A Argumentação Nos Discursos Sobre A Pandemia Da Covid-19
A Argumentação Nos Discursos Sobre A Pandemia Da Covid-19
A Argumentação Nos Discursos Sobre A Pandemia Da Covid-19
PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN
EDUARDO LOPES PIRIS
(ORG.)
DÉBORA MASSMANN
EDUARDO LOPES PIRIS
(ORG.)
Maceió, 2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
Reitor
Josealdo Tonholo
Vice-reitora
Eliane Aparecida Holanda Cavalcanti
Diretor da Edufal
José Ivamilson Silva Barbalho
Coordenação editorial
Fernanda Lins
E-book.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5624-041-1
CDU: 81’322.5:578.834(81)
Editora afiliada
Direitos desta edição reservados à
Edufal - Editora da Universidade Federal de Alagoas
Av. Lourival Melo Mota, s/n - Campus A. C. Simões
CIC - Centro de Interesse Comunitário
Cidade Universitária, Maceió/AL Cep.: 57072-970
Contatos: www.edufal.com.br | [email protected] | (82) 3214-1111/1113
SUMÁRIO
Apresentação.................................................................................................. 5
A
proposta desta obra é dar a conhecer um panorama descritivo e crítico dos
discursos argumentativos que circulam na sociedade brasileira a partir do advento
da pandemia de covid-19. A obra coletiva que ora se apresenta oferece ao público
em geral uma chave de leitura para a compreensão do funcionamento da argumentação em
distintos e contraditórios pontos de vista, sobre a pandemia de covid-19, que são produzidos
e postos a circular, por meio de discursos políticos, institucionais e midiáticos, entre outros.
Em comum, além da temática e do objeto de estudo, os textos aqui reunidos compartilham
do mesmo suporte de circulação da linguagem, a saber, a rede mundial de computadores,
ferramenta que, aliada a outras tecnologias digitais de comunicação e informação, nas
condições de produção da pandemia, tem se mostrado absolutamente necessária para
nossa sociedade no que se refere, especialmente, à circulação de conhecimento sobre
prevenção, medicamentos, ações e orientações das autoridades competentes.
Desse modo, mostrando o funcionamento da linguagem na sociedade a partir
dimensão comunicacional e compreendendo como a argumentação se estabelece em
diferentes discursos que circulam por meio das tecnologias digitais de comunicação e
informação, os oito capítulos aqui apresentados constituem uma amostra dos estudos que
vêm sendo realizados pelas pesquisadoras e pesquisadores do Grupo de Trabalho (GT) de
Argumentação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa (ANPOLL). Os estudos
mobilizam distintas bases teóricas para interpretar de maneira crítica o acontecimento em
torno da pandemia de covid-19 e mostram a diversidade e a atualidade das pesquisas em
argumentação. Em seu percurso de leitura, o leitor é convidado a (re)conhecer a cartografia
dos principais discursos e da argumentação que foi sendo produzida, no Brasil, em torno
da pandemia.
Assim, no capítulo intitulado, “Apenas um resfriadinho”: a trajetória das paixões no
pronunciamento presidencial sobre a covid-19”, Maria Flávia Figueiredo e Valmir Ferreira
dos Santos Junior analisam o discurso do pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro,
realizado em 24 de março de 2020, sobre a covid-19 no Brasil. Inscrevendo-se no domínio
da retórica aristotélica (Aristóteles, 2000; 2005), os autores buscam descrever a trajetória
das paixões observando quais são os auditórios possíveis que podem se filiar a este discurso
e de que forma um discurso dessa proporção pode impactar a sociedade.
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
6
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
7
1
“APENAS UM RESFRIADINHO”: A TRAJETÓRIA DAS
PAIXÕES NO PRONUNCIAMENTO PRESIDENCIAL
SOBRE A COVID-19
Maria Flávia Figueiredo
Valmir Ferreira dos Santos Junior
Disponibilidade
Para que um discurso logre alcançar o intuito retórico estabelecido pelo orador,
com sua tese, é necessário que seja persuasivo. Para isso, é imprescindível que tal discurso
evoque emoções no auditório. Não obstante, o orador só poderá despertar emoções em seu
auditório quando elas já se encontrarem disponíveis para a sua exploração. Dessa maneira,
o orador só conseguirá despertar dada paixão se o auditório possuir uma predisposição
cognitiva para senti-la.
Como se pode observar, o estágio da disponibilidade se refere a uma predisposição
cognitiva do auditório, anterior ao discurso. Tal espaço cognitivo é constituído pelas
experiências e preferências pessoais de cada sujeito, em outras palavras, sua constituição
é subjetiva e individual. Portanto, sujeitos propensos, por inúmeros fatores que constituem
sua mente, a emoções que permeiam o campo da dor e da raiva possuirão maiores chances
de sentir cólera se comparados a sujeitos que estão habituados a vivenciar situações adversas
com objetividade e pacificidade, por exemplo.
O estágio da disponibilidade, portanto, é que evidenciará as possíveis paixões a serem
despertadas por um discurso. Ademais, é o estágio em que se podem discriminar os diversos
auditórios de um mesmo discurso, justamente por desvelar a subjetividade e propensão dos
sujeitos componentes de um auditório a uma dada paixão em detrimento de outra.
À vista disso, nesta seção serão apontadas as diversas paixões que o discurso em
questão pode despertar, para que o desenvolvimento da análise via trajetória das paixões
seja possível.
A primeira paixão escolhida para ser discutida via trajetória das paixões, que pode ser
observada como possível paixão despertada no auditório do discurso presidencial de março
de 2020, é a confiança.
Aristóteles (Τέχνη ρητορική II, 5, 1383a) define a confiança (também segurança ou
esperança) da seguinte maneira: “[...] a confiança é o contrário do [temor; [...] a esperança
[ou confiança] é acompanhada da suposição de que os meios de salvação estão próximos,
enquanto os temíveis ou não existem, ou estão distantes”. Desse modo, Aristóteles descreve
tal paixão de forma opositiva ao medo. O estagirita define o medo como um desgosto que
se sente em relação a um acontecimento futuro, quando tal acontecimento é danoso e tem
grandes chances de nos afligir, ou afligir aqueles que nos são caros. A confiança também é a
suposição de que algum evento futuro ocorrerá no curso da vida daquele que a sente, ou na
vida daqueles que lhe são caros, mas, ao contrário, não traz consigo o sentimento de dor e
sim de prazer, pois apresenta a ideia de que os meios de superação a uma adversidade estão
ao alcance.
Figueiredo (2018, p. 146) define a confiança como “[...] o oposto do medo. É
acompanhada da esperança (antecipação) das coisas que levam à segurança como algo
próximo, enquanto as causas do medo parecem inexistentes ou distantes”.
9
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Por intermédio dessas duas definições, podemos observar que aquele que sente
confiança está em uma disposição de expectativa de superação de uma adversidade. Além
disso, é possível compreender que aquele que sente tal paixão, a sente em relação a algo
ou alguém que possa lhe apresentar meios de salvação e, por fim, sente confiança aquele
que acredita estar distante do temível e próximo daquilo (daquele) que pode lhe apresentar
esperança.
Essa síntese da paixão da confiança nos permite compreender o possível auditório
que a sentiria em relação ao discurso de Bolsonaro. Tal auditório é composto de indivíduos
que acreditam que o discurso em questão apresente uma saída para uma adversidade que
está sendo enfrentada no presente, portanto, tal auditório é constituído por pessoas que
acreditam que a tese apresentada pelo orador detém os meios de salvação para a atual crise/
pandemia brasileira.
A segunda paixão possivelmente despertada pelo discurso, em um auditório
completamente diferente do anterior, seria a cólera. A disponibilidade à cólera pontua outro
grupo de pessoas que o discurso em questão pode ter atingido.
O estágio da disponibilidade destaca a significância da subjetividade para a sua
construção na psique humana. Por meio da análise deste estágio, fica claro que a construção
particular de um sujeito a respeito de sua interpretação de mundo terá papel fundamental
na forma com que ele adere, ou não, a um discurso.
No caso do discurso analisado, o estágio da disponibilidade torna patente a forma
como um mesmo discurso pode despertar emoções marcadamente distintas.
Aristóteles (Τέχνη ρητορική II, 2, 1378b) define a cólera como “[...] desejo
acompanhado de tristeza, de vingar-se ostensivamente de um manifesto
desprezo por algo que diz respeito a determinada pessoa ou a algum dos
seus, quando esse desprezo não é merecido”. Além disso, o estagirita ainda
menciona que “o colérico se irrita sempre contra o homem em particular
[...], mas não contra o homem em geral, e isso porque ele fez ou ia fazer algo
contra si ou contra um dos seus” (Τέχνη ρητορική II, 2, 1378b).
10
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Bolsonaro. Tais sujeitos provavelmente possuem o desejo de fazer com que orador sofra em
seu lugar. À vista disso, tal paixão é sentida não pela possível classe a que o orador pertença
(a de ‘políticos corruptos’, segundo os coléricos), mas sim por sua figura em específico ser
interpretada, por aqueles que poderão se sentir encolerizados pelo discurso, como suja,
indigna do cargo que ocupa, deplorável e infame.
Como evidenciado pela descrição anterior, no estágio da disponibilidade,
diferentes paixões podem ser debatidas. Porém, apenas a confiança e a cólera serão
discutidas analiticamente sob a ótica da trajetória das paixões, haja vista que o intuito
do desenvolvimento deste capítulo não é esgotar as possibilidades analíticas, mas sim
apresentar uma nova perspectiva teórica no campo da Retórica. Dito isso, o próximo
estágio da trajetória das paixões será apresentado e discutido a seguir: a identificação.
Identificação
De acordo com Figueiredo (2020), o estágio da identificação lida com a forma com que
um sujeito se identifica com aquilo que o remete a ele, que fala da sua história, que dialoga
com as suas lembranças, que respeita sua escala de valores, que trata de temas que lhe são
caros, que lhe faz lembrar pessoas amadas, que lhe transporta para situações marcantes
(quer se trate de momentos felizes, quer se refira a ocasiões traumáticas). Dessa maneira,
a identificação ocorre quando revela ao sujeito quem ele é, mesmo que ele não tenha plena
consciência disso.
Em consonância com a definição anterior, encontra-se a seguinte reflexão de Michel
Meyer (2000, p. XLII): “[as paixões] informam-me sobre mim e sobre o outro tal como ele
age em mim”.
Neste estágio, portanto, os sentidos mobilizados pelo discurso de Bolsonaro ganharão
compreensões subjetivas, particulares, que guiarão o despertar de uma paixão em detrimento
de diversas outras.
Para o auditório confiante, a identificação pode permear as ideias presentes no discurso
do orador que remetam às noções de que a crise será superada e de que o governo é capaz
de lidar com o problema que se apresenta à nação. Em contrapartida, o auditório colérico
pode identificar os temas de negligência e descaso no discurso em questão e identificar-se
na posição de cidadãos injustiçados por aqueles que detêm um poder que supostamente é
concedido para lhes garantir a justiça. Dessa maneira, a identificação está nas noções de
fantasia e memória suscitadas pela interpretação do discurso de Bolsonaro por parte do
auditório colérico.
Os dois estágios descritos e discutidos até aqui (disponibilidade e identificação)
garantem o desencadear do processo do despertar das paixões na alma humana. Tal processo,
no estágio subsequente, deixará de ser apenas cognitivo, psicológico e passará a ser físico e
permear também o corpo daquele que sente dada paixão.
11
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Despertar da paixão
Neste estágio, como pontua Figueiredo (2020), o auditório, após vivenciar os processos
identitários (provenientes do discurso do orador), passa a experienciar as alterações e os
processos fisiológicos que lhe ocasionarão as sensações de prazer e/ou dor, descritas por
Aristóteles em sua Retórica. Assim, é possível compreender de que forma as paixões afetam
não somente a alma, mas também, e, sobretudo, o corpo de quem as sentem.
O despertar da paixão, à vista disso, funciona como uma ponte entre a mente e o
corpo. A paixão despertada deixa de existir apenas na alma e passa a afetar a instância física
do homem.
Vejamos o que se passa especificamente com o auditório confiante. Os seguintes
excertos do discurso serão apresentados por possivelmente despertarem, nesse auditório, a
paixão da confiança:
O excerto citado pode despertar a confiança, naqueles que acreditam que o discurso
em questão apresenta meios de salvação em relação aos males trazidos pela Covid-19,
quando apresenta em: (1) os possíveis feitos do presidente da República e seu governo
para salvar cidadãos brasileiros, além da organização para o enfrentamento de uma crise;
(2) a preocupação do presidente com os efeitos da doença caso chegasse ao Brasil; e (3) a
organização do ministro da saúde, também médico e, portanto, referência na área da saúde,
como peça central na organização do governo contra a doença.
A função desses três argumentos, para o auditório disponível à paixão da confiança,
é apresentar o orador e seus aliados como competentes no combate à crise e à pandemia,
como evidenciado anteriormente.
Nos excertos a seguir, a paixão da confiança também pode encontrar ressonância para
atuar na alma humana, ao menos naquele auditório descrito anteriormente como pessoas
que acreditam que o discurso do orador apresenta meios de salvação.
12
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Em [10], o orador pode almejar criar a proximidade com o auditório que compartilha
de valores religiosos e que tem fé de que a justiça divina proverá os meios para a superação
da adversidade criada pela Covid-19. O trecho [11] traz um breve cumprimento do orador
aos sujeitos envolvidos diretamente no combate à pandemia. Já o [12] arremata o discurso
analisado ao reapresentar um ponto principal da tese defendida pelo orador: o combate à
crise sem ‘histeria’ ou ‘pânico’. Ademais, por meio da frase ‘Estamos juntos, cada vez mais
unidos’, o orador apresenta um argumento de comunhão que evidencia sua tentativa de
aproximação do auditório.
13
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
[7] O sustento das famílias deve ser preservado. Devemos, sim, voltar à
normalidade. Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem
abandonar o conceito de terra arrasada, como proibição de transporte,
fechamento de comércio e confinamento em massa. O que se passa no mundo
tem mostrado que o grupo de risco é o das pessoas acima dos 60 anos. Então,
por que fechar escolas? Raros são os casos fatais de pessoas sãs, com menos
de 40 anos de idade. 90% de nós não teremos qualquer manifestação caso
14
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
O orador, em [7], afirma que os cidadãos devem retomar suas atividades profissionais
para que os meios financeiros que garantem suas sobrevivências sejam mantidos e, assim, o
sistema monetário siga seu curso normal.
Para o auditório que não confia nas intenções de Bolsonaro e não aceita a tese por ele
proposta em seu discurso, o trecho [7] pode desvelar a verdadeira intenção do orador: fazer
com que os cidadãos mantenham o neocapitalismo brasileiro em funcionamento, mesmo
que eles coloquem suas próprias vidas em risco, para que uma crise financeira não traga
críticas ao setor econômico do governo Bolsonaro.
Em junção com a estratégia malsucedida do uso de ‘brevemente passará’ (que, para
esse auditório, minimiza, de maneira inconsequente, os efeitos da Covid-19), o argumento
apresentado em [7] pode ativar contundentemente a paixão da cólera por ser compreendido
como um ato de extremo desdém do presidente, que supostamente teria função de zelar
pelos cidadãos de sua pátria e não pela imagem de seu governo.
Em conclusão à análise do trecho [7], é possível discutir acerca da compreensão da
palavra ‘normalidade’ para o orador. A escolha desse termo pode apresentar, para o auditório
possivelmente colérico, uma profunda contradição. Tal auditório pode se indagar a respeito
da real existência de uma ‘normalidade’ em meio à pandemia causada pelo vírus, que o
orador confirma ter alcançado o solo brasileiro. Mais uma vez, a estratégia argumentativa do
orador pode auxiliar na depreciação de sua tese, bem como a provável negação dela.
Outra estratégia argumentativa adotada pelo orador, que pode igualmente atuar
em seu descrédito para o auditório disponível à cólera, é o uso do termo ‘poucas’ ao fazer
referência às autoridades que se opõem à sua opinião. Tal como o uso de ‘brevemente’
e ‘normalidade’, o emprego de ‘poucas’ pode ser interpretado como uma tentativa
de manipulação da narrativa tecida pelo orador a respeito da Covid-19 no Brasil e,
consequentemente, potencializar o despertar da cólera.
Para a continuação do desenvolvimento analítico do trecho [7], é válido mencionar
a existência de uma contradição, ao menos, para o auditório colérico. Quando o orador
menciona que o país deve voltar ‘à normalidade’, mas preservar os idosos, uma incoerência
pode ser identificada por aqueles que atribuem descrédito ao discurso de Bolsonaro. Portanto,
questionamentos desta natureza podem ser suscitados: ‘como podemos retornar a uma
suposta normalidade e isolar os idosos ao mesmo tempo?’. Em decorrência disso, o processo
de invalidação da tese apresentada pelo orador pode ser desencadeado e, por sua vez, isso
15
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
pode auxiliar no despertar da cólera. Sendo assim, tal argumento pode se apresentar como
uma solução demasiadamente generalizadora para um problema complexo, que demandaria
mais cautela em sua consideração, e isso pode corroborar o insucesso do discurso para essa
parcela do auditório.
No fim do trecho [7], outro argumento pode suscitar a cólera no auditório que não
compartilha da visão apresentada pelo orador a respeito das variáveis implicadas pela
Covid-19 na sociedade. O orador, na conclusão do trecho referenciado, busca tranquilizar
a população que teme os efeitos do novo vírus que está atacando o mundo inteiro, porém,
para o auditório colérico, quando menciona que a população em risco são aqueles com mais
de 60 anos, o orador menospreza e exclui parte dos brasileiros. Tal menosprezo é uma das
características do despertar da cólera e pode justificar a existência de tal paixão no auditório
em questão.
Grande parte do trecho [8] também demonstra uma tentativa do orador de minimizar
os riscos da Covid-19 para fazer com que o auditório adira à sua tese. No entanto, tal
fragmento discursivo pode incitar a cólera por apresentar uma suposta mentira aos olhos do
auditório que não confia em Bolsonaro, e, em função disso, ser compreendido como desdém
do presidente em relação aos brasileiros.
O fragmento [9] possivelmente também apresenta subsídios para o despertar da
cólera no auditório mencionado.
Para reforçar sua tese e angariar a adesão de seu auditório, o orador lança mão
do argumento de autoridade ao mencionar instituições de renomado crédito perante
a sociedade. Tal estratégia pode obter sucesso junto ao auditório disponível à confiança.
Em contraposição, para o auditório suscetível à cólera, o fragmento em questão pode ser
interpretado como oportunista e mentiroso, além de apresentar afirmações generalizadoras
como ‘nosso governo tem recebido notícias positivas’. Para este auditório, a simples menção
de suposta comprovação dos efeitos positivos do medicamento, sem menção de fontes
confiáveis que possam fundamentar tal afirmação, é suscetível de suspeita e, logo, de
descrédito. Esse descrédito pode ser compreendido, pelos coléricos, como mentira e, por
consequência, como falta de zelo do presidente para com os cidadãos. O que demonstra que
ele mais vê os brasileiros como combustível do veículo financeiro do país do que como vidas
que precisam ser preservadas. Para o auditório colérico, portanto, os valores do presidente
são: o dinheiro, o afastamento da crise e a retomada das atividades financeiras, mesmo que
custe a vida dos que estão sob a égide de seu governo.
16
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Mudança de julgamento
Ação
Por fim, encontra-se o quinto e último estágio da trajetória das paixões: a ação. Nele,
a paixão que foi semeada cognitivamente na disponibilidade do auditório, e foi transportada
da cognição para o corpo, extrapola para o mundo em forma de uma reação, uma resposta
em consequência a todos os estímulos provenientes de um dado discurso.
Em sentido retórico, essa ação se manifesta por meio de duas alternativas: a aceitação
ou a negação da tese apresentada. Claramente, àqueles confiantes, a aceitação da tese de
Bolsonaro parece razoável e, até mesmo, apresenta-se como o único meio de superação da
situação adversa em que o auditório se encontra. Em oposição, os coléricos rejeitarão a tese
apresentada pelo orador por parecer ultrajante aos seus valores e à sua subjetividade.
Discussão
17
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Em adição aos pontos anteriores, é profícuo destacar a forma com que o discurso em
questão deve ser discutido por aqueles que detêm as ferramentas de análise adequadas.
Além disso, tal discussão é produtiva se considerarmos que a apresentação de tal discurso
à sociedade em geral auxilia na construção de uma análise crítica a respeito das falas e
pronunciamentos que permeiam a esfera social.
Por fim, é necessário destacar a importância da trajetória das paixões para o
desenvolvimento deste texto, uma vez que foi por intermédio desse recurso teórico-
metodológico que a interpretação de como uma paixão é despertada na alma humana se
fez possível. Por sua vez, esse caminho analítico pode ser visto como uma sugestão para a
análise das emoções humanas em sentido retórico.
Referências
FIGUEIREDO, Maria Flávia. A retórica das paixões revisitada. In: LUDOVICE, Camila de
Araújo Beraldo; MANFRIM, Aline Maria Pacífico; FIGUEIREDO, Maria Flávia (org.). O
texto: corpo, voz e linguagem. Franca: Universidade de Franca, 2018. (Coleção Mestrado
em Linguística). p. 141-158.A
FIGUEIREDO, Maria Flávia. Ampliação e aplicabilidade analítica da “trajetória das paixões”. In:
FIGUEIREDO, Maria Flávia; GOMES, Acir de Matos; FERRAZ, Luana (org.). Trajetória das
paixões: uma retórica da alma. Franca: Universidade de Franca, 2020. p. 29-55.
18
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
19
2
NEGACIONISMO, ANTIPOLÍTICA E CORONAVÍRUS
NO BRASIL
Argus Romero Abreu de Morais1
Considerações Iniciais
1 Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei. Bolsista
PNPD/CAPES.
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
21
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
nos protocolos clínicos sugerindo remédios contra a doença e pressionando para que
profissionais de saúde receitassem medicamentos sem comprovação científica de eficácia
no tratamento (LEMOS, 2020).
O negacionismo sanitário caracteriza-se pela ocultação, por parte de representantes
de Estado, de crises de saúde pública com fins de manutenção de projetos políticos e de
preservação da economia. Embora neguem a epidemia, não necessariamente deslegitimam
a ciência para realizar o cálculo burocrático entre “salvar a economia” e “salvar vidas”. Tal
negacionismo boicota a criação, gestão e execução de políticas de saúde coletiva. Torna-se,
então, uma interface entre política e ciência. O negacionismo científico, por sua vez, é a
negação da validade da ciência na explicação da realidade.
O Brasil atual projeta um ineditismo, o do encontro dos negacionismos sanitário e
científico com a antipolítica, a qual substitui a racionalidade institucional de concertação
dos conflitos e pacificação da esfera pública pelo incentivo à violência. Pela primeira vez,
representantes públicos brasileiros sugerem à sociedade civil o sacrifício como forma
de enfrentar uma epidemia, visto que sem proteção sanitária. Tal argumento almejaria
“comprovar a veracidade de uma tese pelo sacrifício de alguém que tem seja uma convicção
absoluta nela ou uma grande pureza de propósito. O sacrifício serve para provar as qualidades
morais de uma pessoa ou ato” (FIORIN, 2017, p. 164). Passemos, então, à relação entre
negacionismo e antipolítica.
Negacionismo e antipolítica
Durante sua carreira política, Jair Bolsonaro se notabilizou por construir argumentos
negacionistas, embora, essencialmente, ancorados na recusa à interpretação historiográfica
da Ditadura Militar brasileira. Tornou-se Presidente com a tentativa sistemática ou de
silenciamento desse passado ou de exaltação pública dos seus crimes sem constrangimento.
Nega, assim, valores científicos e morais consolidados.
O negacionismo científico seria a corrente extremista marginal de opinião pautada
na adulteração de fatos, processos históricos e naturais para disseminar informações
fraudulentas com fins de adequação da realidade a interesses, exclusivamente, ideológicos.
Para tanto, a) distorce teses científicas; b) apela ao sensacionalismo; c) descontextualiza
fontes/documentos/relatos; d) simplifica raciocínios pela causalidade linear dos fenômenos;
e) defende perspectivas ideológicas e morais para ajustar o mundo aos desejos pessoais/
grupais, e não o inverso (NAPOLITANO; JUNQUEIRA, 2019).
Jair Bolsonaro adapta tais pressupostos à arena deliberativa pública ao opor-se à
racionalidade institucional do Estado Democrático de Direito, ao combater os saberes
sanitários e científicos contemporâneos, ao suprimir a ética na fala política e ao tentar
destruir a pluralidade de opiniões sociais. Além disso, ao ancorar seus argumentos em
22
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
notícias fraudulentas, contribui para a destruição da dinâmica da opinião pública, uma vez
que a validade das decisões democráticas pressupõe a verdade factual (BUCCI, 2019).
“Como todo político autoritário, Bolsonaro se apresenta como não político”, afirma
Nobre (2020, p. 1). Segundo o autor, o presidente brasileiro utiliza a máquina do governo
para fomentar a desordem institucional e social. Desse modo, sua visão de Estado estaria
vinculada à lógica da guerra, alçando a ideia de inimigo, interno e externo, a ser combatido à
centralidade da polis. Consequentemente, a cultura e a política da morte passam a afrontar
diuturnamente suas contrapartes democráticas, focadas na convivência e no bem estar
comum. Em uma expressão, o modus operandi da sua racionalidade política é o caos como
método (NOBRE, 2020).
Avritzer (2020) converge com essa perspectiva ao focar no conceito de antipolítica
como negação de qualquer acordo, negociação e consenso na estratégia de poder. Para o
pesquisador, além da lealdade a um projeto autoritário, Jair Bolsonaro realmente acreditaria
que o Exército, principal grupo de apoio ao seu governo, e a cloroquina, medicamento que
considera a “cura milagrosa” para o vírus a despeito das evidências científicas contrárias,
solucionariam a crise sanitária brasileira.
“O presidente do Brasil opera sob o signo de Thanatos, o deus da morte”, assevera
Avritzer (2020, p. 18). Isso explicaria, a seu ver, a demissão dos ministros da saúde
Henrique Mandetta e Nelson Teich e o desmonte de políticas de saúde em meio à pandemia.
Em nossos termos, além de ocultar ou atenuar uma crise de saúde pública, utiliza-se do
argumento do sacrifício e nega a ciência. Em paralelo, elabora um dilema entre saúde
e economia, projetando “1) uma disjunção entre duas teses; 2) um desdobramento que
remete a cada uma delas; 3) [uma] idêntica conclusão seja qual for a alternativa escolhida”
(FIORIN, 2017, p. 146).
Para Tiburi (2017; 2018), os populistas atuais frequentemente reduzem a política
à esfera publicitária, transformando suas imagens institucionais e sua fala pública
em espetáculos e mercadorias. Trata-se de uma estética do absurdo, normalizando o
paradoxo e tornando “bacana” o que antes causaria vergonha para suscitar a adesão
da sociedade civil. Ancoram-se, então, no cinismo, como destruição radical da empatia
e dos valores civilizatórios, inviabilizando relações intersubjetivas, menosprezando
sentimentos e convenções sociais e impedindo construções coletivas do comum.
Ademais, acrescentamos, utilizam-se recorrentemente da ironia para “[...] desestabilizar
o adversário, provocando o riso do auditório a favor do orador” (FIORIN, 2017, p. 221).
Dito isso, analisemos suas declarações.
23
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não
precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria acometido, quando muito,
de uma gripezinha ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido
médico, daquela conhecida televisão [BBC, 2020. 24 de março de 2020. 10
vítimas fatais].
Nesse excerto, Jair Bolsonaro abranda os riscos de morte pela analogia com
doenças respiratórias comuns não mortais e pela elaboração de um grupo de risco
(um Eles modalizado), excluindo a si e a seu grupo – atletas/pessoas saudáveis – dessa
condição. Cria, por conseguinte, uma fratura interna ao povo pela exclusão de uma camada
específica da sociedade, os doentes/sedentários. Seja pelo destino natural da vida, seja pela
responsabilidade do indivíduo em relação à própria saúde, seria algo da ordem do privado,
supõe o Presidente, e não da gestão pública, a qual deve priorizar a maioria da população
e os interesses gerais da nação. Pela ideia de uma minoria afetada, potencializa sua tese de
que a gripe é branda. Qualitativamente, o hospedeiro é que seria frágil. Quantitativamente, o
número de vítimas fatais seria insignificante frente ao todo. Logo, a maior parte da população
não precisaria se preocupar.
A mídia aparece pela remissão subentendida à Rede Globo de Televisão e ao médico
Dráuzio Varella. Apesar de aparecer o saber médico como suposto sustentáculo científico
do argumento do Presidente, trata-se de uma ironia, a qual, de um lado, descontextualiza
24
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Essa é uma realidade, o vírus tá aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar
como homem, porra. Não como um moleque. Vamos enfrentar o vírus com
a realidade. É a vida. Tomos nós iremos morrer um dia [BBC, 2020. 29 de
março de 2020. 136 vítimas fatais].
E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço
milagre. [...] Lamento a situação que nós atravessamos com o vírus. Nos
solidarizamos com as famílias que perderam seus entes queridos, que a
grande parte eram pessoas idosas. Mas é a vida. Amanhã vou eu [BBC, 2020.
28 de abril de 2020. 5.017 vítimas fatais].
25
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
assume, desta vez, o lugar da política, locus esperado da ação, da gestão e da deliberação
coletivas. Não havendo escolha possível e eficaz, exime-se de responsabilidades social e
jurídica. A nosso ver, a naturalização profana e sagrada das consequências da enfermidade
significaria a morte da política, reduzindo-a a lógicas externas que impossibilitariam decidir
sobre o melhor caminho. A incapacidade humana em adaptar o mundo aos seus desejos
implicaria, portanto, um retorno ao estado de natureza, ao império do necessário em
detrimento da contingência. Ao superar os anseios humanos, o destino parece estar selado
pelas leis divinas e do universo nessa afirmação, não restando nada a fazer ao líder político.
Não obstante, essa atitude antipolítica é, essencialmente, política, almejando, por
meios indiretos inviabilizar as alternativas propostas por adversários/inimigos. A estratégia
argumentativa escolhida naturaliza a política para passar-se por não ideológica. Qualquer
tentativa em contrário, seria, esta sim, da ordem do ideológico, e não da racionalidade
pública. Com isso, a passividade figura como ação/escolha política. Ao aceitar a morte,
inclusive a sua, chegar-se-ia ao ápice do sacrifício em prol do objetivo maior.
Se o esquecimento funciona como uma das estratégias do negacionismo histórico, a
passividade – simulada como impotência – configura-se como tentativa de instauração de
um projeto de poder. Almeja-se deixar que “forças objetivas”, significadas como neutras
e inescapáveis, possam assumir a responsabilidade de algo que demandaria articulação
institucional e legitimidade legal. Busca, portanto, eximir-se de acusações de ineficiência
dos atos de gestão pública e de eventuais punições normativas. A esse respeito, Ventura
(2020) discute juridicamente a possibilidade de o governo brasileiro estar se utilizando da
epidemia para afetar indígenas e outros grupos subalternos.
A aproximação e o distanciamento do discurso religioso ao colocar-se como Messias
para depois negá-lo, tem a função de demonstrar seus limites frente ao trágico da natureza
e dos desígnios divinos, oscilando entre o cinismo e a ironia. A solidariedade e a compaixão,
típicas do discurso religioso, tornam-se pro forma, se não uma ridicularização da morte dos
cidadãos, rompendo o pacto político que projeta metonimicamente o líder da nação como a
expressão simbólica da sua totalidade. Quase um mês após, o Presidente declara:
Sabemos que devemos nos preocupar com o vírus, em especial os mais idosos,
quem tem doenças, quem é fraco, mas (sem) essa de fechar a economia. 70
dias a economia fechada. Até quando isso vai durar? [...] Nós vamos enfrentar
isso daí, eu lamento. Eu estou com 65 anos de idade, eu estou no grupo de
risco. [...] Eu tenho obrigação como chefe de Estado de tomar decisões. Estou
de mãos amarradas por decisão do Supremo Tribunal Federal que delegou a
Estados e municípios essas medidas. Continuam chegando vídeos pra mim
de pessoas sendo algemadas por estarem na rua. Isso não pode continuar
assim. Como disse lá para o ministro, reservadamente, que eu não queria que
tornasse público é fácil colocar uma ditadura no Brasil. O povo tá com medo
dentro de casa [VALFRÉ, 2020. 26 de maio de 2020. 24.512 vítimas fatais].
26
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Nessa fala, a negação da ameaça viral volta a se ancorar na restrição desta aos grupos
de risco, sugerindo, implicitamente, a postura de força e coragem. Reconhecendo os perigos
da doença, regressa a uma espécie de cinismo ao simular o cumprimento das obrigações
de representante político e de ser moral (fundamentalmente cristão, no caso brasileiro),
lamentando as mortes. A modalização reforça de forma sub-reptícia os valores éticos
negativos e as condições delicadas de saúde dos principais afetados, garantindo a prevalência
da economia como força objetiva superior aos demais aspectos da vida social.
Posta-se, assim, como chefe de Estado atuante para, em seguida, voltar a colocar-se
como impotente. Desta vez, em decorrência das decisões jurídicas do Supremo Tribunal
Federal (STF) em favor de Estados e Municípios a respeito das medidas sanitárias. Transfere,
então, a responsabilidade legal ao Oponente, atribuindo-lhe as consequências possíveis,
sociais, políticas e jurídicas. Propõe, em síntese, uma transferência de responsabilidade.
Outra estratégia argumentativa presente é a inversão de acusação, postando-se como
defensor dos direitos dos cidadãos e da democracia pela atribuição aos inimigos das posturas
autoritárias que defende, visto que fora eleito com a apologia à Ditadura e, ao longo de 2020,
participou de distintas manifestações de rua com apoiadores em prol do fechamento do
Congresso e do STF. Mais do que descrever o “medo dentro de casa”, pretende fomentá-lo,
com fins de despertar o “ódio” do auditório contra seus desafetos.
A transferência de responsabilidade e a inversão de acusação procuram
desresponsabilizar o político pelas consequências da pandemia, responsabilizar seus
opositores pelas mesmas, chamar a nação à manifestação agressiva – e ao sacrifício
consentido – e atribuir aos seus inimigos as ações de violência que promove. Abaixo, mais
um pronunciamento:
Quanto a repouso, isso é particular meu. Eu não sei ficar parado. Vou ficar
despachando por vídeo conferência. [...] Eu estou impaciente, mas vou
seguir os protocolos. O cuidado mais importante é com seus entes queridos,
os mais idosos. Os outros também, mas não precisa entrar em pânico. A vida
continua [BBC, 2020. 07 de julho de 2020. 66.741 vítimas fatais].
27
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
28
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
como forma de implementar projetos hegemônicos de poder pela lógica da guerra; (xx)
submissão da política às lógicas da economia, da natureza e da religião, como supostas
forças objetivas, para simular impotência deliberativa e persuadir o público a aderir a
escolhas ideológicas, tidas como necessárias/inevitáveis.
Considerações finais
Referências
BUCCI, Eugênio. Existe democracia sem verdade factual? Barueri: Estação das
Letras e Cores, 2019.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Tradução: Renata Santini. São Paulo: N-1 Edições,
2018.
29
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
BBC. Relembre frases de Bolsonaro sobre a covid-19. BBC (online), 07 de julho de 2020.
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53327880. Acesso em: 15 jul. 2020.
30
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
VALFRÉ, Vinícius. Bolsonaro: “Só fracos, doentes e idosos devem se preocupar”. Terra
(online). 26 de maio de 2020. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/
coronavirus/bolsonaro-so-fracos-doentes-e-idosos-devem-se-preocupar,a520587d843c81
78893210cc77ebec883rz13b1w.html. Acesso em: 22 jul. 2020.
VENTURA, Deisy. “Há indícios significativos para que autoridades brasileiras, entre elas
o presidente, sejam investigadas por genocídio”. Entrevista concedida a Eliane Brum.
El País (online). 22 de julho de 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/
brasil/2020-07-22/ha-indicios-significativos-para-que-autoridades-brasileiras-entre-elas-
o-presidente-sejam-investigadas-por-genocidio.html. Acesso em: 27 jul. 2020.
31
3
“FIQUE EM CASA” VERSUS “O BRASIL NÃO PODE
PARAR”: INTERAÇÕES ARGUMENTATIVAS NA
PANDEMIA DE COVID-19
Eduardo Lopes Piris2
Isabel Cristina Michelan de Azevedo3
Introdução
5 Debate CNN 360º disponível no canal da CNN Brasil no Youtube em: https://www.youtube.com/
watch?v=xjrGYHq9-Hw
33
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
34
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. Nossa
vida tem que continuar. Os empregos devem ser mantidos. O sustento das
famílias deve ser preservado. Devemos sim voltar à normalidade (PR: 2’04”-
2’24”).
35
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
36
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
37
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
CZ: (...) é mais ou menos na linha do que o Mandetta falou hoje… na verdade eles não falaram
nada diferente um do outro (...)
CZ: (...) o presidente (...) tá com a preocupação em relação à economia… a um surto de desemprego
que pode acontecer no nosso país… e o ministro Mandetta também fala quando ele diz “que não é
hora de decretar esse lockdown” ou seja de um isolamento completo da população e que isso tem
que ser feito em blocos… eh:: ambos estão falando a mesma coisa (...).
38
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
39
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
CZ: (...) o que o presidente tá… tá... tentando explicar para a população é... a gente precisa achar
um meio termo... e um meio termo por estado... a gente não pode simplesmente ter governadores
que fecham todas as rodovias... que fecham acessos entre uma... estrada e outra… ãh:: hoje a gente
encontrou dificuldade de pessoas que queriam vir de Goiás para Brasília para trabalhar… então o
que a gente não pode ter é esse é esse fechamento geral.
Fonte: Canal CNN Brasil no Youtube.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xjrGYHq9-Hw
40
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
RR: (...) é contraditório com com inclusive as autoridades de governo que estão falando… é
contraditório ao que próprio senhor ministro da:: saúde tem se pronunciado e todas as autoridades
do ministério da saúde… é contraditório com que ( ) diz seu próprio vice-presidente da república
falou ainda há pouco… o senhor vice-presidente Hamilton Mourão em entrevista… em coletiva
concedida ainda há pouco disse em alto e bom som “a orientação é isolamento social”
Fonte: Canal CNN Brasil no Youtube
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xjrGYHq9-Hw
41
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
42
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
43
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
RR: (...) VEja... dos vinte e sete estados da federação a ampla maioria não cortou seus serviços
essenciais (...), os supermercados estão abertos, os serviços de atendimento de limpeza de rua, o
serviço de saúde e essa é a própria recomendação do ministério da saúde
Considerações finais
44
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Referências
REBOUL, Olivier. O slogan. Tradução: Ignácio Loyola Brandão. São Paulo: Cultrix, 1975.
45
4
VOGUE EM DISCURSO NA PANDEMIA: O DITO E O
SILÊNCIO NAS ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS
Soraya Maria Romano Pacífico9
Thaís Silva Marinheiro de Paula10
Introdução
Final de 2019. O mundo é conectado pelo discurso sobre um novo vírus que foi
noticiado, pela primeira vez, em Wuhan, na província de Hubei, República Popular da
China, em 1 de dezembro de 2019, mas o primeiro caso foi reportado em 31 de dezembro
do mesmo ano. Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou o surto
de uma pandemia. Até 15 de julho de 2020, pelo menos 13.271.756 casos da doença foram
confirmados em pelo menos 188 países e territórios (PANDEMIA DE covid-19, 2020).
Os números de mortos, de infectados, de doentes graves, de curados, somados ao
desconhecido sobre o novo coronavírus provocaram a proliferação de discursos sobre a
pandemia no que diz respeito à saúde, à educação, à economia, aos idosos – considerados
um grupo de muito risco –, à xenofobia (especialmente, em relação aos asiáticos). Nesse
contexto, a discriminação e o preconceito contra os grupos socialmente mais vulneráveis
ganharam proporções ainda maiores do que as já manifestadas contra eles, historicamente.
Desde o início do ano de 2020, diariamente, a mídia mundial tem produzido sentidos
sobre a nova doença provocada pelo novo coronavírus, ou seja, síndrome respiratória aguda
grave 2 (SARS-CoV-2), sendo declarada, em 11 de março de 2020, pela Organização Mundial
da Saúde, como uma pandemia.
Em 25 de fevereiro, a Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo confirmou o primeiro
caso no Brasil. Dessa data em diante, os casos começaram a crescer em solo brasileiro, partindo,
principalmente, das capitais e chegando ao interior com muita rapidez e descontrole. Em
maio de 2020, o governador de São Paulo, João Doria, decretou a obrigatoriedade do uso de
máscara em todo o estado, como uma das medidas para prevenir a disseminação do novo
coronavírus (PEREIRA, 2020).
Entretanto, em meio aos cuidados que a ONU (Organização das Nações Unidas), assim
como todos os países afetados por essa pandemia, e, no caso do Brasil, todos os Estados
têm tomado para evitar um colapso do sistema de saúde e a possível morte dos infectados
por essa “invasão viral”, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, não poupa a nação de seu
discurso depreciativo sobre a doença covid-19, pois, segundo ele, “é só uma gripezinha”.
Essa é uma breve contextualização que dá suporte às condições de produção dos
discursos sobre/na pandemia, objeto deste trabalho, cuja fundamentação teórica é a Análise
do Discurso elaborada por Michel Pêcheux, na França, no final dos anos de 1960.
Como já apontamos, todas as mídias, digitais e eletrônicas, formularam e divulgaram
sentidos sobre a pandemia. Por esse motivo, elegemos a mídia como lugar discursivo para
a constituição do nosso corpus. Diante de inúmeras possibilidades, encontramos na Vogue
um solo fecundo para análise dos discursos construídos na pandemia, pois essa revista é
internacional, o que nos possibilitou fazer um cotejamento dos discursos que circularam nas
capas da Vogue Brasil e de outros países, nesse período de pandemia, sendo eles Espanha,
Itália e Portugal.
Cabe ressaltar que a revista Vogue é, atualmente, publicada em 27 países (CONDÉ,
2020) entre publicações próprias e licenciadas e, segundo os estudos de Elman (2008,
p.50) “trata do assunto moda, aparência e bem-viver como referência do estilo de vida de
seu público, atribuindo conceitos e normalizando determinados modelos que, ao contrário
da naturalidade com que são apresentados, são resultado de intensa promoção ideológica”.
Pensando nisso, propomos, com este trabalho, analisar como as formações imaginárias
interferem na construção dos efeitos de sentido e estratégias argumentativas da revista
Vogue, em tempos de pandemia da covid-19. Para constituir o corpus da pesquisa, optamos
por analisar as capas da revista Vogue Brasil (abril/2020), Vogue Espanha (maio/2020),
Vogue Itália (abril/2020) e Vogue Portugal (abril/2020) bem como as legendas sobre as
capas publicadas no Instagram da revista de cada país.
47
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Logo abaixo desse anúncio, encontramos o site da Wikipedia, que traz a história da
Revista, como se lê em:
Vogue foi lançada em 1892 na cidade de Nova York, idealizada por Arthur Baldwin
Turnure e Harry McVickar, como um pequeno folhetim de moda, com aproximadamente
30 páginas, destinado às mulheres da alta sociedade nova-iorquina no final do século XIX.
[...] A publicação, além de se tornar mensal, teve seu conteúdo reformulado para torná-la
mais atraente, e transformou a moda em “objeto de desejo” e “sonho de consumo” para as
mulheres. (VOGUE (REVISTA), 2020).
Conforme podemos observar, Vogue é uma revista produzida para um público rico,
sofisticado, que procura as “principais tendências de beleza, cultura e lifestyle”. Ao anunciar-
se como “o primeiro olhar e a última palavra”, Vogue constrói um efeito de sentido de que
aquilo que a leitora/o leitor encontrará em suas páginas pode ser considerado como discurso
de autoridade no campo da moda e beleza, pois a revista assume a “última palavra” sobre
o “lifestyle”. Neste trabalho, analisaremos somente as capas das revistas e suas respectivas
legendas publicadas no Instagram. Como sabemos, as capas são tecidas pelo entrelaçamento
da linguagem verbal e não verbal, em que a fotografia tem grande destaque.
Analisaremos as fotografias das páginas da Vogue compreendidas em seu aspecto
discursivo. O aparato teórico-metodológico que nos embasa não nos permite confundir
as fotografias com o seu próprio referente, posto que toda manifestação de linguagem
produz efeitos de sentido que provocam gestos de interpretação àqueles que duvidam da
transparência e neutralidade linguageiras. Sustentamos esse princípio porque o analista do
discurso tem como objeto de análise os discursos que circulam nas várias materialidades
significantes, pois:
Buscamos, portanto, analisar os efeitos do verbal sobre o não verbal, dando atenção
especial à construção de estratégias argumentativas e ao silêncio sobre o acontecimento
histórico “pandemia” em algumas capas da Vogue que constituem o nosso corpus, visto que
“é na prática material significante que os sentidos se atualizam, ganham corpo, significando
particularmente” (ORLANDI, 1995, p. 35).
O modo como dado acontecimento histórico é discursivizado está relacionado às
condições de produção discursivas. Pêcheux (1993), ao trazer para o campo da Análise do
Discurso o conceito de condições de produção, salienta que:
48
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Nosso propósito não é, com efeito, o de estimular uma sociologia das condições
de produção do discurso mas definir os elementos teóricos que permitem
pensar os processos discursivos em sua generalidade: enunciaremos a título
de proposição geral que os fenômenos lingüísticos de dimensão superior
à frase podem efetivamente ser concebidos como um funcionamento mas
com a condição de acrescentar imediatamente que este funcionamento não é
integralmente lingüístico, no sentido atual desse termo e que não podemos
defini-lo senão em referência ao mecanismo de colocação dos protagonistas
e do objeto de discurso, mecanismo que chamamos “condições de produção”
do discurso. (PÊCHEUX, 1993, p. 78).
49
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
imagem que os protagonistas fazem do referente. O jogo das formações imaginárias perpassa
todo processo discursivo; portanto, faz parte das condições de produção dos discursos.
Também é nessa perspectiva que investigaremos a construção das estratégias
argumentativas, pois concordamos com Orlandi (1993, p. 18) que:
[...] compõe a estratégia discursiva prever, situar-se no lugar do ouvinte a partir de
seu próprio lugar de locutor. Esse mecanismo regula a possibilidade de respostas e dirige a
argumentação: são as antecipações.
Entendemos as estratégias argumentativas como práticas discursivas filiadas às
formações ideológicas. Com base nesse complexo processo, são produzidas as formações
discursivas que, sustentadas por formações ideológicas, determinam o que pode e deve
ser dito, em dada conjuntura sócio-histórica determinada pelo estado da luta de classes
(PÊCHEUX, 1995). Esses conceitos nortearão nossas análises, apresentadas a seguir.
Sabemos que “as palavras mudam de sentido em função das posições daqueles que as
empregam” (HAROCHE et al., 1971, p. 84), pois a posição ideológica é determinante para
a produção de sentidos. Isso vale, obviamente, para as capas da revista Vogue, nas quais
objetivamos analisar as formações discursivas dominantes e as estratégias argumentativas
construídas por essa mídia em tempos de pandemia.
No dia 30 de março de 2020, o Instagram da revista Vogue Portugal divulgou a sua
capa do mês de abril com a legenda “E a liberdade de 2020 vai ser reconhecível assim:
confinada”, como consta na Figura 1. Nessa mesma data, nesse país, já se somavam 5.962
casos confirmados de covid-19 e, dentre estes, 119 mortes (OPERA MUNDI, 2020).
Fonte: https://www.instagram.com/p/B-XtM55gDDC/
Acesso em: 10 jul. 2020.
50
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Pelo acesso ao interdiscurso, isto é, “algo fala” (ça parle) sempre “antes, em outro
lugar e independentemente” (PÊCHEUX, 1995, p. 162), sabemos que o dia 25 de abril é
comemorado, em Portugal, como o “Dia da Liberdade”, em memória à Revolução de 25
de abril de 1974, ou Revolução dos Cravos, que derrubou o regime ditatorial e deu início à
implantação do regime democrático. Ao trazer na capa tons de preto e branco e um casal
com máscaras se beijando, Vogue cria o efeito de sentido de solidariedade ao povo que sofre
com as mortes devido à covid-19, pois não vemos o brilho do luxo, das cores, das modelos
famosas e da vida que, normalmente, constroem as capas dessa revista.
O uso das máscaras que cria uma barreira para o beijo reforça a formação discursiva
dominante da área da saúde, cuja determinação vem da OMS, sobre a importância do
distanciamento social e do uso de máscaras como argumento para a proteção contra o
coronavírus. A linguagem visual produz esses discursos em relação à pandemia, reitera a
formação discursiva dominante no mundo todo sobre a dor e a necessidade de distanciamento
e isolamento social.
Entretanto, a linguagem verbal marca que não houve o silenciamento da data de 25
de abril, que a memória política da luta e da conquista da liberdade do povo português não
pode ser esquecida, mesmo com o povo dentro de casa, ao contrário do que Portugal viveu
em 25 de abril de 1974, com o povo nas ruas. Pelo acesso ao interdiscurso, sabemos como
a história e a memória são estruturantes de toda cultura, mas não são discursivizadas do
mesmo modo em cada cultura. No caso da europeia, os valores, as lutas, a história do povo
são extremamente valorizados; portanto, apesar de os sentidos sobre a pandemia serem
dominantes, em 2020, e, o enfoque da revista Vogue ser o glamour, ela silencia em sua capa
o discurso da moda e beleza, mas não deixa de construir uma estratégia argumentativa para
evocar os discursos considerados caros ao leitor/a imaginado para a revista, quais sejam, a
pandemia e a liberdade. Esses sentidos são produzidos pelo jogo das formações imaginárias,
segundo o qual os sujeitos que produziram a capa “antecipam” o que pode ser valorizado
pelo sujeito-leitor da Vogue Portugal, e, assim a revista constrói sua argumentação pelo
mecanismo de antecipação (ORLANDI, 1993).
No dia 17 de maio de 2020, o Instagram da revista Vogue Espanha divulgou sua capa
de maio com a legenda “Nunca estar tão longe nos fez sentir tão perto”. Na mesma data,
o país contabilizava 190 129 casos confirmados de covid-19 com 19 478 mortes (OPERA
MUNDI, 2020).
51
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Fonte: https://www.instagram.com/p/B_E_a0XoIIo/.
Acesso em: 10 jul. 2020.
Destacamos que não é a foto de uma celebridade que está em destaque na capa, mas
sim, como lemos na postagem trata-se de uma ilustração criada por Ignasi Monreal. Esse
recurso cria o efeito de sentido ao leitor/a de pertencimento a um grupo, pois é possível
identificar-se com as angústias de quem está em casa, isolado do convívio social, sofrendo
com a pandemia, como o texto visual em diálogo com o verbal sugere.
As cores que predominam na imagem remetem à paz e à tranquilidade, sentidos dos
quais a humanidade necessita, nesse momento. O céu em aparente movimento com o vento
que move o cabelo da mulher, pode sugerir “bons ventos”, como por exemplo, um vento que
simboliza o movimento dos cientistas em busca de uma cura para o coronavírus, vento que
move a esperança por dias melhores. Essa estratégia argumentativa de construir sentidos de
esperança e tranquilidade é reforçada pela presença dos pássaros brancos que voam no céu
e nos remetem aos desejos de liberdade para sair de casa e “voar” com quem amamos, como
os pássaros, que estão em bando; desejos de paz e de união mundiais, afinal, estamos todos
vivendo a mesma pandemia e desejando sair dela para um mundo melhor.
Apesar de as capas das edições espanhola e portuguesa serem construídas com
diferentes imagens, a linha argumentativa reforça sentidos de solidariedade à dor causada
pela pandemia e o desejo de liberdade para o povo, seja liberdade política, seja liberdade do
coronavírus. Destacamos, também, que ambas as capas se inscrevem na formação discursiva
dominante na área da saúde que defende a importância do distanciamento social.
Em 07 de abril de 2020, a revista Vogue Itália divulga, em seu Instagram, a capa do
mês de maio.
52
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Fonte: https://www.instagram.com/p/B-r-8mxqzXk/
Acesso em: 10 jul. 2020.
Uma capa em branco e uma legenda para justificar a ausência de cor e de imagem. O
branco, segundo a legenda, pode lembrar os profissionais da saúde arriscando suas vidas,
pois há muitas pessoas morrendo nos hospitais. Desse modo, a capa branca evoca sentidos
relacionados aos uniformes dos profissionais da saúde, considerados um dos heróis da
pandemia, ou seja, a revista filia-se à formação discursiva dominante na área da saúde;
além disso, temos os sentidos construídos historicamente para o branco como respeito,
renascimento, luz após a escuridão e paz.
No caso da página da revista, segundo o sujeito-autor da legenda, a folha em branco
sugere a esperança de que nela seja escrita uma nova história. Sabemos que o sujeito não
controla todas as possibilidades de produção dos sentidos; assim sendo, para nós, a página
em branco constrói, também, o efeito de que não há nada tão relevante para ser dito sobre
moda e beleza em meio a tantas mortes, tanto desemprego, tanta falta de alimento, tanta
falta de companhia, tanta ausência de tudo, ou seja, o excesso da falta. Se o branco pode
representar a saturação dos sentidos da pandemia que se sobrepõem aos sentidos da
beleza, contraditoriamente, o vazio que essa cor representa no texto visual pode funcionar
como um respiro, uma paz para o sujeito-leitor da Vogue Itália imaginar os sentidos que
desejar. A nosso ver, a capa em branco pode ser pensada conforme o conceito de silêncio
tal qual proposto por Orlandi (2007) em relação à linguagem verbal que, aqui, adotamos
para a visual. Na ausência de linguagem visual e verbal há silêncio e sentido. A autora
explica que “quando dizemos que há silêncio nas palavras, estamos dizendo que elas são
atravessadas de silêncio; elas produzem silêncio; o silêncio ‘fala’ por elas; elas silenciam”
(ORLANDI, 2007, p. 14).
Salientamos que na data de publicação da postagem sobre a capa no Instagram da revista,
a Itália já possui 132 547 casos confirmados de covid-19 e 16 525 mortes (OPERA MUNDI,
53
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
2020). Tal qual a cegueira branca de Saramago (1995), a capa da Vogue também possibilita
interpretações mediante a metáfora de uma cegueira social, já que o homem não está enxergando
que a ideologia capitalista provoca a destruição da vida terrestre, humana ou não, com especial
destaque para os pobres, idosos, moradores de rua, todos os grupos que não têm condições
de sobrevivência nas sociedades tão desiguais e acabam, consequentemente, privados da vida.
Tanto na ficção quanto na realidade, o isolamento é imposto; na ficção, o isolamento fez com
que aqueles que sofriam da cegueira branca compreendessem que uma sociedade só se edifica
pela luta coletiva em busca da sobrevivência. Na realidade, só a pós-pandemia dirá.
A seguir, apresentamos nossa última análise. Podemos ver, nas Figuras 4 e 5, que, em
2 de abril de 2020, a revista Vogue Brasil divulgou, em seu Instagram, as capas da revista do
mês de abril:
Fonte: https://www.instagram.com/p/B-ekqjmFLe7/
Acesso em: 12 jul. 2020.
Fonte: https://www.instagram.com/p/B-eoHg3FMqM/
Acesso em: 12 jul. 2020.
54
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
A partir das duas capas e suas respectivas legendas que a revista Vogue Brasil publicou
sobre a sua edição de abril, interpretamos que se trata de uma edição que busca valorizar
uma grande conquista, no caso, o número de publicações da revista. Porém, não podemos nos
esquecer de que a sua publicação de número 500 ocorre em meio a uma pandemia que não
oferece ao mundo, tampouco aos brasileiros, motivos para comemoração, pelo menos, em
respeito ao número de contaminados e mortos no mundo todo, e, especificamente, no Brasil,
uma vez que na data de divulgação das capas no Instagram da revista Vogue Brasil, o país
contava com 6 836 casos confirmados de covid-19 e com 241 mortes (OPERA MUNDI, 2020).
Contraditoriamente, na legenda do Instagram da revista brasileira, lemos que ela
mantém seu “compromisso de informar, entreter e inspirar de maneira otimista (mas
não alienada) durante a pandemia”. Essa formulação nos leva às seguintes indagações:
quais seriam as interpretações possíveis para “não alienada”? Seria não estar alienada em
relação ao discurso do capital que, mesmo diante da morte insiste em manter a economia
funcionando? Seria não estar alienada à formação imaginária sobre quem é o leitor/a da
Vogue Brasil, que provavelmente, não correrá o risco de adoecer e ficar sem respirador
nos hospitais privados, pois esse público que busca informações na “bússola das principais
tendências de beleza, cultura e lifestyle” não precisa se preocupar com a pandemia? Seria
não estar alienada ao discurso do presidente da República que, pelo fato de não usar máscara
e dizer sem medo ou vergonha que a covid-19 é “só uma gripezinha” desautoriza o discurso
médico e apaga as tragédias causadas pelo novo coronavírus; logo, o povo brasileiro teria
motivos para comemorar junto à musa do carnaval, abusando da cor vermelha, de brilhos e
paetês? Ou, talvez, seria não estar alienada ao interdiscurso sobre o brasileiro, povo festeiro,
não politizado, que sempre dá um jeitinho para tudo, pois o Brasil é um país onde tudo acaba
em pizza; assim sendo, até a pior pandemia deve ser tratada como festa? Seria essa a imagem
que Vogue Brasil constrói para o brasileiro e, portanto, pelo mecanismo de antecipação do
seu leitor/a a revista construiu suas edições de abril tão diferentes das que circularam em
três países europeus, conforme analisamos.
Para não dizer que a pandemia foi silenciada, observamos que a revista Vogue Brasil
discursiviza sobre a pandemia quando se refere ao ótimo trabalho remoto realizado pela
equipe, neste período de distanciamento social, para a publicação do periódico do mês
de abril. Já que o glamour é o foco da revista, os sentidos do home office também foram
glamourizados, o home office foi discursivizado como um trabalho tão bom quanto seria o
seu trabalho presencial, pois “o resultado, modéstia à parte, está lindíssimo”. Neste viés,
percebemos que há um apagamento dos múltiplos sentidos para home office que estão
circulando no mundo, visto que existem diferentes realidades e situações em que não se
consegue realizar um trabalho “lindíssimo” em casa, com outras condições de produção.
Há formações discursivas que constroem sentidos de dificuldade, de adoecimento dos
trabalhadores em home office, pois para muitos deles trabalhar em casa pode estar sendo
um pesadelo.
55
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Nas duas capas que trazem Ivete Sangalo e suas respectivas legendas do Instagram, a
Vogue Brasil silencia o discurso de sofrimento, dor, fome, mortes, incertezas e medo vividos
no país. No Brasil, em abril de 2020, havia uma disputa entre pelo menos duas formações
discursivas, a da economia e a da saúde.
Essas são as condições de produção dos discursos, no Brasil, no auge da pandemia.
Conforme apontamos, para a Análise do Discurso, a exterioridade é constitutiva da linguagem.
Dessa forma, saber que em 16 de abril de 2020, o então ministro brasileiro da saúde,
Henrique Mandetta, que defendia o isolamento social e o fechamento dos estabelecimentos
comerciais, no Brasil, foi demitido pelo presidente Jair Bolsonaro, defensor da economia
e de que o Brasil não pode parar, permite que compreendamos a luta ideológica travada
entre as formações discursivas dominantes da saúde e da economia. Essa disputa tornou
ainda mais acirrada no país após a demissão do ministro, abrindo precedentes para a
circulação de discursos como os da capa Vogue Brasil em que a moda, os paetês, a roupa, os
acessórios usados por Ivete Sangalo produzem sentidos de festa como se isso fosse natural.
Usando dessa estratégia argumentativa, a revista filia-se à formação discursiva da moda,
que se vincula à economia, e, silencia o número de mortes no país pela covid-19, bem como
a urgência de isolamento social.
Considerações finais
56
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
logo, os sentidos deslizam para a moda, para a beleza e para o brilho das festas, silenciando
possíveis argumentos baseados em sentidos de saúde e da vida.
A partir das formações imaginárias sobre as “cegueiras” que reinam em cada país,
das condições de produção discursivas, segundo as quais os sentidos são construídos,
a revista Vogue projetou seus interlocutores/leitores de cada país e construiu estratégias
argumentativas diferentes para Brasil, Portugal, Espanha e Itália silenciando, ou não, a
“profunda dor” causada pela pandemia do novo coronavírus
Referências
ELMAN, Débora. Jornalismo e estilo de vida: O discurso da revista Vogue. 2008. 117
p. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Informação) – Faculdade de Biblioteconomia
e Comunicação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.
OPERA MUNDI. Siga, em gráficos, evolução de casos e mortes por coronavírus e veja se
país está achatando curva. UOL, São Paulo, 11 jul. 2020. Coronavírus. Disponível em:
https://operamundi.uol.com.br/coronavirus/63984/siga-em-graficos-evolucao-de-casos-
e-mortes-por-coronavirus-no-brasil-e-veja-se-pais-esta-achatando-curva Acesso em: 11 jul.
2020.
ORLANDI, Eni. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez; Campinas: Ed.UNICAMP, 1993.
ORLANDI, Eni. Efeitos do verbal sobre o não-verbal. Rua, Campinas, n. 1, p. 35-47, 1995.
ORLANDI, Eni. Ler Michel Pêcheux hoje. In: PÊCHEUX, Michel. Análise do Discurso.
Textos escolhidos por Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2011. p. 11-20.
57
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
PIRIS, Eduardo Lopes. Paixões e posições ideológicas nos discursos jornalísticos sobre
o golpe de Estado brasileiro de 1964. In: PIRIS, Eduardo Lopes; OLÍMPIO-FERREIRA,
Moisés (org.) Discurso e argumentação em múltiplos enfoques. Coimbra: Grácio
Editor, 2016. p. 261-282.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. 31. reimpr. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995
58
5
CASTIGO OU OPORTUNIDADE? PAIXÕES E IMAGENS
DIVINAS DURANTE A PANDEMIA
Marcia Regina Curado Pereira Mariano11
Introdução
60
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
De acordo com Aristóteles (2011, p. 123), no Livro II da Retórica, a cólera pode ser definida
“[…] como uma inclinação penosa para uma manifesta vingança de um desdém manifesto e
injustificável de que nós mesmos ou nossos amigos fomos vítimas”. Tratando das paixões como
próprias da natureza humana, a cólera seria direcionada a “um indivíduo em particular” e nunca
ao “ser humano em geral”, e viria acompanhada “de um certo prazer” de vingança.
61
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
[…] nos encolerizamos mais com nossos amigos do que com outras
pessoas, pois julgamos que os primeiros devem nos tratar bem e não mal.
Encolerizamo-nos contra os que costumavam nos honrar e nos considerar
se ocorre uma mudança e eles passam a ter uma atitude diferente conosco.
(ARISTÓTELES, 2011, p. 127).
O pecado seria, desta forma, causa da decepção de Deus e motivo para um castigo
divino. Alguns religiosos mais extremistas apontam “pecados” específicos do ser humano.
Em 01/04/2020, uma declaração polêmica do rabino M.M.14 tomou grandes proporções,
gerando revolta ao redor do mundo15, principalmente nos defensores dos direitos humanos.
A declaração, erroneamente atribuída ao ministro da saúde de Israel, também pertencente à
comunidade ultraortodoxa, afirmava que a pandemia é um castigo de Deus aos gays.
De acordo com o site do Instituto Brasil-Israel16, M.M.
14 Optamos por identificar os oradores, com uma única exceção, apenas por suas iniciais, visto que o que nos
interessa é sua visão enquanto líder ou autoridade de uma religião ou crença, e não sua opinião pessoal.
15https://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2020-04-08/rabino-isralense-diz-que-covid-19-e-punicao-
divina-a-gays.html. Acesso em: 06 jul. 2020.
16 http://institutobrasilisrael.org/noticias/noticias/e-falsa-a-noticia-de-que-o-ministro-da-saude-de-israel-
disse-que-coronavirus-e-castigo-divino-a-gays. Acesso em: 06 jul. 2020.
62
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
A pandemia seria, desta forma, a partir da análise do discurso do rabino M.M., uma
vingança de um Deus encolerizado (e homofóbico) contra sua criatura, que contrariou uma
pretensa heteronormatividade “natural”. Para ele, aquelx que foge do binarismo homem-
mulher não é normal e deve ser (e estaria sendo, por meio da pandemia) castigado/a; possui
uma “inclinação ao mal”.
O site do referido instituto, no dia 08/04/2020, noticiou o fim do mal-entendido em
relação à autoria da declaração e criticou a posição do rabino, lembrando que religiosos
radicais de outras religiões também culpam os homossexuais pela pandemia, como o clérigo
xiita iraquiano M. al S. e o pastor evangélico americano R.D.
Em notícia do site Uol17, publicada em 24/03/2020, vemos outro pastor, um americano
conservador, cujo nome da igreja não foi informado, P.S., que afirma que a pandemia é um
castigo divino por causa de casamentos gays e abortos. Segundo ele:
P.S. se diz porta-voz do Deus cristão, destacando sua autoridade no uso da primeira
pessoa do singular “eu”. Com indícios de patriotismo, homofobia e machismo, humaniza o
ser divino afirmando que ouviu “uma voz de homem falando” (grifo nosso) e atribuindo a
ele uma ação pouco misericordiosa: um “acerto de contas”. Em seu discurso, a pandemia
seria também, pois, de acordo com nossa análise, a vingança de um Deus tomado pela cólera
por ter sido desprezado - “você não é bem-vindo” - e desobedecido com a aprovação de
leis “abomináveis”, numa relação de causa e consequência. Os argumentos utilizados são
exemplos dos vários preconceitos que ainda persistem em muitos discursos religiosos.
Já em um artigo publicado no blog da Revista Adventista, em 31/03/2020, o
pastor G.S.A.18 discute se a pandemia de covid-19 seria um castigo de Deus, em razão da
“pecaminosidade humana”, ou um sinal do fim dos tempos, conforme textos bíblicos.
Sobre a primeira possibilidade, o pastor afirma que são várias as razões para pragas,
pestes e moléstias apresentadas no livro sagrado dos cristãos. Em alguns casos, seria Deus
“diretamente responsável por infligir doenças e pestes”, como no envio das pragas ao Egito,
descrito no Antigo Testamento. Nesses casos, segundo o orador, os povos e as pessoas
17 https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/03/24/pastor-dos-eua-diz-que-coronavirus-e-
castigo-divino-por-casamento-gay.htm. Acesso em: 06 jul. 2020.
18 http://www.revistaadventista.com.br/blog/2020/03/31/como-interpretar-a-pandemia.Acesso em: 06
jul. 2020.
63
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
haviam desobedecido às leis divinas, se afastado de Deus, o que nos remete, novamente, à
paixão da cólera. Quando infligidos por Deus, os sofrimentos seriam “atos de castigo” com
finalidade “didática e misericordiosa”, na medida em que auxiliariam os homens a voltar
para o caminho do bem: “Por meio da dor, Deus pode alcançar bens e benefícios que não
seriam possíveis de outra forma”.
Em outros casos, como na doença do personagem bíblico Jó, seria Satanás o
responsável pelas ações maléficas, porém, “dentro dos limites estabelecidos por Deus”. E
essa permissão de Deus para ações de Satanás, segundo o religioso adventista, deve-se,
também, ao afastamento dos homens das leis divinas, ao pecado. Segundo o pastor, as
pragas e pestes anunciadas no livro do Apocalipse só serão possíveis, no fim dos tempos,
porque Deus “retirará Seu braço protetor e permitirá que Satanás cumpra seus propósitos”.
Contraditoriamente, o orador, no entanto, diz implicitamente que a pandemia não seria um
castigo, mas que se o homem aceita o bem oferecido por Deus, deve também aceitar o mal:
“Temos recebido o bem de Deus e não receberíamos também o mal? (Jó 2:10)”.
Ou seja, de acordo com essa visão, os responsáveis pelos males podem ser Deus ou
Satanás, mas o culpado é o próprio homem, devido à sua “capacidade de provocar destruição
a si e aos que estão ao seu redor”. Independentemente, pois, do responsável, o homem merece,
como consequência de seus atos, sofrer, restando-lhe a passividade e o conformismo.
A outra hipótese sugerida no artigo de G.S.A. é de que a pandemia é mais um dos
sinais dos fins dos tempos, anunciado no Apocalipse, e deve servir de alerta para o fiel que
aguarda a “gloriosa pequena nuvem da comitiva de Cristo”.
Nesse discurso do pastor adventista, a imagem discursiva de Deus que se apresenta
na maior parte do tempo é a do Deus vingativo, que, quando tomado pela paixão da cólera,
é capaz de aplicar punições ou até permitir que seu maior inimigo, Satanás, cumpra seus
projetos maléficos contra o ser humano só para castigá-lo pelos pecados. Como uma forma
de conformismo e aceitação, o homem pode utilizar esse tempo de pandemia para se
arrepender e se preparar para o apocalipse e o armagedom, quando entrará em cena o Deus
bondoso, que levará o fiel à glória (provavelmente, só os adeptos daquela religião específica).
A epidemia como castigo divino aparece ainda em outros discursos religiosos, mas,
às vezes, eufemizada”. O líder muçulmano sheik A.A. diz, em entrevista publicada no site
Mídia News19, em 14/06/2020, que, para os muçulmanos, a pandemia não é um castigo
divino, mas uma “provação”, ou seja, um sofrimento imposto por Deus para o homem
provar sua fé. Ao considerar-se livre para agir e pensar, independentemente das leis
da superioridade divinas, o homem teria, portanto, mostrado-se fraco na fé, insolente,
pecador, esquecido de sua impotência e inferioridade: “o ser humano já está achando que
é capaz de fazer tudo”, numa inversão da ordem. A pandemia, aqui, seria uma resposta
divina às ações humanas.
19 https://www.midianews.com.br/cotidiano/virus-e-provacao-de-deus-homem-estava-se-achando-capaz-
de-tudo/377622. Acesso em: 06 jul. 2020.
64
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
[…] diz Lutero, devemos orar contra toda forma de mal e nos proteger contra
ela da melhor maneira possível para não agir contra a vontade de Deus.
Contudo, se for da vontade de Deus que o mal venha sobre nós e nos destrua,
nenhuma de nossas precauções vai nos ajudar.
65
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
é bondade”, mas resultado das ações do homem. No entanto, Deus poderia “permitir” o
sofrimento para “nos corrigir”. Para justificar essa permissão, o padre recorre a uma imagem
hierárquica (e conservadora) que autoriza a punição: a da ação corretiva de um pai para com
seus filhos.
É mais fácil pensar que é castigo de Deus, pois assim desvia da humanidade a
responsabilidade de ações erradas.[…] Deus não manda o sofrimento, porém
pode permitir, não para nos castigar, mas para nos corrigir como um Pai que
ama seus filhos
Dessa maneira, também constrói para Deus uma imagem paradoxal: ele é bondade,
benevolência, mas permite o castigo, a “correção”, talvez, em nossa proposta, tomado pela
paixão da cólera, decorrente de nossas “ações erradas”. O padre, no entanto, não especifica
quais seriam essas ações, que podem tanto dizer respeito a ações destruidoras contra a
natureza quanto ao que a igreja considera pecado.
Pai G. de O., diretor da Associação Brasileira dos Templos de Umbanda e Candomblé,
por sua vez, em matéria23 do jornal virtual Correio, publicada em 20/04/2020, diz ser
contraditório, diante da bondade de Deus, pensar que ele possa castigar o ser humano com
o sofrimento e a morte de pessoas inocentes. Para o líder religioso, a pandemia de covid-19
é resultado de ações equivocadas do homem contra a natureza:
Não sendo um castigo divino, neste ponto de vista, também não é uma oportunidade
dada por Deus. Segundo o pai de santo, porém, o momento não deixa de ser uma oportunidade
para, no recolhimento, o homem repensar suas ações e comportamentos, para com a natureza
e para com o outro. “Talvez a humanidade aprenda a valorizar coisas a que não está atenta
mais. Talvez haja a reflexão de que existe algo maior e mais valioso que o materialismo”.
Também com foco na crise ecológica, para o Papa Francisco, em notícia24 do site Uol,
publicada em 08/04/2020, a pandemia de covid-19 é uma das “respostas da natureza” às
mudanças climáticas provocadas pelo homem. Diz o pontífice:
23 https://correio.rac.com.br/_conteudo/2020/04/agencias/929038-o-momento-atual-na-visao-de-lideres-
religiosos.html. Acesso em: 07 jul. 2020.
24 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/04/08/papa-pandemia-
pode-ser-resposta-da-natureza-as-mudancas-climaticas.htm. Acesso em: 07 jul. 2020.
66
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Polo Norte porque todas as geleiras haviam derretido? Quem fala agora
das enchentes?
Deus nos salva através da ciência. Ele nos dá o problema, mas também nos
dá a solução. Nós precisamos confiar em Deus através da ciência, ela é um
instrumento que Deus nos coloca nas mãos para resolvermos aqui na Terra.
Sejam (sic) pelos pesquisadores, médicos que tratam as doenças, e outros
capazes para resolver nossos problemas aqui.
25 https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-03/o-papa-sobre-a-pandemia-diante-de-deus-todos-
somos-filhos.html. Acesso em: 07 jul. 2020.
26 https://www.rdnews.com.br/entrevista-especial/medico-espirita-refuta-covid-como-castigo-deus-salva-
atraves-da-ciencia-leia-mais/129426. Acesso em: 07 jul. 2020.
67
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Algumas considerações
68
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Referências
ARISTÓTELES (384-322 a.C.). Retórica. Tradução Edson Bini. São Paulo: EDIPRO,
2011.
MEYER, Michel. Prefácio: Aristóteles ou a retórica das paixões. In: ARISTÓTELES (384-
322 a.C.). Retórica das paixões. Tradução e introdução Isis Borges. B. da Fonseca. São
Paulo: Martins Fontes, 2003. p. XVII-LI.
69
6
O FUNCIONAMENTO DOS LUGARES DA QUANTIDADE
EM DISCURSOS SOBRE A COVID-19
Ana Cristina Carmelino27
Luiz Antonio Ferreira28
Só quem sofre de insônia sabe o valor de uma noite bem dormida. É apenas uma, mas,
repleta de significados ligados à paz e à saúde, pode representar muito na lista de desejos de
um homem. As mesmas oito horas de sono que confortam e reanimam a maioria dos mortais
podem ser torturantes quando não se consegue adormecer. Do mesmo modo, os mesmos
seiscentos reais, que representam uma insignificância para o rico empresário que compra um
ingresso para ver um show de seu artista preferido, podem alimentar, por quatro semanas,
uma família de cinco pessoas. Os números podem ser os mesmos, mas a importância que um
auditório atribui a eles, não.
É comum falarmos sobre valores numéricos e, quase sempre, atentamos apenas
para os “numéricos” em detrimento dos “valores”. Os números carregam, sim, valores e,
embora signifiquem em si mesmos, ganham contornos muito diferentes em função do
contexto e dos propósitos do discurso. Oscilam em valores quando o auditório é modificado.
Os números que pretendem demonstrar fatos, não conseguem prescindir de hierarquias
criadas pelo homem, de estruturas imagináveis do real, também criado, estruturado e aceito
pelo próprio homem. Quando morre uma pessoa no Alasca, sentimos muito. Quando morre
uma pessoa da família, sentimos muito mais. Quando morre um filho, esse “um” carrega
valores humanos que fazem sofrer em proporções inimagináveis. A amplitude quantitativa
do sentir está ligada à hierarquia de valores aceitáveis, à proximidade concreta das relações
e não propriamente do fato em si mesmo. Em todos os exemplos, morre apenas uma pessoa.
Não é, portanto, repetimos, o algarismo em si que determina fortemente o sentido, mas o
contexto em que se apresenta. O número, seja qual for, constitui um elo fortemente marcado
entre o homem que o invoca e o homem que o assimila durante um ato retórico.
71
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
mortes pela covid-19. O texto em questão mudou o formato tradicional da capa do jornal ao
ocupar a página inteira e suprimir as notícias outras que seriam normalmente destacadas
na página inicial. Esse destaque inusitado realçou o gênero epidítico e colocou em evidência
o percurso cronológico e evolutivo da doença no cenário brasileiro. A estranheza da capa
carregou em si o rondar trágico do medo.
No caso de uma pandemia, os índices discursivos que caracterizam a retórica do medo
são amplamente conhecidos e se impõem naturalmente em função dos objetivos do orador
e da constituição do real pelo auditório: incitar paixões temerárias, infundir o temor da
morte iminente, prenunciar o desemprego em massa, exaltar os efeitos malévolos da fome,
amplificar os males da solidão como causadores de estresse, do pavor da perda, sobressalto
com fake-news, horror do colapso das unidades de atendimento hospitalar, entre outros.
Essa retórica, que pode ser hierarquizada em função do tempo, do momento, da visão de
mundo, da ideologia, implica juízo sedimentado num contexto turbulento, sem referências
legíveis no passado e, portanto, sem modelo. Nesse terreno movediço, a retórica qualifica
e quantifica os eventos do mundo, estabelece ordens particulares de relevância, atinge um
auditório universal e delineia o estar no mundo.
72
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
73
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
30 De acordo com Aristóteles (1983, Livro I), o acidente é alguma coisa que, não sendo nem definição, nem
propriedade, nem gênero, ainda assim tem pertinência com a coisa.
31 Caso de autores como Reboul (2004), Tringali (1989, 2014), Abreu (2009), Ferreira (2010) e Fiorin (2015).
74
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
75
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Fonte: https://www.vercapas.com.br/edicao/capa/o-estado-de-sao-paulo/2020-06-21/
76
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
77
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
No que concerne aos índices discursivos que caracterizam a retórica do orador na busca
de impactar por meio dos lugares da quantidade, podemos considerar ainda os “pontos” que
representam as vidas perdidas. Ancorados na cor preta, alusão às mortes provocadas pela
doença, eles reforçam visualmente a informação do número de vítimas fatais da doença
naquela semana específica. Assim, na semana de 18 a 24 de março, lê-se que há 45 mortes.
Logo abaixo dessa informação, aparece o mesmo número de pontos pretos, cada um deles
representando (ao menos é o que se procura sugerir) os falecimentos ocorridos no país
naquele momento. No período seguinte, de 25 a 31 de março, a estratégia se repete, porém
com outro dado, 155 vidas perdidas, uma vez mais indicadas por pontos. Como o volume
é maior, cria-se o efeito de amplificação do avanço da pandemia entre os brasileiros que
perderam a batalha para a covid-19.
Até esse momento, o orador se vale do recurso retórico da repetição, espécie de
epizeuxe, tendo em vista a repetição seguida de pontos, que gera o aumento do volume. Pelo
menos, há um paralelismo no modo como as semanas são apresentadas e a caracterização
plástica utilizada (cor vermelha nos números de indicação das mortes e preta nos pontos).
O que muda, além das datas, que indicam o avanço do tempo, e dos dados em si, é que o
volume de pontos vai sendo paulatinamente ampliado à medida que a leitura da página é
feita de cima para baixo. O efeito visual criado entre os blocos de síntese dos casos semanais
é o de uma concentração de pontos, muito maior que a inicial. Pondo em outros termos:
alude-se, por meio da cor, ao aumento de vidas perdidas no país ao longo das semanas e à
alta quantidade de brasileiros vitimados pela pandemia.
Pode-se identificar ainda um outro recurso retórico. Vê-se que se trata da articulação
de conteúdos de ordem verbal com os de ordem plástica (a cor). Quando articulados, podem
criar diferentes efeitos de leitura. Podem se completar, podem se contradizer, podem
redundar. Entendemos haver essa última situação no texto da capa veiculada por O Estado
de S. Paulo. A junção dos números de mortes com a representação visual delas por meio
dos pontos gera uma duplicidade da mesma informação, transmitida com signos distintos,
ora verbais, ora visuais (plásticos). Embora procure reforçar o avanço da doença, estratégia
que pode ser considerada bem-sucedida, gera um incontornável pleonasmo, construído por
materialidades díspares.
Justamente para tentar captar a benevolência dos que insistem em não acreditar em
uma pandemia, outros números e argumentos se avolumam no trecho final do texto da capa
do jornal:
78
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Considerações finais
79
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Referências
ABREU, Antônio Suárez. A arte de argumentar: gerenciando razão e emoção. 13. ed.
ampl. Cotia: Ateliê Editorial, 2009.
CARMELINO, Ana Cristina; FERREIRA, Luiz Antonio. O grito das massas: retóricas e
polêmicas. Entrepalavras, Fortaleza, v. 9, n. 1, p. 209-230, jan-abr. 2019.
PERELMAN, Chaïm. Retóricas. Tradução: Maria Ermantina Galvão Pereira. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
80
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
TRINGALI, Dante. Introdução à retórica: a retórica como crítica literária. São Paulo:
Duas Cidades, 1988.
50.058 MORTOS. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 141, n. 46268, 21 jun. 2020.
Capa. Disponível em: https://www.vercapas.com.br/edicao/capa/o-estado-de-sao-
paulo/2020-06-21/. Acesso em: 20 jul. 2020.
81
7
A PANDEMIA NO DISCURSO DA ECOLOGIA
MIDIÁTICA CONSERVADORA BRASILEIRA: UMA
ANÁLISE ARGUMENTATIVA
Lucas Pereira da Silva32
Gabriel Isola-Lanzoni33
Paulo Roberto Gonçalves-Segundo34
Introdução
32 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo
33 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo
34 Docente do Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
A partir de uma concepção que entende a argumentação como uma atividade calcada
no dissenso (AMOSSY, 2017), a disparidade entre as formas de conceber a realidade resulta
em um fundo heteroglóssico de concepções concorrentes e convergentes que, quando
tematizadas em função de um recorte interacional e textualmente estabelecido, constitui
um problema epistêmico, que pode ser expresso por uma questão argumentativa aberta ou
fechada (PLANTIN, 2008; GRÁCIO, 2010).
Para Gonçalves-Segundo (2020b, p. 240), problemas epistêmicos envolvem, então,
disputas acerca de concepções de realidade, ou seja, diferenças de opinião relativas a “modos de
ver e compreender o funcionamento da sociedade, da natureza, do comportamento humano,
da semiose, dentre inúmeros outros possíveis objetos de tematização”. A partir desse quadro,
podemos denominar, então, como Alegações as respostas a dados problemas epistêmicos, que
se tornam tanto alvo de defesa e de justificação, quanto de dúvida ou de crítica.
Vejamos a Figura 1 abaixo que ilustra o reenquadramento dialético operado por
Gonçalves-Segundo (2020b) no âmbito do layout de argumentos de Toulmin (2006 [1958]):
Na Figura 1, vemos que a Alegação (A) consiste no componente central para o qual
convergem os Dados (D), a partir da legitimação conferida pela Garantia (G), componentes
cuja confiabilidade pode ser ampliada pela adição de Bases (B). Além disso, vemos que as
distintas Alegações se encontram associadas a discursos distintos que garantem um conjunto
de representações que lhes dão coerência e que repertoriam o argumentador em termos da
defesa de um dado ponto de vista e do ataque a outros.
83
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
35 Recentemente, o Tilt – O canal sobre tecnologia do UOL noticiou a criação da rede social Parler, associada,
como alega a notícia, à circulação de fake news. Notícia disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/
redacao/2020/07/13/parler-rede-social-adotada-por-bolsonaro-deixa-espaco-para-desinformacao.htm.
84
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
36 Amanda Ribeiro e Luiz Fernando Menezes são autores da notícia “Jornal da Cidade Online usa perfis
apócrifos para atacar políticos e magistrados”, publicado pelo portal Aos Fatos. Disponível em: https://www.
aosfatos.org/noticias/jornal-da-cidade-online-usa-perfis-apocrifos-para-atacar-politicos-e-magistrados/.
37 Aiuri Rebello é autor da notícia “Alvo de CPI, site de fake news com 903 anunciantes perde apoio com
campanha”, publicado no portal do UOL. A notícia trata do jornal em questão. Disponível em: https://
noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/05/21/alvo-de-cpi-site-de-fake-news-com-903-
anunciantes-perde-apoio-com-campanha.htm.
38 Informações sobre a CPMI – Fake News disponível no site do Senado Brasileiro: https://legis.senado.leg.
br/comissoes/comissao?0&codcol=2292.
39 Estruturalmente, a interface do sítio eletrônico conta com ícones referentes a diversas plataformas digitais
por meio das quais o leitor pode compartilhar a página em que se encontra o texto a ser distribuído.
85
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
86
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Massacre da Praça da Paz Celestial, realizado pelo governo Chinês em Pequim, em 198942,
remissão depreendida a partir do segmento “nós já teríamos visto tanques chineses nas
ruas”. A segunda remete a Fidel Castro, referência inferida a partir do segmento “falsos
militares barbudos com charutos na boca”. A terceira invoca, intertextualmente, a figura de
Che Guevara, a quem é atribuída a expressão “há que endurecer, mas sem perder a ternura,
jamais”, a partir do segmento “todos falando que fuzilam mesmo, e vão continuar fuzilando,
mas sempre com ternura”.
Na sequência, no terceiro parágrafo, a voz autoral apresenta a Alegação subsidiária
O cidadão conclui que não há perigo real à frente e que tudo em breve voltará ao normal,
ou ao “novo normal”. Para sustentá-la, usa como Dados tanto a ilustração que acabamos
de discutir, quanto a construção “a única coisa anormal é a existência de um presidente
honesto, conservador e trabalhador”, representação esta que distorce o posicionamento da
imprensa crítica ao Governo Federal, na medida em que julga que os motivos que subjazem
aos ataques ao governo são, na verdade, indícios da superioridade moral e da dedicação do
presidente. Com isso, pode-se induzir a uma sensação de ausência de perigo, visto que os
traços que caracterizariam um regime ditatorial não se verificariam na realidade vigente,
considerando a experiência empírica do provável leitor.
No entanto, embora a voz autoral construa um raciocínio plausível e o atribua a
um possível cidadão letárgico, ela procede, implicitamente, a uma acusação de conclusão
apressada, expressa no segmento “está escapando ao cidadão de boa-fé o escancarado combo
mafioso que se formou”. Tal acusação se pauta em uma suposta negligência/ignorância
acerca da formação de um “combo mafioso”, constituído, basicamente, por parte significativa
das instituições dos três poderes dos três níveis federativos brasileiros – com exceção do
Executivo Federal – sob a dissimulação instaurada em nome da covid-19.
Nesta denúncia, a voz autoral, estrategicamente, se constrói como aquela que detém
o conhecimento, que vê a realidade que escapa aos demais e que é capaz de trazer isso para
o leitor, iluminando, assim, o seu conhecimento. Essa estratégia, que tem ligação com a
prova retórica do ethos (AMOSSY, 2017), uma vez que o argumentador constrói uma
imagem de ‘quem conhece e revela’, encontra ressonância na ecologia midiática alternativa
dessa nova direita, visto que muitos de seus textos trabalham com a lógica da revelação de
perspectivas supostamente ocultadas do debate público, não raro associadas a algum tipo
de desinformação.
As possíveis lacunas de conhecimento do cidadão letárgico tornam-se, então, alvo
de tematização nos três parágrafos subsequentes, nos quais – partindo da pandemia da
covid-19 e, sobretudo, das medidas implementadas por distintas instâncias para o seu
combate – se propõe uma atualização na concepção sobre as formas contemporâneas de
manifestação do totalitarismo no país.
42 “Como a China ‘apagou da memória’ o Massacre da Praça da Paz Celestial, que completa 30 anos”, por John
Sudworth. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48495352.
87
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
43 Segundo Thompson (2011 [1990], p. 87), o expurgo consiste em uma estratégia ideológica que envolve “a
construção de um inimigo, seja ele interno ou externo, que é retratado como mau, perigoso e ameaçador e
contra o qual os indivíduos são chamados a resistir coletivamente”.
88
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
arrolados nos parágrafos seguintes abrangem figuras públicas ligadas a amálgama de atores
sociais que, em tese e não raro, divergem em termos ideológicos.
A partir de tal dicotomização, a voz autoral parece intensificar a redução do
agrupamento político conservador, o que favorece a interpretação de que ele se encontra em
constante ameaça. Logo, essa estratégia parece servir como elemento motivador de coesão
endogrupal, de modo que, em face desse combo, os conservadores precisariam se unir e
estar atentos para se defenderem do alegado avanço autoritário que ameaçaria seus supostos
valores moralmente superiores.
Para passarmos para a segunda parte do texto, consideramos válido destacar as
expectativas que o articulista cria no quinto, sexto e sétimo parágrafo, pautadas nas
generalizações estabelecidas. Ao construir que o cidadão letárgico (i) sabe que os reais
poderes soltam presos e prendem inocentes, (ii) vê a quebradeira geral do comércio
e o superfaturamento, e (iii) é obrigado a usar máscaras sob risco de multa e prisão, as
expectativas, expressas nas Alegações a seguir, de que o cidadão letárgico não deveria se
recusar a ver a realidade, insistir em dizer que está tudo bem, ou ainda não perceber que foi
cerceado em seu direito de ir e vir. Contudo, embora estabeleça tais expectativas, o articulista
enuncia o oposto como fato empiricamente verificável, o que legitima a categorização desses
indivíduos como letárgicos mental e moralmente, conforme lemos no título.
Para fazer isso, o argumentador, no quinto e no sexto parágrafos, após apresentar
os componentes que constituem o combo escondido por detrás da “histeria” da covid-19,
instancia o juntor concessivo mesmo para explicitar a inconsistência da perspectiva de um
suposto cidadão de boa-fé frente ao que o próprio argumentador conceptualiza como real.
No quinto parágrafo, portanto, o articulista constrói a Alegação O cidadão mental
e moralmente letárgico [não deveria insistir] em dizer a si próprio e aos outros que está
“tudo sob controle”, sustentando-a pelo Dado os reais poderes soltam milhares de presos
perigosos, enquanto prendem pessoas inocentes por crime de opinião, introduzido por uma
Base constituída pelo evidencial cognitivo “saber” (MARÍN-ARRESE, 2011), que atribui ao
cidadão de boa-fé uma alta responsabilidade pelo conhecimento. O elo entre Dado e Alegação
é licenciado pela Garantia não se deveria negar algo que já se sabe, cuja perspectivação do
real se ancora nos valores circulantes de que ‘ações que coloquem criminosos em liberdade
e que prendam inocentes são passíveis de repúdio’.
Assim como ocorre na ilustração, o articulista remete a eventos recentes que
contrariam valores e perspectivas conservadoras. Em primeiro lugar, aponta para a ação das
Secretarias de Justiça dos Estados de liberar “homens e mulheres dos regimes semiaberto e
fechado que estavam presos e são do grupo de risco da doença”44; em segundo lugar, alude
44 “Sobe para mais de 1.500 o número de presos soltos por risco de contraírem covid-19 nas prisões do estado
de SP”, de Léo Arcoverde e Kleber Tomaz para a Globonews. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-
paulo/noticia/2020/04/02/sobe-para-mais-de-1500-numero-de-presos-soltos-por-risco-de-contrairem-
covid-19-nas-prisoes-de-sp.ghtml.
89
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
à prisão de Sara Winter45, ocorrida em 15 de junho – e cuja libertação ocorrera dez dias
depois, cinco dias antes da publicação do texto –, por meio do segmento “prendem pessoas
inocentes por crime de opinião”. Dessa forma, a voz autoral acaba categorizando posições
antidemocráticas e pró-ditatoriais de fato como meras opiniões, reduzindo sua gravidade.
Ademais, associa tais acontecimentos a uma suposta escalada de supressão da liberdade de
expressão no Brasil, protagonizada, é claro, pelo exogrupo.
Além disso, vale ressaltar a incorporação de fragmento do discurso do Governador
do Estado de São Paulo, João Dória – um dos atores sociais expurgados por esse discurso
da direita conservadora –, na construção da Alegação. Em coletiva de imprensa realizada
no dia 18 de maio de 2020, Dória defende que as ações deliberadas para a contenção
das consequências da covid-19 no estado seriam suficientes para que estivesse “tudo sob
controle”46. Ao trazer a fala de Dória, o articulista associa as atitudes de controle da pandemia
a histeria e até mesmo a crime, o que acaba por colocar em xeque a importância de figuras
político-administrativas seguirem orientações de autoridades médicas e científicas.
Dando continuidade à explicitação das inconsistências da percepção do cidadão de
boa-fé, no sexto parágrafo, o articulista se debruça sobre a ideia de que o cidadão letárgico
se recusa a ver a realidade que o circunda. Para tanto, por meio da estrutura concessiva,
estabelece a Alegação O cidadão letárgico [não deveria se recusar] a ver a realidade,
sustentada pelo Dado O cidadão vê com seus próprios olhos a quebradeira geral do
comércio e o superfaturamento retornando forte com a desculpa de combater o vírus. A
transição inferencial do Dado para a Alegação se ancora, primeiramente, na Garantia não
verbalizada de que não se deveria negar algo que é facilmente constatável, e isso, por seu
turno, remonta a valores expressos pela Base evidencial perceptiva do Dado (ver) de que
aquilo que é passível de observação pela visão goza de alta factualidade.
Neste parágrafo, também são estabelecidas referências a atores sociais expurgados:
em primeiro lugar, a governadores que sancionaram medidas de isolamento social que
cercearam, total ou parcialmente, o funcionamento (presencial) de atividades comerciais
não essenciais; e, em segundo lugar, ao governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, no
que diz respeito à suposta compra superfaturada de respiradores para hospitais47. Assim,
no primeiro caso, a voz autoral consegue remeter a práticas condenadas por essa nova
direita, sem incorrer a nomeações específicas que poderiam limitar o escopo da crítica e,
no segundo caso, considerando a vagueza referencial, consegue manter a associação de
45 “Polícia Federal prende Sara Giromini e mais cinco em investigação sobre atos antidemocráticos, em
Brasília”, de Márcio Falcão, Marília Marques e Brenda Ortiz, para a TV Globo e G1 DF. Disponível em:
https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/06/15/ativista-sara-winter-e-presa-pela-policia-
federal-em-brasilia.ghtml.
46 Destacamos a notícia “Doria sobre evitar lockdown: ‘Está tudo sob controle’”, disponível em: https://
entretenimento.uol.com.br/videos/?id=-04020E993268E4B96326.
47 “TCE diz que achou preços superfaturados na compra de respiradores pelo RJ”, de Pedro Figueiredo para
o RJ2. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/22/tce-diz-que-achou-
precos-superfaturados-na-compra-de-respiradores-pelo-rj.ghtml.
90
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
suposta corrupção ao exogrupo de modo geral, evitando, ademais, acusações diretas a atores
sociais específicos, o que poderia acarretar problemas judiciais. Com isso, direciona sua
argumentação à ampliação da adesão à concepção de que há, de fato, um “combo mafioso”.
Isso é coroado no sétimo parágrafo, quando Frenette trata do cerceamento da
liberdade de ir e vir a partir da deliberação pela obrigatoriedade do uso de máscaras –
instaurada a partir de 7 de maio de 2020 no Estado de São Paulo, por exemplo – como
uma das medidas de contenção da propagação do vírus. Na perspectiva autoral, tal
decisão – ligada à esfera político-administrativa, com base em informações e orientações
de autoridades médicas – é concebida como sintoma de autoritarismo. Tal estratégia
promove uma mudança no frame de referência dos signos, na medida em que desloca a
pandemia do campo da saúde pública para o campo da política e, nesse campo, ofusca as
fronteiras e até inverte o que é da ordem do democrático e do autoritário, de maneira a
tomar uma medida indicada de prevenção de contágio como uma forma desnecessária de
controle comportamental.
Isso fica ainda mais nítido pela forma como o articulista alimenta a rede de
enunciados relacionados à covid-19: o sintagma nominal “acumulador de baba” não só
introduz uma funcionalidade não prototípica e inexata da máscara, como também parece
orientar-se a desarticular o discurso que defende seu uso e a depreciar os atores sociais
que se filiam a tal discursividade. Esse efeito depreciativo se justifica, na medida em que a
seleção de tal sintagma nominal ataca a razoabilidade de quem faz uso do equipamento, que
é discursivamente reduzido a uma consequência negativa – hiperbolizada e infantilizada
– de seu uso.
Para finalizar a discussão sobre esses três parágrafos, consideramos relevante
destacar a questão das Bases. Do quinto para o sexto parágrafos, a voz autoral passa da
articulação entre “saber” algo e “insistir” em enganar-se para “ver” algo e “se recusar” a
reconhecer tal existência. Essa transição sinaliza uma progressão textualmente construída
da incapacidade de reconhecimento do “combo mafioso” que o articulista categoriza como
símbolo de autoritarismo, que culmina no pleno ignorar da suposta restrição à liberdade
de ir e vir causada pelo uso obrigatório de máscara. Tal bloqueio de percepção seria, então,
nesse discurso, um sintoma da efetividade da própria escalada autoritária, que “cegaria” o
cidadão de boa-fé a enxergar o que “de fato” estaria acontecendo: a restrição de liberdade,
disfarçada de um pacote de medidas em benefício da população.
Por fim, no último parágrafo, a voz autoral procede a uma ressalva, na qual busca
dividir o grupo de cidadãos que chega às conclusões alternativas em “cidadãos de boa-fé”,
que, pelos motivos já aludidos, não enxergam a suposta escalada autoritária, e em “cidadãos
mau caráter”, que defendem as medidas do “combo mafioso” por conveniência política
e financeira. Com isso, a voz autoral mantém a estratégia constante desse discurso da
ecologia midiática alternativa da direita conservadora de polarizar todo e qualquer debate e
dicotomizar tipos de cidadão.
91
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Essa ressalva se liga à última discussão que empreenderemos neste capítulo, que diz
respeito ao auditório visado e construído no texto. Por um lado, o argumentador orienta seu
discurso a um leitor que supostamente se identifica com esse cidadão de boa-fé, o que fica
patente na construção de um ethos de conhecedor e revelador. Por outro lado, ele também
dialoga com um auditório que, supostamente, já estaria alinhado a esse discurso e que,
talvez, já conheça algum desses argumentos e posicionamentos, de forma que o texto pode
atuar como um instrumento de formação de atores sociais dessa nova direita para o debate
cotidiano. Isso fica nítido pelas constantes remissões a eventos recentes e a figuras públicas
situadas no exogrupo, o que inclui uma série de intertextos, capazes de repertoriar esse
possível auditório. Nesse duplo jogo, um dos objetivos centrais do texto parece ser, portanto,
estimular a replicação e a distribuição desses pontos de vista e argumentos, de forma análoga
ao que ocorre nas fake news de modo geral (GELFERT, 2018), gerando desinformação,
engajamento, dados, coesão endogrupal e dicotomização identitária.
Considerações finais
Referências
92
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
FRENETTE, Marco. A letargia moral e mental do cidadão comum. Jornal da Cidade Online.
30 jun. 2020. Disponível em: https://www.jornaldacidadeonline.com.br/noticias/21484/a-
letargia-moral-e-mental-do-cidadao-comum. Acesso em: 05 de julho de 2020.
GELFERT, Axel. Fake News: A Definition. Informal Logic, v. 38, n. 1, p. 84–117, 15 mar.
2018. DOI https://doi.org/10.22329/il.v38i1.5068.
GRÁCIO, Rui Alexandre Lalanda Martins. Para uma teoria geral da argumentação:
questões teóricas e aplicações didácticas. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) –
Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, 2010.
93
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
TOULMIN, Stephen. Os usos do argumento. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006
[1958].
THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura moderna: teoria social crítica na era dos
meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 2011[1990].
94
8
DUELO DE TITÃS: A ARGUMENTAÇÃO EM TORNO DA
HIDROXICLOROQUINA
Débora Massmann48
C’est au moment du malheur que l’on s’habitue à la vérité, c’est-à-dire, au silence. (Camus)
Considerações Iniciais
Já em relação ao fluxo internacional de pessoas, seja pelo turismo, seja pela migração,
observa-se que ele tem se intensificado fortemente nas últimas décadas, sobretudo, em função
do desenvolvimento tecnológico que encurtou distâncias e aproximou diferentes culturas.
Diante do exposto, compreendemos que a globalização produziu um efeito de unidade
no conjunto geopolítico de Estados-nações de modo que os acontecimentos (positivos e
negativos) vão se espalhando, se propagando, alcançando pouco a pouco todos os sujeitos,
todos os países e todos os sistemas.
A propagação do novo coronavírus (Sars-CoV-2) pode ser descrita como um dos
fenômenos da globalização. A epidemia que começou na China, em dezembro de 2019,
muito rapidamente se espalhou pelo mundo, seguindo uma escala de contaminação que foi
se alastrando em direção à Europa e de lá para as outras regiões do planeta. O vírus pegou
carona no fluxo internacional de pessoas e escancarou fragilidades da era da globalização,
produzindo colapsos em grandes escalas nos sistemas de saúde de diferentes países.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o aparecimento do novo
coronavírus se deu na cidade de Wuhan, na China. Num primeiro gesto de análise,
discursivamente, a China, enquanto espaço simbólico, contribui para se compreender
melhor os efeitos da globalização no nosso cotidiano. Echeverría (2020) esclarece que, como
efeito justamente desse mundo globalizado, na sociedade chinesa, convivem
96
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
97
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
98
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
49 Grifo no original.
99
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
haja sentido. [Aceita-se] ao mesmo tempo que há real tanto da língua quanto da história,
sendo o sentido já um gesto de interpretação e o sujeito a própria interpretação” (ORLANDI,
1998, p.75).
Compreendemos assim, a espessura discursiva dos objetos simbólicos que
produzem sentidos, inscritos em determinadas condições de produção, na relação com a
exterioridade, filiados às formações discursivas, que, por sua vez, inscrevem-se em uma
determinada formação ideológica, colocando em funcionamento as relações de força e
de poder que são produzidas no discurso. É essa espessura discursiva que tentaremos
mostrar nas análises a seguir.
100
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
101
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Considerações Finais
102
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
Referências
103
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
PINTO, Céli R. Jardim. Com a palavra o sr. Presidente Sarney: o discurso do plano
cruzado. São Paulo: Hucitec, 1989.
104
A ARGUMENTAÇÃO NOS DISCURSOS SOBRE A PANDEMIA DA COVID-19
DÉBORA MASSMANN | EDUARDO LOPES PIRIS (ORG.)
105
E
ste livro foi selecionado pelo Edital nº 01/2020 da Universidade Federal
de Alagoas (Ufal), de um total de 44 obras escritas por professores/
as vinculados/as em Programas de Pós-Graduação da Ufal, com
colaboração de outros/as pesquisadores/as de instituições de ensino superior
(autoria, coautoria e coletânea), sob a coordenação da Editora da Universidade
Federal de Alagoas (Edufal). O objetivo é divulgar conteúdos digitais – e-books
– relacionados à pandemia da Covid-19, problematizando seus impactos e
desdobramentos. As obras de conteúdos originais são resultados de pesquisa,
estudos, planos de ação, planos de contingência, diagnósticos, prognósticos,
mapeamentos, soluções tecnológicas, defesa da vida, novas interfaces
didáticas e pedagógicas, tomada de decisão por parte dos agentes públicos,
saúde psíquica, bem-estar, cultura, arte, alternativas terapêuticas para o
enfrentamento da Covid-19, dentre outros, abordando aspectos relacionados
às diferentes formas de acesso à saúde e à proteção social, entre grupos mais
vulneráveis da sociedade.