Fichamento Caosmose - Um Novo Paradigma Estético - Guattari

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Caosmose: um novo paradigma estético – Guattari

No lugar de querer fazer reduções da arte através de esquemas políticos, eu preferiria


que fizéssemos recomposições políticas através das riquezas da arte (GUATTARI, 1995,
p. 10).

Na entrevista citada algumas vezes nesse trabalho, desse mesmo ano de 1992,
Guattari dizia (2013, p. 306): “Hoje, ela [a transversalidade] mudaria ainda com o
conceito de caosmose, porque a transversalidade é caósmica, ela está sempre ligada a
um risco de mergulhar fora do sentido, fora das estruturas constituídas”. Se busquei
mostrar que a linha das transformações da transversalidade segue na direção de um
aumento crescente da desterritorialização, sempre um “mais de fuga”, um fascínio e,
ao mesmo tempo, uma tentativa de pensar os processos hiper-desterritorializados, –
nas suas transformações dos anos 60, 70 e 80, como marca Guattari -com a caosmose
não será diferente.

Este movimento, então, do infinito, é, ao mesmo tempo, um movimento da existência,


na medida em que existo o que eu chamo ‘uma submersão no caos do universo’, uma
apropriação dos universos e uma recarga, uma reposicionalidade, de uma
complexidade diferenciada, através de mundos subjetivos, estéticos, etc. Portanto,
vejo a coexistência entre o movimento infinito do caos e o movimento infinito da
complexidade; a afinidade está sempre em uma interface que chamo a submersão
caósmica (GUATTARI,
1994, p. 210)

A transversalidade, com a caosmose, é, pura e simplesmente, a existência.


Transversalidade existencial. Já era, sob a luz de um eterno retorno reavaliador, assim
em todas as suas aparições. “Já era”: eis aí um modo de dizer que pode atrapalhar,
pois ela só pôde se tornar assim, retrospectivamente, por ser, a cada vez, recomposta,
reafirmada. A própria ideia de existência se torna apreensível segundo a ideia da
transversalidade caósmica. Uma vez que a caosmose é, precisamente, a
transversalidade entre os movimentos infinitos do caos e da complexidade.

A própria história da construção dessa palavra tenta captar, de modo processual e não
dialético, esta conexão entre dois movimentos infinitos no seio do mesmo e
indistinguível movimento infinito da existência. Como se o plano de transversalidade
fosse uma dobra do plano de existência, este, uma dobra, em sentido inverso e
complementar, que vai ao encontro, do plano de transversalidade. Ambos, disfarçados
um no outro, formam uma espécie de núcleo da encruzilhada onde outros planos
podem e puderam passar. Um plano de imanência filosófico, um plano de referência
científico, um plano de composição estético... Como escrevia Deleuze (2003, p. 357),
“Félix sonhava, talvez, com um sistema em que certos segmentos seriam científicos,
outros filosóficos, outros vividos, ou artísticos, etc. Félix se eleva a um estranho nível
que conteria a possibilidade de funções científicas, conceitos filosóficos, experiências
vividas, criação de arte”.

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O que muda com o livro de 1992? Chaosmose, talvez, seja uma tentativa de dobrar
ainda em outra direção, pois o problema de fato mudou. Não é mais o
empreendimento de definição do que consiste a atividade filosófica, de prolongar e
alargar o problema da criação fincado em um determinado, específico, mergulho no
caos. Por outro lado, não se trata de transformar a arte em “ator principal” em
contraste com a filosofia. A principal razão é que o paradigma estético não vai
contradizer a transversalidade elaborada entre arte, filosofia e ciência, fazendo com
que a arte, estrito senso, passasse para uma posição privilegiada, régia

Ao invés de privilegiar as práxis que mergulham no caos e, evidentemente, sem perder


de vista o trabalho nesta direção, Guattari está preocupado com o que sai do caos,
com os processos que a ele pertencem. É por isso, creio, que, ao invés da filosofia, da
arte e da ciência, Caosmose indique uma tentativa de repensar a política, a ética e a
estética, como modulações de qualquer práxis criadora. A direção da seta mudou. Não
mais das práxis em direção aos movimentos infinitos e existenciais do caos e da
complexidade. Mas o que sai destes movimentos em direção a toda e qualquer práxis
–como um chamado, um apelo. Estética, nesse sentido, não pode ser confundida com
a arte, como uma atividade específica relativa aos artistas. E esse é um dos motivos
que implicará, em diversos momentos, que Guattari também afirma e batize esse seu
“novo paradigma” de “paradigma político”, “ético-político”, “ético-estético”, “político-
estético” etc. É possível notar o tom de retomada, em diversos trechos, do “esquema”
de O que é a filosofia?. Como escrevia Guattari (1992, p. 130): “a potência estética de
sentir, embora igual em direito às outras – potências de pensar filosoficamente, de
conhecer cientificamente, de agir politicamente -, talvez esteja em vias de ocupar uma
posição privilegiada no seio dos Agenciamentos coletivos de enunciação de nossa
época”.

Com os Agenciamentos maquínicos desterritorializados, cada esfera de valorização


erige um pólo de referência transcendente autonomizado: o Verdadeiro das
idealidades lógicas, o Bem do desejo moral, a Lei do espaço público, o Capital do
cambismo econômico, o Belo do domínio estético... Este recorte de transcendência é
consecutivo a uma individuação de subjetividade, que se encontra ela própria
despedaçada em faculdades modulares tais como a Razão, a Afetividade, a Vontade...
A segmentação do movimento infinito de desterritorialização é, portanto,
acompanhada por uma espécie de reterritorialização incorporal, por uma reificação
imaterial (GUATTARI, 1992, p. 132).

A valorização que, na figura precedente, era polifônica e rizomática, se bipolariza, se


maniqueíza, se hierarquiza, particularizando seus componentes, o que de certo modo
tende a esterilizá-la. Dualismos sem saída – como as oposições entre o sensível e o
inteligível, o pensamento e a extensão, o real e o imaginário – induzirão o recurso a
instâncias transcendentes, onipotentes e homogenéticas, como Deus, o Ser, o Espírito
Absoluto, o Significante (GUATTARI, 1992, p. 132).

A antiga interdependência dos valores territorializados encontra-se então perdida,


assim como as experimentações, os rituais, as bricolages que levavam a invocá-las, a

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provocá-las, correndo-se o risco de que se revelassem evanescentes, mudas ou
perigosas (GUATTARI, 1992, pp. 132-133).

(...) faz com que a subjetividade fique perpetuamente em falta, culpada a priori ou, na
melhor das hipóteses, em estado de “concordata ilimitada” (segundo a fórmula do
Processo de Kafka). A “mentira do ideal”, como escrevia Nietzsche, se torna “a
maldição suspensa acima da realidade”. Assim a subjetividade modular não tem mais o
controle sobre a dimensão de emergência dos valores, que encontra neutralizada sob
o peso das tabelas de códigos, de regras e leis decretadas pelo enunciador
transcendente. Esta subjetividade não mais resulta de uma intricação com contornos
móveis das esferas de valorização arrimadas às matérias de expressão; ela é
recompostas enquanto individuação reificada, a partir de Universais dispostos segundo
uma hierarquia arborescente. Direitos, deveres e normas imprescritíveis expropriam as
antigas interdições que sempre deixavam um lugar para a conjuração e para a
transgressão (GUATTARI, 1992, p. 133).

O fato é que a primeira das produções, a produção de subjetividade, é dominada por


essa desterritorialização absoluta, de tudo e de todos, através dessa verdadeira técnica
da individuação modular. Até a sujeição social parece ser, então, um tipo de
modulação da servidão maquínica, como havia dito Guattari. Até a individualização
pode ser acionada pela dividuação – permanecendo a seu serviço. Não há uma
diferença de natureza e nem uma coexistência entre estas duas individuações. Há uma
subsunção da individualização, da sujeição, da fabricação de indivíduos e seus papéis e
funções específicos, pela individuação modular, dividual, da servidão maquínica. O que
ocorre é que esta individuação modular da subjetividade, desterritorialização absoluta
de tudo e de todos, onde nada tem ou pode ter consistência, pode chegar a níveis
mortíferos. Um “caos capitalístico”, como diz Guattari, onde nenhuma complexidade
parece estar presente. Caos de todas as relações sociais capitalísticas. Se há um lugar
para a sujeição social, é aí que devemos procurar: como uma operação lançada pela
servidão para manter um mínimo de sobrevivência, algo a que se agarrar para não ser
sugado pelo caos capitalístico. A individuação se serve da individualização como modo
de apresentar algo para a produção de subjetividade que concorre diretamente com
os territórios existenciais. A ausência de território existencial é sinônimo de um
niilismo tão terrificante que nem Nietzsche, nos seus mais severos diagnósticos,
poderia imaginar. (ps. 12-13)

O terceiro tipo de Agenciamento processual será ainda mais difícil de captar, pelo fato
de estar sendo proposto aqui a título prospectivo, unicamente a partir de traços e
sintomas que ele parece manifestar hoje. Ao viés de marginalizar o paradigma estético,
esse tipo de agenciamento lhe confere uma posição chave de transversalidade em
relação aos outros universos de valor, cujos focos criacionistas e de consistência
autopoiética ele só faz intensificar. Entretanto, o fim da autarquia e do esvaziamento
dos universos de valor da figura precedente não mais constitui sinônimo de uma volta
à agregação territorializada dos Agenciamentos emergentes. Do regime da
transcendência reducionista não recaímos na reterritorialização do movimento do
infinito segundo os modos finitos (GUATTARI, 1992, pp. 134-135).

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Eis aí mais uma característica que Guattari apreende na arte que será
retomada neste paradigma estético: sua capacidade de enfrentamento dos papéis
estabelecidos. “Já desde o Renascimento, mas sobretudo durante a época moderna”
(GUATTARI, 1992, p. 135). Mas por que a arte, na problemática da invenção de valores
em ruptura, ao menos no ocidente, desempenhou tão fortemente esta função de
contaminar diretamente outros campos ou, e às vezes simultaneamente, lançar as
luzes para as caosmoses criadoras que atravessam todo e qualquer domínio
considerado?

Mais uma vez: potencialidade da música a este respeito, como catalizadora de


expressões e modos de ser não musicais, que do freejazz ao punk, passando pelo rap e
toda a contracultura hippie criaram outros universos de valores bem no meio do olho
do furacão, de um momento em que o Agenciamento maquínico desterritorializado
ganhou sua forma mais extrema e atual: as sociedades de integração que se formam
no ocidente a partir dos anos 70. O rap e o punk foram, sem dúvida, as duas maiores
máquinas de guerra que a juventude ocidentalizada teve como dínamo para enfrentar
os territórios devastados pelo racismo, pela ausência de futuro, pelas zonas
devastadas de guetos e periferias, pela ultraexploração da precarização do trabalho...
E se o segundo se autoexplodiu em um tenaz “fascismo de gangue” paranóico, o
primeiro permanece, como escrevia Guattari, uma “máquina estética e máquina
molecular de guerra – que se pense atualmente na importância, para milhões de
jovens, da cultura Rap – [que] pode se tornar uma alavanca essencial da
resingularização subjetiva e gerar outros modos de sentir o mundo, uma nova face das
coisas, e mesmo um rumo diferente dos acontecimentos” (GUATTARI, 1992, p. 122).

É, em todo caso, uma questão difícil a que o paradigma estético nos conduz: “como
podemos ainda falar de universos de valor com esse esfacelamento da individuação do
sujeito e essa multiplicaçãodas interfaces maquínicas?” (GUATTARI, 1992, p. 137).
Como é possível pensar e criar territórios existenciais com seus modos de
autovalorização no contexto em que a dissolução do sujeito efetua uma servidão
generalizada, ao passo que a retomada do sujeito estabelece uma sujeição social que a
revigora?

Como não trabalhar essa recriação a não ser por meios específicos, qualificados,
particulares, com suas máquinas e, eventualmente, com suas estruturas próprias? Mas
não é justamente na conquista de um trabalho dessa recriação que os meios se
encontram em um plano de transversalidade axiológico, criacionista, cujo material,
para Guattari, é a caosmose? O paradigma estético é, em suma, uma proposição para
colar esta caomose na textura dos movimentos em curso no seio dos mais variados
agenciamentos, para torna-los movimentos existenciais. O caráter reativo da
valorização capitalística ressente com uma precisão notável esta operação. Ele nasce e
pode se prolongar na medida em que cria um abismo entre o que seriam as passagens
que instaurariam os encontros das práxis mais variadas com a caosmose. Guattari diz
isso, e ainda mais, em uma passagem extremamente bela:

As estratificações sociais estão dispostas de forma a conjurar, tanto quanto possível, a


inquietante estranheza gerada por uma fixação, por demais acentuada, à caosmose. É

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preciso ir rápido, não devemos nos deter aí onde corremos o risco de ser engolidos: na
loucura, na dor, na morte, na droga, na extrema paixão... Todos esses aspectos da
existência são certamente objeto de uma consideração funcional pelo socius
dominante, mas sempre como correlato de um desconhecimento ativo de sua
dimensão caósmica. A abordagem reativa da caosmose secreta um imaginário de
eternidade, em particular através da mídia de massa, contra a dimensão essencial de
finitude da caosmose: a facticidade do ser aí, sem qualidade, sem passado, sem porvir,
em absoluto desamparo e, entretanto, foco virtual de complexidade sem limite.
Eternidade de um mundo adulto profundamente infantil, que é preciso opor à
hiperlucidez da criança em meditação solitária sobre o cosmos ou ao devir criança da
poesia, da música, da experiência mística. É somente então – quando, ao invés de
reimpulsionar compleições de alteridade e de relançar processos de semiotização, a
caosmose se cristaliza, implode em abismo de angústia, de depressão, de
desorientação mental – que, sem dúvida, se coloca a questão de uma recomposição de
Territórios existenciais (GUATTARI, 1992, pp. 106-107).

o novo paradigma estético, que coloca a ênfase na produção de heterogeneidade, na


recriação da heterogeneidade, não pode negar a segunda fase, não pode voltar à
segunda fase e, portanto, quer encontrar novamente uma potência de emergência.
Mas a encontrará no contexto de um mundo da técnica, no contexto da
desterritorialização dos valores (GUATTARI, 1994, p. 212).

Caosmose: o caos dos territórios existencialmente devastados pelo capitalismo e pelo


liberalismo gerando (osmose) criação estética, valores que dão sentido de
territorialidade (e por que não indentidade?) aos “caos capitalístico”.

Há a universalização dos valores que só se reificam como tais através da aniquilação e


da conjuração de outros universos de valores, provocando sempre uma
desconsideração da alteridade e heterogeneidade destes mesmos universos. Nesse
sentido, nada mais científico do que a religiosidade neopentencostal, como a igreja
que não por ironia do destino se chama Universal. Eis aí, também a razão de um dos
seus sucessos em territórios existenciais devastados. Pois, talvez, mais do que
apresentar algum valor que ofereceria a possibilidade de um mínimo de
territorialidade diante do caos capitalístico, ela faz a gestão deste caos com valores
caóticos, mortíferos. Um paradoxo que consiste em dar consistência para a morte, em
fazer da contínua devastação dos territórios existenciais um valor que se encarna em
um mínimo de territorialidade, de materialidade e sobrevivências reais, igualmente
caóticas, segundo o ângulo da subjetividade produzida – espasmos caosmóticos. (ps.
17-18)

Em tempos onde o rolo compressor da homogênese capitalística se acentua, parece


haver uma conjunção ainda maior entre os valores universais cujo objetivo é jamais
problematizar as funções e lugares que se deve ocupar. A cera nos ouvidos para, em
hipótese alguma, escutar a caosmose - ainda que esta cera de homogeneização adoeça
profundamente os modos de existência. (p. 18)

Maquinismo:

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Guattari, na conexão com a noção de caosmose, realiza ainda outra vez, uma dobra na
noção de máquina: ela aparece como a característica, o nome, a consistência e a
qualidade deste trabalho nem espontâneo e nem organizado da caosmose.
Maquinismo: “O novo paradigma estético vai produzir a subjetividade maquínica, vai
produzir autopoieses em conjuntos que não estão territorializados como na primeira
figura de subjetivação” (GUATTARI, 1994, p. 212). Um maquinismo, como “práxis
geradora de heterogeneidade e complexidade” não mergulha, mas sai do caos-
complexidade como um fazer, uma ação, da existência caosmótica. “A máquina, todas
as espécies de máquina estão sempre nessa encruzilhada do finito e do infinito, nesse
ponto de negociação entre a complexidade e o caos” (GUATTARI, 1992, p. 139 e p.
141).

É apenas nessa práxis maquínica, dessa encruzilhada, que está algo como o objeto e o
sujeito do paradigma estético: a caosmose e a subjetividade maquínica. Mas se pode
dizer estas coisas apenas a título de aproximação de um modo novo de pensar. É
interessante tentar acompanhar o esforço de Guattari em atravessar a “cortina de
ferro ontológica” que fixa de um lado o sujeito, o espírito e de outro o objeto, a
matéria. Com a finalidade de posicionar a práxis maquínica da caosmose como um
processo que “aglomera essas diferentes enunciações parciais e se instala de algum
modo antes e ao lado da relação sujeito-objeto” (GUATTARI, 1992, p. 37). Eis aí, o
cerne da transversalidade existencial: caósmica, maquínica. (p. 19)

A caosmose é imanência entre o caos e a complexidade. Porém, para ela não apagar
esta imanência, seja caindo em um caos puro, numa ordem petrificada ou
simplesmente fazendo com que o caos e a complexidade tenham uma imanência de
vida curta é preciso que a complexidade seja “assumida”, como escreve Guattari: “Eu
chamaria ‘hipercomplexidade’ essa complexidade que é mais assumida, que é
verdadeiramente dominada e que se encontra em uma relação de insistência, de
repetição” (GUATTARI, 2013, p. 120). Mas o que se repete propriamente dito? (p. 20)

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