O Sertão e o Sertanejo Nordestino - A Invenção de Uma População e de Seu Espaço Pela Literatura
O Sertão e o Sertanejo Nordestino - A Invenção de Uma População e de Seu Espaço Pela Literatura
O Sertão e o Sertanejo Nordestino - A Invenção de Uma População e de Seu Espaço Pela Literatura
HISTÓRIA (ILAACH)
Foz do Iguaçu
2022
INSTITUTO LATINO-AMERICANO DE ARTE, CULTURA E
HISTÓRIA (ILAACH)
Foz do Iguaçu
2022
Catalogação elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação
Catalogação de Publicação na Fonte. UNILA - BIBLIOTECA LATINO-AMERICANA - PTI
S487
Serra, Flávio Augusto.
O sertão e o sertanejo nordestino: a invenção de uma população e de seu espaço pela literatura / Flávio
Augusto Serra. - Foz do Iguaçu, 2022.
94 f.: il.
1. Sertanejo. 2. Personagem. 3. Espaço. 4. Literatura comparada. I. Souza, Lívia Santos de. II. Name,
Leonardo dos Passos Miranda. III. Título.
CDU 82.091(81)
FLÁVIO AUGUSTO SERRA
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Orientadora: Professora Dra. Lívia Santos de Souza
Universidade Federal da Integração Latino-Americana
____________________________________________________
Coorientador: Professor Dr. Leonardo dos Passos Miranda Name
Universidade Federal da Bahia
___________________________________________________
Professora Dra. Rosângela de Jesus Silva
Universidade Federal da Integração Latino-Americana
___________________________________________________
Professor Dr. André Benatti
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
A figure present in the national culture, the sertanejo, is difficult to categorize. Term
first used to distinguish populations far from population centers, it ended up being
linked to a northeastern population and the Brazilian semi-arid region. This concept
was built/invented from the 18th century, through different forms of cultural
expressions, such as literature, plastic arts, cinema, among others. In this work, I will
analyze how sertanejo was invented through literature and how the various
representations were supplying this synthesizing concept. I will use the works O
Sertanejo (1875), by José de Alencar (2013), Vidas Secas (1932) by Graciliano Ramos
(2011) for the analysis. Through the analysis of the construction of the characters
Arnaldo and Fabiano, I will seek to present how the sertanejo category was created
and its changes that occurred in the period. In order to broaden the understanding of
the process, I will also analyze the space of the sertanejo represented in the works.
Finally, I will analyze the characters and the sertanejo spaces of contemporary works,
from the point of view of Ottmar Ette in order to identify the reminiscences and the
changes that occurred in the conception of this important population category.
Concepts such as Image-Archive by Joaquín Barriendos and Orientalism by Edward
Said will permeate the entire analysis. To reflect on the idea of space, I will use Michel
de Certeau and Michel Collot among other authors to dialogue with my proposals.
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12
3 O PAPEL DA PERSONAGEM............................................................................... 33
REFERÊNCIAS......................................................................................................... 89
12
1 INTRODUÇÃO
1 Ressalta-se que para esta análise foram utilizadas as obras mais recentes, conforme indicadas nas
referências.
15
e ao porquê essas mudanças ocorrem; e, também, quais são os motivos que permitem
que alguns conceitos se mantenham durante muito tempo, consolidando-se no
imaginário nacional, caracterizando grupos e costumes. Esses grupos – identificados
como “ilhas-Brasil”, por Darcy Ribeiro (2015) – representam as diversas “identidades
brasileiras” e, por meio delas, assumem o papel de representantes do povo brasileiro.
Analisando o processo de invenção do sertanejo, nota-se que autores
como José de Alencar e Rodolfo Teófilo2, entre outros, não tinham uma relação
próxima com a população representada. Alencar, nasceu no Ceará, mas se mudou
para o Rio de Janeiro. Teófilo nasceu na Bahia e se mudou para o Ceará, além das
mudanças de estado, outro ponto em comum entre eles é a posição social, de modo
que é possível considerar que essas primeiras representações são fruto de autores
“de fora” sem relação direta com a população representada. Os autores, membros da
elite social e da política, partiam de uma visão privilegiada e buscavam definir essa
população (e seu espaço) em comparação a seu grupo social (e seu espaço),
dualisticamente criando conceitos, modos de ver, de escrever e de representar uma
nova categoria, um Outro e o espaço desse Outro. Dessa forma, esse processo se
aproxima de uma forma de racializar essa população, a partir da invenção de sua
totalidade, incluindo sua constituição física, sua religião, seus costumes e suas
tradições, de forma a deixar clara a distinção entre a população da capital/centro e a
população interior/periferia, de maneira similar com o que ocorreu na relação entre os
povos europeus e as populações da América recém-descoberta com a criação da raça
“indígena” como aponta o sociólogo peruano Aníbal Quijano (2014).
2Teófilo nasceu em Salvador (BA) em 1853 e tem como principal obra sobre a temática sertaneja A
Fome, publicada originalmente em 1890.
16
2 VISÕES DO SERTÃO
seus rebanhos. Já não era somente a sede que os matava, era agora
também a fome e a peste! (TEÓFILO, 2011, p. 22)
As obras de Távola e de Teófilo deram início ao que ficou conhecido
como a literatura da seca, destacando o período de ausência de chuvas da Região
Nordeste (que de fato ainda não era conhecida por essa alcunha). Esse destaque ao
período da seca foi motivado pela seca que ocorreu entre 1877 e 1879, com grande
cobertura pelos jornais5 no Brasil.
Uma reportagem, aliás, virou um dos mais importantes romances da
literatura brasileira e contribuiu para consolidar a relação seca, sertão e Nordeste. Os
Sertões, de Euclides da Cunha, foi uma das principais obras que trouxe o sertão para
a discussão nacional. Euclides da Cunha, que trabalhou, como correspondente do
jornal O Estado de São Paulo, na cobertura da Guerra de Canudos, que ocorreu nos
anos 1856-1857, descreveu a paisagem da seca com detalhes (a sua obra contém
uma seção específica sobre o espaço), bem como sua relação com o sertanejo, de
uma forma jornalística. Essa característica contribuiu para que a obra se tornasse uma
referência em relação ao sertão, à seca e ao Nordeste. A ênfase na seca e na pobreza
do espaço indicava uma visão “negativa”: “Despontam vivendas pobres; algumas
desertas pela retirada dos vaqueiros que a seca espavoriu; em ruínas, outras,
agravando todas no aspecto paupérrimo o traço melancólico das paisagens” (CUNHA,
2019, p. 8).
Logo após a publicação de Os Sertões (1902), uma série de obras
seguiram utilizando a seca como sinônimo de sertão, fortalecendo a imagem realçada
por Cunha (2019), na qual a paisagem da seca é a causa das dificuldades. Isso
também ocorre em Luzia-Homem, de Domingos Olímpio, publicada em 1903, em que
o espaço do sertão expulsa a família de Luzia, que se vê obrigada a ir para a cidade
grande, em busca de sua sobrevivência. A obra, cuja trama se passa em parte no
sertão e em parte na cidade de Sobral, no estado do Ceará, reforça a opressão
causada pela paisagem de seca:
5 Além do trabalho de Euclides da Cunha, também é possível citar matérias anteriores que contribuíram
para o destaque nacional da temática, como as matérias de José do Patrocínio na Gazeta de Notícias
do Rio de Janeiro em 1878, além da fotorreportagem publicada por Rafael Bordalo Pinheiro na revista
O Besouro também em 1878.
25
O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado
sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo,
terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do
Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar
sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode
torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde
criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O
Urucúia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo
dá — fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render,
as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de
grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta.
Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o
senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em
toda a parte. (ROSA, 2019, p. 11)
Esse movimento de representar a Região Nordeste por meio da
paisagem da seca possibilitou o “sequestro do sertão pelo Nordeste” como indicado
por Albuquerque Júnior (2019) em seu artigo O Rapto do Sertão. Esse processo
ocorreu, pois as características utilizadas para se definir o sertão foram identificadas
na Região Nordeste por meio dos jornais e da literatura: aos olhos de quem descrevia,
uma região pouco habitada, com pouca agricultura, seca, bem semelhante ao deserto
que originou a palavra – características muitas vezes, até hoje em dia, ainda
agrupadas para se referir, homogeneamente, a uma região tão diversa quanto à do
Nordeste.
Um exemplo que se pode identificar com esse movimento de
homogeneizar o papel do sertão e está fortemente presente na cultura brasileira é
perceptível quando se analisam obras que se passam no Nordeste/sertão. A natureza
no sertão tem suas fases floridas e de transição, constantemente apagadas,
26
busca pelos acervos de lojas on-line e sites compiladores de obras literárias, foi
possível identificar ao menos 13 edições da obra de José de Alencar e 15 edições da
obra de Graciliano Ramos. Considerando que esses números sejam apenas das
obras com algum registro na internet, a quantidade de edições provavelmente deve
ser bem maior. A última edição de Vidas Secas foi publicada em 2019, e a última de
O Sertanejo, em 2013. A relevância também pode ser destacada pelo fato de que as
duas obras são constantemente inseridas como leituras obrigatórias em vestibulares
pelo Brasil.
Após apresentar as principais construções do sertão na literatura e
como a análise da temática permanece relevante nos estudos acadêmicos, parte-se
para a análise das personagens sertanejas e como a categoria “sertanejo” assumiu
novos significados e como eles dialogam com as personagens das obras aqui
trabalhadas.
33
3 O PAPEL DA PERSONAGEM
“história era filha de seu tempo” – e, por isso, é influenciada pelo presente e
reinventada diversas vezes. A personagem histórica sempre terá uma função de
ampliar ou de silenciar vozes, devido a seu caráter revisionista. Tal processo ocorre
praticamente em toda e qualquer obra em que esse tipo de personagem seja
representado, não sendo possível considerá-la uma descrição da “pessoa real”, que
viveu os “eventos verdadeiros”.
Na análise literária, por sua vez, a personagem é definida como
aquela que, mesmo tendo relação com pessoas do mundo real, existem na obra e
pela obra. Considera-se que os principais estudos em relação ao papel da
personagem na literatura estão baseados nas análises realizadas por Antonio
Candido (2009) e Beth Brait (1985). Em seu estudo sobre a personagem de ficção,
Candido propõe uma classificação em que destaca sua caracterização e seu
desenvolvimento na obra. Já a classificação de Brait utiliza a função. Sendo assim,
ambos defendem que a personagem literária depende da obra ficcional para se
reconhecer, o que demonstra que essa forma de caracterizar a personagem indica um
caráter essencialmente fictício.
Por fim, a personagem geográfica se articula entre a sua constituição
e a do seu espaço (assim como nas paisagens), indicando uma contribuição mútua
na representação desses elementos nas obras literárias, cinematográficas, gráficas,
etc. A personagem geográfica é entendida como um operador analítico que pode ser
utilizado para analisar o espaço em suas diversas formas. Leo Name (2013), em seu
livro Geografia pop: o cinema e o outro, num contexto de análise de obras
cinematográficas, mas não se limitando a elas, definiu que King Kong, Indiana Jones,
Robinson Crusoé, Frodo e até mesmo Osama Bin Laden são personagens
geográficas por, de certa forma, cumprirem certa função metonímica com relação a
certos ambientes. Ele as caracteriza como aquelas
nas casas da fazenda. “Não sei lidar com os homens; cada um tem seu gênio: o meu
é para viver no mato” (ALENCAR, 2013, p. 42).
A relação personagem/espaço toma forma quando se identifica que
eles fazem funções semelhantes na obra: é por meio deles que a região ganha
significado. A personagem e o espaço reforçam as características locais, suas origens
(Arnaldo tem suas origens no sertão, sendo que a natureza exuberante é uma
característica do Brasil). As conversas com as árvores, com os animais e a sua
capacidade de se misturar com as folhagens, por exemplo, mostram que o
deslocamento da personagem para outras regiões é um deslocamento do significado
de si mesmo. O incômodo, na viagem realizada à capital, mostra que a sua vida e a
sua identidade estão no sertão. Assim como os feitos heroicos da personagem são
exaltados, a natureza que expressa importante parte da sua construção também
passa por esse processo.
Esse vínculo entre Arnaldo e seu espaço, estabelecido de forma
positiva, por meio de adjetivos que exaltam sua singularidade, predomina na narrativa,
porém, a obra não passa incólume das questões sociais, raciais e de poder. As
diferenças sociais entre as personagens, a estrutura de poder bem definida no sertão
e a construção de um sertanejo racializado, também, são questões levantadas na
obra.
O papel que cabe a Arnaldo, na estrutura social, é bem definido e
rígido. O seu trabalho, na fazenda, é passado de forma hereditária: seu pai era
vaqueiro a trabalho para o capitão-mor e, dessa forma, trabalhar na fazenda era sua
única possibilidade. Em uma estrutura social que permite que o capitão-mor exerça o
poder total nas suas terras, em parte pela distância da capital e do poder do estado:
“[...] o sr. capitão-mor não é o dono da Oiticica? Não é êle quem manda em todo êste
sertão? Abaixo de El-rei que está lá na sua côrte, todos devemos serví-lo e obedecer-
lhe” (ALENCAR, 2013, p. 127). Sendo assim, a figura do capitão-mor exerce uma
opressão e uma admiração nos sertanejos da região. Essa diferenciação não ocorre
apenas na estrutura social, mas também ocorre devido a sua origem, aqueles que
nascem na cidade têm posição privilegiada em relação ao sertanejo (interior). Essa
hierarquização social possibilita uma leitura em que o sertanejo sofre um processo de
inferiorização no momento em que o seu papel se resume a obedecer aos mandos do
dono das terras, cabendo a ele o papel de executor.
44
Assim como a sua tez representava a fusão das três côres, a alva, a
vermelha e a negra, da mesma sorte o seu caráter compunha-se dos
três elementos correspondentes àquelas variedades. Tinha a avidez
do branco, a astúcia do índio, e a submissão do negro. (ALENCAR,
2013, p. 217)
A definição de características pelas “cores” mostra como Alencar vê
e distingue suas personagens. A “fusão das três cores”6 não é diretamente atribuída
a Arnaldo, mas nota-se que o sertanejo apresenta características das “variedades”
indicadas pelo autor. A honra de Arnaldo, sua habilidade na floresta e seu
comportamento de obediência ao capitão-mor e, principalmente, em relação a Dona
Flor condizem com a definição apresentada no trecho acima.
Arnaldo assume o papel de representar o sertanejo e traz consigo,
além da mistura das “raças”, a distinção entre as pessoas com base em seus bens,
sua cor e suas ações. A diferença entre o vaqueiro e seus patrões fica clara na reação
de Dona Flor quando Arnaldo arranca flores envenenadas de suas roupas e acaba
encostando em seu corpo:
6Conceito apresentado por Carl von Martius, Karl Friedrich Philipp von (1794-1868) na obra: “Como se
deve escrever a história do Brasil”, escrita em 1843 e publicada na revista do IIHGB em 1844 em que
o Brasil era formado pelo branco (europeu/português), o índio/nativo e o negro/africano.
45
Para Hall (2015), a raça não é uma questão biológica, mas uma questão discursiva
que ganha sentido pelo fato de ser relacional e não uma questão de “essência”.
Esse processo de racialização nos leva a reavaliar o conceito
tradicional de raça como questão biológica. Essa reflexão encontra respaldo no
trabalho de Stuart Hall, que indicou em sua palestra intitulada: “Raça, o significante
flutuante”, realizada em 1996, a sua concepção em relação ao conceito de raça:
através da qual uma prática comum específica – a feitura das obras – se pode
entender”. Por isso, as convenções possibilitam compreender o papel da personagem
no enredo e na história, pois as relações expressas na obra encontram similaridades
com o período histórico. Isso ocorre pelo fato de as convenções não serem rígidas,
mas o contrário, serem historicamente variáveis (WILLIAMS, 1979, p. 173), e, dessa
forma, transmitem o espírito da época. Logo, a "apresentação de pessoas
(personagens)" tem convenções significativamente variáveis e, com isso, identifica-se
a sua relação com o momento histórico. Williams apresenta dois padrões variáveis
para defender a sua proposta: a aparência pessoal e a situação social.
Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés
duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra.
Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma
linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro
entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia para um lado, para o
outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com
as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos —
51
Não sei; leio o poema, abro alguns livros, e vejo com tristeza que a
Itália de Virgílio, a Caledônia de Ossian, a Flórida de Chateaubriand,
a Grécia de Byron, a Ilha de França de Bernardin de Saint-Pierre, são
mil vezes mais poéticas do que o Brasil do Sr. Magalhães; ali a
natureza vive, sorri, palpita, expande-se; aqui parece entorpecida e
sem animação. (ALENCAR, 2013, p. 51)
Aqui nota-se como Alencar busca na natureza um meio de exaltar o
Brasil, indicando o que ele esperava e pretendia realizar em suas obras. A sua
descrição exuberante da natureza, nas palavras de Eduardo Martins (2001), em seu
artigo Lugar Comum: A Descrição da Natureza em José de Alencar: “Não era apenas
fonte do instinto da pátria, como sugeria Chateaubriand, mas o próprio elemento
diferenciador da nacionalidade” (MARTINS, 2001, p. 103). Complementando essa
59
Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro. Tal jornal enviou à região o jornalista José do
Patrocínio, que se notabilizou pelas matérias com forte apelo social e com críticas aos
poderes públicos. Ao final de sua passagem pelas regiões afetadas pela seca e com
uma grande quantidade de dados em relação ao evento, Patrocínio lançou o romance
Os Retirantes (1879), que apenas reforçou o seu importante papel na transformação
da seca em uma temática nacional e não apenas uma questão local. É nesse contexto
que Ramos apresenta o sertão com forte apelo social e envolto na questão do espaço.
O sertão da seca é o que oprime o homem e permite a opressão por outros homens
– no caso o estado e os patrões.
Em Vidas Secas, o espaço opressor é apresentado logo nas primeiras
linhas da obra e constituí a paisagem que será desenvolvida no decorrer da narrativa.
O espaço de Vidas Secas está envolvido com as ações e tem a mesma importância
que o enredo e os personagens. As descrições não são longas, mas estão em todos
os capítulos, na forma das cores, da vegetação e da topografia. As cores utilizadas na
descrição da paisagem se afastam de uma tradição idílica, na qual o azul,
tradicionalmente vinculado à pureza, assume uma característica negativa quando
relacionado com a falta de chuva: “Antes de olhar o céu, já sabia que ele estava negro
num lado, cor de sangue no outro, e ia tornar-se profundamente azul. Estremeceu
como se descobrisse uma coisa muito ruim” (RAMOS, 2011, p. 210).
A vegetação não apresenta os tons de verde, mas sim as cores
vermelha e amarela, distanciando-se de sua representação mais tradicional e
romântica, dificultando a criação de uma identificação e reforçando a necessidade de
estar em movimento. Esse distanciamento ocorre quando não se reconhece a
vegetação como tal (como resistência da vida), mas algo que se mistura com os
demais elementos do espaço, tornando tudo uma coisa só. Não existe uma
contraposição no ambiente, apenas a opressão que todos os elementos causam nos
personagens, assim como a ênfase na qualificação negativa das cores do ambiente:
“A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que
eram ossadas. O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos
moribundos” (RAMOS, 2011, p. 10). Pode-se distinguir o vermelho (com o branco dos
ossos) e o negro dos urubus com o verde e o colorido das obras românticas. Os tons
em Vidas Secas buscam trazer sobriedade, junto com os aspectos da topofobia, já
apresentados, para apresentar um espaço de difícil sobrevivência.
68
Figura 1 – O Sertão
Figura 2 – Os Retirantes
Com o intuito de realizar uma arte brasileira, erudita, a partir das raízes
populares, o escritor Ariano Suassuna revisita ideias do modernismo
em Mário de Andrade, e lança em Recife, em outubro de 1970 o
Movimento Armorial. Este movimento teve como objetivo criar uma
identidade brasileira de caráter erudito, utilizando como matéria-prima
principal a cultura popular provinda sobretudo do sertão nordestino,
como por exemplo todo o universo ligado à Literatura de Cordel.
Com o objetivo de fundir a arte erudita nas artes populares, o
movimento não ficou restrito à literatura, incentivando a produção musical, de artes
plásticas (gravuras e pinturas), esculturas, entre outras expressões artísticas. Na
literatura, a obra Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta
(1971) teve grande destaque e ficou conhecida como o romance que representa as
ideias do movimento. A obra dialoga com as questões apresentadas na obra O
Sertanejo presentes no romantismo, por meio da valorização do regional, essas
questões buscam gerar uma identidade nacional. Como Teixeira (2017) apresenta em
seu artigo Movimento Armorial: A Dualidade Entre o Erudito e o Popular:
1997), com suas obras Essa Terra e o Cachorro e o Lobo, um dos poucos autores que
tiverem destaque com a temática. Com a literatura nacional mais voltada para as
temáticas urbanas, como a violência nas cidades, a temática sertaneja/rural perdeu
espaço, como apontado por Ronaldo Brito em entrevista
Ele sempre foi contrário aos movimentos regionalistas, acha que “em
vez de andarem atrás de particularidades sem importância, deveriam
investigar a contribuição econômica, social e linguística que o
Nordeste deu para a formação do Brasil, e tudo o que foi produzido
nas artes. (BRITO, 2008, p. 164)
Salomão assume uma crítica muito comum em relação ao
regionalismo, na qual considera que “[...] os aspectos regionais são valorizados como
compensação do déficit material, de desvantagens em termos de riqueza [...]” (MELO,
2014, p. 70) e o melhor caminho seria a valorização da importância daquele espaço
para o Brasil se distanciando das especificidades ou “diferenças”.
Um caminho para entender a ressignificação e a junção entre o sertão
próspero e o sertão que se tornou uma terra de sobreviventes, considera essencial
atentar à forma que aproximou esses dois sertões: a viagem (o movimento que
transformou o sertão em destino).
A viagem possibilita essa construção de expectativa e de realidade e
permite apresentar o processo de redescoberta do espaço pelos personagens, da
mesma forma que se pode identificar as relações imagéticas que a obra
79
que não é sertão e não é cidade. O sertão inventado pelas obras analisadas nos
capítulos anteriores está lá, mas a sua diferenciação com a cidade sofreu uma
mudança de paradigma, o que dialoga com o conceito de Ette:
Filme lançado em 2005, Árido Movie, dirigido por Lirio Ferreira, conta
a história de Jonas, homem do tempo de um importante jornal que recebe a notícia do
assassinato do pai na sua cidade natal, no interior do Nordeste. Mesmo com receio
em retornar à sua terra de origem, que tinha se mudado ainda criança, Jonas decide
retornar à cidade fictícia de Rocha, para acompanhar o enterro do pai. Enquanto Jonas
segue em viagem de ônibus, três de seus amigos decidem segui-lo e realizam a
viagem de carro.
Chegando a seu destino, Jonas descobre que a sua família é influente
na região, com posse de terras e relações estreitas com os políticos locais.
Presenteado pela sua avó com uma arma de seu pai, ele é pressionado a vingar a
morte dele para manter o nome da família.
O filme, desse modo, mantém a relevância das relações sociais e de
poder no sertão, quando apresenta a importância da família de Jonas sobre a
população regional, do mesmo modo que ocorria com os patrões e o capitão-mor.
Esse poder está presente inclusive na gestão da água, pois é a família que controla o
reservatório de água “mimosa” que o profeta conhecido como “Meu Velho” utiliza para
as suas benções e a serve como elixir para todos os males. Portanto, o controle sobre
a água permite o controle sobre a existência e a sobrevivência da população local.
82
7 Em diversas imagens, a cidade aparecia com destaque a água do mar. Inclusive o filme se inicia com
imagens do mar, o que remete à expressão utópica associada a Antônio Conselheiro “o sertão vai virar
mar”.
84
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
sertanejo, apresentada de forma superficial neste trabalho, mas que poderá contribuir
na promoção de novas pesquisas que aprofundem essa questão pouco relacionada
com o tipo sertanejo.
Portanto, aponta-se que o objetivo de analisar a transformação do
sertão idealizado, gestado em um processo de criação de uma identidade, e o espaço
opressor de Ramos foi atendido na comparação realizada entre elas, já que identifica
o peso dos aspectos históricos e sociais das obras. A idealização faz parte do
processo de criação de uma identidade nacional, porém, feita com bases europeias,
dialogam, apenas, com uma elite sulista. A busca pela “realidade”, que fez o sertão se
tornar perigoso, partiu de uma resposta da elite nordestina, que buscava assumir a
narrativa do espaço em que habitava. Portanto, o sertão nordestino foi palco de uma
disputa de narrativas, que o influenciam até hoje. Desse modo, nota-se que, mesmo
com uma tentativa de modernizar a representação do sertanejo nordestino, as
expressões culturais (aqui consideradas o cinema e a literatura) não só são
influenciadas na disputa pelo sertão nordestino como mantêm a distinção de obras
feitas por quem “ouve falar” e por quem habita esse espaço.
Retomando às primeiras linhas deste trabalho, quando se identifica
que o discurso de um Nordeste atrasado permanece no debate nacional, esta
pesquisa mostrou que uma das fontes desse preconceito é a literatura de Graciliano
Ramos e de José de Alencar, que, mesmo com objetivos distintos, trouxe uma visão
reducionista do que é o Nordeste e sua população. Mesmo após anos de produções
que buscam quebrar essa característica, muitas vezes, essas produções caem no
caminho mais fácil, que é reproduzir as visões preconcebidas. Desse modo, esta
pesquisa buscou problematizar essa questão e demonstrar que a invenção do sertão
continua em curso e que, quando um político veste um chapéu de vaqueiro, ele está
dialogando com Fabiano e Arnaldo e não com a população que vive na Região
Nordeste.
89
REFERÊNCIAS
https://www.dgabc.com.br/Noticia/944808/sertao-virou-pura-memoria-inventada.
Acesso em: 15 jul. 2017.
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias
do sublime e do belo. Tradução, apresentação e notas de Enid Abreu Dobránszky.
Campinas, SP: Papirus, 1993.
CANDIDO, Antonio. A Personagem de Ficção. 11. ed. São Paulo: Perspectiva,
2009.
CANDIDO, Antonio. Confissão e Ficção. 11. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.
CARVALHAL, Tania Franco. Literatura Comparada: a estratégia interdisciplinar.
Revista Brasileira de Literatura Comparada, [s.l.], v. 1, n. 1, 1991.
CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
COLLOT, Michael. Entrevista: Michael Collot. [Entrevista concedida a] Danielle
Grace de Almeida. ALEA, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 454-459, jul.-dez. 2014.
COLLOT, Michel. Poética e Filosofia da Paisagem. Rio de Janeiro: Oficina Raquel,
2013.
COSTA E SILVA, Álvaro. Triste fim do patriotismo: na rota dos protestos,
monumento às bandeiras vira alvo de pichações. Folha de São Paulo, São Paulo, 6
set. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/alvaro-costa-e-
silva/2021/09/triste-fim-do-patriotismo.shtml. Acesso em: 10 nov. 2021.
COUTINHO, Afrânio. Enciclopédia da Literatura brasileira. São Paulo: Global,
2001.
CUNHA, Euclides. Os Sertões. 2. ed. São Paulo: Ubu Editora, 2019.
DAMASIO, Wemerson. Vidas Secas: uma proposta de leitura e de letramento
literário para alunos do ensino fundamental. 2019. 207f. Dissertação (Mestrado) –
Universidade Estadual de Maringá, Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Maringá, PR, 2019.
DEVILART, José M. B. A Ideia de Ciclo ou de “Eterno Retorno” em Vidas Secas. In:
CONGRESSO NACIONAL DE LINGÜÍSTICA E FILOLOGIA, 6, 2002, Rio de Janeiro.
Anais [...]. Rio de Janeiro, 2002.
DIMAS, Antonio. Espaço e romance. 2. ed. São Paulo: Ática,1987.
ESTÂNCIA TURÍSTICA AVARÉ. Filme “O Homem que Virou Suco” é destaque
na sessão virtual do Pontos MIS. Por redação, em 13 de maio de 2020. Disponível
em: https://www.avare.sp.gov.br/noticias/filme-o-homem-que-virou-suco-e-destaque-
na-sessao-virtual-do-pontos-mis/. Acesso em: 14 maio 2022.
ETTE, Ottmar. Escrever Entre Mundos – Literaturas sem morada fixa. Tradução:
Rosani Umbach, Dionei Mathias e Teruco Arimoto Spengler. Curitiba: UFPR, 2018.
ETTE, Ottmar. Literatura en movimiento. Tradução (esp.): Rosa Maria S. de
Maihold. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2008.
ETTE, Ottmar. Saber sobreviver: a (o)missão da filologia. Tradução: Rosani
Umbach, Paulo Soethe e equipe. Curitiba: UFPR, 2015.
91