira mar, com sono em dias e a barriga estufada de
comida boa, fizeram o piloto esquecer das responsabilidades
da vida. E com o oceano a disposição, os 4 passavam o dia de
roupa de banho, ocasionalmente correndo para um mergulho.
A pele do piloto já estava vermelha do sol impiedoso,
mesmo se entupindo de protetor solar, mas Vincent adorava a
sensação de poder apenas caminhar até a praia em qualquer
hora.
Ele se sentia no paraíso.
— Cássia, pode deixar o jantar comigo hoje. — Vincent
disse à garota magra, de pele marrom escura, ao seu lado.
— Normalmente eu não confio minha cozinha a
qualquer um, mas você é até legal, então vou ceder dessa vez.
Seus amigos chegam à que horas?
— No fim da tarde. — Ele se levantou, esticando a
coluna. — Vou pegar mais cerveja, você quer?
— Só se tiver trincando, por favor.
— Não pode ser diferente, pelo que eu aprendi.
Maria Cássia sorriu.
No começo, Vincent achou que seria difícil entrar no
meio da família de Amélia. Ele estava nervoso, até porque os
Torrisi adoravam a estudante e ele queria que a irmã dela
também gostasse dele. Sofia parecia ainda um pouco
desconfiada, mas o piloto encontrou apoio na noiva da ruiva,
Maria Cássia.
No primeiro dia no Brasil ele acordou cedo, deixando
uma Amélia adormecida na cama e desceu para correr na
praia, achando que estaria sozinho. Mas na cozinha, Maria
Cássia estava comendo algumas frutas e separando
ingredientes para o café da manhã.
Foi quando Vincent se lembrou que ela era estudante de
gastronomia e engatou em uma conversa sobre culinária.
Depois que ele voltou dos exercícios, Maria Cássia e o piloto
fizeram uma refeição metade italiana, metade brasileira,
totalmente vegetariana.
— Meu sonho é abrir um restaurante vegetariano. — Ela
explicou. — Acho que as pessoas ainda não conhecem o
potencial da comida, mas sei que o acesso a uma refeição mais
saudável é difícil. Minha ideia é criar um ambiente mais em
conta, para todo mundo, com pratos gostosos e diferentes.
Vincent a achou, além de genial, incrível.
Ele tirou as cervejas do cooler, reservado especialmente
para as bebidas, quando ouviu um ronco de motor alto do lado
de fora e um xingamento em italiano. Pela janela da cozinha,
viu mechas de cabelo loiro, cachos lavandas e uma mulher
parada, com as mãos na cintura, a cabeça coberta por um
lenço laranja.
O piloto sorriu e saiu para receber sua família.
— Por que esse lugar é tão quente? — Emma reclamou,
os óculos grandes, Prada, cobrindo o rosto. — Pelo menos tem
praia.
— Incrível como você sempre está reclamando de
alguma coisa.
— Ai, Vincent, cala a boca. — Ela sorriu e os primos se
abraçaram brevemente.
— Querem ajuda com as malas?
— Por favor! — Stefano gritou, abrindo o porta-malas.
— Sancia e Emma trouxeram dois guarda-roupas inteiros.
— E você trouxe o dobro disso, Stefano, não sei do que
você está me acusando aqui. — A modelo retrucou, as pontas
do lenço balançando com o vento.
— Sou o aniversariante, tenho que ficar estiloso. Toni,
amor, pode pegar essas sacolas para mim?
— Todos vocês deviam aprender comigo, só trouxe uma
mala. — Angela passou um braço ao redor da namorada.
— Como se você não estivesse planejando voltar com
uma mala lotada de roupas novas. — Emma acusou.
— Qual a graça de viajar se você não vai trazer
lembrancinhas?
— Ai, meu Deus, vocês chegaram! — Amélia gritou,
correndo na direção deles. — Ainda bem que deu certo, porque
temos cerveja demais para 4 pessoas e nosso plano é acabar
com todas elas antes do fim de semana.
— Ames, não precisa se preocupar com isso. — Sancia a
abraçou, os olhos estreitos devido ao sol forte. — O seu plano
combina com o nosso de ficar bêbado e fora da realidade por
dias.
— Deus, como eu amo as férias! — Emma gritou e o
grupo gargalhou.
A pequena casa de praia se encheu de música alta,
risadas, gritinhos e chiado da churrasqueira. O grupo se
integrou como velhos conhecidos e até mesmo Toni, o mais
tímido, estava rindo com Maria Cássia sobre um meme da
internet. O sol forte e sem trégua da Praia da Andorinha foi
motivo o suficiente para que todos eles tirassem as roupas
pesadas e, depois do almoço, corressem para o mar.
Vincent observou Amélia sair dos seus shorts jeans, os
cabelos ondulados presos em um coque bagunçado. Ela usava
um biquíni azul escuro, contrastando com a pele branca,
deixando o corpo bonito à mostra. A boca de Vincent secou
quando ela se inclinou para espalhar protetor solar nas pernas
grossas, os dedos percorrendo a linha da amarração da peça.
Ela ergueu os olhos na direção dele e sorriu, as
bochechas e a ponta do nariz avermelhadas e Vincent lembrou-
se daquela manhã, quando a acordou para tomar café e
acabou com o rosto enterrado entre as pernas dela e o gosto
de Amélia na sua língua. Ele nunca se cansava de admirá-la,
fosse com os olhos, as mãos ou a boca.
— Então, garoto italiano. — Ela disse, se aproximando.
— É bom você se entupir disso aqui, se não quiser acabar
pegando uma insolação.
— Só se você passar em mim, mia bella.
Vincent sorriu e Amélia revirou os olhos.
— Eu notei a conotação erótica no seu tom de voz.
— Eu já disse como eu amo quando você diz palavras
inteligentes?
Ela riu e espalhou o produto no peito dele, cobrindo o
máximo de pele que conseguia.
O mar estava gelado e as ondas tranquilas. O sol refletia
na água, criando pequenos brilhos cintilantes. O céu azul
parecia infinito sobre eles e Vincent aproveitou a brisa em seus
cabelos, os dedos afundados na areia molhada, o cheiro de sal,
praia e descanso em seu nariz.
— Posso morar aqui? — Angela perguntou à Sofia. —
Esse lugar parece um paraíso.
— Nossa casa está sempre aberta para novos
moradores, é por isso que temos quartos extras.
— Mas esqueceram de construir um quarto para a
solteira, então eu fico com a sala de estar.
— Emma, sempre tem espaço para você na nossa cama.
— Sancia provocou, com um sorriso convidativo.
— Eu passo dessa vez, Sancia. Preciso finalizar os
trabalhos da faculdade, já que estou fora. Engenharia
automotiva é muito mais difícil do que eu tinha imaginado.
— Para sua sorte, você tem um primo para conseguir
uma vaga em uma empresa. — Stefano disse, as mãos em
volta dos ombros de Toni, os cabelos crespos molhados.
— A Redemptio aceita estagiários. — Vincent entrou
ainda mais na água, que batia acima da sua cintura. — E
Arthur gosta de sempre manter as coisas em família, porque
não fala com ele?
Emma deu um breve mergulho antes de responder.
— Vou pensar nisso.
Vincent detectou uma sombra amarga na prima, mas
não insistiu no assunto na frente de todo mundo.
— Okay, eu preciso nadar para o fundo. — Toni
declarou, dando um beijo na bochecha de Stefano. — Não tem
perigo mesmo?
— Não, pode ir. — Maria Cássia respondeu. — Nada de
correnteza forte e nem tubarões. Mas eu recomendo que você
dê uma olhada, vai que está com sorte e acha um?
— Maria Cássia! — Sofia ralhou. — Não tem tubarões,
Toni, pode ir.
Maria Cássia riu, abraçando Sofia pela cintura.
Vincent procurou por Amélia e franziu a testa ao
encontrá-la um pouco distante do grupo, a cabeça jogada para
trás, os olhos fechados e o rosto tomado pelo sol. O piloto se
aproximou e beijou o ombro dela, ganhando uma risada.
— Estou só aproveitando um pouco. — Amélia disse, o
abraçando pelo pescoço. — Eu sentia falta desse lugar demais,
o que você achou?
— Eu adorei. Sempre gostei de praia, mas Mancia é fria
e longe do mar.
— Quem precisa de mar com uma piscina grande como
a sua?
Vincent riu e apertou a cintura dela.
— Eu já te disse o quão bonita você fica nesse biquíni?
— Não, mas pela sua cara, eu tenho a impressão de que
você adoraria tirá-lo de mim.
Amélia beijou o canto da boca dele, em uma carícia
lenta.
— Quem está usando aquele tom erótico agora,
Palhares? — Vincent traçou a linha da coluna dela, só porque
sabia que Amélia se derretia com o toque. — E você está
gostosa e linda nesse biquíni. Você sempre está maravilhosa,
Amélia.
O sorriso dela fez o piloto perder o eixo.
— Deus, como eu amo você.
A tarde inteira foi regada de banho de mar, petiscos
feitos por Maria Cássia, e uma preguiça propiciada pelas
pequenas férias. Quando o sol se foi e os mosquitos surgiram,
eles entraram, ao som das cigarras e grilos, exaustos, mas
ainda dispostos a aproveitar.
Vincent se sentia meio tonto pela cerveja, mas depois
de ligar para a mãe, providenciou o jantar com a ajuda de
Amélia. Embora a brasileira não soubesse cozinhar muito bem,
prepararam tacos e guacamole.
— Queria que todos os nossos dias fossem assim. —
Amélia lamentou, arrumando a mesa do jantar.
— Ainda temos uma semana para aproveitar, mia bella.
— Eu sei, eu já estou triste porque tudo vai acabar.
— Não se preocupe, Palhares, essa não vai ser a última
vez que nossa família vem para cá. E aproveite o momento.
— Nossa família. — Ela disse, como se testasse a
sonoridade das palavras. — Não é a expressão mais incrível
que você já ouviu?
Ele não podia concordar mais.
Por mais que Vincent dissesse a Amélia para aproveitar
o momento, a ideia de voltar a vida normal parecia triste
demais para o piloto. Foram os dias mais calmos que o italiano
teve em muito tempo.
Acordava com Amélia, quase sempre nua, em seus
braços, o cheiro dela espalhado pelos lençóis. Tinha longas
caminhadas com Stefano na beira da praia, avistando as casas
vazias na baixa temporada e as andorinhas que davam nome
ao lugar. Cozinhava com Maria Cássia e Toni, elaborando
refeições criativas e divertidas. Ria, até sua barriga doer e seus
olhos lacrimejarem, das brincadeiras inventadas por Emma,
Sofia e Sancia.
Até mesmo limpar a casa não se tornava uma coisa
cansativa, ouvindo as músicas na playlist colaborativa do grupo
e rindo das discussões deles.
Ele não tinha reparado no quanto precisava daquele
momento, até o dia do aniversário de Stefano, no sábado. A
praia estava relativamente cheia, devido ao fim de semana, e o
grupo se dividiu para organizar a festa do melhor amigo de
Vincent, que coordenava o planejamento à risca. Vincent ficou
responsável por pegar a comida encomendada, em Coral, junto
de Amélia.
Ele esperava a brasileira terminar o pagamento,
encostado no carro, quando um rosto o fez franzir a testa.
— Benedict?
O homem se virou para ele, parecendo tão surpreso
quanto o piloto. As sobrancelhas grossas se arquearam e
Benedict afastou um cacho preto de cabelo da testa, antes de
sorrir.
— Oi, Vincent. Não esperava te encontrar por aqui.
— Eu que não esperava te ver. Não sabia que tinha
negócios no Brasil.
— Minha agência está gravando um comercial em
Pernambuco e eu aproveitei para visitar a cidade.
Ele se aproximou.
— Entendi.
— Aquela é a sua namorada? — Benedict apontou para
Amélia.
— Sim, é ela.
— Achei que os rumores no começo eram só fofoca,
confesso. E fiquei até esperando uma ligação sua.
— Foi mal, cara. — Vincent disse, sem graça. — Não
queria criar esperanças com você nem nada, mas só para
esclarecer, eu não estava com ela quando ficamos.
— Acredito em você. E sabe de uma coisa? Você parece
bem mais leve.
— A água daqui faz maravilhas.
O modelo riu.
— Não, não. Até seu sorriso é mais genuíno, diferente
de quando te conheci. Sempre coloca muita coisa na cabeça,
Vincent, empilhando pesos o tempo todo. É bom te ver sem
isso.
Mesmo depois de se despedir de Benedict e voltar para
a casa de praia, Vincent não tirou as palavras dele da cabeça.
— Consigo ouvir seus pensamentos zunindo daqui, meu
bem. — Amélia brincou. — Tá tudo bem?
— Tá é só… Eu não tinha reparado em como eu estava
cansado esses dias. Acho que a praia tem me tirado muita
coisa da cabeça e isso é bom, não é?
— Claro que sim! Acho que todo mundo precisava de
um descanso, foi um ano e tanto.
Amélia passou a marcha com suavidade e acelerou, o
vento bagunçando seus cabelos.
— Você seria ótima em um autódromo, amor, sabia
disso?
— Repete, por favor?
— Você seria ótima em um autódromo, amor? —
Vincent franziu a testa e ela riu.
— Eu amo quando você me chama de amor, Di Castelli.
Vincent revirou os olhos e Amélia estendeu a mão para
apertar o joelho dele, sem desviar os olhos da estrada. O piloto
capturou os dedos dela e depositou um beijo carinhoso no
dorso.
— O que posso fazer, sou um homem apaixonado.
— Para a minha sorte.
A parte da frente da casa foi transformada com a
decoração. Tudo se parecia com um luau, com direito a
fogueira, marshmallows e drinks personalizados, as receitas
vinda diretas do bar que Vincent foi em Silverstone.
— Bi festinha, eu adorei! — Amélia riu, bebendo a
mistura rosa, azul e roxa.
Lanternas decoravam a pequena tenda armada na areia
e Stefano, sentado ao lado de Toni, distribuía colares de flores
falsas, bóas e outros acessórios comprados de última hora. Ele
sorria, usando uma bermuda clara, com uma camisa
estampada azul escura, com detalhes em lantejoulas e
brilhantes.
Vincent abraçou o melhor amigo com força.
— Feliz aniversário, Braccia, desculpe enlouquecer você
de vez em quando.
Stefano sorriu e devolveu o aperto.
— Só às vezes? Obrigada, Vincent, por… Você sabe, não
preciso nem dizer.
— Aceito sua gratidão, mas porra, você salvou minha
vida. Eu só fiz o mínimo.
— Você não contou como se conheceram. — Sofia
interrompeu, arrumando a alça do biquíni rosa brilhante.
O piloto e seu melhor amigo trocaram um olhar
carregado de lembranças.
Vincent conhecia Stefano por uma vida inteira.
Na escola, em Mancia, Vincent era só um garoto
revoltado, sem amigos e que preferia se esconder atrás da cara
fechada. Passava as aulas sonhando em pilotar carros velozes
em autódromos, ouvindo My Chemical Romance, Verdena,
Subsonica, Paramore e Fleetwood Mac. Escapava sempre que
tinha chance, para assistir De Volta para o Futuro pela
milésima vez, ou ler seus manuais de RPG que mantinha
escondido dos outros colegas.
Por ironia, foi por causa do último item que ele e
Stefano se conheceram pela primeira vez. Um dos garotos mais
velhos roubou o livro da bolsa de Vincent, mas confundiu o
dono e acusou Braccia. Como idiotas que eram, tentaram
humilhar o garoto em público, com apelidos ridículos e
bullying.
Vincent não hesitou em brigar com eles, sozinho e
furioso.
— Vão se foder! Deixem o garoto em paz, ou eu vou
deixar a marca do meu tênis na sua cara.
No final da briga, assistida pela escola inteira, Vincent,
Stefano e os outros meninos acabaram suspensos. E,
infelizmente, nenhum deles teve o rosto carimbado pelo tênis
de Di Castelli.
Vincent estava pronto para receber uma bronca enorme
da mãe, quando Stefano saiu em sua defesa na frente dela.
— Ele me defendeu, senhora Di Castelli. Ele… Ele fez o
que ninguém teve coragem de fazer.
Além de dois meses de castigo, Vincent ganhou um
amigo. Um que dizia quando ele fazia merda, mas o abraçava
em momentos difíceis. Que gostava dos mesmos filmes antigos
e de qualidade duvidosa, RPG e o apresentou aos clássicos que
viraram sua paixão. A primeira pessoa, fora da família, que
Vincent teve certeza de amar.
E uma das poucas pessoas que ele moveria mundos
inteiros para ver feliz.
— Foi basicamente isso — Vincent disse.
— E depois vocês viraram amigos?
— Ah, não — Stefano e riu — Eu o odiava para caralho.
Ele começou a sentar perto de mim eu pensava, porque esse
babaca está aqui? Mas descobri que ele era legal com o tempo
e ficou comigo depois que a minha mãe morreu.
— Fofo. — Amélia murmurou.
— Ele não admite, mas foi fofo sim. E depois os Torrisi,
o trabalho e acabei aqui, preso a ele.
— Quanto amor por mim, Stefano.
— Sempre aqui para demonstrar.
Vincent sorriu e o abraçou mais uma vez.
Eles aproveitaram tudo o que podiam naquela noite.
Depois de cantar parabéns para Stefano e partirem o bolo, o
resto das bebidas foi consumida rapidamente, o que levou ao
início de uma desajeitada sessão de karaokê. Sem ninguém por
perto, os gritos empolgados foram liberados e Vincent se viu
fazendo um dueto com Stefano, de I Want It That Way, com
direito a dancinhas.
O piloto gargalhou da apresentação desengonçada de
Amélia e Angela, massacrando Umbrella e agitando a pequena
plateia empolgada. Até mesmo Toni entrou na brincadeira,
cantando um pequeno repertório do ABBA com Sofia, Stefano e
Maria Cássia.
Quando ficou frio demais para continuar na areia, e a
ideia de nadar no mar à noite se tornou uma possibilidade
perigosa, eles entraram na casa e moveram as coisas para os
fundos. Amélia e ele ficaram para trás, se responsabilizando
pela limpeza, mas quando Vincent deu um passo na direção da
área da piscina, a estudante segurou seu braço, sorrindo.
— Vem aqui.
Ela sussurrou, na pouca luz da sala e o puxou na
direção da escadaria, as sandálias fazendo um barulho leve em
cada degrau. O sangue de Vincent correu com mais força
quando ela o encurralou no meio do caminho, as mãos
espalmadas no peito dele, os cabelos longos caindo nas costas.
Amélia estava linda, em um vestido de alças, floral, o tecido
abraçando cada curva dela.
Vincent queria tirá-lo naquele mesmo minuto.
Amélia o beijou primeiro, os lábios com gosto doce dos
drinks, a língua quente e convidativa. Não foi um beijo leve, ou
romântico. Havia um pouco de brutalidade no gesto, desejo
puro, e Vincent se agarrou ao pedido implícito dela, segurando
os cabelos da nuca da brasileira com força e aprofundando o
contato.
Ela gemeu em sua boca e Vincent soube que jamais
cansaria de ouvir aquele som.
Ele inverteu as posições, os dedos apertaram a bunda
por cima do vestido, segurando o quadril de Amélia contra o
seu, querendo que ela sentisse o quão duro ele estava, o efeito
enlouquecedor que ela tinha nele. Atrevida, a mulher deslizou
os dedos para o cós da bermuda de Vincent, arranhando a pele
dele de leve.
— Mia bella… — Vincent gemeu, quando ela pressionou
um único dedo contra ele. — Você é cruel.
— Eu disse, eu gosto da sua cara de rendido. — Amélia
mordiscou o pescoço dele, a língua substituindo os dentes e
Vincent arfou, apertando a bunda dela com mais força,
esfregando-se contra ela. — Quarto.
Ela nem precisou repetir.
Eles entraram no cômodo ainda se beijando, esbarrando
nas malas, rindo no caminho e Vincent fechou a porta com o
pé, voltando toda sua atenção para Amélia. Ele a queria tanto
que chegava a doer, o desejo pela mulher esquentando seu
corpo, fazendo sua cabeça girar.
Ele subiu o tecido do vestido de Amélia, chupou o lábio
inferior dela e pressionou a pele sob o tecido da calcinha,
percebendo o quão molhada ela estava. Um sorriso lento se
espalhou em seus lábios.
— Ansiosa assim, amor?
Amélia arfou.
— Você é um convencido. — Os dedos dela se
infiltraram na cueca dele e ela o tocou, masturbando-o
devagar. Os pensamentos de Vincent ficaram nebulosos. —
Quer mesmo falar sobre quem está ansioso, amor?
— Porra.
Amélia sorriu, como se esse fosse o objetivo dela o
tempo todo e antes que Vincent pudesse registrar o que ela
estava fazendo, ela estava de joelhos, abaixando sua roupa e
com a boca no pau dele. A visão dela, linda e o chupando, foi o
bastante para o piloto revirar os olhos, perto do seu limite,
queimação na base da coluna, pele arrepiada.
A língua dela percorreu sua pele inteira e ele apertou os
cabelos dela, sem conseguir desviar os olhos de Amélia.
Quando ela ergueu os olhos, encarando-o, os cílios batendo,
ele jogou a cabeça para trás e gemeu o nome dela, soltando
palavrões em italiano.
— Que boca suja para um campeão de Fórmula 1 —
Amélia riu, usando a mão para continuar o movimento. — Não
podemos fazer barulho, tem gente lá embaixo.
— Amélia, por favor.
— Por favor, o quê, Vincent? — Ela sussurrou, o
lambendo, e Vincent sentiu o corpo todo contrair de prazer. —
É só dizer, meu bem.
Ela repetiu o mesmo movimento e Vincent arfou, ele
estava perto, muito perto.
— Amélia… Você, mia bella, eu quero você,
— Gosto de ouvir você implorar. — Ela disse e estendeu
a mão para que Vincent a ajudasse a ficar de pé.
Vincent não esperou um segundo. Assim que Amélia
ficou de pé, ele a beijou, o seu gosto na boca dela o
enlouquecendo. Abriu o zíper do vestido sem ver e agradeceu
ao perceber que ela não usava sutiã, despindo-se logo depois.
Segundos depois, ele admirava a visão que era Amélia
Palhares nua, corada e olhando-o com desejo. Vincent queria
guardar a lembrança para sempre.
O piloto alcançou um preservativo na mala, jogou-o na
cama e segurou Amélia pela cintura e a virou de costas, com
força. Separou as pernas dela, mordeu a nuca e sussurrou:
— Fique de quatro para mim, amor.
Ele não resistiu e deu um tapa estalado na bunda dela.
Amélia soltou um gritinho, afastando os cabelos do rosto e se
inclinando na cama. Vincent sorriu, colocou o preservativo, e
com um movimento, se impulsionou para dentro dela.
Eles gemeram juntos, suor se formando em suas peles,
o cheiro de sexo e de ameixas por todo lugar.
— Devagar ou rápido, linda?
— Rápido. — Amélia arfou, espiando-o por cima do
ombro, mordendo o lábio para segurar um gemido.
— Como você desejar.
Vincent segurou os quadris de Amélia e a fodeu com
força, a sensação de deslizar para dentro dela era inebriante e
os sons que ela fazia preenchiam o ar elétrico ao redor dele.
O piloto lambeu a extensão da coluna de Amélia, vendo-
a revirar os olhos. Segurando os cabelos ondulados em uma
mão, se inclinou e alcançou a orelha dela, mordendo o lóbulo,
os movimentos lentos e a pele da mulher esquentando em
seus dedos. Vincent colou o corpo no dela e sussurrou:
— Amo você.
E então a fodeu, deslizando a mão para alcançar o
clitóris dela, circulando-o com o polegar, empurrando-se junto
com ela para a borda. Amélia jogou a cabeça para trás e
gozou, os lábios abertos em um gemido, as pernas relaxando,
as mãos segurando o cabelo dele.
Vincent mordeu o ombro dela e se deixou levar, a
tensão deixando seu corpo, prazer sendo potencializado pela
sensação de ter Amélia em seus braços.
Eles deitaram na cama bagunçada, molhados de suor,
respirações pesadas, a sonolência pós-orgasmo deixando o
corpo de Vincent mole.
— Sabe que temos que voltar para lá, né? Eles vão
encher o nosso saco.
— Me lembre porque mesmo somos amigos deles.
Amélia riu e o beijou com carinho.
— Vou ao banheiro.
Vincent observou-a sair da cama, rebolando em direção
ao banheiro, um sorriso satisfeito no rosto.
Depois de um banho rápido, eles trocaram de roupa e
se juntaram ao grupo, terminando de beber os drinks. Ficaram
de pé até o raiar do sol, quando o céu lilás, amarelo e azul de
Setembro deu as caras, uma das visões mais bonitas que
Vincent já tinha visto.
Com Amélia sentada em seu colo, rodeado de amigos e
risadas, Vincent se sentiu bem, leve e nada como o menino
impotente que sempre achou que era.
Ele se sentiu vivo.
29.
Setembro
Amélia Palhares conseguiu uma leve insolação nas
costas, quebrou os óculos e deu um mau jeito no joelho, mas
estava muito feliz.
Nada como uma segunda-feira se balançando em uma
rede, com o mar bem à sua frente, salada de frutas frescas à
disposição e uma massagem no joelho, não transformassem o
seu dia. Ela comeu um pedaço de mamão e assistiu os dedos
de Vincent trabalharem no seus músculos doloridos.
— Você tem certeza de que não quer ir ao hospital? —
Ele disse, preocupado.
— Não, eu vou ficar bem. Só preciso de analgésicos e
que você continue fazendo essa massagem, por favor e
obrigada.
Ele riu, os cabelos loiros presos para trás por um dos
lenços de Sancia.
— Como queira, amor. Mas se ainda sentir dor mais
tarde, vamos à cidade, tudo bem?
Amélia concordou e se espreguiçou, a pele um pouco
ardida e cheirando ao seu hidratante preferido.
Era incrível como apenas uma semana naquele lugar foi
o suficiente para que ela restaurasse sua energia e limpasse os
pensamentos ruins da cabeça. Não havia preocupações com
mestrados, estresses sobre a Galera Torrisi e sentimentos
complicados. E mesmo sendo pessimista consigo mesma,
Amélia aproveitou aqueles dias como nunca, a magia daquela
bolha ao lado das pessoas que amava.
Mas o encanto da viagem se desfez na terça-feira.
Depois de tomar o último banho de mar, eles fizeram as
malas e limparam a casa inteira. Emma e Toni voltaram para a
Itália, porque já tinham perdido aula demais e Amélia viu
lágrimas nos olhos de Stefano, quando deixou o namorado no
aeroporto. O mesmo choro se fez nela, ao ter que se despedir
da Praia da Andorinha e dos dias de sol e frescor.
Apesar dos apelos por uma road trip, eles optaram por
um voo comercial até São Paulo. Sofia e Maria Cássia
embarcaram com o grupo, convidadas especiais para assistir a
corrida em Interlagos.
Vincent, vermelho de sol e cheio de energia, optou por
ficar no hotel da equipe, preocupado com fotógrafos invadindo
a privacidade do apartamento de Sofia. Além disso, o piloto
tinha trabalho acumulado da semana inteira e passou os dias,
até o Domingo, ocupado.
Amélia aproveitou para ir aos seus lugares preferidos de
São Paulo, enviando fotos à Vincent de cada saída, e relatando
sua experiência recheada de saudades do Brasil.
O domingo de corrida amanheceu com sol forte, apesar
da previsão de chuva, e cheio de nuvens escuras. O dia estava
abafado e calorento, especialmente dentro do paddock lotado.
A área da Redemptio tinha diversos funcionários que Amélia
conhecia e ela dedicou um tempo especial para falar com eles,
enquanto esperava por Vincent. Até mesmo conheceu o marido
de Arthur, Henrique, e seus filhos que acompanhavam os pais.
— Já deu tempo de Henrique falar mal de mim, ou não?
— Vincent interrompeu a conversa, já de uniforme.
— Não, mas se quiser, pode se juntar à conversa. —
Henrique provocou, arrumando o boné da Redemptio sobre os
cabelos castanhos escuros.
— Estou sempre disposto a exaltar meus pontos
positivos e argumentar contra você.
— Falando difícil? Eu te conheci com a boca suja,
Vincent.
— Sou namorado de uma futura mestre em artes,
preciso estar à altura dela.
Ele brincou e Amélia riu, entrelaçando seus dedos.
— Um romântico. Vou levar as crianças para ver o
Arthur, até depois.
Quando Henrique se afastou, Vincent deu um beijo
breve em Amélia, que se derreteu com o breve contato.
— Então, campeão, vai vencer hoje?
— É sério que você me perguntou isso? Não posso
desapontar minha namorada no país dela.
— Dedicando a vitória para mim?
Vincent beijou a testa dela com carinho.
— Todas são dedicadas a você, Palhares.
Amélia sentiu suas bochechas doerem pelo sorriso
gigante que abriu, mas não pode evitar.
Ela assistiu a corrida ao lado de Arthur, sentada entre os
funcionários da Redemptio. Seu tênis batia ritmadamente
contra o chão e os olhos dela não conseguiam desviar-se da
tela, atenta a cada movimentação de Vincent.
Amélia nunca foi fã de Fórmula 1, mas era uma emoção
diferente ver alguém que você ama dirigir um carro a 300km/h
em uma pista, rodeado de outros veículos na mesma
velocidade e correndo o risco de se chocar contra alguma
coisa. Ela se preocupava, é claro, mas seu espírito competitivo
queria gritar para que Vincent ultrapassasse o piloto na frente
dele e acelerasse.
Seus dedos inquietos seguravam a garrafa de água com
força, ouvindo a movimentação de Arthur em cada volta.
— Vincent, espere a próxima curva e tente de novo.
Vincent era um piloto agressivo, mas que seguia as
estratégias da equipe. Ela ouvia Arthur xingando algumas
vezes, quando ele se arriscava demais em um movimento e
Amélia prendia o fôlego, em uma curva mais fechada. O
coração dela devia estar batendo na mesma velocidade que os
carros corriam em Interlagos.
Ela bufou quando Vincent tentou ultrapassar e não
conseguiu, assim como os outros da equipe.
Faltavam menos de 15 voltas, ele tinha acabado de
trocar os pneus, quando, com um movimento único e um
pouco agressivo, ele ultrapassou o piloto da Dalton e assumiu
a posição de segundo lugar. Amélia respirou, aliviada,
enxugando o suor da testa, os dedos tremendo de emoção.
Agora ela sabia porquê Vincent adorava aquele esporte.
Talvez nunca fosse entender o que era correr em alta
velocidade, por mais que gostasse da sensação da velocidade
em pistas normais. Mas a sensação de conseguir uma
ultrapassagem, montar uma estratégia eficiente em time, fazê-
la funcionar e vencer, era sensacional.
E Amélia gritou, empolgada, quando Vincent conseguiu
ultrapassar Satake, faltando 2 voltas e se manteve até o final.
Ela riu ao vê-lo agitar a bandeira do Brasil no ar, ainda no carro
e precisou de um tempo para se recuperar, as pernas
dormentes de tanto ficar sentada. A brasileira chegou mais
perto quando o carro parou, assistindo a comemoração.
Vincent se jogou em cima da torcida enlouquecida da
Redemptio, a bandeira do Brasil nas costas. Ele deu high five
com uma garota loira, que carregava uma bandeira com as
cores do arco-íris e a agitou no ar por alguns instantes, em
comemoração.
O piloto tirou o capacete e a viu alguns minutos depois.
Coberto de suor, com o cabelo loiro bagunçado e um sorriso
lindo, Vincent a abraçou, erguendo-a do chão e girando-a.
— Você foi incrível! Aquela ultrapassagem… Vincent, foi
foda para caralho.
Ele riu e apertou.
— Que bom saber que você torcia por mim.
— Claro, eu sempre torço pelo campeão.
Depois de assistir Vincent erguer o troféu, um jantar
com os pilotos, Amélia se despediu dele com o coração
apertado, sabendo que era hora de dizer adeus para outra
pessoa. Enquanto Vincent voava de volta para sua agenda
lotada de compromissos, Amélia chorava no ombro de Sofia,
segurando a irmã com força.
— Eu sou uma chorona, amora, mas como é difícil
deixar você,
— Na próxima vez que nos virmos, você vai ser mestre!
— Sofia disse, o sorriso luminoso no rosto. — Não vai demorar
muito, eu prometo. Maria Cássia quer muito visitar a Itália e eu
vou junto, só para te ver.
— Vou esperar com o peito cheio de saudade.
Elas se abraçaram mais uma vez.
Amélia ainda chorava quando subiu no avião, avistando
seu país natal desaparecer e se tornar um pontinho minúsculo.
Seu coração se apertou, a saudade certamente a mataria por
dentro, mas ela se pegou pensando em possíveis viagens para
o Brasil no futuro.
Na Itália, as coisas cairam na rotina de sempre. Mesmo
com o convite de Vincent, de acompanhar o restante das
corridas e finalmente livre do mestrado, Amélia preferiu
cumprir seu papel dentro da Galeria Torrisi.
Setembro e Outubro eram os meses de excursões
escolares, aplicações de estágios para faculdade e dos
principais eventos de arte mundo afora. Todos os dias ela
acordava com o e-mail lotado, ligações de vários países sobre
empréstimos de acervos e convites para prestigiar exposições.
A Galeria Torrisi tinha crescido muito em menos de dois
anos, se tornando um centro de referência nos estudos de
artistas que foram apagados da história, ou tiveram seus
créditos roubados. Além de projetos que incentivam os
iniciantes na trajetória das artes, não só na faculdade, como
entre crianças e adolescentes.
Amélia ficava maravilhada em como a arte tinha o poder
de transformar vidas e se esforçava para garantir mais
doadores, acervo e passeios interativos que chamassem a
atenção das crianças. Para sua alegria, Anna Di Castelli parecia
animada em seguir por essa mesma linha, ajudando a
estudante nas ideias que tinha e acrescentando a própria visão
sobre tudo.
A vida era realmente linda e boa, mas Amélia sentia
uma tensão estranha no ar, cortando o vento como uma faca.
Parecia que alguma coisa estava prestes a acontecer e, no
Grande Prêmio da Rússia, realmente se concretizou.
Ela assistiu a corrida na mansão Torrisi e voltou para a
casa estranhando a falta de mensagens de Vincent, que tinha
costume de falar com ela todo final de competição. O piloto
terminou em segundo lugar, acirrando ainda mais a disputa por
pontos, restando agora só 3 pilotos que podiam ganhar: o
italiano, Satake e Kob Vanich.
Amélia decidiu assistir uma série no computador e quase
dormia quando Angela invadiu seu apartamento, como um
furacão.
— Você não vê seu celular, não?
— Foi mal, eu tava quase dormindo, o que aconteceu?
Ela se levantou da cama, alarmada.
— Ames, liga a TV.
Amélia correu para a sala, ligou e aumentou o volume.
Ansel Bellini apareceu no canal de notícias, furioso, discutindo
com um segurança e sendo levado embora logo depois. O
vídeo foi cortado e o jornalista apareceu.
— De acordo com nossos repórteres, Ansel Bellini está
prestando queixa por invasão de privacidade nesse momento.
O ex-piloto, como dissemos no início, foi acusado de corrupção
dentro da Fórmula 1, de acordo com um dossiê entregue à
Federação Internacional Automobilística por um grupo de
pilotos desconhecidos. A investigação cita que Bellini foi o
responsável pelo vazamento das informações de várias
Escuderias nessa temporada de corridas, fazendo chantagem
com as organizações e chegou a praticar manipulação dentro
dos autódromos.
Amélia não conteve o choque.
— Puta que pariu. — Ela se sentou no sofá, ouvindo o
resto da reportagem. — Puta que pariu!
— Eu sei!
Angela riu.
— Como isso… Quem… Eu preciso ligar para o Vincent.
— Não vai dar, Ames. Ele é um dos responsáveis pelo
dossiê e está dando depoimento nesse momento, para a FIA.
— Angela estendeu o celular para ela, que leu a notícia. —
Parece que um grupo de pilotos se juntou para derrubar esse
homofóbico de merda. Chamaram de ‘Xeque-mate, mas o rei
sozinho’ Não é incrível?
Era mais do que isso.
Ela pensou em como Vincent estava relaxado demais,
no que ele tinha dito sobre o Bellini e o peito dela inflou com
orgulho e admiração. O garoto que vivia dizendo que era
impotente, que não sabia como lutar, tinha descoberto uma
forma. Um jeito de atingir Ansel Bellini com força, de melhorar
o esporte que tanto amava.
Amélia só conseguiu falar com Vincent no dia seguinte.
Movida apenas a café, ela atualizava as redes sociais a cada
minuto, tentando saber um pouco mais sobre o que tinha
acontecido, mas sem novas informações. Porém, no meio do
seu expediente, ele ligou.
— Porra, Vincent, como eu te amo. — Foi o que Amélia
disse ao atender. — Isso foi incrível! Você é incrível.
Ele riu.
— Obrigada, mia bella. Só pude falar agora, estou
voltando para o hotel.
— Você comeu? Dormiu?
— Sim e não. Preferimos passar a noite dando
depoimento e agilizando o processo. Não sabemos quanto
tempo tudo vai demorar, mas pelo menos nossa parte foi feita.
Agora é esperar.
— Eu nunca estive tão feliz, mesmo sabendo que o
Bellini é um desgraçado de rico e poderoso, ainda pode se
livrar disso.
— Tô do mesmo jeito, mas pelo menos algumas coisas
vão ter que mudar. A FIA não iria se manifestar se ele fosse
acusado de homofobia e racismo, mas não aceita corrupção
nem venda de informações dessa forma. Imagine quantas
Scuderias vão ficar putas quando lerem o arquivo todo? O
suficiente para a direção ficar preocupada.
— Me conte os detalhes todos depois, por favor, eu
preciso saber de tudo. O Stefano estava nisso também?
— Claro, ele quem teve a ideia de entregar o documento
em formato de dossiê. Inclusive, ele está aqui e manda beijos.
Não, Stefano, outro lugar, esse não tem comida vegetariana.
Enfim, amor, como você está?
— Como você acha que eu estou? Orgulhosa, feliz e
curiosa. O que você fez, Vincent, foi maravilhoso. Eu amo
muito você.
— Eu te amo. E não teria conseguido sem você, sem
aquele dia em Londres. Obrigada por me mostrar que existem
outras formas de fazer as coisas se tornarem melhores, Amélia
Palhares.
Amélia riu, calor crescendo dentro do seu peito.
— Ah, Vincent Di Castelli, estou sempre aqui para te
lembrar o que vale a pena.
***
Vincent se sentia a porra de um vitorioso e a temporada
nem sequer tinha acabado.
Sentado ao lado de Arthur e Satake, ele encarava os
repórteres e flashes de câmera, tentando conter a empolgação.
Uma assessora tentava controlar as perguntas dos jornalistas,
comentando o esquema da coletiva, lançando alguns olhares
meio desesperados para o restante dos pilotos e membros das
equipes, que se apertava no espaço pequeno atrás dela.
Stefano, sentado nos bancos da frente, trocou um olhar
divertido com Vincent. Ele não tinha dormido muito bem nos
últimos dias, o cabelo crespo, sem as tranças longas, estava
amassado e a camisa de seda rosa, tinha vincos que Stefano
não deixaria passar em um dia normal.
O piloto pensou em como era grato por ter conhecido
Stefano Braccia. Desde o dia em que ele o salvou de uma
surra, à todos os segredos compartilhados ao longo dos anos,
ele sempre estivera ali por Vincent. A admiração pelo seu
melhor amigo e como ele tinha arquitetado todo aquele
esquema, aqueceu seu peito.
A assessora realizou o sorteio das perguntas e a
coletiva, enfim, começou.
— Para a equipe da Redemptio, vocês assinaram o
dossiê como organizadores. Há quanto tempo vem trabalhando
em segredo?
— Um relatório como esse certamente não nasce do dia
para a noite. — Arthur respondeu. — Eu comecei a suspeitar
da situação no começo da temporada, depois que Ansel quis
uma conversa com a Redemptio e continuou atacando meus
pilotos publicamente. Um dos nossos engenheiros recebeu uma
proposta estranha e prontamente me alertou sobre a situação.
Começamos a investigar desse ponto.
O diretor executivo da Dalton respondeu a próxima
pergunta, contando mais detalhes sobre a conversa entre
equipes e o acordo que foi feito entre eles.
Vincent soube do esquema depois da corrida de Miami,
quando Chase e Arthur abriram o jogo sobre os bastidores. No
começo, o italiano ficou receoso demais, especialmente porque
teria que trabalhar ao lado de pessoas que o detestavam. Mas
depois de tudo o que Ansel fez, ele queria derrubá-lo a
qualquer custo e aceitou a proposta do francês.
Não foi nada fácil, Vincent precisou se meter em
politicagem e acordos, coisa que ele odiava, e ficar em infinitas
reuniões sobre quais seriam os próximos passos. Depois que
diversos termos de confidencialidade foram assinados, uma
legião de advogados contratados e depoimentos registrados
oficialmente, eles tinham chegado a uma pasta sólida o
suficiente para incriminar Ansel.
Foi ideia de Stefano entregar tudo à FIA, no momento
propício. Eles esperaram o ex-piloto se sentir seguro o bastante
para agir mais uma vez e conseguiram pegá-lo praticamente
em flagrante. Bastou uma rápida busca no celular de Ansel, e
as conversas, transferências bancárias e provas surgiram com
facilidade.
Vincent até mesmo riu, ao perceber que foi fácil demais.
Provavelmente Ansel não seria preso, mas só de saber que ele
não seria mais homenageado pela FIA e banido de eventos da
Fórmula 1, era muito gratificante.
O que um piloto de prestígio mais temia? Que sua fama
fosse jogada na lama. Saber que tinha feito parte daquilo tudo,
deixou Vincent em um bom humor eterno.
— Vincent, você foi atacado por Ansel inúmeras vezes e
nos últimos meses notamos uma mudança no seu
comportamento em relação às provocações ao ex-piloto. Como
você se sente hoje?
Vincent encarou a jornalista brasileira e sorriu.
— Muito bem. Não tenho palavras para descrever a
sensação que é saber que eu fiz a diferença no esporte que eu
mais amo. Todos nós aqui, trabalhamos para transformar a
Fórmula 1 em um ambiente inclusivo, seguro e progressista.
Podemos não ter transformado os grids para sempre, mas
temos certeza de que esse foi um passo importante.
Animados e felizes demais, os pilotos e as equipes
fizeram uma comemoração escondida no hotel, ainda na
Rússia. Apesar do cansaço coletivo, ninguém queria realmente
descansar.
— Certo, preciso confessar, achei que você odiasse todo
mundo. — O segundo piloto da Dalton, o brasileiro Pedro
Borges, disse — Mas percebi que não. Nem levei aquela batida
em Mônaco para o lado pessoal.
— Eu tenho que manter a minha pose de bad boy, é
parte do meu esteriótipo — Vincent entregou uma garrafa de
cerveja ao mais jovem — E bom saber que você não levou
para o pessoal, porque a culpa foi toda sua.
— Sério? Você destruiu minha traseira e eu sou o
culpado?
— Não teria acontecido se você quase não tivesse me
jogado contra a curva — Vincent bebeu um longo gole da
bebida amarga — Mas eu te perdoo.
— Porra, a convivência com você é sempre cheia de
altos e baixos.
— É o que eu tenho passado nos últimos anos — Satake
se intrometeu. — Ainda bem que agora todo mundo sabe que
você não é um playboy de merda, só um pé no saco, Vincent.
— Um dia você vai me fazer uma grande declaração de
amor, Satake.
O piloto japonês revirou os olhos, mas sorriu.
— Boa sorte esperando.
Parecia que um peso tinha sido removido dos ombros de
todo mundo, especialmente de Vincent.
Por muito tempo ele tentava se provar, fazer o próprio
nome e alcançar o herói da sua infância. Mas uma vez que
aquele homem tinha sido derrubado, não havia ninguém que
Vincent precisasse impressionar nas pistas, nenhuma sensação
de impotência quando tinha percebido que sim, ele podia
mesmo fazer grandes coisas.
Talvez fosse a quarta cerveja que tomava, mas ele se
sentia leve e flutuante.
— Meus parabéns pelo plano, Astier — Vincent disse a
Chase, sentando ao lado do piloto. — E obrigado por ter me
chamado.
— Agradeço a colaboração, Di Castelli. — Chase riu. — E
de nada. Nem acredito que deu tudo certo mesmo, é meio
surreal.
— Entendo o que você quer dizer. Me sinto um pouco
como um super herói.
— Você seria mais um anti-herói, Vincent. Caráter um
pouco duvidoso, mas motivos certos e charme o bastante para
conquistar o público.
— Anti-heróis são sempre mais divertidos, Chase. —
Vincent fez uma pausa. — Você gostava mesmo de mim?
Naquela época, quando tivemos um lance. Se eu tivesse
aceitado ficar com você, namorado e tal, teria dito sim?
Chase franziu a testa.
— Não sei porque a pergunta, mas eu teria dito não.
— Sério?
— E sei que fere seu ego gigantesco, mas, porra,
seríamos um desastre tendo uma relação romântica, Vincent.
Não falo de querer coisas diferentes na época, mas de como
somos duas pessoas tão diferentes, que jamais teria dado
certo.
Vincent pensou um pouco.
— Você tem razão.
— Algum motivo por ter perguntado?
— Só andei pensando no que aconteceria se eu tivesse
me envolvido romanticamente com alguém antes de Amélia. —
Ele deu de ombros. — As coisas podiam ser diferentes.
— Fico feliz que não foram. — Chase sorriu. — Caso
contrário, ela talvez não estivesse ao seu lado e eu… Bom, eu
teria o que tenho hoje.
Vincent ergueu uma sobrancelha, curioso.
— A razão pela qual você some de festas e eventos sem
explicação? Vou finalmente saber?
— Tente descobrir, Vincent.
Vincent ficou até mais tarde, quando os outros pilotos
subiram. Ele se sentia sem sono algum, mesmo com o
cansaço, e não conseguiu convencer Stefano a passar a noite
ao seu lado. Quando a equipe de limpeza do hotel veio, ele foi
ao bar e pediu uma garrafa de água. Para a sua surpresa,
havia uma pessoa de pé e o italiano sentou-se ao lado dele.
— Sem sono?
— Não sou o único pelo visto.
Vincent agradeceu a água do bar.
— Estou revivendo a alegria do momento enquanto
posso. Aliás, obrigado por ter me aceitado nesse esquema. Eu
sei que você não queria.
— Disponha. Obrigado pela ajuda, Vincent, fez um bom
trabalho — Kob Vanich disse a ele, segurando um copo com
whisky.
Se alguém dissesse a Vincent, no começo do ano, que
ele e Kob estariam juntos em um esquema para derrubar Ansel
Bellini, ele teria rido. Mas quando os rivais tinham inimigos em
comum, aquele tipo de coisa tendia a acontecer.
— Você também, Kob. Stefano não teria conseguido
acesso aos depoimentos dos engenheiros sem a sua ajuda.
— Considerando que ele foi o responsável por organizar
tudo, eu quem deveria agradecer a ele. — Eles trocaram um
sorriso e Kob o encarou. — Sabe porque eu não queria você?
— Por que eu sou impulsivo e faço muita merda no calor
do momento?
— Também. Mas porque eu achava que por trás da
fachada de bad boy, você era mesmo só um garoto mimado e
que corria por nada. Para a minha surpresa, eu descobri que
não e é bom saber disso.
— Que bom, eu acho. — Vincent franziu a testa. — Essa
é a mesma razão pela qual você me odeia?
— Não. Você era um piloto jovem, batendo meus
recordes na primeira temporada e me provocando o tempo
todo, Di Castelli, esperava mesmo que eu fosse cair de amores
por você?
Vincent riu, mudando a posição no banquinho duro do
bar.
— Justo. Em minha defesa, eu era jovem e
inconsequente.
— Mas um pouco da arrogância ainda continua.
— Somos pilotos de Fórmula 1 milionários, a arrogância
faz parte dessa vida.
Kob soltou uma risada baixinha e os dois ficaram em
silêncio por alguns minutos.
— Somos amigos, agora? — Vincent perguntou. — Só
para eu saber como anda nossa relação.
— Colegas de profissão, Di Castelli. Não é porque
participamos de um esquema secreto e perigoso para derrubar
um cara merda, que isso nos torna amigos.
— Eu diria que sim.
Kob revirou os olhos.
— Como queira. — O tailandês colocou o copo vazio na
bancada de madeira escura e se levantou. — Eu já vou subir,
tenha uma boa noite.
— Posso perguntar uma última coisa?
Kob suspirou.
— Tenho quase certeza de que não vai ser só uma
coisa, mas sim.
— Porque mudou de ideia? Sobre me colocar no
esquema? Você sabia que eu era uma das pessoas que mais
odiava Ansel, que faria de tudo para acabar com ele, mas
mesmo assim não queria. Então o que aconteceu?
Vincent se levantou, a garrafa de água nas mãos e viu o
piloto pensar por longos segundos antes de responder.
— Chase me fez mudar de ideia, sobre como você tinha
mudado. E saber que você nutria um ódio por Ansel, suportava
todos aqueles ataques como podia e ainda tentava achar um
jeito de revidar, mudou a situação para mim.
O italiano piscou, surpreso e sorriu. Kob Vanich o
elogiando, quem poderia prever o rumo das coisas.
— Não sabia que você e Chase eram amigos há muito
tempo.
— Nossa, você não presta atenção mesmo no que
acontece, hein?
O tailândes disse e se afastou, sendo acompanhado por
um Vincent confuso.
— Não entendi.
Kob apertou o botão do elevador e o encarou.
— Vou dar um segundo para você ligar os pontos.
Quando as portas da caixa de metal rangeram e se
abriram, Vincent entrou, ainda sem entender. Mas com um
breve estalo, a lembrança de Chase e Kob se encarando no dia
da quase briga entre o italiano e o tailandês, voltou à sua
mente. Ele arqueou as sobrancelhas, chocado.
— Nem fodendo. Desde quando?
— Um tempo — Kob riu — E não, não vou te contar
mais. Tudo o que você precisa saber é que estamos felizes e
quando Chase me contou sobre sua história, me mostrou um
lado seu que eu não vi antes. — Kob o encarou com firmeza, a
sombra de um sorriso nos lábios — Ainda acho você uma fonte
de problemas, mas é um rapaz corajoso, Vincent. O tipo de
coragem que eu gostaria de ter tido quando era mais novo.
O italiano sorriu, ainda surpreso, mas feliz.
— Esse é o tipo de coisa que você diz a um amigo,
sabia?
— Cala a boca, Vincent.
O elevador parou no andar de Kob e ele saiu.
— Tudo bem admitir, Venich, ainda vou te derrotar
nessa temporada. Só que como um amigo.
— Vincent, é cedo demais para eu te chamar de amigo.
Não cante vitória antes da hora, garoto, pretendo roubar seu
troféu.
Vincent riu, enquanto as portas se fechavam e o
elevador subia para o andar do italiano. Encostado na parede
fria, ele admirou como a vida podia ser surpreendente.
30.
Três anos atrás
Outubro, 04:30, Londres
Me desculpe, me desculpe, me desculpe…
Esse era o único pensamento de Amélia, ao olhar
Vincent adormecido ao seu lado.
Eles tinham chegado ao apartamento do piloto cerca de
três horas atrás. Vincent estava exausto, perguntou se Amélia
gostaria de se deitar um pouco e adormeceu em minutos. Já a
brasileira, não conseguia parar de olhá-lo, o cabelo escuro
bagunçado, os cílios longos tremendo de inquietação.
O voo de Amélia estava marcado para às seis da manhã
e ela sabia que, se fosse sair, a hora era agora.
Mais cedo, quando ele pediu seu número e nome
completo, deu informações falsas ao piloto, que sorriu de
forma tão bonita para ela, que Amélia quase se arrependeu de
não ter contado a ele. Quase. Porque a voz em sua cabeça,
gritando que tudo estaria terminado quando Vincent
acordasse, gritava em seus ouvidos.
No momento em que o sol surgisse, entre as nuvens
pesadas de inverno, Vincent voltaria a ser um piloto com um
futuro promissor e Amélia estaria de volta a ser a garota
insegura e patética que era.
Por isso, ela se levantou da cama, com calma, para não
acordá-lo e saiu do apartamento dele, sem coragem de olhar
para trás e ver a pontinha de esperança ridícula que tinha
surgido em seu coração. Preferia manter a noite inteira como
uma memória bonita e intocável, digna de um sonho, do que
arriscar a ter tudo arruinado.
Era o seu momento Jesse e Celine, o ato final do filme,
mas sem promessa alguma de reencontro no futuro.
Ela tomou um banho, apressada, pediu um carro de
aplicativo, juntou suas malas e partiu para o Brasil com os
dedos trêmulos. Quando passou em frente ao fliperama onde
ela e Vincent tinham ido naquela noite, seu fôlego falhou, mas
Amélia não recuou.
Vincent a esqueceria em um piscar de olhos, ela tinha
certeza. Porra, ele viajava pelo mundo o tempo todo, não tinha
como uma noite qualquer ficar na memória do piloto por muito
tempo.
Mas no aeroporto, na prova para o mestrado, e nas
semanas de volta ao Brasil, Amélia não podia negar que
pensou em procurar por Vincent. Abriu o perfil dele inúmeras
vezes e assistiu os highlights das corridas dele, vibrando ao
descobrir que ele tinha assinado um contrato com uma equipe
de Fórmula 1.
— Não imaginei que você era fã de corrida, o que
aconteceu com você em Londres, hein?
Sofia perguntou uma vez, ao ver Amélia assistindo um
documentário sobre Fórmula 1.
— Nada demais. — Ela respondeu, engolindo em seco
quando a câmera focou em Vincent. — Eu só fiquei curiosa.
Por fim, cansada de se sentir patética e assumindo a
realidade, Amélia enterrou Vincent no fundo do seu coração e
se convenceu de que seria melhor assim. Sem sofrimento por
um romance de fanfics inexistentes, sem mais sonhos sobre
voltarem a se ver, ou qualquer coisa desse tipo.
O piloto vivia sua vida de sucesso, vencendo corridas,
acompanhado de escândalos, sempre com um sorriso no rosto.
Ela decidiu parar de procurar qualquer coisa sobre Vincent
novamente, porque doía só de olhar para ele e ver aquela
pontinha de esperança surgir no seu estômago.
Ela era mesmo uma medrosa.
O tempo nunca levou embora a lembrança daquela noite
e Amélia riu quando descobriu a ironia do destino, ao ser
enviada para trabalhar na Galeria Torrisi, e estudar Fulvia
D’Oro. Se perguntou o que Vincent acharia da enorme bagunça
que era o destino deles dois, se cruzando em diferentes
momentos, mas sem jamais se concretizar.
Aquela Amélia de Londres, fugindo na calada da noite,
machucada, culpada e insegura, não era mais a Amélia que
conseguia olhar no espelho e admirar-se, enxergar erros,
qualidades e defeitos, mas ainda assim gostar de si mesma.
Uma versão que via-se com mais carinho, coragem e gentileza,
a mesma que ela ainda reservava para as pessoas à sua volta.
Uma versão que estava pronta para o amor romântico,
talvez pela primeira vez, e aproveitar cada segundo, sem medo
algum de encontrar a felicidade à sua volta.
31.
Outubro
O início de Outubro trouxe para Itália o prelúdio de mais
um inverno congelante. Era a hora de tirar os casacos pesados
do guarda-roupa, ligar os aquecedores e estocar o máximo de
café, chá e chocolate quente possíveis. As folhas das árvores
se tornaram laranjas e amarelas, sendo carregadas pelo vento
forte e pontilhando as ruas de Mancia com suas quedas
suaves. Os jardins da mansão Torrisi ganharam um novo
aspecto, mas não menos bonito, com frutas maduras
penduradas nas árvores frutíferas e campos prontos para
colheitas.
E finalmente tinha chegado a apresentação de mestrado
de Amélia e Angela.
Angela tinha sido a primeira, usando um vestido
vermelho escuro, de corte reto e um coque baixo,
apresentando sobre a história da pintura a óleo durante a
produção da arte romana. A banca a aplaudiu de pé, junto de
seus pais orgulhosos e uma Sancia emocionada.
Amélia a abraçou com força, quando a nota foi dita em
voz alta, e deixou que Angela chorasse em seu ombro. Os
meses de trabalho duro tinham valido a pena e sua melhor
amiga agora era mestre em História da Arte, com um diploma
bonito e texturizado em mãos.
Dois dias depois, era a vez da própria Amélia.
— Você tá calma — Vincent comentou, mexendo uma
panela no fogão.
— Estranho, não é? Eu achei que estaria com vontade
de me jogar da sacada, mas na verdade eu estou até animada.
— Ela espreguiçou-se no sofá, observando o italiano cozinhar.
— É porque eu sei que sou boa, trabalhei para caralho naquela
dissertação. Está ótima.
Vincent sorriu.
— Amo a Amélia cheia de confiança.
— É a minha versão favorita.
Amélia se ergueu em um movimento rápido e viu
Vincent derramar o molho em cima de uma travessa com
batatas recheadas. O cheiro tomou a cozinha inteira e ela
espalhou queijo por cima, mal vendo a hora de comer.
— Pronto. — Ele colocou o recipiente no forno. — Temos
uns 20 minutos até o queijo derreter e ficar pronto, coloquei
um timer. O que você quer fazer até lá?
Amélia sorriu, sugestiva, e o abraçou pelo pescoço.
— É tão injusto você ser bonito e ainda por cima
cozinhar, sabia disso?
— Não acredito que você está tendo pensamentos
pecaminosos enquanto eu faço nosso jantar.
Ela riu e Vincent enlaçou sua cintura.
— Você disse mesmo pensamentos pecaminosos?
— Se quiser um termo mais moderno, posso trocar por
putaria. — Amélia suspirou, ela nunca estava preparada para
ver aquele homem falar português. — Sexo, transa. Qual você
prefere?
Vincent se inclinou, beijando o pescoço dela, os dedos
roçando a bainha da sua blusa, acariciando sua lombar do jeito
que Amélia gostava e mandava arrepios pelo seu corpo.
— Tanto faz, contanto que você me leve para o quarto
agora mesmo.
Ele riu e ergueu os braços, colocando-a na cama,
cobrindo o corpo de Amélia com o dele.
— Seu desejo é uma ordem, mia bella.
Amélia gemeu quando Vincent beijou seu pescoço, as
mãos massageando seus seios, a barba por fazer arranhando
sua pele. Ela sentiu o desejo acumulado em todo o corpo e se
remexeu, inquieta.
— Acho que você está tensa, amor.
— Estou? — Amélia ergueu a sobrancelha, aproveitando
os dedos de Vincent brincarem com seus mamilos.
— Sim. — Os olhos dele brilharam, maliciosos. — Mas
não se preocupe, vou adorar deixar você mais relaxada.
Ele se inclinou e a beijou mais uma vez, segurando o
corpo de Amélia com força. Os dois gemeram ao mesmo tempo
e a estudante se livrou da sua blusa, fazendo o mesmo com a
camisa do piloto.
— Vincent, por favor…
O piloto tirou seu short em um único movimento e
pressionou-se contra seu corpo. Vincent estava duro e fricção
direta, fez sua cabeça girar.
— Prometo que vou fazer os vinte minutos valerem a
pena. — Ele disse, beijando-a outra vez, chupando seu lábio
inferior antes de se afastar, para ficar de joelhos diante dela.
A língua de Vincent a golpeou nos lugares certos, com
movimentos precisos e Amélia arqueou a coluna, perdida em
prazer. Apertou os cabelos dele entre seus dedos, não
segurando um gemido alto, os dedos dele segurando suas
coxas abertas, para o ângulo que Amélia gostava.
Ela amava o fato de que Vincent sempre a chupava da
forma que Amélia sentia mais prazer e se preocupava em fazer
tudo da maneira que se sentisse mais confortável.
O piloto a chupou com mais força e Amélia gemeu o
nome dele, a tensão se formando no ventre, o prazer que ela
tanto queria a centímetros. Vincent parecia prever o que ia
acontecer e continuou, deslizando dois dedos para dentro dela,
fodendo-a no ritmo ideal.
A combinação apagou a sanidade de Amélia e ela
gemeu o nome dele, desfazendo-se, as pernas tremendo com
o orgasmo que relaxou seu corpo inteiro de uma só vez.
Vincent a beijou, o gosto dele em sua língua, as mãos
apertando sua bunda com força.
— Mia dea. — Ele sussurrou entre os lábios inchados de
Amélia.
O piloto se afastou para colocar um preservativo e
pairou sob seu corpo novamente, os cabelos loiros
bagunçados, marcas de unhas em seus bíceps.
— Não vá devagar. — Amélia pediu, entrelaçando as
pernas nas costas dele. — Meu amor.
Vincent obedeceu e se impulsionou para dentro,
estocando com força, enterrando a cabeça no pescoço dela,
chupando a pele sensível. Amélia revirou os olhos uma
segunda vez, sendo tomada novamente por aquela sensação,
movendo o quadril para encontrar com o dele, beijando a pele
do italiano.
Os movimentos dele ficaram mais bagunçados e
apressados e Amélia sabia que ele estava perto. Ela o beijou, a
língua roçando a dele, e o encarou, na mesma hora em que
Vincent atingiu seu ponto interno.
— Amo você, Vincent. — Ela disse, suspirando e Vincent
gemeu, os olhos dourados faiscando, os músculos dos braços
contraídos finalmente relaxando.
O piloto caiu por cima dela, a respiração pesada, a pele
coberta por uma fina camada de suor. Na cozinha, o timer
soou.
— Vinte minutos. — Ele murmurou, se afastando.
— Muito bem aproveitados.
Amélia sorriu, arrumando os cabelos, ainda mole do
orgasmo.
Enquanto jantavam, depois de um banho, Amélia
perguntou-se como era capaz de se apaixonar por Vincent
todos os dias mais um pouco. Ele nunca parecia cansado de
demonstrar, fosse com palavras ou gestos, o quanto a amava e
isso ia muito além das suas idealizações adolescentes.
Por exemplo, quando na manhã seguinte, na
apresentação dela, Vincent disse que tinha uma surpresa e
revelou Sofia e Maria Cássia.
— Quando você chegou? — Amélia perguntou,
abraçando a irmã. — Meu Deus!
— Chegamos ontem de noite. Achou mesmo que eu não
estaria aqui para ver isso? — Sofia sorriu. — Combinei tudo
com Vincent.
— Incrível como vocês agem pelas minhas costas, até
antes mesmo de se conhecerem.
— E eu queria contar! Mas seu namorado disse que
fazer uma surpresa seria mais divertido. — Maria Cássia
respondeu, dando de ombros.
Amélia encarou Vincent com os olhos estreitos e
emocionados.
— É sempre divertido ver seu rosto de choque com
coisas boas, mia bella.
A brasileira deu um beijo gentil na bochecha dele.
O auditório da faculdade estava lotado pelas pessoas
que Amélia Palhares mais amava. Seus amigos, Anna Di
Castelli e Teodora, Vincent e sua família. Até mesmo Chase e
Satake tinham tirado um tempo e sorriam para ela, orgulhosos.
Amélia soltou uma longa respiração, evocando a
imagem da mãe. Quando era criança, Dora sempre a levava
em museus, querendo que a filha tivesse contato com arte e
incentivando a pesquisa sobre quadros, estátuas e outros
objetos. Foi a lembrança dos olhos da mãe, castanhos como os
seus e os de Sofia, que a fez sorrir e começar a falar.
Com segurança, Amélia apresentou a história de Fulvia
D ‘Oro, da mesma forma que ensaiou com Vincent. Dominando
o conteúdo e a coluna ereta, ela falou como a especialista que
era, abordando os pontos estudados, escutando os suspiros de
choque de Anna e Teodora.
Quando finalizou, lendo sua passagem favorita das
cartas, ela arrumou os óculos e passou os olhos pela pequena
plateia. Eles a encaravam, silenciosos por alguns segundos,
antes de baterem palma e vibrarem por ela.
Amélia sorriu, os olhos cheios de lágrimas, o peso dos
anos sonhando com tudo aquilo a acertando. Quanto tempo
ela tinha passado imaginando como seria estar ali, naquele
exato instante, e finalmente conseguiu. Ela sentiu um calor em
seu peito, sabendo que Dora e Fulvia, onde quer que
estivessem, estavam sorrindo para ela da mesma maneira.
— Parabéns, senhorita Palhares. — Seu orientador disse,
entregando o certificado. — Foi uma longa jornada, não?
— Foi sim. — Amélia apertou a mão dele. — Mas valeu a
pena e eu com certeza faria de novo.
Nos braços de Angela, chorando, ela sentiu o amor da
melhor amiga, a compreensão da vitória e do sucesso, a linha
de chegada que antes parecia tão longe, finalmente cruzada.
— Porra, conseguimos! — Amélia gritou no ouvido de
Angela, que riu.
— Somos mestras em artes, Ames, mestras!
— Sim, mestra Angela Savier. — Amélia a encarou. —
Mestras!
— Com certeza, mestra Amélia Palhares!
A comemoração foi, por insistência de Teodora, na
mansão Torrisi.
Pia apertou Angela e Amélia entre seus braços, assim
que chegou com o buffet, os olhos repletos de afeição
materna.
— Nem acredito que minhas meninas finalmente se
formaram!
— Pois é, nem a gente. — Angela riu. — Obrigada pelas
refeições, Pia, não seríamos nada sem a sua ajuda.
— Estou orgulhosa das duas. — A italiana limpou as
lágrimas. — Mas acabou o tempo de choro, hoje é dia de
festejar.
Garrafas de champanhes foram abertas e distribuídas
entre os convidados. A mesa posta, com comida do La Fratta,
tinha os pratos preferidos de Angela e Amélia, além de
sobremesas brasileiras. Risadas ecoaram pela mansão Torrisi,
se misturando ao barulho do vento do lado de fora e da música
suave que tocava.
Amélia bebeu mais do que deveria, mas não se
incomodou. Com as bochechas doendo de tanto sorrir, ela
transitava pela pequena festa, soltando agradecimentos e
abraços, porque o sentimento era forte demais dentro dela,
que precisava ser externado.
— Parabéns pela conquista, chérie. — Chase lhe deu um
abraço. — Foi um trabalho brilhante, fiquei genuinamente
interessado na história.
— Posso te contar o que quiser sobre, depois. Aquilo é
só um pouco do trabalho de Fulvia, tem muito por trás.
— Ficarei feliz de ouvir.
— Kob não veio?
O francês negou.
— Ele está com a família, mas mandou felicitações.
— Espera aí, você sabia sobre os dois? — Vincent se
intrometeu, confuso.
— Vincent, era óbvio. — Amélia deu de ombros. — Eu
soube na festa de aniversário da sua avó.
— Caralho, quer dizer que eu fui o último a saber? Estou
me sentindo magoado, Chase.
— Não pode me culpar pela sua desatenção, Di Castelli.
— O francês bateu no ombro de Vincent. — Mas se serve de
consolo, você descobriu antes da mídia.
— Quanta consideração.
Amélia riu da careta de Vincent, a visão um pouco turva
pela bebida doce.
Anna e Teodora, animada com as recentes descobertas,
puxaram a estudante para uma conversa sobre Fulvia.
Empolgada, Amélia se deixou levar e passou meia hora
entrando em detalhes sobre as interpretações das obras que
não tinham sido expostas para o público.
— A maior parte são, com certeza, sobre Teresa e
Eduarda. Eu tenho o contato da filha de Fulvia, posso passar
depois. Ela me ajudou muito durante a pesquisa.
— Ah, querida, ficaria grata demais. — Teodora segurou
sua mão com carinho. — Você fez um trabalho fantástico,
Amélia.
— Obrigada por trazer Fulvia de volta à vida. — Anna
completou. — Precisamos conversar sobre uma nova exposição
e alterar o salão das pinturas na Galeria Torrisi.
— Com certeza Fulvia não vai se importar se fecharmos
o espaço para uma reavaliação. — Teodora disse. —
Especialmente depois de um trabalho como esse, acho que ela
ia fazer até questão.
Ela sorriu. Aprovação acadêmica era realmente uma das
melhores coisas do mundo.
Perto das duas da manhã, quando grande parte das
pessoas já tinha subido, Vincent se aproximou dela e
sussurrou:
— Tenho uma coisa para você.
Com a testa franzida, ela o seguiu, subindo as escadas
da mansão, o coração batendo forte no peito. Ele abriu a porta
do quarto e deu um passo para trás, encarando-a com as mãos
nos bolsos.
Amélia estreitou os olhos e entrou, desconfiada. O
quarto de Vincent estava cercado de velas, em pequenos
recipientes de vidro, espalhadas no chão, estantes e
superfícies. O ambiente inteiro, iluminado em um amarelo
suave, lhe lembrou os olhos de piloto e ela arfou, surpresa.
— Mas o que…
Ela se virou, tentando entender e Vincent sorriu. Ele
pegou o celular e uma música começou a tocar, a mesma da
festa de aniversário de Teodora. As notas suaves preencheram
o ar e ele estendeu a mão, um convite.
— Eu disse que ainda faria a declaração, não disse?
Amélia sorriu, o amor que sentia por Vincent, como um
calor gentil, percorrendo seu corpo. Ela segurou a mão dele, se
aproximando e o piloto a conduziu por uma valsa lenta, a
música suave traduzindo os sentimentos dos dois. Os olhos
dele, iluminados fracamente, eram um poço de carinho intenso
e a brasileira suspirou.
Vincent a rodopiou, puxou-a de volta e beijou os cabelos
de Amélia.
— Sabe que dia é hoje?
— O dia em que nos conhecemos em Londres.
Ele assentiu.
— Eu perguntei à minha mãe qual seria a melhor forma
de fazer isso e ela me contou que escolher uma data especial,
para uma declaração, fazia toda diferença. Não sei se teria
melhor dia do que esse.
— Ah, Vincent…
Amélia o abraçou pelo pescoço, lágrimas manchando
suas bochechas. Ele era uma grande chorona, mas que se foda
naquele momento.
— Eu amo você, Amélia Palhares. Muito. E se não fosse
por você, eu não teria as melhores coisas da minha vida. — Ele
sorriu, as mãos abraçando-a. — E eu sei que somos
namorados para a mídia e nossos amigos, mas sou um cara no
primeiro namoro e você merece um pedido à altura. Gostaria
de ser a minha namorada?
— Sim! E eu também amo você. — Ela o beijou, os
dedos enganchando em seus cabelos, as lágrimas de Vincent
se misturando as dela. — E se não fosse por você, Vincent Di
Castelli, eu não veria um lado tão bonito do amor.
Ele riu, beijando o rosto dela.
— Não acredito que namoro oficialmente uma mestre
em artes.
— O que acha de namorar uma doutora em artes?
— Sexy para caralho. Estou orgulhoso de você, amor, e
ansioso para saber qual a próxima realização incrível que vai
fazer.
Amélia balançou a cabeça, rindo, felicidade pura e
preciosa. Ela beijou o canto da boca de Vincent e encostou a
testa na dele, os dois ainda balançando no mesmo ritmo da
música.
— Vincent, você tornou meu mundo no quadro mais
bonito e vibrante que eu podia sequer imaginar. — Amélia
disse, vendo o sorriso dele. — Fulvia disse, “Teresa possui
todas as coisas boas do mundo nos olhos dela. Pensar nisso,
me fez perceber a dimensão do amor que tenho por ela.” Este
amor, que sinto por você, é a junção de todas as coisas boas
do mundo.
Quando Vincent a beijou, com delicadeza e Amélia
guardou a sensação dos lábios dele na memória, em um
quadro bonito e decorado com a moldura mais detalhada. Um
retrato de quando ele entregou-lhe seu coração. E ela
prometeu cuidar dele a partir dali.
***
Chovia no dia que Vincent Di Castelli dirigia pela curva
mais perigosa e temida dos circuitos: a Eau Rouge.
Quando criança, ele assistiu Ansel Bellini dominar aquele
trajeto, da arquibancada, completamente eletrizado. Perdeu a
conta de quantas vezes encheu o saco da mãe para ir à Bélgica
assistir à corrida, sempre uma das últimas da temporada,
apenas para ver seu herói se dar bem, antes de saber o
babaca que ele era.
As coisas mudaram um pouco no momento em que ele
entendeu o problema da pista, ainda na Fórmula 2, e entendeu
o medo e tensão que pairavam sobre o grid naquele circuito.
Não tem como encarar um autódromo da mesma forma ao
presenciar outro piloto bater violentamente e ser levado de
helicóptero para o hospital, lutando pela vida.
Foi a primeira vez que Vincent sentiu mais do que
adrenalina quando pilotava. Ele sentiu o medo fechar sua
garganta e comprimir seus pulmões com força, precisando
recorrer a sua medicação de emergência para conseguir
dormir.
— Cada corrida que eu termino, Vincent, é um
agradecimento que eu faço por estar vivo. — Satake lhe disse,
na primeira temporada do italiano na Redemptio. — Quero ser
o melhor, é claro, mas não se esqueça de que existe mais em
risco do que pontos em um ranking.
Por isso, seu corpo todo estava tenso, enquanto dirigia
do paddock para a largada, assumindo seu lugar e vendo a
pista molhada. Os dedos apertavam o metal do volante com
força, e, por trás das lentes, ele enxergava a curva em “S”,
marcada por uma diferença de relevo. Isso obrigava os pilotos
a desacelerar, perdendo segundos valiosos, ou se arriscarem
em alta velocidade e acabarem fora da corrida.
Pior, bater e sofrer uma lesão séria.
Quando a luz se tornou verde, Vincent bloqueou todos
os seus pensamentos e se concentrou na pista, no rádio e nos
outros pilotos.
— Vanich está atrás de você, tentando ultrapassar.
Arthur disse no rádio.
— Quantos segundos?
— 3.8.
Vincent travou o maxilar, entrando no S da Eau Rouge,
colado na traseira do piloto de outra equipe. Ele não teve
escolha a não ser ficar no lugar, até que a primeira parte da
pista passasse, o risco maior por conta da recente chuva. Na
parte reta, forçou o carro e ultrapassou o carro vermelho.
— Bom, Vincent, muito bom.
— A estratégia foi toda sua.
— E o piloto é você.
Vincent sorriu, mas não se permitiu relaxar por um
segundo.
A pista inteira, cheia de relevos, era um desafio de
controle exaustivo. Tentava extrair o máximo de seu carro nas
retas, abrindo vantagem quando podia, mas a frustração
queimava sua boca ao ter que tirar o pé um pouco do
acelerador.
— Cadê o Satake?
— Em quarto.
— Droga.
— Em terceiro agora. Vincent, você não precisa acelerar
mais do que isso nas curvas.
— Tudo bem.
Vincent podia ser um piloto, mas sua equipe sabia qual
a melhor estratégia. Ele era impulsivo, mas se não respeitasse
o trabalho da Redemptio como um todo, estava sendo um
babaca completo. Então, mesmo querendo manter o carro no
mais alto rendimento, continuou em segundo lugar, paciente.
Na volta de número 30, trocou os pneus por novos
jogos, grato pela chuva que finalmente tinha parado.
— Dá para alcançar Chase?
— Ele vai para o box, você tem uma janela de tempo
muito boa.
Vincent acelerou, calculou os riscos na cabeça, e foi com
tudo. Embora conseguisse ultrapassar Chase, precisava manter
o controle na curva em “S”, para continuar na liderança e
ganhar.
— Porra!
Ele xingou, a cabeça girando em alívio, ao assumir o
primeiro lugar.
— Quase cinco segundos, Vincent.
A diferença de tempo se manteve até a última volta.
Chase a diminuiu, mas Vincent manteve-se calmo e viu a
bandeira branca e preta tremeluzir. Tonto e aliviado, ele parou
o carro e saiu, abraçando Arthur ainda de capacete, eufórico.
— Só mais uma. — O brasileiro disse, sorrindo. — Só
mais uma, Vincent.
O piloto riu.
— Redemptio no topo pelo segundo ano consecutivo,
consegue imaginar isso?
— Sim, garoto, consigo. Tô orgulhoso para caralho de
você.
Arthur o cutucou, com afeto paterno, e Vincent subiu no
pódio se perguntando como tinha deixado Ansel Bellini ser o
seu herói por tanto tempo, com o chefe da Redemptio ao seu
lado.
Mais tarde, depois da comemoração e da coletiva de
imprensa, ele, Anna, Satake, Stefano e Arthur saíram para
jantar em um restaurante vegetariano. Ele chegou o celular e
viu mensagens de Amélia.
“Parabéns, campeão! Amo você!!!!”
“Obrigada, mia bella. Minha mãe manda um beijo”
“Outro para ela”
“Só para você saber, estava muito gostoso coberto de
champanhe”
“Você tem fetiches estranhos, Palhares”
“Di Castelli, você tem tesão em gramática e eu em
lamber seu corpo coberto de bebida cara.”
Vincent sorriu, a lembrança da sua namorada, de
verdade agora, rondando seus pensamentos.
“Espero que essa tenha sido uma proposta”
“Ganhe a temporada e você vai descobrir”
Vincent mandou uma figurinha e bloqueou a tela, se
concentrando nas pessoas da sua mesa, antes que sua mente
formasse a ideia de Amélia lambendo seu abdômen.
— Quantas entrevistas ainda tenho essa semana?
Ele perguntou, mexendo nos talheres.
— Duas. As pessoas estão um pouco obcecadas com a
ideia de você e Kob estarem disputando o título de novo.
Arthur disse.
— Devia ver as fanfics que temos na internet, elas são
melhores ainda do que as de Chase.
— Não, obrigada. — O chefe de equipe franziu a testa.
— Porque você lê isso?
— Por que é divertido?
— Por que ele é desocupado. — Satake se intrometeu.
— Marque mais entrevistas para ele, Stefano.
— Por mais que você queira encher meu filho de
trabalho, Satake, eu espero que não faça isso, pois sinto falta
dele em casa.
— Obrigada, mãe.
— Além disso, ele e Stefano vão cuidar da estufa nas
férias, ninguém vai ficar desocupado.
— Nós vamos? — Stefano ergueu uma sobrancelha.
— Considere isso uma forma de se redimirem comigo
por não ter me contado do seu namoro falso.
O piloto italiano suspirou.
Arthur e Stefano tinham dado com a língua nos dentes
para Anna, contando a história inteira do namoro. Eles
disseram que achavam que ela sabia de tudo e comentaram
sobre ter caído de amores por Amélia na vida real, o que fez
Anna dizer:
— Na vida real? Como assim?
E pronto, ela soube de tudo.
— Mãe, eu já disse que não podia falar, era acordo de
confidencialidade.
— Tia Anna, tínhamos que manter segredo.
— Acordo de confidencialidade não se aplica à família,
meninos. Não criei vocês assim.
Mesmo sabendo que era uma batalha perdida, Vincent e
Stefano argumentaram com Anna, que rebateu os argumentos
com uma boa dose de chantagem materna. Arthur ria tanto
que chorava e Satake incentivava a mulher na briga, atirando
lenha na fogueira.
Eles ainda discutiam quando a comida chegou e Vincent
se derreteu ao provar o risoto de brócolis. Distraído com a
fome, ele mal notou quando o silêncio se abateu sobre a mesa.
— Vincent. — Arthur chamou. — Esse jantar, na
verdade, é para conversar com você.
O piloto italiano franziu a testa e encarou o chefe.
— Certo.
— Eu e Satake conversamos e achamos que seria
melhor se você assumisse o posto de piloto principal na
Redemptio.
Anna soltou um arquejo e Vincent encarou o piloto ao
seu lado.
— É sério, Satake?
— Sim, Vince. A próxima temporada vai ser a minha
última e depois eu vou me aposentar dos autódromos.
— Mas você é jovem.
— Tenho 36 anos, Vincent, e já vivi demais dentro dos
grids como piloto. Sendo bem honesto, eu tenho outros
interesses dentro da Fórmula 1. — Satake se encostou na
cadeira, sorrindo. — Estou me preparando para assumir a
divisão feminina da Redemptio.
— O que? — Stefano arregalou os olhos, em choque. —
Mas nós não temos uma divisão feminina.
— Não temos, ainda. — Arthur sorriu. — Conversei com
alguns patrocinadores e estamos tentando encaixar a
Redemptio da Fórmula 2. Com o ano bom dos nossos pilotos e
a confusão de Ansel deixada para trás, temos espaço livre para
sonhar.
— Isso é muito foda, Arthur. — Vincent sorriu,
empolgado. — Eu tenho alguns nomes para te indicar.
— Conversamos depois. Quero que a equipe seja
formada majoritariamente por mulheres, então estamos
trabalhando nisso. Eu vou te passar os detalhes, sei que você
vai querer se envolver.
— Claro que sim!
— Precisando de uma engenheira em treinamento? —
Stefano se inclinou na mesa. — Eu conheço alguém
interessada na vaga.
Arthur riu.
— Está falando de Emma? Porque ela já tomou a frente
e teremos uma vaga para ela, assim que possível.
Vincent sorriu, emocionado. O esporte que ele amava
alcançando novas pessoas era a realização das maiores
aspirações que ele tanto queria, o motivo pelo qual ele se
esforçava todos os dias nos seus institutos.
— Eu aceito, aliás, ser o piloto principal. — Vincent disse
a Arthur.
— Pronto para a responsabilidade?
— Os anos enchendo o saco de Satake devem ter me
servido para alguma coisa, além de descobrir que ele perde a
paciência muito fácil.
— Ou que você tem a capacidade de tirar todo mundo
do sério. — O piloto japonês provocou.
— Você vai sentir tanto a minha falta, Satake.
— Eu vou. — Satake balançou a cabeça. — A pior parte,
é que é verdade.
Vincent sorriu, disfarçando o quanto tinha sido afetado
pela notícia.
Ele estava feliz para caramba, mas não podia deixar de
lamentar a saída de um amigo, daquele que tinha sido o
primeiro a abraçá-lo dentro da Redemptio e na primeira
temporada conturbada. Era difícil vislumbrar um futuro com
tantas mudanças, quando se passava tempo demais cercado
acostumado no mesmo lugar.
— Você vai ser ótimo na Fórmula 2. Quero acompanhar
de perto.
— Vai ser um prazer receber você por lá, Di Castelli. E
obrigada pelas palavras.
Eles trocaram um olhar cheio de carinho antes de
continuarem a comer.
Por mais que fosse complicado olhar o que a vida
prometia, Vincent vislumbrou um futuro cercado de amor e
com as pessoas que ele amava com grandes conquistas. Era
um futuro quase saído de um sonho. Exceto, que parecia cada
vez mais real
32.
Novembro
A pulseira prateada de Amélia tilintava suavemente com
os pingentes recém-colocados. Ao todo, eram 6, pendurados
na fina corrente, se chocando todas as vezes que ela se movia
ou caminhava. Cada um deles representava um pedaço da
história dela, que mal via a hora de adicionar mais e preencher
os espaços restantes.
A última adição, um carro de fórmula 1 pequeno e
prateado, fez barulho contra o copo que ela segurava e
chamou a atenção do homem deitado ao seu lado.
— Eu adoro esse lugar. — Stefano murmurou,
encarando Amélia — É minha corrida preferida.
— Você diz isso só por conta das bebidas grátis.
— Não escutei você se opondo a elas.
Amélia riu, tomando um gole do seu drink e admirando
a vista exuberante que era a Ilha de Yas, cercada por luxo e
muito dinheiro.
A última corrida do Grande Prêmio de Abu Dhabi, era
realizada em uma construção artificial rica e complexa, com
hotéis de luxo, parques temáticos e uma praia à disposição dos
turistas. Era o lugar mais surreal em que ela já estivera na vida
e Amélia se viu completamente sem jeito nos espaços,
tentando passar a sensação de naturalidade e falhando.
Mas não era por isso que ela não ia aproveitar.
Com Vincent nas coletivas, ela, Stefano, Toni e Emma,
aproveitaram a festa do dia anterior como ninguém e só
chegaram pela manhã. Sem nenhuma grande obrigação na
lista, decidiram passar o dia na beira da piscina do hotel.
— Viu a entrevista mais cedo? — Emma perguntou, as
longas pernas cruzadas, mexendo no celular. — De Vincent e
Kob.
— Eu vi. Eles até disseram que se não resolvessem tudo
nas pistas, iriam para o ringue de luta. Sabia que tem até
apostas? Os números são bem impressionantes.
— Eu sei, eu apostei alguns euros no Vince. É bom ele
ganhar, ou vai ficar me devendo.
— Leva tão pouca fé assim no seu primo, Emma? —
Toni brincou.
— Eu acredito nele, mas nunca se sabe.
A imprevisibilidade do resultado, tornou aquela corrida
um espetáculo. Se Kob ganhasse, ele teria os pontos
necessários para o prêmio. Se Vincent ganhasse, aumentaria
sua margem e levaria a temporada. E havia a possibilidade do
piloto russo, ainda no páreo, se Vincent acabasse em terceiro e
Kob em segundo.
Diversos cenários, várias possibilidades de vitória para
todos os pilotos. Ninguém fazia ideia do que ia acontecer e até
a previsão do tempo era recalculada. As equipes agiam
normalmente, mas Amélia sentia a tensão crescente na
Redemptio, conforme os dias se aproximavam.
Para a sorte deles, o domingo da corrida amanheceu
com sol forte e intenso, sem uma nuvem no céu. Eles partiram
para o grid logo cedo, os dedos de Amélia entrelaçados nos de
Vincent, fazendo movimentos circulares com o polegar.
— Nervoso?
— Sim, acho que vou vomitar.
Ela se encostou nele.
— Vou te ajudar com o ritual do campeão, hoje.
— Se puder fazer o tempo passar mais rápido,
agradeço. — O piloto murmurou, desviando os olhos para a
janela.
— Vincent, você está esquecendo de se divertir. — Ela
segurou o rosto dele e o beijou — Você faz isso porque ama,
lembra? Então também precisa se divertir no processo,
aproveitar cada momento.
Vincent soltou um suspiro longo, o boné da Redemptio
escondendo seus cabelos loiros.
— Eu sei, eu sei… É só…
— Tenso. Está tudo bem, amor.
De mãos dadas com ele, Amélia passeou com Vincent
pelo autódromo, parando para que o piloto pudesse atender
seus fãs. Ela tirou algumas fotos, sorrindo, e incentivou o
namorado a brincar com um grupo de crianças de kart, que
gritavam seu nome.
Eles só pararam perto da hora do almoço, quando
Stefano chamou Vincent para uma das infinitas entrevistas do
dia, e ela foi comer com Emma.
— Então, fiquei sabendo que você vai trabalhar na
Fórmula 2, Emma. Parabéns!
— Vincent é um fofoqueiro. — A loira riu. — Arthur fez o
convite ontem, disse que a equipe só funcionaria mesmo
depois da próxima temporada, então eu teria tempo para
pensar na proposta. Ele viu meus modelos de motor e gostou
do trabalho.
— Você é fantástica, Emma Torrisi. Construindo motores
com um salto 15 e terno de Prada.
— Esse é Versace, mas agradeço seu esforço, Ames. Eu
ainda não sei se vou dizer sim, na verdade.
— Por quê?!
Emam desviou os olhos, o cabelo loiro e liso caindo para
frente.
— Não sei se sou boa o bastante. Ainda tô começando a
faculdade, mal tenho as matérias necessárias e fiquei com
medo de Arthur só ter me chamado por causa de Vincent.
— Ele não faria isso. Acho que Vincent, mais do que
ninguém, sabe a importância de ter algo só seu. E se o seu
esforço está sendo reconhecido, porque não aproveitar?
Emma suspirou.
— Lembra o que eu disse, sobre a minha mãe? Fico me
perguntando se eu deveria mesmo aceitar essa chance. Uma
parte de mim quer jogar tudo para cima e só seguir o que ela
diz.
Amélia se inclinou, segurando a mão de Emma.
— Essa parte chama medo de não conseguir. Emma,
você é uma das mulheres mais fodas que eu conheço, a
pessoa mais obstinada do mundo. Se seguir os planos da sua
mãe, vai acabar deixando a vida que você sonha para trás. E a
Emma que eu conheço não é assim.
A loira encarou a brasileira, o lábio inferior trêmulo. Ela
piscou, relaxando os ombros.
— Por favor, me dê mais sermões sobre como viver.
Amélia riu e abraçou a amiga.
— Agradeça a Angela por ter me ensinado isso primeiro.
Pela tarde, os pilotos realizaram o tradicional desfile,
com os carros antigos. Amélia gritou o nome de Vincent a
plenos pulmões, nem um pouco preparada pela visão do
namorado em uma camisa polo que apertava os músculos do
braço dele, o cabelo loiro bagunçado e ainda assim, charmoso.
Ela, Emma e Toni acompanharam o show de
apresentação, por uma cantora espanhola, e cantaram os
principais sucessos do momento, extravasando a tensão pré-
corrida.
Quando o sol se pôs e as luzes do autódromo foram
acesas, os gigantes refletores iluminando a pista, Amélia se
despediu dos amigos e entrou no paddock da Redemptio.
Cumprimentou os funcionários com um sorriso gentil,
conversando brevemente com eles e tomou um lugar perto das
telas que transmitiriam a competição.
Depois de acompanhar tantas corridas na temporada,
ela sabia que não existia lugar melhor para sentir-se dentro da
Fórmula 1 do que ali.
— Mia bella. — Vincent a chamou, já de uniforme, o
capacete em mãos.
— Vim dar o beijo de boa sorte. — Amélia arrumou os
cabelos dele. — Você vai se sair bem, Vincent. Sabe disso, não
sabe?
— Depois que você tirou toda a tensão de mim, ontem a
noite, acredito mais nisso. — Ele sorriu e a brasileira sentiu as
bochechas esquentarem. — Obrigada por estar aqui.
— Não me agradeça por isso. Eu vou tá aqui por você,
sempre que precisar.
— Eu quero agradecer, Palhares.
Amélia se inclinou e o beijou, sentindo os olhares da
equipe sobre eles.
— Boa sorte, Vincent. — Ela murmurou. — Amo você.
— Estou nervoso para caralho na corrida mais
importante da minha vida e morrendo de medo de não vencer.
Patético ou triste?
— Ansioso. E empolgado. E você só está nervoso porque
sabe que vai fazer um trabalho incrível. Vai lá, campeão.
— Amo você, Amélia.
Ele beijou a ponta do nariz dela e saiu.
Amélia sorriu e se juntou ao time para assistir à corrida.
Abu Dhabi era um trajeto relativamente novo, com várias
alterações aprovadas pela FIA e os treinos tinham se mostrado
bons para a Redemptio. Assim como para a rival direta do
título, a Dalton.
— Café?
Arthur ofereceu a ela uma xícara, os fones de ouvido
pendurados no pescoço.
— Obrigada. Quantas xícaras você já tomou?
— O bastante para Henrique ficar preocupado. — Ele
sorriu. — Fique à vontade, Amélia. Estarei gerenciando seu
namorado de longe.
— Valeu Arthur. E boa sorte gerenciando meu
namorado. — Ela bebeu um gole da bebida e encarou o diretor
executivo. — Nunca agradeci você por aquela época, não é?
Por ter me ajudado com a mídia e tudo o mais.
— Agradeceu me conseguindo uma reunião com nosso
futuro patrocinador, que ficou encantado por você no jantar
beneficente de Ímola. E me desculpe ter te botado nessa
furada toda.
— Vendo como tudo acabou, Arthur, acho que não
precisa se desculpar. — Ela sorriu, vendo a movimentação dos
pilotos na largada. — Acho que é sua deixa.
Arthur se afastou com um sorriso.
Como descrever a última corrida da temporada de
Fórmula 1? Se alguém perguntasse a Amélia, ela não saberia
responder.
Mesmo com os olhos grudados na tela, o coração
batendo forte, e os dedos apertando a porcelana da xícara, ela
só conseguia pensar em Vincent. O carro da Redemptio sofreu
um dano logo na quinta volta, que não precisou ser reparado
nos boxes, mas uma perda ainda era uma perda e o piloto caiu
para quinta posição.
— Porra…
Ela xingou, vendo mais uma tentativa frustrada de
ultrapassagem de Vincent. Mordendo o lábio, o cenário
pessimista se formou em sua mente, mas ela não deixou que a
imaginação prosseguisse com aquilo. As voltas aumentaram e
a corrida se encaminhou para as últimas 10 voltas, com Kob
liderando.
Sua respiração ficou presa na garganta ao ver Vincent
ultrapassar o quarto e o terceiro colocado de uma só vez,
disputando diretamente com o segundo lugar, Chase Astier.
Com um movimento fluido do carro, quase saindo da pista, ele
fez uma bela ultrapassagem e Amélia se juntou aos gritos
animados da equipe.
4 voltas.
Vincent estava colado com Kob.
2 voltas.
Uma tentativa de ultrapassagem bem realizada, mas o
piloto tailandês estava logo atrás.
Volta final.
Vincent tirou o máximo do carro, fechando Kob em uma
curva e acelerou direto para a linha de chegada.
Amélia gritou, os olhos cheios de lágrimas, e correu
junto com Arthur para perto do carro estacionado, onde um
Vincent meio tonto saia do veículo. Ele arrancou o capacete e
baclava, cabelos grudados na testa e encarou, sorrindo.
Quando o piloto a beijou, ela descobriu que a vitória era
doce como o amor.
***
Vincent não conseguia lembrar das últimas 24 horas do
ponto de vista próprio. Ele se enxergava como espectador,
assistindo de longe todos os momentos vivenciados.
O nervosismo o consumia vivo, desde a chegada em
Abu Dhabi e tensão se acumulava nos músculos. Por mais que
tentasse disfarçar, todo mundo parecia ter percebido, fazendo
de tudo para não incomodá-lo. Mas quando uma crise de
pânico se tornou uma ameaça real, ele saiu do quarto de hotel
e telefonou para a mãe, na noite de sábado.
— Mãe, e se eu não conseguir?
— É o fim do mundo não levar o troféu? Meu menino,
amanhã as duas coisas podem acontecer.
— E eu não sei o que fazer se eu perder. Eu nem sei
porque eu tô tão nervoso. Ansel não está aqui, eu tenho a
corrida em mente, sei tudo o que deveria fazer. Mas eu só não
sei se consigo.
Um suspiro do outro lado da linha.
— Vincent, eu seria uma péssima mãe se dissesse que
sim, você pode vencer sem problemas. Eu criei você para um
mundo bonito, mas também para um lugar onde, às vezes,
falhamos. Por que você vai correr amanhã?
— Porque é a coisa que eu mais amo fazer.
— Então já sabe a resposta para o que vai acontecer se
não conseguir. Não se esqueça disso.
E Amélia parecia compartilhar do mesmo sentimento de
Anna, empurrando Vincent na direção dos seus fãs animados,
assim que pisaram no autódromo. Os pensamentos do piloto
foram direto para Mancia, para as crianças atendidas pelo seu
Instituto.
Ele amava a Fórmula 1. Tinha lutado por aquele
esporte, feito loucuras que poderiam ter destruído sua carreira
e ainda assim, arriscou-se porque queria fazer daquele espaço
o melhor possível.
Com isso em mente, ele vestiu o uniforme e encarou-se
no espelho, calando o pânico que perfurou seu estômago.
Daquele momento em diante, assistiu a si mesmo entrar
no carro, as pernas trêmulas. Receber as instruções de Arthur
sobre os pontos de estratégia e concordar com alguns,
brincando com o diretor executivo sobre querer racionalidade
na última corrida. Depois o rugido do motor, a luz ficando
verde e acelerar, sem menos de segundos, largando da terceira
posição e saltando para o segundo lugar com facilidade.
Então veio o toque feroz com outro piloto e Vincent
assistiu a si mesmo xingando pelo rádio. Apesar disso, o carro
não sofreu danos graves, nem perda de poder, então ele
continuou, forçando os pneus o máximo que podia.
— Vincent, você precisa parar.
— Próxima volta.
— Eu sei que você está frustrado, mas seja esperto.
Vincent reconheceu a contragosto a razão de Arthur e
trocou os pneus macios por duros, acelerando de volta à pista.
— Quantas voltas?
Uma pausa no rádio.
— 15. Vincent, ainda dá para ultrapassar. Lembre os
pontos que te mostrei e use a curva ao seu favor.
— Certo.
Vincent viu, ainda sobre o ângulo de fora, a sequência
de ultrapassagens, contando na cabeça quantos ainda
faltavam. Quando passou de Kob, o número 1 ressoou em seus
pensamentos, e ele se viu, confuso, a ficha só caindo depois de
terminar a última volta e estacionar o carro.
O piloto fechou os olhos por alguns segundos, a
respiração pesada, um zunindo no seu ouvido calando todos os
pensamentos e piscou. Ele era o campeão da Fórmula 1.
Tricampeão.
Depois daquilo, as lembranças de Vincent ficaram mais
claras, movidas pela animação completa e vitória.
O beijo de Amélia, o sorriso dela de orgulho. Os fãs, ao
redor dele, puxando-o para a multidão, os gritos e risadas
cercando o piloto. Arthur, o abraçando forte, um gesto que
significava milhares de palavras não ditas entre eles. O aperto
amigável de Kob, o rosto com resignação, mas aceitando a
derrota para um amigo recém-feito.
O sol forte de Yas Marina, o pódio e o hino italiano. O
peso do troféu em seus dedos, o metal brilhante reluzindo. O
champanhe doce em sua boca, grudado no sua pele,
misturando-se a euforia completa que vencer proporciona.
Inebriante e uma das melhores coisas que ele tinha
sentido.
Após a vitória e um banho, Arthur convocou a coletiva
de imprensa na madrugada e Satake fez seu anúncio.
— Por muito tempo, as pistas foram minhas
companheiras, mas chegou a hora de participar do
automobilismo de outra maneira. Oficialmente, em
concordância com Arthur, a próxima temporada será minha
última. — Satake pausou, silêncio entre os jornalistas. — Tenho
dedicado mais de 15 anos nas corridas e jamais pensei que
seria tão difícil deixar algo que amo para trás. Mas em nome
de novas experiências, alguns sacrifícios precisam ser feitos.
Vincent engoliu o bolo que se formou em sua garganta,
piscando para afastar as lágrimas que se formavam no canto
dos olhos.
Satake Yukikaze, dono de quatro títulos mundiais, o
jovem que largou seu país natal em busca de um sonho. Que,
no início, era fechado e enxergava Vincent como uma criança,
mas passou a ser uma das pessoas mais importantes da vida
do piloto italiano. Dono das ultrapassagens mais fluídas da
Fórmula 1, conhecido pela postura elegante e líder da nova
geração de pilotos.
Vincent nem sequer imaginava um dia correr na mesma
pista que Satake, que dirá, dividir o companheirismo dele.
— Com a sua saída, Vincent se tornará o piloto principal
da Redemptio? Se sim, o que você gostaria que ele soubesse
sobre a posição?
O italiano cruzou os braços, esperando uma piadinha ou
provocação. Satake o encarou, com os olhos cheios de
sentimentos, pegando Vincent desprevenido.
— Ele sabe tudo o que precisa saber. Vincent é o melhor
piloto atualmente, isso é inegável pelo título que acabou de
levar. Mas ele não é só bom nos autódromos, fora deles,
Vincent luta pelo que importa dentro da Fórmula 1. É uma
honra correr ao lado dele, mais do que isso, chamá-lo de
amigo.
Vincent abriu a boca, mas não soube o que dizer. Ele
pousou para as fotos, ao lado de Arthur e Satake e apertou o
ombro do piloto japonês.
— Eu não disse que um dia você ia mesmo fazer uma
declaração para mim? — Satake riu baixinho. — Satake, você é
um dos pilotos mais fodas que eu conheço. Vai ser um imenso
prazer dividir sua última temporada nas pistas.
— Espero que pense isso quando eu vencer a próxima
temporada e encerrar minha carreira com sucesso.
— Quero ser campeão de novo, Yukikaze. — Vincent
sorriu. — Não vou facilitar para você.
— Bom. Não espero menos de você, garoto.
Satake sorriu e bagunçou o cabelo de Vincent.
Sob o flashes das câmeras, que capturaram a troca de
olhares recheada de irmandade, Vincent desfrutou da sensação
de ser invencível e amado. Era uma combinação maravilhosa.
EPÍLOGO
Quando criança, Amélia sonhava com um natal de neve.
Mas depois de passar o primeiro feriado longe da irmã, não se
importaria em trocar aquilo tudo pela possibilidade de
aproveitar a data no calor do Brasil.
Por isso, naquele ano, ela e Vincent fizeram um acordo
sobre as festas de final de ano: Natal em Coral e ano novo na
mansão Torrisi.
Com Sofia e Maria Cássia, Amélia cantou as melhores
músicas natalinas brasileiras, com Vincent tentando descobrir o
significado das letras, para além da tradução. Na casa de praia
da mãe, eles celebraram o dia com uma típica ceia, cerveja e
várias sobremesas que tinham gosto de nostalgia e infância.
Mas o ponto alto, foi a troca de presentes.
— Está me dando meu salário de namorada de
mentirinha? — Amélia brincou, encarando o envelope que o
piloto lhe deu.
— Você nem aceitou o dinheiro do doutorado, Palhares.
— Porque eu sou sua namorada de verdade, agora, e
mesmo você sendo um milionário, quero conseguir esse
doutorado sozinha. Mas não me oponho às roupas de grife,
não sou igual às mocinhas de romance.
Vincent gargalhou e Amélia abriu o envelope, curiosa. E
gritou ao ver que não era dinheiro, eram ingressos VIP para a
próxima turnê da Taylor Swift.
— Vincent! Meu Deus, como você… Estavam esgotados!
Meu Deus!
Ela segurou os papéis, tremendo.
— Acontece que ter um namorado piloto de Fórmula 1
tem suas vantagens. — Ele sorriu. — E uma delas é que o
irmão da sua cantora preferida, gosta das corridas. Eu
consegui uns ingressos para a próxima temporada e ele me
garantiu um meet and greet e…
— Meu Deus, eu vou conhecer ela?!
Amélia o abraçou, os olhos cheios de lágrimas.
Ela era fã da cantora há anos, sempre relacionando as
músicas da Taylor com momentos específicos da sua vida,
conforme ela crescia. Podia parecer uma completa besteira,
visto de fora, mas ela não se importava nem um pouco com
isso.
— Feliz, mia bella?
— Tá brincando? Para caralho!
Ela não conseguia parar de sorrir por dias, nem mesmo
quando voltou à Itália, para sua vida de tarefas infinitas em
Mancia, mesmo que ela estivesse desempregada.
Bom, tecnicamente desempregada.
Ela não trabalhava mais na Galeria Torrisi como
obrigação da bolsa MAECI, de mestrado e deveria estar
arrumando seu currículo, mas não conseguia. Com a saída de
Angela, voltando para a França e passando uma temporada
com os pais, e a reforma da ala de Fulvia, as coisas estavam
caóticas.
Afundada em trabalho e responsabilidades, Amélia
aceitou de bom grado uma extensão temporária do cargo, que
deveria ser ocupado pelo próximo selecionado da bolsa, no
começo do ano. Era difícil se imaginar longe de um lugar que
foi sua morada por 2 anos inteiros e que, acima de tudo, ela
amava.
Melancólica e um pouco triste, ela se demorava a fechar
o lugar, os saltos ecoando nas salas vazias e lotadas de obras
de arte, obrigando Vincent a esperar pela brasileira.
— Mia bella, o que você quer jantar?
Ele perguntou, enquanto ele dirigia pelas ruas de
Mancia.
— Pia ligou, dizendo que temos reservas.
— Mas eu não fiz reservas.
— Você não, mas Pia se deu ao trabalho. É a forma dela
dizer “Venham me visitar, ingratos.”
Vincent riu, dobrando na curva e estacionado perto do
canal.
Mancia estava no auge do inverno congelante e naquele
dia 30 de Dezembro, o ar estava pesado e denso, típico da
temporada europeia. Pontilhado de estrelas, o céu parecia uma
grossa camada de tinta azul escura, a lua minguante, fina
como um fio de cabelo, quase invisível.
— E então, campeão, como foram os testes?
Amélia perguntou, assim que se sentaram na mesa
número 8.
— Bem. Arthur fez muitas mudanças no carro. Lembra
do problema com a asa? Finalmente ajustamos e porra, o
projeto está ótimo. Possivelmente vamos levar o top 3 das
equipes esse ano, mais uma vez.
O piloto sorriu, os fios loiros recém-cortados penteados
para trás.
— Emma parecia muito empolgada quando eu falei com
ela. Mencionou termos técnicos demais, não entendi metade,
mas ela estava feliz.
Vincent riu.
— Ela vem fazendo um trabalho incrível lá dentro, nem
parece que está no segundo ano da faculdade. E Satake já
escolheu as possíveis corredoras da Fórmula 2 feminina, viu as
fotos que eu mandei?
— Sim! Não sabia que brasileiras estavam sendo
cotadas também.
— Arthur gosta de dar prioridade ao Brasil. E o piloto
novo também é brasileiro, pelo que eu soube.
— Ah não. — Amélia estreitou os olhos. — Você sabe de
tudo e não vai me contar, não é?
— Não sei de nada…
Vincent sorriu.
— Odeio você.
— Estamos de volta à fase de ódio mútuo?
— Você nunca me odiou de verdade, Di Castelli. — Os
cantos dos lábios dela se ergueram. — Tinha vontade de me
beijar demais para pensar em ódio.
— Eu odiava você justamente porque queria te beijar,
engraçadinha. E você não pode dizer nada, Palhares, me
confessou a mesma coisa mês passado.
— Para a felicidade do seu ego. — Amélia revirou os
olhos. — Deveria ter previsto como isso ia fazer você ficar
insuportável.
— E mesmo assim você me ama.
Vincent beijou sua mão com delicadeza e ela se
derreteu.
— Pior que amo mesmo.
Eles comeram o especial da casa, os dedos um pouco
gelados pelo vento, acompanhado de um Cabernet Sauvignon
direto do Chile e de sobremesa, uma xícara de chocolate
quente. Ainda era cedo quando deixaram o La Fratta, depois
de uma longa conversa com Pia e Niccolo, caminhando ao
longo do canal e aproveitando o silêncio da noite.
Amélia respirou o ar frio, sentindo-se um pouco
sonolenta pelo cansaço, mas disposta a aproveitar o momento
com Vincent. Em breve, o piloto partiria para a próxima
temporada e eles não se veriam por algum tempo.
— Eu estava pensando, Palhares. — Vincent disse,
apertando a mão dela. — O que você vai fazer quando o
contrato temporário com a minha mãe acabar?
— Procurar um emprego em alguma escola de arte,
talvez, até que eu consiga o doutorado. As submissões só
abrem em março, então, tenho um tempo para me preparar
até lá.
— Então você quer dar aulas?
Amélia deu de ombros.
— Não é mais meu plano ser professora, mas não quero
continuar desempregada, vou aceitar o que eu encontrar. Mas
porque a pergunta do nada?
Vincent desviou os olhos, parecendo nervoso.
— Deus, minha mãe vai ficar furiosa comigo, mas foda-
se. — O piloto a encarou. — Minha mãe está pensando em
abrir uma sede da Galeria Torrisi no Brasil e ela perguntou
minha opinião sobre ter você como curadora oficial.
Amélia abriu a boca, em choque. Curadora oficial da
porra de um museu. Um museu!
— Mas… Quer dizer, eu…
— Eu disse a ela que a escolha devia ser totalmente
sua, claro, mas que adoraria se te perguntasse isso. E tudo
bem se você recusar, seu doutorado é seu sonho, mia bella,
mas eu estava imaginando se, caso você diga sim… Podíamos,
não sei, morar juntos no Brasil.
Ele disse rapidamente, as palavras saindo um pouco
atropeladas. A brasileira parou e segurou o rosto dele entre as
mãos.
— Vincent, eu adoraria ser curadora oficial de um
museu. — Amélia sorriu. — E adoraria morar com você
também. Tenho que pensar mais sobre isso, ver as
possibilidades e planos para o doutorado, claro, mas… Caralho!
Um museu! Um museu inteiro sob o meu comando, Vincent.
Isso é muito maior do que eu poderia esperar. E saber que
Anna me escolheu, ainda por cima…
— Você ajudou a Galeria Torrisi a sobreviver, Amélia.
Minha mãe odeia perder um talento e ela continua
impressionada com a sua dissertação.
— Ela é minha obra-prima, entendo Anna. Vou pensar,
meu bem, mas estou terrivelmente balançada, só para você
saber.
— Está me deixando cheio de sonhos Palhares.
— Você e suas fanfics, Vincent. — Os braços dela
contornaram o pescoço do piloto.
— Lembra quando você me disse que era a parte clichê
desse namoro? — Vincent beijou sua bochecha. — Eu sou
leitor de fanfics e romances, aqui, com especialização
acadêmica no assunto ainda por cima. Perdeu seu posto,
Palhares.
— Aceito ceder meu lugar para você.
No final de janeiro, quando o inverno começa a ceder
lugar para a primavera, Anna Di Castelli fez a proposta oficial a
ela.
— Conte as histórias esquecidas, Amélia, mostre ao
mundo o porquê elas merecem ser conhecidas. O Brasil me
parece um ótimo lugar para começar esse projeto e, se você
quiser, o museu fica sob sua responsabilidade.
Amélia encarou o contrato, lembrando-se de outro muito
diferente, que nem sequer chegou a ser assinado. Ela segurou
a caneta entre os dedos, o fôlego preso no peito, refreando a
onda de pensamentos pessimistas e cruéis que insistiam em
invadi-la.
E se você não for o bastante? Patética do jeito que é,
Amélia, vai estragar tudo. E… Ah, que se foda, você.
Escreveu seu nome em um rabisco rápido e preciso.
— Anna, eu prometo que não vou te decepcionar. Vou
dar o meu melhor.
— Foi por isso que eu escolhi você, Amélia e gostei de
você desde o primeiro dia que a conheci, na galeria. — Anna
sorriu — Consigo ver todos os seus medos, assim como a sua
determinação em não deixá-los vencerem.
Mais tarde, com a cabeça descansando sob o peito de
Vincent, ela se permitiu chorar e extravasar a emoção inteira
acumulada, depois de uma vida inteira sempre correndo atrás
de seus sonhos.
— Eu sou a pessoa mais chorona do mundo e até
mesmo no meu momento mais feliz, tô chorando e com o nariz
entupido. Patética ou triste?
Ele riu, os ombros chacoalhando.
— Emocionada, Palhares. E sentimental.
Ele fez carinho nos cabelos dela e a brasileira suspirou,
limpando as lágrimas.
Amélia lutou sozinha por muito tempo, dizendo a si
mesma que seus fardos eram só seus. Perdeu a conta de
quantas vezes, perdida entre o desejo de explorar o mundo e
sentir as chances escapando entre seus dedos, descobriu que
seus sonhos não eram raros ou possíveis. Mesmo depois de ter
se esforçado, dando lágrimas, suor e sangue, querendo algo a
mais.
— Sabe o porquê, na última corrida do ano passado, eu
disse a você que precisava se divertir e relaxar? — Vincent
negou — Por que eu passei tempo demais olhando o lado ruim
e o fracasso, Vincent, as coisas que eu não conquistei.
— E esqueceu de ver o caminho que tinha feito até ali.
— Ela assentiu. — Você me disse uma coisa parecida em
Londres, mia bella. E isso me lembrou que ninguém podia tirar
de mim o amor que eu tenho pela Fórmula 1, mesmo se eu
não levasse o troféu.
— Você perde algumas coisas, ganha outras, Vincent,
mas se esquecer a razão porque está fazendo aquilo, se não
celebrar o momento, qual o sentido? E o medo deixa de existir
depois de perceber isso.
Ele enxugou o rosto molhado dela com carinho.
— Minha corajosa Amélia.
Ela sorriu, antes de beijá-lo, o calor familiar que Vincent
causava em seu peito se espalhando lentamente, aquecendo
as partes machucadas e dolorosas do seu coração.
O amor dele não curaria o mar de caos que era sua
mente, nem a deixaria livre dos medos e dias ruins, que ainda
existiriam pela frente. Mas ela se permitia ser tocada pela maré
de ternura que era Vincent, pela beleza de um amor tranquilo
que a tocava com a gentileza do sol no início da manhã,
pintando seu céu de cores que ela nem podia imaginar.
Amélia ainda estava sozinha, trilhando seu caminho,
suportando alguns fardos, mas celebrando as vitórias
igualmente. Sozinha, mas não solitária, não quando finalmente
tinha o amor que sabia merecer.
Não era o felizes para sempre de seus sonhos, e sim, o
começo de infinitas possibilidades de viver. E ela aproveitaria
cada uma delas.
***
Os flashes das câmera cegaram Vincent por alguns
segundos, mas ele manteve o sorriso, um braço ao redor de
Satake e outro no novo piloto reserva da Redemptio, o
brasileiro Pedro Borges.
A coletiva de imprensa tinha finalmente acabado e
depois das fotos oficiais dos pilotos, eles foram dispensados
para o almoço de comemoração da equipe. Vincent sempre
achava engraçado como todo evento da Redemptio envolvia
muita comida e bebida, até as pequenas reuniões, mas não
reclamou quando pegou uma fatia generosa de lasanha de
berinjela.
Sentado com Emma, Stefano, Satake e Arthur, ele ouvia
as atualizações sobre o início da temporada. Apesar do drama
da edição passada, as coisas não estavam menos calmas
dentro da equipe, especialmente com a organização tentando
se expandir para outros ramos do automobilismo.
— Fibras de carbono parecem melhores para mim. —
Emma disse, os olhos verdes firmes. — O novo chassi não é
uma invenção da aerodinâmica, na verdade, perdemos isso no
novo carro. Trocar o material é a melhor solução.
— Não sei, Emma, os engenheiros não concordam
muito.
— Arthur, você sabe que eu tô certa. — Ela sorriu. — E
que aquele projeto tá ultrapassado.
— Vocês estão discutindo a construção do carro dessa
temporada, uma semana antes da corrida começar? — Vincent
perguntou, a testa franzida.
— Ah não, esse é do ano que vem. — Arthur respondeu.
— Você acha que um carro se constrói em menos de
três meses, Vince? Quero fazer testes com as pilotos da
Fórmula 2, antes de oficializarmos tudo. Stefano, o que acha
de fazer isso no nosso evento de anúncio?
— Uma boa ideia, Emma, mas não fure minha
programação anual. — O social media apontou para ela com
um garfo. — Só no meio do ano.
— Mas podíamos apressar um pouco as coisas…
— Jesus, trabalhar com os Torrisi é sempre assim? —
Satake murmurou, lutando contra um sorriso.
— Depois de todo aquele tempo comigo você não se
acostumou?
— Bom, eu não esperava que vocês fossem todos
iguais.
— Devia ver como as coisas ficam no natal. — Emma
balançou a cabeça. — Segundo minha avó, o melhor de nós é
o Stefano.
— É muito bom ser o neto preferido de Teodora. —
Stefano sorriu.
— Eu sou o preferido dela, Stefano. — Vincent rebateu.
— Nos seus sonhos, Di Castelli.
Eles se empenharam na discussão sobre quem era o
favorito da matriarca Torrisi e Vincent não pode deixar de
sorrir.
Depois de longas e merecidas férias, ele percebeu como
tinha sentido falta das pessoas que eram parte da sua família.
O clima de pré temporada, a velocidade das pistas, as
discussões sobre os projetos dos carros e as apostas sobre
quem se sairia melhor, dominavam grande parte do seu dia.
Mas a melhor parte disso, era o novo clima dentro do
grid.
Vincent percebeu a mudança em Ímola, na corrida
tradicional de Erco Santinelli. Ao chegar no autódromo,
esperando o tratamento frio e distante dos outros pilotos, foi
recebido com uma onda de companheirismo inesperada. Não
havia mais aquele muro que o próprio italiano colocava entre si
mesmo e os outros colegas, parecia ter sido derrubado junto
com Ansel.
E se pegou gargalhando das piadas internas entre eles,
marcando pequenas saídas e encontros, incluso de forma
natural. A coisa era tão surreal, que o piloto ficou esperando o
momento em que tudo ruísse, mas não chegou a acontecer.
— Se divertindo com seus novos amigos?
Stefano perguntou, os óculos de sol na ponta do nariz.
Eles estavam sob a sombra do paddock, logo depois da
reunião oficial da equipe, se preparando para os testes em
Monza.
— Com ciúmes? Você continua sendo meu favorito,
Stefano.
— Eu estou seguro do meu posto. É que fico feliz vendo
você se enturmar com os outros, Vince. — Stefano se
aproximou. — Eu me lembro quando chegou em casa, depois
de vencer sua primeira temporada, feliz e triste, ao mesmo
tempo. Feliz pelo prêmio, triste por se sentir sozinho nas pistas
e não saber como mudar isso.
— Foi antes de Chase e Olivier. Acho que foram meus
primeiros amigos de verdade fora de Redemptio. — Vincent
sorriu, nostálgico. — E tudo porque eu e Chase fomos pegos
em Paris.
— Porra, aquele vídeo! Você bêbado, Chase meio
desesperado… Foi a maior fofoca por meses. E uma dor de
cabeça interminável para mim.
— A parte boa das fofocas, é que sempre uma melhor
aparece para substituir a antiga.
— A parte ruim, é que você fazia questão de estar em
todas elas.
— Gosto de atenção — Vincent esticou o corpo,
acordando os músculos antes de correr.
— Não, você gosta de desviar a atenção. — Stefano
apontou. — Prefere que as pessoas se concentrem na sua vida
pessoal, nos escândalos, para esconder quem é de verdade.
Conheço você por mais de 15 anos, Di Castelli.
Vincent desviou os olhos, o olhar do melhor amigo
queimando em certeza.
— Odeio quando você e Amélia comentam coisas
específicas sobre mim.
— Porque estamos certos. Mas acho que tudo mudou
um pouco, depois do que você me contou. Ainda quer seguir
aquele plano?
— Sim, você conseguiu falar com as pessoas que
indiquei?
— Foi fácil. Já contou para ela?
— Não, vai ser surpresa.
Stefano ergueu uma sobrancelha.
— Sério?
— Eu gosto de ver vocês chocados quando faço alguma
coisa, é sempre bom. — Vincent riu. — Stefano, obrigado.
— É o meu trabalho, Vincent.
— Não, você sabe o que eu quero dizer com isso. —
Vincent o encarou, colocando as mãos no ombro do melhor
amigo. — Obrigado pelo último ano, por estar lá para mim.
Sempre teremos um quarto para você e Toni, no Brasil. Você é
meu irmão, afinal de contas, e eu te amo.
Stefano sorriu.
— Bom saber disso, Vincent, porque me sinto da mesma
forma. Amo você, mesmo que me faça enlouquecer às vezes. E
agradeço a oferta, mas eu e Toni temos outros planos.
— Me diga se eu puder ajudar em alguma coisa. E vai,
finalmente, pedir o cara para morar com você?
Stefano revirou os olhos e Vincent riu.
— Você e Amélia me disseram a mesma coisa e eu só
mencionei que estava procurando um apartamento, sério.
— Porque é bom te ver feliz. — O piloto sorriu. — E
saber que você está com uma pessoa legal, que te faz sentir
isso, é uma das melhores coisas do mundo. Stefano. Merece
ser feliz.
Stefano apertou a mão de Vincent.
— Merecemos, Vincent. Merecemos.
Duas semanas antes da temporada começar, Vincent foi
ao Brasil para eventos com a Redemptio. Ele tinha uma agenda
cheia de campanhas publicitárias, encontros e aparições em
programas de televisão, além de uma sessão de fotos com a
equipe, mostrando as novas instalações.
O tempo tão curto, e o novo trabalho de Amélia, quase
não deu chance para que eles se encontrassem, mas Vincent
estava determinado.
Com o sol de verão brilhando no céu sem nuvens, o
cheiro do mar em seu nariz e cercado de sotaques diferentes,
ele entrou no prédio em reforma, cumprimentando os
trabalhadores. O local escolhido era uma antiga construção
histórica, que, ao invés de ser derrubada, foi tombada como
patrimônio e sua conservação passada à família Torrisi.
Amélia e Anna queriam um lugar com significado para o
projeto e Vincent assistiu os esforços de Teodora, nos
tribunais, para conseguirem manter o prédio vivo. Haviam
poucas coisas que aquelas três mulheres, juntas, não podiam
fazer.
— Sim, eu sei que branco seria melhor, mas a pintura
original é dessa cor. — Ele escutou a voz de Amélia, antes de
vê-la, falando em inglês pelo telefone. — Só mande as tintas,
só isso que estou pedindo. Não tem como? Senhor, eu mesmo
posso ir buscar se for um problema de logística. Ah, achou
uma forma melhor? Bom saber que sempre surge uma solução
quando eu coloco pressão. Me mande as informações, ficarei
no aguardo.
Ela desligou e se virou para ele, abrindo o sorriso que
deixava seus olhos estreitos e seu rosto iluminado. Uma visão
que roubou o ar de Vincent por alguns segundos,
especialmente por saber que ela guardava aqueles sorrisos
para ele.
— Amor. — Amélia o abraçou. — Achei que você estava
ocupado demais, furou algum compromisso?
Vincent a segurou pela cintura.
— Não, só acabei tudo o mais rápido possível para te
ver, mia bella. Como estão as coisas?
Ela suspirou.
— Um caos! Como é possível as pessoas serem tão
difíceis de trabalhar? Fala sério, eu só queria manter o prédio
no estado original, mas ninguém parece a fim de colaborar.
Caralho, não sei como sua mãe conseguiu construir a Galeria
Torrisi sozinha.
— Com muito estresse e brigas com a minha avó. — Ele
beijou a bochecha dela. — Ainda vai demorar muito?
— Não, só vou pegar minhas coisas.
Ela dirigiu pelas ruas lotadas de Coral, ainda enfeitadas
para o Carnaval, enquanto Cazuza tocava no som do carro.
Apesar de sentir falta do país natal, Vincent tinha aprendido a
amar aquela cidade, especialmente com Amélia vivendo ali.
Não só pela distância curta até a praia, como possibilidade de
caminhar sem ser reconhecido, o privilégio da privacidade que
lhe era raro.
A casa onde eles ficavam na cidade, era em um dos
poucos prédios da cidade, asfaltado do centro caótico e no
caminho para a Praia da Andorinha. Era o balanço ideal para
Vincent, que aproveitava os momentos de descanso com
prazer na calmaria de Coral, e a vida caótica de Amélia na
construção do museu.
Vincent teve medo que as coisas entre eles não
pudessem funcionar bem devido ao ritmo maluco de suas
vidas. As viagens dele ao redor do mundo, as corridas e os
eventos. Os estudos de Amélia, a rotina corrida e as próprias
viagens da brasileira para outros lugares.
Mas, com o tempo, eles iam encontrando o balanço
necessário, movidos por doses de saudades e apoio mútuo em
cada etapa.
— Certo, cancelei meus eventos e estou livre para a
Austrália. — Amélia disse, enrolada em uma toalha, depois de
um longo banho acompanhada pelo piloto.
— Bom saber que meu amuleto da sorte vai estar lá.
Ela revirou os olhos.
— Só para lembrar, eu também estava em Mônaco
quando você bateu. Então, talvez, eu não dê tanta sorte assim.
— E também estava em Yas Marina, o que anula seu
azar com a batida.
Amélia riu e se aproximou. Mesmo com o cheiro de
shampoo, era impressionante como ela cheirava a ela mesma,
ameixas frescas, e Vincent sempre associava aquele cheiro a
estar em casa.
— Certo, o que você quer me contar?
Vincent ergueu uma sobrancelha, trazendo-a mais para
perto pela cintura.
— Como sabe que eu quero dizer alguma coisa?
— Você não consegue esconder nada de mim, meu
bem. — Ela passou os dedos pelos cabelos dele, o toque
caloroso e gentil. — Além disso, você sempre está distraído e
abre um sorriso de empolgação quando eu apareço.
— É a emoção de ver você.
— Não, sua cara de rendido por mim, é outra. — Os
dedos dela seguraram o rosto dele e o piloto mordeu o
indicador de Amélia, em brincadeira. — Vamos lá, campeão,
você pode me contar?
Ele suspirou.
— Era para ser uma surpresa…
— Ah, não, agora você tem que me contar!
Ele riu e virou-a de costas, os ombros de Amélia
encostados em seu peito. Vincent afastou os cabelos do
pescoço e encaixou o rosto ali, admirado como ele sempre
relaxava ao tocá-la.
— Sabe aquele terreno perto da praia, que você e eu
comentamos naquele dia?
— Sim.
— Estava conversando com meus contadores e
advogados, sobre a possibilidade de abrir uma escola para o
Instituto D ‘Oro no Brasil. Seria o mesmo modelo do que já
tem na Itália, mas pensando para cá. Eles disseram que seria
uma boa ideia e então, eu pensei, porque não Coral?
Amélia se virou para ele, em choque.
— Vincent, você não fez isso.
— Mia bella, o terreno é ótimo e gigantesco. Estava
vazio há anos e ninguém se interessou em comprar, eu pensei,
por que não? Por mais que eu e você vamos viajar um monte,
como sempre, seria bom poder visitar a futura Escola Dora
Palhares.
Amélia piscou, o lábio inferior trêmulo. Lágrimas se
acumularam nos cantos dos seus olhos e ela riu, o rosto
vermelho de emoção e felicidade.
Vincent queria que o nome da instituição no Brasil, fosse
de uma pessoa que tivesse uma relevância no meio artístico
dentro da cidade. E quando descobriu que a mãe de Amélia
tentou ser uma pintora da juventude, promovendo eventos
voltados para crianças menos favorecidas, ele não pensou duas
vezes.
Dora Palhares, que tinha tanto amor pela arte e passou
a mesma força para suas filhas, também merecia ter sua
história contada. E ele estava mais do que feliz em realizar
aquilo.
— Vincent isso é… É maravilhoso. — Ela riu de novo,
beijando-o com carinho, a língua com gosto de sal das
lágrimas. — Eu nem sei o que dizer, só obrigada, mil vezes
obrigada.
— Para eu conseguir te deixar sem palavras, deve
mesmo ter sido uma surpresa e tanto.
— Sua versão que ama fazer surpresas é uma das
minhas favoritas, mas no momento, eu a amo mais do que as
outras. — Ela disse, se inclinando. Os olhos castanhos
cintilantes, eram a casa dele.
— E isso porque eu não contei sobre o planejamento
das aulas de artes e surf, que estamos pensando em adotar.
Além de um kart, é claro, porque Arthur encheria meu saco
para sempre se eu não fizesse isso.
Amélia balançou a cabeça, ainda sorrindo.
— Eu amo você mesmo, Vincent Di Castelli. Amo tanto,
que me pergunto várias vezes se mereço esse amor e fico
ainda mais feliz ao descobrir que a resposta é sim. E todas as
vezes que descubro uma nova parte de você, um precioso,
iluminado e bonito detalhe do seu coração, amo ainda mais.
Ela disse, naquele tom de certeza universal e inabalável,
declarando cada palavra com carinho e leveza.
— Amo você, mia bella, meu bem, meu amor. — Ele se
demorou ao beijá-la. — Amo todas as suas infinitas versões.
Amo as infinitas versões de nós.
Aquele caminho, o inevitável, doloroso e bonito destino
que o trouxe até a Amélia. Vincent o aceitou. E também o
amou.
Agradecimentos

Escrever os agradecimentos talvez tenha sido a parte


mais difícil. Tudo, porque eu não conseguia pensar nessa parte
enquanto o livro estava em revisão e leitura sensível. Na minha
cabeça de escritora, não tinha como escrever agradecimentos se
a história não estava finalizada.
VDN foi um parto. Um mês de escrita diária, mais de
5.000 palavras por dia, milhares de pensamentos de desistir e
me forçando, muitas vezes, a colocar as ideias no papel. Foi
uma dor completa, ao mesmo tempo que se tornou a minha
maior alegria. Por que eu finalmente consegui terminar um
romance que considero bom o suficiente para chegar até você,
querido leitor.
Então, parafraseando Shibon “Shiv” Roy: um brinde a
mim mesma. Eu consegui.
Mas esse brinde também se estende a minha imensa,
solidária e linda rede de amigos. Minha família do coração, que
me apoiou desde quando tudo isso aqui eram só ideias
aleatórias. Helô, Nathalia, Nat, Deborah, Vitória, Fernanda,
Duda, Ju, Alissa, Emily, Rebeca, João, Victor, José, Iza, Anielson,
Davi,
Clara e Ka. Obrigada é uma palavra tão pequena, mas eu repito,
obrigada.
Especialmente, a todos os amigos que fiz com o Virando a
Página. Mila, Andy, Tine, Vic, Ysa, Hobbs e tantos outros.
Obrigada pelo carinho imenso, vocês são fodas, os amo.
Um brinde também à minha família de criação, que
provavelmente nunca vai ler este livro, mas fica o registro do
meu amor a vocês por me alimentarem com histórias a vida
toda.
E por último, a todos escritores nacionais. Não
mencionarei nomes, porque a lista é extensa e corro o risco de
esquecer alguém, mas saibam que suas histórias me inspiraram
a criar a minha e esse livro jamais existiria sem vocês. Obrigada
parece muito pouco para agradecer, mas repito: obrigada.
Com todo amor do mundo e até uma próxima, Mari.
Sobre A Autora
Maria Luisa Silva, ou simplesmente Malu/Mari, é pernambucana mas
divide sua naturalidade com a Bahia, onde cresceu. Graduanda em
Letras pela Universidade de Pernambuco, começou a escrever aos
14 anos e nunca mais parou. Divide seu tempo entre ler fanfics de
qualidade duvidosa, escrever resenhas de filmes no letterbox, ser fã
da Taylor Swift, falar de livros na Internet e descobrir jogos indies
para platinar.
Versões de Nós é seu primeiro romance e terceira publicação
independente.
@/virandoapaginna
@/mariluisalendo
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