Harvey Construção Da Paisagem
Harvey Construção Da Paisagem
Harvey Construção Da Paisagem
Porém, sob toda essa diversidade, no período desde o início da década de 1970, a mudança do
administrativismo urbano para algum gênero de empreendedorismo continua sendo um tema
persistente e recorrente. Tanto as razões para tal mudança, como suas implicações, merecem
algum escrutínio. Há uma concordância geral de que a mudança tema ver com as dificuldades
enfrentadas pelas economias capitalistas a partir da recessão de 1 973. A (consultar GERTLER,
1988; HARVEV, 1989b; SAYER, 1989; SCHOENBERGER, 1988; Scorr,
1988; SWYNGEIOUW, 1986, para alguma elaboração e reflexão crítica sobre esse conceito
controverso). Nessas últimas duas décadas, a transformação da governança urbana teve raízes
e implicações macroeconômicas importantes. Se Jane Jacobs (1984) estiver certa, pelo menos
em parte, ao considerar a cidade a unidade relevante para o entendimento de como se cria a
riqueza das nações, então a mudança do , administrativismo urbano para o
empreendedorismo urbano pode ter implicaçôes de longo alcance para perspectivas futuras
de desenvolvimento.
Se, por exemplo, o empreendedorismo urbano (no sentido mais
amplo) ' se encaixa numa estrutura de concorrência interurbana de soma zero"
concernente a recursos, empregos e capital, então mesmo os governantes
municipais socialistas mais resolutos e vanguardistas farão, no fim, o jogo
capitalista, desempenhando o papel de agentes disciplinadores em relação aos
próprios processos que estão tentando resistir.
Desejo insistir aqui que “governança” urbana significa muito mais do que
“governo” urbano. É desastroso que grande parte da literatura (na Grã-
Bretanha, especialmente) se concentre tanto na questão do “governo” urbano,
quando o poder real de reorganização da vida urbana muitas vezes está em
outra parte, ou, pelo menos, numa coalizão de forças mais ampla, em que o
governo e a administração urbana desempenham apenas papel facilitador e
coordenador.
O poder de organizar o espaço se origina em um conjunto complexo de forças
mobilizado por diversos agentes sociais. É um processo conflituoso, ainda mais
nos espaços ecológicos de densidade social muito diversificada.
A formação da coalizão e da aliança é tarefa muito delicada e difícil, abrindo caminho para
pessoas de visão, tenacidade e habilidade (como um prefeito caPiSITláticO, um
administrador municipal talentoso ou um líder empresarial rico) imporem uma marca
pessoal sobre a natureza e direção do empreendedorismo urbano, talvez para moldá-
lo até para fins políticos específicos.
Enquanto, em Baltimore, foi uma figura pública como o prefeito Schaefer que
desempenhou o papel principal, em Halifax ou Gateshead, na Grá-Bretanha, foram os
empreendedores privados que assumiram a liderança.
A melhoria da imagem de cidades como Baltimore, Liverpool, Glasgow ou Halifax por meio da
construção de centros culturais, de varejo, de entretenimento e empresariais, pode lançar
uma sombra aparentemente benéfica sobre toda a regiâo metropolitana. Tais projetos podem
adquirir significado na escala metropolitana da açãO público-
privada, pOssibilitand
o a formação de coalizões que superar as disputas entre cidade e subúrbio, que
acossavam as regiões metropolitanas na fase administrativa.Por outro lado, na cidade de Nova
York, um empreendimento muito similar — o Southstreet Seaport—criou um novo lugar que teve
apenas impacto local, não alcançando influência alguma de abrangência metropolitana, e gerando
uma coalizão de forças constituída basicamente de incorporadores imobiliários e financistas
locais.
A
Construção de tais lugares talvez seja considerada uma maneira de obter
benefícios
para populações numa jurisdição específica. De fato, essa é a alegação principal do
discurso público elaborado para justificá-la. No entanto, geralmente, sua forma toma indiretos
todos os benefícios, e, possivelmente, resulta maior ou menor em escopo do que a jurisdição em
que se encontra. Os projetos específicos a um determinado lugar também têm o hábito de se
tornarem foco da atenção pública e política, desviando a atenção e até recursos dos problemas
mais amplos, que talvez afetem a região ou o território como um todo.
N
ormalmente, o novo empreendedorismo urbano se apóia na parceria
públiGO-privada,
enfocando o investimento e o desenvolvimento econômico, por meio da construção
especulativa do lugar em vez da melhoria das condições num território específico, enquanto
seu objetivo econômico imediato (ainda que não exclusivo).
As estratégias alternativas
para a governançaurbana
Como afirmei em outra obra (HARVEY, 1989a: cap. 1), há quatro opçôes básicas
relativas ao empreendedorismo urbano.
Cada opção justifica alguma podem ser reduzidos por subsídios (renúncias
fiscais, crédito barato, aquisição de terrenos). Dificilmente, na atualidade,
desenvolvimento algum em larga escala acontece sem que o governo local (ou
a coalizão mais ampla de forças que constitui a governança local) ofereça,
como estímulo, um pacote substancial de ajuda e assistência. A
competitividade internacional também depende das qualidades, quantidades e
custos da oferta local de mão-de-obra. Os custos locais podem ser
mais facilmente controlados quando os acordos coletivos locais substituem os
acordos , coletivos nacionais, e quando os governos locais e outras grandes
instituições, como hospitais e universidades, pavimentam o caminho para reduções
de salários e benefícios (na década de 1970, em Baltimore, o setor público e
institucional se caracterizava por uma série de conflitos sobre índices e benefícios
salariais).
A força
de trabalho de qualidade adequada, ainda que dispendiosa, pode ser um ímã
poderoso para um novo desenvolvimento econômico, de modo que o investimento
em forças de trabalho bem treinadas e habilitadas, adaptadas aos novos processos
de trabalho e às suas exigências administrativas, pode ser bem recompensado.
Finalmente, há o problema de economias aglomeradas em regiões metropolitanas.
Muitas vezes, a produção de bens e serviços não depende de decisões isoladas das
unidades econômicas (como a instalação da filial de uma grande multinacional na
cidade; freqüentemente, com efeitos de contágio muito limitados), mas do modo
pelo qual se criam economias pelo estabelecimento de diversas atividades dentro
de um espaço restrito de interação, facilitando os sistemas produtivos altamente
eficientes e interativos (consultar Scorr, 1988).
favorável aos negócios”, e para a elaboração de todos os ńpos de chamarizes para atrair
esse capital à cidade. Naturalmente, o empreendedorismo crescente foi conseqüência
parcial desse processo. No entanto, percebemos aqui esse empreendedorismo crescente
sob uma luz diferente, pois a busca para se obter capital de investimento confina a
inovação a um caminho muito estreito, elaborada em tomo de um pacote favorável ao
desenvolvimento capitalista e a tudo que isso acarreta. Em resumo, a missão da
govemança urbana é atrair fluxos de produção, fmanceiros e de consumo de alta
mobilidade e flexibilidade para seu espaço. O caráter especulativo dos investimentos
urbanos deriva da incapacidade de prever exatamente qual pacote terá ou não sucesso,
num mundo de muita instabilidade e volatilidade econôinica.
Portanto, é fácil conjeturar sobre todos os tipos de espiiais ascendentes e
descendentes de desenvolvimento e declínio urbano sob condições em que são fortes o
empreendedorismo urbano e a concorrência interurbana. As reações inovadoras e
competitivas de muitas alianças urbanas da classe dirigente engendraram mais incerteza,
e, nofim, tomaram o sistema urbano mais vulnerável às incertezas damudança acelerada.
AS IMPLICAÇÕES MACROECONÔMICAS DA
CONCORRÊNCIA INTERURBANA
capitalistas avançados.
Em resumo, desde o início da década de 1970, não há nada sobre o
empreendedorismourbano que seja antitético à tese relativa à
mudançamacroeconômica na forma e no estilo do desenvolvimento capitalista
. De fato, pode-se afirmar com segurança que (consultar HARVEY, 1989a: cap. 8)
as mudanças na política urbana e o movimento rumo ao empreendedorismo têm
desempenhado um importante papel facilitador na transição dos sistemas de
produção fordistas localizacionalmente rígidos, suportados pela doutrina do bem-
estar estatal keynesiano, para formas de acumulação flexível muito mais abertas
em termos geográficos e com base no mercado. Além disso, pode-se afirmar
(consultar HARVEY, 1989a e 1989b) que a transição do modemismo de base
urbana para o p6s-modemismo, com relação ao design, às formas culturais e ao
estilo de vida, também está conectada à ascensão do empreendedorism o urbano. A
seguir, mostrarei como e por que surgem essas conexões.
Em primeiro lugar, consideremos as conseqüências distributivas do
empreendedorismo urbano.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a maior parte da alardeada “parceria público-
privada”equivale a conceder subsídios aos consumidores ricos, às empresas afluentes e
às atividades de controle importancespara que elas permaneçam na cidade, à custa
do consumo coletivo local da classe trabalhadora e dos pobres.
O auinento dos problemas de empobrecimento e de perda de poder, incluindo a
criação de uma “subclasse” bem característica (usando a linguagem de w SON,
1987), foi registrado em relação a muitas das grandes cidades norte- americ as. Por
exemplo, Levine fornece muitos pormenores a respeito de Baltimore, num cenário
em que as principais demandas são feitas para o beneficio das parcerias público-pi9vadas.
Do mesmo modo, Boddy (1984) afirma que, as abordagens
arao
mainstream”(como ele as qualifica), em oposição às abordagens socialistas, p
orientadas pelos
progresso local na Grä-Bretanha, łöram “regidas pela propriedade,
negócios, pelo mercado e pela concorrência, com foco principal no desenvolvimento
A ênfase no esforços que pqssuem maior capacidade localizada de aumento dos valores das
propriedades, da base tributária, da circulação local de receitas e (mais freqüentemente como
conseqüência‹da lista precedente) do emprego.
Nessas duas últiIilãS décadas, economias urbanas enfermas. Os investimentos urbanos desse
tipo talvez produzam ajustes acelerados, ainda que passageiros, em relação aos problemas
urbanos.
No entanto, esses investimentos são, freqüentemente, muito especulativos. Por exemplo,
preparar-se para concorrer a sediar uma Olimpíada é uma prática dispendiosa, que talvez se
pague ou não.
Nos Estados Unidos, muitas cidades (Búfalo, por exemplo) investiram em grandes estádios
esportivos, na expectativa de atraírem equipes de beisebol da liga principal, e Baltimore
também está com planos de construir um novo estádio, para trazer de volta um time de
futebol americano que preferiu, anos atrás, um estádio melhor em Indianápolis (essa é a
versão moderna de um antigo culto de carga de Papua Nova Guiné," relativo à construção de
uma pista no ar, na esperança de atrair um avião à terra).
Os projetos especulativos desse tipo são parte de um problema macroeconômico mais
genérico. Em outras palavras, shopping centers e estádios esportivos financiados a crédito,
assim como outras facetas do consumo conspícuo, são projetos de alto risco, que podem, com
facilidade, defrontar- se com tempos difíceis, exacerbando, como a “supershopping
centerizaçãoda América” dramaticamente ilustra (GREEN, 1988), os problemas da
superacumulaçãoe do excesso de investimento, aos quais o capitalismo, como um todo, está
ta”o facilmente propenso. Em parte, a instabilidade que permeia o sistema financeiro norte-
americano (requerendo algo da ordem de cem bilhões de dólares em recursos públicos para
vimos é a tentativa de criar uma imagem física e social das cidades adaptada para essa
finalidade competitiva.
A criação de uma imagem urbana desse tipo também tem conseqüências políticas e sociais
internas. Ajuda a se contrapor ao sentido de alienação e anomia, que Simmel, há muito tempo,
identificou como a característica problemática da Vida na cidade moderna. Isso acontece, em
especial, quando um ‹ terreno urbano se abre à exposição, moda e “exibição do eu”, num
ambiente de espetáculo e representação. Se todos, de punks e rapers a yuppies e haute
bourgeoisie, são capazes de participar na criação de uma imagem urbana, pOr meio da sua
produção de espaço social, então todos podem sentir alguma pertinência em relação a esse
lugar.
Porém, também é evidente que o fato de pôr Baltimore em evidência desse modo,
dando um maior sentido de identidade à cidade, representou um êxito político, consolidando o
poder da influência da parceria público-privada local que materializou o projeto. Trouxe
recursos financeiros associados ao desenvolvimento para Baltimore (ainda que seja difícil
dizer se trouxe mais do que tirou em virtude da assunção do risco pelo setor público). Também
deu à população em geral algum sentido associado à vinculação com o lugar. Mesmo se falta
pão, o circo prospera. O triunfo da imagem sobre a substância é total.
No entanto, também ocorre algo positivo, que merece muita atenção. A , idéia da
cidade como corporação coletiva, na qual é possível a tomada de decisão democrática,
possui uma longa história no panteão das doutrinas e das práticas progressistas (a Comuna
de Paris, é claro, sendo o caso paradigmático na história socialista).
Existiram algumas tentativas recentes de reviver tal visão corporativa, tanto na
teoria (consultar FRUG, 1980) como na prática (consultar BLUNxETT E JACKSON, 1987).
deve sufocar
gllmas
das perigosas conseqüências macroeconômicas, muitas das quais,
meio da ascensão do empreendedorismo urbano serve para sustentar e aprofundar as relações
capitalistas de desenvolvimento geográfico desigual, afetando o curso do desenvolvimento
capitalista de maneira intrigante.
No entanto, a perspectiva crítica sobre o empreendedorismo urbano não revela apenas seus impactos
negati dos, mas também sua potencialidade para se transformar numa prática corporativa urbana
progressista, dotada de um forte sentido geopolítico de como construir alianças e ligações pelo
espaço, de modo a mitigar, quando não desafiar, a dinâmica hegemi›nica
da acumulação capitalista, para dominar a geografia histórica da vida social.
Há agora uma extensa literatura sobre esse tema, que revela que as formas,
atividades e objetivos desses sistemas de governança (diversamente conhecidos
como “regimes urbanos”, “máquinas de crescimento” ou “coalizões de crescimento
regional”) variam amplamente, dependendo das condições locais e do arco de forças
operantes dentro desses sistemas.
No entanto, isso não seria assim tão atraente (como é) se não fosse a maneira pela
qual também pode obter rendas monopolistas. Uma estratégia bem conhecida dos
incorporadores imobiliários, por exemplo, é conservar a melhor e mais alugável parte do
terreno de algum empreendimento para extrair renda monopolista dessa parte depois da
realização do restante do projeto. Os governos astutos, com os poderes necessários, podem
adotar as mesmas práticas. O governo de Hong Kong, como o entendo, é custeado
largamente pelas vendas controladas, a preços monopolistas muito elevados, dos terrenos
públicos para empreendimentos imobiliários. Por sua vez, isso converte os bens imóveis em
rendas monopolistas, tornando Hong Kong muito atraente para o capital de investimento
financeiro internacional, que opera por meio do mercado de bens imóveis. Naturalmente,
Hong Kong possui outras alegações de singularidade, devido à sua localização, sobre a qual
pode também negociar com muita força, oferecendo vantagens monopolistas. Casiialmente,
o governo de Cingapura começou a capturar rendas monopolistas, e foi muito bem-
sucedido, de forma quase similar, ainda que por meios político-econômicos muito
diferentes.
Esse tipo de governança urbana se orienta principalmente para a criação de
padrões locais de investimentos, não apenas em infra-estruturas físicas, como transportes e
comunicações, instalações portuárias, saneamento básico, fornecimento de água, mas
também em infra-estruturas sociais de educação, ciência e tecnologia, controle social,
cultura e qualidade de vida. O propósito é gerar sinergia suficiente no processo de
urbanização, para que se criem e se obtenham rendas monopolistas tanto pelos interesses
privados como pelos poderes estatais. Nem todos esses esforços obtêm êxito, mas mesmo os
exemplos de insucesso podem, parcial ou inteiramente, ser entendidos em termos do seu
fracasso em realizar rendas monopolistas. No entanto, a busca de rendas monopolistas não
se
limita às práticas de empreendimentos imobiliários, iniciati vas econômicas e recursos
governamentais. Essa busca possui uma aplicação bem mais ampla.
O capital simbólico coletivo, os marcos de distinção e as rendas monopolistas
Se as alegaçóes de singularidade,autenticidade, particularidadee especialidade
sustentam a capacidade de conquistar rendas monopolistas, então sobre que melhor
terreno é possível fazer tais alegações do que no campo dos artefatos e das práticas
culturais historicamente constituídas, assim como no das características ambientais
especiais (incluindo,é claro, os ambientes sociais e culturais construídos)? Todas
essas alegações, como nonegócio do vinho, são tanto resultado das construções
discursivas
como dos conflitos baseados em fatos materiais. Muitas alegações se apóiam em
narrativas históricas, interpretações e sentidos das memórias coletivas,
significados das práticas culturais etc.: sempre há um forte elemento social e
discursivo operante na construção de tais alegações. Logo que estabelecidas,
porém, tais alegações podem ser devolvidas com força ao ponto de origem para
a extração das rendas monopolistas, já que, na mente de muitas pessoas ao
menos, não existirão lugares outros além de
Londres, Cairo, Barcelona, Milão, Istambul, São Francisco, ou seja onde for, para ,
obter acesso a tudo quanto seja supostamente único a tais lugares.
O ponto de referência mais evidente on‹le esse processo funciona é o
turismo contemporâneo, mas considero um erro basear a questa”o nisso. Pois o
que está em jogo é o poder do capital simbólico coletivo, isto é, o poder dos
marcos especiais de distinção vinculados a algum lugar, dotados de um poder de
atração importante em relação aos fluxos de capital de modo mais geral.
Bourdieu, a quem devemos o uso genérico desses termos, infelizmente os
restringe aos indivíduos (quase como átomos flutuando num mar de juízos
estéticos estruturados), quando para niim parece que as formas coletivas (e a
relação dos indivíduos com essas formas coletivas) talvez fossem de interesse
ainda maior. O capital simbólico coletivo vinculado a nomes e lugares como
Paris, Atenas, NovaYork, Rio de Janeiro, Berlim e Roma é de grande
importância, conferindo a tais lugares grandes vantagens econômicas em relação
a, por exemplo, Baltimore, Liverpool, Essen, Lille e Glasgow. O problema para
esses lugares citados em segundo lugar é elevar seu quociente de capital
simbólico e aumentar seus marcos de distinção, para
melhor basear suas alegações relativas à singularidade geradora da
rendamonopolista. Dada a perda de outros poderes monopolistas por causa do
transporte e comunicação mais fáceis, e a redução de outras barreiras para o
comércio, a luta pelo capital simbólico coletivo se tomou ainda mais importante
como base para as rendas monopolistas. De que outro modo podemos explicar o
alarde provocado pelo Museu Guggenheim, em Bilbao, da grife arquitetônica
Geluy? E também como podemos explicar a disposição de instituições financeiras
importantes, com consideráveis interesses internacionais, de financiar tal projeto?
A ascensão de Barcelona à proeminência do sistema europeu de
cidades, para considerar outro exemplo, deu-se, em parte, com base na sua firme
acumulação tanto de capital simbólico como de marcos de distinção. Nesse caso,
enfatizou-se a prospecção da história e da tradição caracteristicamente catalã, o
marketing a respeito de suas importantes realizações artísticas e heranças
arquitetônicas (Gaiidí, é claro), e seus marcos distintivos de estilo de vida e
tradições literárias, com o apoio de uma avalanche de publicaçôes, exibições e
eventos culturais celebrantes da distinção. Além disso, hou ve novos
embelezamentos arquitetónicos (a antena de radiocomunicação de Norman Foster
e o Museu de Arte Moderna branco fulgurante
de Meier, nomeio de construções degradadas da cidade velha), investimentos pesados para
permitir o fácil acesso ao porto e à praia, recuperando terrenos baldios para a Vila
Olímpica (com referência sagaz à utopia dos Icários), e a transformação do que fora antes
uma vida noturna lúgubre e perigosa num panorama aberto de espetáculo urbano. Todo
esse processo ainda recebeu a ajuda dos Jogos OlÍmpicos de 1992, que propiciou grandes
oportunidades para acumulação de rendas monopolistas (Juan Samaranch, presidente do
Comitê Olímpico Internacional, por coincidência, tinha muitos interesses imobiliários em
Barcelona).
No entanto, o sucesso inicial de Barcelona parece ter tomado o rumo da
primeira contradição. Enquanto as oportunidades de apropriação das rendas
monopolistas se apresentavam em abundância, com base no capital simbólico
coletivo de Barcelona enquanto cidade (os preços dos imóveis explodiram e o Royal
Institute of British Architects concedeu a toda a cidade sua medalha por realizações
arquitetônicas), seu irresistível chamariz atraiu, como conseqüência, mais e mais a
transformação em commodities multinacional e homogeneizada. As fases
posteriores dos empreendimentos à margem do mar parecem exatamente como
quaisquer outros empreendimentos do mundo ocidental, os espantosos
congestionamentos de trânsito provocam pressões para abrir avenidas na cidade
velha, lojas de propriedade multinacional substituem o comércio local, o
“enobrecimento” de regiões desvalorizadas da cidade transfere os moradores
antigos e destrói construções mais antigas, e Barcelona perde alguns dos seus
marcos de distinção. Há inclusive sinais nada sutis de “disneificação”. Essa
contradição é marcada por questionamentos e resistência. Que memória coletiva
deve ser celebrada pela cidade (os anarquistas, como os Icários, que
desempenharam papel importante na história de Barcelona; os republicanos, que
lutaram tão bravamante contra Franco; os nacionalistas catalães; os migrantes da
Andaluzia; ou um velho aliado de Franco, como Samaranch)' Que estética realmente
tem valor (os arquitetos celebremente poderosos de Barcelona, como Bohigas)? Por
que aceitar a “disneificação”? Os debates desse tipo não podem ser facilmente
silenciados, exatamente porque é evidente para todos que o capital simbóliccoletivo
acumulado por Barcelona depende dos valores de autenticidade, singularidade e qualidades
específicas irreplicáveis. Tais marcos locais de distinção são de difícil acumulação sem
suscitar a questão do exercício local de poder, mesmo
dos movimentos populares e oposicionistas. Nesse ponto, normalmente, os guardiões do
capital simbólico coletivo e do capital cultural (os museus, as universidades, a classe dos
mecenas e o aparelho estatal) fecham suas portas, e tratam de manter fora a ralé (ainda que,
em Barcelona, o Museu de Arte Moderna, ao contrário da maioria das instituições desse
tipo, continuou, surpreendente e construtivamente, aberto às sensibilidades populares).
Nesse caso, os interesses são significativos. Trata-se de
uma questão de determinar que segmentos da população devem se beneficiar mais do
capital simbólico, para o qual todos, em seus próprios e distintivos modos,
contribuíram. Por que deixar a renda monopolista vinculada ao capital simbólico ser
auferida apenas pelas multinacionais ou por uma pequena e poderosa parcela da
burguesia local? Mesmo Cingapura, que criou rendas monopolistas e se apropriou
delas com tanta crueldade e tanto sucesso ao longo dos anos (principalmente, por sua
vantagem localizacional e política), cuidou de que os benefícios fossem distribuídos
por meio da oferta de habitação, saúde e educação.
Pelos tipos de motivos exemplificados pela história recente de Barcelona, a indústria
do conhecimento e do patrimônio, a produção cultural, a arquitetura de grife e o cultivo
de juízos estéticos distintivos se tornaram poderosos elementos constitutivos da
política do empreendedorismo urbano, em muitos lugares (ainda que de modo mais
particular na Europa). Em um mundo altamente competitivo, a luta para acumular
marcos de distinção e capital simbólico coletivo continua. No entanto, isso suscita
todas as questões relativas às opções de memória coletiva, estética e beneficiários. A
supressão inicial de toda menção ao comércio de escravos na reconstrução do Alberto
Dock,’i em Liverpool, por exemplo, gerou protestos por parte da população excluída de
ascendência caribenha, e o Memorial do Holocausto, em Berlim, despertou muitas
controvérsias. Mesmo monumentos antigos, como a Acrópole, cujo significado agora
— assim se poderia imaginar — estaria bem estabelecido, estão sujeitos à
contestação. Tais contestações podem ter implicações políticas muito difundidas,
mesmo indiretas. Considere-se, por exemplo, a argumentação emaranhada em torno
da reconstrução de Berlim, depois da reunificação alemã. Todos os estilos de forças
divergentes colidiram ali, conforme se desenrolava a luta para definir o capital
simbólico de Berlim. De modo evidente, Berlim pode fixar uma alegação a respeito de
singularidade com base na sua potencialidade de mediação entre o leste e o oeste.
Sua posição estratég ica em relação ao desenvolvimento geográfico desigual do
capitalismo contemporãneo (com a abertura da ex-União Soviética) propicia evidente
vantagem. No entanto, há outro tipo de batalha por identidade sendo travado, que
invoca memórias coletivas, mitologias, história, cultura, estética e tradição. Contemplo
apenas uma única dimensão particularmente problemática dessa luta, uma dimensão
que não é necessariamente dominante, e cuja capacidade para fundamentar
alegações em relação à renda monopolista sob a competição global não é clara ou
certa.
Uma facção de arquitetos e planejadores locais (com o apoio de
certa parte do aparato estatal local) procura revalidar as formas
arqiiitetônicas da Berlim dos séculos XVIII e XIX, e, em particular, realçar a
tradição arqiiitetônica de Schinkel, excluindo quase todo o resto. Essa
posição talvez seja vista como simples questão de preferência estética
elitista, mas possui diversos significados, que têm a ver com as memórias
coletivas, a monumentalidade, o poder da história e a identidade política da
cidade. Também se associa ao clima opinativo (articulado em uma
variedade de discursos) que define quem é berlinense e não é, e quem
tem direito à cidade, em termos bem definidos de estirpe ou de adesão a
valores e crenças específicas. Prospecta uma história local e uma herança
arquitetônica carregadas de conotações nacionalistas e românticas. Num
contexto em que os maus-tratos e a violência contra os imigrantes são
comuns, talvez até ofereça legitimação tácita a tais ações. A população
turca (grande parte da qual agora é natural de Berlim) sofreu muitas
afrontas, sendo forçada a abandonar o centro da cidade. Sua contribuição
a Berlim como cidade é inteiramente ignorada. Além disso, esse estilo
romântico'nacionalista se ajusta à abordagem tradicional concernente à
monumentalidade, que, nos projetos contemporâneos (embora sem
referência específica e até talvez sem saber), replica amplamente os
projetos de Albert Speer (esboçados para Hitler na década de 1930) para
um primeiro plano monumental para o Reichstag.'2 Felizmente, isso não é
tudo que está entrando em cena em Berlim, na busca por capital simbólico
coletivo. A reconstrução do Reichstag, de autoria de Norman Foster, por
exemplo, ou o gnipo de arquitetos modernistas internacionais importado
pelas multinacionais (largamente em oposição aos arquitetos locais), para
dominar a Potsdamer Platz, são incompatíveis com a posição inicialmente
mencionada. A reação romântica local à ameaça de dominação
multinacional pode simplesmente acabar sendo um elemento de interesse
inocente num empreendimento complexo relativo a diversos marcos de
distinção para a cidade (Schinkel, afinal, possui considerável mérito
arquitetônico, e a reconstrução de um castelo do século XVIII pode
facilmente se prestar à “disneificação”). No entanto, o possível aspecto negativo da
história desperta interesse, pois realça como as contradições da rendamonopolista podem
terminar. Se os projetos limitadores, a estética excludente e as práticas discursivas se tornarem
dominantes, o capital simbólico coletivo criado dificilmente transacionará com liberdade, pois
suas qualidades especiais o porão largamente fora da globalização. O poder
entanto, o possível aspecto negativo da história desperta interesse, pois realça como
as contradições da rendamonopolista podem terminar. Se os projetos limitadores, a estética
excludente e as práticas discursivas se tornarem dominantes, o capital simbólico coletivo
criado dificilmente transacionará com liberdade, pois suas qualidades especiais o porão
largamente fora da globalização. O poder
tipos de outras dimensões da vida social incompatíveis com a homogeneidade
pressuposta pela produção da mercadoria. Para o capital não destruir totalmente a
singularidade, base para a apropriação das rendas monopolistas (e há muitas
circunstâncias em que o capital fez exatamente isso), deverá apoiar formas de
diferenciação, assim como deverá permitir o desenvolvimento cultural local divergente
e, em algum grau, incontrolável, que possa ser antagônico ao seu próprio e suave
funcionamento. É em tais espaços que todos os tipos de movimentos oposio-ionistas
podem se organizar; pressupondo, como é freqüentemente o caso, que os
movimentos oposicionistas não estejam firmemente ali entrincheirados. O problema
para o capital é achar os meios de cooptar, subordinar, mercadorizar e monetizar tais
diferenças apenas o suficiente para ser capaz de se apropriar das rendas
monopolistas disto. O problema para os movimentos oposicionistas é usar a validação
da particularidade, singularidade, autenticidade e significados culturais e estéticos de
maneira a abrir novas possibilidades e alternativas, em vez de permitir que essa
validação seja usada para criar um terreno mais fértil do qual possam ser extraídas
rendas monopolistas por aqueles que possuem tanto o poder como a inclinação
compulsiva para fazer isso. As lutas resultantes, muito difundidas ainda que
geralmente fragmentadas, entre a apropriação capitalista e a criatividade artística,
podem levar um segmento da comunidade preocupado com questões culturais para o
lado com uma política contrária ao capitalismo multinacional.
No entanto, não é nada certo que o conservadorismo e mesmo a prática reacionária
da exclusão, muitas vezes vinculados a valores “puros” de autenticidade, originalidade
e a uma estética de particularidade da cultura, sejam bases adequadas para uma
política progressista de oposição. Pode-se muito facilmente guinar para políticas de
identidade local, regional ou nacionalista, do tipo neofascista, das quais já há muitos
sinais preocupantes por toda a Europa. Essa é uma contradição básica, que a
esquerda deve combater. Os espaços para políticas de transformação estão ali, pois o
capital não pode se permitir fechá-los completamente, e a oposição de esquerda CSta
gradualmente aprendendo a como melhor usá-los.
Os fragmentados movimentos de oposição à globalização neoliberal, como revelado
em Seattle, Praga, Melbourne, Bangcoc e Nagora, mais consmitivamente, no Fórum
Social Mundial, em Porto Alegre (em oposição ao encontro anual, em Davos, das
elites empresariais e dos líderes governamentais), indica uma política alternativa. Não
é inteiramente antagônica à globalização, mas a quer em condições muito diferentes.
Naturalmente, não por acaso foi Porto Alegre e não Barcelona, Berlim, Sâo Francisco
ou Milão que se abriu a essa iniciativa. Em Porto Alegre, as forças da culmra e da
história estão sendo mobilizadas por um movimento político (liderado pelo Partido dos
Trabalhadores) de modo diferente, buscando um outro tipo de capital simbólicocoletivo
em relação ao ostentado no Museu Guggenheim, em Bilbao, ou na ampliação da Tate
Gallery, em Londres. Os marcos de distinção em acumulação em Porto Alegre se
originam da sua luta para moldar uma alternativa à globalização, que não tire partido
das rendas monopolistas, em particular, ou se submeta ao capitalismo multinacional,
em geral. Ao se concentrar na mobilização popular, está construindo, de modo ativo,
novas formas culturais e novas definições de autenticidade,
originalidade e tradição.
Esse é um caminho difícil de ser seguido, como mostram • exemplos anteriores, como
as experiências notáveis na Bolonha vermelha das décadas
de 1960 e 1970. O socialismo em uma ünica cidade não é um conceito viável. No
entanto, é evidente que alternativa alguma à forma contemporânea de globalização
será apresentada a nós a partir do alto. Terá de vir de dentro dos espaços múltiplos
locais, ligados num movimento mais amplo.
Nesse caso, é que assumem certa importância estrutural as contradições enfrentadas
pelos capitalistas quando buscam renda monopolista. Ao procurarem explorar valores
de autenticidade, localidade, história, cultura, memórias coletivas e tradição, abrem
espaço para a reflexão e a ação política, nas quais alternativas podem ser tanto
planejadas como perseguidas. Esse espaço merece intensa investigação e cultivo
pelos movimentos de oposição. É um dos espaços chave de esperança para a
construção de um tipo alternativo de globalização, em que as forças progressistas da
cultura se apropriam dos espaços chave do capital em vez do contrário.