Documento Da AudEletrica
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Documento Da AudEletrica
TC 005.710/2024-3
Tipo: Representação
Unidade Jurisdicionada: Agência Nacional
de Energia Elétrica (Aneel)
Representante: AudElétrica
Representado: Agência Nacional de Energia
Elétrica
Responsável: Sandoval de Araújo Feitosa Neto
(CPF ***.198.313-**) – Diretor-Geral da
Aneel
Procurador: não há
Proposta: conhecimento da representação;
realização de oitiva; autorização para diligência
e inspeção.
INTRODUÇÃO
1. Cuidam os autos de representação formulada por esta AudElétrica, nos termos do art. 237,
inciso VI, do Regimento Interno do TCU (RI/TCU), em face de indícios de descumprimento do art.
28, caput, da Lei 14.300, de 6/1/2022, caracterizados por possível comercialização ilegal de créditos
de energia elétrica no âmbito da micro e minigeração distribuída (MMGD), a qual se confirmada
pode estar resultando, dentre outros, na concessão de subsídios indevidos para determinados grupos
específicos de consumidores e na majoração das tarifas para o restante, com distorção de um dos
princípios fundamentais da política pública de MMGD, qual seja: a produção de energia elétrica para
consumo próprio e não para comercialização.
2. O segmento de MMGD, especialmente depois da publicação da Resolução Normativa
(REN) Aneel 482/2012 voltada para o tema, apresentou crescimento expressivo no setor elétrico o
qual tem se consolidado graças à Lei 14.300/2022 que estabeleceu o marco legal da microgeração e
minigeração distribuída.
3. Numa verificação ainda incipiente, dado o objetivo desta fase processual, verificaram-se
indícios de falhas na implementação da política pública estabelecida na Lei, que podem acarretar
distorções nos subsídios concedidos e encarecimento indevido das tarifas, nos casos de geração
compartilhada e de autoconsumo remoto.
4. Em especial, há indicação de que diversas empresas, inclusive empresas ligadas a
distribuidoras de energia elétrica, estão utilizando um modelo de negócio que resulta, na prática, na
venda de energia elétrica dos geradores para consumidores regulados, situação vedada para o mercado
cativo, que deve tratar apenas com as concessionárias de distribuição. É desautorizada, pelos
normativos vigentes, a venda de energia diretamente de geradores aos consumidores cativos, bem
como a venda de créditos de energia gerada no contexto da MMGD. Com efeito, têm surgido arranjos
empresariais, formalmente previstos da Lei 14.300/2022, que estão sendo utilizados indevidamente
para burlar a proibição de comercialização de energia, fato que no médio prazo pode resultar no
encarecimento das tarifas para os consumidores que não aderirem a essa modelagem.
5. Na prática, um consumidor do mercado cativo que adira à modelagem passa a usufruir de
descontos em sua fatura com a concessionária como contrapartida a uma “assinatura” de energia, a
semelhança de serviços digitais streaming. Ou seja, formalmente não há uma venda ou
comercialização de créditos de energia, mas, na realidade, o consumidor deixa de pagar parte da
energia para a distribuidora e passa a remunerar outra sociedade, que repassa créditos de energia com
desconto em relação à tarifa regulada. Essa sociedade se remunera e captura parte dos subsídios
implícitos da MMGD que não compuseram o desconto oferecido aos consumidores.
6. Trata-se de uma modelagem interessante apenas para os empreendedores e para os grupos
consumidores que aderirem ao modelo, haja vista os subsídios inerentes para a energia proveniente
de MMGD, pois os demais consumidores do mercado regulado acabam suportando maior tarifa.
Enfatiza-se que o consumidor que adere a esse modelo de negócio usufrui somente de parte do
subsídio da MMGD. Ou seja, o subsídio pago pelos demais consumidores cativos está sendo utilizado
para alimentar um modelo de negócio irregular.
7. Ademais, a abertura velada do mercado pode ser agravada haja vista a inexistência de
planejamento estratégico voltado a essas iniciativas, com riscos para a própria sustentabilidade
tarifária do setor elétrico.
HISTÓRICO
a ser regulamentada sendo a compensação apenas para a parcela de energia, mas também
considerando os benefícios ao sistema propiciados pelos sistemas de MMGD.
22. Sobre a questão de ser um subsídio cruzado, recente artigo publicado na Revista do
Serviço Público ed. nov/dez/2023 aponta que o público mais beneficiado pelo subsídio tende a ser o
de maior poder aquisitivo, caracterizando a tendência de regressividade dos subsídios da MMGD,
sendo úteis ações para redução destes subsídios:
Após o cruzamento em questão, foram aplicados indicadores convencionais de desigualdade,
obtendo a Curva de Lorenz para a renda bruta das empresas antes e após o subsídio. Observou-se
que as curvas são praticamente idênticas, com variação em -0.01 no Índice de Gini, o que dá sinais
de que, apesar do dispêndio elevado do subsídio, este tem sido praticamente inócuo em termos de
redistribuição de renda, quando se avalia somente as empresas beneficiadas. Esse fato por si só
indica que, ao se manter uma política de subsídio, essa deveria ser focalizada e com requisitos
socioeconômicos e não apenas técnicos para obtenção do benefício.
[...]
É possível verificar, portanto, e considerando o escopo deste estudo, evidências de regressividade
dos subsídios do SCEE aplicados ao mercado de geração distribuída. Conforme demonstrado, o
subsídio é mais elevado quanto maior a renda das empresas analisadas, gerando ineficiência
alocativa no setor e potencializando os efeitos distributivos regressivos.
23. O painel subsidiômetro da Aneel aponta que, em 2018, ou seja, 6 anos após a
regulamentação do SCEE via resolução, os subsídios para MMGD eram da ordem de R$ 68 milhões;
em 2020, já alcançaram R$ 454 milhões; e, em 2023, chegaram a R$ 7,1 bilhões.
24. Em 2015, a participação da MMGD na matriz elétrica nacional era de apenas 0,01%
correspondente a 20 MW (painel da Aneel) num universo de 140 GW, de acordo com o Balanço
Energético Nacional (BEN) de 2016. Já em 2022, de acordo com dados do BEN 2023 é de cerca 9,1%
(correspondente a 17,3 GW num total de 189,1 GW). Houve um crescimento exponencial da MMGD
nos últimos anos, passando de 20 MW em 2015 para 26 GW em 2023 (Figura 1). Consequentemente
os subsídios envolvidos têm crescido em ritmo similar, e, conforme demonstra a Figura 2,
alcançaram, em 2023, R$ 7,1 bilhões.
Figura 1 – Histórico da Potência Instalada em MMGD (em MW)
30.000
25.000
20.000
15.000
10.000
5.000
0
2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023
R$7.000.000.000
R$6.000.000.000
R$5.000.000.000
R$4.000.000.000
R$3.000.000.000
R$2.000.000.000
R$1.000.000.000
R$0
2018 2019 2020 2021 2022 2023
EXAME DE ADMISSIBILIDADE
32. Ainda, conforme dispõe o art. 103, § 1º, in fine, da Resolução – TCU 259/2014, verifica-
se a existência do interesse público no trato da suposta irregularidade, pois a MMGD consiste em
política pública destinada à geração para atender o consumo próprio de energia, na qual é vedada a
venda de energia ou a obtenção de vantagem na alocação dos créditos de energia. A qualificação de
empreendimentos que comercializam energia proveniente do regime da MMGD pode causar prejuízo
a todos os consumidores, uma vez que estes arcam com subsídios e têm as respectivas faturas de
energia majoradas com os respectivos encargos.
33. Dessa forma, a representação poderá ser apurada, para fins de comprovar a sua
procedência, nos termos do art. 234, § 2º, segunda parte, do Regimento Interno do TCU, aplicável às
representações de acordo com o parágrafo único do art. 237 do mesmo RI/TCU.
EXAME TÉCNICO
solar).
37. Nesse contexto, a energia gerada pelos painéis solares e não utilizada na unidade de
consumo é injetada diretamente na rede elétrica local e gera um crédito de energia, que por sua vez
pode ser utilizado em até 60 meses para “abater” o consumo (desta mesma unidade consumidora -
UC - ou de outra na mesma área de concessão, sendo o processo coordenado pelas concessionárias
de distribuição).
38. A compensação é considerada como um contrato de mútuo (empréstimo) gratuito de
energia.
39. Recorde-se que, em 2015, a Aneel realizou a Audiência Pública 26/2015, com o objetivo
de colher contribuições para a aprimorar a Resolução Normativa Aneel 482/2012. Na Nota Técnica
0017/2015-SRD/ANEEL, de 13/4/2015, pela qual formalizou-se proposta de abertura dessa audiência
pública, anotou-se:
Dessa forma, com amparo no Parecer 108, de 28/02/2012, da Procuradoria Federal da ANEEL, a
Agência revisou a REN 482/2012 de forma a esclarecer que a relação jurídica entre o
consumidor com geração distribuída e a distribuidora não se caracteriza como uma
comercialização de energia elétrica, mas como mútuo (empréstimo gratuito) de energia
elétrica.
40. Posteriormente, esse entendimento foi positivado no artigo 1º, inciso XIV, da Lei
14.300/2022:
XIV - Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE): sistema no qual a energia ativa é
injetada por unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída na rede da
distribuidora local, cedida a título de empréstimo gratuito e posteriormente compensada com
o consumo de energia elétrica ativa ou contabilizada como crédito de energia de unidades
consumidoras participantes do sistema.
41. O consumidor pode gerar a energia na sua própria residência, ou seja, na própria unidade
de consumo, ou então gerar em outro local. O art. 1º da Lei 14.300/2022 apresenta, entre outras, essas
duas definições:
I – Autoconsumo local: modalidade de microgeração ou minigeração distribuída eletricamente
junto à carga, participante do Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE), no qual o
excedente de energia elétrica gerado por unidade consumidora de titularidade de um consumidor-
gerador, pessoa física ou jurídica, é compensado ou creditado pela mesma unidade consumidora;
II – Autoconsumo remoto: modalidade caracterizada por unidades consumidoras de titularidade
de uma mesma pessoa jurídica, incluídas matriz e filial, ou pessoa física que possua unidade
consumidora com microgeração ou minigeração distribuída, com atendimento de todas as
unidades consumidoras pela mesma distribuidora;
42. É possível também o compartilhamento da MMGD, quando um grupo de pessoas possui
uma usina de MMGD e compartilha entre si os benefícios dela. O art. 1º da Lei 14.300/2022 apresenta
as seguintes definições:
III – consórcio de consumidores de energia elétrica: reunião de pessoas físicas e/ou jurídicas
consumidoras de energia elétrica instituído para a geração de energia destinada a consumo
próprio, com atendimento de todas as unidades consumidoras pela mesma distribuidora;
(...)
VII - empreendimento com múltiplas unidades consumidoras: conjunto de unidades
consumidoras localizadas em uma mesma propriedade ou em propriedades contíguas, sem
separação por vias públicas, passagem aérea ou subterrânea ou por propriedades de terceiros não
integrantes do empreendimento, em que as instalações para atendimento das áreas de uso comum,
por meio das quais se conecta a microgeração ou minigeração distribuída, constituam uma
unidade consumidora distinta, com a utilização da energia elétrica de forma independente, de
48. A consultoria PSR, em seu boletim mensal Energy Report n. 202 de 2023, também
abordou o tema das assinaturas de energia (peça 7, p. 9). Resumidamente, a consultoria conclui que
esses modelos caracterizariam uma venda de energia. Dentre as preocupações tratadas no artigo,
encontra-se a captura de incentivos pelas empresas de assinatura e a distorção da MMGD, uma vez
que esta se caracteriza como produção de energia para consumo próprio, impedindo a
comercialização ou obtenção de qualquer benefício na alocação de créditos e seus excedentes (exceto
em casos bem específicos previstos na lei, como a comercialização dos excedentes com as
distribuidoras locais ou com órgãos públicos).
49. Em vista disso, o propósito deste trabalho, caso seja acolhido pelo TCU, será identificar
em que medida pode estar sendo criado um tipo de mercado: o de comercialização de créditos de
excedentes de energia que está disponível a clientes que por lei ainda não podem integrar o mercado
livre de energia, em desacordo com as normas aplicáveis que preveem a MMGD apenas para
consumo próprio, sendo vedada a obtenção de benefícios com a venda de energia, créditos de energia
ou excedentes de energia.
50. Empresas podem estar se valendo da facilidade para se criar cooperativas ou outras
formas associativas a fim de realizar venda sub-reptícia de energia. No lugar de ocorrer uma venda
declarada de energia ou de créditos de energia, situações vedadas por lei, os consumidores aderem a
uma cooperativa ou associação que administra uma ou mais usinas cadastradas no sistema de
compensação da MMGD. Assim, como o consumidor é formalmente um cooperativado ou associado
a uma usina, ele faz jus a uma proporção dos créditos de energia. Ocorre que essas estruturas, por
diversas razões que serão esgrimidas mais adiante, podem não configurar cooperativas ou associações
de fato.
51. Ao que tudo indica, o negócio se revela economicamente promissor, pois empresas
relacionadas às próprias distribuidoras adentraram no cenário de assinatura de energia, com destaque
para a Cemig, que emergiu como uma das principais protagonistas do setor. Outros grupos como
EDP, Energisa, Equatorial e Neoenergia também estão atuando no segmento de MMGD com geração
compartilhada.
52. A disseminação deste "negócio” pode estar fora do escopo da política pública da MMGD
que prevê o subsídio como incentivo para o crescimento de fontes renováveis para consumo próprio.
Assim, a possibilidade de venda de energia para consumidores no varejo permite que grupos
econômicos capturem o subsídio da MMGD previsto apenas para o consumo próprio. Outra
preocupação é que esse crescimento não envolve um planejamento centralizado, e, no caso das
empresas de assinatura, nem estão intrinsecamente sob o manto de regulação da Aneel.
53. Os principais aspectos legais que embasam este entendimento são apresentados a seguir.
(ii) Aspectos legais
54. Os principais artigos da Lei e regulamentos para o entendimento da irregularidade são os
que vedam a comercializado de energia proveniente da MMGD.
55. O art. 28 da Lei 14.300/2022 menciona de forma explícita que a MMGD deve ser para
consumo próprio:
Art. 28. A microgeração e a minigeração distribuídas caracterizam-se como produção de energia
elétrica para consumo próprio.
56. A regulamentação deste dispositivo pela REN Aneel 1.059/2023, que alterou a redação
da REN Aneel 1.000/2021, é clara e abrange também a vedação da comercialização de créditos de
energia, bem como a obtenção de qualquer benefício em sua alocação para outros titulares:
Art. 655-D
[...] ...
energia para consumidores que por força legal estão restritos ao mercado cativo de energia.
62. A Figura 4 ilustra um caso hipotético desse tipo de ocorrência utilizando valores da tarifa
na área de concessão da Enel/CE em 2021-2022, em que se realiza a venda de energia, por meio de
assinaturas solares, no caso da geração compartilhada. A operação se realiza da seguinte forma:
a) neste caso hipotético e exemplificativo, o consumidor consome, no cenário base,
800 kWh por mês, devendo pagar uma fatura mensal de energia de R$ 673,00;
b) ao aderir a um empreendimento de MMGD compartilhado, por meio da assinatura
solar, este consumidor, sem nenhum investimento ou contribuição para a implantação do
empreendimento de MMGD, ou gestão da usina, pode contratar a “compra” de 600 kWh
e reduzir o seu consumo líquido para 200 kWh. O desconto pactuado é de 15% sobre a
tarifa de energia;
c) a empresa de assinatura solar repassa ao consumidor créditos de energia
correspondentes a 600 kWh;
d) a fatura mensal de energia junto à distribuidora passa a ser de R$ 309,00,
correspondente ao consumo líquido de 200 kWh;
e) pelos 600 kWh, o consumidor paga para a empresa de assinatura um valor
correspondente a 85% da tarifa da distribuidora para os mesmos 600 kWh, totalizando
R$ 310,00.
f) o valor total pago no mês passa a ser de R$ 619,00, o que corresponde a uma economia
de R$ 54,00
Figura 4 – Exemplo ilustrativo de comercialização de créditos de energia por meio de “assinatura
solar”
Fonte: Slide da aula 5 da disciplina política tarifária da pós-graduação em regulação realizada no ISC
63. Isto pode ocorrer porque a MMGD com fonte fotovoltaica é bastante competitiva, em
especial com os subsídios vigentes. Para exemplificar, vale lembrar que o payback de uma usina
enquadrada como MMGD era de cerca 3 anos, segundo estudo da EPE de 20161, e está por volta de
4 a 5 anos, considerando as novas regras para o setor. Considerando que uma usina tem vida útil da
ordem de 25 anos, percebe-se a vantagem em se investir na modalidade.
64. Essa configuração é boa financeiramente tanto para o consumidor que adere ao
1https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-
172/Energia%20Renovável%20-%20Online%2016maio2016.pdf
mecanismo, que terá um consumo de energia líquido menor e consequentemente pagará a tarifa
“cheia” numa quantidade de energia menor, bem como para o gerador, que pode vender a energia a
um custo quase “cheio” da TE e TUSD e não apenas da energia. O sistema com esse arranjo pode
resultar em verdadeira espiral da morte: o aumento do preço pago pelos consumidores sem MMGD
estimulará mais consumidores a buscarem alternativas de fornecimento de energia (dentre elas a
utilização da própria MMGD), aumentando os impactos de maneira insustentável para os que
permanecerem voluntariamente ou não puderem ingressar na MMGD. Como agravante, há uma
tendência de maior concentração de custos em consumidores de menor poder aquisitivo, que não
possuem condições de instalar uma MMGD própria tampouco possuem atratividade para esse modelo
de negócio por não atenderem aos critérios de consumo mínimo, pois é comum a exigência de um
consumo mínimo para aderir a “assinatura” afetando negativamente a equidade desejável para a
política pública. De acordo com NETTO (2022), esse arranjo é altamente viável para os prosumidores
(investidor/empreendedor) e consumidores e envolve dois perfis em especial:
Nesse modelo, os papéis do prosumidor e consumidor não se misturam e o capital para
investimento na usina é proveniente exclusivamente do prosumidor (que é o
investidor/empreendedor). O consumidor, nesse caso, paga ao prosumidor pelo aluguel do
gerador. Esse aluguel inclui as despesas com prestadores de serviços e manutenção do gerador
(OLIVEIRA, 2022a). Assim, não existe uma relação de venda direta de energia do prosumidor
para o consumidor (ressaltando que a REN 687/2015 proíbe a comercialização de energia no
SCEE) (PSCHEIDT, 2021)
(...)
Dentro dos possíveis modelos de negócios da geração compartilhada, o modelo que mais tem sido
praticado no país é justamente esse no qual se diferencia os prosumidores dos consumidores, pois
os papéis não se confundem e o poder de decisão está centralizado nas mãos de poucos
(FRÂNCICA, 2021) (PSCHEIDT,2021).
Nesse modelo, são firmados contratos de arrendamento dos equipamentos da usina da geração
compartilhada, com percentuais previamente definidos para cada consumidor. Desse modo, o
consumidor paga uma mensalidade para o prosumidor em relação à porcentagem dos
equipamentos que aluga e recebe créditos de energia em sua devida UC (FRÂNCICA, 2021).
Essa mensalidade deve ser mais baixa do que a conta de energia mensal usualmente paga pelo
consumidor para a distribuidora de energia elétrica local (PSCHEIDT, 2021). Assim, os
consumidores podem economizar até 25% do que se consumirem energia da concessionária local
(SINERGI, 2022a).
65. Como a legislação de MMGD proíbe a “venda” de energia, cabe prescrutar se os arranjos
societários previstos em lei, como cooperativas ou associações, estão sendo utilizados para operar
e/ou alugar uma usina de MMGD.
66. Isto posto, na próxima seção serão trazidos casos concretos de empresas que exploram a
assinatura de energia e elementos que apontam para possíveis práticas ilegais nesses arranjos. Esses
exemplos foram obtidos com base em levantamento exploratório.
(iv) Exemplos de casos concretos
67. Nesta seção, apresentam-se alguns exemplos mais claros de empresas de assinatura,
levantadas após breve consulta na internet, com indícios que apontam para a irregularidade do modelo
de atuação. Os argumentos apresentados para a captação de clientes sugerem uma venda dissimulada
de energia/créditos de energia/excedentes de energia. Outra situação apresentada é a existência de
empresas usufruindo de remuneração em investimento realizado em usinas de MMGD por meio da
apropriação de subsídios que deveriam ser direcionados diretamente ao consumidor. Isto pode
configurar uma deturpação do princípio basilar da MMGD de ser uma forma de geração voltada para
consumo próprio. Outros exemplos constam também no Apêndice I (peça 11), onde também são
listadas diversas empresas que oferecem assinaturas de energia, bem como prints de divulgação em
69. Na Figura 6 a empresa anuncia uma garantia de economia na conta de luz e a simplicidade
de se realizar a assinaturaFigura 6:
Figura 6 – Anúncio da Cemig SIM
70. O presidente da Cemig SIM, em entrevista para o Canal Energia (peça 8), destaca o
crescimento da empresa e as perspectivas para o curto prazo:
Presente no mercado de energia solar por assinatura há quatro anos, a Cemig SIM mira um
crescimento de seis vezes até maio de 2027. A meta está amparada no aporte de R$ 3,2 bilhões
anunciados em março deste ano pela holding, na apresentação do Planejamento Estratégico ao
mercado. São previstas 23 novas usinas, instaladas em 13 municípios de diferentes regiões de
Minas Gerais para um volume total de 88,9MWp. As obras já foram iniciadas e os ativos entrarão
em operação gradativamente a partir do segundo semestre de 2024. O pipeline soma pelo menos
440 MWp até 2027, levando em consideração também as usinas flutuantes.
Crescemos 60% nesse ano com a intenção de manter esse ritmo para os próximos anos,
acompanhando o mercado de mini GD.
indicam retornos elevados (21,65% a.a.) e payback curto. A projeção realizada considera parâmetros
típicos de MMGD compartilhada:
Esta simulação de rentabilidade foi elaborada pela Nextron Energias Renováveis Ltda. e tem
como objetivo único prover informações para auxiliar a tomada de decisão de investidores em
Geração Distribuída Compartilhada. Os resultados ora apresentados não devem ser
interpretados como oferta firme ou garantia de retorno de investimentos em qualquer jurisdição.
A decisão final em relação aos investimentos deve ser tomada levando em consideração estudos
e relatórios técnicos específicos de cada empreendimento, bem como os riscos associados à
conexão e operação dos empreendimentos, e a variação das tarifas de energia elétrica.
79. Assim a premissa destas simulações e anúncios não é o consumo próprio previsto na Lei
14.300/2021, mas sim a rentabilização de um investimento, que passa necessariamente pela obtenção
de benefícios na alocação dos créditos e excedentes da energia gerada por essas usinas.
80. Relembra-se que o marco da MMGD prevê a energia apenas para consumo próprio, sem
a possibilidade comercializar ou obter benefícios na alocação dos créditos e excedentes de energia,
em conformidade com o §5º do art. 655-D e do §5º do art. 655-M. No Apêndice I são apresentadas
outras empresas que também oferecem alguma forma de retorno financeiro seja pela construção de
uma usina de MMGD seja pelo gerenciamento de uma usina já existente.
Figura 7 – Anúncio da Nextron sobre o funcionamento da assinatura solar
adesões, bem como ao indicar outros parceiros são recebidos percentuais das comissões devidas aos
parceiros indicados (Figura 14).
Figura 14 – Anúncio da Reverde sobre bonificações de vendas
87. Observa-se que empresas oferecem, de fato, energia mais barata do que a disponibilizada
pela distribuidora. Também é oferecida uma forma de rentabilizar usinas fotovoltaicas. Ocorre que é
ilegal a comercialização de energia de geradores diretamente para consumidores cativos (grupo B),
bem como a comercialização de energia proveniente da MMGD.
88. Outro problema diz respeito a promessa de se rentabilizar uma usina mediante aluguel.
Isto distorce o propósito da MMGD e se aproxima mais de uma compra de energia ou até mesmo de
um Produtor Independente de Energia (PIE), que constrói uma usina para vender energia. Situação
contrária ao espírito da Lei 14.300/2022, que prevê a MMGD apenas para consumo próprio.
89. A existência desses indícios de irregularidades inclusive já é de conhecimento da Aneel.
Na Nota Técnica STD/Aneel 101/2023, que subsidiou a tomada de subsídios 18/2023, a Agência
sinaliza para essa prática (peça 5, p. 4):
há indícios de que alguns modelos de negócio de geração remota anunciados no mercado de micro
e minigeração distribuída se valem dessas modalidades de participação no SCEE para, na prática,
comercializarem energia, ofertando excedentes de energia a preços mais módicos do que as tarifas
reguladas praticadas pelas distribuidoras às custas de subsídios tarifários custeados por todos os
usuários do sistema de distribuição de energia elétrica
90. Essa situação também foi objeto de alerta quando de análise de um caso concreto na
Agência quanto a subdivisão de uma usina para se enquadrar nos limites da MMGD. Na Nota Técnica
da 2/2024/STD/Aneel (peça 6, p. 11) fica clara a intenção dos empreendedores de obter vantagens
com a venda da energia (grifos acrescidos):
44. As alegações apresentadas pelos consumidores em nada afetam essa conclusão, pelo contrário,
apresentam ainda mais indícios de irregularidades pretendidas com os empreendimentos. Alega-
se, por exemplo, “insuficiência de recursos financeiros juntamente com uma pendência para
liberação judicial de parte do terreno” para a instalação de usinas maiores que 2,5 MW, mas tão
logo houve a liberação judicial para o arrendamento a questão da insuficiência de recursos
financeiros se resolveu, e todos os interessados superaram a limitação de imediato, dobrando o
tamanho dos seus respectivos projetos. Fora isso, as alegações mencionam a preocupação com
“venda de energia”, tratam “os beneficiários dos projetos implementados” como um público
distinto dos próprios titulares das usinas, admitem a intenção de “geração de renda passiva
ou renda extra” com os projetos e acusam a distribuidora de “prejudicar competidor direto de
seu mercado de distribuição”, como se os consumidores interessados fossem concorrentes da
distribuidora. Tudo isso denota clara intenção de comercialização da energia dos
empreendimentos o que contraria o propósito de geração de energia para consumo próprio,
definido no art. 28 da Lei nº 14.300/2022.
91. Vale relembrar ainda alguns pontos do Parecer 542/2015/PFANEEL/PGF/AGU, que
embora emitido antes da edição da Lei 14.300/2022, trouxe alguns argumentos que permanecem
válidos. Neste parecer, a procuradoria da Agência considera que, no caso em que um terceiro instala,
mantém e opera um ativo de geração solar, ao qual o consumidor se vincula, caracterizaria uma venda
de energia, na medida em que esse consumidor não atuaria de fato como um gerador de MMGD (peça
4, p 13-14):
A eventual compra de cotas de usina solar, ou o aluguel de terreno em que se situa a geração
funcionam como um véu que encobre a verdadeira relação jurídica que une o consumidor e a
comunidade solar, que é a compra e venda de energia elétrica.
92. Uma consequência destes arranjos é que parte do subsídio para a MMGD é capturado por
grupos empresariais que não são público-alvo da política pública.
93. Ressalta-se que se um consumidor que instala a própria MMGD consegue descontos de
até 90% e de que em média as empresas de assinatura oferecem um desconto em torno de 10% ou
15%, portanto, boa parte do desconto possível está sendo capturado pelos grupos que realizaram o
investimento e que captaram os clientes para a empresa de assinatura. Esta é a preocupação de parte
das referências mencionada na descrição da situação encontrada, como a Nota Técnica da Aneel que
embasou a tomada de subsídios; o TCC “A inserção da micro e minigeração distribuída e a
liberalização do mercado de energia elétrica: os impactos da Lei nº 14.300/2022 na estratégia de
abertura do mercado para a baixa tensão”; e o artigo publicado no Energy Report n. 202 de 2023 da
PSR.
Fonte: modelo de contrato da Reverde para consumidores da ENEL, CPFL e Equatorial (peça 10, p. 26)
Fonte: Modelo de contrato da Reverde para consumidores da ENEL, CPFL e Equatorial (peça 10. p.29-30)
104. Portanto, o fato de o ingressante/cooperativado ser obrigado a outorgar plenos poderes a
uma determinada pessoa jurídica, a fim de que esta vote e dite os rumos da entidade, aponta para um
divórcio dos princípios regentes dessas sociedades cujo affectio societatis se mostra mais intenso do
que em outras sociedades empresárias, pois enquanto estas têm o lucro a impulsionar seus propósitos,
aquelas tencionam contribuir para o proveito comum mediante a colaboração e cooperação entre seus
sócios.
105. A forma de união de esforços por meio de cooperativas nas quais se agregam
consumidores e pessoas jurídicas com propósitos distintos, muitas das quais integram até
conglomerado, denota uma afronta ao princípio da autonomia e independência dessas sociedades.
Ora, segundo tal princípio, a cooperativa não pode sofrer influência direta de pessoas alheias ao seu
quadro social, especialmente no que tange à administração da sociedade. Os sócios devem, portanto,
ter interesse mútuo. Inverossímil que todos os cooperativados, e aí incluem-se as pessoas jurídicas
controladoras, desejem meros descontos nas suas contas de energia.
106. Ainda é possível mencionar que nesses arranjos em que um líder administra a associação
em nome dos associados pode trazer ainda conflitos de interesse, uma vez que nada impede que o
líder seja remunerado por meio de taxas de administração, fixar contratos de aluguel com usinas
próprias ou de grupos econômicos com os quais tem vínculo. Lembre-se que a regra é que a
cooperativa não sofra interferência de pessoas alheias ao quadro social. Assim, é possível mascarar a
captura do subsídio da MMGD, repassando ao consumidor apenas uma fração do benefício que
poderia ser possível caso a cooperativa/consórcio/associação de fato atuasse em benefício dos
cooperativados.
107. Do ponto de vista do cooperativismo, não se antevê problema no fato de haver uma união
de esforços para a obtenção de descontos ou redução das contas de energia junto à distribuidora, há
inúmeros bons exemplos de cooperativas fazendo isso. Ocorre que a venda de energia é vedada
mesmo no âmbito da MMGD que permite essencialmente a compensação de créditos de energia. Em
vista disso é preciso se certificar se essas pessoas jurídicas estão negociando energia para os supostos
cooperativados, o que nesse caso seriam meros consumidores. Neste sentido, conforme Figura 18, o
trecho correspondente do modelo de contrato elenca que o valor a ser pago pelos créditos de energia
é baseado na tarifa de energia, decrescido por um desconto.
108. Se for conjugado esse modelo de negócio, no qual o crédito é negociado com um valor
fixado como mero desconto com base na tarifa de energia vigente, ocorre clara violação do §5º do
art. 655-M da REN Aneel 1.000/2021:
§ 5º É vedada a comercialização de créditos e excedentes de energia, assim como a obtenção de
qualquer benefício na alocação dos créditos e excedentes de energia para outros titulares,
aplicando-se as disposições do art. 655-F caso isso seja constatado. (Incluído pela REN ANEEL
1.059, de 07.02.2023)
109. Anote-se igualmente que uma outra característica das cooperativas reside na sua
especificidade; alguns, como Renato Lopes Becho in Elementos de Direito Cooperativo, consideram-
na até como um terceiro gênero (tertium genus), diferenciando-a tanto das sociedades civis quanto
das comerciais, atribuindo-lhe características próprias. Nesse sentido, uma sociedade cooperativa
pode ser definida como uma associação de pessoas físicas ou jurídicas que tem suas forças produtivas
para empreender uma atividade econômica, o que a diferenciaria de uma associação, ou produzir bens
e serviços. Ao mesmo tempo, os membros são proprietários e beneficiários, proporcionalmente a sua
participação. O objetivo primordial não é a busca pelo lucro, mas sim a satisfação das necessidades,
o que a distingue de uma sociedade.
110. Assim a cooperativa tem como dado fundamental a ausência de lucro, o que a impede de
se constituir entre as diversas opções do Direito Empresarial, mas dentro de limites mais restritos
(responsabilidade limitada e ilimitada), pois compõem um grupo de pessoas que almejam um fim
comum com caráter mutualístico.
Figura 18 - Trecho de contrato da Souvagalume em que o valor a ser pago é um desconto sobre a
tarifa regulada
111. O autor portenho Alfredo Roque Corvalan, in Derecho Cooperativo Argentino, bem
exprimiu o conceito:
A cooperativa não tem fins lucrativos porque não se constitui para que se obtenham dividendos a
repartir, mas sim para satisfazer as necessidades dos associados: permitindo lhes produzir,
trabalhar, vender, comprar, obter créditos ou empréstimos, adquirir casas, etc., em condições
econômicas mais vantajosas.
112. Tal definição se coaduna com as positivadas tanto no art. 3º da vetusta, porém vigente,
Lei 5.764/1971 (celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se
obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito
comum, sem objetivo de lucro), quanto no art. 981 do Código Civil Brasileiro - CCB (celebram
contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços,
para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados). Assim, tais estruturas,
identificadas nesta abordagem inicial, ao almejarem o lucro, estão apenas se revestindo do manto
jurídico das cooperativas sem ser uma verdadeira cooperativa; meras entidades de fachada que não
praticam atos cooperativos, buscam beneficiar-se ilicitamente de vantagens decorrentes desse tipo de
associação. Em outras palavras, podem estar utilizando de um arranjo legal para realizar venda
deliberada de energia, aproveitando-se dos subsídios da MMGD, previstos apenas para uso próprio.
Tal situação é alcançada ao subtrair dos cooperativados seus direitos associativos, de cobrá-los por
um desconto com base no valor da fatura de energia, e de utilizar usinas cadastradas como MMGD
para uso comercial e não próprio.
Analogia com associações de proteção veicular
113. A situação encontrada guarda certa semelhança com as cooperativas de proteção veicular
que oferecem proteção automotiva com roupagem de seguro. Essas estruturas acabam escapando da
fiscalização da Susep (Superintendência de Seguros Privados; autarquia federal que regula e fiscaliza
o setor de seguros privados no país), apesar de oferecem um produto que, na prática, é um seguro.
Uma associação de proteção veicular é uma associação de pessoas físicas ou jurídicas que rateiam os
custos de sinistros envolvendo seus associados. Desta maneira, as mensalidades dos associados são
utilizadas para manter a associação e ressarcir os associados dos sinistros ocorridos.
114. Em julgados recentes, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6753 e 7151, o
Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional leis estaduais que autorizavam
associações para proteção veicular mútua, reconhecendo que esses modelos tratam de verdadeiras
seguradoras travestidas de cooperativas. Destacam-se os seguintes trechos, presentes nos votos do
Ministro Gilmar Mendes para as duas ações, e que podem ser aplicados por analogia ao caso em
questão:
Sobre a matéria, é importante contextualizar a relevância da regulamentação da política de
seguros. É com o objetivo de garantir a higidez econômico-financeira do segurador, a livre
concorrência, a proteção do consumidor, e a cooperação entre os seguradores no mercado, que há
indispensável preocupação de se regular e fiscalizar o mercado de seguros.
Caso não houvesse garantia de condições de atuação e a fiscalização da observância dessas
condições, a higidez dos seguradores e de todo o sistema estaria em risco. Em vista disso, o
mercado de seguros brasileiro é regulado de forma específica desde o Código Comercial de 1850
e, posteriormente, pelo Decreto 4.270/1901 e pelo Código Civil de 1916.
Atualmente, a Constituição Federal impõe ao Poder Público o dever de regular e fiscalizar o
mercado de seguros privados, conforme os arts. 21, VIII, e 22, VII e XIX. Assim, verifica-se que
a disciplina legal dos temas relacionados a seguros e sistema de captação da poupança popular
são de competência privativa da União, bem como a fiscalização desses setores.
[...] verifica-se que, embora tenha sido editada com o objetivo de proteção ao consumidor filiado
às associações e cooperativas de autogestão de planos de proteção contra riscos patrimoniais, tal
norma regulamenta e valida a comercialização ilegal de seguros por entidades que não se
submetem à regulação do setor, invadindo a competência privativa da União para legislar sobre
matéria de direito civil, política de seguros e sistemas captação de poupança popular, bem como
a competência exclusiva da União para fiscalizar o setor (arts. 21, VIII e 22, incisos I, VII e XIX,
da Constituição Federal).
115. Assim como na constituição de cooperativas para o oferecimento de seguros com a
roupagem de proteção veicular e com isso fugir da fiscalização da Susep, vislumbra-se impactos dessa
natureza em relação à fiscalização da Aneel
116. Na falta de uma definição legal, entende-se não haver obstáculos para atuação da Agência,
haja vista sua finalidade, prevista no art. 2º da Lei 9.427/1996, de regular e fiscalizar a produção,
transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e
diretrizes do governo federal. Há precedente nesse sentido:
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. ENERGIA ELÉTRICA.
COOPERATIVA DE ELETRIFICAÇÃO CENTRO JACUÍ - CELETRO. SISTEMA
COOPERATIVADO REGULAMENTADO PELA ANEEL. MICROGERAÇÃO E
Art. 10. A concessionária ou permissionária de distribuição de energia elétrica não pode incluir
consumidores no SCEE quando for detectado, no documento que comprova a posse ou
propriedade do imóvel onde se encontra instalada ou será instalada a microgeração ou
minigeração distribuída, que o consumidor tenha alugado ou arrendado terrenos, lotes e
propriedades em condições nas quais o valor do aluguel ou do arrendamento se dê em real por
unidade de energia elétrica.
123. Há indícios de potencial conflito de interesses, uma vez que cabe às distribuidoras a
fiscalização dos empreendimentos de MMGD no tocante, por exemplo: à divisão de um grande
empreendimento em menores, conforme o art. 655-E; para verificar o enquadramento no SCEE,
conforme o §4º do art. 655-D; para fiscalizar a regularidade dos benefícios do SCEE, conforme o art.
655-F; ou ainda para estipular os procedimentos internos para a implementação da MMGD, arts. 655-
A e 655-B, todos da REN Aneel 1.000/2021.
124. Nessa mesma toada, há algum fundamento em questionar se essas concessionárias, no
momento de cumprir o comando do art. 2º, § 1º da Lei 14.300/22, na essência, não estariam realizando
contrato consigo mesmo ou autocontrato, negócio jurídico, como se sabe, passível de anulação nos
termos do art. 117 do CCB.
125. Outro ponto que convém repisar refere-se à possibilidade de repercussões no Código de
Defesa do Consumidor, uma vez que de um lado o usuário cativo ostenta a condição de consumidor
e estaria amparado por prescrições que, à guisa de exemplo, impõem “no caso de divergência de
preços para o mesmo produto entre os sistemas de informação de preços utilizados pelo
estabelecimento, o consumidor pagará o menor dentre eles” (art. 5º da Lei 10.962/2004). Em outro
giro, esta mesma pessoa física se encontra na condição de cooperativado, ou seja, não possui a
salvaguarda da condição de consumidor, apesar de a distribuidora estar na prática oferecendo o
mesmo serviço/bem, energia elétrica.
126. Na mesma seara do compartilhamento de dados de pessoas que já são clientes de grandes
empresas e da captura dos subsídios da MMGD por grandes empresas, que constroem usinas para
além do uso próprio, cita-se o caso de empresas de telecomunicações e do setor bancário/financeiro.
Por exemplo, as quatro grandes empresas de telefonia no Brasil: Claro, Oi, Tim e Vivo já oferecem
em maior ou menor escala serviços de assinatura de energia (peça 11, p. 6-8).
127. Ao final e ao cabo, a opção de assinar a energia com descontos significativos é uma oferta
quase que irrecusável, na medida em que praticamente não estabelece obrigações ao usuário (não
precisa de investimento, nem de gestão) e indica um benefício no curto prazo (desconto), porém trará
os já abordados efeitos negativos para o restante dos consumidores.
(vii) Causas
128. Como possíveis causas dessa situação elencam-se:
a) falhas na fiscalização da Aneel (à Aneel cabe, em última instância, fiscalizar a
proibição da comercialização prevista nos normativos existentes);
b) deficiência de supervisão ou controle da Aneel sobre os processos de fiscalização das
distribuidoras e da gestão do SCEE;
c) falhas na regulação existente, em que, eventualmente, deixa lacunas regulatórias, não
inibindo a “venda” de créditos de energia;
d) tarifas elevadas de energia elétrica, com destaque para os encargos, estimulando a
procura por alternativas;
e) facilidade de se criar e alterar associações e cooperativas, indicando um falso caráter
de legalidade aos arranjos criados;
f) facilidade de se alterar a titularidade de unidades consumidoras para utilizar a
https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiY2VmMmUwN2QtYWFiOS00ZDE3LWI3NDMtZDk0NGI4MGU2NTkxIiwidCI6Ij
QwZDZmOWI4LWVjYTctNDZhMi05MmQ0LWVhNGU5YzAxNzBlMSIsImMiOjR9
ocorre a aumento dos preços unitários de energia, uma vez que os custos agora recaem sobre um base
de consumo menor; o aumento dos preços incentiva ainda mais os consumidores a gerar sua própria
eletricidade, reduzindo ainda mais a demanda pela eletricidade.
135. Como quem não adere ao SCEE mantém o seu consumo líquido e quem adere tem seu
consumo líquido reduzido, pode-se afirmar que a proporção na arrecadação será aumentada para
quem não utiliza MMGD e reduzida para quem consegue reduzir o consumo líquido com os créditos
de MMGD.
136. A princípio, embora seja um aspecto negativo, não haveria de se falar em irregularidade
quanto ao encarecimento dos encargos e dos valores pagos por quem não faz parte da SCEE, que
seria apenas uma consequência da política posta. No entanto, o uso desvirtuado do SCEE pelas
empresas de assinatura de energia, além de irregular, por contrariar a finalidade de compensação
apenas de excedentes de energia gerada para consumo próprio, agrava ilicitamente a distorção acima
apontada.
137. Ademais, acrescenta-se que o TCU já tem alguns trabalhos recentes que, de certa maneira,
estão relacionados com o tema em questão. Sobre o tema de MMGD em específico, houve uma
Representação do MPTCU antes da elaboração da Lei 14.300/2022. No Acórdão 3.063/2020-
Plenário, sob a relatoria da Ministra Ana Arraes, o TCU apontou a necessidade de se criar mecanismos
para evitar distorções quando da inserção de GD de forma a não prejudicar os consumidores que não
se utilizam de MMGD.
138. Mencionam-se também as auditorias sobre a Conta de Desenvolvimento Energético -
CDE (Acórdãos 1.215/2019-Plenário e 2.877/2019, de relatoria do Ministro Aroldo Cedraz) e sobre
a Política Tarifária do Setor Elétrico (Acórdão 1.376/2022-Plenário, de relatoria do Ministro
Benjamin Zymler), que apontaram a falta de mecanismos para gerenciar os custos da CDE e para
criação de mecanismos para mitigar aumentos repentinos na tarifa de energia elétrica, entre outros.
CONCLUSÃO
139. Ainda que a Lei 14.300/2022 permita diversas estruturas para a viabilização de MMGD
na modalidade de geração compartilhada ou de autoconsumo remoto, a situação encontrada indica
uma distorção dos mecanismos criados para, na prática, desvirtuar a finalidade de geração para
consumo próprio e contornar a vedação de comercialização de créditos de energia ou da venda de
energia.
140. O crescimento da MMGD nestes moldes, além de ilegal, é prejudicial ao sistema elétrico
como um todo, causando o aumento de encargos para o restante dos consumidores e contribuindo
com a denominada espiral da morte. É ainda mais perverso ao conceder mais subsídios para
consumidores de maior poder aquisitivo (esses modelos de “assinatura”, em boa parte, só estão
disponíveis para consumidores com faturas de energia de 300 ou 500 reais mensais), que serão
custeados, via CDE, em maior proporção, pelos consumidores que não aderirem à sistemática.
141. Os indícios analisados indicam que as empresas que instituíram alguma forma de
comercializar os créditos de energia provenientes se apropriam destes subsídios e conseguem,
irregularmente, oferecer uma venda de energia com desconto aos consumidores.
142. Essa venda de créditos de energia contraria expressamente o marco legal da MMGD, em
especial o art. 28, caput, da Lei 14.300/2022, e o § 5º do art. 655-M da REN Aneel 1.000/2021:
Art. 28. A microgeração e a minigeração distribuídas caracterizam-se como produção de energia
elétrica para consumo próprio.
(...)
§5º É vedada a comercialização de créditos e excedentes de energia, assim como a obtenção de
qualquer benefício na alocação dos créditos e excedentes de energia para outros titulares,
aplicando-se as disposições do art. 655-F caso isso seja constatado. (Incluído pela REN ANEEL
1.059, de 07.02.2023)
143. Embora esteja em curso uma tomada de subsídios na Aneel, a atuação do TCU é
necessária desde já, em vista de: materialidade do mercado de geração compartilhada e autoconsumo
remoto apresentar subsídios de bilhões anuais; e não há cronograma publicado para atuação da Aneel.
144. Em que pese a relevância do assunto, não foi identificada previsão para atuação da
Agência na Agenda Regulatória da Aneel de 2024/2025, nem no Plano de Gestão da Agência para
2024. Não consta ação prevista quanto a falhas no SCEE e a ocorrência de venda de energia por
usinas enquadradas como MMGD e o modelo de “assinatura de energia”.
145. Por outro lado, este tema perpassa diversas matérias que estão dentro da agenda
regulatória da Aneel, como a transição energética, o aumento na inserção de renováveis e a
modernização do segmento de distribuição.
146. Eventual deliberação do TCU para que a Aneel implemente ações fiscalizatórias e
aprimore a regulação sobre assinaturas de energia podem ser tratados nestes tópicos da agenda
regulatória da Agência. Portanto, eventual proposta do TCU buscando inibir o crescimento de casos
irregulares e impulsionar a atuação da Aneel não será um “atropelo” à agenda regulatória.
147. Há indícios de que é necessário que a Aneel realize fiscalização para identificar e atuar
em casos de comercialização ilegal de energia, bem como aprimore a regulação para coibir práticas
que se caracterizem como venda de energia, créditos de energia ou excedentes de energia.
148. Neste sentido, caso o Ministro-Relator conheça a presente Representação, propõe-se a
realização de oitiva junto à Aneel, para que se manifeste quanto aos indícios de irregularidade
apontados. Ademais, propõe-se também autorização para que a AudElétrica realize diligências e/ou
inspeções no MME, Aneel, agentes setoriais, associações e especialistas, para a coleta de informações
necessárias para suprir omissões e lacunas e esclarecer eventuais dúvidas para a apuração da presente
representação.
PROPOSTA DE ENCAMINHAMENTO
5 de março de 2024
REFERÊNCIAS
ANEEL. Portaria Nº 6.878, de 11 de dezembro de 2023. Aprova o Plano de Gestão Anual – PGA da
Aneel para o exercício 2024. Disponível em: https://www2.aneel.gov.br/cedoc/prt20236878.pdf
ANEEL. Resolução Normativa nº 1.059 de 7 de fevereiro de 2023. Aprimora as regras para a conexão
e o faturamento de centrais de microgeração e minigeração distribuída em sistemas de distribuição
de energia elétrica, bem como as regras do Sistema de Compensação de Energia Elétrica; altera as
Resoluções Normativas n° 920, de 23 de fevereiro de 2021, 956, de 7 de dezembro de 2021, 1.000,
de 7 de dezembro de 2021, e dá outras providências. Disponível em:
https://www2.aneel.gov.br/cedoc/ren20231059.html
BECHO, Renato Lopes. Elementos de direito cooperativo. 2ª Edição, São Paulo, Revista dos
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Ação Direta De Inconstitucionalidade [ADI] 6753.
Relator: Min. Gilmar Mendes, 27 de junho de 2023. Disponível em:
https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6133791. Acesso em: 18/1/2024.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Ação Direta De Inconstitucionalidade [ADI] 7151.
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CORVALAN, Alfredo Roque. Derecho cooperativo argentino. Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1995.
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https://portal.tcu.gov.br/lumis/portal/file/fileDownload.jsp?fileId=8A81881E850652DE0187C7D84
209732D
MINAS GERAIS. Governo do Estado. Cemig SIM abre licitação de R$ 350 milhões para construção
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Federal do Paraná, Curitiba, 2022. Disponível em:
http://repositorio.utfpr.edu.br/jspui/handle/1/30148