Abbagnano Religião
Abbagnano Religião
Abbagnano Religião
RELIGIÃO (lat Relígío: in. Relighm. fr. Religion: ai. Religion-, it. Relígione). Crença na garantia
sobrenatural de salvação, e técnicas destinadas a obter e conservar essa garantia. A garantia
religiosa é sobrenatural no sentido de situar-se além cios limites abarcados pelos poderes cio
homem, de agir ou poder agir onde tais poderes são impotentes e de ter um modo de ação
misterioso e imperscrutável. A origem sobrenatural da garantia não implica necessariamente
que ela seja oferecida por uma divindade e que. portanto, a relação com a divindade seja
necessária à R.: na realidade, existem K. ateístas, como o budismo primitivo, retomado e
defendido neste seu caráter por escolas posteriores (cf. G. Tvcci, Storia delia filosofia indiana,
pp. 71 ss.; 312 ss.). Além da determinação da relação cio homem com a divindade, a função de
demonstrar a existência desta e de esclarecer suas características e funções em relação ao
homem e ao mundo sempre foi atribuída mais á filosofia qtie â R.; o cumprimento dessa tarefa
pode até ter caráter antireligioso, como aconteceu no epicurismo. que pretendeu estabelecer
ao mesmo tempo a existência da divindade e sua indiferença para com o mundo e os homens,
regulando com base nisso as relações da divindade e do homem. (EPICIRO, Carta a Meneceit,
123-24; FII.ODKMO, De pietate, p. 122; fr. 38, Usener). Por outro lado, hoje, para alguns
teólogos, a relação entre o homem e Deus é artigo de fé, e não de R., porque não depende das
formas míticas que a R. assumiu e é constitutiva da existência humana no mundo (v. FÉ: DEI S;
Di-:rs, MORTE DIO. F.m qualquer caso, a salvação de que a R. pretende ser garantia não se
refere necessariamente a este ou aquele mal do mundo: pode inclusive significar livrar-se do
mundo, já que este é considerado um mal em sua totalidade, como cie fato acontece no
próprio budismo. Além disso, na definição proposta, convém sublinhar a diferença entre a
cre)iça na garantia sobrenatural e as técnicas que permitem obter ou conservar tal garantia.
Por técnicas entendem-se todos os atos ou práticas de culto: oração, sacrifício, ritual,
cerimônia, serviço divino ou serviço social. A crença na garantia sobrenatural é a atitude
religiosa fundamental, podem cio ser simplesmente interior e pessoal (religiosidade
individual); ao contrário, as técnicas destinadas a obter e conservar essa garantia constituem o
lado objetivo e público da R., seu aspecto institucional. l'ma R. natural d constituída
simplesmente por essa atitude; Lima R. positiva é constituída essencialmente por essas
técnicas. O conceito de R. compreende ambos os aspectos. Ftimologicamente, essa palavra
significa provavelmente "obrigação", mas, segundo Cícero, derivaria de relegere: "Aqueles que
cumpriam cuidadosamente todos os atos cio culto divino e, por assim dizer, os reliam
atentamente foram chamados de religiosos — de relegere —, assim como elegantes vem de
elegere, diligentes de cliligere e inteligentes de intelligere-, de fato, em todas essas palavras
nota-se o mesmo valor de legere, que está presente em R." (De ncit. c/eor., II, 28. ""2). Para
Lactâncio (Inst. Div., IV, 28) e S. Agostinho (Retract., I, 13), porém, essa palavra deriva de
religare, e a propósito Lactâncio cita a expressão de Lucrécio "soltar a alma dos laços da R."
(De rei: nat., I, 930). Deve-se notar também que o grego não possui o equivalente exato cia
palavra latina e moderna. Aocipeía significa serviço divino; portanto, refere-se apenas ao
segundo dos elementos da R. S. Agostinho (De civ. Dei, X, 1) estabelecia a correspondência
entre religio e 0pr)O7reía, mas também esta palavra se refere exclusivamente às técnicas cia R.
As diterentes definições até hoje feitas de R. podem ser classificadas com base nos dois
problemas fundamentais a que correspondem, a saber: I. Com base no problema da origem da
R., que na realidade é o problema do tipo de validade da R.; II. Com base no problema da
função atribuída à R., ou seja, o caráter específico da garantia que ela oferece à salvação do
homem. 1. Como acontece também em outros casos, o problema da origem consiste na
realidade em saber que tipo de validade se pretende atribuir à R. V. possível distinguir três
soluções para este problema, a saber: Ia a doutrina da origem divina da R.; 2- a doutrina da
origem política; 3a a doutrina cia origem humana cia religião. I a A doutrina da origem divina
expressa o reconhecimento do valor absoluto (ou infinito) da R. \l óbvio que a pretensão cie
ter origem divina ou sobrenatural é intrínseca em qualquer R., já que todas elas afirmam ter
como fundamento uma revelação originária que garante sua verdade ou consideram as
crenças e as instituições com que se identificam continuamente confirmadas por testemunhos
sobrenaturais, o que é o mesmo. Portanto, do ponto de vista cia filosofia, o reconhecimento
cia origem divina ou do valor absoluto da R. concretiza-se na tese de que a R. é revelação.
Pode-se dizer que essa tese nada mais é que a expressão filosófica do valor absoluto que a R.
se atribui. Esse ponto cie vista foi expresso com toda a clareza por Hegel: "No conceito da
verdadeira R., que é aquela em que está contido o Espírito absoluto, está posto
essencialmente que ela é revelada, e revelada por Deus" (linc, § 564). E acrescenta que "se a
Deus for negada a revelação, não restaria outro conteúdo a atribuir-lhe senão a inveja. Mas. se
é que a palavra espírito tem sentido, significa a revelação de si" (Ibid.. § 560. Não é diferente
deste o conceito que Schleiermacher tinha de R: "O universo é uma atividade ininterrupta que
se nos revela a todo momento. Todas as formas que ele produz, todos os seres aos quais dá,
pela plenitude da sua vicia, uma existência particular, todos os acontecimentos que ele gera
em seu seio sempre rico e fecundo, correspondem a uma ação que ele exerce sobre nós;
assim, em aceitar cada coisa particular como parte do Todo, cada coisa tinira como expressão
do Infinito, consiste a R." (Reden über die Religion, 1799, II; trad. it., p. 39). Pode-se expressar
essa mesma doutrina afirmando que a R. é a experiência do divino e que, como toda
experiência, revela a realidade de seu objeto. Este era o conceito que Bergson tinha cia R.
autêntica, ou seja, o misticismo: "Se as semelhanças exteriores entre os místicos cristãos
dependem de uma comunidade de tradições e de ensinamentos, seu acordo profundo é sinal
de identidade de intuição, que pode ser explicada de maneira mais simples pela existência real
do ser com o qual acreditam estar em comunicação" (Deit.x soitrces, III; trad. it., pp. 270-71).
í ! A doutrina da origem política reduz a R. a um estratagema político: portanto, anula seu valor
intrínseco. O primeiro a defender essa teoria foi Crítias, um dos trinta tiranos de Atenas.
Segundo ele, "os antigos legisladores inventaram a divindade como uma espécie de inspetor
das ações humanas, boas ou más. a fim de que ninguém ofendesse ou traísse seu próximo, por
medo cia vingança dos deuses". Esse estratagema foi necessário porque "as leis realmente clis-
RELIGIÃO «•18 RELIGIÃO suadiam os homens de praticar violências às claras, mas eles as
cometiam às escondidas", de tal maneira qtie "algum homem talentoso e experiente inventou
o temor dos deuses para que os malvados se sentissem amedrontados mesmo no que
fizessem, dissessem ou pensassem às escondidas" (SKXTO EMPÍRICO, Ac/r. math., IX, 54).
Concepções análogas recorrem de vez em quando na história da filosofia: podem ser
reconhecidas no libertinismo e em algumas correntes do iluminismo e do marxismo. 3" A
doutrina da origem humana considera a R. como formação humana, cujas raízes estão na
situação do homem no mundo. Essa doutrina não está empenhada em atribuir à R.
determinada validade, mas sim em compv eentAè -VA wmo ienômeno humano v expressá-la
num conceito suficientemente amplo para abranger todas as suas manifestações mais
díspares. Essa concepção orientou-se para dois tipos de explicações. O primeiro considerou a
religião como uma torma de satisfação da necessidade tcorética, ou seja, de conhecimento. O
segundo considerou que a R. 6 sugerida ao homem pela situação em que ele se encontra no
inundo, substancialmente por suas necessidades práticas. Solução do primeiro tipo encontra-
se em Hpicuro, para quem a origem da R. está nas imagens oníricas e na necessidade humana
de explicar a regularidade dos movimentos celestes (Li iCRí:cio, De rei: nat.,\, 116" ss.). A R.
seria mais contemplativa que prática. Hobbes foi o primeiro a atribuir-lhe origem prática;
citando as palavras de Estácio " Primus in orbedeosfecil linior" ( 1'heb., III, 661), Hobbe s
afirmava que a principal causa do aparecimento da R. é o temor que nasce da incerteza do
luturo: "Por ser inegável que existem causas para todas as coisas que existem ou existirão, é
impossível, para o homem que tenta prevenir-se contra os males que teme e obter os bens
que deseja, deixar de viver em contínua preocupação com o porvir, de tal maneira que todos
os homens, sobretudo os mais previdentes, vivem num estado semelhante ao de Prometeu."
F. desse estado de temor, bem como tia esperança de garantir os bens de que necessita e do
desejo de atingir um conhecimento completo do mundo, que. segundo Hobbes, nasce a R.
(Leviath.. 1. 12). Doutrina análoga, mas exposta de maneira mais pormenorizada, foi
reapresentada por Hume em História natural dei religião (17V7). A R. não surge da
contemplação, mas do interesse do homem pelos acontecimentos tia vida e, portanto, das
esperanças e dos temores incessantes que o agitam. Suspenso entre a vida e a morte, entre a
saúde e a doença, entre a abundância e a privação, o homem atribui a causas secretas e
desconhecidas os bens cie que frui e os males pelos quais é continuamente ameaçado (Natural
fíistoiy of Religion, II. em lissays, II. p. 316). Voltaire expunha da seguinte maneira esse mesmo
conceito: "fi natural que um povo, assustado com o trovão, afligido pela perda de stias
colheitas, maltratado pelo povo vizinho, sentindo todos os dias a sua fraqueza, sentindo por
todos os lados um poder invisível, tenha finalmente dito: 'Há algum ser superior a nós que nos
faz bem e mal'" (Dictíounaire philosophiijue, 1764, v. ReUgkvn. ÍU. Kssa doutrina eclipsou-se no
início do séc. XX. Por um lado, mesmo o conceito romântico cie R. como revelação ou
sentimento tio infinito foi compartilhado até por filósofos que negavam a validade da R.
Feuerbach, p. ex., transformando a teologia em antropologia, afirmava: "A R. 6 a consciência
tio infinito: por isso, não é e não potle ser outra coisa senão a consciência que o homem tem
da infinidade de seu ser, e não de sua limitação" ( Wesen der Cbristeiithum, 18-íl, § 1).
Analogamente, Max Müller via a essência da R. na potencial capacidade humana de
"apreender o infinito" ( Voiiesuiigen überdeii l'rspruiif> uud die F.ntwickhtng der Religion,
1880, p. 28). F.mbora, com essas expressões, se pretendesse ressaltar a origem humana da R.,
lançava-se mão de conceitos que se prestavam mais a exprimir sua origem divina e seu valor
absoluto. Por outro kido. também no campo da investigação sociológica, que começava a
examinar as formas de R. tios povos primitivos, manifestava-se a tendência a considerar a R.
como contemplação, interpretando-a como concepção tio mundo (ou filosofia) certamente
grosseira, mas não destituída de certa coerência. K. B. Tylor via a essência da R. primitiva no
auimismoiw), que é a crença em seres espirituais considerados presentes em todas as coisas e
causadores de todos os eventos (Primitive (hilture, 1871). Nesses termos, a R. seria Lima
metafísica da natureza. Segundo Durkheim. porém, ela seria metafísica da sociedade; para ele,
R. é "o mito que a sociedade faz de si mesma", no sentido de que "sociedade é a realidade que
as mitologias representaram com tantas formas diferentes, mas que é a causa objetiva,
universal eRELIGIÃO 849 RELIGIÃO eterna da.s .sensações suigetwrísdc que é feita a
experiência religiosa" (Formes élémentaires de Ia i'ie religieuse, 1937, p. 597 ). Isso quer dizer
que a R. primitiva consiste em atribuir a uma suposta realidade as características da sociedade
primitiva: as que essa sociedade considera essenciais para si mesma. Essas teses baseavam-se
principalmente numa interpretação do tolcinisnio: para Durkheim, o totem 6 símbolo da força
que sustenta o indivíduo: a própria sociedade: nela, a mente primitiva haure todas as suas
categorias para a interpretação do mundo. Assim, para Durkheim, a R. tem um caráter
contemplativo, também atribuído a ela por outro grande sociólogo francês. I.ucien I.évy-Bruhl.
que expressa essa tese identificando com o misúeismo não só a K., mas a vida dos povos
primitivos em sua totalidade (I.e.xpérieuce mystique et les symboles chez les príniitifs, 193<-i).
Para todas essas correntes filosóficas e sociológicas, a R. é. em sua origem, um fato cognitivo: é
uma tentativa de explicar o mundo ou de formar uma idéia do mundo com base em certo
número de experiências mais freqüentes na vida dos homens. O retorno à concepção
setecentista de R., segundo a qual sua origem está na situação do homem no mundo, verifica-
se apenas nas correntes mais modernas e críticas da sociologia. Foi W. Robertson Smith quem
começou a insistir na importância assumida pelo segundo dos dois elementos (as técnicas) na
R. primitiva. "A R. nos tempos primitivos não foi um sistema de crenças com aplicações
práticas: foi um corpo de práticas tradicionalmente fixadas, às quais todos os membros de uma
sociedade se conformavam naturalmente. Os homens criam regras gerais de conduta antes de
começarem a expressar em palavras os princípios gerais; as instituições políticas são mais
antigas que as teorias políticas e, de maneira semelhante, as instituições religiosas são mais
antigas que as teorias religiosas" {hectares ou lhe Religion oftho Semites, 19(F, p. 16). Mais
tarde, a obra de G. Prazer (The Coklen Bough, 1911-14) mostrava a estreita conexão entre R. e
magia, partindo da consideração de que o homem é dominado em primeiro lugar pela
preocupação de controlar os acontecimentos naturais, com o objetivo de submetê-los às
exigências da vida. A diferença entre magia e R., segundo Frazer, consiste no seguinte: a
primeira tende ao controle direto dos acontecimentos naturais, ao passo que a segunda
procura os meios de tornar propícios os poderes superiores que dominam a natureza. Ksta foi
a doutrina mais aceita por sociólogos e filósofos. A. Loisy sustentava um ponto de vista bem
próximo ao cie Frazer (Hssai historicjue sur le sacrifico, 1920) e H. jVIalinowski apresentava
novas provas para a mesma tese. Segundo Malinowski. a R. e a majjia surgem e funcionam em
situações de tensão emocional: crises da vida, tentativas malogradas, morte e iniciação nos
mistérios da tribo, ;imores infelizes e ódios insatisfeitos. R. e maj>ia também têm em comum o
fato de oferecerem uma saída para tais situações por meio de crenças e práticas que se
referem ao domínio tio sobrenatural. Distinguem-se contudo pelo fato de a magia utilizar
técnicas limitadas e simples, eTuriiviTiVo a H. cornpTeeTieVe vim corrjvinto de técnicas; a
magia limita-se a uma classe cie pessoas que faz dela profissão, ao passo que a R. é assunto de
todos, e cada indivíduo participa dela ativamente. Por fim, ambas têm fundões diferentes: a da
magia é suprir a deficiência ou a imperfeição dos instrumentos naturais c'om instrumentos
sobrenaturais, enquanto a função da religião é fortalecer certas atitudes especiais, como a
coragem e a confiança na luta contra as dificuldades (Xhigic. Science and fieligion, 1925). Não
muito diferente desta, embora expressa em termos teológicos e místicos, foi a tese defendida
por Rudolf Otto em seu livro intitulado O sagrado( 191"7 ). Segundo Otto, cleriva do medo o
sentimento de estar em presença de um poder superior, que se cristaliza naquilo que ele
chama de trememliim ou l)iaieslas; deriva do sentimento de desesperança, impotência,
insignificância o sentimento criatunüdescrito no Antigo Testamento; e das fantasias
compensadoras nasce o conceito daquilo que é completamente outro, que se mistura aos
acontecimentos mais corriqueiros sem deixar de parecer novo e estranho. Assim, os
ingredientes do sobrenatural eram atribuídos, também por Otto. à situação do homem no
inundo. F.sse foi o ponto de partida das mais modernas teorias da religião. Segundo Freud. a R.
"dá aos homens inlormações acerca da fonte c tia origem tio universo, garante-lhes proteção e
felicidade final apesar da.s eambiantes v icissitudes da vida e guia seus pensamentos e nuas
ações com preceitos apoiados na força da ;tutoridade" (A i\'eit] Series of Introductory ioclitros
ou 1'sycho-Aualysís, 1933, p. 220). Com esses fundamentos, Freud acredita que a R. consiste
na crença de um pai sobrenaturalRELIGIÃO RELIGIÃO que protege os homens dos perigos,
recompensando-os ou punindo-os conforme o caso. Assim, a relação entre o homem e a
divindade estaria moldada na relação entre pai e filho (Ibicl., pp. 222 ss.). Sem levarem conta o
fundo psicanalítico desta concepção, pode-se dizer que ela não difere muito das outras
mencionadas anteriormente: a R. é entendida como corretivo, defesa ou protesto diante da
situação de incerteza que o homem encontra no mundo, liste é também o conceito que
Bergson apresenta de R. estática, ã qual ele opôs a A', cliuâmica (o misticismo). R. estática
seria. pois. "a reação defensiva da natureza contra o poder desagregador da inteligência", no
sentido cie que a inteligência mostra claramente ao homem a incerteza e os perigos da vida,
bem como a inexorabilidade da morte, enquanto a R. seria o conjunto das reações defensivas
contra as representações intelectuais da condição humana no mundo (Deux sourccs, 1932,
cap. II, trad. it.. pp. 131 ss.). Estritamente sobre a R. primitiva, tese análoga foi defendida com
base em ampla documentação por P. Radin em seu livro sobre a R. dos primitivos (Primitive
keligion, ils Xatiire and Origiu, 1937). II. O segundo dos problemas aos quais as definições de R.
já propostas pretendem ciar resposta é o da função específica cia R. Esse problema pode ser
entendido em dois sentidos. Fm primeiro lugar, para o problema da garantia de salvação que a
R. pretende oferecer ao homem, é possível distinguir três soluções principais: Ia a R. como
meio cie libertar-se do mundo; 2a a R. como verdade; 3- a R. como moralidade. Km segundo
lugar, o próprio problema pode ser entendido do ponto cie vista da lunçào exercida pela R. na
sociedade ou na economia geral da vida humana (4a ). I a A garantia que a R. pretende
oferecer ao homem pode ser antes de mais nada a de libertá-lo do mundo, que é considerado
um mal. Essa é a doutrina do budismo: "Não se eleve fruir aquilo que nasce e se transforma,
aquilo que se forma e constitui, que é instável, dependente cia velhice e da morte, fonte de
doenças, frágil, surgido do trânsito dos alimentos. Fugir desse estado significa encontrar outro
estado, tranqüilo, situado além cio domínio do pensamento, estável, não nascido, não
formado, sem dor, sem paixão, felicidade que põe fim ás condições de miséria e destrói para
sempre os elementos da existência" (Itiviittakxu 43, trad. Pavolini). Esse estado de destruição
da existência chama-se nirvana. Mas. segundo o próprio budismo, o nirvana também é o
estado de bem-aventurança de quem. já nesta vida. eliminou o desejo e, portanto, o germe da
futura existência. Desse ponto de vista, a salvação é concebida pelo budismo não só como
libertar-se do mundo, mas também como libertarse dos males do mundo. Esses dois aspectos
estão presentes em muitas R., com exceção da de Israel, que ignora o primeiro: a promessa de
bem-aventurança a ser alcançada além do mundo ou após a morte costuma ser acompanhada
pela promessa de felicidade, de paz ou de bem-estar já na vida terrena. Quando a felicidade ou
a paz pode ser alcançada nesta vida só com a superação da condição humana e da (leificação,
que é a união com Deus e com o princípio cósmico, tem-se o »iisticis»io(\.). No misticismo.
Bergson viu a R. dinâmica, a continuação supra-orgânica do clã vital, o impulso para a criação
de uma sociedade nova, baseada no amor universal (Den.x sourccs, 1932. cap. III). Na
realidade, o misticismo é apenas uma das soluções para o problema cia salvação, sendo típico
de uma religiosidade pessoal, contemplativa e solitária, para a qual as atividades e as relações
humanas são alheias e insignificantes. 2 a A garantia infalível tia verdade é pretensão implícita
em qualquer R. Do ponto de vista filosófico, essa tese apresenta-se como identidade entre R. e
filosofia, com diferenças puramente formais entre elas. Essa foi, p. ex., a teoria defendida por
Hegel: "A filosofia tem o mesmo objeto cia R. porque ambas têm como objeto a verdade, no
sentido superior da palavra, porquanto Deus. e somente Deus. é a verdade" (Fiic § 1). Todavia,
a R. distingue-se da filosofia por não expressar a verdade em forma de conceito, mas em forma
de representação c sentimento. Hegel diz: "R. é a relação com o Absoluto na forma de
sentimento, de representação, de fé; no seu centro, que tudo abarca, tudo está apenas como
algo acidental e evanescente" (/•'//. do c/ir., § 270). Portanto, aquilo que a R. intui de modo
acidental, aproximativo e confuso é demonstrado com caráter de necessidade pela filosofia
(Ene. § S^3). Está claro. porém, que a doutrina da identidade entre R. e filosofia também pode
ser afirmada do ponto de vista da superioridade da R. como forma ou revelação da verdade: é
o que faz a filosofia da fé de Haman, Herdei" e Jacobi, à qual o próprio I legel se opõe (v. Fi;,
FILOSOFIA DA). Contudo éRELIGIÃO 851 REUGIAO evidente c|ue nesse easo não é à religião
que se confia a garantia da verdade*, mas a um órgão, a fé. da qual depende a validade da
filosofia e tia R.. bem como de qualquer outro tipo de saber. Portanto, atribuir à R. como
objetivo específico a verdade na maioria das vezes significa, do ponto de vista filosófico,
atribuir-lhe' a função de manifestar a verdade numa forma sem dúvida infalível e certa, mas
inferior à forma que" a verdade pode assumir em filosofia. Assim, para Gentile, a R. é "a
exaltação do objeto subtraído aos vínculos do espírito, no que consiste a idealidade. a
cognoscibilidade e a racionalidade do objeto" (Teoria gen. de/Io spirito. 1913. XIV. 7).
Portanto, a essência da R. é o misticismo, que é a anulação do sujeito no objeto, eiu virtude do
e\ue o ser ele Deus é o nào-ser do sujeito (í)iscorsi di ivligione. 1920. p. 78). A R. encontra sua
verdade* apenas na filosofia, que resolve Deus no ato do pensamento. "Como pode esse Deus
ser uma vontade a reconhecer, suplicar e esconjurar, ã qual é preciso subordinar-se, se Deus
está dentro do homem, do seu eu, sendo propriamente o seu eu em seu atualizar-se?"
(Sistema di lógica. II. 1922, IV. 8. -4). De maneira mais clara e insofismável. Croee disse que a R.
é uma forma provisória e imperfeita cie filosofia, e por isso o lilósofo deveria ver o religioso
como "o seu irmão menor, ele mesmo num momento anterior" (/•'//. delia pratica. 1909, p.
314). 3'1 É crença bem antiga que a R. garante os valores morais do homem, entendendo-se
por morais os valores que* regulam a ordem da vida social. Era essa a função que Platão
atribuía à R.: "A divindade que, segundo a tradição, rege o princípio, o fim e o curso de todos
os seres, e procede conforme sua natureza no seu movimento circular; atrás dela vem sempre
a justiça punitiva para quem despreza a lei divina" (Leis, 715 e, 716 a). No mundo moderno,
esse ponto de vista foi adotado e defendido por Kant: "A R., considerada do ponto de vista
subjetivo. 6 o conhecimento de todos os nossos deveres como mandamentos divinos. A R. em
que preciso antes saber que* alguma coisa é um mandamento divino para considerá-lo meu
próprio dever e a R. revelada (ou que exige uma revelação); ao contrário, a R. em que devo
saber que algo é um dever antes de considerá-lo um mandamento divino, é a R. natural"
(Keligiou. IV, seç. I). Kant observa que essa definição cie R. previne várias interpretações falsas
desse conceito. F.m primeiro lugar, exclui que a R. exija ciência cie' Deus e inclui que basta
possuir a simples idéia de Deus. Km segundo lugar, essa definição previne a "falsa idéia de que
a R. é um conjunto de dev eres especiais que' se relerem imediatamente a Deus", e impede,
portanto, que. além cios deveres humanos ético-sociais, sejam admitidos "os serviços corteses
com que poderíamos tentar compensar nossas faltas piira com os deveres da primeira espécie"
(Ibid., IV, seç. I, nota). Nesta interpretação, porém, o que* a R. garantiria seria o absolutismo
ck) mandamento moral: não garantiria (porque isso é da alçada cia liberdade humana) a
efetivação elo mandamento moral, isto é. a realização propriamente dita dos valores morais
no mundo. Contudo, na maior parte das ve/.es pede-se ou atribui-se à R. esta segunda espécie
de" garantia: de que os valores morais e, em geral, os que interessam ao homem e á sua vida
espiritual não fiquem confiados unicamente á boa vontade humana, mas encontrem na
providência divina a sah aguarda infalível, capaz de garantir seu triunfo final. Neste sentido, H.
Hóffding afirmou que a R. é a "crença na conservação dos valores" (Religiouspbilusopbíe, 1902,
p. 13); a fé religiosa seria a convicção "da solidez, da certeza e cia continuidade da relação
fundamental dos valores com a realidade" (Ibid.. 1902, p. 105). Esse é precisamente o
otimismo providencialista que muitas correntes filosóficas idealistas e espiritualistas haurem
ou pretendem haurir na R., em nome do qual instituem apologéticas religiosas mais ou menos
engajadas. 4 a Não mais considerando a R. em termos ek* garantia sobrenatural cie sah ação.
mas com referência às relações inter-humanas. nas quais se insere como sistema de crenças e
de instituições, é fácil evidenciar a sua utilidade biológica e .social. Não que haja acordo
unânime entre os filósofos sobre esse aspecto. Ao afirmarem a não-ingerência da divindade
nas atividades humanas, os epicuristas tinham em vista eliminar o medo que os deuses
inspiravam, pois consideravam a R. como um motivo suplementar de preocupação e medo. e
não de ajuda (cf. EPICt'RO. Fp. a Menaceu. 123; Ep. a Heródoto, 11; Mass. Cap., 1). Alguns
sociólogos contemporâneos tampouco deixaram de observar que muitas vezes os ritos
religiosos e as crenças a eles associadas são motivo de angústia, de tal maneira que o efeito
psicológico do ritual parece ser um sentimento de insegurança e perigo (cf.REMINISCENCIA
852 RENASCIMENTO A. R. RADCUFFK-BRONXN, StructureandFunction in Primitive Society.
1952, pp. 148-49). Mas mesmo nesses casos é possível reconhecer a função social da R., na
forma de fortalecimento cios laços sociais, principalmente nas sociedades primitivas UbícL, pp.
157 ss.). A. Loisy dizia: "F.ntregue à ação dos elementos, do clima, daquilo que a terra dá ou
recusa, da boa ou má sorte na caça e na pesca, das vicissitucles na luta contra semelhantes, o
homem acredita encontrar um meio de regularizar com simulacros de ação as suas
possibilidades mais ou menos incertas. O que faz não tem utilidade para o objetivo almejado,
mas ele ganha confiança em seus feitos e em si mesmo; ousa e, ousando, realmente obtém
mais ou menos o que quer. Confiança rudimentar por vias humildes, mas 6 o começo da
coragem moral" (Essai historiqitc sur Io sacrifico, 1920, p. 533). Esse ponto de vista foi
desenvolvido mais tarde por Malinowski (Magic, Science and Religion, ed. Anchor Books, 1925,
p. 89). Como vimos, é mais ou menos isso que Bergson pensa. Trata-se de ponto de vista válido
sobretudo para as sociedades primitivas, mas também se sabe (v. PRIMITIVOS) que a
sociologia contemporânea tende a eliminar o abismo entre mentalidade primitiva e
mentalidade civilizada. Ultrapassados os limites de controle cios acontecimentos por meio de
técnicas racionais — limites, ademais, bastante estreitos — o homem reivindica liberdade cie
fé e entrega-se a crenças libertadoras ou consoladoras, a técnicas que lhe prometam salvação
infalível. Obtendo ou não o cumprimento dessas promessas, a função dessas técnicas é bem
clara: dar esperança e coragem, consolidar as relações com os outros homens e com o mundo.