Artes Pensantes e Incomparaveis
Artes Pensantes e Incomparaveis
Artes Pensantes e Incomparaveis
Sempre fui fascinado pelo fato de Schwitters levar seu filho para catar
objetos e detritos no lixo e na sucata, em vez de conduzi-lo ao parque de
diversões. Trata-se de uma inovadora educação artística: era preciso dar
o exemplo do que deve ser feito, como descoberta e seleção, para que o
ato de invenção ocorra. Era preciso muita pesquisa para chegar ao
objeto adequado (mas não “ideal”), a ser aproveitado no novo tipo de
produção Merz, palavra que é uma redução irônica do termo alemão
Kommerz. No entanto, já para Duchamp, era indispensável que houvesse
certa indiferença na confecção de seus ready-mades: o objeto achado ou
descoberto não deveria ser sobretudo “estético”. Diz ele, num dos
testemunhos que legou acerca de seu gesto inaugural e até hoje
extremante provocativo:
Nesse sentido, cabe entender que a antiarte pregada até certo ponto por
Duchamp não é simplesmente a negação da arte, pois isso seria confundi-
lo com Dadá em sua face mais destrutiva, confusão esta, aliás, bastante
comum. A antiarte duchampiana implica pôr em perspectiva as
instituições legitimadoras da arte, não necessariamente negando-as, mas,
antes, expondo-as em seu instante de fundação e continuidade histórica.
E nada mais fundacional em termos de instituição artística moderna do
que o ideal do belo, de base retiniana. Daí sua crítica aos museus e
fundações do gênero, segundo ele influenciados pelos marchands, que
impunham certo gosto oficial acerca da produção artística, a fim de
está tudo misturado
que sua obra seja harmônica e que dê a pensar [et qu’elle donne à
penser]”.[19] Continua, afirmando que tudo em suas telas é calculado e só
atende a regras que lhes são próprias. Essa autonomização da arte (muito
distinta da autonomia ideal, proposta por Hegel) significará
paradoxalmente também sua heteronomização no século XX, sobretudo
com Duchamp e Schwitters.[20] Pois a transformação conceitual de fato
se inicia quando Pablo Picasso e Georges Braque introduzem um
elemento não pictórico na pintura. É o simples gesto de colar ou agregar
artefatos e objetos que não são da ordem da técnica pictórica, ou seja,
objetos achados do cotidiano (tais como letras ao lado de imagens, areia e
estuque misturados à tinta para lhe dar mais textura, fragmento de
oleado com padrão estampado de palhinha de cadeira, reprodução de
jornal, cordão etc.), que quebra as fronteiras, e portanto a hierarquia
absoluta, entre as artes, bem como entre estas e o não artístico. Com esse
dispositivo heteronômico (o não pictórico ajudando a compor o pictórico,
a pintura metamorfoseada em colagem, assemblage e escultura, tal como,
décadas mais adiante, Robert Rauschenberg levará a suas últimas
consequências), anuncia-se a “explosão cambriana” das artes, com todas
as possibilidades de realização artística desenvolvidas no século XX e
agora no XXI. O recurso ao oleado, um material pré-fabricado
industrialmente, na Natureza-morta com palhinha de cadeira (de 1912)
prenuncia a revolução duchampiana.
está tudo misturado
Outra coisa senão que o leitor se converta num participador é o que pede
insistentemente Clarice Lispector por meio de seu duplo Rodrigo S.M.,
em A hora da estrela. Rodrigo é o outro eu da autora, que todavia
literalmente assina a [24] obra desde o pórtico, no meio da lista dos
títulos alternativos. Toda a força desse pequeno texto está menos na
suposta denúncia social, como tem sido tratada por parte da crítica
recente, com a figura de Macabéa, do que na “dança do intelecto”, fazendo
com que autora (C. L.), narrador-escritor (Rodrigo S. M.), personagem
(Macabéa) e, finalmente, leitor (“vós”) intertroquem seus lugares de
modo intensivo. Com Clarice, não há arte literária sem performance
leitoral, sem participação ativa do leitor, convocado em cada página de A
hora da estrela, por exemplo, a levantar do conforto da poltrona e a
pensar junto com o narrador, duplo masculino e desafiador de sua
suposta inventora, Clarice Lispector. Suposta porque Clarice, das mais
diversas maneiras, é também inventada pelo texto que escreve e torna
público. Seu lugar social e estético é posto em questão desde a
“Dedicatória do Autor (na verdade Clarice Lispector)”. A força desse
opúsculo é dialogar intensivamente com a tradição de vanguarda, sem se
reduzir a mais um de seus produtos, longe disso. O modo clariciano de
ser vanguarda, tal como ela o define numa famosa conferência,[25] é
também por meio da música, nomeadamente a de Schönberg, dos
dodecafônicos e dos eletrônicos. Experimental.
não é uma substância, nem uma matéria nem mesmo uma função pré-
dada. É da ordem do evento que se dá (é um dom) pela conjunção feliz de
invenção e recepção artística, sempre com o grande risco de fracasso. O
incomparável é aquilo que o artista agencia com suas formas-temas, mas
que pode ou não ser recebido e contra-assinado pelo público.[34] Para
haver contra-assinatura é preciso participação, envolvimento, escuta das
múltiplas vozes textuais ou plásticas que vêm do texto e da obra do
outro/da outra. Embora de matriz excessivamente hegeliana, o conceito
de plasticidade proposto por Catherine Malabou pode ser útil para fazer
avançar o debate: plasticidade corporal e plasticidade artística,
inseparavelmente.[35]
A querela atual em torno do que é uma obra de arte não deixa de lembrar
o embate entre os antigos e os modernos, ocorrida no final do século
XVII francês, bem como um embate mais recente e ora praticamente
findo entre o moderno e o pós-moderno. Enquanto se trabalhar com
categorias opositivas e estéreis, sem que uma fecunde a outra no mesmo
corpo ou no mesmo corpus (artístico, filosófico, amplamente
intelectual), a celeuma acerca dos limites da arte, se ela deve ou não tê-los,
não avança um passo, imobilizada por polêmicas conservadoras ou
inflamadamente vanguardistas, quando há muito já se vive o
distanciamento da impotência tradicionalista e da violência de
está tudo misturado
vanguarda.[37]