O Sertão e o Sertanejo Nordestino - A Invenção de Uma População e de Seu Espaço Pela Literatura

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INSTITUTO LATINO-AMERICANO DE ARTE, CULTURA E

HISTÓRIA (ILAACH)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA


COMPARADA (PPGLC)

O SERTÃO E O SERTANEJO NORDESTINO: A INVENÇÃO DE UMA


POPULAÇÃO E DE SEU ESPAÇO PELA LITERATURA

FLÁVIO AUGUSTO SERRA

Foz do Iguaçu
2022
INSTITUTO LATINO-AMERICANO DE ARTE, CULTURA E
HISTÓRIA (ILAACH)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA


COMPARADA (PPGLC)

O SERTÃO E O SERTANEJO NORDESTINO: A INVENÇÃO DE UMA


POPULAÇÃO E DE SEU ESPAÇO PELA LITERATURA

FLÁVIO AUGUSTO SERRA

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Literatura Comparada da
Universidade Federal da Integração Latino-
Americana, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Literatura
Comparada.

Orientadora: Professora Lívia Santos de


Souza, Dra.

Coorientador: Professor Leonardo dos


Passos Miranda Name, Dr.

Foz do Iguaçu
2022
Catalogação elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação
Catalogação de Publicação na Fonte. UNILA - BIBLIOTECA LATINO-AMERICANA - PTI

S487
Serra, Flávio Augusto.
O sertão e o sertanejo nordestino: a invenção de uma população e de seu espaço pela literatura / Flávio
Augusto Serra. - Foz do Iguaçu, 2022.
94 f.: il.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Instituto Latino-Americano


de Arte, Cultura e História. Programa de Pós-Graduação em Literatura Comparada. Foz do Iguaçu-PR, 2022.
Orientador: Lívia Santos de Souza.
Coorientador: Leonardo dos Passos Miranda Name.

1. Sertanejo. 2. Personagem. 3. Espaço. 4. Literatura comparada. I. Souza, Lívia Santos de. II. Name,
Leonardo dos Passos Miranda. III. Título.

CDU 82.091(81)
FLÁVIO AUGUSTO SERRA

O SERTÃO E O SERTANEJO NORDESTINO: A INVENÇÃO DE UMA


POPULAÇÃO E DE SEU ESPAÇO PELA LITERATURA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Literatura Comparada da
Universidade Federal da Integração Latino-
Americana, como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Literatura Comparada.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________
Orientadora: Professora Dra. Lívia Santos de Souza
Universidade Federal da Integração Latino-Americana

____________________________________________________
Coorientador: Professor Dr. Leonardo dos Passos Miranda Name
Universidade Federal da Bahia

___________________________________________________
Professora Dra. Rosângela de Jesus Silva
Universidade Federal da Integração Latino-Americana

___________________________________________________
Professor Dr. André Benatti
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul

Foz do Iguaçu, _____ de ___________ de ______.


AGRADECIMENTOS

Agradeço à professora Livia Santos de Souza e ao professor Leo


Name pelos incentivos, pelas sugestões e pela paciência nesses três anos de
orientação.
Aos professores Rosangela de Jesus Silva e Andre Rezende Benatti,
agradeço o aceite para colaborar com o trabalho na qualificação.
Ao colegiado do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Comparada pela compreensão das dificuldades pessoais enfrentadas na elaboração
deste trabalho.
Aos amigos do Departamento de Normas e Desenvolvimento
Curricular da UNILA pelo apoio nessa jornada.
E em especial, agradeço à minha companheira Viviane Gevezier e à
minha filha Ana Clara por estarem sempre ao meu lado nos inúmeros momentos de
incertezas.
“Eles queriam começar e terminar [as gravações]
no clima de seca. Mas, já na metade, o inverno
chegou. Não acharam bom, queriam ver o retrato
do sertão: seca. Não queriam ver verde. Pra mim,
eu achei mais importante: começou na seca e
terminou verdinho daquele jeito, com essas serras
a coisa mais linda do mundo”.
(Tadeus Cardoso da Silva, morador do povoado
de Barra, sobre as filmagens do filme Bacurau no
sertão nordestino)
RESUMO

Figura presente na cultura nacional, o sertanejo é de difícil categorização. Termo


primeiramente utilizado para distinguir as populações afastadas dos centros
populacionais, ele acabou sendo vinculado a uma população nordestina e à região do
semiárido brasileiro. Esse conceito foi construído/inventado a partir do século XVIII,
por meio de diversas formas de expressões culturais, como a literatura, as artes
plásticas, o cinema, entre outras. Neste trabalho, analisa-se como o sertanejo foi
inventado por meio da literatura e como as diversas representações foram
abastecendo esse conceito sintetizador. Para esta pesquisa, as obras O Sertanejo
(1875), de José de Alencar (2013), Vidas Secas (1932), de Graciliano Ramos (2011)
serão analisadas. Por meio da análise da construção dos personagens Arnaldo e
Fabiano, pretende-se apresentar como a categoria “sertanejo” foi criada e quais foram
as mudanças que ocorreram no período. De modo a ampliar o entendimento do
processo, será analisado também o espaço do sertanejo representado nas obras. Por
fim, os personagens e os espaços sertanejos de obras contemporâneas também
serão analisados, para tanto, incorpora-se o olhar de Ottmar Ette de modo a identificar
as reminiscências e as mudanças ocorridas na concepção dessa importante categoria
populacional. Os conceitos, como imagem-arquivo de Joaquín Barriendos (2019),
presente em seu texto A colonialidade do ver: rumo a um novo diálogo visual
interepistêmico, e Orientalismo de Edward Said (2007), apresentado em sua obra
Orientalismo – O Oriente como invenção do Ocidente, permearão toda a análise. Para
refletir sobre a ideia de espaço, utilizarei Michel Collot (2013) e o seu conceito de
paisagem literária, presente em sua obra Poética e Filosofia da Paisagem, entre
outros autores para dialogar com as propostas aqui apresentadas.

Palavras-chave: Sertanejo. Personagem. Espaço.


RESUMEN

Figura presente en la cultura nacional, el sertanejo, es de difícil catalogación. Término


utilizado inicialmente para distinguir las poblaciones alejadas de los grandes centros,
terminó vinculándose a una población del Nordeste y del Semiárido brasileño. Este
concepto fue construido/inventado a partir del siglo XVIII, a través de diversas formas
de expresión cultural, como la literatura, las artes plásticas, el cine, entre otras. En
este trabajo analicé cómo se inventó el sertanejo a través de la literatura y cómo
diferentes representaciones fueron aportando este concepto sintetizador. Utilizaré
para el análisis las obras O Sertanejo (1875), de José de Alencar (2013), Vidas Secas
(1932) de Graciliano Ramos (2011). A través del análisis de la construcción de dos
personajes, Arnaldo y Fabiano, intentaré presentar cómo se creó la categoría
sertanejo y sus cambios en el período. Para ampliar la comprensión del proceso,
también analizaremos el espacio sertanejo representado en las obras. Finalmente,
analizaré los personajes y los espacios sertanejos de obras contemporáneas, para
tanto, incorporaré la mirada de Ottmar Ette, con el fin de identificar las reminiscencias
y los cambios ocurridos en la concepción de esta importante categoría popular.
Conceptos como Imagen-Archivo de Joaquín Barriendos y Orientalismo de Edward
Said impregnarán todo el análisis. Para reflexionar sobre la idea de espacio me serviré
de Michel de Certeau y Michel Collot, entre otros autores, para dialogar con mis
propuestas.

Palabras-clave: Sertanejo. Personaje. Espacio.


ABSTRACT

A figure present in the national culture, the sertanejo, is difficult to categorize. Term
first used to distinguish populations far from population centers, it ended up being
linked to a northeastern population and the Brazilian semi-arid region. This concept
was built/invented from the 18th century, through different forms of cultural
expressions, such as literature, plastic arts, cinema, among others. In this work, I will
analyze how sertanejo was invented through literature and how the various
representations were supplying this synthesizing concept. I will use the works O
Sertanejo (1875), by José de Alencar (2013), Vidas Secas (1932) by Graciliano Ramos
(2011) for the analysis. Through the analysis of the construction of the characters
Arnaldo and Fabiano, I will seek to present how the sertanejo category was created
and its changes that occurred in the period. In order to broaden the understanding of
the process, I will also analyze the space of the sertanejo represented in the works.
Finally, I will analyze the characters and the sertanejo spaces of contemporary works,
from the point of view of Ottmar Ette in order to identify the reminiscences and the
changes that occurred in the conception of this important population category.
Concepts such as Image-Archive by Joaquín Barriendos and Orientalism by Edward
Said will permeate the entire analysis. To reflect on the idea of space, I will use Michel
de Certeau and Michel Collot among other authors to dialogue with my proposals.

Keywords: Sertanejo. Character. Space.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – O Sertão ................................................................................................... 70


Figura 2 – Os Retirantes ........................................................................................... 70
Figura 3 – Capa da primeira edição de Vidas Secas ................................................ 71
Figura 4 – Imagem do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol ................................... 75
Figura 5 – O sertanejo na Cidade, imagem do filme O Homem que Virou Suco....... 76
Figura 6 – A Paisagem do sertão, Imagem do filme Árido Movie .............................. 82
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12

2 VISÕES DO SERTÃO ............................................................................................ 21

2.1 UM ESPAÇO E A SUA CONSTANTE REPRESENTAÇÃO ................................ 22

2.2 O SERTANEJO COMO REPRESENTAÇÃO ...................................................... 26

2.3 O CORPUS ANALÍTICO E SUA CRÍTICA RECENTE ........................................ 29

3 O PAPEL DA PERSONAGEM............................................................................... 33

3.1 O SERTANEJO NO ROMANTISMO: A CONSTRUÇÃO DE UM HERÓI


POSSÍVEL................................................................................................................. 37

3.2 ROMANCE DE 30, UM “NOVO” SERTANEJO ................................................... 48

4 ESPAÇO E PAISAGEM NA LITERATURA ........................................................... 54

4.1 O SERTÃO VIVO DE ALENCAR ........................................................................ 58

4.2 A OPRESSÃO DO ESPAÇO, A PAISAGEM “REAL” .......................................... 63

5 REMINISCÊNCIAS E NOVOS RUMOS NO SERTÃO .......................................... 72

5.1 A PERMANÊNCIA DO SERTÃO COMO FONTE ............................................... 72

5.2 GALILÉIA: O RETORNO A UM ESPAÇO QUE NÃO EXISTE MAIS .................. 77

5.3 O SERTÃO SEM LIMITES .................................................................................. 81

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 85

REFERÊNCIAS......................................................................................................... 89
12

1 INTRODUÇÃO

Termo presente na cultura nacional, o sertão era utilizado, até o início


do século XX, para definir as regiões afastadas da costa e distantes dos centros
populacionais, porém, atualmente, esse termo é utilizado em todos os estados e
regiões do Brasil (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 21). Com o processo de captura
do conceito pelo discurso regionalista nordestino, hoje, este tem forte vínculo com o
semiárido brasileiro (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 22). Sua população, por
vezes descrita a partir de certa identidade territorial, a do sertanejo, foi largamente
representada por diversas expressões culturais, do teatro ao cinema e,
principalmente, da literatura. Por meio dessas representações, o termo sertanejo
parece sintetizar imaginários construídos em relação a essa população que viveu e
que vive às margens de um suposto centro cultural e geográfico. Os modos como
sertão e sertanejo foram ganhando significados e suas representações sedimentaram
o que, hoje em dia, é concebido por essas categorias serão objeto de análise neste
trabalho.
A pesquisa acerca do sertanejo e de seu espaço se justifica pelas
mudanças sociais e políticas que vivemos. Percebe-se, atualmente, o retorno do
antigo debate acerca do nacionalismo, que busca ressignificar o que é ser “brasileiro”.
Palavras de ordem há muito esquecidas voltaram ao debate político, como o
patriotismo (COSTA E SILVA, 2021; FAUSTO, 2021; WETERMAN, 2021), que, antes
estava restrito à caserna, agora parece se manifestar em muitas outras áreas da
sociedade. Problematizar a forma como o sertanejo foi construído possibilita um olhar
sobre a multidimensional e a multifragmentada formação do “brasileiro”, apresentando
parte de suas tensões. A pesquisa, igualmente, busca contribuir com o debate sobre
a relação entre o Sul e o Nordeste do Brasil – que, principalmente nos períodos de
eleições, à escala nacional, é retomada como um conflito cultural: um Sul
“desenvolvido” tem que conviver com um Nordeste “atrasado” (FACUNDO, 2018;
PICHONELLI, 2014). É possível identificar que o Nordeste imaginado por essas
narrativas estereotípicas encontra semelhanças com as visões do sertão e do
sertanejo na literatura. Esta proposta, portanto, visa a identificar essas origens e parte
de seus desdobramentos no passar dos anos.
13

Na academia existe uma ampla gama de campos de estudo que


abrangem a temática sertaneja: há estudos nos campos da História
(ALBUQUERQUE, 2011), da Antropologia (TADDEI, 2014), da Geografia (ROCHA,
2017) e da Sociologia (LIMA, 2013), entre outros. Além disso, literatura, filmes,
novelas, músicas, pinturas e outras formas de expressão artísticas já representaram
a população sertaneja – pode-se citar como exemplos o filme Deus e o Diabo na Terra
do Sol (1975), as novelas: Jerônimo, o Herói do sertão (1972) e Velho Chico (2016);
na música, nomes como Luiz Gonzaga (1912-1989) e o rapper Rapadura (1984); e,
nas artes visuais, Cândido Portinari (1903-1962) e Dalton Paula (1982) –, sendo essas
obras importantes meios de identificar quais culturas e costumes são, por meio dessas
artes, construídos/transmitidos e de que forma ganham destaque na cultura nacional.
E, mesmo nas narrativas do início do século XXI, há permanência de diversas
características, como a honra, a resistência, entre outras, que, no passado, já eram
atribuídas aos sertanejos, seja em filmes, como Bacurau (2020), de Kléber Mendonça
Filho, ou no romance Torto Arado (2019), de Itamar Vieira Junior, por exemplo.
Esse emaranhado de representações, com grande quantidade de
relações e de produções, possibilita uma infinidade de debates. O caminho aqui
escolhido, o da literatura nacional, busca também analisar a relação entre o sertanejo
e o seu espaço. Com o intuito de evitar teorias superadas, por exemplo, as de
determinismo geográfico (NAME, 2010), pretende-se demonstrar que “sertanejo” não
se refere tão somente a um adjetivo que remete a uma origem espacial, o “sertão”,
mas a uma gama de relações e de representações reproduzidas no tempo e que, em
cada momento geo-histórico, são causa e efeito de certas inteligibilidades acerca do
Brasil, particularmente aquelas oriundas de alguns grupos, no mais das vezes
hegemônicos, e não deixam de influenciar sensibilidades artísticas e sensos comuns.
Assim, a significação de mão dupla, como indicado por Albuquerque Júnior (2011, p.
35, pode ser entendida desta forma:

O espaço não preexiste a uma sociedade que o encarna. É através


das práticas que estes recortes permanecem ou mudam de
identidade, que dão lugar à diferença; é nelas que as totalidades se
fracionam, que as partes não se mostram desde sempre
comprometidas com o todo, sendo este todo uma invenção a partir
destes fragmentos, no qual o heterogêneo e o descontínuo aparecem
como homogêneo e contínuo, em que o espaço é um quadro definido
por algumas pinceladas.
14

É possível inferir que o espaço só existe com a sua utilização – no


caso sua representação. Isso mostra a importância da análise do espaço em uma
pesquisa que busca estudar as representações na literatura.
Da literatura nacional, utiliza-se o período de transição entre o século
XIX e o século XX e, posteriormente, realiza-se um painel com representações
contemporâneas – com vista a identificar reminiscências no presente. As mudanças
ocorridas entre o século XIX e o século XXI representaram mudanças estéticas e
sociais, pelas quais se buscavam novos ares para a literatura nacional – um
movimento que significou o declínio do romance clássico idealizado e a ascensão de
um romance do “real”. A escolha pelo período indicado se dá devido aos impactos que
essas mudanças causaram na literatura nacional, que, a meu ver, alteraram de forma
significativa as representações do sertanejo. Buscando uma literatura que
apresentasse as questões sociais, a concepção do sertanejo foi ganhando novos
contornos, trazendo mais destaque às relações de poder e às mazelas da população.
Essas mudanças, na literatura, serão analisadas como objetivos específicos, pois
pretende-se identificar como impactaram a concepção atual de sertanejo. Para
trabalhar os períodos indicados, foram escolhidas as obras: O Sertanejo (1875), de
José de Alencar (1875), e Vidas secas, de Graciliano Ramos (1932)1.
Além disso, a escolha das obras considerou a representatividade da
“visão do momento” que cada uma delas permite analisar. O sertanejo é uma das
primeiras grandes obras a apresentar/representar/imaginar/inventar a população
sertaneja e faz parte de um conjunto que caracteriza umas das fases finais da
produção de Alencar, conhecida como regionalista – que, com forte influência do
romantismo clássico, pretendia uma última vez apresentar o país, por meio de suas
diversas regiões. Já a obra Vidas secas é produto das mudanças desse derradeiro
romantismo clássico, um romantismo que se pretendia mais próximo à realidade, o
chamado “romance de 30”.
É possível identificar que o processo de construção do sertanejo
ocorreu de diversas formas, no passar dos anos, sofrendo diversas assimilações e
ressignificações. De um sertanejo ideal ao sertanejo real. Esse caráter plural e
mutável do sertanejo sempre me proporcionou questionamentos em relação a como

1 Ressalta-se que para esta análise foram utilizadas as obras mais recentes, conforme indicadas nas
referências.
15

e ao porquê essas mudanças ocorrem; e, também, quais são os motivos que permitem
que alguns conceitos se mantenham durante muito tempo, consolidando-se no
imaginário nacional, caracterizando grupos e costumes. Esses grupos – identificados
como “ilhas-Brasil”, por Darcy Ribeiro (2015) – representam as diversas “identidades
brasileiras” e, por meio delas, assumem o papel de representantes do povo brasileiro.
Analisando o processo de invenção do sertanejo, nota-se que autores
como José de Alencar e Rodolfo Teófilo2, entre outros, não tinham uma relação
próxima com a população representada. Alencar, nasceu no Ceará, mas se mudou
para o Rio de Janeiro. Teófilo nasceu na Bahia e se mudou para o Ceará, além das
mudanças de estado, outro ponto em comum entre eles é a posição social, de modo
que é possível considerar que essas primeiras representações são fruto de autores
“de fora” sem relação direta com a população representada. Os autores, membros da
elite social e da política, partiam de uma visão privilegiada e buscavam definir essa
população (e seu espaço) em comparação a seu grupo social (e seu espaço),
dualisticamente criando conceitos, modos de ver, de escrever e de representar uma
nova categoria, um Outro e o espaço desse Outro. Dessa forma, esse processo se
aproxima de uma forma de racializar essa população, a partir da invenção de sua
totalidade, incluindo sua constituição física, sua religião, seus costumes e suas
tradições, de forma a deixar clara a distinção entre a população da capital/centro e a
população interior/periferia, de maneira similar com o que ocorreu na relação entre os
povos europeus e as populações da América recém-descoberta com a criação da raça
“indígena” como aponta o sociólogo peruano Aníbal Quijano (2014).

[...] nas relações intersubjetivas e nas práticas sociais do poder, ficou


formada, de uma parte, a ideia de que os não-europeus têm uma
estrutura biológica não somente diferente da dos europeus; mas,
sobretudo, pertencente a um tipo ou a um nível “inferior”. De outra
parte, a ideia de que as diferenças culturais estão associadas a tais
desigualdades biológicas e que não são, portanto, produto da história
das relações entre as pessoas e destas com o resto do universo.
(QUIJANO, 2014, p. 759)
A ideia de uma raça inferior corrobora com a contraposição de um
centro civilizado ao interior pitoresco e desconhecido, presente nas obras
relacionadas com a temática sertaneja.

2Teófilo nasceu em Salvador (BA) em 1853 e tem como principal obra sobre a temática sertaneja A
Fome, publicada originalmente em 1890.
16

As duas obras demonstram uma série de imagens e de relatos com


base em uma imensa gama de representações do sertão e do sertanejo: cangaceiros,
vaqueiros e retirantes, entre outros, figuras que se repetem ao longo do tempo,
referenciando-se umas às outras, sedimentando múltiplas significações – o que nos
faz entendê-las a partir do conceito de “imagem-arquivo”, utilizado pelo historiador
Joaquín Barriendos.

As imagens-arquivo podem definir-se, então, como ferramentas


semiótico-sociais de concatenação, isto é, como signos disparadores
de múltiplos imaginários subjacentes ou iconicidades
complementares; sua utilidade para o estudo das culturas visuais
globais reside no fato de que, por meio de sua análise, podemos
avançar na construção interdisciplinar de certa “arqueologia
decolonial” do que neste texto descreve-se como a colonialidade do
ver. (BARRIENDOS, 2020, p. 42)
Complementando a definição, Barriendos detalha ainda:

As imagens-arquivo são, então, imagens formadas por múltiplas


representações sedimentadas umas sobre as outras, a partir das quais
se conformam certas integridade hermenêutica e unidade icônica.
Aquelas representações que guardam algum grau de associação,
alusão ou parentesco com a imagem-arquivo de Che Guevara, para
citar um exemplo, ficariam imediatamente inscritas no grosso da
cultura visual gerada pela conhecida fotografia intitulada Guerrillero
heroico, de Korda. E ficariam, também, em dívida com uma série de
imaginários culturais, tais como o mito do rebelde latino-americano, a
ideia de uma veemência patriótico-nacionalista bolivariana, a ideia de
uma pureza e uma essência ideológico-revolucionária do Terceiro
Mundo, a ideia de uma utopia social desencadeada pela
desobediência de certos grupos subalternos, a ideia do fracasso
histórico das modernidades periféricas etc. (BARRIENDOS, 2020, p.
43)
Além do conceito de imagem-arquivo, de modo a reforçar o processo
de invenção do sertanejo, será utilizado o conceito de “comunidade imaginada” de
Benedict Anderson. O conceito defendido por Anderson apresenta a identidade
nacional como uma construção cultural que, logo, dialoga em grande medida com os
produtos culturais, entre eles, a literatura. Dessa forma, busca-se problematizar o
processo de instituição de imagens-arquivos como parte de uma invenção um tanto
homegenizadora de comunidades, identidades, populações e espaços, em certa
medida apagando a sua pluralidade; e, especificamente, lançar luz sobre como esse
processo age na construção geo-histórica da multiplicidade de significados em torno
do sertão e do sertanejo. Anderson diz que:
17

O meu ponto de partida é que tanto a nacionalidade – ou, como talvez


se prefira dizer, devido aos múltiplos significados desse termo, a
condição nacional [nationness] – quanto o nacionalismo são produtos
culturais específicos. Para bem entendê-los, temos de considerar, com
cuidado, suas origens históricas, de que maneira seus significados se
transformaram ao longo do tempo, e por que dispõem, nos dias de
hoje, de uma legitimidade emocional tão profunda. (ANDERSON,
2008, p. 30)
Apresentando o processo histórico que culminou com o auge do
nacionalismo, Anderson apontou o efeito da cultura na criação de um imaginário
social. Considerando que não é possível se ter contato com a maioria da população,
é gerada uma ideia supostamente comum do que é a nação. Ele ressalta que os
jornais e os folhetins são produtores dessa ideia, assim como as literaturas nacionais
(ANDERSON, 2008).
A criação de comunidades imaginadas sempre esteve presente na
literatura nacional. Do romantismo ao romance contemporâneo, grande parte das
obras literárias enfatizaram o local, o espaço e o seu povo como fundadores de uma
identidade. As classes dominantes pensam a nação e, possuindo mais possibilidades
de difusão de suas próprias concepções, conceitos e representações, normalmente
conseguem impor sua ideia de identidade que, no mais das vezes, não dialoga com
grande parte da população. Neste trabalho, pretende-se demonstrar que esse
processo não ocorre apenas focado no nacional, mas também na questão regional.
Sempre com o propósito de responder à questão: como a literatura nacional contribuiu
para a sedimentação do sertanejo no imaginário nacional?
Em relação ao sertão, percebe-se nas obras indicadas que os
espaços são descritos de formas distintas. Em O Sertanejo, por exemplo, a natureza
tem presença marcante na narrativa: em diversos momentos, ela é relacionada com
a descrição da personagem Arnaldo, sendo utilizada como uma forma de realçar a
característica de “homem da terra”, de um Brasil “original”. Uma descrição com
superlativos e com forte apelo de questões pessoais e ideológicas, cabendo ao autor
criar e relacionar a realidade com a sua descrição. Com o objetivo de apresentar a
natureza como parte de um ideário nacional, Alencar apresenta descrições, com
marcantes características migradas das escolas europeias:

Assomando sobre o capitel da floresta erguida no oriente como o


pórtico do deserto, o sol coroado da magnificência tropical dardejava
o olhar brilhante e majestoso pela terra, que se toucara de toda a sua
18

louçania para receber no tálamo da criação ao rei da luz. (ALENCAR,


2013, p. 72)
Já em Vidas Secas, a natureza tem uma característica opressora,
sempre em conflito com os personagens:

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas


verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados
e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam
repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três
léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos
juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.
(RAMOS, 2011, p. 9)
A opção pelo comparatismo, neste trabalho, ocorre por se tratar de
um campo que possibilita um amplo diálogo com os textos, assim como com as
questões sociais e históricas que os permeiam. De um passado com métodos e
objetivos bem definidos, a disciplina da Literatura Comparada se adequou às
mudanças da sociedade e superou esses limites, expandindo o seu campo. Mantendo
o respeito à obra, a análise comparatista possibilita ampliar as questões da teoria
literária e problematizar a sociedade na qual elas foram escritas, assim como permite
trabalhar a intertextualidade. Por isso, considera-se que a área escolhida admite a
análise do texto no tempo e no espaço, em seu processo histórico e geográfico. Essa
proposta dialoga com uma das tendências mais atuais da literatura comparada – sua
face interdisciplinar, que altera o entendimento do seu papel:

Numa perspectiva histórica que se poderia dizer que se antes a


especificidade da Literatura Comparada era assegurada por uma
restrição de campos e modos de atuação, hoje, essa mesma
especificidade é lograda pela atribuição à disciplina da possibilidade
de atuar entre várias áreas, apropriando-se de diversos métodos,
próprios aos objetos que ela coloca em relação. (CARVALHAL,1991,
p. 10)
Dessa maneira, realiza-se a análise das obras supracitadas, com o
foco nas relações entre os personagens e o espaço. Pretende-se, também, trazer as
relações com o tempo e, assim, identificar o processo de invenção dessa comunidade
imaginada, a “identidade” sertaneja e como esse processo está presente até os dias
atuais.
Outro conceito aqui utilizado como base para analisar a construção
do sertão é o Orientalismo, trabalhado por Edward Said (2007) na sua obra
Orientalismo – O Oriente como invenção do Ocidente. Said (2007) considera que a
descrição do oriente realizada por autores ocidentais vem carregada de preconceitos
19

e de um caráter exótico, no sentido de diferenciar os costumes orientais em um fator


de distinção e de desvalorização. Aqui será demonstrado que esse processo ocorre
de forma muito semelhante com o sertanejo.
Analisa-se a construção dos personagens principais, com vistas a
identificar como cada um dos autores caracterizou e representou, em cada época, o
seu específico processo de invenção de sertanejo. O comparatismo é feito com base
nos diversos aspectos dos personagens e, também, na interação destes com o
espaço.
Com o propósito de expandir o debate em relação à importância da
personagem na literatura, elenca-se, aqui, três formas de analisá-lo, no sentido de
relacionar seu papel com os diversos aspectos da obra: personagem histórico,
personagem geográfico e personagem literário. Ressalta-se que essa divisão não é
restritiva, logo, os personagens podem ser enquadrados em duas e, em alguns casos,
até nas três formas indicadas.
A utilização dos personagens como proposta de análise é um modo
de ressaltar sua importância na interação entre a obra e a realidade, pois, como
indicado por Antonio Candido (2009, p. 23):

Há numerosos romances que se iniciam com a descrição de um


ambiente ou paisagem. Como tal poderiam possivelmente constar de
uma carta, um diário, uma obra histórica. É geralmente com o surgir
de um ser humano que se declara o caráter fictício (ou não fictício) do
texto, por resultar daí a totalidade de uma situação concreta em que o
acréscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária.
É possível inferir, então, que é por meio da personagem que o autor
acrescenta o caráter fictício/não fictício e, com isso, constrói sua narrativa. Além disso,
a personagem é apresentada como um elo fundamental do autor com o leitor.
Pretende-se apresentar os personagens das obras selecionadas de
maneira ampla, dialogando com as três formas de análise indicadas, visando a
delinear os modos pelos quais contribuíram para a formação do conjunto de imagens-
arquivo do sertanejo. O objetivo é indicar semelhanças e diferenças que possibilitaram
que a invenção se tornasse referência consolidada, parte de um repertório coletivo
sobre o interior do Brasil. Também será no capítulo da análise da personagem que
serão apresentados os argumentos do processo de racialização do sertanejo e como,
por anos, a população do interior foi representada sempre em relação ao outro e não
em suas complexas relações.
20

Em um segundo momento da pesquisa, analisa-se a representação


do espaço nas obras indicadas e, com isso, aborda-se outro objetivo específico, que
consiste em identificar como a literatura contribuiu para a relação entre o sertanejo e
o seu espaço, o sertão. Considerar o espaço representado é uma forma de
complementar a análise do processo de invenção do sertanejo: pois a relação com o
meio também é uma importante forma de sintetizar uma população em um processo
recíproco, no qual a identidade gera um espaço, e o espaço dialoga com a identidade.
Em relação à representação dos espaços, analisa-se como cada autor
constrói o ambiente da narrativa e como eles problematizam a questão entre realidade
e representação, propondo responder como foram gestadas as descrições presentes
nas obras. Para analisar as representações – tendo em conta que a paisagem é a
dimensão sensível do espaço, com grande ênfase no estético e visual, sendo muitas
vezes acionada em obras literárias – serão utilizados os estudos de Michel Collot
(2013), apresentados na obra Poética e Filosofia da Paisagem, em relação à
paisagem, de modo que se possa compreender, de forma mais ampla, as motivações
e os objetivos das representações dos espaços presentes nas obras. Collot (2013)
aponta que a noção de paisagem envolve pelo menos três componentes, unidos numa
relação complexa: um local, um olhar e uma imagem.
Além de Collot, para trabalhar com o conceito de espaço e relacioná-
lo com o conceito de paisagem, utiliza-se os trabalhos de Javier Maderuelo (2005) e
de Michel de Certeau (2014) e Anne Cauquelin (2007), além de aproximar os
conceitos com a cultura, por meio dos trabalhos de Simom Schama.
Para identificar as reminiscências das obras e apresentar que o
processo de invenção permanece até os dias de hoje, após as análises da
personagem e do espaço, serão analisadas duas obras contemporâneas, o romance
Galiléia, de Ronaldo Correia e Brito (2008), e o filme Árido Movie (2006), de Lírio
Ferreira. As duas obras trazem o sertão de forma distinta do tradicional, não mais
como ponto de saída, mas sim de chegada, nesse contexto, a teoria de Ottmar Ette
(2018) traz novas possibilidades de análise.
21

2 VISÕES DO SERTÃO

Atualmente relacionado à população do interior do Nordeste, o termo


sertanejo tem origem na palavra “sertão”, que, no período colonial, era a denominação
utilizada para as regiões afastadas do mar, logo, o termo sempre teve uma relação
com o espaço. Tal significado, muito abrangente, possibilitou que diversos grupos
sociais fossem identificados como sertanejos, não se limitando aos povos da Região
Nordeste. O próprio conceito de nordeste foi construído pelo imaginário social, tendo
a literatura papel preponderante, como indica Durval Muniz de Albuquerque Júnior
(2011, p. 52):

A invenção do nordeste, a partir da reelaboração das imagens e


enunciados que construíram o antigo norte, feita por um novo discurso
regionalista, e como resultado de uma série de práticas regionalistas,
só foi possível com a crise do paradigma naturalista e dos padrões
tradicionais de sociabilidade que possibilitaram a emergência de um
novo olhar em relação ao espaço, uma nova sensibilidade social em
relação à nação, trazendo a necessidade de se pensar em questões
como a da identidade nacional, da raça nacional, do caráter nacional,
trazendo, ainda a necessidade de se pensar em cultura nacional,
capaz de incorporar os diferentes espaços do país.
Considerando a multiplicidade de significados e as referências
relacionados ao sertão, faz-se necessário indicar qual sertão está sendo analisado. O
termo já era utilizado na Europa, no século XV3, e, como indicado por Gustavo Barroso
(1952) em seu artigo Vida e história da palavra sertão, teve sua origem na palavra
“Desertão”, que indicava as terras afastadas dos centros populacionais, sertão, dessa
forma, é um derivado de um grande deserto.
No Brasil, o conceito sofreu ressignificações, passando a ser utilizado
para qualquer região despovoada (ou, melhor dizendo, pretensamente despovoada,
isto é, qualquer região que não fosse explorada comercialmente pela coroa recebia
essa alcunha). Com o processo de ocupação do território nacional e a utilização do
termo em obras de sucesso4, a região do semiárido nordestino foi, de certo modo,
consolidada como o sertão brasileiro. Cabe ressaltar que esse processo não foi
homogêneo e que o termo permaneceu utilizado para diversas regiões do Brasil. No
entanto, diversas expressões culturais (filmes, novelas, literatura, etc.) foram de

3 Presente em cartas de Pero Vaz de Caminha.


4 Principalmente os Sertões de Euclides da Cunha.
22

extrema importância para que o sertão se tornasse um termo relacionado também ao


clima. Neste capítulo, explica-se como algumas expressões culturais inventaram o
sertão que até hoje é conhecido na cultura nacional.
Assim como o sertão, sua população, por meio da alcunha do
sertanejo, foi ressignificada diversas vezes, tendo as expressões culturais um
importante papel nesse processo. Sertanejo engloba um amalgamado de diversos
tipos: certo trabalhador rural (vaqueiro), certo fora da lei (cangaceiro), certo grande
proprietário de terras (capitão-mor), certos trabalhadores expulsos pela seca
(retirantes). Inicialmente vinculado à questão territorial para identificar a população
que vivia nas terras afastadas, o conceito passou também a ter um significado mais
vinculado a raízes e origens da população. Assim, atualmente, o sertanejo parece
estar vinculado às regiões rurais de forma ampla, incluindo aquelas de agrobusiness,
um processo que é perceptível no gênero musical e que recebe o mesmo nome
(sertanejo) e até algumas modificações e adjetivos (feminejo, sertanejo universitário,
etc.). Com letras românticas, que muitas vezes remetem a um passado rural e a
roupas com referências ao vaqueiro, tal gênero musical auxilia na manutenção de uma
constante invenção da tradição do “campo”, muitas vezes para o consumo de grupos
nas “cidades”.
O sertão e o sertanejo que serão objetos de estudo neste trabalho são
aqueles vinculados à (re)invenção da tradição com base na ideia de um espaço pouco
povoado, distante, não urbano e à população desses espaços. Neste capítulo, será
discutido, por meio das expressões culturais, como ocorreu a construção do conceito
de sertão e de sertanejo entre os séculos XIX e XX, período de densa produção sobre
a temática e que contribuiu para a polissemia dos dois conceitos, permitindo que eles
possam dialogar com o conceito de imagem-arquivo.

2.1 UM ESPAÇO E A SUA CONSTANTE REPRESENTAÇÃO

A ambientação e a representação dos espaços têm destaque em


grande parte das obras com a temática sertaneja. O Sertanejo (1875), Os Sertões
(1902) e Grande Sertões Veredas (1956), entre outros, apresentam uma grande
quantidade de descrições do espaço. O espaço sempre foi fundamental na invenção
do sertanejo em um diálogo que contribuiu mutualmente, o sertão criou o sertanejo,
que deu significado ao sertão.
23

As primeiras obras literárias que utilizavam a temática Sertaneja já


apresentavam o espaço com as características do semiárido, porém se apresentava
uma distinção entre os períodos de seca e os de chuva. Em O Cabeleira (1876), de
Franklin Távora (2014), cuja trama se passa no interior de Pernambuco, é possível
encontrar a descrição do amanhecer no sertão:

O sol espargiu a luz suave sobre o sertão, e com ela despertou a


natureza. Inspirando as aves, colorindo os campos, e permitindo ver
no espelho sereno das águas do Tapacurá o belo céu que nele se
refletia com seus esplêndidos matizes, essa luz vivificadora restituiu
ao deserto o movimento e a vida que as trevas tinham ocultado
debaixo de seu espesso véu. (TÁVORA, 2014, p. 39)
Os campos coloridos no sertão estão presentes na obra de Távora,
contudo, os períodos de seca são dominantes no decorrer da obra. Também é
importante ressaltar a repetida utilização do termo deserto na obra. Na construção de
uma distinção entre a cidade, povoada, e as regiões pouco povoadas do romance, o
autor utiliza o termo de origem da palavra sertão, tratando cidade e regiões como
sinônimos:

Estava em pleno deserto. Do lado direito protegiam-no estendidos


tabocais e profundas gargantas de serra inacessíveis, sem uma
habitação, sem viva alma; do outro lado do rio um espinhal basto,
alguns serrotes escalvados, catingas sem fim, brejos combustos do
calor do sol completavam o largo amparo que lhe abria em seu seio a
natureza. Com a seca abrasadora essa região, que nunca fora amena,
ainda na força do verde, estava inóspita, árida, cruel. Via-se a espaços
um pé de xiquexique perdido nos alvos tabuleiros, ou entre serros
alcantilados, e junto do rio uma ingazeira com a folhagem coberta de
samambaia, um juazeiro solitário e sem fruto. (TÁVORA, 2014, p. 61)
A ausência de habitações e as árvores sem fruto são características
que se confundem na utilização dos termos sertão e deserto, entretanto, ao que
parece, em obras posteriores sobre a temática, a utilização de “deserto” foi
desaparecendo. Pode-se identificar as mudanças que o espaço do sertanejo já
apresentava na obra A Fome (1890), de Rodolfo Teófilo (2011). Nessa obra
naturalista, o espaço do sertanejo é opressivo devido à seca e pouco se fala dos
períodos de chuva, que parecem distantes. A seca, aqui, assume as principais
características que vão permanecer na literatura: o seu aspecto opressor, uma figura
que parece perseguir as personagens.

Desprezado o primeiro bebedouro, procuro outros, e assim numa luta


sem tréguas com a seca, sempre vencido, assistia o aniquilamento de
24

seus rebanhos. Já não era somente a sede que os matava, era agora
também a fome e a peste! (TEÓFILO, 2011, p. 22)
As obras de Távola e de Teófilo deram início ao que ficou conhecido
como a literatura da seca, destacando o período de ausência de chuvas da Região
Nordeste (que de fato ainda não era conhecida por essa alcunha). Esse destaque ao
período da seca foi motivado pela seca que ocorreu entre 1877 e 1879, com grande
cobertura pelos jornais5 no Brasil.
Uma reportagem, aliás, virou um dos mais importantes romances da
literatura brasileira e contribuiu para consolidar a relação seca, sertão e Nordeste. Os
Sertões, de Euclides da Cunha, foi uma das principais obras que trouxe o sertão para
a discussão nacional. Euclides da Cunha, que trabalhou, como correspondente do
jornal O Estado de São Paulo, na cobertura da Guerra de Canudos, que ocorreu nos
anos 1856-1857, descreveu a paisagem da seca com detalhes (a sua obra contém
uma seção específica sobre o espaço), bem como sua relação com o sertanejo, de
uma forma jornalística. Essa característica contribuiu para que a obra se tornasse uma
referência em relação ao sertão, à seca e ao Nordeste. A ênfase na seca e na pobreza
do espaço indicava uma visão “negativa”: “Despontam vivendas pobres; algumas
desertas pela retirada dos vaqueiros que a seca espavoriu; em ruínas, outras,
agravando todas no aspecto paupérrimo o traço melancólico das paisagens” (CUNHA,
2019, p. 8).
Logo após a publicação de Os Sertões (1902), uma série de obras
seguiram utilizando a seca como sinônimo de sertão, fortalecendo a imagem realçada
por Cunha (2019), na qual a paisagem da seca é a causa das dificuldades. Isso
também ocorre em Luzia-Homem, de Domingos Olímpio, publicada em 1903, em que
o espaço do sertão expulsa a família de Luzia, que se vê obrigada a ir para a cidade
grande, em busca de sua sobrevivência. A obra, cuja trama se passa em parte no
sertão e em parte na cidade de Sobral, no estado do Ceará, reforça a opressão
causada pela paisagem de seca:

O sertão ressequido estava quase deserto: campos sem gados,


povoações abandonadas. E a constante, a implacável ventania,
varrendo o céu e a terra, entrava silvando e rugindo, as casas vazias,

5 Além do trabalho de Euclides da Cunha, também é possível citar matérias anteriores que contribuíram
para o destaque nacional da temática, como as matérias de José do Patrocínio na Gazeta de Notícias
do Rio de Janeiro em 1878, além da fotorreportagem publicada por Rafael Bordalo Pinheiro na revista
O Besouro também em 1878.
25

como fera raivosa, faminta, buscando e rebuscando a presa, e


fazendo, com pavoroso ruído, baterem as portas de encontro aos
portais, num lamentoso tom de abandono. As pastagens de reserva,
nos pés de serras, protegidas por espessa facha de catingas
impenetráveis, onde se criavam famosos barbatões bravios, haviam
sido devoradas ou estruídas e pesteadas pela acumulação de
rebanhos em retiradas numerosas. E, à grande distância, sentia-se o
fedor dos campos inficionados por milhares de corpos de reses em
decomposição. (OLIMPIO, 1993, p. 15)
Outro importante romance que traz a temática sertaneja é a principal
obra de Guimarães Rosa, Grande sertão: Veredas, de 1952. Mesmo descrevendo o
sertão em detalhes e também utilizando a seca como motivadora, o sertão, na obra,
tem um aspecto mais amplo, que ultrapassa a ambientação física e dialoga com as
questões culturais:

O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado
sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo,
terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do
Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar
sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode
torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde
criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O
Urucúia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo
dá — fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render,
as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de
grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta.
Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o
senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em
toda a parte. (ROSA, 2019, p. 11)
Esse movimento de representar a Região Nordeste por meio da
paisagem da seca possibilitou o “sequestro do sertão pelo Nordeste” como indicado
por Albuquerque Júnior (2019) em seu artigo O Rapto do Sertão. Esse processo
ocorreu, pois as características utilizadas para se definir o sertão foram identificadas
na Região Nordeste por meio dos jornais e da literatura: aos olhos de quem descrevia,
uma região pouco habitada, com pouca agricultura, seca, bem semelhante ao deserto
que originou a palavra – características muitas vezes, até hoje em dia, ainda
agrupadas para se referir, homogeneamente, a uma região tão diversa quanto à do
Nordeste.
Um exemplo que se pode identificar com esse movimento de
homogeneizar o papel do sertão e está fortemente presente na cultura brasileira é
perceptível quando se analisam obras que se passam no Nordeste/sertão. A natureza
no sertão tem suas fases floridas e de transição, constantemente apagadas,
26

permanecendo um local de cor única e de difícil sobrevivência, onde não existia a


possibilidade de fixação, desse modo, a representação majoritária da seca tornou o
sertão um espaço inóspito para o ser humano, assim como a seca e o sertão ficaram
imbricados com o conceito de Nordeste.

2.2 O SERTANEJO COMO REPRESENTAÇÃO

Como citado anteriormente, o termo sertanejo engloba uma grande


quantidade de características e significados. No entanto, é possível indicar duas
majoritárias na cultura nacional contemporânea: o gênero musical e a população que
habita o interior do Nordeste.
O gênero musical nasceu nas áreas rurais como forma de narrar a
rotina do campo, e, com o crescimento das cidades, foi se modificando e, a partir das
décadas de 1970 e 1980, assumiu uma característica mais voltada para as relações
amorosas (TERRA, 2007). Foi a partir dos anos de 1980 que a música expandiu, saiu
do regional para o reconhecimento nacional. No início dos anos 2000, o sertanejo
assumiu características pop, com a inserção de instrumentos eletrônicos e se tornou
o gênero musical de maior sucesso no Brasil.
Por outro lado, o sertanejo foi “capturado” pelo Nordeste, pois antes
um conceito que era utilizado para definir os habitantes afastados do litoral se tornou
sinônimo de nordestino. Sendo assim, as representações dos personagens sertanejos
formaram um imaginário que definiu como os habitantes dessas regiões seriam
identificados. O cangaceiro, o vaqueiro, o capitão-mor, o beato, a mulher-macho e o
retirante, entre outros tipos, formaram a imagem-arquivo da população sertaneja. Para
Durval Albuquerque Júnior (2019, p. 33):

Ser sertanejo foi se tornando, ao longo do século XX, sinônimo de ser


nordestino e de viver o drama das secas periódicas. Mesmo as elites
desse espaço, que estão longe de ser afetadas da mesma forma que
os mais pobres pelas estiagens, se assumem como sertanejas.
Um dos principais tipos representados, o cangaceiro, tem como uma
das suas características a dualidade entre o bem e o mal. As suas ações (assaltos e
mortes) seriam justificadas pela aridez do meio, causada em grande medida pelo
abandono do estado, o que indica uma reação às injustiças, de modo que existe uma
“essência” boa, que foi modificada pela necessidade de sobrevivência e de
enfrentamento dos desmandos das elites locais. Isso é apresentado na obra O
27

Cabeleira (2014), em que a personagem principal, José Gomes, um menino de bom


coração, é corrompido e assume a alcunha de Cabeleira, tornando-se um violento
criminoso. Essa “justa” resistência e o seu arrependimento, ao final da vida, atribuiu à
personagem um caminho de redenção que enfatiza a pureza da sua origem e de seu
povo, que seria alterada pelo meio: a violência exercida se deve a questões externas.
Essa essência foi constituída em diversas obras e personagens, que
mantinham essa bondade como característica, em sua maioria com a dualidade
bondade/justiça. Em A Fome (2011), a personagem Manuel de Freitas mantinha o seu
caráter de ternura perante os filhos e a família, porém, foi realçada a sua força bruta
como outra característica que ficaria marcada na imagem do sertanejo. Era a essência
mantida, com a força bruta que valorizava o corpo que resistia às dificuldades do
sertão.

A musculatura estava reduzida, mesmo assim ninguém duvidava que


os braços daquele homem pudessem suster um touro pelos cornos. A
caixa torácica bastante larga e bem conformada guardava os órgãos
mais importantes da vida sãos e vigorosos. Naquelas formas não
havia um traço que não denotasse virilidade. (TEÓFILO, 2011, p. 17)
Na mesma obra, nota-se que os impactos causados pela seca, que
obrigou a população do interior a se deslocar para o litoral (capital), constituiu um novo
tipo sertanejo, o retirante. Manuel de Freitas era dono de terras, com grande
quantidade de gado, e com a seca vendeu seus bens e foi em busca de sobreviver
em Fortaleza. O retirante teve grande destaque nacional com as recorrentes secas no
Nordeste e os impactos causados nas cidades em que chegavam, contudo, os
desafios enfrentados na travessia pelo semiárido foram o que mais se vincularam às
suas características.
Os retirantes foram representados inúmeras vezes e de diversas
formas nas expressões culturais. Dos anos iniciais da literatura do Norte, além dos
personagens de Rodolfo Teófilo, uma obra que trouxe os retirantes como destaque foi
Luzia-Homem (1903). Nesse romance, Luzia se vê forçada a sair do sertão em direção
à cidade grande, buscando emprego e melhores condições para a sua família. Com
passagens bem semelhantes às de A Fome (2011), a família da personagem-título
enfrenta dificuldades causadas pela seca no percurso em direção à cidade. O
diferencial da obra, que contribui para ampliar a imagem-arquivo do sertanejo, é a
construção da personagem principal. Luzia-Homem, como era conhecida, é
constituída como uma mulher com força de homem, que trabalhava de modo
28

incansável. Essa comparação, presente até no título da obra, apresenta como a


masculinidade, aqui trazida como a força física e um comportamento rude, é
característica do homem sertanejo e não é exclusiva dos homens, também estando
presente na mulher sertaneja.
O vínculo com a religião e a tendência ao messianismo é outra
característica que ficou marcada na população sertaneja. Esse vínculo é tema de uma
das obras mais marcantes da literatura nacional. Os Sertões (1902) trouxe Antônio
Conselheiro, o líder da comunidade de Canudos, para o debate nacional. Líder da
comunidade, ele foi representado por Euclides da Cunha como um monstro que
dominou seu povo. Para Cunha, essa dominação só foi possível pela baixa
capacidade intelectual da população sertaneja, causada em parte pelo meio em que
ela vive. De tendência determinista, Cunha foi um dos principais responsáveis para a
formação do sertanejo no imaginário nacional.
Uma das mais repetidas frases, quando se pensa na população do
Nordeste, está em Os Sertões: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte” (CUNHA, 2019,
p. 51), essa frase foi reproduzida à exaustão com o objetivo de exaltar a sua força,
entretanto, quando se analisa melhor, pode-se identificar que Cunha quis reduzir a
população à sua força em detrimento de outras características. Quando ele utiliza a
expressão Hércules-Quasímodo como definição dos habitantes de Canudos, percebe-
se a valorização do aspecto físico em detrimento das questões intelectuais e como a
visão de Cunha era negativa, ressaltada pela descrição física: “O andar sem firmeza,
sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros
desarticulados” (CUNHA, 2019, p. 51). De modo que a imagem que se destacou do
sertanejo foi depreciativa, resumindo-o a um incauto, manipulado pela religião, mas
que, por sobreviver às dificuldades do sertão, deveria ter sua força reconhecida.
Para concluir essa breve retomada das características do sertanejo
em vários momentos da literatura nacional, é fundamental situar uma das mais
importantes de suas obras: Grandes Sertões: Veredas, de Guimarães Rosa. Sempre
lembrada como representativa do sertão nordestino, sua trama se passa em Minas
Gerais. Mesmo assim, nela existem aspectos da imagem-arquivo do sertanejo,
semelhantes aos de obras aqui citadas anteriormente. A força, a proximidade com a
religião e os jagunços/cangaceiros, por exemplo, estão interligados pelo sertão. Por
meio dessas representações, foram estabelecidas características do pensamento do
29

sertanejo, da geografia do espaço onde vive, da história e das tradições do povo


sertanejo. Tais representações, portanto, contribuem para a definição do que se pensa
ser o sertanejo do Brasil, uma construção vinculada à alteridade e à relação deste do
interior de pequenas localidades com os grandes centros urbanos.
Não é o objetivo aqui apresentar a totalidade dos tipos e das
características vinculadas ao sertanejo, mas apresentar exemplos da pluralidade
existente na literatura e como esses personagens são vistos na contemporaneidade.
Esses tipos e essas características também estão presentes em quase todas as
expressões culturais (artes plásticas e cinema, entre outras) e períodos históricos,
indicando que esse processo é cultural e histórico.

2.3 O CORPUS ANALÍTICO E SUA CRÍTICA RECENTE

Considerada um clássico do Romantismo brasileiro, a obra de José


de Alencar contém todos os aspectos característicos que o movimento preconiza: o
amor impossível, as descrições superlativas do ambiente e a grande carga moral da
obra. Seu personagem principal, Arnaldo, é um sertanejo amalgamado com a
natureza, íntegro e devoto aos seus princípios. Seus conflitos são por justiça e pela
paixão que sente por Flor, filha do capitão-mor. Considerada uma literatura “de
gabinete”, por ter sido elaborada distante do espaço representado, a obra tem
influências de autores europeus e possibilita um importante debate em relação à
representação, pois o autor pouco conhecia a região descrita na obra.
Em Graciliano Ramos, já existe um esforço de se afastar do romântico
clássico, buscando o caminho do realismo, mais preocupado com a representação de
uma suposta realidade. Ele apresenta Fabiano, vaqueiro que foge da seca, mudando
de região e de fazenda conforme o ciclo da seca. A obra apresenta uma dicotomia
entre homem e animal, o sertanejo de Graciliano Ramos tem um “eu” interior que
dialoga com a sua realidade e permite que se conheça mais sobre as aspirações da
personagem.
As obras são distintas em relação ao seu impacto na academia. Vidas
Secas (RAMOS, 2011) tem uma grande quantidade de estudos nas mais diversas
áreas, já O Sertanejo (ALENCAR, 2013) é uma das obras menos estudadas da
expressiva produção de José de Alencar. Será apresentado um breve levantamento
30

das produções acadêmicas que analisaram as duas obras na última década,


pretende-se com isso indicar que as obras continuam relevantes no contexto atual.
A obra Vidas Secas (RAMOS, 2011) é, em grande medida, vinculada
às questões sociais de denúncia dos flagelos do Nordeste, essa visão foi consolidada
por grande parte dos críticos literários, de Candido a Afrânio Coutinho. Com base nos
escritos de Candido, Adriana Furtuoso da Silva (2021) elaborou sua dissertação de
mestrado com o título: As formas do mando: conformismo e decadência em Graciliano
Ramos. Nela, a pesquisadora propõe uma análise das formas de mando que estão
presentes na obra. Utilizando uma análise comparativa com a obra São Bernardo
(1934), também de Graciliano Ramos, a autora analisa como as personagens se
relacionam com a autoridade, o poder e a soberania nas relações sociais nas duas
obras estudadas.
Com base teórica semelhante, Patrícia Aparecida Gonçalves de Faria
(2019), em sua tese de doutorado, com o título Viagens entre silêncios e conversas:
denúncia e resistência em Vidas secas e Conversazione in Sicilia, destaca a questão
das viagens presentes na obra. E como elas, relacionadas ao silêncio das
personagens, a autora busca levantar questões como denúncia e resistência.
Comparando a obra com Conversazione in Sicilia (1941), de Elio Vittorini, em uma
análise das convergências e divergências, ela identifica como as questões dos
deslocamentos/viagens são apresentadas e levanta a proposta do deslocamento
enquanto resistência.
Utilizando conceitos da Filosofia e da História, o pesquisador Jair
Pereira de Oliveira (2020), em sua tese de dissertação, intitulada A subjetivação
altermnemônica como constituição da memória: uma leitura de Vidas secas e La
Muerte de Artemio Cruz, propõe analisar Vidas Secas com o enfoque na subjetivação
altermnemônica, buscando identificar o processo de subjetivação na América Latina.
Para isso, o autor compara a obra de Ramos com a obra La muerte de Artemio Cruz
(1962), do autor mexicano Carlos Fuentes. Com amplo referencial teórico que se
utiliza de Le Goff, Lacan e Deleuze, o estudo comprova as inúmeras possibilidades
de análise da obra de Ramos. Também na área da Filosofia, Camila Pacheco Gomes
(2020), em sua dissertação de Mestrado, intitulada A Alteridade Em “Carne e Osso”:
Uma Perspectiva Levinasiana de Vidas Secas, se utiliza do pensamento do filósofo
francês Emmanuel Levinas para analisar a alteridade em Vidas Secas. Criticando o
31

racionalismo cartesiano, o autor aprofunda as noções de subjetividade radical na


análise das personagens da obra em sua condição “demasiadamente humana”.
Dois interessantes trabalhos se utilizam de Vidas Secas para analisar
a recepção da obra e a sua utilização como letramento literário. Wemerson Damasio
(2019) em sua dissertação Vidas secas: uma proposta de leitura e de letramento
literário para alunos do ensino fundamental, e Reginaldo Inocenti (2019), em tese,
intitulada Vidas secas: a interpretação não basta, se utilizam desse conceito em suas
pesquisas com recortes diferentes. Inocenti analisou a utilização de Vidas Secas e a
abordagem teórico-metodológica de duas professoras na Educação Básica, buscando
aportes teóricos ao letramento literário e à importância da obra de Ramos nesse
processo. Damasio, por sua vez, fez um recorte mais específico, os anos finais do
ensino fundamental, e classificou o letramento como uma possibilidade de “[...]
emancipação do leitor em construir seus próprios sentidos” (DAMASIO, 2019, p. 9).
Em relação aos estudos realizados com base na obra O Sertanejo
(ALENCAR, 2013), pode-se citar a comparação entre ela e a obra O Gaúcho (1870),
também de autoria de Alencar, realizada na dissertação O mito do herói nas obras O
Gaúcho e O Sertanejo de José de Alencar, de Gabriele Freixeiras de Freitas (2015).
Com base na leitura de que tanto o Gaúcho quanto o sertanejo se enquadram como
heróis, o autor busca identificar a questão da identidade nacional. Já o trabalho de
Mônica Cristina Nascimento Nunes (2014), em sua dissertação intitulada O sertão
romântico: Leitura de O Sertanejo, de Alencar, e de Inocência, de Taunay, compara
O Sertanejo com Inocência, de Taunay, buscando adicionar questões da
representação do feminino. Na dissertação de Geisa Muller (2014), intitulada O
romanesco como estrutura basilar do construto literário de José de Alencar, observa-
se uma análise que propõe que a obra de Alencar seja analisada sob o prisma da
“duplicidade estrutural”, o que a autora identifica como uma mistura de ficção trágica
com ficção cômica: a proposta é identificar o papel da ironia nos escritos de Alencar.
Logo, nesse pequeno recorte apresentado, fica claro que as obras
aqui discutidas mantêm a sua importância na academia e são analisadas em diversos
aspectos e teorias.
Além da academia, nota-se que a relevância e a permanência de O
Sertanejo e Vidas Secas podem ser identificadas, entre outros fatores, pela
quantidade de edições e de reimpressões das obras durante os anos. Em rápida
32

busca pelos acervos de lojas on-line e sites compiladores de obras literárias, foi
possível identificar ao menos 13 edições da obra de José de Alencar e 15 edições da
obra de Graciliano Ramos. Considerando que esses números sejam apenas das
obras com algum registro na internet, a quantidade de edições provavelmente deve
ser bem maior. A última edição de Vidas Secas foi publicada em 2019, e a última de
O Sertanejo, em 2013. A relevância também pode ser destacada pelo fato de que as
duas obras são constantemente inseridas como leituras obrigatórias em vestibulares
pelo Brasil.
Após apresentar as principais construções do sertão na literatura e
como a análise da temática permanece relevante nos estudos acadêmicos, parte-se
para a análise das personagens sertanejas e como a categoria “sertanejo” assumiu
novos significados e como eles dialogam com as personagens das obras aqui
trabalhadas.
33

3 O PAPEL DA PERSONAGEM

No processo de elaboração de uma obra literária, a composição de


suas personagens é fundamental para o desenvolvimento da narrativa. É por meio da
personagem que o narrador expõe seus valores e constrói uma relação com o leitor e
com outros elementos da narrativa. Analisar o processo de composição delas é uma
forma de identificar como a personagem dialoga com os meios de interação entre a
realidade (leitor) e o seu papel na obra. A personagem torna a interação e os meios
de identificação possíveis, pois “[...] o homem, afinal, só pelo homem se interessa e
só com ele pode identificar-se realmente” (CANDIDO, 2009, p. 28).
Exemplos dessas interações, entre a realidade e a obra, são os
vínculos entre as personagens e o espaço em que se passa a narrativa. Uma
personagem que tem as suas características relacionadas com o seu espaço, muitas
vezes, se confunde com o próprio espaço, tornando-se um representante e um
baluarte desse espaço. Quando interage com outros aspectos, a personagem assume
papéis diferentes, podendo realçar características sociais, assim como ocultar
comportamentos. Dessa forma, a personagem pode ser interpretada e analisada por
diversos enfoques. Em seu clássico estudo em relação à personagem do romance,
Candido indica os elementos centrais do enredo, relacionando-os com a importância
da personagem:

[...] os três elementos centrais dum desenvolvimento novelístico (o


enredo e a personagem, que representam a sua matéria; as “ideias”,
que representam o seu significado – e que são no conjunto elaborados
pela técnica), estes três elementos só existem intimamente ligados,
inseparáveis, nos romances bem realizados. No meio deles, avulta a
personagem, que representa a possibilidade de adesão afetiva e
intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção,
transferência etc. A personagem vive o enredo e as ideias, e os torna
vivos. (CANDIDO, 2009, p. 54)
Pode-se inferir que os mecanismos relacionados com as personagens
têm papel direto na construção da narrativa e, logo, analisá-los e identificá-los pode
trazer uma visão mais ampla de como a personagem se relaciona com o imaginário
social. Esse processo permite que se possa considerar que a personagem é um
modelo (imaginário/mental) constituído por meio de uma construção verbal, por meio
do discurso do narrador (VIEIRA, 2016, p. 124).
34

O sertanejo, como apresentado no capítulo anterior, é um bom


exemplo de imaginário inventado por meio do discurso literário/cultural calcado nas
diversas representações encontradas na literatura. O imaginário sertanejo e seu
estereótipo de povo sofrido e afastado dos centros, com forte relação com a terra, com
a cultura e as práticas características (distinguindo a população do país entre o interior
e a capital/litoral), não ficou relegado a um passado distante, estando presente na
cultura brasileira até os dias de hoje.
Para analisar o processo de invenção do sertanejo e a permanência
de suas características gestadas no início do século XIX, analisa-se as personagens
principais de O Sertanejo, Arnaldo, e de Vidas Secas, Fabiano, tendo o conceito de
imagem-arquivo como norteador das análises.
Abordado pelo historiador mexicano Joaquín Barriendos, o conceito
foi utilizado na análise das representações dos indígenas do “Novo Mundo”, ao longo
dos anos, mais precisamente aquelas que reduzem a heterogeneidade dos povos
ameríndios à prática do canibalismo – trata-se de um conjunto de “estereótipos
visuais” que, mesmo constituído no período colonial, ainda persiste nos dias de hoje.
Barriendos apresenta a famosa imagem Che Guevara, Guerrillero
Heroico, feita por Alberto Korda, como um exemplo de imagem-arquivo. Os processos
de apropriação e de reapropriação dessa imagem demonstram que a ela se
relacionam diferentes significados sedimentados uns sobre os outros ao longo do
tempo: o mito do rebelde latino-americano, o patriota nacionalista bolivariano, uma
pureza e uma essência ideológico-revolucionária do Terceiro Mundo uma utopia social
desencadeada pela desobediência de certos grupos subalternos, entre outras. Além
disso, a fotografia de Korda atualmente estampa camisetas e toda sorte de produtos
que não necessariamente evocam a Revolução Cubana ou os feitos revolucionários
da personagem histórica que, por sua vez, também é personagem de romances e
filmes, por exemplo. É essa condição, profundamente hermenêutica e sintetizadora,
de imagens/significados produzidos em diferentes contextos geo-históricos – e que,
diga-se, poderia se relacionar a imagens de outras personagens, como Simón Bolívar
e Frida Kahlo, por exemplo, o cerne da instituição da condição de “arquivo” levantada
pelo autor. A ideia de imagem-arquivo, desse modo, permite entender o processo geo-
histórico de produção de múltiplas representações e imagens em circulação, como
elas vão se moldando e se consolidando conforme são “abastecidas” por novas e
35

incessantes representações. Analisar essa construção permite identificar os objetivos


das representações e os motivos das mudanças de sentido e de composição dessas
imagens. Aprofundando-se nos olhares de quem produziu essas imagens, pode-se
identificar as mudanças da sociedade e os impactos dessas produções na cultura.
Se Barriendos utiliza as representações visuais para apresentar a
ideia de imagem-arquivo e apresentar suas proposições, aqui, esta será utilizada de
forma análoga às representações literárias – que, assim como as imagéticas, têm um
papel importante na construção dos imaginários.
Aprofundando-se no sertanejo como imagem-arquivo, é possível dizer
que o cangaceiro justiceiro, o vaqueiro honrado do interior, o povo forte e resistente
às dificuldades, entre outras representações, são as que mais se repetem e dialogam
entre si ao longo do tempo. Considerando o longo processo de representação e sua
característica sintetizadora, pretende-se problematizar a criação da categoria
sertanejo, propondo que ela foi inventada de modo a distinguir um conjunto de
pessoas que não se enquadram desde um pensamento eurocêntrico, que concebe a
sociedade europeia como o ápice cultural e civilizacional. Em certa medida, o
sertanejo se apresenta como a personagem-síntese de uma população em que pesam
a localização geográfica, bem como a relação com um mundo natural e não urbano a
que seu comportamento está sob certa sujeição e com certa mestiçagem na sua
invenção.
Neste capítulo, então, apresenta-se a construção das personagens,
detalhando suas características, apontando possíveis leituras e identificando como
contribuíram para a construção do sertanejo. Posteriormente, analisa-se o papel das
personagens na obra por meio de três formas de análise: histórica, literária e
geográfica.
A forma de análise histórica, aqui denominada de personagem
histórico, consiste em identificar e problematizar os personagens que têm relação
direta ou indireta com pessoas ou grupos de pessoas no tempo e, especificamente,
com aqueles eventos de um passado que por quaisquer motivos são considerados
relevantes – os “eventos históricos” possuem “personagens históricos” que com estes
têm uma relação factual, uma relação, obviamente, com a historiografia. Na
personagem histórica também se vê o processo de construção/revisão existente na
produção histórica, como definido por Lucien Febvre (1942), que indicou que a
36

“história era filha de seu tempo” – e, por isso, é influenciada pelo presente e
reinventada diversas vezes. A personagem histórica sempre terá uma função de
ampliar ou de silenciar vozes, devido a seu caráter revisionista. Tal processo ocorre
praticamente em toda e qualquer obra em que esse tipo de personagem seja
representado, não sendo possível considerá-la uma descrição da “pessoa real”, que
viveu os “eventos verdadeiros”.
Na análise literária, por sua vez, a personagem é definida como
aquela que, mesmo tendo relação com pessoas do mundo real, existem na obra e
pela obra. Considera-se que os principais estudos em relação ao papel da
personagem na literatura estão baseados nas análises realizadas por Antonio
Candido (2009) e Beth Brait (1985). Em seu estudo sobre a personagem de ficção,
Candido propõe uma classificação em que destaca sua caracterização e seu
desenvolvimento na obra. Já a classificação de Brait utiliza a função. Sendo assim,
ambos defendem que a personagem literária depende da obra ficcional para se
reconhecer, o que demonstra que essa forma de caracterizar a personagem indica um
caráter essencialmente fictício.
Por fim, a personagem geográfica se articula entre a sua constituição
e a do seu espaço (assim como nas paisagens), indicando uma contribuição mútua
na representação desses elementos nas obras literárias, cinematográficas, gráficas,
etc. A personagem geográfica é entendida como um operador analítico que pode ser
utilizado para analisar o espaço em suas diversas formas. Leo Name (2013), em seu
livro Geografia pop: o cinema e o outro, num contexto de análise de obras
cinematográficas, mas não se limitando a elas, definiu que King Kong, Indiana Jones,
Robinson Crusoé, Frodo e até mesmo Osama Bin Laden são personagens
geográficas por, de certa forma, cumprirem certa função metonímica com relação a
certos ambientes. Ele as caracteriza como aquelas

[...] que possuem associação direta e inseparável com determinado(s)


espaço(s) e determinadas práticas no(s) mesmo(s). Tais personagens
são emblemas de determinadas representações que estruturam e são
estruturadas pela vivência cotidiana, ligando-se a práticas de poder e
hierarquização ou, no mínimo, de diferenciação e classificação de
espaços e de Outros. O personagem geográfico é, em si mesmo, uma
forma de representação espacial, pois a ele se associa um ou mais
espaços cuja singularidade se revela a partir de sua constante relação
com o(s) mesmo(s). (NAME, 2013, p. 78)
37

Logo, a personagem que assume um papel de representante do seu


espaço, aquele que, caso seja deslocado de seu espaço, perde as suas
características é considerado uma personagem geográfica. A análise dessa
personagem, com um olhar voltado para a sua relação com o espaço, traz diversas
possibilidades para um diálogo interdisciplinar. Analisar as personagens pelos
enfoques literários, geográficos e históricos permite expandir as possibilidades de
interpretação do papel dessas personagens nas suas respectivas obras, assim como
na cultural nacional.

3.1 O SERTANEJO NO ROMANTISMO: A CONSTRUÇÃO DE UM HERÓI POSSÍVEL

Mesmo com a existência de obras literárias antes do século XIX, foi


com o advento do Romantismo, na pós-independência, que a elite brasileira iniciou
um processo de busca por uma literatura própria, distanciada das tradições europeias,
visando a valorizar “a nova nação” por meio de uma literatura própria. Buscando essa
produção “tipicamente brasileira”, foi necessário fortalecer a ideia de uma nova nação,
e, nesse processo, a literatura tornou-se um meio imprescindível para gerar e
transmitir os ideais da sociedade livre dos mandos do rei de Portugal. Dentro desse
contexto, apresentar algumas especificidades regionais foi uma tentativa de dar luz
ao “verdadeiro” povo brasileiro. Após a tentativa de vincular a origem do povo
brasileiro por meio do indígena, os tipos regionais se apresentaram como o Brasil
profundo, um país escondido que precisava ser explorado. Nessa busca, um grupo
social teve um importante papel nesse processo de representações culturais
regionalistas: o sertanejo.
O marco inicial para o debate acerca da representação do sertanejo
foi por meio dos escritos de José de Alencar, em sua obra O Sertanejo (1875).
Considerada uma obra do final do romantismo, representava uma última tentativa de
alcançar o objetivo de gerar um sentimento de nação, uma premissa que estava
presente em diversos autores do movimento.
Um dos autores mais profícuos do romantismo, Alencar iniciou a sua
construção do herói nacional por meio do indígena fundador e percorreu um longo
caminho até chegar a sua fase regionalista. Alencar apresentou uma visão idílica do
sertão e uma relação muito próxima entre o espaço e seus habitantes. Essa proposta
contribuiu para que o sertanejo fosse vinculado ao seu meio, enfatizando a relação de
38

origem e os elementos nacionais, gerando uma dependência entre o ambiente e o


povo que nele habita.
Assim como as obras com temática indígena, escritas por Alencar –
O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874) –, as representações das
comunidades regionais tinham como principal objetivo apresentar o “verdadeiro povo
brasileiro”, cujas características seriam exaltadas em seu modo de vida, buscando
valorizar a sua relação com a natureza e o seu caráter moral, além de construir um
povo que possa contribuir para a consolidação da “nova nação”.
Esse movimento regionalista de Alencar, que também está presente
em suas obras O Gaúcho (1870), O tronco do ipê (1871) e Til (1871), além das
questões já indicadas, tem característica de se voltar para o passado, um escape do
presente, como indica Afrânio Coutinho (2001, p. 234):

O regionalismo é uma forma de escape do presente para o passado


um passado idealizado pelo sentimento e artificializado pela
transposição de um desejo de compensação e representação por
assim dizer onírico. Essa modalidade de regionalismo incorre numa
contradição ao supervalorizar o pitoresco e a cor local do tipo, ao
mesmo tempo que procura encobri-lo, atribuindo qualidades,
sentimentos, valores que não lhe pertencem, mas à cultura que se lhe
sobrepõe.
Essa característica fortemente presente no romantismo trouxe para o
regionalismo de Alencar uma acentuada característica da tradição dominante –
portanto, um regionalismo com marcas europeias que é presente na obra O Sertanejo.
É nesse contexto que se apresenta a personagem principal da obra, Arnaldo. Vaqueiro
simples, nascido no Ceará, que prova ser honrado e corajoso sem as influências da
cidade grande. Com formas e trejeitos heroicos, com claras semelhanças com os
heróis dos romances medievais, ele se apresenta como uma releitura dos
personagens românticos europeus.
Arnaldo trabalha na fazenda do capitão-mor Gonçalo Campelo e
mantém uma relação de devoção com a filha do patrão, Dona Flor. Entre as atividades
da fazenda, Arnaldo protege Dona Flor e o capitão-mor das ameaças de outros
fazendeiros da região, que buscam terras e poder.
Considera-se que Arnaldo seja uma representação do herói brasileiro,
pois é possível identificar diversas relações com o conceito tradicional da palavra.
António Moniz define no dicionário E-Dicionário de Termos Literários o herói como um
personagem marcado por uma ambiguidade:
39

[...] por um lado, representa a condição humana, na sua complexidade


psicológica, social e ética; por outro, transcende a mesma condição,
na medida em que representa facetas e virtudes que o homem comum
não consegue mas gostaria de atingir. (MONIZ, 2009)
Arnaldo realiza diversas ações que demonstram uma habilidade
sobre-humana: de andar sem ser notado pela mata na chegada no capitão-mor às
terras de Quixeramobim (ALENCAR, 2013, p. 10-20), a força para domar um touro
selvagem, no capítulo intitulado O Dourado (ALENCAR, 2013, p. 77-80), a
personagem segue as tradicionais características do herói.
À semelhança com os heróis medievais, como indicado por Peloggio
e Siqueira (2015), podem ser encontrados no amor não declarado entre a donzela e
o seu vassalo os artifícios do amor impossível devido ao distanciamento social, a
paixão que só diz respeito a si mesma, a vigilância familiar e a luta entre o bem e o
mal. Também pode-se identificar que a construção de Arnaldo não tem apenas
relações com o conceito de herói medieval, mas também dos heróis clássicos:

[...] o grande modelo, não há dúvidas, está em Homero: a dualidade


humano/divino em que baseia a caracterização de Aquiles e de
Ulisses, já de saída lhes confere aquela aura de soberba
superioridade, perfeição que será o escopo dos heróis futuros, quando
menos porque é o sonho do Homem de sempre. (MONGELLI, 1986,
p. 18)
Com aspectos das narrativas clássicas, as medievais e as
características locais, o herói de O Sertanejo é algo novo, um herói nacional que
atende aos objetivos de valorizar a nação e o “povo” brasileiro. O que condiz com o
retorno ao passado, proposto para o herói romântico:

O herói romântico, por um lado, encontra no romance histórico a


moldura idealizada para representar, com função pedagógica, o novo
modelo, de acordo com o mítico regresso à “idade de ouro” medieval,
que a sociedade liberal e burguesa pretende apresentar, em
alternativa ao herói clássico; por outro, serve-se do drama, para
expressar o arquétipo da sociedade da época, votado ao sofrimento e
à perseguição trágica. (MONIZ, 2009)
Logo nas primeiras páginas, na descrição física de Arnaldo, percebe-
se o processo de exaltação dos valores da personagem, não apenas nas questões
físicas:

[…] moço de 20 anos, de estatura regular, ágil, e delgado do talhe.


Sombreava-lhe o rosto, queimado pelo sol, um buço negro como os
compridos cabelos que [se] anelavam pelo pescoço. Seus olhos,
rasgados e vívidos, dardejavam as veemências de um coração
indomável. (ALENCAR, 2013, p. 18)
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Além de uma mera definição das características físicas, a inclusão de


um aspecto que ultrapassa a constituição física, o seu coração indomável indica a
força e a determinação da personagem. Buscando detalhar a personagem, visando a
uma construção das suas origens e a relacionar as suas influências europeias,
Alencar complementa a sua construção inicial, relacionando o seu traje com essas
origens:

Vestia o moço um trajo completo de couro de veado, curtido à feição


de camurça. Compunha-se de véstia e gibão com lavores de estampa
e botões de prata; calções estreitos, bolas compridas e chapéu à
espanhola com uma aba revirada à banda e também pregada por um
botão de prata. Ainda hoje esse trajo pitoresco e tradicional do
sertanejo, e mais especialmente do vaqueiro, conserva com pouca
diferença a feição da antiga moda portuguesa [...]. (ALENCAR, 2013,
p. 19)
Além das influências medievais já indicadas, as descrições de Arnaldo
contrastam com a descrição dos outros personagens urbanos presentes na obra,
esses personagens nasceram ou mantêm relação com a capital, como Dona Flor que
viveu boa parte da vida adulta na cidade, Marcos Fragoso, que estudou na cidade e
retornou ao sertão para ser “cavaleiro da cidade” (ALENCAR, 2013, p. 85), entre
outros. Da galhardia do capitão-mor à expressão senhorial de Dona Flor, as
características utilizadas para construir as personagens externas ao sertão deixam
clara a construção de uma hierarquia social por meio da adjetivação. Desse modo, as
descrições assumem um papel de caracterização do grupo social, distinguindo
socialmente o outro, de um lado os sertanejos e, de outro, aqueles que vêm da capital,
de tradição europeia.
Outro fator que se apresenta de forma significativa na construção da
personagem são os seus códigos morais, que remetem aos códigos dos cavaleiros
medievais. O mais destacado é a honra e o respeito a seu “patrão”, no caso o dono
das terras o capitão-mor Campelo. O capitão-mor era o poder na região, algo próximo
ao suserano, assim como aqueles abaixo deles se comportam como vassalos.

Estes barões sertanejos só nominalmente rendiam preito e


homenagem ao rei de Portugal, seu senhor suserano, cuja autoridade
não penetrava no interior senão pelo intermédio deles próprios. […]
Exerciam soberanamente o direito de vida e de morte, jus vitæ et
næcis, sôbre seus vassalos, os quais eram todos quantos podia
abranger o seu braço forte na imensidade daquele sertão. Eram os
únicos justiceiros em seus domínios, e procediam de plano,
sumarissimamente, sem apêlo nem agravo, em qualquer das três
ordens, a baixa, média, e a alta justiça. Não careciam para isso de
41

tribunais, nem de ministros e juízes; sua vontade era ao mesmo tempo


a lei e a sentença; bastava o executor. (ALENCAR, 2013, p. 200)
Nessa estrutura social, o papel de Arnaldo se resume a sua
submissão amorosa e a sua lealdade a seu senhor. No entanto, é em sua coragem
que se identifica um destaque positivo para a personagem sertaneja. Em suas
diversas façanhas realizadas, Arnaldo não apresenta receio ou medos e está sempre
disponível para o seu senhor: “[...] avalio quanto custa a um homem de brio não
desafrontar sua honra. Mas eu não consisto que ninguém neste mundo ofenda ao
capitão-mor e sua família” (ALENCAR, 2013, p. 68).
Das características identificadas, a que mais influência nos rumos de
Arnaldo é a sua submissão amorosa por Dona Flor. As ações do sertanejo são
realizadas com o objetivo de proteger sua amada, tanto a sua vida quanto a sua honra.
Do salvamento no incêndio, logo no início da obra, às ações que evitaram o sequestro
na noite do casamento, na conclusão, Arnaldo tem seu destino definido pelas ações
de Dona Flor. Essa característica similar aos romances medievais está presente em
praticamente toda a obra, na organização social do sertão, nas relações amorosas,
nos conflitos entre os poderosos, em suma, o enredo da obra se utiliza de uma
tradição europeia para representar o interior do Brasil.
O seu comportamento honrado e o seu servilismo em relação aos
patrões possibilitam identificar que Arnaldo faz parte de um mito racial que se
inaugurou, em alguma medida, no “bom selvagem”; uma personagem que “sabe o seu
lugar” na sociedade em que vive. Em que vê honra em beijar as mãos do seu patrão:
“E para si, Arnaldo, que deseja? – insistiu Campelo. — Que o sr. capitão-mór me deixe
beijar sua mão; basta-me isso” (ALENCAR, 2013, p. 151). Do mesmo modo, a
personagem foi construída buscando, também, atualizar o papel do brasileiro
interiorano, representado pela literatura, em sua maioria, em um processo dicotômico
entre o Brasil/Interior e a Europa/Centro.
A proposta de aproximação do sertanejo ao mito do bom selvagem
traz inúmeras possibilidades para problematizar os objetivos de sua invenção. Essa
aproximação já se podia notar no resultado das expedições realizadas ao interior do
Brasil, entre os séculos XVIII e XIX, por viajantes estrangeiros. Essas expedições,
patrocinadas pela Coroa Portuguesa, buscavam mapear e identificar possíveis
riquezas em áreas afastadas dos centros comerciais, em sua grande maioria,
localizadas no litoral; eram realizadas por naturalistas, artistas e militares, entre outros
42

profissionais; seus relatos foram uma das primeiras formas de documentar a


população sertaneja, tornando-se fontes para as obras aqui trabalhadas. Entre elas,
pode-se citar as considerações sobre a população sertaneja no relato da expedição
de Spix e Martius, realizada no final de 1810: “O único meio de obter melhor água
seria cavar poços no xisto quartzítico; mas a indolência da gente satisfaz-se com as
cisternas, que muitas vezes ainda pioram o mal” (SPIX, 2017, p. 78). Aqui, nota-se
que a preguiça atribuída aos povos indígenas foi ressignificada na literatura, ao ser
vinculada à população sertaneja (principalmente na obra de Alencar). Assim como
com relação aos indígenas há tanto as representações de horrendos canibais,
identificados por Barriendos, quanto o bom selvagem, como o Peri de Alencar, há
também o sertanejo indolente e o sertanejo ideal, aquele obediente aos valores morais
e, principalmente, ao dono da terra.
No decorrer da obra, a personagem de Arnaldo vai ganhando novas
nuances e estabelecendo uma forte relação com a natureza, de forma que sua
presença complementa as descrições do espaço e a personagem realça o papel do
ambiente no enredo. Desse modo, Arnaldo se torna uma amalgama, um cavaleiro
nacional com as noções de honra e de lealdade de origens europeias.
A proximidade com a fauna e a flora da região ressalta uma
personagem com dificuldades em estabelecer relações sociais, que não compreende
e não é compreendida, vive melhor entre as árvores e os animais. É na relação com
os animais que se reforça a proximidade de Arnaldo com o mundo natural. Da cabra
que puxa o seu chapéu, pedindo um abraço, à negociação com uma onça selvagem,
Arnaldo transita entre os humanos e os animais, mas se identifica de fato com a
natureza. Como o próprio Arnaldo diz: “[...] as árvores das serras e das várzeas são
minhas irmãs de leite; o que vejo, elas me contam. Sei tudo quando se passa embaixo
deste céu até onde chega o casco de meu campeão” (ALENCAR, 2013, p. 65).
Por isso, não é apenas com os animais que a personagem tem
proximidade, mas também com a natureza, com o seu espaço. Enfatizada em diversos
momentos da obra, a relação com o espaço reforça a dependência do sertanejo com
o seu meio, Arnaldo é parte dele. Essa relação é construída de modo a aproximar a
personagem sertaneja ao natural, às matas, ao sertão. Algo que não ocorre nem
mesmo ao dono das terras. Sendo um ser da natureza, tem dificuldade com as
relações sociais, encontrando abrigo na mata, sentindo-se melhor nas árvores do que
43

nas casas da fazenda. “Não sei lidar com os homens; cada um tem seu gênio: o meu
é para viver no mato” (ALENCAR, 2013, p. 42).
A relação personagem/espaço toma forma quando se identifica que
eles fazem funções semelhantes na obra: é por meio deles que a região ganha
significado. A personagem e o espaço reforçam as características locais, suas origens
(Arnaldo tem suas origens no sertão, sendo que a natureza exuberante é uma
característica do Brasil). As conversas com as árvores, com os animais e a sua
capacidade de se misturar com as folhagens, por exemplo, mostram que o
deslocamento da personagem para outras regiões é um deslocamento do significado
de si mesmo. O incômodo, na viagem realizada à capital, mostra que a sua vida e a
sua identidade estão no sertão. Assim como os feitos heroicos da personagem são
exaltados, a natureza que expressa importante parte da sua construção também
passa por esse processo.
Esse vínculo entre Arnaldo e seu espaço, estabelecido de forma
positiva, por meio de adjetivos que exaltam sua singularidade, predomina na narrativa,
porém, a obra não passa incólume das questões sociais, raciais e de poder. As
diferenças sociais entre as personagens, a estrutura de poder bem definida no sertão
e a construção de um sertanejo racializado, também, são questões levantadas na
obra.
O papel que cabe a Arnaldo, na estrutura social, é bem definido e
rígido. O seu trabalho, na fazenda, é passado de forma hereditária: seu pai era
vaqueiro a trabalho para o capitão-mor e, dessa forma, trabalhar na fazenda era sua
única possibilidade. Em uma estrutura social que permite que o capitão-mor exerça o
poder total nas suas terras, em parte pela distância da capital e do poder do estado:
“[...] o sr. capitão-mor não é o dono da Oiticica? Não é êle quem manda em todo êste
sertão? Abaixo de El-rei que está lá na sua côrte, todos devemos serví-lo e obedecer-
lhe” (ALENCAR, 2013, p. 127). Sendo assim, a figura do capitão-mor exerce uma
opressão e uma admiração nos sertanejos da região. Essa diferenciação não ocorre
apenas na estrutura social, mas também ocorre devido a sua origem, aqueles que
nascem na cidade têm posição privilegiada em relação ao sertanejo (interior). Essa
hierarquização social possibilita uma leitura em que o sertanejo sofre um processo de
inferiorização no momento em que o seu papel se resume a obedecer aos mandos do
dono das terras, cabendo a ele o papel de executor.
44

Na obra, assumindo a concepção vigente de uma classificação


biológica de raça, Alencar apresenta a visão das “raças” como “cores”, na
apresentação da personagem de Luiz Onofre, um vaqueiro que trabalha em outras
terras:

Assim como a sua tez representava a fusão das três côres, a alva, a
vermelha e a negra, da mesma sorte o seu caráter compunha-se dos
três elementos correspondentes àquelas variedades. Tinha a avidez
do branco, a astúcia do índio, e a submissão do negro. (ALENCAR,
2013, p. 217)
A definição de características pelas “cores” mostra como Alencar vê
e distingue suas personagens. A “fusão das três cores”6 não é diretamente atribuída
a Arnaldo, mas nota-se que o sertanejo apresenta características das “variedades”
indicadas pelo autor. A honra de Arnaldo, sua habilidade na floresta e seu
comportamento de obediência ao capitão-mor e, principalmente, em relação a Dona
Flor condizem com a definição apresentada no trecho acima.
Arnaldo assume o papel de representar o sertanejo e traz consigo,
além da mistura das “raças”, a distinção entre as pessoas com base em seus bens,
sua cor e suas ações. A diferença entre o vaqueiro e seus patrões fica clara na reação
de Dona Flor quando Arnaldo arranca flores envenenadas de suas roupas e acaba
encostando em seu corpo:

— Arnaldo! O sertanejo permanecia imóvel, e sofreu em silêncio,


impassível, mas resoluto, a repreensão que provocara. — Não
esqueça o seu lugar, Arnaldo, continuou D. Flor com severidade. A
ternura que tenho à sua mãe não fará que eu suporte estas liberdades.
A culpa é minha, bem o vejo. Se não lhe desse confianças, tratando-o
ainda como camarada de infância, não se atreveria a faltar-me ao
respeito. Lembre-se, porém, que já não é um menino malcriado; e
sobretudo que eu sou uma senhora. — Minha senhora? [...] disse
Arnaldo, carregando nessa interrogação com acerba ironia. — Sua
senhora, não, tornou D. Flor com um tom glacial; não o sou; mas
também, a-pesar-de nos termos criado juntos, não sou sua igual
(ALENCAR, 2013, p. 228)
Não ser igual a Dona Flor realça sua posição submissa e a hierarquia
existente na sociedade. Aqui, pode-se relacionar a classificação de Arnaldo com o
sentido de raça utilizado por Stuart Hall (2015), na sua obra O Significante Flutuante.

6Conceito apresentado por Carl von Martius, Karl Friedrich Philipp von (1794-1868) na obra: “Como se
deve escrever a história do Brasil”, escrita em 1843 e publicada na revista do IIHGB em 1844 em que
o Brasil era formado pelo branco (europeu/português), o índio/nativo e o negro/africano.
45

Para Hall (2015), a raça não é uma questão biológica, mas uma questão discursiva
que ganha sentido pelo fato de ser relacional e não uma questão de “essência”.
Esse processo de racialização nos leva a reavaliar o conceito
tradicional de raça como questão biológica. Essa reflexão encontra respaldo no
trabalho de Stuart Hall, que indicou em sua palestra intitulada: “Raça, o significante
flutuante”, realizada em 1996, a sua concepção em relação ao conceito de raça:

Para falar em termos bem genéricos, raça é um dos principais


conceitos que organiza os grandes sistemas classificatórios da
diferença que operam em sociedades humanas. E dizer que raça é
uma categoria discursiva é reconhecer que todas as tentativas de
fundamentar esse conceito na ciência, localizando as diferenças entre
as raças no terreno da ciência biológica ou genética, se mostraram
insustentáveis. Precisamos, portanto — diz-se — substituir a definição
biológica de raça pela sócio-histórica ou cultural. (HALL, 2015, p. 1)
Hall busca ampliar o conceito que permaneceu associado à questão
biológica por muito tempo. A sua proposta traz que raça pode ser associada a
questões culturais e complementa:

E os significantes se referem a sistemas e conceitos da classificação


de uma cultura, a suas práticas de produção de sentido. E essas
coisas ganham sentido não por causa do que contêm em suas
essências, mas por causa das relações mutáveis de diferença que
estabelecem com outros conceitos e ideias num campo de
significação. Esse sentido, por ser relacional e não essencial, nunca
pode ser fixado definitivamente, mas está sujeito a um processo
constante de redefinição e apropriação. Está sujeito a um processo de
perda de velhos sentidos, apropriação, acúmulo e contração de novos
sentidos; a um processo infindável de constante ressignificação, no
propósito de sinalizar coisas diferentes em diferentes culturas,
formações históricas e momentos. (HALL, 2015, p. 3)
Desse modo, Hall indica que o significado do conceito de raça transita
no tempo e no espaço, sendo “flutuante”. Além disso, fica claro o sentido relacional,
que distingue pessoas e culturas de modo a estabelecer as relações de poder –
portanto, se aproximando desta proposta, em que a invenção do sertanejo ocorre de
modo a distinguir essa população do centro geográfico e do centro do poder.
Essa relação da personagem com o poder permite identificar e
analisar as características do momento histórico representado na obra, relacionado à
personagem. Para analisar a personagem pelo enfoque histórico, é fundamental
discutir o conceito de convenções trazido ao debate sobre as personagens por
Raymond Williams, em sua obra Marxismo e Literatura. Segundo Williams (1979, p.
172): “[...] uma convenção é uma relação estabelecida, ou base de uma relação,
46

através da qual uma prática comum específica – a feitura das obras – se pode
entender”. Por isso, as convenções possibilitam compreender o papel da personagem
no enredo e na história, pois as relações expressas na obra encontram similaridades
com o período histórico. Isso ocorre pelo fato de as convenções não serem rígidas,
mas o contrário, serem historicamente variáveis (WILLIAMS, 1979, p. 173), e, dessa
forma, transmitem o espírito da época. Logo, a "apresentação de pessoas
(personagens)" tem convenções significativamente variáveis e, com isso, identifica-se
a sua relação com o momento histórico. Williams apresenta dois padrões variáveis
para defender a sua proposta: a aparência pessoal e a situação social.

Quase toda combinação concebível desses elementos, mas também


a exclusão de um, ou mesmo de ambos, foi convencionalmente
praticada no drama e narrativa. Além disso, dentro de cada uma, há
convenções significativas: de uma apresentação mais ou menos típica
até a análise exaustiva. Além disso, as variações convencionais na
apresentação da “aparência pessoal” correspondem às variações
profundas na percepção efetiva e na avaliação de outros, com
frequência em íntima relação com variações na significação da família
(linguagem), situação social e história social, que são contextos
variáveis da definição essencial dos indivíduos apresentados.
(WILLIAMS, 1979, p. 174)
A diferença de apresentação entre o Homem Comum medieval não
delineado e a personagem fictício do século XIX, cujas aparência, história e situação
são descritas e mantidas em detalhes, é um exemplo óbvio. O que pode ser menos
óbvio é o tipo de ausência, ratificado pela convenção, na literatura mais próxima de
nosso tempo, em que as convenções podem parecer não ser “literárias”, ou na
verdade, não ser convenções, mas critérios autodefinidores de significação e
relevância.
É por meio dessas convenções que se identifica que a obra dialoga
com dois momentos históricos, a ocupação sistémica do interior do Nordeste (século
XVIII) e a busca pela criação de uma identidade nacional. Arnaldo, sendo assim,
exerce papel de destaque nessa dupla empreitada, é o peão submisso ao
“desbravador” e é um dos heróis que a nova nação necessita.
Além dessa função histórica que Arnaldo exerce, considera-se que a
relação com a natureza/espaço é mais enfatizada na obra. Essa relação contribuiu
para fortalecer a ligação entre a população do sertão com o seu espaço, tornando o
sertanejo um aspecto essencial para analisar o espaço em uma relação mútua, em
que o espaço dá significado ao homem e o homem dá significado ao espaço. Sendo,
47

portando, possível relacionar a personagem Arnaldo, como uma personagem que


agrega as características do conceito de personagem geográfico.
A relação de Arnaldo com o espaço dialoga e se justifica na
construção da personagem heroica e de um espaço exuberante, quase fantástico. O
herói nacional de Alencar precisa de um espaço que o referencie e o complemente,
valorizando, assim, a sua origem na natureza. Essa "essência" reforça o papel da
personagem como representante desse espaço. A personagem geográfica dialoga
com a ideia de imagem-arquivo, quando ela interage com o espaço, tornando-se um
operador analítico que possibilita interpretar a intersecção entre personagem e o seu
espaço – contudo, não se limitando apenas a esses aspectos. Em artigo intitulado:
Reading the signs of my body: Shakira, lugar e raça, em que analisa a condição de
personagem geográfica da cantora Shakira, ativadora de representações geo-
históricas não só sobre a Colômbia e a América Latina, mas também sobre o Oriente,
o Mundo Árabe e os Trópicos, combinadas a representações sobre latinidade e
branquitude, Name (2021, p. 137) explica que

“Geográfica” é a personagem que não se restringe a um tipo social ou


pessoa ilustre voltados a revisar períodos ou eventos históricos, nem
a uma construção estética restrita à obra literária que sirva de artifício
para a condução da narrativa [...] As personagens geográficas
articulam ações e acontecimentos com lugares e paisagens [...], que
podem ser traduzidos à escala de seu corpo – e, em muitos casos, da
“raça”. Relacionando-se a unidades imagéticas significantes de certa
iconicidade hermenêutica, participam de montagens, desmontagens e
remontagens de um ou mais conjuntos de imagens, que podem ser de
diferentes conjunturas históricas e contextos geográficos e que,
necessariamente em diálogo, catalisam e compartilham significados –
sobre lugar e “raça”, inclusive – sedimentados uns sobre outros.
Percebe-se, desse modo, que a personagem geográfica está inserida
em uma grande teia de relações que enfatiza o espaço, mas não se limita a ele.
Arnaldo exerce esse papel no que tange às relações raciais (na oposição à Dona Flor),
sociais (em seu papel restrito, de pouca, ou nenhuma, mobilidade social) e, como já
citado, com o espaço. Sendo assim, Arnaldo contribui para a imagem-arquivo do
sertanejo no momento em que o seu papel de herói e a sua relação com a natureza
se contrapõem ao litoral e à característica transitória das outras personagens:
enquanto a família do capitão-mor transita entre cidades e localidades, Arnaldo está
“preso” ao sertão e à natureza, tornando o sertanejo deslocado quando fora do sertão.
48

Por isso, considera-se que Alencar e Arnaldo contribuíram fortemente


na construção da imagem-arquivo do sertanejo e foram dois dos responsáveis por
uma reação que problematizou o sertanejo herói e o sertão exuberante. Reação que
culminou com a produção de diversas obras trazendo o sertanejo “real”.

3.2 ROMANCE DE 30, UM “NOVO” SERTANEJO

Após a apresentação do sertanejo como herói, a personagem trilhou


novos caminhos na literatura – uma reação a essa idealização romântica liderada por
Alencar. O “novo” sertanejo surgiu no momento em que os autores nordestinos
buscavam reforçar as características locais, distanciando-se dá roupagem “europeia”
dos autores do Romantismo. Assim, criticava-se o fato de que as principais produções,
na época, eram de autores com a origem ou a formação no Sudeste do Brasil,
incapazes, desse modo, de produzir um sertão e o sertanejo que dialogassem com as
demandas da Região Nordeste. Tal processo, gestado pelo movimento regionalista,
encabeçado por Gilberto Freyre, ganhou destaque no que se chamou de movimento
de 30. Um dos principais autores desse movimento, Graciliano Ramos representa a
população sertaneja com o olhar social, apresentando as dificuldades que a atingiam.
O próprio autor indica as mudanças propostas pelos autores do movimento:

[...] era indispensável que os nossos romances não fossem escritos no


Rio, por pessoas bem-intencionadas, sem dúvida, mas que nos
desconheciam inteiramente. Hoje desapareceram os processos de
pura criação literária. Em todos os livros do Nordeste, nota-se que os
autores tiveram o cuidado de tornar a narrativa, não absolutamente
verdadeira, mas verossímil. Ninguém se afasta do ambiente, ninguém
confia demasiado na imaginação. [...] Esses escritores são políticos,
são revolucionários, mas não deram a ideias nomes de pessoas: os
seus personagens mexem-se, pensam como nós, sentem como nós,
preparam as suas safras de açúcar, bebem cachaça, matam gente e
vão para a cadeia, passam fome nos quartos sujos duma hospedaria.
(RAMOS, 1935, p. 111-112)
Em Vidas Secas, Ramos apresenta a sua visão do sertanejo que
enfrenta as dificuldades causadas pela seca em busca de melhores condições de
vida. Com a seca, o vaqueiro Fabiano, perde o seu trabalho e parte em busca de
novas oportunidades. Ele e sua família enfrentam longas caminhadas sob o sol,
tentando encontrar formas de sobreviver à seca. Encontrando uma fazenda em que
conseguiu trabalho, enfrentou outras questões para além das impostas pela seca,
como a repressão do estado e os abusos do patrão, por exemplo. Ao mesmo tempo,
49

Fabiano busca descobrir o seu papel no mundo. Entretanto, a seca é implacável e


logo os alcança e não permite a manutenção da família, que é forçada a voltar para
as longas caminhadas em um processo de constante mudança, sem conseguir de fato
se estabelecer.
A narrativa traz o sertanejo em sua condição de retirante, aquele que
é obrigado a sair de suas terras em busca de trabalho e formas de sobreviver. Desde
o início da obra, fica claro como Fabiano se distancia do perfil do herói romântico
atribuído por Alencar à categoria do sertanejo: “Fabiano sombrio, cambaio” (RAMOS,
2011, p. 9), nem as questões de honra que foram imputadas a Arnaldo.
Fabiano é apresentado em movimento, fugindo das terras devastadas
pela seca e em busca de se estabelecer em regiões com melhores condições de vida.
Esse deslocamento é perceptível em toda a obra, e não se trata apenas de um
movimento físico, mas sim de uma dificuldade de se identificar e de se relacionar com
as pessoas. Com o seu trabalho de vaqueiro como moeda, a personagem encontra
uma nova fazenda para trabalhar e, com a atenuação dos efeitos da seca, acredita
que possa se estabelecer naquele lugar. A difícil relação com o patrão, o estado e
com os outros personagens apresenta um sertanejo que, além de não ter um lugar
para se estabelecer, tem grande dificuldade de interação e até mesmo de se
comunicar. O processo de construção da personagem é feito por características
negativas, quando indica que Fabiano tinha “[...] coração grosso, queria
responsabilizar alguém pela sua desgraça” (RAMOS, 2011, p. 10).
A personagem vive em um estado de vulnerabilidade, tendo enorme
dificuldade de enfrentar as adversidades e de impor as suas vontades. A dificuldade
de comunicação e de relacionamento com outras pessoas mostra um sertanejo
excluído da sociedade, que pouco dialoga, até mesmo com seus iguais, de modo que
ele tem dificuldades de viver em sociedade. O relacionamento mais próximo, mesmo
considerando o seu núcleo familiar, é restrito, apenas a esposa Sinhá Vitória, ele
entende e confia nela. Ela que se dá melhor com os números, cria um contraponto a
Fabiano, que está “indefeso” nas negociações financeiras. Percebe-se aqui o reforço
da ideia de que o sertanejo não tem um lugar fora o sertão, e com a seca o obrigando
a se deslocar, a sua identidade desaparece, ele não tem nem uma terra para
sobreviver e nem um papel na sociedade.
50

Na obra, Fabiano é construído como uma personagem em conflito,


enfrentando os donos de terras, o estado, a seca e a sua própria consciência. O seu
espaço, o sertão em sua pior fase de seca, relaciona-se com o seu comportamento e
suas ações, e, em diversos trechos, ele é constituído como um ser sem consciência,
como um animal que simplesmente sobrevive. Ramos aproximou o seu personagem
aos animais, sendo o seu comportamento, em diversas passagens, relacionado aos
instintos de defesa, característicos dos animais irracionais. Diferente de Arnaldo, que
tem uma relação de superioridade em relação aos animais, Fabiano está no mesmo
patamar e se identifica como tal.
Essas relações, de um lado um sertanejo que pensa em sua condição
(apresentada pelo narrador), de outro, alguém que age como um animal, permeiam
as obras como um todo. Fabiano busca reforçar sua condição humana; no entanto,
tem dificuldades com as suas relações de poder por estar em uma posição social
desvalorizada e por não ter posses:

Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta. Conteve-se, notou


que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-
o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra
ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os
olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra
alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na
presença dos brancos e julgava-se cabra. Olhou em torno, com receio
de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente.
Corrigiu-a, murmurando: — Você é um bicho, Fabiano. (RAMOS,
2011, p. 18)
Essa citação demostra o conflito interno que a personagem passa
durante a obra em relação ao seu papel na sociedade. Assumindo-se homem, ele se
rebaixa socialmente pela falta de posse, tornando-se cabra; assim, reconhece a sua
falta de humanidade, assumindo-se bicho. Na obra, a relação entre os animais e
Fabiano se mistura de maneira que, em alguns momentos, o homem se animaliza.
Essa mistura ocorre quando o sertanejo se comunica melhor com a cachorra da
família, Baleia, do que com os outros personagens, igualando-se aos animais na luta
pela sobrevivência de seu papel na seca:

Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés
duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra.
Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma
linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro
entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia para um lado, para o
outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com
as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos —
51

exclamações, onomatopeias. Na verdade, falava pouco. (RAMOS,


2011, p. 11)
Porém, essa proximidade com os animais contrasta com os debates
internos que a personagem tem em relação às injustiças da sociedade. Ele identifica
a opressão causada pelos donos de terra e pelo estado, mas não tem as ferramentas
necessárias para se impor nesses conflitos. Tem dificuldade de se comunicar, “[...]
dizia palavras difíceis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-
se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo” (RAMOS,
2011, p. 13). O caráter de exaltar o homem bruto, que expressa suas angústias e
pensa em sua situação, foi enfatizado pelo próprio Ramos “Por pouco que o selvagem
pense – e os meus personagens são quase selvagens – o que ele pensa merece
anotação” (GARBUGLIO et al., 1987, p. 64). Com o objetivo de apresentar o
pensamento da personagem, o narrador assume um importante papel na obra, pois é
por meio dos “diálogos” entre ele e Fabiano que se identifica como o sertanejo de
Ramos constitui uma identidade.
Todos os aspectos já apresentados, assim como em Alencar,
convergem na relação espaço/personagem. O sertão, na seca, é o fator gerador
dessas características que compõe o sertanejo de Graciliano. E a relação de
aproximação e de opressão que ocorre entre a seca e Fabiano contribui para reforçar
a dureza e a força da personagem. Logo no início da obra, nota-se esse processo de
aproximação e de comparação da natureza, "Fabiano olhou os quipás, os mandacarus
e os xique-xiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as
baraúnas" (RAMOS, 2011, p. 10). Considerando que as catingueiras e as baraúnas
são plantas de grande porte para o sertão, essa comparação ressalta a força e a
resistência de Fabiano. Na construção do espaço e da personagem, é possível
perceber essas inter-relações, como na semelhança das cores da caatinga e do rosto
de Fabiano. A caatinga tem um “vermelho indeciso”, assim como Fabiano que tem
uma cor “vermelho, queimado”.
A percepção de que o sertanejo de Ramos é diferente do branco
indica uma forte construção racial da personagem. Da vinculação do humano ao
animal, sem uma identidade definida, a sua caracterização como parte da catinga,
observa-se o surgimento de uma racialização de Fabiano e do sertanejo, conforme o
conceito de Stuart Hall (2015), apresentado no artigo O Significante Flutuante. Na
obra, não se trata de uma questão biológica, pois Fabiano tem o fenótipo do homem
52

branco, com “olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos” – contudo, “encolhia-se na


presença dos brancos”. O sertanejo construído por Ramos faz parte de um sistema
de classificação que determina o seu papel no mundo, em que a falta de posses e a
resistência à seca os caracterizam como pessoa mui diversa com relação às pessoas
das classes dominantes.
Outro fator importante nessa forma de racialização é que, mesmo fora
das questões biológicas, o autor demonstra a “genética sertaneja” nas suas ações e
costumes:

A cabeça inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços para a direita


e para a esquerda. Esses movimentos eram inúteis, mas o vaqueiro,
o pai do vaqueiro, o avô e outros antepassados mais antigos haviam-
se acostumado a percorrer veredas, afastando o mato com as mãos.
E os filhos já começavam a reproduzir o gesto hereditário. (RAMOS,
2011, p. 17)
Com isso, é possível ver que o sertanejo não tem a possibilidade de
ascensão social, considerando-se que o seu serviço na fazenda é o cuidado com os
animais, o ofício de vaqueiro é a única possibilidade, servir ao patrão (dono da terra)
é uma questão imutável.
Essa classificação se assemelha ao que Alencar fez em O Sertanejo,
mas é com Fabiano que a categoria se amplia em significados. Os trejeitos físicos,
aqui, não seguem a classificação proposta em O Sertanejo: Fabiano é loiro, portanto,
não se enquadra no fenótipo das “raças” de Alencar. No entanto, Ramos também
contribui para uma visão do sertanejo como pessoa submissa e em sujeição
permanente ao ambiente físico. Essa construção vincula ao sertanejo práticas
específicas que o distinguem em relação à população da cidade – um processo que
dialoga com os estudos sobre Orientalismo.
Estudado por Edward Said, o Orientalismo é “[...] um modo de
discurso baseado em instituições, vocabulário, erudição, imagens, doutrinas,
burocracias e estilos coloniais” (SAID, 2007, p. 28). Esse discurso, criado na análise
da relação entre Oriente e Ocidente, apresenta uma hierarquia entre eles com a
proposta de tornar o Oriente exótico e o Ocidente o modelo ideal. Pode-se identificar
que essa proposta de enxergar o Outro, em certa medida, a partir de um olhar
depreciativo e de tratar todas suas ações e comportamentos como peculiares e
exóticos está presente nas narrativas de Ramos e de Alencar, em que as relações
sertão/litoral e interior/capital assumem dualismo semelhante ao da relação
53

Ocidente/Oriente desenvolvida por Said. Nota-se em Fabiano características


majoritariamente negativas, o que mostra que a construção dele ocorre com a
desvalorização de seu papel na sociedade: “Passar a vida inteira assim no toco,
entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como
negro e nunca arranjar carta de alforria!” (RAMOS, 2011, p. 99), ao sertanejo de
Ramos cabe a sobrevivência.
Em relação a caracterizar Fabiano como personagem geográfico,
percebe-se que a relação “espaço versus personagem” é de interdependência, já que
as ações da personagem dão sentido ao espaço, assim como o espaço dá o
significado à personagem. Em um exercício teórico, pode-se identificar que as
características de Fabiano dificilmente teriam relação com outro espaço, de modo que
seu deslocamento ao litoral/cidade demandaria uma ressignificação de sua
constituição física e de visão do mundo. Esse estranhamento é perceptível quando
ele e a família vão na festa de Natal na cidade e se sentem deslocados em um
momento de relativa tranquilidade. Entende-se que o estranhamento ultrapassa as
dificuldades em se relacionar, que já foram analisadas neste trabalho, e permite
assumir que o espaço da seca e o deslocamento no sertão são inerentes a Fabiano.
Por isso, a relação Arnaldo/natureza e Fabiano/sertão é semelhante, mas os objetivos
distintos (o fortalecimento de uma identidade nacional e a apresentação do real)
criaram personagens que exaltam características bem diferentes da população do
Nordeste.
Assim, mesmo que a honra de Arnaldo possa ser identificada até hoje
na categoria sertanejo, considera-se que Fabiano é uma maior influência na visão
atual do povo e do espaço nordestino. Essa influência se deve a vários fatores, no
entanto, considera-se que isso ocorra pela relação conflituosa entre a personagem e
o espaço, como apresentado neste item. Essa relação permanece, pois o sertão
opressor (influenciado pelos relatos de Euclides da Cunha e corroborados por Ramos)
foi assimilado pela cultura nacional, o que não ocorreu com o sertão exuberante de
Alencar. O apagamento do sertão de Alencar e a redução do sertão ao seu período
de seca são processos que serão analisados no capítulo a seguir.
54

4 ESPAÇO E PAISAGEM NA LITERATURA

As descrições dos espaços nas obras literárias desenvolvem


importantes e diversos papéis narrativos. De forma a simplesmente ambientar, criar
metáforas ou inter-relacionar-se com as personagens, a descrição detalhada do
espaço permite criar uma série de relações que desenvolvem a obra no tempo e no
espaço. Antônio Dimas (1987), em sua obra Espaço e Romance, comenta sobre essa
gama de possibilidades que o espaço assume nas obras literárias:

Entre as várias armadilhas virtuais de um texto o espaço pode alcançar


estatuto tão importante quando outros componentes da narrativa, tais
como foco narrativo, personagem, tempo, estrutura etc. É bem
verdade que, reconheçamos logo, em certas narrações esse
componente pode estar severamente diluído e por esse motivo, sua
importância torna-se secundária. Em outras, ao contrário, ele poderá
ser prioritário e fundamental no desenvolvimento da ação, quando não
determinante. Uma terceira hipótese, ainda, está bem mais fascinante,
é a de ir-se descobrindo-lhe a funcionalidade e organicidade
gradativamente, uma vez que o escritor soube dissimulá-lo tão bem a
ponto de harmonizar-se com os demais elementos narrativos, não lhe
cedendo, portanto, nenhuma prioridade. (DIMAS,1987, p. 5-6)
Considera-se que os espaços, nas obras escolhidas para este
trabalho, se enquadram como fundamentais para a narrativa. Analisar a sua
construção possibilita um entendimento mais completo das obras. O sertão em O
Sertanejo e em Vidas Secas, de forma semelhante ao que ocorreu com o personagem
sertanejo, é um espaço inventado por diversas obras que se utilizaram da temática.
Logo, as descrições dos espaços em que ocorrem as obras contribuíram para a
criação de um “sertão imaginário”, que foi reproduzido em diversas obras posteriores
e está presente, até hoje, no imaginário nacional.
Para analisar como o sertão de Alencar e de Ramos foram inventados,
serão utilizados dois conceitos base, o espaço e uma dimensão deste, a paisagem.
Michael de Certeau (2014) desenvolve o conceito de espaço em sua obra A Invenção
do Cotidiano e deixa clara a diferença do conceito de lugar e de espaço. O lugar, para
o autor, é o próprio elemento, o que chegaria mais perto do real, as condições físicas.
Já o espaço é um lugar praticado, o campo da ação que se constrói por meio das
relações com o lugar, desse modo, as narrativas ganham um outro olhar.

Essas aventuras narradas, que ao mesmo tempo produzem


geografias de ações e derivam para os lugares comuns de uma ordem,
não constituem somente um “suplemento” aos enunciados pedestres
55

e às retóricas caminhatórias. Não se contentam em deslocá-los e


transpô-los para o campo da linguagem. De fato, organizam as
caminhadas. Fazem a viagem, antes ou enquanto os pés a executam.
(CERTEAU, 2014, p. 183)
Certeau define o espaço como uma interpretação do lugar, sendo
essa uma forma de dar significado a ele. Essa concepção já caracteriza o espaço
como uma construção, uma forma de identificar o lugar. O lugar em que ocorrem as
ações de Fabiano e Arnaldo ganha sentido em suas respectivas obras, gerando o
“espaço sertanejo”, que ultrapassa os limites da obra, gerando efeitos culturais na
sociedade.
Outra importante teoria que amplia o diálogo com a ideia de
construção do espaço é o Orientalismo estudado por Edward Said. Como já apontado
no capítulo anterior, o Orientalismo analisa a relação entre Ocidente e Oriente e entre
poder e dominação e, por isso, afeta também o espaço criado/representado:

[…] regiões, setores geográficos, como o “Oriente” e o “Ocidente”, são


criados pelo homem. Assim, tanto quanto o próprio Ocidente, o Oriente
é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento, um
imaginário e um vocabulário que lhe deram realidade e presença no e
para o Ocidente. (SAID, 2007, p. 24)
É possível identificar que o processo de invenção do sertão tem
importante relação com o conceito de orientalismo, principalmente quando se
identifica que, nas primeiras obras produzidas, das produções geradas pelas viagens
de exploração às primeiras publicações do romantismo, os autores eram externos ao
espaço sertanejo. José de Alencar nasceu no interior de Fortaleza e mudou-se muito
cedo, tendo pouca relação com o espaço que apresenta em sua obra. Graciliano
Ramos, nascido em Alagoas, escreveu sua obra após muitos anos vivendo no Rio de
Janeiro. Sendo assim, na invenção do sertão, também é possível identificar a criação
de uma realidade comparativa com outras regiões, pois, mesmo considerando que
seus autores tinham alguma afinidade com a região, eles não podem ser considerados
como moradores dos espaços sertanejos representados em suas obras.
Buscando um pensador que enfatize a relação do espaço com a
literatura, será utilizado o trabalho de Michel Collot, que emprega o conceito de
paisagem de forma ampla, como “[...] uma constelação original de significados
produzidos pela escrita” (COLLOT, 2013, p. 58). E complementa:

A paisagem não é a região, mas certa maneira de vê-la ou de figurá-


la como “conjunto” perceptiva e/ou esteticamente organizado: ela
jamais se encontra somente in situ, mas sempre também in visu e /ou
56

in arte [...]. Por essa mesma via, a paisagem ultrapassa qualquer


localização geográfica e qualquer base biográfica. [...] A paisagem se
distingue, assim, da extensão, objetiva, geométrica ou geográfica. É
um espaço percebido e/ou concebido, logo, irredutivelmente subjetivo.
(COLLOT, 2013, p. 50-51)
Considerando que o conceito de paisagem é uma dimensão do
espaço, utilizar o trabalho de Collot permite delimitar as análises da presente
pesquisa. O conceito de paisagem insere aspectos que possibilitam um novo olhar
para as obras analisadas e traz um caráter mais amplo, de composição, que,
apresentada pela escrita, cria essa “constelação original”, que, portanto, gera novas
leituras do espaço. Para utilizar o conceito de paisagem, é necessário trazer mais
autores para que se possa identificar o seu papel atual na análise literária e ampliar
as possibilidades da pesquisa. Para o arquiteto e historiador, Javier Maderuelo (2005),
em sua obra El Paisaje: génesis de un concepto, a palavra paisagem sofre,
atualmente, abuso e desgaste semânticos. Trata-se de um processo de expansão
conceitual para todas as direções, que, para ele, torna difícil saber a que está se
referindo quando se fala paisagem. Muito se usa o termo para reivindicar um carácter
artístico a algumas manifestações. Essa dificuldade aumenta pelo número de áreas
que reivindicam o entendimento do termo. O autor analisa o conceito de paisagem
como:

A paisagem não é [...] o que está aí, diante de nós, é um conceito


inventado ou, melhor, uma construção cultural. A paisagem não é um
mero lugar físico, e sim o conjunto de uma série de ideias, sensações
e sentimentos que elaboramos a partir do lugar e seus elementos
constituintes. A palavra paisagem [...] reclama também algo mais:
reclama uma interpretação, a busca de um caráter e a presença de
uma sensibilidade. [...] A ideia de paisagem não se encontra tanto no
objeto que se contempla como na mirada de quem contempla. Não é
o que está a sua frente e sim o que se vê. (MADERUELO, 2005, p. 38)
Essa amplitude do tema foi expandida recentemente, pois a paisagem
ganhou novos significados com o advento dos estudos acerca do meio ambiente, que
se tornou uma palavra-chave para os estudos da paisagem (CAUQUELIN, 2007, p.
9). No contexto mencionado, a obra de Alencar pode ser considerada essencial para
que se possa identificar a relação paisagem/meio ambiente. Mesmo longe de um
debate ambiental, que tomou corpo no final do século XX, a valorização da natureza
possibilitou a criação de uma relação cultural mais harmoniosa, deslocando a natureza
de algo exótico e perigoso para algo belo e gerador de identidade. Assim como o
57

sertão de Ramos trouxe um foco mais social à questão da natureza, enfatizando a


seca, ele ampliou o debate sobre o caráter opressor do sertão.
Dessa forma, os conceitos de espaço e paisagem dialogam entre si e
permitem conduzir a análise das obras com a proposta de uma ressignificação
constante, um processo de invenção que ocorre desde as primeiras obras com a
temática sertaneja. Um espaço/paisagem que dialoga com o real, mas que sofreu
diversas influências e não pode ser considerado como tal.
Cabe ressaltar que as duas obras se passam em áreas rurais e nas
duas existe o ciclo da seca, que define a sazonalidade das secas no Nordeste como
um processo natural da região. Em O Sertanejo, percebe-se que a seca é reduzida a
pequenos trechos que são escondidos pela proposta de valorização da natureza:

A chapada, que os viajantes atravessavam neste momento, tinha o


aspecto desolado e profundamente triste que tomam aquelas regiões
no tempo da sêca. Nessa época o sertão parece a terra combusta do
profeta; dir-se-ia que por aí passou o fogo e consumiu toda a verdura,
que é o sorriso dos campos e a gala das árvores, ou o seu manto,
como chamavam poeticamente os indígenas. Pela vasta planura que
se estende a perder de vista, se erriçam os troncos ermos e nus com
os esgalhos rijos e encarquilhados, que figuram o vasto ossuário da
antiga floresta. (ALENCAR, 2013, p. 14)
Do mesmo modo, em Vidas Secas, o período das chuvas ameniza a
seca e altera a relação dos personagens com o espaço:

As goteiras pingavam, os chocalhos das vacas tiniam, os sapos


cantavam. O som dos chocalhos era familiar, mas a cantiga dos sapos
e o rumor das goteiras causavam estranheza. Tudo estava mudado.
Chovia o dia inteiro, a noite inteira. As moitas e capões de mato onde
viviam seres misteriosos tinham sido violados. Havia lá sapos. E a
cantiga deles subia e descia, uma toada lamentosa enchia os
arredores. (RAMOS, 2011, p. 69)
O ciclo, desse modo, está presente nas duas obras, mas com funções
diferentes. Em O Sertanejo, as poucas citações do período de seca se perdem nos
inúmeros adjetivos da vegetação colorida e exuberante. Já em Vidas Secas, o
“inverno” chuvoso funciona como contraponto com os períodos de sofrimento
causados pela seca, porém, são momentos curtos que antecedem a novos períodos
de seca. Independentemente da função na obra, a sazonalidade altera os espaços
criados por Alencar e Ramos
58

4.1 O SERTÃO VIVO DE ALENCAR

A representação do espaço se tornou um dos pilares do romantismo


brasileiro, pois deu destaque ao papel da natureza em um movimento que foi realizado
por diversos autores do movimento. José de Alencar foi um desses autores,
detalhando os espaços das suas obras e dando ênfase às relações entre personagens
e elementos da natureza, ele ficou conhecido por representar/criar as florestas de
Iracema e O Guarani, os pampas de O Gaúcho, entre outros. Essa marcante presença
foi transmitida por diversos autores estrangeiros (François René Chateubriand,
Fenimore Cooper, Bernardin de Saint-Pierra) que serviram como base não apenas
para Alencar, mas para o desenvolvimento do romantismo brasileiro. Na pós-
independência, parte dos autores do movimento romântico buscava
apresentar/construir características que identificassem o país independente e ser
diferente da visão neoclássica ainda marcante no Brasil, além de se afastar das
heranças do romantismo europeu.
Os objetivos de Alencar em relação à representação da natureza
ficam evidentes quando se analisa as suas críticas à obra de outro importante autor
dos anos iniciais do romantismo brasileiro: Gonçalves de Magalhães. Tais críticas,
realizadas por meio de cartas publicadas no jornal Diário do Rio de Janeiro em 1856,
debatiam e provocavam Magalhães em relação ao que Alencar considerava uma
descrição simplista da natureza, tendo como objeto principal a obra A Confederação
dos Tamoios (1856). Na visão de Alencar, pouco exuberante se comparada aos
autores europeus:

Não sei; leio o poema, abro alguns livros, e vejo com tristeza que a
Itália de Virgílio, a Caledônia de Ossian, a Flórida de Chateaubriand,
a Grécia de Byron, a Ilha de França de Bernardin de Saint-Pierre, são
mil vezes mais poéticas do que o Brasil do Sr. Magalhães; ali a
natureza vive, sorri, palpita, expande-se; aqui parece entorpecida e
sem animação. (ALENCAR, 2013, p. 51)
Aqui nota-se como Alencar busca na natureza um meio de exaltar o
Brasil, indicando o que ele esperava e pretendia realizar em suas obras. A sua
descrição exuberante da natureza, nas palavras de Eduardo Martins (2001), em seu
artigo Lugar Comum: A Descrição da Natureza em José de Alencar: “Não era apenas
fonte do instinto da pátria, como sugeria Chateaubriand, mas o próprio elemento
diferenciador da nacionalidade” (MARTINS, 2001, p. 103). Complementando essa
59

visão, Mirihane Mendes de Abreu (2002), em sua tese, intitulada Ao Pé da Página – a


dupla narrativa em José de Alencar, indica a evidente intenção de Alencar vincular a
natureza como elemento nacional:

A ênfase concedida ao estilo alencariano e ao uso da língua constitui


um dos traços mais marcantes da crítica e tema caro ao escritor,
especialmente porque o teor da identidade brasileira residia nas
singularidades do idioma. Tratava-se de um recurso de familiarizar o
leitor com os elementos reputados nacionais, a exemplo da natureza
exuberante, espaço onde ocorriam as ações. (ABREU, 2002, p. 19)
Alencar assume esse papel e propõe uma natureza poética e
exuberante, central na caracterização da nação, uma forma de realçar algo de próprio
do Brasil e se alcançar o seu projeto de criação de uma identidade nacional, na medida
em que pressupõe que a natureza do Brasil é única, exclusiva e, portanto, um traço
da nação.
Esse espaço de natureza exuberante está presente em praticamente
todas as obras de Alencar. O Sertanejo apresenta um sertão belo com luzes e cores,
relacionando a natureza com elementos sagrados e criando um espaço que, em certo
ponto, é fantástico:

Assomando sôbre o capitel da floresta erguida no oriente como o


pórtico do deserto, o sol coroado da magnificência tropical dardejava
o olhar brilhante e majestoso pela terra, que se toucara de toda a sua
louçania para receber no tálamo da criação ao rei da luz. Na umbria
da serra e da espêssa mata que a cinge, a fazenda ainda permanece
no crepúsculo da alvoroçada, quando já o dia fulgura pelas várzeas e
campinas dalém. (ALENCAR, 2013, p. 12)
A visão de Alencar retoma a tradição grega, especialmente os
trabalhos de Hesíodo (século IX a.C.) que valorizavam a relação entre a natureza e o
campo, enfatizando o caráter pastoril e bucólico. Essa valorização se manteve em
destaque até o Romantismo europeu no início do século XVIII, por meio do conceito
de sublime. O sublime é o fio condutor das representações desde a natureza da Grécia
Antiga até o início do Romantismo e está presente em Alencar. O filósofo Edmund
Burke (1993, p. 77), analisando as questões do sublime e do belo, define:

A grandiosidade de dimensões é urna fonte poderosa do sublime.


Essa proposição é demasiado óbvia e observável para necessitar de
exemplo; mas não é igualmente comum examinar os meios pelos
quais as enormes dimensões, as extensões ou quantidades
incomensuráveis causam um efeito tão notável. Pois, seguramente, há
meios e modos pelos quais a mesma extensão deverá produzir efeitos
maiores do que se verifica em outros.
60

As planícies, os campos e a grande mata estão presentes em vários


momentos em O Sertanejo, o que causa efeito de amplitude e de grandeza que
enfatiza as características dos elementos naturais.

O sol descambava. D. Flor abriu as gelosias da janela e divagou os


olhos pela floresta, que [se] arreava então de toda a sua pompa vernal
com a estação das águas. Naquele extenso painel de verdura, cada
árvore debuxava-se com uma forma e um matiz diverso. Viam-se
todos os moldes da arquitetura desde a coluna e a pirâmide até a
cúpula e o zimbório. O pincel do mais fino colorista não imitaria a
gradação daquela admirável palheta desde o verde negro do
jacarandá até o verde gaio do espinheiro. (ALENCAR, 2013, p. 110)
Além do sublime, observa-se na descrição da natureza de Alencar
uma forte característica contemplativa, que também vem da influência europeia. Essa
visão contemplativa era carregada de imaginários e de construções autorais:

Raiava uma formosa madrugada. Os primeiros vislumbres


desmaiavam no céu o azul denso das noites dos trópicos; e para as
bandas do nascente já estampavam-se os toques diáfanos e
cintilantes da safira. A frescura deliciosa das manhãs serenas do
sertão no tempo do inverno derramava-se pela terra, como se a luz
celeste que despontava trouxesse da mansão etérea um eflúvio de
bem-aventurança. (ALENCAR, 2013, p. 153)
Leitor de escritores como François René Chateubriand e Bernardin de
Saint-Pierre, muito famosos no final do século XIX, Alencar mantém os princípios de
exaltação à natureza como forma para a permanência do homem no seu local de
origem e, sendo assim, a criação de uma identidade.
Mesmo mantendo aspectos da tradição europeia, a proposta era a
valorização do nacional, buscando alcançar o seu projeto: a criação de uma identidade
por meio da valorização das nossas características. Com isso em mente, e
considerando seu distanciamento em relação à região, é possível considerar que as
descrições do espaço presentes na obra se caracterizam pelo imaginário e dialogam
com outros aspectos da obra (como as personagens), condizendo com o conceito de
paisagem de Michael Collot (2014, p. 5):

As paisagens escritas, porém, nem sempre são descritas; elas podem


ser simplesmente evocadas; e não são somente visuais: elas
comportam uma parte de imaginário e solicitam outros sentidos além
da visão. Longe de permanecer estática, a paisagem participa
frequentemente da ação e da expressão dos sentimentos e das
emoções dos personagens e/ou do autor.
61

Mesmo que o sertão esteja de alguma forma em sua memória infantil,


a construção da obra está baseada em literaturas de grande apelo para o autor, como
aponta Martins (2011).

Os modelos das descrições da natureza em Alencar não devem ser


buscados nos sertões do Ceará ou nos pampas do Rio Grande do Sul,
e sim nas páginas de Chateubriand, Fenimore Cooper ou Bernandin
de Saint-Pierre, autores de sua predileção que lhe forneceram o
prisma através do qual seu olhar captou a natureza brasileira e a
transforou num cenário de cores e contornos românticos. (MARTINS,
2011, p. 116)
Portanto, é possível perceber que a busca por algo novo e original
não foi alcançada, pois as ferramentas utilizadas para a empreitada foram as mesmas
que segmentam as ideias da tradição romântica. Essa característica, que está
presente na maioria dos autores do período imediatamente pós-independência
(Castro Alves, Gonçalves Dias, entre outros), mostra a complexidade da busca por
uma identidade em um país onde pode-se encontrar diversas etnias e culturas. Esses
autores “nativos” foram alunos de importantes escolas estéticas europeias e
carregavam forte influência das literaturas “externas”. Nessa ânsia de se afastar da
metrópole, os literatos nacionais buscavam uma troca de relações com outras nações,
e a principal nação escolhida foi a França.
Essa escolha, como argumenta Leyla Perrone-Moisés (1997), mostra
um paradoxo que marcou não apenas a literatura nacional, mas sim todas as
literaturas da América Latina. No trecho a seguir, a autora diz que as relações com a
França, com a intenção de se afastar da influência ibérica, não foram o que se
esperava:

Naquele momento, as antigas metrópoles espanhola e portuguesa


estavam afrancesadas [...] Um bom exemplo disso é dado por Dom
João VI que, corrido por Napoleão e instalado no Brasil, chamou
imediatamente uma Missão Francesa [...] Os pintores dessa Missão
usaram, para retratar Dom João VI, a mesma estética neoclássica que
tinham aprendido e usado para retratar Napoleão. (PERRONE-
MOISÉS, 1997, p. 250)
Nessa citação, fica clara a dificuldade de “fugir” das influências
europeias na busca pela criação de uma literatura nacional. A influência europeia foi
de fato deslocada para a França, e as obras seguiam uma ampla gama de influências.
Além das características do sublime e da contemplação, pode-se
identificar outras influências europeias na natureza de Alencar. O caráter de
religiosidade, ressaltado pelo uso de referências sacras, também tem origens no
62

romantismo europeu. Vinculando a natureza com a criação divina, Alencar dialoga


com o historiador inglês Keith Thomas, que afirma que “[...] o apreço pela natureza, e
particularmente pela natureza selvagem, se convertera numa espécie de ato religioso.
A natureza não era só bela, era moralmente benéfica” (THOMAS, 1988, p. 309). Neste
trecho, nota-se como o autor relaciona a natureza com estruturas de templos
religiosos:

Naquele extenso painel de verdura, cada árvore debuxava-se com


uma forma e um matiz diverso. Viam-se todos os moldes da arquitetura
desde a coluna e a pirâmide até a cúpula e o zimbório. O pincel do
mais fino colorista não imitaria a gradação daquela admirável palheta
desde o verde negro do jacarandá até o verde gaio do espinheiro.
(ALENCAR, 2013, p. 110)
A natureza aqui apresentada se transforma em templo com as
diversas formas e cores da vegetação, tornando o interior da floresta em um local com
características do sagrado, construindo uma relação de aproximação do natural com
a religiosidade e associando a presença no interior da mata a uma forma de se
aproximar do divino. Para Martins (2001, p. 105), essa relação com o divino em O
Sertanejo demonstra o modelo de Chateaubriand, onde “[...] as maravilhas do mundo
natural são provas da existência da Deus”.
Além da relação com a religiosidade, Alencar concebeu a natureza
como o local de origem do povo sertanejo, exaltando a relação do homem e de seu
espaço. Quando Arnaldo busca viver na mata, percebe-se isso como um retorno às
suas origens, ao seu habitat.

Aí, no meio da natureza, sem muros ou tetos que se interponham entre


êle e o infinito, é como se repousasse no puro regaço da mãe pátria,
acariciando pela graça de Deus, que lhe sorrí na luz esplêndida dessas
cascatas de estrelas. (ALENCAR, 2013, p. 44)
A utilização do termo “mãe pátria” apresenta a importância da
natureza/espaço para a construção da personagem, reforçando a sua origem na
natureza e exaltando a “origem” do povo brasileiro. Assim como a floresta está igual
ao tempo de sua criação, como dito por Chateaubriand, “[...] o que se sente entrando
nessas florestas tão velhas como o mundo, e que ainda podem dar uma ideia do que
era a criação quando saiu das mãos de Deus?” (CHATEUBRIND apud ALENCAR,
1953, p. 52), o homem se aproxima de sua origem e de sua essência na relação com
ela.
63

A soma da exaltação do Brasil, a busca pela identidade, a utilização


do sublime e o caráter religioso da natureza são alguns aspectos que formam a
paisagem proposta por Alencar. Uma visão de um sertão exuberante e puro que
funciona como motor para as ações do herói Arnaldo. As referências físicas, como a
floresta, os animais, a luz e o rio, permitem complementar o caráter subjetivo da
paisagem e apresentam uma versão própria e idealizada do sertão. Uma visão
contrária a essa idealização é a proposta por Graciliano Ramos, que será analisada
no próximo item.

4.2 A OPRESSÃO DO ESPAÇO, A PAISAGEM “REAL”

O sertão em Vidas Secas (RAMOS, 2011) é identificado como a


representação do “verdadeiro” sertão. Uma reprodução que se quer fidedigna do
interior do Nordeste brasileiro. Nessa seção, busca-se problematizar tal interpretação
e indicar como Ramos, assim como Alencar, constrói um espaço inventado: para isso,
o sertão seco é enfatizado pelo discurso sociocultural que vem de uma tradição
literária que influenciou a sua obra.
O sertão “real” apresentado por Ramos segue uma tradição de muitos
anos, que se iniciou com as obras O Cabeleira, de Franklin Távora (1876), e A Fome,
de Rodolfo Teófilo (1980), e se ampliou com o sucesso da obra Os Sertões (1902), de
Euclides da Cunha, no seu foco na seca. Trata-se de um espaço em que a falta de
água e a vegetação morta são dominantes e, na maioria das obras citadas,
norteadoras das ações das personagens.
Vidas Secas teve os seus capítulos elaborados em ordem aleatória e,
apenas após a finalização da obra, Ramos definiu a ordem da publicação. O
pesquisador José Marcos Barros Devilart (2002) cita uma pesquisa de Francisco de
Assis Barbosa que comprova:

Francisco de Assis Barbosa, ao vasculhar os originais, comprovaria a


ausência de seguimento na narrativa. “Baleia”, o nono capítulo, foi
escrito em 4 de maio de 1937. Um mês depois escreveria “Sinha
Vitória”, o quarto capítulo. E “Mudança”, o primeiro na ordem de
apresentação, só seria escrito em 16 de julho do mesmo ano. Depois
de todos os episódios reunidos, Graciliano ordenou-os para a
publicação. Por isso, alguns acham Vidas Secas um romance
“desmontável”. (DEVILART, 2002, p. 2)
64

Esse caráter desmontável enfatiza ainda mais a importância do


espaço, na obra, que segundo Moraes (1992), em seu livro O Velho Graça, indica:
“[...] o fio condutor da narrativa, materializado nos ásperos e cruéis embates do
homem com a natureza da região” (MORAES,1992, p. 163). Assim como o ciclo da
seca organiza os capítulos e problematiza a ideia de independência dos capítulos. De
qualquer modo, o espaço e a natureza são os responsáveis pelo andamento da obra.
Na obra de Euclides da Cunha, nota-se uma forte característica que
foi mantida na obra de Ramos, que é o conceito de topofobia, estudado pelo geógrafo
Yi-Fu Tuan (1982), em sua obra Geografia Humanista, que consiste em uma aversão
às condições topográficas do espaço.
O conceito de topofobia faz parte dos estudos de Tuan em relação à
geografia humanística, na qual se analisam os comportamentos e as relações entre o
humano e o lugar habitado, desse modo, esse ramo da geografia

[...] procura um entendimento do mundo humano através do estudo


das relações das pessoas com a natureza, do seu comportamento
geográfico, bem como dos seus sentimentos e ideias a respeito do
espaço e do lugar. (TUAN, 1982, p. 143
É desse ramo que se extrai a topofobia, a aversão e a topofilia, que é
o apego e a familiaridade com o espaço.
Em relação à obra Os Sertões, a descrição do espaço tem um olhar
depreciativo. Vindo da capital, Cunha se espantou com existência de uma população
que morava em um espaço com características tão hostis, considerando que a “[...]
região incipiente ainda está preparando-se para a vida” (CUNHA, 2019, p. 472). Esse
olhar de Euclides da Cunha, presente majoritariamente na primeira parte de sua obra,
em que se apresenta o espaço sertanejo, permite identificar a distinção feita por ele
entre o litoral e o interior. Percebe-se sua aversão ao sertão, não apenas a partir do
enfoque na seca, mas em outros aspectos, como indicado por Murari, quando analisa
a primeira parte da obra:

Neste texto, que mistura estranhamente a aridez dos termos técnicos


e uma linguagem que já foi rotulada com geografia trágica [...]
Inicialmente, o espaço nacional surge como duplicidade: por um lado,
a exuberância do litoral, por outro, o vazio do sertão. [...] Em segundo
lugar, representa-se o espaço do sertão como negatividade, espaço
estrangeiro, desconhecido, despovoado, isolado, incapaz de fixar o
homem, ruptura abrupta na continuidade idealizada do território
nacional. (MURARI, 2007, p. 51)
65

É nessa tradição de topofobia em relação ao sertão que Graciliano


apresenta o espaço como fator de opressão, que obriga aos seus habitantes a um
processo de constante migração. A primeira descrição da paisagem é constituída de
adjetivos ligados à morte: “A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado
de manchas brancas que eram ossadas. O voo negro dos urubus fazia círculos altos
em redor de bichos moribundos” (RAMOS, 2011, p. 10). Em outro momento, o azul do
céu se tornava terrível, “[...] aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente”
(RAMOS, 2011, p. 13). Do mesmo modo, o silêncio do sertão é causado pela falta de
“vida”: “A manhã, sem pássaros, sem folhas e sem vento, progredia num silêncio de
morte. A faixa vermelha desaparecera, diluíra-se no azul que enchia o céu” (RAMOS,
2011, p. 120). O medo vinha também dos animais, em especial as aves: “A lembrança
das aves medonhas, que ameaçavam com os bicos pontudos os olhos de criaturas
vivas, horrorizou Fabiano” (RAMOS, 2011, p. 126).
A constante ênfase da relação da seca com morte está explicita
também no título da obra, quando se ressalta que não apenas a terra tem a qualidade
de estar seca, mas também a vida, em que se infere que o espaço retira das
personagens a sua existência, a seca se torna parte da vida do sertanejo. Portanto, o
enredo da obra segue a lógica da seca, que chega e acaba com a vida do local,
obrigando todos os seres a migrarem, em uma caminhada em direção à capital,
espaço em que a seca não chega. Essa migração ocorre pela expectativa de que
longe do sertão existe vida e abundância.
A dicotomia apresentada possibilita inferir a valorização da capital (a
cidade), em relação ao sertão (o rural), outra forte influência das produções
euclidianas, que podem ser analisadas pelo olhar dos estudos do historiador Raymond
Willians (1989) em sua obra O Campo e a Cidade. Nessa obra, Williams estuda como
a visão da relação entre a cidade e o campo foi mudando durante os anos e como
elas são representadas na literatura. Mesmo utilizando obras Britânicas para
desenvolver a sua tese, pode-se utilizar as reflexões apresentadas para entender a
relação elaborada por Ramos. Em um breve resumo sobre essa relação, o autor
mostra como existem construções positivas e negativas nos dois conceitos:

O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida – de


paz, inocência e virtude simples. A cidade associou-se à ideia de
centro de realizações – de saber, comunicações, luz. Também [se]
constelaram poderosas associações negativas: a cidade como lugar
de barulho, mundanidade e ambição; o campo como lugar de atraso,
66

ignorância e limitação. O contraste entre campo e cidade, enquanto


formas de vida fundamentais, remonta à Antiguidade clássica.
(WILLIAMS, 1989, p. 11)
Relacionando as visões de Alencar e Ramos, nota-se que o sertão
seguiu processo semelhante, de uma visão “positiva” de Alencar para uma associação
negativa por parte de Ramos. O sertão era onde: “[...] a catinga amarela, onde as
folhas secas se pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos se
torciam, negros, torrados. No céu azul as últimas arribações tinham desaparecido.
Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato [...] ” (RAMOS, 2011,
p. 117) e o a sobrevivência era o deslocamento, sempre em direção ao litoral/capital.
No decorrer da obra, observa-se os poucos adjetivos sendo utilizados
para realçar os perigos da natureza, uma natureza/espaço como opressão, “Precisava
fugir daquela vegetação inimiga” (RAMOS, 2011, p. 119). As perspectivas de um lugar
melhor motivavam essa fuga, pois mudariam de vida, não tinham apego à terra,

Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga onde havia


montes baixos, cascalho, rios secos, espinho, urubus, bichos
morrendo, gente morrendo. Não voltariam nunca mais, resistiriam à
saudade que ataca os sertanejos na mata. (RAMOS, 2011, p. 123)
A caracterização do espaço na obra é feita de forma objetiva e com
poucos adjetivos, passando a ideia de vazio, com ausência de matas e poucas
referências de animais da região. Com essa combinação, Ramos traz um espaço a
ser preenchido, o que condiz com o primeiro significado do conceito de sertão,
reforçando a ideia de que o espaço da obra representava o Nordeste “real”,
principalmente devido a um evento climático que ficou famoso em todo o Brasil.
A tradição do “sertão da seca” e a sua associação como o Nordeste
têm origem no evento climático que ficou conhecido como a “grande seca”, um período
de estiagem que ocorreu de 1877-1879. Diferente de outras secas, esse evento
atingiu fortemente as elites nordestinas e, como cita Albuquerque Júnior, foi utilizado
politicamente por elas:

[...] o uso desse fenômeno como argumento e justificativa para a


reivindicação de recursos, obras públicas, cargos públicos e criação
de instituições que vêm em benefício dos interesses das elites do
espaço da seca, que tende a se ampliar já com a ocorrência do
fenômeno, uma vez que a seca deixa de ser do Ceará e passa a ser
do Norte. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 22)
A “grande seca” se tornou nacionalmente conhecida pela ampla
cobertura jornalística do evento, com destaque para aquela realizada pelo jornal
67

Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro. Tal jornal enviou à região o jornalista José do
Patrocínio, que se notabilizou pelas matérias com forte apelo social e com críticas aos
poderes públicos. Ao final de sua passagem pelas regiões afetadas pela seca e com
uma grande quantidade de dados em relação ao evento, Patrocínio lançou o romance
Os Retirantes (1879), que apenas reforçou o seu importante papel na transformação
da seca em uma temática nacional e não apenas uma questão local. É nesse contexto
que Ramos apresenta o sertão com forte apelo social e envolto na questão do espaço.
O sertão da seca é o que oprime o homem e permite a opressão por outros homens
– no caso o estado e os patrões.
Em Vidas Secas, o espaço opressor é apresentado logo nas primeiras
linhas da obra e constituí a paisagem que será desenvolvida no decorrer da narrativa.
O espaço de Vidas Secas está envolvido com as ações e tem a mesma importância
que o enredo e os personagens. As descrições não são longas, mas estão em todos
os capítulos, na forma das cores, da vegetação e da topografia. As cores utilizadas na
descrição da paisagem se afastam de uma tradição idílica, na qual o azul,
tradicionalmente vinculado à pureza, assume uma característica negativa quando
relacionado com a falta de chuva: “Antes de olhar o céu, já sabia que ele estava negro
num lado, cor de sangue no outro, e ia tornar-se profundamente azul. Estremeceu
como se descobrisse uma coisa muito ruim” (RAMOS, 2011, p. 210).
A vegetação não apresenta os tons de verde, mas sim as cores
vermelha e amarela, distanciando-se de sua representação mais tradicional e
romântica, dificultando a criação de uma identificação e reforçando a necessidade de
estar em movimento. Esse distanciamento ocorre quando não se reconhece a
vegetação como tal (como resistência da vida), mas algo que se mistura com os
demais elementos do espaço, tornando tudo uma coisa só. Não existe uma
contraposição no ambiente, apenas a opressão que todos os elementos causam nos
personagens, assim como a ênfase na qualificação negativa das cores do ambiente:
“A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que
eram ossadas. O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos
moribundos” (RAMOS, 2011, p. 10). Pode-se distinguir o vermelho (com o branco dos
ossos) e o negro dos urubus com o verde e o colorido das obras românticas. Os tons
em Vidas Secas buscam trazer sobriedade, junto com os aspectos da topofobia, já
apresentados, para apresentar um espaço de difícil sobrevivência.
68

Uma das passagens que melhor descreve a paisagem do sertão


presente na obra de Ramos está no início do capítulo “O Mundo Coberto de Penas”,
no qual se tem uma “visão” da movimentação das aves nos elementos do sertão:

O mulungu do bebedouro cobria-se de arribações. Mau sinal,


provavelmente o sertão ia pegar fogo. Vinham em bandos,
arranchavam-se nas árvores da beira do rio, descansavam, bebiam e,
como em redor não havia comida, seguiam viagem para o sul. O casal
agoniado sonhava desgraças. O sol chupava os poços, e aquelas
excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o gado.
(RAMOS, 2011, p. 109)
Nesse trecho, observa-se no trajeto das aves os principais elementos
da paisagem do sertão apresentado na obra. A árvore mulungu é conhecida como
fonte de alimento para diversas aves e, aqui, é um elemento natural que resiste à
seca; entretanto, perde o aspecto de prover alimentos e se torna “mau sinal”. A grande
quantidade de aves em uma árvore próxima ao bebedouro indica o conflito entre
pessoas e animais pela sobrevivência no sertão e justifica a indicação de mal
presságio pela presença das aves. A ausência dos frutos da árvore e da água do
bebedouro não permitem a permanência das aves naquele local que, portanto,
seguem o mesmo caminho dos retirantes. Tendo as aves como inimigas e o sol como
o único que se “alimenta” da água dos poços, fica evidente o caráter negativo da
natureza, como na passagem a seguir:

Fabiano espiava a catinga amarela, onde as folhas secas se


pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos se
torciam, negros, torrados. No céu azul as últimas arribações tinham
desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo
carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre. (RAMOS,
2011, p. 117)
Além da visão negativa da natureza, o trecho acima possibilita
identificar a questão da luta do homem contra a natureza. De modo a ressaltar a força
do homem, a natureza ganha um caráter de superioridade, em que a sobrevivência
demonstra a resistência do homem em enfrentar as dificuldades. Com uma disputa
desigual entre o sertão, que é apresentado com amplitude e repetição, e o homem,
tem-se a ideia de um sertão sem limites, que persegue os personagens, o que
novamente ressalta a força do sertanejo. Ramos se utiliza da repetição como forma
de demonstrar a grandiosidade do sertão, citando, principalmente, as plantas que
sobrevivem à seca: “Os mandacarus e os alastrados vestiam a campina, espinho, só
espinho” (RAMOS, 2011, p. 120); “Olhou as quipás, os mandacarus e os xiquexiques”
69

(RAMOS, 2011, p. 19); “Quis acordá-lo e perguntar, mas distraiu-se olhando os


xiquexiques e os mandacarus que avultavam na campina” (RAMOS, 2011, p. 41).
Tudo seco ao redor. E o patrão era seco também, arreliado, exigente, ladrão,
espinhoso como um pé de mandacaru. Essa presença constante indica um reforço
das características locais e apresenta um contraponto entre os homens que se
deslocam e a natureza que se mantém.
Os elementos da paisagem do sertão promovem o exercício proposto
por Collot, em que a geração de uma visão do sertão gera uma ideia na recepção
(visão individual), junto com a ideia coletiva do sertão proposto por Cunha e por outros
autores, de modo que a junção das duas se complementa, tornando o sertão de
Ramos uma composição coletiva e que reforça a visão da seca como paisagem
primeira relacionada ao sertão nordestino.
Antonio Candido (2006) reconhece em Ramos na sua obra Confissão
e Ficção “[...] um paisagista seguro, pois no seu texto a paisagem entra como coisa
necessária, vinculada funcionalmente à ação” (CANDIDO, 2006, p. 140); e, em Vidas
Secas, esse vínculo fica evidente. Corroborando com e ampliando as considerações
de Candido, pode-se estabelecer um diálogo entre o conceito de paisagem e a
construção do espaço realizada por Ramos em sua obra. O conceito de paisagem,
que é tradicionalmente vinculado à área da geografia, tem transitado por diversas
outras áreas. A aproximação com a literatura é relativamente recente, sendo Michael
Collot uns dos autores mais proeminentes nessa proposta. Para ele, a paisagem é
uma construção que evolve percepção, concepção e ação, que auxilia na formação
de uma estrutura de sentidos. Aplicando a proposta de paisagem em Collot, percebe-
se que a Região Nordeste, analisada com o olhar da tradição de seca, reproduz a
paisagem presente nas obras anteriores. Vidas Secas teve papel fundamental para a
consolidação do sertão opressor, e a propagação desse papel ocorreu pelo sucesso
editorial da obra e das gravuras de Aldemir Martins. Os desenhos, realizados em 1963
e publicados na nona edição do romance, têm traços simples e ampliam a força da
representação proposta por Ramos. Entre os desenhos produzidos, ressalta-se um
que dialoga com as análises deste capítulo.
70

Figura 1 – O Sertão

Fonte: Ramos (2011)

Intitulada de O sertão, a figura exibe diversos elementos apontados


nesta análise, o caráter opressor, enfatizado pelo tamanho do sol, a repetição dos
elementos naturais e a amplitude do sertão. Diversos artistas visuais se utilizaram de
Vidas Secas para elaborar obras, além de Aldemir Martins, Candido Portinari e Tomas
Santa Rosa são alguns exemplos de artistas que contribuíram para a consolidação da
paisagem construída por Ramos.

Figura 2 – Os Retirantes

Fonte: Aidar (2021)


71

Figura 3 – Capa da primeira edição de Vidas Secas

Fonte: Levy Leiloeiro (2016)

Sendo assim, a seca que é um fenômeno climático que ocorre por


um período específico e, em um espaço determinado, se tornou uma característica
regional e permanente que determina comportamentos humanos e caracteriza toda
uma região, definindo o Nordeste como um espaço de sofrimento.
Após analisar as personagens e o espaço sertanejo, no capítulo a
seguir, serão analisados o romance Galiléia e o filme Árido Movie, com a proposta de
identificar questões que permaneceram e os novos caminhos na representação da
temática sertaneja.
72

5 REMINISCÊNCIAS E NOVOS RUMOS NO SERTÃO

Analisar a importância do papel de Graciliano Ramos e José de


Alencar na invenção do sertanejo pode indicar que esse processo ficou restrito a um
período histórico. Nos anos posteriores ao romance de 30, a temática sertaneja
permaneceu na literatura, no entanto, não no mesmo volume e destaque do período
de transição do século XIX para o século XX. Foi no cinema que a temática sertaneja
se manteve em destaque com diversas produções de sucesso que, somadas a outras
mídias, como os quadrinhos, construíram uma ampla gama de representações do
sertanejo e mantiveram a temática viva até os dias de hoje na cultura nacional, como
esse processo ocorreu será apresentado no próximo subtítulo.
Com a ampliação dos meios de produção das representações
sertanejas, ficar restrito à literatura traria uma visão parcial do papel que as obras de
Alencar e Ramos representaram para a cultura nacional. Desse modo, além da
literatura serão apresentadas algumas questões utilizando como fonte o cinema e
como essa forma de arte utilizou as características inventadas pela literatura para
representar o espaço e o sertanejo. Em um primeiro momento, realiza-se um breve
levantamento das obras (filmes e livros) produzidas até os dias de hoje, para
demonstrar como, mesmo oscilando a quantidade de obras produzidas, o sertão
sempre esteve no debate nacional.
Após esse panorama, as reminiscências de duas obras serão
analisadas, o livro Galiléia, de Ronaldo Correia de Brito (2008), e o filme Árido Movie
(2006) do diretor Lírio Ferreira. A duas obras demonstram que as influências dos
autores discutidos nesta pesquisa permanecem atuais na literatura e ultrapassaram
os limites da escrita, impactando no cinema contemporâneo

5.1 A PERMANÊNCIA DO SERTÃO COMO FONTE

No âmbito da literatura, uma das obras mais estudadas e


reconhecidas da temática sertaneja, Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa,
em 1952, tem enorme influência dos escritos de Euclides da Cunha e do conjunto de
autores do movimento de 30. A obra de Guimarães Rosa manteve diversos aspectos,
relacionados as personagens e ao espaço, gestados no período de José de Alencar
73

e Graciliano Ramos. O sucesso e o impacto na cultura nacional da obra de Guimarães


Rosa mantiveram o espírito do romance de 30 muito presente na literatura nacional.
Outro movimento, que surgiu buscando a valorização do Nordeste
como cultura popular e produziu importantes obras com a temática sertaneja, foi o
movimento Armorial, que teve como fundadores Ariano Suassuna e Raimundo
Carrero. O movimento foi criado como uma revisão do modernismo, como indica a
pesquisadora Cecília Pires (2020) em seu artigo Movimento Armorial: a Dualidade
entre o Erudito e o Popular. Breves notas sobre o Movimento Armorial (2020, p. 390):

Com o intuito de realizar uma arte brasileira, erudita, a partir das raízes
populares, o escritor Ariano Suassuna revisita ideias do modernismo
em Mário de Andrade, e lança em Recife, em outubro de 1970 o
Movimento Armorial. Este movimento teve como objetivo criar uma
identidade brasileira de caráter erudito, utilizando como matéria-prima
principal a cultura popular provinda sobretudo do sertão nordestino,
como por exemplo todo o universo ligado à Literatura de Cordel.
Com o objetivo de fundir a arte erudita nas artes populares, o
movimento não ficou restrito à literatura, incentivando a produção musical, de artes
plásticas (gravuras e pinturas), esculturas, entre outras expressões artísticas. Na
literatura, a obra Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta
(1971) teve grande destaque e ficou conhecida como o romance que representa as
ideias do movimento. A obra dialoga com as questões apresentadas na obra O
Sertanejo presentes no romantismo, por meio da valorização do regional, essas
questões buscam gerar uma identidade nacional. Como Teixeira (2017) apresenta em
seu artigo Movimento Armorial: A Dualidade Entre o Erudito e o Popular:

Produzir uma arte brasileira fundamentada nas raízes culturais


populares sertanejas que fizesse frente ao constante apelo de
compositores e artistas de influências estrangeiras, tidas como
obstáculos à construção de uma identidade nacional. (TEIXEIRA,
2017, p. 165)
As influências do movimento Armorial atualmente estão presentes na
música, em grupos populares, como o Quinteto Armorial, e também na estética das
composições de grandes orquestras (PIRES, 2020, p. 393). A maioria da produção da
literatura Armorial ficou restrita aos autores da região e, mesmo com o grande sucesso
editorial de Ariano Suassuna, não motivou um aumento de obras literárias sobre a
temática.
Após a criação do movimento Armorial, a temática sertaneja se
resumiu a poucas obras entre os anos de 1980 e 1990, sendo Antônio Torres (1976;
74

1997), com suas obras Essa Terra e o Cachorro e o Lobo, um dos poucos autores que
tiverem destaque com a temática. Com a literatura nacional mais voltada para as
temáticas urbanas, como a violência nas cidades, a temática sertaneja/rural perdeu
espaço, como apontado por Ronaldo Brito em entrevista

O eixo temático das narrativas deslocou-se naturalmente para as


cidades e suas periferias. Isso porque o Brasil se transformou desde
a década de 1950, deixando de ser um país rural e se tornando
sobretudo urbano, com cerca de 85% de sua população vivendo em
cidades com mais de 20.000 habitantes. Nelas, a violência é marcante.
Narrar essa violência tornou-se realidade, necessidade. (BRITO,
2019a, p. 2)
Apenas recentemente ocorreu uma retomada na produção e no
destaque de obras que trabalham com o sertão. Em meados dos anos 2000, surgiram
novas obras que revisitaram a temática sertaneja e, junto com o cinema, deram
destaque ao sertão na cultura nacional. Dois autores se destacaram nesse período,
Maria Valéria Rezende (2001; 2016), com destaque para as obras Vasto Mundo e
Outros Cantos, e Ronaldo Correia de Brito (2008), autor de Galiléia, que será
analisada mais adiante.
Já as representações da temática sertaneja no cinema utilizaram as
obras do romantismo e do romance de 30 de forma direta e como inspiração para
diversos filmes que marcaram o cinema nacional. Nesse breve resumo, não se
pretende apresentar as inúmeras obras produzidas com essa temática, apenas
apontar as que tiveram mais destaque da crítica e do público, de modo a apresentar
um panorama mais amplo.
A pesquisadora Walnice Galvão (2004), no artigo Metamorfoses do
sertão, identifica quatro momentos em que a temática sertaneja iniciada na literatura
sofreu ressignificações por meio do cinema. O primeiro momento, no início dos anos
de 1960, em um curto período de três anos (1963 a 1965), foram lançados quatro
filmes que marcaram o cinema e a cultura nacional que tinham influência direta das
obras de Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e José Lins do Rego. São eles: Vidas
Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos; Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964),
de Glauber Rocha; Os Fuzis (1964), de Ruy Guerra; e A Hora e a Vez de Augusto
Matraga (1965), de Roberto Santos. Os quatro filmes fizeram parte do primeiro
momento do movimento que ficou conhecido como Cinema Novo e buscava criar
filmes mais próximos à “realidade nacional’ e que também tivessem apelo popular,
75

distanciando-se do cinema estadunidense. Nessa busca pelo nacional, o regionalismo


do romance de 30 foi fonte para a produção cinematográfica, como indicado por
Walnice Galvão:

O Regionalismo foi marca de fábrica do Cinema Novo, em sua


projeção planetária nos anos de 1960, quando as câmeras invadiram
o sertão e elegeram como ícones os sertanejos, especialmente o
cangaceiro, simbolizando o oprimido que lutava contra seus grilhões.
Filmes admiráveis hauriram em fontes regionalistas os enredos, as
personagens, a paisagem calcinada da caatinga. (GALVÃO, 2004, p.
375)
Tendo o cangaceiro como principal símbolo dos enredos, as
produções traziam um forte apelo social e ressaltavam os conflitos por poder e terra
na região. O olhar para o sertão de Glauber Rocha, tinha muito a visão de Graciliano
Ramos, principalmente na questão do espaço, como é possível observar na imagem
a seguir.

Figura 4 – Imagem do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol

Fonte: Lobão (2021)

Nessa imagem de Deus e o Diabo na Terra do Sol, nota-se a


paisagem como representada em Vidas Secas (RAMOS, 2011), com enfoque na
vegetação local por meio da grande quantidade de xique-xiques, dando amplitude ao
sertão e enfatizando a condição da seca.
O segundo momento de ressignificação teve seu auge na produção
de Bye-Bye Brasil (1979), de Cacá Diegues, e em O Homem que Virou Suco (1979),
de João Batista de Andrade. Os dois filmes deslocam o sertanejo de sua terra, o
76

sertão, em direção a regiões urbanas e enfatizam a relação do sertanejo com o seu


espaço de origem, pois apresentam o estranhamento do sertanejo no ambiente
urbano.

Figura 5 – O sertanejo na Cidade, imagem do filme O Homem que Virou Suco

Fonte: Estância Turística Avaré (2020

Na imagem capturada do filme O Homem que Virou Suco, o


cangaceiro no centro da cidade exemplifica como a narrativa do filme reforça a
necessidade do espaço para dar significado à população sertaneja, um princípio que
estava presente tanto em O Sertanejo quanto em Vidas Secas.
Outro momento de ressignificação da temática sertaneja foi o ano de
1996, com os filmes Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, e Corísco e
Dadá, de Rosemberg Cariry, que tinham como tema principal as filmagens reais, feitas
do bando do cangaceiro Lampião, por Abraão Benjamim. Apresentando um Lampião
como um personagem geográfico complexo, de qualidades e defeitos, ela alçou o
cangaceiro a um papel de justiceiro social, um representante do povo pobre que
enfrentava os grandes fazendeiros e o estado opressor.
O quarto momento traz um gama de variações de objetos e
personagens, porém o espaço representado sofre poucas alterações. O “sertão
indeterminado” (GALVÃO, 2004, p. 390) vai, aos poucos, se distanciando da relação
personagem/espaço, e a representação do cangaceiro sai do papel principal para as
representações secundárias dentro das obras. Diversos personagens trazem o rastro
77

do vaqueiro, mas o que se pode identificar é um movimento em direção a novas


perspectivas sobre o conceito de sertanejo. Desse momento, pode-se citar: Central
do Brasil (1998), Eu, Tu, Eles (2000), Abril Despedaçado (2001), Árido Movie (2006),
Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo
(2009), A História da Eternidade (2014), Boi Neon (2015), Reza a Lenda (2016),
Bacurau (2019) e Deserto Particular (2021).
Boa parte dessas obras tem em comum a questão do deslocamento,
representado pela viagem ao sertão, presente no enredo principal ou relacionado a
personagens importantes da narrativa. O retorno ao sertão em Central do Brasil
(1998), o retorno para acompanhar o velório do pai em Árido Movie (2006) e o retorno
de Teresa à comunidade de Bacurau (2019) mostram uma nova ótica em relação ao
sertão, não mais como um local de pessoas isoladas ou emigrantes, mas sim como
destino.
Vale ressaltar que, a partir do início dos anos 2000, a temática
sertaneja encontrou uma nova forma de expressão nos quadrinhos, com diversas
publicações que retomaram a temática do cangaceiro. Obras como: Estórias Gerais
(1998), de Wellington Srbek e Flávio Colin; Bando de Dois, de Danilo Beyruth (2010);
O cabra (2010), de Flávio Luiz; Mandacaru Vermelho (2014), de Rafael Dantas;
Cangaço Overdrive (2018), de Zé Wellington; Lâmina Azulada (2020), de Luis Carlos
Sousa e Rafael Dantas, entre outros. Apesar das inúmeras possibilidades de análise
dos quadrinhos indicados acima, eles não serão analisados neste trabalho. Contudo,
é importante ressaltá-los para demonstrar como a temática se permeia à cultura
brasileira em diversas expressões culturais até nos dias de hoje.

5.2 GALILÉIA: O RETORNO A UM ESPAÇO QUE NÃO EXISTE MAIS

O espaço que nos anos 30 expulsava pessoas, na


contemporaneidade causa o efeito inverso. É importante salientar que esse retorno
tem características bem específicas e não condiz, apenas, com o retorno ao espaço
em si, mas com uma ideia construída desse espaço.
Na obra Galiléia (2008), de Ronaldo Correia de Brito, observa-se o
retorno de Adonias, narrador-protagonista da obra, ao sertão para se encontrar com
o avô, Raimundo Caetano, que está doente em sua fazenda Galiléia, localizada no
sertão dos Inhamuns no estado do Ceará. Acompanhado por Ismael e Davi, primos
78

de Adonias, a viagem se torna um meio de relembrar as suas origens e os diversos


traumas familiares e mostra como cada personagem tomou um rumo próprio até
estarem novamente juntos nessa viagem.
No decorrer da narrativa, nota-se que o sertão representado na obra
é junção de dois sertões, um da memória dos personagens e o outro sertão que eles
encontram na chegada à fazenda. As personagens constroem o sertão do passado
por meio das suas lembranças da infância e de conceitos que estão no imaginário
nacional. Desse modo, esse sertão da “memória” dialoga com as obras do início do
século XIX, principalmente com o sertão produtivo e belo de José de Alencar, já o
sertão da fazenda Galiléia tem mais relações com a representação do sertão
decadente de Graciliano Ramos.
A dinâmica entre o sertão imaginado pelas personagens e o sertão
que eles encontram no retorno aponta para um processo de constante ressignificação
que o sertão sofre na literatura. Portanto, o sertão da fazenda Galiléia é algo novo,
mas que utiliza todo o processo que a literatura percorreu para apresentar essa nova
ideia de sertão. Essa ressignificação se torna mais evidente quando o tio de Adonias,
Salomão, discute as questões do regionalismo e do sertão, no que se considera uma
crítica ao conceito e uma tentativa de distanciar a obra dessa tradição regionalista:

Ele sempre foi contrário aos movimentos regionalistas, acha que “em
vez de andarem atrás de particularidades sem importância, deveriam
investigar a contribuição econômica, social e linguística que o
Nordeste deu para a formação do Brasil, e tudo o que foi produzido
nas artes. (BRITO, 2008, p. 164)
Salomão assume uma crítica muito comum em relação ao
regionalismo, na qual considera que “[...] os aspectos regionais são valorizados como
compensação do déficit material, de desvantagens em termos de riqueza [...]” (MELO,
2014, p. 70) e o melhor caminho seria a valorização da importância daquele espaço
para o Brasil se distanciando das especificidades ou “diferenças”.
Um caminho para entender a ressignificação e a junção entre o sertão
próspero e o sertão que se tornou uma terra de sobreviventes, considera essencial
atentar à forma que aproximou esses dois sertões: a viagem (o movimento que
transformou o sertão em destino).
A viagem possibilita essa construção de expectativa e de realidade e
permite apresentar o processo de redescoberta do espaço pelos personagens, da
mesma forma que se pode identificar as relações imagéticas que a obra
79

reforça/ressignifica do sertão e do sertanejo, de modo a apontar as características do


espaço na obra. Para reforçar a ideia da criação pelo movimento, serão utilizados três
trabalhos de Ottmar Ette: Escrever Entre Mundos – Literaturas sem morada fixa
(2018), Saber sobreviver: a (o)missão da filologia (2015) e Literatura en movimiento
(2008) para corroborar com a proposta que o sertão de Galiléia é ao mesmo tempo
novo e velho. Na visão de Ette:

Não só o relato de viagens, mas também, a própria viagem se converte


em um diálogo contínuo com outros relatos de viagens. Também seus
resultados, experiências e, às vezes, seus personagens e figuras são
postos em movimento e se preenchem de nova vida. (ETTE, 2008, p.
54)
Para mostrar como o movimento pode criar algo novo, Ette realiza um
extenso trabalho em relação às zonas de contato (o encontro entre regiões/locais
distintos) e propõe que o novo espaço é gestado por um movimento que elimina as
fronteiras, realizando uma amálgama, algo que está “no meio”, processo denominado
desfronteirização. Ette utiliza o conceito para ressaltar a importância das relações
entre o estrangeiro (alguém externo a um referido espaço) com pessoas que habitam
o espaço. Por meio dessas relações, seria possível gerar algo novo e valioso: “[...]
torna-se um processo inconcluso, desequilibrado e com isso ao mesmo tempo
desfronteirizado no qual o estrangeiro não é consumido pelo próprio, não é suprimido,
mas elevado como um tesouro” (ETTE, 2015, p. 253).
As fronteiras trabalhadas na obra podem ser identificadas em diversos
níveis: de espaço, identitárias, de composição dos personagens, sociais, entre outras.
Dando especial atenção ao espaço, percebe-se as fronteiras entre o sertão e o litoral
sendo ultrapassadas de modo a deixar turvo os limites construídos pelas obras
românticas. Na literatura do início do século, o sertão e o litoral/cidade têm limites bem
definidos, o sertão era pobre e seco, e o litoral era rico e com abundância de recursos,
divisão que remete à ideia de fronteira. A viagem de Adonias e seus primos remete a
um lugar "do meio" entre Recife e a fazenda do sertão. Essa ideia "do meio" é
identificável nas descrições do espaço na obra e possibilita determinar os limites como
exalta Ette (2018, p. 197): “[...] como as fronteiras poderiam ser melhor conhecidas do
que pela constante ultrapassagem, travessia e cruzamento e trânsito?”.
Esse processo de desfronteirização ocorre no decorrer da obra de
forma contínua e de certo modo suavizada, pois as casas vão espaçando e a
"fronteira" entre o sertão e a cidade desaparece quando ela gera um novo espaço,
80

que não é sertão e não é cidade. O sertão inventado pelas obras analisadas nos
capítulos anteriores está lá, mas a sua diferenciação com a cidade sofreu uma
mudança de paradigma, o que dialoga com o conceito de Ette:

A escrita desfronteirizante é aquela que consegue borrar os limites


excludentes da tradição. Se insere nas bordas e a partir delas recria e
movimenta padrões estabelecidos. A desfronteirização está a serviço
do movimento, e se estabelece com/na dinâmica de ir e vir entre
culturas, línguas, vozes e experiências que transformam o que era
irrepresentável em possibilidade. (ALVES, 2021, p. 165)
A fronteira entre o sertão e a cidade/litoral se mistura quando se vê o
desenvolvimento apresentado no sertão, com as antenas parabólicas nas cumeeiras
dos telhados, as motos utilizadas para tanger as vacas, mas principalmente, quando
se vê que a concepção de sertão vai se fragmentando e formando novos espaços e
novos sertanejos.
Não há em Galiléia a exaltação à natureza, mas uma ideia de que no
passado existia abundância e prosperidade, característica que também estão
presentes em O Sertanejo. Já o sertão da chegada traz a natureza desafiadora e seca,
que afasta as pessoas da região pela sua decadência que não lembra em nada o
passado, o que o aproxima da representação feita por Graciliano Ramos, uma terra
pobre e vazia, “Quando os Inhamuns eram uma terra rica, cheia de pasto, não parava
de chegar gente. Hoje, só fazem ir embora” (BRITO, 2008, p. 73).
Essa dualidade do espaço ocorre a todo momento da narrativa,
percebe-se que o autor faz descrições pontuais das descrições do ambiente, o que
permite identificar as características da paisagem representada: “O calor me enfada.
Ele vem das pedras que afloram por todos os lados, como planta rasteira. Nada lembra
mais o silêncio do que a pedra, matéria-prima do sertão que percorremos em alta
velocidade” (BRITO, 2008, p. 7).
Em outro momento, o autor busca o passado romântico, que não
encontra devido às mudanças no retorno à sua terra natal:

Onde estão os caminhos abertos pelos antigos, os que elegeram essa


terra para morar, trazendo rebanhos e levantando currais? Procuro o
rio jaguaribe e ele é apenas um leito de areia, lembrança adormecida
de águas que se recolhem na seca, e transbordam renascidas na
estação das chuvas. Que fim levaram as árvores de porte? Só avisto
o deserto cinza, sem um único verde. (BRITO, 2008, p. 8)
81

Ao contrário do que acontece na obra de Alencar, a natureza em


Galiléia (2008) não edifica, mas, de certo modo, assusta, se aproximando da
representação de Graciliano:

É estranho como o sol desaparece rápido no sertão. Mal nos


preparamos para a noite. Voam pássaros que desconheço, raposas
atravessam a estrada, besouros batem no para-brisa do carro. Não
identifico nenhum pio de ave acima da música. Meu pavor aumenta.
Para onde vamos? (BRITO, 2008, p. 11)
A compreensão do caráter cíclico da seca está presente da mesma
forma que nas obras analisadas nos capítulos anteriores e esse caráter fica restrito a
pequenos trechos escondidos pela ênfase na seca. “Procuro o rio Jaguaribe e ele é
apenas um leito de areia, lembrança adormecida de águas que recolhem na seca e
transbordam renascidas na estação das chuvas” (BRITO, 2008, p. 8). Dessa forma, a
seca e os açudes estão presentes no espaço representado por Ronaldo Correia.

5.3 O SERTÃO SEM LIMITES

Filme lançado em 2005, Árido Movie, dirigido por Lirio Ferreira, conta
a história de Jonas, homem do tempo de um importante jornal que recebe a notícia do
assassinato do pai na sua cidade natal, no interior do Nordeste. Mesmo com receio
em retornar à sua terra de origem, que tinha se mudado ainda criança, Jonas decide
retornar à cidade fictícia de Rocha, para acompanhar o enterro do pai. Enquanto Jonas
segue em viagem de ônibus, três de seus amigos decidem segui-lo e realizam a
viagem de carro.
Chegando a seu destino, Jonas descobre que a sua família é influente
na região, com posse de terras e relações estreitas com os políticos locais.
Presenteado pela sua avó com uma arma de seu pai, ele é pressionado a vingar a
morte dele para manter o nome da família.
O filme, desse modo, mantém a relevância das relações sociais e de
poder no sertão, quando apresenta a importância da família de Jonas sobre a
população regional, do mesmo modo que ocorria com os patrões e o capitão-mor.
Esse poder está presente inclusive na gestão da água, pois é a família que controla o
reservatório de água “mimosa” que o profeta conhecido como “Meu Velho” utiliza para
as suas benções e a serve como elixir para todos os males. Portanto, o controle sobre
a água permite o controle sobre a existência e a sobrevivência da população local.
82

A obra mantém a representação do sertão, com a amplitude e a


construção espacial do regionalismo de 30. O sertão vasto e despovoado é
apresentado no trajeto percorrido entre a cidade e o sertão.

Figura 6 – A Paisagem do sertão, Imagem do filme Árido Movie

Fonte: Adoro Cinema (2021)

Grande parte da dinâmica do filme se encontra na relação


cidade/litoral e campo/sertão. O início do trajeto é representado pelas águas do mar,
na ênfase da abundância do litoral, que vão se reduzindo pelo trajeto até o surgimento
dos territórios que sofrem com a seca. O filme, dessa forma, tem características do
gênero road movie, no qual se dá destaque para a viagem e para o percurso pelas
estradas. O pesquisador David Laderman complementa:

Road movies geralmente procuram ir além das fronteiras do escopo


cultural, buscando a revelação para o desconhecido, ou pelo menos
para a emoção do desconhecido. Tal viagem, decodificada como uma
busca pelo novo, também sugere um refúgio móvel a partir de
circunstâncias sociais sentidas a partir de alguma forma de opressão.
(LATERMAN, 2002, p. 1-2)
No filme de Lirio Ferreira, existem duas viagens significativas, a ida
de Jonas à cidade de seu pai e a de “descobrimento” do sertão por parte dos amigos
Bob, Verinha e Falcão. Jonas sai de Recife, de ônibus para o sertão, mas no caminho
pega carona com Soledad e continua a viagem de carro. Já seus amigos partem de
carro direto à cidade de Rocha, buscando apoiar Jonas no reencontro com a família
sertaneja.
83

A viagem de Jonas está mais ligada ao reconhecimento de um


passado esquecido, o seu distanciamento da região e da sua família são questões
pertinentes no trajeto e criam uma insegurança que é reforçada pela transformação
da paisagem urbana em uma paisagem rural, que a personagem não se identifica. As
fronteiras, em Árido Movie, são mais marcadas que em Galiléia, pois as imagens do
litoral estão sempre presentes7, o que enfatiza a distinção do espaço por meio de
ausência ou da presença da água. Esse contraste também ocorre na construção da
personagem de Jonas, pois a sua profissão (repórter do tempo) é diversas vezes
ressaltada, de modo que ele traria um conhecimento que não estava presente naquele
espaço.
Mesmo com a definição entre os espaços bem-marcada, a obra
também apresenta as questões de desfronteirização encontradas em Galiléia. No
entanto, Jonas é ainda mais resistente a se assimilar com aquele espaço, de modo
que é possível identificar na personagem o que Stuart Hall (1997) chamou de tradução
em sua obra A identidade cultural na pós-modernidade:

Este conceito descreve aquelas formações de identidade que


atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por
pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas
pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas
tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são
obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem
simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder
completamente suas identidades. Elas carregam os traços das
culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares
pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca
serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente,
o produto de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a
uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas” (e não a uma “casa”
particular). As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm
sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir
qualquer tipo de pureza cultural “perdida” ou de absolutismo étnico.
Elas estão irrevogavelmente traduzidas. (HALL, 1997, p. 88-89)
Jonas e Adonias estão “traduzidos” em níveis diferentes. Contudo, o
importante é ressaltar que esse processo está presente em todas as categorias da
população sertaneja nas obras apresentadas. O sertanejo tem sido ressignificado
quando é construído nessa relação de encontro com o litoral/cidade, de modo que as

7 Em diversas imagens, a cidade aparecia com destaque a água do mar. Inclusive o filme se inicia com
imagens do mar, o que remete à expressão utópica associada a Antônio Conselheiro “o sertão vai virar
mar”.
84

categorias românticas não estão sendo representadas ou são totalmente


ressignificadas. Em Galiléia e em Árido Movie, o vaqueiro heroico, que já havia sido
substituído pelo cangaceiro no cinema novo, não aparece. Apenas questões pontuais
de exaltação genérica e, em muitos casos, de forma irônica, retomam a exaltação do
antigo herói:

Mulher em motocicleta carrega uma velha na garupa e tange três


vacas magras. Dois mitos se desfazem diante dos meus olhos, num
só instante: o vaqueiro macho, encourado, e o cavalo das histórias de
heróis, quando puxavam bois pelo rabo. (BRITO, 2008, p. 8)
Já a viagem realizada pelos três amigos de Jonas apresenta mais
ressignificações do sertão: uma versão atualizada, mas não exatamente original. As
paisagens da caatinga e do semiárido estão presentes, mas com capangas de moto
(substituindo os vaqueiros a mando dos fazendeiros) e a produção de grandes
quantidades de maconha. A questão do plantio da maconha, que também está
presente em Galiléia, traz de volta a representação da ausência de lei na região, ou
melhor dizendo, do poder total que os grandes proprietários têm na região. É
mencionada pela personagem matriarca a existência das plantações de algodão, que
manteriam os ganhos de sua família; no entanto, não se vê as plantações em nenhum
processo de plantio, só se vê a paisagem árida e a grande plantação de maconha.
Portanto, o romance Galiléia e o filme Árido Movie buscam apresentar
uma visão atualizada do sertão, algo entre o urbano e o rural, podendo identificar as
origens e as reminiscências, porém com uma roupagem mais moderna. Com a
valorização do espaço da seca e a manutenção da estrutura do poder regional, as
influências do sertão do início do século XIX são claramente identificáveis, mesmo
com a nova roupagem. A reprodução dessa visão de sertão mostra como o sertão
inventado está sedimentado no imaginário nacional, de modo que a ruptura se torna
mais lenta.
85

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Encerra-se este trabalho relembrando que o objetivo principal foi


analisar o impacto das obras estudadas no processo de invenção do sertão e do
sertanejo nordestino e como até hoje esse espaço e essa população parecem manter
as características encontradas nas obras do século XIX. As obras escolhidas, O
Sertanejo e Vidas Secas, representam dois períodos distintos da literatura nacional.
Na obra de José de Alencar, O Sertanejo, há o romantismo como uma das formas de
gestar a identidade nacional, com suas idealizações e referências europeias. Já em
Vidas Secas, de Graciliano Ramos, o romance de 30 busca se distanciar das ideias
idealizadas do romantismo em um movimento que levanta a pauta das questões
sociais da região. Desse modo, o sertão nordestino é representado de formas
diferentes e com propósitos bem determinados pelas duas obras.
Considerando que a obra de Graciliano Ramos foi amplamente
estudada, dois fatores garantiram o diferencial deste trabalho, a comparação com a
obra O Sertanejo, uma das obras menos estudadas de toda a extensa produção de
José de Alencar e a inserção de conceitos contemporâneos, que atualizam as análises
sobre as obras e apresentaram novos caminhos de análise.
Com a vasta quantidade de produções relacionadas à temática
sertaneja, o painel apresentado no segundo capítulo buscou detalhar outras obras
publicadas sobre o tema. Na sequência, utilizando a análise das personagens e de
seus espaços, foram apresentados aspectos que levaram à invenção de um sertanejo
que não vive sem um sertão e, desse modo, entender que o sertão só foi criado pela
necessidade de distinguir a população que habita na região da população urbana.
Com a proposta de analisar os personagens principais das obras
escolhidas, o terceiro capítulo analisou Arnaldo, de O Sertanejo, e Fabiano, de Vidas
Secas, com os conceitos de imagem-arquivo, de Joaquim Barriendos, e personagem
geográfico de Leo Name. Conceitos contemporâneos que trazem um olhar renovado
à temática, sendo que o diálogo entre os dois mostrou como a categoria “sertanejo”
tem diversas representações e imagens que se sobrepõem, e a constante
ressignificação o mantém vivo no imaginário nacional.
Já o espaço representado nas obras O Sertão, trabalhado no quarto
capítulo, foi analisado por meio dos conceitos de paisagem literária, de Michael Collot,
86

orientalismo, de Edward Said, e topofobia, de Yi-Fu Tuan, que demonstraram o


processo de construção desse espaço como algo complexo que dialoga com diversas
representações ao mesmo tempo, carregando uma ampla gama de características,
em sua maioria, vinculando a região como periférica em relação aos “centros”
populacionais e culturais. Dessa forma, a visão que se tem do sertão nordestino nas
duas obras é bem similar e se enquadra como algo distante, diferente, exótico,
seco/belo, afastado e pouco habitado. A análise realizada por meio dos conceitos
indicados reforça a visão estereotipada que os autores têm sobre a região.
Com o intuito de comprovar o impacto que as obras literárias
do corpus do trabalho causaram na formação das categorias sertão e sertanejo na
cultura nacional, utilizou-se no quarto capítulo de um importante meio cultural
contemporâneo, o cinema. O cinema nacional se consolidou como importante
divulgador das representações literárias, sendo rotineiras as adaptações de obras e
propostas gestadas na literatura. Analisando o filme Árido Movie, de Lirio Ferreira,
foram apontadas as dificuldades de se desprender das amarras do passado, a tempos
construídos. O filme, mesmo com a proposta de renovar o sertão nordestino, mantém
os estereótipos gestados pela literatura e comprova como as obras contemporâneas
ficam de alguma forma presas às propostas predeterminadas pela literatura. Mesmo
com a manutenção desse processo, existem aspectos das representações atuais que
buscam quebrar as barreiras levantadas, de modo que o Nordeste não seja apenas
reconhecido pelos estereótipos humanos e geográficos, mas como um espaço “do
meio”, algo novo.
Portanto, considera-se que foi possível apresentar uma visão ampla
em relação ao processo de invenção do sertanejo e do sertão, pois foram apontados
diversos aspectos que possibilitam entender os motivos desse processo e como eles
impactaram e ainda impactam a cultura nacional. A análise de obras de diferentes
períodos corrobora com a ideia de um processo que ocorre de forma constante. Do
mesmo modo, a análise do espaço e da personagem permitiu comprovar a dinâmica
de quase dependência entre os dois, de modo que não se pode falar do sertão sem o
fator humano, assim como não se discute o sertanejo, sem relacioná-lo com o seu
espaço.
Analisar a relação entre o espaço e a personagem surgiu como um
desafio, pois existia uma grande possibilidade de se aproximar do ultrapassado
87

determinismo e de definir as personagens como meros produtos do meio. A utilização


de conceitos como Orientalismo e Personagem-geográfico permitiu se distanciar
dessa questão e identificar as diversas dimensões das personagens e da sua relação
com o espaço. Em pesquisa à biblioteca do banco de teses, não foram localizados
trabalhos que propõem esse desafio, existem, sim, trabalhos sobre o espaço e outros
sobre as personagens, mas não foram localizadas pesquisas que buscam relacionar
os dois da forma aqui proposta.
Outro desafio encontrado na pesquisa diz respeito aos estudos acerca
das personagens. Além dos notórios trabalhos de Antonio Candido e Raymond
Williams, não se localizou uma teoria recente em relação ao estudo das personagens.
Nesse contexto, a utilização do conceito de personagem-geográfico possibilitou novas
formas de análise. Do mesmo modo, o conceito de imagem-arquivo para analisar a
“categoria sertaneja” não encontra precedentes nas pesquisas da área de literatura
comparada. Identifica-se que tanto o personagem-geográfico quanto a imagem-
arquivo possam ser aplicadas em diversas obras e temáticas, e espera-se que as
análises aqui apresentadas possam ser utilizadas como motor para ampliar os
estudos desses conceitos.
Por meio da utilização das diversas teorias já citadas acima, trilhou-
se um caminho com o propósito de apresentar a importância da interdisciplinaridade
nos estudos literários. A utilização de conceitos como o Orientalismo, que dialoga de
forma inerente com diversas áreas do conhecimento, já garante um princípio
característico de pesquisa interdisciplinar ao trabalho, porém é com os conceitos que
dialogam com a geografia (personagem-geográfico, paisagem literária e transárea)
que a pesquisa ganha corpo interdisciplinar e se insere nessa tendência dos estudos
comparativistas
O trabalho aqui produzido teve seu caminho bem delimitado devido à
ampla significação dos termos sertanejo e sertão, assim como a delimitação dos
aspectos de análise (espaço e personagem). Essa delimitação, porém, não ocorreu
por limites das teorias aplicadas ou das obras analisadas, de modo que elas podem
ser utilizadas em futuras análises de outros aspectos da temática sertaneja. Portanto,
esta pesquisa não esgota as possibilidades da análise das obras aqui apresentadas
e não finaliza a análise do processo de invenção do sertão e do sertanejo. Uma
interessante possibilidade é o aprofundamento da questão da racialização do
88

sertanejo, apresentada de forma superficial neste trabalho, mas que poderá contribuir
na promoção de novas pesquisas que aprofundem essa questão pouco relacionada
com o tipo sertanejo.
Portanto, aponta-se que o objetivo de analisar a transformação do
sertão idealizado, gestado em um processo de criação de uma identidade, e o espaço
opressor de Ramos foi atendido na comparação realizada entre elas, já que identifica
o peso dos aspectos históricos e sociais das obras. A idealização faz parte do
processo de criação de uma identidade nacional, porém, feita com bases europeias,
dialogam, apenas, com uma elite sulista. A busca pela “realidade”, que fez o sertão se
tornar perigoso, partiu de uma resposta da elite nordestina, que buscava assumir a
narrativa do espaço em que habitava. Portanto, o sertão nordestino foi palco de uma
disputa de narrativas, que o influenciam até hoje. Desse modo, nota-se que, mesmo
com uma tentativa de modernizar a representação do sertanejo nordestino, as
expressões culturais (aqui consideradas o cinema e a literatura) não só são
influenciadas na disputa pelo sertão nordestino como mantêm a distinção de obras
feitas por quem “ouve falar” e por quem habita esse espaço.
Retomando às primeiras linhas deste trabalho, quando se identifica
que o discurso de um Nordeste atrasado permanece no debate nacional, esta
pesquisa mostrou que uma das fontes desse preconceito é a literatura de Graciliano
Ramos e de José de Alencar, que, mesmo com objetivos distintos, trouxe uma visão
reducionista do que é o Nordeste e sua população. Mesmo após anos de produções
que buscam quebrar essa característica, muitas vezes, essas produções caem no
caminho mais fácil, que é reproduzir as visões preconcebidas. Desse modo, esta
pesquisa buscou problematizar essa questão e demonstrar que a invenção do sertão
continua em curso e que, quando um político veste um chapéu de vaqueiro, ele está
dialogando com Fabiano e Arnaldo e não com a população que vive na Região
Nordeste.
89

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