Dialogo Com As Sombras
Dialogo Com As Sombras
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DIÁLOGO COM AS SOMBRAS
Copyright © 2014 by
FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA - FEB
25ª edição - 04/2014
ISBN 978-8573289565
DOUTRINAÇÃO E DESOBSESSÃO
INTRODUÇÃO
1 - O GRUPO
2 - OS ENCARNADOS
3 - OS MÉDIUNS
4 - O DOUTRINADOR
5 - OUTROS PARTICIPANTES
6 - OS ASSISTENTES
7 - RENOVAÇÃO DO GRUPO
8 - OS DESENCARNADOS - OS ORIENTADORES
9 - OS MANIFESTANTES
10 - O OBSESSOR
11 - O PERSEGUIDO
12 - DEFORMAÇÕES
14 - O PLANEJADOR
15 - OS JURISTAS
16 - O EXECUTOR
17 - O RELIGIOSO
18 - O MATERIALISTA
19 - O INTELECTUAL
20 - O VINGADOR
21 - MAGOS E FEITICEIROS
22 - MAGNETIZADORES E HIPNOTIZADORES
23 - MULHERES
24 - O PROBLEMA
25 - O PODER
26 - VAIDADE E ORGULHO
27 - PROCESSOS DE FUGA
29 - TÉCNICAS E RECURSOS
31 - LINGUAGEM ENÉRGICA
32 - A PRECE
33 - O PASSE
34 - RECORDAÇÕES DO PASSADO
35 - A CRISE
36 - PERSPECTIVAS
37 - O INTERVALO
38 - SONHOS E DESDOBRAMENTOS
39 - RESUMO E CONCLUSÕES
SINOPSE
Com base em sua vasta experiência no intercâmbio com
o plano espiritual, Hermínio Corrêa de Miranda contribui, de
forma inestimável, para todos os que se dedicam ou
planejam se dedicar aos irmãos sofredores, seja como
médiuns seja como esclarecedores. O autor dedica esta
obra aos leitores que participam de sessões mediúnicas e
desempenham funções no trabalho de assistência fraternal
aos Espíritos desencarnados, sugerindo técnicas e recursos
eficazes para o desenvolvimento do diálogo entre o
comunicante e o esclarecedor. Oferece, ainda, orientações
sobre a formação do grupo, o preparo e a educação de seus
componentes encarnados.
DOUTRINAÇÃO E DESOBSESSÃO
“Qual é o teu nome?” - indaga Jesus.
Responde-lhe:
“O meu nome é Legião, porque somos muitos.” E
lhe imploravam com insistência que não os mandasse
para fora dessa região (Gerasa).
(Marcos, 5:9 e 10.)
Temos sob as vistas um novo livro de Hermínio C.
Miranda: “DIÁLOGO COM AS SOMBRAS - Teoria e Prática da
Doutrinação”.
Estamos familiarizados com os escritos do autor, pois
acompanhamo-lo em seus estudos, ano após ano, pelas
páginas de “Reformador”. Conhecemos-lhe as análises
criteriosas de dezenas de obras de bastante repercussão,
nas esferas da Religião, da Filosofia e das Pesquisas, no
mundo do Espiritualismo e, mais especificamente, do
Espiritismo e do Evangelho de Jesus. Raros serão os livros
marcantes de escritores contemporâneos e antigos, nessas
especialidades, que lhe não haja merecido a crítica serena e
construtiva. Os sistemas doutrinários erguidos pelo
pensamento humano, na sua longa e exaustiva elaboração,
no curso de milênios, são-lhe objeto de estudos e
elucubrações, geralmente traduzidos em artigos e livros que
a Federação Espírita Brasileira vai imprimindo e difundindo,
aqui e fora dos próprios limites territoriais das Terras de
Santa Cruz.
Nos últimos anos, os trabalhos de Hermínio C. Miranda
têm esflorado temas de grande importância, como sempre,
mas de abordagem difícil, alguns deles pouco estudados
antes. “O Médium do Anticristo”, por exemplo. Os artigos
referentes a “A Morte Provisória (5 e II)”, “Uri Geller”, “O
Cinquentenário de Lady Nona”, “A Maldição dos Faraós”,
etc., fazem-nos pensar mais detidamente nas profundidades
do Desconhecido.
Ao lado de livros e artigos, os prefácios, introduções e
sínteses de obras, como em “Procês des Spirites” (Processo
dos Espíritas), de Mme. Marina Leymarie; “Imitation de
l’Évangile selon le Spiritlsme” (Imitação do Evangelho de
acordo com o Espiritismo), de Allan Kardec. E mais o que se
acha por enquanto inédito.
Experiências que se acumularam ao longo de decênios
desta e de vidas pretéritas, consolidadas graças a esforços
incessantes e renovadas perquirições, conferem-lhe
espontaneidade e simplicidade no trato dos enigmas mais
sérios e das questões complexas, de toda uma gama de
assuntos no âmbito do inabitual, permitindo-lhe escrever
para os simples e os doutos, na linguagem desataviada que
todos entendem.
A ciência de servir é uma arte rara, exigindo dedicação
e persistência. Nela, o nosso Amigo exercita-se há muito
tempo, desinibido e despreconceituoso, como quem se
movimenta com a naturalidade própria dos que sabem da
sua vocação e não hesitam em seguir os rumos que devem
trilhar.
Escrever sobre “teoria e prática da doutrinação”,
apresentando o patrimônio provisionado durante pelo
menos dez anos ininterruptos de serviço ativo, no demorado
“diálogo com as Sombras”, não é tarefa fácil. A contribuição
de Hermínio, no entanto, foge ao comum dos livros de
divulgação doutrinária e evangélica, no campo espírita. É
mais um extraordinário documentário ou cartilha de
orientação, descendo aos pormenores daquilo que se pode
chamar de elaboração séria, metódica, gradativamente
desenvolvida, elucidativa de todo o contexto das
intercomunicações e interligações entre vários planos
vibratórios, no atendimento responsável e cristão da
assistência espiritual em desobsessão. São horas vividas
não apenas no círculo das tarefas mediúnicas propriamente
ditas, mas num mapa por assim dizer comportamental
durante as demais horas, na vigília e no sono, porquanto, na
verdade, como reconhece o autor, “o segredo da
doutrinação é o amor”.
Acreditamos que Hermínio C. Miranda alcançou com o
maior êxito o fim a que se propôs, porque não fez literatura:
seu livro é vida! É compreensão, ternura, doação!
***
O livro, a rigor, não necessita de explicações ou
apresentações, nem de interpretações; tudo nele é de
meridiana clareza, O próprio autor justifica cada detalhe,
cada ensino ou experiência e suas implicações, à medida
que adentra na exposição simples de coisas difíceis. Ele não
faz revelações especiais nem ensina princípios não sabidos,
em Espiritismo. No entanto, consegue aglutinar, à segura
argumentação que faz, as pequeninas verdades que as
desatenções dos estudiosos nem sempre permitem captar e
estereotipar nas mentes e corações, numa leitura ou estudo
ligeiro da vasta literatura espírita, mediúnica ou não.
É claro que, na tessitura de um livro desta natureza, o
autor nele coloca as próprias ideias, nem sempre
concordantes com as de outros autores igualmente
editorados pela Federação Espírita Brasileira. Trata-se do
exercício natural do sagrado direito que cada qual tem de
pensar por si mesmo e de abraçar os pontos de vista que
lhe parecem os melhores. Não compete à Federação
censurar opiniões, ainda quando não as encampe ou
oficialize, exceto quando entrem em choque com os
princípios fundamentais da Doutrina Espírita. Ora, Hermínio
C. Miranda é dos mais seguros estudiosos, defensores e
propagandistas daqueles princípios, com os quais todos os
seus pensamentos se afinam.
Assim, deixamos aos nossos leitores o encargo de
analisar tudo quanto o autor expõe ou sugere,
especialmente no que tange a locais para sessões práticas
de desobsessão e a métodos de trabalho, pois o mesmo
direito que tem o expositor de argumentar e aconselhar,
têm os demais, de aceitar, ou não, os seus argumentos e
conselhos. O que importa, acima de tudo, é que “Diálogo
com as Sombras” é livro doutrinariamente correto e
constitui valiosa contribuição para o estudo e a prática dos
serviços de desobsessão espírita.
***
Questão séria, para a qual gostaríamos de pedir
atenção, é a da zoantropia, mais comumente citada como
licantropia, O autor trata detalhadamente desse assunto,
com proficiência. A propósito, recordamos o livro
“Libertação”, de André Luiz: quando os originais foram-nos
enviados, o diretor incumbido da análise inicial dessas
páginas mediúnicas considerou um tanto “exageradas” as
afirmativas e detalhes pertinentes a um caso de licantropia.
Pediu confirmação ao Espírito e recebeu, como resposta,
uma carta do médium F. C. Xavier, em que transmitia a
solicitação do autor espiritual, no sentido de retirar dos
originais aquelas palavras que lhe haviam suscitado
dúvidas, com a explicação seguinte: “Se o nosso amigo não
pôde admitir isso, é sinal de que precisamos aguardar outra
oportunidade, pois os leitores, com maior razão, também
não admitirão.” As palavras da carta do médium eram
aproximadamente essas, mas o sentido exatamente esse.
Mas o comentário particular de Chico Xavier, a pessoa
que nos merece a maior credibilidade, foi este: “E na
verdade, mesmo com a parte que André Luiz sugeriu fosse
eliminada do texto, as coisas ainda ficavam bem longe da
realidade, que é bem pior do que pensamos.”
***
O problema da obsessão - grande flagelo da
Humanidade - é tão grave, que a respectiva cura chegou a
ser objeto de mensagens de Allan Kardec, em 1888 e 1889,
no Rio de Janeiro/RJ, pelo médium Frederico Júnior, dada a
preocupação da Espiritualidade Superior no sentido de o
assunto ser encarado com a seriedade e o preparo precisos,
especialmente no campo do amor e da exemplificação das
virtudes cristãs. Os referidos ditados estão incorporados no
opúsculo “A Prece segundo o Evangelho”, de Allan Kardec,
editado pela FEB (33ª edição, 6250 milheiro, 1979).
***
Terminadas estas páginas iniciais, convidamos o leitor a
conhecer o livro de Hermínio. Estamos certos de que, ao lê-
lo, os exemplos que encerra causar-lhe-ão a nítida
convicção, mais que as palavras articuladas, de que o
Espiritismo é, na verdade, o Consolador Prometido por
Jesus.
Rio de Janeiro/RJ
22 de junho de 1979
FRANCISCO THIESEN
Presidente da Federação Espírita Brasileira
INTRODUÇÃO
Creio necessário declarar, no pórtico deste livro, que, a
meu ver, nenhuma obra acerca dos aspectos experimentais
do Espiritismo terá valor por si mesma, isolada do contexto
dos cinco documentos básicos da Doutrina, isto é:
* O Livro dos Espíritos;
* O Livro dos Médiuns;
* O Evangelho Segundo o Espiritismo;
* O Céu e o Inferno; e
* A Gênese.
É claro que a lista não termina aí. Há, na literatura
espírita, um acervo considerável de livros que constituem
leitura obrigatória para todo aquele que se propõe a um
trabalho sério junto aos companheiros desencarnados, pois
não nos devemos esquecer de que o Espiritismo, como
doutrina essencialmente evolutiva, não termina com
Kardec; começa com ele.
O relacionamento com o mundo espiritual se reveste de
enganosa simplicidade. Realmente, em princípio, qualquer
pessoa dotada de faculdades mediúnicas, mesmo
incipientes, pode estabelecer contacto com os
desencarnados.
Consciente ou inconscientemente, serena ou
tumultuadamente. Alguns o fazem compulsoriamente ou
com relutância: outros com espontaneidade; uns com
respeito e amor, outros com leviandade e indiferença: e
muitos sem mesmo perceberem o que se passa e o que
deve ser feito para ordenar um fenômeno que, como tantos
outros, é natural, nada tendo de místico, fantástico ou
sobrenatural, O importante é que, ao Iniciarmos o trato com
os Espíritos desencarnados, voluntária ou
involuntariamente, estejamos com um mínimo de
preparação, apoiada num mínimo de informação. Aquele
que se atira à fenomenologia mediúnica sem estes
petrechos indispensáveis, ou aquele que é arrastado a ela
pela mediunidade indisciplinada ou desgovernada, estará se
expondo a riscos imprevisíveis para o seu equilíbrio
emocional e orgânico. A prática mediúnica não deve ser
improvisada, pois não perdoa despreparo e ignorância. O
mundo espiritual é povoado de seres que foram homens e
mulheres como nós mesmos, encontrando-se em variados
estágios de desenvolvimento moral. Pelo nosso mundo de
encarnados podemos inferir o outro, do lado de lá. Ali, como
aqui, encontramos espíritos nobres e dotados de atributos
morais avançados, mas, igualmente, a massa imensa
daqueles que se acham da média para baixo, até os
extremos mais dolorosos do aviltamento moral, da
ignorância, da revolta, da angústia, do rancor, da vingança.
Como a base do fenômeno mediúnico é a sintonia espiritual,
e como ainda nos encontramos todos em estágios inferiores
da evolução, nos afinamos com maior facilidade com
aqueles que também se acham perturbados por
desequilíbrios de maior ou menor gravidade.
Isto não quer dizer, obviamente, que estejamos à inteira
mercê dos espíritos perturbados e perturbadores; velam por
nós companheiros de elevada categoria, sempre dispostos a
nos ajudar, mas não nos podemos esquecer de que eles não
podem fazer por nós as tarefas de que nos incumbem, nem
livrar-nos das nossas provações, e muito menos coibir os
mecanismos do nosso livre-arbítrio. Podemos,
evidentemente, contar com a boa-vontade e a ajuda desses
irmãos maiores, e, por conseguinte, com a sua proteção
carinhosa, não à custa de oferendas, de ritos mágicos, de
símbolos, de “trabalhos” encomendados, mas sim, com um
procedimento reto, no qual procuremos desenvolver em nós
mesmos o esforço moralizador, o aprendizado constante e a
dedicação desinteressada ao semelhante. Nunca somos tão
pobres de bens materiais e espirituais que não possamos
doar alguma coisa ao companheiro necessitado, seja o pão
ou a palavra de consolo e solidariedade. É com estas
atitudes que nos asseguramos da assistência de irmãos
mais experimentados e evoluídos, não para nos livrar das
nossas dores, nem para cumprir mandados nossos ou
atender às nossas menores exigências e súplicas, mas para
nos concederem o privilégio da sua presença amiga, da sua
inspiração oportuna, e da sua ajuda desinteressada, naquilo
que for realmente proveitoso ao nosso espírito, e não
naquilo que julgamos o seja.
Nunca é demais enfatizar que a organização de um
grupo de trabalho mediúnico começa muito antes de dar-se
início às suas tarefas propriamente ditas, com o estudo
sistemático das obras básicas, e das complementares, da
Doutrina Espírita: as de Allan Kardec, Léon Denis, Gabriel
Delanne, Gustavo Geley, e certos trabalhos de origem
mediúnica, como os de André Luiz. Muita ênfase precisa ser
posta no estudo dos escritos que cuidam do complexo
problema da mediunidade, suporte indispensável de toda a
tarefa programada.
Assim, é preciso insistir: a formação ou nascimento de
um grupo é muito importante, e deve ser cercado dos
mesmos cuidados que precedem à formação e ao
nascimento de uma criança: ou seja, a educação dos pais.
Estão preparados para a tarefa? Desejam o filho?
Dispõem-se aos sacrifícios e renúncias que o trabalho
impõe?
Estão conscientes das suas responsabilidades, dos
percalços e das lutas que os esperam? Para que desejam o
filho? Sonham fazer dele um grande homem, no sentido
humano, forçando-o a uma tarefa acima de suas forças,
para a qual não esteja preparado, ou se dispõem a criar
condições para fazer dele um ser digno, pacificado e
amoroso? Estão prontos a receber a tarefa com humildade?
E, acima de tudo: estão prontos e dispostos a se doarem
integralmente, sem reservas, ao amor ilimitado, sem
condições e sem imposições? O amor não exige
recompensa. O amor, dizia Edgar Cayce, não é possessivo;
o amor é.
Se estamos com essas disposições, podemos começar. E
começar pelo planejamento, e não pela execução
atabalhoada e sem preparo. Examinaremos o assunto por
partes e com as cautelas devidas.
Voltaremos às questões que formulamos acima, ao
comparar o grupo nascente com um filho. Antes, ainda no
corpo desta conversa inicial, uma observação de caráter
pessoal: ao planejar a elaboração deste livro, julguei
necessária uma pequena introdução que situasse a obra em
seu contexto próprio. Não foi preciso escrevê-la, pois já
estava pronta. “Reformador” de fevereiro de 1966 publicou
um artigo intitulado “Espiritismo sem sessão espírita?”, que
a seguir transcrevo, por interessar aos objetivos deste livro.
***
“Encontramos, às vezes, confrades que não gostam de
frequentar sessões espíritas. As razões que os levam a essa
decisão - creio eu - são respeitáveis, pois cada um de nós
sabe de si e do que, modernamente, se convencionou
chamar de suas motivações.
É preciso, entretanto, examinar de perto essa posição e
ver o que contém ela de legítimo, não apenas no interesse
da doutrina que todos professamos, mas também no
interesse de cada um.
De fato, há alguns problemas ligados à frequência de
trabalhos mediúnicos. O primeiro deles - e dos mais sérios -
é o da própria mediunidade, essa estranha faculdade
humana sobre a qual ainda há muito o que estudar. Outra
dificuldade ponderável é a organização de um bom grupo
que se incumba, com regularidade e seriedade, das tarefas
a que se propõe.
Há outros problemas e dificuldades de menor
importância, mas creio que basta considerarmos aqui
apenas esses dois - o que não é pouco.
A análise das questões mais complexas quase sempre
começa pelas definições acacianas e de vez em quando é
bom a gente recorrer a velhos conceitos para iluminar
obstáculos novos.
O Espiritismo doutrinário nasceu das práticas
mediúnicas, delas se nutre e delas depende, em grande
parte, o seu desenvolvimento futuro. O intercâmbio, entre o
mundo espiritual e este, somente assumiu expressão e
sentido filosófico depois que Kardec ordenou e metodizou os
conhecimentos adquiridos no contato com os nossos irmãos
desencarnados. Parece claro, também, que o
equacionamento e a solução das grandes inquietações
humanas vão depender, cada vez mais, da exata
compreensão do mecanismo das relações entre esses dois
mundos que, no final de contas, não são mais que um único,
em planos diferentes. Logo, a prática mediúnica é, não
apenas aconselhável, como indispensável ao futuro da
Humanidade.
Convém pensar também que a própria dinâmica da
Doutrina Espírita exige esse intercâmbio espiritual, em
primeiro lugar para que se observe e estude o fenômeno da
mediunidade, suas grandezas, os riscos que oferece, as
oportunidades de aprendizado e progresso que contém, não
apenas para o médium, mas para aquele que assiste aos
trabalhos e deles participa.
É claro que a mediunidade tem um mecanismo muito
complexo e até agora poucos foram os cientistas dignos
desse nome que se dedicaram, realmente, a fundo e com a
mente desarmada de preconceitos, ao estudo dela. Mas se
não a observarmos em ação, como poderemos almejar
compreendê-la um dia? Só aprendemos a nadar pulando
dentro d’água sob a orientação de quem já tenha, a
respeito, noções satisfatórias. Se é incompleto o
conhecimento sem a prática mediúnica, também o é o
exercício desta sem o estudo daquilo que já se sabe sobre o
fenômeno.
Evidentemente, precisamos estar atentos ao puro
mediunismo sem objetivos mais elevados, como também ao
animismo de certos médiuns mais interessados nas suas
próprias ideias que na transmissão daquilo que recebem dos
companheiros desencarnados.
Há riscos, sim. De mistificações por parte de pobres
irmãos carecentes de entendimento. De aceitação de
inverdades sutilmente apresentadas sob fascinantes
roupagens. De aflições - embora passageiras - causadas
pelo desfile das angústias de irmãos sofredores.
Será, porém, que isso constitui motivo para nos
privarmos das recompensas do aprendizado, das alegrias
que experimentamos ao encaminhar às trilhas da paz um
Espírito em crise?
Há um universo a explorar. Há uma Humanidade inteira
clamando por ajuda, esclarecimento, compreensão e
caridade no chamado mundo espiritual. Seus dramas e suas
angústias não são puramente individuais. O Espírito que
erra, invariavelmente prejudica a alguém mais. Os erros que
cometemos, prendem-nos a uma cadeia de fatos e de seres
que se estende pelo tempo afora. Nunca o drama de um
Espírito é apenas seu. Há sempre, nesta vida ou em
algumas das anteriores, elos que nos ligam a outros seres e
outras dores. Aquele que odeia, muitas vezes já está
maduro para o perdão - basta uma palavra serena de
esclarecimento, um gesto de tranquila compreensão para
libertar, não apenas o seu espírito da tormenta do ódio, mas
também o irmão que lhe sofre as agressivas vibrações,
provocadas por antigas mágoas. Aos que ainda desejam
vingar-se de antiquíssimas ofensas, mostramos a inutilidade
do seu intento e os novos problemas com que virão agravar
o seu futuro. Ao que ainda se prende a superadas teologias,
ajudamos a compreender a nova realidade que tem diante
de si. A todos os que erraram, consolamos com a nossa
própria imperfeição e com a certeza da recuperação. Os que
já atingiram elevados patamares de conhecimento e amor,
ouvimo-los com admiração e proveito. Muitos nos buscam
apenas para trazer notícias das suas próprias conclusões, da
nova compreensão diante desse mistério sempre renovado
da vida.
Multidões de seres que aqui viveram inúmeras vezes,
como criaturas encarnadas, lá estão à espera de ajuda e, no
entanto, são tão poucos os grupos que se dispõem a esse
trabalho que tão altos dividendos paga em conhecimento e
progresso espiritual.
No exercício constante dessa atividade, vemos, cada vez
melhor, a solidez inabalável da doutrina que nos legaram os
Espíritos, através da lúcida inteligência de Kardec. Crentes
ou descrentes, católicos ou protestantes, todos nos vêm
confirmar as verdades mestras do Espiritismo: as de que o
Espírito sobrevive à morte física, de que reencarna, de que
progride e aprende, tanto na carne como no Espaço; de que
as leis universais são perfeitas, iniludíveis, mas flexíveis,
pois exigem reparação, ao mesmo tempo que fornecem os
recursos para o reencontro do Espírito com o seu próprio
destino. Nos dramas a que assistimos nas sessões
mediúnicas, aprendemos a contemplar a transitoriedade do
mal, a amarga decepção do suicida, a crueza do
arrependimento daquele que desperdiçou o seu tempo na
busca ansiosa das ilusões mundanas, a inutilidade das
posições humanas, o ônus terrível da vaidade, a tensa
expectativa de um novo mergulho na carne redentora, na
qual o Espírito fica, pelo menos, anestesiado nas suas
angústias.
Lições terríveis ministradas com lágrimas e gritos de
desespero por aqueles que assumiram débitos enormes
diante da Lei; lições de doce tranquilidade e de serena
humildade dos que já superaram as suas fraquezas e vêm,
sem ostentação, apenas para mostrar como é o Espírito
daquele que já venceu a si mesmo, na milenar batalha
contra as suas próprias deficiências. Muitas e variadas
lições, aprendizado extenso e profundo para todos os que
desejarem realmente apressar os passos e encurtar a
caminhada que leva a Deus. Por que, então, desprezar esse
trabalho magnífico que tanta recompensa nos traz e
também aos nossos irmãos do outro lado da vida?
Quanto à organização dos grupos, não será tão difícil
assim. Há estudos sérios e muito seguros de orientação
doutrinária a respeito. É bom que o grupo seja pequeno, de
preferência familiar, composto de pessoas que se
harmonizem perfeitamente e que estejam interessadas num
trabalho sério e contínuo. Que não se deixe desencorajar
por dificuldades ou pela aparente insignificância dos
primeiros resultados, nem se deixe fanatizar ou fascinar por
pseudoguias. Aos poucos, demonstrada a seriedade de
propósitos, os trabalhos irão surgindo, sob a orientação de
Espíritos esclarecidos. A cada bom grupo de seres
encarnados dispostos à tarefa, corresponderá um grupo
equivalente de Espíritos, num intercâmbio salutar de
profundas repercussões, pois Espiritismo é doutrina, mas é
também prática mediúnica, e todos nós, ainda que nem
sequer suspeitemos disso, temos compromissos a executar,
ajustes a realizar com irmãos que nos aguardam
mergulhados em ódios e incompreensões, que se
envenenam a si mesmos e a nós próprios.
“Lamentar a desgraça - dizia Horace Mann - é apenas
humano; minorá-la é divino.”
***
E assim, creio que estamos prontos para entrar na
matéria propriamente dita.
Rio de Janeiro/RJ
1976
HERMÍNIO C. MIRANDA
PRIMEIRA PARTE - A INSTRUMENTAÇÃO
1 - O GRUPO
Voltemos às perguntas formuladas na introdução.
Em primeiro lugar, o preparo, que consiste na educação
e na instrução dos componentes do grupo que se planeja,
nos leva a outro quesito preliminar: - quem devem ser os
componentes?
A tarefa começa, pois, com a seleção das pessoas que
deverão participar dos trabalhos. Como todo grupamento
humano, este também deve ter alguém que assuma a
posição de coordenador, de condutor. É preciso, não
obstante, muita atenção e vigilância desde esta primeira
hora. Esse motivador, ou iniciador, não poderá fugir de
certa posição de liderança, mas é necessário não esquecer
nunca de que tal condição não confere a ninguém poderes
ditatoriais e arbitrários sobre o grupo. Por outro lado, o líder,
ou dirigente, terá que dispor de certa dose de autoridade,
exercida por consenso geral, para disciplinação e
harmonização do grupo. Liderar é coordenar esforços, não
impor condições. O líder natural e espontâneo é aceito
também com naturalidade e espontaneidade, sem declarar-
se tal. É até possível que, nos trabalhos preliminares de
organização do grupo, surja a sutil faculdade da liderança
em pessoas nas quais mais inesperada ela parecia. Nestas
condições, aquele que iniciou a ideia deve ter grandeza
suficiente para reconhecer que o outro, que revelou
melhores disposições, está mais indicado para a função do
que ele próprio. Num grupo espírita, todos são de igual
importância.
O problema das rivalidades é tão antigo como a própria
mediunidade. O apóstolo Paulo tratou dele, na sua notável
Primeira Epístola aos Coríntios, capítulos 12, 13 e 14, e,
especificamente, nos versículos 4 a 30 do capítulo 12.*
* Seria oportuna, sob este aspecto, a leitura do artigo “O Livro dos Médiuns de
Paulo, o Apóstolo”, em “Reformador” de fevereiro de 1974.
O primeiro passo, portanto, que deve dar alguém que
pretenda organizar um grupo mediúnico é selecionar as
pessoas que irão compô-lo. É bom que isto se faça mesmo
antes de se decidir que tipo de trabalho será executado - do
que falaremos mais adiante - e quem será incumbido da
direção das tarefas. Os motivos são de fácil entendimento.
Em primeiro lugar, o problema da liderança a que acima
aludimos: é possível que a pessoa mais indicada para dirigir
os trabalhos não seja aquela que se propõe, de início, a
organizar o grupo, cumprindo-lhe provar, no decorrer das
gestões preparatórias, a força tranquila e segura da sua
personalidade. Em segundo lugar, o grupo será a soma dos
seus componentes, disporá das forças de cada um e terá
como pontos fracos as fraquezas dos seus participantes. Em
terceiro lugar, a natureza dos trabalhos a serem
programados dependerá dos diferentes tipos de
mediunidade que for possível reunir, do grau de
sensibilidade, tato, inteligência, conhecimento e
evangelização de cada um e de todos, e da qualidade do
relacionamento pessoal entre os que se propõem trabalhar
juntos nesse campo.
Assim, não basta juntar alguns amigos e familiares,
apagar a luz e aguardar as manifestações. Que amigos e
familiares vamos selecionar? Essa tarefa é extremamente
delicada e crítica, pois dela vai depender, em grande parte,
o êxito ou fracasso do grupo. Será recomendável que a
pessoa que pretenda fundar um grupo, mesmo de âmbito
doméstico, de proporções modestas e sem grandes
ambições, guarde consigo mesma, por longo tempo, as suas
intenções; que se entregue à prece constante, à meditação
e ao estudo silencioso e demorado de cada pessoa; que
examine, sem paixões e sem preferências, com toda a
imparcialidade possível, as potencialidades de cada um,
bem como os seus defeitos, virtudes, inclinações,
tendências e temperamento. Não nos devem guiar aqui as
preferências pessoais: - “Vou incluir Fulano ou Sicrana
porque gosto dele ou dela.” É essencial que todos se
estimem no grupo, mas só isto não basta. Podemos amar
profundamente uma criatura que não ofereça condições
mínimas para um trabalho tão sério como esse. É claro, por
outro lado, que não é aconselhável incluir aqueles que,
embora ofereçam outras condições favoráveis, se coloquem
na posição de adversários e críticos demolidores de
qualquer outro componente do grupo. Até a discordância
ideológica acentuada, mesmo em outros setores do
pensamento, pode criar dificuldades ao trabalho. Isto não
quer dizer que todos tenham que pensar igualzinho, ou se
transformarem em criaturas invertebradas, sem ideias
próprias, sem personalidade e opinião. A franqueza é
também um dos ingredientes necessários ao bom trabalho,
desde que não alcance os estágios da rudeza que fere, mas
a homogeneização dos ideais e das aspirações é condição
importante para o bom entendimento que precisa
prevalecer durante todo o tempo. Um só membro que
desafine dessa atmosfera de harmonia, poderá transformar-
se em brecha por onde espíritos desajustados introduzirão
sutilmente fatores de perturbação e eventual desintegração
do grupo.
É preciso entender, logo de início, que os componentes
encarnados de um grupo são apenas a sua parte visível, O
papel que lhes cabe é importante, por certo, mas nada se
compara com as complexidades do trabalho que se
desenrola do outro lado da vida, entre os desencarnados. Lá
é que se realiza a parte mais crítica e delicada das
responsabilidades atribuídas a qualquer grupo mediúnico,
desde o cuidadoso planejamento das tarefas até a sua
realização no plano físico, no tempo certo. Os componentes
encarnados já fazem bastante quando não atrapalham, não
perturbam, não interferem negativamente. É óbvio que
ajudam de maneira decisiva, quando se portam com
dignidade, em perfeita harmonia com o grupo; mas se não
puderem ajudar, que pelo menos não dificultem as coisas. É
melhor, por isso, recusar, logo de princípio, um participante
em perspectiva, sobre o qual tenhamos algumas dúvidas
mais sérias, do que sermos constrangidos, depois, a dizer-
lhe que, infelizmente, tem que deixar o grupo, por não se
estar adaptando às condições exigidas pelo trabalho.
É por isso que se recomenda uma longa meditação
antes de decidir quanto à composição humana do grupo,
para não fazermos o convite senão àqueles dos quais
podemos contar com um mínimo de compreensão,
entendimento e entrosamento com os demais.
Isto nos leva a uma outra questão, que deve ser logo
decidida:
Quantos componentes encarnados deve ter um grupo?
A experiência recomenda que os grupos não devem ser
muito grandes, pois, quanto maiores, mais difícil mantê-los
em clima de disciplina e harmonia. Léon Denis, em seu livro
“No Invisível”, sugere de quatro a oito pessoas. O grupo
pode funcionar bem até com duas pessoas, pois, segundo a
palavra do Cristo, bastará que dois ou mais se reúnam em
seu nome, para que Ele aí esteja.
É claro, porém, que um grupo muito pequeno tem suas
possibilidades também limitadas. No caso de apenas dois,
por exemplo, um teria que ser o médium e o outro o
doutrinador, e o médium não teria condições de prolongar o
trabalho sem grande desgaste psíquico, mas é certo que,
mesmo assim, alguma coisa séria poderia ser realizada.
Acima dos oito componentes sugeridos por Denis, vai-se
tornando mais difícil a tarefa, não apenas do dirigente
encarnado do grupo, como de seus orientadores invisíveis,
porque a equipe se torna mais heterogênea, o pensamento
divaga, quebra-se com frequência o esforço de
concentração, e o prejuízo é certo para a tarefa. É possível,
no entanto, se alcançada impecável homogeneização, fazer
funcionar razoavelmente bem um grupo com mais de oito
pessoas, mas acima de doze vai-se tornando bastante
problemática a sua eficácia.
É bom começar sem grandes ambições ou planos
grandiosos. O mais certo é que, ao se planejar a instalação
de um grupo, ainda não saibamos quanto à intenção dos
espíritos que nos são familiares, nem quanto à natureza dos
trabalhos que pretendem realizar conosco. É certo, porém,
que, sempre que um grupo se dispõe a reunir-se, com a
finalidade de entrar em contacto com os desencarnados,
estes se apresentarão no momento oportuno. Isto é válido,
tanto para os que se dedicam, com seriedade e boas
intenções, quanto para aqueles outros que se reúnem para
se divertirem ou, pior ainda, para práticas condenáveis. Se a
intenção é apenas fazer passar o tempo, virão os espíritos
levianos, galhofeiros, fúteis e inconsequentes, quando não
claramente mal-intencionados, do que poderão resultar
obsessões penosas e tenazes.
E, assim, chegamos a outro aspecto da questão: Para
que desejamos um grupo? Para simples estudo da Doutrina?
Para conversar sobre Espiritismo? Para oferecer condições à
manifestação de espíritos familiares, que venham trazer
pequenas mensagens, mais ou menos íntimas? Para
experimentação e observação de natureza cientifica? Para
tarefas mais sérias, de caráter doutrinário? Para os
chamados trabalhos de desobsessão?*
* Desobsessão: Tratamento espírita, de pessoas que estejam sofrendo de
prejudicial interferência por espíritos, encarnados ou desencarnados. Espíritos
como nós que acabaram praticando o mal, mas como todos possuem
capacidade de recuperação. A desobsessão trata igualmente a vítima e o
obsessor. (Nota de U.E. Braga)
Esse ponto somente pode ser decidido, em definitivo,
depois que tivermos selecionado os companheiros
encarnados que vão compor a equipe. Por isso, logo que
tenhamos resolvido, no silêncio da meditação e da prece, de
que nomes deveremos cogitar para a composição do grupo,
convém convocar uma reunião, para exame e debate das
inúmeras questões que começam a colocar-se.
Essa reunião, obviamente não mediúnica, para a qual
deverão ser convidados aqueles cujos nomes foram
lembrados para uma consulta, será aberta com a leitura de
um texto evangélico e uma prece. Em seguida, aquele que
tomou a iniciativa de convocá-la fará uma breve exposição
de seus objetivos e intenções.
A reunião será conduzida com descontração e
espontaneidade, à medida que cada um apresentar sua
contribuição ao debate. Serão arrolados os médiuns
presentes, já atuantes, e os que tenham potencial
mediúnico suscetível de desenvolvimento.
Não está previsto no escopo deste livro um estudo sobre
o desenvolvimento da mediunidade, pois o assunto,
bastante complexo, tem sido tratado em várias obras de
confiança, especialmente em “O Livro dos Médiuns”, de
Allan Kardec. Léon Denis também oferece contribuição
valiosa, não só em “No Invisível”, mas, também, em outras
de suas obras. Recomenda-se, ainda, André Luiz, em
“Mecanismos da Mediunidade”, “Nos Domínios da
Mediunidade” e “Libertação”, bem como o livro
interpretativo de Martins Peralva “Estudando a
Mediunidade”, todos editados pela Federação Espírita
Brasileira.
Creio oportuno acrescentar que esses livros não se
dedicam especificamente a ensinar como desenvolver a
mediunidade, e, sim, a apresentar um panorama, tão
abrangente quanto possível, dos diversos aspectos dessa
notável faculdade humana, muito mais comum do que tanta
gente estaria disposta a admitir.
Não há fórmulas mágicas, nem ritos especiais para fazer
eclodir a mediunidade numa pessoa que a tenha em
potencial.
O desenvolvimento mediúnico é trabalho delicado, difícil
e muito importante, que exige conhecimento doutrinário,
capacidade de observação, vigilância, tato, firmeza e muita
sensibilidade para identificar desvios e desajustes que
precisam ser prontamente corrigidos, para não levarem o
futuro médium a vícios funcionais e até mesmo a
perturbações emocionais de problemática recuperação.
No passado remoto, esse encargo era de caráter
iniciático. O instrutor ia dosando seus ensinamentos
segundo as forças e a receptividade do discípulo, e este
somente chegava aos estudos mais avançados de
desenvolvimento de suas faculdades se ao longo do
processo viesse demonstrando, sistematicamente, as
condições mínimas exigidas para a tarefa a que se
propunha.
Evidentemente não há, hoje, necessidade de um guru
que leve o discípulo, por estágios sucessivos, até o ponto
ideal. O Espiritismo desmistificou o antigo ocultismo,
tornando o conhecimento básico acessível ao homem
comum. Não nos esqueçamos, no entanto, de que a técnica
do desenvolvimento mediúnico ainda exige atenção,
acompanhamento e orientação pessoal de alguém que
tenha condições morais e doutrinárias para fazê-lo. A
mediunidade, salvo casos especiais, não deve ser
desenvolvida isoladamente e sem apoio dos livros
essenciais ao entendimento dos seus componentes básicos.
Colocado num grupo harmonioso e bem assistido, em
que funcionem médiuns bem disciplinados e já em plena
atividade, é possível ao médium incipiente desenvolver,
pouco a pouco, suas faculdades. O dirigente do grupo deve
manter-se atento a essa possibilidade. De forma alguma,
porém, o treinamento mediúnico deve ser intentado com
base em obras suspeitas ou organizações que prometam
resultados prontos e maravilhosos em algumas lições. É
também uma imprudência forçar o desenvolvimento sem
nenhuma preocupação de estudar a questão nos livros que
compõem a Codificação de Kardec e a obra complementar
de seus continuadores.
***
Após esta digressão acerca do desenvolvimento
mediúnico, voltemos ao assunto em foco.
Ao cabo de algumas reuniões de debate e ajustamento,
o perfil do grupo que se pretende implantar já deve estar
suficientemente definido. Qualquer que seja a natureza do
seu trabalho - estudo, pesquisa, experimentação,
desobsessão - não deve iniciar suas tarefas especificas
senão ao cabo de um aprendizado mais ou menos longo das
questões doutrinárias. Mesmo que os componentes da
futura equipe se julguem suficientemente informados e
conhecedores da Doutrina dos Espíritos, vale a pena uma
revisão geral. Embora não gostemos de admitir, nosso
conhecimento é menor do que pensamos. Ademais, é difícil
reunir um grupo de pessoas - seis ou oito - que conheçam
igualmente, e em profundidade, todas as obras essenciais à
tarefa a que se propõem. O mais provável é que o grupo se
componha de gente em diferentes estágios de
conhecimento, desde aquele que tem apenas vagas noções,
até o que já possui conhecimentos mais profundos. Será útil
para todos um período de atualização de conhecimentos, a
começar, naturalmente, pelo “O Livro dos Espíritos”,
seguido de “O Livro dos Médiuns”.
Para não prolongar demasiadamente este período de
revisão, deve ser dada prioridade à “Parte Segunda” de “O
Livro dos Espíritos”, que cuida “Do mundo espírita ou
mundo dos Espíritos”, e à Segunda Parte de “O Livro dos
Médiuns”, a partir do capítulo 14 - “Dos Médiuns”.
A duração e frequência das reuniões de estudo serão
objeto de debate e ajuste entre os componentes. Não é
preciso fazer a leitura de cada capítulo no decorrer das
reuniões, desde que todos o tenham estudado, segundo a
programação acordada, durante o período que vai de uma
reunião à seguinte. A reunião se destina à verificação do
progresso que cada um realiza na revisão, e ao debate e
esclarecimento das dúvidas surgidas. Seu objetivo final será
sempre o de homogeneizar os diversos graus de
conhecimento doutrinário, para obter a integração do grupo.
Não deve subsistir nenhuma preocupação com o tempo
despendido nesse trabalho preparatório, que poderá ser
mais longo ou mais curto, segundo o grau de conhecimento
dos seus componentes, a boa-vontade e a dedicação de
cada um.
Por algum tempo, até que se consiga alcançar uma fase
de melhor preparo doutrinário, torna-se aconselhável serem
evitadas as manifestações mediúnicas, mesmo que haja no
grupo médiuns já desenvolvidos. De certo ponto em diante -
e isto fica a critério daquele que se responsabiliza por esta
fase dos trabalhos - as tarefas mediúnicas poderão ser
iniciadas em paralelo com as de estudo. Nesse caso, o
estudo precederá as manifestações e deverá, ainda por
algum tempo, que poderá ser longo, ocupar boa parte do
horário.
Nunca é demais enfatizar a importância e utilidade
desta fase preparatória, pois não apenas os encarnados se
beneficiam dela, como também os desencarnados que,
certamente, começarão a ser trazidos pelos benfeitores
espirituais, para aproveitarem os ensinamentos ministrados.
Esse período é, ainda, muito útil para afinar o grupo, ajustar
seus vários componentes, revelar as tendências e
potencialidades de cada um e, até mesmo, por um processo
natural de seleção, excluir, sem atritos ou desgosto, aqueles
que não se sentirem em condições de se entregar ao
trabalho, que exige, certamente, renúncia, dedicação,
assiduidade, tolerância, estudo e amor. Os impacientes
deixarão o grupo espontaneamente, em processo de
exclusão natural. Não que sejam impuros (por favor!), mas
por ser melhor que abandonem a tarefa pela metade, do
que insistirem em ficar, em prejuízo dos resultados. No
primeiro caso, estariam prejudicando apenas a si mesmos;
no segundo, sacrificariam todo o conjunto. Talvez em outra
oportunidade, mais adiante, resolvam dedicar-se com maior
entusiasmo e firmeza. Tarefas como essas não podem ser
impostas, nem forçadas; têm que se apoiar num impulso
interior, no desejo de servir, de apagar-se, se necessário,
dentro da equipe, de modo que os resultados obtidos sejam
impessoais, coletivos, não creditáveis exclusivamente ao
trabalho individual deste ou daquele componente do grupo.
Quem não estiver disposto a aceitar essas condições não
está preparado para o trabalho.
A essa altura, portanto, o grupo já deverá estar com o
seu perfil suficientemente nítido. Já se sabe quais os que o
compõem, quais são os médiuns, quem se revelou com
melhores condições de liderança e tato na condução da
equipe, e qual a natureza do trabalho a que esta deve
dedicar-se, bem como a duração e frequência das reuniões
(sobre o que falaremos, ainda, em outro ponto deste livro).
É, então, chegado o momento de especificar a finalidade
e os objetivos do grupo.
A primeira grande divisão consiste em saber se o grupo
vai dedicar-se apenas a estudos ou a trabalhos
experimentais. Não que uma coisa exclua a outra, mas a
definição é importante porque, como diziam os antigos,
quem navega sem destino não sabe aonde vai.
A natureza do trabalho pode variar bastante, segundo os
interesses e inclinações de seus componentes,
especialmente daqueles que se dedicam à organização da
equipe. É possível que desejem apenas à experimentação
de caráter puramente científico, com ênfase na
fenomenologia, o que seria uma tarefa quase de laboratório.
Não há muito a dizer aqui sobre este aspecto, dado que o
assunto escapa à minha área de competência e experiência.
Alguns grupos, desinteressados do aspecto prático,
podem ser constituídos apenas para o estudo teórico da
doutrina. Também são válidos, é claro. Outros podem
combinar o estudo teórico com a experimentação científica
ou mediúnica. Este livro está mais voltado para esta última
opção, e é sobre ela que nos fixaremos.
Suponhamos, pois, que o grupo se resolva pelo trabalho
de desobsessão.
Voltemos à imagem do filho. Já decidimos que
desejamos o trabalho, já nos convencemos, após algum
tempo de estudo teórico, de que estamos preparados para
ele. Estamos igualmente dispostos aos sacrifícios e às
renúncias que o trabalho impõe. A tarefa precisa ser
desenvolvida com muita assiduidade e continuidade
ininterrupta. Nem sempre estaremos fisicamente dispostos
a ela, em virtude do cansaço, das lutas naturais da vida
diária, do desgaste e das tensões provocados pela atividade
profissional, dos inconvenientes oriundos de pequenas
indisposições orgânicas.
O dia destinado à reunião exige renúncias diversas,
pequenas, mas às quais nem sempre estamos
acostumados: moderação e vigilância, por exemplo. Como
os trabalhos são usualmente realizados à noite, não
podemos destiná-la ao convívio da família, aos passeios, às
visitas, ao relaxamento, à leitura de livro recreativo ou à
novela de televisão. É um dia de recolhimento íntimo, ao
qual temos que nos habituar, aos poucos. Estamos cientes
disso.
Da mesma forma, encontramo-nos perfeitamente
conscientizados das responsabilidades que assumimos.
Vamos nos defrontar com espíritos desajustados que, no
desespero em que se precipitaram, voltam-se contra nós,
muitas vezes sem razão alguma, senão a de que estamos
tentando despertá-los para realidade extremamente
dolorosa, da qual se escondem aflitivamente. A
responsabilidade é grande, pois, e sabemos disso.
Encontraremos percalços e nos empenharemos em lutas
remidas pelo bem. Mesmo assim, desejamos o grupo. Um
pouco de humildade nos fará, aqui, um bem enorme.
Não planejamos um grupo para reformar o mundo, nem
para conquistar todos os grandes espíritos que se debatem
nas sombras. Haveremos de nos preparar apenas para a
nossa pequena oferenda. Os orientadores espirituais
saberão o que fazer dela, porque, muito melhor do que nós,
estão em condições de avaliar as nossas forças, recursos,
possibilidades e intenções, bem como as nossas fraquezas.
O planejamento é realizado no mundo espiritual. A nós,
encarnados, caberá executá-lo, dentro das nossas
limitações. De tudo isto estamos conscientes. Tudo isto
aceitamos. Resta o compromisso do amor fraterno, que não
pode ser parcial, condicionado, a meio coração, reservado;
tem de ser total. Começa com o relacionamento entre os
componentes do grupo, que precisa apoiar-se no perfeito
entrosamento emocional de todos, para o que, obviamente,
é indispensável que todos se estimem e se respeitem. Sem
isso, impraticável seria doar o amor de que necessitam os
irmãos desencarnados que nos procurarem, movidos pela
esperança secreta de que os conquistemos para as alegrias
do amor fraterno. É nessa oportunidade, que se renovará
em todos os encontros, que colocaremos em prática aquele
sábio ensino de Jesus, que nos recomenda amar os nossos
inimigos. Muitos espíritos, em doloroso estado de desajuste
emocional, se apresentarão, diante de nós, como
verdadeiros inimigos, irritados, agressivos, a deblaterarem
em altas vozes, indignados com a nossa interferência em
seus afazeres. Sem aquele amor incondicional que nos
recomendava o Cristo, como iremos oferecer-lhes a
segurança da compreensão e da tolerância de que tanto
necessitam?
***
Estão resolvidas, portanto, as preliminares. Temos o
grupo montado e já definimos os seus objetivos. A próxima
questão que se coloca é: onde e quando reuni-lo?
Consideremos primeiro a segunda parte. A frequência as
reuniões é usualmente de uma vez por semana, à noite.
Dificilmente um grupo terá condições de reunir-se
regularmente, mais de uma vez por semana, durante vários
anos. Todos ou quase todos os seus componentes têm
compromissos sociais, familiares e até profissionais, que
tornam impraticável reuniões mais frequentes. A noite é
escolhida justamente porque, a partir de certa hora, estão
todos com as tarefas do dia concluídas. Uma boa sugestão
seria reservar, para os trabalhos mediúnicos, a segunda-
feira, a partir de 20h00m ou 20h30m, com duração máxima
de duas horas. Justifiquemos a escolha da segunda-feira. É
que ela sucede ao repouso mais longo do fim de semana,
quando já tivemos a oportunidade de nos refazer das
canseiras dos dias de atividade, tanto profissional quanto no
próprio grupo. Isto é especialmente válido para os médiuns,
nos quais o desgaste psíquico é sempre grande nos dias em
que atuam.
O outro aspecto da questão diz respeito ao local. As
sessões podem ser realizadas em casa ou convém buscar
outro local, de preferência um centro, com acomodações
especiais? Alguns confrades temem a realização de
trabalhos de desobsessão em casa, com receio da influência
negativa dos espíritos desarmonizados que são atraídos. A
questão é delicada e não pode ser respondida
sumariamente, sim ou não. Há uma porção de
condicionantes. Se for possível um local apropriado, num
centro espírita bem orientado, o trabalho deve ser feito aí.
Por outro lado, num lar tumultuado por disputas,
rivalidades, ciúmes, paixões subalternas e desajustes de
toda sorte, a realização de trabalhos de desobsessão poderá
agravar as condições, pois será difícil aos companheiros
desencarnados, que orientam o grupo, assegurar um clima
de equilíbrio e proteção, tanto para os espíritos trazidos
para serem atendidos, como para as pessoas que vivem na
casa. Num lar normal, porém, o trabalho mediúnico
equilibrado e bem dirigido, sob a proteção de orientadores
espirituais competentes e esclarecidos, pode funcionar sem
problemas e até com benefícios para a vida doméstica.
Isto não exclui a necessidade de vigilância e atenta
observação, pois é evidente que espíritos infelicitados pela
desarmonia interior tenderão sempre a transmitir sua
perturbação àqueles aos quais tiverem acesso, ou seja,
àqueles que deixarem cair suas guardas, criando brechas
por onde penetrem emissões negativas e inquietantes. Mas
isto acontece, haja ou não haja grupo mediúnico reunido em
casa. O que nos defende da investida de companheiros
infelizes das sombras não é a realização de sessões bem
distantes do local onde vivemos, é a prece, são as boas
intenções, é o desejo de purificar-se, de aperfeiçoar-se, de
servir. Para cobrar nossos compromissos, os espíritos
desajustados nos buscam em qualquer lugar, até nas
profundezas de esconderijos mais abjetos na carne, ou nas
furnas do mundo espiritual inferior.
Por outro lado - e isto vai dito com bastante pesar - nem
todos os centros oferecem condições ideais para o difícil
trabalho da desobsessão. Pode haver casos em que o
ambiente psíquico de uma instituição esteja sob a influência
de rivalidades, disputas internas, questões de ordem
material ou financeira, desorientações ou práticas que a
Doutrina Espírita não endossa e até mesmo condena
formalmente. Em tais condições, torna-se muito difícil um
trabalho mediúnico sério e responsável. Os espíritos
perturbadores poderão encontrar meios para neutralizar
tarefas que se anunciam, de início, promissoras. Não quer
isso dizer que não haja proteção e amparo por parte dos
espíritos bem-intencionados que nos assistem, mas, em
todo relacionamento com o mundo espiritual, há sempre a
parte que compete a nós realizar. Essa, os Espíritos não a
farão por nós. Seria o mesmo que mandar os filhos à escola
e fazer por eles todos os deveres.
O que garante a estabilidade de um bom grupo
mediúnico não é a sua localização física, geográfica; é o
equilíbrio psíquico, emocional, daqueles que o compõem.
Em ambiente perturbado, no lar ou no centro, qualquer
grupo torna-se vulnerável ao assédio constante das
vibrações negativas que cercam os seus componentes. Se
na vida diária, sob condições perfeitamente normais, já
somos tão assediados pelos cobradores invisíveis, é claro
que podemos contar com um esforço muito maior deles,
quando nos dedicamos à delicada tarefa de interferir com
as suas paixões, ódios e rancores.
Por outro lado, antigos comparsas de erros passados
procuram sempre impedir que caminhemos pela senda
áspera da recuperação, pois sabem que é com esses
processos que nos redimimos e nos colocamos ao abrigo de
suas investidas.
Nada de ilusões, pois. O trabalho de desobsessão não é
fácil, qualquer que seja o ambiente em que se realize, e, por
isso, não pode ser recomendado para um meio que, do
ponto de vista humano, já se encontre tumultuado e
desequilibrado.
O cômodo destinado às sessões deve ser escolhido com
critério e extremo cuidado. Precisa ser suficientemente
amplo e arejado, para acomodar bem todos os
participantes. Deve ser isolado, tanto quanto possível, das
demais dependências do prédio, sendo inadmissível, por
exemplo, para essa finalidade, uma passagem obrigatória
para aqueles que não participem dos trabalhos, como uma
sala de entrada que dê para a rua. A qualquer momento,
uma pessoa da casa ou um visitante inesperado estaria
tocando a campainha ou batendo à porta, interrompendo o
curso das atividades. O cômodo não deve ter telefones que
possam tocar subitamente, causando choques e
perturbações àqueles que se acham concentrados. Deve
estar igualmente abrigado de ruídos de tráfego ou gritos
vindos da rua, sons de televisão ou rádio ligados nas
redondezas. Quando possível, deve ser provido de um
condicionador de ar, para as noites de verão intenso, dado
que o mal-estar físico dos participantes dificulta
sobremaneira o bom andamento dos trabalhos.
Mesmo nos demais dias da semana, a sala onde se
realizam os trabalhos mediúnicos deverá ser preservada. É
preciso evitar ali reuniões sociais, conversas descuidadas,
visitas inconvenientes, atos reprováveis. O ambiente
costuma ser mantido em elevado teor vibratório pelos
trabalhadores espirituais, o que se nota, especialmente nos
dias de reunião, ao se penetrar no cômodo.
O ideal, portanto, é ter um compartimento destinado
somente à tarefa mediúnica. Quando isso for impraticável,
que pelo menos se tenha o cuidado de usá-lo apenas para
atividades nobres, como a boa leitura, a música erudita, o
preparo de artigos e livros doutrinários, o estudo sério.
Essa recomendação é tão válida para a hipótese de se
desenvolver o trabalho em casa, como no centro espírita. A
proteção magnética da sala mediúnica deve ser preservada
com todo o cuidado, para não viciar os dispositivos de
segurança do trabalho, não perturbar a harmonia do
ambiente, não interferir com os meticulosos preparativos
realizados pelos companheiros desencarnados que dirigem
e orientam as tarefas. Ademais, com frequência, alguns
espíritos em tratamento ficam ali em repouso, por algumas
horas, de um dia para o outro, por exemplo, enquanto não
são removidos para instituições apropriadas.
Quem não puder manter essas condições mínimas, em
sua casa ou no centro, não deve tentar realizar trabalho
mediúnico de responsabilidade.
O ingresso na sala deve ser feito apenas minutos antes
do início da sessão. A recepção dos componentes e a
conversação inicial serão realizadas em outro cômodo, de
vez que, por maior que seja o cuidado, pode escapar um
pensamento impróprio ou uma expressão infeliz, numa
conversa descontraída, especialmente porque, após o
espaço de uma semana, que usualmente vai de uma
reunião à outra, quase todos gostam de relatar experiências
e acontecimentos. Torna-se, dessa maneira, mais difícil
manter um clima de absoluta vigilância. Com frequência, os
espíritos nos demonstram, depois, no decorrer dos
trabalhos, que se achavam presentes à conversação prévia.
Sempre que a conversa descamba para assuntos menos
nobres, eles fazem uma advertência amiga, pedindo que
fiquemos nos temas de caráter doutrinário ou, pelo menos,
em conversa neutra. Quer isto dizer que são proscritos
dessas conversações prévias, por motivos mais que óbvios,
os comentários sobre o crime da semana, sobre o último
casamento do astro da novela, a piada do dia, ou a derrota
do nosso time de futebol.
Em lugar desses assuntos, que deixaremos para as
frívolas reuniões sociais, a temática pode perfeitamente
girar em torno de questões doutrinárias. Uma boa sugestão
é a de recapitular a semana, naquilo que pode contribuir
para ajudar o desenvolvimento do trabalho.
Frequentemente, os médiuns e outros participantes têm
sonhos, recebem intuições ou pequenos avisos e conselhos
de Espíritos amigos, ou têm a relatar contatos mantidos, em
desdobramento, com mentores do grupo ou com os
companheiros que estão sendo tratados ou que ainda virão
a manifestar-se. Essa técnica se desenvolve com o tempo.
Depois que todos os componentes do grupo forem alertados
para as suas possibilidades e vantagens, passam a observar
com maior atenção os acontecimentos e anotar sonhos,
intuições e “recados” do mundo espiritual. É evidente que
esse material deve ser examinado e criticado com extremo
cuidado, para que o grupo não se embrenhe pela fantasia.
A experiência do pequeno grupo do qual faço parte tem
sido bastante positiva neste particular. De modo geral, os
“sonhos”, que são verdadeiros desdobramentos, trazem
informações valiosas, que os espíritos em tratamento
posteriormente confirmam, no decorrer do diálogo mantido
com o doutrinador.
Geralmente, esses contatos são preliminares ao
trabalho, iniciado no mundo espiritual, antes que a
manifestação se torne ostensiva no grupo mediúnico. O
tema é tratado mais amplamente em outro ponto deste
livro.
***
Minutos antes de iniciar a sessão, todos se dirigirão, em
silêncio, ao cômodo destinado aos trabalhos, e se sentarão
em torno da mesa. Cessaram, a essa altura, todas as
conversas. Aquietam-se as mentes, tranquilizam-se os
corações, desligam-se das preocupações do dia, relaxam os
músculos, e todos se predispõem ao trabalho.
A essa altura, a sala já está preparada pelos
responsáveis espirituais. No grupo do qual faço parte, um
dos médiuns viu, mais tarde, depois de recolhido ao leito,
em retrospecto, toda a sessão, desde o preparo da sala.
Neste caso, o cômodo destinado às reuniões fica
completamente isolado do corpo da casa, tendo acesso
apenas por uma passagem externa. Cerca de duas horas
antes, a sala está preparada fisicamente para a reunião:
mesa e cadeiras em posição, a água destinada à
fluidificação, os livros que contêm os textos destinados à
leitura, material para eventual psicografia, papel, lápis,
canetas esferográficas, o caderno de preces, o gravador
com a fita já também em posição para captar a mensagem
final dos mentores do grupo, uma pequena luz indireta,
preferivelmente de cor, pois a luz branca é prejudicial a
certos fenômenos mediúnicos. Sugere-se a cor vermelha.
Depois de todos esses preparativos, os trabalhadores do
mundo espiritual, segundo viu o nosso médium, em
retrospecto, inspecionam o cômodo, dando voltas em torno
da mesa e providenciando para que fossem estabelecidas
certas “ligações” com o plano superior, através de
aparelhos e “fios” luminosos que se prendiam às cadeiras
de cada membro. Esta é a razão pela qual cada um deve ter
seu lugar fixo em torno da mesa, uma vez que os
dispositivos ligados às cadeiras se destinam a facilitar o
trabalho, atendendo a características específicas de suas
mediunidades, bem como às condições do espírito que será
trazido para tratamento.
Outra recomendação, que parece útil, a esta altura,
ainda com relação à distribuição do pessoal em torno da
mesa: sempre que possível, o dirigente deve sentar-se de
forma a ficar ao lado dos médiuns e não face a face. Este
conselho é ditado pela boa técnica de reuniões profanas,
que recomenda que duas ou mais pessoas, que vão debater
um assunto, não devem defrontar-se, para não exacerbar o
antagonismo. A razão é puramente subjetiva e psicológica.
É mais fácil, a qualquer um de nós, alcançar um
entendimento com uma pessoa ao nosso lado, do que se ela
estiver exatamente diante de nós. A posição frente a frente
parece levantar em nós os resíduos e os depósitos
acumulados pelos milênios em que enfrentávamos nossos
adversários em lutas pela sobrevivência. No caso das
sessões mediúnicas, o objetivo não é disputar uma peleja
de vida ou morte, mas dialogar amistosamente com um
Espírito em estado de confusão e desespero, que desejamos
despertar para uma realidade que ele se recusa tenazmente
a aceitar. Se opomos, à sua agressividade, a nossa, nada
conseguiremos. Tudo deve ser feito, pois, para eliminar
qualquer empecilho que possa existir entre o comunicante e
o doutrinador.
Antes de prosseguir, façamos uma revisão geral na sala.
Os móveis estão na posição certa e os lugares
predeterminados. Todos devem ocupar os assentos em
silêncio, sem fazer alarido e arrastamento ruidoso de
cadeiras. Se há trabalhos de psicografia, o material
correspondente deve achar-se sobre a mesa: papel em
folhas soltas, vários lápis apontados e esferográficas, num
copo ou outro recipiente apropriado. Se os trabalhos forem
mistos, ou seja, de psicografia e incorporação, convém que
o material não fique ao alcance dos médiuns de
incorporação, pois um espírito mais turbulento pode, num
gesto brusco, atirar os objetos ao chão. Se há psicografia,
quem ficar ao lado do médium deve estar preparado para
remover as folhas, à medida que são escritas.
O caderno de preces destina-se a receber o nome dos
encarnados e desencarnados para os quais desejamos
solicitar ajuda espiritual. Os nomes devem ser escritos
antes de começar a sessão, sempre em silêncio, sem
comentários. Pode ser adotado o processo de indicar com
um pequeno sinal, em forma de cruz, os nomes das pessoas
desencarnadas. Na hora da prece, serão mentalizados pelos
interessados.
Lá está, igualmente, sobre a mesa, o livro que contém o
material de leitura preparatória, geralmente uma obra
mediúnica assinada por Emmanuel - “Vinha de Luz”, “Pão
Nosso”, “Fonte Viva”, ou por outro autor da preferência do
grupo.
A água destinada a ser fluidificada deve estar num jarro
de vidro, juntamente com pequenos copos, de preferência
ao lado da mesa, para que, num movimento mais violento,
não sejam atirados ao chão. Não convém que a água esteja
gelada: um amigo espiritual nos disse, certa vez, que a
água à temperatura ambiente se prestava mais facilmente à
fluidificação ou magnetização.
Quanto ao gravador de som, deve estar pronto para
entrar em ação com o mínimo de operações e ruídos: a fita
em posição, microfone já anteriormente testado, de
preferência posto sobre um móvel ao lado da mesa
principal. Se emitir luz intensa de algum visor, este deve ser
coberto com um objeto opaco. No momento oportuno,
bastará dar a partida. É conveniente, ao testá-lo, gravar a
data da sessão. No grupo que frequentamos, o gravador é
reservado para a mensagem final, usualmente transmitida
depois do atendimento dos companheiros necessitados.
Essas mensagens, acumuladas ao longo do tempo,
constituirão precioso repositório de ensinamentos e de
experiência no trato com os problemas do mundo espiritual,
e devem ser preservadas para referência futura.
Todos se encontram, assim, a postos.
As sugestões oferecidas a seguir não são, obviamente,
mandatórias, pois cada grupo acaba por encontrar a sua
dinâmica própria, dentro do roteiro mais ou menos comum a
esse tipo de trabalho. Proporemos, aqui, um roteiro típico,
que pode, evidentemente, sofrer variações, a critério de
cada grupo.
Depois de todos acomodados e em silêncio, é feita a
leitura do texto do dia, geralmente, em sequência, ou seja,
um para cada sessão. (A data da sessão deverá ser anotada
ao pé da página.) Alguns grupos costumam comentar o
texto lido; tais comentários não devem ser muito longos,
nem elaborados, nem guardar tom oratório: serão singelos e
sem retórica bombástica.
Em seguida, a luz mais intensa é apagada, restando
apenas a lâmpada mais fraca, que forneça iluminação
discreta, de preferência em cor suave, indireta, apenas
suficiente para se distinguir o ambiente, as pessoas e os
objetos. Convém retirar, neste momento, os objetos que se
encontrem sobre a mesa, pelas razões já apresentadas.
É feita a prece, que também não deve ser longa, nem
decorada, ou em tom de discurso: uma rogativa simples, na
qual se solicite a proteção para os trabalhos, a colaboração
dos amigos espirituais, a inspiração e a predisposição para
receber os companheiros aflitos com amor, tolerância e
compreensão.
Finda a prece, todos ficam recolhidos, em silêncio,
concentrados, atentos, mas em estado de tranquilidade e
relaxamento muscular.
Em alguns grupos, o dirigente encarnado dos trabalhos,
ou o mentor espiritual, costuma designar previamente os
médiuns que irão atuar, fixando-lhes até o número de
Espíritos que deverão atender, bem como os médiuns que
não deverão “dar passividade” a nenhum manifestante.
Embora se trate de uma posição respeitável e bem-
intencionada, com o propósito aparente de disciplinar as
atividades do grupo, não é recomendável o procedimento.
Procurarei apresentar as razões.
A designação prévia do médium pode criar neste uma
expectativa, e até certa ansiedade, que o leve a “forçar”
uma comunicação, e até mesmo levá-lo ao fenômeno do
animismo, se não estiver bem preparado para a sua tarefa e
habituado ao exercício da mediunidade vigilante. Não
convém correr esse risco, pois nem todos os grupos
estariam preparados para identificar a dificuldade e corrigi-
la. Por outro lado, não conhecemos, com precisão, o
planejamento realizado no mundo espiritual. É bem possível
que convenha encaminhar primeiro determinado Espírito,
por determinado médium; e se, por desconhecimento,
designamos outro médium, altera-se a sequência do
trabalho programado, o que acarretará adaptações de
última hora, que vão sobrecarregar os companheiros
desencarnados. É que os Espíritos a serem tratados
encontram-se ali, no ambiente, e muitas vezes, depois de
presenciarem um atendimento particularmente dramático
ou tocante, o próximo companheiro já vem predisposto e
mais receptivo à doutrinação. Os mentores do grupo
conhecem bem esse mecanismo e sabem melhor como
dispor as manifestações.
Acresce ainda uma observação - Acreditam alguns que
esse processo de designar cada médium, de uma vez, evita
que todos sejam tomados ao mesmo tempo e se crie
balbúrdia prejudicial ao trabalho. Na minha experiência
pessoal, nunca encontrei essa dificuldade. É frequente
verificarmos que outros médiuns já se acham ligados aos
próximos manifestantes, mas, num grupo bem ajustado, os
mentores terão recursos suficientes para contê-los, até que
chegue a vez de falarem.
Em suma: a sequência da apresentação dos
desencarnados e a escolha dos médiuns, que irão atuar ou
não, devem ficar a critério dos dirigentes espirituais do
grupo, que não têm necessidade de anunciar-nos
previamente o plano de trabalho da noite, para que ele se
desenrole harmoniosamente. Pelo contrário, quanto menos
interferirmos, melhor.
É escusado dizer que a sessão deve ter hora prefixada
para começar e para terminar. Os companheiros
necessitados devem ser atendidos rigorosamente dentro do
horário a eles destinado. Em hipótese alguma deve permitir-
se que, por iniciativa dos manifestantes, ou não, seja
ultrapassada a hora. Certa vez, tivemos a esse respeito uma
lição preciosa. Percebendo que a hora se esgotava, o
espírito manifestante, muito ardilosamente, começou a
manobrar para ganhar tempo. Quando o dirigente lhe disse
que precisava partir, ele apelou para a boa educação:
— Você está me mandando embora?
E com essas e outras, o diálogo ainda se alongou por
alguns minutos. Terminado o atendimento, um dos
orientadores recomendou-nos, em termos inequívocos, que
evitássemos a repetição do ocorrido. Explicou que o
trabalho mediúnico é protegido e assistido por uma equipe
de segurança, composta de obreiros do lado de lá. Esgotado
o prazo, eles têm que se retirar, de vez que outras tarefas
inadiáveis os aguardam alhures, e o mecanismo de
segurança fica substancialmente enfraquecido. Os espíritos
turbulentos, sabendo disso, procuram demorar-se, para
provocar distúrbios e levar o pânico ao grupo, o que seria
desastroso. A lição é importante.
Terminado o atendimento, enquanto se aguarda a
palavra final dos mentores, há uma pausa, que deve ser
usada para uma pequena prece, que ajuda a repor o
ambiente em termos mais calmos, depois das várias
manifestações de companheiros aflitos, às vezes
barulhentas e indignadas.
Concluída a mensagem final, que, como vimos, convém
gravar, para futura referência e estudo, os trabalhos são
encerrados com uma prece.
É hora dos comentários finais.
***
Há sempre o que comentar, após uma sessão
mediúnica. É preciso, no entanto, que tais comentários
obedeçam a uma disciplina, para que possam ser úteis a
todos. É que, usualmente, os Espíritos atendidos ainda
permanecem, por algum tempo, no recinto. Seria desastroso
que um comentário descaridoso fosse feito, em total
dissonância com as palavras de amor fraterno que há pouco
foram ditas, pelo dirigente, durante a doutrinação. Os
manifestantes, no estado de confusão mental em que se
encontram, tudo fazem para permanecer como estão.
Embora inconscientemente desejem ser convencidos da
verdade, lutam desesperadamente para continuar a crer ou
a descrer naquilo que lhes parece indicado. Se percebem
que toda aquela atitude de respeito, recolhimento e carinho
é insincera, dificilmente poderão ser ajudados de outra vez.
Por isso, dizia que os comentários devem ser
disciplinados. O dirigente deve perguntar pela experiência
de cada um. Os médiuns videntes sempre têm algo a dizer,
pois percebem a presença desta ou daquela entidade, ou
têm acesso a fenômenos que usualmente interessam ao
bom andamento dos trabalhos ou trazem indicações a
serem utilizadas na sessão seguinte. Se o dirigente não
dispõe do recurso da vidência, os médiuns videntes do
grupo devem ajudá-lo discretamente, com o mínimo de
interferência, durante os trabalhos. Isto se aplica aos
médiuns clariaudientes. Os comentários finais não devem
prolongar-se por muito tempo. Geralmente, ao terminar a
sessão, é tarde da noite, e os componentes do grupo,
especialmente os que moram longe, precisam retirar-se,
pois o trabalho os espera pela manhã do dia seguinte, com
as suas lutas e canseiras.
Mesmo que a sessão tenha terminado, o
comportamento de todos, ainda no recinto, deve ser
discreto, sem elevar demasiadamente a voz, sem
gargalhadas estrepitosas, embora estejam todos,
usualmente, felizes e bem-humorados, por mais uma noite
de trabalho redentor.
Antes de se retirarem, em ordem e discretamente, é
distribuída a água.
É preciso, porém, observar que o trabalho dos
componentes de um grupo mediúnico não termina com o
encerramento da sessão. Mesmo durante o espaço de
tempo que vai de uma reunião à próxima, de certa forma
todos estão envolvidos nas tarefas. Inúmeras vezes, os
Espíritos em tratamento nos dizem claramente que nos
seguiram em nossa atividade normal. Desejam testar à boa-
vontade, avaliar a sinceridade, ajuizar-se do comportamento
de cada membro do grupo, especialmente do médium pelo
qual se manifestaram e do dirigente que se incumbiu de
doutriná-los, É preciso que se tenha o cuidado para não
pregar uma coisa e fazer outra inteiramente diversa. Por
outro lado, aqueles companheiros particularmente
enfurecidos tentarão, no desespero inconsciente em que se
acham, envolver-nos com seus artifícios. Se, no decorrer da
semana, oferecemos brechas causadas por impulsos de
cólera, de maledicência, de intolerância, de invigilância,
enfim, estaremos admitindo, na intimidade do ser,
emanações negativas que os companheiros infelizes estão
sempre prontos a emitir contra nós, na esperança de nos
neutralizar, para que possam continuar no livre exercício de
suas paixões e desvarios. Todo cuidado é pouco. Nos
momentos em que sentirmos que vamos fraquejar,
recomenda-se uma parada para pensar e uma pequena
prece, qualquer que seja o local onde nos encontremos. Os
irmãos desesperados certamente nos cobrarão, no próximo
encontro, as fraquezas que conseguiram identificar em nós.
É claro que não nos podemos colocar como seres puríssimos
e redimidos, incapazes de errar. Estejamos, assim,
preparados para uma interpelação, pois eles o farão,
certamente.
Certo Espírito, em grande estado de agitação -
desencarnação recente, em circunstâncias trágicas - me
pediu que falasse com sua mãe, que eu conhecia. Embora
eu não o tenha prometido, pois não tinha ainda o que dizer
à pobre senhora, o Espírito me cobrou, logo na sessão
seguinte:
— Você não falou com a minha mãe!
Respondi-lhe que não tinha ainda uma palavra
tranquilizadora para dizer a ela, e não podia,
evidentemente, falar do verdadeiro estado de aflição em
que ele se encontrava.
Outro me disse, ao cabo de uma semana
particularmente angustiosa para mim, em virtude de terrível
pressão de problemas humanos, que nada tinham a ver com
o trabalho mediúnico:
— Esta semana eu quase te peguei. Ainda te pego!
***
É oportuno colocar, aqui, um argumento muito válido,
em favor da continuidade dos trabalhos e da assiduidade
dos médiuns. Como não ignoram, aqueles que cuidam
desses problemas, os mentores espirituais escolhem, para
cada manifestante, o médium que lhe seja mais indicado
pelas características da mediunidade ou pela natureza do
trabalho a ser realizado. Feita a ligação, o Espírito, ao voltar,
nas vezes subsequentes, virá usualmente pelo mesmo
médium. Se o médium falta, o trabalho junto ao sofredor
fica como que em expectativa, suspenso, aguardando a
próxima oportunidade. Assim, a não ser por motivos muito
fortes e justificados, a assiduidade dos médiuns e a
continuidade do trabalho são vitais ao seu bom rendimento.
***
Ainda uma sugestão. É sempre útil que alguém se
incumba de anotar, num caderno, um resumo do trabalho
realizado em cada reunião. Isto não é, porém, uma ata, a
não ser que a sessão seja de pesquisa. Quando se trata de
tarefa de desobsessão, não é preciso ir a esses rigores. A
prática de reproduzir sumariamente os principais aspectos
de cada manifestação se revelou sempre de grande
alcance, não apenas na condução dos trabalhos, mas
também, para o aprendizado constante que representam as
tarefas mediúnicas.
Anote-se a data e, querendo, o número de ordem da
sessão, para referência. Descreva-se cada manifestação e
faça-se um resumo do diálogo mantido com o Espírito. Se a
comunicação final for gravada, basta uma referência
identificadora. Essa tarefa deve caber, de preferência, ao
dirigente ou a alguma pessoa que se mantenha lúcida - sem
transe mediúnico - durante toda a sessão.
Sugere-se, como modelo, a série de livros publicados
pela Federação Espírita Brasileira, sob o título “Trabalhos do
Grupo Ismael”, preparados com extremo cuidado e
competência pelo Dr. Guillon Ribeiro.
Lamentavelmente, esses livros se acham, hoje,
esgotados, mas bibliotecas especializadas dispõem de
exemplares, para consulta.
SEGUNDA PARTE - AS PESSOAS
2 - OS ENCARNADOS
O trabalho do grupo mediúnico se desdobra
simultaneamente nos dois planos da vida, num intercâmbio
tanto mais proveitoso quanto melhor for a afinidade entre
os diversos componentes encarnados e desencarnados.
Estaria completamente equivocado aquele que julgasse
que o trabalho se realiza apenas durante a sessão
propriamente dita; é ocupação que toma vinte e quatro
horas por dia. Muito do que conseguimos obter, em hora e
meia ou duas horas de sessão, depende de inúmeras
tarefas preparatórias, desenvolvidas em desdobramento,
durante a noite, e complementadas posteriormente. Além
do mais, não podemos esquecer-nos de que os Espíritos
dispõem de maior liberdade de ir e vir, do que nós. Eles nos
vigiam, nos observam, nos seguem por toda parte, na
intimidade do lar, no escritório, na rua, nos restaurantes,
nos cinemas. Nosso procedimento é minuciosamente
analisado, com espírito crítico, e, quase sempre,
impiedosamente, pelos companheiros invisíveis que, ainda
desarmonizados, procuram, por todos os meios, descobrir
os nossos pontos fracos, para nos mostrarem que somos tão
imperfeitos e pecadores quanto eles mesmos, e que, no
entanto, nos arvoramos em santarrões de fachada, durante
as duas horas da sessão.
Por isso, o procedimento diário precisa ser correto, mas
não apenas por isso. É que a “atmosfera” psíquica que
carregamos conosco resulta do nosso pensamento. Somos
aquilo que pensamos, como dizia tão bem o sensitivo
americano Edgar Cayce. E isto, que era apenas uma
afirmativa de caráter teórico, está hoje perfeitamente
documentada através da câmara de Kirlian, que capta na
chapa fotográfica o espetáculo colorido e movimentado que
se desdobra na aura dos seres vivos. Ainda não estamos, ao
escrever esta página, em condições de conferir
cientificamente e documentadamente as observações dos
videntes do passado, quanto à interpretação dos fenômenos
luminosos produzidos na aura, ou na região perispiritual do
ser. Lá chegaremos, não obstante, e haveremos de nos
certificar de que a aura do ser pacificado difere muito, em
forma, cor e movimento, da que circunda a pessoa
desequilibrada, colérica, ciumenta, sensual, agressiva. Cada
atitude mental imprime à aura suas características, da
mesma forma que a gradação espiritual é facilmente
identificável pela aparência “visual” do Espírito
desencarnado.
Um amigo meu, e confrade muito inteligente, certa vez
escandalizou seus ouvintes, numa palestra pública,
declarando que tinha medo de morrer. Ao terminar sua
exposição, a palavra foi franqueada, para perguntas e
comentários, e um senhor idoso, no auditório, declarou seu
espanto, ao verificar que um espírita esclarecido, como ele,
tivesse medo de desencarnar. O amigo confirmou e
justificou:
— Meu caro confrade: a gente, aqui, na carne, vai
levando a vida escondido, disfarçado, como se estivesse
atrás de uma espessa máscara. Do lado de lá, isto é
impossível: mostramo-nos em toda a nudez da nossa
imperfeição.
É claro, pois, que aquele que resolver dedicar-se ao
trabalho mediúnico, especialmente no que se convencionou
chamar de desobsessão, precisa convencer-se de que deve
estar em permanente vigilância consigo mesmo, com seus
pensamentos, com o que diz e faz. Principalmente com os
pensamentos. É preciso desenvolver um mecanismo
automático interior, que acenda uma luzinha vermelha a
qualquer “fuga” ou distração maior. Não quer isto dizer que
temos de nos transformar em santos da noite para o dia,
mas significa que devemos policiar-nos constantemente.
Não vamos deixar de ter as nossas falhas, mas estaremos
sempre prontos a advertir-nos interiormente e a reajustar a
mente que, com a maior facilidade, pode levar-nos a
escorregões de imprevisíveis consequências.
Exemplos? Há muitos: o envolvimento numa conversa
maledicente; o distraído olhar de cobiça para uma mulher
atraente, na rua; uma piada grosseira e pesada; um
pensamento de rancor ou de revolta, em relação ao chefe
ou companheiro de trabalho, ou de inveja, com relação a
alguém que se destacou por qualquer motivo; a leitura de
livro pornográfico; a assistência a um filme pernicioso. Há
milhões de motivos, diante de nós, a cada momento, pois
vivemos num mundo transviado, exatamente porque reflete
o transviamento da massa de seres desajustados que vivem
na sua psicosfera.
Toda atenção é pouca. A vigilância dispara o sinal de
alarme: a prece, a defesa e a correção. Ninguém precisa
chegar, porém, aos extremos do misticismo, a ponto de
viver rezando pelos cantos, de olhos baixos pela rua,
temendo o “contágio” com os pecadores. Também somos
pecadores, no sentido de que todos trazemos feridas não
cicatrizadas, de falhas clamorosas, no passado mais
distante e no passado recente. Por outro lado, a Providência
Divina vale-se precisamente dos imperfeitos para ajudar os
mais imperfeitos. Quem poderia alcançar estes, senão
aqueles que ainda estão a caminho com eles? A distância
entre nós e os que já se redimiram é tão grande, em termos
vibratórios - para usar uma palavra mais ou menos aceita -
que dificilmente conseguem eles alcançar-nos, para um
trabalho direto, junto ao nosso espírito.
O mesmo princípio opera, aliás, nos fenômenos de efeito
físico. A doutrina explica-nos que tais fenômenos são
usualmente realizados por espíritos de condição vibratória
compatível com a nossa. Os espíritos elevados não
participam diretamente de tarefas desta natureza, embora a
supervisionem cuidadosamente, como se vê em André Luiz.
Como seres imperfeitos, temos, pois, de viver com o
semelhante, também imperfeito. Não há como fugir de
ninguém e isolar-se em torres de marfim, mosteiros
inacessíveis, grutas perdidas na solidão. Nosso trabalho é
aqui mesmo, com o homem, a mulher, o velho, a criança,
seres humanos como nós mesmos, com as mesmas
angústias, inquietações, mazelas e imperfeições. O que
enxerga um pouco mais, ajuda o cego, mas, talvez, este
disponha de pernas para caminhar e pode, assim, amparar
o coxo. E quem sabe se o aleijado dispõe de conhecimento
construtivo que possa transmitir ao mudo? Este, um dia, no
futuro, voltará a falar, para ensinar e construir. Somos, pois,
uma tremenda multidão de estropiados espirituais, e a
diferença evolutiva entre nós, aqui na Terra, não é lá grande
coisa. Vivemos num universo inteiramente solidário, no qual
uns devem suportar e amparar os outros, ou, na linguagem
evangélica: amar-nos uns aos outros. Não é difícil. E é
necessário. E como!...
Daí a recomendação da vigilância. Não é que tenhamos
que nos isolar, numa redoma ou numa couraça, para nos
defender dos párias, que nos cercam por toda parte. Será
que ainda não descobrimos que somos párias também? A
vigilância é para que fiquemos apenas com os males que
nos afligem intimamente, e façamos um esforço muito
grande para nos livrarmos deles. Ai de nós, porém, se, às
deficiências que carregamos, somarmos as que recebermos
por “contágio espiritual”. Isto se dará, certamente, se, em
vez de cuidarmos, por exemplo, de aniquilar a nossa
arrogância, passarmos a imitar a avareza do irmão que
segue ao nosso lado, ou a irresponsabilidade de outro, ou o
egoísmo de um terceiro. É nesse sentido que deve funcionar
o mecanismo de advertência. Já bastam as nossas mazelas.
Para que captar outras que infelicitam os companheiros de
jornada?
***
Estas recomendações e sugestões nada têm de
puramente teórico ou acadêmico. São essenciais,
especialmente se o grupo mediúnico se envolver em tarefas
de desobsessão. Os Espíritos trazidos às reuniões, para
tratamento, apresentam-se hostis, agressivos, irônicos. Que
não se cometa, a respeito deles, a ingenuidade de pensar
que são ignorantes. Com frequência enorme são
inteligentes, e mais bem informados do que nós,
encarnados. Geralmente são trazidos porque foram
incomodados na sua atividade lamentável. Chegam
impetuosos e dispostos a fazer qualquer coisa, para
continuar a proceder como acham de seu direito e até de
seu dever. No desespero em que vivem mergulhados, não
hesitarão em promover qualquer medida defensiva, e essa
defesa, geralmente, consiste em atacar aqueles que
interferem com seus planos. Cuidado, pois. Se em lugar de
vigilância e prece, lhes oferecemos o flanco desguarnecido,
sintonizamo-nos com as suas vibrações agressivas e
acabaremos por ser envolvidos.
Daí a advertência de que o trabalho mediúnico, nesse
campo especializado, é tarefa para todas as horas do dia e
da noite. As recomendações de comportamento adequado
são particularmente rígidas para o dia em que as sessões se
realizam.
“No dia marcado para as tarefas de desobsessão” -
escreve André Luiz - “os integrantes da equipe precisam, a
rigor, cultivar atitude mental digna, desde cedo.”*
* Desobsessão, Francisco Cândido Xavier e Waldo Vieira, capitulo 1, 3ª ed. FEB.
Resguardarem-se todos na prece, na vigilância.
Fugiremos ao envolvimento em discussões e desajustes de
variada natureza. Alimentação sóbria e leve. Não custa
muito, pelo menos nesse dia, abster-se de carne; e é
necessário prescindir do álcool e do fumo. Sempre que
possível, durante o dia ou nas horas que precedem a
reunião, um pouco de repouso físico e mental, com
relaxamento muscular e pacificação interior.
Enfrentemos com disposição e coragem os empecilhos
naturais que possam obstar o comparecimento à reunião:
um mal-estar de última hora, por exemplo. (Muitas vezes,
principalmente no caso dos médiuns, já se trata de
aproximação de Espíritos angustiados, ou coléricos, que
transmitem suas vibrações depressivas.) É possível que, à
hora da saída para a reunião, chegue uma visita inesperada,
ou uma criança se ponha a chorar, inexplicavelmente
agitada ou inquieta. De outras vezes, chove ou faz muito
frio, ou calor excessivo, e um pensamento de comodismo e
preguiça nos segreda a palavra de desânimo. Muitos
obreiros promissores têm sido afastados de tarefas
redentoras por pequeninos incidentes como estes, que se
vão somando, até neutralizá-los de todo. Nem percebem
que os companheiros das sombras souberam tirar bom
partido dos acontecimentos, ou até mesmo os provocaram,
como no caso do súbito mal-estar próprio ou de um membro
da família. No dia seguinte, ou horas depois, o mal-estar
terá passado, como por encanto, mas o trabalho das trevas
já está feito: um obreiro a menos na seara, pelo menos
naquele dia. A grande vitória começa com as pequenas
escaramuças. Cuidado, atenção, serenidade e firmeza.
***
Quanto aos componentes encarnados do grupo, mais
uma vez lembramos: é vital que os unam laços da mais
sincera e descontraída afeição. O bom entendimento entre
todos é condição indispensável, insubstituível, se o grupo
almeja tarefas mais nobres. Não pode haver desconfianças,
reservas, restrições mútuas. Qualquer dissonância entre os
componentes encarnados pode servir de instrumento de
desagregação. Os espíritos desarmonizados sabem tirar
partido de tais situações, pois esta é a sua especialidade.
Muitos deles não têm feito outra coisa, infelizmente para
eles próprios, ao longo dos séculos, senão isto: atirar as
criaturas umas contra as outras, dividindo para conquistar.
Nem sempre o fazem por maldade intrínseca. É preciso
entendê-los. Eles vivem num contexto que lhes parece tão
natural, justificável e lógico, como o de qualquer outro ser
humano. Julgam-se com direito de fazerem o que fazem, e,
por isso, não se detêm diante de nenhum escrúpulo ou
temor.
Se os componentes do grupo oferecerem condições de
desentendimento, provocarão a desagregação
impiedosamente, porque para eles isto é questão de vital
importância, a fim de continuarem a agir na impunidade
temporária em que se entrincheiraram.
Assim sendo, é melhor que um grupo com dimensões
internas encerre suas atividades, pelo menos por algum
tempo, até que se afastem os elementos dissonantes. Não
se admite, num grupo responsável e empenhado em
trabalho sério, qualquer desarmonia interna, como disputa
pelos diversos postos: dirigente, médium principal e outras
infantilidades. O dirigente do grupo não é o que se senta à
cabeceira da mesa e dá instruções - ele é apenas um
companheiro, um coordenador, um auxiliar, em suma, dos
verdadeiros responsáveis pela tarefa global, que se acham
no mundo espiritual. Qualquer sintoma de rivalidade entre
médiuns deve ser prontamente identificado e combatido.
Ainda falaremos disso, mais adiante. Por ora, basta dizer, e
nunca o diremos com ênfase bastante, que deve
predominar entre os encarnados um clima de liberdade
consciente, franqueza sem agressividade, lealdade sem
submissão, autoridade sem prepotência, afeição sem
preferências, e perfeita unidade de propósitos.
No momento em que o desentendimento e a desafeição
começam a medrar entre os encarnados, o grupo está em
processo de desagregação. Isto implica dizer que os
elementos perturbadores dessa harmonia interna devem ser
prontamente identificados. O responsável pelo grupo, ou
quem for para isso designado, deve procurar os
desajustados para entendimento particular, reservado. Se
não for possível reconduzi-los a uma atitude construtiva,
não resta alternativa senão o afastamento, pois o trabalho
das equipes encarnada e desencarnada deve ser colocado
acima das nossas posições pessoais.
A decisão de afastar alguém não é fácil, e nem deve ser
tomada precipitadamente e por ouvir dizer, pois é uma ação
de natureza grave. Não apenas o grupo se privará do seu
concurso, qualquer que seja a sua posição, como ele
próprio, sentindo-se como que “expulso”, quase um
“excomungado”, poderá cair numa faixa de desânimo,
quando não de revolta, que o desprotege espiritualmente e
o precipita em imprevisíveis aflições. Não se trata de criar
uma atmosfera inquisitorial de espionagem mútua, de
desconfianças e rivalidades, ou rancores surdos, pois disso
também se aproveitariam os irmãos desencarnados que
precisam do nosso afeto e compreensão; mas os objetivos e
finalidades do grupo devem ficar a salvo de nossas paixões.
Se, para isso, for necessário afastar um ou outro
companheiro, teremos que fazê-lo. Cumprir o desagradável
mandato com amor, equilíbrio e serenidade, mas também
com firmeza. Talvez o companheiro perturbador possa
retornar à tarefa mais adiante, já regenerado, mas entre
sacrificá-lo pessoalmente e sacrificar todo o programa, não
há como hesitar.
Este aspecto é aqui abordado com franqueza e sem
temores, porque, embora não mencionado usualmente nas
anotações sobre trabalho mediúnico, é uma das grandes e
frequentes dificuldades ocorridas em inúmeros grupos.
Precisamos estar preparados para ela porque, mais cedo ou
mais tarde, haveremos de encontrá-la. Atenção, porém:
nada de processos inquisitoriais, repetimos. O bom senso e
a prece serão sempre os melhores conselheiros, em
situações como essa.
Por outro lado, essas e outras decisões, isto é, todas
aquelas que dizem respeito, por assim dizer, à gestão
terrena do grupo, cabem aos encarnados. Os benfeitores
espirituais, ligados à tarefa, dificilmente nos darão ordens
para admitir este componente ou desligar aquele. Eles
desejam que nós sejamos capazes de discernir e assumir a
responsabilidade pelos nossos atos. O que esperam de nós
é um clima de harmonização, para que possam, em cada
reunião, colocar diante de nós a tarefa que desejam que
realizemos. É preciso que ofereçamos a eles aquele mínimo
de condição indispensável.
3 - OS MÉDIUNS
O capítulo 32, de “O Livro dos Médiuns”, intitula-se
“Vocabulário Espírita”, e sugere a seguinte definição:
— Médium - (Do latim medium, meio, intermediário).
Pessoa que pode servir de intermediário entre os Espíritos e
os homens.
Revelando o cuidado e o extraordinário poder de síntese
que Kardec sempre demonstra, essa definição é um primor
de clareza. Vemos, por ela, que o médium é uma pessoa,
isto é, um ser encarnado, sujeito, por conseguinte, às
imperfeições e mazelas que nos afligem a todos e, portanto,
tão propenso à queda quanto qualquer um de nós, ou talvez
mais ainda, porque sua capacidade de sintonizar-se com os
desencarnados o expõe a um grau mais elevado de
influenciação.
Sabemos, por outro lado, do aprendizado espírita, que a
mediunidade, longe de ser a marca da nossa grandeza
espiritual, é, ao contrário, o indício de renitentes
imperfeições. Representa, por certo, uma faculdade, uma
capacidade concedida pelos poderes que nos assistem, mas
não no sentido humano, como se o médium fosse colocado
à parte e acima dos vis mortais, como seres de eleição. É,
antes, um ônus, um risco, um instrumento com o qual o
médium pode trabalhar, semear e plantar, para colher mais
tarde, ou ferir-se mais uma vez, com a má utilização dos
talentos sobre os quais nos falam os Evangelhos, O médium
foi realmente distinguido com o recurso da mediunidade,
para produzir mais, para apressar ou abreviar o resgate de
suas faltas passadas. Não se trata de um ser aureolado pelo
dom divino, mas depositário desse dom, que lhe é
concedido em confiança, para uso adequado. Enfim: o
médium utiliza-se de uma aptidão que não faz dele um
privilegiado, no sentido de colocá-lo, na escala dos valores,
acima dos seus companheiros desprovidos dessas
faculdades.
Quanto mais amplas e variadas as faculdades, mais
exposto ficará ao assédio dos companheiros invisíveis que
se opõem ao seu esforço evolutivo.
De certa forma, isso é válido para todos nós, mas
aqueles que dispõem de faculdades mediúnicas estão como
se tivessem devassado o seu mundo interior a seres
desconhecidos e invisíveis, que podem ser bons e amigos,
como também podem ser antigos e ferrenhos desafetos ou
comparsas de crimes hediondos.
Isso me faz lembrar um filme que vi há algum tempo. O
jovem herói, pelo esforço de um trabalhador social
compreensivo, que acreditava na capacidade evolutiva do
ser humano, obteve liberdade condicional. Estivera alguns
anos na prisão, em virtude da prática de assaltos
audaciosos, bem planejados e, naturalmente, muito
rendosos financeiramente. Fora o líder de seu grupo, o
cérebro da organização, o planejador eficiente e hábil que
facilmente submeteu todos os demais à sua vontade. Ao
sair da prisão, deseja esquecer o passado tenebroso,
encontra o amor na pessoa de uma jovem, e dedica-se a
trabalho humilde, de baixa remuneração, mas honesto. É
nessa fase de reconstrução íntima e esforço regenerativo,
que os antigos comparsas o encontram. Começa o cerco, o
assédio, com propostas, ameaças, e a doce cantilena do
êxito material. Tudo é tentado para afastá-lo do caminho da
recuperação. Qualquer ardil serve, qualquer pressão,
envolvimento ou oferta. Vale tudo. Seus ex-companheiros
de crime desejam-no de volta ao grupo, aos prazeres, às
loucuras, à irresponsabilidade.
A semelhança com a situação do médium é
impressionante. Seus comparsas não se conformam, e, das
trevas onde se escondem, buscam-no incessantemente.
Isso é particularmente agudo quando a mediunidade
começa a desabrochar. Os primeiros manifestantes são,
quase sempre, atormentados seres do mundo das dores,
obsessores impiedosos, verdugos que não desejam deixar
escapar a presa pelos portões do trabalho regenerador. Ou,
então, são associados de outros tempos, que por muitos
séculos planejaram e executaram juntos crimes
inomináveis.
O médium, mais do que aqueles que não dispõem da
faculdade, é um ser em liberdade condicional. Cabe a ele
provar que já é capaz de fazer bom uso dela. A tarefa não é
fácil, porque, como todos nós, traz em si o apelo do
passado, as “tomadas” para o erro, as cicatrizes, mal
curadas, de falhas dolorosas, o peso específico que o
arrasta para baixo, tentando impedir que ele se escape,
como um pequeno balão, para o azul infinito da libertação
espiritual. Mais do que qualquer um de nós, ele precisa
estar vigilante, atento, ligado a um bom grupo de trabalho,
compulsando livros doutrinários de confiança, observando
suas próprias faculdades, corrigindo, melhorando,
modificando, eliminando, acrescentando.
Nada de pânico, porém. O fato de ser ele uma pessoa
dotada de antenas psíquicas, que o põem em relação com o
mundo espiritual, quer ele deseje ou não, não quer dizer
que ele esteja à mercê dos companheiros desvairados das
sombras, a não ser que ele próprio deixe cair suas guardas.
Ele contará sempre com a proteção carinhosa e atenta de
seus guias, daqueles que estão interessados no seu
progresso espiritual. Procure manter um bom clima mental.
Estude, leia, viva com simplicidade, vigie seus sentimentos,
como qualquer um de nós. Participe da luta diária, enfrente
os problemas da existência: profissionais, familiares, sociais,
humanos, enfim. Não lhe faltarão recursos, assistência,
informações e, acima de tudo, trabalho mediúnico, que é da
essência mesma do seu compromisso.
Não tema, mas não seja temerário. Não deixe de
estudar suas faculdades, mas não se envaideça do que
aprendeu nem dos recursos que conseguiu desenvolver. Na
hora da tarefa, é um simples trabalhador, como qualquer
outro: nem melhor, nem pior, nem inferior, nem superior.
Os dirigentes de grupos devem combater sem tréguas o
“vedetismo” de alguns médiuns; o bom combate, é claro, de
que nos falava Paulo, sem rancores, sem humilhações, sem
prepotência. É comum, nos grupos mediúnicos, dar-se
destaque indevido ao médium que recebe, por exemplo, o
orientador desencarnado, para as palavras de
esclarecimento e as diretrizes gerais. O ideal seria que os
orientadores se revezassem, utilizando-se dos demais
médiuns, mas eles não estão interessados em preservar as
nossas ridículas suscetibilidades e vaidades. Se o médium
que os recebe sente-se envaidecido, trate de se corrigir; se
os médiuns que não o recebem ficam enciumados, o
problema é de cada um. A experiência com os espíritos
ensina-nos que eles são compassivos, amorosos, pacientes,
tolerantes e serenos, mas são também firmes e rigorosos,
quando necessário. Isso está amplamente documentado na
Codificação, pois nem mesmo a Kardec deixaram eles de
dizer o que era necessário dizer, às vezes até com
inesperada severidade.
— Por que há Deus permitido que os Espíritos possam
tomar o caminho do mal? - pergunta Kardec, segundo “O
Livro dos Espíritos”, questão 123.
E eles respondem:
— Como ousais pedir a Deus contas de seus atos?
Supondes poder penetrar-lhe os desígnios? Podeis, todavia,
dizer o seguinte: A sabedoria de Deus está na liberdade de
escolher que Ele deixa a cada um, porquanto, assim, cada
um tem o mérito de suas obras.
E o interlocutor era Allan Kardec! Por que razão ficarão
com “panos quentes” conosco, meros aprendizes primários
de uma verdade que transcende, em muitos aspectos, a
nossa compreensão?
Assim, não se espere que os benfeitores espirituais
tomem precauções especiais para nos preservar o orgulho e
a vaidade.
Não cuidaremos, neste livro, da formação ou do
desenvolvimento do médium. O assunto é demasiado
complexo para um tratamento sumário e foge aos objetivos
das nossas especulações aqui. Há obras que cuidam do
problema, mas é preciso não se esquecer que o ponto de
partida de qualquer trabalho, nesse sentido, é “O Livro dos
Médiuns”, de Allan Kardec.
É possível, no entanto, que as tarefas do grupo
mediúnico venham, no decorrer do tempo, revelar a
existência de outros médiuns em potencial. Não é
necessário, neste caso, colocar a pessoa em quarentena,
nem desligá-la do grupo. Que ela se mantenha junto aos
companheiros, na posição que sempre ocupou e aguarde a
sua vez. Os benfeitores espirituais saberão como conduzir o
labor necessário, fornecendo ocasionais indicações e
instruções, até que a mediunidade nascente comece a
desabrochar e possa ser utilizada.
O dirigente humano acompanhará atentamente o
trabalho, ajudando o companheiro, ou companheira, nas
lides iniciais da sua empreitada. Os fenômenos começarão
espaçados e indecisos: rápidas vidências, clariaudiência,*
talvez intuições, impulsos de dizer ou escrever algo. Quando
estes pequenos fenômenos ocorrerem, o componente da
equipe deve comunicar-se, tão logo lhe seja possível, com o
dirigente, sem interromper os trabalhos em curso, a não ser
por motivos imperiosos; de preferência, contudo, depois de
encerrada a sessão. Nada de açodamento, de excitações, de
fantasias, de euforia, nem de temores. Num grupo bem
orientado, todas as potencialidades serão devidamente
estudadas e aproveitadas, quando possível e necessário.
* Clariaudiência: Segundo o espiritismo esta é uma faculdade mediante a qual o
médium ouve vozes e sons de origem distinta da audição física.
A mediunidade que melhor se presta aos trabalhos de
desobsessão é a psicofonia,* ou de incorporação. O diálogo
com o desencarnado é da própria essência da tarefa, e
dificilmente a palavra falada, direta e viva, poderia ser
substituída, sem perda considerável da eficácia do processo.
Em casos extremos, poderá ser utilizada a psicografia: o
doutrinador falaria e o espírito responderia por escrito, mas
a experiência revela que nada substitui a palavra falada,
nesse tipo de trabalho. Com ela, sentimos com maior
facilidade as reações que se processam no manifestante,
sua personalidade, seus cacoetes, seu estado de irritação
ou de serenidade, suas ironias, suas vacilações, sua
sinceridade, suas emoções.
* Psicofonia: É o fenômeno mediúnico no qual um espírito se comunica através
da voz de um médium. A Doutrina Espírita identifica duas classes principais
sendo o consciente e inconsciente ou sonambúlica. (Nota de U.E. Braga)
Não quer isso dizer que o grupo deva reunir apenas
médiuns de incorporação. Os benfeitores espirituais terão
melhores oportunidades de desenvolver suas tarefas por
nosso intermédio, quando dispuserem de mais ampla
variedade de faculdades, operando através da vidência de
um, da clariaudiência de outro, da intuição de um terceiro,
ou até mesmo se utilizando, em trabalhos especiais que
ainda discutiremos, da faculdade, que têm outros, de
exteriorizarem ectoplasma*, ou seja, da mediunidade de
efeitos físicos.
* Ectoplasma: É a substância exteriorizada durante o fenômeno da
exteriorização. (Nota de U.E. Braga)
Tal variedade de faculdades é particularmente desejável
quando o doutrinador não for dotado de mediunidade
ostensiva, como vidência, ou audiência. Nesse caso, os
médiuns presentes serão, por vezes, incumbidos de o
auxiliarem com pequenas e discretas observações e
recomendações recebidas dos benfeitores, enquanto ele se
acha doutrinando. Isso deve ser feito com muita sutileza e
de maneira breve e sumária.
Como a psicofonia é a mediunidade mais indicada para
esse tipo de tarefa, André Luiz nos oferece, no seu já citado
“Desobsessão”, um valioso decálogo de recomendações e
sugestões. Mesmo que o leitor disponha de um exemplar,
parece que vale a pena reproduzir aqui o texto. André
considera tais cuidados “essenciais ao êxito e à segurança
da atividade” atribuída aos médiuns.
É aconselhável, pois, aos médiuns psicofônicos:
* Desenvolvimento da autocrítica.
* Aceitação dos próprios erros, em trabalho
mediúnico, para que se lhes apure a capacidade de
transmissão.
* Reconhecimento de que o médium é responsável
pela comunicação que transmite.
* Abstenção de melindres ante apontamentos dos
esclarecedores ou dos companheiros, aproveitando
observações e avisos para melhorar-se em serviço.
* Fixação num só grupo, evitando as inconveniências
do compromisso de desobsessão em várias equipes ao
mesmo tempo.
* Domínio completo sobre si próprio, para aceitar ou
não a influência dos Espíritos desencarnados, inclusive
reprimir todas as expressões e palavras obscenas ou
injuriosas, que essa ou aquela entidade queira
pronunciar por seu intermédio.
* Interesse real na melhoria das próprias condições
de sentimento e cultura.
* Defesa permanente contra bajulações e elogios,
conquanto saiba agradecer o estímulo e a amizade de
quantos lhe incentivem o coração ao cumprimento do
dever.
* Discernimento natural da qualidade dos Espíritos
que lhes procurem as faculdades, seja pelas impressões
de sua presença, linguagem, eflúvios magnéticos, seja
pela sua conduta geral.
* Uso do vestuário que lhes seja mais cômodo para a
tarefa, alijando, porém, os objetos que costumem trazer
jungidos ao corpo, como sejam relógios, canetas, óculos
e joias.
***
As pessoas que lidam com médiuns, que trabalham
junto deles, que desempenham, enfim, qualquer atividade
em paralelo com eles, não devem esquecer-se de que esses
companheiros de seara são criaturas dotadas de certo grau
de exaltação da sensibilidade. Ou, por outra: são médiuns
exatamente porque têm a sensibilidade mais aguda do que
o comum dos homens e das mulheres. Em decorrência
dessa particularidade que, no fundo, é da própria essência
da mediunidade, são mais suscetíveis, mais sensíveis
também à crítica, à atitude anti fraterna, à palavra
agressiva, à reprimenda, tanto quanto ao elogio e à
bajulação, a que se refere André Luiz.
É preciso, pois, atenção especial com os médiuns,
naquilo que diga respeito à sua condição peculiar de
sensibilidade. Tentaremos clarificar, tanto quanto possível,
este assunto extremamente delicado e complexo.
Evidentemente, o médium não deve e não pode ser
endeusado, porque isso exporia, a ele e ao grupo, a
imprevisíveis e desastrosas consequências. Em breve,
estaria recebendo “mensagens” diretas de Deus... - Não
vamos, porém, cair no outro extremo, de submeter o
médium a um regime disciplinar inadequado, ditado pela
prepotência e pela arbitrariedade, em nome da boa ordem
dos trabalhos. Médium disciplinado é uma coisa, médium
inibido é outra. É preciso que o dirigente dos trabalhos
tenha bom senso suficiente para distinguir até onde vai a
disciplina, que precisa ser preservada, e onde começa o
rigorismo ditatorial que leve o médium ao pânico ou à
revolta. O médium não é nem a “vedete” do grupo, seu
pontífice máximo, nem o escravo acorrentado aos caprichos
dos desavisados que, em nome da disciplina e da ordem,
impõem condições inaceitáveis ao exercício das faculdades
mediúnicas.
A mediunidade é um mecanismo extremamente
delicado e suscetível, que deve ser tratado com atenção,
cuidado e carinho.
No grupo em que predominar legitimo sentimento de
afeição, e compreensão entre os seus diversos
componentes, dificilmente surgirão problemas dessa
natureza, mas é preciso estar atento para que tais questões
não venham a perturbar a tarefa. O dirigente deverá tratar
o médium com todo o carinho e atenção, procurando ajudá-
lo na solução dos problemas que surgirem no exercício de
sua faculdade, dando-lhe apoio e conselhos, onde e quando
necessário. Deve ser-lhe grato pela sua contribuição ao
grupo, sem, no entanto, distingui-lo com nenhum favor
especial. O médium equilibrado e disciplinado sabe que
nada deve esperar de diferente, exclusivo ou extraordinário.
É apenas um dos componentes do grupo, nada mais, e,
como tal, credor da mesma estima e respeito devidos aos
demais companheiros. E, também como os demais,
merecedor de uma palavra de estímulo e gratidão, por uma
tarefa particularmente difícil, exaustiva e bem realizada.
Não custa, a quem de direito, uma expressão de
agradecimento e uma palmada afetuosa no ombro, que
deverá estimular sua responsabilidade e não sua vaidade.
Há manifestações difíceis, dolorosas, que deixam
resíduos vibratórios perturbadores. Em casos assim, o
médium não deve ser abandonado à sua sorte, com as
dores e as canseiras resultantes. Se o dirigente não puder
socorrê-lo com um passe restaurador, designe alguém no
grupo para fazê-lo, mas diga-lhe uma breve palavra de
carinho ou lhe faça um gesto de solidariedade, para que o
médium sinta o apoio e a compreensão para a sua árdua
tarefa.
O leitor deverá notar, ao longo deste livro, que alguns
pontos são repisados em diferentes contextos. É que tais
assuntos se apresentam muito intimamente interligados, à
semelhança dos fios coloridos que fazem o desenho dum
tapete, e que desaparecem aqui, para reaparecer ali, com
nova ênfase.
Um desses pontos é o relacionamento entre os
componentes do grupo, seja entre os encarnados, seja entre
estes e os desencarnados.
Repisaremos aqui um deles. É o do relacionamento do
médium com o doutrinador. Para que o trabalho se
desenvolva com segurança e eficácia, esse relacionamento
precisa ser impecável. Tentemos explicar o que significa, no
caso, esse adjetivo algo pomposo. Além do seu sentido
etimológico - incapaz de pecar, não sujeito a pecar -
impecável quer dizer perfeito, correto, sem mácula ou
defeito.
Médium e doutrinador devem estimar-se e respeitar-se.
Estima sem servilismo e sem fanatismo; respeito sem
temores e sem reservas íntimas. Quando o relacionamento
médium-doutrinador é imperfeito ou sofre abalos mais
sérios, põe-se em risco a qualidade do trabalho mediúnico.
A razão é simples e óbvia: ao incorporar-se, o espírito
manifestante vem trabalhar com os elementos ou
instrumental que encontra no médium. Se existe ali alguma
reserva com relação ao doutrinador, ou, pior ainda, alguma
hostilidade mais declarada, é claro que a sua tarefa
negativa será bastante facilitada, da mesma forma que um
médium mais culto fornece melhores recursos para uma
manifestação de teor mais erudito ou um médium de
temperamento mais violento oferece condições mais
propícias a manifestações violentas.
Pela mesma razão, se existe entre médium e
doutrinador um vínculo mais forte de afeição, o espírito
agressivo fica algo contido, e ainda que agrida o doutrinador
com palavras ou gestos, não consegue fazer tudo quanto
desejava. Muitos são os que se queixam disso, durante suas
manifestações, exatamente porque não logram dar vazão
aos seus impulsos e intenções, porque as vibrações afetivas
entre médium e doutrinador arrefecem inevitavelmente tais
impulsos.
É preciso ainda considerar que se o médium realiza esse
trabalho de impregnação fluídica no perispírito do
manifestante, este também traz uma carga, às vezes
pesada e agressiva, que atua energicamente sobre o
perispírito do médium, havendo, portanto, certa
“contaminação” mútua, para a qual o médium deve atentar
com toda a sua vigilância, pois, do contrário, o espírito o
dominaria e faria com ele o que bem desejasse, como
lamentavelmente acontece com frequência. Essa
contaminação, embora transitória, é demonstrada, sem
sombra alguma de dúvida, nas reações preliminares e
posteriores do médium, ou seja, quando ainda se acha
consciente no corpo e depois que o reassume. Com
frequência, nossos médiuns declaram que, ao sentirem a
aproximação do espírito manifestante, experimentaram tal
ou qual sensação: força, ódio, tristeza, angústia ou amor,
paz, serenidade. Da mesma forma, os resíduos vibratórios
que permanecem na intimidade do perispírito do médium,
após a desincorporação, são bastante conhecidos, sendo
necessário, quase sempre, quando são desagradáveis e
agressivos, dispersá-los por meio de passes, a fim de que o
médium se recomponha. Quando, ao contrário, se trata de
um espírito pacificado e bondoso, o médium desperta, como
costumo dizer, “em estado de graça”, feliz, harmonizado,
comovido, às vezes, até às lágrimas.
***
Uma insistente palavra final para o médium: estude,
leia, faça perguntas, discuta os diferentes aspectos e
problemas da mediunidade, com quem demonstre ter
experiência. “O Livro dos Médiuns” deve ser leitura e
releitura constantes. Há sempre aspectos e informações que
a uma ou duas passagens deixamos escapar. Mantenha-se
ligado às cinco obras da Codificação, aos livros de André
Luiz, que desenvolvem, de maneira tão ampla, não apenas
aspectos específicos da mediunidade, como trabalhos
desenvolvidos no mundo espiritual: “Mecanismos da
Mediunidade”, “Entre a Terra e o Céu”, “Missionários da
Luz”, “Nos Domínios da Mediunidade”, “Libertação”,
“Desobsessão”, ou, ainda, “Estudando a Mediunidade”, de
Martins Peralva, “No País das Sombras”, de Madame
d’Espérance, “Memórias de um Suicida”, de Camilo Cândido
Botelho, “Dramas da Obsessão”, do Dr. Bezerra de Menezes,
“Nos Bastidores da Obsessão”, de Manoel Philomeno de
Miranda.
A literatura é ampla e não há ainda limites visíveis neste
vasto campo. O médium, tanto quanto todos nós, que
lidamos com a comunicação entre os dois mundos, precisa
estar bem certo de que é ainda muito pouco o que sabemos
sobre essa notável faculdade humana. Toda a humildade e
todo o respeito ante ela ainda serão poucos. Ademais,
somente podemos estudar a mediunidade assistindo-a em
ação, observando-a com atenção, anotando suas
peculiaridades, discutindo suas inúmeras facetas com os
companheiros que constituem a equipe de trabalho, lendo o
estudo daqueles que, antes de nós, já se tenham dedicado
aos seus mistérios e grandezas.
Ninguém precisa estudá-la mais, e com maior respeito e
carinho, do que o próprio médium, porque é através dele
que se abre o postigo pelo qual dialogamos, mundos abaixo,
com os companheiros que se acham acorrentados às mais
negras e tormentosas paixões e sofrimentos, e, mundos
acima, de onde recebemos jatos de luz que, através de um
pequenino retângulo, iluminam, por alguns momentos, de
tempos em tempos, os ambientes de meia-luz em que
vivemos.
4 - O DOUTRINADOR
Num grupo mediúnico, chama-se doutrinador a pessoa
que se incumbe de dialogar com os companheiros
desencarnados necessitados de ajuda e esclarecimento.
Qualquer bom dicionário leigo dirá que doutrinar é instruir
em uma doutrina, ou, simplesmente, ensinar. E aqui já
começamos a esbarrar nas dificuldades que a palavra
doutrinador nos oferece, no contexto da prática mediúnica.
Em primeiro lugar, porque o espírito que comparece
para debater conosco os seus problemas e aflições, não
está em condições, logo aos primeiros contatos, de receber
instruções doutrinárias, ou seja, acerca da Doutrina Espírita,
que professamos, e com a qual pretendemos ajudá-lo. Ele
não vem disposto a ouvir uma pregação, nem predisposto
ao aprendizado, como ouvinte paciente ante um guru
evoluído. Muitas vezes ele está perfeitamente familiarizado
com inúmeros pontos importantes da Doutrina Espírita.
Sabe que é um Espírito sobrevivente, conhece suas
responsabilidades perante as leis universais, admite, ante
evidências que lhe são mais do que óbvias, os mecanismos
da reencarnação, reconhece até mesmo a existência de
Deus. Quanto à comunicabilidade entre encarnados e
desencarnados, ele nem discute, pois está justamente
produzindo uma demonstração prática do fenômeno, e seria
infantilidade de sua parte tentar ignorar a realidade.
Portanto, o companheiro encarnado, com quem
estabelece o diálogo, não tem muito a ensinar-lhe, em
termos gerais de doutrina.
Por outro lado, o chamado doutrinador não é o sumo-
sacerdote de um culto ou de uma seita, que se coloque na
posição de mestre, a ditar normas de ação e a pregar,
presunçosamente, um estágio ideal de moral, que nem ele
próprio conseguiu alcançar. A despeito disso, ele precisa
estar preparado para exercer, no momento oportuno, a
autoridade necessária, que toda pessoa incumbida de uma
tarefa, por mais modesta, deve ter. Não se esquecer,
porém, de que, no grupo mediúnico, ele é apenas um dos
componentes, um trabalhador, e não mestre, sumo-
sacerdote ou rei.
Sua formação doutrinaria é de extrema importância.
Não poderá jamais fazer um bom trabalho, sem
conhecimento íntimo dos postulados da Doutrina Espírita.
Entre os espíritos que lhe são trazidos para entendimento,
há argumentadores prodigiosamente inteligentes, bem
preparados e experimentados em diferentes técnicas de
debate, dotados de excelente dialética. Isto não significa
que todo doutrinador tem de ser um gênio, de enorme
capacidade intelectual e de impecável formação filosófica. A
conversa com os espíritos desajustados não deve ser um
frio debate acadêmico. Se o dirigente encarnado dos
trabalhos está bem familiarizado com as obras
fundamentais do Espiritismo, ele encontrará sempre o que
dizer ao manifestante, ainda que não esteja no mesmo nível
intelectual dele. O confronto aqui não é de inteligências,
nem de culturas; é de corações, de sentimentos. O
conhecimento doutrinário torna-se importante como base
de sustentação. O doutrinador precisa estar convencido de
que a Doutrina Espírita dispõe de todos os informes de que
ele necessita para cuidar dos manifestantes em
desequilíbrio, mas isso não é tudo, porque ele pode ser um
bom conhecedor dos princípios teóricos do Espiritismo e ser
completamente desinteressado do aspecto evangélico; ou,
ainda, conhecer a doutrina e recitar prontamente qualquer
versículo evangélico, mas não apoiar o seu conhecimento
na emoção e no legítimo desejo de servir e ajudar.
Voltaremos ao assunto quando tratarmos do problema
específico da doutrinação. Os espíritos em estado de
perturbação, que nos são trazidos às sessões mediúnicas,
não estão, logo de início, em condições psicológicas
adequadas à pregação doutrinária, como já dissemos.
Necessitam aflitivamente de primeiros socorros, de quem os
ouça com paciência e tolerância. A doutrinação virá no
momento oportuno, e, antes que o doutrinador possa
dedicar-se a este aspecto específico, ele deve estar
preparado para discutir o problema pessoal do espírito, a
fim de obter dele a informação de que necessita. É nesse
momento que ele precisa utilizar-se de seus conhecimentos
gerais, intercalando aqui e ali um pensamento evangélico
que se adapte às condições desenvolvidas no diálogo.
Isto nos leva a outro aspecto importante: o “status”
moral do doutrinador. Sua autoridade moral é importante,
por certo, mas qual de nós, encarnados, ainda em lutas
homéricas contra imperfeições milenares, pode arrogar-se
uma atitude de superioridade moral sobre os companheiros
mais desarvorados das sombras? Ainda temos mazelas e
ainda erramos gravemente. O espírito que debate conosco
sabe de nossas inúmeras fraquezas, tanto quanto nós, e até
mais do que nós, às vezes, por serem, frequentemente,
companheiros de antigas encarnações, em que fomos,
talvez, comparsas de desacertos hediondos. Ele nos vigia,
observa-nos, analisa-nos e estuda-nos, de uma posição
vantajosa para ele: na invisibilidade. Tem condições de
aferir nossa personalidade e nossos propósitos, pela
maneira como agimos em nosso relacionamento com os
semelhantes. Percebe mais as nossas intenções, a
intensidade e a sinceridade do nosso sentimento, do que o
mero som das palavras que pronunciamos. Se estivermos
recitando lindos textos evangélicos, sem sustentação na
afeição legítima, ele o saberá também.
Muitas vezes, refere-se desabridamente a uma ou outra
fraqueza íntima nossa, como, por exemplo:
— Você não tem força para deixar o vício de fumar,
como quer me obrigar a deixar de perseguir aquele que me
prejudicou?
Ou então, nos lembra uma situação irregular em que
nos encontramos, ou um erro mais grave cometido no
passado recente, ou crimes que praticamos em vidas
pregressas. Tudo serve. É preciso que o doutrinador esteja
preparado para estas situações. Não adianta exibir virtudes
que não possui ainda. Deve lembrar-se, porém, de que
somos julgados e avaliados, não pelos resultados que
obtemos, mas pelo esforço que realizamos para alcançá-los.
Não é preciso ser santo, para doutrinar. Aqueles que já se
purificaram a esse ponto, dedicam-se a tarefas mais
complexas, de maior responsabilidade, compatíveis com o
adiantamento espiritual que já alcançaram.
Por outro lado, não podemos esperar a perfeição para
ajudar o irmão que sofre. É exatamente porque ainda somos
tão imperfeitos quanto ele, que estamos em condições de
servi-lo mais de perto. Muitos são desafetos antigos, que
ainda não nos perdoaram. É aqui que vemos a validade da
palavra sábia do Cristo:
— Reconcilia-te com o teu adversário, enquanto estás a
caminho com ele.
Não podemos impor ao companheiro infeliz uma
superioridade moral inexistente. O doutrinador é também
um ser falível e consciente das suas imperfeições, mas isto
não pode e não deve inibi-lo para a tarefa. É preciso levar
em conta, ainda, que muitos companheiros espirituais
desarvorados, que nos conheceram em passado tenebroso,
vêem em nós mais aqueles que fomos do que o que somos
hoje, ou pretendemos ser. Se tivermos paciência e
tolerância, o manifestante acabará por admitir que, mesmo
que ainda não tenhamos alcançado os estágios superiores
da evolução, nossa boa intenção é legítima, o esforço que
desenvolvemos é digno, e nos respeitarão por isso.
O doutrinador precisa, ainda, ser uma criatura de fé
viva, positiva, inabalável. Ele não pode dar aquilo que não
tem. Se me perguntassem qual o elemento mais importante
na estrutura da personalidade do doutrinador, eu não
saberia dizer, mas ficaria indeciso entre a fé e o amor, sobre
o qual ainda falaremos adiante. Que tipo de fé? A fé espírita,
tal como a conceituou Kardec: sincera, convicta, lógica,
plenamente suportada pela razão, mas sem se deixar
contaminar pela frieza hierática do racionalismo estéril e
vazio.
Façamos uma pausa na exposição, para um exame da
fé, que tanto nos interessa, neste, como em tantos outros
contextos.
***
Quero falar aqui daquela fé sobre a qual Paulo escreveu
seu belíssimo poema, no capítulo 11 da Epístola aos
Hebreus:
— A fé - disse ele - é a garantia do que se espera; a
prova das realidades invisíveis. Pela fé, sabemos que o
universo foi criado pela palavra de Deus, de maneira que o
que se vê resultasse daquilo que não se vê.*
* O texto citado é da Bíblia de Jerusalém.
Em Paulo, a fé era o suporte das realidades que o
conhecimento ainda não atingira; em Kardec é a certeza
daquilo que o conhecimento, afinal alcançado, confirmou no
coração do homem.
Para o Cristo, a fé do tamanho de uma semente de
mostarda bastaria para remover montanhas. Para Ele, é a fé
que cura o servo doente do romano pagão e estanca a
hemorragia da mulher que O tocou. É a ausência de fé que
Ele censura docemente nos discípulos que temeram a
tempestade e a morte.
É ainda a falta de fé que Ele repreende nos discípulos,
ao expulsar o Espírito que atormentava o jovem lunático
(Mateus, 17:14-20):
— Os discípulos vieram, então, ter com Jesus, em
particular, e lhe perguntaram: “Por que não pudemos, nós
outros, expulsar esse demônio?” Respondeu-lhes Jesus: “Por
causa da vossa incredulidade. Pois em verdade vos digo, se
tivésseis fé do tamanho de um grão de mostarda, diríeis a
esta montanha: Transporta-te daí para ali, e ela se
transportaria e nada vos seria impossível.”
O episódio é de grande força e beleza. Os discípulos já
haviam tentado, sem êxito, doutrinar o possessor que fazia
o que queria com o infeliz jovem. Batidos pelo fracasso, e
ante a facilidade com que o Cristo resolve o problema,
pedem explicações. Resposta:
Fé. Sem ela, pouco ou nada podemos; com ela, “nada é
impossível”. É uma afirmativa de extraordinário vigor, feita
por quem possuía autoridade mais do que suficiente para
fazê-la. Coloquemo-la de forma positiva: tudo é possível
àquele que crê.
Marcos narra o episódio no capítulo 9 (versículos 14 a
29).
Jesus cura o infeliz possesso que, segundo o pai, era
possuído por um Espírito mudo, que se apoderava dele em
qualquer lugar, derrubava-o ao solo, fazia-o espumar,
ranger os dentes, e o deixava rígido, provavelmente
desacordado. Os discípulos nada puderam fazer, e, depois
de curá-lo, o Cristo insiste em que tudo é possível àquele
que crê, e ainda mais: que aquela classe de espíritos não
poderia ser tratada senão com a prece.
Ao comentar a passagem, em “O Evangelho Segundo o
Espiritismo”, Kardec escreve que “a confiança nas suas
próprias forças torna o homem capaz de executar coisas
materiais, que não consegue fazer quem duvida de si”. No
contexto, porém, as palavras devem ser entendidas em seu
sentido moral. Não se trata, é certo, de remover montanhas
de terra e pedra, imagem usada pelo Cristo para fixar o seu
pensamento na memória dos ouvintes. “Da fé vacilante - diz
Kardec, pouco depois - resultam a incerteza e a hesitação,
de que se aproveitam os adversários que se tem de
combater; essa fé não procura os meios de vencer, porque
não acredita que possa vencer.” (Destaque meu.)
O comentário de Kardec é de transcendental
importância. Para não transcrevê-lo por inteiro, aqui, é
preferível recomendar que o leitor não deixe de estudá-lo e
de meditar pausadamente acerca de todas as suas
implicações, pois ele ocupa todo o capítulo 19 de “O
Evangelho Segundo o Espiritismo”, páginas 284 a 293, da
57ª edição da FEB.
É também aí que o Codificador escreveu sua famosa
sentença:
— Fé inabalável só é a que pode encarar de frente a
razão, em todas as épocas da humanidade.
Dificilmente se poderia dizer melhor, com tão poucas
palavras. A conceituação de fé tornou-se, com Kardec,
definitiva. Precisa ser inabalável, tem que “encarar a razão”
destemidamente, confiantemente, sempre, em todas as
épocas. Somente assim será inabalável. Fora disso, pode ser
crença, suspeita, opinião, parecer, conjetura, presunção,
mas não será fé.
Sem ela, o doutrinador estará desarmado, despreparado
para a sua tarefa, por mais bem-dotado que seja, com
relação aos demais atributos necessários à sua função.
Ele precisa estar confiante nos poderes espirituais que
sustentam o seu trabalho, sem os quais nenhuma tarefa de
desobsessão é possível, e todos os riscos são iminentes e
inevitáveis. Ele tem de saber que, ao levantar-se para dar
um passe, a fé lhe trará os recursos de que necessita para
servir. Ele deve saber que, ao formular sua prece, vai
encontrar a resposta ao que implora, em benefício do
companheiro que sofre.
Além disso, é a fé que lhe dá o apoio da confiança de
que ele precisa para aventurar-se pelas ásperas e
tenebrosas regiões do mais terrível sofrimento, do mais
angustioso desespero, dá mais violenta revolta. Se não tem
fé, não estará em condições de realizar o trabalho a que se
propõe.
Outro ingrediente necessário, na psicologia do
doutrinador, é o amor. Não é por acaso que nos textos
evangélicos caridade e amor são tratados como sinônimos.
Impossível seria considerar a caridade sem o amor, tanto
quanto o amor descaridoso. Por isso, traduções modernas
do Evangelho substituíram por amor a expressão caridade,
que aparecia nos textos mais antigos, do belíssimo capítulo
13, da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios:
— Ainda que eu fale a linguagem dos homens e dos
anjos, se não tenho amor, sou como o bronze que soa e o
címbalo que retine... Se não tenho amor, nada me
aproveita... O amor é paciente e serviçal... O amor não é
invejoso, nem presunçoso, não é temerário, nem
precipitado, não tem orgulho, não é interesseiro, não se
irrita, não se alegra com a injustiça e sim com a verdade. O
amor tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor não se
acaba nunca. Se tudo se acabasse, restariam a fé, a
esperança e o amor.
A Bíblia de Jerusalém lembra, em nota de rodapé, que a
expressão do original grego agapô, caracteriza bem a
gradação cuidadosa do sentimento que Paulo desejou
transmitir aos seus amigos de Corinto. Agapô é o amor-
benevolência, que se dirige, como força construtiva do bem,
em favor do próximo, diferente, portanto, do amor passional
e egoísta.
É desse amor-doação que precisa o doutrinador. Do
amor que, segundo o Cristo, devemos sentir, com relação
aos nossos próprios inimigos. É isto bem verdadeiro, no
caso da doutrinação de Espíritos conturbados, porque, ao se
apresentarem diante de nós, vêm com a força e a
agressividade de inimigos implacáveis. Se respondermos à
sua agressividade com a nossa, o trabalho se perde e
desencadeamos contra nós a reação sustentada da cólera,
do rancor, do ódio. Sem nenhuma figura de retórica, é
preciso ter, no trabalho de desobsessão, a capacidade de
amar os inimigos.
“É preciso - escrevia eu em “Reformador” de fevereiro
de 1975 - ter muito amor a dar, para distribuí-lo assim,
indiscriminadamente, a qualquer companheiro espiritual
que se manifeste. Muitas vezes, o médium doutrinador não
se encontra, na sua vida de encarnado, cercado pelo
sentimento de afeição de familiares e companheiros. Tem
seus parentes, vive rodeado de conhecidos, no ambiente de
trabalho, mas não conta com grandes afeições e
dedicações. A sustentação do seu teor vibratório, no campo
do amor, deverá vir de cima, e, para isso, precisa estar
ligado aos Planos Superiores, que o ajudam e assistem a
distância. Sem amor profundo, pronto na doação,
incondicional, legítimo, sincero, é impraticável o trabalho
mediúnico realmente produtivo e libertador.
É claro que estas observações são válidas para todos os
componentes do grupo, mas particularmente se dirigem ao
doutrinador, porque é ele o seu porta-voz, é nele que os
Espíritos desequilibrados identificam a petulante intenção
de interferir com seus planos pessoais, é ele, usualmente, o
responsável pela direção dos aspectos, por assim dizer,
terrenos, do trabalho. É lógico e natural, portanto, para os
irmãos desorientados, que se concentre no doutrinador
grande parte do esforço de envolvimento, bem como suas
cóleras e suas ameaças. O médium doutrinador tem que
devolver todo esse concentrado ataque vibratório,
transformado em compreensão, tolerância e,
principalmente, amor fraterno.
***
Isto não esgota, ainda, o rol das aptidões que devem
integrar a personalidade do doutrinador. Nem pretendemos
esgotá-lo aqui, ou afirmar que somente pode investir-se na
função de doutrinador aquele que possuir cumulativamente
todas essas virtudes. Não estamos ainda nesse estado
evolutivo.
Prossigamos, no entanto, ainda no exame dos
componentes morais e psicológicos da personalidade de um
bom doutrinador.
Se não dispuser de um mínimo de aptidões, o candidato
a tal função deve procurar desenvolvê-las, ou assumir outra
tarefa, para a qual, seus recursos pessoais sejam mais
adequados. Uma dessas virtudes é a paciência. Não pode
ele, sem prejuízo sério para o seu trabalho, atirar-se
sofregamente ao interrogatório do Espírito manifestante.
Tem que ouvir, aturar desaforos e impropérios, agressões
verbais e impertinências. Tem que aguardar o momento de
falar. Para isso, necessita de outra qualidade pessoal, não
particularmente rara, mas que precisa ser cultivada, quando
não despertada: a sensibilidade, que o levará a sentir
pacientemente o terreno estranho, difícil e desconhecido
em que pisa, as reações do Espírito, procurando localizar os
pontos em que o manifestante, por sua vez, seja mais
sensível e acessível. Isto se faz com uma qualidade pessoal
chamada tato, segundo a qual, vamos, pela observação
cuidadosa, serena, nos informando de determinada situação
ou acontecimento, até que estejamos seguros de poder
tomar uma posição ou uma decisão sobre o assunto.
A paciência, a sensibilidade e o tato nos facultam as
informações que buscamos, mas não disparam, por si
mesmos, os mecanismos da ação, ou seja, não nos indicam
a providência a tomar, nem nos sustentam no que fizermos.
Para isso, se pede outra disposição que poderíamos chamar
de energia, que deve ser controlada e oportuna. Há de
chegar-se a um ponto, na doutrinação, em que se torna
imperiosa a tomada de uma atitude firme, enérgica, que
não pode ser contundente, nem agressiva. É a hora da
energia, e o momento tem que ser o certo. Nem antes, nem
depois da oportunidade. Veremos isto, quando cuidarmos do
trabalho propriamente dito.
Há mais ainda.
O doutrinador deve estar em permanente estado de
vigilância, na mais ampla acepção do termo. Vigilância
quanto aos seus próprios sentimentos e pensamentos,
quanto às suas suposições e intuições, quanto ao que se
contém nas entrelinhas do que diz o manifestante, quanto
ao que ocorre à sua volta, com os demais componentes do
grupo, quanto à sua própria conduta, não apenas durante o
trabalho mediúnico, propriamente dito, mas no seu
proceder diário. Convém repetir: não precisa ser um santo,
e não o será mesmo. Vigilância e boa intenção não são
santidade. O doutrinador precisa servir em estado de alerta
constante.
Uma questão cabe introduzir aqui: convém que ele
disponha de alguma forma de mediunidade ostensiva? Em
Espiritismo, não há posições dogmáticas. Minha opinião
pessoal é a de que algumas formas de mediunidade são
desejáveis. Colocaria em primeiro lugar a intuitiva, através
da qual o doutrinador possa receber as inspirações de seus
amigos espirituais, responsáveis pelo trabalho, e
desenvolvê-las junto ao manifestante, com seus próprios
recursos e suas próprias palavras.
Em segundo lugar, poria a vidência, que certamente
auxiliará na visão de cenas e quadros, ou da aparência
pessoal do Espírito manifestante e de seus eventuais
companheiros. Será também útil dispor da faculdade de
clariaudiência, e, neste caso, ouviria diretamente as
instruções e “recados” do mundo espiritual, que fossem de
interesse para o seu trabalho. Isto, porém, não o coloca
inteiramente a salvo de alguma palavra, soprada
desavisadamente, que o leve a falsos caminhos.
Creio poder afirmar que não seria desejável qualquer
forma de mediunidade que colocasse o dirigente, ou
doutrinador, em estado de inconsciência. Ele precisa
manter-se lúcido durante todo o período de trabalho.
Uma confreira, experimentada nas lides espíritas,
contou-me que certa vez se encontrou ante a contingência
de dirigir uma sessão de desobsessão. Relutantemente,
concordou em assumir o encargo, pois temia que sua
ostensiva mediunidade de incorporação interferisse com a
boa marcha do trabalho. Realmente, foi o que aconteceu. Ao
iniciar a tarefa do diálogo com um Espírito manifestante,
começou a sentir-se envolvida, perdeu o fio da conversação
e, sentindo-se girar “como um parafuso” - disse ela - daí a
pouco estava, por sua vez, também incorporada, criando
certo pânico na sessão. Depois dessa experiência, ela
passou a recusar, com firmeza, qualquer solicitação para
funcionar como doutrinadora, dedicando-se a outras
atividades, tão nobres quanto essa, para as quais estava
perfeitamente preparada, com a abençoada mediunidade
de cura. Suponho que, por isso, a faculdade mais
comumente encontrada num doutrinador é, precisamente, a
intuição. Se ele procura sintonizar-se com o mundo
espiritual, esta via de comunicação bastará ao seu trabalho.
Por ela, seus companheiros mais esclarecidos se
comunicarão, com eficiência e oportunidade, para a ajuda
de que ele não pode prescindir. De uma vez por todas,
tiremos de nossa cabeça a noção falaz de que o bom
doutrinador pode dispensar a colaboração dos Espíritos
Superiores. Mais de uma vaidade tem sido explodida por
causa disso, e não poucas obsessões pertinazes têm
resultado dessa ingênua e perigosa imaturidade. Já fazemos
muito quando não atrapalhamos os dedicados
companheiros da Espiritualidade Maior. Se manifestamos a
tola pretensão de dispensar-lhes a ajuda, eles se afastarão,
com tristeza, é certo, mas com serenidade e sem remorsos,
de vez que jamais impõem a sua presença, nem a sua
vontade. Não há bom doutrinador sem a colaboração e o
apoio dos Espíritos mais esclarecidos. E, em breve, não
haverá nem bom nem mau, porque o pretensioso ficará
literalmente aniquilado pela obsessão ou pela fascinação de
Espíritos ardilosos, que se apresentam com nomes
pomposos e se arvoram, por sua vez, em doutrinadores do
doutrinador, pregando estranhas e confusas ideias.
Com isto, chegamos a outra faculdade necessária ao
doutrinador: a humildade. Ele vai precisar dela, com
frequência impressionante. A princípio, para aceitar as
ironias, agressões e impertinências dos pobres irmãos
atormentados. Depois, se e quando conseguir convencer, o
companheiro, de seus enganos e de seus erros, para não
assumir a atitude do vencedor que pisa na garganta do
vencido, para mostrar o seu poder e confirmar a sua
vaidade e seu orgulho. É a partir do momento em que o
turbulento manifestante de há pouco se converte em
verdadeiro trapo humano, arrependido e em pranto, que o
doutrinador deve mostrar toda a sua compaixão humilde e o
seu respeito pela dor alheia.
Tem, ainda, que ser humilde no aprendizado. Cada
manifestação traz a sua lição, a sua informação, a sua
surpresa. Em trabalho mediúnico, estamos sempre
aprendendo e nunca sabemos o suficiente. Se não nos
aproximarmos dele com humildade, pouco ou nenhum
progresso conseguiremos realizar.
A humildade é necessária, também, quando não
conseguimos convencer o companheiro infeliz. Precisamos
estar preparados para a derrota, em muitos casos. Nada de
pretensões tolas de que o trabalho foi cem por cento
positivo. Claro que positivo, em sentido genérico, ele
sempre o é. Mesmo naquele que não conseguimos demover
de seus propósitos, se tivermos tido habilidade e tato,
teremos realizado, no seu coração, a sementeira da
verdade. Um dia - não importa quando - ele vai lembrar-se
do que lhe dissemos e conferi-lo com a realidade. Não
contemos, porém, com o êxito total da conversão imediata
e definitiva, ao amor, de todos os Espíritos que nos são
trazidos. Muitos daqueles dramas, que se desenrolam diante
de nós, arrastam-se há séculos. Não se ajustam em minutos
de conversa. Humildade, pois, para aceitar esses casos e
continuar lutando. Não somos super-homens, nem
semideuses.
Humildade, ainda, quando precisarmos reconhecer o
potencial intelectual do irmão espiritual com o qual nos
defrontamos. E isso é muito frequente. Não quer dizer que
nos devamos curvar servilmente diante dele, rendendo
homenagens à sua inteligência e ao seu conhecimento;
quer dizer que precisamos admitir, às vezes, que não
estamos em condições de superá-lo naquilo que constitui o
seu ponto forte. Nem é essa a técnica recomendada.
Suponhamos que compareça, para conversar conosco, um
Espírito de elevada cultura, que lecionou em Faculdades,
ocupou assentos em Academias, recebeu, enfim, as
honrarias que tantos buscam, em vez da paz interior. Não é
no terreno dele que nós vamos medir, não é discutindo
Filosofia, com ele, que vamos convencê-lo de seus enganos.
Nesse campo, ele dispõe de mais recursos do que nós. E foi
justamente o debate inútil e o vão filosofar que arruinaram
sua vida espiritual. Ele precisa de atenção, fraternidade,
respeito e sinceridade, não de debates estéreis, nos quais
facilmente nos vencerá, para consolidar a sua vaidade
lamentável. Um pouco de humildade, da nossa parte, o
levará a respeitar-nos também, enquanto a exibição inútil
de precários conhecimentos filosóficos, e de medíocre
cultura intelectual, só poderá estimular nele o desprezo por
nós e pela nossa posição. Nada, pois, de aparentar o que
ainda não somos. E, mesmo que o fôssemos, a humildade,
ainda assim, seria indicada.
Lembremos ainda uma qualidade: o destemor. Já disse
alhures que, em trabalho mediúnico, temos que ser
destemidos, sem ser temerários. Coragem não é o mesmo
que imprudência.
O destemor é de extrema utilidade nas tarefas de
doutrinação. Fustigados pela interferência dos grupos
mediúnicos em seus tenebrosos afazeres, os Espíritos
violentos comparecerão possuídos de irritação, rancor e
ódio, mesmo. Manifestam-se aos berros, dão murros na
mesa, ameaçam céus e terras, procuram intimidar e
propõem-se a vigiar-nos implacavelmente, a atacar nossos
pontos fracos ou fazer um cerco impiedoso em torno de
nossa família, provocar acidentes, doenças, perturbações. O
arsenal de ameaças é vasto, e eles manipulam, com
extrema sagacidade, as armas da pressão. Se nos
deixarmos impressionar pelas verdadeiras cenas que fazem,
estaremos realmente perdidos, porque nos colocaremos na
faixa vibratória desejada por eles, Os benfeitores espirituais
sempre nos advertem, de maneira tranquila e segura:
— Nada de temores infundados. Sofremos apenas aquilo
que está nos nossos compromissos espirituais, e não em
decorrência do trabalho de desobsessão.
É verdadeiro, isso. Seria injusto, por parte das leis
supremas, que, evidentemente, governam o Universo, se a
paga da dedicação ao irmão que sofre resultasse em
sofrimento indevido e em punição imerecida. Estariam
subvertidos todos os princípios da Justiça Divina, se assim
fosse. É até possível que uma ou outra, das ameaças
esbravejadas contra nós, se cumpra, ou seja, aconteça
acidentalmente, como doença inesperada em um de nós, ou
em membro da nossa família. Estejamos certos de que, na
sessão seguinte, virá de novo o irmão infeliz, para se
vangloriar:
— Eu não disse?
Não tema, siga em frente. O trabalho está sob a
proteção de forças positivas e abençoadas. Isto, porém, não
significa que deveremos e poderemos deixar cair as
guardas. A proteção existe, mas não para dar cobertura à
imprudência, à irresponsabilidade.
Não custa, pois, anotar mais uma das aptidões
necessárias ao bom desempenho do trabalho mediúnico,
em geral, e do doutrinador, em particular: a prudência.
Se, porém, um acontecimento desagradável realmente
acontecer conosco, ou com alguém da nossa convivência,
nitidamente ligado ao trabalho mediúnico, nem assim
devemos nos desesperar e intimidar: estejamos certos de
que estava já nos nossos compromissos, e mais: os recursos
socorristas virão, sem dúvida alguma.
***
A longa digressão acerca das aptidões desejáveis a um
doutrinador não deve necessariamente desencorajar aquele
que pretende se preparar para a tarefa. Ele precisa saber
que o trabalho é árduo, os riscos são muitos, as
qualificações são, idealmente, rigorosas e numerosas, e
nenhuma projeção especial o espera. Ao contrário, quanto
mais apagado o seu trabalho, mais eficaz e produtivo.
Dificilmente um doutrinador reunirá tantos e tão grandes
atributos pessoais. Procuramos, aqui, traçar um perfil ideal
e, como todo ideal, difícil, senão impossível de ser atingido.
Que isso não desencoraje ninguém à responsabilidade do
trabalho. Os Espíritos amigos saberão dosar as tarefas,
segundo as forças e as possibilidades de cada grupo.
Por outro lado, o doutrinador é, usualmente, o para-raios
predileto do grupo, porque os Espíritos atribulados, trazidos
ao diálogo, com ele se entendem e se desentendem. É nele
que identificam a origem de seus problemas. É ele,
usualmente, o organizador ou responsável pelo grupo, bem
como o seu porta-voz junto ao mundo espiritual. Ainda
voltaremos a este tema fascinante, lançando mão de um
acervo de experiências pessoais preciosas.
Em suma, o doutrinador não pode deixar de dispor de
cinco qualidades, ou aptidões básicas:
Formação doutrinária muito sólida, com apoio
insubstituível nos livros da Codificação
Kardequiana.
Familiaridade com o Evangelho de Jesus.
Autoridade moral.
Fé.
Amor.
As demais são desejáveis, importantes também, mas
não tão críticas:
Paciência.
Sensibilidade.
Tato.
Energia.
Vigilância.
Humildade.
Destemor.
Prudência.
Com respeito ao doutrinador, falta ainda abordar um
aspecto final, antes de prosseguir.
Como é também o dirigente humano do grupo, precisa,
como já dissemos, estar consciente dessa responsabilidade
e usar sua autoridade com muito tato, sem abandonar a
firmeza. Disciplina não é sinônimo de ditadura. Quando o
grupo reunir-se, para debater problemas ligados ao
trabalho, deve o dirigente comportar-se como simples
participante, para estimular a criatividade e a contribuição
dos demais membros. No momento de tomar a decisão,
cabe a ele suportar os ônus e as responsabilidades
decorrentes. Precisa tratar a todos, médiuns ou não, com o
mesmo carinho e compreensão, sem paternalismos e
preferências, mas sem má vontade contra qualquer um dos
membros da equipe. Precisa despertar, nos seus
companheiros, a afeição, a camaradagem e o respeito.
Poderá ser o primeiro entre eles; certamente deverá ser o
único a falar com os Espíritos; mas não é o maior”.
A essa altura, dirá o leitor, algo inquieto:
— Mas é muito difícil ser doutrinador...
É verdade. É, sim.
5 - OUTROS PARTICIPANTES
Um grupo mediúnico não se constitui apenas de um
doutrinador e alguns médiuns já desenvolvidos e
preparados para os seus encargos. Há sempre outros
companheiros, sem mediunidade ostensiva, que podem e
devem participar, respeitados o limite numérico e a
qualificação pessoal anteriormente referidos.
Tais participantes merecem atenção e cuidados, como
quaisquer outros que integrem o grupo. Devem obedecer à
mesma disciplina, e entregar-se ao mesmo aprendizado
doutrinário e à mesma atenta observação a que cada um
dos demais é submetido, pois, ainda que não
manifestamente, também trazem ao grupo a sua
contribuição. São geralmente amigos e parentes de um ou
outro membro, e sentem-se atraídos pelo trabalho. É
necessário estudar bem e discutir com franqueza as suas
motivações. Estão interessados num trabalho sério,
cansativo, contínuo e disciplinado? Acham-se apenas
impulsionados pela curiosidade passageira? Integram-se
bem no grupo, mantendo boas relações de amizade com os
demais componentes? Estarão dispostos a contentar-se com
uma tarefa aparentemente inútil e apagada?
O trabalho, nos grupos de desobsessão, não oferece
atrativos àqueles que não estejam preparados para a
dedicação, sem escolher funções e sem buscar posições de
relevo. Não apresenta, ademais, fenomenologia espetacular,
para distrair aqueles que buscam nos fatos mediúnicos
apenas a manifestação mais dramática, como as de efeitos
físicos (materializações, transportes, levitação e outras),
nem comunicações de Espíritos luminosos ou célebres.
Nada disso. O trabalho é muito mais humilde, exige
dedicação, esforço concentrado, renúncia, paciência. O
grupo não se reúne para divertir-se com Espíritos, mas para
servir e aprender. Não esperemos revelações
extraordinárias, destinadas a abalar o mundo, nem convívio
com os Espíritos redimidos, que fiquem à nossa disposição,
para responder a qualquer pergunta ou fazer qualquer favor.
Por outro lado, o companheiro, ou companheira, sem
mediunidade ostensiva, pode deixar-se envolver pela
frustração, se não tem condições de “receber” Espíritos,
escrever páginas psicográficas, ver ou ouvir os
companheiros desencarnados. Muitos buscam aderir aos
grupos na esperança de que isto aconteça e, de uma hora
para outra, passem a funcionar como médiuns
perfeitamente ajustados. Raramente a mediunidade eclode
assim, espontânea e fulminante, pronta e afinada. Só
excepcionalmente isso acontece. A norma geral é o
desabrochar lento, muitas vezes penoso, a exigir estudo,
dedicação, orientação e renúncias bastante sérias. Quando
assistimos à manifestação de um Espírito sofredor, ou de
um dos instrutores anônimos do Mundo Superior, através de
um médium perfeitamente ajustado, não imaginamos
quanto trabalho preparatório foi necessário desenvolver, até
chegar àquele ponto; quantas dores, quanta vigilância, e
preces, incertezas, dificuldades e desenganos. Quem ouve o
consumado virtuoso do piano, facilmente é levado a
esquecer os longos anos de aprendizado, as cansativas
horas de exercício, o esforço constante de aprimoramento. É
como se contemplássemos um produto de apurado
acabamento, sem a menor noção de sua gênese e da
técnica e adestramento que a sua confecção exigiu do
artífice. E é por isso, também, que muitas mediunidades
ficam, por assim dizer, inacabadas, toscas e primitivas,
como obras que o artista não teve suficiente dedicação e
tenacidade para concluir. Dizem que o gênio é dez por cento
inspiração e noventa por cento transpiração; a mediunidade
talvez guarde relação semelhante. Portanto, ao
presenciarmos o suave fluir de uma bem treinada
mediunidade, manifestemos, intimamente, nosso respeito
pelo médium. Ele trabalhou muito e lutou muito para que
assim fosse. Nada de ciúmes pelo que ele faz, nem de
elogios balofos que o percam, mas nosso apreço, este sim,
lhe é devido.
Serão, então, dispensáveis os componentes do grupo
que não ofereçam condições mediúnicas? Não. Sua
participação é desejável. Se estão bem entrosados com as
demais pessoas e mantém atitude construtiva, contribuem
para a concentração das mentes no clima de segurança e
de harmonia, e prestam serviços relevantes de apoio. Ainda
que inconscientemente, muitas vezes têm papel importante
no grupo, fornecendo recursos vibratórios de alto valor.
É muito frequente ouvirmos desses companheiros uma
palavra de desânimo e desinteresse, por acharem que nada
estão fazendo no grupo, o que é falso. Os nossos instrutores
espirituais estão cansados de insistir em que todos os
recursos humanos colocados à disposição do trabalho são
aproveitados. Não é necessário que todos, indistintamente,
sejam médiuns, nem mesmo desejável. Os companheiros
sem mediunidade ostensiva precisam convencer-se de que
devem manter, em qualquer circunstância, e ao longo dos
anos, uma atitude construtiva e disposta à cooperação.
Deixem aos operadores desencarnados a incumbência de
decidir quanto à utilização dos recursos de cada um. A
atitude negativa acarreta dificuldades e desarmonias que
prejudicam seriamente as tarefas mediúnicas, da mesma
forma que o espírito crítico, ou de fria observação, como se
o membro do grupo fosse mero espectador.
Por mais de uma vez, tive oportunidade de verificar
casos específicos de atitudes assim, quando o companheiro,
ou a companheira, questionou a validade da sua presença
no grupo. A um desses, um dos Espíritos que se incumbiam
da orientação do grupo afirmou que, ao contrário, tal pessoa
nos prestava excelentes serviços, como “dínamo de
vibrações amorosas”, de que estava pleno o seu coração.
Esses recursos eram amplamente utilizados no trabalho,
sem que ela tivesse consciência do fato.
Além do mais, é comum desenvolverem-se nesses
companheiros preciosas mediunidades, que se acham
apenas em potencial, em período de expectativa e de
provas, para experimentar lhes a paciência e a tenacidade.
Com o decorrer do tempo, começa a ensaiar-se timidamente
a faculdade, numa rápida vidência, na captação de uma ou
outra palavra ou intuição. Quase sempre podem também
ser muito úteis como médiuns de passes, dado que
praticamente todos os seres humanos dispõem dessa
condição em potencial, se tiverem desejo de servir e pureza
de intenções. Há condições para desenvolvê-la
harmoniosamente, sob supervisão de alguém mais
experimentado. Neste caso, aqueles que não dispõem de
faculdades para incorporação, psicografia ou vidência,
poderão incumbir-se da nobre tarefa do passe reparador,
tão necessária num grupo de trabalhos práticos. A juízo do
dirigente, e por ele orientados darão passes nos médiuns,
após comunicações particularmente penosas, a fim de
ajudá-los no reequilíbrio de suas energias e aliviar aflições
residuais deixadas pelas vibrações dolorosas do
manifestante em desarmonia. Podem ainda contribuir para
a fluidificação da água.
Quanto ao mais, tenham paciência e portem-se com
humildade e respeito. É possível que, com o tempo, venham
a manifestar indícios indubitáveis de excelentes faculdades,
que poderão ser cultivadas e aproveitadas. Mantenham-se
em calma, sem açodamento ou excitação. Estudem e
observem.
O dirigente do grupo deverá ter sensibilidade bastante
para identificar os indícios e acompanhar cada caso
individual, com sabedoria e bom senso.
O participante, porém, precisa estar preparado para a
eventualidade de conviver com o grupo por longos anos,
sem que nenhum fenômeno ostensivo se passe na
intimidade de seu ser. Não pense, porém, que é inútil, só
porque não incorpora, não vê ou não ouve Espíritos; às
vezes, sua participação é preciosa. Conserve-se firme e
tranquilo; contribua para manter um bom ambiente de
vibrações amorosas, vigie seus pensamentos, permaneça
concentrado e em prece nos momentos mais críticos. Não
se aflija se a sua contribuição é menos ostensiva. Num
grupo bem harmonizado, todos são úteis e necessários,
como já ensinava Paulo, há tantos séculos:
— Com efeito - dizia ele aos Coríntios (Primeira Epístola,
capítulo 12, versículos 14 e seguintes) - o corpo não se
compõe de um só membro, senão de muitos. Se o pé
dissesse: “Como não sou mão, não pertenço ao corpo”,
deixaria de ser parte do corpo, por isso? E se o ouvido
dissesse: “Como não sou olho, não pertenço ao corpo”,
deixaria de ser parte do corpo, por isso? Se todo o corpo
fosse o olho, onde ficaria o ouvido? E se fosse todo ouvido,
onde ficaria o olfato?
Nada, pois, de ambicionar, ou mesmo desejar,
faculdades para as quais não estamos preparados, ou, pelo
menos, ainda não estamos preparados. Tenho, sob este
aspecto, uma experiência pessoal. Durante vários anos
frequentei um grupo mediúnico, sem saber ao certo o que
fazia. Sentava-me entre os companheiros, procurava portar-
me com respeito, atenção e vigilância interior. Nenhum
fenômeno, nenhuma forma de mediunidade, nem mesmo
uma palavra perdida, que eu tivesse captado, ou a fugaz
visão de um companheiro desencarnado. A tudo ouvia,
participando dos dramas e aflições dos irmãos
desarvorados, que então nos procuravam, acompanhando
com interesse as instruções e observações dos nossos
benfeitores desencarnados. Esse grupo, constituído de
pessoas que muito se estimavam e se mantinham bem
afinadas, não tinha, porém, a rigidez de uma disciplina mais
rigorosa. Vários dos seus componentes conversavam com os
Espíritos, ao sabor dos acontecimentos. Os resultados eram
bons, por certo, porque nos esforçávamos por manter a
harmonia. Sentíamos, no entanto, que poderíamos fazer
melhor a nossa tarefa, e, uma noite, antes da reunião,
tomamos algumas decisões mais drásticas. Como o grupo
não tinha uma liderança clara e específica, as tarefas foram
distribuídas por uma espécie de consenso geral: A, B e C se
limitarão às suas respectivas mediunidades, D fará as
preces de abertura e encerramento. E, voltando-se para
mim, disse aquele que estava com a palavra:
— Só você falará com os Espíritos.
Senti um “frio por dentro”. Eu? Que diria, meu Deus! Aos
irmãos aflitos e desarmonizados.
O aprendizado dos tempos em que fiquei como simples
observador revelou-se precioso, e, ainda que timidamente e
sentindo cuidadosamente o difícil terreno em que pisava,
comecei a tarefa que me fora atribuída procurando
corresponder às esperanças daqueles que me concediam.
E foi assim que, inesperadamente, me achei investido
de uma responsabilidade que nem suspeitava me seria
conferida.
Não Posso dizer se dei boa conta dela, mas, como me
conservaram no posto pelo resto do tempo em que o grupo
funcionou, creio que correspondi à confiança que em mim
depositaram.
Este episódio é aqui documentado, apenas para
enfatizar a circunstância de que, muitas vezes, estamos, no
grupo, sendo imperceptivelmente preparados e testados
para responsabilidades futuras. Esperemos com paciência. E
se não chegar o dia de uma participação mais dinâmica e
efetiva, ou, por outra, mais ostensiva, não importa; não
perdemos o tempo, ofertando o pouco de que dispomos:
alguém se beneficiou mesmo com esse pequeno óbolo da
viúva. Não somos julgados pelos resultados, mas pela boa-
vontade que evidenciarmos.
O dirigente do grupo deve estar bem atento a toda e
qualquer contribuição dessa natureza, estimulando-a com
interesse, Colocando à disposição do companheiro sua
experiência e orientação, procurando ajudá-lo, assisti-lo no
esclarecimento de dúvidas, estudando junto com ele, ou ela,
as dificuldades da tarefa, oferecendo sugestões, sem
colocar-se na posição de mestre infalível que tudo sabe,
pois em questão de mediunidade precisamos ser humildes e
sensatos para admitir que não sabemos tudo, longe disso;
aquele que souber um pouco, utilize seus conhecimentos de
maneira construtiva, sempre disposto a aprender mais, a
rever pontos de vista, a reaprender. Cada caso é diferente,
cada manifestação é diferente, uma vez que cada um de
nós é um ser diferente, a atestar a infinita capacidade
criadora daquele que nos formulou no seu pensamento e
nos deu forma, vida e consciência.
6 - OS ASSISTENTES
Dificilmente um grupo mediúnico deixará de ser
procurado por pessoas que desejam assistir aos seus
trabalhos. Uns por mera curiosidade, outros na esperança
de se deixarem convencer, ou de se manterem na sua
vaidosa e tola descrença, outros na expectativa de uma
cura, seja de males orgânicos, seja de desarmonizações
espirituais, como a obsessão, estados de angústia ou de
desespero, ante a partida de pessoas queridas.
Os motivos são muitos, certamente relevantes, e a nós,
espíritas, custa recusar pedidos de ajuda a pessoas que,
muitas vezes, nos são muito caras. O certo, porém, é que
não estaremos recusando ajuda simplesmente por não
concordarmos com o eventual comparecimento de alguém
aos trabalhos do grupo.
Sabemos que esta reserva é quebrada, com frequência,
em muitos grupos, enquanto outros adotam a prática de
abrir suas portas, em caráter permanente, seja a um público
reduzido e selecionado, seja a qualquer pessoa que se
apresente.
Na minha opinião, somente em casos excepcionais se
justifica a presença de pessoas estranhas ao grupo, nos
trabalhos de desobsessão. Sob condições normais, ela não é
necessária à tarefa que nos incumbe junto aos obsidiados
que buscam o socorro de um grupo mediúnico. Mais do que
desnecessária, a presença de pessoas perturbadas, no
ambiente onde se desenrola o trabalho mediúnico, pode
provocar incidentes e dificuldades insuperáveis. Sei que
alguns dirigentes de grupo objetarão a esse radicalismo;
julgo, porém, que, como regra geral, deve ser preservada a
intimidade do trabalho mediúnico. É preferível pecar por
excesso de rigor, do que arriscar-se a pôr em xeque a
harmonia e a segurança das tarefas. Em casos excepcionais,
grupos que contem com excelente cobertura espiritual
poderão admitir essa prática, mas, é bom repetir, não como
norma de procedimento O grupo pode perfeitamente assistir
os companheiros encarnados sob as provações da obsessão,
sem introduzi-los no seu ambiente de trabalho. Não é a
presença física deles, junto ao grupo, que vai facultar ou
facilitar a tarefa, ao contrário, essa presença pode causar
consideráveis transtornos. Os benfeitores espirituais
dispõem de recursos mais seguros e eficazes para isso, não
havendo necessidade de correr riscos indevidos. Assim, a
não ser que os responsáveis espirituais pelo trabalho
recomendem taxativamente a presença da pessoa, no
ambiente em que se realizam as sessões, isso deve ser
formalmente evitado.
Ainda que aqueles que solicitam nossa ajuda
interpretem a recusa como falta de caridade, ou ausência
de espírito de colaboração, sabemos que assim não é.
Também não se torna necessário descer a pormenores
explicativos e justificativos dessa atitude. Basta dizer ao
interessado que não é necessária à sua presença física,
para que o trabalho seja feito. E não é mesmo, na imensa
maioria dos casos. Pelo menos é essa a experiência que
tenho tido, em vários anos de prática.
O que acontece é que pessoas sob o domínio de
obsessores implacáveis e vingativos, rancorosos e violentos,
apresentam invariavelmente um componente mediúnico, ou
seja, são também médiuns, embora desgovernados,
desajustados e ignorantes de suas faculdades e
possibilidades.
No livro “Nos Domínios da Mediunidade”, narra André
Luiz o tratamento de um caso de possessão. Hilário
pergunta ao instrutor se deve considerar o doente, por
nome Pedro, como médium:
— “Pela passividade com que reflete o inimigo
desencarnado, será justo tê-lo nessa conta, contudo,
precisamos considerar que, antes de ser um médium na
acepção comum do termo, é um Espírito endividado a
redimir-se.”
E mais adiante, na página seguinte (76, da 6ª edição da
FEB):
“... Por esse motivo (compromissos do passado), Pedro
traz consigo aflitiva mediunidade de provação.” (Destaques
meus.)
Assim, na condição de médium desgovernado, e não
integrado na equipe que constitui o grupo que se incumbe
de socorrê-lo, o obsidiado, ou possesso, facilmente
introduzirá nele um fator de perturbação e desequilíbrio,
que poderá trazer sérias complicações, se o grupo não
estiver muito bem preparado para essa responsabilidade.
Em suma: a meu ver, como regra geral, o grupo
mediúnico não deve permitir a presença de pessoas
estranhas às suas tarefas. Somente em condições muito
especiais, excepcionais mesmo, deverá fazê-lo, se dispuser
de cobertura e consentimento expresso dos benfeitores
espirituais. Esses casos serão previamente selecionados
pelos mentores do grupo, e nem sempre conhecemos as
razões pelas quais assim decidem. Pode ser que o
tratamento exija certos tipos conjugados de mediunidade,
ou de recursos outros, de que o grupo não disponha no
momento, como, por exemplo, número maior de médiuns,
ou um doutrinador especial. Pode ser, também, que seja
necessária a presença de determinada pessoa encarnada,
com a qual desejam pôr o Espírito manifestante em
contacto direto. Pode ser, ainda, que não desejem, com um
caso especial, interferir no fluxo normal do trabalho. Ou
então, estaria havendo dificuldade em atrair o Espírito a ser
tratado, até o local onde habitualmente se realiza a sessão.
Enfim, há sempre razões respeitáveis, quando um dirigente
espiritual de nossa confiança propõe que o trabalho seja
feito à parte. Evidentemente, nessa hipótese, a sessão
exige tais cuidados que, obviamente, não poderia ser
realizada sob as condições normais. Nestes casos, os
Espíritos orientadores solicitarão uma sessão especial, em
dia e hora previamente combinados, designando, ainda,
quem dela deve participar.
Isso, no que diz respeito a pessoas perturbadas, sob o
domínio de rancorosos obsessores ou possessores; mas, e
aqueles que apenas desejam “assistir” aos trabalhos?
Devem ser admitidos? Na minha opinião, não. Não que o
grupo mediúnico seja uma sociedade secreta, hermética,
esotérica e misteriosa, mas, porque é da sua essência uma
atitude de recato, de sigilo, de discrição. O trabalho
mediúnico, especialmente o de desobsessão, não é para ser
divulgado, nem exibido, como espetáculo público.
Há algum tempo, um amigo a quem muito respeito e
admiro, pelas nobres qualidades de caráter e cultura,
começou a observar, em seu próprio lar, a formação de um
pequeno grupo mediúnico. Sem ser espírita, mas dotado de
curiosidade intelectual e pragmatismo, passou a assistir, a
distância, algumas sessões, e a solicitar livros, para
informar-se do assunto. Ao observar que os trabalhos
enveredavam, como acontece com frequência, pelo
atendimento aos sofredores desencarnados, me fez uma
pergunta perfeitamente válida:
Você não acha que existe aí um problema ético bastante
grave?
Queria referir-se, como explicou mais adiante, às
interferências voluntárias ou involuntárias, do grupo, em
problemas de outras pessoas, encarnadas ou não, e ao trato
das revelações de caráter íntimo, que ocorrem no
andamento dos trabalhos mediúnicos.
É certo, realmente que o diálogo com os Espíritos que se
arvoram em cobradores de faltas alheias traz revelações e
informações que devassam a intimidade alheia.
A pergunta, como disse é válida, e o problema,
antiquíssimo. Voltemos, Uma vez mais, à experiência e à
sabedoria do nosso amado Paulo:
— Pelo contrário - escreve ele, na Primeira Epístola aos
Coríntios, capítulo 14, versículos 24 e 25 - se todos
profetizam,* e entra um infiel, ou não-iniciado, será
convencido por todos, julgado por todos. Os segredos de
seu coração serão descobertos e, prostrado de rosto ao
solo, adorará a Deus, confessando que Deus está
verdadeiramente entre vós.
* Ao que se depreende do texto, Paulo dá o nome de profeta ao médium de
incorporação ou psicofônico.
Já naqueles recuados tempos, por conseguinte, dava-se
o fenômeno da indiscrição de espíritos afoitos, com relação
aos segredos da intimidade alheia. Paulo, no seu
pragmatismo via no caso o seu aspecto positivo, ou seja, o
de levar o descrente, que ele chama de infiel, ou não-
iniciado à crença e ao reconhecimento da presença de Deus
entre os primitivos cristãos. E isto é legitimo e proveitoso,
sem dúvida, porque muitos dos que se acham mais
fortemente entrincheirados nas suas descrenças e revoltas
precisam de um impacto maior para desalojarem-se do seu
comodismo ou de sua vaidade; não podemos no entanto,
perder de vista o fato de que a norma é o respeito à
intimidade alheia, com todas as suas fraquezas, suas
angústias, seus desenganos e seus erros, por mais
clamorosos que sejam. Quando, no decorrer do trabalho
mediúnico surge uma denúncia, ou revelação acerca das
fraquezas alheias, essa informação é recebida com reserva
e, se verdadeira, com redobrado respeito e discrição. Não é
para ser proclamada, divulgada ou comentada, nem mesmo
na intimidade da equipe de trabalho.
Todos nós estamos em posição vulnerável, com relação
a essas impiedosas indiscrições, que põem à mostra
aspectos de nossa pobre pessoa, que desejaríamos
continuassem em segredo. Por isso, precisamos estar
preparados para que tais revelações não nos apanhem de
surpresa e não nos atinjam de maneira a desequilibrar-nos.
Uma ocasião, no desespero angustioso de me ferir, um
companheiro, com poderosos recursos de hipnotizador,
trouxe ao nosso grupo o Espírito de um irmão meu,
desencarnado recentemente e ainda em difíceis condições
de desajustamento no mundo espiritual. Ou, talvez, nem o
tenha trazido, mas apenas imaginado o episódio como
estratagema, na desesperada tentativa de desarmonizar-
me. Dizia ele que meu irmão estava presente, sob seu
domínio, e aparentemente dirigindo-se a ele, dizia:
— Não tente escapar, que eu aperto mais o laço.
E voltando-se para mim:
— Ele gostava de tomar umas e outras, não é?
Graças a Deus, não me deixei impressionar. Dei-lhe
razão. Sim, infelizmente, meu irmão atormentou-se com o
vício do álcool, provavelmente sob a influência obsessiva de
algum antigo comparsa, ou vítima. Quem sabe se do
próprio, que ora me trazia? Felizmente, o ardil não produziu
os resultados que ele esperava. A conversa prolongou-se
por muito tempo e extravasou para outras sessões. O
companheiro acabou se convencendo, graças a Deus, e
partiu arrependido e em pranto.
De modo que, se o grupo está bem ajustado e
integrado, todos se estimam e se respeitam, não é a
leviandade de um pobre Espírito, em estado de angústia,
que vai desequilibrá-lo; mas, se há estranhos na sala, o
problema se torna bem mais sério.
Por outro lado, mesmo abstraindo essas ocorrências
mais graves, não podemos ignorar que há um clima de
sintonia espiritual entre os que participam de trabalhos
mediúnicos, tanto entre os encarnados como entre estes e
os orientadores desencarnados. A introdução de um
estranho causa certo desajuste, que nem sempre é possível
corrigir com facilidade e rapidez.
Tive, também, algumas experiências nesse sentido.
Por duas vezes quebramos, em um grupo mediúnico, a
regra que havíamos estabelecido, de não admitir pessoas
estranhas às tarefas. Não havia problemas particularmente
graves com essas pessoas, e nem as movia a simples
curiosidade. Num caso, tratava-se de um colega de trabalho
de dois dos membros do grupo. Embora não-espírita,
encarava com simpatia nossa Doutrina. Sua esposa
desencarnara relativamente jovem, e ele estava
profundamente abalado. A instâncias de um dos nossos
companheiros, resolvemos concordar com seu
comparecimento a uma das sessões semanais. Talvez
alimentasse ele a esperança de uma notícia acerca da
esposa ou, quem sabe? até uma palavra dela mesma...
Sentou-se em uma cadeira à parte, fora do círculo que
compunha a mesa, e lá ficou, em silêncio e em atitude
respeitosa.
Na verdade, sua presença não impediu a realização dos
trabalhos da noite, mas eles se arrastaram
dificultosamente; havia grandes hiatos entre uma
manifestação e a seguinte, e parecia pairar no ar certa
dissonância, que não conseguimos vencer, e que causava
inegável obstrução ao fluxo normal das tarefas da noite. É
certo que, conscientemente, ele não contribuiu para
dificultar-nos o curso do trabalho, e isso nem passaria pelas
nossas mentes; mas é evidente que a sua presença
desregulou qualquer coisa imponderável e acarretou a
necessidade de cuidados adicionais, por parte de nossos
benfeitores, para que a sessão pudesse realizar-se.
Esse aspecto negativo repetiu-se, com as mesmas
características, em circunstâncias semelhantes, com uma
jovem a quem concedemos permissão para assistir aos
trabalhos.
Depois dessas duas experiências, voltamos à rígida
política de não admitir ninguém, a não ser os componentes
regulares da equipe.
Essa, portanto, é a regra, imposta pela disciplina e pela
segurança da tarefa.
7 - RENOVAÇÃO DO GRUPO
Já discutimos ligeiramente o problema da exclusão de
algum participante do grupo mediúnico. Não creio que o
assunto esteja esgotado, mas não parece necessário
esmiuçá-lo mais. A disciplina e a coesão da equipe devem
ser mantidas serenamente e com firmeza. Se alguém
destoar, a ponto de introduzir um fator de perturbação,
deve ser afastado, temporária ou definitivamente, se for o
caso. Nada, porém, de perseguições, de espionagem e de
regras policiais. A disciplina deve ser consciente, para que
todos possam trabalhar de espírito desarmado e tranquilo.
Se os componentes do grupo não se entenderem, como
poderão oferecer, aos companheiros desarvorados do
mundo espiritual, o exemplo da solidariedade e da
compreensão? As organizações espirituais geradas e
mantidas na sombra podem ter inúmeros defeitos, mas são
implacavelmente disciplinadas. Guardemo-nos de imitar
essas formas de disciplina brutal e cruel, mas estejamos
sempre conscientes de que nenhum trabalho de equipe se
realiza sem um mínimo de ordem.
Por mais que nos pese, e por mais que relutemos
intimamente, é preciso dispensar o companheiro que traga
para dentro do grupo o fermento da dissidência, da
inquietação, da indisciplina, que pode neutralizar as
melhores intenções e provocar até a desagregação da
equipe.
Há, porém, o anverso da medalha. Como nos portarmos
diante das solicitações de adesão aos nossos trabalhos?
Sempre haverá um parente, ou amigo que, tomando
conhecimento da nossa atividade, deseje participar do
grupo, em caráter permanente. Devemos admiti-lo?
Em primeiro lugar: se já atingimos o número de
componentes inicialmente fixado como o máximo desejável,
não podemos cogitar de receber mais companheiros, ainda
que bastante credenciados. Se ainda não alcançamos o
número prefixado, podemos considerar a possibilidade. Em
qualquer caso, é necessário um exame bastante criterioso,
franco e leal, das qualificações e intenções daquele que se
oferece.
Não contemos, para ajudar a decisão, com uma palavra
decisiva dos companheiros desencarnados que nos
orientam. A experiência indica que, em grupos
responsáveis, dirigidos por Espíritos discretos e
esclarecidos, as deliberações quanto aos negócios, digamos
terrenos, do grupo, são deixadas aos encarnados. Os
benfeitores espirituais, mesmo consultados, recusam-se a
dar ordens ou decidir se um novo companheiro deve ser
admitido, ou se outro deve deixar o grupo. O problema é
nosso, dos que estão do lado de cá da vida. Respeitemos
esse ponto de vista e não tentemos forçá-los a dizer o que
não pretendem. Nas diversas vezes em que me vi diante do
problema da admissão de um novo membro, encontrei
sempre, em diferentes grupos, a mesma atitude, por parte
dos amigos espirituais: o problema era nosso. Estejamos,
pois, preparados para enfrentá-lo.
Como se faz isso?
É preciso considerar, de início, que a decisão final
deverá resultar de um consenso geral dos componentes do
grupo, evitando, tanto quanto possível, que predomine a
imposição ou a simples vontade de um só. A admissão de
um novo componente pode alterar profundamente a
estrutura e os métodos de trabalho da equipe, tanto num
sentido, como noutro, ou seja, tanto para o lado positivo
como para o lado negativo.
O novo companheiro pode trazer um bom acervo de
conhecimento ou de experiência, e dar impulso às tarefas,
revitalizando o grupo, trazendo uma contribuição
construtiva, dinamizadora e eficiente. Se, porém, está mal
preparado, ou infestado de frustrações, ou se deseja brilhar,
poderá, com sua influência, aniquilar o grupo.
Cabe-nos, pois, examinar com serenidade, e
desapaixonadamente, as suas credenciais. Que tem ele a
oferecer? Qual a sua experiência em outros grupos ou em
tarefas semelhantes? Qual o seu tipo de personalidade?
Ajustado, tranquilo, leal, disciplinado? Ou agressivo, crítico,
fechado, mal-humorado? Que tipo de trabalho pretende
realizar? É médium? Que faculdade mediúnica tem em
desenvolvimento ou já desenvolvida? Tem conhecimento
teórico da Doutrina? Relaciona-se bem com as pessoas?
Se essas e outras inúmeras indagações forem atendidas
satisfatoriamente, será considerada a possibilidade de
recebê-lo no grupo. Neste caso, e só então, deverão ser
expostas a ele, também com franqueza e serenidade, as
condições de trabalho, às quais ele deverá subordinar-se,
como os demais membros. Será debatida com ele a
natureza do seu encargo, ou seja, o que lhe competirá fazer
na equipe, e o que se espera dele.
Nada de processos iniciáticos, de rituais de “batismo”,
de simbolismos, de vestimentas especiais ou cerimônias de
qualquer natureza. Se nos convencermos de que ele, ou ela,
está em condições de integrar-se na equipe, é só apresentá-
lo aos demais companheiros e começar o trabalho.
Apreciemos o problema, agora, do ponto de vista do
candidato.
Se deseja participar das tarefas de determinado grupo,
deve certificar-se de que está disposto ao trabalho
construtivo e disciplinado. Certo, também, de que o grupo
lhe oferece as condições que ele entende como necessárias
e desejáveis. É um grupo sério, apoiado em boa base
doutrinária, bem integrado e formado de pessoas que se
estimam e se respeitam? Mais ainda: ele deve ter o que dar.
Juntar-se a um grupo para tirar partido, para buscar
vantagens e privilégios, não é estar pronto para trabalho de
tanta responsabilidade.
O candidato não deve impor condições, nem insistir na
sua admissão a qualquer preço. Se perceber que sua
adesão é inoportuna ou mesmo indesejada, ainda que não
indesejável, deve ter suficiente equilíbrio e bom senso para
recuar ou aguardar outra oportunidade. Sua presença não
deve ser impingida sob condições.
Suponhamos que seja admitido.
Deve procurar integrar-se no trabalho, observando tudo
sem espírito crítico negativo, sem desejo de aferir virtudes e
defeitos alheios. Mantenha-se discreto e tranquilo. Aguarde
o amadurecimento de suas impressões e a sua perfeita
sintonização com os demais companheiros. Se tiver alguma
contribuição positiva a fazer, com a intenção de melhorar o
trabalho, precisa de tato e bom senso ao apresentá-la. Faça-
o, de preferência, em particular, ao dirigente do grupo, com
habilidade e na oportunidade adequada.
É possível que a sua sugestão seja acolhida, mas pode
ser que o grupo tenha razões para agir da forma que, de
início, pode ter-lhe parecido suscetível de correção. Aja com
prudência, mas não deixe de expressar seus pontos de
vista, se os julgar oportunos e aplicáveis. Não se magoe, se
não forem acolhidos; não se vanglorie, se o forem.
Para resumir: os trabalhos mediúnicos devem ser
realizados em grupos fechados, mas não herméticos,
inacessíveis, inabordáveis. Tem que haver espaço para a
renovação de pessoas e de métodos. O próprio estudo, e a
prática decorrente do trato com os nossos companheiros
desencarnados - tanto instrutores e orientadores, como
Espíritos em desequilíbrio - nos trazem contribuições
importantes que, aqui e ali, aconselham correções e
reajustes no método de ação. Precisamos ter a coragem e a
humildade de abandonar práticas inadequadas e adotar
novos métodos, quando os antigos se revelarem
insuficientes ou impróprios. Ouçamos com atenção as
recomendações e as sugestões dos dirigentes espirituais da
tarefa. Empenhemo-nos em aprender com os nossos
próprios erros. Como estudantes que somos, e nada mais do
que isso, aprendemos mais e melhor, para nunca mais
esquecer, exatamente aqueles pontos sobre os quais
cometemos nossos piores erros, pois são eles que fazem
baixar a nota das nossas provas. E se estamos
sinceramente dedicados ao progresso espiritual, desejamos
com todo o interesse o certificado de conclusão do curso, a
fim de sermos, tão cedo quanto possível, promovidos à
admissão na próxima escola que está à nossa espera.
8 - OS DESENCARNADOS - OS ORIENTADORES
Sempre que um grupo de pessoas se reúne para
trabalho de natureza mediúnica, um grupo correspondente
de Espíritos se aproxima. Todos nós temos, no mundo
espiritual, companheiros, amigos e guias, tanto quanto
desafetos e obsessores em potencial ou em atividade.
Teremos que aprender a trabalhar com ambos os grupos.
Não vamos conviver apenas com aqueles que vêm para
ajudar-nos, e nem seria esta a finalidade de um grupo que
se prepara para a difícil tarefa da desobsessão. Além disso,
não podemos esquecer-nos de que somos todos irmãos,
apenas distribuídos em diferentes estágios evolutivos.
Enquanto alguns se acham à nossa frente, por terem
caminhado um pouco mais do que nós, outros nos seguem
um passo ou dois atrás. É da lei universal da fraternidade
que todos se apoiem mutuamente, para chegarem à paz
interior, que é o reino de Deus em cada qual.
Falemos primeiro dos irmãos que vêm nos ajudar a
servir.
É sempre um momento de emoção a primeira reunião
mediúnica de um grupo. Os resultados podem não ser
espetaculares - e geralmente não o são mesmo - porque os
companheiros incumbidos da nossa orientação ainda estão
trabalhando nos ajustes e nos testes, como o maestro
competente que verifica se todos os instrumentos estão
perfeitamente afinados. Se o grupo já dispõe de um ou mais
médiuns desenvolvidos, é certo que um Espírito amigo se
manifeste, para as primeiras palavras de estímulo e
encorajamento.
Nessa altura, é raro que tenhamos conhecimento da
natureza do trabalho que pretendam realizar conosco. É
certo, porém, que eles já dispõem de um plano, muito bem
estudado, compatível com as forças e possibilidades dos
trabalhadores encarnados. Os Espíritos sempre nos dizem
que precisam de nós para determinadas tarefas, que
somente podem ser desenvolvidas com o concurso da
mediunidade, ou seja, em contacto com o ser humano
encarnado.
Em “Reformador” de fevereiro de 1975, no artigo
intitulado “A Doutrinação: variações sobre um tema
complexo”, lembrei os preciosos esclarecimentos colhidos
no livro “Memórias de um Suicida”, que devemos à
abençoada mediunidade de Yvonne A. Pereira.
Tornara-se imperioso encontrar um grupo de médiuns
em condições de socorrerem Espíritos de suicidas:
“Chegara a um “impasse” o processo de recuperação. A
despeito do desvelo e competência dos técnicos e mentores
da organização espiritual especializada no tratamento dos
suicidas, um grupo deles se mantinha irredutivelmente fixo
nas suas angústias. Os casos estavam distribuídos, segundo
sua natureza, a três ambientes distintos: o hospital
propriamente dito, o isolamento e o manicômio. Uns tantos
desses, porém, “permaneciam atordoados, semi-
inconscientes, imersos em lamentável estado de inércia
mental, incapacitados para quaisquer aquisições
facultativas de progresso”. Tornara-se, pois, urgente
despertá-los para a realidade que se recusavam, mais
inconsciente do que conscientemente, a enfrentar. Trata-se
aqui de um conhecido mecanismo de fuga defensiva.
Inseguro e temeroso diante da dor que ele sabe ser aguda,
profunda e inexorável, o Espírito culpado se aliena, na
esperança de pelo menos adiar o momento duro e fatal do
despertamento. Em casos como esses é necessário, quase
sempre, recorrer à terapêutica da mediunidade. O Espírito
precisa retomar a sua marcha e o recurso empregado com
maior eficácia é o do choque, a que o autor de “Memórias
de um Suicida” chama de “revivescência de vibrações
animalizadas”. Habituados a tais vibrações mais grosseiras,
mostravam-se eles inatingíveis aos processos mais sutis de
que dispõem os técnicos do Espaço. Para que fossem
tocados na intimidade do ser, era preciso alcançá-los
“através da ação e da palavra humanas -Como estavam,
não entendiam a palavra dos mentores e nem mesmo os
distinguiam visualmente, por mais que estes reduzissem o
seu teor vibratório, num esforço considerável de auto
materialização.”
É para esse trabalho que os mentores espirituais
solicitam o concurso dos encarnados, que se torna, em
muitos casos, insubstituível, como vimos. Não sabemos,
pois, ao iniciar uma atividade mediúnica, que tipo de tarefa
nos será atribuída; podemos estar certos, não obstante, de
que os orientadores espirituais do grupo somente nos trarão
encargos que estejam ao nosso alcance. Sem dúvida
alguma, já estudaram nossas possibilidades e intenções.
“Memórias de um Suicida” nos fala dos longos e
cuidadosos preparativos, conduzidos no mundo espiritual,
como preliminares à tarefa mediúnica propriamente dita. É
preciso localizar um grupo que ofereça as condições de
segurança e amparo de que necessitam os Espíritos
transviados.
“Na Seção de Relações Externas - prossegue o
mencionado artigo de “Reformador” - são consultadas as
indicações sobre grupos espíritas que possam oferecer as
condições desejadas para o delicado trabalho.”
E mais adiante:
“Verifica-se a existência de grupos em Portugal, na
Espanha e no Brasil. Decide-se por este último e, em
seguida, são examinadas as “Fichas espirituais dos
médiuns” que compõem os grupos sob exame.” (Destaque
desta transcrição.)
Por aí se vê que os nossos grupos e os nossos médiuns
se acham meticulosamente catalogados nas organizações
do Espaço. Convém acrescentar que registros semelhantes -
obviamente para outras finalidades - existem também nos
redutos trevosos.
Por várias vezes tive a oportunidade de testemunhar
pessoalmente essa realidade. Espíritos desarmonizados
informaram-me que estávamos sendo rigorosamente
observados e estudados. Nossos menores gestos e palavras
eram como que filmados e gravados para exame e debate,
mais tarde, nas cúpulas administrativas do mundo das
sombras, a fim de melhor nos conhecerem e poderem
planejar a estratégia a ser usada contra nós. Certa vez, um
Espírito, particularmente agressivo e desesperado, dirigia-
se, de quando em quando, à sua equipe invisível e
recomendava:
— Gravem isto!
Ou então:
— Gravaram aí o que ele disse?
Não alimentemos, pois, ilusões. Contamos com a ajuda
e o apoio de companheiros bem esclarecidos e
competentes, mas precisamos oferecer-lhes um mínimo de
condições.
São enormes as responsabilidades desses amigos
invisíveis, e as qualificações exigidas, para as tarefas que
desempenham junto a nós, são rígidas. Poderíamos dizer
que cada grupo tem os guias e protetores que merece. Se o
grupo empenha-se em servir desinteressadamente, dentro
do Evangelho do Cristo, escorado na Doutrina Espírita,
disposto a amar incondicionalmente, terá como apoio e
sustentação uma equipe correspondente, de companheiros
desencarnados do mais elevado padrão espiritual,
verdadeiros técnicos da difícil ciência da alma.
O trabalho desses amigos é silencioso e sereno. A
competência costuma passar despercebida, porque parece
muito fácil fazer aquilo que aprendemos a fazer bem.
Quando vemos um operário altamente qualificado na sua
especialidade, ou um desportista bem treinado,
experimentamos o prazer de contemplar os gestos bem
medidos, a suave facilidade com que se desempenham.
Lembremo-nos, porém, do seu longo período de
adestramento, de estudo, de renúncia, e das suas
cansativas horas de trabalho monótono, de repetição e
correção.
Assim são os companheiros que nos amparam.
Apresentam-se, muitas vezes, com nomes desconhecidos,
falam com simplicidade, são tranquilos, evitam dar ordens,
negam-se a impor condições. Preferem ensinar pelo
exemplo, discorrendo sobre a anatomia do trabalho, diante
do corpo vivo do próprio trabalho. São modestos e
humildes, mas revestem-se de autoridade. Amorosos, mas
firmes, leais e francos. Aconselham, sugerem, recomendam
e põem-se de lado, a observar. Corrigem, retificam e
estimulam. Sua presença é constante, ao longo de anos e
anos de dedicação. Ligados emocionalmente a nós, às vezes
de antigas experiências reencarnatórias, trazem-nos a ajuda
anônima de que precisamos para dar mais um passo à
frente. Voltam sob seus passos, para estender-nos a mão, a
fim de que, a nosso turno, possamos ajudar aqueles que se
acham caídos pelos caminhos. Inspiram-nos através da
intuição, acompanham-nos até mesmo no desenrolar de
nossas tarefas humanas. Guardam, porém, o cuidado
extremo de não interferir com o mecanismo do nosso livre-
arbítrio, pois não se encontram ao nosso lado para resolver
por nós os nossos problemas, mas para dar-nos a
solidariedade do seu afeto. Mesmo no trabalho específico do
grupo, interferem o mínimo possível, pois sabem muito bem
que o Espírito desajustado precisa de ser abordado e
tratado de um ponto de vista ainda bem humano. Se fosse
possível resolver suas angústias no mundo espiritual, não
precisariam trazê-los até nós.
Essa mesma técnica foi usada com o próprio Allan
Kardec. Poderiam os Espíritos Superiores, que se
incumbiram de transmitir os fundamentos da Doutrina aos
homens, simplesmente ditar os livros que expusessem as
linhas mestras do pensamento doutrinário. Não foi assim
que fizeram, e isso teria sido, talvez, mais fácil. Preferiram
colocar-se à disposição de Kardec, para que ele formulasse
as perguntas, de uma óptica essencialmente humana. Os
ensinamentos destinavam-se aos homens, e caberia aos
homens, portanto, colocar as questões, de seu próprio
ponto de vista, de forma que as respostas viessem já
acomodadas às estruturas do pensamento do ser
encarnado.
A tarefa dos grupos mediúnicos de desobsessão apoia-
se nos mesmos princípios, pois também é trabalho de
cooperação e entendimento entre os dois planos da vida. Os
benfeitores espirituais não vão ditar um breviário de
instruções minuciosas. É preciso que fique margem
suficiente para a iniciativa de cada um, para o exercício do
livre-arbítrio, para que tenhamos o mérito dos acertos, tanto
quanto a responsabilidade pelos erros cometidos. Em suma,
os Espíritos não nos tomam pela mão, mas não deixam de
apontar-nos o caminho e seguir-nos amorosamente.
Não desejam, de forma alguma, que nos tornemos
dependentes deles, para qualquer passo que tenhamos de
dar. Dificilmente nos dizem o que fazer, ante duas ou mais
alternativas. Devemos ou não acolher um companheiro que
se propõe a trabalhar conosco? Devemos ou não excluir
outro, que não está se entrosando? São problemas nossos, e
temos que resolvê-los dentro do contexto humano, segundo
nosso entendimento e bom senso. A função dos
orientadores espirituais mais responsáveis não é ditar
normas. Mesmo com relação à essência do trabalho,
limitam-se a aconselhar e sugerir, mas não impõem a sua
vontade. E se insistimos em seguir pelas trilhas que nos
afastam do roteiro da verdade e da segurança, não nos
faltarão com suas advertências amigas, mas nos deixarão
palmilhar os caminhos da nossa preferência. Só que, por
esses atalhos, não poderemos continuar contando com o
mesmo tipo de apoio e sustentação. Haverão de nos seguir
a distância, amorosos e apreensivos, mas respeitando
nossas decisões, mesmo erradas.
Jamais nos recomendam ritos especiais, nem nos
obrigam a fórmulas dogmáticas rígidas e insubstituíveis,
como preces exclusivas, ou símbolos místicos e vestimentas
características.
Nada temos contra os grupos que seguem tais
recomendações, sob orientação de seus companheiros
desencarnados. Podem ser bem-intencionados e realizar
trabalhos de valor, com êxito, mas não são grupos
integrados na Doutrina Espírita, entendendo-se como tal a
Doutrina contida nos livros básicos da Codificação
Kardequiana. Merecem todo o nosso respeito e carinho;
nossa experiência ensina, não obstante, que podem realizar
o mesmo tipo de trabalho, ou melhor ainda, sem
necessidade de recorrer a práticas exteriores de suporte. O
suporte de que os grupos mediúnicos necessitam vem do
mundo espiritual superior, onde qualquer exteriorização
voltada para os aspectos materiais é dispensável. Nada,
pois, de velas, símbolos, imagens, ritos ou vestes especiais.
Não é preciso. E se um companheiro começar a recomendar
tais processos, podemos tranquilamente dissuadi-lo, com
bons modos, é claro, mas com firmeza.
***
Os amigos espirituais que se incumbem de orientar o
grupo raramente revelam toda a extensão de suas
responsabilidades e encargos. Somente a observação
atenta, no decorrer de muito tempo de trabalho, permite-
nos avaliar parcialmente a importância de suas presenças
junto de nós.
Geralmente fazem parte de amplas organizações
socorristas, que se incumbem de orientar e assistir
inúmeros grupos, onde se reúnem pessoas de boa-vontade,
ainda que de limitados recursos.
O trabalho que nos trazem obedece a planejamentos
cuidadosos, cuja vastidão e seriedade nem podemos
alcançar, para entender. Todo o seu esforço é conjugado
com o de outros Espíritos, encarnados e desencarnados. São
eles os preparadores das tarefas específicas do grupo, e são
eles que se incumbem de dar continuidade ao serviço,
depois que o Espírito necessitado é atendido. Sabemos
muito bem que a maior parte do trabalho, a mais delicada e
de maior responsabilidade, é feita no mundo espiritual. Os
Espíritos desarvorados, seja por que razão for, já vêm para
a manifestação mediúnica com um certo preparo prévio. Os
benfeitores espirituais é que se incumbiram de localizá-los e
desalojá-los de suas posições, muitas vezes tidas por
inexpugnáveis, para trazê-los até nós. Inúmeros recursos
são utilizados para isso. Técnicas de magnetização e
persuasão, ainda desconhecidas de nós, são aplicadas com
enorme competência e sentimento da mais funda
fraternidade. Frequentemente, os Espíritos atormentados
nem sabem por que se acham numa sessão, falando
através de um médium. Ignoram como foram trazidos, ou se
dizem convidados, julgando que vieram por livre e
espontânea vontade. Muitas vezes admitem estar
constrangidos, contidos, sob controle, mas não sabem de
onde vem a força que os contém.
Os benfeitores assistem à sessão, socorrem-nos com
seus recursos, nos momentos críticos, fazem pequenas
recomendações ou dão indicações sumárias, através da
intuição ou da mediunidade ostensiva de algum
companheiro. De outras vezes, em casos mais difíceis,
incorporam-se em outro médium, para ajudar no trabalho
de doutrinação ou de passes.
Encerrada a sessão, cabe-lhes recolher os companheiros
aflitos, estejam ou não despertados para a realidade maior.
Os Espíritos arrependidos e dispostos à recuperação são
levados a centros de reeducação e tratamento, e entregues
a outras equipes espirituais, já adestradas para esse tipo de
encargo, enquanto a tarefa no grupo mediúnico prossegue.
Durante a noite, enquanto adormecemos no corpo físico,
nossos Espíritos, desprendidos, parcialmente libertos,
juntam-se aos benfeitores, para o preparo das futuras
tarefas mediúnicas. Descemos, com eles, às profundezas da
dor e, muitas vezes, realizamos, com eles, autênticas
sessões em pleno Espaço, para o tratamento preliminar de
companheiros já selecionados para a experiência
mediúnica, ou irmãos que, já atendidos por nós, necessitam,
mais do que nunca, de assistência e amparo, para as
readaptações e o aprendizado que os levará à reconstrução
de suas vidas, desde o descondicionamento a dolorosas e
lamentáveis concepções, até o preparo de uma nova
encarnação.
Cabe às equipes de esclarecidos companheiros
desencarnados todo esse trabalho invisível, do qual
participamos, às vezes, como figuras sempre secundárias,
em nossos desprendimentos.
O nível espiritual e o “status” moral desses
companheiros revela-se na sua maneira de agir e falar.
Temos que aprender a formular sobre eles o nosso próprio
juízo. Com algum tempo de vivência na tarefa mediúnica,
estaremos em condições de fazê-lo com relativa segurança,
se nos mantivermos atentos e vigilantes. O grupo bem
orientado, e sustentado pela prece, pelo conhecimento
doutrinário e pela prática evangélica, contará sempre com o
apoio de companheiros desencarnados esclarecidos. Isto
não quer dizer, porém, que deveremos aceitar tudo quanto
nos vem do mundo espiritual, sem análise crítica. A
Doutrina Espírita não recomenda a aceitação cega de coisa
alguma; ao contrário, incentiva-nos a tudo examinar, para
acolher apenas o que a razão sancionar. Os Espíritos
esclarecidos não se aborrecem nem se irritam com esses
cuidados, que entendem necessários. É preciso, entretanto,
não cair no extremo oposto de tratar qualquer companheiro
espiritual com aspereza e desconfiança injustificáveis. Ao
cabo de algum tempo de convivência, formulado o juízo
sobre os nossos orientadores, saberemos identificá-los e
conheceremos seus métodos de ação. A delicadeza do
trabalho e seu ponto crítico estão exatamente nesse
balanceamento entre vigilância e confiança. Sem um
perfeito entendimento entre as equipes encarnada e
desencarnada, é impraticável um trabalho produtivo e
positivo. Temos que buscar o terreno comum da
harmonização e da integração, o que não é o mesmo que
aceitar tudo sem exame.
Essa vigilância, insistimos, é indispensável. Se o grupo
transvia-se, e vai insensivelmente afastando-se das boas
práticas doutrinárias, fica entregue à sua própria sorte. Esse
é o momento em que outros companheiros desencarnados
se aproximam, para substituir os mais esclarecidos. Em
casos assim, poderão tentar assumir também a identidade
dos que se afastaram. Não nos esqueçamos de que todos os
métodos são válidos para aqueles que se enquistaram no
transviamento moral. Se não estivermos atentos, nem
sentiremos a mudança, e, dentro em pouco, estaremos
inteiramente dominados, exatamente por aqueles que se
opõem aos nossos planos, envolvidos numa vasta e bem
urdida mistificação, quando não desarvorados também, com
o grupo em vias de desagregação, e até obsidiados ou
fascinados por Espíritos que se apresentam com nomes
importantes.
***
Os orientadores do grupo geralmente dirigem uma
breve palavra de saudação, no princípio da reunião, e uma
ou outra recomendação sumária. Fazem isso mais para
marcar sua presença, como se desejassem simplesmente
dizer: “Estamos aqui, amigos. Não temam.”
Durante o desenrolar dos trabalhos, portam-se com
discrição e serenidade, interferindo o mínimo possível, sem,
no entanto, deixarem de nos proporcionar toda a assistência
de que necessitamos.
Em casos extremos podem provocar a contenção do
manifestante, com seus recursos magnéticos, ou
incorporarem-se para um diálogo mais direto com o Espírito,
mas isto não é comum.
Ao final da sessão, cessado o trabalho de atendimento
aos sofredores, comparecem para uma palavra de estímulo
e de consolo. É esta a mensagem que, se possível, deve ser
gravada, porque contém, usualmente, preciosos
esclarecimentos acerca dos trabalhos, em particular, e
sobre a Doutrina, em geral.
Nenhum trabalho mediúnico sério é possível sem o
apoio desses dedicados e muitas vezes anônimos
companheiros, que, situados, quase sempre, em planos
muito superiores aos nossos, concordam em voltar sobre
seus passos e vir nos estender as mãos generosas e
seguras. A colaboração que lhes emprestamos é mínima,
em relação à que eles nos oferecem. Fazem muito mais por
nós do que nós por eles. E tudo no silêncio e na segurança
daqueles que não buscam reconhecimento nem aplausos.
Se tiverem que nos transmitir alguma instrução
específica, utilizar-se-ão preferentemente do tempo
destinado à comunicação inicial.
“Essa medida - escreve André Luiz, em “Desobsessão” -
é necessária, porquanto existem situações e problemas,
estritamente relacionados com a ordem doutrinária do
serviço, apenas visíveis a ele, e o amigo espiritual, na
condição de condutor do agrupamento, perante a Vida
Maior, precisará dirigir-se ao conjunto, lembrando
minudências e respondendo a alguma consulta ocasional
que o dirigente lhe queira fazer, transmitindo algum aviso
ou propondo determinadas medidas.”
A consulta não deverá descambar para assuntos de
natureza puramente pessoal, mas cingir-se às tarefas
específicas do grupo, Quando a orientação pessoal tornar-se
imperiosa, os companheiros desencarnados usualmente
tomarão a iniciativa de dizer uma palavra de esclarecimento
e ajuda. As perguntas deverão ser formuladas de maneira
sintética, e objetivamente, para não tomar tempo às tarefas
de atendimento. Não devemos tentar envolver os
orientadores espirituais em problemas que estejamos em
condições de resolver com os nossos próprios recursos.
9 - OS MANIFESTANTES
Variam muito as categorias de Espíritos que
comparecem a um grupo mediúnico. Vimos aqueles que
pertencem às equipes socorristas, dedicados ao bem, ao
trabalho construtivo, à renúncia, ao amor fraterno. Claro
que não são, nem se julgam, seres redimidos, à soleira da
perfeição. Ainda trazem, como todos nós, impurezas e
imperfeições, a que dão combate sem tréguas, nas lutas
redentoras em que se empenham, O próprio trabalho a que
se dedicam, de socorro às almas que sofrem dores maiores,
é um dos mais eficazes instrumentos de auto resgate.
Ninguém precisa, e ninguém deve esperar perfeição, para
servir, porque, então, nunca chegaríamos a fazê-lo.
No anverso da medalha encontramos os Espíritos
envolvidos em dolorosos processos de atordoamento moral.
Não nos iludamos com os seus rancores, sua gritaria, sua
violência e agressividade: são terrivelmente infelizes, a
despeito de tudo quanto digam ou façam. A couraça de ódio
de que se revestem não passa de uma defesa desesperada
contra a infiltração benéfica do amor. Temem mais o amor
do que o ódio, mas desejam-no acima de tudo neste mundo.
Não buscam, no fundo, outra coisa, senão serem
convencidos de seus erros, para retomarem o caminho
evolutivo, abandonado, às vezes, há séculos ou milênios. E,
coisa ainda mais estranha, trazem também amor no
coração, ainda que sepultado em profundas camadas de
desesperança e desenganos.
Sem a pretensão de cobrir todo o terreno e esgotar o
assunto, tentaremos apresentar e estudar algumas dessas
categorias.
10 - O OBSESSOR
Todo o capítulo 23 de “O Livro dos Médiuns” é dedicado
ao problema da obsessão, que Kardec considera, com a
lucidez que o caracteriza, um dos maiores problemas
decorrentes do exercício da mediunidade. Define ele como
obsessão “o domínio que alguns Espíritos logram adquirir
sobre certas pessoas”. Em artigo para “Reformador”,*
escrevi o seguinte: “... a palavra obsessão é termo genérico
de um fenômeno que pode desdobrar-se em três principais
variedades: a obsessão simples, a fascinação e a
subjugação. A primeira delas é a menos perniciosa porque,
usualmente, o médium - pois todo obsidiado tem forte
componente mediúnico - está consciente das manobras e
dissimulações do Espírito, o que certamente o incomoda,
mas não o perturba a ponto de provocar desarranjos
mentais.”
* “Reformador” de maio de 1074, artigo “Possessão e exorcismo”.
Esse artigo prossegue comentando Kardec, para dizer
que a fascinação é bem mais grave, “porque o agente
espiritual atua diretamente sobre o pensamento de sua
vítima, inibindo-lhe o raciocínio e levando-a à perigosa
convicção de que as ideias que expressa, por mais
fantásticas que sejam, provêm de um Espírito de elevado
gabarito intelectual e moral. Seu engano é evidente a todos,
menos a ele próprio, que segue, fascinado e servil, o
Espírito que se apoderou sutilmente de sua mente”.
“Na subjugação” - diz ainda o artigo - “Kardec distingue
dois aspectos: a moral e a corporal. No primeiro caso, o ser
encarnado é constrangido a tomar atitudes absurdas, como
se estivesse completamente privado do seu próprio senso
crítico. No segundo caso, o obsessor “atua sobre os órgãos
materiais e provoca movimentos involuntários”, obrigando a
sua vítima a gestos de dramático e lamentável ridículo.”
Acha, por isso, o Codificador, “que o termo subjugação é
mais apropriado do que possessão, de uso mais antigo”.
Nessa linha de raciocínio, portanto, o que conhecemos por
possessão não seria senão um caso grave e extremo de
obsessão.
Ao reexaminar o problema, em “A Gênese”, Kardec
chama a obsessão de “ação persistente que um Espírito
mau exerce sobre um indivíduo”, enquanto na possessão,
“em vez de agir exteriormente, o Espírito atuante se
substitui, por assim dizer, ao Espírito encarnado; toma-lhe o
corpo para domicílio, sem que este, no entanto, seja
abandonado pelo seu dono, pois que isso só se pode dar
pela morte. A possessão, conseguintemente, é sempre
temporária e intermitente, porque um Espírito
desencarnado não pode tomar definitivamente o lugar de
um encarnado, pela razão de que a união molecular do
perispírito e do corpo só se pode operar no momento da
concepção”. (Os destaques são desta transcrição.)
“Ensina Kardec” - prossegue o artigo - “que, na
obsessão grave, o obsidiado fica envolto e impregnado de
fluídos perniciosos que cumpre dispersar pela aplicação “de
um fluído melhor”, ou seja, por processos magnéticos,
através de passes, por exemplo.”
“Nem sempre, porém” - adverte Kardec - “basta esta
ação mecânica; cumpre, sobretudo, atuar sobre o ser
inteligente (destaque do original) ao qual é preciso se
possua o direito de falar com autoridade que, entretanto,
falece a quem não tenha superioridade moral. Quanto maior
esta for, tanto maior também será aquela.”
E acrescenta:
“Mas, ainda não é tudo: para assegurar a libertação da
vítima, indispensável se torna que o Espírito perverso seja
levado a renunciar aos seus maus desígnios; que se faça
que o arrependimento desponte nele, assim como o desejo
do bem, por meio de instruções habilmente ministradas, em
evocações particularmente feitas com o objetivo de dar-lhe
educação moral. Pode-se então ter a grata satisfação de
libertar um encarnado e de converter um Espírito
imperfeito.” (Destaques desta transcrição.)
Ninguém poderia descrever melhor, em tão poucas
palavras, o programa - síntese do processo de desobsessão:
o obsessor não deve ser arrancado à força ou expulso. Ele
precisa ser convencido a abandonar seus propósitos e
levado ao arrependimento. Isto se faz buscando com ele um
entendimento, um diálogo, pelo qual procuremos educá-lo
moralmente, mas sem a arrogância do mestre petulante, e
sim com o coração aberto do companheiro que procura
compreender as suas razões, o núcleo de sua problemática,
o porquê da sua revolta, do seu ódio. Por mais violento e
agressivo que seja, é invariavelmente um Espírito que sofre,
ainda que não o reconheça. A argumentação que
utilizarmos tem que ser convincente.
A obsessão é, amiúde, um processo de vingança.
Deseducado moralmente, como diz Kardec, o Espírito
perseguidor busca alívio para o seu sofrimento fazendo
sofrer aquele que o feriu, tornando-se ambos infelizes e
envolvendo ainda outros nas tramas das suas desgraças. É
preciso observar, no entanto, que tudo está previsto nas leis
divinas, que, ao mesmo tempo em que permitem a
cobrança de nossas faltas, nos liberam, pelo resgate. A
obsessão é impotente diante de Espíritos redimidos.
Voltaremos a cuidar do problema, quando tivermos de
conversar, mais adiante, acerca das técnicas e recursos
sugeridos para o trabalho.
11 - O PERSEGUIDO
A vítima da obsessão é sempre uma alma endividada
perante a lei. De alguma forma grave, no passado mais
recente, ou mais remoto, desrespeitou seriamente a lei
universal da fraternidade, vindo a colher, como
consequência inexorável, o sofrimento.
A falta cometida contra o semelhante expõe seu autor
aos azares do resgate, mesmo que a vítima o tenha
perdoado imediatamente. Muitas vezes, a vingança como
que se despersonaliza, passando a ser exercida não por
aquele que foi prejudicado, mas por alguém em seu nome,
ainda que não autorizado por ele. Não importa que o
perseguido, ou obsidiado, esteja na carne ou no mundo
espiritual. Não importa que se lembre ou não da ofensa.
Não importa que a falta tenha sido cometida nesta vida ou
em remotas existências. O vingador implacável acaba
descobrindo o seu antigo algoz, mesmo que este se oculte
sob os mais bem elaborados disfarces, ligando-se a ele por
largo tempo, vida após vida, aqui e no Espaço, alucinado
pelo ódio, que não conhece limites nem barreiras.
Em “Dramas da Obsessão”, narra o Dr. Bezerra de
Menezes, pela mediunidade de Yvonne A. Pereira, um caso
desses:
“Aterrorizado ante as vinditas atrozes movidas pelos
Espíritos de seus antigos amos de Lisboa, o Espírito João-
José preferiu ocultar-se numa encarnação de formas
femininas, esperançado de que, assim disfarçado, não
pudesse ser reconhecido. Enganou-se, porém, visto que sua
própria organização psíquica atraiçoou-o, modelando traços
fisionômicos e anormalidades físicas idênticas aos que
arrastara na época citada.”
Uma vez identificado o antigo devedor, mesmo sob
formas femininas, desencadeou-se sobre ele toda a
tormenta da obsessão.
Temos tido, em nossa experiência direta, casos
semelhantes. Um foi particularmente doloroso e aflitivo,
porque os compromissos do obsidiado eram muito graves e
suas dívidas cármicas acusavam reincidências lamentáveis,
que o deslocavam da posição de ex-algoz para a de joguete
impotente de implacáveis vingadores. Começamos a cuidar
dele, na esperança de minorar lhe as dores, quando ainda
encarnado. Por algum tempo, conseguimos aliviar a pressão
que se exercia, dia e noite, sobre ele e sua família. Em
nosso grupo, assistimos a um trágico e incessante desfile de
companheiros desarmonizados que enxameavam em torno
dele, cada qual mais revoltado e odiento. Seus
compromissos eram tantos, e tão sérios, que não
conseguimos livrá-lo das suas dores, embora tenhamos
alcançado, com a graça de Deus, apaziguar muitos dos seus
temíveis carrascos e atraí-los para as tarefas de
recuperação.
Como o seu caso tinha implicações profundas com o
nosso plano geral de trabalho, segundo nos explicaram
nossos mentores, tratamos dele por muito tempo ainda,
havendo neste livro várias referências esparsas sobre ele,
com os cuidados necessários para não identificá-lo.
Verdadeira multidão de Espíritos atormentava este
irmão, jovem ainda na carne. Ao que me disse, certa vez,
um de seus obsessores, custaram um pouco a identificá-lo
em sua nova roupagem. Uma vez, porém, localizado,
reuniram-se em torno dele, num cerco implacável, que
durava as vinte e quatro horas do dia, aqueles que ainda se
sentiam com suas contas por ajustar com ele.
Seguiam-no nos seus afazeres diários e o atormentavam
durante o desprendimento do sono, espetavam-lhe
“agulhas” de todos os tamanhos, impunham-lhe longos
períodos de alienação, sopravam-lhe constantemente a
ideia do suicídio, tomavam-lhe o corpo, inúmeras vezes,
para as mais tresloucadas atitudes, para fugas, caminhadas,
crises de mutismo; postavam-se diante de sua visão
espiritual, sob formas monstruosas; neutralizavam o efeito
de intensivo tratamento médico e espiritual; indispunham-
no com a família e descontrolavam lhe o pensamento,
descoordenando lhe as ideias.
Ao que nos foi indicado, em tempos da Roma antiga,
exerceu, com destaque, o poder, e ajudou a desencadear
uma das mais terríveis perseguições aos cristãos. É certo
que suas vítimas daquela época o perdoaram, se foram
realmente seguidores fiéis do Cristo. Mas, e os outros, que
lhe guardaram rancor? A quantos teria ele mandado tirar a
vida, os bens, os amores, as esperanças, sem que
estivessem preparados para suportar essas perdas, com
equilíbrio e resignação?
Ao cabo de alguns anos de implacável perseguição de
seus adversários, enceguecidos pelo ódio, e a despeito de
todo o cuidado de que foi cercado, o pobre companheiro
desencarnou tragicamente.
A perseguição continuou, talvez ainda mais encarniçada,
do outro lado da vida. Estava agora mais exposto, mais
acessível à abordagem de seus algozes, pois as obsessões
não se limitam a atingir os encarnados. Ao contrário, os
desencarnados são mais vulneráveis do que os encarnados,
pois estes dispõem do “esconderijo” do corpo físico e se
acham beneficiados pelo esquecimento temporário de suas
faltas, o que, de certa forma, lhes dá alguma trégua, em
virtude do descondicionamento vibratório. A lembrança
constante dos crimes que cometemos nos mantém
sintonizados com os perseguidores, e eles tudo fazem para
que não nos esqueçamos dos erros praticados. Enquanto
estamos remoendo nossas faltas, continuamos ligados aos
obsessores.
Devemos, então, esquecer de tudo, como se nada
tivesse acontecido? Não, certamente. O arrependimento,
porém, tem que ser construtivo, ou seja, ele não deve
paralisar-nos. Cientes ou não da gravidade das nossas faltas
- e, sem dúvida alguma, praticamo-las abundantemente no
passado - é imperioso que nos voltemos para as tarefas de
reconstrução interior, de dedicação ao semelhante que
sofre, de policiamento de nossas atitudes, palavras e
pensamentos. É preciso orar, servir, buscar reacender a
chamazinha do amor, que existe em todos nós.
— Vai e não peques mais - disse o Cristo.
Por muito tempo se pensou que isso fosse apenas um
tema sugestivo, para pregar sermões bonitos; hoje sabemos
da profunda realidade que encerra o ensino evangélico. O
Cristo sempre ligou o problema do sofrimento, físico ou
espiritual, ao do erro.
— Estás curado - diz Ele ao paralítico, a quem mandou
tomar a sua cama e andar - não peques mais, para que não
te suceda algo ainda pior. (João, 5:14.)
Dessa forma, o erro - que os evangelistas chamam de
pecado - acarreta o sofrimento, a punição, o resgate. Não
que tenhamos de nos redimir necessariamente através do
mecanismo da dor. A dor não é inevitável, porque o
processo da libertação pode dar-se também por meio do
serviço ao próximo, do aperfeiçoamento moral, da prece e
da vigilância. Da mesma forma, aquele que foi ferido pelo
seu companheiro, por mais gravemente que o tenha sido,
não deve nem precisa tomar a vingança em suas mãos,
para que o outro resgate a sua falta. A lei do equilíbrio
universal se incumbirá dele, senão hoje, no próximo século,
ou no próximo milênio, O resgate pode ser
despersonalizado, isto é, ninguém deve nem precisa
arvorar-se em seu executor. Isto não significa que, ao
sermos ofendidos, devamos transferir o nosso impulso de
vingança às leis de Deus. São muitos os que não tomam
realmente a vingança em suas mãos, mas pensam, na
intimidade do seu ser, com o mesmo rancor:
— Ele pagará!
É verdade, ele pagará, seja com a moeda da dor, seja
com a do amor, mas se emitimos o nosso pensamento de
vingança e ódio, continuamos ligados ao erro, reassumimos
os compromissos que poderíamos ter resgatado com aquela
humilhação ou aquele sofrimento, pois é certo que ninguém
sofre por acaso, dado que não há reparos dolorosos como
forma de punição aos inocentes.
Neste ponto, mais de uma lição encontramos, ainda e
sempre, no Evangelho de Jesus. E é por isso que nenhum
trabalho de desobsessão, digno e sério, deve ser intentado
sem apoio nos ensinamentos do Cristo.
A questão é tão Importante, tão vital à problemática do
espírito, que Jesus a imortalizou no texto da oração
dominical, o Pai Nosso:
“... perdoa-nos as nossas dívidas - relata Mateus, 6:12 -
assim como perdoamos os nossos devedores..
No versículo 14, desse mesmo capítulo, Jesus é ainda
mais explícito:
— “Que se perdoardes aos homens as suas ofensas,
também vos perdoará o vosso Pai Celestial; mas se não
perdoardes aos homens, tampouco vosso Pai perdoará as
vossas ofensas.”
Sob as luzes da Doutrina Espírita, o texto adquire uma
dimensão que antes não havíamos notado. É que o perdão
que concedemos àquele que nos feriu não lava o ofensor do
seu pecado, ou seja, da sua falta, mas libera o ofendido,
que, com o perdão, evita que se reabra o círculo vicioso do
crime para resgatar o crime. Nesse angustioso círculo de
fogo e lágrimas, de revolta e dor, ficam presas, por séculos
e séculos, multidões enegrecidas pelo ódio e nunca
saciadas pela vingança, pois a vingança não sacia coisa
alguma, ela apenas junta mais lenha na fogueira que arde.
Por muito tempo achamos que toda essa doutrina do
perdão fosse apenas um belo conjunto de figuras de
retórica. A Doutrina dos Espíritos veio propor-nos um
entendimento infinitamente mais racional e objetivo: o de
que o perdão liberta. Não é uma simples teoria, é uma
verdade, que o Cristo nos ensinou, mas que tanto temos
relutado em experimentar.
Também neste ponto tivemos, certa vez, uma
experiência inesquecível. Um companheiro desencarnado,
em lamentável estado de desorientação, perseguido por
uma pequena multidão de implacáveis obsessores, acabou
por ser recolhido pelos trabalhadores do bem. Alguns de
seus perseguidores foram tratados e reeducados
moralmente, como ensina Kardec. Outros se afastaram, por
sentir que a vítima punha-se fora de seu alcance. Alguns
deles continuaram a ser levados ao grupo de desobsessão,
a fim de serem doutrinados, e, no desespero em que viviam,
descarregavam todo o seu rancor e agressividade sobre os
componentes da equipe de socorro, especialmente contra o
doutrinador, por ser este o porta-voz, aquele que fala e
procura convencê-los a abandonar seus propósitos, que eles
julgam justíssimos.
Pois bem. Certa noite, volta, para receber os nossos
cuidados, o companheiro que havia sido recolhido. Estava
novamente em poder de um impiedoso hipnotizador, de
quem já o havíamos subtraído, a duras penas. Ele próprio
confessou o seu drama: recaíra na faixa vibratória de seus
perseguidores, ao deixar tombar as guardas que o
protegiam. No decorrer do diálogo revelou-se mais
impaciente do que nunca, exigindo, quase, solução imediata
para o seu caso, pedindo a presença de parentes, sem
nenhum desejo de entregar-se à prece e, acima de tudo,
pronto para a vingança! “Assim que estivesse em
condições” - e exatamente por isso não conseguia alcançar
tais condições - “ele”, o obsessor, “iria ver...”
Meu Deus, como poderemos negar o perdão ao que nos
feriu, se o exigimos para nós, exatamente para as dores que
resultaram da nossa imprudência em ferir os outros?
O obsidiado só pensa em livrar-se de seus adversários, a
qualquer preço, mas se esquece, ou ignora, que ele também
está em dívida perante a lei, pois, de outra maneira, não
estaria sujeito à obsessão, o obsessor, por sua vez, procura
punir o companheiro que o fez sofrer, deslembrado de que
ele próprio criou, com a sua incúria, as condições para
merecer a dor que lhe é infligida. Julga-se no direito de
cobrar, pensando assim cumprir a lei de Deus, para que a
“justiça” se faça. E, de fato, a lei do equilíbrio universal
coloca o ofensor ao alcance da punição, que é, em suma, a
oportunidade do reajuste. Por isso, dizia o nosso Paulo, em
sua penetrante sabedoria:
— Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém.
Com frequência, os perseguidos apresentam-se em
nossos grupos, nos primeiros momentos da libertação.
Quantos dramas, Senhor! Vêm transidos de pavor, cansados
de prisões tenebrosas, fugindo de obsessões que lhes
parecem terem durado uma eternidade. Esgotaram todo o
cálice de profundas amarguras, sofreram todos os
tormentos, passaram por todas as humilhações,
submeteram-se a caprichos e desmandos, cumpriram
ordens iníquas.
Um desses nos disse que estivera num dos calabouços
infectos das trevas, onde nem chorar podia. Passaram-se
séculos. Só nos pôde dizer que foi um sacerdote e que traiu
alguém. Sente agora o peso de um enorme arrependimento
e, quando convidado a orar comigo, não tem coragem de
dirigir-se a Deus, pois se julga o último dos réprobos. A
muito custo, consegue murmurar uma palavra:
— Jesus!...
E fala baixinho, consigo mesmo:
— Que sacrilégio, meu Deus!
Outro, também egresso de um calabouço, não
conseguia articular a palavra; fazia entender-se por gestos.
Trazia um peso na cabeça, que o obrigava a manter-se
curvado sobre si mesmo e, além de tudo, estava cego.
Um terceiro apresenta-se com as “carnes” roídas pelos
“ratos” e “baratas”, após um longo período de reclusão.
Quase todos trazem ainda no perispírito os estigmas de
suas penas: cegueira, deformações e mutilações, e, na
mente, a lembrança de torturas e horrores inconcebíveis.
Subitamente, ao cabo de agonias seculares, durante as
quais resgataram-se através da dor, escapam à sanha de
seus perseguidores, tornam-se inacessíveis aos seus
processos, evadem-se das masmorras e libertam-se do
domínio magnético sob o qual se encontravam. Em suma: a
Lei disse o “Basta!” a que até mesmo o mais terrível
perseguidor tem de obedecer, ao assistir, impotente, à
escapada da vítima. Chegou ao fim o processo corretivo e
reajustador. Antes, era impossível: ninguém conseguiria
interromper o curso da dor.
Este é o exemplo vivo da experiência mediúnica.
Espíritos superiores, e já redimidos, seguem-nos os passos,
até mesmo às profundezas da dor mais horrenda, sem
poderem interferir senão com uma prece, ou uma vibração
amorosa, pois o pobre companheiro transviado nem mesmo
a presença dos amigos maiores pode perceber. Chegado,
porém, o momento, tudo se precipita. Os mensageiros do
bem estão apenas à espera de uma prece, ainda que
somente esboçada, de um impulso de arrependimento, de
um gesto de boa-vontade ou de perdão. Lembram-se da
advertência do Cristo?
— Reconcilia-te com teu adversário enquanto estás a
caminho com ele, para que não te arraste ele ao juiz, e o
juiz te entregue ao oficial de justiça, e este te ponha no
cárcere. Digo-te que não sairás de lá enquanto não tiveres
pago o último centavo.
Não está bem claro?
E muitos ainda acham que o Evangelho é só literatura...
ou só poesia, ideal, inatingível... Razão de sobra teve Kardec
para optar pela adoção da moral evangélica, pois há mais
sabedoria e ciência nos textos ali preservados, do que em
todos os tratados de psicologia jamais escritos e nos que
ainda se escreverão. A problemática do ser humano, suas
complexidades e seus mecanismos de reajuste, estão
inseparavelmente ligados aos conceitos fundamentais da
moral. Um dia, a psicologia e a psiquiatria descobrirão o
Cristo.
12 - DEFORMAÇÕES
O perispírito é o veículo das nossas emoções. O Espírito
pensa, o perispírito transmite o impulso, o corpo físico
executa. Da mesma forma, as sensações que vêm de fora,
recebidas através dos sentidos, são levadas ao Espírito
pelos mecanismos perispirituais. É o perispírito que preside
à formação do ser, funcionando como molde, a ordenar as
substâncias que vão constituir o corpo físico. É nele que se
gravam, como num “vídeo tape”, as nossas experiências,
com suas imagens, sons e emoções. Isto se demonstra no
processo de regressão da memória, espontâneo ou
provocado, no qual vamos descobrir, com todo o seu
impacto, cenas e emoções que pareciam diluídas pelos
milênios. É ele, pois, a nossa ficha de identidade, com o
registro intacto da vida pregressa, a nossa folha corrida o
nosso prontuário.
Ele é denso, enquanto caminhamos pelos escuros
caminhos de muitos enganos, e vai-se tornando cada vez
mais diáfano, à medida que vamos galgando estágios mais
avançados na escalada evolutiva. É nele, portanto, que se
gravam alegrias e conquistas, tanto quanto as dores. Mas,
como tudo no universo obedece à lei irrevogável da sintonia
vibratória, parece que, ao nos desfazermos dos fluídos mais
pesados e escuros, que envolvem o nosso perispírito, nos
primeiros estágios evolutivos, vamos também nos
libertando das mazelas que naqueles fluídos se fixavam, ou
seja, vamos nos purificando. Seria quase inadmissível a
deformação perispiritual num ser de elevada condição
moral. É, no entanto, muito comum naqueles que se acham
ainda tateando nas sombras de suas paixões, e os
trabalhadores da desobsessão encontram fatos dramáticos
dessa natureza, a cada passo.
Muitos casos desse tipo tenho presenciado, desde
pequenos cacoetes, ou apenas sensações quase físicas, até
deformações e mutilações terríveis, culminando com as
mais dolorosas ocorrências de zoantropia.*
* Zoantropia, segundo o dicionário, é uma variedade de monomania em que o
doente se julga convertido em animal.
Vimos, linhas atrás, alguns exemplos de mutilação
provocada por “ratos” e “baratas”, em masmorras
tenebrosas do mundo trágico das dores. Encontramos, na
prática mediúnica, inúmeros exemplos aflitivos de
desequilíbrio perispiritual.
Um antigo sacristão português, desencarnado, era
recompensado, pela tarefa de lançar discórdias, com
abundantes “refeições”, regadas a bom “vinho” de sua
terra.
Um ex-oficial nazista, que não se identificou, mostrou-se
desesperado de fome. Renunciou a toda a arrogância, com
que a princípio se apresentou, e humilhou-se, para pedir-
nos, em voz baixa, para que ninguém o ouvisse, um simples
pedaço de pão.
Tivemos casos de deformações “físicas”, como a
daquele irmão atormentado que trazia o braço paralítico.
Quando me ofereci para curá-lo com um passe, ele declarou
que, assim, teria mais um braço para brandir o chicote com
que castigava suas vítimas.
De outras vezes, apresentaram-se pobres infelizes, que
não podiam expressar-se senão por gestos, porque a língua
lhes tinha sido extirpada. Um destes, depois de
reconstituída a sua condição, em vez de agradecer a Deus o
benefício que acabava de receber, declarou que se vingaria
daquele que, em antiga existência, mandara mutilá-lo. Foi-
lhe mostrado, então, que, em existência anterior àquela, ele
próprio mandara cortar a língua daquele mesmo que,
depois, ordenou a sua mutilação. Nem assim ele se deu por
achador aquele a quem ele privara da língua não passava
de um cão, pois era um mero escravo... Havia, porém,
chegado a sua vez, e ele, não resistindo à realidade, entrou
numa crise de arrependimento que o salvou.
Um dos casos mais dramáticos que presenciei foi o de
um companheiro que havia sido reduzido, por métodos
implacáveis de hipnose, à condição de um fauno. Estava de
tal maneira preso à sua indução, que não podia falar, pois
um fauno não fala. A despeito de tudo, porém, acabou
falando inteligivelmente, para enorme surpresa sua.
Fazendo o médium exibir suas mãos, dissera:
— Veja. Não tenho mãos, e sim cascos.
Estivera mergulhado, por séculos a fio, num tenebroso
antro, onde conviveu, sob as mais abjetas condições
subumanas, com outros seres reduzidos a condições
semelhantes à sua, e que nem mais se conscientizavam de
terem sido criaturas racionais. Fora também um poderoso,
aí pelo século XV, na Alemanha, e deve ter cometido erros
espantosos.
Um dos companheiros do grupo forneceu-nos recursos
ectoplasmáticos e, com nossos passes e o apoio que
obtivemos através da prece, foi possível restituir-lhe a forma
perispiritual de ser humano. Alcançado esse ponto, um dos
benfeitores presentes informou-nos do seu nome, pois ele
não sabia quem era. Retomada a sua identidade, caiu numa
crise de choro comovedora e teve um impulso de
generosidade, lamentando não ter condições de volver
sobre seus passos, para salvar os companheiros que
continuavam retidos nas medonhas masmorras de onde
conseguiram resgatá-lo.
Tivemos, certa ocasião, um doloroso caso de licantropia.
Ao apresentar-se, incorporado no médium, o Espírito não
consegue articular nenhuma palavra. Inteiramente
animalizado, sabe apenas rosnar, esforçando-se por me
morder. Embora o médium se mantenha sentado, ele
investe contra mim, procurando atingir-me com as mãos,
dobradas, como se fossem patas; de vez em quando,
ameaça outro componente do grupo. Lembro-me de vagas
cenas de atividades em desdobramento noturno, quando
resgatamos, de sinistra região das trevas, um ser vivo que,
em estado de vigília, não consegui caracterizar.
Como ele não tinha condições de falar, falei eu,
tentando convencê-lo de que era um ser humano, e não um
animal. A conversa foi longa e difícil. Sabia que,
diretamente, ele ainda não tinha possibilidade de entender
com clareza as palavras que eu dizia, mas estava certo de
que, aos poucos, se tornaria sensível às vibrações de
carinho e compreensão que sustentavam aquelas palavras.
Falei-lhe, pois, continuamente, por longo tempo, procurando
desimantá-lo, para libertá-lo do seu terrível
condicionamento. Repetia-lhe que era um ser humano e não
um animal; que tinha mãos, e não patas, unhas e não
garras. Às vezes, ele tinha crises assustadoras,
gargalhando, alucinado. Insistia em ferir-me, com as suas
“garras”, e tentou, mesmo, agredir-me, com as duas mãos,
como se tentasse abrir-me o peito, para arrancar-me o
coração. Mantive calma inalterada, a despeito da profunda e
dolorosa compaixão, e da ternura que sentia por ele. Foi um
momento que exigiu muita vigilância e enorme cobertura
espiritual, para que o grupo não entrasse em pânico, e não
se perdesse a oportunidade de servir a um irmão tão
desesperado. Não podíamos esquecer, por um minuto, que
ele não era um animal irracional, mas uma criatura humana,
que se tornou temporariamente irracional, em decorrência
do seu terrível comprometimento ante as leis divinas.
Tínhamos que falar a ele como a um irmão em crise, não
a um lobo feroz. Aparentemente, estava em estado de
inconsciência total, mas, no fundo do ser, ele preserva os
valores imortais do espírito, com todas as aquisições feitas
no rosário de vidas que já tinha vivido. É quase certo que
tivesse uma bagagem respeitável de conhecimentos e
recursos, pois na escalada espiritual nada se perde, em
termos de aprendizado. É certo, ainda, que dívidas assim
tão grandes e penosas, somente podem ter sido assumidas
em posições de relevo, nas quais houvesse oportunidade
para oprimir o semelhante impunemente, sob a proteção de
imunidades incontestáveis. Dificilmente temos oportunidade
de endividar-nos tão gravemente, errando apenas contra
nós mesmos.
Invariavelmente, a falta cometida sacrifica e martiriza
muitos irmãos, que julgamos meros instrumentos do nosso
gozo e poder. Ademais, é preciso lembrar que o reajuste
nunca é desproporcional à gravidade da pena, e a pena é
sempre compatível com o grau de consciência com o qual
praticamos a falta. Não que Deus nos castigue, como um Pai
severo e frio, mas é que a nossa consciência exige de nós a
reparação, mesmo porque a lei universal, código sagrado
que aviltamos, nos coloca à mercê da cobrança. A cada falta
cometida, assinamos uma promissória inexorável, que um
dia vencerá e nos será apresentada para resgate. Se
tivermos acumulado a moeda limpa do serviço ao próximo,
teremos com que pagar; caso contrário, não resta
alternativa senão a dor, e podemos estar certos de que não
faltarão cobradores, que se apresentarão como instrumento
da justiça divina, ávidos ante a oportunidade de se
vingarem, ou simplesmente de darem azo às suas
frustrações lamentáveis.
Ao cabo de prolongado monólogo com o irmão alienado,
uma prece comovida e alguns passes, ele começou a
aquietar-se, mas ainda insistiu em atacar-me, de vez em
quando. Não havia dito ainda uma palavra, mas, à medida
que se acalmava, começou a reconhecer o ambiente.
Apalpou a mesa que tinha diante de si, as cadeiras, o
estofamento, a madeira, os entalhes, as cortinas, o sofá, o
chão, o tapete. Tudo que estava ao alcance de sua mão, ele
apalpou, investigou, examinou. Pacientemente, eu ia lhe
explicando o que era cada coisa em que ele tocava. Parece
que ele esteve encerrado em alguma caverna escura, por
tempo que não sei estimar, e lá perdeu a visão e o senso
das coisas. Estava ainda apavorado. (O médium, realmente,
queixara-se de uma terrível sensação de medo, pouco antes
da incorporação desse Espírito.) Olhava para trás, como se
tentasse surpreender algum carrasco. A certa altura, parece
que alguém o chicoteia violentamente, pois ele se contorce
e grita, desesperado. Aos poucos, porém, vamos
transmitindo a ele uma sensação de segurança e calma.
Digo-lhe que ele foi retirado de lá, e que está, agora, numa
sala limpa, e não vai mais voltar para a sua prisão.
Insistimos nos passes, e, ao cabo de muito tempo, ele
pareceu ter readquirido a forma humana e começou a
“conferir” suas mãos, o rosto, o corpo, mas ainda não
conseguia enxergar: passou as mãos diante dos olhos, para
testar. De pé, ao lado do médium, orei fervorosamente, com
uma das mãos sobre os seus olhos e a outra na nuca.
Enquanto fazia isso, ele procurava me reconhecer, também
pelo tato, apalpando-me as mãos, o braço, a cabeça, o
rosto. O ambiente estava tenso de emoção e do desejo de
servi-lo, e creio que, por isso, realizou-se, mais uma vez, o
suave milagre do amor. Ele começou a perceber os objetos,
pela visão, e voltou a conferir tudo na sala, como se
estivesse colocando juntas, pela primeira vez, em muito
tempo (séculos, talvez) as sensações do tato e da visão.
Olhou os móveis, a sala, as suas próprias mãos. Examinou
os componentes do grupo, um por um.
Está calmo, agora. Parece que jatos de luz intensa o
atingem nos olhos, porque ele se contrai e protege a vista
com os braços. Como continuo a insistir em que ele pode
falar, consegue dizer uma palavra:
— Água!
E fica a repeti-la, enquanto apanho o jarro, que
conservamos sobre outro móvel, e lhe servimos vários
copos, que ele bebe sofregamente, desesperadamente.
Por fim, percebo que está orando um Pai Nosso, no qual
eu o acompanho, emocionado até o fundo do meu ser. Ao
terminar a prece, me abraça, em silêncio, sem uma palavra,
esmagado pela emoção, e se desprende, deixando o
médium desorientado, por alguns momentos, quanto à sua
posição na sala.
O trabalho todo durou uma hora.
***
Como pode uma criatura humana ser reduzida a uma
condição como essa? É evidente que ainda não dispomos de
conhecimentos suficientes para apreender o fenômeno em
todas as suas implicações e pormenores, mas a Doutrina
Espírita nos oferece alguns dados que nos permitem
entrever a estrutura básica do processo. A gênese desse
processo é, obviamente, a culpa. Somente nos expomos ao
resgate, pela dor ou pelo amor, na medida em que erramos.
A extensão do resgate e sua profundidade guardam precisa
relação com a gravidade da falta cometida, pois a lei não
cobra senão o necessário para o reajuste e o reequilíbrio
das forças universais desrespeitadas pelo nosso livre-
arbítrio. Somos livres para errar e somos forçados a
resgatar. Não há como fugir a esse esquema, do qual não
nos livra nem mesmo a trégua com que somos beneficiados
ao renascer. É exatamente para que tenhamos a iniciativa
da correção espontânea, que a lei nos proporciona o
benefício do esquecimento e nos concede a oportunidade
do recomeço em cada vida, como se nascêssemos puros,
sem faltas e sem passado. Não podemos, no entanto,
esquecer que o passado está em nós, nos registros
indeléveis do perispírito, determinando todos os nossos
condicionamentos, os bons e os outros.
Por conseguinte, a falta cria em nós o “molde”
necessário ao reajuste. Disso se valem, com extrema
habilidade e competência, fossos adversários espirituais,
aqueles a quem infligimos dores e penas atrozes num
passado recente ou remoto. Muitos são os que agem
pessoalmente contra nós, outros, porém, valem-se de
organizações poderosas, onde a divisão do trabalho nefando
ficou como que racionalizada, tantas são as especializações
lamentáveis. Realiza-se, então, uma troca de favores,
através de contratos, acordos, pactos e arranjos de toda
sorte, em que a vítima do passado - esquecida de que foi
vítima precisamente porque também errou - associa-se a
alguém que possa exercer por ela requintes de vingança.
Entra em cena, aí, a fria equipe das trevas. Se o caso
comporta, digamos, a “solução” da deformação
perispiritual, é encaminhado a competentes manipuladores
da hipnose e do magnetismo, que imediatamente se
aproximarão de suas vítimas, contra as quais nada têm, às
vezes, pessoalmente, iniciando o trabalho no campo fértil
do endividamento de cada um. Quem não deve à lei de
Deus?*
* Leia-se, a propósito, o capitulo 5º, “Operações seletivas”, de “Libertação”,
volume 7º da série André Luiz.
É claro que o hipnotizador, ou o magnetizador, não pode
moldar, à sua vontade, o perispírito da sua vítima, mas ele
sabe como movimentar forças naturais e os dispositivos
mentais, de forma que o Espírito, manipulado com perícia,
acaba por aceitar as sugestões e promover, no seu corpo
perispiritual, as deformações e condicionamentos induzidos
pelo operador das trevas, que funciona como agente da
vingança, por conta própria ou alheia. Nessas condições, a
vítima acaba por assumir formas grotescas, perde o uso da
palavra, assume as atitudes e as reações típicas dos
animais e é segregado, por tempo imprevisível, de todo o
convívio com criaturas humanas normais e equilibradas. Em
antros diante dos quais o inferno é uma tosca e apagada
imagem, imperam o terror, a alienação mais dolorosa, a
angústia mais terrível, as condições mais abjetas. Nessas
furnas de dor superlativa, criaturas que, às vezes, ocuparam
na Terra elevadas posições, resgatam crimes tenebrosos,
que entre os homens permaneceram impunes.
O trabalho de resgate desses pobres irmãos, que
chegam até a perder a consciência da sua própria
identidade, é tão difícil quão doloroso, e jamais poderá ser
feito sem a mais ampla cobertura espiritual. Além da dor
que experimentamos ao presenciar tão espantosa aflição,
estejamos certos de que a audácia de socorrer tais irmãos
desata sobre os grupos que a manifestam toda a cólera das
organizações que os subjugam. Aliás, esse é um recurso de
que se utilizam os trabalhadores do bem, para desalojar de
seus redutos os verdadeiros responsáveis por essas
atrocidades inomináveis. Furiosos pela temeridade dos
seareiros do Cristo, eles se voltam contra o grupo
mediúnico, que precisa estar preparado, resguardado na
prece e em imaculada pureza de intenções. É essa, às
vezes, a única maneira de trazê-los à doutrinação e à
tentativa de entendimento. Esteja, porém, o grupo, atento e
preparado para recebê-los, porque eles virão realmente fora
de si, transtornados de ódio, ante o atrevimento daqueles
que ousam provocá-los. Eles precisam “lavar a sua honra”,
recuperar o prestígio perante seus comandados e impor
castigo exemplar ao grupo que teve a insensata ousadia de
exasperá-los. Os casos mais graves de deformações
perispirituais, como a zoantropia, em geral, e a licantropia,
em particular, são relativamente raros, consideradas as
incontáveis multidões de seres aprisionados nas trevas
pelas suas aflições íntimas. Eles constituem importantes
figuras, no tenebroso xadrez das trevas, e são guardados a
sete chaves e defendidos com unhas e dentes, como
tivemos oportunidade de verificar pessoalmente, numa
excursão a essas furnas da dor. Chegado, porém, o
momento do resgate, não há defesa que consiga resistir à
vontade soberana de Deus, e os trabalhadores humildes da
seara do Cristo conseguem trazê-los, nos braços amorosos,
para a expectativa da libertação. A promissória maior está
paga, e é preciso começar a reconstrução interior, pedra por
pedra, com os escombros de um passado calamitoso.
Geralmente, como vimos, são Espíritos de consideráveis
cabedais e possibilidades, que se transviaram muito
gravemente. Eles têm condições de retomar a trilha
evolutiva, embora ainda com muitos erros a resgatar.
Recebem de volta a consciência de sua própria identidade e
recomeçam o aprendizado. São usualmente recolhidos a
instituições especializadas, onde vai realizar-se a tarefa do
descondicionamento. É novamente a hora de inúmeros
especialistas: médicos da alma, cirurgiões do perispírito,
profundos conhecedores da biologia transcendental e das
complexidades da mente. Comparecem planejadores,
doutrinadores, médiuns, magnetizadores, para reconstruir,
com amor, o que foi destruído com ódio, pelos planejadores,
doutrinadores, médiuns e magnetizadores das trevas. As
forças são as mesmas, os mecanismos são idênticos, os
recursos são semelhantes, somente a direção é que muda,
invertendo-se os sinais da operação, pois quase sempre os
dedicados operadores que nos ajudam a reconstruir o
Espírito, arrasado pela dor do resgate, são aqueles mesmos
que, em épocas remotas, utilizaram-se dos seus
conhecimentos para oprimir, para impor angústias e
aflições, em nome de incontroladas ambições pessoais. O
conhecimento ficou, porque os arquivos da alma são
permanentes, mas mudou a motivação, e o que antes feria,
agora quer curar. Se antes conseguia realizar tanta coisa
espantosa, trabalhando ao arrepio das leis divinas, sem a
sustentação dos poderes da Luz, que não conseguirá agora,
ao voltar-se para o lado bom da vida, onde conta com o
apoio de seus irmãos maiores?
13 - O DIRIGENTE DAS TREVAS
Esta é uma figura frequente nos trabalhos de
desobsessão. Comparece para observar, estudar as
pessoas, sondar o doutrinador, sentir mais de perto os
métodos de ação do grupo, a fim de poder tomar suas
“providências”. Foi geralmente um encarnado poderoso,
que ocupou posições de mando. Acostumado ao exercício
da autoridade incontestada, é arrogante, frio, calculista,
inteligente, experimentado e violento. Não dispõe de
paciência para o diálogo, pois está habituado apenas a
expedir ordens e não a debater problemas, ainda mais com
seres que considera inferiores e ignorantes, como os pobres
componentes de um grupo de desobsessão. Situa-se num
plano de olímpica superioridade e nada vem pedir; vem
exigir, ordenar, ameaçar, intimidar.
Tais dirigentes são ágeis de raciocínio, envolventes,
inescrupulosos, pois o poder de que desfrutam não pode
escorar-se na doçura, na tolerância, na humildade, e sim na
agressividade, na desconfiança, no ódio. Enquanto odeiam e
infligem dores aos outros, estão esquecidos das próprias
angústias, como se a contemplação do sofrimento alheio
provocasse neles generalizada insensibilização.
Evitam descer do pedestal em que se colocam para
revelar-nos seus problemas pessoais, mesmo porque,
consciente ou inconscientemente, temem tais revelações,
que personalizam os problemas que enfrentam e os
colocam na “perigosa” faixa de sintonia emocional que abre
as portas de acesso à intimidade do ser.
Não são executores, gostam de deixar bem claro, são
chefes. Estão ali somente para colher elementos para suas
decisões; a execução ficará sempre a cargo de seus
asseclas. Comparecem cercados de toda a pompa,
envolvidos em imponentes “vestimentas”, portando
símbolos, anéis, indicadores, enfim, de “elevada” condição.
Estão rodeados de servidores, acólitos, guardas, escravos,
assessores, às vezes “armados”, “montados” em “animais”
ou transportados sob “pálios”, como figuras de grandes
sacerdotes e imperadores.
Um deles me disse, certa vez, que eu não o estava
tratando com o devido respeito, o que não era verdadeiro,
porque achava impertinentes minhas perguntas e
comentários. Para me dar uma ideia da sua grandeza,
informou-me que, quando se deslocava, iam à frente dele
áulicos, tocando campainhas portáteis, para que todos
abrissem alas e soubessem quem vinha.
Pobre irmão desorientado! Num irresistível processo de
regressão de memória, invisível aos nossos olhos, mas de
tremendo realismo para ele, contemplou, com horror, sua
antiga condição: participara do doloroso drama da
Crucificação do Cristo. O impacto desta revelação, ou seja,
desta lembrança, que emergiu, incontrolável, dos registros
indeléveis do seu perispírito, deixaram-no em estado de
choque e desespero, pois vinha nos afirmando, desde a
primeira manifestação, que era um dos trabalhadores do
Cristo e não desejava senão restabelecer o poderio da “sua”
Igreja.
14 - O PLANEJADOR
Este é frio, impessoal, inteligente, culto. Maneja muito
bem o sofisma, é excelente dialético, pensador sutil e
aproveita-se de qualquer descuido ou palavra infeliz do
doutrinador para procurar confundi-lo. Mostra-se amável,
aparentemente tranquilo e sem ódios. Não se envolve
diretamente com os métodos de trabalho das organizações
trevosas, ou seja, não expede ordens, nem as executa;
limita-se a estudar a problemática do caso e traçar os
planos com extrema habilidade. Os planejadores são
elementos altamente credenciados e respeitados na
comunidade do crime invisível.
Tivemos vários casos dessa natureza. Citarei um.
Apresentou-se mansamente. Nada de gritos, de murros
ou de violências. Sorria, até. Era um sacerdote, dizia-se
muito importante e foi logo declarando que não era dos que
executam, pois em sua organização o trabalho era bem
distribuído. Aliás, informou, pertencia a outro setor de
atividade, mas havia sido convidado - e gentilmente
acedeu, por certo - para dar “parecer” sobre o caso de que
estávamos cuidando, um complicado problema de
obsessão. Consultara a lista de “baixas” que a organização
solicitante havia sofrido, entendendo-se por “baixa”,
naturalmente, aqueles que se deixaram converter à
doutrina do amor, através da reeducação moral de que nos
fala Kardec. Sente-se, evidentemente, muito envaidecido de
sua brilhante inteligência e do poder e satisfação que isso
lhe dá. Sua meta: restabelecer o prestígio da Igreja, muito
abalado nestes últimos tempos. Acha que foi um mal
sufocar o pensamento e não permitir que a razão imperasse
na Igreja, que hoje estaria ainda dominando os homens. A
certa altura, propõe um acordo entre dois líderes: ele e eu.
Digo-lhe, com toda honestidade, que não sou líder e não
tenho condições de negociar com ele; que procure meus
superiores.
Com o passar das semanas, ele verifica que o problema
é mais complexo do que esperava, e se apresta a
abandonar o caso, com o qual não pretende envolver-se, já
que sua tarefa é noutra organização. Dar-nos-á uma trégua.
Tem um momento de honesta candura, ou realismo, como
queiram: acha-se um cínico, pois sempre desprezou, mesmo
“em vida”, aqueles que, em elevadas posições hierárquicas,
consultavam a ele, simples mortal, valendo-se de sua
brilhante inteligência. É evidente, porém, que sente enorme
satisfação ao recordar que, da sua “humilde” posição,
manobrava os grandes, que lhe pediam conselhos e
sugestões, porque já àquele tempo era um hábil articulador.
Há um “post scriptum” a esta narrativa: a conversão
deste companheiro representou uma perda irreparável para
as hostes das sombras, porque os impetuosos e agressivos
chefes, e os executores teleguiados, sentem-se sem
condições de estudar meticulosamente e traçar friamente
um plano de trabalho que se desdobre como vasta e
complexa operação de um xadrez psicológico. É preciso
prever reações, estudar personalidades, propor concessões
e arquitetar alternativas e opções, em caso de alguma falha
ou mudança de condições básicas. Nada pode ser deixado
ao acaso, à improvisação, ao impulso. Por isso, os
planejadores gozam de enorme prestígio e respeito nas
organizações trevosas.
Pelas reações de irmãos, também desequilibrados, que
se apresentaram posteriormente ao nosso grupo, para
tratamento, soubemos da perda irreparável que
representou, para as hostes da sombra, o despertamento
desse companheiro. Seus comparsas compareciam
dispostos a tudo para resgatá-lo, pois julgavam-no nosso
prisioneiro. É preciso compreender bem tais reações. Os
irmãos desorientados empenham-se em verdadeiras
campanhas belicosas, nas quais tudo vale e tudo é
permitido, desde que os fins sejam alcançados. Formam
suas estruturas organizacionais segundo as afinidades, por
certo, mas, acima de tudo, segundo os interesses que
tenham em comum. Para alcançarem os objetivos que têm
em mira, organizam verdadeiro estado-maior de líderes
brilhantes, experimentados e audaciosos. Toda campanha é
estudada, planejada e executada com precisão militar e
dentro de rigoroso regime disciplinar, onde não se admite o
fracasso. Quem falhar perde a proteção de que desfruta, por
achar-se ligado à organização poderosa, que domina pelo
terror impiedoso, destemido, agressivo, implacável. Eles
sabem muito bem que, ao desligarem-se da organização,
estarão sozinhos diante de seus próprios problemas
pessoais.
Nessas estruturas rígidas, o planejador exerce função
importantíssima, porque é dos poucos, ali, que conservam a
cabeça fria para conceber os planos estratégicos
indispensáveis. Seus companheiros de direção costumam
ser impetuosos homens de ação, que se entregam
facilmente ao impulso desorientado de partir para a ação
pessoal isolada, se não tiverem quem os contenha dentro
de um inteligente planejamento global, que proteja não
apenas os interesses de cada um dos componentes,
isoladamente, mas também a segurança da organização. O
planejador é o poder moderador, dotado de habilidade
bastante para demonstrar, e provar aos “cabeças-quentes”,
que o interesse coletivo precisa sobrepor-se ao individual,
por mais forte que seja este. É preciso que cada
componente da sinistra máfia espiritual compreenda que os
casos pessoais de cada um - vinganças, perseguições,
conquistas de posições - passam a constituir objeto de
cogitação coletiva, e, como tal, têm que esperar a vez e a
oportunidade, submetendo-se à mesma estratégia: estudo,
planejamento e ação, tudo a tempo e hora. Nada de ações
isoladas, atabalhoadas, que desperdiçam esforços e põem
em risco a segurança da comunidade. Tudo se fará no
tempo devido, e todos têm direito à utilização dos recursos
da organização: seus técnicos, seus instrumentos, seus
“soldados” e trabalhadores de toda a natureza. No interesse
de todos, portanto, a coisa tem que funcionar com muita
precisão e firmeza. O planejador é, pois, figura
importantíssima na ordenação dessas tarefas
maquiavélicas. Sua perda acarreta uma desorientação
geral. É difícil, senão impossível, para os companheiros que
permanecem na organização das sombras, admitir que
alguém tão lúcido e brilhante se tenha deixado convencer
por um doutrinador encarnado.
Como não conseguem admitir isso, somente podem
concluir pela alternativa mais viável: o companheiro foi
sequestrado, violentado em sua vontade e levado
prisioneiro para alguma perdida masmorra. É preciso reunir
forças e desencadear uma ação fulminante para resgatá-lo.
Por isso, logo após a perda de um elemento importante -
planejador ou executor - fatalmente comparece ao grupo
um truculento representante das trevas, para levá-lo “de
qualquer maneira”. É hora, então, da ameaça, dos gritos,
dos murros, ou então, dos conchavos, das ofertas de trégua.
A essa altura, porém, já estão agindo à base do impulso
emocional, que nunca foi bom conselheiro, ainda mais em
situações de crise. É quando mais precisam de um
competente planejador. E o desespero de não tê-lo leva ao
desvario, que muitas vezes os deixa completamente
desarvorados. Daí a importância que os trabalhadores do
bem conferem aos planejadores. Daí o prestígio e o respeito
que esses brilhantes estrategistas gozam nas comunidades
trevosas. Os líderes militares são bons na ação, mas quase
nunca dispõem de condições para estudar meticulosamente
e traçar friamente um plano de trabalho, que se desdobre
como vasta e complexa operação de um xadrez psicológico.
Não estão lidando mais com dados concretos, como no
tempo em que exerciam tais funções na Terra. Não basta
preparar soldados e equipamentos, estudar o terreno,
comprar armamentos e entrar em ação. A tarefa é muito
mais sutil, porque envolve inúmeros fatores imponderáveis,
que subitamente emergem da imprevisível condição
humana. É preciso prever tais reações, estudar
personalidades, propor concessões e arquitetar alternativas
e opções, na eventualidade de alguma falha ou mudança
das condições básicas inicialmente articuladas. Nada pode
ser deixado ao acaso, à improvisação, ao impulso.
Há pouco, falava um desses líderes das trevas sobre a
sofisticação da sua aparelhagem. Andaram gravando nossas
reuniões em “vídeo tape” - a expressão é dele mesmo - para
estudar-nos. Tinham nossas “fichas” completas,
minuciosamente levantadas, bem como gravações e
relatórios a nosso respeito, sendo esse material todo colhido
na indormida vigilância que exercem sobre nós. Depois de
tudo documentado, estudam-nos em grupos de trabalho,
cabendo, então, aos planejadores elaborar a programação
da “campanha”. Mesmo enquanto conversam conosco, no
decorrer da sessão mediúnica, acham-se ligados aos seus
redutos, por fios e aparelhagem de transmissão, com o
propósito de se manterem firmes, apoiados pelos
companheiros que lá ficam, para que não sejam arrastados
pela “fraqueza” da conversão ao bem. Esquecem-se de que,
por aqueles mesmos dispositivos, a conversa do doutrinador
também é transmitida e produz lá, naqueles redutos, certos
impactos, num ou noutro coração mais predisposto ao apelo
do amor fraterno.
***
Um desses sutis planejadores nos causou impressão
profunda. Não viera especificamente para debater conosco,
mas para tentar recuperar um Espírito que havíamos
conseguido atrair e convencer de seus enganos. Ao
incorporar-se no médium, demonstra indisfarçável
embaraço por encontrar-se ali. Hesita e negaceia,
parecendo estar realmente desarmado e perplexo. Aos
poucos, interrogado com prudência paciente, vai revelando
sua história.
Fora realmente apanhado desprevenido, pois não sabia
que o grupo era aquele e, se o soubesse, não teria vindo. É
estranho que ignorasse isto... Conhece o nosso mentor e, ao
vê-lo, tentou recuar e voltar sobre seus passos, mas já era
tarde. Identifica, num membro encarnado do grupo, uma
pessoa que teria conhecido na França, no século passado. É
portanto, contemporâneo de Kardec e não esconde que
conhece a Doutrina Espírita, até mais do que nós, segundo
informa, sem falsa modéstia. Declara-se conselheiro e
planejador da organização à qual se acha filiado. Está
convicto de que o Espiritismo precisa de uma “revisão”
atualizadora e ele é um dos que colaborou no preparo de
certa matriz (palavra sua) que dará origem a uma forma
“moderna” de Espiritismo. Essa matriz era sustentada pelas
emanações mentais de alguns companheiros encarnados,
atuantes no movimento e aos quais foi prometida uma fatia
de poder.
Está perfeitamente consciente de suas
responsabilidades e não deseja recuar do pacto feito com
seus superiores, que prevê, para ele, uma substancial
parcela de poder e proteção para uma filha que estaria
encarnada e muito assediada por Espíritos trevosos.
Encaixo, a essa altura, um comentário, dizendo-lhe que
nenhum pacto a protegerá dos seus compromissos
cármicos, com o que ele parece concordar com o seu
silêncio. Afinal, admite que não fez acordo com a treva: ele
é a própria treva, e continua a sentir-se embaraçado diante
de nós.
Depois de uma longa conversa, meramente informativa,
em que ele vai revelando sua história, parece tomar uma
decisão mais drástica e começa a falar em altos brados, a
dar com as mãos na mesa, mas sinto nele falta de
convicção.
Deixo-o falar, para vazar a sua cólera, a sua frustração e
o seu temor, até que ele se acalma um pouco e começa a
dar-me conselhos e fazer algumas confidências. Está em
crise. Lembra-se de passadas encarnações e da constante
presença do Cristo em suas vidas, mas também das
inúmeras vezes em que, a seu ver, traiu o Mestre. Gostaria
de voltar a ser um humilde galileu. Por fim, agarra as nossas
mãos, chama-nos de amigos e nos adverte - agora com total
sinceridade - dos riscos da nossa tarefa, e parte, em pranto,
orando ao Cristo.
Também a sua perda desencadeou sobre o grupo um
processo de agressões violentas e passionais. É difícil
encontrar um bom planejador para repor uma “baixa”
importante como essa...
15 - OS JURISTAS
Muitas vezes nos encontramos com esses trabalhadores
das sombras, tão compenetrados de suas tarefas como
quaisquer outros. São os terríveis juristas do Espaço.
“Estes também - diz o artigo já citado, em “Reformador”
de fevereiro de 1975 - autoritários e seguros de si,
exoneram-se facilmente de qualquer culpa porque, segundo
informam ao doutrinador, cingem-se aos autos do processo.
Na sua opinião, qualquer juiz terreno, medianamente
instruído, proferiria a mesma sentença diante daqueles
fatos. Todo o formalismo processualístico ali está: as
denúncias, os depoimentos, as audiências, os pareceres, os
laudos, as perícias, os despachos e, por fim, a sentença -
invariavelmente condenatória. E até as revisões, e os
apelos, quando previstos nos “códigos” pelos quais se
orientam (ou melhor, se desorientam).”
São também impessoais e frios aplicadores das “leis”.
Um desses juízes deu-me a honra de trazer, para
argumentar comigo, os autos do processo. Abriu sobre a
mesa o caderno, invisível a mim, e começou a citar a lista
de crimes que o acusado havia cometido, desde o
desencaminhamento de jovens inexperientes, até
assassinatos. Só depois, pobre irmão, foi descobrir que
estava lendo os autos de seu próprio processo! Trouxera
consigo um servidor da sua equipe apenas para “carregar”
os autos, coisa indigna de sua elevada condição de
magistrado. Quando pediu ao contínuo que lhe passasse os
autos, este lhe deu a documentação errada... O engano foi,
aliás, seu mesmo, porque o bedel lhe dera primeiro um dos
processos, e ele, em tom áspero e imperioso:
— Não é este, é o outro!
O “outro” era o dele!
Já me trouxeram também os autos do processo de
minha “heresia”, como também autos já arquivados, com
sentença proferida, em caso que, segundo este jurista
invisível, eu havia apelado.
16 - O EXECUTOR
Sente-se também totalmente desligado da
responsabilidade, quanto às atrocidades que pratica, pois
não é o mandante; apenas executa ordens. Usualmente,
nada tem de pessoal contra suas vítimas inermes.
Agasalham-se na crueldade agressiva e fria, sem temores,
sem remorsos, sem dramas de consciência.
Quantos deles encontramos nos trabalhos de
desobsessão! São remunerados das maneiras mais
engenhosas e diversas, as que mais se ajustam à sua
psicologia, aos seus vícios e às suas deformações.
Já vimos o exemplo do sacristão que era pago com
suculentas refeições e vinhos deliciosos. Há os que são
compensados com prazeres mais vis. Outros são
estimulados a atos de particular “bravura”, com vistosas
condecorações. Um deles me exibia, com orgulho e frieza,
uma preciosa condecoração por um gesto de enorme
dedicação à causa de seus mandantes: empenhara-se em
castigar sua própria irmã!
Outro, desses companheiros desarvorados, deixou-nos
uma das mais comoventes lições, escrita, a princípio, com
as sombrias cores do rancor, e depois, com as luminosas
tintas do amor e da emoção.
Empenhara-se num processo tenebroso e complexo, de
obsessões violentas, a serviço de um grupo que dispunha
de vasto plano de atividade. Ao manifestar-se, mal
conseguia conter o seu ódio e a sua irritação. Revela sua
elevada hierarquia, ridiculariza, deblatera, ameaça e diz ser
um dos trabalhadores do Cristo. Não se teria dignado
comparecer diante de nós, se não nos tivéssemos metido
em coisas que não eram de nossa conta. Conhece-me de
longa data: sempre fui um herético impenitente, metido a
reformista. Seus “soldados” estão lá fora, à sua espera.
Quando, sustentados por luminosos trabalhadores
espirituais, começamos a conseguir dele alguma reação
positiva, parece entrar em pânico e não consegue ocultar
certo temor, ele que sempre foi destemido homem de ação.
Ao cabo de algum tempo de diálogo, nas várias vezes
em que compareceu ao grupo, ofereço-me para ajudá-lo,
em alguma coisa de que necessite. Pergunto-lhe se não tem
alguém a quem possamos servir.
É justamente isso que ele não entende: descobrira que,
mesmo sem o saber, estávamos já servindo, com todo o
nosso afeto e dedicação, a um Espírito muito querido ao seu
coração, que em antiga encarnação fora seu filho e que
nunca mais esquecera. Não podia compreender como
estávamos ajudando o “menino”, a troco de nada, sem
exigir coisa alguma, enquanto ele tudo fazia para perseguir-
nos. Aquilo era demais para a sua compreensão. Havia
mais, porém. Descobrira que os mais terríveis obsessores de
seu filho eram precisamente os companheiros da sua
própria organização! E, no entanto, treinara “soldados” para
nos dar combate sem tréguas, a nós, que tanto nos
esforçávamos por ajudar o filho... Era, de fato,
incompreensível...
Passadas algumas semanas, obteve permissão para
transmitir-nos uma mensagem de gratidão, de amor, de
arrependimento. Consideramo-la uma das coisas mais
lindas e mais emocionantes que tivemos, ao longo de
muitos anos de prática mediúnica. Quando me lembro disso,
ainda me parece ouvir sua voz pausada, embargada,
sofrida, a chorar o tempo perdido, a ausência do filho
amado, que não lhe era possível nem visitar, mas que
deixava aos nossos cuidados. Estava de partida para uma
nova encarnação, que se prenunciava de muitas dores e
renúncias, como ele precisava, para o reajuste. Sustentava-
o a esperança de um reencontro alhures, no tempo e no
espaço, um dia... um dia...
Assim são eles, pobres irmãos desorientados. Não nos
impressionemos com a sua violência e agressividade.
Trazem dores milenares e, a despeito de si mesmos,
preservou-se em seus corações a pequenina chama do
amor. Basta um sopro de compreensão e afeto para que ela
se reacenda.
17 - O RELIGIOSO
É impressionante a elevada participação de transviados
“religiosos” no trágico e doloroso desfile de Espíritos em
lamentável desequilíbrio, nas sessões de desobsessão.
Multidões de ex-prelados debatem-se, no mundo póstumo,
em angústias e rancores inomináveis, que se arrastam, às
vezes, pelos séculos.
Apresentam-se, quase sempre, como zelosos
trabalhadores do Cristo, empenhados na defesa da “sua”
Igreja. São argutos, inteligentes, agressivos, violentos,
orgulhosos, impiedosos e arrogantes. Parece terem
frequentado a mesma escola no Além, pois costumam
trazer os mesmos argumentos, a mesma teologia
deformada, com a qual justificam seus impulsos e sua
tática. Têm os seus temas prediletos, como a cena da
expulsão dos vendilhões do templo, que invocam como
exemplo de que a violência é, às vezes, necessária e
justificável, esquecendo-se, deliberadamente, das
motivações daquele gesto: a vergonhosa comercialização
das coisas sagradas e a indústria do sacrifício de pobres
animais inocentes. O gesto não é gratuito, nem fica sem
explicações.
— Ao mesmo tempo - escreve Mateus (21:13) - os
instruía, dizendo: Não está escrito: “Minha casa será
chamada casa de oração, por todas as nações? Entretanto,
fizestes dela um covil de ladrões!”
A esse comércio vil, estavam associados os próprios
sacerdotes. Muitos daqueles cambistas e negociantes não
passavam de meros “testas-de-ferro” dos donos da
verdade... e do dinheiro. Emmanuel informa, em “Paulo e
Estêvão”, que Zacarias, o protetor de Abigail, conseguiu,
mediante influência de certo Alexandre, parente próximo de
Anás, “incluir-se entre os negociantes privilegiados, que
podiam vender animais para os sacrifícios do Templo”.
Os “religiosos” desorientados invocam também outras
passagens, bem escolhidas aos seus propósitos, como
aquela em que o Cristo declara que não veio trazer a paz,
mas a espada. (Mateus, 10:34.) Kardec tratou dessas
questões no capítulo 23 de “O Evangelho Segundo o
Espiritismo”, ao qual deu o título de “Estranha moral”. Ainda
comentaremos tais problemas, quando cuidarmos
especificamente das técnicas e recursos sugeridos para o
trabalho de desobsessão.
O grande problema desses queridos companheiros
desarvorados é o poder. Quase sempre exerceram, nas
organizações religiosas a que se filiaram, vida após vida,
posições de mando e destaque. Estão acostumados a
dominar os outros, não a si mesmos, pois tudo se permitem,
desde que os objetivos que escolheram sejam alcançados.
Constituem equipes imensas, que se revezam na carne e no
mundo espiritual, mantendo estreito intercâmbio, porque
também se revezam no poder, aqui e lá, e, por isso, suas
organizações sinistras e implacáveis parecem eternizar-se
no comando de vastas massas humanas, encarnadas e
desencarnadas.
O intercâmbio, à noite, quando se acham parcialmente
libertos os encarnados, é intenso. Realizam-se reuniões,
para debate, estudo e planejamento. André Luiz nos dá uma
pequena amostra dessa atividade em “Libertação”, no
capítulo “Observações e novidades”.
— “Não mediste, ainda - diz Gúbio, o instrutor - a
extensão do intercâmbio entre encarnados e
desencarnados. A determinadas horas da noite, três quartas
partes da população de cada um dos hemisférios da Crosta
Terrestre se acham nas zonas de contacto conosco e a
maior percentagem desses semilibertos do corpo, pela
influência natural do sono, permanecem detidos nos círculos
de baixa vibração qual este em que nos movimentamos
provisoriamente.* Por aqui, muitas vezes se forjam
dolorosos dramas que se desenrolam nos campos da carne.
Grandes crimes têm nestes sítios as respectivas nascentes
e, não fosse o trabalho ativo e constante dos Espíritos
protetores que se desvelam pelos homens no labor
sacrificial da caridade oculta e da educação perseverante,
sob a égide do Cristo, acontecimentos mais trágicos
estarreceriam as criaturas.”
* A organização visitada, enorme cidade das trevas, era dirigida por um ex-
papa, cuja libertação é o tema central do livro.
Prestaram bem atenção? Três quartos da população
encarnada na Terra, ou seja, três pessoas em cada quatro,
isto é, 75 por cento! André não fala especificamente de
reuniões promovidas por religiosos, mas estas são ativas,
frequentes e tenebrosas. Comparecem, investidos de
enorme autoridade, aqueles que a conquistaram pela
ardilosa sagacidade, pela prepotência e total desinteresse
pelos aspectos éticos das questões envolvidas. Ai daquele
que se intromete em seus afazeres e tenta impedir a
realização de seus planos criminosos! Precisa estar muito
bem preparado, vigilante, guardado na prece e assistido por
Espíritos do mais elevado teor vibratório.
Ao longo de muitos séculos de intriga política, e do
exercício da opressão e da intimidação, esses pobres
“ministros de Deus” desenvolveram apurada técnica de
trituração. Dispõem de recursos extremos e não hesitam em
empregá-los, desde que atinjam seus fins.
Conservam, no mundo espiritual, seus paramentos, suas
joias e todos os símbolos de suas posições. Vivem em
“construções” suntuosas e soturnas, sentam-se em
“tronos”, cercam-se de áulicos prontos a executar lhes o
menor desejo. Celebram suas missas pregam sermões,
mantendo um ritual pomposo e meramente exterior, tal
como faziam aqui na Terra.
Uma jovem desencarnada, de quem cuidamos certa vez,
nos contou, com penosa ingenuidade, que vivia
alegremente, na irresponsabilidade da sua inconsciência.
Ligara-se a um ser encarnado, a quem estávamos
interessados em ajudar, aliás, sem que ele o soubesse.
Comparecia uma vez por semana à presença do nosso
amigo encarnado e o induzia aos desatinos dos sentidos
desgovernados, participando, certamente, dessas orgias.
Era “remunerada” com “roupas” luxuosas e bonitas e,
evidentemente, gostava da sua tarefa. Totalmente
teleguiada, era simples instrumento sob o poder implacável
de seus senhores.
Agindo sob hipnose, atuava precisamente naquilo que
constituía o principal problema do companheiro encarnado:
sexo. Encontrava-se muito bem preparada pelos seus
instrutores. Quando eu lhe disse que era mero instrumento
em mãos alheias, ela respondeu que não, pois gozava de
inteira liberdade. Não é maldosa, é irresponsável e
perturbada. Conta que “ainda ontem, na missa, Monsenhor
falou que era preciso evitar o aguilhão”. Sabem, assim, que
se saírem dali, por fuga ou fraqueza, encontrarão o espectro
temido da dor, as lágrimas, o desespero. Enquanto estão ali,
têm diversões, prazeres, vestidos bonitos e até mesmo os
“tranquilizantes” psicológicos para a consciência
atormentada, porque ex-sacerdotes fanatizados e duros
ministram-lhes “sacramentos”, levam-nas às missas que
celebram e absolvem-nas dos pecados que porventura
tenham cometido. É, sem dúvida, um plano maquiavélico,
com o qual “ex-ministros de Deus” conseguem manipular, à
vontade, pobres inocentes úteis que lhes caem sob o poder.
A despeito de seus desvairamentos, sinto-a interiormente
ingénua, quase pura. Poderia ser minha filha, digo-lhe, e ela
responde que, se eu fosse seu pai, ela não teria coragem de
vir me ver. Aproveito o ensejo para dizer-lhe que, nesse
caso, não anda fazendo boas coisas, como alega, o que
parece impressioná-la. Nesse ponto, ela me confessa que
veio escondida. “Eles” não podem saber...
— Portanto - digo-lhe eu - você não tem liberdade, como
disse...
Mais um argumento que ela intimamente reconhece
legítimo. Mas, prossegue, tagarelando inconsequentemente,
para dizer que “quando eu vou lá, todas se escondem”.
Por fim, faço uma prece e ela se sente perdida, sem
saber o que fazer. Vê uma jovem serena e bela que a
chama, mas ela teme e hesita; acaba cedendo e parte com
ela.
Na sessão seguinte compareceu um sacerdote. Tinha
forte sotaque alemão e era o “guia espiritual” do nosso
companheiro encarnado, então sob tratamento em nosso
grupo. Viera em busca da filha que desaparecera,
precisamente a moça da semana anterior. Pobre irmão
desgovernado! Ignorava que ela estava sendo
vergonhosamente explorada pela mesma “organização” a
que ele servia!
Dizia Paulo que tudo nos é lícito, mas nem tudo nos
convém; para estes irmãos religiosos transviados, tudo
convém, seja lícito ou não, desde que os ajude a alcançar
seus objetivos. E assim, misturam os conceitos de uma
deformada teologia com os ritos da magia negra e com as
técnicas da hipnose e da magnetização, realizando
verdadeiras lavagens cerebrais, provocando pavorosas
desfigurações perispirituais, desencadeando processos
obsessivos penosíssimos.
Uma das infelizes criaturas a que atendemos certa vez,
nos contou a seguinte história: numa existência anterior,
fora traída por uma mulher. Localizando esta agora, em
outra vida - não ficamos sabendo se casada com o seu
antigo marido - atormentava-a livremente, com rancor e
consciência tranquila, porque um sacerdote, seu amigo, a
perdoava e a estimulava a prosseguir na sua deplorável
tarefa.
Há, também, entre eles, os ex-inquisidores. Ainda
rancorosos, mais fanáticos do que nunca, mantêm os
mesmos processos de tortura e de encarceramento, em
medonhas masmorras infectas. Quantos companheiros não
socorremos, apavorados, roídos pelos ratos, enceguecidos
pelas trevas, ainda sentindo as sensações de
estrangulamento, carregando correntes imaginárias, com os
olhos ou a língua arrancados, mortos a fome, tuberculosos,
desmembrados, alienados, atoleimados, muitos sem
condições sequer de chorar...
Todo esse arsenal alucinante de opressão e miséria tem
como suporte uma teologia que lhes é própria. Seus artífices
não ignoram as verdades contidas na Doutrina Espírita, nem
têm como negá-la, diante do que sabem, mas justificam
suas atrocidades com frases estereotipadas, sempre as
mesmas, no fundo, embora variadas na forma. Sim,
reconhecem, é verdadeira a doutrina da reencarnação, por
exemplo. A Igreja a admite há muito tempo, dizem, mas
conserva tais conhecimentos limitados a uma elite
pensante, pois essas informações não devem ser
transmitidas à massa popular. Um dia, quando conseguirem
restaurar todo o poderio da Igreja, esses conhecimentos
serão liberados e o Evangelho do Cristo será novamente
pregado tal como é, ou seja, como eles entendem que seja.
Um deles me declarou, certa vez, que existe, pronta, uma
nova versão do Evangelho, cuidadosamente preparada,
para ser lançada no momento oportuno. Esse momento é
sempre o mesmo: quando restabelecerem novamente o
domínio total sobre a Humanidade, tal como no passado,
em que era honra concedida aos reis beijarem os pés dos
Papas.
Enquanto isso, tramam, envolvem, planejam e
executam, com a cumplicidade de muitas fraquezas
humanas, próprias e alheias.
É claro, pois, que o alvo de preferência de suas
investidas é o Espiritismo, que muitos combateram “em
vida” e que prosseguem combatendo, com redobrado ardor,
quando se passam para o mundo póstumo. Os grupos
espíritas de trabalho mediúnico interferem direta ou
indiretamente em seus planos. Muitas vezes, tais grupos se
envolvem em autênticos vespeiros, ao tentarem ajudar
companheiros encarnados ou desencarnados, sob o guante
de terríveis obsessões. É que, em não poucas
oportunidades, os obsidiados são peças importantes no
complexo jogo de xadrez das sombras. Verdadeiras batalhas
travam-se em torno de determinadas figuras humanas, e os
grupos que intentam salvá-las das suas aflições precisam
estar realmente bem preparados, ou serão impiedosamente
esmagados pela agressividade dos poderosos dirigentes das
trevas.
Por outro lado, o movimento espírita moderno,
especialmente no Brasil, conta com enorme quantidade de
antigos sacerdotes, arrependidos de seus desatinos
passados, procurando, em nova encarnação, lavar as
manchas de crimes hediondos que cometeram. Para os
antigos comparsas, no entanto, são trânsfugas desprezíveis,
que cumpre esmagar, apóstatas que têm de destruir,
heréticos que precisam calar, a todo custo.
Quantos me têm interpelado, com as mais terríveis
invectivas! Um deles, conhecendo meu passado, tanto na
Igreja Católica como na Protestante, me disse, com ódio e
desprezo:
— Protestante e espírita, dois porcos num só...
Outro, fanático e não mau, buscava-me há mais de
quatro séculos, pois da última vez em que fomos
companheiros, éramos sacerdotes católicos, antes ainda da
Reforma Protestante.
Outros se empenham em “recuperar-nos”, seja com
ameaças, seja com promessas sedutoras ou barganhas
inaceitáveis.
A esta altura, o leitor, algo impressionado, estaria
perguntando se não há sacerdotes de boa índole, no mundo
espiritual. Certamente que sim, e, graças a Deus, em
grande número; com muito mais frequência, porém, entre
aqueles que foram pequenos e humildes servidores da
Igreja, conscientes das grandezas do Evangelho de Jesus.
São eles os serenos párocos de aldeia, monges e frades que
se dedicaram à caridade e ao serviço ao próximo. São
muitos os que rapidamente se adaptam às condições do
mundo espiritual, onde não encontram nem o céu de gozos
inefáveis, nem o inferno aterrador, nem tampouco o
purgatório lendário, mas apenas as condições que criaram
para si mesmos. Alguns dos mais destacados membros da
hierarquia eclesiástica também vencem, com surpreendente
brevidade, o período de perplexidade em que mergulham
com a desencarnação.
Um deles, manifestado no Grupo Ismael, declara, na sua
segunda comunicação:
— “É estupenda a metamorfose que se operou no meu
Espírito, desde a visita que vos fiz. Extraordinário fenômeno,
capaz de confundir a inteligência mais atilada e a criatura
melhor provida de conhecimentos teológicos e profanos.
Estupenda, grandiosa, diria mesmo fenomenal, é a obra em
que colaborais, vós outros, homens terrenos, malquistos
pela sociedade perversa dos vossos dias. Medito e
considero: eu, servidor da Igreja, elevado à mais alta
dignidade eclesiástica, na Terra de Santa Cruz, venho entre
vós, criaturas simples, na maioria sem grande preparo
intelectual, beber da água da vida que o ensino da Igreja
romana nunca pôde proporcionar ao meu espírito sedento.
Quando daqui regressei, meus irmãos, o Infinito como que
se havia transmudado e novo cenário se me deparou. A
coorte dos que me acompanhavam, cabisbaixa e encolhida
num recanto, demonstrava a sua contrariedade pelos
efeitos que a minha visita produzira em meu espírito.”*
* “Trabalhos do Grupo Ismael”, vol. julho/1939 a dezembro/1940. Compilação do
Dr. Guillon Ribeiro, edição da FEB, 1941, página 137.
Fora daqueles que, “em vida”, segundo suas próprias
declarações na sessão anterior, “procurara, juntamente com
outros dignitários da sua Igreja, meios de conseguir que
cessassem as atividades da Federação, na propaganda do
Espiritismo, pelo considerar falsa e errônea essa doutrina,
prejudicial ao Catolicismo”. Era, agora, socorrido
exatamente na organização que tentara fazer calar.
Note-se, também, em sua comunicação, a referência à
coorte dos que o seguiam e ao desapontamento em que
ficaram, ao ver o bravo cardeal render-se espontaneamente
àqueles que todos consideravam como adversários, que não
mereciam piedade nem consideração.
De outro cardeal desencarnado ouvi, certa vez, a
lamentosa queixa do arrependimento, não pelo combate ao
Espiritismo, mas pelo que deixara de fazer de bom, quando
dispunha de tantos recursos e poderes, em virtude do
íntimo conhecimento dos bastidores políticos da Igreja.
Comovente, porém, são as pequenas manifestações
anônimas, em serviços preciosos, de que somente tomamos
conhecimento por via indireta. Um dos poderosos “Príncipes
da Igreja”, impetuoso e arrogante, que nos tratava com
superior condescendência, foi acolhido por um velho e
humílimo criado de quarto, que o servira nos seus dias de
glória.
***
Muitas são as lições dolorosas que nos ministram os
dramas vividos por esses pobres irmãos que insistem em
declarar-se trabalhadores do Cristo. Examinando suas
tendências, estudando suas atitudes e pronunciamentos,
creio que poderíamos identificar duas posições básicas,
neles: ambição e fanatismo... Às vezes, a ambição e o
fanatismo parecem coexistir no mesmo Espírito, mas
ocorrem, também, separadas. Os ambiciosos desejam o
poder, o exercício da autoridade. Não sabem viver sem
mandar, sem oprimir, sem impor sua vontade e suas ideias.
Movem-nos ambições desmedidas, sustentadas e
impulsionadas pela filosofia da restauração da “verdadeira”
Igreja do Cristo. Quantos deles não nos têm confessado sua
impaciência e irritação ante a desagregação da autoridade
da velha organização eclesiástica terrena! Não é essa a
imagem da Igreja com que sonham. Querem-na forte,
poderosa, autoritária, incontestada, ditatorial, como nos
tempos idos; não essa aí, que está sempre recuando e
entregando-se, como se acuada. No mundo espiritual em
que vivem, conservaram os modelos medievais, com todo o
seu cortejo de vícios, Só lhes resta reimplantar esses
modelos entre os encarnados, repondo a esclerosada
organização terrena no seu antigo “esplendor”.
É certo que, para esses objetivos, encontram apoio nos
mais insuspeitados setores da atividade humana, tanto
aqui, como no mundo espiritual. Para isto, ligam-se a outros
poderosos do passado, com os quais celebram pactos
sinistros de apoio mútuo, para partilharem do vasto bolo do
poder, se e quando o reconquistarem. É comum
encontrarmos, entre os desencarnados, sacerdotes de
elevada hierarquia eclesiástica, perfeitamente entrosados
com antigos governantes leigos que se revelaram
indiferentes às questões puramente religiosas ou
francamente hostis ao movimento cristão, que alguns deles
chegaram mesmo a combater tenazmente, quando de suas
passagens pela carne. Não importa. Desde que constituam
bons parceiros na conquista das posições, as tenebrosas
alianças realizam-se.
Quanto aos fanáticos, nem sempre são ambiciosos, no
sentido da disputa do domínio político. Estão convencidos
de que sua forma de pensar é a única certa, com exclusão
de todas as demais. Combatem o Espiritismo, não tanto
porque desejam posições de mando, mas porque o
consideram uma odiosa heresia. No fundo, o fanático puro
serve de instrumento ao ambicioso, pois este não se
interessa pelo pensamento religioso em si, e sim pelo poder
que uma teologia deformada e bem manipulada pode
proporcionar.
Muitos desses Espíritos repetem incessantemente seus
enganos por séculos a fio, buscando sempre os núcleos do
poder, quaisquer que sejam as crenças em que se apoiam.
Foram hierofantes de decadentes cultos egípcios, por
exemplo; repetiram a experiência, como sacerdotes judeus,
e voltam a insistir, como prelados católicos, sempre
disputando posições de relevo, de onde possam manobrar.
Para que essas mudanças tão radicais de posição teológica
não os incomode, condicionam-se a um esquecimento das
antigas circunstâncias, para não terem que enfrentar
conscientemente uma realidade estranha, como a de
declararem-se em luta pela restauração da Igreja do Cristo,
quando toda a sua atividade e todas as suas verdadeiras
convicções são um desmentido formal à doutrina de amor
contida nos Evangelhos. Às vezes, despertam para a
realidade, ante o impacto traumático de revelações que
dormitavam em seus indeléveis registros perispirituais,
como aquele imponente “servidor” do Cristo que acabou
descobrindo que participara pessoalmente do drama da
cruz... Outro ajudou a apedrejar Madalena... Um terceiro
lamentava ter queimado uma santa. Seria Joana d’Arc?
Todos esses sabem muito bem por que fogem às
lembranças do passado: é que as recordações arrastam-nos,
inapelavelmente, a enfrentar suas próprias contradições
íntimas, suas hipocrisias, seus desvios, suas fraquezas. O
esquecimento deliberado e autoinduzido é uma fuga, um
esconderijo. Enquanto estão ali, acham-se abrigados da dor.
Por isso, não estão interessados, especificamente, nesta ou
naquela teologia - o que importa é a ação, o poder. No
fundo, sabem muito bem que não são trabalhadores do
Cristo, mas há tanto tempo se condicionaram a essa
atitude, que acabam por se convencer da sua autenticidade.
É preciso um impacto mais violento para desalojá-los de
suas terríveis autoilusões.
18 - O MATERIALISTA
Este não constitui problema difícil, no trabalho de
esclarecimento. Viveu, na carne, convicto de que além da
matéria nada existe; de que, além da morte, só há o silêncio
e a escuridão do não-ser. Às vezes, tais posições foram
meramente filosóficas, isto é, platônicas. A despeito da
descrença em qualquer tipo de realidade póstuma, não
foram intrinsecamente maus, apenas desencantados,
indiferentes, desarvorados intimamente, embora, na
aparência, seguros e tranquilos. São mais acessíveis, e mais
prontamente aceitam a nova realidade.
Outros, porém, são daqueles que, descrentes da vida
espiritual, entregaram-se de corpo e alma ao culto
desenfreado da matéria. Ao contrário dos teóricos do
materialismo, estes são os que o praticam, em todos os
sentidos. Disputaram fortunas a ferro e fogo, intrigando,
matando, se preciso fosse, promovendo negociatas,
roubando, falsificando, ao mesmo tempo em que se
deixaram arrastar pelo sensualismo pesado, que avilta
todos os sentidos e anestesia cada vez mais as faculdades e
a sensibilidade. Para estes, nada é sagrado, nada importa,
senão a satisfação de suas ambições, de seus desejos, de
suas vontades.
A objetiva realidade da vida póstuma põe-nos em estado
de total confusão. Alguns deles, endurecidos nas suas
convicções, continuam a viver no mesmo clima de
maquinações e articulações, ainda presos aos seus
interesses terrenos, perseguindo aqueles encarnados e
desencarnados que se atravessaram no seu caminho.
Geralmente desejam a volta à carne, pois somente nela se
sentem relativamente felizes, não apenas pelo
esquecimento de suas misérias íntimas, mas porque lhes
proporciona os prazeres mais grosseiros a que se
habituaram.
Em outros, o choque desperta para uma condição que
eles não poderiam jamais admitir sem o impacto da
desencarnação. Quando incorporados aos médiuns, embora
confusos, a princípio, acabam por reconhecer que
continuam vivos depois da “morte”, pois estão pensando e
falando, vendo e sentindo, através de um corpo que,
evidentemente, não é o seu. Lembram-se das doenças que
tiveram, mas se recusam a admitir que “morreram”, porque
isto implicaria reconhecer que o materialismo que
professavam é inteiramente falso. A relutância é, ainda,
vaidade. Preferem continuar negando, por algum tempo, do
que admitirem, honestamente, que foram ludibriados por
sua própria descrença na verdade superior.
É preciso conduzi-los com tato e paciência. A súbita e
inoportuna revelação da nova condição em que se
encontram, poderá colocá-los em lamentável estado de
choque emocional. Temos que compreender que é difícil
àquele que não acredita na sobrevivência admitir que, a
despeito da descrença em si mesmo, ele sobreviveu.
Em “Reformador” de setembro de 1975, no artigo
“Lendo e Comentando”, está relatado um caso desses,
tratado com extrema habilidade e carinho por uma
excelente doutrinadora inglesa. O Espírito, por nome Tom,
vivera agarrado aos seus bens e, especialmente, ao seu
ouro, e, na sua imaginação, continuava a manipular as
moedas, no mundo espiritual, totalmente desligado da nova
realidade que vivia. Aos poucos, vai sendo conduzido a
admiti-la.
19 - O INTELECTUAL
Nem sempre é materialista. A escala cromática aqui é
ampla e variada. Encontramo-los de todos os feitios,
variedades e tendências. Há-os descrentes, indiferentes,
materialistas, espiritualistas, religiosos ou não. Foram
escritores, sacerdotes, artistas, poetas, médicos,
advogados, nobres, ricos, pobres. Quase sempre se
deixaram dominar por invencível vaidade, fracassando na
provação da inteligência.
No binômio cérebro/coração, no qual o homem deve
buscar equilíbrio, deixaram disparar na frente um dos
componentes, em sacrifício do outro. Brilhantes, demoram-
se na doce e venenosa contemplação narcisista da própria
inteligência, fascinados pelos seus mecanismos, sua
engenhosidade e os belos pensamentos que produzem.
Julgam-se geniais, e muitas vezes o são mesmo. São bons
argumentadores e, quando movidos para objetivos bem
definidos, tornam-se verdadeiramente difíceis de serem
despertados, pois se acham solidamente convencidos do
poder e da força das suas próprias fantasias, suas doutrinas,
seus sofismas e suas autojustificações.
Vemo-los, às vezes, na condição de ex-sacerdotes
também, como exímios criadores de tais sofismas.
Estudaram profundamente os Evangelhos e a teologia
ortodoxa. Leram os seus filósofos, escreveram tratados,
pregaram sermões belíssimos, do ponto de vista literário, e
tanto consolidaram suas construções, que acabaram
acreditando nelas. São estes que constituem o diálogo mais
difícil para o doutrinador. Não se exaltam, nem dão murros.
Parecem, mesmo, suaves e tranquilos. Têm respostas
prontas e engenhosas para tudo, fazem perguntas bem
formuladas, procurando confundir, para desarvorar o
interlocutor.
Ao cabo de algum tempo de observação atenta,
descobrimos que o intelectualismo é como qualquer outra
forma de fuga; é também um esconderijo, para o Espírito
que reluta em enfrentar uma realidade dolorosa.
Se conseguirmos restabelecer o vínculo, que sempre
deverá existir, entre cabeça e coração, estaremos a
caminho de ajudá-lo. Narrarei um caso prático, para ilustrar
o que desejo dizer com isso.
O companheiro apresentou-se irônico, aparentemente
muito seguro de si. É culto, inteligente, bom sofista, versado
em filosofia, em teologia e até mesmo nos textos
evangélicos, que cita com a maior facilidade e propriedade.
Conversamos longamente, e ele não perde oportunidade de
ridicularizar-me, ante minha pobreza intelectual e cultural.
Num momento de incontida irritação, chama-me de débil
mental e idiota, mas logo se contém, ao ser chamado à
atenção por um companheiro desencarnado de mais
elevada hierarquia, como depois verificamos.
Mesmo com a voz pausada, deixa escapar suas terríveis
ameaças, dizendo que nosso barco vai virar e seremos
empurrados para o fundo, com barco e tudo.
— Dessa vez - diz ele - não vai ser fácil. Você vai cair do
galho, macaco!
Segundo diz, há muito me segue e tem vontade de dizer
algumas verdades na minha cara, porque ainda tenho muito
do homem velho, com o que concordo plenamente. Não
sabe por que não as diz, pois está certo de que, se isso
acontecesse, naquela mesma noite o grupo estaria
liquidado. (Está, certamente, sentindo os controles do
médium.) Fala do cerco que me vem fazendo, até mesmo
nas minhas atividades profissionais, e refere episódios
verídicos, para demonstrar sua familiaridade com o que diz
respeito à minha vida particular. Conclui dizendo que, há
tempos, quase conseguiram derrubar-me. (Há sempre um
quase, na bondade infinita de Deus, quando nos
empenhamos na tarefa abençoada de servir.)
Ao cabo de longa conversa, despede-se, algo sonolento,
mas firme nas suas convicções. Oro por ele durante toda a
semana e, na reunião seguinte, ele volta.
Não está mais tão irônico e seguro de si, como da
primeira vez. Perdeu a aparente serenidade, revelando-se
profundamente irritado, furioso mesmo, ameaçador,
agressivo, impaciente. Deve ser por causa da perda do
valoroso companheiro que na semana anterior o advertira,
quando me chamou de débil mental e que, com a graça de
Deus, conseguimos despertar.
Declara-se um líder, e que, se eu tivesse visão
espiritual, veria que todos os seus companheiros estão ali,
atrás dele, como um bloco. Estão prontos e dispostos a
desencadear a luta. As ameaças são terríveis, mas sinto-o
mais desesperado do que rancoroso. Diz que transpusemos
todas as barreiras e que é preciso um basta final.
Enquanto conversamos, outro médium do grupo avisa-
me que ouve bimbalhar de sinos e, em seguida, sons de
órgão. Ele também ouve, mas recusa-se a reconhecer a
situação, que, obviamente, teme, e insiste em retomar o
debate filosófico-religioso. É a fuga desesperada ante toda e
qualquer aproximação da emoção, que não seja o frio jogo
de palavras a que está habituado e que o anestesia
espiritualmente.
De vez em quando, dirige-se, irritado, a alguém
invisível, que lhe cita trechos evangélicos. Em uma dessas,
diz, nervoso:
— Eu sei. 4:19, Primeira aos Coríntios.*
* “Mas, irei logo onde estais, se for da vontade do Senhor; o então, conhecerei,
não a palavra desses orgulhosos, mas o seu poder.”
Segundo me diz o outro médium, a música prossegue a
vibrar dentro dele. A essa altura, ele começa a apalpar o
seu médium: a face, os olhos e o corpo, demorando-se nas
mãos. Começa sutilmente a crise. Ele conclui, em voz alta,
que são mãos de um organista (que o médium foi,
realmente, em antiga encarnação, na Alemanha). Pouco
depois, ainda irritado, ante minha evidente falta de
acuidade, diz-me que é cego! E mesmo assim domina, é um
líder! Informa, satisfeito consigo mesmo. Sinto por ele uma
compaixão infinita e me dirijo a ele com ternura, como se a
pedir-lhe que me perdoe por não ter notado isso antes.
Pergunto se permite que tentemos curá-lo, e ele recusa
energicamente.
A essa altura, não consegue mais evitar que a música
domine todo o seu ser. Fala sobre acordes que lhe causam
verdadeiros choques. A crise aprofunda-se e ele ouve agora,
irresistivelmente, a música sublime de um organista
incomparável. Tenta desesperadamente fugir dela, tapa os
ouvidos, bate com os cotovelos na mesa, cantarola uma
canção, e diz a si mesmo:
— Reaja, frouxo!
Mas a torrente daquela música divina, que ele tem o
privilégio de ouvir, arrasta-o irresistivelmente. Segundo me
informam do mundo espiritual, ele costumava ouvir os
recitais sempre do mesmo lugar, na terceira fila à direita.
Digo-lhe isso, enquanto ele parece também reconhecer,
daquele tempo, o seu médium atual.
Por fim, graças a Deus, a emoção daquela música
inesquecível domina-o inapelavelmente. Está arrasado e
murmura:
— Ele é um monstro... Tudo nele é grande...
Refere-se, por certo, ao organista que, do invisível, toca
para ele neste momento. Logo a seguir, começa a chorar,
vencida pela emoção que há tanto sufocou em seu coração
generoso. A música que ele amava, e compreendia como
poucos, foi o instrumento sutil que a misericórdia divina
utilizou para restabelecer o perdido contacto entre coração
e mente, que andavam divorciados.
Trato-o com infinito carinho e amor fraterno, e quando
lhe peço perdão pela dor que lhe causamos naquela crise
necessária, ele retruca, entre irritado e confuso:
— Não peça perdão, seu tolo!
Em seguida parte, ainda em pranto e com a visão
recuperada.
20 - O VINGADOR
Vingar-se é ir à forra, punir alguém por aquilo que fez ao
vingador e, por isso, vingança é uma palavra-chave nos
trabalhos de desobsessão e esclarecimento. Aquele que se
dedica a essas tarefas, precisa estudá-la a fundo, suas
origens, suas motivações, seus mecanismos e as soluções
que lhe estão abertas.
É preciso entender o vingador e aceitá-lo como ele se
apresenta, se é que pretendemos ajudá-lo, pois ele é, antes
de tudo, um prisioneiro de si mesmo, através da sua cólera
e da sua frustração. Sua maior ilusão é a de que a vingança
aplaca o ódio, quando, na realidade, o alimenta e o mantém
vivo. Sua lógica é, ao mesmo tempo, fria e apaixonada,
calculada e impulsiva, paciente e violenta, e sempre
implacável. Envolvido no seu processo, ele nem sequer
admite o perdão, e é capaz de perseguir sua vítima através
de séculos e séculos, ao longo de muitas vidas, tanto aqui,
na carne, como no mundo espiritual.
Quase sempre a vingança desdobra-se a partir de um
caso pessoal, mas é comum encontrarmos também o
vingador impessoal, aquele que trabalha para uma
organização opressora. Ainda veremos isso mais adiante.
O vingador observa, planeja e espera a ocasião
oportuna e o momento favorável. Não se precipita, mas não
esquece: sempre que pode, interfere, ainda que seja
somente para espetar uma agulha em sua vítima indefesa.
Casos tremendos e persistentes de obsessão vingativa
resultam de amores frustrados, traídos ou indiferentes.
Paixões irrealizadas ou aviltadas despertam os mais
profundos sentimentos de revolta. De outras vezes, são
crimes horrendos, como assassinatos, espoliações,
desonras, difamações, iniquidades de toda sorte.
O vingador é aquele que tomou em suas mãos os
instrumentos da justiça divina. Não confia nela, ignora-a ou
não tem paciência de esperar por ela. Não sabe, ainda, que
o reajuste virá fatalmente, através da lei de causa e efeito.
Todo aquele que fere com a espada, há de ser ferido por ela,
segundo nos advertiu o Cristo. É certo, porém, que chegado
o momento do resgate, a lei não exige que alguém - seja
quem for - tenha que empunhar a espada para ferir o irmão
devedor. Pode dar-se muito bem que ele se fira
acidentalmente, caindo sobre um instrumento, por exemplo,
ou morrendo numa intervenção cirúrgica, em princípio
destinada a preservar-lhe a vida e, portanto, sem nenhuma
intenção de cortar o fio que mantém unidos corpo físico e
perispírito.
Em mensagem transmitida a Francisco Cândido Xavier,
o “Irmão X” narra um episódio desses, em que uma
atrocidade praticada no ano 177, ao tempo de Marco
Aurélio, veio a ser cobrada pela lei, na tragédia de 17 de
dezembro de 1961, na cidade fluminense de Niterói. As
simetrias são perfeitas. Não faltou um só elemento nessa
cobrança coletiva e despersonalizada. Aqueles que
ajudaram a promover o dantesco episódio de Lyon, há
quase dezoito séculos, reuniram-se no circo de Niterói. As
mesmas correrias, o mesmo atropelo, a mesma passagem
estreita por onde alguns escaparam ao inferno.*
* “Tragédia no Circo”. “Reformador” de março de 1962.
Tivemos, certa vez, um caso de vingança que muito nos
marcou. Alguém nos pedira ajuda espiritual para uma jovem
em constante estado de revolta, angústia e desajuste.
Colocamos seu nome em nosso caderno de preces e
aguardamos. Sem muita demora, duas ou três semanas
após, compareceu ao grupo o Espírito indignado de seu
perseguidor, e a história desenrolou-se. Fora seu esposo em
antiga existência, na Idade Média. Eram gente abastada e
provavelmente da nobreza, pois viviam num castelo. Seu
drama é que, segundo ele, todos os dias, através dos
séculos decorridos, à mesma hora, ele abre determinada
porta, já sabendo o que vai encontrar: a cena inesquecível
do flagrante de traição. Matou-a e suicidou-se, segundo os
deformados “códigos de honra” daquela época. No entanto,
a tragédia, longe de pacificar seu coração ou aplacar seu
rancor, ainda mais o exacerbou, porque sofreu horrores, não
apenas por causa do assassinato da esposa, como, também,
em razão do horrendo crime do suicídio. As dores que se
seguiram consolidaram seu ódio, e, desde então, ele
perseguiu o Espírito da antiga amada. Tanto ele, como ela,
tiveram outras vidas, nesse ínterim, e ela estava novamente
encarnada. Seu desejo, agora, era o de levá-la ao suicídio (a
jovem sofria realmente de impulsos suicidas), para tê-la
totalmente sob seu domínio. Ele sabe da sua
responsabilidade e está bem consciente de que responderá
pelos novos crimes que pratica para vingar-se, mas isso,
para ele, não importa; o que interessa no momento - e esse
momento dura séculos! - é a vingança em si mesma. Por
outro lado, os vingadores sempre se esquecem, ou ignoram,
que não há sofrimento sem motivo. No caso, se ele sofreu
traição, é porque, por sua vez, já traiu também, no passado.
E como poderemos negar indefinidamente o perdão de uma
falta cometida contra nós - por mais grave que seja - se
também precisamos de que as nossas próprias faltas sejam
perdoadas?
Mas, em situações como essas, há um curioso processo
emocional que o doutrinador precisa conhecer e empregar.
É o paradoxo do ódio-amor. O vingador pensa odiar uma
criatura que ele ainda ama, a despeito de tudo. Se a odiasse
simplesmente, já a teria esquecido e não se manteria preso
a ela durante tanto tempo. Parece que lhe restou uma
esperança de reconquista, dolorosa, tênue, inconsciente,
mas persistente.
No caso sob exame, foi realmente o que os salvou do
tenebroso drama. Lembrei-me de perguntar se não tinham
tido filhos. Realmente tiveram, duas criaturinhas
encantadoras, um casal, que ele ternamente dizia que eram
dois anjos. Disse-me, ainda, que atrás da porta seguinte,
que ele se recusava sempre a transpor, sabia que
encontraria os filhos amados. Era preciso, no entanto,
manter acesa a chama rubra do ódio que, temia ele
acertadamente, não poderia subsistir ao lado da doçura do
amor paterno, que o colocaria em uma situação de ternura
que ele queria evitar.
Na sessão seguinte, trouxeram-lhe, por desdobramento,
o Espírito da ex-esposa. Houve um diálogo emocionado, do
qual percebíamos apenas as suas falas. Sente-se vazio e
cansado. Não tem mais ânimo, nem para vingar-se.
— Você é um trapo, e eu também - diz a ela. - Somos
dois trapos. Vá em paz, que não a perseguirei mais. Que
Deus nos abençoe...
E adormeceu.
É extremamente complexo o processo da vingança. De
certa forma, a lei universal nos proporciona os elementos
para exercê-la, porque, com sua falta contra nós, aquele
que nos feriu colocou-se à mercê da reparação, quase
sempre dolorosa. E, por isso, o vingador sente-se um
instrumento da justiça divina, com todo o direito de exercê-
la, esquecido de que está reassumindo um compromisso
que, em parte, havia resgatado pela própria aflição que
procura punir a seu modo. Por outro lado, ao mesmo tempo
em que ele se vinga, o ofensor libera-se pela dor, e acaba,
ao longo do tempo, por situar-se fora de seu alcance,
enquanto ele, o perseguidor, continua preso à sua
problemática e, portanto, às suas angústias, com um
passivo enorme de faltas ainda por resgatar.
Ao vingar-se, ele reabre o ciclo da culpa e expõe-se, por
sua vez, novamente à lei, que se voltará contra ele, alhures
no tempo e no espaço.
Se conseguirmos convencer o vingador da lógica férrea
desse mecanismo, estaremos em condições de ajudá-lo a
libertar-se; caso contrário, ele seguirá escravo da sua
própria vingança, de vez que o livre-arbítrio, que lhe faculta
a decisão de agir, responde do mesmo modo, pelas
consequências amargas e inelutáveis que provoca. Não há
outras opções: ou ele perdoa e segue à frente, ou insiste em
cobrar, e demora-se nas sombras do sofrimento.
Consideramos diferentemente o obsessor e o vingador.
Embora tenham muito em comum, nos seus métodos de
ação e no que poderíamos chamar de sua filosofia, eles
diferem sutilmente: obsessão muitas vezes é vingança, mas
a vingança não é, necessariamente, um processo obsessivo.
Não sei se me faço entender. O Espírito pode vingar-se
longa e profundamente, sem desencadear obsessões à sua
vítima, empenhando-se apenas em criar-lhe dificuldades e
dores, angústias e frustrações. É que o Espírito, encarnado e
desencarnado, que sofre um processo vingativo, está, de
certa forma, à mercê de seu algoz, porque ao errar expôs-se
ao reajuste; mas, mesmo devendo, perante a lei
desrespeitada, poderá estar a salvo da obsessão em si
mesma. Assistimos, às vezes, à vingança indireta. Sem
poderem, por qualquer razão, atingir a vítima visada, os
“cobradores” alcançam-na fazendo sofrer aqueles que a
cercam e que, por suas falhas pessoais e por suas conexões
espirituais com a vítima, são impiedosamente sacrificadas
ao ódio.
De um pobre irmão, envolvido em antiquíssima trama
vingativa, alguém ouviu dizer, certa vez:
— Sou o responsável por todas as dores que os teus
vêm sofrendo há muito tempo...
Isto não quer dizer que a vítima indireta seja
invulnerável ou inatingível, pela santificação; é que,
empenhada em sincero e honesto processo de recuperação,
dedicado à prece, ao serviço ao próximo, à melhora íntima,
coloca-se sob a proteção da própria lei divina, que lhe
concede um crédito de confiança, pois as culpas são
resgatadas também através do amor e não apenas da dor...
Atenção, porém, para um pormenor: isto não significa
que sofram os justos pelos devedores, nem os pais pelos
filhos, ou a esposa pelo marido. Não há sofrimento inocente
na justiça divina. O que acontece, nesses casos, é que o
vingador atinge a vítima (que se colocou fora de seu
alcance) através daqueles que lhe são caros, mas que
também se acham em débito perante a lei, por motivos
outros.
21 - MAGOS E FEITICEIROS
Os trabalhadores da desobsessão não devem ignorar a
realidade da magia negra, a fim de não serem tomados de
surpresa nas suas tarefas redentoras. Com frequência, terão
oportunidade de observar tentativas de envolvimento do
grupo e de seus componentes, ou de pessoas que dele se
socorrem, promovidas por antigos magos e feiticeiros que,
no mundo espiritual, persistem nas suas práticas e rituais.
Extremamente complexo e delicado, especialmente
porque é escassa, nesse particular, a literatura doutrinária
de confiança existente, o assunto precisa ser abordado com
muita prudência e lucidez.
O tema não ficou indiferente a Kardec, como podemos
verificar do exame das questões números 551 a 557, de “O
Livro dos Espíritos”, sob o título “Poder oculto. Talismãs.
Feiticeiros”. Os Instrutores do eminente Codificador
colocaram a questão naquele clima de prudência e lucidez
de que há pouco falávamos. Obviamente, a época não
estava madura para o aprofundamento do problema, nem
seria isto apropriado no livro básico da Doutrina Espírita,
cujo escopo era o de entregar aos homens uma síntese
didática acerca do Espírito e suas manifestações, do seu
relacionamento com Deus e com o Universo. Disseram,
porém, o suficiente para formular-se um juízo sobre a
matéria, levando em conta as superstições que prevaleciam
àquele tempo.
Foram muito sóbrios os Espíritos, limitando-se a
respostas sumárias que, não obstante, deixaram aberturas
para futuros desdobramentos. Ensinaram, por exemplo, que
um “homem mau” não poderia, “com o auxílio de um mau
Espírito que lhe seja dedicado, fazer mal ao seu próximo”,
porque “Deus não o permitiria”.
A despeito da notável economia de palavras, o
pensamento contido nesse período é, ao mesmo tempo,
amplo e exato. Naquilo que Deus não o permite, realmente,
nada podem fazer os Espíritos ainda voltados para o mal - e
essa é a nossa proteção, pois o que seria de nós se tudo
lhes fosse permitido? Quando, porém, nos credenciamos a
esse amparo? Talvez seja melhor reformular a questão:
Quando nos tornamos vulneráveis e, portanto, expostos à
cobrança? A partir do momento em que nos atritamos com
as leis divinas, colocando-nos, portanto, não fora de sua
proteção, não abandonados por Deus, mas submetidos às
consequências de nossas próprias ações. É assim que um
Espírito faltoso coloca-se, por exemplo, ao alcance de dores
inomináveis, como a da obsessão. Realmente, seria
desastroso que qualquer Espírito desajustado pudesse fazer
conosco o que bem entendesse, mas estejamos certos de
que, ao cometer nossos desatinos, abrimos a eles as portas
da nossa intimidade. O próprio Cristo advertiu-nos de que,
se não nos reconciliássemos com os nossos adversários,
eles nos levariam ao juiz, e o juiz nos mandaria à prisão,
donde somente seríamos liberados depois de cumprida toda
a pena, até o último centavo.
Quanto à crença no poder de enfeitiçar, os Espíritos
foram cautelosos, declarando que tais fatos são naturais,
mal observados e, sobretudo, mal compreendidos, mas que
“algumas pessoas dispõem de grande força magnética, de
que podem fazer mau uso, se maus forem seus próprios
Espíritos, caso em que possível se torna serem secundados
por outros Espíritos maus”.
Sobre as fórmulas, esclarecem que todas são mera
charlatanaria, e prosseguem:
“Não há palavra sacramental nenhuma, nenhum sinal
cabalístico, nem talismã, que tenha qualquer ação sobre os
Espíritos, porquanto estes só são atraídos pelo pensamento
e não pelas coisas materiais.”
Kardec, no entanto, insistiu, com a pergunta 554, assim
formulada:
“Não pode aquele que, com ou sem razão, confia no que
chama a virtude de um talismã, atrair um Espírito, por efeito
mesmo dessa confiança, visto que, então, o que atua é o
pensamento, não passando o talismã de um sinal que
apenas lhe auxilia a concentração?”
“É verdade - respondem os Espíritos - mas, da pureza da
intenção e da elevação dos sentimentos depende a
natureza do Espírito que é atraído.” (Destaques meus.)
Do que se depreende que o talismã, em si, nada vale,
mas funciona como uma espécie de condensador de
energias psíquicas emanadas do operador que, pelo
pensamento, atrai os seres desencarnados que lhe são
afins.
Realmente, como muito bem observa Kardec, em nota
de sua autoria, em seguida à Questão número 555, “O
Espiritismo e o magnetismo nos dão a chave de uma
imensidade de fenômenos sobre os quais a ignorância teceu
um sem-número de fábulas, em que os fatos se apresentam
exagerados pela imaginação.”
Lamentavelmente não temos ainda um estudo
aprofundado dessa curiosa temática, mas é certo que o
Espiritismo tem condições para desmistificar muito da
complicada e, às vezes, ingênua ritualística da magia,
retirando-lhe a aura de mistério e ocultismo, para explicá-la
em termos de conhecimento científico, aberto, racional,
dentro do contexto das leis naturais. O Espiritismo não
ignora o fenômeno, nem o nega, como vimos. A Doutrina
empenha-se em negar é o caráter sobrenatural que alguns
procuram atribuir aos fenômenos, bem como as inúteis
complicações dos ritos, fórmulas, invocações, posturas,
símbolos, apetrechos e instrumentos de que se valem os
operadores, que não passam de médiuns agindo em
consonância com seus companheiros desencarnados.
Sobre a influência dos astros, por exemplo, ensina
Emmanuel* que:
* “O Consolador”, questão número 140.
— “As antigas assertivas astrológicas têm a sua razão de
ser. O campo magnético e as conjunções dos planetas
influenciam no complexo celular do homem físico, em sua
formação orgânica e em seu nascimento na Terra; porém, a
existência planetária é sinônimo de luta. Se as influências
astrais não favorecem a determinadas criaturas, urge que
estas lutem contra os elementos perturbadores, porque,
acima de todas as verdades astrológicas, temos o
Evangelho, e o Evangelho nos ensina que cada qual
receberá por suas obras, achando-se cada homem sob as
influências que merece.” (Destaques meus.)
Dentro dessa mesma linha de pensamento, reconhece, o
esclarecido mentor, as influências que podem exercer,
sobre Espíritos encarnados ou desencarnados, os nomes
que recebem, por causa da “simbologia sagrada das
palavras”. Também os números “possuem a sua mística
natural”, segundo suas vibrações. Os próprios objetos
armazenam energias que ainda não estão bem definidas
para nós.
— “Os objetos - responde Emmanuel à questão número
143 - mormente os de uso pessoal, têm a sua história viva
e, por vezes, podem constituir o ponto de atenção das
entidades perturbadas, de seus antigos possuidores no
mundo; razão por que parecem tocados, por vezes, de
singulares influências ocultas, porém, nosso esforço deve
ser o da libertação espiritual, sendo indispensável lutarmos
contra os fetiches, para considerar tão-somente os valores
morais do homem na sua jornada para o Perfeito.”
(Destaques meus.)
O assunto mereceu também observações, ainda que
sumárias, de André Luiz, em “Evolução em dois Mundos” -
livro que talvez ainda levemos meio século para desdobrar
em todas as suas implicações. Diz o autor espiritual que, a
certo ponto da história evolutiva...
- ... “Iniciou-se o correio entre o plano físico e o plano
extra físico, mas, porque a ignorância embotasse ainda a
mente humana, os médiuns primitivos nada mais puderam
realizar que a fascinação recíproca, ou magia elementar, em
que os desencarnados, igualmente inferiores, eram
aproveitados, por via magnética, na execução de atividades
materialistas, sem qualquer alicerce na sublimação
pessoal.”
E prossegue:
— “Apareceu então a goécia ou magia negra, à qual as
inteligências superiores opuseram à religião por magia
divina, acentuando-se a formação da mitologia em todos os
setores da vida tribal.”
“A luta entre os Espíritos retardados na sombra e os
aspirantes da luz encontrou seguro apoio nas almas
encarnadas que lhes eram irmãs. Desde essas eras
recuadas, empenham-se o bem e o mal em tremendo
conflito que ainda está muito longe de terminar, com base
na mediunidade consciente ou inconsciente, técnica ou
empírica.”
Essa digressão introdutória tornou-se indispensável para
que a nossa penetração no lusco-fusco da magia conte com
um suporte de bom senso e racionalismo, a funcionar como
fio de Ariadne, que nos permita transitar pelos seus
meandros, sem o menor temor de perder o caminho de
volta.
Não resta dúvida de que os fenômenos elementares de
magia reportam-se às eras primitivas, como nos assegura
André Luiz. Embora os autores especializados procurem
distinguir magia de feitiçaria - e ainda veremos isto um
pouco adiante - a Enciclopédia Britânica lembra que o termo
inglês para esta última - “witchcraft” - quer dizer a arte ou
ofício do sábio, de vez que a raiz semântica da primeira
seção da palavra - “witch” - está associada com a palavra
“wit”, saber.
Realmente, os magos, originários, segundo Lewis
Spence,* da antiga Pérsia, eram cultores da sabedoria de
Zoroastro. Possivelmente da raça média, adquiriram enorme
prestígio, especialmente, ao que parece, depois que Ciro os
institucionalizou, ao fundar o império persa, sobre o qual
exerceram considerável influência político-religiosa. É
evidente que esse prestígio tinha que ser alicerçado em rico
acervo de conhecimentos, pois o homem sempre respeita e,
às vezes, teme aquele que sabe.
* “An Encyclopaedia of Occultism”, University Books, New York, 1960.
“Religião, filosofia e ciência - escreve Spence - estavam
todas em suas mãos. Eram médicos universais que curavam
os doentes do corpo e do espírito e em estrita consistência
com essas características, socorriam as mazelas do Estado
que é apenas o homem em sentido mais amplo.”
Distribuíram-se em três graus: os discípulos, os
professores e os mestres, o que vale dizer que o
conhecimento de que dispunham os grandes mestres era
ministrado por processos iniciáticos, à medida que o
discípulo revelava condições de absorvê-lo e aplicá-lo
rigorosamente, segundo os métodos e interesses da Ordem.
A organização correspondeu generosamente ao apoio
que recebeu de Círo, muito contribuindo, com seus recursos,
para consolidação das conquistas do rei persa, mas, por
volta do ano 500 a. C., entrou em desagregação,
especialmente por causa da tenaz perseguição de Dario
Histaspes. Emigrações em massa espalharam-nos pela
Capadócia e pela Índia, mas ainda eram uma força
respeitável ao tempo de Alexandre, o Grande (356-323 a.
C.) que, segundo Spence, sentiu-se enciumado de seus
poderes.
São profundas as implicações da magia em alguns
cultos religiosos, mais intensamente, é claro, nos primitivos,
tanto quanto na medicina, na astrologia, no magnetismo, na
alquimia e em certas correntes místicas que prevalecem até
hoje.
Lewis Spence declara, no seu erudito verbete, que, a
seu ver, misticismo e magnetismo são idênticos para alguns
ocultistas, entre os quais cita, em tempos recentes, Auguste
Comte, o Barão du Potet e o Barão de Guldenstubbé, este
último autor do livro “La Realité des Esprits”, publicado em
1857.*
* Ver o artigo “O Tempo, o preconceito e a humildade”, em “Reformador”,
agosto/1975.
Sir James Frazer* considera magia e religião uma só
coisa, tão identificadas se acham entre si. Isto é
provavelmente verdadeiro para as primitivas crenças, mas
não para as religiões mais recentes, que embora conservem
sinais exteriores dos antigos cultos - símbolos, ritos,
fórmulas, encantações - perderam contacto com os seus
aspectos esotéricos.
* “The Golden Bough”, MacMilian, New York, 1951, eruditíssimo tratado sobre
magia e religião que, mesmo em forma condensada, apresenta-se com 827
páginas de texto. A obra completa consta de 12 volumes.
Um conceito reproduzido por Spence informa-nos que o
apelo aos deuses constitui prática religiosa, enquanto a
prática da magia tenta forçá-los à complacência. A religião é
frequentemente oficial e quase sempre organizada,
enquanto a magia é, usualmente, proibida e secreta.
Embora Spence nos fale da magia na Pérsia, sabemos
que ela floresceu amplamente no Egito, muito antes da
época citada na sua obra. Os livros mediúnicos de
Rochester, vários deles publicados pela FEB, narram, com
minúcias de extremo realismo, processos terríveis de magia
e ocultismo, como em “O Chanceler de Ferro” e “Romance
de uma Rainha”.
O segundo livro do Antigo Testamento - o Êxodo -
especialmente nos capítulos de números 5 a 13, narra o
duelo entre os magos egípcios e hebreus, ante a aturdida
expectativa de todo o país.
Já antes disso, no capítulo 4, os guias espirituais de
Moisés conferem-lhe poderes ostensivos, pois certamente
ele deveria conhecer bastante acerca dos rituais e da teoria
que os sustentava.
O Espírito que se apresenta como Jeová ordena que
conduza o povo hebreu para fora do Egito, mas Moisés
revela sua impotência em convencer sua gente a segui-lo.
— Não acreditarão em mim - diz ele - nem ouvirão a
minha voz, pois dirão: Jeová não te apareceu coisa alguma.
— Que tens tu na mão? - pergunta-lhe Jeová.
— Um cajado.
— Atira-o ao chão.
Mal atirado ao solo, o cajado transformou-se numa
serpente. Ante o temor de Moisés, o Espírito disse-lhe que a
agarrasse pelo pescoço, o que ele fez, voltando a serpente a
ser um mero cajado.
Essa mesma “mágica”, no melhor sentido da palavra,
Moisés faria diante do Faraó e sua corte.
Segundo Will Durant,* a crença na feitiçaria, na Idade
Média, era praticamente universal. “O Livro da Penitência”,
do Bispo de Exeter, condena as mulheres “que professam a
faculdade de modificar a mente dos homens pela feitiçaria,
ou encantamento, como do ódio para o amor ou do amor
para o ódio, bem como enfeitiçar ou roubar os bens dos
homens”, ou ainda as que declaram “cavalgar durante
certas noites certos animais, com um bando de demônios
em formas femininas, ou estarem em companhia de tais”.
* “The Age of Falth”, Simon and Schuster, New York, 1950.
Quando a Igreja resolveu entrar em cena para coibir a
prática, criou-se um clima de terror que, ao mesmo tempo
em que combatia as crendices, parecia atribuir-lhes certa
substância, que mais as autenticavam na imaginação do
povo inculto, porque ninguém combate aquilo que não
teme. As consequências dessas impiedosas perseguições
foram danosas e lamentáveis para o entendimento do
fenômeno mediúnico, e é bem provável que a notícia que os
Espíritos superiores vieram trazer a Kardec, no século XIX
pudesse ter sido antecipada de um século ou mais, se em
vez de queimar os médiuns medievais, sob a acusação de
que mantinham pactos com o demônio, procurassem
estudá-los com respeito e interesse. A despeito disso, não
foram poucos os prelados católicos que, durante toda a
existência, mantiveram cultos paralelos de magia negra,
com os seus estranhos rituais.
Ao escrevermos este livro, o mundo moderno assiste,
algo perplexo, a um fantástico ressurgimento da magia
negra e da feitiçaria, por toda parte e, desta vez, não nos
países menos desenvolvidos, ou primitivos, e sim nos de
mais avançada tecnologia e mais sofisticada cultura, como
a Inglaterra, os Estados Unidos, a França e a Itália.
A Britânica, tanto quanto Sir James Frazer, atribui à
magia origens nitidamente religiosas, sob a forma de cultos
à base de animais sacrificados. Oferendas de sangue e de
estranhas substâncias eram feitas para propiciar os deuses
em troca de favores, fosse em benefício de alguém ou com
a intenção de destruí-lo.
Entre os ritos destinados a destruir um inimigo, por
exemplo, o mais antigo, dramático e conhecido, consiste em
modelar uma pequena estátua representativa da vítima,
geralmente em cera, e, com os métodos apropriados,
espetá-lo com agulhas e punhais.
Seria impraticável, num resumo como este, repassar
todo o campo da magia e empreender sua avaliação em
termos de Doutrina Espírita; poderemos, não obstante,
tentar oferecer algumas noções colhidas em alentados
livros, facilmente encontráveis no mercado, praticamente
em todas as línguas vivas.
Um desses autores é o médico francês, Dr. Gérard
Encausse, contemporâneo de Allan Kardec, que, sob o
pseudônimo de Papus, escreveu abundantemente sobre o
assunto. Seu filho, o Dr. Philippe Encausse, também médico,
revelou igual interesse pela matéria, produzindo algumas
obras sobre o assunto, como “Sciences Occultes et
Déséquilibre Mental”.
Colheremos algumas informações na obra de Papus
intitulada “Tratado Elementar de Magia Prática”.*
* Tradução de medial Shaiah, 1974, 5ª edição da Editorial Kier, Buenos Aires, do
original francês “Traité Elementaire de Magia Pratique”.
Antes de mergulharmos no seu livro, creio útil transmitir
ao leitor espírita uma ideia da posição de Papus em relação
ao Espiritismo:
“Existe, não obstante - escreve ele, à página 11 de seu
livro - uma forma de experiências mágicas próprias para as
pessoas pusilânimes, e que aconselharemos a quantas
desejarem divertir-se, dedicando, à sobremesa, alguns
momentos aos fenômenos de espiritismo. Nada têm de
difíceis e sim muito consoladores, e, afinal de contas,
situam-se a tal distância da verdadeira magia, que não há a
temer nenhum acidente sério, desde que não se esqueça da
precaução de deixar as coisas no momento oportuno.”
Ao apreciar alguns aspectos da magia, da qual o Dr.
Encausse é admirador ardoroso, tentemos não ser tão
radicais e superficiais como ele, em relação ao Espiritismo.
Papus acata o princípio, também lembrado por Sir James
Frazer, acima citado, segundo o qual o mecanismo da magia
precisa de um veículo entre a vontade humana e as coisas
inanimadas. Na opinião de Sir James Frazer, toda a magia
baseia-se na lei da simpatia, ou seja, “as coisas atuam
umas sobre as outras, a distância, por estarem
secretamente ligadas entre si por laços invisíveis
“Para isso - escreve Papus - o operador deverá aplicar
sua vontade, não sobre a matéria, mas sobre aquilo que
incessantemente a modifica, o que a Ciência Oculta
denomina o plano de formação do mundo material, ou seja,
o plano astral.” (O primeiro destaque é meu; o segundo, do
original.)
Esse plano, os magos concebem como sendo as forças
da natureza, das quais, por certo, tanto se utilizam os
trabalhadores do bem, como os outros.
“Não cabe dúvida - prossegue Papus - que são as forças
da natureza que o mágico deverá pôr em ação, sob o influxo
da sua vontade; mas que classe de forças são essas?”
Diz ele que são as forças hiper físicas, assim entendidas
as que apenas diferem das energias meramente físicas nas
suas origens, pois emanam de seres vivos e não de
mecanismos inanimados.
No fenômeno da pronta germinação, crescimento da
planta e produção de frutos, que alguns faquires teriam
realizado, segundo testemunhos nos quais Papus acredita,
aconteceria apenas uma abundante doação, à semente, e
depois à planta e ao fruto, das energias orgânicas do faquir,
que se poriam em consonância com as energias
armazenadas na semente.
“A vontade do faquir - diz Papus - põe em ação uma
força capaz de desenvolver, em algumas horas, a planta,
que, em condições normais, levaria um ano para atingir
aquele ponto de crescimento. A dita força não tem muitos e
diversos nomes de bom sentido; pura e simplesmente,
chama-se vida.”
A magia seria, portanto, uma ação consciente da
vontade sobre a vida. A definição completa proposta por
Papus é a seguinte:
“É a aplicação da vontade humana dinamizada à
evolução rápida das forças vivas da natureza.”
À página 91, resume ele a sua teorização, ao dizer que
são três as maneiras de agir sobre a natureza:
1) - Fisicamente, modificando a estrutura do ser ou
de um ponto qualquer na natureza, pela aplicação
exterior de forças físicas, que utiliza o trabalho do
homem. A agricultura, em todas as categorias, a
indústria, com todas as suas transformações,
entram neste quadro.
2) - Fisiológica ou astralmente, modificando a
estrutura de um ser, por meio da aplicação de
certos princípios e de certas forças, não à forma
exterior, mas aos fluídos que circulam dentro do
aludido ser. A Medicina, em todos os seus ramos, é
um exemplo desse caso, e haveremos de declarar
que a Magia (ele a escreve com letra maiúscula,
embora escreva Espiritismo com letra minúscula)
admite a possibilidade de influir sobre os fluídos
astrais que atuam na natureza e sobre os que
atuam nos homens.
3) - Psiquicamente, atuando diretamente, não sobre
os fluídos, mas sobre os princípios que os põem em
movimento.”
Vamos conferir:
“Colaboradores desencarnados - escreve André Luiz* -
extraiam forças de pessoas e coisas da sala, inclusive da
Natureza em derredor, que casadas aos elementos de nossa
esfera faziam da câmara mediúnica precioso e complicado
laboratório.” (Destaques meus.)
* “Nos Domínios da Mediunidade”, capitulo 28 - “Efeitos Físicos”, edição FEB.
O resto é aplicação prática desses princípios: se os
orientamos para o bem, obteremos resultados positivos; se
os dirigirmos para o mal, arcaremos com a responsabilidade
correspondente. E é precisamente na aplicação que mais
veementes restrições o Espiritismo teria a fazer à magia,
ainda que sem tocar os tenebrosos domínios da magia
negra.
Ao cuidarem dos problemas da obsessão, por exemplo,
mesmo os adeptos mais bem informados da magia, revelam
um despreparo comovedor, atribuindo a base do fenômeno
à formação das chamadas larvas, que se alimentariam da
“substância astral” emanada do “imprudente que lhes deu
vida”. Para a criação dessas larvas, basta que se tenha
medo dos ataques de ódio de outra pessoa, e segundo
Papus, a prática mediúnica espírita seria uma dessas
causas.
Papus oferece dois métodos diferentes para tratamento
dessas “obsessões”: um de ação indireta, outro de ação
direta.
Exemplifica ambos. Num deles, em Londres, optou pelo
método indireto, magnetizando uma senhora na presença
do obsidiado.
A mulher, em transe, via uma faixa fluídica pairando em
certo recanto da residência da vítima. Orientado pela
descrição da mulher, Papus desenhou a faixa num pedaço
de papel branco, “consagrado e perfumado”, e prosseguiu:
“Terminado que foi o desenho, uma fórmula e uma prece
puseram em comunicação a imagem física com a forma
astral e então cortamos o desenho em vários pedaços, com
a ajuda de uma grande e afiada lâmina de aço. A mulher
adormecida declarou que os cortes influíram, incontinenti,
na forma astral, que, igualmente, se desfez em pedaços.”
E, com isto, estaria curada a “obsessão”...
O segundo método (direto) seria recomendável para “os
casos em que a obsessão toma um caráter especialmente
grave”.
Baseia-se no princípio de que as larvas e os elementais -
seres algo animalizados que servem aos magos -
alimentam-se da substância astral de que é muito rico o
sangue. O método consiste, pois, no seguinte: toma-se uma
mecha de cabelos do obsidiado, que deverão ser
incensados, consagrando-os segundo o procedimento
habitual. Em seguida, o paciente deverá aproximar-se e
diante dele se molhará um punhado de seus cabelos no
sangue de uma pomba ou de uma cobaia, também
consagrados sob a influência de Júpiter ou de Apolo,
pronunciando-se o Grande Conjuro de Salomão. Para isto, o
oficiante deverá vestir-se de roupas brancas.
Em seguida, colocar o cabelo, molhado em sangue,
sobre uma pequena prancha, traçar à sua volta um círculo,
desenhando-o com uma mistura de carvão e ímã
pulverizado. Escrever no interior do círculo, nos quatro
pontos cardeais, as quatro letras do tetragrama sagrado. A
seguir, com a espada mágica (ou, na sua falta, com uma
ponta de aço comum, com cabo de madeira envernizada)
investir energicamente contra os cabelos, ordenando à larva
que se dissolva.
Segundo o autor, o processo raramente falha, pelo
menos depois de repetido três vezes, de sete em sete dias.
A reprodução destes métodos não tem por objeto aqui
ridicularizar o procedimento daqueles que os praticam, pois
como seres humanos, e irmãos nossos, merecem respeito e
consideração; limitamo-nos a expô-los. Aqueles que lidam
com graves problemas obsessivos, sabem muito bem que
pouca diferença existe entre esse procedimento e o recurso
igualmente inócuo do exorcismo eclesiástico. Num ou
noutro caso, podem, no entanto, produzir resultados
positivos, inteiramente aleatórios, seja porque o Espírito
obsessor ficou algo impressionado com as complexidades
do ritual, ou porque resolveu, “sponte sua”, abandonar sua
vítima; mas é raro que um obsessor ferrenho e tenaz
desista definitivamente da luta, apenas porque alguém o
ameaçou com uma espada.
Por exemplos como estes, podemos admitir que os
verdadeiros segredos da magia perderam-se há muito.
Restaram apenas fragmentos de uma técnica que, em
tempos idos, foi manipulada com habilidade e competência.
Os magos caldeus, persas e egípcios não ignoravam
fenômenos elementares como os da obsessão, a ponto de
tentarem curá-la com práticas tão ingênuas. Seus recursos
e conhecimentos eram muito mais amplos e profundos.
Mas, se essa técnica perdeu-se para os encarnados - pelo
menos para os que têm escrito os tratados mais conhecidos
de magia - ela se preservou para os Espíritos
desencarnados, antigos magos que levaram para a vida
póstuma os conhecimentos especializados.
A propósito, parece ainda oportuno reproduzir uma das
normas coligidas por Papus:
“Tratai de não vos servir jamais desta arte contra vosso
próximo, a não ser para uma vingança justa. Mesmo assim,
porém, aconselho-vos que é melhor imitar a Deus, que
perdoa, e que vos tem perdoado a vós mesmos. E não há
ocasião mais meritória do que a de perdoar.”
A despeito do apelo ao perdão, quem achará que sua
vingança é injusta? Buscando novamente André Luiz,
encontramos em “Nos Domínios da Mediunidade” esta
observação preciosa de Aulus:
— “Abstenhamo-nos de julgar. Consoante a lição do
Mestre que hoje abraçamos, o amor deve ser nossa única
atitude para com os adversários. A vingança, Anésia, é a
alma da magia negra. Mal por mal, significa o eclipse
absoluto da razão. E, sob o império da sombra, que
poderemos aguardar senão a cegueira e a morte?”
Outro autor bastante conceituado entre os entendidos é
Eliphas Levi. O Dr. Gérard Encausse tem-no em elevada
conta e, por várias vezes, em suas obras, refere-se a ele
com respeito e admiração. Eliphas Levi também viveu no
século XIX e sua obra “Dogma e Ritual da Alta Magia”*, por
exemplo, foi escrita em 1855, quando o Espiritismo estava
ainda na fase preliminar das mesas girantes. Embora sem
declarar-se católico, Levi acata os principais dogmas
ortodoxos: a divindade de Jesus, a Trindade, a existência do
céu e do inferno. A despeito disso, não se furta a algumas
críticas veementes, como esta, por exemplo:
* Editora Pensamento, São Paulo.
“A Igreja ignora a magia, porque deve ignorá-la ou
perecer, como nós o provaremos mais tarde; ela nem ao
menos reconhece que seu misterioso fundador foi saudado
no seu berço por três magos, isto é, pelos embaixadores
hieráticos das três partes do mundo conhecido, e dos três
mundos analógicos da filosofia oculta.”
A obra de Papus é bem mais didática e ordenada do que
a de Levi, mas os princípios fundamentais identificam-se em
vários pontos importantes e ambos consideram o mago
como o verdadeiro conhecedor e o feiticeiro como simples
imitador. Papus usa uma imagem, dizendo que o mago é o
engenheiro da magia, enquanto o feiticeiro é simples
obreiro.
“Há uma verdadeira e uma falsa ciência - escreve Levi -
uma magia divina e uma magia infernal, isto é, mentirosa e
tenebrosa; temos de revelar uma e desvendar outra; temos
de distinguir o mago, do feiticeiro; e o adepto, do
charlatão.”
O estilo de Levi, como, aliás, o de Papus, também, é
algo pomposo, às vezes obscuro e nem sempre muito
coerente. Ambos concordam, porém, em que o conceito
fundamental da magia está na movimentação, em proveito
próprio, dos segredos e forças da natureza.
Levi defende a tese de que a resistência, num sentido, é
indispensável para que a força aplicada, em sentido
contrário, se robusteça e a vença. Seus dogmas não são
menos surpreendentes, como este, por exemplo:
“Assim, para o sábio, imaginar é ver; como, para o
mago, falar é criar. Aquele que deseja possuir, não deve dar-
se. Só pode dispor do amor dos outros aquele que é dono do
seu, ou seja, não o entrega a ninguém.”
Quanto ao fenômeno das mesas girantes, diz ele, “outra
coisa não são senão correntes magnéticas que começam a
formar-se, e solicitações da natureza que nos convida, para
a salvação da humanidade, a reconstituir as grandes
cadeias simpáticas e religiosas”. Por isso, atribui “todos os
fatos estranhos do movimento das mesas ao agente
magnético universal, que procura uma cadeia de
entusiasmo para formar novas correntes”. Os golpes, “raps”
e os instrumentos que tocam, aparentemente sozinhos,
“são ilusões produzidas pelas mesmas causas”.
Sua descrição da evocação do Espírito de Apolônio de
Tiana, em Londres, é de uma riqueza impressionante de
minúcias e começa com um sabor de romance de capa e
espada, quando ele recebe, dentro de um envelope, no
hotel, um cartão cortado transversalmente, com este
recado:
“Amanhã, às três horas, diante da abadia de
Westminster, vos será apresentada a outra metade deste
cartão.”
Era uma senhora, e colocou à disposição dele, após os
juramentos devidos, arsenal completo, com toda a
instrumentação necessária a uma evocação. Ao cabo de
complicadíssimo ritual, um Espírito manifestou-se,
realmente:
— “Chamei três vezes Apolônio, fechando os olhos; e,
quando os abri, um homem estava diante de mim, envolto
inteiramente por uma espécie de lençol, que me pareceu
ser mais cinzento do que branco; a sua forma era magra,
triste e sem barba, o que não combinava exatamente com a
ideia que primeiro tinha de Apolônio. Experimentei uma
sensação extraordinária de frio, e quando abri a boca para
interrogar o fantasma, me foi impossível articular um som.
Pus, então, a mão sobre o signo do pentagrama, e dirigi
para ele a ponta da espada, ordenando-lhe mentalmente,
por este signo, a não me amedrontar e a obedecer-me.
Então, a forma ficou mais confusa e ele desapareceu
imediatamente. Ordenei-lhe que voltasse: então senti
passar, junto a mim, como que um sopro, e, alguma coisa
tendo-me tocado na mão que segurava a espada, tive
imediatamente o braço adormecido até os ombros. Julguei
entender que esta espada ofendia o Espírito, e a plantei,
pela ponta, no círculo junto a mim. A figura humana
reapareceu logo; mas senti tão grande fraqueza nos meus
ombros e um repentino desfalecimento apoderar-se de mim,
que dei dois passos para me assentar. Desde que fiquei
assentado, caí num adormecimento profundo e
acompanhado de sonhos, de que me restou, quando voltei a
mim, somente uma lembrança confusa e vaga.” (Destaques
meus.)
Assim foi realizada a evocação que, sem nenhum ritual
complicado, sem substâncias, círculos, espadas e
vestimentas especiais, e sem evocação, realiza-se, a cada
instante, em incontáveis sessões mediúnicas.
Quanto à magia negra, apresenta o autor o que chama
de revelação nova e que consiste no seguinte:
“O diabo, em magia negra, é o grande agente mágico
empregado para o mal por uma vontade perversa.”
Também o enfeitiçamento está dentro dessa linha de
raciocínios.
“O instrumento do enfeitiçamento não é outro senão o
próprio grande agente, que, sob a influência de uma
vontade má, se torna, então, real e positivamente o
demônio.”
Às vezes, no entanto, deixa entrever que o domínio que
muitos buscam exercer sobre o semelhante não está tanto
nos ritos e nas práticas, mas na própria psicologia humana:
“Acariciar as fraquezas de uma individualidade é
apoderar-se dela e fazer dela um instrumento, na ordem dos
mesmos erros e das mesmas depravações.”
Ou então:
“Todos nós temos um defeito dominante, que é, para
nossa alma, como que o umbigo do seu nascimento
pecador, e é por ele que o inimigo sempre nos pode pegar;
a vaidade, para uns, e preguiça para outros, o egoísmo para
o maior número. Que um espírito hábil e mau se apodere
desta mola, e estais perdidos.”
De outras vezes, percebemos, de relance, por que tanto
se empenham em conquistar a insensibilidade os Espíritos
encarnados e desencarnados que fazem do domínio sobre o
semelhante a meta de suas vidas:
“Só o adepto de coração sem paixão - escreve Levi -
disporá do amor ou ódio daqueles que quiser fazer de
instrumento da sua ciência.”
“O magista - prossegue adiante - deve, pois, ser
impassível, sóbrio e casto, desinteressado, impenetrável e
inacessível a toda espécie de preconceitos ou terror. Deve
ser sem defeitos corporais e estar à prova de todas as
contradições e de todos os sofrimentos. A primeira e mais
importante das obras mágicas é chegar a esta rara
superioridade.”
Em suma, ele tem que aprender a querer, para poder
impor a sua vontade. A instrumentação é secundária,
quando uma vontade firme e dinâmica sustenta os seus
interesses. É preciso crer que se pode, e esta fé deve
traduzir-se imediatamente em atos.
Vejam este outro conselho:
“Ter o maior respeito por si mesmo e considerar-se como
um soberano desconhecido, que assim faz para reconquistar
a sua coroa.”
Por causa desse e de outros princípios e noções, não é
fácil lidar com os magos desencarnados. Não exatamente
por causa dos danos que possam causar-nos. Se estamos
num grupo mediúnico bem constituído e harmonizado, nada
conseguirão contra nós. Nada sofreremos em razão do
próprio trabalho de desobsessão, o que seria injusto, mas é
claro que, como seres imperfeitos que somos, temos
abertas as brechas das nossas próprias imperfeições. Como
nos disse um amigo espiritual, certa vez, sofreremos, no
decorrer do trabalho de desobsessão, apenas aquilo que
estiver autorizado pela nossa ficha cármica. É claro, pois,
que os trabalhadores das sombras empenharão o melhor de
seus esforços no levantamento de nossas fichas, ou seja, de
nossa vida pregressa, estudando-nos sob todos os ângulos,
vigiando-nos, a fim de surpreenderem-nos no momento em
que mostramos onde a nossa cerca está arrombada...
Entrarão em ação imediatamente. Estão convictos de que
poderão atingir-nos; é só questão de tempo e oportunidade,
pensam eles, e, como dizia Levi, “para poder é preciso crer
que se pode e esta fé deve traduzir-se imediatamente em
atos”.
Estejamos vigilantes, porém tranquilos e guardados na
paz do Cristo. Se o nosso trabalho é de Deus, sigamos em
frente, serenos, confiantes, destemidos. Estejamos
preparados, porém, para enfrentar os companheiros
desarmonizados. Aqueles que por longos séculos vêm
praticando a magia, estão habituados a vencer pela
vontade disciplinada - que aprenderam a dominar - todos os
obstáculos. Não nos impressionemos, porém, com os seus
rituais, seus gestos, seus talismãs, suas evocações, suas
palavras misteriosas e secretas.
Temos que atuar não sobre esses sinais exteriores dos
seus cultos, mas sobre os seus Espíritos atormentados,
embora aparentemente seguros e frios. Toda aquela
serenidade aparente desmorona, quando conseguimos
convencê-los de seus trágicos enganos. Estejamos prontos
para ajudá-los, pois este é o momento mais grave, mais
sério, mais profundamente humano de suas vidas: quando
entreveem uma réstia de luz a iluminar lhes o próprio
coração, os escombros dos antigos sonhos, os fantasmas
que trazem no íntimo, os desenganos, os remorsos, as
angústias, o desespero. É preciso tratá-los com carinho, com
humildade e singela compreensão, porque a dor do
despertamento é, quase sempre, esmagadora. Quem a
presenciou pode fazer ideia, porque senti-la, em toda a sua
profundidade, somente aquele que a experimentou.
Lembremo-nos de que os Espíritos que na Terra
estiveram envolvidos nas práticas mágicas não
desapareceram, nem se perdeu o conhecimento dos
mecanismos de certas leis do magnetismo, da hipnose, da
manipulação de drogas e fluídos, de forças naturais e de
toda a parafernália que lhes proporcionava poderes secretos
e misteriosos, mas muito reais.
Com os esclarecimentos contidos hoje na Doutrina
Espírita, estamos em condições de entender muitos desses
segredos e mistérios, pois, no fundo, o mago sempre foi um
médium, assistido por companheiros desencarnados, com
os quais se afina bem, no interesse de ambos. Os Espíritos
vivem em grupos, ligados por interesses comuns, e
revezam-se na carne e no além, apoiando-se mutuamente,
alguns empenhados em finalidades nobres, construtivas e
reparadoras, e outros envolvidos, século após século, em
lamentáveis e tenebrosas práticas de dominação e
vingança, tortura, perseguição, infligindo sofrimentos
atrozes aos infelizes que lhes caem sob o poder maligno e
infeliz.
O conceito de Sir James Frazer, de que a magia baseia-
se na simpatia, é válido. Em Espiritismo, diríamos que se
trata de sintonia vibratória. Não que a magia tenha poderes
por si mesma, pois ela não encontra ressonância e, por
conseguinte, não alcança êxito junto àqueles que já se
redimiram, ou que, pelo menos, acham-se defendidos pela
prece, pela vigilância e pela prática da caridade, no serviço
ao próximo.
***
Por mais de uma vez temos tido experiências com
processos de magia, em trabalhos de esclarecimento
mediúnico. Magos do passado, que continuando no Além
seus estudos e práticas, comparecem, excepcionalmente,
aos trabalhos de desobsessão nos quais se acham
envolvidos, pois não gostam de descobrir-se. Entre eles
encontramos até ex-sacerdotes católicos que, em tempos
idos, praticaram a magia e, revertidos ao mundo espiritual,
retomaram suas experiências.
À visão espiritual de nossos médiuns apresentavam-se
com as vestimentas e os símbolos de sua preferência, ou
portando “objetos”, poções, signos, velas, substâncias e até
acompanhados de acólitos, para servi-los.
Um deles trouxe-nos - certamente para intimidar-nos -
um pobre ser espiritual inteiramente dominado, reduzido a
uma deplorável condição subumana de pavor e deformação
perispiritual. Nosso médium viu-o atirar esse pobre espírito,
de rastros, num círculo magnético infernal, do qual a infeliz
vítima não podia livrar-se, por mais que se debatesse. Era
um exemplo para nós, a fim de que deixássemos de
interferir em sua atividade, disse ele.
Outro veio traçar signos e fazer invocações contra um
de nós, especificamente. Tinha recebido uma solicitação,
selada com sangue, num terreiro. Não podia deixar de
atender ao “irmão de sangue”. Depois de seu ritual,
cumprido à nossa vista, declarou que sua vítima “estava
amarrada”, e partiu.
Mais tarde manifestou-se outro de sua equipe - ou seria
ele mesmo? - com a proposta de “desfazer” o trabalho. E
repetia, incessantemente:
— Quer que vire, eu viro. Quer que vire, eu viro...
Não; não queríamos que ele virasse, com o que ele ficou
muito desapontado, pois obviamente teria sido muito mais
fácil, para ele, alcançar seus objetivos ocultos e
lamentáveis, se aquele a quem ele visava propusesse um
“pacto”, que entregaria a ele sua vítima, de pés e mãos
atados, pronta para o “serviço”. Vendo-se recusado, passou
para outro médium, no mesmo grupo, e apresentou-se
agora com outro nome, embora reclamando que seu
“cavalo” não prestava, porque não o obedecia. Tinha diante
de si um prato de sangue, com o qual pretendia alcançar-
nos.
De outra vez, um desses visitantes sinistros deixou
sobre a mesa, segundo relato de um de nossos videntes,
pequenas caveiras com as órbitas iluminadas por uma baça
luz vermelha. Uma para cada um de nós.
Acontece, porém, que, empenhado em trabalhos
redentores, o grupo dispõe de proteção e ajuda de
companheiros redimidos, também antigos magos, profundos
conhecedores desses trabalhos, sempre presentes para
contraporem seus conhecimentos e recursos às
desesperadas tentativas desses irmãos, agarrados ainda ao
lado escuro da vida, tentando dominar pelo terror. Um
desses companheiros infelizes confessou que via ao nosso
lado quem, melhor do que ele, conhecia os segredos de sua
arte e a neutralizava. Mais do que isso: por processos que
não se revelaram aos nossos sentidos, o mago foi
completamente desarmado em suas táticas, tão
cuidadosamente planejadas. Nosso médium viu apenas que,
em torno dele, colocaram sete lâmpadas, ou lanternas, de
cores diferentes.
Um caso marcou época, pela sua extraordinária
sofisticação. O mago era realmente profundo conhecedor de
sua arte e engendrou um mecanismo magnético, através do
qual mantinha, subjugadas aos seus propósitos, as mentes
de quatro seres encarnados.
Em suma, a magia é mais comum do que desejaríamos
admitir, e oferece riscos realmente sérios, contra os quais
os grupos mediúnicos têm que estar muito bem preparados
e assistidos. É claro que ela age apenas quando e onde
encontra as necessárias brechas e o condicionamento da
culpa, da falta, do erro, que nos sintoniza com o mal e nos
expõe à aproximação dos implacáveis cobradores das
trevas.
Os magos desencarnados são, as mais das vezes,
inteligentes, experimentados e conhecedores profundos das
mazelas e fraquezas humanas, pois vivem disso, nas suas
práticas funestas. Não se detêm diante de nenhum
escrúpulo, não temem represálias, são pouco acessíveis à
doutrinação, ao apelo do amor e do perdão. Sabem, como
todo Espírito envolvido nas sombras das suas paixões
inferiores, que somente estarão protegidos da dor enquanto
mantiverem em torno de si mesmos aquele clima de terror.
Atacam para não serem atacados, oprimem para não serem
oprimidos, espalham a dor para fugirem às suas próprias.
Sabem muito bem que no dia em que “fraquejarem”, ou
seja, aceitarem a realidade maior, que muito bem
conhecem, chegará o duro momento da verdade e
começará a longa escalada de volta. E quem desceu
semeando sofrimentos, só pode contar com sofrimentos
durante a subida. Não há outro caminho. Por isso são
implacáveis e, por isso, demoram-se no erro que,
paradoxalmente, os compromete cada vez mais. Estão
perfeitamente conscientes, no entanto, de que um dia - não
importa quando - terão fatalmente que enfrentar a realidade
de si mesmos, pois o mal não é eterno.
Enquanto isso, utilizam-se da vontade bem treinada,
para movimentar, em seu proveito, as forças da Natureza.
22 - MAGNETIZADORES E HIPNOTIZADORES
São amplamente utilizados, nos processos obsessivos,
os métodos da hipnose e do magnetismo, que contam, no
Além, com profundos conhecedores e hábeis
experimentadores dessas técnicas de indução, tanto entre
os Espíritos esclarecidos e despertos para as verdades
maiores, como entre aqueles que ainda se debatem nas
sombras de suas paixões.
Lá, como entre os encarnados, os métodos são os
mesmos. Para incumbências de importância secundária,
basta uma indução superficial, mas para os procedimentos
mais elaborados, os hipnotizadores do espaço utilizam-se de
recursos extremamente sofisticados.
“... nos atos mais complexos do Espírito - ensina André
Luiz, em “Mecanismos da Mediunidade” - para que haja
sintonia nas ações que envolvam compromisso moral, é
imprescindível que a onda do hipnotizador se case
perfeitamente à onda do hipnotizado, com plena identidade
de tendências ou opiniões, qual se estivessem ungidos,
moralmente, um ao outro, nos recessos da afinidade
profunda. (Grifos meus.)
É claro, pois, que nisto, como em quase toda a
problemática espiritual, vamos encontrar o mesmo
dispositivo da sintonia vibratória. Os Espíritos superiores
utilizam-se da hipnose para socorrer, para ajudar, para
aliviar, para corrigir desvios. Os desajustados, para dominar
e punir.
Em “Memórias de um Suicida”, o autor espiritual oferece
exemplos desses trabalhos redentores, em que espíritos
altamente credenciados, competentes e moralizados,
movimentam, com enorme respeito e carinho, os arquivos
da mente, por métodos hipnóticos e magnéticos.*
* “Memórias de um Suicida”, psicografia de Yvonne A. Pereira, 2ª parte, capitulo
2º - “Os arquivos da alma”, páginas 220 e seguinte, da 4ª edição da Federação
Espírita Brasileira.
— O aparelhamento que vedes - explica um dos
instrutores - harmonizado em substâncias extraídas dos
raios solares - cujo magnetismo exercerá a influência do ímã
- é uma espécie de termômetro ou máquina fotográfica,
com que costumamos medir, reproduzir e movimentar os
pensamentos... as recordações, os atos passados que se
imprimiram nos refolhos psíquicos da mente e que, pela
ação magnética, ressurgem, como por encanto, dos
escombros da memória profunda de nossos discípulos, para
impressionarem a placa e se tornarem visíveis como a
própria realidade que foi vivida!...
Desdobra-se ali um processo de regressão irresistível,
como recurso extremo para desalojar realidades soterradas
na memória profunda do ser e que precisam ser trazidas à
tona para desencadear o mecanismo da recuperação.
Mas, como todo recurso do conhecimento humano, este
também é neutro, isto é, tanto pode ser usado para ajudar a
levantar o ser que caiu, como para fazer cair aquele que
está de pé.
“Defino a sugestão, no seu sentido mais lato - escreve
Bernheim, em “Hypnotisme et Suggestion” - como o ato
pelo qual uma ideia é despertada no cérebro e aceita por
ele.”
Passando por sobre a conotação materialista da
definição proposta, pois a sugestão é transmitida ao
Espírito, e não ao cérebro, vemos que há uma condição
básica, que é a da aceitação pelo “sujet”. Para esta
aceitação, que instaura o processo do domínio, é preciso
que hipnotizador e hipnotizado estejam “jungidos
moralmente um ao outro, nos recessos da afinidade
profunda”, como diz André Luiz.
Alguns magnetizadores e hipnotizadores adotam o
procedimento de segurar os polegares de seus “sujets”, por
algum tempo, antes de iniciarem o trabalho propriamente
dito. Com isto se afinizam com ele (ou ela), num
intercâmbio vibratório, que os coloca em condições de
ajustarem-se fluidicamente.
Seja qual for, porém, o processo - e não podemos aqui
fazer estudo mais profundo e extenso do fenômeno - os
hipnotizadores e magnetizadores das trevas acabam por
alcançar o domínio de suas vítimas depois de obterem a
aceitação de que nos fala Bemheim, mesmo que forçada.
Para isso, manipulam com extrema habilidade os
dispositivos da culpa e da cobrança, ou seja, a própria lei de
causa e efeito. O Espírito culpado, convencido dessa
culpabilidade, cede e entrega-se.
Temos presenciado alguns casos dramáticos, nesse
campo. Já lembramos, algures neste livro, aquele
companheiro desencarnado que, mesmo depois de
resgatado e posto a salvo da faixa vibratória de seu
hipnotizador, recaiu sob seu domínio, por causa de sua
própria invigilância.
Mesmo incorporado ao médium, este irmão não se
furtava com facilidade à terrível influência de seu
perseguidor que, em nossa presença, tentava induzi-lo a
arrastar toda a sua família, ainda encarnada, à
desencarnação, sugerindo-lhe ideias de ódio, vingança e
morte. O pobre irmão repetia incessantemente:
— Odeio minha mãe... Odeio meu pai... Odeio minha
mãe... Odeio meu irmão... Matar minha mãe... Matar meu
pai...
E assim por diante, sem parar, pois não apenas a
sugestão se lhe ia implantando cada vez mais na vontade,
como ainda, falando continuamente, ele era impedido de
ouvir as observações do doutrinador. Com um esforço muito
grande, por meio de passes de dispersão, de preces e de
contra sugestões, foi possível libertá-lo, pelo menos para
uma trégua. Parou, exausto, com o médium coberto de suor,
respiração opressa e acelerada, e pediu a ajuda de Deus,
pois conseguíramos que ele dissesse que amava a mãe e
não que a odiava.
Com frequência, também, os hipnotizadores procuram
atuar sobre os membros encarnados do grupo, lançando as
bases de induções preliminares, a serem desenvolvidas
depois, durante o desprendimento do sono, ou mesmo
durante a vigília. Não é nada fácil lidar com esses terríveis
manipuladores da mente humana. Nada os detém e, para
eles, tudo é válido, desde que alcancem os resultados que
desejam.
Às vezes, os companheiros que assistem o grupo, do
lado da luz, interferem de maneira sutil, mas eficaz. Certa
vez, um Espírito atormentado e, certamente, hábil
magnetizador, pretendeu usar comigo a sua técnica. Pediu-
me a mão. Coloquei-a na frente de seus olhos e lhe disse:
— Pode pegar.
Ele hesitou um instante e depois agarrou-a fortemente,
sem que eu apertasse a sua: mantinha minha mão
estendida, com os dedos unidos. Algo então aconteceu de
estranho e curioso. Através da minha mão, ele recebeu uma
espécie de choque elétrico, evidentemente uma descarga
magnética, que o atingiu na altura do plexo cardíaco. Talvez
algo temeroso, pensou em retirar logo a sua mão e não o
conseguia! Embora fosse ele quem segurasse a minha mão,
e não eu a dele, e por mais esforço que fizesse, inclusive
com a outra mão tentando desprender seus dedos, só a
muito custo libertou-se do laço magnético. Isto o
impressionou de tal forma que, da próxima vez que
compareceu, começou a chamar-me, com ironia, por certo,
mas evidentemente também com respeito, de “o homem da
mão”...
Outro que tentava me dominar por meio de passes
magnéticos, tinha atrás de si, segundo nos informou, depois
da sessão, o próprio médium que o recebeu - um dos nossos
queridos companheiros, profundo conhecedor do assunto,
que neutralizava todo o seu trabalho junto a mim.
Certa ocasião, um irmão transviado, que estava sendo
atendido, também se utilizava de processos de magnetismo
e magia contra o grupo. Trouxera os seus instrumentos e as
substâncias necessárias. A certa altura, percebeu a
presença daqueles que nos defendiam, utilizando-se, para o
bem, de técnica superior a dele. Como que pensando alto,
ele nos dizia que sabia o que os nossos amigos estavam
fazendo, mas nada podia contra eles.
Procedimentos magnéticos são também usados para
reduzir seres gravemente endividados a condições de
extrema e aviltante deformação perispiritual, como casos de
zoantropia, sobre os quais já falei neste livro. E é pela
magnetização (passes) positiva que se torna possível
restituir-lhes a condição normal.
— “Temos aqui - escreve André Luiz, em “Libertação” - a
génese dos fenômenos de licantropia, inextricáveis, ainda,
para a investigação dos médicos encarnados. Lembras-te de
Nabucodonosor, o rei poderoso a que se refere a Bíblia?
Conta-nos o Livro Sagrado que ele viveu, sentindo-se
animal, durante sete anos. O hipnotismo é tão velho quanto
o mundo e é recurso empregado pelos bons e pelos maus,
tomando-se por base, acima de tudo, os elementos
plásticos do perispírito.” (Destaques meus.)
23 - MULHERES
O trabalho mediúnico oferece insuspeitadas condições
de aprendizado. Cada sessão traz as suas surpresas; cada
manifestação suas lições e ensinamentos. A contínua
observação desse vaivém de companheiros desencarnados,
o desfile trágico de problemas, angústias, dores e ódios, a
força irresistível do amor, as maravilhas da prece, o poder
do passe, constituem experiência inesquecível para aqueles
que, ao longo dos anos, entregam-se a essas tarefas
redentoras. Uma pergunta poderá ser colocada agora. Que
papel representam as mulheres, nesses dramas que se
desenrolam entre os dois mundos? Há mulheres
obsessoras? Há mulheres que se vingam, que perseguem,
que odeiam? Sim, mas em número bem mais reduzido que
os homens.
***
Antes de prosseguir, talvez sejam convenientes algumas
observações de caráter doutrinário.
O Espiritismo ensina que o Espírito não tem sexo,
podendo encarnar-se como homem ou como mulher, em
diferentes existências, mas que costuma escolher,
preferentemente, um ou outro sexo, renascendo
continuamente como homem ou mulher. (Questões números
200 a 202, de “O Livro dos Espíritos”). Ao comentar as
respostas, Kardec escreveu o seguinte:
“Os Espíritos encarnam como homens ou como
mulheres, porque não têm sexo. Visto que lhes cumpre
progredir em tudo, cada sexo, como cada posição social,
lhes proporciona provações e deveres especiais e, com isso,
ensejo de ganharem experiência. Aquele que só como
homem encarnasse só saberia o que sabem os homens.”
Dessa forma, não são muito precisas as expressões
Espírito feminino e Espírito masculino, que são usadas à
falta de outras. A questão é bem mais complexa do que
parece à superfície.
Certa vez, perguntei a um amigo espiritual por que
difere tanto, na sua estrutura psíquica, o Espírito encarnado
como homem, daquele que se encarna como mulher. O
homem é mais agressivo, dado a gestos de coragem física,
menos sentimental, ao passo que a mulher inclina-se mais à
compassividade, à renúncia, ao recato, sendo, portanto,
mais acessível à emoção e aos sentimentos. Por que isso,
se, não tendo sexo, os Espíritos deveriam ser
assemelhados?
Disse-me ele, coerente com os postulados doutrinários,
que, como Espíritos, conservam características em comum,
mas, ao se reencarnarem, aceitam condições que lhes
facultam desenvolvimento de certas faculdades, em
detrimento de outras; ou melhor, optam pelo
aprimoramento de alguns aspectos espirituais em que
estejam particularmente interessados.
Assim é, realmente. Como a perfeição deverá resultar,
um dia, do desenvolvimento harmonioso de todas as
faculdades possíveis ao ser humano, é natural que este
tenha que ir por etapas, cultivando-as em buques, até que,
alcançando o ponto desejado, possa encetar outras
realizações.
Tentemos, não obstante, ampliar um pouco mais a
questão, na esperança de alcançar uma visão mais clara de
suas dificuldades. Ao responderem à pergunta formulada
por Kardec (Têm sexos os Espíritos?), os instrutores
informaram o seguinte:
“Não como o entendeis, pois que os sexos dependem da
organização. Há entre eles amor e simpatia, mas baseados
na concordância dos sentimentos.”
Certamente que sentiram, esses instrutores, que não
era tempo, ainda, de aprofundar mais a questão, mas
disseram o bastante para compreendermos alguns pontos
essenciais. De fato, a Doutrina nos ensina, alhures, que o
ser encarnado resulta de um “arranjo” entre três
componentes distintos: espírito, perispírito e corpo físico. Ao
declararem que o sexo depende da organização, deixaram
bem entendido que a diferenciação sexual não alcança o
núcleo da individualidade, representado pelo Espírito
imortal, pois fica contida nos limites extremos da
organização perispiritual.
Por outro lado, Emmanuel informa, em resposta à
pergunta número 30: “Há órgãos no corpo espiritual?”* Sim,
pois o corpo físico “e uma exteriorização aproximada do
corpo perispiritual”, e prossegue acrescentando que tal
exteriorização “subordina-se aos imperativos da matéria
mais grosseira, no mecanismo das heranças celulares, as
quais, por sua vez, se enquadram nas indispensáveis
provações ou testemunhos de cada indivíduo”.
* “O Consolador”. FEB, 4ª edição, capítulo 1 - “Ciências Fundamentais: Biologia”.
Essa interdependência entre corpo físico e perispírito é
acentuada por André Luiz* ao declarar que:
* Evolução em dois Mundos”, 3ª edição, capitulo 6º, página 50.
“Os cromossomos, estruturados em grânulos
infinitesimais de natureza fisiopsicossomática, partilham do
corpo físico pelo núcleo da célula em que se mantêm, e do
corpo espiritual pelo citoplasma em que se implantam.”
(Destaques meus.)
É bastante compreensível, pois, que os seres que
trazem o perispírito ainda espesso, regressem ao mundo
póstumo, pela desencarnação, com uma pesada carga
fluídica, profundamente impregnada de materialidade e, por
conseguinte, de sensações e necessidades bem
semelhantes às que experimentava na carne.
Isto é confirmado pelos relatos mediúnicos, sendo a
série André Luiz bastante rica em informações desse tipo.
Para não alongar demais esta digressão, sugiro a releitura
do capítulo 99 de “Nosso Lar”, sob o título “Problema da
alimentação”.
Informa Lísias que, há cerca de um século, a questão
alimentar era muito séria ali na colônia. Muitos dos recém-
chegados da carne “duplicavam exigências”. Queriam
mesas lautas, bebidas excitantes, “dilatando velhos vícios
terrenos”. Quando a direção da colônia tomou providências
mais enérgicas para coibir os abusos, estabeleceu-se um
comércio clandestino com os representantes das trevas que,
agindo, como sempre, através das brechas que as nossas
paixões inferiores lhes abrem, utilizavam-se desse
lamentável intercâmbio como instrumento de infiltração e
assalto à vasta organização regeneradora intitulada “Nosso
Lar”.
Foram implantadas severas medidas de correção e
reajuste, mas os alimentos não foram totalmente abolidos,
em virtude da condição perispiritual, ainda bastante densa,
da grande maioria dos que habitam aquela colônia.
No capítulo 18 dessa mesma obra, Laura informa que:
— “Afinal, nossas refeições aqui são muito mais
agradáveis que na Terra.
Há residências, em “Nosso Lar”, que as dispensam
quase por completo; mas, nas zonas do Ministério do
Auxílio, não podemos prescindir dos concentrados fluídicos,
tendo em vista os serviços pesados que as circunstâncias
impõem. Despendemos grande quantidade de energias. É
necessário renovar provisões de força.” (Destaques meus.)
Portanto, a alimentação com substâncias concentradas
é ainda indispensável, mesmo para aqueles Espíritos mais
esclarecidos, que se entregam a tarefas redentoras, ainda
que mais humildes.
Assim, da mesma forma que os problemas alimentares,
os de sexo não ficam totalmente eliminados por um passe
de mágica, simplesmente porque se deu a desencarnação.
Espíritos enredados nas tramas da sensualidade, tombam
em situações calamitosas no mundo póstumo. Somente os
mais purificados conseguem libertar-se dos apelos da carne.
— “Entre os casais mais espiritualizados - informa Laura
a André - o carinho e a confiança, a dedicação e o
entendimento mútuos permanecem muito acima da união
física, reduzida, entre eles, a realização transitória.”
“Inútil é supor - diz um elevado instrutor* - que a morte
física ofereça solução pacífica aos espíritos em extremo
desequilíbrio, que entregam o corpo aos desregramentos
passionais.
* “No Mundo Maior”, FEB, 5ª edição, capitulo 11 - “Sexo”.
A loucura, em que se debatem, não procede de simples
modificações do cérebro: dimana da desassociação dos
centros perispiríticos, o que exige longos períodos de
reparação.” E, mais adiante:
“Convictos desta realidade universal (a aquisição
gradativa das virtudes) não podemos esquecer que
nenhuma exteriorização do instinto sexual na Terra,
qualquer que seja sua forma de expressão, será destruída,
senão transmudada no estado de sublimação.” (Destaques
meus.)
Não resta dúvida, portanto, do estudo doutrinário e das
observações colhidas, por Espíritos credenciados, no imenso
laboratório da vida, que o sexo persiste no mundo póstumo,
até que seja sublimado. A sublimação há de marchar, por
isso, junto com a sutilização progressiva do Espírito, pois
que, chegado à condição de pureza, o sexo será, para o
Espírito, apenas a lembrança de uma experiência valiosa
que, entre outras, lhe serviu de degrau para a sua escalada.
Retomando, porém, nossas perguntas iniciais,
poderemos responder que, infelizmente, Espíritos que
passaram por experiências no sexo feminino também
odeiam, perseguem, obsidiam. Alguns são mesmo
particularmente agressivos, rancorosos e violentos. É que;
levando para o Além as suas frustrações, seus desvios, suas
ânsias, recaem, fatalmente, em faixas desarmonizadas,
onde se consorciam com outros seres igualmente
desarvorados, para darem prosseguimento ao exercício das
paixões incontroladas. Nesse estado, continuam mulheres,
sentindo e agindo como tais. Exercem seus poderes de
sedução sobre outros seres, ganham “vestimentas”, “joias”,
“sapatos” e “perfumes”, a troca de favores. Prestam
serviços tenebrosos junto a companheiros encarnados,
mancomunados aos seus comparsas das sombras, que lhes
asseguram uma “boa vida” de prazeres e proteção contra a
dor que as espera fatalmente, para o reencontro, um dia, lá
na frente.
De outras vezes, são escravizadas, reduzidas à condição
mais abjeta, e seviciadas, perambulando, dementadas, em
andrajos imundos, por vales de sombras espessas, até que,
desgastadas pelo sofrimento, tenham um impulso de
arrependimento que lhes possibilite o socorro de que tanto
necessitam.
Temos tido algumas experiências com espíritos
femininos. Já lembrei, noutro ponto deste livro, o caso da
irmã que se empenhava em perturbar uma família,
tentando destruir um lar, para o que contava com o apoio
de um sacerdote desencarnado, que a incentivava, e a
isentava de culpa, “absolvendo-a”, provavelmente no
confessionário, da responsabilidade, sob a alegação de que,
em encarnação anterior, ela também fora traída.
Tivemos o caso de uma jovem que se suicidara por uma
paixão desvairada, numa antiga encarnação na Escócia,
quando aquele a quem amava abandonou-a, grávida e na
vergonha. Localizando-o como encarnado, perseguia-o,
tentando - e conseguindo - induzi-lo a erros bastante sérios.
Outra - fora irmã de caridade - atormentava uma
criatura encarnada, em cumprimento a “ordens superiores”.
Vimos, também, aquela pobre companheira, teleguiada
por hábeis indutores, que transviava um homem encarnado
e era recompensada com festas, vestidos bonitos e
prazeres.
Em certa oportunidade compareceu uma bem mais
difícil. Já há algum tempo vinha tentando induzir um dos
componentes do grupo a uma atitude extremamente
arriscada. O caso era apresentado de maneira sutil,
inteligente, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Seria apenas a antecipação do que, segundo o Espírito,
estava já programado para mais tarde. Não haveria culpa
alguma, portanto. Era “fisicamente” simpática, apresentava-
se bem vestida, unhas muito polidas, sorridente, educada,
cordial.
Várias vezes tentou influenciar o nosso companheiro,
apresentando-se ante seus olhos espirituais, ou durante o
desdobramento do sono natural. Finalmente, comparece aos
nossos trabalhos mediúnicos.
Ri-se, muito divertida da situação. Tem a voz suave,
envolvente e doce. Diz-se muito bela, elegante, esguia,
bem-cuidada. Conta casos, sorri, faz gestos graciosos e
parece imensamente segura de si mesma. Trata-me com
condescendência e superioridade. Informa que “trabalha”
junto a casais e que seu objetivo é libertar a mulher, para
que todas sejam como ela, felizes e livres para gozar a vida,
sem preconceitos. De vez em quando, pára a exposição
para rir, pois deixa entrever que se decepcionou
profundamente comigo. Conhecia-me apenas de nome e a
realidade não confere com a imagem que formulou a
respeito da minha aparência. Acha-me, provavelmente, feio,
desengonçado e ridículo. Diz que no mundo em que vive é
muito poderosa, porque é a favorita. Ainda muito
condescendente, aconselha-me, como amiga, a juntar
minhas coisas e partir enquanto é tempo, pois não tenho a
menor ideia do que estou fazendo e onde estou me
metendo. Esquiva-se habilmente às perguntas, muito
segura, inteligente e tranquila. Quando lhe formulo questão
mais complexa, desculpa-se, dizendo que é uma mulher e
não é dada à Filosofia.
Do mundo espiritual, sugerem-me que lhe pergunte por
que fugiu de um certo castelo inglês. Ela continua a
negacear, mas se mostra visivelmente transtornada. Por
fim, perde a calma, abandona a atitude de inconsequente e
superior condescendência, e ordena-me autoritariamente
que me sente, o que não quero fazer, para permanecer
junto do médium que a recebe.
É chegado o momento de começar realmente o
processo de doutrinação. Até aqui - o trabalho todo durou
cerca de uma hora - o tempo foi aplicado em tatear a sua
personalidade e os seus problemas, a fim de obter
informações. Agora, já dispomos de alguns elementos mais
concretos. Digo-lhe, de início, que sua beleza física, de que
tanto se orgulha, é mera criação de sua mente, mas ela
está bem preparada para o confronto. Pede um espelho,
para me provar que não tenho razão. Nesse ponto, não
obstante, vê junto dela um Espírito de aparência agressiva e
pejado de vibrações desarmonizadas. É um antigo esposo,
de quem ela matou todos os filhos recém-nascidos e os
enterrou no jardim. Não queria filhos, porque eles
“deformam o corpo”. Está igualmente preparada para esse
encontro. Na organização em que vive, como favorita de um
poderoso líder das trevas, tudo aquilo lhe fora mostrado em
retrospecto, por meio de imagens vivas, em filme, para que
ela pudesse, numa emergência como esta, suportar a
lembrança das suas próprias atrocidades, sem se perturbar
e perder o “equilíbrio”. Agora, enquanto revê as cenas, está
aparentemente segura e coretinua a rir-se de tudo, dizendo
que não adianta mostrar-lhe nada. A despeito do seu
preparo, no entanto, não resiste muito tempo e entra em
crise dolorosa, a pobre e querida irmã. Seu ex-marido
incorpora-se em outro médium e atira-lhe impropérios,
entre dentes, chamando-a de assassina. Diz-lhe que está à
sua espera e ri, de prazer insano, ante o desespero em que
ela se precipita. Dirijo a ele algumas palavras, tentando
acalmá-lo, e me volto para ela, para ajudá-la a enfrentar o
seu problema, as suas recordações e, principalmente, o seu
futuro. Ela me responde em perfeito inglês:
— I burned all the bridges behind me. (Queimei todas as
pontes por que passei.)
Respondo-lhe que tentou também queimar as pontes
para o futuro e, por isso, se sente prisioneira numa ilha
sinistra. É uma longa e penosa agonia! Sente as mãos sujas
de sangue, detesta aquele vestido vermelho, que não
consegue trocar, e começa a temer o momento fatal em
que terá de deixar o médium para enfrentar a nova
realidade que se pastou diante dela subitamente, mas, por
certo, não inesperadamente. Ela pressente as dores que a
esperam, pois muitas vezes deve ter presenciado esse
momento dramático, em outros Espíritos endividados. De
repente, começa nela um fulminante processo de
envelhecimento, ao mesmo tempo em que suas roupas
apresentam-se sujas e em frangalhos. Ela ainda consegue
dizer que seu ventre secou e, por fim, desprende-se com
enorme sofrimento para o médium, que ficou com os
resíduos da sua profunda e dolorosa angústia.
Poucas semanas depois deste caso, tivemos outra
manifestação de Espírito feminino. Também é das que se
dizem atraentes e sedutoras, estando, obviamente,
empenhada em fascinar criaturas encarnadas e
desencarnadas, a serviço dos seus mandantes. Vai logo
dizendo, muito sorridente, que não venha com as minhas
conversas macias. Ainda se fossem outras conversas... diz,
maliciosamente. Declara-se muito sutil e por isso é
destacada para missões delicadas. Teria descoberto que o
pobre doutrinador é muito amado e teve o desejo de
conhecê-lo pessoalmente; no entanto, mal pode esconder
seu desapontamento. Presa aos seus condicionamentos,
esperava, por certo, que eu fosse jovem e belo, e não um
desenxabido senhor de cabeça a branquear. Digo-lhe que
realmente sou um velho sem graça e quando lhe pergunto
se ela é jovem, responde corretamente que o Espírito não
tem idade. A uma outra pergunta minha, declara que vive
no céu, pois o céu é um estado de espírito e ela é muito
feliz. A conversa prolonga-se aparentemente sem rumo,
mas é a fase em que são colhidas as informações de que
necessitamos para o trabalho real de doutrinação.
Depois de reunidos os elementos que me parecem
suficientes, proponho-me a orar. Ela protesta, alegando que
eu oro demais e, mal me levanto, ela se debruça sobre a
mesa, em pranto, numa crise emocionante, dolorosa. Sinto
por ela uma infinita e paternal ternura e lhe falo com muito
carinho. Ela deixa cair todas as guardas e me conta que é
uma infeliz: foi explorada pelos homens aqui, na carne, e
continua a ser explorada do lado de lá. Vive num verdadeiro
campo de concentração, com outras criaturas infelizes.
Enquanto “ela” estava lá - refere-se, como depois
apuramos, à irmã atendida semanas antes e que
descobrimos ter sido uma duquesa - foi protegida; depois,
não. Havia sido incumbida de uma tarefa, junto à esposa de
alguém que estávamos interessados em ajudar; mas, ao
chegar junto a essa pobre senhora, viu-a em pranto, a
chorar às escondidas. Teve pena dela e ficou sem coragem
de executar friamente o seu mandato.
(Estava presente também quando telefonei para essa
amiga encarnada, para consolá-la de dores que me havia
confiado.) Aproveito para dizer-lhe que foi aquele momento
de compaixão, diante da sua vítima em perspectiva, que a
salvou, permitindo que fosse, por sua vez, socorrida. Sente-
se muito desconcertada e arrependida de ter-me tratado
como tratou, de início. Quando lhe digo que tenho idade
para ser seu pai, ela me interrompe para afirmar que não
teve a intenção de me ofender: Como estou, precisamente
naquela noite, comemorando 56 anos de idade, digo-lhe
que ela acaba de me dar o mais lindo presente: seu
coração. Ela teme seus verdugos e está apavorada ante as
perspectivas de ser arrastada por eles, ao deixar o médium.
Sente-se muito emocionada ante o carinho e o respeito com
que a tratamos, se diz cansada e confessa que até aos
meus prejudicou bastante, em suas atividades, Vê, agora,
ao seu lado, uma jovem pacificada e tranquila, que veio
recebê-la, mas um dos emissários da sua tenebrosa
organização está presente, em outro médium, e tenta
confundi-la, dizendo que a moça que a espera também é
deles, o que não é verdade. Pergunto se ela confia em mim.
Diz que sim. Peço-lhe que siga a moça, e ela parte,
repetindo uma pequena prece que lhe sugiro:
— Jesus, me ajude!
Houve, neste caso, um pós-escrito. O companheiro que
se incorporou em outro médium, para ameaçá-la, perguntou
se eu ainda dispunha de tempo para atendê-lo. Respondi-
lhe que, infelizmente, não, porque tínhamos uma disciplina
de trabalho, que precisava ser obedecida, mas poderíamos
conversar na oportunidade seguinte, com o que ele
concordou, dizendo que voltaria. No decorrer da semana,
porém, nossos mentores disseram-nos que ele havia sido
doutrinado no mundo espiritual mesmo, e que se
esclarecera, não sendo, portanto, necessário trazê-lo
novamente ao grupo.
***
São essas algumas experiências com Espíritos ditos
femininos. Às vezes, elas são obsessoras implacáveis, tão
violentas e agressivas como os homens, tão irracionais
quanto eles, nas suas paixões e no desejo insaciável de
vingança; mas são estatisticamente em número reduzido,
em relação aos Espíritos masculinos e, decididamente, mais
abertas ao entendimento e predispostas ao despertamento,
porque mais sensíveis ao apelo da ternura, da emoção, do
respeito à sua condição feminina, ainda que estejam
transitoriamente numa posição de aviltamento, ou, talvez,
por isso mesmo. Ao sentirem que são tratadas como seres
humanos, reagem como seres humanos, respondendo, mais
cedo ou mais tarde, às vibrações da nossa afeição.
O mais comum, porém, em trabalhos mediúnicos, é
encontrar mulheres que vêm recolher nos seus braços
amorosos os companheiros recém-despertos. São velhos e
seculares amores: mães, esposas, filhas, irmãs, que
guardaram ternuras profundas, alimentadas em esperanças
que nunca se apagaram, nem mesmo esmoreceram.
Comparecem, às vezes, ainda enoveladas, elas próprias, em
resgates dolorosos, mas quase sempre já mais avançadas
no caminho da pacificação. Algumas encontram-se de há
muito revestidas de luz e harmonia. Um destes casos,
intensamente dramático, está relatado por André Luiz, em
“Libertação”. Matilde desce aos subterrâneos da dor, para
resgatar o seu amado Gregório, que se transviara
lamentavelmente, e é com o seu amor apenas - e é tudo! -
que enfrenta a sua cólera, numa cena inesquecível.
TERCEIRA PARTE - O CAMPO DE TRABALHO
24 - O PROBLEMA
O ser humano, encarnado ou desencarnado, vive no
clima da emoção, pressionado ou sustentado por ela, levado
por ela às furnas mais profundas da dor e da revolta, ou
alçado aos píncaros da felicidade e da paz. Ela nos afeta,
mesmo quando, ocasionalmente, parece não existir em nós.
É oportuno lembrar que emoção, etimologicamente, quer
dizer ato de deslocar, ou seja, mover. Arrastado pela
emoção, o Espírito se desloca, num sentido ou noutro,
caminhando para as trevas de sofrimentos inenarráveis ou
subindo para os planos superiores da realização pessoal,
segundo ele se deixe dominar pelo ódio ou se entregue ao
amor. Esse deslocamento o conduz a extremos de paixão,
que o esmaga, ou a culminâncias de devotamento, que o
santifica, e, muitas vezes, em estágios ainda inferiores da
evolução, confunde-se em nós a realidade ódio/amor, e nos
confundimos nela e com ela, porque é comum tocarem-se
os extremos.
O trabalho de desobsessão não deve ignorar essa
realidade. Frequentemente, o processo da desobsessão se
desencadeia, de maneira paradoxal, por amor, e é
lembrando esse aspecto que conseguimos, às vezes, ajudar
os irmãos, que se atormentam mutuamente, a colocarem
um ponto final nas suas angústias. O que acontece é que
temos em nós todos o instinto egoísta - e quase todos os
instintos são egoístas - de conservar a posse total do objeto
de nossa preferência ou afeição: a esposa, o esposo, o filho,
o dinheiro, a posição social, o poder. Suponhamos que a
esposa nos traia, que o filho nos rejeite, que o dinheiro ou o
poder nos sejam arrebatados.
Passamos imediatamente a odiar os que nos privaram
da posse daquilo que amamos ou valorizamos. Com isto,
percebemos que amor e ódio são duas faces de uma só
realidade, luz e sombra, que em determinado ponto
absorveram-se uma na outra, criando uma opressiva
atmosfera de penumbra, na qual perdemos a visão dos
caminhos e o senso da direção. Para desfazer esse clima de
crepúsculo, que agonia e desorienta o Espírito, é preciso
ajudá-lo a identificar bem seus sentimentos, a fim de
separá-los. Estejamos certos, para isso, de uma realidade
indisputável, ainda que pouco percebida: o amor, como
dizia Paulo aos Coríntios, não acaba nunca. Mesmo
envolvido, soterrado no rancor e na vingança, ele subsiste,
sobrevive, renasce, está ali. O ódio não o excluí; ao
contrário, fixa-o ainda mais, porque em termos de
relacionamento homem/mulher, o ódio é, muitas vezes, o
amor frustrado. Odiamos aquela criatura exatamente
porque parece que ela não quer o nosso amor, porque nos
recusa, nos traiu, nos desprezou, porque a amamos...
No momento em que conseguimos convencer o
companheiro desencarnado, em crise, que ele odeia porque
ainda ama, ele começa a recuperar-se, compreendendo que
essa é uma verdade com a qual ele ainda não havia
atinado. Por mais estranho que pareça, o rancor contra a
amada, ou o amado, que traiu ou abandonou, é que
mantém acesa a chamazinha da esperança. Aquele que
deixou de amar é porque não amou bastante e, com menor
dificuldade, desliga-se do objeto de sua dor. Cedo
compreende que não vale a pena perder seu tempo, e
angustiar-se no doloroso processo de vingar-se, dado que - e
isto também pode parecer contraditório - não podemos
ignorar o fato de que a vingança impõe, também ao
vingador, penosas vibrações de sofrimento.
Vários casos assim temos encontrado na experiência de
nossos grupos.
Um desses foi comovente. O Espírito manifestante era
de uma mulher. Seu antigo companheiro, ora encarnado,
fazia parte de nosso grupo e ela ainda trazia em seu
coração um rancor que 130 anos não conseguiram extinguir.
Fora muito bela, inteligente, de elevada posição social, e
rompera com todas as convenções da época para segui-lo. E
por mais de um século, recolhida ao mundo espiritual,
achara que não valera a pena o seu sacrifício e que ele não
dera valor às suas renúncias e nem as merecera.
Foi muito difícil o diálogo com ela. Tudo foi tentado pelos
nossos queridos amigos espirituais. Levaram-na a um
encontro com ele desdobrado pelo sono - a um local, na
Europa, onde viveram momentos de intensa felicidade e
enlevo. Ajudavam, como podiam, o doutrinador, nos seus
esforços. Ela era muito brilhante e estava muito magoada:
tinha respostas oportunas, encontrava em si mesma todas
as justificativas para continuar agindo daquela maneira.
Afinal de contas, não pensara noutra coisa, por mais de um
século! Promoveram, os benfeitores espirituais, encontros
com um filho que o casal tivera naquela ocasião e que se
encontrava também no mundo espiritual, bastante
pacificado e dedicado ao trabalho construtivo. Reencontrou-
se ela, também, com outra filha - esta reencarnada - à qual
se dirigia com carinho e afeição, através do médium. Nada.
Certa vez, em lugar de ligá-la ao seu médium habitual,
ligaram-na com o próprio companheiro, objeto de seus
rancores, pois ele também dispunha de excelentes
faculdades mediúnicas. Quando ela percebeu que falava por
seu intermédio, retirou-se prontamente, muito chocada. De
outras vezes, ele tentou dialogar com ela, mas a
experiência foi negativa, pois a sua palavra parecia
exacerbar o rancor que a infelicitava.
Esse drama durou meses, semana após semana. E ela,
irredutível. Certa vez, sentindo que começava a ceder aos
argumentos ou aos sentimentos de afeição que colhia no
grupo, ela desligou-se subitamente do médium. Nossos
benfeitores, por doce constrangimento, trouxeram-na de
volta, já em pranto. Ela veio indignada, revoltada, falando
entre lágrimas:
— Quando vai terminar esta farsa?
Pacientemente, o doutrinador lhe devolveu a pergunta
com outra:
— Você acha, minha querida, que suas lágrimas também
são uma farsa?
Estava chegando ao fim de sua longa e penosa agonia
íntima. Começou a ceder, à medida em que o amor
reacendia a sua chama, a princípio timidamente, e depois,
com todo o vigor antigo, mas agora purificado, expurgado
da paixão que fora a sua perda. Acabou por reconciliar-se
com o seu antigo amado.
Esta história, tão verídica e dramática quanto a própria
vida, teve um final emocionante e, graças a esse episódio,
vivi uma das mais belas e comovedoras emoções da minha
experiência no trato com os Espíritos.
Certa noite, ela veio apenas para despedir-se. O drama
e a dor estavam encerrados. Agora, era a retomada da trilha
evolutiva, a perspectiva de novas experiências redentoras:
a querida irmãzinha preparava-se para reencarnar-se,
perfeitamente reconciliada com a vida e com o amor. Foi-
nos permitido identificá-la na nova encarnação que se
iniciava sob tão belos auspícios e tão gratas alegrias para
todos aqueles que a amavam.
Renasceu. Uma bela criança, em lar feliz e equilibrado.
Logo aos primeiros meses de sua nova existência, tive
oportunidade de vê-la. Visitava eu a família, e a jovem mãe
me chamou para ver a criança. Entramos no quarto em que
ela dormia profundamente. A mãe acendeu a luz, sob meus
protestos, pois temia que ela acordasse, mas ela continuou
dormindo. Era linda, e dormiu ainda alguns segundos.
Depois, abriu os olhinhos, contemplou-me - seu antigo
doutrinador, com quem sustentou batalhas impetuosas - e
me deu o prêmio inesperado de um belíssimo sorriso... Em
seguida, adormeceu novamente, como um anjo que era.
Senti naquele sorriso a mensagem da paz e da gratidão.
Seus olhinhos exprimiam felicidade e amor. Sua expressão
me dizia, na linguagem inarticulada da emoção:
— Ah! É você? Eu já estou aqui, amigo...
Sem dúvida alguma, o amor também renascera com ela.
Seu antigo companheiro recebe dela, hoje, o amor
transcendental da neta muito querida pelo avô, que
mereceu também a bênção do reencontro e da
reconciliação.
***
A coisa não é tão fácil quando o Espírito desajustado
persegue aquele que o fez perder a posição, o poder, o
dinheiro ou o amor. Quase sempre se esquece o vingador de
que ele próprio desencadeou o mecanismo do resgate
quando, em passado esquecido, mas indelével, cometeu
faltas idênticas contra o próximo. Na confusão em que se
envolve, o culpado de sua queda, de suas frustrações, não
são os seus próprios enganos, é aquele que ali está,
encarnado ou desencarnado. Sua revolta e sua angústia
como que se personalizam, objetivam-se, e é mais fácil
lutarmos e tentarmos destruir uma pessoa, que
identificamos como causadora de nossa derrota, do que
enfrentarmos a dura realidade de que a causa está em nós
mesmos e que o ser a quem perseguimos foi apenas o
infeliz instrumento da lei. Nossos erros são cometidos
contra a lei divina; é preciso deixar a ela o trabalho de
reajuste. Aquele que assume a posição de tomar a justiça
divina em suas mãos, está reabrindo o ciclo da dor, em vez
de fechá-lo com o perdão. Mais uma vez é preciso lembrar
aqui a técnica de desobsessão que o Cristo nos ensinou:
“Ouvistes dizer: Amai vosso próximo e odiai vosso
inimigo. Pois vos digo: Amai os vossos inimigos e rogai pelos
que vos perseguem, para que sejais filhos de vosso Pai
celestial, que faz brilhar o seu sol sobre os maus e sobre os
bons e chover sobre os justos e os injustos.*
* Mateus, 5:43-45. A Bíblia de Jerusalém esclarece, em nota de rodapé, que a
expressão odiai vosso inimigo não se encontra no texto da lei, o que é
verdadeiro, pois não consta de Levíticos, 19:18, de onde foi extraída a citação.
Esclarece, porém, que a expressão era forçada, por causa da pobreza da língua,
O vocabulário da época, ao que se depreende, não tinha uma expressão correta
para descrever o sentimento que não seria nem amor, nem ódio, nem
indiferença e, por isso, todo aquele que não fosse amigo, seria inimigo; tudo o
que não pudesse ser considerado amor, era ódio. De certa forma, essa pobreza
semântica perdura.
Orar por aqueles que nos perseguem não é apenas um
preceito evangélico teórico - e já seria muito, por certo - é
um ensinamento do mais elevado valor prático, ante os
companheiros com os quais nos desentendemos no
passado. O rancor que sentem por nós sobre existe, ou se
dilui, segundo nossas próprias reações, sempre observadas
atentamente pelos nossos cobradores. Se os odiamos
também, o ódio que nos votam sustenta-se, fica estimulado,
persiste, atravessa os séculos e os milênios. Isto é uma
realidade terrível, que multidões de sofredores ignoram,
lamentavelmente. Se deixamos de odiar e passamos a orar
por aquele que nos atormenta, libertamos pelo menos dois
seres: a nós e a ele, além de outros que possam estar
comprometidos no processo.
Nunca será suficientemente enfatizada a importância
deste conceito, em trabalhos de desobsessão. Isto é válido
também - e como! - para a maneira pela qual recebemos
nossos irmãos em desajuste e com eles dialogamos.
Deixaremos para debater esse aspecto mais adiante,
quando cuidarmos das técnicas e recursos sugeridos para o
trabalho. Convém, no entanto, insistir e repetir: os Espíritos
em estado de perturbação avaliam as nossas emoções e
não as nossas palavras. Estão, no fundo, ansiosos de que os
convençamos de seu erro, porém jamais reconheceriam
isso. Se no debate opusermos nossa irritação à deles, nada
conseguiremos senão confirmá-los nos erros em que se
enquistaram através do tempo, repetindo enganos e
desenganos.
Lembro-me de um exemplo, entre muitos, dessa curiosa
posição espiritual, O companheiro manifestou-se impetuoso
e logo revelou-se indignado porque não conseguiu despertar
em mim uma reação idêntica à sua, ou seja, também de
irritação, para que se criasse o clima da desavença que
pensam convir-lhes. Como me mantinha sereno e
imperturbável, ele se esvaziou pouco a pouco do seu ímpeto
e partiu, algo desapontado, mas ainda não convencido,
talvez pensando em descobrir um método qualquer de me
irritar, a fim de arrastar-me para a sua faixa vibratória, onde
melhor poderia alcançar seus propósitos. Na semana
seguinte deu-se a coisa mais linda. Incorporou-se ao seu
médium, ao meu lado, olhou-me e disse, com voz
emocionada, em tom e em palavras que nunca mais me
esquecerei:
— Não precisa armar-se. Você já me ganhou...
Uma simples frase dessas descreve um mundo de
emoções e de decisões que um livro não poderia conter.
Que me restava dizer a ele, senão da profunda emoção e
gratidão pela sua resposta ao sentimento da fraternidade?
O doutrinador tem que estar, pois, muito atento, para
não deixar envolver-se pelo rancor que o Espírito traz em si.
Um confrade, experimentado nas lides espíritas, e que
acumulou, ao longo dos anos, extenso rol de casos curiosos,
contou-me que um doutrinador desavisado, profundamente
irritado com o desajustado Espírito manifestante, berrou-lhe,
no auge da desarmonização:
— Materializa-te, que quero te dar uma bofetada!
***
A situação é consideravelmente mais difícil quando o
doutrinador defronta-se com seu próprio obsessor. Neste
caso, a tarefa assume implicações de natureza muito
pessoal, para as quais o doutrinador tem que estar
preparado. Mais adiante, estudaremos um caso destes.
Neste ponto, basta extrair da situação um ensinamento
extremamente precioso e que nunca deve ser esquecido: o
de que o arrependimento e o remorso também devem ser
construtivos. Isto vale, tanto para o que persegue, quanto
para o perseguido.
Tentemos explicar este delicadíssimo mecanismo.
Imaginemos um Espírito desencarnado, envolvido num
tenebroso processo de obsessão. Ele persegue e vinga-se
de alguém implacavelmente, século após século, num ódio
que parece não ter fim e que nunca chega à saciedade, pois
é da natureza do ódio jamais satisfazer-se em si mesmo. É
certo que ele ignora, consciente ou não, a causa anterior
que determinou o efeito da sua dor. Digamos que ele tenha
sido assassinado, por alguém, enquanto exercia elevada
posição de mando, como um rei, por exemplo, ou déspota
medieval. Toda a sua cólera, no mundo das trevas, se
concentra naquele que provocou a sua desencarnação. Ele
não quer saber que anteriormente, naquela vida ou em
outra, remota ou não, ele mesmo praticou falta semelhante
e agora recebe a visita inevitável da lei. Ele só sabe que
aquele miserável o matou e, portanto, merece todos os
castigos e punições. Além do mais, ele sabe também que,
ao errarmos, expomo-nos, a nosso turno, à cobrança, o que,
na sua maneira de pensar, dá-lhe o “direito” de punir e de
vingar-se.
Suponhamos, ainda, que ao cabo de uma feliz
doutrinação, aquele severo perseguidor resolva, afinal,
encerrar o processo da vingança. Está cansado, chegou à
conclusão de que não vale a pena continuar, porque um dos
grandes infelizes é ele próprio; ou, mais grave ainda,
descobriu que, no passado, ele próprio cometeu faltas muito
mais terríveis do que aquela que pretendeu cobrar, em
nome de um Deus em que ele mesmo não acreditava. Pode
ele, em tais circunstâncias, descer a abismos de
autocomiseração e dor. Temos tido oportunidade de
presenciar arrependimentos dramáticos, desesperados.
É o momento de ajudá-lo a construir algo com os
salvados de sua tragédia, mostrando-lhe que o remorso
deve ser construtivo, senão ele, que estava parado na
estrada da evolução, vai continuar paralisado pelo remorso.
De outro lado, vejamos o perseguido, ou obsidiado. Nem
sempre ele sabe por que sofre os rigores da vingança. O
erro vem de muito longe, e deve ser muito grave, para que
ele sofra daquela maneira, mas ele desconhece as causas
da sua dor e nem sequer tem oportunidade de enfrentar,
num diálogo, o seu obsessor. Como Espírito, ele não o
ignora; apenas o véu do esquecimento o protege, como a
todos nós, de lembranças extremamente dolorosas, que não
temos condição de suportar com a nossa consciência de
vigília. Se ele tem oportunidade, porém, de conhecer a
razão de sua obsessão, e entrega-se ao remorso
desenfreado, dificulta a libertação de seu próprio Espírito e
do de seu verdugo. Por outro lado, ele não pode ignorar o
arrependimento, pois é exatamente este sentimento que lhe
dá os primeiros recursos para livrar-se da dor. Sem
arrependimento, colocamo-nos em posições nas quais não
podemos sequer ser ajudados. A situação é, pois, muito
complexa e delicada, porque o mesmo sentimento de
remorso que o levou a merecer ajuda, pode retê-lo à mercê
do seu perseguidor, se não for canalizado para fins
construtivos, O remorso é, pois, uma flor belíssima, de
muitos e pontiagudos espinhos. É preciso estudá-lo, tratá-lo
com serenidade, equilíbrio e humildade. Sim, estamos
arrependidos do erro cometido contra o irmão; mas não
podemos permitir que o nosso arrependimento alimente
indefinidamente o seu rancor. É nisso, aliás, que ele se
esforça: manter a sua vítima sempre lembrada do erro,
porque o arrependimento serve duplamente, tanto para
fazê-la sofrer, como para estimular a cobrança, que se
eterniza.
— Paga a tua dívida! - gritou certo companheiro
desarvorado.
Mas, pagar como? Que entenderia ele por pagar a
dívida? Certamente que com a dor que resgata e com o
arrependimento que nos retém preso a ela. É uma situação
extremamente crítica e delicada.
Ainda voltaremos a este tema, que contém outras
implicações e conotações de grande interesse para o
trabalho de doutrinação.
25 - O PODER
Muitos dramas, cujos vagalhões vêm rebentar em
nossas mesas de trabalho mediúnico, têm o seu núcleo
principal na terrível paixão pelo poder. Um Espírito disse-me
certa vez em que dialogávamos:
— Sempre fui grande!
Em termos humanos, sim, fora grande, desde
remotíssimos tempos, desde o antigo Egito até à Europa
moderna. Mas, o que é realmente a grandeza?
“O maior dentre vós seja vosso servidor” - disse o Cristo,
segundo Mateus, 23:11, “pois o que se exalta será
humilhado e o que se humilha será exaltado.”
Em Lucas (22:24-27) o texto é ainda mais explícito:
“Entre eles, houve também uma discussão sobre quem
parecia ser o maior. Ele lhes disse: Os reis das nações
governam como senhores absolutos e os que exercem
autoridade sobre elas se fazem chamar benfeitores; mas
não assim, entre vós, senão que o maior entre vós seja
como o menor, e o que manda, igual ao que serve. Porque
quem é o maior, o que está à mesa ou o que serve? Não é o
que está à mesa? Pois eu estou entre vós como aquele que
serve!”
Portanto, o conceito de grandeza formulado pelo Cristo
não foi o de servir às nossas paixões, mas o de servir ao
semelhante. Ele mesmo, cuja verdadeira grandeza era
impossível de ser ocultada, confirmava-se como simples
servidor.
Em outra oportunidade, utilizando-se de sua impecável
didática, Jesus confirmou e ampliou o seu pensamento,
como a que nos demonstrar, sutilmente, que não tínhamos
noção real do conceito de grandeza:
“Em verdade vos digo que não há, entre os nascidos de
mulher, maior do que João Batista; contudo, o menor no
Reino dos Céus é maior do que ele.”
Vemos, assim, que os parâmetros humanos de aferição
da grandeza são inaceitáveis em termos espirituais. Entre
nós, que tudo -avaliamos segundo a insignificância de
nossas medidas, tudo o que sobreleva à mediocridade dos
nossos horizontes torna-se grande, mesmo que do lado
negativo da ética. É um grande criminoso aquele que mata
com requintes de crueldade uma pessoa ou duas, mas é um
grande guerreiro aquele que mata milhares. É grande o que
disputou e conquistou a sangue e fogo posições de mando e
governou multidões com pulso de ferro. São grandes os
“príncipes” da Igreja, que ampliaram os poderes materiais
da organização. É grande o escritor que obteve muito
sucesso literário, quer sua obra seja construtiva ou
desagregadora.
Nessa invertida escala de valores, a criatura
evangelizada, serena, amorosa, que leva uma existência a
serviço do próximo, em renúncias ocultas e no silêncio do
anonimato, passa despercebida, ignorada e até desprezada.
Isto nos induz a colocar sob suspeita nossos critérios
usuais de avaliação da grandeza, pois eles nos têm levado,
ao longo do tempo, a cometer tremendos enganos.
Confundimos, frequentemente, o exercício do poder com a
grandeza. Os sinais exteriores do poder nada dizem sobre o
gabarito moral do Espírito que os detém. E muitos de nós,
no passado e no presente, temos nos deixado levar pela
perigosa ilusão de que somos grandes, somente porque
dispomos de autoridade incontestada; mas, quantas vezes,
como simples anões espirituais, não temos subido as
escadarias do poder? O pior, no entanto, é que o vírus do
poder nos contamina, e a infecção instala-se em nós, por
séculos e séculos. Espíritos atingidos por esse
deslumbramento lamentável arrastam consigo, para o
mundo espiritual, a paixão invencível do mando, e lá se
juntam às organizações trevosas, que se utilizam deles para
oprimir e espalhar a desarmonia por toda parte. Eles se
prestam a isso, contanto que lhes sejam conferidos os sinais
externos do poder, as insígnias, os séquitos, os tronos, bem
como o comando de vastas organizações opressoras, pois
não aprenderam, ainda, a viver fora desse clima.
A decepção de alguns desses Espíritos é terrível, quando
se encontram privados daquilo que constitui o próprio ar
que respiram. Kardec nos preservou a comunicação de uma
rainha indiana de Ouda. (“O Céu e o Inferno”, Segunda
Parte, capítulo VIL.)
— “Vós, que vivestes nos esplendores do luxo, cercada
de honras, que pensais hoje de tudo isso?”
— “Que tenho direito.”
— “A vossa hierarquia terrestre concorreu para que
tivésseis outra mais elevada nesse mundo em que ora
estais?”
— “Continuo a ser rainha... Que se enviem escravas,
para me servirem!... Mas... não sei... parece-me que pouco
se preocupam com a minha pessoa, aqui... Contudo, eu...
sou sempre a mesma.”
E depois:
— “Tendes inveja da liberdade de que gozam as
europeias?”
— “Que poderia importar-me tal liberdade? Servem-nas,
acaso, de joelhos?”
Outra grande dama, ex-rainha da França, em condições
melhores do que a da infeliz rainha indiana, encontrou em
elevada posição, no mundo espiritual, alguém que fora
obscuro servidor da sua corte e de quem agora ela
dependia para ser ajudada.
Muitos são, no entanto, os que se revezam nos postos
de mando, aqui e lá, montando e dirigindo terríveis
organizações especializadas no crime espiritual.
Dificilmente comparecem aos trabalhos de doutrinação
os verdadeiros chefes dessas organizações. Vêm
geralmente seus emissários mais credenciados, assessores
de confiança, seus destacados líderes.
Um deles, que se apresentou como líder religioso, me
disse:
— Meu Imperador é Fulano - e disse o nome de alguém
que, em tempos idos, comandou exércitos e povos.
Mesmo com os chefes menores, o trato é difícil, e não
devemos alimentar esperanças de rápidas e radicais
conversações. É preciso compreendê-los, no próprio
contexto em que vivem. Como vão deixar o poder? Entregá-
lo a quem? E por quê? Como irão viver sem as pompas, as
ordens, as expedições, os planejamentos, as verdadeiras
campanhas que desencadeiam contra aqueles que
consideram seus irredutíveis adversários? Como voltar a ser
um simples e endividado Espírito, despojado de suas
próprias “defesas”?
Sim, porque sabem muito bem que, enquanto
permanecerem ligados àquelas tenebrosas estruturas, estão
adiando o momento do encontro consigo mesmos, com suas
mazelas, suas consciências, seus remorsos. Enquanto estão
ali, permanecem ao abrigo dos olhares amargurados de
antigos amores, que o tempo não apagou. Por que trocar a
glória, que chega às fronteiras da “divinização”, pelo
sofrimento anônimo, pela reencarnação de resgate?
O único jeito, a única saída possível, está em agarrarem-
se tenazmente ao poder, que exercem com a sensibilidade
anestesiada. É por isso, também, que se recusam
terminantemente a um diálogo que possa arrastá-los para a
faixa da emoção, da brandura, da compaixão, da
sentimentalidade. Enquanto estiverem no exercício do
poder estarão ao abrigo da dor maior, de enfrentarem a si
mesmos. É mais fácil enfrentar a dor dos outros.
26 - VAIDADE E ORGULHO
Muito ligado ao problema do poder está o da vaidade, e
também o do orgulho. Vimos como se entrelaçam, no caso
da rainha indiana.
A vaidade se apresenta sob muitos aspectos e é claro
que nem sempre está associada ao exercício do poder. Às
vezes, limita-se aos cuidados com a aparência “física”, as
vestimentas, ou à inteligência.
Muitos são os que nos visitam, nas sessões mediúnicas,
em estado de exaltação vaidosa. Há os que se julgam muito
belos (ou belas), os que ostentam condecorações, joias,
mantos, séquitos de servidores e acólitos, bem como os que
alardeiam conhecimentos intelectuais estupendos. Um
desses foi enfático. Dirigia uma organização que mantinha
Espíritos aprisionados sob as mais abjetas condições do
submundo das dores. Ao apresentar-se, falou
imediatamente sobre si mesmo: era belo, poderoso e
“divino.
— Você me vê? - pergunta-me.
Sempre fora importante. É o senhor daquela região (o
médium havia sido levado, por desprendimento). Tem ali
muitos prisioneiros, guardados por um velho que, em
tempos passados, fora seu escravo, e que chicoteou, em
nossa presença. Quanto a mim, devo-lhe algo muito sério,
pois lhe arrebatei alguém que estava destinado a ficar
também, como prisioneiro, em seus tenebrosos domínios.
Quando comparece da segunda vez, faz uma cena,
fingindo ser um pobre enforcado, necessitado de socorro
urgente e de passes restauradores. Ao perceber que não
conseguiu iludir-nos, ri, desapontado, dizendo que estamos
ficando muito sabidos e perigosos. Retoma o diálogo irônico,
envolvente, inteligente. Revela-se um dos magistrados do
Espaço. Cabe-lhe fazer com que a lei seja cumprida. Não é
ele quem retém seus prisioneiros; são seus próprios crimes,
e eles querem ficar lá, numa autopunição inevitável. Volta a
dizer que é belo, brilhante e poderoso. Sente-se nele a
evidente satisfação consigo mesmo, com aquilo que faz, a
alegria quase infantil com que contempla a si mesmo, e à
sua obra sinistra.
Fez com alguns companheiros encarnados um pacto.
Poder versus poder.
Ele os ajuda a conquistarem uma fatia de domínio, no
lado de cá da vida, e eles lhe dão, por sua vez, a parte que
lhe toca. A essa altura, propõe, também a mim, uma
barganha: libertará aqueles em quem estou interessado, em
troca de uma condição: devo “depor as minhas armas”. E,
muito vivo e inteligente, antecipa minha resposta:
— “Sei que você vai dizer que o amor não é uma arma...
Não só isso, respondo-me, mas, também não tenho
autoridade para fazer acordos. Fale com meus superiores, lá
mesmo, no mundo espiritual. Tudo ele tenta, inclusive o
meu envolvimento, com elogios e lisonja. Depois, perde a
paciência, indignado. Não está acostumado a resistências
assim, irracionais e tolas, ele que é um “deus”.
Coitado! Como é difícil cair do pedestal... mas vai aos
poucos cedendo, e enquanto entra em crise, o pior lhe
acontece, pois vê sua beleza física desmoronar-se
lentamente, enquanto um súbito e estranho processo de
envelhecimento destrói-lhe as belas feições. Ouve choro de
crianças (tê-las-ia sacrificado?) e, por fim, confessa que seu
ódio “perdeu a força”.
É uma afirmativa desesperada, arrancada do fundo de si
mesmo, e não deve ter sido fácil para ele reconhecê-lo; a
crise começou a precipitar-se nele, a partir do momento em
que deixou de ser belo. Demonstrada, a ele próprio, a
insuficiência da vaidade física, as demais vaidades também
entraram em colapso.
***
Quanto ao orgulho, visita-nos com igual frequência, e
vem sempre associado à vaidade ou ao poder, ou a ambos.
Alguns nos invocam a velha fórmula:
— Você sabe com quem está falando?
Comandam vastas instituições do terror. Apresentam-se
aparentemente tranquilos e seguros, ou assaz rancorosos e
agressivos. Às vezes são, de fato, muito brilhantes e cultos,
artificiosos no raciocínio envolvente, na formulação de
perguntas embaraçosas, hábeis manipuladores do método
socrático, com o objetivo de obter a condenação do
doutrinador, através de suas próprias palavras. Que prazer
sentem em oprimir e dominar! Que orgulho pelas posições
que ocupam, conquistadas com dores e sofrimentos
infligidos ao semelhante! Vivem, literalmente, em pedestais,
dos quais nem pensam em descer, porque, se o fizerem,
encontrarão seus próprios fantasmas, suas culpas, suas
angústias pessoais. Alguns creem-se realmente divinizados
e onipotentes. Um deles me disse que acreditava em Deus:
— O fato de eu existir - afirmou - prova que alguém me
criou.
Mas, quanto ao Cristo, fora um fraco. Nada tinha contra
Ele, contanto que Ele não interferisse com seus planos, que
eram grandiosos.
Outro companheiro, chocado com o tratamento que
havíamos dispensado ao seu “chefe”, através de outro
médium, manifestou-se irritado, até mesmo algo assustado,
dizendo-nos que nem fazíamos ideia de quem era ele, pois,
do contrário, não o teríamos tratado daquela forma. Ele era
muito importante mesmo:
— Ah! se você soubesse quem é ele...
E os antigos “Príncipes” da Igreja, que comparecem
tremendamente enfatuados, condescendendo em conversar
conosco, trânsfugas miseráveis, traidores vis, envolvidos
com uma doutrina maléfica, demoníaca, como o
Espiritismo? Que pompa, coitados! Que olímpica
indignação!
Um destes me conheceu em antiga encarnação, durante
a Reforma Protestante, onde fôramos adversários, no campo
teológico. Num “flash” de inspiração, pois estou
familiarizado com as minúcias da história da Reforma,
identifiquei-o pelo nome. Era ele mesmo. Acabamos, ambos,
descobrindo as fontes ocultas de seu fanatismo religioso:
em tempos idos, ele fora um daqueles que apedrejaram
Estevão...
27 - PROCESSOS DE FUGA
A contínua observação desses métodos, ao longo dos
anos, vai desenhando para nós um perfil mais nítido dos
segredos e mistérios do transviamento moral. As atitudes
agrupam-se e, em cada uma delas, repetem-se os gestos,
as palavras, os impulsos, as motivações. No entanto,
guardam todas, e cada uma delas, a sua individualidade e
as suas surpresas. Não sei como explicar esse jogo, entre o
inédito e o esperado. Parece que as posições são
basicamente as mesmas, mas, dentro delas, cada um toma
o caminho que lhe impõem os seus fantasmas interiores.
Em suma: há certas constantes que se repetem, que se
cristalizam, que constituem modelos, padrões, ou o que
seja, dentro dos quais a individualidade de cada um se
preserva, mantendo certa autonomia. É como se, num
conceito amplo de determinismo difuso, eles agissem
dentro de um amplo raio de livre escolha.
Vamos a alguns exemplos.
Uma das constantes, identificadas nesses Espíritos que
perseguem, que dominam, que espalham a dor, é a fuga.
Fogem de si mesmos, das suas próprias dores, das suas
angústias e frustrações.
Sejam quais forem as justificativas que invoquem para
as suas atitudes - quando as apresentam - o mecanismo é
sempre o mesmo: procuram esquecer seus próprios crimes
e aflições, adiar o encontro com a verdade, anestesiar-se na
insensibilidade, pelo cruel e desumano processo de
acostumar-se à fria contemplação da dor alheia. É preciso
entendê-los bem. Não são monstros irrecuperáveis, que
merecem o santo horror e a condenação eterna. Não são
seres desprezíveis, que tenhamos de abandonar à sua
própria sorte, para sempre. Temos que nos aproximar deles
com sentimento de amor fraterno e de compreensão, não
com nojo, como se fôssemos os redimidos, e eles os
réprobos perdidos em seus crimes. Temos de entender que
estão em fuga. A couraça de que se revestem é mais frágil
do que parece, e não é impenetrável aos fluídos sutis do
amor. Defendem-se da dor, atacando, agredindo,
maltratando. Tentam cicatrizar suas próprias feridas abrindo
ferimentos em outros corações. No fundo, sabem que
podem somente adiar o reencontro com as suas realidades
interiores, mas não ignorá-las para sempre. Quantos deles
nos têm dito que sabem muito bem disso, mas que saberão
“ser homens”, quando chegar, para eles também, a
cobrança! Enquanto não chega, prosseguem suas tarefas
abomináveis. Sabem de suas responsabilidades, e
imaginam, com bastante precisão, o que os espera um dia,
quando “caírem”. Por isso mesmo é que resistem, enquanto
podem, buscando apoio nas organizações a que pertencem,
pois essa é a lei a que se apegam: a lei da solidariedade
incondicional, que os protege mutuamente do dia do
despertamento.
Essa é a doutrina da fuga.
Por outro lado, quem foge precisa de esconderijos para
ocultar-se. No caso, ocultar-se de si mesmo. São muitos,
esses refúgios. O principal deles talvez seja o esquecimento
do passado. Este recurso é básico, essencial mesmo, para
aquele que precisa, perante sua própria consciência,
justificar, por exemplo, uma vingança impiedosa, que se
prolonga no tempo e vara séculos ou milênios. Enquanto o
perseguidor estiver “esquecido” das origens de sua
verdadeira dor, ele sente forças, em si mesmo, para
perseguir aquele que o feriu. Se ele voltar sobre seus
passos, ao seu pretérito, irá descobrir que sofreu aquele
ferimento exatamente porque, antes, causou dor
semelhante a alguém, faltando, assim, à lei universal da
fraternidade, O esquecimento o ajuda a manter acesa a
chama rubra do ódio e, portanto, a da vingança. É vítima
“inocente” de um crime inominável. Aquele miserável
roubou-lhe a mulher, espezinhou a sua honra, levou-o ao
crime, ao suicídio, à miséria, a ele, que sempre foi bom e
correto, que nenhum mal fez a ninguém...
Se um dia ele descobre, por exemplo, que há séculos
vêm os dois disputando, à ponta de punhal, aquela mesma
mulher, através de várias encarnações infelizes, sua
perplexidade é enorme, e, muitas vezes, o impacto dessa
lembrança é suficiente para sacudi-lo fora de seu
esconderijo psicológico e recolocá-lo na trilha evolutiva da
recuperação interior.
De outras vezes, nem isso basta, pois são muitos os
que, através de uma longa e tenebrosa experiência
espiritual, quase sempre no lado errado da vida, conhecem
bem o passado e, mesmo assim, prosseguem na fria
execução de seus planos medonhos. Estes também estão
em fuga, mas não buscam os esconderijos habituais, e sim
o atordoamento da ação. Enquanto estão atordoados,
organizando planos tenebrosos e os levando a efeito, vivem
a salvo das suas próprias dores. A desesperada atividade
mantém-nos, de certa forma, alheios aos seus dramas e
desesperos.
Um deles confessou-me que conhecia bem o seu
passado. Ocupara, em cada vida, a posição que lhe
convinha aos propósitos pessoais. Amava a glória e o poder,
acima de tudo. Responsabilidades, claro que tinha muitas. E
daí?
Outros dizem que não se importam com o resgate. O
que importa é o que fazem no momento, Isso lhes agrada. É
isso que desejam fazer; seja a vingança, seja a disputa de
maiores fatias de poder, sejam as campanhas mais amplas,
em que emprestam sua colaboração à organização a que
pertencem, e que, por sua vez, também os protege. A
imaginação de cada um cria seu próprio mecanismo de
fuga. Há os que se prendem aos conceitos teológicos,
depois de desfigurá-los e corrompê-los, para servirem aos
seus propósitos. Isto é particularmente válido para os
antigos sacerdotes, que se apoiam em fantásticas teologias,
e em textos escolhidos com extremo cuidado, no próprio
Evangelho do Cristo. Quantos deles temos encontrado nas
tarefas mediúnicas!
Lembro-me de um, em particular. Montara sua própria
organização, nas trevas.
Apresenta-se aparentemente muito humilde e manso.
Informa-me que “consentiu em receber-nos na sua câmara”,
porque a entrevista lhe foi solicitada por pessoas que ele
respeita e admira. É claro que se vê naquilo que chama sua
própria “câmara”. É a segunda vez, em muitos anos, que
concorda em tratar diretamente com alguém, pois tem seus
auxiliares para contatos e execução dos planos. Quer saber
o que desejamos dele, embora certamente o saiba.
O diálogo prossegue, tranquilo, enquanto ele permanece
escondido na sua mansidão aparente, mas as ameaças mais
claras começam a filtrar-se: não nos deixará sair dali, sem
saber do que se trata, pois dignou-se a conceder-nos a
entrevista. Ao fim de longa conversa, difícil, em que ele se
mantém ameaçador, na sua aparente tranquilidade, nossos
benfeitores revelam-nos que se trata de um antigo
franciscano extraviado. Aos poucos, conseguimos despertá-
lo para a realidade que ele tanto teme enfrentar.
Qual teria sido o mecanismo do fenômeno, que se
poderia chamar de “inversão de local”? Como e por que o
Espírito, incorporado no médium, no cômodo em que
realizamos os trabalhos mediúnicos, poderia julgar-se
recebendo-nos em sua “câmara”? Os nossos mentores não
nos explicaram o ocorrido, mas creio que não seria
fantasioso admitir, especulativamente, nesse caso, a velha
e segura técnica da hipnose. Por mais defendidos que se
julguem encontrar esses companheiros desarvorados, em
suas furnas escuras, não são invulneráveis à misericórdia
divina. Se o fossem, não teriam jamais a oportunidade de se
libertarem de sua condição tão dolorosa. Ao passo que eles
não têm condições de peso específico para subir às regiões
da luz a fim de promover distúrbios e “conquistas”, o que
seria inadmissível, os Espíritos iluminados podem descer,
sacrificialmente, aos antros da angústia, e o fazem com
frequência, a fim de tentar o resgate de companheiros que
já ofereçam um mínimo de condições para ser ajudados.
De algum modo, cujo conhecimento ainda nos escapa,
aquele irmão deve ter sido preparado e condicionado de tal
forma, pelos trabalhadores do Cristo, que, mesmo
deslocado, em nosso grupo sentia-se ainda em toda a
segurança do seu reduto, no qual condescendia
generosamente em receber-nos, com as suas pouco veladas
ameaças.
É possível também - e esta seria uma forma alternativa
de considerar o caso - que o nosso médium tenha realmente
sido desdobrado, sob a proteção do Alto, até o “local”, e de
lá transmitido a mensagem que nos possibilitou o diálogo.
Frequentemente, temos presenciado esse fenômeno do
deslocamento de médiuns, que, desdobrados do corpo
físico, vão ao encontro do Espírito que os nossos mentores
desejam pôr em contacto conosco.
Deixo abertas as opções mencionadas, bem como
outras que não me tenham ocorrido. Um dia saberemos o
suficiente para entender melhor essa extraordinária
faculdade que é a mediunidade.
***
São muitos os que falam em nome de uma fé que não
possuem mais, em nome de um Deus que não amam, de
um Cristo que pretendem colocar a serviço de suas paixões
subalternas e de um Evangelho que somente citam naquilo
que lhes convém, com as interpretações que lhes
interessam. Não negam a reencarnação, nem a
sobrevivência, nem a comunicabilidade dos Espíritos; mas
isto será revelado - dizem - quando a Igreja for
restabelecida em toda a sua glória, ou seja, quando voltar a
dominar, como instrumento de suas ambições.
Às vezes o esconderijo é a cultura intelectual.
Constroem seus próprios sistemas, inventam brilhantes
sofismas e adestram-se em uma dialética deformada, mas,
nem por isso, frágil e desarticulada; ao contrário, bastante
inteligente, pois, sendo eles inteligentes, precisam de um
inteligente mecanismo de fuga.
Enfim, cada um constrói o seu esconderijo, inventa suas
defesas, segundo suas inclinações, recursos e intenções. A
finalidade, porém, é uma só: esconder-se das próprias
angústias. Quando descobrimos suas motivações, estamos
a caminho de poder ajudá-los a libertar-se da dor. Os
indícios precisos eles mesmos no-los fornecem. É preciso
estarmos atentos, vigilantes, pacientes e prontos a servi-los
naquilo que lhes convém aos Espíritos atormentados, e não
naquilo que possa estimular-lhes as paixões abrasadoras.
28 - AS ORGANIZAÇÕES: ESTRUTURA, ÉTICA,
MÉTODOS, HIERARQUIA E DISCIPLINA
Muito temos falado, aqui, sobre as organizações do
submundo da dor e do desespero. Tentemos estudá-las mais
de perto.
É claro que jamais nos trouxeram, nossos irmãos
desarvorados, os esquemas e organogramas de suas
instituições, mas, de tanto ouvi-los falar delas, creio possível
montar, com as inúmeras peças do gigantesco “puzzle”, um
quadro inteligível desse tenebroso painel de desespero e
aflição.
Em primeiro lugar, é preciso não cometer o trágico
engano de subestimá-las. Elas são realmente temíveis.
Foram concebidas e são operadas por inteligências
privilegiadas, Espíritos longamente experimentados no mal,
no exercício do poder, nos meandros do sofisma. Isto não
significa que, no desempenho de tarefas redentoras do
bem, nos deixemos dominar pelo pavor, no trato com seus
representantes, pois é exatamente isso que desejam e a
que se acostumaram. Dominam pelo terror que inspiram em
toda parte, e, se cairmos nessa faixa, estaremos correndo
riscos imprevisíveis. O problema de lidar com elas é, pois,
extremamente complexo. E nunca é demais repetir: não o
faça quem não esteja suficientemente apoiado por Espíritos
esclarecidos, devotados ao bem e experimentados nesses
trabalhos. Se o grupo conta com a colaboração de
companheiros experientes, eles saberão dosar o trabalho,
segundo seus próprios recursos e possibilidades, e as
tarefas de maior responsabilidade vão sendo trazidas, à
medida que conseguimos passar pelas preliminares, de
menor envergadura. As equipes orientadas por esses
dedicados trabalhadores anônimos do mundo superior
manter-se-ão equilibradas, sempre que se portarem com
prudência e sabedoria. Como esses abnegados
companheiros não impõem condições, mas limitam-se a nos
aconselhar e esclarecer, é preciso estarmos atentos às suas
sugestões e observações, para interpretá-las corretamente
e pô-las em prática, com segurança.
Se nos sairmos bem das tarefas iniciais e passarmos nos
testes a que somos submetidos, em benefício de nós
mesmos, não podemos esquecer-nos de que precisamos
manter nossa própria organização disciplinada, atenta,
flexível, ajustada, porque a “do outro lado” é tão boa ou
melhor do que a nossa, em termos de estrutura e disciplina,
ainda que não o seja em objetivos e métodos.
As instituições das trevas são estruturadas numa rígida
concentração do poder, nas mãos de alguns líderes,
escolhidos por um processo impiedoso de seleção natural.
Sua liderança revelou-se na ação, em postos subalternos, ou
confirmou-se através de séculos e séculos, em que se
revezam encarnados e desencarnados. Muitos deles, como
signatários de pactos de vida e morte, sustentam-se aqui e
lá, onde estiverem, sejam quais forem as condições, num
princípio que tem muito mais de autodefesa do que de
fidelidade. São fiéis uns aos outros, não porque se estimem,
mas porque precisam uns dos outros, para manter-se no
poder. Quando se reencarnam, trazem programas muito
bem elaborados, e o compromisso de apoio e solidariedade
irrestritos, da parte dos que ficam no mundo espiritual.
Assim se explicam os êxitos, em termos humanos, que
obtêm, enquanto por aqui se encontram, e a provisória, mas
segura impunidade em que continuam a viver, quando
retornam aos seus domínios, após a desencarnação, por
maiores que sejam as atrocidades que cometem, como
homens.
Ao que tudo indica, até mesmo enquanto na carne,
mantêm-se em contacto íntimo e permanente com seus
comparsas do Além, e continuam a exercer a parcela de
autoridade de que dispõem entre eles, realizando contatos,
durante os desprendimentos parciais, provocados pelo sono.
A estrutura administrativa dessas instituições está
preparada para aceitar tal flexibilidade, sem prejuízo para
as suas tarefas. Elas não podem falhar e, por isso, há
sempre alguém em condições de suprir uma ausência
ocasional ou definitiva. A não ser que o líder esteja colocado
em posição muito elevada, e se tenha tornado praticamente
insubstituível, a organização sobrevive naqueles que o
substituem, pois há interesses poderosíssimos a proteger e
personagens muito destacadas, no mundo do crime, a
resguardar. Assim, dificilmente a instituição é
desmantelada, quando o seu chefe supremo é convertido ao
bem. E também não é sempre que esses líderes, mesmo
convertidos, podem voltar sobre seus passos e tentar
convencer seus antigos comparsas. Uma vez convencidos a
mudar de rumo, caem em desgraça ante seus
companheiros. O primeiro impulso destes é resgatá-los,
especialmente quando são figuras importantes, na máquina
do poder. Verificada, pelos seus ex-amigos, a
impossibilidade de “salvá-los”, abandonam-nos à sua
própria sorte, quando não procuram voltar contra eles todo
o poderio da própria instituição que antes eles
comandavam.
São muitos os dramas e as manobras dessa hora
decisiva.
Quando conseguimos colher, em nosso afeto, um desses
poderosos companheiros extraviados, há uma verdadeira
celeuma na retaguarda. Podemos contar, logo, com
manifestações de indignados e agressivos assessores seus,
que o desejam de volta e ameaçam arrebatá-lo a qualquer
preço, ou que o arrasam, com a sua decepcionada
hostilidade.
Um desses líderes portou-se com dignidade
impressionante. Convencido a abandonar suas tarefas
tenebrosas, sentiu todo o peso de sua responsabilidade,
ante aqueles Espíritos que levara ao transviamento.
Dependiam dele, de sua orientação, de sua palavra, e,
exatamente porque confiavam nele é que foram levados ao
extremo de cometerem crimes terríveis. Competia-lhe,
agora, usar dessa mesma influência para reencaminhá-los
ao bem. Ao que depreendemos da conversa com ele, na
sessão seguinte, passou uma semana a estudar diferentes
grupos mediúnicos, a fim de decidir onde levar seus
companheiros, para que fossem, como ele, doutrinados e
despertados. Sua sinceridade era evidente, e sua franqueza
rude, mas muito realista. Confessou-nos que não vira
condições suficientes nos grupos que visitara. Nenhuma
esperança tinha ele - acertadamente - em grupos cujos
componentes apresentavam-se com mazelas semelhantes à
dos Espíritos que precisavam de tratamento; hipocrisia,
rivalidades, falta de fraternidade. Mesmo assim, estava
disposto a ajudá-los, pois não teria paz enquanto não
conseguisse recuperá-los também. Eles confiavam no seu
antigo chefe, mas precisavam de ser convencidos. Sua frase
final foi de uma beleza transcendental:
— Farei com as minhas lágrimas um rosário para
oferecer a Jesus...
***
Há, pois, aqueles que, uma vez convertidos, têm
condições de tentar ajudar os que ficaram, e há aqueles que
não podem sequer pensar nisso, porque não lhes, seria
permitido pela própria estrutura e pelos métodos da
organização a que pertenceram por longo tempo. No
primeiro caso, é possível admitir que a instituição se
desfaça, desarticule-se, quando se trata de organização de
menor porte, porque as mais vastas, empregando milhares
de servidores, endurecidos na prática do mal, sobrevivem a
essas crises, ainda que seus líderes as abandonem, pois as
estruturas resistem. Estão preparadas para isso, e dispõem
de planos alternativos, para emergências. Em casos
excepcionais, os benfeitores espirituais valem-se do
momento de crise, ainda que ocasional e temporário, para
um trabalho de saneamento, que pode abalar seriamente as
instituições e até mesmo neutralizá-las.
Muitas vezes, porém, organizações menores filiam-se às
maiores, e têm delas supervisão e proteção, porque os
objetivos, quase sempre, são os mesmos, ou muito se
assemelham os métodos de ação. E quando os grupos de
socorro espiritual começam a interferir em seus trabalhos,
elas se aconchegam umas às outras e desenvolvem planos
combinados de ataque, que podem causar consideráveis
transtornos.
Sejam, porém, grandes ou pequenas, seus
organogramas são tão bem planejados e implementados
como os de uma empresa. Só que, em vez de visarem a
atividades industriais ou comerciais, com o fim de
produzirem lucro, como as sociedades anônimas da Terra,
produzem o terror e a opressão, e lutam pelo poder e por
aquilo que entendem como glória pessoal.
Têm seus chefes, seus planejadores, seus executores,
operários, guardas. Conservam registros meticulosos,
movimentam documentação, utilizam-se de aparelhos,
dispõem de tropas de choque, “armadas” e bem
adestradas. Promovem reuniões, concílios, debates,
exposições, conferências, sermões, ritos. Promulgam leis,
punem os indisciplinados, condecoram e distribuem prêmios
aos que se destacam por trabalhos de especial relevância.
Seus métodos são os do terror pela violência, sua
incontestável hierarquia apoia-se num regime disciplinar
implacável, rígido, inflexível. Não se tolera a falta, o deslize,
a revolta, a desobediência. Sua ética é governada pela total
ausência de escrúpulo. Nada os detém, tudo é permitido,
desde que os fins a que visam sejam alcançados. Aqueles,
pois, que resolvem organizar um grupo mediúnico de
desobsessão, devem estar bem preparados para enfrentá-
los.
É preciso enfrentá-los com paciente firmeza e confiança
nos poderes que nos sustentam. Nada de ilusões, porém.
Não podemos abrir brechas em nossa vigilância, porque
penetrarão, sem nenhuma cerimônia, pelas portas das
nossas fraquezas, se assim o permitirmos, de vez que nada
lhes é sagrado, e tudo se lhes permite.
QUARTA PARTE - TÉCNICAS E RECURSOS
29 - TÉCNICAS E RECURSOS
Dissemos alhures, neste livro, que cada manifestação é
diferente. Nunca sabemos, ao certo, as intenções do Espírito
que se aproxima, que problemas nos traz, quais são suas
características, qual a razão de sua presença entre nós.
Além do mais, a própria mediunidade não é um instrumento
de precisão, como um microscópio ou um relógio, que
funcione, repetidamente, de maneira previsível e
controlável. O médium é um ser humano ultrassensível, de
psicologia complexa, incumbido de transmitir o pensamento
de um desencarnado, mas está muito longe de ser mero
aparelho mecânico de comunicação, como um telefone ou
um rádio, muito embora se fale em sintonia e em vibrações,
quando a ele nos referimos. Suas faculdades sofrem
influências várias, do ambiente, do seu estado de saúde, da
sua problemática íntima, da sua fé ou ausência dela, do seu
interesse no trabalho, que pode flutuar, da sua capacidade
de concentração, da sua confiança nos companheiros que o
cercam e, especialmente, no dirigente do grupo e,
obviamente, dos Espíritos manifestantes. E mesmo estes,
que são também seres humanos - não nos esqueçamos
disto - variam suas apresentações, de uma para outra
manifestação, segundo suas próprias disposições.
Por outro lado, é preciso considerar, também, que há
diferentes formas de mediunidade: de incorporação, ou
psicofônica, de vidência, clariaudiência, psicografia, assim
como há médiuns que conservam sua consciência durante a
manifestação, e médiuns que passam ao que se
convencionou chamar de estado “inconsciente”.
Devo abrir um parêntese, para reiterar uma antiga
opinião: de minha parte, julgo inadequada a expressão
“mediunidade inconsciente”. O Espírito do médium não está
em estado de inconsciência, simplesmente porque se
afastou do seu corpo físico, para cedê-lo ao manifestante. O
máximo que se pode dizer é que a consciência não está
presente no corpo físico, ou, melhor ainda, não se manifesta
através do corpo material, temporariamente ocupado ou
manipulado por entidade estranha à sua economia. Se o
médium mergulhasse, em Espírito, no estado de
inconsciência, o manifestante assumiria posse total do seu
organismo e faria com ele o que bem entendesse. Ao
escrever isso, não estou esquecido do fato de que há
manifestações violentas, e muito livres, durante as quais os
Espíritos incorporados movimentam o instrumento
mediúnico aparentemente à sua vontade, fazendo-o gritar,
dar murros, levantar-se, derrubar móveis, rasgar livros e
cadernos, e promover distúrbios semelhantes. A
mediunidade sonambúlica assemelha-se ao estado de
possessão; mas, basta invocar esta, para sentir o quanto
essas duas manifestações diferem uma da outra, O
possesso é realmente um médium, pois oferece condições
para que outro Espírito se incorpore nele, mas o médium
não é um possesso, no sentido de que o manifestante possa
fazer, com ele, tudo quanto entender, a qualquer momento
e sem limite de tempo, ou totalmente sem disciplina. Num
grupo mediúnico em que a supervisão espiritual seja firme e
segura, a mediunidade sonambúlica pode e deve funcionar
perfeitamente, pois muitos Espíritos necessitam ser ligados
a tais médiuns. Eles provocarão distúrbios e agitar-se-ão
bastante, segundo os recursos e censuras que encontrarem
em seus médiuns, mas não nos esqueçamos de que, não
apenas os guias espirituais do grupo estarão atentos, para
que eles não cometam desatinos, como o próprio médium
estará presente e consciente, acompanhando atentamente
a manifestação, e pode, com certeza, interferir, para que o
Espírito manifestante não se exceda, ainda que lhe
permitindo considerável faixa de liberdade.
Em casos extremos os orientadores espirituais do grupo
também adotarão medidas de exceção, para conter as
manifestações mais violentas. Já tivemos oportunidade de
presenciar alguns desses casos, em que o Espírito é
virtualmente “manietado”, por laços fluídicos invisíveis aos
nossos olhos, mas de realidade indiscutível para ele, porque
o imobiliza instantaneamente.
***
Mas, voltemos ao fio da exposição.
O grupo deve estar, assim, perfeitamente preparado
para inúmeras formas de manifestação. Elas são
imprevisíveis e inesperadas. O doutrinador experiente
saberá identificar prontamente os primeiros sinais da
incorporação, quando o Espírito começa a acomodar-se à
organização mediúnica. É preciso, aqui, lembrar que,
frequentemente, o Espírito manifestante é parcialmente
ligado ao médium, horas, e até dias inteiros, antes da
sessão. Nestes casos, quando se trata de um Espírito
desarmonizado, embora a manifestação não se torne
ostensiva, porque isto implicaria admitir mediunidade
totalmente descontrolada, o médium sofre inevitável mal-
estar físico, dor de cabeça, pressão sobre a nuca, sobre os
plexos, sensação de angústia indefinível e, até mesmo,
estado febril, prostração, irritabilidade, agressividade e
vários outros sintomas de desarmonização psicossomática.
O médium experimentado e responsável deve estar
preparado para isso. Não se assuste, não se apavore, não
tema e, sobretudo, não deixe de comparecer ao trabalho,
por causa dessas dissonâncias psicofísicas, pois é isso
mesmo que desejam os companheiros desequilibrados, ou
seja, afastá-lo do trabalho.
Esse envolvimento pode dar-se também com os demais
participantes do grupo que, embora não dotados de
mediunidade ostensiva, sofrem também terríveis pressões
dos irmãos perturbados. Um dos alvos prediletos dessas
penosas aproximações é o doutrinador, tenha ou não
mediunidade ostensiva. O cerco em torno dele é
permanente, tenaz, implacável, impiedoso, porque acham,
os companheiros desencarnados doentes, que o
neutralizando, acabam com o grupo, o que, muitas vezes,
infelizmente, é verdadeiro.
Esteja ou não esteja o Espírito ligado ao médium antes
da sessão, é certo que o planejamento espiritual já tem as
tarefas da noite distribuídas por antecipação, e na
sequência que julgar mais conveniente ao bom andamento
dos trabalhos. Geralmente, cada médium tem seu próprio
“estilo”, para indicar o início da comunicação: colocar as
mãos sobre a mesa, respirar com maior profundidade, duas
ou três vezes, agitar ligeiramente a cabeça ou o corpo,
gemer, levantar os braços, numa sematologia que o
doutrinador, habituado a trabalhar com ele, saberá
identificar, a fim de iniciar o tratamento do irmão que se
apresenta.
Às vezes, o Espírito começa logo a falar, ou a
esbravejar, mas, usualmente, ele precisa de alguns
segundos para apossar-se dos controles psíquicos do
médium, e não consegue falar senão depois de se ter
acomodado bem à organização do seu instrumento, o
doutrinador deve aproveitar esses momentos para uma
palavra de boas-vindas, saudando-o com atenção, carinho e
respeito. Em alguns casos o Espírito somente consegue
expressar-se a muito custo, em virtude de seu estado de
perturbação, de indignação, ou por estar com deformações
perispirituais que o inibem. De outras vezes, usando de
ardis, ou preparando ciladas, mantém-se em silêncio, para
que o doutrinador se esgote, na tentativa de descobrir suas
motivações, a fim de tentar ajudá-lo, com o que ele se
diverte bastante.
Em certas ocasiões, vem ele revestido de um manto de
mansidão e tranquila segurança. Diz palavras doces,
assegura-nos suas boas intenções, dá-nos conselhos. Um
deles, certa vez, começou serenamente, com um apelo “aos
corações bem formados”, numa linguagem de pacificação e
entendimento. Digo-lhe que estamos dispostos à
pacificação e ao entendimento, desde que ele venha em
nome de Deus; mas, por mais que se esforce - coisa
estranha! - não consegue pronunciar o nome de Deus, como
eu lhe pedira. Por fim, explode em irritação e “abre o jogo”,
gritando que acabou a farsa. E derrama um arsenal de
ameaças e intimidações.
Há os que fingem dores que não sentem, ou mutilações
que não possuem, como cegueira ou falta da língua. Visam,
com esses artifícios, a distrair nossa atenção do ponto focal
de sua problemática, ou simplesmente entregam-se ao
prazer irresponsável de enganar, mistificar, defraudar, ou
então, como alguns me dizem, às vezes, de esgotar o
médium incumbido de dar-lhes passes. Riem-se muito dos
nossos enganos. Houve um que começou fingindo uma
terrível dor de cabeça. Propus-me a ajudá-lo, o que fiz com
um passe, e ele começou a rir, divertindo-se com a minha
falta de inspiração; mas, por estranho que pareça, começou
realmente a sentir uma dor real, o que o deixou bastante
impressionado.
Qualquer que seja a abertura da comunicação, o
doutrinador deve esperar, com paciência, depois de receber
o companheiro com uma saudação sinceramente cortês e
respeitosa. Seja quem for que compareça diante de nós, é
um Espírito desajustado, que precisa de socorro. Alguns
bem mais desarmonizados do que outros, mas todos
necessitados - e desejosos - de uma palavra de
compreensão e carinho, por mais que reajam à nossa
aproximação. Os primeiros momentos de um contacto
mediúnico são muito críticos.
Ainda não sabemos a que vem o Espírito, que angústias
traz no coração, que intenções, que esperanças e recursos,
que possibilidades e conhecimentos. Estará ligado a alguém
que estamos tentando ajudar? Tem problemas pessoais com
algum membro do grupo? Luta por uma causa? Ignora seu
estado, ou tem consciência do que se passa com ele? É
culto, inteligente, ou se apresenta ainda inexperiente e
incapaz de um diálogo mais sofisticado?
Uma coisa é certa: não devemos subestimá-lo. Pode, de
início, revelar clamorosa ignorância, e entrar, depois, na
posse de todo o acervo cultural de que dispõe. Dificilmente
o Espírito é bastante primário para ser classificado,
sumariamente como ignorante. Nossa experiência
acumulada é muito mais ampla do que suspeitamos.
Dentre os muitos casos assim, lembro-me de um,
particularmente grato ao meu coração, porque o
companheiro, depois de recuperado, passou a colaborar em
nossas tarefas, com uma dedicação comovedora.
Ao apresentar-se, tinha dificuldade em expressar-se,
usando o vocabulário limitado de uma pessoa de
pouquíssima instrução. Aos poucos, a sua história foi se
desenrolando. Fora um homem de cor, e vivera em pobreza
extrema, pelas ruas do Rio de Janeiro, cujos bairros do
subúrbio conhecia muito bem. Num infeliz acidente de trem,
perdera uma perna e, mesmo no mundo espiritual, ainda
caminhava de muletas. Quando lhe disse que não precisava
mais de muletas, podendo caminhar sem elas, ele
respondeu que já o experimentara, mas levara um tombo.
Esse querido amigo - que nos deu o nome de Eusébio -
esteve aos nossos cuidados por longo tempo. Por detrás de
sua pobreza verbal, do seu limitado vocabulário e das suas
curiosas expressões populares, sentíamos nele, não
obstante, um senso filosófico muito profundo da vida e uma
das mais lindas e autênticas humildades que já vi. Foi, aliás,
o que o salvou e, paradoxalmente, o que contribuiu para
que sua recuperação demorasse um pouco mais. Tentarei
explicar.
Era evidente, para nós, que chegara ao fim da sua
provação maior, e estava em condições de reencetar sua
escalada evolutiva. Uma noite, emocionado até às lágrimas,
conseguiu dar os primeiros passos sem a “muleta”, o que,
para ele, na sua linguagem colorida, “não era barbante
podre, não”. Suas observações eram sempre judiciosas, sua
humildade uma constante, e sua afeição e gratidão por nós,
algo patético, em que expandia o coração amoroso e pleno
de generosidade. Nossos orientadores espirituais
começaram a utilizá-lo em pequenas tarefas auxiliares, com
o que ele muito se alegrou. No entanto, a despeito de sua
indubitável vivência espiritual, continuava a falar-nos na
linguagem do Eusébio, simples, popular, sem atavios, mas
conseguindo claramente expressar nobres pensamentos e
demonstrar bastante segurança.
Certa noite, devido à ausência de grande número de
companheiros, a sessão alcançou um clima de maior
intimidade, o que talvez lhe tenha favorecido a superação
de suas inibições interiores, para falar-nos de maneira
inusitada, revelando o que de há muito entrevíamos nele:
conhecimento, experiência, enfim, uma respeitável
bagagem espiritual, dosada e sustentada pela sua aflorante
emotividade. Pelo que depreendemos, tivera um passado de
brilho e destaque, aprendera a dura lição da humildade e
tinha certo receio de abandonar sua obscura posição
espiritual, tão dificilmente conquistada, e recair nos velhos
processos da vaidade. Mas, graças a Deus, estava curado o
querido companheiro.
***
Esse caso, aqui, veio para ilustrar algumas realidades
espirituais que não podemos ignorar, sem lamentável
prejuízo para o Espírito manifestante. Exemplifico:
suponhamos que, ao recebê-lo, o grupo o tratasse com
superior condescendência e o despedisse com uma palavra
de desesperança. Onde e quando teria ele outra
oportunidade de entendimento e recuperação? E onde, e
quando, nós próprios teríamos a alegria de granjear uma
afeição e uma dedicação iguais àquela?
Às vezes, também, embora o grupo não realize nenhum
trabalho de Umbanda, surgem Espíritos acostumados a
essas práticas. Suas primeiras manifestações seguem,
quase sempre, a técnica a que estão acostumados.
Aguardemos pacientemente, para saber o que desejam.
Nada de expulsá-los sumariamente. Se os companheiros do
mundo espiritual permitiram sua manifestação, num grupo
estritamente espírita, orientado pelos ensinamentos de
Allan Kardec, haverá alguma razão para isso.
Aqui, também, temos uma experiência pessoal.
Ao manifestar-se, ele traçava infalivelmente o seu sinal,
sobre a mesa, e começava a doutrinar-nos. No seu terreiro,
dizia, também se fazia o bem, e muito mais facilmente.
Éramos uns “cartolas” grã-finos, reunidos em apartamento
de luxo. Ele estava muito bem lá, e não queria nada
conosco. - etc., etc. Provavelmente, não sabia ainda (ou
pelo menos não revelara) por que estava ali, entre nós.
Por muito tempo o diálogo se manteve nesse tom; mês
após mês. Só muito mais tarde a história se desvendou.
Tivera uma longa e penosíssima experiência, ao correr dos
séculos, desde que, em impulsos tresloucados, no século
XVI, envolvera-se em erros lamentáveis, no campo político-
religioso. Fora, então, um homem de grande magnetismo
pessoal, de vigorosa inteligência e de muita cultura
filosófico-religiosa.
— Fui um verdadeiro demônio - me disse ele, certa vez,
profundamente contristado.
Confessou, também, que, há quatro séculos, perdera-
nos de vista - a mim e a outro companheiro do grupo, mas a
afeição por nós lá estava, e isso o salvou, graças a Deus.
Parece que sua intenção inicial era arrastar esse
companheiro - o médium através do qual se manifestava -
para os terreiros de Umbanda, o que este recusava
terminantemente, por divergência doutrinária insuperável.
Não nos contou ele toda a sua terrível saga, mas uma só
narrativa bastou. Tivera uma existência no Brasil, como
escravo negro. Perguntei-lhe onde fora isso e ele me
respondeu:
— A gente nem sabia onde estava. Era levado de um
lugar para outro, como bicho.
Parece que foi nessa existência que se familiarizou com
a utilização dos recursos da Natureza, para curar.
Manipulava bem esses fluídos naturais e devia trazer, no
Espírito, alguma antiga experiência na Medicina, pois
sempre nos demonstrou ser conhecedor seguro das mazelas
do corpo humano e dos métodos de minorá-las. Em mim
mesmo, por meio de passes, colocou um “remendo” na
coluna, que ameaçava quebrar-se por causa de uma rara e
incurável moléstia óssea.
Também este integrou-se no nosso grupo, feliz em poder
servir-nos, com seus conhecimentos e seu coração, curado
de antigas mazelas, que tanto o infelicitaram. Era
particularmente ativo e estava sempre presente para
restabelecer o tônus vibratório dos médiuns, quando a
manifestação era por demais penosa. Incorporava-se, logo
em seguida, e, enquanto falava tranquilamente, dava
passes no seu médium, que despertava lúcido e livre dos
resíduos vibratórios do Espírito desarmonizado que o
precedera. O nosso bom e querido Justino, a essa altura,
abandonara seus propósitos de continuar a frequentar os
terreiros. Era quem nos dava um passe final, quem
fluidificava a nossa água e quem tratava das nossas
pequenas mazelas orgânicas, dando-nos conselhos e passes
e, vez por outra, a “receita” de um chá caseiro. Manteve sua
maneira algo rude de falar, sem floreios e artifícios de
linguagem. Talvez buscasse esconder suas emoções, sua
gratidão e sua alegria, pelo reencontro com os velhos
companheiros, que, segundo ele, haviam se distanciado na
sua frente, o que não é verdadeiro.
Certa vez, num impulso rápido de inspiração,
identifiquei seu Espírito nas lutas dramáticas da Reforma
Protestante, mas respeitamos seu anonimato e ele nunca
mais deixou de trazer-nos a vibração do seu amor fraterno e
do seu reconhecimento humilde. Muito devemos a esse
querido companheiro, não somente pelo que fez por nós,
mas pelas inesquecíveis lições que nos trouxe. Seria difícil
distinguir a gratidão dele da nossa, e não é essa mesma a
essência imortal do “Amai-vos uns aos outros”?
***
Assim, a primeira regra do diálogo, com os nossos
irmãos em crise, é esta: paciência e tolerância. Toda
conversa, com eles, é um permanente exercício dessas duas
virtudes. As primeiras palavras são de importância vital;
são, às vezes, decisivas, e podem constituir a diferença
entre uma oportunidade de pacificação ou a alienação do
companheiro por mais um tempo, indeterminado, em que
ele continuará a buscar alhures o que não encontrou em
nós: compreensão para os seus problemas e suas angústias.
Muita coisa vai depender, no desenrolar do trabalho, da
maneira pela qual recebemos os nossos irmãos em crise.
Nunca é demais lembrar e insistir: eles precisam de nós,
justamente porque não conseguem sair sozinhos das suas
dificuldades, das suas perplexidades, dos seus sofismas, da
sua auto hipnose. Mas nós, por igual, precisamos deles,
porque nos trazem lições, porque nos ajudam na prática da
lei suprema da solidariedade que, a seu turno, nos libertará
também.
E quantas vezes não são eles aqueles mesmos que
causam desequilíbrios em nós próprios, ou obsessões
naqueles que nos cercam: parentes, amigos, colegas de
serviço, companheiros de jornada, enfim?
Além disso, não podemos despachá-los, mal enunciaram
as primeiras palavras, quando nem sequer sabemos ainda
de suas motivações e de suas dores. Não esperemos,
jamais, uma expressão inicial sensata e equilibrada,
amorosa e tranquila, da parte daqueles que se acham
desarmonizados. Se assim fosse, não precisariam de nós: já
teriam encontrado seus próprios caminhos. Esperemos, isto
sim, uma eloquente manifestação de revolta, rancor,
desespero, aflição, desencanto, ou perplexidade, segundo a
natureza dos problemas que os abrasam. Contemos com
mistificações e ardis, com falsidades e subterfúgios, com
ódio e agressividade, com ignorância e má-fé; em suma,
com a dor do Espírito aturdido pelo impasse que criou
dentro de si mesmo. É claro que o primeiro impulso de
hostilidade, de um Espírito assim, tem de ser contra nós,
que o fustigamos, tentando obrigá-lo a mover-se. Ele está
parado no tempo e no espaço, preso à sua problemática,
empenhado numa tarefa que julga do maior relevo e
importância; e aparece um grupo, como o nosso, para
tentar arrancá-lo daquilo que constitui o seu mundo, a sua
razão de ser. Não é ele quem nos incomoda e fustiga;
somos nós que o agravamos, com a inadmissível tentativa
de fazê-lo desistir dos seus propósitos. Como? Então não
vemos que ele não faz mais do que cobrar uma dívida, ou
trabalhar pelo restabelecimento da Igreja do Cristo, ou
funcionar como juiz, num processo legitimamente
constituído, em que a culpa é tão clara? Que petulância!
Que impertinência!
É preciso deixá-los falar, pois, do contrário, não
poderemos ajudá-los. É necessário conhecer a sua história,
suas motivações e suas razões. E ainda que relutem,
demorem e usem de mil e um artifícios, eles acabam
revelando a razão de sua presença no grupo. O longo trato
com eles nos ensina que têm um hábito peculiar de “pensar
alto”. Isto se deve a um mecanismo psicológico irresistível,
do qual muitas vezes eles nem tomam conhecimento, e no
qual, mesmo os mais hábeis e ardilosos deixam-se envolver.
É que o médium lhes capta o pensamento, e não a palavra
falada. Se o médium se limitasse a transmitir-lhes a palavra,
mesmo assim, eles acabariam por revelar as suas
verdadeiras posições, embora pudessem sonegar a verdade
por maior espaço de tempo; mas é do próprio dispositivo
mediúnico converter, em palavras e gestos, aquilo que o
Espírito elabora na sua mente. Eles não conseguirão, por
muito tempo, ocultar as verdadeiras causas da sua dor e a
razão da sua presença, pois é isso, precisamente, que os
traz a nós. Essas causas estão de tal forma gravadas nos
seus Espíritos, que constituem o centro, o núcleo, em torno
do qual gira toda a personalidade e agrupam-se os
problemas mais críticos e mais urgentes. Se conseguirmos
desfazer aquele núcleo, que funciona como verdadeiro
centro de aglutinação, a personalidade reagrupa-se em
novos equilíbrios redentores. Insistimos, pois, em afirmar
que o médium traduz em palavras o que ele sente no
Espírito manifestante: suas emoções, seu temperamento,
seus problemas, suas desarmonias, ao mesmo tempo em
que lhe reproduz os gestos, e a voz alteia-se ou sussurra,
reflete ódio ou desprezo, ironia ou, amargor, perplexidade
ou aflição. Se assim não fosse, teríamos que falar com cada
Espírito na sua própria língua, ou seja, na língua que ele
falou por último, na sua mais recente encarnação, e todo
médium precisaria ser xenoglóssico.
É certo, pois, que acabarão por revelar a razão de sua
presença entre nós, e depois, o núcleo de suas dificuldades
maiores, muito embora seja isto o que mais parecem temer.
Num caso desses, o Espírito fez um longo circunlóquio
filosófico-teológico. Era excelente argumentador e dialético
de muitos recursos. Fugia a qualquer referência pessoal, a
qualquer palavra que pudesse levar-nos a descobrir suas
motivações. Ao cabo do diálogo, que se estendeu por mais
de uma sessão, ele não se conteve mais: seu ódio era
contra mim. Seguia meus passos desde que “tua maldita
mãe te colocou no mundo”, e a dúvida que havia entre nós
reportava-se ao tempo da Segunda Cruzada. Pretendia
transformar o meu lar num hospício, disse ele, pois eu
cometi contra ele um crime do qual jamais me perdoaria. Se
pudesse, me destruiria...
Em suma, deixa cair os véus com os quais tentou, de
início, cobrir as razões de sua presença entre nós. Veio para
isso mesmo, mas relutou o quanto lhe foi possível, pois
sabia muito bem que, chegados ao cerne do problema,
estaríamos em melhor posição para o ajudar a resolvê-lo.
No fundo, ele estava mesmo era cansado de sofrer porque a
vingança e a perseguição tanto sacrificam o perseguido,
quanto o perseguidor.
Em outro caso: depois de muito debatermos as questões
suscitadas entre nós, ele deixou escapar o fragmento de
uma palavra reveladora.
A certa altura do diálogo, lembro a ele a inesquecível
palavra de Gamaliel, perante o Sinédrio:
— Não aconteça que vos encontreis lutando contra
Deus!
Percebi que a citação o atingiu mais profundamente do
que ele talvez desejasse. Resmungou que nada tinha com
Gamaliel, mas evidentemente estava envolvido no doloroso
“processo da cruz”, e disse:
— Eu era um sol...
Estacou subitamente e comentou consigo mesmo:
— Veja o que eu ia dizendo. Sempre fui um soldado...
Na verdade, desde a sua primeira manifestação, uma ou
duas semanas antes, ouvia sem cessar um alarido de vozes
que berravam coisas confusas e um tilintar de armas que
ele se recusava a identificar. Participara, pois, como soldado
romano, ou do próprio Templo, da penosa missão de
aprisionar o Cristo, ou de conduzi-lo, ao longo da sua
inesquecível via crucis. Era esse o problema que ele mais
temia revelar, mas que precisava enfrentar, para libertar-se.
Este caso encerra outra lição importante. Chamemo-la a
lição do arrependimento construtivo, ao qual há referências
alhures, neste mesmo livro.
Para não transformar o tema numa composição literária,
baste-nos lembrar que há dois tipos de arrependimento: o
positivo e o negativo. O primeiro, ajuda-nos a reconstruir
logo o que destruímos, a refazer o que não podemos mais
desfazer; o segundo, mantém-nos paralisados à beira do
caminho, enquanto nossos companheiros e nossos amores
seguem à frente. Estacionamos precisamente porque nos
falta coragem para enfrentar o olhar severo da própria
consciência. É verdade, estamos envergonhados, temerosos
e angustiados, mas por que demorar-nos no
arrependimento, cruzarmos os braços e esconder-nos, como
um caramujo, dentro da carapaça das ilusões? O
arrependimento somente se dissolve no trabalho
construtivo. Incontáveis multidões, no entanto, tentam fugir
de si mesmas, ignorando seus próprios fantasmas
interiores. A culpa existe em nós; impossível negá-lo, pois o
erro já está cometido mesmo. O que temos de fazer, agora,
não é fingir que ela não existe, porque é justamente esse
fingimento, essa fuga, que nos mantém presos, detidos,
marcando passo, vendo a multidão passar por nós, em
busca da paz.
Esse mecanismo tem que ser bem compreendido por
aquele que se propõe ajudar Espíritos endividados. É claro
que também somos endividados, talvez tanto quanto eles,
ou até mais. Precisamos, no entanto, mostrar-lhes que
estamos fazendo alguma coisa, lutando, enfrentando os
nossos espectros interiores, as censuras da consciência, as
cutiladas do remorso, conscientes de que o nosso erro está
presente em nós, e não podemos voltar sobre nossos
passos, para desfazê-lo. Podemos, no entanto, e devemos, e
temos que reconhecer, a força da sua presença em nós.
Sem essa abertura corajosa, não dá sequer para começar. E,
como diz o provérbio chinês: a caminhada de 100 Km
começa com o primeiro passo.
O doutrinador precisa estar muito atento a esses sinais
reveladores. Tentar identificá-los é sua tarefa, mas que o
faça com muito tato, paciência e compreensão. Ninguém
gosta de revelar suas fraquezas, seus erros, seus crimes,
suas mazelas e imperfeições. Nada de coações, de
pressões, de imposições. Espere com paciência, busque
com tranquila perseverança, que a verdade virá. Lembre-se
de que ela se encontra ali mesmo, na memória daquele
irmão que sofre. Ele a dirá, se é que chegou a sua hora de
mudar de rumo. Basta um pouco de ajuda, habilidade, tato
e paciência. É preciso, também, que tenhamos a faculdade
da empatia, ou seja, apreciação emocional dos sentimentos
alheios. Veja bem: apreciação emocional. É necessário que
as nossas emoções estejam envolvidas. Se apenas
assistimos às agonias de um Espírito que se debate nas
suas angústias, não temos empatia; somos meros
espectadores. É preciso aprender a vibrar com ele, sofrer
com ele, compreender sua relutância em abrir-se, aceitar
seu temor em descobrir suas feridas, mas, a despeito de
tudo isso, ajudá-lo a descobri-las...
Estejamos certos, porém, de que a resistência será
grande, a luta interior que presenciaremos será dolorosa,
difícil, e muitas vezes o Espírito recuará novamente,
temeroso, acovardado, sentindo-se ainda despreparado.
Neste caso, ouvimos sempre uma destas frases:
— Ainda não estou preparado... Espere um pouco mais...
De outra vez... Deixe-me. Dê-me mais tempo. Preciso
pensar...
Junto de um companheiro particularmente agoniado,
presenciamos a dura batalha entre os lampejos da
esperança de paz e os apelos de seu insaciado desejo de
vingança: iria, agora, abandonar tudo aquilo, que era a
motivação de sua vida, e o tinha sido por séculos e séculos?
Entregar-se à dor? Abandonar a sua vítima? E a sua
vingança? E, no entanto, ninguém melhor do que ele sentia
a inadiável necessidade de uma atitude de renúncia,
embora sabendo que apenas trocava uma dor por outra.
O doutrinador não o forçou. Limitou-se a dizer, com o
coração aberto à compreensão e ao afeto:
— A decisão é sua. Claro que você pode continuar a
fazer isso. Deus, que amparou aquele a quem você
persegue por tanto tempo, há de continuar amparando-o.
Mas, e você? É isto que lhe convém? É isto mesmo que você
quer?
***
Estamos, talvez, nos antecipando. Falávamos do
primeiro contacto com o Espírito manifestante. Creio que foi
possível deixar bem claro o quanto é importante essa
primeira aproximação. Nela se definem muitas coisas sutis,
que podem decidir o caso, de uma forma ou de outra,
libertando o Espírito, ou confirmando-o na sua dor, por mais
alguns anos, ou séculos.
Repitamos: o diálogo com os nossos irmãos
desarvorados é um exercício de tolerância e paciência. E
acrescentamos: muito amor.
À medida que ele se desenrola, estejamos atentos,
mantenhamo-nos compreensivos e discretos. É uma
tentativa de entendimento, não uma discussão, uma
contenda, uma disputa. O que interessa, neste momento,
não é “ganhar a briga”, mas estudar com empatia -
novamente a palavra mágica - o drama que aflige o
companheiro. Não importa que ele leve a melhor no debate,
que nos agrida, ameace e procure intimidar-nos.
Frequentemente ocorre ser ele muito mais treinado, em
pelejas dessa categoria, do que o doutrinador. Foi tribuno,
orador, escritor, pensador, teólogo; enfrentou grandes
debatedores, argumentou em causas importantes, adquiriu
cultura e aprendeu a manejar a palavra, como poucos. Leva
nítida vantagem sobre o doutrinador que, por mais bem
preparado que seja, está contido pelos dispositivos da
encarnação e, na maioria das vezes, ignorante de fatos
importantes, que o Espírito conhece e manipula com
inteligência e acuidade. Seria, pois, ingênua e perigosa
imprudência tentar superá-lo numa discussão. Não se
esqueça, por outro lado, de que não pode deixar o Espírito
falando sozinho, a não ser em condições muito especiais,
que a intuição do doutrinador deverá indicar. O Espírito
precisa ser atendido com interesse, muito mais que com
simples urbanidade. Não apenas se encontra na condição
de visita, por assim dizer, pois veio até a nossa casa, como
ele ficará ainda mais irritado, e difícil, se o recebemos com
fria e polida descortesia, ou, pior ainda, quando nos
deixamos envolver pela sua agressividade e respondemos
com idêntica hostilidade, que o aliena cada vez mais.
Estejamos certos de encontrar sempre, da parte deles, o
desejo de nos arrastar à discussão azeda e violenta. É o
clima que convém aos seus propósitos. Na sua dolorosa e
compreensível inconsciência, usarão de todos os recursos
ao seu alcance para atingir esse fim. Quantas vezes tenho
ouvido agressões iniciais, e reiteradas, como estas:
— Fale como homem! Não suporto essa voz melíflua!
Será que você não tem sangue nas veias? Não seja covarde!
Está com medo?
Calma, paciência, tolerância. Não altere a voz, não se
deixe irritar, não reaja da maneira que ele espera, pois
assim não conseguirá ajudá-lo. Resista, mas resista mesmo,
ao impulso de “responder-lhe à altura”, mesmo que tenha o
argumento que parece decisivo. Se o tem mesmo, tanto
melhor. Use-o com a mesma voz tranquila e serena. É muito
difícil um diálogo áspero entre duas pessoas, quando
somente uma grita, O gritador acaba por perceber que está
fazendo papel ridículo e usando violência desnecessária,
que cai num vazio, que o aturde e o traz à razão.
De vez em quando, se ele insistir em falar em altos
brados, faça-o compreender, em voz baixa e tranquila, que
não é preciso gritar. Que a gente somente grita quando não
tem razão. Ele acabará por convencer-se da justeza dessa
observação. Se o doutrinador cai na tolice de gritar-lhe de
volta, o clima torna-se insustentável e a situação difícil de
ser contornada. Procure dirigir a conversação para o terreno
pessoal, certo de que o Espírito está negaceando,
precisamente para evitar cair nesse campo, que sabe ser o
mais “perigoso”, por ser o único revelador do núcleo interior
de sua problemática. Mas, não o force. Espere o momento
oportuno. Aguarde pacientemente. Siga-o na conversa, sem
aumentar sua irritação, sem atritar-se com ele. Não é
importante superá-lo na troca de ideias. Você não está ali
para provar que é mais inteligente do que ele, nem mais
culto, ou eticamente melhor do que ele: você está ali para
ajudá-lo, compreendê-lo e servi-lo. Não há razão alguma
para pensar que você é um Espírito redimido, e ele um
réprobo enredado nos seus crimes. As leis morais, o
Evangelho do Cristo e a prática espírita nos repetem, de mil
formas, a mesma lição: a de que são os próprios pecadores
que se ajudam mutuamente: o coxo servindo ao cego, o
cego ao mudo e, sobre todos nós, a infinita misericórdia de
Deus, a sabedoria ilimitada do Cristo e a assistência
incansável de nossos irmãos mais experimentados, que se
alongaram mais profundamente no caminho da luz.
***
É certo, ainda, que, durante esse diálogo difícil - em
que, tantas vezes, o doutrinador tem de aceitar o papel de
um pobre, infeliz débil mental, covarde, hipócrita, medroso -
haverá mistificações, propostas, bravatas, ameaças, ironias,
tentativas de intimidação. Mantenhamos o equilíbrio,
atentos, porém, ao fato de que humildade não quer dizer
submissão e aceitação sem exame de tudo quanto nos diz o
Espírito manifestante, pois ele se encontra diante de nós
exatamente para que tentemos convencê-lo de seus
enganos, fantasias e deformações filosóficas, teológicas e
psicológicas. É a sensibilidade do doutrinador que vai
indicar em que ponto e em que momento interferir.
Enquanto esse momento não chega - e geralmente ele
não ocorre, mesmo, na fase inicial do diálogo - esperemos
com paciência, atentos às informações que o Espírito nos
fornece, dado que é com elas que vamos montando o
quadro que nos mostrará o perfil psicológico do
comunicante. Atenção com os pormenores que pareçam
irrelevantes: uma referência passageira, o tom de voz, uma
lembrança fugaz, uma observação aparentemente sem
importância. Tudo serve para compor o quadro. Lembremo-
nos de que o perfil que procuramos é importante, é
essencial ao entendimento da personalidade daquele irmão.
Embora dificilmente admita, ele precisa da nossa ajuda. Se
o mencionarmos, porém, ele replicará com toda a
veemência, que de forma alguma precisa de nós. Está muito
bem como está. Não poucos serão os que, ao contrário, nos
farão propostas e nos dirão as mais estranhas bravatas.
Falam-nos do enorme poder de que dispõem - e muitas
vezes isso é estritamente verdadeiro - e das “providências
enérgicas” que tomarão contra nós.
Um deles me anunciou que iria “botar fogo” no grupo. E
me perguntou:
— Como é que você quer morrer? Você fecha o grupo
espontaneamente, ou nós teremos que fazê-lo?
Outro me informou que tinha “ordens do chefe” para
remover-me do seu caminho, se possível, sem me ferir, mas
se isso fosse impraticável, então, era para arrebentar tudo a
dinamite, porque a pedra tinha que ser afastada, para que
eles passassem.
Um terceiro, cujo aspecto truculento e olhar terrível o
médium descreveu antes que se incorporasse, também
pronunciou sua ameaça, apoiada numa bravata: estava
disposto a afastar-me de qualquer maneira, se possível por
bem, pois não desejava causar-me dano pessoal, a não ser
que a isto fosse obrigado. Confessa, mesmo, que tem por
mim certa afeição e - coisa estranha, meu Deus! - sinto por
ele, também, uma inexplicável ternura que, não sei de onde
nem de quando, vem das telas infinitas desse continuo
espaço-tempo em que vivemos. Fala-me da sua glória, na
qual insiste. Sonha grande, mas não hesita diante da
violência, para realizar os seus sonhos de domínio. Já no
passado cometeu, várias vezes, esse engano, embora
projetando-se, na História, como um temível conquistador. A
essa altura, já estamos conversando, como dois velhos
amigos que se reencontraram, e não como um agressivo
guerreiro, surgido dos registros históricos, com um mero
doutrinador espírita, do século XX. Ao falar das suas
grandezas, me diz, de maneira dúbia:
— Você preferiu outros caminhos...
— Sim, é verdade - digo-lhe eu - preferi a obscuridade.
É isso, precisamente, que ele não entende. Como pode
alguém desejar viver na obscuridade, se pode, pelo menos,
tentar a glória?
Nem sempre, porém, essas bravatas e ameaças
terminam assim, amistosamente, num reencontro de dois
seres que seguiram rotas diferentes, mas continuam a
estimar-se e respeitar-se.
Usualmente, o rancor está firme atrás delas, e pelo
menos algumas das ameaças concretizam-se mesmo, sob
variadas formas: pequenos incidentes na vida diária, mal-
entendidos entre familiares, doenças inesperadas, aflições
maiores.
O problema das ameaças merece alguma digressão
mais ampla, porque ele tem implicações muito sérias no
trabalho de doutrinação.
Em primeiro lugar, como nos disse um Espírito amigo,
certa vez, não podemos colher rosas, sem jamais nos
ferirmos nos espinhos. Quanta verdade nesta imagem! Por
mais estranho que nos pareça, a uma observação
superficial, os Espíritos mais terrivelmente perturbados e
desarmonizados guardam em si incrível potencial para as
realizações futuras - aptidões, experiências e qualificações
inesperadas, preciosas, e, por mais fantástico que nos
pareça, uma enorme capacidade de amar.
Um deles, muito difícil, agressivo, poderoso, quase
inabordável, não pôde conter sua gratidão, depois de
desperto: beijou, com emoção e respeito, a mão de seu
aturdido doutrinador, o mesmo que, ainda há poucas
semanas, ele daria tudo para destruir.
No trabalho mediúnico de desobsessão, temos, pois,
que contar com contratempos, ferimentos e angústias,
especialmente se deixarmos cair as nossas guardas. Isto é
válido para todo o grupo, e não apenas para o médium, ou
para o doutrinador. O cerco aperta-se, ainda que estejamos
guardados na prece e na vigilância.
— “Vigiai e orai” - disse o Cristo, segundo Marcos - “para
não cairdes em tentação, pois o espírito está pronto, mas a
carne é fraca.” (Marcos, 14:38.)
O Espírito deseja a libertação, teme novas quedas,
sonha com a paz, sofre a ausência de afetos muito
profundos e, de certa forma, está pronto para a vida em
plano melhor e mais purificado, ou, pelo menos, não tão
difícil e grosseiro como este mundo de provas em que
vivemos; mas, no fundo, mergulhado no corpo físico, que o
sufoca, sua vontade debilita-se e a fraqueza da carne vence
as melhores intenções. Os seres desencarnados inferiores
que nos vigiam, nos espionam e nos assediam, sabem
disso, tão bem ou melhor do que nós, e, enquanto puderem,
hão de reter-nos na retaguarda, pelo menos, como disse um
amigo espiritual muito querido, para engrossar as fileiras
dos que estão parados.
Mesmo com toda a vigilância, e em prece, continuamos
vulneráveis. E “eles” sabem disso: quando o esquecemos,
eles nos lembram:
— Você pensa que é invulnerável?
Quem poderá responder que é? E as nossas mazelas, os
erros ainda não resgatados, as culpas ainda não cobradas,
as infâmias ainda não desfeitas? Contudo, temos que
prosseguir o trabalho de resgate, a despeito dos espinhos
das rosas, das ameaças e, logicamente, de um ou outro
desengano maior. É preciso estarmos, no entanto, bem
certos de que, em nenhuma hipótese, sofreremos senão
naquilo em que ofendemos a Lei, e jamais em decorrência
do trabalho de desobsessão, em si mesmo. Seria
profundamente injusta a Lei, se assim não fosse. Então,
vamos ser punidos porque estamos procurando,
exatamente, praticar a Lei universal do amor fraterno e da
solidariedade que nos recomenda o Cristo?
Não aceitaremos a intimidação, mas não a
devolveremos com uma palavra ou um gesto de desafio que
de provocação. É necessário não intimidar-se diante da
bravata, mas sem cometer o engano de ridicularizá-la. Há
uma diferença considerável em ser intimorato e ser
temerário. Nossa bagagem de erros ainda a resgatar não
nos permite usar o manto da invulnerabilidade, mas não
deve deter os nossos passos na ajuda ao irmão que sofre.
Mesmo que ele nos fira, com a peçonha de seu rancor
inconsciente, quando lhe estendermos a mão, para ajudá-lo
a levantar-se, ele nos será muito grato se o conseguirmos e,
no fundo, bem no fundo de si mesmo, ele, mais do que
ninguém, deseja e espera que nós consigamos salvá-lo, pois
que, por si mesmo, com seus próprios recursos, ele não o
conseguiu ainda. E, afinal de contas, se os espinhos nos
ferirem, aqui e ali, também estaremos nos libertando das
nossas próprias culpas.
A regra, portanto, é esta: não ridicularizar a bravata,
nem desafiar a ameaça; não responder à ironia com a mofa;
não se intimidar, mas não ser imprudente.
Regra semelhante poderia ser sugerida para responder
à proposta, e esta precisa, igualmente, de algumas
considerações à parte.
Um grupo bem orientado e bem guardado pelos amigos
espirituais invisíveis começará, pouco a pouco, a obter
resultados que surpreenderão não apenas aos próprios
componentes encarnados, como também aos
desequilibrados Espíritos manifestantes. Estes não
compreendem como pode um pequeno grupo,
aparentemente tão frágil, tão reduzido, resistir à investida
de tremendas e poderosas organizações espirituais,
votadas, há um tempo enorme, à prática do mal. Inúmeros
outros seres e grupos que tentaram, no passado, impedir
seus passos, deram-se mal, e foram afastados
sumariamente. De modo que, passado o rompante das
primeiras agressões, os companheiros desvairados proporão
barganhas e tréguas, ou pequenas concessões. A
imaginação é fértil e a experiência deles é longa, no trato
de situações como essa, a da resistência inesperada. A
proposta pode ser um simples negócio. Estão acostumados
a tais ajustes e transações. Acham que tudo tem seu preço
e dispõem-se sempre a pagar o preço combinado por aquilo
que lhes interessa. Se podem comprar nossa desistência,
por exemplo, não hesitarão em propor uma barganha:
— Está bem. O que você deseja para parar com isso?
“Parar com isso” é deixá-los fazer o que entendem,
encerrar as atividades do grupo ou dedicar-se a outros
afazeres mais inócuos e menos prejudiciais aos seus
interesses. Concordarão, por exemplo, em deixar de
atormentar alguém, a que particularmente estejamos
dedicados, ou em liberar outros, que mantêm prisioneiros
no mundo espiritual. Ou então nos oferecem coisas mais
terra-a-terra, como dinheiro, posição, prazeres.
De outras vezes a proposição é mais sutil. Começam
com elogios, exaltando nossas fabulosas “virtudes”:
— Você não sabe a força que tem! Poderia arrastar
multidões, dominar mentes...
A um desses respondi que não sabia, ainda, como
dominar a minha... E ele, imperturbável:
— Sabe, sim. Você sabe... Por que não fazemos um
acordo?
Outro convidou-me para “pregar”, na sua instituição. Já
referi aqui, também, àquele que me propunha desfazer um
“trabalho”, feito contra mim, ao que tudo indicava, por ele
mesmo... Há os que propõem desembaraçar-nos de pessoas
que supostamente nos estariam atrapalhando, bem como,
aqueles que nos acenam com “belíssimas” posições, nas
suas organizações.
Como dizia há pouco, a imaginação deles é fértil e a
habilidade ilimitada, e muitos são os que se deixam fascinar
por esse cântico funesto. Um deles me disse, certa vez, que
eu ficaria estarrecido, se soubesse daqueles que haviam
concordado com arranjos semelhantes. De um Espírito
encarnado, que nosso grupo estava particularmente
interessado em socorrer, nos foi dito que desistíssemos,
porque ele não voltaria: já havia “cruzado a ponte”, para o
lado de lá... Tinha tudo quanto queria, estava muito feliz, O
negócio, evidentemente, fora bom para ambos os lados, o
que, na prática comercial, indica uma boa transação
concluída de maneira auspiciosa.
Duas observações básicas é preciso ainda fazer, sobre
tais propostas e acomodações: a primeira, é mais do que
óbvia, ou seja, as concessões que nos oferecem têm
elevado preço, por mais inocentes que se apresentem, à
primeira vista. Além do mais, nada impede que desfaçam o
trato, a qualquer tempo, quando não mais interessar-lhes o
nosso concurso ou caducar a razão pela qual se valeram da
nossa ingenuidade infantil. A cobrança virá, então, sobre
aquele que concordou com o trato e que, de suposto aliado,
passa a vítima inerme de sua própria tolice. A segunda
observação é a de que, quando os nossos irmãos
atormentados propõem semelhantes transações, com a
finalidade de nos levarem a abandonar o trabalho, deixar de
ajudar alguém, ou fazer, enfim, qualquer concessão, é
porque estão começando a sentir-se algo perplexos, ante a
resistência inesperada à sua vontade. Eles não estão
habituados a fazer acordos para obter o que podem
conseguir pela imposição e pela intimidação, ou pelo terror.
Tenhamos, porém, o bom senso de não procurar tirar
partido da situação, imatura e precipitadamente. A
prudência continua a ser a melhor conselheira. Além disso,
não podemos permitir-nos utilizar, jamais, métodos
semelhantes aos seus. Eles compreenderão nossos
escrúpulos e nosso jogo aberto e acabarão respeitando-nos
por isso, estejam ou não convencidos ante a nossa
argumentação. Se a uma proposta, por mais infantil que
seja, da parte deles, tentarmos “virar a mesa”, estaremos
sintonizando-nos com o mesmo diapasão ético com que eles
nos experimentam e, com isso, irá por terra a precária
ascendência moral que porventura tenhamos alcançado
sobre eles. Não podemos, jamais, esquecer-nos de que são
pobres irmãos desorientados, desesperados, dispostos a
tudo, mas que necessitam de nós. Buscam aflitivamente
alguém que não possam corromper com suas propostas,
alguém que prove ser pelo menos um pouco melhor do que
a média humana, com a qual estão acostumados a lidar.
Não alimentemos a ilusão de demonstrar-lhes que, diante
de nós, são simples vermes infestados de culpas, votados à
maldade intrínseca, e nós, seres redimidos, que
condescendemos em estender-lhes a mão salvadora que,
depois, iremos desinfetar. Absolutamente. É bem possível
que sejam mais atilados psicólogos do que nós, mais
experimentados do que nós, nessas duvidosas transações.
Encaram suas tarefas deploráveis como complexas partidas
de xadrez, nas quais têm, às vezes, que sacrificar uma
dama, ou um bispo valioso, para dar o xeque ao rei. São
metódicos, dispõem de amplos e minuciosos planejamentos.
Não os subestimemos jamais, que as consequências serão
funestas para nós. Escarnecer de suas propostas, porque
sentimos que estão fracos e algo perplexos, pode ser
desastroso, e, além do mais, é desumano. São irmãos
doentes, que precisam de ajuda e compreensão, e não de
que os confirmemos nas suas práticas, retrucando aos seus
processos ardilosos com ardis de idêntico teor.
Em situações como esta, costumo ter uma resposta
padronizada. Não recuso a proposta, e nem a aceito.
Confesso-me simplesmente incapaz de decidir, o que é
estritamente verdadeiro. Usualmente, digo qualquer coisa
assim:
— Não tenho autoridade para tratar com você. Procure
um dos nossos companheiros espirituais, aí no mundo de
vocês. O que ele resolver, está bem para mim.
Às vezes eles insistem, pois sabem muito bem o que
significa a minha resposta. O tom pode ser este, como
tenho observado:
— Está bem, mas você pode resolver a parte que lhe
toca. Eles não poderão fazer nada, se não tiverem o grupo,
e se você acabar com o grupo, estará tudo resolvido e não
mais o incomodaremos. Caso contrário... você sabe...
A posição do doutrinador tem que continuar firme,
paciente, tranquila, e até mesmo respeitosa, pois a dor
alheia jamais poderá constituir espetáculo de diversão, a
não ser para aqueles que também estejam em
desequilíbrio. É preciso respeitá-la. A criatura que está
diante de nós, incorporada ao médium, encontra-se
desatinada, necessitada de compreensão e de amparo.
Merece nosso respeito. Seria profundamente desumano
negacear com ela, tentando ludibriá-la com os mesmos
recursos com que, no seu desespero, tentou enganar-nos.
Que ela tente, isso é compreensível; mas que nós, também,
experimentemos a mesma arma, é inadmissível. Se não
podemos provar-lhes que somos melhores do que eles - e
não podemos mesmo, pela simples razão de que não o
somos, pelo menos na extensão que a nossa vaidade
poderia sugerir - que, pelo menos, evidenciemos que nossos
métodos são melhores.
Um pobre irmão desses, extremamente desarvorado,
atormentou-nos, por algum tempo, com ameaças terríveis;
assediou-nos, semana após semana; deu murros na mesa,
gritou e fez tudo quanto lhe foi possível para destroçar-nos
ou quebrar o nosso moral. Acreditava na legitimidade
incontestável da sua causa. Era profundamente honesto
consigo mesmo e, portanto, todos aqueles que se lhe
opunham tinham que ser removidos de qualquer maneira:
pela intimidação ou pela lisonja, pela dor ou pela sedução;
não importam os métodos, desde que os fins sejam
alcançados. Tinha, porém, um grande e generoso coração,
totalmente dedicado à sua ingrata causa. Não lutava
especificamente contra nós, mas pelas suas ideias, e
achava, como tantos outros, que combatia o bom combate
de que nos falava Paulo. Um dia, convenceu-se de seu
engano, com a graça de Deus. Desceu do seu pedestal de
poder e arrogância - fora também um grande e, sem dúvida,
um pobre transviado, no passado - viu-se em toda a
extensão de seus enganos. Nesse ínterim, um de nossos
médiuns teve com ele um encontro, no mundo espiritual,
em desdobramento. Estava recolhido a uma instituição
socorrista, e arrasado de remorso, pelas atitudes agressivas
e despropositadas ante o seu doutrinador e o próprio grupo,
que tanto se esforçava por salvá-lo. Voltou, depois, para
dizer-nos desses nobres sentimentos, redespertados em seu
coração. Essa história tem ainda um post scriptum. Ele
visitou-nos novamente, tempos depois, para despedir-se,
muito contrito e infinitamente grato aos pequenos
trabalhadores que o ajudaram: preparava-se para
reencarnar, e vinha pedir nossas preces, pois estava mais
certo do que nunca do nosso amor fraternal.
30 - O DESENVOLVIMENTO DO DIÁLOGO,
FIXAÇÕES, CACOETES, DORES “FÍSICAS”,
DEFORMAÇÕES E MUTILAÇÕES
Pouco a pouco, o diálogo vai se desenvolvendo, a partir
de uma espécie de monólogo, pois, no princípio, como
vimos, é necessário deixar o Espírito falar, para que informe
sobre si mesmo, o que acaba acontecendo. Muitos o fazem
logo de início, dizendo prontamente a que vieram e o que
pretendem. Mesmo a estes, porém, é preciso deixar falar, a
fim de nos aproximarmos do âmago de seus problemas.
Outros são bem mais artificiosos. Usam da ironia, fogem às
perguntas, respondendo-nos com outras perguntas ou com
sutis evasivas, que nada dizem. É comum tentarem
envolver o grupo todo na conversa. Várias artimanhas são
empregadas para esse fim. Dirigem perguntas aos demais
circunstantes; dizem gracejos, para provocar o riso; tentam
captar a atenção por meio de gestos e toques, nos braços
ou nas mãos dos que lhes ficam mais próximos; ensaiam a
indução hipnótica ou o passe magnético. Muita atenção com
estes artifícios. Eles trazem em si uma sutileza perigosa e
envolvente, pois constituem uma técnica de penetrar o
psiquismo alheio. Um companheiro esclarecido e
experimentado que, do mundo invisível, nos orientava,
costumava sempre dar uma palavra inicial, de estímulo e
encorajamento, para as árduas tarefas que nos esperavam
cada noite, todas as semanas. Ele tinha o hábito de fazer
uma saudação geral, e depois dirigir-se a cada um de nós
em particular, com uma palavra mais pessoal, afetuosa e
cordial. Seu objetivo não era o de distinguir este ou aquele,
e nem mesmo de dar conselhos individuais sobre nossos
problemas humanos; era apenas o de estabelecer, entre nós
todos e ele, um vínculo positivo, que nos predispunha ao
trabalho em equipe e certamente contribuía para que nos
mantivéssemos, todos, em boa faixa de equilíbrio e
concentração. Suas palavras singelas, a cada um de nós,
criavam, pois, este elo, necessário ao trabalho. Neste caso,
a técnica era obviamente utilizada para o bem, mas, sem
dúvida alguma, os Espíritos desarmonizados também a
conhecem e procuram empregá-la, com finalidades muito
diversas. Se um companheiro desavisado responde, mesmo
com um simples sorriso, os resultados podem se tornar
desastrosos. Tivemos disso um exemplo, certa vez, quando
alguém, em nosso grupo, achou graça num comentário do
manifestante. O Espírito começou a dirigir-se a ele,
esquecendo aparentemente a presença do doutrinador e
suas palavras, pois isto faz parte da técnica. Como o
companheiro correspondeu à sua abordagem, o Espírito
sentiu-se à vontade para prosseguir e foi muito franco e
espontâneo ao manifestar sua satisfação, por ver que
encontrava apoio num dos componentes do grupo, muito
embora soubéssemos perfeitamente que este não o estava
apoiando, mas certamente o estava favorecendo
involuntariamente. Sentiu-se fortalecido e disse, mesmo,
após longo tempo de conversa, que não se retirava - esta é
outra técnica intimidadora, que ainda estudaremos - com a
clara intenção de desmoralizar o doutrinador, que ficaria
falando sozinho.
Há, pois, excelentes razões para manter como regra, de
raríssimas exceções, o princípio de deixar que apenas o
doutrinador fale com o manifestante. É através daquele que
atuam os Espíritos orientadores, que ficariam com seu
esforço dispersado se tivessem que dar atenção e atuar, via
intuição, sobre todos os componentes do grupo incumbidos
ou autorizados a falar com o Espírito.
O doutrinador tem que estar, assim, bem atento aos
seus companheiros encarnados, em torno da mesa, médiuns
ou não, para que se mantenham firmes nas suas posições, o
que é importante para o desenvolvimento das tarefas. Estes
companheiros não devem fechar-se na indiferença, quanto
ao que se passa, pois emprestam seu apoio vibratório
silencioso ao doutrinador; mas não devem cometer o
engano de se envolver na conversa, a ponto de, mesmo
mentalmente, interferir no difícil diálogo que o doutrinador
está tentando estabelecer, para perscrutar o arcabouço
psicológico e moral do seu interlocutor invisível.
Às vezes, os circunstantes encarnados, não bem
afinados afetivamente com o doutrinador, podem introduzir
perigosos fatores de desagregação no grupo, se persistirem
em acompanhar mentalmente a doutrinação, com um senso
crítico imprudente, imaginando o que diriam em tais
circunstâncias. Os Espíritos manifestantes têm,
frequentemente, condições de lhes captar o pensamento e,
se o fizerem, certamente tirarão partido da discrepância,
mesmo que ela fique manifesta. Por isso, tanto se insiste na
importância da fraternidade, entendimento e compreensão
entre todos os componentes do grupo encarnado. Não que o
doutrinador seja infalível, perfeito, nem que esteja sempre
certo e com a razão; mas ele precisará do apoio e da
compreensão de seus companheiros, ainda que tenha
falhado; e, com frequência, ele falha mesmo, porque o
terreno em que pisamos, no trato com esses irmãos
desarvorados. é difícil. imprevisível e traiçoeiro.
Dessa forma, alguém que não possa concordar com os
métodos empregados pelo doutrinador, a ponto de tornar-se
criticamente negativo, deve afastar-se do grupo. É possível,
claro, que ele esteja certo, e o doutrinador errado; mas é
melhor excluir-se, do que permanecer no grupo como um
ponto de atrito oculto, que mina o trabalho. Se não pode
ajudar, que, pelo menos, não acarrete maiores dificuldades.
Se ele estiver certo, na maneira de apreciar o trabalho do
doutrinador, e este não possuir, mesmo, condições para a
sua tarefa, as coisas encaminhar-se-ão para um desfecho
natural; se apenas crítica e discorda em razão de distorções
de sua própria psicologia, então nada tem a contribuir de
bom para o grupo e poderá acarretar-lhe considerável dano.
Lembremos, pois, a validade da regra que recomenda
que apenas o doutrinador fale com o Espírito manifestante.
É comum que este procure burlar a norma, tentando
arrastar outros membros do grupo ao debate. Convém a
eles a generalização da conversa, que afasta o doutrinador
e o coloca mais ou menos à margem, numa técnica muito
sutil de desmoralização.
Sob condições especiais, no entanto, é possível que
ocorra a necessidade, ou a conveniência de alguém mais
falar. Pode ser, por exemplo, que alguém, no grupo, tenha
qualquer problema pessoal com o Espírito manifestante, e
se sinta fortemente impelido a dizer-lhe uma palavra de
conciliação, fazer-lhe um pedido de perdão, um gesto de
fraternidade mais objetivo, além do pensamento. Também
pode acontecer que o Espírito manifestante sinta real
necessidade de uma palavra direta, com alguém presente
que, por amá-lo particularmente, pode ajudar a despertá-lo,
com a emoção de uma voz que há muito não ouve, ou com
um gesto de que se lembre com saudade.
Em casos assim, o doutrinador julgará, segundo sua
intuição ou a instrução dos mentores, permitindo que outra
pessoa fale ao Espírito. Claro que, mesmo assim, deve
continuar atento, seguindo com extremo cuidado o diálogo,
para retomá-lo quando julgar necessário, porque cabe a ele
a responsabilidade por esse aspecto da tarefa; é ele quem
está preparado para ela, em vista de suas ligações com os
companheiros espirituais, através dos dispositivos especiais
a que nos referimos alhures, neste livro.
Fora desses casos, que insistimos em qualificar de
excepcionais, deve prevalecer a regra geral do silêncio e da
sustentação psicológica aos médiuns e ao doutrinador.
Outra norma subsidiária: os circunstantes, como
componentes encarnados do grupo, vigiem bem seus
pensamentos. Mantenham-se atentos ao diálogo, mas não
se envolvam nele, nem mesmo por palavras inarticuladas,
ou seja, apenas pensadas.
Enquanto isso se passa, a conversa prossegue. Ainda
não dispõe, o doutrinador, de elementos suficientes para
formular um juízo acerca do caso que tem diante de si.
Talvez já saiba, por exemplo, a que veio o Espírito, ou seja,
descobriu a razão pela qual foi atraído ao grupo. Estamos
tentando, digamos, subtrair, de sua influência obsessiva,
alguém que nos pediu ajuda. Mas é preciso saber por que
ele (ou ela) persegue o companheiro encarnado. Qual a sua
ligação com o obsidiado? De onde vem, no tempo e no
espaço, o choque que se criou entre eles? Em suma: quais
são as fixações do Espírito? Todo processo obsessivo tem o
seu núcleo: traição, vingança, espoliação, desamor. É, quase
sempre, um caso pessoal, de conotações essencialmente
humanas, com problemas suscitados no relacionamento.
Dificilmente um Espírito obsidia outro apenas porque
discorda dele em questões filosóficas ou religiosas, embora
isto também seja possível, em casos extremos de fanatismo
apaixonado.
Deixemo-lo falar, mas não tudo quanto queira, senão
ficará andando em círculo, à volta de sua ideia central.
Neste caso, continuará a repetir incessantemente a mesma
cantilena trágica: a vingança, o ódio, a impossibilidade do
perdão, o desejo de fazer a vítima arrastar-se no chão, como
um louco varrido, e coisas semelhantes. O doutrinador
precisa ter bastante habilidade para mudar o rumo de seu
pensamento. Terá que fazê-lo, não obstante, com muita
sutileza, arriscando, aqui e ali, uma pergunta mais pessoal,
falando-lhe de uma passagem evangélica, que se aplique
particularmente ao seu caso e sempre haverá uma ou mais,
que se adaptam perfeitamente às circunstâncias. Deixe-o
falar, porém. Se grita e esbraveja, procure apaziguá-lo. Não
se esquecer de que, por mais errado que esteja, no seu ódio
irracional, ele está convencido dos seus direitos e, até
mesmo, da cobertura divina. Muitos são os que invocam os
dispositivos da Lei Maior, para exercerem suas vinganças e
perseguições. Além do mais - dizem - se podem fazer
aquilo, é que Deus o permite. Ele não tem poderes para
fazê-lo cessar tudo? Por que não exerce tais poderes?
Atenção, pois, para essas ideias fixas. Por mais voltas
que dê o Espírito, mesmo com a intenção consciente de
ocultar sua motivação, ele não conseguirá isso por muito
tempo.
No entanto, é preciso ajudá-lo a quebrar o terrível
círculo vicioso em que se debate. Veja bem: ajudá-lo a
quebrar, não quebrar, arrancá-lo à força. Ele tem que sair
com seu próprio esforço. Ajudar a fazer não é o mesmo que
fazer, pelos outros, aquilo que lhes compete realizar.
Por outro lado, a fixação é, às vezes, tão pronunciada e
tão absorvente, que o Espírito não tem condições, sequer,
de ouvir o doutrinador, ou, pelo menos, não reage de
maneira inteligível ao que este lhe diz. Isto não significa que
o doutrinador deve calar-se; continue a falar-lhe, que as
palavras irão insensivelmente se depositando nele, e
mesmo que ele pareça não ouvir - e isso ocorre, mesmo, em
certos casos - seu próprio espírito sente as vibrações
fraternas que sustentam as palavras. Se é que o
doutrinador realmente sente o que fala ou, melhor ainda,
fala o que de fato sente.
Aguarde-se, pois, o momento de ajudá-lo a sair um
pouco de si mesmo. Tem que haver, na sua memória, outras
lembranças, outros sentimentos e até mesmo outras
angústias, além daquela que constitui o núcleo da sua
problemática. Coloque, de vez em quando, uma pergunta
diferente, procurando atraí-lo para outras áreas da sua
memória. Como, por exemplo: teve filhos? Que fazia para
viver? Crê em Deus? Onde viveu? Quando aconteceu o
drama? Tem notícias de amigos e parentes daquela época?
É claro, porém, que essas perguntas não devem ser
desfechadas numa espécie de bombardeio ou de
interrogatório. Ninguém gosta de submeter-se a devassas
íntimas. Com frequência, os manifestantes reagem,
perguntando se estão sendo forçados a processos
inquisitoriais. Ou, simplesmente, se recusam a responder.
Ou dão respostas evasivas... respondem.
Nem sempre estarão prontos para nos ajudarem a
ajudá-los, logo nos primeiros contatos. O processo pode
alongar-se por muito tempo, até que adquiram confiança
em nós e nas nossas intenções.
O objetivo das perguntas não é, obviamente, o de
satisfazer a uma curiosidade malsã e, por isso, devem
limitar-se a conduzir a conversação, fornecendo-lhe pontos
de apoio, sobre os quais ela possa expandir-se, a fim de
afastar o pensamento do comunicante, ainda que
temporariamente, do núcleo central que o bloqueia e o
impede até mesmo de buscar a saída daquele círculo de
fogo e lágrimas em que se encerrou inadvertidamente. Não
nos esqueçamos, porém, de que espontaneamente ele não
sairá, não porque não queira, mas porque não sabe. Sua
vingança é a própria razão de ser de sua vida; como vai
entregá-la a alguém - a um desconhecido bisbilhoteiro,
como o doutrinador - a troco de uma realidade penosa, que
é aquele momento patético em que ele descobre que a
causa da sua dor está em si mesmo, e não na pessoa que
ele persegue e odeia?
Além das fixações penosas, os Espíritos conturbados
costumam apresentar cacoetes, sob a forma de trejeitos e
contrações, ou, ainda, mutilações e deformações
perispirituais. É certo que tudo isso está ligado ao problema
interior que os atormenta.
Já tivemos oportunidade de observar esses pormenores,
aparentemente irrelevantes, de muitas maneiras e sob
variadas condições. Vamos a alguns exemplos: citei alhures,
neste livro, o episódio do pobre irmão que tinha um braço
paralisado. Notei que durante o diálogo ele não
movimentava aquele membro. Por que seria? No momento
que me pareceu oportuno, sem precipitação, perguntei-lhe o
que havia com o seu braço. Ele não quis dizer. Ou,
provavelmente, nem saberia conscientemente a razão,
porque costuma funcionar, nestes casos, um mecanismo de
defesa, que parece construir uma barricada às nossas
costas, para levar-nos a um conveniente esquecimento do
passado. Simplesmente “esquecemos” das causas que nos
levaram àquela situação, para poder fixar-nos no objeto do
ódio e da vingança. Não sei, ao certo, se ele sabia a razão
da paralisia de seu braço. Se sabia, tentava ignorá-la.
Quando me propus a curá-lo por meio de passes, ele
recusou - sem muita convicção - dizendo que, se ficasse
curado, seria apenas para ter mais um braço para
empunhar o chicote. Mesmo assim, levantei-me, orei e dei-
lhe passes ao longo do braço imobilizado, e vi logo que ele
reagia, sentindo o impacto dos fluídos que o alcançavam. E,
realmente, ficou bom, voltando a movimentar o braço. Só
então, ao que parece, foi possível liberar o seu mecanismo
de censura, e ele se lembrou da cena de um passado
distante, quando sacrificou, a punhal, a esposa e os filhos,
que ele acreditava não fossem seus, pois achava que ela o
havia traído. Exposto o âmago do problema, seu drama
resolveu-se.
Outro sentia, ainda, a dor aguda de uma lança que o
penetrara há séculos, quando terminou uma existência de
inconcebíveis desatinos. Continuava preso ao local onde
exercera um poder discricionário, a ouvir os comentários de
visitantes e turistas sobre suas próprias atrocidades.
Um terceiro tinha a voz rouca - seria um antigo câncer? -
e quase inaudível. Sua “cura”, por meio de passes, levou-o
a um reexame bem menos apaixonado da figura de seu
doutrinador, que ele chamara até de porco!
Outro companheiro desorientado conservava feia
cicatriz sobre o olho direito, porque ela lhe dava uma
aparência terrível, que atemorizava aqueles a quem ele
queria perseguir e afligir.
Em uma oportunidade, tivemos também um caso,
intensamente dramático, de um pobre sofredor,
guilhotinado na França, durante a Revolução. Desde então -
segundo apuramos em seguida - trazia a cabeça “destacada
do corpo”, na mão direita, segura pelos cabelos. O diálogo
inicial foi difícil, pois convicto de que estava sem cabeça,
ele não tinha condições de falar. A custo, porém, o fui
convencendo de que podia falar através do médium. Vivia
apavorado ante a ideia de perder de vista a cabeça e nunca
mais recuperá-la. Enquanto a tivesse ali, à mão, mesmo
decepada, alimentava a esperança de “repô-la” no lugar.
Isto foi possível fazer, com a graça de Deus. Oramos e lhe
demos passes. Subitamente, ele sentiu que a cabeça
voltara à sua posição correta. Louco de alegria, ele
apalpava-se e só sabia repetir:
— Ela está aqui! Ela está aqui!...
E conferia, com a ponta dos dedos, toda a anatomia
facial e craniana: os olhos, o nariz, a boca, as orelhas.
Estava tudo lá. E dizia:
— Posso falar! Estou falando!
Queria saber quem fizera o “milagre” de “colar” a
cabeça novamente no lugar próprio. Quanto ao que lhe
acontecera, não acreditava que Deus o tivesse feito, para
castigá-lo, pois Deus não permitiria que um homem andasse
sem cabeça por tanto tempo. Levo-o cautelosamente para
uma introspecção, tentando fazer que ele encontre em si
mesmo a razão do seu espantoso sofrimento. Explico-lhe
que vivemos muitas existências, embora as esqueçamos.
Em alguma de suas vidas anteriores ele encontraria a
explicação. “Provavelmente”, digo-lhe, “você andou
também cortando a cabeça de alguém”. É verdade, isso. Ele
se lembra, agora, que eram infiéis a Jeová e, depois de
condenados, ele os executava. Reviu até a fila de espera...
Casos mais sérios de deformações espirituais exigem o
concurso de médiuns especiais, não apenas para recebê-los,
por incorporação, como, também, para ajudar na
recomposição da forma “física”, para o que é necessário
dispor de algum ectoplasma, além dos passes habituais.
Mesmo para o companheiro a que há pouco nos
referimos, de cabeça decepada, o concurso de um médium
de efeitos físicos foi decisivo. Enquanto lhe dávamos passes,
ele parecia absorver os fluídos avidamente, procurando
impregnar-se deles, com movimentos aflitivos das mãos.
Em outros casos de deformações perispirituais e
zoantropia, o médium expeliu realmente grande quantidade
de ectoplasma pela boca, o que se percebeu, mesmo sem a
vidência, pelos movimentos irreprimíveis que fazia como se
estivesse vomitando em seco.
Ainda falaremos sobre a ectoplasmia nos grupos
mediúnicos, porque ela tem outras aplicações, além da, que
há pouco mencionamos, de ajudar a reconstituir lesões
perispirituais e recompor seres reduzidos a formações
animalizadas.
***
Mas o diálogo prossegue. Suponhamos já ter sido
possível identificar o núcleo principal do problema. Já
descobrimos as razões fundamentais do seu drama. Não
obstante, muito falta ainda para dissolver e dispersar
aquele núcleo doloroso. Mesmo com tudo isso presente à
sua consciência, ele ainda insiste em racionalizar a seu
jeito, o quadro que se lhe apresenta. Continua a submetê-lo
ao seu próprio juízo e a invocar o seu direito à cobrança.
Já discutimos alguns aspectos teóricos desta questão.
Teoricamente, sim, ele pode cobrar. Não que tenha um
direito assegurado nos códigos divinos, porque a ideia de
direito implicaria, talvez, a da impunidade. Não sei se os
juristas que me leem concordam com isto, mas parece que
não podemos ser punidos por exercer uma ação que o
direito nos assegura. É claro que não falo aqui no direito
humano, imperfeita imitação dos conceitos superiores do
Direito Cósmico, do qual conhecemos as primeiras letras.
Creio que, se Deus me assegurasse o direito de cobrar,
impunemente, pela vingança, uma falta cometida contra
mim, sua lei não teria sido muito melhor do que a nossa.
Não obstante, tanto numa, como noutra, existe a ideia
básica da reparação. A sociedade humana tenta a reparação
pelos caminhos da punição; a divina, pela regeneração.
O criminoso terreno deve pagar pelo que fez,
independentemente do que acontece com aquele a quem
ele prejudicou. A lei humana não toma conhecimento da
sobrevivência do espírito. A lei divina pede do ser, através
de sua própria consciência, que ele se recomponha perante
a sua vítima. Ante a lei humana, a prisão ou a indenização
redimem o criminoso; a lei divina vai adiante e lhe pede a
reconciliação, mesmo que, em face dos códigos terrenos,
ele esteja quite. Por outro lado, a lei humana não leva em
conta o fato de que o homem sofre justamente aquilo que
está nos seus compromissos cármicos, respondendo por
desatinos cometidos. E se não colocamos um ponto final
nessa espiral de horrores, ela continuará a abrir-se para
baixo e para o futuro, cada vez mais dolorosa e ampla.
Dessa forma, não haveria direito líquido e certo de
cobrarmos, nós mesmos, as faltas cometidas contra nós,
pois que direito é esse, que reabre o ciclo da culpa e nos
obriga a pagar aquilo que consideramos simples reparação?
Mas, como explicar tudo isso, de forma convincente, ao
Espírito tumultuado pela paixão da vingança? Como iremos
mostrar-lhe a falácia da sua filosofia da reparação? Em
muitos casos, ele já está convencido dessa realidade, ou
seja, a de que, exercendo a vingança por suas próprias
mãos, ele se inscreve novamente como culpado, no tribunal
invisível da sua própria consciência. Não importa. Ele quer
cobrar, assim mesmo. Quando chegar a hora da dor, ele
arcará com as suas responsabilidades, e as sofrerá, diz ele,
com prazer, porque pelo menos terá saciado o seu rancor.
Não sabe ele, porém, que o rancor não se satisfaz nunca,
muito menos pelos caminhos do sofrimento alheio. Por mais
absurda que pareça a tese ao vingador, o seu ódio somente
se estanca, e somente o libera da sua própria dor, pelo
perdão. Sacudido pela tormenta das suas paixões, ele nem
percebe que também sofre, e que continua retido,
indefinidamente, no processo que ele próprio criou. Se
conseguirmos despertá-lo para essas verdades, estaremos
começando a ajudá-lo.
Nem sempre lhe adianta uma bela pregação moral,
sobre as virtudes teológicas do perdão. Ele não se mostrará
sensível ao apelo, enquanto não se convencer de que isso é
uma realidade irresistível, que o interessa pessoalmente.
Às vezes, basta uma pergunta bem colocada, no
momento oportuno. Acha ele, por exemplo, que, com mais
um século ou dois de rancor, vai conseguir o que não
conseguiu em dois ou três? Pretende continuar preso à roda-
viva da aflição? Por quanto tempo? Não está cansado? Não
deseja experimentar ao menos um pouco de paz? Pare e
reflita, medite, procure encarar o processo, com
objetividade e sangue-frio, como se estivesse apreciando
um caso, não o seu caso. Por que manter dois Espíritos
amarrados, vida após vida, revezando-se nas posições de
perseguidor e perseguido? Além do mais, a vítima às vezes
se lhe escapa irrevogavelmente das mãos pelo próprio
sofrimento que lhe é infligido, pelo despertamento de seu
Espírito, pelo esforço que faz em ajustar-se perante as leis
divinas. E então o perseguidor não terá mais como atingi-lo.
Poderá ainda insistir em persegui-lo indiretamente, através
de seres que lhe são caros, mas isto é uma vingança
frustrada e o satisfaz ainda menos do que a outra. Ao longo
do tempo ele ficará falando sozinho, na alienação da sua
vingança sem objeto. Um dia despertará, afinal, para
retomar a sua caminhada. E por que esperar tantos
desenganos, se esse dia pode ser hoje, agora?
31 - LINGUAGEM ENÉRGICA
Sem dúvida alguma, a tônica do nosso diálogo com os
irmãos desnorteados é a paciência, apoiada na
compreensão e na tolerância. Nada de precipitações e
ansiedades. Bastam as ansiedades do irmão que nos visita
e, se pretendemos minorá-las, temos que contrapor, às suas
aflições, a nossa tranquilidade. Se o companheiro é
agressivo e violento, o esforço deve ser redobrado, da nossa
parte, em não nos deixarmos envolver pela sua “faixa”. A
voz precisa continuar calma, em tom afável, sem precisar
ser melosa; mas é imprescindível que seja sustentada pela
mais absoluta sinceridade e por um legitimo sentimento de
amor fraterno, sem pieguice.
Isto não exclui, por certo, a necessidade, às vezes, de
uma palavra mais enérgica; mas, o momento de dizê-la tem
que ser buscado com extrema sensibilidade, tato e
oportunidade. E, se for necessário dizê-la, é preciso que a
voz não se altere a ponto de soar violenta, autoritária ou
rude. A energia não está no tom de voz, mas naquilo que
dizemos.
Certo Espírito apresentou-se nos, certa vez, em estado
de terrível agitação. Caíra em poder de implacável
hipnotizador, que o reduzira ao mais extremo desespero.
Aproveitando-se da incorporação ao médium e da proteção
do grupo, falou aflitivamente de seu problema. Este é o
irmão a que já me referi, ao contar que, depois de recolhido
pelos trabalhadores espirituais, recaíra em poder de seu
perseguidor. Quando me levanto para ajudá-lo, reclama, em
altos brados e com desprezo, que de nada valem meus
passes e minhas preces. Deseja morrer, desintegrar-se.
Contraditoriamente, diz, a seguir, que se vingará
implacavelmente de seu obsessor, quando conseguir pegá-
lo. Está possuído de intenso ódio e de muita revolta. A uma
palavra minha, diz que sim, que pediu a Deus, mas que isso
de nada adiantou.
Este é o momento em que certa dose de energia torna-
se de imperiosa necessidade. Ele foi recolhido, pelo nosso
grupo, em estado de pânico e aflição indescritíveis, pois
desencarnara, muito jovem, em condições dolorosas e
trágicas. Foi socorrido e encaminhado a uma instituição
hospitalar do Espaço. A despeito de todo o cuidado, e do
carinho de nossos dedicados irmãos, resvala novamente no
precipício da desarmonia, que o recoloca à mercê de seus
perseguidores. Agora, mais desarvorado do que nunca,
exige uma solução para o seu caso, deblaterando contra a
ineficácia dos nossos métodos de trabalho.
É hora de falar-lhe com mais firmeza, ainda que sem o
mais leve traço de arrogância, de ressentimento ou de
condenação. Ele precisa, ainda e sempre, de compreensão e
de esclarecimento, mas tem que reconhecer, também, que
Deus não se acha à nossa disposição, para atender a
qualquer capricho ou cumprir ordens.
Digo-lhe, pois, que ele não pediu a Deus; ele tentou
exigir de Deus um imediato alívio para os seus males, que,
afinal de contas, são decorrência de suas próprias faltas
contra a lei divina. Não é assim que as coisas funcionam.
Por outro lado, também não posso lhe tirar a dor, como num
passe de mágica. Ele deve convencer-se de que precisa ser
mais humilde, mais paciente. A essa altura, porém, seu
hipnotizador, que se achava presente, recomeçou a
indução, para impedir que ele escapasse novamente do seu
poder.
Um deles tentou aliciar a atenção de um dos
componentes do grupo - uma jovem senhora - explorando
sua repugnância por baratas e ratos. Dizia que a sala estava
cheia de baratas “astrais”, que subiam pelo corpo dela, e de
ratos que corriam de um lado para outro. Tomou um
pequeno lenço, que se achava sobre a mesa, e largou-o
sobre as mãos que ela conservava pousadas sobre os olhos
fechados. Ela se manteve firme, e eu também não lhe disse
nada, deixando-o “brincar” um pouco. Durante nossa
conversa anterior - confirmada no prosseguimento do
diálogo - ele nos dera inequívoca demonstração de
capacidade intelectual, poder de oratória, habilidade como
argumentador, agressividade e arrojo. Era um líder, um
“professor” de Doutrina Espírita. A cena com as “baratas” e
os “ratos astrais” era, no mínimo, incongruente, e revelava
desespero, como quem apela para um recurso extremo,
quando falham os outros. Percebera, por certo, que não
conseguia convencer-nos pela argumentação. Achei, porém,
que não era ainda a oportunidade de falar-lhe, mais a sério,
sobre os seus “recursos”.
Na reunião seguinte pareceu-me que o momento
propício chegara. A certo ponto, desviei sua conversação
animada, sobre a “doutrina” de Kardec, para o problema
das baratas:
— Como é que você - disse-lhe eu - um homem assim
inteligente e culto, que se diz líder e mestre, faz uma
brincadeira como aquela, de baratinhas e ratinhos astrais?
Ele parece ter sido apanhado de surpresa; pensou,
talvez, que, como eu deixara passar a ocasião de falar, na
sessão anterior, o episódio ficara esquecido. Algo
desconcertado, disse-me, evasivamente, como quem se
desculpa:
— Foi o que encontrei aqui...
Mas estava evidentemente desbalanceado, e, muitas
vezes, um pequeno incidente, como este, facilita-nos o
acesso à verdadeira motivação da sua problemática. Mas,
não nos esqueçamos, o momento tem que ser oportuno e,
para isso, só podemos contar com a intuição, dado que os
Espíritos que nos ajudam não nos transformam em meros
repetidores de suas palavras; eles nos orientam e assistem,
mas deixam a nosso critério a condução do diálogo.
Raramente interferem e, quando isto se torna imperioso,
fazem-no com extrema discrição, limitando-se a transmitir
uma pequena informação, para que o próprio doutrinador a
desenvolva, com seus recursos.
Em casos excepcionais, sob condições especiais,
mentores espirituais, presentes, incorporam-se em outros
médiuns, para doutrinar o Espírito manifestado. É comum,
nestes casos, falarem com inusitada energia e firmeza, e, no
entanto, sem o menor traço de rancor, de impaciência, de
agressividade. Um desses companheiros amados, certa vez
disse um “Basta!”, com incontestável autoridade, ao
Espírito que deblaterava com arrogância e impertinência.
O problema da palavra enérgica é, pois, extremamente
delicado. Se pronunciada antes da hora, no momento
inoportuno, pode acarretar inconvenientes e perigos
incontornáveis, pois que não podemos esquecer-nos de que
os Espíritos desarvorados empenham-se, com extraordinário
vigor e habilidade, em arrastar-nos para a altercação e o
conflito, clima em que se sentem muito mais à vontade do
que o doutrinador. Se este “topar a briga”, estará
arriscando-se a sérias e imprevisíveis dificuldades. Não
pode, por outro lado, revelar-se temeroso e intimidado. Esse
meio-termo, entre destemor e intrepidez, é a marca que
distingue um doutrinador razoável de um incapaz, pois os
bons mesmo são raríssimos. E aquele que se julga um bom
doutrinador está a caminho de sua própria perda, pois
começa a ficar vaidoso. Os próprios Espíritos
desequilibrados encarregam-se de demonstrar que não há
doutrinadores impecáveis. Muitas vezes envolvem,
enganam e mistificam. Se o doutrinador julga-se
invulnerável e infalível, está perdido: é melhor passar suas
atribuições a outro que, embora não tão qualificado
intelectualmente, tenha melhor condição, se conseguir
manter-se ao mesmo tempo firme e humilde.
A interferência enérgica é, pois, uma questão de
oportunidade; precisa ser decidida à vista da psicologia do
próprio Espírito manifestante, e da maneira sugerida pela
intuição do momento. Nunca deve ir à agressividade, à
irritação, à cólera, e jamais ao desafio. Qualquer um de nós
redobra suas energias, quando desafiado. É humano, é
incontestavelmente humano, esse impulso. Quando alguém
põe em dúvida um, que seja, dos nossos mais modestos
atributos, tratamos logo de provar que, ao contrário, é
naquilo que somos bons.
Ademais, seria desastroso recuar, intimidado, depois de
uma observação mais enérgica. O Espírito perturbado tiraria
disto o melhor partido possível, para os seus fins. Uma das
muitas armas que manipulam, com extrema habilidade, é a
do ridículo. Se cairmos na tolice de dizer-lhes algo que não
podemos sustentar, ou em que transpareça uma pequena
pitada de cinismo, de hipocrisia ou de prepotência,
estaremos em apuros muito sérios.
É preciso, pois, estarmos atentos e preparados para
interferir com mais energia, certos de que firmeza não é
estupidez, nem grosseria, e que o mais profundo amor
fraterno pode e deve coexistir no mesmo impulso de
exortação franca e corajosa. Precisamos saber quando dizer
que eles estão errados, e por quê. Nada de gritos e murros
na mesa.
Esses momentos de firmeza são também necessários
quando o Espírito entra no processo que costumo chamar
de “crise”, ou seja, quando começa a perceber que está
cedendo. Ainda veremos isto mais adiante, neste livro.
Baste aqui dizer que a energia, neste caso, tem que ser
ainda mais adoçada, encorajadora, e não repressiva.
Em suma, a palavra enérgica é necessária,
indispensável, mesmo, em frequentes ocasiões, porque em
muitos casos é fator decisivo no despertamento do irmão
aturdido; mas deve ser dosada, com extrema sensibilidade,
e, o momento certo, escolhido com seguro tato.
32 - A PRECE
A fé e o amor são os dois grandes instrumentos de
trabalho do doutrinador. Ainda voltaremos a falar sobre o
amor, esse tema inesgotável, fonte de belezas eternas, de
reservas inexauríveis de energia criadora, de harmonias
insuspeitadas, sempre a nos surpreender com o seu infinito
potencial.
A fé e o amor causam impactos espantosos em nossos
irmãos infelizes. Quantas vezes tenho ouvido depoimentos,
de comovedora sinceridade, de Espíritos aturdidos ante a
evidência desses sentimentos:
— Que fé absurda tem você! - disse-me um deles.
Ele não queria dizer que a minha fé era falsa,
extravagante, ilógica ou irracional; ele se surpreendia em
achá-la tão legítima, tão viva, tão firme.
E acrescentou, estupefato:
— O mundo pode desabar em cima de você, que você
não se importa.
Bem dizia o nosso Paulo, especialista em tais assuntos,
que “a fé é a garantia do que se espera, a prova das
realidades invisíveis” (Hebreus, 11:1). E que, mesmo depois
de tudo dito e vivido, subsistiriam “a fé, a esperança e o
amor, os três...” (Primeira Epístola aos Coríntios, 13:13.)
Uma fé assim é preciso para orar pelos nossos queridos
irmãos desarvorados. A força e o poder da fé transmitem-se
à prece, enunciada com emoção e sinceridade.
Citando os seus amigos espirituais, Kardec escreve, em
“O Evangelho Segundo o Espiritismo” (capítulo 28):
“Os Espíritos hão dito sempre: “A forma nada vale, o
pensamento é tudo. Ore, pois, cada um segundo suas
convicções e da maneira que mais o toque. Um bom
pensamento vale mais do que grande número de palavras
com as quais nada tenha o coração.”
Estes ensinamentos são, na verdade, preciosos, para
qualquer tipo de prece, em qualquer oportunidade, mas são
de capital importância na prece que formulamos pelo
Espírito desajustado que temos diante de nós, incorporado
ao médium. Kardec torna isto particularmente claro, quando
diz, mais adiante, no mesmo capítulo de “O Evangelho
Segundo o Espiritismo”:
“A qualidade principal da prece é ser clara, simples e
concisa, sem fraseologia inútil, nem luxo de epítetos, que
são meros adornos de lantejoulas. Cada palavra deve ter
alcance próprio, despertar uma ideia, pôr em vibração uma
fibra da alma. Numa palavra: deve fazer refletir. Somente
sob essa condição pode a prece alcançar o seu objetivo; de
outro modo, não passa de ruído. Entretanto, notai com que
ar distraído e com que volubilidade elas são ditas, na
maioria dos casos. Veem-se lábios a mover-se; mas, pela
expressão da fisionomia, pelo som mesmo da voz, verifica-
se que ali apenas há um ato maquinal, puramente exterior,
ao qual se conserva indiferente a alma.”
Lembro que os destaques não são meus; estão no
original. De transcendental importância, para os trabalhos
de desobsessão, é a observação de que a prece “deve fazer
refletir”. Muitas vezes, é durante a prece, dita em voz alta
pelo doutrinador, ou por alguém por ele indicado no grupo,
que o Espírito manifestante faz uma pequena pausa para
pensar. A prece o envolve em vibrações pacificadoras, em
uma ternura que, talvez há muito não experimente. Ela
deve ser elaborada em torno da própria temática que o
companheiro nos tenha revelado, no decorrer do diálogo
conosco.
Como tudo o mais que tentamos realizar nos grupos de
desobsessão, a prece tem seu momento psicológico ótimo,
que varia, necessariamente, de um caso para outro. Em
certas ocasiões é preciso orar ainda no princípio da
manifestação, em virtude de o estado de agitação, ou de
alienação, do Espírito, não nos permitir colher, antes, um
pouco da sua história e da sua motivação. O melhor, no
entanto, é esperar um pouco, aguardar esclarecimentos e
informações que - nunca é demais recomendar - não devem
ser colhidas em interrogatórios e através dos artifícios da
bisbilhotice.
No momento propício - e mais uma vez temos que
recorrer à intuição e ao senso de oportunidade - convém
dirigir-se ao próprio Espírito e propor-lhe a prece.
Dificilmente ele recusará, e, ainda que o recuse, devemos
fazê-la, mesmo porque, não devemos pedir-lhe permissão
para orar, e sim comunicar-lhe que vamos fazê-lo. Basta
dizer, por exemplo:
— Vamos orar?
Ou:
— Agora vou fazer uma prece.
Como disse, dificilmente ele se oporá. Poderá, no
máximo, dar um muxoxo desinteressado, ou fazer um
comentário condescendente:
— Pode orar, se quiser...
Curioso, no entanto, que muito raramente eles
procuram perturbar a prece. Geralmente ouvem-na em
silêncio, senão respeitoso, pelo menos comedido. Alguns, no
entanto, insistem em continuar falando, zombando ou
ridicularizando. Um deles procurou dramatizar as minhas
palavras, tentando reproduzir, em gestos, que acreditava
muito cômicos, as imagens contidas no sentido das palavras
pronunciadas.
A prece deve ser dita de preferência de pé, ao lado do
companheiro manifestado, com as mãos estendidas para
ele, como que a concentrar nele as vibrações e as bênçãos
que invocamos. Alguns informam depois, ou durante a
prece, que se acham “defendidos”, “protegidos” por
“couraças” e “capacetes” invioláveis, nos quais - esperam
eles - as energias suscitadas pela prece não poderiam
penetrar.
Dirija a sua prece a Deus, a Jesus ou a Maria, pedindo
ajuda para o companheiro que sofre. Se já dispõe de alguma
informação sobre ele, fale especificamente de seu
problema, como um intermediário entre ele e os poderes
supremos que nos orientam e amparam. Eles se
esqueceram, às vezes por séculos, e até milênios, de que
esses canais de acesso estão abertos também a eles. Não
têm mais vontade, ou interesse, de se dirigirem a Deus. Ou
lhes falta coragem, por julgarem-se além de toda
recuperação, indignos e incapazes de projetarem o
pensamento a tão elevadas entidades.
Em alguns casos, costumo orar não apenas pelo Espírito
manifestante, mas como se fosse ele próprio, com as
palavras e as emoções que ele mesmo escolheria para
dirigir-se ao Pai ou a Jesus, se estivesse em condições de
fazê-lo.
Certa ocasião, muito crítica e importante, a prece foi
elaborada como se partindo de nós dois: o doutrinado e o
doutrinador, pois estávamos envolvidos muito
profundamente em compromissos mútuos. Dirigi-me à doce
Mãe de Jesus, colocando diante dela o problema de dois
seres que haviam errado gravemente, julgando servi-lo.
Ambos havíamos sofrido, ao longo dos séculos, por causa
daqueles enganos. Já era mais do que tempo de chegarmos
a um entendimento e colocarmos ponto final naquela
penosa e aflitiva desarmonia, para que, juntos, como irmãos
que éramos, conseguíssemos retomar, ambos, a nossa
caminhada, sem os rancores que nos prendiam a um
passado lamentável. Fosse Ela a advogada da nossa causa e
nos ajudasse a encontrar os caminhos da paz.
Ele ouviu a prece, em silêncio, e acabou cedendo.
São incríveis a força e o impacto de uma prece límpida,
pura, singela, escorada na emoção e no afeto. O efeito é
“milagroso”, surpreendente, ainda que nem sempre
instantâneo. São muitos os sofredores que se enquistaram
de tal maneira atrás de suas defesas e de suas couraças,
que precisam de algum tempo para deixarem-se alcançar, a
ponto de realizar-se neles o milagre sempre renovado do
amor. Estes ainda riem, por algum tempo, da prece - um
riso nervoso, sem convicção. Estão com medo, pobres
irmãos. Medo da emoção que os leva à crise, e da crise que
os leva à dor que os espera ao longo do extenso caminho de
volta...
Entre continuar numa dor que já conhecem, e que se
encontra anestesiada, e entregar-se a outra que
desconhecem, preferem ficar como estão. A prece muito
contribui para vencer estas últimas inibições e hesitações.
Ela os leva a alguns instantes de pausa, no curso dos seus
pensamentos habituais. Representa uma experiência da
qual se desabituaram, ou com a qual não se acham
familiarizados.
Alguns deles, quando pedimos para orar conosco,
recusam-se, mas não tentam impedir-nos. Outros, quando
propomos que eles orem também, desculpam-se
desajeitadamente, dizendo que “ali não há condições”. Isto
é especialmente invocado pelos companheiros que foram
prelados. Como se julgam alienados da doce intimidade do
Cristo, por exemplo, não se sentem encorajados a “falar”
com Ele através da prece. Desculpam-se, então, com a
impropriedade do ambiente, a falta dos paramentos e dos
livros adequados. Não são poucos os que continuam, no
atormentado mundo espiritual em que vivem, a celebrar
suas missas, oficiar os ritos e os sacramentos a que
estiveram habituados na vida terrena; mas, no fundo,
sabem que aquilo é estranho à simplicidade e à
autenticidade do Cristo e de seu Evangelho. Por isso,
quando convidados a orar de verdade, sentem-se atônitos e
temerosos, embora reagindo, exteriormente, como se não
dessem nenhuma importância a qualquer ato de contrição,
ou como se somente pudessem exercê-lo com os
apetrechos a que se habituaram. Não podemos esquecer-
nos de que são muitos os que praticaram, a vida inteira, ou,
mesmo, vida após vida, um culto formal e frio, aparatoso e
vazio, no qual o coração e a fé não se envolveram. Para
esses pobres companheiros desarvorados, até mesmo a
prece, manifestação mais pura do diálogo entre o homem e
Deus, transformou-se em mero instrumento de poder,
esvaziando-se de todo o seu elevado e nobre conteúdo.
Com essa prece aviltada e despovoada de emoção, pediram
favores insólitos a Deus, ou pronunciaram julgamento sobre
o próximo. Não é de admirar, pois, que ao cabo de tantos
desenganos, passem a não crer nela, ou continuem a
entender que a prece é para isso mesmo, ou seja, para
exigir favores de uma divindade servil, cega e injusta, que
nos concede aquilo que não merecemos, ou não concede o
que julgamos merecer.
A reação, pois, difere de um caso para outro, mas pode
ser grupada dentro de classificações mais ou menos
didáticas, como acima esboçado. Há, pois, os que se
comovem; os que ouvem, em respeitoso silêncio, mas ainda
precisam de tempo; os que a ridicularizam, porque temem
seus efeitos; os que se recusam a dizê-la, por julgarem-se
indignos, ou não necessitados; e os que se acham de tal
maneira alienados, que oram até mesmo com certa
veemência, convencidos de que Deus, ou o Cristo, virá
imediatamente em seu socorro, para livrá-los da situação
em que se encontram, diante de um doutrinador
impertinente.
Um deles tomou a iniciativa de pedir-me para orar.
Disse-lhe que não me cabia autorizar um ato desses, por me
faltar autoridade para fazê-lo. Ele ainda comentou a minha
atitude, algo surpreso, e preparou-se para orar. Recolheu-se
a uma postura correta, juntando as mãos em frente dos
olhos fechados do médium, aguardou alguns momentos de
silêncio respeitoso e se pôs a orar a Jesus, com muita
veemência. Falava em nome da “equipe humilde” do Cristo,
e nada pedia para eles próprios, porque o Cristo sabia de
suas necessidades e aspirações; mas pedia para nós, os
componentes do grupo, que estávamos muito necessitados
de socorro e orientação. Sua prece era um tanto oratória e,
de fato, depois nos deu uma demonstração de seus
recursos de pregador, falando com entusiasmo e brilho, a
uma plateia invisível a nós.
É possível que ele fosse sincero no seu apelo, porque o
fanatismo é, às vezes, de intensa e desastrosa sinceridade;
mas, no seu caso, continuei com a impressão de que aquele
era apenas mais um dos inúmeros mecanismos usados para
fuga. Na profunda intimidade do seu ser, ele deveria
realmente acreditar que era um excelente trabalhador do
Cristo, a quem orava com todo o fervor. Enquanto isso,
estava ao abrigo de suas próprias contradições íntimas, de
suas responsabilidades maiores, e continuava a negacear
diante da difícil decisão de abandonar o poder e a glória,
descer do pedestal de grande mestre, ou líder, para voltar a
ferir os pés descalços, pelos caminhos espinhosos da
recuperação, de coração sangrando, espicaçado pelo
remorso.
Sendo, pois, a fé, “a garantia do que se espera e a prova
das realidades invisíveis”, a prece é o convite para que a
esperança se realize em nós, ou diante de nós. A prece é o
instrumento do amor grande e puro de que nos falou o
Cristo; é por ela que a caridade nos faz agentes da
Divindade.
É por ela que conseguimos alçar o nosso espírito,
aprisionado ainda no erro, às culminâncias da esperança.
Paulo apresentou juntos a fé, a esperança e o amor. A prece
nos liga porque, apoiada na fé, contempla a esperança e
ajuda-nos na doação do amor.
33 - O PASSE
A técnica do passe magnético, nas sessões de
desobsessão, merece algumas observações específicas.
Tão difundida está hoje, pelo menos no Brasil, a ideia do
passe, que até os dicionários comuns contêm definições
aceitáveis dele, como, por exemplo, o de Caldas Aulete e o
da Academia Brasileira de Letras, organizado pelo Professor
Antenor Nascentes, que dizem basicamente a mesma coisa:
— Passes, pl. passagens que se fazem com as mãos por
diante dos olhos de pessoa que se pretende magnetizar, ou
sobre a parte doente da pessoa que se pretende curar por
força mediúnica.
É certo que a definição não cobriu todo o campo de ação
do passe, mas, que mais se poderia exigir de um dicionário
não especializado em fenomenologia espírita?
André Luiz, informando sobre o passe, do ponto de vista
da medicina humana, declara, em “Evolução em Dois
Mundos”, capítulo 15:
— “Pelo passe magnético, no entanto, notadamente
aquele que se baseia no divino manancial da prece, a
vontade fortalecida no bem pode soerguer a vontade
enfraquecida de outrem, para que essa vontade, novamente
ajustada à confiança magnetize naturalmente os milhões de
agentes microscópicos a seu serviço, a fim de que o Estado
Orgânico, nessa ou naquela contingência, se recomponha
para o equilíbrio indispensável.”
Pouco antes, dissera ele que:
“Toda queda moral, nos seres responsáveis, opera certa
lesão no hemisfério psicossomático, ou perispírito, a refletir-
se em desarmonia no hemisfério somático ou veículo carnal,
provocando determinada causa de sofrimento.”
Retomando o tema, em “Mecanismos da Mediunidade”,
observa ainda, esse mesmo autor espiritual, que o passe “é
sempre valioso no tratamento devido aos enfermos de toda
classe, desde as crianças tenras aos pacientes em posição
provecta na experiência física, reconhecendo-se no entanto,
ser menos rico de resultados imediatos nos doentes adultos
que se mostrem jungidos à inconsciência temporária, por
desajustes complicados do cérebro. Esclarecemos, porém,
que, em toda situação e em qualquer tempo, cabe ao
médium passista buscar na prece o fio de ligação com os
planos mais elevados da vida, porquanto, através da
oração, contará com a presença sutil dos instrutores que
atendem aos misteres da Providência Divina, a lhe
utilizarem os recursos para a extensão incessante do Eterno
Bem”.
Observamos que os textos aqui reproduzidos referem-se
especificamente ao passe curador, aplicado em seres
encarnados. Como sabemos, porém, o passe é utilizado
também para magnetizar, provocando, nesse caso, o
desdobramento do perispírito, e até o acesso à memória
integral e consequente conhecimento de vidas anteriores,
segundo experiências de Albert de Rochas, reiteradas
posteriormente por vários pesquisadores.
A literatura sobre o passe magnético é vasta, mesmo
fora do âmbito estritamente doutrinário do Espiritismo, de
vez que o magnetismo foi amplamente cultivado na Europa,
no século passado, principalmente na França.
Poucos estudos existem, ao que sabemos, sobre o passe
aplicado aos seres desencarnados, não apenas para fins
curativos de disfunções perispirituais, como para provocar a
regressão de memória. Parece, no entanto, lógico inferir que
o mecanismo é idêntico ao passe aplicado em seres
encarnados. Os ensinamentos de André Luiz permitem-nos
concluir assim, quando informam que o passe magnético,
apoiado na prece, constitui poderoso fator de reajustamento
para os desencarnados cujos perispíritos se acham lesados
em decorrência de quedas morais.
O perispírito, como veículo da sensibilidade e
intermediário entre o Espírito e o ambiente em que vive,
está presente, tanto no encarnado como no desencarnado.
Sua estrutura, embora mais sutil noutro campo vibratório, é
similar à do corpo físico, pois é ele o modelador da nossa
organização material. Dessa forma, o Espírito desencarnado,
incorporado ao médium, torna-se facilmente acessível ao
passe magnético e, portanto, aberto aos benefícios que o
passe proporciona.
Na prática da desobsessão, tenho tido oportunidade de
observar as possibilidades e recursos do passe sobre
companheiros desencarnados e creio poder contribuir com
algumas observações, ainda que preliminares, mas bastante
encorajadoras.
Sem dúvida alguma, o passe é recurso válido nos
labores mediúnicos, mas deve ser empregado com certas
cautelas e com moderação. Nesse campo, definições
precisas e definitivas não existem ainda, pelo simples fato
de que o ser humano, além de ser uma organização
consciente extremamente complexa, é imprevisível. O
passe, como todos os demais recursos com que procuramos
socorrer os nossos irmãos desencarnados em crise, precisa
ser ministrado no momento certo, com a técnica adequada
e na extensão necessária. Mas, qual o momento, qual a
técnica e qual a extensão, para cada caso? Não podemos
ainda - e creio que não poderemos fazê-lo tão cedo -
escrever normas rígidas para a tecnologia do passe sobre os
desencarnados.
No entanto, os amigos espirituais que tão
generosamente se colocaram ao nosso lado, para orientar e
apoiar o nosso trabalho de doutrinação, têm-nos trazido
sempre o estímulo dos seus ensinamentos, e creio que
algumas observações já estão mais amadurecidas e em
condições de mais aprofundados estudos e
desenvolvimento. Nunca é demais lembrar que, neste
campo de trabalho, o conhecimento real emerge da
experimentação, de um ou outro engano, de falhas e de
êxitos, mas que, em hipótese alguma, deveremos enveredar
imprudentemente pelas trilhas da fantasia, desligados dos
conceitos fundamentais da Doutrina Espírita, tal como
codificada por Kardec e suplementada pelos seus
continuadores. A teorização somente é válida quando
escorada na experiência, mas não devemos esquecer que a
recíproca também é legítima, ou seja, a experimentação
deve balizar-se dentro daqueles conceitos fundamentais que
a Doutrina e a lógica já confirmaram. Não sei se me faço
entender. Talvez um exemplo ajude a esclarecer o que tenho
em mente ao escrever isto.
As faculdades psíquicas, como sabemos, são, em si
mesmas, neutras. Tanto podem ser empregadas nas tarefas
do bem, como nas outras. Podem também ser
desenvolvidas e treinadas por métodos limpos, altamente
éticos, com seriedade e respeito, ou por meio de processos
aviltantes, hediondos e totalmente desprovidos de qualquer
compromisso com a moral. Os rituais da magia negra
também revelam e desenvolvem faculdades psíquicas, mas
por processos abjetos que, em virtude de permanecerem
em segredo, pouca gente tem noção do nível de
degradação a que podem levar. É fácil imaginar que tipo de
mediunidade e que pactos sinistros emergirão desses
métodos sinistros, e que tenebrosos compromissos
acarretarão para o Espírito.
Em contraposição a tais processos, a identificação da
mediunidade em potencial e o seu desenvolvimento, em
termos de Doutrina Espírita, devem resultar de cuidadoso
planejamento, estudo metódico e prática bem orientada,
mesmo porque, qualquer trabalho mal orientado, nesta
fase, pode criar vícios de difícil erradicação posterior.
Creio que princípios gerais semelhantes a esses
aplicam-se também ao estudo do passe, nas sessões de
desobsessão. Ele é realmente o recurso válido e potente, no
trato dos nossos irmãos desencarnados; sua técnica, não
obstante, precisa ser desenvolvida com muita prudência e
seriedade.
A primeira norma que poderíamos lembrar é a de que
não deve ser aplicado a qualquer momento,
indiscriminadamente, e por qualquer motivo. O passe
provoca reações variadas no ser humano, encarnado ou
desencarnado. Ele pode serenar ou excitar, condensar ou
dispersar fluídos, causar bem-estar ou incômodo, curar ou
trazer mais dor, provocar crises psíquicas e orgânicas, ou
fazê-las cessar, subjugar ou liberar, transmitir vibrações de
amor ou de ódio, enfim, construir ou destruir.
Precisamos estar sempre protegidos pela prece e pelas
boas intenções, sempre que nos levantamos para dar
passes num irmão desencarnado incorporado. Mas, para
que dar passes?
Em vários casos ele pode ser aplicado, mas é preciso
usá-lo com moderação, para que, ao tentarmos acalmar um
Espírito agitado, não o levemos a um estado de sonolência
que dificulte a comunicação com ele, justamente do que
mais precisamos. Se temos necessidade de dialogar, para
ajudá-lo, como vamos entorpecê-lo a ponto de levá-lo ao
sono magnético? Às vezes, no entanto, isso é necessário. Já
debatemos por algum tempo o seu problema; o que, tinha
que ser dito, pelo menos por enquanto, foi dito, e ele
continua agitado. Neste caso, o passe pode ajudá-lo a
serenar-se. De outras vezes, é necessário mesmo
adormecê-lo, a fim de que, ao ser retirado pelos mentores,
seja recolhido a instituições de repouso, para tratamento
mais adequado, ou trazido na sessão seguinte, em melhores
condições de acesso.
O passe ajuda também a desintegrar certos apetrechos
que costumam trazer, como “capacetes”, “couraças”,
“objetos” imantados, armas, símbolos, vestimentas
especiais. Para isto serão passes de dispersão.
Com o passe, podemos mais facilmente alcançar-lhes o
centro da emoção, transmitindo-lhes diretamente ao
coração as vibrações do nosso afeto, que parecem escorrer
como uma descarga elétrica, ao longo dos braços.
O passe cura dores que julgam totalmente “físicas”, pois
localizam-se muito realisticamente em pontos específicos
de seus perispíritos. Com passes - e neste caso precisamos
também de um médium que tenha condições de exteriorizar
ectoplasma - poderemos reconstituir lhes lesões mais sérias
ou deformações perispirituais.
Com o passe os adormecemos, para provocar
fenômenos de regressão de memória ou projeções mentais,
com as quais os mentores do grupo compõem os “quadros
fluídicos”, tão necessários, às vezes, ao despertamento de
Espírito em estado de alienação.
Com o passe podemos também ajudá-los a livrar-se da
indução hipnótica alheia, ou da própria, isto é, da auto
hipnose.
De todos esses aspectos temos tido experiências
altamente instrutivas e algumas de intensa dramaticidade.
Já relatei algumas ao longo destas páginas. Veremos outros
exemplos.
São mais frequentes as oportunidades em que é preciso
adormecer o Espírito, especialmente ao fim da conversa, de
modo a serem conduzidos pelos trabalhadores
desencarnados.
É também comum o trabalho de “desfazer” vestimentas
especiais, dentro das quais se julgam protegidos de nossos
fluídos. Certo Espírito, além de capacete e couraça, ligava-
se por um fio, segundo nos explicou, ao seu grupo.
Cinquenta companheiros seus haviam ficado reunidos, em
rigorosa concentração, para sustentá-lo na sua “perigosa”
missão junto a nós. O passe pode “desfazer” os fios que
ligam Espíritos aos seus redutos. Desta vez, porém, as
ligações foram mantidas e, no devido tempo, os mentores
do grupo utilizaram-se daqueles condutos para levar ao
grupo deles uma vigorosíssima carga fluídica, que os
desarvorou completamente.
Numa dessas ocasiões, o fio também foi preservado,
para que, através dele, se “retransmitisse”, aos comparsas
do Espírito manifestado, as palavras que ele ouvia do
doutrinador.
Com mais frequência do que seria de supor-se, somos
instruídos a provocar a desintegração de objetos e
apetrechos, como no caso daquele que nos trouxe, para fins
muito bem definidos, um invisível prato de sangue, que
depositou sobre a mesa.
São também constantes os fenômenos de regressão de
memória, quase sempre reportando-se a vidas anteriores,
nas quais se escondem núcleos de problemas afetivos, O
passe ajuda os Espíritos, a despeito deles mesmos, nesses
mergulhos providenciais no passado, mas nem sempre
necessariamente em vidas anteriores. Lembro-me, a
propósito, de um doloroso e comovente caso. O Espírito era
agressivo, violento e de dificílima abordagem. Seu problema
central é a mãe. Tem-lhe ódio mortal. Ao que parece,
destacou-se na vida, mas nunca pôde esquecer-se de suas
origens e perdoar a progenitora por ter sido uma pobre e
infeliz peixeira do cais. Quando vê diante de si o Espírito de
sua mãe, de braços estendidos, grita-lhe impropérios
terríveis, manda-a de volta ao cais, ameaça bater-lhe e
humilha-a de todas as maneiras. Creio que ele não
conheceu o pai e, segundo diz, sofreu humilhações na
escola, por causa de sua vida miserável, numa época de
preconceitos muito severos. Ajudados por nossos passes, os
amigos espirituais fazem com ele uma regressão de
memória, até à infância, quando, muito pequeno, ainda
aceitava a mãe, porque dependia dela e a consciência do
seu drama interior estava adormecida. Ele se tornou
sonolento e, com voz mansa, começou a chamar pela mãe,
até que adormeceu sobre a mesa e foi retirado.
Na semana seguinte, voltou novamente com todo o
ímpeto, agora agravado pelos “ardis” que utilizamos contra
ele, na sessão anterior. Ainda muito difícil, está pelo menos
em condições de ouvir melhor o que lhe digo. Começo a
pedir-lhe que procure compreender a mãe. Ele sabe que o
espírito é imortal e que vivemos muitas vidas. Por que razão
teria ele, por exemplo, escolhido aquela mãe, e não outra? É
porque já estava ligado a ela anteriormente. Ademais, sabia
ele das obsessões de que ela fora vítima? Foi isto,
precisamente, que rompeu o dique das suas emoções
represadas: ele próprio fora seu obsessor, enquanto ela se
encontrava na carne e ele permanecia no mundo espiritual.
A sua reencarnação através dela foi um recurso da lei divina
do reajuste, necessário a ambos. Num “flash” doloroso, ele
compreendeu todo o seu drama terrível e entrou numa
tremenda crise de remorso.
Ao cabo de uma longa conversa - e agora é o momento
em que o doutrinador precisa de maior sensibilidade ainda -
ele é novamente adormecido e levado.
Em suma: o passe tem importante lugar no trabalho
mediúnico, mas precisa ser utilizado com prudência e sob
cuidadosa orientação dos trabalhadores desencarnados.
Não deve ser empregado para atordoar o manifestante,
exatamente quando precisamos de sua lucidez para
argumentar com ele sobre o seu problema; mas, às vezes,
precisa ser aplicado exatamente para serená-lo e prepará-lo
para outra ocasião, em que se apresentará mais receptivo.
Tenho perfeita consciência das dificuldades que o problema
oferece e do embaraço em que me encontro para ser mais
específico na formulação de observações concretas e de
normas de ação mais definidas. Em assuntos dessa
natureza, é melhor confessar a escassez de conhecimentos
do que arriscar-se a ditar regras que não estão nitidamente
definidas pela experiência. Se posso sugerir alguma coisa, é
que exercitem com parcimônia o recurso do passe em
Espíritos desencarnados e observem atentamente seus
efeitos e possibilidades. Um dia saberemos mais acerca
desse precioso instrumento de trabalho, no campo
mediúnico.
34 - RECORDAÇÕES DO PASSADO
Somos o nosso próprio passado. Dormem soterradas nos
tenebrosos porões do inconsciente as razões das nossas
angústias de hoje, tanto quanto estão em nós as conquistas
positivas, que lutam por consolidar-se na complexidade da
nossa psicologia, tentando suplantar os apelos negativos
que insistem em infelicitar-nos. Estamos a caminho da
redenção quando damos apoio consciente às tendências do
bem em nós, quando estimulamos, com as nossas lágrimas,
e cultivamos, com amor e sofrimento, as sementeiras da
paz. Se, ao contrário, nos deixamos dominar pelas sombras
que trazemos no íntimo, paramos no tempo, enquanto se
aprofundam em nós as raízes do desequilíbrio, no terreno
fértil das paixões que julgamos tragicamente indomáveis,
quando são, simplesmente, indomadas. É preciso saber que
cabe a nós - e a ninguém mais - domá-las; mas, enquanto
nos apraz o erro, todo o nosso esforço é posto na tarefa
inglória de manter soltas as paixões, e presas as
recordações.
São de incontestável importância estas noções, no
trabalho de desobsessão. Para o Espírito atormentado pelos
seus desequilíbrios, o futuro não importa, o passado não
interessa e o presente é a única realidade que aceitam e
manipulam livremente, segundo os impulsos do momento.
Comprimidos numa estreita faixa de presente, que
procuram viver com toda a intensidade possível, entre um
futuro que ainda não existe e um passado que procuram
ignorar, esquecem-se de que não poderão, jamais, fugir às
suas responsabilidades e compromissos.
Quando os advertimos dessas incongruências funestas,
respondem-nos que não estão preocupados com o futuro,
dado que, ao chegar a vez de sofrerem pelos seus erros,
saberão fazê-lo com dignidade e coragem. Esperam,
naturalmente, ser tão valentes perante a dor própria,
quanto o são perante a alheia. Trágico e doloroso engano é
esse; mas, que se há de fazer? Temos a impenitente
propensão para rejeitar como inválida a experiência alheia.
Quanto mais arrogante e belicoso o companheiro
desarvorado, maior a dor que experimenta ao despertar
para as realidades que procurou ignorar por tanto tempo. A
dor dos grandes criminosos é terrível, comovedora, trágica,
desesperada, nesses momentos dramáticos em que o
Espírito se acha completamente aturdido ante a enormidade
de seus erros.
Para abrir diante dele uma janela sobre si mesmo, a
chave mais importante de que dispõe o doutrinador consiste
em levá-lo a contemplar seu próprio passado, fortemente
protegido pelos mecanismos do esquecimento deliberado.
Talvez por isso escreveu Sholem Asch, na abertura de “O
Nazareno”:
“Não o poder de recordar, e sim o poder de esquecer,
constitui uma das condições necessárias à nossa
existência.”
O escritor judaico não positivou no livro a sua crença na
reencarnação, embora seja essa a temática de que se
utilizou para elaborar a sua estória, mas não se pode negar
a sua intuição da verdade. É precisamente por isso que a
sabedoria divina determinou que se apagasse em nós, ao
tomarmos novo estágio na carne, a lembrança das
existências anteriores. Que seria de nós, se fôssemos
obrigados a viver sob o tropel das pungentes recordações
de antigos e medonhos erros?
É preciso, no entanto, distinguir bem uma coisa da
outra. O esquecimento proporcionado ao Espírito, na fase da
reencarnação, é uma bênção, uma concessão, para que ele
tente a reconstrução de si mesmo, como se estivesse
momentaneamente desligado das suas culpas, embora
ainda responsável por elas. Com a finalidade de conceder-
lhe todas as oportunidades, e colocar à sua disposição os
melhores instrumentos, o esquecimento do passado
constitui dádiva preciosa, que nem sempre ele sabe avaliar.
Retornando, não obstante, à sua condição de espírito
desencarnado, pode ser-lhe facultado o acesso à memória
integral, para que faça um inventário geral de seu acervo
espiritual - as aflições que remanescem e as conquistas que
já conseguiu realizar.
Esse momento é crítico, na trajetória evolutiva do
Espírito. Novamente se vê ele numa das inúmeras
encruzilhadas da vida: por um lado, poderá prosseguir no
áspero caminho da redenção; conseguiu abrandar algumas
arestas mais contundentes do seu caráter e desenvolver
umas poucas virtudes embrionárias. É seguir em frente, em
nova aventura na carne, depois de uma pausa, para refazer-
se, no mundo espiritual. É certo que, por aí dificilmente ele
irá à glória imediata, ainda que efêmera, ou ao poder, que
talvez ainda o fascine; é mais certo que continue o percurso
da dor, da renúncia, dos desenganos, porque a redenção
ainda vem longe, para aquele que muito errou.
Do outro lado, está o caminho aparentemente mais fácil
e certamente mais convidativo do adiamento. Ficam para
depois as conquistas sobre nós mesmos. Vamos primeiro
“gozar” a vida, dominar o semelhante, açambarcar o poder,
acumular riquezas materiais, viver, enfim, intensamente,
irresponsavelmente, alegremente. Depois, veremos como
acertar essas contas com o que, por largos séculos ou
milênios, teimamos em chamar de destino. É aquele que
opta por este caminho, que também decide pelo
esquecimento. Suas angústias são muitas, seus remorsos
extremamente penosos, e ninguém pode gozar a vida com
esse lastro de aflições. O melhor, mesmo, é esquecê-las,
sepultá-las, ignorá-las, como se o passado não existisse
mais em nós, e o futuro nunca fosse existir.
Dentro dessa lógica atormentada, encerra-se o Espírito
endividado num círculo de fogo, de sua própria criação. Só
poderá sair queimando-se; enquanto permanecer ali, está
abrigado de si mesmo. Para proteger-se do calor que faz à
sua volta, congela o coração, pois, além disso, o frio
anestesia a sensibilidade e o imuniza da dor alheia.
Está pronto o obsessor para a sua tarefa. É só, agora,
sair em campo, buscar seus comparsas, perseguir seus
inimigos e construir um nicho para si mesmo, no mundo
espiritual, ligando-se a tenebrosas organizações, dentro das
quais os membros protegem-se mutuamente, enquanto
mutuamente se servirem. Dentro de pouco tempo - e que é
o tempo, em tais condições? O passado, que foi recalcado
para os subterrâneos da memória perispiritual, passa à
condição de não-existente. É como se a vida principiasse
novamente, do ponto em que a inocência a deixou, há
milênios sem conta, O Espírito, assim envolvido, acaba por
acreditar-se uma criatura sem passado, embora, adstrito à
incoerência dos alienados, utilize-se, em proveito próprio,
de todo o acervo de experiências e conhecimentos que traz
em si, daquele mesmo passado que renega.
Se é verdade, pois, que temos de descobrir uma fórmula
para levá-lo a recordar, é igualmente verdadeiro que se
torna extremamente difícil fazê-lo, porque é justamente
disso que ele foge. Quantas vezes os temos surpreendido a
advertirem-se do “perigo” que representa, para eles, caírem
na faixa da recordação. Como reagem, como relutam, como
temem os fantasmas interiores, que lhes pareciam
desintegrados para sempre na poeira do tempo!...
Vários recursos são empregados, pelos mentores
espirituais dos grupos de desobsessão, para obter dos
companheiros desarvorados o mergulho necessário nas
lembranças recalcadas.
Um dos mais comuns é o da projeção dos chamados
“quadros fluídicos”. O Espírito vê, diante de si,
incoercivelmente, cenas vivas de seu passado,
especialmente aquelas que constituem o núcleo de sua
problemática, que precisa ser dispersado, para desatar os
laços que o prendem às suas angústias e ao seu
alheamento. É evidente que as cenas não são criadas com a
substância evanescente da fantasia; a matéria-prima,
indispensável a essas montagens, encontra-se nos arquivos
perispirituais do ser ali presente. Os técnicos desencarnados
limitam-se a manipular, com respeito e dignidade, os
recursos necessários para desencadear o processo
terapêutico, como o médico que ministra um remédio
amargo, justificado pela expectativa da cura de seu doente.
Não temos, ainda, os encarnados, condições e
conhecimentos para apreender a essência das técnicas
empregadas para a obtenção das projeções. André Luiz
deixa-nos entrever tais processos, em “Missionários da Luz”,
quando narra o trabalho de doutrinação junto a um ex-
sacerdote desencarnado: “... vários ajudantes de serviço -
escreve ele, no capítulo 17 - recolhiam as forças mentais
emitidas pelos irmãos presentes, inclusive as que fluíam
abundantemente do organismo mediúnico, o que, embora
não fosse novidade, me surpreendeu pelas características
diferentes com que o trabalho era levado a efeito.”
— “Esse material - explicou o instrutor - representa
vigorosos recursos plásticos, para que os benfeitores de
nossa esfera se façam visíveis aos irmãos perturbados e
aflitos, ou para que materializem provisoriamente certas
imagens ou quadros, indispensáveis ao reavivamento da
emotividade e da confiança nas almas infelizes.”
(Destaques desta transcrição.)
O instrutor prossegue, explicando que, com essas
formas de energia, recolhida dos encarnados presentes,
podem os benfeitores espirituais prestar certos serviços
importantes àqueles que se encontram ainda presos ao
padrão vibratório da carne, não obstante já se acharem
desligados dela, às vezes, há muito tempo.
Ante o impacto dessas imagens, que parecem surgir
límpidas, vivas e dramáticas, de um passado que julgavam
morto, os irmãos desarvorados parecem saltar o círculo de
fogo que os envolve, e, como se do lado de fora de si
mesmos, têm uma pausa para reexame de suas posições
desesperadas. Afinal de contas, o que estão fazendo? Que
loucura é aquela em que mergulhamos? De onde vem tudo
isso, no passado, e até onde irá, no futuro?
Um desses companheiros atormentados, antissemita
irredutível, viu os quadros do êxodo no antigo Egito, onde
foi um dos membros sacrificados da corte do faraó.
Recuando mais, porém, foi encontrar raízes muito mais
profundas, do drama, na antiga Babilônia, onde, em posição
diferente, enfrentara o difícil problema da longuíssima saga
do povo hebreu. Pela primeira vez, em muito tempo,
perguntou-me, algo perplexo:
— Será que isso não tem fim?
Senti que a pergunta era mais dirigida a ele próprio do
que a mim, mas, disse-lhe que sim, podemos pôr um ponto
final nesses círculos viciosos, que buscam eternizar-se
dentro de nós, por um esforço da nossa vontade, que só é
possível depois de compreendermos a inutilidade do ódio e
a força invencível do amor.
Às vezes, o Espírito acha-se tão profundamente
condicionado ao clima vibratório mais grosseiro, que se
torna necessário aos benfeitores utilizar ectoplasma,
produzido por médiuns de efeitos físicos, não apenas para
adensar as formas perispirituais de companheiros
desencarnados, que devem tornar-se visíveis, como
verificamos no texto de André Luiz, acima transcrito, como
para formar os próprios “quadros”. Num caso
particularmente difícil que tivemos, um dos médiuns
começou a expelir ectoplasma, enquanto eu dialogava com
o Espírito incorporado. A certa altura, o ectoplasma formou,
para a sua visão, as letras de um nome de mulher, antigo
amor, cuja lembrança ele procurava recalcar nos porões da
memória.
Em outro caso, de vigorosa dramaticidade, o Espírito
viu, sobre a mesa, um grosso livro, encadernado em capa
de madeira, sobre a qual estava seu nome, escrito em belos
caracteres de bronze. Era a história de sua própria vida. Ele
sabia que precisava abri-lo, mas não se sentia encorajado.
Era, evidentemente, um recurso, para levá-lo ao reexame
de seus atos, ao passado, enfim. Depois de muita
relutância, fez o gesto de virar a capa. A primeira página
estava em branco! Fez uma pausa e virou mais uma:
também em branco... Todo o livro estava em branco... A
lição era por demais óbvia: nada construíra naquela
existência tumultuada, durante a qual dominara povos, ao
poder da espada impiedosa.
As cenas são mostradas com todo o seu realismo: o
movimento, os sons, as cores, como se um “vídeo-tape” as
reproduzisse, com toda a sua intensidade e emotividade.
Com muita frequência, os Espíritos relutam em contemplá-
las, e procuram fugir das visões que, não obstante, tornam-
se irrecusáveis, e impõem-se, a despeito deles próprios.
A um deles a visão era de uma folha de papel e uma
pena. Cabia-lhe assinar o documento, que ele sabia ser uma
sentença de morte. Fizera-o, certamente, no passado, e
agora revia o momento dramático, com uma diferença:
alguém contemplava, a curta distância, fixando nele um par
de olhos tranquilos, cheios de amor fraterno, provavelmente
os de sua vítima. Seu desespero é atroz. Pede que lhe tirem
da frente o papel e a pena. Que lhe cortem a mão que
assinou a sentença e que fique cego, para não contemplar
mais aqueles olhos... Diz que matou uma santa, e informa:
“uns são canonizados e outros queimados”.
***
Muito frequente é a presença de antigos e esquecidos
amores: mães, esposas, filhos, ou amigos muito chegados
ao coração. Se fosse realizada uma pesquisa estatística
sobre tais manifestações, estou certo de que as mães
ocupariam o primeiro lugar, destacadamente. A pureza do
amor materno permanece inalterável, ao longo dos séculos
e das vicissitudes, arrosta as ingratidões, suporta as
humilhações, vence o ódio, vence tudo.
Lembram-se das cenas finais de “Libertação”? É a mãe
que vai buscar o filho amado, nas profundezas de seus
tenebrosos domínios. Ela alcançara, já há muito, as regiões
da felicidade; mas, e a dor de ter o seu amado preso ainda
às paixões do mundo? Vai ao seu encontro, numa descida
sacrificial às difíceis regiões em que ele vive e sobre as
quais reina, incontestado.
— “Sou Matilde - diz ela - alma de tua alma, que, um
dia, te adotou por filho querido e a quem amaste como
dedicada mãe espiritual.”
Quantas vezes temos assistido a reencontros
emocionados, que nos velam de lágrimas os olhos!
Lembro-me de um deles, em particular. O Espírito vinha
assediando-nos há tempos, semana após semana.
Manifestou-se, primeiro aparentemente muito calmo e
tranquilo. Disse que ia passando por ali e resolvera fazer-
nos uma visita. Nada queria de especial: iria apenas
observar-nos e, se fosse o caso, tomar suas providências”.
Deixou no ar a ameaça e partiu. Mal suspeitava eu da
demorada aventura que ali começava... Por algumas
semanas, observou-nos. Pouco falava nas suas
manifestações. Revelou, apenas, que já tinha sob seu
controle alguns daqueles que dispunham de maior
quantidade de “massa cinzenta”, mas começava a deixar
transparecer, também, certa preocupação, porque algum
delator, a seu ver, havia contado a nós os seus propósitos e
objetivos. Na vez seguinte suas preocupações estavam
ampliadas, porque descobriu que, através de processos de
regressão de memória, de nosso conhecimento, estávamos
penetrando certos núcleos. Nessa mesma noite, tem a
primeira visão de algo que muito o perturba. Adormece e
parte. Na semana seguinte não consegue mais manter-se
calmo, como das vezes anteriores. Está indignado, furioso.
Diz que tudo ruiu em torno dele. Tinha o poder de um
semideus, e “fomos mexer com a sua família!” Dá murros
na mesa, dominado pelo ódio e espicaçado pela
humilhação. Se pudesse, me pegaria, para mandar queimar-
me vivo! Acaba em pranto, de revolta e de impotência.
Em seguida, por outro médium, manifesta-se um
Espírito feminino e conta a sua dolorosa história. Foi mãe
daquele que acaba de retirar-se. Foi, por certo, a sua
presença ali, junto dele, que o perturbou há duas semanas.
— Ele é bom - diz ela - mas muito vaidoso. Ainda vê nele
o filho querido de quatro séculos atrás. Ela mesma ainda
não está bem. Sofre muito e foi trazida somente para
encontrar-se com ele. No passado, enquanto encarnados,
também teve um encontro dramático com ele. Ele a
abandonara à sua própria sorte e ela enveredara pela
degradação mais abjeta. Quando já se encontrava na
sarjeta, procurou-o e foi repelida. Ele se havia tornado muito
importante na hierarquia eclesiástica.
Os séculos se passaram, e tudo quanto ela esperava,
agora, era merecer novamente a oportunidade de ser mãe,
mãe digna. Digo-lhe que as mães são seres humanos e, por
isso, também erram. Ofereço-lhe a nossa ajuda, que ela
agradece, dizendo que tem de voltar para onde está, no
momento.
Com este caso, desencadeou-se extenso processo, que
se desdobrou em aspectos inesperados e de profundas
implicações. Nunca pudemos, no entanto, esquecer a ajuda
daquela mãe humilde, e ainda mergulhada nas dores do
resgate, que nos ajudou, com a sua presença amiga, a
despertar o valoroso Espírito que adormecera nas suas
paixões, embalado pelo amor ao poder.
Em caso semelhante a esse, o Espírito consegue divisar
a figura de sua mãe, ajoelhada diante dele, a pedir-lhe
perdão. Ele reluta e resiste, porque é este, precisamente, o
âmago de sua problemática: foi abandonado, por ela, à
roda, e por isso ele repete agora, a si mesmo, que não tem
mãe. Oramos, damos-lhe passes, e, por fim, ele não mais
resiste:
— Tenho mãe! - diz ele. - Não sou um desgraçado!
De outra vez, num caso a que já me referi alhures, o
Espírito tinha um problema pessoal comigo. Era questão
antiga, de mais de oito séculos! Em consequência desse, e
de outros desenganos, vagava ainda pelas trilhas da revolta
e do rancor. O problema era extremamente difícil, porque se
tratava de um caso em que o ódio concentrava-se
diretamente sobre um de nós, precisamente aquele que se
incumbia de doutriná-lo e esclarecê-lo. Ele se mantinha
irredutível, pois minha presença obviamente reanimava nele
as antigas paixões e frustrações, das quais não conseguira
desembaraçar-se. Foi num desses pontos críticos do diálogo
que outro médium me disse que um Espírito presente
desejava dizer alguma coisa diretamente a ele. Era sua
mãe. Elevei meu pensamento em prece e, com enorme
respeito, ouvi o diálogo através do tempo, entre a mãe
amorosa, que não esquecera e sofria com a ausência do
filho, e o filho que recusava obstinadamente o amor, porque
estava achando impossível viver sem o ódio e a vingança.
Pede-lhe ela, com infinito carinho e humildade, que
abandone aquela vida e venha para junto de seu coração.
Todos estão juntos na família; só ele está ausente. Não está
convencido de que ele a recuse. Deseja ouvir dele próprio a
negativa. E ele diz que não a quer mesmo, pois seu caso ali
é outro. Que ela não se meta; continue a fazer seus
bordados. Ela lhe lembra as velhas cantigas e aquele tempo
em que ele orava no quarto, em silêncio, junto de Deus.
Depois lhe diz que vai deixar o médium, pelo qual lhe está
falando, para aconchegá-lo junto ao seu coração. Ora,
comovidamente, à Mãe Santíssima, em palavras simples,
expondo o seu problema e as suas dores.
Quando conseguimos, afinal, despertar o amado
companheiro, dirijo a ela um pensamento de infinita ternura
e gratidão, porque estou certo de que, sem o seu concurso,
não o teríamos alcançado. Bem que ela poderia também ter
guardado certa mágoa de mim, porque fui um dos agentes
de sua angústia, mas não teve para mim uma palavra de
censura ou de amargor.
Em outro caso, também muito difícil, o Espírito,
autoritário e empolgado pelas suas ideias e pelo seu rancor,
recebeu, diante de nós, a visita de um menino (teria sido
seu filho ou neto?) que o desarmou com seu carinho, seus
apelos, sua ternura infantil, saltando, sem-cerimônia, para o
seu colo...
Basta um momento assim, de ternura, de recordação,
de amor, para que a luz penetre o coração angustiado
desses queridos companheiros, perdidos num dédalo de
sentimentos confusos, cercados de sombras, dominados
pela aflição.
De outras vezes, amigos e parentes acham-se
presentes, mas não se revelam à visão do Espírito
manifestado. Respeitemos suas razões, que usualmente são
válidas: não teria ainda chegado a hora do reencontro.
Numa dessas oportunidades, o Espírito viera dar uma
ajuda, no caso de um companheiro de quem estávamos
tratando. Em tempos idos, fora um dos principais
instrumentos dos terríveis desvarios daquele a quem
desejava, agora, ajudar a libertar de suas angústias. Mesmo
assim, ainda trazia ressaibos de ironia. Ao manifestar-se, fez
uma saudação:
— Divino! Divino!
E o médium dobrava-se sobre a mesa, de braços
estendidos, fazendo mesuras. Servira aos imperadores
romanos. Eles ainda se julgavam deuses, dizia. Estava,
porém, bastante lúcido. Informou-me de que, nesse ínterim
de quase dois milênios, tivera outras encarnações. Lamenta
a perniciosa influência que exerceu sobre os seus
soberanos, açulando-lhes paixões aviltantes. Eram pobres
criaturas desequilibradas, mas ele, não; estava
perfeitamente lúcido e consciente do que fazia, utilizando o
poder dos Césares para promover seus interesses
inconfessáveis. Por isso, estava ainda preso a eles. Quanto
ao Cristianismo, já sabia, naquele tempo, que era a doutrina
melhor, mas rejeitou-a deliberadamente, porque não lhe
convinha. Digo-lhe que precisa, agora, encarar seu antigo
amo, não como a um poderoso, mas como a um Espírito
infeliz, desarvorado e sofredor, que precisa de muita ajuda e
compreensão.
Promete ajudar e diz que o que o salvou foi a visão de
um homem pregado à cruz, na antiga Roma, e cujo olhar
não mais esquecera, através dos tempos. Aqueles olhos lhe
penetravam as mais profundas e ignotas camadas do ser.
Diz-me uma palavra de muito afeto e anuncia que ficaria
ali, ao lado, à minha direita, invisível ao seu antigo chefe,
pois não chegara ainda o momento de apresentar-se à sua
visão. Poderia perturbá-lo. E me diz, com inesquecível toque
de autenticidade, que “ele” era uma criança grande, fácil de
conduzir. Bastava dar-lhe a impressão de que a decisão
tomada fosse dele. Eu deveria fazer isso; só que agora, para
o bem, enquanto ele o fizera para o mal. Antes de desligar-
se do médium, disse-me, ainda, que sabia dos planos, já
assentados, a respeito da próxima encarnação de seu antigo
chefe, e que não iria ser nada fácil. Despedimo-nos com
uma palavra de afeição muito sincera e amiga. Este Espírito
deixou em mim uma sensação de fraternidade,
compreensão e simpatia. Conhecedor de suas próprias
aflições interiores, conservava-se, no entanto, consciente e
disposto a corrigir-se, muito embora sabendo que era longo
o caminho a percorrer, em vista da profundidade a que
descera.
Nunca sabemos, pois, que métodos e recursos
empregarão os nossos mentores espirituais, na sua nobre
tarefa de despertar os companheiros que permanecem
hipnotizados às suas angústias. Às vezes, utilizam-se da
projeção fluídica. Os quadros são apresentados com todo o
seu vigor e realismo, com cenários, personagens, cores,
sons, movimento, emoções, mas formados com “material”
sacado do subconsciente do Espírito, animado por meio de
recursos retirados, como explica André Luiz, dos presentes
em torno da mesa de trabalho. Esses quadros exibem
figuras humanas, também, é claro, mas continuam sendo
projeções.
De outras vezes, não obstante, é necessária a presença
real dos Espíritos ligados aos manifestantes, em recentes ou
antigas encarnações. Eles se apresentam aos seus olhos,
conversam com eles diretamente, ou através de outro
médium, ou se tornam semi-materializados, para poderem
impressionar seus sentidos, mais pela presença de suas
vibrações pessoais, do que pelo mero apelo da memória.
Nos casos em que essa presença se faz indispensável, os
benfeitores espirituais incumbem-se de localizar os Espíritos
ligados ao irmão que precisa de ajuda, e de trazê-los ao
ambiente do trabalho, ainda que estejam encarnados, quer
se encontrem endividados ou redimidos perante a lei. Já
vimos, aqui mesmo, caso em que o Espírito manteve o
diálogo com a antiga esposa - no momento encarnada - que
ele assassinara na Idade Média, num impulso de paixão e
ciúme.
É preciso, pois, muito respeito com o trabalho dos
nossos mentores invisíveis, depois, naturalmente, que eles
demonstrarem seus conhecimentos e sua capacidade, bem
como a segurança com que executam suas tarefas. Antes
que inspirem essa confiança em nós, seria arriscado segui-
los confiadamente, pois há Espíritos ardilosos, que se
apresentam revestidos de peles de mansos cordeiros, para
melhor dominar e impor as suas condições. Uma vez,
porém, identificados como autênticos trabalhadores do
Cristo, deixemos à sua iniciativa a condução dos trabalhos.
Isto não significa que devamos cruzar os braços e deixá-los
fazer tudo; assistir a tudo sem espírito crítico e sem a
necessária vigilância, de que tanto nos falam eles. Não é
tudo que eles podem fazer por nós. Mesmo o grupo mais
bem ajustado, integrado num trabalho sério e fecundo,
poderá ser sutilmente envolvido pelos ardis das sombras,
naquilo em que os nossos compromissos e erros passados
nos sintonizem com os companheiros desarvorados, muitos
deles nossos antigos comparsas.
É claro que os trabalhadores da seara do amor precisam
de nossa colaboração, de seres encarnados, pois, do
contrário, tudo fariam sem nós. Sabem eles, no entanto,
que há sempre, em nós, um componente de incerteza, de
falha, de descuido, que pode pôr tudo a perder. Eles nos
assistem com desvelado carinho, amparam-nos nas horas
de incerteza, ajudam-nos nos momentos de fraqueza e de
desânimo, mas não podem fazer, por nós, aquilo que nos
compete. Estejamos, pois, muito atentos.
Quanto à tarefa que lhes cabe, não obstante, estejamos
tranquilos: tudo será feito, desde o planejamento cuidadoso
até o último pormenor da execução, com todas as opções e
alternativas previamente examinadas. São eles que nos
preparam o trabalho, dão-nos o apoio, a inspiração, os
recursos e a sua presença constante, segura, tranquila.
É certo, porém, que não poderão garantir o resultado,
mesmo naquilo que lhes cabe fazer. Não estão manipulando
mecanismos cibernéticos, mas cuidando de seres humanos,
dotados de livre-arbítrio, imprevisíveis e, às vezes, muito
bem dotados intelectualmente, e que não se deixarão
conduzir pela mão, como crianças tímidas e ingênuas. Eles
sabem, por outro lado, que somos julgados não pelos
resultados que alcançamos, mas pelo esforço que
empregamos em atingi-los.
Procuremos respeitar-lhes o planejamento e a execução,
pois a visão que têm dos problemas suscitados é
incomparavelmente mais ampla do que a nossa, embora
não infalível, que infalível só é a visão divina. Naturalmente
que, de certa forma, participamos de algumas fases do
planejamento e dos contatos realizados no mundo
espiritual, acompanhando-os em excursões pelo mundo da
dor, durante os desprendimentos, mas nosso conhecimento
é muito limitado, para autorizar-nos a precipitar qualquer
situação. Se, por exemplo, ainda não é chegado o momento
de exibir uma projeção fluídica, não tentemos forçá-la, com
passes e sugestões verbais, ao Espírito manifestado. Se os
companheiros dele, ali presentes, devem ser exibidos à sua
visão, ou não, também ignoramos.
Enfim, a nossa posição é de ativa expectativa. Para isso,
precisamos (especialmente o doutrinador) estar com as
antenas psíquicas permanentemente sintonizadas com os
trabalhadores invisíveis, para captar lhes, através da
intuição, as sutis instruções que nos ministram. E,
definitivamente, não nos envaideçamos com o resultado do
trabalho realizado: cabe muito pouco, a nós, dos méritos.
Baste-nos a alegria do dever cumprido, a doce felicidade de
ter, uma vez mais, servido de humildes e imperfeitos
instrumentos da pacificação.
35 - A CRISE
O doutrinador precisa estar atento aos primeiros sinais
de que o Espírito manifestante começa a ceder, para que
ele próprio - doutrinador - possa reformular a sua tática.
Espíritos muito agressivos e violentos manifestam-se, de
início, irritadíssimos, em altos brados, dando murros na
mesa, proferindo ameaças terríveis. Não é possível, nessa
condição, argumentar com eles. É preciso esperar que o
vagalhão impetuoso do rancor se desfaça, por si mesmo, na
praia mansa. Se opomos resistência, a explosão é inevitável
e o dano pode ser irreparável. É preciso ter paciência e
esperar. Não ficar mudo ante a sua cólera, mas não opor
grito contra grito, murro contra murro. A cólera passa, pois é
muito difícil sustentá-la indefinidamente contra quem não
nos oferece resistência. Por este motivo, são tão
importantes os primeiros diálogos de cada manifestação.
Mesmo irritado, esbravejando, ameaçador, o Espírito deve
ser recebido com respeito e carinho. Se a conversa for bem
orientada, ele nos respeitará e, aos poucos, irá
compreendendo que não precisa gritar seus argumentos.
Nesses casos, costumo dizer, aos queridos companheiros
desatinados, que só grita aquele que não tem razão.
O fato, porém, de reduzir o volume de seu vozerio, não
significa que já esteja resolvido o seu problema; ao
contrário, é a partir desse ponto que começa a fluir o
diálogo que poderá levar-nos a um entendimento com ele e
ao seu eventual despertamento. Antes disso, a
argumentação é inútil, porque ele só deseja gritar, e, se o
tentarmos, falaremos juntos, ou ele não nos ouvirá,
pensando apenas no que nos dirá a seguir. Mas, pelo
menos, com a voz no tom normal, abre-se uma perspectiva
de entendimento, mesmo que ele esteja bem longe de
entregar-se à verdade. Encontra-se ainda convicto da
justeza de sua posição, e a batalha verbal poderá ser muito
longa; contudo, já é possível uma conversa entre dois seres
civilizados.
De certo ponto em diante, porém, a sensibilidade do
doutrinador o advertirá de que o manifestante começa a
ceder: sua cólera esvaziou-se, sua palavra não tem mais
aquele fator de convicção, seu Espírito parece cansado e
disposto a uma acomodação. Não que ele o reconheça
nesses termos, pois insistirá e poderá ter ainda surtos de
reação, lutando interiormente consigo mesmo, temendo ser
“dobrado” pelo doutrinador - o que é, para ele, uma
humilhação - mas, ao mesmo tempo, desejando-o
intimamente, ou inconscientemente.
Aos primeiros sinais de que a reação salutar começou, o
doutrinador deve abandonar sua técnica de contestação e
argumentação, para entrar na fase de doutrinação
propriamente dita. É hora de falar-lhe com carinhosa
franqueza, tentando mostrar-lhe a inutilidade de seu
desesperado esforço de lutar contra Deus e, portanto,
contra seus próprios interesses pessoais. É hora de fazer um
apelo para que ele se detenha um pouco, para pensar;
adverti-lo de que não precisa “converter-se” à nossa crença,
aos nossos princípios. Não iludi-lo com a paz imediata, que
ele sabe muito bem ser impossível: a luta continua à sua
espera, intensa e dolorosa como nunca, só que, uma vez
despertado para a realidade, ele poderá iniciar o período do
sofrimento redentor e não daquele que ainda mais o
mergulha nas profundezas do erro. O momento é oportuno,
também, para dirigir o seu pensamento para a sabedoria
eterna do Evangelho. Não que só agora seja possível falar-
lhe do Cristo: é que só agora os ensinamentos de Jesus
começam a ter, para ele, um sentido novo, aceitável. Mais
do que nunca, ele deve estar certo da nossa absoluta
sinceridade e do nosso afeto desinteressado. Ele precisa
saber que não estamos pelejando naquele momento, por
uma causa ou pelos interesses de um obsidiado, mas por
ele próprio, obsessor.
Argumentava eu, certa vez, com um desses
companheiros desarvorados, que perseguia sem tréguas
uma pobre criatura, quando ele me perguntou, irritado:
— Você é advogado dela?
— Não - disse eu - sou seu advogado!
Sabem que esta simples frase o levou a ver-me sob
nova luz e a aceitar-me? Daí por diante, começou a ceder.
Percebemos que a fase da aceitação chega por
pequeninos e quase imperceptíveis sinais: começam a
ouvir-nos com um pouco mais de atenção, a voz desce de
tom, aceitam um ou outro argumento nosso, e chegam até
a uma ou outra palavra de velada e tímida afeição ou
respeito. Um diálogo um tanto difícil, com o brilhante e
combativo Espírito de um ex-inquisidor, foi suspenso, certa
vez, a meu pedido, a fim de que eu pudesse fazer uma
prece. Como sempre, ele a ouviu em silêncio, pois a prece
tem esse condão de fazer calar a imensa maioria dos
Espíritos desajustados, mesmo os mais violentos. Terminada
a rogativa ao Alto, ele disse, como se pensasse em voz alta:
— Uma coisa é preciso reconhecer: você ora com
sinceridade...
A partir desse ponto, estarão mais acessíveis, mas a
batalha pode durar ainda muito tempo, alongar-se por
outras oportunidades de manifestação e, mesmo assim, não
sabemos, muitas vezes, se, ao partirem, eles estão
realmente convencidos e prontos a mudar de rumo, ou se
apenas levam uma disposição para reexaminar suas
convicções. De qualquer maneira, porém, levarão no
coração as sementes de um futuro, que pode ser próximo
ou remoto, mas que virão fatalmente a germinar, um dia,
em explosões de luz.
Ao cabo dessa fase de maior receptividade aos
pensamentos e à afeição do doutrinador, pode ocorrer,
então, a crise. É o momento mais dramático da
manifestação: o Espírito começa a sentir que não terá forças
para resistir aos apelos da Verdade. Está, ainda, sobre o fio
da navalha, como diz a expressão inglesa. Sente fugir o
terreno em que pisa. De um lado, a perder-se nas trevas do
passado, um terrível e doloroso acervo de loucuras e
desenganos lastimáveis, ilusões desastrosas e erros
clamorosos. Do outro, a incógnita do porvir. Ele se debate
entre os dois abismos: o passado e o futuro. Ambos o
chamam, ambos o atraem. Que decisão tomar? Permanecer
na faixa do erro que, de certa forma, o abriga da terrível
realidade, ou lançar-se, de uma vez, aos braços da dor que
redime? É preciso respeitar sua hesitação e assisti-lo no seu
estado de pânico. Entre um mundo que rui e outro que
ainda não construímos, a sensação de atordoamento é
inevitável, mesmo nos mais valorosos Espíritos. Temos que
entender, também, que quase todos eles estão
absolutamente convencidos de sua própria verdade. Ou
estavam, até o momento. O fato de permanecerem
envolvidos em erros de julgamento aflitivos, não lhes tira o
valor, não lhes reduz o conhecimento, não exclui o fato de
que são Espíritos, às vezes altamente qualificados e
experientes; apenas - e isso é tudo - operam
desastrosamente, do lado negativo da faixa vibratória da
vida. Não é fácil, para aquele que está convicto da
legitimidade de seus caminhos, pular por cima da linha
invisível que separa o bem do mal. Afinal, o livre-arbítrio
assegura-nos, a todos, o direito de escolha. A decisão é
difícil, mesmo. Tenhamos paciência e procuremos ajudá-lo a
tomá-la sem precipitação, mas com firmeza.
Certa vez, recebemos um companheiro
excepcionalmente violento e agressivo. Acostumara-se ao
poder incontestado, a mandar, a punir, a intimidar, tanto na
carne, quanto no espaço. Ameaçava, gritava, dava murros...
Deixei-o falar, interpondo apenas uma ou outra observação,
a fim de que o ímpeto do vagalhão se quebrasse contra a
branca areia da paciência e do amor. Claro que interpreta a
minha calma como covardia. Desesperançado de arrastar-
me para o debate estéril, no campo puramente filosófico,
promete, afinal, pensar no assunto, pois acabou tocado pelo
sentimento de afeição que encontrou entre nós. Estava
ameaçando ceder, mas era ainda muito cedo para uma
decisão final, como vimos nas próximas sessões.
Na semana seguinte, voltou novamente agressivo e
irritado, alegando que quase havia caído, por causa da
nossa afeição, mas que conseguira reagir. Não está
convencido, mas concordou em não gritar mais e a não nos
incomodar, dali em diante, com a sua presença. Seguirá seu
caminho de sempre, e acrescentou:
— Poderia enganar você e dizer que estou convertido,
mas não quero fazer isso.
É honesto: responde com dignidade à nossa tentativa de
aproximação e entendimento; agradeço sua lealdade e ele
segue procurando atrair-me para o debate. Qualquer
argumento que lhe apresente, ele o “vira” à sua maneira,
para servir aos seus propósitos e justificar sua filosofia de
vida. Faz pouco da minha inteligência, que ridiculariza à
vontade. Bem que se esforçou - diz ele - em mostrar-me o
caminho: somente se deixaria convencer pela
argumentação; nada mais. O doutrinador precisa estar
preparado para situações assim. Em primeiro lugar, como já
vimos, o clima da discussão é o que convém a esses irmãos
atormentados. A conversa mansa e a busca de
entendimento não interessa aos seus propósitos. Em
segundo lugar, é preciso considerar que nada temos a dizer-
lhes que eles não saibam. Conhecem perfeitamente a sua
condição de Espíritos desencarnados, a responsabilidade
que assumiram perante a lei, o conceito da reencarnação, a
imortalidade, a existência de Deus. São inteligentes e
experimentados. Não é. pois, pelos caminhos frios da mente
que chegaremos a eles e, sim, através do roteiro luminoso
do amor fraterno. E é precisamente por isso que, consciente
ou inconscientemente, procuram arrastar-nos para o
debate: terreno firme, que conhecem e no qual podem
esgrimir à vontade seus argumentos, de um ponto de vista
vantajoso; quanto ao campo sentimental, consideram
“perigoso”, porque está minado de imprevistos. Quando
menos se espera, surge do passado uma lembrança
esquecida, o vulto espiritual de um ser a quem muito
amaram, o apelo de uma voz cariciosa.
A certo ponto, cesso a conversa e oro. Ele ainda insiste
em falar e prosseguir o debate, mas acaba calando-se.
Quando tenta reagir “fisicamente”, está preso pelos pulsos
por um laço fluídico, invisível a nós, mas que o mantém
fortemente contido, por mais que se esforce. Volta a
esbravejar, ameaçar. Começa a crise maior. É evidente que
tenta, ainda, reagir, e procura acalmar-se, dizendo que
estou me esgotando inutilmente na tentativa de dominá-lo.
Não tenho a menor intenção de dominá-lo e, sim, de
despertar o seu Espírito. Dou-lhe prolongados passes,
enquanto a crise se adensa e aprofunda.
Subitamente, ele começa a gritar que não quer e não
pode fazer aquilo, e informa, realmente em pânico, que
tudo está ruindo em torno dele e dentro dele. Por fim, chora,
desesperado, e parte.
Este irmão voltou mais uma vez, na semana seguinte.
Apresenta-se completamente desarvorado, mas ainda
procura iludir-se, tentando convencer-se de que está
vivendo um pesadelo, do qual vai acordar a qualquer
momento. Digo-lhe que, ao contrário, agora é que ele
acordou de um pesadelo multissecular. Ele está arrasado.
Confessa que, pela primeira vez, tem medo: está vazio e
quer dormir, para esquecer.
É o grande momento da compreensão, da ternura, do
amor fraterno. Muito respeito pela sua crise, muito carinho
com as suas dificuldades, seus temores, seus desesperos.
Ele sabe, ou pressente, o que o espera, em termos de
resgates dolorosos, que se estenderão pelos séculos
futuros, até onde e quando, somente Deus saberá. É preciso
ajudá-lo, com muita paciência, levá-lo, ternamente, a dar o
passo final, que o tira de cima do fio da navalha e o coloca
no lado positivo da fronteira da nova existência, cujas
perspectivas se abrem diante dele, mas que ele ainda não
consegue lobrigar com precisão. É necessário assegurar-lhe,
nesse momento, a presença infalível de Deus em nossas
vidas, o amor indubitável do Cristo, que deseja que o
pecador se salve, e não que seja condenado a conviver com
angústias que parecem eternizar-se. Além do mais, como
temos visto, nunca falta, nessa hora, a presença de antigos
e esquecidos amores: mães, esposas, irmãos, amigos, que
nos ajudam na fase final da doutrinação.
Este é o momento mais emocionante de todo o trabalho,
O Espírito, em crise, precisa, mais do que nunca, de uma
palavra de sincera afeição, mesmo que ainda tente uma
reação desesperada, de última hora.
Num caso desses, o irmão entrou em crise e começou a
monologar, enquanto fico ao seu lado, em silêncio
reverente. Depois de algum tempo, ele se volta para mim -
e isto me comove profundamente - e me propõe uma visita
minha aos seus domínios. Diz que determinará aos seus
guardas que me deixem passar livremente.
— Você sabe - acrescenta - que eu não te farei mal
algum.
Começa, em seguida, a ver cenas do seu passado
distante. Ainda reage, tentando sugestionar-se de que é
forte e não vai “cair”, mas sente um arrastamento
incoercível.
— E vocês - dirige-se a companheiros invisíveis - com
essas caras luminosas, que estão aí me olhando?
E para mim:
— E você? Não diz nada?
Só sei dizer duas palavras:
— Meu amigo!
Ele a repete, e depois esbraveja:
— Maldito lago!
As visões o atormentam implacavelmente. É o lago
abençoado em que pregara o Cristo. Está arrasado, e diz
que precisa recompor-se, pois seus soldados estão lá fora e
não devem vê-lo naquele estado. Chama-me de traidor, mas
não sinto nele nenhum ódio: é apenas desespero. Alguém,
de elevada condição espiritual, uma mulher, o espera no
limiar da nova existência, mas ele ainda reluta. Pensa em
pedir uma licença aos seus chefes e afastar-se, por algum
tempo, do “trabalho”.
Estas crises caracterizam-se pela revolta, ante o
inevitável. Há, porém, as que precipitam no arrependimento
e no remorso mais patético.
A um desses pobres irmãos desarvorados, que se
manifestara com requintes de arrogância e ironia, vimos
obrigar o médium a ajoelhar-se, em pranto. Julga-se um
abutre sem remissão. Tivera o privilégio de viver na época
do muito amado Francisco de Assis, a quem conhecera
pessoalmente, mas cuja mensagem, de amor sem limites,
não conseguira ainda assimilar; ao contrário, dedicava-se,
com todo o poder de sua inteligência e de seus
conhecimentos, à pavorosa técnica do “crime religioso”,
segundo conceituação de um dos nossos companheiros.
Em suma: a crise manifesta-se de muitas maneiras, mas
dentro de certas configurações padronizadas:
arrependimento, temor, revolta ou deslumbramento. Vem
sempre acompanhada de profundas emoções; não é um
momento que o Espírito consiga viver com indiferença e
frieza, sendo, por conseguinte, a oportunidade preciosa, que
o doutrinador não pode deixar passar, para alcançá-lo
através do sentimento, da emotividade, do afeto. Trate-o
com muito carinho, guie os seus passos vacilantes pelo
novo caminho que começa a trilhar. Não o force, mas
procure não desperdiçar a ocasião de estimulá-lo a tomar a
decisão que vai mudar sua vida. Não tente enganá-lo,
acenando-lhe com um paraíso imediato, que ele sabe não
estar ao seu alcance. Não o atemorize com ameaças, não
carregue nas cores do sofrimento que o espera. Seja
simples, humano, amoroso, realista. Ofereça-lhe a sua
ajuda, mencione a assistência espiritual que estará ao seu
dispor, não para fazer por ele, mas para fazer com ele, o
trabalho de reconstrução que o aguarda. Lembre a
necessidade da prece constante, da confiança, da coragem
otimista. Destaque os reencontros espirituais com os seus
amados, que há tanto tempo o esperam. Não se esqueça de
que a dor e o temor o atormentam. Coloque em seu coração
a semente da esperança e mostre-lhe, confiante, as
perspectivas da paz. A essa altura, ele não pode mais voltar
sobre seus passos, para a proteção feroz da sua antiga
organização ou do seu regime de irresponsabilidade
pessoal. Seus ex-comparsas não mais o receberiam, senão
para castigá-lo pela sua “fraqueza”. Ele não pode mais
contar com aqueles que pensava serem seus amigos, e
aqueles que o esperam, para ajudá-lo, ele não os conhece
muito bem, ou então, sente diante deles uma vergonha
mortal, pela enormidade de seus desvarios.
Além do mais, ele teme vinganças cruéis, pois esse foi o
clima em que viveu durante séculos, ou milênios; ou
assusta-se ante a perspectiva de encarnações
extremamente penosas, em corpos deformados, cegos ou
mutilados.
Um típico exemplo desses, quando o Espírito fica sobre a
linha, contemplando as duas perspectivas - passado e
presente - tenho-a num caso de que tratamos.
Era extremamente rebelde, rude, agressivo e violento,
fora também um inquisidor. Ao despertar para a verdade,
confessa a aflição que experimenta, diante da enormidade
de suas culpas. Não se julga digno da afeição de Espíritos
tão elevados, como o de sua mãe. Está perplexo ante a
cegueira espiritual que, por tanto tempo, o impeliu a
cometer tantos e tão graves desatinos, e o impediu de
atender ao apelo de seus verdadeiros amigos, dos quais
nem percebia a presença junto de si. Preocupa-se com
aqueles que liderava, no mundo das sombras, que, a seu
ver, ficariam agora ao abandono. Digo-lhe que Deus vela
por todos nós e que uma tarefa que poderia desempenhar,
mais tarde, seria precisamente a de ajudar a recuperar os
irmãos que ainda ficaram nas sombras. Pede que oremos
por ele e que o perdoemos pelo tratamento que nos deu, de
início, com a sua agressividade. Também eu lhe peço
minhas desculpas, por uma ou outra palavra mais enérgica,
necessária, às vezes, para o despertamento. Ele chora, pela
primeira vez em muito, muito tempo, segundo nos informa.
E parte.
36 - PERSPECTIVAS
O que acontece quando o Espírito, assim despertado,
nos deixa? São muitos os caminhos que se abrem diante
dele. Geralmente, é levado a um local de repouso e
tratamento perispiritual e mental. No momento é o de que
mais precisa, além da certeza de que os seus antigos
amores acham-se novamente ao seu lado, com o mesmo
carinho de antigamente, de sempre. Trabalhadores
espirituais competentes levam-nos para o repouso e a
reeducação. Quase todos precisam de mergulhar em nova
reencarnação o quanto antes e, assim que estejam em
condições, começa o preparo, sob a direção de Espíritos
especializados e altamente qualificados.
Em alguns casos, raros, eles são trazidos para
despedirem-se de nós.
Certa vez, um dos nossos amados mentores utilizou-se
do espaço de tempo que costumamos reservar para a
mensagem final, para uma prédica, emocionada e
belíssima, a três Espíritos que, tratados pelo grupo, cerca de
um ano antes, partiam, agora, para a reencarnação na
Terra.
É possível que a providência da reencarnação tenha que
esperar mais tempo, mas esse estudo e planejamento não
está mais na alçada do grupo mediúnico; transcende suas
qualificações e possibilidades, O mundo espiritual tem sua
programação meticulosa, o trabalho bem dividido e
especializado, que não pode ser prejudicado com a
interferência de curiosos ou de diletantes inexpertos.
A partir do momento em que os companheiros são
recolhidos, por esses discretos e competentes trabalhadores
do Cristo, tranquilizemo-nos e demos nossas graças a Deus,
pois eles estão em boas mãos. Isto não quer dizer que a
nossa tarefa estará sempre concluída nesse ponto.
Poderemos ainda prestar alguma colaboração no plano
espiritual, durante os desprendimentos do sono, mas em
tarefas de menor importância, das quais nem tomamos
conhecimento consciente a não ser excepcionalmente.
De modo geral, cessam os encargos do grupo mediúnico
ao entregá-los aos trabalhadores dos planos superiores.
Cabe agora voltar-se para o outro médium e receber o novo
companheiro.
Em raras oportunidades os mentores estabelecem
contato entre aqueles que se retardam nas trevas e os que
tiveram a coragem de cruzar a linha. É que a primeira
impressão dos que ficaram nas sombras é a de que nós
violentamos a vontade do companheiro, levando-o à força, e
contra a sua vontade, para “prisões” e castigos. Acham que,
se fosse possível conversar com eles, os convenceriam a
voltar à vida de crimes. Em casos excepcionais, este
reencontro é proporcionado, com as cautelas que, por certo,
podemos imaginar, ainda que não tenhamos condições de
conhecê-las.
Num caso desses, um companheiro desarvorado
manifestou-se em grande aflição, porque havíamos feito
“cair” o seu chefe e ele estava reduzido a um “trapo” (sua
expressão). Mas, não lhe foi difícil verificar, por si mesmo,
que o antigo chefe não fora obrigado a converter-se, e nem
desejava voltar sobre seus passos, para reassumir seu posto
no mundo das sombras. Fora vê-lo pessoalmente.
Em outra ocasião o manifestante disse-nos que, durante
a semana, após termos conseguido “conquistar” o seu líder,
ele se reunira com os demais companheiros, para
mentalizá-lo e ajudá-lo no seu desespero, pois
interpretavam as vibrações de aflição, que dele recebiam,
como um apelo do ex-comparsa, que acreditavam
prisioneiro nosso. Logo, porém, verificou seu engano e
acabou também cedendo aos nossos argumentos.
Em resumo: o trabalho prossegue no mundo espiritual,
junto ao companheiro resgatado dos porões tenebrosos da
dor e reconvertido à doutrina do amor; mas a nós,
encarnados, a participação - ainda que importante, em
certos casos - será mais modesta ou, pelo menos, de outra
natureza, que não diga respeito especificamente ao
trabalho mediúnico.
37 - O INTERVALO
Muito trabalho, no entanto, desenvolve-se no mundo
espiritual, entre uma sessão e outra: trabalho
complementar, como vimos, embora de menor vulto, e
trabalho preparatório, muito mais amplo, difícil e constante.
Companheiros nossos por várias vezes nos têm falado
de verdadeiras sessões mediúnicas que se realizam, nas
horas mortas da noite, com os médiuns desdobrados pelo
sono fisiológico. Este trabalho preparatório é
particularmente indicado para os casos em que os Espíritos
a serem tratados acham-se de tal forma envolvidos em
vibrações pesadas, que o contacto direto com o corpo físico
do médium poderia acarretar choques penosos e até
perigosos. Nestes casos, os mentores levam, a um ponto de
reunião, tanto os componentes encarnados do grupo,
quanto os Espíritos necessitados. A tarefa preliminar
desenrola-se sob condições que ainda desconhecemos,
mas, ao manifestar-se, afinal, no grupo encarnado, o
Espírito está mais predisposto ao entendimento ou, pelo
menos, não tão impetuoso e violento, e talvez mais afeito à
organização mediúnica.
São inúmeras, porém, as tarefas desenvolvidas durante
a semana, entre uma sessão e outra, com os companheiros
que se acham em tratamento e já tiveram uma ou mais
manifestações no grupo. Com frequência ouvimo-los
referirem-se aos encontros que mantivemos no mundo
espiritual, durante os nossos desprendimentos. O
doutrinador tem que estar bem atento a esse pormenor. É
necessário lembrar-se de que o Espírito manifestante nem
sempre está consciente do fato de que os encarnados
esquecem-se do que se passa enquanto estão desdobrados
pelo sono comum. Por outro lado, não deve fingir que sabe
de tudo, porque, a uma pergunta mais embaraçosa, ele terá
que confessar sua ignorância. A atitude indicada é
conservar-se na expectativa e acompanhar, com extrema
atenção, o pensamento do companheiro manifestante,
naquilo que ele vai dizendo. Não se esqueça de que os
Espíritos nessa condição “pensam alto”, ou seja,
praticamente tudo quanto formular no pensamento, o
médium transmite.
Um deles me disse, certa vez:
— Eu sei... Você já me falou sobre isso no nosso
encontro.
Outros me perguntam:
— Por que você me chamou aqui?
É preciso estar preparado para uma resposta que não
revele total ignorância e surpresa, nem um conhecimento
que nossa memória consciente não guarda. Em casos como
esse, é preferível ser honesto e dizer ao companheiro que
ele precisa lembrar-se de que os seres encarnados não
costumam registrar na memória consciente aquilo que
fizeram em seus desdobramentos.
Um desses disse-me, ao reiniciar o diálogo interrompido
na semana anterior:
— Acho que dei um “fora”...
E contou o caso. Durante a semana, introduzira-se
sorrateiramente em uma reunião que mantivemos, no
Espaço, com aqueles que ele chamou de nossos “diretores”.
Ficara escondido atrás de uma coluna, a observar e ouvir,
certo de que ninguém ali sabia da sua presença. Ao que
tudo indica, tencionava espionar a nossa reunião. Depois
descobriu que, ao contrário, não apenas sabiam que ele
estava ali, senão que o haviam permitido, pois era até
esperado... Não sei o que foi feito e dito nessa reunião, mas
é certo que, ao manifestar-se no grupo mediúnico, na
semana seguinte, ele estava profundamente modificado e
até mesmo atônito. Não sabia o que se passara com ele,
mas disse que olhara num espelho e não se reconhecera.
Perdera a noção da sua identidade pessoal. Isto foi o
princípio de um processo de regressão de memória em que
se precipitou e ao qual me referi alhures, neste livro, e de
que resultaria sua libertação.
Em certos grupos de desobsessão, a atividade noturna,
nos intervalos das sessões, é muito intensa. Os mentores
espirituais levam os encarnados, desprendidos pelo sono, a
reuniões de estudo, de trabalho, de debates e
planejamento, ou a descidas profundas e perigosas nos
antros milenares da dor, de onde, às vezes, resgatamos
companheiros a serem doutrinados em futuras sessões.
Já narrei aqui um caso de zoantropia, em que o infeliz
companheiro ficara reduzido à forma “física” de um fauno.
Esse irmão foi resgatado ao mundo tenebroso do sofrimento
superlativo, numa incursão de que um de nós, encarnados,
conseguiu preservar a lembrança fragmentária, ao
despertar.
As imagens eram as de um sonho comum, mas, como
sempre acontece nesses casos, de extremo realismo. Os
componentes do grupo, dirigidos pelos benfeitores
espirituais, encontravam-se em vasta região desolada,
sombria e agreste, que haviam alcançado numa “condução”
rústica, que fazia lembrar um jipe terreno. A certo ponto,
pararam, desceram e fizeram o resto do percurso a pé. As
peripécias seguintes da jornada não ficaram documentadas
na memória do companheiro desperto. Lembra-se ele, no
entanto, do uma cena fragmentária, no regresso. Estava do
lado de dentro de uma caverna, cujo único acesso ao
exterior era uma espécie de chaminé estreita, aberta na
rocha. Alguns companheiros ficaram de fora, enquanto os
de dentro passaram para eles, com enorme dificuldade,
“algo” que traziam, com extremo cuidado, nos braços,
enquanto milhares de formigas pretas e agressivas
atacavam ferozmente aqueles que se empenhavam na
tarefa.
Uma ou duas semanas depois, aquele “algo”, que havia
sido resgatado, manifestou-se no grupo: era um ser
humano!... A indignação dos guardiães do pobre irmão foi
inconcebível, pois, segundo apuramos, aquele ser, reduzido
à mais abjeta condição humana, era figura importante para
seus esquemas nefastos. Na imagem das formigas
agressivas, que nos atacavam, ficou documentada a reação
tremenda que desenvolveram para impedir-nos.
De outra vez, recordei-me, com extraordinária lucidez,
de algumas cenas ocorridas numa dessas incursões em
território perigoso e agreste.
Fomos recebidos no local - escuro e opressivo - com
alguns sinais de cordialidade ou, pelo menos, sem
hostilidade. Há, depois, um “branco”, do qual nada me
lembro. Vejo-me, a seguir, já no final dessa visita, sendo
perseguido por um grupo belicoso, que tentava agarrar-me,
para retirar de mim certa quantidade de sangue. Uma das
criaturas - uma mulher - trazia nas mãos uma longa seringa,
contendo já um pouco de sangue, grosso e escuro, que
pingava no chão. Nesse momento, comecei a escapar-lhes.
Era como se eu levitasse. Via-os correrem
desesperadamente atrás de mim, a uns poucos metros
abaixo, enquanto eu me afastava, como se voasse, pouco
acima de suas cabeças.
Algumas semanas depois, apresentou-se o “chefe”
daquela região tétrica, numa incorporação mediúnica.
Estava indignado, porque eu havia escapado. Precisavam do
meu sangue para os seus “trabalhos”, e do sangue de
nossos companheiros encarnados, também. Eu ficaria
surpreso - disse - se soubesse daqueles que o haviam doado
espontaneamente, a troca de favores, em pactos que
garantiam a uma parte muitos “sucessos” na vida material,
e à outra, o evidente domínio sobre seus espíritos. Ele veio
disposto a arrebatar-nos o sangue, de qualquer maneira...
Um de nossos médiuns conseguiu registrar, com grande
precisão e detalhamento, uma dessas incursões. A meu
pedido, escreveu todo o relato, enquanto ainda bem vivo na
memória, o que muito nos serviu depois.
Nem sempre, no entanto, nos lembramos de tais,
episódios. Às vezes, os próprios benfeitores espirituais
incumbem-se de condicionar-nos ao esquecimento, dado
que a recordação poderia prejudicar-nos de alguma forma,
ou ao trabalho.
Por outro lado, essas incursões são, às vezes, também,
no mundo superior, para onde nos levam, amorosamente,
companheiros competentes e seguros, a fim de podermos
assistir a reuniões de estudo e planejamento, com nossos
maiores. É difícil, porém, conservar a lembrança delas.
Ficam apenas as linhas mestras das instruções recebidas,
sob a forma de frases soltas, ou de símbolos, que se
imprimiram nos nossos arquivos perispirituaís.
Outro aspecto importante, que precisa ser abordado, no
aproveitamento desses intervalos entre uma sessão e outra,
é o da prece. Como as sessões se realizam, usualmente,
uma vez por semana, durante os dias em que aguardamos
as próximas manifestações, precisamos ter a atenção
voltada para os companheiros que se acham em tratamento
no grupo, não apenas aqueles que ainda não foram
“convertidos”, mas, também, aqueles que já se acham
recolhidos, para tratamento, nas instituições especializadas
do Além. Eles precisam de nossas preces e do nosso
pensamento construtivo e amoroso, tanto quanto
necessitamos do apoio dos nossos benfeitores. A prece é o
fio que realiza esse milagre. Não podemos esquecer-nos de
que os companheiros desarvorados, que receberam o
primeiro impacto de uma incorporação e doutrinação, ficam
com os ânimos ainda mais acirrados contra nós. Durante a
semana toda haveremos de sentir-lhes a presença ou as
“mensagens” vibratórias de seus pensamentos hostis.
Lembremo-nos de que não o fazem por maldade intrínseca
e irredutível e, sim, por desconhecimento e defesa. Estão
convencidos da legitimidade de seus propósitos e da nossa
posição de intrusos, que nada têm a ver com os seus
problemas pessoais e os seus planos. Sem dúvida alguma
tentarão criar-nos dificuldades, quando nada com as
vibrações negativas de seu pensamento. É claro que
provocarão, em nós, sensações de angústia indefinível, mal-
estar, depressão e desânimo. Só a prece pode socorrer-nos,
em tais situações. Oremos por eles, mas com fervor, com
amor. É hora de pôr em prática, com toda a convicção, o
preceito evangélico que nos recomenda amar os nossos
inimigos. Embora não os consideremos como tais, eles
assim se consideram. Envolvamo-los numa atmosfera de
amor e compreensão, de tolerância e paciência, e
procuremos devolver as suas agressões mentais com o
nosso pensamento de afeição e carinho, implorando a Deus
que os ajude, que lhes mostre a verdade, que lhes ilumine
os corações, onde também existe amor, em potencial,
pronto a emergir, novamente, das cinzas de muitos sonhos
e das sombras de muitas agonias.
A qualquer momento que pudermos recolher-nos para a
prece, especialmente nas horas e locais em que
costumamos meditar, oremos por eles, com muito amor
mesmo. Não é difícil. Imaginemo-los como companheiros
muito queridos, filhos, parceiros de antigas lutas e até
credores nossos, a quem muito devemos. Com frequência
impressionante o são mesmo, além de irmãos, que serão
sempre, invariavelmente. A doutrinação é um ato de amor.
Aquele que não souber amar sem reservas, ou que somente
puder amar aqueles que o amam, não está preparado para
essa tarefa.
É extraordinário o poder da prece. Diria, mesmo,
miraculoso, não fosse tão abusada essa palavra
extraordinária. Inúmeras e repetidas vezes temos
presenciado o seu poder invencível.
Às vezes, o irmão atormentado, ao manifestar-se pela
segunda ou terceira vez, mostra-se extremamente
“perturbado” pelas nossas preces. Um deles disse-me,
irritado:
— Você vive rezando...
Outros se confessam paralisados, em pensamento e
ação. Não conseguem mais raciocinar com clareza e levar
avante os projetos em que estavam empenhados:
perseguições, obsessões, desmandos de toda sorte. Um
deles me disse, certa vez, que havia interceptado meus
“telefonemas”. A “telefonista” recebera-os em seu lugar,
mas sua referência provava que ele tomara conhecimento
da minha atividade mental e emocional durante a semana,
pelo menos naquilo que fora deliberadamente dirigido para
ele.
Para resumir e insistir num ponto, já mencionado,
alhures, neste livro: o trabalho de doutrinação não se
resume às poucas horas em que conversamos diretamente
com os Espíritos incorporados aos nossos médiuns; ele se
projeta ao longo dos dias e segue nas realizações da noite,
quando, em desdobramento, acompanhamos nossos
mentores, nos contatos e nas tarefas que se desenrolam no
mundo do Espírito.
Mantenhamos uma atitude vigilante, construtiva, atenta
a pequenos detalhes, que poderiam passar despercebidos,
mas que se revelam subitamente de enorme importância na
decifração do enigma que esses amados companheiros
trazem em si e que não podem resolver sozinhos.
Muita gente ainda não descobriu que a essência dos
“milagres” evangélicos é o amor. Quando o Cristo disse que
um dia poderíamos fazê-los também, não estava apenas
acenando com uma visão quimérica, para que fôssemos
bonzinhos. Ele nada disse que não se conformasse com as
suas íntimas convicções, antevisões e experiências.
O amor é realmente milagroso, e a prece, o instrumento
daqueles que querem realizá-lo. A tarefa dos seres
encarnados, num grupo mediúnico de desobsessão, é pouco
mais que isso: assistirem à constante realização do milagre
sempre renovado do amor.
38 - SONHOS E DESDOBRAMENTOS
Páginas atrás, ficou documentada uma referência
sumária à atividade desenvolvida pelos componentes do
grupo mediúnico, durante as horas de repouso, através de
sonhos e desdobramentos. Creio que é oportuno
desenvolver um pouco mais o conhecimento desse aspecto,
que contém importantes conotações, que não devem ser
ignoradas, não apenas em termos gerais de Doutrina, como
em sua aplicação prática aos trabalhos de desobsessão.
Essa importância ressalta do próprio tratamento que
Kardec e seus instrutores deram ao assunto, em “O Livro
dos Espíritos”. Enquanto a questão do sexo dos Espíritos,
por exemplo, ocupa cerca de meia página (perguntas 200 a
202), os problemas relacionados com a atividade do Espírito
encarnado, quando o corpo encontra-se em repouso,
ocupam 23 páginas, no capítulo 8º, sob o título “Da
Emancipação da Alma”.
O mesmo interesse encontramos nas obras mediúnicas
em geral, mas, de maneira muito especial, no opulento
acervo de informações que nos transmitiram André Luiz,
Emmanuel, Bezerra de Menezes Manoel Philomeno de
Miranda e outros, através de médiuns de absoluta confiança
e respeito.
Por esses ensinamentos, concluímos ser muito intensa a
atividade do espírito parcialmente liberto pelo sono natural
ou provocado. Na verdade, ficou bem claro, em Kardec, que
o espírito encarnado aproveita-se, com satisfação, da
oportunidade de escapar da prisão corporal, sempre que
pode, e que a atividade desenvolvida, nesses estados de
libertação parcial, reflete-se nos sonhos. É nesse estado que
ele consegue entrar na posse de algumas das suas
faculdades superiores, pelo acesso aos arquivos da sua
memória integral. Daí lembrar-se de encarnações passadas
e até mesmo, em situações especiais, afastar a densa
cortina que encobre o futuro.
Nesse estado de liberdade parcial, o encarnado cultiva
intenso intercâmbio com encarnados e desencarnados,
segundo seus interesses e afinidades.
Resumindo, com palavras suas, os ensinamentos
recebidos, Kardec escreveu isto:
“Os sonhos são efeito da emancipação da alma, que
mais independente se torna pela suspensão da vida ativa e
de relação.
Daí uma espécie de clarividência indefinida que se
alonga até aos mais afastados lugares e até mesmo a
outros mundos. Daí também a lembrança que traz à
memória acontecimentos da precedente existência ou das
existências anteriores. As singulares imagens do que se
passa ou se passou em mundos desconhecidos,
entremeados de coisas do mundo atual, é que formam
esses conjuntos estranhos e confusos, que nenhum sentido
ou ligação parecem ter. A incoerência dos sonhos ainda se
explica pelas lacunas que apresenta a recordação
incompleta que conservamos do que nos apareceu quando
sonhávamos. É como se a uma narração se truncassem as
frases ou trechos ao acaso. Reunidos depois, os fragmentos
restantes nenhuma significação racional teriam.”
Ao cuidar, mais adiante (questão 425), do
sonambulismo, os instrutores conceituam-no como “estado
de independência do Espírito, mais completo do que no
sonho, estado em que maior amplitude adquirem suas
faculdades. A alma tem então percepções de que não
dispõe no sonho, que é um estado de sonambulismo
imperfeito”.
“No sonambulismo - prosseguem - o Espírito está na
posse plena de si mesmo. Os órgãos materiais, achando-se
de certa forma em estado de catalepsia, deixam de receber
as impressões exteriores. Esse estado se apresenta
principalmente durante o sono, ocasião em que o Espírito
pode abandonar provisoriamente o corpo, por se encontrar
este gozando do repouso indispensável à matéria.” (O
primeiro destaque é do original; o segundo, desta
transcrição.)
Acrescentam, ainda, para não deixar dúvidas, que não
existe diferença entre o sonambulismo provocado e o
natural.
Isto significa, portanto, para efeitos práticos, que os
companheiros desencarnados que orientam os trabalhos
dos grupos mediúnicos dispõem de amplas possibilidades
de colaboração da parte dos componentes encarnados,
enquanto estes repousam. Na verdade, a experiência indica-
nos claramente que a atividade em desdobramento,
durante as horas do sono, é mais intensa e extensa do que
o curto período de uma hora ou duas, em que se desenvolve
a tarefa mediúnica propriamente dita. O planejamento e o
preparo das sessões é todo feito no mundo espiritual, sob a
direção de competentes e dedicados servidores do Cristo.
Em diferentes oportunidades, nossos mentores têm-se
referido às reuniões de que participamos, às incursões no
submundo do desespero, de onde resgatamos seres
alucinados de dor e desorientação, e até mesmo a sessões
mediúnicas, com incorporação e doutrinação, tal como aqui,
entre os encarnados.
Lembranças residuais dessa atividade permanecem em
nossa memória de vigília, ao despertarmos, e é de utilidade
ao trabalho mediúnico observá-las com atenção e interesse,
como, também, procurar predispor-se positivamente às
tarefas noturnas, enquanto o espírito se acha desdobrado
pelo sono. Para isto, recomenda-se que, na prece que
precede o sono, coloquemo-nos à disposição dos nossos
amigos espirituais para as humildes tarefas que estiverem
ao nosso alcance realizar junto deles, e peçamos a proteção
divina para toda a atividade a desenrolar-se além das
fronteiras da matéria bruta. Essa atividade é realizada por
equipes bem adestradas e precisamos estar afinados com
seus componentes, para que, em lugar de colaborar, não
resulte nossa canhestra interferência em agravação de suas
dificuldades. Bem sabemos, hoje, pelos informes da
Doutrina Espírita, dos riscos que corre o Espírito desatento e
desprevenido, em tais desdobramentos.
Os autores espirituais de “O Livro dos Espíritos” foram
inequívocos nesse, como em todos os outros pontos de seus
ensinamentos. Aqueles que se sintonizarem com as faixas
inferiores...
“... vão, enquanto dormem, ou a mundos inferiores à
Terra, onde os chamam velhas afeições, ou em busca de
gozos quiçá mais baixos do que os em que aqui se deleitam.
Vão beber doutrinas ainda mais vis, mais ignóbeis, mais
funestas do que as que professam entre vós.” (Destaques
meus)
Muitos ignoram como isso é autêntico, duma trágica e
dolorosa autenticidade. Companheiros encarnados, até
mesmo declaradamente espíritas, comparecem a esses
núcleos de alucinação dos sentidos, ou aos centros de
irradiação de doutrinas nefastas que tentam, aqui, entre
nós, implantar, como “reformulações”, “modernizações” e
“atualizações” da Doutrina Espírita, ou fundam movimentos
paralelos, tão logo lhes seja possível apossarem-se de
organizações terrenas que lhes forneçam a base de que
necessitam para os seus propósitos. É lá, nessas regiões
tenebrosas, que se praticam as mais lamentáveis formas de
lavagem cerebral e hipnose; é lá que são programados, com
extremo cuidado e competência, os pobres instrumentos
humanos que regressam ao nosso meio para espalhar a
discórdia, o desentendimento, a dissensão, tudo muito sutil,
a princípio, quase imperceptivelmente. É lá que se forjam
pactos sinistros de apoio mútuo, em que se envolvem
tantos companheiros promissores.
No que diz respeito ao trabalho específico da
desobsessão, portanto, todo cuidado é pouco com a
atividade em desdobramento, a fim de que não ponhamos a
perder, nas horas em que repousa o nosso corpo físico, as
modestas conquistas que porventura tenhamos conseguido
realizar na vigília.
É preciso, porém, evitar a conclusão apressada de que
todo sonho tenha algo a ver com o trabalho mediúnico que
estejamos realizando ou que qualquer lembrança de
atividade em desdobramento é aproveitável.
— “Na maioria das vezes - esclarece Emmanuel, em “O
Consolador”, questão 49 - o sonho constitui atividade
reflexa das situações psicológicas do homem no mecanismo
das lutas de cada dia, quando as forças orgânicas dormitam
em repouso indispensável. Em determinadas circunstâncias,
contudo, como nos fenômenos premonitórios, ou nos de
sonambulismo, em que a alma encarnada alcança elevada
porcentagem de desprendimento parcial, o sonho
representa a liberdade relativa do espírito prisioneiro da
Terra, quando, então, se poderá verificar a comunicação
intervivos, e, quanto possível, as visões proféticas, fatos
esses sempre organizados pelos mentores espirituais de
elevada hierarquia, obedecendo a fins superiores, e quando
o encarnado em temporária liberdade pode receber a
palavra e a influência diretas de seus amigos e orientadores
do plano invisível.” (Destaques meus)
Atenção, pois, com o material onírico, que precisa ser
examinado, selecionado, criticado e aproveitado com
prudência, porque qualquer empolgamento já é suspeito. Os
companheiros espirituais mais responsáveis não agem à
base de inconsequências e entusiasmos injustificados.
Mesmo nos momentos de maior alegria, pela solução de um
caso particularmente difícil e delicado, eles se apresentam
emocionados, por certo, mas sóbrios, serenos, gratos,
equilibrados. Cuidado, pois, com “revelações” sensacionais,
com “missões” importantes, com elogios descabidos, com
encontros com Espíritos que se apresentam sob identidades
pomposas.
André Luiz adverte-nos, em “Evolução em Dois Mundos”,
dos riscos que o Espírito encarnado corre durante o
desprendimento do sono, quando...
“... recolhe (...) os resultados de seus próprios excessos,
padecendo a inquietação das vísceras ou dos nervos
injuriados pela sua rendição à licenciosidade, quando não
seja o asfixiante pesar do remorso por faltas cometidas,
cujos reflexos absorvem do arquivo em que se lhe
amontoam as próprias lembranças.”
E mais:
“Numa e noutra condição, todavia, é a mente suscetível
à influenciação dos desencarnados que, evoluídos ou não,
lhe visitam o ser, atraídos pelos quadros que se lhe filtram
da aura, ofertando-lhe auxílio eficiente quando se mostre
inclinada à ascensão de ordem moral, ou sugando-lhe as
energias e assoprando-lhe sugestões infelizes quando, pela
própria ociosidade ou intenção maligna, adere ao consórcio
psíquico de espécie aviltante, que lhe favorece a
estagnação na preguiça ou a envolve nas obsessões
viciosas pelas quais se entrega a temíveis contratos com as
forças sombrias.” (Destaques meus)
Mas, não é só isso:
— “Quando encarnados, na Crosta - observa Sertório,
em “Missionários da Luz” - não temos bastante consciência
dos serviços realizados durante o sono físico; contudo, esses
trabalhos são inexprimíveis e imensos. Se todos os homens
prezassem seriamente o valor da preparação espiritual,
diante de semelhante gênero de tarefa, certo efetuariam as
conquistas mais brilhantes, nos domínios psíquicos, ainda
mesmo quando ligados a envoltórios inferiores.
Infelizmente, porém, a maioria se vale, inconscientemente,
do repouso noturno para sair à caça de emoções frívolas ou
menos dignas. Relaxam-se as defesas próprias e certos
impulsos, longamente sopitados durante a vigília,
extravasam em todas as direções, por falta de educação
espiritual, verdadeiramente sentida e vivida.” (Destaques
meus)
Ouçamos agora Aulus, em “Nos Domínios da
Mediunidade”:
— “Raros Espíritos encarnados conseguem absoluto
domínio de si próprios, em romagens de serviço edificante
fora do carro de matéria densa.
Habituados à orientação pelo corpo físico, ante qualquer
surpresa menos agradável, na esfera de fenômenos
inabituais, procuram instintivamente o retorno ao vaso
carnal, à maneira do molusco que se refugia na própria
concha, diante de qualquer impressão em desacordo com os
seus movimentos rotineiros.” (Destaques meus)
Aliás, seria bom reler todo o capítulo 11 -
“Desdobramento em serviço”, dessa obra, tanto quanto o
capítulo 21 - “Desdobramento”, de “Mecanismos da
Mediunidade”, que estuda o sono, o sonho e o
desdobramento espiritual.
Vejamos, por exemplo, esta observação, já nos
parágrafos finais do capítulo:
“É imperioso notar, porém, que considerável número de
pessoas, principalmente as que se adestraram para esse
fim, efetuam incursões nos planos do Espírito,
transformando-se, muitas vezes, em preciosos instrumentos
dos Benfeitores da Espiritualidade, como oficiais de ligação
entre a esfera física e a esfera extrafísica.” (Destaques
meus)
Não faltam, pois, advertências muito pormenorizadas
sobre a responsabilidade do trabalho que se realiza nas
chamadas horas “mortas” da noite. Do ponto de vista do
espírito, não resta dúvida de que são mais vivas, essas
horas, do que as de vigília.
Insistimos, pois, em enfatizar que o assunto merece
cuidadoso estudo, profundas meditações e cautelosa
aplicação prática, pois as responsabilidades envolvidas são
enormes. Por outro lado, não nos deve atemorizar o vulto de
tais responsabilidades. André Luiz assegura-nos que
podemos ser adestrados para essa atividade, com real
proveito para o nosso trabalho e, logicamente, para o nosso
desenvolvimento espiritual. Cautela, sim; temor, não, O
temor paralisa, imobiliza os esforços, na ansiosa
expectativa. É preciso vencer a inibição inicial e caminhar. A
prece será sempre boa conselheira, a par de
recomendações óbvias, que ressaltam dos textos que
examinamos aqui, e de outros que o leitor descobrirá:
vigilância com os próprios hábitos diários, cuidado com a
alimentação, atenção com a saúde do corpo físico, desejo
de aprender, para servir melhor.
Antes de encerrar estas notas, uma observação ainda
parece oportuna e necessária. Com frequência, nossos
médiuns contam-nos episódios em que participaram de
trabalhos no plano espiritual, nos quais funcionaram como
médiuns, também lá, desdobrados.
Isso é perfeitamente possível e tem o decidido suporte
da experiência. Em casos de meu conhecimento, nossos
médiuns compareceram a reuniões de instrução e
funcionaram mediunicamente, transmitindo mensagens de
outros planos, sempre que para isto se prepararam
devidamente.
É possível, porém, um desdobramento, depois de já
desdobrado do corpo físico, ou separado dele
definitivamente, pela desencarnação? Não temos o direito
de pôr sob suspeita o testemunho de alguns companheiros
de confiança, como, por exemplo, André Luiz, em “Nosso
Lar”, capítulo 36 - “O Sonho”, ao encontrar-se em plano
muito elevado, em companhia do luminoso Espírito de sua
mãe: “O sonho não era propriamente qual se verifica na
Terra. Eu sabia, perfeitamente, que deixara o veículo inferior
no apartamento das Câmaras de Retificação, em “Nosso
Lar”, e tinha absoluta consciência daquela movimentação
em plano diverso. Minhas noções de espaço e tempo eram
exatas. A riqueza de emoções, por sua vez, afirmava-se
cada vez mais intensa.” (Destaques meus.)
Disso tudo podemos sumarizar uma observação final: a
maior parte do trabalho mediúnico, não é a que se realiza
em torno da mesa, no dia da sessão; é a que se desdobra
para além dos nossos grosseiros sentidos físicos, enquanto
nosso corpo repousa. Aqui e ali, em modestas posições de
meros aprendizes, participamos de tais atividades.
Tenhamos cuidado para não comprometê-los com o nosso
despreparo e a nossa incúria. Aproximemo-nos com respeito
da hora em que nos preparamos para adormecer, cansados
das lutas do dia. Os companheiros que nos estão esperando
podem ser aqueles que nos arrastam para os porões
escuros do desvario, ou os que nos guiam os passos
incertos nas trilhas do bem. Depende de nós a decisão:
vamos pela escura e tortuosa viela que desce, ou
preferimos a estrada que sobe, reta e iluminada?
39 - RESUMO E CONCLUSÕES
Creio haver chegado ao final da tarefa que me impus, na
tentativa de fixar no papel alguns dos muitos ensinamentos
amealhados, em mais de uma década, no trato íntimo e
permanente com inúmeros companheiros desencarnados.
Não me foi possível evitar que este livro se revestisse das
características de um depoimento pessoal, pela razão, que
me parece muito simples e válida, de que ele é mesmo um
depoimento pessoal, pela própria natureza das experiências
que procura transmitir.
Seu objeto é o ser humano, usualmente em penoso
estado de desarmonização interior; não são quantidades
físicas de substâncias químicas, cujas reações podemos
prever, estudar e repetir à vontade, na frieza clássica dos
números, dos pesos, das medidas. Os irmãos que
comparecem aos nossos grupos mediúnicos estão em
crises, por vezes, seculares, e até milenares. Perderam-se
no emaranhado de suas perplexidades e não podem atinar
sozinhos com a trilha que os leve para fora do poço
profundo e escuro, de volta à luz abençoada do Senhor, sob
a qual possam contemplar suas imperfeições e empenhar-se
em alijá-las do coração.
O trabalho de doutrinação, chamado tão
apropriadamente de trabalho de resgate, em inglês (rescue
work), só é possível em clima de total doação, de empatia,
de profundo e sincero amor fraterno, o que o torna uma
atividade do coração, muito pessoal, essencialmente
humana. Não há nele espaço para meias-verdades,
fingimentos “inocentes”, indiferença ou comodismos.
O grupo mediúnico é instrumento de socorro,
ferramenta de trabalho, campo de experimentações
fraternas e escada por onde sobem não apenas os nossos
companheiros desarvorados, mas subimos também nós, que
tentamos redimir-nos na tarefa sagrada do serviço ao
próximo. O grupo merece e exige cuidados muito especiais,
dedicação constante, vigilância permanente, desde antes
mesmo de constituir-se. É preciso criar para ele uma
estrutura robusta, mas suficientemente flexível, para que
possa funcionar sem hesitações e interrupções. Se o
trabalho que lhe for cometido, pelos companheiros
espirituais, revelar-se fecundo e promissor, ele será
implacavelmente assediado. Levantar-se-ão contra ele
forças obstinadas, dispostas a tudo para fazê-lo calar-se e
dissolver-se. Assim, nada de ilusões: a medida de seu êxito,
em termos espirituais, é precisamente a perseguição
indormida, a pressão assídua de companheiros em
desequilíbrio, que não hesitarão diante de nenhum recurso,
para destruí-lo.
Por isso, na fase de planejamento, devem ficar bem
definidos, além de suas finalidades e objetivos, seus
métodos de trabalho. Nunca chegaremos a prever todas as
situações que um grupo poderá enfrentar, mas seus
métodos têm que ser suficientemente ágeis, para as
acomodações necessárias, sem prejuízo das tarefas que se
desdobram. Nunca saberemos o suficiente em matéria de
contacto com os nossos irmãos desvairados pela dor e pela
revolta. Cada sessão é diferente, cada manifestação traz
uma surpresa ou um ensinamento novo. É necessário que
observemos com toda a atenção qualquer pormenor,
aprendamos a lição que cada um deles contém e a
incorporemos ao acervo da experiência.
Citarei um pequeno incidente, aparentemente sem
importância.
Nossos amigos espirituais de há muito nos haviam
prevenido de que, em hipótese alguma, deixássemos
ultrapassar o horário de atendimento, como ficou dito e
explicado alhures, neste livro. Muito bem. Redobrei o
cuidado com o controle do tempo e, então, veio outra
observação: recomendavam-me que procurasse colocar o
relógio diante de meus olhos, de forma que, para consultá-
lo, não fosse necessário virar-me e tomá-lo nas mãos, como
costumava fazer. Por que a recomendação? Muito simples:
não apenas a preocupação excessiva com o tempo pode
desviar-nos do clima exigido pelo trabalho, mas porque até
mesmo o próprio gesto de voltar-me poderia quebrar a
continuidade da tarefa junto ao irmão incorporado, exigindo
provavelmente esforço maior dos companheiros
desencarnados. Quem poderia imaginar que a mera posição
de um relógio, na sala de trabalho, fosse tão importante, a
ponto de merecer advertência específica?
Além de tais observações esporádicas, dos
companheiros espirituais, infinitamente mais
experimentados do que nós, o estudo é uma necessidade
imperiosa, absoluta. Temos a tendência de julgar que
sabemos mais do que realmente sabemos. É fácil testar
essa verdade. Leia você, leitor, qualquer página de “O Livro
dos Espíritos”, ou de “O Livro dos Médiuns”, e verá que há
sempre aspectos que você não havia ainda notado,
observações que passaram despercebidas, ângulos
insuspeitados, por mais que você esteja certo de conhecer
bem a obra de Kardec. Ele é válido para qualquer outro
documento doutrinário sério, como as obras
complementares.
O aprendizado tem que ser constante, por várias razões.
Primeiro, porque nossa memória é falha, e leva-nos a
esquecer recomendações e instruções importantes, já lidas
no passado. Segundo, porque mesmo durante a leitura, a
mente divaga, e lemos trechos substanciais, sem a
participação do consciente.
Um grupo, porém, não são apenas finalidades, objetivos
e métodos; ele é também gente. Encarnada e
desencarnada.
Quanto aos encarnados, nossos companheiros em torno
da mesa, toda a atenção deve ser posta em selecioná-los. O
grupo tem que começar de maneira certa, para subsistir. Se
for constituído à base de elementos inconstantes e
inseguros, serão remotas suas possibilidades de
sobrevivência e inseguros os trabalhos, por melhores que
sejam as intenções.
Além dos demais pontos críticos, a seleção dos médiuns
é da mais alta importância, bem como a maneira de tratá-
los e integrá-los no trabalho, a fim de que possam dar de si
mesmos, em clima de segurança e confiança. O médium
não deve dominar o grupo, nem ser dominado por ele, e sim
portar-se como um dos trabalhadores que o compõem. Se a
recomendação de estudar sempre é válida para o grupo,
como um todo, para o médium ela adquire as proporções de
uma obrigação.
O doutrinador não será jamais o sumo-sacerdote de um
novo culto, a impor ritos e fórmulas mágicas, a ditar ordens,
como um general em campanha; ele é apenas mais um
trabalhador, o que não significa que a disciplina do grupo
deva correr à matroca. Usualmente, o doutrinador acumula
as funções de dirigente encarnado dos trabalhos, pela
simples razão de que, no contexto de um grupo humano,
alguém precisa assumir a liderança. Liderança, porém, não
é despotismo. Se ele é também o dirigente humano, precisa
contar com o respeito afetuoso de seus companheiros, para
que possam trabalhar todos em harmonia.
Se sentir que não tem condições pessoais para
doutrinar, deve atribuir essas funções a outros membros da
equipe, que julgue mais bem qualificados.
São rigorosas as especificações de um bom doutrinador;
dificilmente reúnem-se todas as características desejáveis
numa só pessoa. Por isso, lembrei por aí, no livro, que não
há doutrinadores perfeitos; contentemo-nos em ser
razoáveis e lutemos por adquirir as qualidades que nos
faltam. De minha parte, considero algumas dessas
qualidades como apenas desejáveis, e outras
indispensáveis. Entre estas colocaria, como vimos:
Formação doutrinária
Evangelização
Autoridade moral
Fé
Amor
O grande ativador desses petrechos espirituais é, sem
dúvida alguma, o amor. Para o doutrinador, o preceito
evangélico do “amai-vos uns aos outros”, e aquele outro,
“amai os vossos inimigos”, não são apenas frases bonitas,
para declamar aos Espíritos, mas condições essenciais ao
trabalho. O amor fraterno, no trabalho de doutrinação, tem
que ser sentido mesmo, e não apenas fingido ou forçado;
tem que emergir das profundezas do ser, como um
movimento irreprimível, no qual nos doamos integralmente,
quer o companheiro aceite ou não, de pronto, a nossa
entrega. O impacto do amor Sincero, no coração de um
irmão que sofre, é uma das coisas mais impressionantes e
comoventes do trabalho de doutrinação. Vemo-lo repetir-se
a cada instante, sempre o mesmo, e nunca nos cansamos
de admirar a sua força positiva e construtiva. Jamais deixei
de me surpreender com o espetáculo emocionante desse
impacto, o único, em nossa miserável existência de seres
imperfeitos, que nos dá realmente a sensação de que o
amor é um milagre que podemos realizar em nome do
Cristo.
Quando Ele falou a João que nós somos deuses, creio
que se referia especificamente ao amor em nós. Ao criar-
nos, Deus colocou em nós a fagulha do amor, dizem os
grandes Instrutores. E frequentemente nos esquecemos de
que uma fagulha do infinito é também infinita e, por isso,
são ilimitadas as nossas possibilidades de crescimento,
pelas trilhas do amor. Parece que o Pai imantou com esse
amor a nossa pequenina limalha e, por isso, somos
irresistivelmente atraídos para Ele, através do espaço
infinito e do tempo imemorial.
Assim, quando conseguimos transmutar-nos em amor,
ante os companheiros que sofrem, estamos nos colocando
no sentido e na direção que segue todo o Universo.
Quem poderá resistir?
— “Se Deus está conosco - dizia o nosso Paulo - quem
estará contra nós?”
Se me fosse pedido o segredo da doutrinação, diria
apenas uma palavra:
— AMOR!
FIM