Assim
Assim
Assim
objeto estas
estruturas, processos de socialização/subjetivação
-
próprios a cada campo
-
fazem surgir nos agentes, pela observação de ações e
valorações que se
repetem, disposições a agir d
esta ou daquela forma
-
habitus
-
, sem que a
discussão das causas últimas das regras de funcionamento do
campo seja
cogitável. São maneiras de ser
-
e de falar
-
aparentemente permanentes, mas
certamente duráveis, adquiridas e incorporadas ao longo de toda
a trajetória
social e que podem se ajustar, com maior ou menor precisão, às
exigências de
um universo específico. A aquisição alhures de habitus
incompatíveis com esse
universo condena o agente a estar sempre defasado, mal colocado,
deslocado,
mal na sua
pele. Ante a incapacidade de identificar a causa social do desajuste,
costuma
-
se associá
-
lo a incompatibilidades de essência: “Definitivamente, isto
não é para mim”. (BARROS FILHO; LOPES; BELIZÁRIO, 2004, p.
103)
Os autores reforçam que, em cada universo social, há, para
além de uma
maneira autorizada de usar a voz, um saber prático
incorporado à locução
(BARROS FILHO; LOPES; BELIZÁRIO, 2004). A
percepção de estar incompatível
com as exigências do campo para ter le
gitimidade enquanto enunciador oferece
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às mulheres, muitas vezes, o entendimento de incapacidade
para as funções do
radiojornalismo relativas ao uso dos microfones. Assim,
naturaliza
-
se a
ausência das vozes femininas, compreendendo
-
a, normalmente, como natural.
Tania Morales e Léslie Ferreira (
2022) detectaram, por exemplo, que não houve
estranhamento algum, inclusive do público, à ausência de
mulheres no comando
de programas jornalísticos no horário nobre do rádio
brasileiro entre 2007 e
2014
–
entre a saída de Maria Lydia Flandoli, do Jornal d
a Gente da Rádio
Bandeirantes e a chegada de Rachel Sheherazade à
Rádio Jovem Pan, para o
Jornal da Manhã.
Da mesma forma, os grandes produtos jornalísticos da
história do rádio
se construíram com total ausência de vozes femininas ou
com participações
figurativas e, ainda hoje, pouco se questiona a respeito. A
inserção de mulheres
na apresentação de alguns dele
s, como o próprio A Voz do Brasil
29
, citado de
forma ilustrativa no início deste artigo, só começa a ser
vista com mais
naturalidade atualmente, mas não sem uma resistência
persistente. Não há
indicativos de que, em alguma edição, uma mulher tenha
apresentado o Repórter
Esso, por exemplo. O
tom grave da locução do programa é inclusive relacionado
à confiabilidade do que era dito, conforme Luciano Klöckner
(2008, p. 18): “os
locutores eram ídolos invisíveis e incorporavam o repórter
ao difundir as
informações com voz grave e solene. Com esse
procedimento, a audiência
ficava convencida da verdade absoluta dos fatos”.
A partir da pesquisa bibliográfica aqui apresentada é possível
identificar
a voz como um marcador de exclusão de gênero na
história da radiofonia
brasileira. Exclusão que está presente em alguns pontos
da literatura de
referência, mas que fortalece mais no
implícito do que no que está efetivamente
escrito. Ela existe enfaticamente em elaborações que são
mais estruturais de
uma sociedade que tem em si a resistência a mulheres
que dizem e pode ser
29
Criado como espaço exclusivo de comunicação estatal do Poder Executivo
Federal, o programa
A Voz do Brasil
adotou, principalmente a partir de 2003, linhas editoriais de cunho
jornalístico, apropriando
-
se da linguagem do
radiojornalismo, mesmo que sob a perspectiva governista, e mantendo
-
se, ainda hoje, como fonte e importante de
informação para muitos brasileir
os (Silva, 2018).
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percebida no histórico e na constituição do jornalismo,
para o qual se reforça
sempre a preferência pelo tom grave. É verdade que o tom é
prescrito tanto para
locutores quanto para locutoras. Entretanto, se na variação
aceita para as
mulheres o tom grave r
emete pejorativamente a uma voz de pessoa má, feia
(BESSA, 2004), e o agudo é considerado histérico, atingir
o médio
-
grave ideal
constitui um desafio que, implicitamente, diz a elas que a
voz só estaria certa
se, na verdade, fosse a de um homem.
A hegemonia masculina histórica nos microfones
comprovadamente
indica a exclusão. A forma como os padrões de voz para
ocupar postos
profissionais nas emissoras de rádio foi estabelecendo
-
se e sendo reforçada
como referência aponta para uma marca que parte
da categoria gênero, um
termo que, de acordo com Scott (1995, p. 85), “faz parte
da tentativa
empreendida pelas feministas contemporâneas para
reivindicar um certo
terreno de definição, para sublinhar a incapacidade das teorias
existentes para
explicar as
persistentes desigualdades entre as mulheres e os homens”.
Teorias
estas que, muitas vezes, reforçam como naturais
estereótipos elaborados no
contexto social, como os relativos à voz.
Considerando a história oficial da radiofonia brasileira, e
os muitos
registros sobre os grandes nomes de homens que fazem
parte dela, pode até
parecer óbvio que a voz tenha esse lugar de marcador
de exclusão de gênero.
Contudo, como considera Djamila Ribe
iro (2019, p. 41), “se não se nomeia uma
realidade, nem sequer serão pensadas melhorias para uma
realidade que segue
invisível”. Compreendendo, inclusive, que a exclusão de
mulheres no
radiojornalismo é, ainda hoje, propiciada pelo uso de um
padrão de voz
ideal
como argumento, torna
-
se imprescindível atentar
-
se também para quem são
aquelas que, apesar do sistema simbólico de impedimento,
conquistam espaços
para terem suas vozes ouvidas no rádio informativo. Se
por um lado, no seu
conjunto, elas começam a se
r aceitas nesses lugares, por outro, permanece um
recorte interseccional, que inviabiliza ainda mais o acesso a
mulheres negras e
àquelas que fujam de um padrão cisheteronormativo
. Se aqui utilizamos a
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referência universal do gênero feminino é pela limitação
do foco inicial de
pesquisa, não pelo desconhecimento de que a ausência de
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de mulheres é ainda mais gritante.
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