Tamiris Souza de Oliveira
Tamiris Souza de Oliveira
Tamiris Souza de Oliveira
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
VITÓRIA
2013
TAMIRIS SOUZA DE OLIVEIRA
VITÓRIA
2013
TAMIRIS SOUZA DE OLIVEIRA
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Presidente e orientador: Prof. Dr. Robson Loureiro
(PPGE-UFES)
_______________________________________________
Membro titular: Prof. Dr. Ari Fernando Maia
(PPGE- UNESP/Araraquara)
_______________________________________________
Membro titular: Prof. Dr. Wilberth Clayton Ferreira Salgueiro
(PPGL-UFES)
_______________________________________________
Membro titular: Profª. Drª Sandra Soares Della Fonte
(PPGEF UFES)
_______________________________________________
Membro titular: Profª Drª. Eliza Bartolozzi Ferreira
(PPGE-UFES)
De uma maneira muito especial, quero agradecer a Deus e ao meu Anjo da Guarda, pelo
amparo espiritual.
Meus agradecimentos também ao meu orientador Robson Loureiro. Muito obrigada pelas
incansáveis e agradáveis conversas, discussões e conselhos, sempre com a maior atenção e
estima pela pesquisa.
Às professoras Sandra Della Fonte, Eliza Bartolozzi e aos professores Ari Maia e Wilberth
Salgueiro pelo apoio acadêmico, contribuições e zelo no trato desta pesquisa.
Agradeço de coração ao Nepefil e aos meus colegas de núcleo, nas pessoas de Luciana, Filipe,
Sara, Soraya, Juliana e tantos outros que fizeram esse espaço primordial para minha
formação. Além de proporcionarem boas risadas e horas agradáveis.
Obrigada à minha família querida por todo o apoio e disponibilidade que puderam me
oferecer. Vocês são, em todas as suas especificidades, a melhor família que alguém poderia
ter. Agradeço, em especial, ao Angelo, pelo carinho, compreensão e paciência de um
companheiro presente.
Agradeço enormemente aos meus amigos e amigas pelos abraços, afagos e diálogos que me
confortaram nesse percurso. Em especial à Raniely, pelas escutas, conversas e apoio,
importantes, na caminhada deste trabalho.
Por fim, sinto que neste momento sou um misto de muitos sentimentos. E apenas sei que
foram 24 meses, 125 páginas de muitas lágrimas e alegrias, amores e iras, erros e acertos...
RESUMO
Esta é uma pesquisa teórico-bibliográfica que possui como eixo os fundamentos teóricos da
educação e a preocupação com a relação entre teoria educacional crítica e formação estético-
cultural. Indaga-se sobre a potencialidade que possui a categoria catarse presente na teoria
estética do filósofo alemão Theodor Adorno para dimensionar a discussão sobre formação
estético-cultural e apropriação crítica dos produtos da indústria cultural no espaço escolar.
Partiu-se da hipótese central de que o conceito de catarse, de Adorno, pode ser profícuo para o
desdobramento de uma teoria crítica da educação. Com o mapeamento sobre a presença do
conceito de catarse nas discussões educacionais, constatou-se que a categoria é presente, no
entanto pouco explorada. Com o estudo sobre a categoria, vimos que a mesma pode ser
potente para o entendimento e crítica ao processo catártico operado pela indústria cultural e
suas influências no ambiente escolar. Além disso, o conceito de catarse pode se constituir
como possibilidade de reflexão entre os conteúdos escolares e as formas em que se
apresentam no ambiente escolar. Uma possível relação entre ambos que pode se manifestar na
obra prima, ou seja, aquela capaz de agregar uma dimensão histórica do processo civilizatório
da humanidade, e ao mesmo tempo como forma estética, também capaz de se apresentar não
como mero prolongamento do cotidiano dos alunos, mas também como uma possibilidade de
distanciamento do mesmo, e consequente ponte para uma imaginação livre e emancipadora.
This research is a theoretical literature that has as its axis the theoretical foundations of
education and concern with the relationship between educational theory and critical aesthetic-
cultural training. One wonders about the potential that has the category catharsis present in
aesthetic theory of the german philosopher Theodor Adorno to scale discussion of aesthetic
and cultural formation and critical appropriation of the products of the culture industry in the
school. We started from the hypothesis that the central concept of catharsis Adorno can be
fruitful for the unfolding of a critical theory of education. With the mapping of the presence of
the concept of catharsis in educational discussions it was noted that the category is present,
however little explored. With the study of the category, we have seen that it can be powerful
and critical to understanding the cathartic process operated by the culture industry and its
influences in the school environment. Besides the concept constitute a possibility of relating
school content and form, manifested in the masterpiece, capable of adding a historical
dimension of the civilizing process of mankind, and as a way able to manifest not as a mere
extension of the daily lives of students, but a possibility of distancing himself and the
consequent bridge to the imagination.
1 Introdução ................................................................................................................. 8
2 O conceito de catarse na produção acadêmica educacional ................................ 188
2.1 Esfera temática ................................................................................................. 200
2.2 Catarse: um conceito explorado, mas pouco trabalhado?................................... 222
2.2.1 O conceito de catarse na revista Educação & Realidade .......................... 255
2.2.2 O conceito de catarse na revista Pró-posições ............................................ 28
2.2.3 O conceito de catarse no GT24 – Educação e arte – da ANPED............... 300
2.2.4 O conceito de catarse no GT17 – Educação e Filosofia – da ANPED ....... 355
2.2.5 O conceito de catarse nas dissertações e teses no campo de educação: o
banco de dados da Capes .................................................................................... 39
2.3 Catarse e educação: considerações acerca de seus limites e possibilidades .......... 47
3 Teoria crítica da sociedade, Adorno e Educação. ................................................ 566
3.1 Escola de Frankfurt e a Teoria Crítica da Sociedade ......................................... 566
3.2 Theodor Wisengrund Adorno: breves apontamentos biográficos....................... 633
3.3 Educação e transformação: Adorno, filósofo de um pensamento sem saída? ..... 667
3.3.1 Adorno, educação e transformação .......................................................... 700
4 Sobre o conceito de catarse em Adorno.................................................................. 77
4.1 Kathársis, origem histórica: entre o clínico e o estético ....................................... 77
4.2 O conceito de catarse na teoria estética de Adorno ............................................ 800
4.2.1 Fazer-se escutar: Adorno e catarse .......................................................... 800
4.2.2 Mímesis enquanto racionalização simbólica ............................................. 811
4.2.3 Arte e catarse: alguns apontamentos e críticas de Theodor Adorno .......... 833
4.3 Catarse: Aristóteles e Adorno ............................................................................. 87
4.4 A catarse na indústria cultural: crítica a partir de Adorno .................................. 911
5 Catarse e formação estética crítica ......................................................................... 96
5.1 Luta por uma educação emancipatória e a valorização da formação sensível....... 98
5.2 Catarse: uma proposta de apropriação e a ampliação de seu sentido .............. 10707
6 Considerações finais ............................................................................................ 1144
7 Referências ........................................................................................................ 11919
8
1 Introdução
Esta pesquisa tem como tema os fundamentos teóricos da educação. A preocupação se insere
no âmbito da filosofia e elege como foco a relação entre teoria educacional crítica e formação
estético-cultural.
O diálogo teórico que embasa a pesquisa se fundamenta nas obras do filósofo alemão Theodor
Wisengrund Adorno, em especial no livro Teoria Estética (2011). Já a articulação com a
teoria educacional crítica se faz com a interlocução com o teórico educacional francês George
Snyders e seu livro Alunos Felizes (1993).
Por que Adorno e Escola de Frankfurt? Meu interesse pela Escola de Frankfurt1 começou em
2008, época da minha graduação no curso de Pedagogia do Centro de Educação da
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Foi quando tive a oportunidade de ser
bolsista no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação e Filosofia (NEPEFIL) e me
aproximar da discussão em torno da formação cultural a partir dos estudos da Escola de
Frankfurt, mais precisamente de Theodor Adorno.
1
Teoria Crítica da Sociedade é considerada como a primeira união de intelectuais da academia ocidental,
vinculados à teoria marxiana. A Teoria Crítica amplia sua vertente marxiana e realiza uma prática
multidisciplinar, que leva em consideração a filosofia clássica idealista alemã (Kant e Hegel), a crítica
iconoclasta de Schopenhauer, Nietzsche e Marquês de Sade, a psicanálise de Freud e a sociologia de Max
Weber. A tradição da Teoria Crítica da Sociedade está interessada em discernir, nas chamadas ciências humanas,
o potencial crítico da teoria: a razão, crítica de si mesma (cf. PUCCI; ZUIN; RAMOS-de-OLIVEIRA, 1999). No
segundo capítulo desta dissertação apresento mais informações sobre a Escola de Frankfurt.
9
No que se refere às reflexões no âmbito da teoria estética, é possível afirmar que, dentre os
principais teóricos frankfurtianos, as reflexões de Adorno merecem destaque especial, pois
sua discussão sobre esse tema tem como pano de fundo o conceito de indústria cultural
formulado por ele e Max Horkheimer na Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos
(1947). Para os autores, a indústria cultural é uma das formas de o sistema capitalista estender
a lógica do trabalho à dimensão do lazer, ao massificar e tornar mercadoria todos os bens
culturais, para, dessa forma, conservar e ampliar a ideologia de mercado.
Meu primeiro contato com alguns escritos da tradição da Escola de Frankfurt aconteceu no
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação e Filosofia (NEPEFIL/CE/UFES). Foi a partir
dessa experiência e do envolvimento com esse núcleo de pesquisa que também conheci as
reflexões sobre a formação estética e sua relação com a dimensão da arte e da educação
mediada pela indústria cultural.
De algum modo, parcela das indagações suscitadas nesse contato com o NEPEFIL ressurge
neste projeto de pesquisa: a influência da indústria cultural no processo educativo; a
significação e apropriação dos produtos da indústria cultural; a promoção da cultura como
condição de possibilidade de acesso ao saber e a consequente formação sensível dos
indivíduos.
Mas por que a preocupação com a formação estético-cultural? Entendemos que a educação
para a sensibilidade não se reduz à formação para fruição no campo das artes, mas faz par
com a apropriação crítica da cultura. Portanto, educação para a sensibilidade e formação
cultural são demandas que perfazem o processo de humanização e que, em tese, devem ser
garantidas pela formação educacional. Talvez, tratar dessa dimensão formativa no âmbito da
escola carregue uma dose de desafio, uma vez que essa temática nem sempre é abordada de
forma crítica fora dos cânones estabelecidos e tornados lugar-comum.
10
A fim de ilustrar essa questão, tomo como exemplo outro momento da minha experiência, na
época da graduação em Pedagogia, em especial no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC),
intitulado A formação estético-cultural como prática educativa no curso de Pedagogia do
Centro de Educação da UFES2. Nesse trabalho, analisamos quais são as principais
características do processo de formação, no âmbito da teoria estética e da cultura, dos
estudantes do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo. Ao final, com
os resultados da pesquisa, constatamos que a preocupação dos discentes com esse âmbito da
formação acontece de forma muito periférica e não sistematizada.
A escolha pelo conceito de catarse se justifica por ser uma categoria que historicamente tem
para se pensar a experiência estética e formação semsível. E no que concerne à apropriação
2
A pesquisa foi elaborada por Raniely do Nascimento Kiihl e Tamiris Souza de Oliveira.
3
Do grego Kátharsis, significa purificação, purgação (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001). É um conceito muito
utilizado na filosofia, na psicologia, nas teorias literárias e nas teorias da comunicação. Também foi apropriado
por alguns teóricos da educação, dentre eles, Dermeval Saviani.
11
crítica da cultura, o conceito de catarse, juntamente com outros tantos conceitos importantes,
é muito potente na constelação dialética da filosofia adorniana, em especial no que diz
respeito à relação do indivíduo com os artefatos da indústria cultural.
Em linhas gerais, a pesquisa se coloca no sentido de prosseguir com a discussão sobre esse
conceito na área educacional, já iniciada por pesquisadores vinculados às teorias educacionais
críticas4. No entanto, neste projeto, nossa intenção é expor as possíveis contribuições da
definição adorniana de catarse como norteadora do trabalho educativo e, dessa forma,
intencionamos buscar indícios para reflexões sobre a noção de apreciação e de formação
estética no campo da educação.
Este trabalho não pretende propor um ideal de formação, mas cumprir o papel de uma
educação crítica, ou seja, uma educação capaz de, ao pensar sobre si mesma, romper com
processos que dificultam a autonomia e a emancipação individual e coletiva (ADORNO,
1995c). Na medida em que vivemos em uma sociedade altamente imediatista, na qual o
modelo da razão instrumental é o imperativo categórico a ser seguido, a preocupação com
uma formação omnilateral5 requer a apreensão de um processo de mediação contínua entre
cultura e natureza, pois a
A meta, portanto, é por uma formação preocupada com a educação total, aberta e que não
isole o indivíduo. Nesse caso, parafraseando Abbagnano (1998), o humano culto é aquele
intelectual sensitivamente aberto e livre, e a cultura viva e formativa é aquela com os pés no
presente, o olhar no futuro, mas com bases sólidas no passado.
4
Importante salientar que existem diferenças entre a Teoria Crítica da Sociedade e as teorias educacionais
críticas. A primeira é uma corrente filosófica alemã, iniciada na metade do século XX pelos membros da Escola
de Frankfurt. Essa não se dedicou às dicussões educacionais em suas pesquisas, ao contrário das teorias
educacionais críticas, que se configuram como um movimento teórico brasileiro, originado no final da década de
1970, que possuia como um de seus objetivos rebater a perspectiva escolanovista que predominava na educação
brasileira.
5
Formação omnilateral é aquela em que a práxis educativa deveria dar conta de reintegrar as diversas esferas da
vida humana que o modo de produção capitalista e sua razão instrumental prima por separar, promovendo uma
educação unilateral que se preocupa apenas com uma dimensão do ser humano de cada vez: ou só o intelecto, ou
só as habilidades manuais, ou só os aspectos morais, ou só os políticos.
12
Ao considerar essa opção pelas teorias educacionais críticas, esta proposta de pesquisa se
coloca na contramão de tendências educacionais pós-críticas, que “em seu conjunto utilizam
uma série de ferramentas conceituais, de operações analíticas e de processos investigativos
que as destacam tanto das teorias tradicionais como das teorias críticas que as precederam”
(PARAISO, 2004, p. 2). No entanto, essas tendências têm realizado, no campo educacional
brasileiro, mudanças de ênfases em relação às pesquisas críticas.
Paraiso (2004), por exemplo, afirma que as pesquisas educacionais pós-críticas não gostam de
explicações universais, optando por explicações e narrativas parciais, e consideram o sujeito
um efeito da linguagem e dos processos de subjetivação. Além disso, não se interessam por
modos de ensinar, de avaliar ou por conhecimentos ditos como “adequados”, a não ser para
problematiza-los. Ainda segundo a autora, “tais pesquisas têm problematizado as promessas
modernas de liberdade, conscientização, justiça, cidadania e democracia, tão difundidas pelas
pedagogias críticas” (PARAISO, 2004, p. 5).
Distante dessas tendências, atualmente tão fortes nas pesquisas educacionais, a opção por
manter um diálogo com as teorias educacionais críticas se justifica na medida em que
entendemos que “a educação é uma prática social que envolve decisões diversas, que vão
desde a escolha de saberes considerados fundamentais, até a perspectiva de sujeito que se
pretende formar; ela se constitui, portanto, de inúmeras decisões éticas e políticas”(DELLA
FONTE, 2010a, p. 55).
Auxiliados por essa perspectiva, consideramos que o espaço escolar é locus privilegiado de
acesso, socialização, produção e reflexão do conhecimento historicamente elaborado. É o
lugar de mediação entre saber espontâneo e sistematizado. Não uma “mediação unilateral que
aniquila o saber espontâneo, mas de uma radicalização dos laços entre esses modos de
conhecer” (DELLA FONTE, 2010b, p. 137). Diante da pulverização do trabalho docente e do
13
Cabe registrar que já existem estudos (DUARTE, 2008; FERREIRA, 2012)6 que tematizam a
relação entre educação escolar e a catarse, tendo em vista o horizonte de uma teoria
educacional crítica. Portanto, a realização desta dissertação tende a ser vista de forma
ambígua.
Ao mesmo tempo em que tende a parecer repetitiva, ela se faz pertinente, pois realiza a
abordagem a partir dos apontamentos da teoria estética de Adorno, em especial no que se
refere à sua contribuição para pensar o conceito de catarse no campo educacional. Como se
mostrará no primeiro capítulo, tal abordagem ainda é tratada de modo implícito e/ou
superficial no âmbito da pesquisa educacional brasileira.
6
O trabalho em questão é a tese intitulada A catarse estética e a pedagogia histórico-crítica: contribuições para
o ensino de literatura, defendida por Ferreira (2012). Essa pesquisa também se situa no campo dos fundamentos
da educação e volta-se para o estudo teórico do conceito de catarse, porém sob a perspectiva estética de Georg
Lukács e a pedagogia histórico-crítica de Dermeval Saviani. Na pesquisa, a autora analisa a catarse como um
processo de desenvolvimento do indivíduo em direção a uma relação cada vez mais consciente com o gênero
humano. Defende a tese da utilização dos clássicos literários para a desfetichização da realidade e produção da
catarse (FERREIRA, 2012). Já Duarte (2008), está em nossa revisão de literatura presente no capítulo segundo
deste trabalho, em que faremos uma análise um pouco mais detalhada de seu artigo apresentado no Grupo de
Trabalho17 de Filosofia e Educação da Associação Nacional de Pós-graduação e pesquisa em Educação, artigo
no qual se faz uma abordagem sobre o conceito de catarse a partir de Lukács.
14
Além de aprofundar os estudos da Teoria Crítica da Sociedade de Adorno, para uma mais
bem fundamentada análise da temática, a pesquisa possuiu como objetivo: 1) caracterizar o
contexto temático no qual Adorno elabora a categoria de catarse; 2) relacionar, a partir da
teoria estética de Adorno, catarse e formação estético-cultural crítica; 3) delinear possíveis
contribuições que o conceito adorniano de catarse pode sugerir à teoria educacional crítica, a
partir do diálogo com teórico educacional George Snyders.
informações e subsídios para proporcionar maior familiaridade e ter uma mais bem
qualificada compreensão de como a discussão tem sido realizada no âmbito da produção
intelectual da área.
A escolha por uma pesquisa teórica também possuiu motivações políticas: apresentar um
caráter de contraposição às pesquisas atualmente em voga, cuja ênfase tem sido por
metodologias empiricistas e/ou cotidianistas (cf. MORAES, 2003).
Juntamente com uma preocupação sobre um “clima” de recuo da teoria (MORAES, 2001),
e/ou mesmo de aversão à teoria (LOUREIRO, 2007), o que se percebe na atmosfera do atual
Zeitgeist é uma forte tendência à absolutização da razão instrumental e sua consequente
subordinação ao imediatismo da prática que não pensa a si mesma, tampouco está preocupada
com as múltiplas determinações históricas que a atravessam.
Em linhas gerais, o perigo está na acomodação a uma formação unilateral, que na dialética
relação entre teoria e prática tende a supervalorizar a prática imediata e criar uma aversão à
teoria. Por mais que a tradição marxista confira uma prioridade à prática (vista no horizonte
histórico e ontológico), isso não significa fragilizar o papel da teoria.
Pois, como observa Adorno (1995a), quando o pensamento se restringe à razão individual e
prática, o outro, aquilo que lhe escapa, vem a ser mutuamente remetido a uma práxis cada vez
mais vazia de conceito, e que não conhece outra medida que não ela própria. E, por mais que
haja esforços isolados na sociedade capitalista contemporânea de conferir ar de semelhança a
tudo, é preciso enfatizar que teoria e prática são elementos distintos, mas inevitavelmente
interdependentes, sendo a prática fonte da teoria. Adorno (1995a) nos lembra da práxis, já
explorada por Karl Marx, como sendo uma atividade prático-crítica que nasce da relação ativa
e consciente do ser humano com a natureza, ou seja, é ela (a práxis) que medeia essa relação
auxiliada pela reflexão crítica (ADORNO, 1995a).
16
A potência dessa relação está na contradição entre teoria e prática. No entanto, nos dias atuais,
o esforço do pensamento tem sido diluído no apogeu do imediatismo. O sujeito parece ter
apenas uma saída: adaptar-se às forças sociais vigentes e sucumbir em face dos apelos da
sociedade pragmatista.
Uma possível forma de resistência é exatamente caminhar a contrapelo dessa ênfase técnico-
instrumental tão presente nas pesquisas educacionais, pois o fazer científico demanda um
pensamento que faz par com atitudes pouco valorizadas no contexto contemporâneo, tais
como concentração, paciência e autozelo com o conceito. Atitudes essas que são subsumidas e
cedem lugar à razão técnica enaltecida pela vida danificada (ADORNO, 1995a; ADORNO,
1993).
Nesse sentido, corroboramos com a tese central da Teoria Crítica da Sociedade, em especial
com a filosofia adorniana, de acordo com a qual o potencial crítico do pensamento se realiza
como negação às bases que estruturam a lógica da racionalidade vigente. Com isso, a escolha
por fazer uma pesquisa de cunho teórico é possibilitar, a partir das reflexões mencionadas, o
estabelecimento de um amplo e dinâmico diálogo com e sobre os fundamentos da educação,
em especial no âmbito da teoria educacional crítica e na formação estética e cultural.
Todas as leituras foram direcionadas para maior familiaridade com a discussão. Não se
pretendia partir de uma verdade absoluta, mas sim de algumas hipóteses sobre o conceito de
catarse. Em especial sobre os desafios que a escola ainda enfrenta quando se trata da
formação estética e a relação que a educação exerce diante dos produtos da indústria cultural.
Assim, a pesquisa operou com duas hipóteses básicas: (H1) o conceito de catarse, de Adorno,
pode ser profícuo no estabelecimento de pontos de interseção e diálogo com o conjunto das
teorias educacionais críticas, em especial com pensamento de Snyders; (H2) esse conceito
também desafia a educação escolar a se colocar em contraposição a mecanismos
semiformativos presentes em nossa sociedade, que muitas vezes são disseminados pelo vasto
17
Além da revisão de literatura inicial, a coleta de dados da pesquisa foi feita de forma direta,
por meio de análise documental de uma amostra da vasta obra de Theodor Adorno, de análise
do livro Alunos felizes (1993), de Snyders, bem como de livros e textos de autores
comentadores, no que tange a teoria estética e a educação.
Para fins de apresentação desta pesquisa, os capítulos da dissertação estão assim distribuídos:
no Capítulo I, O conceito de catarse na produção acadêmica educacional, o objetivo é
mapear e avaliar, em termos quantitativos e qualitativos, as discussões sobre a categoria
catarse nas produções acadêmicas em educação selecionadas para análise.
No capítulo II, Teoria Crítica da Sociedade, Adorno e a educação, pretende-se apresentar e
discutir a compreensão de Adorno em relação à educação como um processo formativo. Para
isso, faço uma breve contextualização do legado teórico da Escola de Frankfurt com algumas
descrições das principais influências filosóficas, sua importância enquanto escola filosófica e
algumas de suas principais atividades, além de traçar um rápido panorama biográfico-
filosófico de Adorno.
Capítulo I
Para essa investigação, recorremos às seguintes fontes: 1º) análise dos últimos 5 anos (2007-
2011) de dois periódicos: Educação & Realidade7 (UFRGS), avaliado pela CAPES como
(Qualis A2), e Pro-Posições8 (UNICAMP), avaliado como (Qualis A1) pela CAPES; 2º) as
comunicações e pôsteres dos Grupos de Trabalho (GT17) Filosofia da Educação, GT 24 Arte
e Educação9 da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED)10
dos últimos dez anos (2001-2011); 3º) um levantamento também dos últimos dez anos (2001-
2011) dos resumos no banco de dissertações e teses da CAPES.
Para a escolha das fontes, levou-se em consideração a representatividade dos dois periódicos
para divulgação dos debates educacionais em nível nacional e o banco de dissertações de teses
da CAPES, por este último concentrar em seu acervo um grande número das produções
defendidas nos programas de pós-graduação das universidades brasileiras. E, tendo em vista
que esta dissertação procura estabelecer um diálogo teórico entre educação e filosofia, mais
precisamente a filosofia estética, optou-se por analisar os textos apresentados no GT17
(Filosofia da Educação) e o GT24 (Arte e Educação) da principal entidade científica da área
educacional no Brasil.
7
A Revista Educação e Realidade, fundada em 1977, é um periódico da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. As edições digitalizadas, dos últimos 10 anos, estão disponíveis em seu sítio eletrônico –
http://www.ufrgs.br/edu_realidade/
8
A Revista Pro-Posições foi fundada em 1990 e é uma publicação da Faculdade de Educação da Universidade
Estadual de Campinas. As edições digitalizadas estão disponíveis em seu sítio eletrônico –
www.proposicoes.fe.unicamp.br
9
Nosso recorte de estudo dos trabalhos apresentados nos GTs da ANPED foi de dez anos (2001-2011). Durante
esse período, o GT24 passou de Grupo de Estudos 01 (GE 01), criado em 2007, para Grupo de Trabalho, em
2009. Por tal motivo, os textos encontrados são mais recentes.
10
A Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisas em Educação (ANPED) acontece há
35 anos. Trata-se da maior e principal associação de pesquisadores em educação do Brasil e da América Latina,
e possui todo o acervo de comunicações e pôsteres apresentados em seus encontros anuais, dos últimos 12 anos,
disponíveis em seu sítio eletrônico.
19
Em um primeiro momento de busca pelos textos para análise, os critérios foram a presença da
palavra catarse e seus derivados (catártico) em títulos e/ou resumos dos artigos dos periódicos
dos grupos de trabalhos da ANPED selecionados para revisão bibliográfica e no banco de
dissertações e teses da CAPES. No entanto, deparamo-nos com a dificuldade de não haver
nenhum artigo que abordasse o conceito de catarse em seus títulos e resumos dos artigos dos
periódicos e nos grupos de trabalho da ANPED. Conseguimos apenas fazer um levantamento
com base nesse critério no banco de dissertações de teses da CAPES.
A partir dessa dificuldade inicial, foi possível perceber que o conceito de catarse não ocupa
centralidade no âmbito dos debates e da produção teórico-conceitual. A categoria não é citada
nos títulos e resumos dos dois principais periódicos da esfera da educação, tampouco nas
comunicações e pôsteres apresentados nos dois Grupos de Trabalho da ANPED. No caso das
dissertações e teses do campo da educação expostas no banco virtual de dados da CAPES, o
conceito aparece no título e/ou resumo de apenas nove trabalhos.
Além disso, as leituras serviram para propiciar maior familiaridade com as discussões sobre
essa categoria no âmbito da teoria educacional crítica e da Teoria Crítica da Sociedade, de
Adorno.
Nas tabelas abaixo, encontram-se alguns breves informes referentes aos títulos, fontes e ano
de publicação:
Tabela 2 – Distribuição das dissertações e teses encontradas por título, autor e ano de publicação.
Fonte Título Autor(a) Ano
"Música, Educação e Sociedade: O fenômeno SÉRVIO 2002
bandístico em Teresina/PI".
O processo catártico no ensino da Arte: uma CHISTÉ 2007
parceria entre escola e espaço expositivo.
Dissertaçõ A leitura de literatura na escola: por uma SILVA 2010
educação emocional de crianças na educação
es infantil.
CAPES Como assistimos o professor?: Uma análise de DIÁVOCO 2006
imagem da profissão de professor transmitida
pela televisão.
Veredas: a educação à distância na formação de BORGES 2006
professores para a escola ciclada.
A arteterapia (re)significando a vida, da mente PAGANOTTO 2010
vazia às ideias coloridas: uma experiência de
educação emocional e de reabilitação
psicossocial com pacientes mentais por meio das
linguagens visuais .
A escrita criativa do ensino fundamental: uma FLANDOLI 2003
interlocução possível.
O Educere ad Educare da educação integral em SOUZA 2011
cena: contracena e crítica.
Teses Pedagogia das competências e diretrizes TROJAN 2005
curriculares: a estetização das relações entre
CAPES
trabalho e educação.
22
Apreender o sentido do termo catarse nos artigos encontrados não foi um processo muito
simples. Além de os significados serem variados, a maior dificuldade foi o fato de que seu uso
nem sempre é acompanhado de um tratamento conceitual. Isso nos forçou a tentar
compreender o contexto das discussões e, a partir disso, apreender o sentido subjacente a ele
atribuído. Por isso, reconhecemos que o empreendimento realizado está sujeito a limites de
interpretação.
Nosso objetivo, com essa revisão de literatura, também é estimular e contribuir para um
estudo futuro que avalie, de forma mais ampla, as discussões em torno do conceito de catarse
no campo da educação. Em função da dificuldade em apreender os significados utilizados
pelos autores no tratamento do conceito, considerou-se mais apropriado, em um primeiro
momento, agrupar os textos que explicitam o sentido atribuído ao conceito de catarse.
11
Duarte (2008); Semeraro (2006); Reis (2009); Neves (2009); Fernandes (2007); Bacocina, Camargo (2007);
Schechner, Icle, Pereira (2010); Martins (2011); Chisté (2007); Diácovo (2006); Borges (2006) e Trojan (2005).
12
Danelon (2006); Ceppas (2004); Silva, Araújo (2007); Pereira (2007); Santos (2007); Zuin (2011); Taschetto
(2011); Fantin (2009); Fernandes (2007); Moura (2010); Paiva (2007); Silva (2010); Servio (2002); Flandoli
(2003); Paganotto (2010) e Souza (2011).
23
por meio da catarse, haver uma elaboração subjetiva da realidade capaz de ressignificar as
existências dos sujeitos em sua totalidade.
ANPED contraponto
GE01 – Leituras de mundo, saberes e modos de BACOCINA; 2007
ANPED existência de educandos e educadores: CAMARGO
contribuições da arte.
Educação & O trote universitário como violência ZUIN 2011
Realidade espetacular.
Pro-posições Gramsci, os intelectuais e suas funções MARTINS 2011
científico-filosófica, educativo-cultural e
política.
Nos próximos subitens, indicamos como a categoria catarse é discutida nos textos das fontes
pesquisadas. Cabe ressaltar que textualmente nossa análise se organiza primeiro como um
panorama descritivo geral dos artigos encontrados para, em seguida, apresentar os sentidos
atribuídos à categoria catarse.
25
Na revista Educação & Realidade, o conceito de catarse é destaque em cinco artigos. Mas,
dos artigos encontrados, poucos explicitam o sentido atribuído, pois as abordagens sobre essa
categoria muitas vezes se manifestam de forma periférica. Como veremos a partir das análises
e categorizações, o processo catártico gira em torno de noções de conscientização, purgação e
descarga emocional (cf. tabela abaixo).
Tabela 5 – Distribuição quantitativa dos artigos por categorias no periódico Educação & Realidade
REVISTA EDUCAÇÃO & REALIDADE
Categoria 01
Purgação/ Purificação
Autor Ano
SCHECHNER; ICLE;
2010
PEREIRA
Categoria 02
Descarga emocional/ Liberação emocional
Autor Ano
TASCHETTO 2011
FANTIN 2009
FERNANDES 2007
Categoria 03
Conscientização
Autor Ano
ZUIN 2011
O autor trata o termo catarse como sinônimo de um desabafo, uma descarga emocional. Mas
também como “denúncia de inconformidade e de resistência” por parte dos policiais-alunos.
Como se uma descarga emocional, proporcionada pelo grito, pudesse gerar uma resistência
diante da realidade vivida pelos alunos.
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Em O trote universitário como violência espetacular, Zuin (2011) foca sua análise na
sociedade atual. Ele aborda historicamente a constituição do trote e problematiza sua
atualidade diante da sociedade do espetáculo, na qual o trote encontra, nas novas tecnologias,
um espaço bastante profícuo não só para ser divulgado, como também para reforçar o seu
recrudescimento. Sobre sua abordagem em relação à categoria catarse, ao discutir o processo
violento da aula-trote, Zuin faz referência a uma “catarse regressiva que resulta da aula-trote,
destituída de reflexão sobre esse processo que mescla sadomasoquismo e soberba professoral,
antecipa aos calouros alguns dos problemas de relacionamento entre alunos e professores, que
acontecerão no cotidiano da vida universitária” (ZUIN, 2011, p. 593).
No levantamento realizado, Zuin (2011) foi um dos únicos autores que se fundamenta em uma
perspectiva adorniana e também incorpora elementos da teoria psicanalítica de Freud. Na
leitura de Zuin, ao invés de a catarse proporcionar a superação do trauma, ela, a catarse
regressiva, tende a retardá-lo. O oposto seria uma catarse consciente, munida de reflexão. No
entanto, ele também não se detém muito ao conceito, tampouco explicita o sentido referido à
catarse.
Na mesma revista (Educação & Realidade), também encontramos artigos nos quais os autores
apontam o teatro como uma potente experiência artístico-cultural. Esse é o caso de Schechner,
Icle e Pereira (2010). Em O que pode a performance na educação?: uma entrevista com
Richard Schechner, os autores entrevistam Schechner, que foi quem propôs e desenvolveu a
Teoria da Performance. Como teórico e praticante do teatro, o artigo destaca que Schechner é
responsável por uma ampliação da ideia de teatro para outros domínios, além do estético-
artístico.
Isso sugere que ele tenha entendido o dispositivo da catarse que o filme propicia,
tema referido por tantos teóricos do cinema. No campo da educação, Buckingham
(1996) trabalha sobre essa ambiguidade de sentimento entre o medo e o prazer
analisando as respostas emocionais das crianças à TV, ele fala que as crianças fazem
julgamentos críticos sofisticados sobre o que assistem, e se, por um lado, isso revela
que as crianças sabem muitas coisas sobre o que assistem, por outro lado, pode levar
a negligenciar respostas de tipos mais emocionais (BUCKINGHAM, citado por
FANTIN, 2009, p. 218).
Por não ser seu objetivo, a autora não se dedica a investigar, tampouco apresentar, as
determinações históricas presentes no conceito de catarse, que aparece uma única vez em uma
citação de Chevalier e Gheerbrant (2005).
Ao abordar historicamente as funções das máscaras e dos simbolismos por elas provocados,
Fernandes (2007) faz uma análise das máscaras carnavalescas enquanto expressão de críticas
sociais, das ironias do cotidiano, das singularidades, dos sentimentos e dos desejos mais
íntimos de seus portadores. As máscaras, segundo a autora, serviam para mostrar o que estava
ocultado por um processo civilizador. Elas expunham os desejos, os sentimentos, as
necessidades mais escondidas, pois a brincadeira seria uma forma de garantir um intervalo nas
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condições socialmente instituídas. Com vistas à sua expulsão e libertação, a máscara opera
como uma catarse:
No periódico Pro-posições, três artigos aludem à palavra catarse em seu corpo textual. A
partir das análises e categorizações depreende-se que o termo catarse nos artigos encontrados
vincula-se ora à noção de conscientização, ora à noção de purgação e descarga emocional.
enfatizar a atualidade e a necessidade de se retornar aos textos gramscianos, para deles inferir
outras interpretações.
Ao argumentar sobre as funções do intelectual orgânico, tal como descrito por Gramsci,
Martins (2011) afirma que seu fim último é elevar a consciência popular até o ponto de nela
promover uma “catarse”, ação indispensável para superar a condição de indivíduos submissos.
Nesse sentido, catarse adquire um viés de conscientização, ou seja, é um processo educativo-
político articulado à vida econômica e social. Em nota de rodapé, Martins cita Gramsci e sua
definição de catarse para fundamentar seu argumento.
Moura (2010) também não explicita sua concepção de catarse, apenas considera que esta seria
produto da dissolução das fronteiras do corpo. Contudo, de seus argumentos é possível inferir
que a catarse diz respeito a um processo de cunho emocional e purgativo. Para ele, quando
está aquecido, o corpo torna-se supersensível e possibilita o desenrolar de emoções e sentidos
que teriam uma função educativa (MOURA, 2010).
30
No artigo Uma pequena introdução ao Emílio, de Rousseau, Paiva (2007) analisa, a partir de
Emílio: ou da educação, o pensamento do filósofo Jean-Jacques Rousseau, no que concerne à
formação humana. Paiva (2007) considera que Rousseau é um teórico bastante mal
interpretado e que, por isso, seu intento é contribuir com as discussões em torno do tema e
evidenciar a essência da obra Emílio: ou da educação, pois não a considera um manual, mas
uma profunda reflexão em torno do fenômeno educativo (PAIVA, 2007).
Ao fazer referência fundamentado na proposta educacional de Emílio ou da educação de
Rousseau, Paiva (2007) afirma que a catarse, para o autor do Emílio, resulta em uma
formação de um tipo de cidadão bem distinto dos modelos e padrões existentes no mundo dos
aristocratas e dos burgueses. Ele argumenta que Rousseau propôs “um retorno à natureza e às
origens da sociedade, num claro movimento de catarse humana e depuração das paixões
degeneradas, com vistas a uma melhor reordenação das estruturas sociais” (PAIVA, 2007, p.
169). Com isso, Paiva considera que catarse recebe um sentido aristotélico, de depuração
emocional. A nosso ver, também nesse artigo de Paiva (2007), o tratamento conceitual do
termo catarse é pouco explorado e seu sentido está vinculado à perspectiva clássica da
tradição aristotélica.
Contudo, haveria alguma diferença do resultado dessa constatação quando a análise recai
sobre o mesmo conceito e a forma como ele é tratado pelos autores dos trabalhos apresentados
no GE01 e GT24 da ANPED? Essa é a preocupação do próximo item.
PEREIRA 2007
FERNANDES 2007
REIS 2009
Categoria 02
Descarga emocional/ Liberação emocional
Autor Ano
SILVA, ARAÚJO 2007
SANTOS 2007
NEVES 2009
Categoria 03
Conscientização
Autor Ano
BACOCINA, CAMARGO 2007
O público da tragédia euripidiana diz: – por quê? – para quê? – o que o herói trágico
procura? Para Nietzsche, essas perguntas simplificam e desqualificam as
representações trágicas. Ele entende isso como sendo própria da ciência inaugurada
pelo socratismo: o conhecimento que se justifica pelo ordenamento interno do
discurso. No entanto, a despeito desta funcionalização resta sempre o desejo, a
afecção, a contaminação, a catarse. – O que significa e para que serve? A música
problematiza, questiona exatamente esse tipo de pergunta, dado que se caracteriza
justamente pelo não-figurado. O texto trágico como sendo música e palavra,
concorre por sua vez para a exposição de um determinado sentimento, de uma
determinada sensação que se cristaliza como obra de arte (PEREIRA, 2007, p. 6).
literários em sala de aula. Ela argumenta que o contato com a produção acumulada da cultura
– no caso, a literatura – seria uma forma de tornar a escola um espaço mais prazeroso.
Em seu artigo, Neves (2009) deixa explícito, a partir da filosofia de Sartre, o significado de
catarse vinculando a adesão estética, ou seja, à compreensão afetiva da obra literária.
Em Sobre o sentido das práticas do teatro no meio escolar, Santos (2007) enfatiza o
estreitamento das relações entre as transformações que se engendram no teatro
contemporâneo e a prática do teatro no âmbito escolar. Ele defende a multiplicação e difusão
das formas teatrais para a conscientização do “ser” e do “estar” no mundo por parte dos seus
“fazedores”, quer sejam crianças, adolescentes ou adultos. E, ao trazer as contribuições de
Peter Slade sobre os jogos dramáticos infantis, Santos (2007) argumenta que
Peter Slade (1958), que, tendo por base uma larga experiência na observação de
crianças em situação de jogo, defende o Jogo Dramático Infantil – ou Teatro
Criativo, conforme a designação de Courtney (1968, p. 47) – como uma “forma de
arte por direito próprio” (SLADE, 1958, p. 17), através da qual a criança exprime as
suas necessidades emocionais, numa catarse propiciada pelo drama em que se
envolve (SANTOS, 2007, p. 9).
Nesse sentido, o autor entende que quando o sujeito está em contato com o drama teatral, seu
desenvolvimento acontece pela mediação do processo de catarse, entendido como forma de
expressão das necessidades emocionais das crianças envolvidas (SANTOS, 2007).
Há, também, autores que buscam compreender quais tendências e concepções de ensino de
artes estão historicamente presentes na realidade educacional brasileira. Em Tendências e
concepções do ensino de arte na educação escolar brasileira: um estudo a partir da
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Em relação ao conceito de catarse, elas explicam o sentido do termo por meio dos estudos das
concepções de ensino de arte. A partir de uma tendência modernista de ensino de artes, as
autoras enfatizam que historicamente o ensino de arte já foi sinônimo de expressão.
É a partir dessa ideia que vai surgir à concepção de ensino de arte como lazer, auto-
expressão e catarse, o que descaracteriza a arte como um conhecimento
indispensável para a formação das novas gerações, passível de ser ensinado e
aprendido. Essa interpretação custou à área de arte ser configurada apenas como
uma mera atividade, sem conteúdos próprios, conforme verificaremos na concepção
de ensino de arte como atividade, que apresentaremos a seguir (SILVA; ARAÚJO,
2007, p. 9).
Assim, a partir desse processo, catarse significa uma forma de reinterpretação do real por
meio das emoções suscitadas no processo mimético da obra de arte.
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Ao abordar o processo mimético presente na arte, Fernandes (2007) também alude à categoria
aristotélica de catarse, que Vigotski utiliza para pensar a função pedagógica da arte.
A catarse, nesse sentido, seria o produto da mímese propiciada pela fruição artística, ou seja,
que no final teria uma função educativa. Sem se deter muito ao termo, a autora define e expõe
a função de catarse proposta por Vigotski, que ao mesmo tempo seria uma referência à
definição aristotélica.
toda obra de arte [...] encerra forçosamente uma contradição emocional, suscita
séries de sentimentos opostos entre si e provoca seu curto-circuito e destruição. A
isto podemos chamar o verdadeiro efeito da obra de arte, e com isto nos
aproximamos em cheio do conceito de catarse, que Aristóteles tomou como base da
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Observamos, a partir das leituras, que em um período dez anos (2001-2011), de um total de
105 trabalhos apresentados, apenas 7 trabalhos do GT24 fazem referência ao conceito de
catarse. Também foi possível perceber o quão variadas são as abordagens temáticas presentes
nesses grupos. Mas no que se refere aos artigos que fazem referência ao conceito de catarse,
poucos deixam explícito o sentido atribuido à categoria.
Após a leitura e análise dos trabalhos selecionados, infere-se que, em relação ao diálogo entre
arte e educação presente nas comunicações apresentadas no GT 24 da ANPED, a maioria dos
autores entende que o conceito de catarse está relacionado a um processo de purgação e/ou
descarga emocional.
Aprender com Gramsci a difícil arte de lidar com a diversidade sem cair no
relativismo, de lutar contra os dogmas sem deixar de buscar a verdade, de respeitar a
particularidade sem se pulverizar, de construir a unidade sem transformá-la em
uniformidade, de realizar a democracia popular contra os simulacros pós-modernos
(SEMERARO, 2006, p. 13).
Com relação ao conceito de catarse, o autor faz uma nítida apropriação da perspectiva e do
sentido atribuído por Antônio Gramsci.
Nesse sentido, segundo Semeraro (2006), para Gramsci a catarse pessoal e social é um
processo da subjetivação ético-política que caracteriza a construção do conhecimento e a
prática de ensino-aprendizagem coletiva para criar a fase da universalidade ético-politica.
37
Em Por um ensino de filosofia como diagnóstico do presente: uma leitura à luz de Nietzsche,
Danelon (2006) defende, como proposta de ensino de filosofia no ensino médio, a criação das
possibilidades para a emergência da existência de um tipo de homem criador. Com efeito, o
autor passa muito ligeiramente pelo conceito de catarse, fato que dificulta apreender o sentido
a ele atribuído. Ao se questionar sobre o objetivo da filosofia no Ensino Médio, o autor
também questiona a possibilidade de a disciplina ser uma forma de “catarse coletiva”.
Uma vez demarcada a justificativa para o ensino de filosofia, devemos nos perguntar
pelo seu objetivo. Diante do diagnóstico de crise e de niilismo da cultura, qual o
papel do ensino de filosofia? Ele deve assumir a tarefa de resgate da crise ao modo
de uma clínica de aconselhamento, de uma terapia objetivando uma catarse coletiva?
(DANELON, 2006, p. 8).
Pela análise contextual de seus argumentos, pôde-se perceber que o autor atribui sentido mais
psicanalítico ao termo, ao enxergar a aula de filosofia enquanto um espaço-tempo terapêutico
de diagnóstico do presente e de descarga emocional. Pois, em princípio, sua resposta para a
questão posta é afirmativa: catarse tem um sentido psicanalítico e nietzschiano. Contudo, é
apenas de forma dedutiva que se consegue apreender o sentido que o autor atribui ao conceito
de catarse.
Tenho percebido que quanto mais tentamos instaurar o debate, mais o tumulto se
instaura. Os alunos não ouvem uns aos outros, muito menos a nós. Debates
escorregam para uma catarse coletiva, sobrevem a anomia. Insisto que não é uma
questão de "pulso" do prof. Nos recreios observo as conversas: basta que haja mais
de dois que começa aquilo que nos desespera, todos falam ao mesmo tempo, se
entrecortam, se aliviam e bem pouco se conquista. (diário de campo) (CEPPAS,
2004, p. 10).
Portanto, para Ceppas (2004), o uso feito pela narrativa da professora refere-se ao
desequilíbrio que pode acontecer ao se promover debates em sala de aula. Tais debates teriam
o poder de provocar uma descarga emocional. Daí a expressão utilizada, catarse coletiva, que
geraria uma anomia. Ou seja, pelas divergências emocionais e/ou opiniões, as normas sociais
que orientam os sujeitos na sala de aula seriam abaladas. É bem provável, levando-se em
38
consideração algumas indicações do texto, que Ceppas (2004) tenha tido a intenção de
empregar o conceito como sinônimo de caos.
É um dos poucos autores que se detém no conceito de catarse e, em seu texto, Duarte (2008)
vincula o conceito à conscientização. A partir de Lukács e Vigotski, o autor entende a
categoria catarse como mediadora entre o indivíduo e a realidade.
E mesmo que esteticamente, por meio da fruição da obra artística, seja mais possível haver
essa mediação entre o sujeito e a existência, não seria uma categoria puramente estética, mas
uma forma de reelaboração da realidade a partir da função social e ética da arte, ou seja, uma
desfetichização (em face da essência da realidade) do real social. A catarse, para esse autor, é
a culminância da vivência estética, sintetizada na tomada de consciência.
senso comum, pouco aprofundada. No entanto, esse fato nos parece compreensível por não se
tratar do objeto de análise dos autores.
No próximo item, faz-se a análise das dissertações e teses nas quais foram encontradas, nos
últimos 10 (dez) anos, a palavra catarse em seus títulos e resumos.
Com relação ao conceito de catarse, a consulta realizada aos resumos disponíveis no banco de
dissertações e teses da CAPES indica que dos nove trabalhos encontrados, entre dissertações e
13
O banco de dados da CAPES tem disponíveis os resumos das dissertações e teses publicadas a partir de 1987.
Conferir: http://capesdw.capes.gov.br/capesdw/
14
Dentre os trabalhos encontrados, alguns se inserem em outras áreas de conhecimentos, que não o da educação.
Na área de educação, há nove pesquisas, sendo oito dissertações (SILVA, 2010; SÉRVIO, 2002; CHISTÉ, 2007;
FLANDOLI, 2003; DIÁCOVO, 2006; PAGANOTTO, 2010; BORGES, 2006; SOUZA, 2011) e uma tese
(TROJAN, 2005). Em outras áreas, encontramos uma dissertação em Filosofia (SANTOS, 2004), uma em
comunicação (PIMENTEL, 2004) e duas em psicologia (SCHÜHLI, 2011 e BERZIN, 2003). Há também duas
teses em enfermagem que fazem alusão à catarse em seus resumos (FRANÇA, 2004 e SCHERER, 2005).
40
Pelo resumo15 disponível, percebeu-se que a autora relaciona catarse à experiência estética,
que é entendida como uma compreensão emocional do indivíduo. A catarse seria um dos
momentos de autoconhecimento, que são resumidos em identificação, exteriorização e
catarse. Para Silva, esse processo amplia a percepção sobre a realidade subjetiva e objetiva do
sujeito e o provê de capital emocional para enfrentar as adversidades da vida (SILVA, 2010).
15
Dentre os nove trabalhos encontrados para análise, nós não tivemos acesso aos textos completos de cinco
deles (SILVA, 2010; SERVIO, 2002; FLANDOLI, 2003; PAGANOTTO, 2010 e SOUZA, 2011). Nesses casos,
restringimo-nos ao estudo dos resumos.
41
escolar. O autor foca as relações sociais e políticas dessas corporações com o poder político
local, sua relação particular com a escola, a família, a importância do negro na gênese
bandística brasileira e teresinense, o espaço feminino nessas corporações musicais, a relação
de uma estética do povo, representado neste trabalho pela Banda musical; a estética das elites,
geralmente de influência estrangeira, como também as metodologias que sustentam a
educação musical bandística unicamente nas escolas públicas estaduais e, em especial,
municipais. O autor vincula a educação estética como uma catarse artística proporcionada
pela música. O termo catarse aparece no resumo, mas devido às limitações interpretativas, por
se tratar de um resumo, não foi possível ampliar o entendimento acerca do sentido de catarse
utilizado pelo autor.
Em O processo catártico no ensino da Arte: uma parceria entre escola e espaço expositivo,
Chisté (2007) analisa, a partir de Lev S. Vigotski e Georg Lukács, o ensino da arte. Ela
discute o processo catártico vivenciado por alunos no encontro com a obra de arte. A
discussão se localiza na aproximação das práticas de ensino na sala de aula e em espaços
expositivos. Por meio de uma pesquisa-ação, em parceria com duas arte-educadoras, atuantes
em espaços expositivos e na escola, Chisté investigou como alunos de uma 8ª série do ensino
fundamental vivenciam/compartilham/constroem o processo catártico, tanto no espaço
expositivo quanto na sala de aula. De acordo com a autora, o objetivo da pesquisa foi
contribuir para a construção de uma proposta de ensino da arte que propicie ao indivíduo a
vivência de processos catárticos capazes de desconstruir a realidade reificada, proporcionando
trocas de saberes e afetividades entre os sujeitos.
A partir de autores vinculados às teorias educacionais críticas, Chisté (2007) faz uma
abordagem lukacsiana do conceito de catarse: “A Arte leva o homem à catarse, que é tratada
por Lukács como uma sacudida na subjetividade do receptor, levando-o a tomar consciência
de si e do mundo em que está inserido” (CHISTÉ, 2007, p. 22).
Para a autora, a catarse está vinculada à experiência estética e pode provocar reflexões
transformadoras sobre estruturas alienantes. No entanto, essa conjuntura não se dá de forma
imediata e em um só tempo, mas se constitui e se constrói no processo. Ela afirma que os
espaços escolar e expositivo são locais que podem estimular a capacidade criadora do
educando, sendo essencial reconhecer e efetivar a participação do monitor e do professor
como mediadores do processo de significação dos conteúdos, para estimular o
desenvolvimento das percepções, interpretações e reflexões (CHISTÉ, 2010).
42
A partir dos autores citados, Flandoli (2003) propõe um estudo sobre as categorias de
adolescência e catarse em suas relações com os processos criativos aplicados à escrita. Por
meio da análise gráfica do discurso de três professoras do ensino fundamental da cidade de
Campo Grande/MS, a autora apresenta as reflexões sobre o trabalho e aponta que todas
apresentam diferentes posicionamentos quanto à sua práxis.
De todos os trabalhos analisados, a única dissertação que faz referência ao conceito de catarse
a partir da Teoria Crítica da Sociedade, bem como da filosofia de Theodor Adorno, é Como
assistimos o professor?: uma análise de imagem da profissão de professor transmitida pela
televisão. Nela, Diácovo (2006) investiga como a televisão utiliza seus recursos atrativos, tais
como imagem, cor, som e sua constante influência sobre o telespectador. A autora analisa
cenas de programas e algumas publicidades, veiculadas pela Rede Globo e pelo SBT durante
os anos de 2005 e 2006. Uma das categorias de análise é o envolvimento da figura do
professor com o universo cômico veiculado pela TV. Segundo Diácovo (2006), a questão da
profissão de professor muitas vezes é destituída de sentido quando retratada nas imagens dos
programas televisivos.
Para argumentar sobre a instrumentalização das próprias emoções realizadas pela indústria
cultural, que cada vez mais administra para o sistema, Diácovo também recorre às reflexões
de Bruno Pucci (2004):
Para a autora, o poder libertador embutido no riso é rapidamente captado pela indústria
cultural que o aprisiona e o direciona conforme lhe convier. O riso administrado “sucumbe à
dessublimação presente nos conceitos, organizados pela ideologia dos meios de comunicação,
e regride do seu estado catártico para uma esfera fraudulenta, na qual sinteticamente é gerado
e transformado em zombaria” (DIÁCOVO, 2006, p. 94).
16
Trata-se do artigo “O riso e o trágico na indústria cultural: a catarse administrada” (PUCCI, 2004).
44
Ao longo da sua dissertação, Borges (2006) faz alusão ao conceito de catarse sete vezes. Ela o
relaciona aos cinco passos propostos pela pedagogia histórico-crítica em termos de
metodologia de ensino: a prática social, a problematização, a instrumentalização, a catarse e,
novamente, a prática social modificada. Também explica que na catarse o educando é
solicitado a manifestar se realmente assimilou os conteúdos trabalhados, ou seja, ele expressa
sua nova maneira de ver a prática social. Nesta fase, o aluno é capaz de expor que a realidade
que ele conhecia como “natural”, a rigor é “histórica”, porque produzida pelos homens em
determinado tempo e lugar, com intenções políticas implícitas ou explícitas e atende a
necessidades sócio-econômicas (GASPARIN, citado por BORGES, 2002). Para fundamentar
sua argumentação, faz referência direta a Saviani (2003):
com filme e a realização de pacto moral com os alunos. Com as experiências adquiridas, por
meio de cines-debates com diversos grupos do ensino superior, conclui que o trabalho com
filmes em sala de aula potencializa a formação humana nos seguintes aspectos, todos
verificados nos depoimentos dos alunos: ideais de serviços à sociedade, à ecologia,
comprometimento profissional ao serviço humanitário e, por fim, um despertar do sentido da
vida.
Com suas análises das Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio e da Educação
Profissional, Trojan (2005) constata mudanças nos processos produtivos por meio da
comparação entre o sistema taylorista-fordista adotado na modernidade e o atual, baseado na
flexibilização e articulado com o discurso pós-moderno que substitui o modelo da
17
Noologia foi um “termo inventado por Calov em Scripta philosophica (1650) para indicar uma das duas
ciências auxiliares da metafísica (a outra é a gnosiologia), mais precisamente a que tem por objeto as funções
cognitivas. Esse termo foi retomado no século seguinte por Crusius e outros, no mesmo sentido ou em sentidos
análogos. Kant chamou de noologistas aqueles que, como Platão, acham que os conhecimentos puros derivam da
razão, em contraposição aos empiristas, que os julgam derivados da experiência. Ampère propôs em Essai sur Ia
philosophie des sciences (1834) chamar de noológicas todas as ciências do espírito” (ABBAGNANO, 1998, p.
716).
46
qualificação das competências na formação para o trabalho. Para ela, as diretrizes incorporam
esse novo modelo como uma nova pedagogia que relativiza o papel do conhecimento,
subsumido a um conjunto de saberes, nos quais são valorizados os aspectos comportamentais
e afetivos.
No que diz respeito à catarse, o termo aparece dezesseis vezes no texto da tese e a autora
deixa explícito o sentido atribuído ao conceito. Ela o historiciza, abordando-o desde a
Antiguidade Clássica até as reelaborações contemporaneamente adotadas para explicar sua
negatividade e sua positividade no contexto das relações capitalistas. Para Trojan (2005), a
reação emocional prazerosa que decorre da relação do belo e com o sensível ocupa um papel
importante no processo de difusão e apropriação, tanto no campo da produção material como
na transmissão de ideias, valores e comportamentos. Na historicização do conceito a autora
enfatiza a contribuição de autores como Platão, Aristóteles, Lukács, Adorno e Horkheimer.
Para Trojan, esse dois últimos destacam a negatividade do conceito de catarse na sua relação
com a indústria do entretenimento de massa da sociedade capitalista:
Desse modo, a indústria cultural que nasce com a finalidade de proporcionar distração torna-
se, gradativamente, mais poderosa e, com isso, “pode agir sobre as necessidades dos
consumidores, produzi-las, guiá-las e discipliná-las” (ADORNO; HORKHEIMER, citado por
TROJAN, 2005, p. 53) por meio de todos os sentidos que o termo distrair pode abranger:
divertir, recrear; entreter; desviar, desencaminhar; descuidar-se, esquecer-se. Para Trojan,
agora a catarse se realiza não para elevar a alma, mas para transformar em prazer a dor pela
privação da mercadoria inacessível e substituir a capacidade de realização das pessoas
(TROJAN, 2005).
Alguns (CHISTÉ, 2007; BORGES, 2006) recorrem às teorias educacionais críticas para
atribuir um sentido de transformação da prática social e de conscientização promovida pela
catarse. Outros (SILVA, 2010; SOUZA, 2010; PAGANOTTO, 2010; FLANDOLI, 2003;
SÉRVIO, 2002) utilizam a catarse aristotélica para destacar o processo de
depuração/purificação emocional. Por outro lado, constata-se a presença de duas pesquisas
fundamentadas na Teoria Crítica da Sociedade, em especial na filosofia de Theodor Adorno18,
que também entram na categoria conscientização enquanto sentido de catarse (DIÁCOVO,
2006; TROJAN, 2005).
Nas pesquisas a que se teve acesso ao texto completo, é possível constatar que há um
tratamento filosófico consistente no que se refere ao conceito de catarse. Já naquelas que
recorrem a Adorno e fazem uma análise da relação entre os artifícios da indústria cultural e
catarse na contemporaneidade, o conceito em si não é central na discussão.
Após esse detour temático dos artigos encontrados e dos sentidos por eles atribuídos ao
conceito de catarse, no próximo item apresenta-se a análise geral das leituras realizadas na
revisão de literatura. Cabe lembrar que, como toda e qualquer interpretação, estas também
estão sujeitas a equívocos e erros, mas com elas pôde-se ampliar o conhecimento sobre as
perspectivas teóricas e a forma com a qual as pesquisas acadêmicas em educação abordam a
relação entre a catarse e a formação humana.
A partir do levantamento bibliográfico, é possível inferir que, apesar de não ser um conceito
amplamente estudado, a catarse é objeto de discussão no âmbito dos debates promovidos
pelas publicações acadêmicas no campo da educação.
18
Na revisão de literatura realizada no banco de dissertações e teses da CAPES, também se fez um levantamento
de quantos trabalhos defendidos, nos últimos dez anos (2001-2011), entre dissertações e teses, utilizam a Teoria
Crítica da Sociedade e Adorno, direta e/ou indiretamente, como fundamentação teórica. Há 152 dissertações,
dentre as quais 70 são da área de educação, 25 de filosofia, 16 de literatura, 13 de psicologia, 12 de sociologia, 3
de música, 2 de comunicação, 2 de direito, 2 de artes, 2 de educação física e 1 em teologia, teatro, história,
interdisciplinar e administração cada. Das 127 teses disponibilizadas, 55 são da educação, 23 em psicologia, 23
em literatura, 16 em filosofia, 3 em música, 2 em sociologia, 2 em comunicação e 1 em administração, ecologia
e teologia.
48
Contudo, apesar de utilizado por uma parcela não tão significativa dos autores da bibliografia
consultada na revisão de literatura, o tratamento conceitual da catarse ainda parece não
relevante a ponto de merecer destaque nos títulos e resumos de dois dos principais periódicos
acadêmicos, no campo da educação, bem como no corpo das comunicações e pôsteres
apresentados em dois Grupos de Trabalho da principal e mais bem conceituada Associação de
pesquisadores em educação da América Latina (ANPED). Tampouco no banco de
dissertações e teses da CAPES, que nos últimos dez anos apresentou apenas nove trabalhos
que aludem ao conceito de catarse em seus título e resumos.
Nossa investigação tomou uma diretriz mais próxima dos objetivos da análise proposta apenas
quando nos empreendemos a investigar a palavra catarse em cada corpo textual das
comunicações e nos artigos dos periódicos pesquisados. Contudo, mesmo nos textos
encontrados, sua incidência é ainda bastante baixa.
É possível especular que, talvez, essa temática e o próprio conceito de catarse possam ter sido
abordados em artigos anteriores das fontes pesquisadas. Mas, como exposto, nos períodos de
10 e 5 anos nenhum artigo das revistas e/ou comunicações da ANPED faz referência ao
conceito de catarse em seus títulos e resumos, e apenas nove pesquisas em educação
apresentaram a categoria em seus títulos e/ou resumos. O que já se configura como um
aspecto de análise, pois essa situação parece indicar que a discussão recente em torno desse
conceito é pouco explorada nos debates educacionais concernentes à formação e experiência
estética. Também é possível inferir que, mesmo havendo textos em que os autores fazem
referência ao conceito, ele aparece, na grande maioria dos trabalhos, uma única vez e de
19
Mais à frente, nesta dissertação, este conceito será mais bem apresentado.
49
forma muito superficial e/ou latente. No entanto, a ambiguidade está no fato de que a quase
totalidade dos textos aponta para a importância da catarse no processo de formação escolar,
ou seja, para a ideia de que ela possui uma relevante função educativa.
Dentre os argumentos centrais, objetivos e conclusões defendidas pelos autores dos artigos
dos dois periódicos pesquisados, é bem amplo o universo temático que envolve considerações
relativas à formação em si. Esta aparece vinculada tanto às experiências artístico-culturais
(teatro, cinema, literatura, artes plásticas)20, quanto aos fundamentos e filosofia da educação21.
Pari passu, percebe-se que, proporcionalmente, o conceito de catarse também se vincula tanto
às discussões filosóficas como à experiência estética que constitui a formação humana.
Porém, como dito, nos trabalhos analisados o conceito é abordado de forma muito periférica.
No acervo de 641 artigos, divididos entre pôsteres e comunicações do GE01 e dos GTs 24 e
17 da ANPED de 2001 a 2011, e de 2007 a 2011, dos periódicos acadêmicos das duas
revistas analisadas, o conceito de catarse aparece em 28 trabalhos, ou seja, apenas 4%, como
mostra o gráfico abaixo.
20
Conferir Duarte (2008); Reis (2009); Neves (2009); Silva, Araújo (2007); Santos (2007); Fernandes (2007);
Bacocina, Camargo (2007); Schechner; Icle; Pereira (2010); Fantin (2009).
21
Conferir Semeraro (2006); Danelon (2006); Ceppas (2004); Pereira (2007); Fernandes (2007); Zuin (2011);
Taschetto (2011); Martins (2011); Moura (2010); e Paiva (2007).
50
Também é possível perceber que, mesmo nos trabalhos que se propuseram a fazer uma
abordagem teórico-bibliográfica de seus temas, no caso de nosso objeto de análise (catarse)
isso não significou um tratamento mais teórico sobre o conceito.
A partir da revisão de literatura, infere-se que a discussão crítica sobre o processo catártico
não assume uma centralidade. Há uma variedade de temas, mas em nenhum trabalho o
conceito de catarse aparece como foco principal de análise. Nesse sentido, talvez seja acertado
afirmar que as discussões sobre formação estética estão presentes na maioria dos textos.
Contudo, a relação entre catarse e formação estética é acanhada e muitas vezes naturalizada.
Os textos mencionados exploram essa relação em intensidades diferentes. Dos 28 trabalhos
analisados, 12 destinam tratamento especial ao conceito de catarse. Os outros 16 assumem um
sentido corriqueiro, muitas vezes implícito.
Em linhas gerais, na maioria dos trabalhos analisados é bastante limitado, ou mesmo nulo, o
tratamento teórico-conceitual em relação à catarse. Isso tende a dificultar sua compreensão,
uma vez que um tom de obviedade a uma palavra/conceito nem sempre se configura como
esclarecedor. Percebe-se que, quando o conceito passa por uma apreciação teórica, ele pode
adquirir uma dimensão mais ampla de discussão, pois isso significa, entre outros termos,
explicitar as múltiplas determinações das relações históricas que o compõe.
O conceito, como ferramenta do trabalho teórico, pode ser entendido como uma mediação, no
nível da abstração, da realidade efetiva. O mesmo não substitui a realidade, mas para que se
possa realizar a pesquisa, no intuito de apreender o movimento do real, é fundamental o
trabalho conceitual. Não obstante, nossa intenção não é trabalhar com o conceito pelo
conceito, mas compreender como ele se apresenta, se é possível conhecer suas características
histórico-filosóficas, quais perspectivas de catarse estão mais presentes e quais ainda precisam
ser melhor exploradas do ponto de vista teórico. Esse nos parece ser um dos principais
desafios desta pesquisa.
22
Duarte (2008); Semeraro (2006); Reis (2009); Neves (2009); Fernandes (2007); Bacocina, Camargo (2007);
Schechner, Icle, Pereira (2010); Martins (2011); Chisté (2007); Borges (2006); Diácovo (2006) e Trojan (2005).
51
No caso de Aristóteles, isso se explica porque, na tradição filosófica, ele foi quem primeiro se
deteve, de forma mais precisa, sobre o conceito de catarse. Esse filósofo recorreu a um
vocábulo utilizado pela medicina grega para pensar a experiência estética do indivíduo, pois a
palavra catarse, do grego kátharsis, significa “purificação” ou “purgação”.
Na Grécia antiga, a catarse referia-se à purificação das almas por meio de uma descarga
emocional provocada por um drama, ou seja, a tragédia grega era concebida como mecanismo
de um processo catártico. Segundo Aristóteles (1997), a catarse estava diretamente ligada à
formação do cidadão grego, ou seja: aprender a viver a partir do experenciar/contemplar a
vida por meio da experiência catártica a fim de propiciar com esse processo uma depuração
emocional e/ou moral capaz de motivar uma mudança de comportamento. Assim, desde a
Antiguidade, a experiência catártica é concebida como elemento importante para formação do
indivíduo.
Por conseguinte, o sentido aristotélico de catarse é bastante utilizado por autores do campo
educacional como sinônimo de uma educação emocional potencializadora na formação do
indivíduo, principalmente sob um âmbito de formação artístico-cultural. Isso se confirma nos
artigos analisados no momento em que tratam do teatro, da literatura, do cinema e das artes
plásticas.
Gramsci também é outra referência nos trabalhos analisados. Intelectual bastante referenciado
na área da educação, todos os textos estudados que o tomam como referência tendem a
explicitar a dimensão política da reflexão filosófica. Esse é o caso de Martins (2011), que
considera que catarse é um processo educativo-político articulado à vida econômica e social.
Segundo esse autor, Gramsci enfatiza o caráter político presente no processo catártico, o que
Lembrando que dos nove trabalhos encontrados no banco da CAPES, tivemos acesso ao texto completo em
apenas quatro (CHISTÉ, 2007; BORGES, 2006; DIÁCOVO, 2006 e TROJAN, 2005).
23
Reis (2009); Schechner, Icle, Pereira (2010).
24
Semeraro (2006); Martins (2011); Borges (2006).
25
Duarte (2008); Fernandes (2007); Bacocina, Camargo (2007).
26
Chisté (2007).
27
Diácovo (2006); Trojan (2005).
52
condiz com o caráter político também da formação, por isso se justifica sua utilização quando
se pensa em educação.
Assim como Gramsci, Vigotski também é um autor de referência no âmbito das teorias
educacionais críticas e ambos são utilizados para fundamentar o significado de catarse dos
trabalhos analisados. Bacocina e Camargo (2007) abordam o conceito na Psicologia da Arte,
na qual Vigotski faz referência à catarse, entendida como presente no processo de “reação
estética”, enquanto momento de contradição emocional que promove o processo de criação.
Ambos relacionam o processo catártico a um viés emancipatório e de criação na formação
humana para além do artístico. O sujeito, nessa proposição, é um todo ético, político e social.
Como visto, a partir de Vigotski e Lukács28, Duarte (2008) e Chisté (2007) entendem que a
catarse é mediadora entre o indivíduo e a realidade e, mesmo que esteticamente, por meio da
obra artística, seja mais possível, não seria uma categoria puramente estética. Pois “ao
produzir a obra de arte, apropria-se dos processos realmente existentes na vida dos seres
humanos, inserindo-os numa nova configuração, a da obra de arte como uma totalidade”
(LUKÁCS citado por DUARTE, 2008, p. 3).
É uma forma de reelaboração da realidade a partir da função social da arte, que seria a
desfetichização diante da essência da realidade social. A catarse seria a culminância da
vivência estética, ou seja, a tomada de consciência. Percebe-se, aqui, uma ampliação no
sentido e abrangência do processo catártico proposto pelo autor. Sem dicotomizar, ele pensa o
objeto artístico passível de uma função social e política na formação dos sujeitos. Contudo,
seria possível pensar que toda a arte traz essa possibilidade de tomada de consciência? Em
tempos de mass media, mercantilização da cultura e da arte, como pensar a vivência estética
na formação humana?
Não podemos perder de vista que “a ideia de cultura (arte) não pode ser sagrada – o que a
reforçaria como semiformação –, pois a formação nada mais é que a cultura tomada pelo lado
de sua apropriação subjetiva. Porém, a cultura tem um duplo caráter: remete à sociedade e
intermedeia esta e a semiformação” (ADORNO, 2010, p. 8). Com isso, faz-se necessária uma
28
Vigotski e Lukács são dois teóricos muito utilizados dentro das perspectivas da teoria educacional crítica.
Sobre a concepção de catarse e formação, Adorno e Lukács ora se aproximam ora se distanciam em suas
definições, acerca dessa diferenciação conferir o capítulo 4 desta dissertação.
53
reflexão crítica sobre as configurações que a arte e/ou cultura têm tomado em nossa
sociedade, bem como o papel da formação nesse contexto. E aqui, por crítica, estamos
entendendo uma perspectiva de análise que busca desvelar as múltiplas relações que
determinam um fenômeno, um objeto de investigação.
Com relação ao referencial teórico que fundamenta a presente pesquisa, Zuin (2011), Diácovo
(2006) e Trojan (2005) são os únicos que recorrem às reflexões de Theodor Adorno, tendo-o
como fundamento teórico. No caso específico do trabalho de Zuin (2011), o sentido de catarse
permanece ignoto, o que tende a dificultar a compreensão do sentido. O conceito é enfatizado
na sua dimensão oposta: catarse regressiva. Junto a isso, o autor agrega elementos
psicanalíticos para pensar a dinâmica do processo catártico. Contudo, isso não pode significar
um demérito, tampouco uma desqualificação do trabalho desse autor. O que se quer aqui
apontar é o fato de que os poucos trabalhos que fazem referência à Teoria Crítica da
Sociedade de Adorno parecem não ter como escopo tratar conceitualmente a categoria
filosófica.
Portanto, como explicitado, a análise dos trabalhos aponta para uma gama considerável de
possibilidades de significação que subjaz nos comentários relativos ao conceito de catarse,
sobretudo no que diz respeito a uma formação estético-cultural ampla, qualificada e a revés
dos mecanismos da indústria cultural, presentes em nosso cotidiano e insistentemente
apropriados pela escola.
A catarse parece envolver determinações muitas vezes complexas. Ao tomarmos esta revisão
de literatura como um dos elementos definidores de nossa pesquisa, reconhecemos que há
uma multiplicidade conceitual, ou até mesmo uma polissemia no sentido atribuído ao
conceito.
Não obstante essa constatação, é possível concluir que, na área da educação, o campo de
estudos que envolve o processo catártico e a formação estética, contrapostos aos mecanismos
semiformativos da indústria cultural, merece ser mais bem debatido, ampliado e devidamente
aprofundado, pois a análise realizada indica que ainda é tímido, e mesmo embrionário, o
debate em torno desse conceito. Isso significa que muitas possibilidades de análises,
interpretações e contribuições ainda podem ser realizadas. Nesse sentido, a presente análise
dos trabalhos publicados nos periódicos acadêmicos, dos pôsteres e comunicações
apresentadas no GT17 e GT24 da ANPED e nas dissertações e teses no campo da educação se
configura como um horizonte de percepção.
Por essa razão, essa revisão de literatura sugere que recorrer à filosofia adorniana como
referencial teórico dessa pesquisa perfaz uma dupla justificativa. Primeiro, porque Adorno é
considerado um dos principais expoentes da filosofia no século XX, em especial por suas
reflexões sobre a formação da sensibilidade e a regressão dos sentidos forjada pela sociedade
capitalista. Segundo, porque apesar de já contar com dezenas e talvez centenas de
pesquisadores espalhados pelo país, ainda são incipientes as pesquisas, no campo da educação
brasileira, que recorrem à Teoria Crítica da Sociedade, em especial às contribuições
filosóficas de Theodor Adorno, com vistas a um possível desdobramento, no campo
pedagógico, para se pensar uma teoria educacional crítica, em posição contrária aos artifícios
semiformativos da indústria cultural.
Outro aspecto, vinculado à justificativa que chama a atenção refere-se às dissertações e teses
defendidas no PPGE/UFES29. No acervo de dissertações e teses da Biblioteca Setorial do
Centro de Educação da UFES, não há nenhum trabalho de mestrado ou doutorado que tenha
feito um diálogo, ou mesmo se fundamentado teoricamente na filosofia de Theodor Adorno.
29
O Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Espírito Santo, disponibiliza seu
acervo de pesquisa apresentadas nos últimos cinco anos. Conferir no sítio eletrônico
http://www.ppge.ufes.br/dissertacoes/dissertacoes.asp.
55
Capítulo II
Como indicado, com fins de subsidiar as reflexões sobre a formação estético-cultural, esta
pesquisa elege a Teoria Crítica da Sociedade, também conhecida por Escola de Frankfurt,
como referencial teórico que fundamenta nossas reflexões. Para atingir os objetivos propostos,
nesse segundo capítulo o escopo é contextualizar a origem dessa escola filosófica com alguns
dados históricos sobre seu surgimento e também de alguns teóricos que marcaram a história
dessa Escola, em especial o filósofo Theodor Adorno.
Em função de sua contribuição filosófica mais intensa vinculada à teoria estética, no que se
refere às questões específicas da educação, em especial a formação humana, detivemo-nos na
trajetória acadêmica e na relação visceral de Theodor Adorno com a Escola de Frankfurt.
A expressão “Escola de Frankfurt” surgiu em 1960, época em que o Instituto para Pesquisa
Social (Institut für Sozialforchung) estava sob a direção de Theodor W. Adorno, último
representante da primeira geração. É possível afirmar que esse Instituto é um marco na
história da filosofia alemã, pois se trata de uma instituição peculiar que muito contribuiu para
57
O Instituto foi idealizado por Felix Weil, jovem intelectual de origem burguesa e recém-
doutorado em Ciência Política pela Universidade de Türbingen, que foi por algum tempo o
responsável pela manutenção financeira do instituto. Ele e Kurt Albert Gerlach, professor da
Universidade de Frankfurt, “para quem a liberdade da ciência e o interesse prático na
supressão radical na miséria e da opressão caminhavam lado a lado” (WIGGERSHAUS,
2002, p. 48), viram a oportunidade de criar um instituto dedicado ao socialismo científico.
A inauguração do instituto aconteceu em 22 de junho de 1924. Seu primeiro diretor foi Carl
Grünberg, professor de Economia Política da Universidade de Viena, fundador dos Arquivos
para a história do socialismo e do movimento operário e um dos iniciadores da Associação
de Educação Socialista. Grünberg viu, na oferta feita por Felix Weil,
a oportunidade de realizar seus próprios planos sob sua própria direção e, ao mesmo
tempo, escapar a uma quantidade excessiva de obrigações oficiais e não oficiais em
Viena. Felix Weil, por seu lado, tinha encontrado, na pessoa de Grünberg, um
diretor de Instituto que era tanto um marxista convicto como um sábio reconhecido
(WIGGERSHAUS, 2002, p. 55).
estudiosos muitas vezes retaliados. O trabalho, nesse sentido, era introduzir o marxismo nas
universidades e proporcionar aos intelectuais de inspiração marxista um lugar no qual
pudessem realizar seus trabalhos de pesquisa “nas mesmas condições de serenidade que eram
normais para professores universitários, cuja maioria não era marxista” (WIGGERSHAUS,
2002, p. 60). Dessa forma, a criação do Instituto foi um marco, na academia ocidental, para a
história das pesquisas marxistas, sobretudo no que diz respeito aos movimentos operários e ao
movimento socialista.
Historicamente, o início foi marcado por um conjunto de temas de teses, por vezes
homogêneos, pois a maioria estava direcionada para os estudos do movimento operário e
socialista. Wiggershaus (2002) considera que Carl Grünberg, o primeiro diretor, nos poucos
anos à frente da direção do instituto, já havia criado uma situação única em seu gênero: o
marxismo e a história do movimento operário podiam ser ensinados e estudados nas
universidades e as defesas de teses sobre esses temas podiam ser feitas por quem assim
desejasse.
Em 1931, Max Horkheimer assumiu a direção do Instituto para Pesquisa Social. Horkheimer
(1895-1973) era filho de industrial e de família judaica. Originário de um ambiente abastado,
Horkheimer “havia sido atraído pelo socialismo libertário, de conotações éticas, que fazia
sucesso entre muitos filhos da burguesia após o final da guerra” (JAY, 1988, p. 27).
Doutorou-se em 1925, em Frankfurt, com a tese A crítica kantiana da faculdade de julgar
como ponte entre as filosofias teórica e prática.
Horkheimer já era um colaborador do instituto, mas não tão importante, por isso era de se
surpreender sua indicação. Mas o fato que determinou sua escolha foi o de não estar, em um
contexto de grande movimentação partidária, politicamente marcado, ao contrário das demais
opções de Felix Weil.
Foi, portanto, com o anseio de superar uma tradição marxista em crise, devido à ortodoxia
vinculada aos partidos comunistas alinhados a Moscou, que Horkheimer propôs uma mudança
no programa do Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt. Logo no discurso de posse, em 24
de janeiro de 1931, Horkheimer deixou clara sua proposta:
Com esse discurso, Horkheimer mostrou sua visão futura para o instituto, na qual a filosofia
da sociedade deveria estar interpenetrada nas ciências sociais empíricas. Com a empiria, não
pretendia representar uma disciplina precisa, mas apenas o projeto de um conhecimento do
conjunto do processo social. O objetivo era tornar as atividades interdisciplinares e aplicadas.
O marxismo característico do instituto, sob a direção de Grünberg, seguiu-se mantido, e a
política de apoio aos estudantes e pesquisadores comunistas e socialistas não foi modificada.
É possível afirmar, de fato, que foi com Horkheimer na direção do Instituto para Pesquisa
Social, com sua Teoria Crítica da Sociedade, que a Escola de Frankfurt começou a se
configurar. Houve uma ampliação da vertente marxiana e um estreitamento do diálogo com a
filosofia clássica idealista alemã (Kant e Hegel), com a crítica iconoclasta de Arthur
Schopenhauer, com Friedrich Nietzsche e com a psicanálise de Sigmund Freud. E foi esse
alargamento teórico que possibilitou à tradição da Teoria Crítica da Sociedade discernir, nas
chamadas ciências humanas (psicologia, sociologia, história, etc.), o potencial crítico da
teoria: a razão, crítica de si mesma (WIGGERSHAUS, 2002, p. 34).
Dentre os principais nomes que formavam o núcleo principal do Instituto para Pesquisa
Social, além de Max Horkheimer e Theodor Adorno, estava Herbert Marcuse (1898-1979),
que teve inicialmente como grandes inspiradores Georg Lukács e Martin Heidegger.
Outros importantes teóricos que passaram pelo Instituto para Pesquisa Social foram Friedrich
Pollock (1894-1970) e Leo Löwenthal (1900-1993). Pollock fora estudioso de Karl Marx e,
durante toda a vida, muito amigo de Horkheimer. Estudou filosofia, mas sua especialidade era
economia política, e foi nesta área que defendeu sua tese em 1923 sobre a teoria do dinheiro
em Marx. Löwenthal, por sua vez, era sociólogo. Possuía interesse pelo judaísmo, socialismo
e psicanálise. Em 1930, tornou-se membro efetivo do instituto. Logo no início, cabia a ele a
tarefa de preparar e editar a Revista para Pesquisa Social – novo órgão, que substituiu o
periódico Archiv, que existiu durante a direção de Grünberg.
Além dos intelectuais citados, é preciso lembrar-se de outros dois importantes autores que
contribuíram para o instituto: Erich Fromm e Walter Benjamin. Erich Fromm (1900-1980) foi
psicanalista, filósofo e sociólogo. Freudiano convicto, em toda sua trajetória seu objetivo fora
combinar a teoria psicanalítica das pulsões com a teoria marxiana das classes: uma psicologia
social. Fromm, com sua leitura marxista dos conceitos freudianos, possibilitou uma
explicação para a estabilidade das sociedades de classes.
E é essa crítica imanente da sociedade que levou o instituto, em 1933 – ano em que Hitler se
tornou Chanceler da Alemanha – a ser considerado uma instituição contrária aos interesses do
Estado alemão. O Estado nazista, assim que legitimado, começou uma verdadeira “caça às
61
bruxas”. Foi nessa época que Adorno, Horkheimer e outros membros foram ameaçados, tanto
por suas ideias quanto pela origem judaica da maioria dos intelectuais vinculados ao instituto.
Logo no início do nazismo, “os judeus começavam a perder seus direitos civis. Em Frankfurt,
viviam cerca de trinta mil judeus em 1925; em Berlim, quase duzentos mil. Explodia a
violência do antissemitismo” (PUCCI; RAMOS-DE-OLIVEIRA; ZUIN, 1999, p. 30). E foi
com o intuito de preservar suas vidas que, em fevereiro de 1933, Max Horkheimer transferiu o
Instituto para Pesquisa Social, inicialmente para Genebra. Em 1934, Horkheimer, juntamente
com o diretor administrativo do instituto, Friedrich Pollock, pensou na possibilidade
detransferi-lo para a Inglaterra. Contudo, optaram pelos Estados Unidos da América, local
que, veremos mais adiante, foi muito importante para algumas reflexões filosóficas da Teoria
Crítica da Sociedade.
O Instituto para Pesquisa Social também foi responsável pela organização de um dos
principais e mais importantes periódicos acadêmicos de cunho marxista, a Revista para
Investigação Sociológica (Zeitschrift für Sozialforschunf), publicada pela primeira vez no
verão de 1932, e considerada a primeira a divulgar a teoria marxista de forma a oxigená-la e
não comprometê-la ideologicamente ao Partido Comunista aliado à URSS.
A revista servia como meio de divulgação das atividades do instituto e de seus colaboradores
e, durante a década de 1930, foi publicada regularmente. Havia uma similaridade com a
revista Archiv, que funcionou durante a direção de Grünberg. No entanto, a Zeitschrift se
distinguia de sua antecessora, sobretudo quanto ao conteúdo. De acordo com Wiggershaus
(2002), contrariamente à Archiv, na qual os trabalhos de história social ou economia
ocupavam lugar especial, na Zeitschrift os autores tratavam de uma gama maior de assuntos,
dentre eles filosofia, economia, sociologia, cinema, música, psicanálise, fascismo, literatura,
cultura de massas e autoritarismo. Ou seja, buscava-se a análise da totalidade das relações
sociais, fossem elas econômicas, psiquicas, estéticas ou sociológicas. E, por ter se configurado
dessa forma, a revista era um espelho do programa proposto por Horkheimer para o instituto,
ou seja, multidisciplinar.
A Escola de Frankfurt, com sua Teoria Crítica da Sociedade, sem dúvida impulsionou uma
nova forma de pensar a sociedade moderna dentro da filosofia ocidental contemporânea,
principalmente com suas observações sobre as esperanças ingênuas despertadas pelo
62
A sociedade administrada mina seu potencial emancipador na medida em que reproduz uma
vida danificada por meio de sua racionalidade instrumental, e que “por mais que a
racionalidade tivesse empreendido esforços para libertar o homem do pensamento mítico, este
permanecera preso ao nexo da própria racionalidade” (JAY, 1988, p. 36).
30
Sobre a “razão crítica de si mesma” proposta pela Teoria Crítica da Sociedade, em especial na obra Dialética
do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (1947), de Adorno e Horkheimer, algumas críticas são tecidas; no
item 2.3 serão abordadas as considerações que Jürgen Habermas faz em seu livro O discurso filosófico da
modernidade (1985).
63
Nesse sentido, a negação desse fenômeno só pode ter início e efetivo sucesso por meio do
pensamento crítico.
De forma mais evidente, no bojo da discussão sobre a sociedade capitalista, dentre os autores
da primeira geração da Escola de Frankfurt, Theodor W. Adorno é aquele que talvez mais se
destaque no campo da filosofia em geral. Isso se dá tanto em função do conjunto de sua vasta
obra filosófica e das intervenções públicas havidas no contexto alemão do Pós Segunda
Guerra Mundial, como pelas aproximações de temáticas aparentemente díspares, mas
intimamente vinculadas no âmbito geral da formação humana.
Por conseguinte, tendo em vista o fato de que a maior parte das dissertações e teses abstraem
aspectos biográficos dos autores que fundamentam as pesquisas, no próximo item traço um
breve detour biográfico sobre Adorno. O objetivo é ampliar a compreensão dos motivos que
nos levam à escolha desse filósofo como interlocutor e principal referencial teórico e, se
possível, apontar as prováveis conexões entre algumas particularidades da sua vida singular, a
dimensão mais ampla da Teoria Crítica da Sociedade e as questões derivadas para se pensar
possíveis desdobramentos para uma teoria crítica da educação estética.
A infância e adolescência de Adorno foram marcadas pela música, sob influência da mãe,
cantora profissional, e da tia materna, Agathe, companheira de lar e uma pianista talentosa.
Desde muito jovem, Adorno participou de um ambiente cultural e intelectual muito rico e esse
contexto foi significativo para a formação do filósofo e o influenciou nas principais reflexões
filosóficas, principalmente nas de dimensões estéticas e culturais. Sua trajetória individual o
levará, portanto, a valorizar uma formação cultural ampla e crítica.
Em janeiro de 1925, partiu para Viena com a intenção de se tornar compositor e pianista e
logo se tornou aluno de Alban Berg (1885-1935) que, à época, era um conhecido expoente da
revolução musical moderna expressa no dodecafonismo31. Em Viena, Adorno fez parte do
seleto grupo de compositores inovadores que viviam em torno de Arnold Schönberg32,
compositor austríaco e referência na música moderna, “cuja controversa ‘nova música’ estava
deixando, na época, sua fase atonal e seguia na direção do serialismo da escala de doze tons”
(JAY, 1988, p. 28). Esse distinto grupo ficou conhecido como o círculo de Schönberg.
31
O dodecafonismo, do grego dodeka: 'doze' e fonos 'som', é um sistema de organização de alturas musicais
criado na década de 1920 pelo compositor austríaco Arnold Schönberg. No dodecafonismo, as 12 notas da escala
cromática são tratadas como equivalentes, ou seja, sujeitas a uma relação ordenada e não hierárquica. As notas
são organizadas em grupos de doze notas denominadas séries, as quais podem ser usadas de quatro diferentes
maneiras (WIGGERSHAUS, 2002).
32
Arnold Schönberg nasceu em Viena em 1874. Foi compositor de música erudita. Começou a tocar violino aos
oito anos de idade e a compor pequenas peças aos nove. Criou a técnica do dodecafonismo, um dos mais
revolucionários e influentes estilos de composição do século XX. Suas primeiras obras, apesar de ligadas à
tradição pós-romântica, já prenunciavam um método composicional inovador, que evoluiu para a atonalidade,
música que carece de um centro tonal, ou principal, não tendo, portanto, uma tonalidade preponderante. Mais
tarde, sua música evoluiu para um estilo mais próprio, o dodecafonismo (WIGGERSHAUS, 2002).
65
Em 1927, com o fito de prosseguir seus estudos acadêmicos, Adorno regressou à cidade de
Frankfurt. Ele não havia abandonado a ideia de se tornar músico, mas cada vez mais cultivava
a esperança de fazer uma carreira universitária em filosofia, centrada na estética. Por certo, as
influências recebidas em Viena marcaram sua formação cultural.
Ao retornar para Frankfurt, sua amizade com Max Horkheimer o levou a se aproximar do
recém-fundado Instituto para Pesquisa Social, na época ainda sob a direção de Carl Grünberg.
Em 1931, então com 28 anos, Adorno obteve sua Habilitation33 com a tese Kierkegaard: a
construção da estética, orientada por Paul Tillich. Com essa tese, no mesmo ano, Adorno se
tornou professor de filosofia na Universidade de Frankfurt e, concomitantemente, passou a ser
um dos principais colaboradores junto ao Instituto para Pesquisa Social, tendo participado
ativamente nas publicações da revista Zeitschrift. Logo na primeira publicação dessa revista,
em 1932, ele escreveu A situação social da música, tema que se tornaria comum em seus
escritos posteriores, dentre eles: Sobre o jazz (1936), Caráter fetichista da música e regressão
da audição (1938), Fragmentos sobre Wagner (1939), Spengler hoje (1941), A investida de
Veblen à cultura (1941).
Quando o partido nazista assumiu o poder na Alemanha, Adorno relutou à ideia, mas viu-se
obrigado a se exilar. Em fevereiro de 1938, convidado por Horkheimer, mudou-se
primeiramente para Nova York e, em 1941, para Califórnia, com o objetivo de continuar as
atividades do instituto.
33
Na Alemanha, Habilitation é a mais alta qualificação acadêmica que um estudioso pode alcançar. Ela é
concedida após a realização e apresentação de uma pesquisa de pós-doutorado, e requer que o candidato escreva
uma tese de habilitação e a defenda a um comitê acadêmico.
66
Nos anos em que permaneceu nos Estados Unidos da América, Adorno desempenhou metade
de suas funções no Instituto para Pesquisa Social e a outra metade no Music Study, projeto
integrado ao Radio Research Project, de Princeton, na época sob a direção de Paul Lazarsfeld.
Porém, “as incompatibilidades entre a ‘pesquisa administrativa’, ostensivamente apolítica de
Lazarsfeld, e a alternativa crítica de Adorno eram profundas demais para que houvesse
sucesso em sua associação” (JAY, 1988, p. 34). Sua participação no projeto findou em 1940,
quando o patrocinador, a Fundação Rockfeller, retirou seu apoio à seção de música.
No entanto, foi durante esse período que as ligações de Adorno com o instituto se
fortaleceram. Essas experiências renderam inúmeros trabalhos sobre a vida danificada
presente na sociedade democrática estadunidense que resultaram em potentes reflexões de
caráter sociológico e filosófico, além de ter constituído a matéria-prima de sua produção
acadêmica dessa época, entre os livros estão: Filosofia da nova música e Mínima moralia
(1945), e Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos (1947), escrita juntamente com
Max Horkheimer, em que apontam a indústria cultural como problema crucial da
modernidade, principalmente com o poder que ela possui em expandir a semiformação.
Já nos anos do Pós Segunda Guerra Mundial, durante a reconstrução da Alemanha, o Instituto
para Pesquisa Social foi oficialmente convidado a retomar suas atividades em Frankfurt. Em
1950, Horkheimer, Pollock e Adorno retornam à Alemanha para a refundação do instituto.
Outros teóricos que haviam participado das atividades da instituição, como Marcuse,
Lowenthal, Erich Fromm, Karl A. Wittfogel, Franz Neumann e Otto Kirchheimer
permaneceram nos Estados Unidos da América, onde obtiveram um reconhecimento
considerável (JAY, 1988).
Sem dúvida, pode-se afirmar que ainda hoje o pensamento de Adorno, com sua profundidade
e extensão, aguarda a extração de toda a sua potencialidade para compreensão da realidade
social (PUCCI; RAMOS-de-OLIVEIRA; ZUIN, 1999). E, em se tratando do campo da
educação, a Teoria Crítica da Sociedade de Adorno dispõe de uma vasta contribuição sobre a
concepção de conceitos e temáticas, tais como semiformação, tabus sobre a profissão de
professor, a educação após Auschwitz, educação para autonomia, dentre outros.
Após esse breve detour biográfico sobre a Teoria Crítica da Sociedade, Escola de Frankfurt e
Theodor Adorno, nos próximos itens se enfatiza a esfera que envolve o pensamento adorniano
em diálogo com a educação. Antes, porém, também teceremos algumas considerações sobre
as teses muitas vezes divulgadas sobre a impossibilidade da relação entre razão e
transformação social na Teoria Crítica da Sociedade.
Têm sido bastante comum, no âmbito acadêmico, críticas a Adorno e também à parte
considerável dos integrantes da Teoria Crítica da Sociedade, que têm recebido a alcunha de
imobilistas. Para a maior parte de seus detratores teóricos, os frankfurtianos desacreditam e
descartam qualquer possibilidade de saída para as agruras vividas nos processos de
danificação da existência produzidos e reproduzidos na e pela sociedade capitalista. Nesse
sentido, o objetivo, aqui, é apontar algumas considerações sobre essa interpretação e defender
que, ao contrário dessa imagem, a filosofia adorniana apresenta contribuições filosóficas
consideráveis para o campo da educação na sociedade atual.
Não vamos entrar no mérito da relação entre Habermas e a Escola de Frankfurt, pois, em certo
sentido, mesmo que de forma meteórica, ele se envolveu com o Instituto para Pesquisa Social,
tendo sido assistente de Adorno (WIGGERSHAUS, 2002). Nossa análise centra-se nas
críticas aos equívocos de leitura que Habermas faz da Dialética do esclarecimento:
fragmentos filosóficos (ADORNO; HORKHEIMER, 1985), e que foram devidamente
apresentadas por diversos estudiosos e comentadores da obra de Adorno, dentre eles Rodrigo
Duarte (1993; 1997; 2008).
Em Expressão como atitude filosófica, Duarte (2008) pondera que Habermas, no intuito de
fundamentar sua teoria, enquadrou Adorno e Horkheimer no papel de representantes de um
pensamento sem saída, que teria totalizado o diagnóstico da razão moderna como razão
instrumental.
No entanto, Duarte também expõe o caráter restritivo das críticas de Habermas, ao evidenciar
que Adorno problematiza a pretensão de totalidade da crítica da razão. O cerne das análises de
Adorno e Horkheimer se refere ao processo de constituição de dominação universal da
natureza e como isto tem gerado a degradação e coerção sobre os seres humanos.
Duarte (2008) considera que Habermas perde de vista a ideia de trabalho social que, para
Adorno, é um conceito primordial na crítica à razão instrumental. Esta, por sua vez, abre
margem para se compreender que a influência marxista, no âmbito da Teoria Crítica da
Sociedade, não se pauta na crítica pela crítica à razão, mas é a partir da compreensão da
danificação da razão que se instaura a possibilidade de sua negação por meio do trabalho
social.
Com efeito, é em especial na relação entre arte e sujeito que está o desarme sobre a ideia
habermasiana de que somente a racionalidade voltada para o entendimento recíproco e linear
69
A experiência estética, escreve Duarte, é que fornece a indicação para o pensamento filosófico
adorniano, pois
a própria existência da expressão, enquanto emissão de sinais de alto teor sensorial,
para os quais não se pressupõe a priori a existência de receptores adequados, não
apenas põe em xeque a onipotência do conceito de comunicação, mas denuncia-o
como conivente com a – quando não militante a favor da – deplorável tutela ética e
estética imposta às massas nos quatro cantos do mundo (DUARTE, 2008, p. 9).
A filosofia estética de Adorno persiste não na solução da contradição entre razão e natureza
(DUARTE, 2008), e sim em se reconhecer, em cada manifestação do pensamento, a força da
dominação da natureza. Em outros termos, não se pode descartar a dimensão dialética da
filosofia de Adorno, uma vez que
E quando se trata de uma sociedade hoje pautada na comunicação voltada para as massas,
cabe refletir sobre as produções culturais veiculadas pela indústria cultural, principalmente
quando nos referimos, na resposta de Duarte (2008), à teoria da ação comunicativa, de
Habermas. É possível afirmar que há simetria comunicacional entre emissores e receptores?
Sobre a importância de se refletir sobre uma arte realmente emancipadora, Duarte (2008)
adverte sobre a não ingenuidade dos filósofos alemães, em especial sobre a relação ideologia
e arte.
Nenhum dos dois filósofos nega este aspecto ideológico, mesmo na arte autêntica.
Insistem, porém, que a arte superior, em contraste com a cultura de massa é, por
definição, mais do que a legitimação de qualquer tipo de dominação (DUARTE, 2008,
p. 23).
70
Com base nessas breves notas, talvez a crítica que considera Adorno um filósofo imobilista
mereça ser retomada em suas bases, pois, como bem destaca Duarte (2008), na relação
filosofia e expressão a tensão dialética está presente no esforço de entender as rupturas
hitóricas que a tessitura da razão introduz a experiência social.
34
O termo indústria cultural foi formulado por Adorno e Horkheimer, no livro Dialética do esclarecimento:
fragmentos filosóficos (1947). A indústria cultural é concebida como uma das formas de o sistema capitalista
estender a lógica do trabalho à dimensão do lazer, a fim de massificar e tornar mercadoria todos os bens culturais
e, dessa forma, conservar e ampliar a ideologia de mercado.
71
De acordo com Gomes (2010), é nesse contexto de alienação ubíqua que Adorno tem como
foco a crítica (negação) a todo e qualquer processo de alienação mediatizado pela indústria
cultural que é capaz de conduzir a sociedade para um estado de profunda barbárie (GOMES,
2010, p. 290). Por sua vez, Adorno (2002) percebe nas investiduras da indústria cultural a
pretensão que ela tem de ser totalitária e totalizante em seu modo de disseminar os ideais de
reprodução de existência do capitalismo.
Adorno e “a defesa intransigente de um modo de pensar que não se entrega diante das
facilidades de um raciocínio condicionado a permanecer na superfície do dado imediato”
(PUCCI; RAMOS-DE-OLIVEIRA; ZUIN, 1999, p. 109) torna o seu pensamento carregado
pela permanente crítica imanente dos objetos e das relações que se estabelecem, na medida
em que qualquer certeza absoluta é por ele descartada.
A partir do diálgo com alguns comentadores, dentre eles, Maar (1995), Pucci (1998); Ramos-
de-Oliveira; Zuin (1999) e com algumas obras de Adorno e da Teoria Crítica da Sociedade, a
intenção, nesse item, é também tecer algumas observações sobre a preocupação de Adorno a
respeito das questões educacionais, em especial a formação crítica e sensível.
Dentre suas reflexões sobre educação, destacam-se o grande número de intervenções públicas
realizadas em forma de conferências e entrevistas sobre diversos temas culturais e
educacionais entre 1959 e 1969. Parte considerável dessas conferências foi proferida em
programas de Rádio, na Alemanha, e posteriormente reunidas no livro Educação e
Emancipação (ADORNO, 1995).
De acordo com Wolfgand Leo Maar, tradutor desse livro do alemão para o português, à
primeira vista o título tende a ser lido apenas como uma afirmação. No entanto, para Adorno a
educação não é indispensavelmente um fator de emancipação, pois há que se exercitar a
73
crítica permanente, que não possui um ponto final. Em outros termos, nada pode ser tido
como óbvio ou natural. No imaginário, não existe um tempo ou espaço ideais em que seja
possível se privar do movimento crítico do pensamento.
Maar atenta para o vínculo que há, na filosofia de Adorno, entre a educação e sua teoria
social:
A íntima vinculação entre a questão educacional e formativa e a reflexão teórica
social, política e filosófica constitui a manifestação mais direta do núcleo temático
essencial ao conjunto da chamada Escola de Frankfurt: a relação teoria e prática. Em
Adorno a teoria social é na realidade uma abordagem formativa, e a reflexão
educacional constitui uma focalização político-social. Uma educação política
(MAAR, 1995, p. 14-15).
Ao associar o pensamento social de Adorno com a educação, que por sua vez se constitui
enquanto objeto social, encontramos a relação que ele estabelece entre sua teoria crítica e as
questões educacionais. Conforme suas análises, essa relação deve se pautar no movimento
crítico, histórico e dialético. Dessa forma, a nosso ver, parece acertado incluí-lo no rol das
tendências educacionais críticas35.
Não por acaso, percebe-se que Adorno entende esse movimento crítico e contraditório do
pensamento como ontologicamente pautado na relação homem e natureza, na qual se
configura o trabalho intencional que transforma a realidade. E é essa subjetividade
manifestada e o advento da linguagem que produz cultura, que por sua vez é objeto primordial
para educação, uma vez que não estão intrinsecamente interligados.
35
Por teorias educacionais, entendemos “as ideias referidas à educação, quer sejam elas decorrentes da análise de
fenômeno educativo visando explicá-lo, quer sejam elas derivadas de determinada concepção de homem, mundo
ou sociedade sob cuja luz se interpreta o fenômeno educativo” (SAVIANI, 2008b, p. 6). E por teorias
pedagógicas a própria constituição da prática educativa, ou seja, “seu modo de operar, de realizar o ato
educativo” (SAVIANI, 2008b, p. 6-7).
74
De acordo com Pucci (1998, p. 90), a “Bildung (cultura) revela a tensão entre as dimensões:
autonomia, liberdade do sujeito e sua configuração à vida real, adaptação”. Esse caráter
contraditório da Bildung36, portanto dialético, diz respeito tanto ao aspecto de autonomia e
emancipação dos sujeitos, como também ao caráter de acomodação integrativa ou adaptação,
importante para se viver em sociedade.
Esses dois importantes elementos, que constituem a formação cultural, ora se aproximam, ora
se distanciam. A tensão entre os polos é um processo do qual não há como se desprender. O
momento de integração é importante, pois alguma adaptação é necessária para que a formação
aconteça. No entanto, o problema aparece quando dessa tensão o polo positivo (submissão à
realidade dada, adaptação cega) sobrepõe-se ao elemento negativo (liberdade, crítica,
autonomia do sujeito) e a adaptação torna-se quase que hegemônica. Como afirma Adorno
(2010, p. 8), “nos casos em que a cultura foi entendida como conformar-se à vida real, ela
destacou unilateralmente o momento de adaptação, e impediu que os homens se educassem
uns aos outros”.
Parcela dessa danificação é promovida pelos diversos meios de comunicação para as massas,
que não por acaso parece que têm tomado a proporção análoga a um grande agente ou
educador social. As faculdades intelectivas e sensitivas (razão e sensibilidade) dos diversos
segmentos da classe trabalhadora (também do próprio burguês) ficaram debilitadas e à mercê
dos bens culturais aparentemente neutros e cristalizados pela burguesia (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985; ADORNO, 2010), haja vista que,
36
Em alemão, Bildung significa tanto cultura intelectual, como formação, educação. Bild significa quadro,
imagem, gravura, ideia, noção, forma e o verbo Bilden significa formar, educar, civilizar, instruir
(LANGENSCHEIDT, Dicionário de Alemão-Português, 2001).
75
— cada uma delas, isolada, se coloca em contradição com seu sentido, fortalece a
ideologia e promove uma formação regressiva (ADORNO, 2010, p. 8).
Adorno e todos os integrantes da Teoria Crítica da Sociedade teceram ácidas críticas tanto ao
modelo político adotado pelos dirigentes do Estado Socialista da antiga União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS), como aos regimes democráticos dos países capitalistas
pautados na meta de dominação contínua da natureza e de investimento em progresso
tecnológico contínuo que tende a tornar os seres humanos empobrecidos de humanidade.
A semiformação (Halbbildung) pode ser entendida como a base social de uma estrutura de
dominação. No entanto, o processo de manipulação é feito graças aos artifícios da indústria
cultural que, embasada política e eticamente no processo produtivo capitalista, converte toda
cultura em mercadoria. É a indústria cultural que atua no plano da subjetivação social. Ela
trava, inibe a experiência educativa dialética, que tem como premissa o diferente, em prol da
uniformização dos modos de ser e estar e, dessa maneira, consolida e reproduz a sociedade
administrada (ADORNO, 2010).
Aquilo que, em tese, ela promete aos consumidores – o prazer, o gozo efetivo no contato e
fruição com seus produtos – a rigor não se efetiva:
O prazer congela-se no enfado, pois que, para permanecer prazer, não deve exigir
esforço algum, daí que deva caminhar estreitamente no âmbito das associações
(midiáticas) habituais. O público não deve trabalhar com a própria cabeça; o produto
prescreve toda e qualquer reação: não pelo seu contexto objetivo – que desaparece
tão logo se dirige à faculdade pensante – mas por meio de sinais (ADORNO, 2002,
p. 31).
Nesse contexto do sempre igual, promovido pela ininterrupta produção da indústria cultural, a
Teoria Crítica da Sociedade de Adorno oferece suporte conceitual e analítico para se refletir
sobre e compreender a realidade social contemporânea.
Quando as favas são tecidas para a permanente manutenção afirmativa da lógica capitalista
burguesa e se perde a dialeticidade das relações sociais, é que se pode pensar a partir da
filosofia de Adorno: uma dialética negativa que se torna o que é pela relação com o que não é,
ou seja, por meio da não identificação e recusa de verdades existentes (MAAR, 1995).
Após essa breve aproximação com a teoria crítica da sociedade de Theodor Adorno,
preocupados com a formação sensível e cultural, que se busca no próximo capítulo abordar
aspectos da filosofia adorniana para tratar o lugar do conceito de catarse e sua relação com a
indústria cultural e a formação.
77
Capítulo III
Como foi possível observar na revisão de literatura realizada no primeiro capítulo dessa
dissertação, nas fontes e no período investigado, poucos são os trabalhos acadêmicos que
tratam sobre o conceito de catarse especificamente no campo da educação. E, nos casos
encontrados, viu-se um tratamento muito periférico sobre o termo. Nesse sentido, o objetivo
do presente capítulo é apresentar apontamentos gerais sobre o conceito de catarse presentes no
livro Teoria estética (ADORNO, 2011)37, bem como as reflexões realizadas por Adorno
(2007), Rosa (2007), Schaefer (2012), Duarte (2010) e Pucci (2006), a fim de apronfudarmos
a análise sobre a categoria. Também recorremos a Duarte (1993) e Gagnebin (1993) como
interlocutores para o processo de compreensão da categoria de mímese, que se apresenta
relevante na análise adorniana de catarse.
Tendo isso como meta, antes de apresentar as considerações adornianas acerca de catarse,
cabe apontar alguns aspectos históricos sobre esse conceito.
Além de Adorno, outros teóricos refletiram sobre a catarse, tanto no campo filosófico como
em outras áreas das ciências humanas, em especial na psicanálise. No entanto, para a presente
pesquisa, limitamo-nos às contribuições de Aristóteles e Sigmund Freud, por serem ambos
referência no trato originário do conceito, tanto estético quanto clínico. Cabe ressaltar que, na
cultura moderna, a categoria estética de catarse foi relacionada quase exclusivamente como
função libertadora da arte.
De origem médica, o termo catarse, do grego Kathársis, significa libertação do que é estranho
à essência ou à natureza de uma coisa e que, por isso, a perturba ou corrompe: purgação. Em
Platão, esse termo tem sentido moral e metafísico da libertação em relação aos prazeres, de
libertação da alma em relação ao corpo, no sentido de que a alma se separa ou se retira das
37
Em 1982, é publicada a versão do livro Teoria estética, que foi traduzida para o português por Arthur Mourão.
Nesta dissertação, utilizamos a edição portuguesa de 2011.
78
Aristóteles foi quem primeiro se deteve e explorou de forma precisa o significado médico do
conceito de catarse, e foi o primeiro que o usou para designar também um fenômeno estético,
qual seja: uma espécie de libertação ou serenidade que a poesia e, em particular, o drama e a
música provocam no homem (ABBAGNANO, 1998). Na Grécia antiga, a catarse referia-se à
purificação das almas por meio de uma descarga emocional provocada por um drama, ou seja,
a tragédia grega38 serviria como mecanismo de um processo catártico.
Nesse sentido, a qualidade ou não de uma tragédia se daria pela capacidade ou não de levar à
catarse. Segundo Aristóteles (1997), ela estava diretamente ligada à formação do cidadão
grego. A finalidade educativa dessa atividade era permitir que o sujeito aprendesse a viver por
meio de uma experiência afetiva. Para o filósofo, a forma dramática, e não meramente
narrativa, na qual se apresenta a tragédia é que proporciona a experiência de contemplação da
vida, ao mesmo tempo de identificação, pois uma das características da tragédia é a
verossimilhança e, portanto, a trama representada poderia acontecer com qualquer um da
plateia. Contudo, o distanciamento também era importante, pois com ele haveria o olhar
crítico em relação à ação representada pelas personagens do drama.
A tragédia, junto com as demais artes, também é imitação sublime dos conflitos humanos,
uma representação da condição humana.
O essencial na encenação trágica é o mito, são as ações e a vida na sua totalidade. Em outros
termos:
o elemento mais importante é a trama dos fatos, pois a tragédia não é imitação de
homens, mas das ações e de vida, felicidade [e infelicidade; mas felicidade] ou
infelicidade, reside na ação, e a própria finalidade da vida é uma ação, não uma
qualidade. Ora, os homens possuem tal ou tal qualidade conformemente ao caráter,
mas são bem ou mal-aventurados pelas ações que praticam (ARISTÓTELES, 1997,
p. 31).
38
Como exemplo de tragédias, pode-se citar Édipo, o rei, do autor grego Sófocles. A narrativa tem início com a
estória do rei de Tebas que, no final, se cega e se exila. Há, também, uma estória mais próxima de todos e mais
moderna, Romeu e Julieta, numa releitura que Shakespeare faz da tragédia, na qual os dois apaixonados eram
filhos de famílias importantes da cidade e acabam mortos pela desmedida do amor.
79
A tragédia imita a vida e a vida é essencialmente ação. No entanto, sem cair em jogos de juízo
de valor, o mito escolhido evidencia a condição humana, principalmente a vulnerabilidade
dessa condição. A finalidade educativa da tragédia consistiria em aprender a viver a partir do
experienciar/contemplar a vida por meio da experiência catártica (ARISTÓTELES, 1997).
Outro teórico que explorou significativamente o processo catártico foi Sigmund Freud. Em
vários de seus escritos o chamou de sublimação da libido. Para Freud, o processo catártico é a
dinâmica pela qual “[...] a libido se separa do seu conteúdo primitivo, ou seja, da sensação
voluptuosa e dos objetos a ela ligados, para concentrar-se em outros objetos que serão amados
por si mesmos” (ABBAGNANO, 1998, p. 120). Ao pensar o processo catártico dessa forma,
Freud o utilizou como base para o tratamento de seus pacientes39.
Nesse sentido, a concepção freudiana de catarse pode ser entendida como retorno do
reprimido. E ela (catarse) pode ser de natureza boa ou ruim, depende do que foi reprimido e
que seja trazido de volta (ROSA, 2007). Em outros termos, essas recordações evocadas e
mesmo revividas com uma intensidade dramática fornecem ao sujeito a oportunidade de
descarregar esses mesmos afetos reprimidos/desviados durante a análise (LAPLANCHE;
PONTALIS, 1998, p. 61-62).
Nesse sentido, tanto o sentido estético quanto o clínico desenvolvidos por Aristóteles e Freud
contribuem para compreendermos minimamente como o conceito de catarse tem se
circunscrito historicamente. Nosso próximo passo é recorrer às considerações adornianas e de
alguns comentadores.
39
Enquanto método psicoterapêutico, o processo catártico conduziria a uma descarga dos afetos patogênicos do
paciente que permitiria a ele evocar e até reviver os acontecimentos traumáticos a que esses afetos estariam
ligados. Historicamente o método catártico pertence ao período de 1880 a 1895, em que a terapia psicanalítica se
definia progressivamente a partir de tratamentos efetuados por hipnose. Posteriormente, os processos catárticos
passaram a se configurar na psicanálise enquanto efeitos dos processos psicanalíticos, sendo as expressões
verbais dos pacientes por exemplo consideradas efeito catártico. Além da psicanálise, existem outros tipos de
psicoterapias que visam a catarse, como a narcoanálise e o psicodrama (LAPLANCHE; PONTALIS, 1998).
80
Na edição portuguesa da Teoria estética (2011), livro de Adorno muito utilizado pelos
estudiosos de estética, o termo catarse é citado sete vezes: páginas 298, 359, 360 e 361. Por
ser um livro póstumo, o Teoria estética, publicado pela primeira vez em 1972, apresenta
algumas dificuldades para o leitor, e uma delas é não possuir sumário. No entanto, na edição
portuguesa há uma tentativa de índice facilitador da leitura no final do livro. Segundo esse
indicador, o trecho desse livro que mais expõe argumentos sobre o conceito de catarse é
Crítica da catarse; Kitsch e o vulgar.
Nesse item, Adorno faz uma reflexão sobre como o Kitsch40 e o vulgar são utilizados pela
indústria cultural como artifícios de manipulação e administração da catarse nos sujeitos.
Os próximos itens desse capítulo expressam nossa tentativa de responder a essas questões.
40
Kitsch é uma expressão alemã utilizada para designar algo como “brega”, vulgar ou de mau gosto.
81
Para compreender a concepção de arte de Adorno, é importante entender qual é a relação que
ele estabelece entre mímese e produção artística. Acerca dessa conexão, Gagnebin (1993)
considera que para a teoria estética de Adorno o potencial da arte está em seu processo
mimético41. Historicamente, é na mímese efetuada pela criação artística que reside a
possibilidade de uma reconciliação do ser humano com a natureza.
Em linhas gerais, o que essa autora afirma é que, para Adorno, a mímese faz parte do
processo de sociabilização e humanização, pois caracteriza, em particular, o aprendizado
humano. Isso pode ser exemplificado na imitação que as crianças realizam em suas
brincadeiras infantis. Nesse caso, a mímese assume uma forma prazerosa de formular
semelhanças com o real por meio da mediação simbólica (GAGNEBIN, 1993, p. 80-81). No
entanto, a autora lembra que a mímese não se configura como mera reprodução ou imitação
da realidade. Tampouco se quer comparar a mímese realizada na infância com o processo
mimético desenvolvido pelo artista, mas apenas indicar que, em sua origem, o mimetismo está
diretamente ligado ao processo de humanização.
41
Mimese ou mímese, para os gregos, significava a “representação” artística em geral. A tradução de alguns
autores por imitação tende a exaurir muito seu sentido. Os gregos clássicos pensavam “sempre a arte como uma
figuração enraizada na mímese, na representação, ou, melhor, na ‘apresentação’ da beleza do mundo”
(GAGNEBIN, 1993, p. 68).
82
Por estar no nível do simbólico é que Adorno parece conceber, na obra de arte, a manifestação
privilegiada da mímese. Em Mímesis e racionalidade: a concepção de domínio da natureza
em Theodor W. Adorno, Duarte (1993) considera que, distante das concepções de mímese
artística de Platão e Aristóteles42, Adorno refere-se a esse processo não apenas como
representação/apresentação do mundo da natureza, mas como antítese social, um exercício da
mímese formal sobre o terror da sociedade. O que, de fato, pressupõe sua completa autonomia
(DUARTE, 1993, p.122).
Gagnebin afirma que, enquanto mímese, a arte é capaz, em sua dimensão negativa, de
desdobrar algo que não a mera representação da realidade. Seu forte apelo dialético a toma
pela lógica da identidade e da não identidade, na qual o movimento do processo decorre da
contradição e das suas sucessivas figuras de resolução e de recomposição (GAGNEBIN,
1993, p. 84).
Essa proximidade na qual o espaço da diferença e da distância seja respeitado sem
angústia, esse conhecimento sem violência nem dominação já era a idéia reguladora
que orientava toda crítica de Adorno na Dialética do esclarecimento. É a idéia de
uma reconciliação possível, mas cuja realização, em oposição à dialética do espírito
absoluto em Hegel, sempre nos escapa. Esse movimento de promessa e de reserva
descreve a dialética que Adorno, no fim da sua vida, chama de “dialética negativa”,
pois nunca repousa em si mesma, nunca sossega na possibilidade da totalidade
(GAGNEBIN, 1993, p. 84).
O privilégio da obra de arte seria se configurar como a égide da mímese, mas de uma mímese
reconciliadora “redimida que conseguiria fugir tanto da magia como da regressão”
42
As concepções de mimese de Aristóteles e de Platão se diferenciam da adorniana por não carregarem ainda o
duplo caráter positivo e negativo de ser representação e não-representação da natureza. Platão, em sua época,
rejeitava o potencial da mimese. Sua crítica consiste na visão de que “a imagem mimética é, primeiro, definida
na sua falta essencial de ser: em relação à idéia, à forma primeira que os objetos concretos reproduzem
inabilmente” (GAGNEBIN, 1993, p. 69), portanto, muito fraca. Aristóteles, que retoma o conceito anos depois,
insiste na sua característica de reconhecimento, na medida em que “os homens olham para as imagens e
reconhecem nelas uma representação da realidade”, para Aristóteles, a atividade intelectual da mimese “remete
ao logos, mas não repousa sobre uma relação de causa e efeito; enraíza-se muito mais no reconhecimento de
‘semelhanças’” (GAGNEBIN, 1993, p. 71).
83
(GAGNEBIN, 1993, p. 84). Isto por não ser “nem mímese imediata, nem mímese recalcada,
mas o processo que ela [a mímese] desencadeia e no qual se mantém modificada”
(ADORNO, citado por GAGNEBIN, 1993, p. 84).
De forma geral, é possível afirmar que na filosofia estética de Adorno sujeito e realidade estão
interligados. Exemplo disso é a potência que ele concebe ao processo mimético presente no
movimento de criação artística. Nesse sentido, ao partir desse pressuposto dialético que
envolve a arte, Adorno não considera a arte totalmente desinteressada. Apesar de defender a
tese da autonomia da arte43 em relação à realidade, ele não a considera totalmente isenta de
funcionalidade.
De acordo com Rosa (2007, p. 117), para Adorno, a arte se “ab-roga ser reação contra algo,
ser autônoma em relação a algo, que é o mundo e a sociedade”. Ou seja, ela é intencional, é
43
Vale lembrar que a autonomia da arte, para Adorno, está relacionada com o distanciamento que a mesma deve
conter para não ser mera representação da realidade, ou seja, ela (a arte) é capaz de carregar uma totalidade
desveladora do real, e não a simples reprodução. A partir de seus estudos sobre a Teoria estética de Adorno,
Schaefer (2012) considera que “[...] a arte se apresenta com um caráter fortemente ambíguo: é autônoma e é um
fato social. Como autônoma, não depende de nenhuma força produtiva e, por isso, não estabelece relações de
produção estética. Como fait social, se encontra inserida tanto na teleologia do trabalho e do fazer estético
quanto emaranhada numa rede de relações” (SCHAEFER, 2012, p. 30).
84
desejo, e o sendo requer um interesse a ser satisfeito. E “se o desejo está em sua base, então
arte é negatividade. Realizar o desejo é negá-lo” (SCHAEFER, 2012, p. 34).
Adorno considera a arte antítese da estrutura social. Ou seja, ela possui uma postura antiética
ao que é preponderante em nossa sociedade, fundamentada na repressão e no recalque das
forças libidinais inerentes aos seres humanos, e que são importantes para o elo civilização e
natureza (SCHAEFER, 2012). Em outros termos, o processo civilizatório danificado tem se
constiuído no recalque das pulsões libidinais humanas, mesmo sob o discurso de liberdade e
satisfação dos desejos pregados pela sociedade capitalista. A arte autêntica, ao contrário da
repressão, tende a promover a sublimação e a realização dos desejos libidinais, mas de forma
consciente. Nesse sentido, a arte age como processo positivo de sublimação das pulsões
subjetivas.
Por se tratar de temática complexa, Adorno, no livro Teoria estética, adentra, também, na
tentativa de explorar a funcionalidade, a teoria psicanalítica da arte44 e, em contraposição a
esta, Adorno considera que “o fazer artístico procura desviar as forças libidinais [...] uma
utilidade não-libidinal que compensa a libido através de um não – sublima a realidade”
(SCHAEFER, 2012, p. 31-32). Em outros termos, ao tomar como exemplo o artista, o
processo criativo e a produção estariam diretamente relacionados à sublimação subjetiva do
criador da obra, como forma de uma compensação libidinal.
Em sua crítica à teoria psicanalítica da arte, Adorno desconsidera que as obras de arte sejam
“essencialmente como projeções do inconsciente daqueles que a produziram” (ADORNO,
2011, p. 21-22), pois essa análise as reduziriam a critérios de psiquismos que não abarcariam
sua objetividade.
A tese psicanalítica de que, por exemplo, a música seria o meio de defesa de uma
paranóia ameaçadora, é talvez muito válida no plano clínico, mas nada diz sobre a
categoria e o conteúdo de uma única composição estruturada (ADORNO, 2011, p.
22).
É nesse contexto que se inscreve a crítica de que não é objetivo da arte acabar com o negativo
da experiência de existir, pois a própria vida, argumenta, é negativa. Adorno entende que
teoria psicanalítica da arte ajuda a entender o fazer artístico e a psique humana, mas, ainda
44
A teoria psicanalítica da arte foi a tese freudiana da arte enquanto teoria da realização do desejo.
85
assim, fica distante de uma explicação do fenômeno arte propriamente dito (SCHAEFER,
2012, p. 32).
Em síntese, para Adorno, a concepção freudiana da arte, apesar de mediar o fazer artístico
tanto na contextualidade do social como na penumbra dos desejos libidinais, rouba-lhe a
possibilidade de confrontar-se com o não eu desencadeado no processo mimético. A teoria
psicanalítica da arte nega a negatividade que a constitui e “joga todo peso negativo para os
conflitos pulsionais. Unifica-a em vez de estilhaçar” (SCHAEFER, 2012, p. 35). Enfatiza-se o
sujeito psicológico (eu), ao passo que se reduz a dimensão do não eu, ou seja, a objetividade
que constitui o sujeito artista e sua obra.
Como é possível perceber, Adorno critica a concepção psicanalítica de arte que, ao acentuar o
caráter subjetivo da obra artística, não a apreende enquanto prática também objetiva.
A imanência da sociedade na obra é a relação social essencial da arte, não a
imanência da obra na sociedade. Porque o conteúdo social da arte não está
estabelecido fora do seu principium individuationis, mas é inerente à individuação,
ela própria um elemento social, é que à arte está velada a sua própria essência social
e só pela sua interpretação pode ser apreendida (ADORNO, 2011, p. 350).
Como desejo e praxis do artista a obra de arte também é capaz de gerar efeitos (dentre eles a
catarse) em seus fruidores. Acerca desse feito, com relação à estética, Adorno também tece
considerações que o diferenciam das análises de outros teóricos. Diferenças de olhares que se
fundamentaram em sua fase de exílio norte-americano, contexto no qual Adorno presenciou a
elevada e não diferente do atual, sem desconsiderar algumas exceções, reprodução fabril de
artefatos culturais.
86
Basta lembrar que Adorno fora educado em um ambiente cultural repleto de condições e
possibilidades, e sua dedicação aos estudos estéticos não aconteceu por acaso. Inserido em um
contexto social que passava por fortes transformações políticas e culturais, Adorno fora
contemporâneo dos anos iniciais de constituição da agressiva indústria cultural.
Quando estava no exílio nos Estados Unidos da América, Adorno teria vivenciado não apenas
a força do cinema estadunidense, mas também dos programas de rádio, da publicidade
veiculada pelas revistas de circulação comercial, dos jornais. Em função dessa experiência,
ele problematizou a ideia de autonomia da arte.
Segundo Adorno (2011), isso só é possível pela mediação da obra de arte autêntica, ou seja,
aquela capaz de trazer em seu mimetismo a dialeticidade de ser representação social e da
natureza. Enquanto mímese, a arte também pode figurar uma possível reconciliação do ser
humano com sua natureza reprimida. O que não significa reconciliação autoconservadora, um
tornar-se semelhante à natureza, pois não se trata de um retorno, de uma unificação, mas de
uma reconciliação intencional e consciente de reelaboração do gênero humano (ADORNO,
2011, p. 88).
A arte autêntica, de acordo com Adorno (2011, p. 288), difere das obras artísticas produzidas
pela indústria cultural que visam unicamente o prolongamento congruente da visão
hegemônica de produção de lucro, e a arte nessa lógica é reduzida a mercadoria. Uma obra de
arte autêntica, escreve Adorno (2011, p. 88), é aquela capaz de promover uma experiência
estética de fato dialética, na qual o fruidor se percebe enquanto natureza e não-natureza. Ela é
a comunicação dialética da realidade, e não realidade, da natureza, e da não natureza. Pois,
enquanto ser humano, a consciência da racionalidade (a não natureza) que me constitui deve
estar ao lado da consciência do que dela é anterior, o lado natural. Ela é representação da
realidade, mas, ao mesmo tempo, é antítese dessas situações reais; ela também é negação
(ADORNO, 2011, p. 89).
87
Uma obra de arte, na qual o criador preocupa-se com a complexidade e dialeticidade que
envolvem seu fazer estético, pode se apresentar como autêntica e como possibilidade do novo.
O zelo na produção artística é importante não só em seu conteúdo. O mesmo cuidado é
necessário para a forma estética na qual ela (a obra) se apresenta. Para se desencadear a
catarse, em suas reflexões sobre a arte Adorno não esquece o movimento dialético entre
conteúdo e forma.
O próximo item tem como escopo apresentar algumas reflexões sobre o conceito de catarse
aristotélico, muito utilizado pelos autores da nossa revisão de literatura sobre as produções
acadêmicas em educação e o termo utilizado por Adorno. Com isso, objetiva-se apontar
alguns aspectos relevantes no tratamento do conceito pelo filósofo alemão a fim de nos ajudar
a pensar sobre a relação entre educação, escola e a formação estético-cultural.
Desde seus significados estéticos mais antigos, a catarse é entendida enquanto efeito da arte.
Para Aristóteles (1997, p. 32), a catarse significa sublimação das paixões. Por meio dos
sentimentos suscitados ao assistir à tragédia grega, ocorria a purificação dos sujeitos através
da purgação de determinados sentimentos, como a piedade, o terror e a compaixão.
Há, com efeito, um caráter formativo na concepção aristotélica de catarse, que consiste na
mediação das liberações emocionais dos espectadores que assistiam à tragédia encenada no
antigo teatro grego, cujo objetivo era tornar os cidadãos melhores, pois em tese haveria, na
fruição da apresentação teatral, um refinamento subjetivo das vicissitudes humanas. Haja vista
que a simples ocorrência das mesmas os tornaria capazes de aprender a se comportar diante
dos mesmos sentimentos novamente em outras condições reais (SOUZA, 1997, p. 31).
88
Do politeísmo grego nascia uma série de mitos, cuja função era explicar a vida e as
suas manifestações. Através dos mitos, os trágicos gregos desvelaram e discutiram
seus problemas morais, religiosos e filosóficos (COSTA; REMÉDIOS, 1988, p. 9).
Também Rosa (2007, p. 43), em Catarse e resistência: Adorno e os limites da obra de arte
crítica na pós-modernidade, considera que o sentido de catarse concebido por Aristóteles
dispunha de forte caráter ideológico e não se dava apenas por obra da técnica de encenação e
declamação dos atores, mas em especial das situações escolhidas com a finalidade de formar o
cidadão grego. A formação sensível residia nos sentimentos suscitados, e não na possibilidade
de se pensar uma obra que levasse em consideração sua forma e conteúdo relacionados com o
presente, de modo a deslocá-lo para um futuro.
No sentido de focar-se apenas no conteúdo e no fruidor e não na obra artística em sua forma
que, de acordo com Schaefer, Adorno considera a catarse aristotélica obsoleta.
45
Na antiguidade a tragédia era resultado do choque entre “forças-opostas: o mítico e o racional” (COSTA;
REMÉDIOS, 1988, p. 8). O religioso e o mítico estavam intimamente relacionados à história sócio-político-
econômica da Grécia, “pois é da religião que vai surgir a mitologia a que os literatos e dramaturgos gregos
recorreram” (COSTA; REMÉDIOS, 1988, p. 8).
89
Nesse ponto, a teoria estética de Adorno diferencia-se da concepção aristotélica, uma vez que,
para ele, no avanço histórico-social da arte e no seu gradual movimento de interiorização, as
obras passaram a realizar, “no processo entre a lei formal e o conteúdo material, [...] a sua
própria catarse” (ADORNO, 2011, p. 359).
Rosa (2007) observa que Adorno mantém distância desse tipo de catarse puramente
emocional, porque esta busca cooptar o âmbito afetivo do indivíduo. Segundo Rosa, o filófoso
alemão pensa que, no intuito de se tomar consciência-de-si e da trama social e política que o
envolve, “o espectador deve se manter distanciado e acionar o processo de associação de
ideias para melhor reconhecer e julgar o que vê-ouve-sente diante de si” (ROSA, 2007, p. 52).
Na teoria estética de Adorno, a obra de arte é que recebe a purificação, não o receptor.
Purificação estética, e não moral. No momento que os conteúdos materiais artísticos passam
por reconfigurações internas, esses processos, que ocorrem entre forma e material, são a
própria catarse (SCHAEFER, 2012, p. 429).
Adorno não desconsidera a importância do conteúdo46 para a obra de arte e muito menos da
emoção proporcionada pela fruição, mas, para ele, é a forma da obra que se apresenta ao
fruidor como aquilo que poderia ser, em vez de uma adaptação do sujeito à forma degradada
(ADORNO, citado por SCHAEFER, 2012, p. 430). Assim, a catarse autêntica na arte não se
restringe à mera identificação subjetiva do fruidor, condição que a faria semelhante ao sentido
aristotélico de catarse, mas, sim, aquela em cujo potencial está na expressão capaz de revelar
uma tensão entre conteúdo e forma, particular e geral. A expressão que diz “[...] com um
46
Sobre a relação entre obra de arte e conteúdo, Adorno realiza algumas críticas também ao apelo exacerbado do
mesmo. Por esse motivo, apresenta diferenças no que diz respeito à concepção de arte e a sua função em Lukács,
outro teórico referenciado nas discussões educacionais e presente nas pesquisas encontradas em nossa revisão de
literatura. Lukács defendia a arte realista por apresentar de forma direta seu conteúdo histórico e social. Ele
pensava que o subjetivismo exacerbado do expressionismo, por exemplo, desvirtuaria o vínculo da arte “[...] com
a face visível da vida em sua superfície” (ROSA, 2007, p. 104). De acordo com Rosa (2007), Lukács pensava a
arte como possibilidade de mobilização social e política, ou seja, fortemente ideológica. Nesse aspecto,
percebem-se as diferenças entre os dois filósofos. Adorno viu uma Alemanha tomada por grande mobilização
artística e cultural durante o regime nazista, não por acaso, uma arte capaz de mobilizar o povo alemão. Ele não
descarta a importância do conteúdo, mas seu pensamento dialético o obriga a não tender a balança conteúdo e
forma só para um lado, pois é esse movimento que lhe garante autonomia.
90
gesto sem palavras” que abre possibilidades para a imagem do novo ou do não-idêntico
(ADORNO, 2011, p. 358).
Sobre a diferença entre a catarse produzida pela obra de arte autêntica e a tutelada e
administrada pela indústria cultural, na Teoria Estética (2011) Adorno considera que a arte
autêntica não pode ser considerada vulgar (kitsch), pois a possível imagem do novo não é um
produto ou um sentimento que pode ser vendido sob o arrimo da indústria cultural. A arte
autêntica não pode ser mera reprodução de uma forma social, ela se configura na mimesis
consciente e dialética da realidade: “Do ponto de vista social, o vulgar é, na arte, a
identificação subjectiva com o envilecimento objectivamente reproduzido” (ADORNO, 2011,
p. 361). Em outros termos, a arte enquanto expressão estética também não pode deturpar a
realidade: negá-la não é escondê-la. Nesse sentido, pode-se afirmar, a partir de Adorno, que a
indústria cultural é a operadora da semiformação presente e consistentemente produzida em
nossa sociedade pautada na exploração. A arte e a produção artística, por serem fatos sociais,
não escapam a essas relações. No entanto, a arte enquanto Kitsch torna-se uma mercadoria útil
apenas para a manutenção do sistema (ADORNO, 2011, p. 360).
Após essas ponderações, a partir da escuta de alguns comentadores e do próprio Adorno sobre
determinados aspectos de sua filosofia estética, em especial sobre a mímese, a arte e a catarse,
recorremos a uma análise sobre o processo catártico operado pela indústria cultural, tendo em
vista que ele também tece ácidas críticas à manipulação das produções artísticas realizadas
por essa mesma indústria do entretenimento. No próximo item, a proposta é descrever como a
indústria cultural engendra a catarse como um de seus operadores subjetivos.
91
Como foi possível perceber no item anterior, enquanto mecanismo de fruição crítica de obras
artísticas, Adorno aborda o conceito de catarse como aspecto importante na função da arte
para uma formação plena. Para ele, “a obra de arte em si, como algo de espiritual, torna-se o
que outrora lhe era atribuído enquanto efeito sobre outro espírito, como catarse, sublimação
da natureza” (ADORNO, 2011, p. 298). Em outros termos, o efeito catártico que, em especial
na filosofia estética de tradição aristotélica, estava diretamente relacionado com o fruidor, na
teoria estética de Adorno há um deslocamento para a obra em si.
A utilização da catarse enquanto puro efeito emocional pautado apenas no fruidor foi
apropriada pela indústria cultural como forma de dominação e anestesiamento diante dos
problemas sociais. Essa é a denúncia que Adorno (2011) faz ao analisar todos os artifícios que
o sistema capitalista promove para ludibriar os sentidos do fruidor e lhes dar muito do mesmo.
Essa ideologia formata a dimensão subjetiva das pessoas, de acordo com os interesses de
grupos e classes sociais hegemônicas.
Adorno (2011, p. 359) argumenta que a indústria cultural não realiza uma catarse autêntica,
capaz de promover uma experiência estética dialética, consciente e mediadora para uma
formação plena. Ao contrário, ela promove uma descarga emocional, em um primeiro
momento desprovida de qualquer relação educativa, apenas vista enquanto finalidade do
entretenimento, arte como valor de troca que serve apenas à lógica mercantil. Nesse sentido,
92
“a doutrina da catarse imputa [...] à arte o princípio que, finalmente, toma a indústria cultural
sob a sua tutela e a administra” (ADORNO, 2011, p. 359).
Com relação à administração da catarse promovida pela indústria cultural, Adorno argumenta
que a insatisfação dos instintos, mediada por ela, pode retornar em forma de barbárie
(DUARTE, 2010, p. 56). Uma vez que as pulsões libidinais recalcadas de forma não
elaborada podem gerar em nossa consciência um sentimento de incompletude enquanto
sujeitos genéricos, Duarte observa que essa incompletude ocorre porque a cultura de massas
“não apenas desqualifica o sujeito, como também mina as condições para seu aparecimento e
desenvolvimento” (DUARTE, 2010, p. 57). Esse ser genérico, que se constitui a partir do
indivíduo em suas complexas dimensões e relações sócio-naturais, submerge em uma massa
social que manifesta seus recalques no vulgar. Nas palavras de Adorno:
93
É diante desse cenário de catarse regressiva que Adorno traça a diferença entre a catarse
autêntica, promovida pela arte, e o kitsch, artefato cultural destituído de definições, mesmo
históricas. Para Adorno (2011), o kitsch é o “brega” na cultura. Ele parodia a catarse com sua
identificação e sentimentalismo exacerbado, pois se trata da mera pilhagem sentimental. Nos
produtos da indústria cultural, vê-se que o kitsch “está misturado em toda a arte como um
veneno; separar-se dele constitui hoje uma das suas tentativas mais desesperadas”
(ADORNO, 2011, p. 360).
Adorno (2011, p. 361) considera que a funcionalidade da arte concebida pela indústria
cultural apenas como entretenimento de forte caráter subjetivo perde no seu processo de
fruição toda objetividade (síntese de complexas relações) e se torna coisa limitada ao estigma
subjetivo do fetiche. Em outros termos, a arte vista apenas como entretenimento é a evidente
legitimidade da ideologia; onipresença da repressão.
Sobre essa questão, Pucci (2006) observa que o apelo exagerado ao subjetivismo artístico,
fato que agrega mais valor ao produto, na realidade enfraquece ainda mais a subjetividade.
Essa catarse às avessas, com sua “arte sem sonho e destinada ao consumo” (PUCCI, 2006, p.
100), conduz o público fruidor à identificação integral com o todo, à fusão impessoal com o
real, acorrentando-o na incapacidade de imaginar algo de fato novo, diferente do real vivido e
que pode ser mudado, uma vez que até o novo nos é usurpado (PUCCI, 2006, p. 100).
De acordo com Rosa (2007), o cerne dessa discussão está na Dialética negativa, de Adorno,
em que o eu tem, na fruição estética, o processo mimético como norteador, ou seja, o eu e o
não-eu. É essa dialética que está presente no pensamento estético adorniano, pois, para ele, é
preciso persistir na não solução da contradição entre razão (não-eu) e naturalidade (eu),
94
Para Adorno, esse casamento do reprimido com a esperança só é possível quando se sai do
sempre semelhante promovido da indústria cultural, seja com as músicas, literatura ou filmes.
O que se vê são produtos culturais sob um véu de sempre novo. Aí está a contradição, pois
“[...] a consciência, até hoje acorrentada, não é, sem dúvida, senhora do novo, mesmo em
imagem: sonha com o novo, mas não é capaz de sonhar o próprio novo” (ADORNO, 2011, p.
359). Só se pode sonhar o novo quando distanciado do real, quando se tem a consciência do
não-idêntico. O novo surge a partir da dialética que nos constitui, de ser e não ser natureza e
como essa relação nos constituiu historicamente (ADORNO, 2011).
Em síntese, percebe-se que, para Adorno, catarse envolve tanto aspectos internos da obra de
arte quanto aspectos externos da relação da mesma com a sociedade/realidade. Nas palavras
de Rosa (2007), a potência da catarse acontece como “efeito emocional-emotivo
desencadeado pela mimese, com toda a carga dialética de que essa se alimenta” (ROSA, 2007,
p. 184).
No entanto, para que o processo mimético ocorra de forma reflexiva, Rosa argumenta que,
para Adorno, na tensão entre conteúdo e forma, esta “é imanente ao princípio identificador da
mimesis, mas é também nela (na forma) que o princípio de diferenciação pode ocorrer. E
assim o processo catártico pode sinalizar seu aspecto de resistência frente ao real” (ROSA,
2007, p. 187).
Schaefer (2012) também afirma que “os processos que ocorrem entre forma e material são a
própria catarse” (SCHAEFER, 2012, p. 430) e, nesse sentido, ambos os comentadores
afirmam que, em Adorno, catarse está diretamente relacionada com a tensão dialética que
constitui a obra de arte. É nessa tensão que na técnica formuladora da forma pode-se captar
toda gênese histórica e dialética que constitui a arte e pode projetar a arte como vanguarda
95
Para Adorno, a escola carrega essa dimensão formativa e requer dos seus participantes a
apropriação crítica da cultura produzida, dentre elas o acervo, o patrimônio artístico, pois “a
análise da cultura de massa deve ter como objetivo mostrar a conexão existente entre o
potencial estético da arte de massas em uma sociedade livre e seu caráter ideológico na
sociedade atual” (ADORNO, citado por ROSA, 2002, p. 104).
Adorno, crítico da sociedade capitalista, elaborou reflexões contundentes sobre a relação entre
educação e sociedade, principalmente no que diz respeito à formação cultural. Não obstante,
nenhum intelectual vinculado à primeira geração da Teoria Crítica da Sociedade pretendeu
formular uma pedagogia47.
47
Há inúmeras publicações que informam sobre a relação das ideias de Adorno e a educação, mas nenhuma se
arrisca a apresentar pedagogia propriamente adorniana. Alguns exemplos são Pucci; Ramos-de-Oliveira e Zuin
(1999) e Loureiro (2006).
96
Capítulo IV
contra uma educação centrada na cultura presente no cotidiano imediato dos alunos
que se constitui, na maioria dos casos, em resultado da alienante cultura de massas,
devemos lutar por uma educação que amplie os horizontes culturais desses alunos;
contra uma educação voltada para a satisfação das necessidades imediatas e
pragmáticas impostas pelo cotidiano alienado dos alunos, devemos lutar por uma
educação que produza nesses alunos necessidades de nível superior, necessidades
que apontem para um efetivo desenvolvimento da individualidade como um todo;
contra uma educação apoiada em concepções do conhecimento humano como algo
particularizado, fragmentado, subjetivo, relativo e parcial que, no limite, negam a
possibilidade de um conhecimento objetivo e eliminam de seu vocabulário a palavra
verdade, devemos lutar por uma educação que transmita aqueles conhecimentos que,
tendo sido produzidos por seres humanos concretos em momentos históricos
específicos, alcançaram validade universal e, dessa forma, tornam-se mediadores
indispensáveis na compreensão da realidade social e natural o mais objetivamente
que for possível no estágio histórico no qual encontra-se atualmente o gênero
humano (DUARTE, 2001, p. 31).
Segundo Duarte (1993), as teorias educacionais críticas partem da visão da sociedade atual
como estruturada sobre relações de dominação de grupos e classes sociais e preconizam a
necessidade de superação. Apesar dessa convergência, elas se diferenciam em outros aspectos
e desejam apreender quais são
essas relações de dominação, qual sua origem, qual o papel da educação em sua
reprodução, quais as formas pelas quais se realiza essa reprodução na educação em
geral e na educação escolar em particular, se é possível realizar algo em educação
que contribua para a superação das relações sociais de dominação, etc., são pontos a
partir dos quais as teorias críticas se dividem e se chocam (DUARTE, 1993, p. 8).
Por essa razão, decidimos dialogar com uma vertente das teorias educacionais críticas que
defende que o espaço escolar é o locus privilegiado de acesso e socialização do conhecimento
historicamente elaborado, lugar de mediação entre saber espontâneo e sistematizado. Diante
da precarização do trabalho docente em todos os níveis e do enfraquecimento da escola
enquanto espaço e tempo de formação, alguns autores (cf. SAVIANI, 2008; DUARTE, 2010;
97
Nesse sentido, o presente capítulo está organizado em dois eixos: cada um deles indica as
inspirações e os possíveis desdobramentos identificados a partir dos quais seja possível pensar
em uma contribuição para as pedagogias críticas e progressistas, qual seja:
48
Georges Snyders, nascido em Paris em 1917, morreu também em Paris em setembro de 2011. Filósofo,
pesquisador em ciências da educação, foi autor de inúmeras obras que tiveram impacto sobre a produção
acadêmica sobre educação, dentre elas Pedagogia progressista (1974), Para onde vão as pedagogias não-
diretivas?, Escola (1978), Classe e luta de classe (1977), A alegria na escola (1988), A escola pode ensinar as
alegrias da música? (1992) e Feliz na universidade (1995).
49
Em suas primeiras publicações (de 1974 a 1977), em contraposição às pedagogias tradicionais e nova, Snyders
realizou um esforço de pensar uma pedagogia de inspiração marxista que denominou de pedagogia progressista
(VIEIRA, 2011). Tal “proposta pedagógica tem como característica o resgate das concepções originais da
pedagogia tradicional e nova, bem como a crítica a elas” (VIEIRA, 2011, p. 159). Assim, a pedagogia
progressista de Snyders tem como “compromisso uma formação que permita ao indivíduo tomar consciência de
si e da sociedade em que vive, a fim de nela atuar com base na verdade, que é iniludivelmente histórica e
revolucionária” (VIEIRA, 2011, p. 160). A autora esclarece que “tal pedagogia tem nos conteúdos o seu
diferencial” (VIEIRA, 2011, p, 160). Nas publicações posteriores, entre 1988 e 2011, Snyders deslocou suas
reflexões para o tema da alegria na escola, sem, contudo, abandonar seus argumentos anteriores.
98
Adorno realizou análises que ainda hoje continuam atuais, como a afirmação de que
atualmente a liberdade, uma das condições para a formação, passou a ser não apenas
reprodução, mas a expressão do modo de vida existente, e que as dimensões emancipatória e
autônoma da cultura se encontram submergidas na lógica da razão instrumental vigente na
sociedade capitalista. Em seu ensaio Teoria da semiformação, Adorno observa que
formação devia ser aquela que dissesse respeito – de uma maneira pura como seu
próprio espírito – ao indivíduo livre e radicado em sua própria consciência, ainda
que não tivesse deixado de atuar na sociedade e sublimasse seus impulsos. A
formação era tida como condição implícita a uma sociedade autônoma: quanto mais
lúcido o singular, mais lúcido o todo (ADORNO, 2010, p. 8).
A tendência, no atual contexto social, é que a formação estética e cultural se converta em uma
semiformação socializada pelo simples fato de os produtos culturais já não mais se
expressarem como valor de uso e se tornarem valores de troca integrados à lógica do
mercado. Em outros termos, a subjetividade é paulatinamente formada pelas “mercadorias
culturais”.
O conceito estético de catarse, tal como proposto nas reflexões de Adorno, reforça aquele
entendimento presente na sua Teoria estética (2011), de que há uma constante tensão dialética
entre conteúdo e forma típica das obras artísticas autênticas. No mesmo caminho, ao
diferenciar as obras autênticas das não autênticas, como observado no terceiro capítulo desta
dissertação, Adorno considera que nem toda obra de arte é capaz de expressar essa dialética
que em tese acontece na arte autêntica.
Nessa direção, é possível afirmar que, para Adorno, a catarse é um elemento importante na
função da arte capaz de despertar e conduzir uma formação deslocada dos protocolos do
clichê da indústria cultural. Enquanto o efeito catártico explorado por Aristóteles estava
diretamente relacionado com o fruidor, na teoria estética de Adorno há um deslocamento para
a obra em si, ou seja, a catarse é imanente à obra.
O espetáculo tem sido um produto muito disseminado e muitas vezes confundido com a
própria indústria cultural que mimetiza a catarse concebida como puro efeito emocional
pautado apenas no fruidor. Assim, ela tende a ser apropriada pelos administradores, gerentes e
operadores da indústria cultural como forma de anestesiar a capacidade de o público sentir e
pensar por conta própria e, dessa forma, reproduzir a lógica da dominação.
100
Se a indústria cultural é um fenômeno mundializado, como a escola pode sair ilesa das suas
investiduras? É preciso considerar que uma instituição social como a escola não está à
margem do que ocorre na totalidade social. Ela e os professores têm condições de valorizar
outras dimensões e elementos formativos, tais como cinema, literatura, música, dança. No
entanto, tudo indica que quando esses elementos adentram o ambiente escolar, em sua maioria
são aqueles que representam a indústria cultural hegemônica e servem apenas como fogos de
artifício utilizados pelo sistema capitalista para ludibriar e amainar os sentidos e a capacidade
reflexiva do público. Nesse sentido, a escola e os professores acabam por oferecer muito do
mesmo, e sempre de acordo com os interesses dos grupos e classes sociais hegemônicas.
Pela análise contida na teoria estética de Adorno, é possível afirmar que há, sim, diferença
entre a catarse autêntica, promovida pela arte, e o kitsch, artefato cultural cujas definições,
mesmo históricas, ou são empobrecidas ou estão ausentes. No processo de fruição do
espectador, a funcionalidade da arte como mera mercadoria e entretenimento de forte caráter
101
subjetivo tende, de acordo com Adorno, a perder toda a objetividade que a constitui, que
incorpora a síntese de complexas relações. Assim, a mesma torna-se coisa limitada ao estigma
subjetivo do fetiche que a envolve (ADORNO, 2011).
Necessidades artificiais e satisfações superficiais: pode-se afirmar que esse seria o lema da
indústria cultural e aqui se encontra a crítica de Adorno à catarse realizada por essa indústria
do entretenimento.
Esse é o desafio da educação. Como pensar/fazer o novo? Como sair do sempre semelhante?
Só se pode projetar o novo quando distanciado da realidade, quando se tem a consciência do
não idêntico. A escola também lida com uma tensão, mas, de outra ordem: ela se constitui
como espaço e tempo no qual a vida cotidiana (DUARTE, 2001) também precisa ser negada.
Essa discussão também nos remete para uma possível relação entre a ideia de vida cotidiana
(HELLER, 1992; DUARTE, 2001) e o conceito de semiformação (ADORNO, 2011). Não se
trata de uma identidade, mas apenas uma indicação de que ambos os conceitos têm uma
familiaridade, em especial pela característica que envolve a fetichização/alienação do
processo formativo. Em linhas gerais, Heller (1992) considera que todos os indivíduos se
inserem na vida cotidiana, na qual se tem início a formação, que é sempre mediada, direta ou
indiretamente, por outros: indivíduos ou objetivações. É nessa esfera da vida social que
acontece a apropriação da linguagem, dos objetos e instrumentos culturais, bem como dos
usos e costumes de sua sociedade (HELLER, 1992, p. 103).
Essa autora considera que a vida cotidiana é composta pelo conjunto das atividades voltadas
para a reprodução da existência do indivíduo e se baseia em uma relação mais automática e
não consciente com o mundo. A teorização demanda tempo e esforço que tornariam a vida
cotidiana inviável. Assim: “Entre o que se faz e se pensa na cotidianidade, não haveria uma
mediação teórica, reflexiva, crítica e aprofundada, mas sim uma determinação utilitária
102
direta” (ROSSLER, 2004, p. 107). Já a vida não cotidiana refere-se às atividades voltadas
para a reprodução da sociedade, ou seja, as atividades complexas e reflexivas (as ciências, as
artes, a filosofia, a moral, a política) determinadas por motivações genéricas que aludem à
universalidade do gênero humano (HELLER, 1992).
De acordo com Heller, a vida cotidiana não é necessariamente alienada, mas, devido aos seus
traços, constitui “indubitavelmente um terreno propício à alienação” (HELLER, 1992, p. 38).
Considerando que no capitalismo contemporâneo a indústria cultural é a ideologia que
formata o modo de vida nas sociedades dominadas pelo capital, tudo indica que os conteúdos
dessa indústria predominam no viver cotidiano. Se acessados, seus produtos oferecem ao
aluno aquilo que ele já conhece e vivencia cotidianamente fora da escola. Esse parece ser um
caminho mais fácil de aceitação e sedução para o aprendizado.
Dessa forma, prolongar a esfera cotidiana da vida significa contribuir para a reprodução da
alienação. No que se refere à escola, o processo educativo tem como ponto de partida as
atividades típicas da vida cotidiana. Ou seja, parte-se da prática social imediata, da vida
cotidiana e, pela mediação do não cotidiano, com e no acesso às objetivações humanas mais
complexas (ciência, artes, moral, política, ética, filosofia), retorna-se ao cotidiano de forma
mais enriquecida. Nesse sentido, pode-se concordar com Snyders que a escola se efetiva pela
dialética de continuidade e descontinuidade do viver cotidiano. Por um lado, o processo
educativo parte da “valorização da vida, da pessoa, da cultura dos alunos” (SNYDERS, 1993,
p. 161); por outro, é preciso romper com essa continuidade, isto é, “abrir a cultura do
estudante para a vida, não somente em nível corrente, cotidiano [...] mas também na altura do
mais elaborado, do que há de mais importante nas realizações e esperanças dos homens”
(SNYDERS, 1993, p. 88).
educacional. Porém, em sua ampla contribuição para o campo da crítica cultural, é possível
perceber sua defesa em busca de uma formação a contrapelo da desigualdade reinante no
nosso sistema político-econômico. Em Educação e emancipação (1995), por exemplo, fica
evidente sua preocupação com o esfacelamento e brutal concorrência que a escola, já em sua
época na Alemanha, enfrentava no início da propagação dos meios de comunicação de massa:
“a sociedade forma as pessoas mediante inúmeros canais e instâncias mediadoras, de um
modo tal que tudo absorvem e aceitam nos termos desta configuração heterônoma que se
desviou de si mesma em sua consciência” (ADORNO, 1995c, p. 181).
Na reflexão adorniana, a crise que hoje se observa na formação cultural, de fato, é índice de
uma crise geral da cultura que em hipótese nenhuma deriva da insuficiência do sistema e dos
métodos educacionais. Ela se vincula ao modo historicamente datado da existência humana.
Nessa direção, o problema da formação não se limita a uma questão da pedagogia/sistema
educacional. Em outros termos, reformas educacionais são importantes, mas não são garantia
de solução; em alguns casos até pioram a crise e contribuem para a ocultação do poder
extrapedagógico sobre ela:
O que hoje se manifesta como crise da formação cultural não é um simples objeto da
pedagogia, que teria que se ocupar diretamente desse fato, mas também não pode se
restringir a uma sociologia que apenas justaponha conhecimentos a respeito da
formação. Os sintomas de colapso da formação cultural que se fazem observar por
toda parte, mesmo no estrato das pessoas cultas, não se esgotam com as
insuficiências do sistema e dos métodos da educação, sob a crítica de sucessivas
gerações. Reformas pedagógicas isoladas, indispensáveis, não trazem contribuições
substanciais. Poderiam até, em certas ocasiões, reforçar a crise, porque abrandam as
necessárias exigências a serem feitas aos que devem ser educados e porque revelam
uma inocente despreocupação frente ao poder que a realidade extrapedagógica
exerce sobre eles (ADORNO, 2010, p. 7-8).
A educação, portanto, é mediação sine qua non nesse processo formativo para a autonomia,
em que os indivíduos formam, sempre a partir dos ditames de outrem,uma imagem (Bild) de
si mesmos. Concomitante, a educação e a apropriação da cultura se constituem como
A nosso ver, a perspectiva de educação que subjaz na crítica adorniana tem por escopo o ser
omnilateral,50 ou seja, aquele tipo de formação preocupada com a totalidade do ser, aberta e
que não isola o indivíduo. Nesse caso, o humano culto é o indivíduo de espírito aberto e livre,
e a cultura viva e formativa é aquela aberta para o futuro, mas com bases sólidas no passado.
Em outros termos, não se deixa fascinar diante do novo, tampouco dele se afasta, mas sabe
considerá-lo em seu justo valor. Em tese, o indivíduo omnilateralmente formado é aquele
capaz de vincular o “novo” àquilo que supostamente é passado (velho) e de poder, nesse
50
Expressão usada por Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos (2004) para indicar o ser humano na sua
inteireza e complexidade.
105
A defesa de uma educação que valorize a totalidade que constitui o ser humano é uma
premissa também presente na teoria de Snyders (1993), para quem nessa totalidade está
instituída a dimensão estética. Dessa forma, ele situa a importância do acesso ao
conhecimento sistematizado no horizonte de construção da alegria escolar:
Talvez, aqui, seja necessário esclarecer a argumentação de Snyders. Para ele, a alegria na
escola não pode estar apenas atrelada ao espontaneísmo ou à satisfação dos desejos imediatos
dos alunos, pois isso poderia comprometer sua preparação para agir no mundo. Por isso, ele
assevera: “Procuro algo além do prazer imediato, mas também algo além do sacrifício dos
prazeres imediatos” (SNYDERS, 1993, p. 31).
Pode-se pensar que a alegria na escola seja um estado constante de conforto, no entanto, ao
contrário dessa ideia, ela implica desejo e é marcada pela necessidade, e até mesmo pela falta.
Em outros termos, oposto ao conceito de euforia, a escola alegre é aquela marcada pelo desejo
de conhecer e aprender (SNYDERS, 1993, p. 42), pois formar-se pela mediação da cultura
significa “conscientização e por isso mesmo exacerbação de conflitos e dores” (SNYDERS,
1993, p. 43).
Propor uma pedagogia progressista é também pensar em uma educação que não desconsidere
os conflitos presentes em nossa sociedade, que não seja conformista, pois “a aquisição da
alegria cultural é acompanhada de responsabilidades e de angústias novas” (SNYDERS, 1993,
106
p. 46). Além disso, o trabalho educativo exige esforço, disciplina e organização. Snyders
observa que a tendência dos alunos é solicitar que a escola aborde aquilo que se faz mais
presente no seu cotidiano, que eles já conhecem e gostam. Como já visto, esses prazeres
podem até ser um ponto de partida do processo educativo, mas, em muitas situações, é preciso
colocá-los em xeque e construir prazeres e alegrias além da imediaticidade. Nesse processo,
algumas frustrações são necessárias para que prazeres mais permanentes sejam alcançados.
Portanto, situações de obrigação podem, por exemplo, abrir um mundo de novas experiências
e novas alegrias até então não vivenciadas pelos estudantes. Por essa razão, “O atrativo do
obrigatório é o tempero que ele traz à vida escolar” (SNYDERS, 1993, p. 104).
Como já ilustrado, Adorno (2010) foi um crítico de reformas educacionais que descartavam
“a antiquada autoridade” e enfraqueciam “a dedicação e o aprofundamento íntimo do
espiritual”. É nesse sentido, também, que se afasta qualquer possibilidade de considerá-lo
escolanovista51, uma vez que sua filosofia está muito mais vinculada ao rol das teorias críticas
da educação:
Quem tendo frequentado escola não terá se emocionado alguma vez com a poesia de
Schiller e os poemas de Horácio que devia aprender de cor? E a quem os velhos pais
não terão causado arrepios de extrema emoção quando, sem que se lhes pedissem e
inesperadamente, recitavam textos de que se recordavam ainda, compartilhados
assim numa comunhão com os mais jovens? Com certeza, dificilmente se pediria
hoje que alguém aprendesse algo de cor: apenas pessoas muito ingênuas estariam
dispostas a apoiar-se na tolice e na mecanicidade desse processo; porém, assim se
priva o intelecto e o espírito de uma parte do alimento de que se nutre a formação
(ADORNO, 2010, p. 7).
51
O escolanovismo foi um movimento de renovação do ensino que surgiu nos séculos XIX e XX; no Brasil um
de seus pioneiros foi Rui Barbosa. Essa proposta tinha como objetivo ir na contramão da educação tradicional e
para isso centrava na criança as relações de aprendizagem; exaltava o ato de observar, de intuir, na construção do
conhecimento do aluno.
107
Obra prima é um conceito, na filosofia de educação de Snyders (1993), que a nosso ver
aproxima-se, em certa medida, da conceituação filosófica de Adorno em relação à formação
escolar. O intelectual francês considera que as obras primas são os vários conhecimentos
sistematizados a serem tratados pedagogicamente pela escola.
Como mencionado, para Snyders não se trata apenas de obras artísticas, mas de toda a riqueza
cultural sistematizada e produzida pela humanidade ao longo da história. Como se percebe,
ele se apropria de um termo vinculado organicamente ao universo estético e lhe confere uma
nova significação que não exclui as obras de arte, mas não diz respeito apenas a elas. A
expressão propriamente estética é ressignificada e, nesse processo, alguns aspectos do seu
sentido original se mantêm, enquanto outros são abandonados: “A admiração pela poesia [...]
tem continuidade imediata na alegria de compor as próprias poesias” (SNYDERS, 1993, p.
170).
No âmbito da escola, permitir que os alunos tenham acesso e se apropriem da literatura local,
regional e universal, dos conhecimentos mais simples e complexos da matemática, da física,
da química, da biologia, da diversidade de manifestações das práticas corporais, significa, ao
menos em tese, garantir a democratização do patrimônio cultural, democratizar o
conhecimento.
Ao mesmo tempo é fazer com que os alunos, independente dos níveis em que se encontrem,
da educação infantil ao ensino superior, possam extrair das produções culturais todo seu
caráter excepcional e “[...] toda a alegria que pode atingir as pessoas comuns” (SNYDERS,
1993, p. 164), e ao mesmo tempo assegurar a confiança nas próprias forças intelectivas.
Será que tal procedimento também pode ser realizado tendo como inspiração o conceito
adorniano de catarse, tendo em vista preocupações educacionais? O deslocamento que a teoria
estética de Adorno propõe, com relação ao conceito de catarse, refere-se ao gradual
movimento de interiorização, por ele denominado de espiritualização.
108
Como exposto ao longo desta dissertação, a catarse, para Adorno, já não mais se encontra no
efeito exterior, pois no embate entre a lei formal e o conteúdo material as obras constituem, de
forma imanente, a sua própria catarse. Diferente da catarse clássica aristotélica, agora é o
próprio objeto e não mais o público que experimenta a suposta purificação já destituída de seu
sentido moral (ADORNO, 2011).
É por isso que, no caso da catarse, tal como proposta por Adorno, a arte autêntica afasta-se de
qualquer possibilidade de facilitar a relação do sujeito que frui ou contempla a obra, no
sentido de domesticar sua sensibilidade. O fato de a catarse só acontecer em obras de arte
autêntica, de imediato nos lança para o aspecto não cotidiano, portanto não reprodutor dos
protocolos estéticos entorpecedores dos sentidos.
De certa forma, isso nos remete para a ideia de obra prima (SNYDERS, 1993), pois, no
confronto com a arte autêntica, a objetividade histórica da obra apresenta-se de tal forma que
o contemplador/fruidor sente-se sensível e cognitivamente abalado, incitado a resolver seus
enigmas. É nesse contato com a objetivação artística que está a possibilidade da constituição
da subjetividade autônoma, pois capaz de, no esforço de não se deixar seduzir pelo prazer ou
109
desprazer imediato proposto pela obra de arte, o sujeito se vê impulsionado a elaborar uma
imagem (Bild) de si mesmo a partir dos enigmas nela contidos.
Isso significa pensar que, assim como a obra prima representa os conhecimentos
sistematizados que podem ser tratados pedagogicamente pela escola, o processo catártico, tal
como entende Adorno (2011), nos permite realizar um deslocamento da arte para a
experiência de conhecimento em geral com as demais objetivações próprias do contexto
escolar: as ciências, a filosofia, as práticas corporais, a política, a ética etc.
Sem contar que a prática pedagógica envolve aspectos internos e externos em relação ao
contexto social, e é nessa tensão entre ação e realidade que questionamos o papel da escola
em uma conjuntura de massificação cultural. O conceito de catarse adorniano nos apresenta
uma potência no trato desse desafio, ou seja, catarse entendida como resistência e
distanciamento que tensiona o cotidiano e o eleva ao não cotidiano.
Com um leque tão vasto de produtos disseminados pela indústria do entretenimento, o que
fazer para que a ação pedagógica (a escola) não se deixe seduzir pelo canto das sereias, a
tentação de utilizar seus produtos do clichê? Não utilizar? Negar sua presença? É nesse
sentido que o diálogo com Snyders é profícuo para pensarmos a retomada da obra prima e os
clássicos no ambiente escolar. Escola como ruptura, ou seja, como “confiança nas obras-
primas, na ação das obras-primas e no papel da escola de modo que o aluno não fique alheio a
elas” (SNYDERS, 1993, p. 161). Não abrir mão de Machado de Assis com seus contos e
personagens; o admirável da ótica, da astronomia, da botânica; No quadro negro, de Wassily
Kandinsky, ou Os retirantes, de Cândido Portinari.
Se a escola foi inventada, é porque a vida não é suficiente para educar (Martinand).
Receio sobremaneira que aqui a escola não reproduza o extra-escolar e, menos
provalvemente, não tome emprestado do extra-escolar gestos, momentos banais,
comuns e que podem, portanto, ser pouco formadores (SNYDERS, 1993, p. 122-
123).
produzir cultura de forma crítica. Como enfatiza Pucci (citado por LOUREIRO, 2006), a
experiência estética oferece aos sentidos humanos uma dimensão de conhecimento, e ao
entendimento uma dimensão de sensibilidade. Apresentar o admirável, seja nas artes, na
filosofia, na ciência, faz da escola um espaço que garante o direito à memória coletiva.
O desafio é grande, no entanto vale lembrar Graciliano Ramos e o diálogo entre sinhá Vitória
e Fabiano, em Vidas secas (1938): “com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias.
Podemos escondê-las? A resposta de Fabiano é simples: não. O mundo é muito grande”
(RAMOS, 2007, p. 123).
Na contramão do empobrecimento da experiência estética e cultural, é que se propõe um
contato com a literatura, com o cinema, com as artes em geral e também com o conhecimento
científico, em particular, para, no movimento de tensão dialética, criar as condições de
desarmá-los e desformatá-los dos padrões pragmáticos impostos pela divisão social do
trabalho na sociedade capitalista. A apropriação de uma cultura mais complexa requer e
fomenta uma apreciação e fruição mais elaborada. É nesse ponto que se faz importante pensar
sobre as possibilidades para e na educação escolar.
A complexidade que constitui a cultura pode se apresentar dentro do ambiente escolar a partir
das obras escolhidas – a obra-prima –, sejam elas a música, a literatura, as artes plásticas, a
ciência, a filosofia. A alegria constituinte da apropriação do conhecimento não vulgar, não
ordinário, pois os clássicos só são classicos porque ultrapassam a dimensão de tempo e
espaço. Ou seja, eles conseguem captar toda gênese histórica e dialética que os constitui e se
projetar como vanguarda. Aí se encontra o princípio para a possibilidade do novo e,
consequentemente a origem para o processo catártico autêntico, baseado na racionalidade
estética mediadora entre sujeito e mundo. Pois na escola, “[...] mas à sua própria maneira, a
literatura é diferente da vida, é uma transposição que só é possível através de um
distanciamento em relação aos acontecimentos vividos” (SNYDERS, 1993, p. 136).
Todavia, a educação ou o acesso a ela, por si só, não gera emancipação. A relação viva com
esse tipo de cultura, por si só, não gera autonomia. Para tanto, é mister não se esquecer da
necessidade de se ter um olhar menos ingênuo e romântico sobre a sociedade, concomitante
ao processo de elaboração do passado (elevar ao nível do consciente os fragmentos da
história, individual e coletiva, que foram reprimidos ao longo do tempo), dois movimentos
imprescindíveis do pensar (ADORNO, 1995b). É esse deslocamento, de pensar de forma
112
O objetivo, nesse sentido, não é apenas educar para a fruição de uma cultura mais elaborada,
mas também contrapor-se aos preceitos adotados pelos meios de comunicação de massa que
supõem o imediatismo, a banalização do critério de entendimento, a superficialidade e o
esvaziamento da historicidade da existência.
Em síntese, uma praxis educativa emancipadora que considere uma formação sensível requer
apreender e compreender o movimento histórico e dialético da realidade social que envolve a
produção desses meios e, concomitante a essa reflexão, buscar outras possibilidades, que não
a massificada, de produção e de acesso à cultura, bem como uma relação sensível-racional
menos alienada com o entorno social e natural.
Um projeto de educação emancipatória não é uma tarefa fácil. Há que se investir demasiado
na formação dos professores e em estruturas educacionais que deem suporte aos mesmos, mas
de forma alguma essas dificuldades podem ser justificativas para a não realização desses
esforços.
Não se tem, aqui, qualquer pretensão de organizar um rol de conteúdos ou fórmulas para a
educação sensível na escola. Não obstante, pretende-se estabelecer alguns princípios de
reflexão, em especial a não reprodução de padrões de alienação e desigualdade, ou melhor, o
desejo é garantir a reflexão sobre uma possível ampliação das referências éticas, políticas,
científicas e estéticas primordiais para se fundar uma concepção de educação emancipadora e
formadora de um ser humano pleno de possibilidades.
114
6 Considerações finais
Nessa etapa final, percebemos que nosso insight inspirador – buscar os desdobramentos da
categoria adorniana de catarse para uma teoria educacional crítica – ultrapassou a suspeita
inicial, tendo em vista a constatação inicial de que essa temática não tem sido explorada nas
discussões educacionais.
Com base na revisão de literatura, é possível perceber que o conceito de catarse, apesar de não
ser amplamente estudado, é objeto de discussão no campo da educação. Contudo, apenas 12
trabalhos, em um universo de 28 escolhidos para análise, realizam um tratamento conceitual,
e esse procedimento parece ser irrelevante, ou seja, apesar de os autores dos trabalhos
analisados abordarem questões relativas à filosofia da educação e formação estética em geral
e de comentarem sobre o conceito de catarse. Essa é a ambiguidade, quase a totalidade dos
textos aponta para a importância da catarse no processo de formação escolar, ou seja, que ela
possui uma relevante função educativa.
Isso tende a dificultar sua compreensão, uma vez que um tom de obviedade a uma
palavra/conceito nem sempre se configura como esclarecedor. Percebe-se que, quando o
conceito passa por uma apreciação teórica, ele pode adquirir uma dimensão mais ampla de
discussão, pois isso significa, em outros termos, explicitar as múltiplas determinações que o
compõe.
Diante do mapeamento sobre a presença da categoria catarse nas discussões educacionais, fez-
se a opção de também apresentar historicamente o percurso pessoal e acadêmico-filosófico de
Theodor Adorno. Além disso, ao escutarmos o diálogo que Adorno trava entre filosofia e
educação, percebe-se que muitas vezes ele pode ser mal interpretado e tomado como um
filósofo pessimista. No entanto, também se percebeu que essa afirmação é um tanto quanto
precipitada, pois, ao deslocar a tensão dialética e transformadora para o processo formativo,
está presente o esforço de entender as rupturas históricas que a tessitura da razão introduz a
experiência social produzida.
Adorno nos alerta sobre a crise da formação e sobre o imperativo categórico da semiformação
– deves se adaptar, deves se divertir; faz referência à tendência e reprodução do processo de
enganação do público que consome os produtos da indústria cultural. Para ele, a simples
alusão à ideia de pensar/agir por si próprio encontra-se vilipendiada pela investidura da
indústria cultural. Com aparência democrática, os meios de comunicação de massa reforçam
os processos de reprodução de valores e lógicas da sociedade capitalista, brutalmente
condicionada ao espírito pragmatista.
Adorno nos convida a pensar a educação para a contradição e para resistência (ADORNO,
1995c) e isso tem a ver com a luta constante contra a naturalização dos fenômenos sociais.
Nesse contexto do sempre igual, promovido pela produção dos meios de comunicação, a
teoria crítica de Adorno oferece suporte conceitual e analítico para refletir sobre e
compreender a realidade social contemporânea.
A partir da sua concepção de catarse, percebe-se que a arte autêntica, defendida por Adorno, é
aquela que tem sido capaz de carregar em seu bojo a tensão dialética entre conteúdo e forma,
em sua manifestação como representação da realidade.
116
Diante dessa circunstância, vimos que essa catarse às avessas conduz o público fruidor à
identificação integral com o todo, à fusão impessoal com o real, acorrentando-o na
incapacidade de imaginar algo de fato novo, diferente do real vivido e que pode ser mudado,
uma vez que até o novo nos é usurpado. Para Adorno, esse casamento do reprimido com a
esperança só é possível quando se sai do sempre semelhante promovido pela indústria
cultural.
Esse sempre semelhante extrapola a obra de arte e também se manifesta em todos os níveis de
conhecimento, seja político, moral, matemático, e assim cai nos mesmos clichês
propagandeados pela indústria cultural. Perde-se, no contexto atual, a tensão dialética que
constitui a cultura.
Contra o enfraquecimento da escola como espaço e tempo de apropriação crítica dos bens
culturais, Snyders com seu conceito de “alegria cultural” nos ajuda a pensar a escola como
espaço de alegria. Por conseguinte, para além de se constituir como espaço de acesso à
cultura, tanto ele como Adorno nos alertam sobre a apropriação crítica da mesma.
Nessa direção, se consideramos os dados dessa pesquisa, podemos afirmar que nossa hipótese
inicial sobre os possíveis desdobramentos da teoria crítica de Adorno, em particular sua
concepção de catarse, para o campo da educação, constitui-se como um horizonte factível,
não só para o campo da arte, mas para os níveis de conhecimento.
117
Ao defender a escola como espaço de socialização dos clássicos e da obra prima, Snyders
propõe garantir o acesso à memória coletiva a partir do conceito de “alegria cultural”; a
escola, como espaço de produção de alegria, que está vinculada ao acesso do conhecimento
em geral.
No entanto, os autores nos esclarecem que, na tensão entre os aspectos internos e externos,
não seria toda e qualquer obra produzida pela humanidade capaz de manifestar a gênese
histórica e dialética que constitui a cultura. Em outros termos, o conceito de catarse a partir da
filosofia de Adorno sinaliza a possibilidade de se pensar uma prática educativa que considere
a tensão entre conteúdo e forma presente tanto nos clássicos, como nas obras primas.
A obra-prima e/ou clássicos só o são porque conseguem captar toda gênese histórica e
dialética que constitui o processo civilizatório e cultural. É nessa direção que está o princípio
para a possibilidade do novo e, consequentemente, a origem para o processo catártico
desencadeado a partir da racionalidade cultural-sensível mediadora entre sujeito e mundo.
Para finalizar, lembramos que Adorno nos alerta que a educação, ou o acesso a ela, por si só
não gera emancipação. Nossa tentativa com essa pesquisa é, no entanto, não se esquecer da
necessidade de se ter um olhar menos ingênuo e romântico sobre a sociedade. Como
118
educadora, posso relatar que todo o tempo e trabalho realizado durante o percurso dessa
pesquisa serviu para a minha formação, e que todas as leituras, tanto de Adorno e Snyders –
uma feliz descoberta – subsidiaram as decisões que tomei e tomarei ética e esteticamente para
minha prática educativa.
Arrisco-me a remeter-me à “finalidade sem fim” da arte proposta por Kant, comparando-a
com a finalidade da educação, que deve se comprometer com a formação omnilateral dos
seres humanos, não apenas para o mercado de trabalho ou manutenção do status quo. Solução
de tudo? Não. Mas um importante passo para o desenvolvimento de sujeitos livres e
autônomos. A educação e cultura se processam de forma dialética, e seu acesso não significa
garantia efetiva de realização de um mundo melhor e mais pleno, pois envolve também a
ação, portanto ela dependerá sempre não apenas dos projetos coletivos, mas principalmente
das condições objetivas que as sustentam. Mas para se configurarem como horizonte de
possiblidades e transformações, é preciso garantir o direito a uma memória histórica
juntamente com a apropriação das facetas menos disponíveis (à grande massa) da cultura.
Jorge Luis Borges, em seu livro La memoria de Shakespeare (1998), descreve muito bem esse
ser humano que faz da sua memória sua capacidade de amar: “[...] o destino deu a
Shakespearas triviais coisas terríveis que todo homem recebe e ele soube transmutá-las em
fábulas, em caracteres muito mais vívidos que o homem cinzento sonhou” (BORGES, 1998,
p. 22). Da memória do homem faz-se uma infinitude de possibilidades.
119
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