Crianças Com Deficiência e Aprendizagem de Línguas
Crianças Com Deficiência e Aprendizagem de Línguas
Crianças Com Deficiência e Aprendizagem de Línguas
https://doi.org/10.37388/CP2021/v29n30a07
RESUMO
Este ensaio teórico-reflexivo propõe discutir e refletir acerca de crianças com deficiência apren-
derem uma língua estrangeira. Deve-se lembrar de que pessoas com deficiência podem apre-
sentar tempos diferentes para elaboração da mensagem e, os receptores - familiares, amigos,
escola, profissionais da saúde - devem estar, minimamente, preparados para a decodificação e
interpretação. Familiares, profissionais das áreas da educação e da saúde devem ser tradutores
dos contextos individuais e subjetivos de jovens com deficiência, quando necessário. O estudo
de uma língua estrangeira é uma ferramenta importante não só para fim acadêmico, mas pode
trazer benefícios cognitivos, assimilar diferentes culturas, desenvolvimento da memória, habi-
lidades e competências. Para que isso ocorra é preciso pensar na comunicação da família ali-
nhada com a escola e, a escola, por sua vez, alinhada com o jovem. A escola não é importante
apenas para a socialização do aluno com deficiência, mas, sobretudo, para a sua constituição
como sujeito.
Palavras-chaves: Língua Estrangeira, Linguagem, Inclusão, Pessoas com Deficiência.
1
Mestre em Ciências da Saúde. Passos, Estado de Minas Gerais. Universidade do Estado de Minas Gerais.
e-mail: [email protected]
ABSTRACT
This theoretical-reflective essay proposes to discuss and reflect about children with disabilities
to learn a foreign language. It should be remembered that people with disabilities can pres-
ent different times for the elaboration of the message and that the recipients - family, friends,
school, health professionals - must be, at least, prepared for decoding and interpretation. Family
members, education professionals, health professionals should be translators of the individual
and subjective contexts of young people with disabilities, when necessary. The study of a foreign
language is an important tool not only for academic purposes, but can bring cognitive benefits,
assimilate different cultures, memory development, skills and competences. For this to happen,
it is necessary to think about family communication aligned with the school and, the school,
in turn, aligned with the young person. The school is not only important for the socialization of
the disabled, but for its constitution as a subject.
Keywords: Foreign Language; Language; Inclusion; Disabled People.
Introdução
Estudar um idioma ocupa um lugar cada vez mais importante na educação em toda a parte
do mundo. Não apenas os alunos do ensino regular, os quais quase sempre são obrigados
a estudar uma língua estrangeira, mas muitas universidades e escolas de ensino médio adi-
cionaram línguas estrangeiras à grade, como enriquecimento ou requisito. E, é claro, é mais
comum do que improvável que universidades exijam a conclusão de estudos de línguas estran-
geiras. Para o aluno “não deficiente”, às vezes dentro do senso comum conhecido como o
“aluno normal”, o estudo de línguas estrangeiras é, de fato, uma experiência enriquecedora.
Para o aluno com deficiência, no entanto, pode ser uma experiência incrivelmente estres-
sante e humilhante, o oposto do que é esperado, devendo, notadamente, ser um tema de
relevante pesquisa.
No campo da educação inclusiva, estudar uma língua estrangeira pode vir a ser um desafio sig-
nificativo para os alunos com deficiência, fato que tem sido inexplorado no campo da educação
(DIAS, 2021).
Portanto, esse fato acrescenta a urgência e a necessidade de olhar para esse tema. À medida
que pesquisas estão em andamento e professores reconhecem o problema, soluções são ofe-
recidas ao aluno que enfrenta o desafio de aprender um idioma estrangeiro e para os profes-
sores que ensinam.
Para Kobolt & Mira (2015) pessoas com deficiência têm dificuldades de interação social ou cog-
nitiva, ou seja, possuem limitações. As autoras defendem que essa situação limitada não é um
entrave na aprendizagem, mas um desafio, no qual, através de um olhar diferente pode-se inves-
tir e acreditar nas capacidades de cada indivíduo com deficiência. As pessoas com deficiência
podem realizar atividades tão comuns quanto à de outras pessoas, ainda que com dificuldade e
com um tempo diferente.
Isto posto, considera-se o estudo de idioma uma ferramenta importante não só para fim acadê-
mico, mas pode trazer benefícios cognitivos, assimilar diferentes culturas, desenvolvimento da
memória, habilidades de tomar decisões com mais rapidez (KEYSAR, 2012).
Método
Trata-se de um ensaio teórico-reflexivo que propõe uma discussão e reflexão acerca de crianças
com transtorno mental ou deficiência intelectual aprenderem uma língua estrangeira.
Segundo Saussure (2001), a Língua é uma convenção estabelecida, homogênea e uma produ-
ção social, isto é, essencial para a vida humana ao passo que a Linguagem é a faculdade dada
pela natureza, a possibilidade de constituir uma língua, heterogênea e pertence a um âmbito
multifacetado, isto é, contém aspectos físicos, fisiológicos e psíquicos; pertence ao social
e ao individual.
Para Lyons (1987) apud Quadros (2006, p.15), a linguagem é um sistema de comunicação natural
ou artificial, humano ou não, portanto, linguagem é qualquer forma utilizada com algum tipo de
intenção comunicativa incluindo a própria língua. A aquisição da linguagem se inicia nos primei-
ros contatos do bebê com o mundo, por meio da interação com o meio e as pessoas ao seu redor.
Essa visão entende a linguagem como fenômeno social e cultural, no qual o desenvolvimento vai
acontecendo mediante os estímulos e interferências que esse ambiente tem na vida da criança.
Vale lembrar que não existe uma linguagem certa. Um aluno que utiliza a língua padrão em
seu cotidiano não está mais correto do que alguém que, ao conversar com a família, adota a
linguagem típica da região em que vive, por exemplo. O importante é que haja adequação de
acordo com o contexto, lembrando de que há outras compreensões sobre comunicação, como
por exemplo, um meio para que se estabeleçam as relações sociais entre os seres humanos, bem
como as pessoas com deficiência. A comunicação é imprescindível para a socialização e a com-
preensão entre as pessoas, na qual as pessoas se comunicam por meio de diferentes maneiras
como: escrita, verbal, gestual, corporal, código braile, Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), Comu-
nicação Aumentativa e Alternativa (CAA), entre outras (RICALDI, 2021).
Deve-se pensar que o emissor, com deficiência, pode apresentar tempos diferentes para ela-
boração da mensagem e, os receptores (familiares, amigos, escola, profissionais da saúde etc.)
devem estar, minimamente, preparados para a decodificação e interpretação.
Não entraremos aqui nos contextos das diferentes patologias, transtornos, síndromes etc., pois
cada um apresenta suas especificidades.
Shumaeva (2018) relata que no final da década de 1960, Kenneth Dinklage, da Universi-
dade de Harvard, buscou entender por que alguns dos melhores e mais brilhantes alunos
da famosa Universidade de Harvard não foram aprovados nos seus cursos de idiomas. Ele,
rapidamente, descartou a falta de esforço, vendo que a maioria desses estudantes estava
comprometendo outros conteúdos e seus diplomas, dedicando uma quantidade incomum de
tempo e esforço às aulas de idiomas. Da mesma forma, a falta de motivação não era uma
causa, pois esses estudantes não podiam se formar sem ter cumprido seus requisitos linguís-
ticos. Com relação à ansiedade, ele descobriu que os alunos o procuravam porque sofriam
de extrema ansiedade devido à impossibilidade de concluir com êxito as aulas de idiomas.
Como a maioria desses alunos nunca havia falhado em uma aula antes, ele sentiu que a ansie-
dade, originalmente, não era o motivo do fracasso. Ao questionar esses alunos, o professor
Dinklage descobriu que vários estudantes de idiomas com falha haviam sido diagnosticados
com dificuldades de aprendizado e haviam superado sua incapacidade por meio de boas
aulas e muito trabalho; o curso de língua estrangeira, no entanto, desencadeou os proble-
mas que os alunos pensavam estar por trás deles. Dinklage descobriu, depois de testar, que
outros membros do grupo não tinham problemas de aprendizado diagnosticados. Ele consi-
derou que a terceira parte do grupo sofria de uma dificuldade de aprendizado de idiomas,
embora Dinklage não tenha encontrado as evidências usuais de problemas durante os tes-
tes. É claro que esses alunos não puderam estudar com êxito idiomas estrangeiros enquanto
eram excelentes alunos em outras aulas. Então, em uma espécie de experimento vários anos
antes do esperado, ele trouxe um estudante de pós-graduação que tinha um irmão deficiente
que estava aprendendo a ensinar espanhol a alguns desses alunos em dificuldades, usando
bons métodos de ensino e conhecido por pessoas com dificuldades de aprendizagem. Os alu-
nos assim ensinados eram geralmente aprovados nos exames necessários para atender às
exigências estrangeiras.
Assim, há quase 30 anos, o professor Dinklage identificou a maioria das ideias e princípios bási-
cos relacionados a línguas estrangeiras e dificuldades de aprendizagem: o problema estava rela-
cionado ao fato de o processo de ensino-aprendizagem ser inadequado e não a uma falta de
motivação, esforço ou ansiedade. A ansiedade foi o resultado do fracasso, não a causa.
Os autores Ganschow e Sparks (1995), estudaram maneiras de ajudar alunos com deficiência a
aprender uma língua estrangeira, dentre as quais se destacam duas abordagens:
A primeira e mais estudada abordagem é uma resposta às conclusões de que muitos estudantes
com problemas de aquisição de língua estrangeira têm déficits fonológicos na língua materna e
defendem que, para ajudar esses alunos, o sistema de som da língua-alvo deve ser ensinado de
maneira muito explícita. Para testar essa teoria, os autores colaboraram com um professor de
espanhol do ensino médio que havia ensinado o método Orton-Gillingham de ensino de fono-
logia, leitura e ortografia para alunos com deficiências graves que estavam aprendendo. Nesse
método, os sons são apresentados de maneira muito estruturada, com muita prática visual,
cinestésica e tátil. A professora de espanhol Karen Miller testou a eficácia do ensino de espanhol
para alunos com deficiência usando a abordagem de Orton-Gillingham. A pesquisa com seus alu-
nos mostrou de maneira bastante conclusiva que os estudantes com deficiência foram capazes
de aprender e mantê-lo. Outro colaborador, Elke Schneider, obteve resultados semelhantes no
ensino de alemão para estudantes com deficiência.
Robles-Castro (2018), relata em seu atual trabalho, o caso de uma menina de 7 anos de idade,
diagnosticada com dislexia e dislalia, fato que afeta o seu processo de alfabetização. Dois
planos foram desenvolvidos nos quais a metodologia multissensorial focada no desenvolvi-
mento de atividades com o método Orton Gillingham foi usada. Na maioria dos casos, crian-
ças com essa dificuldade de aprendizado apresentam altas taxas de desmotivação e falta de
interesse ao aprender e executar atividades que requerem concentração e participação ativa
nas atividades de ensino e aprendizagem. Devido à metodologia utilizada, foram projetadas
experiências educacionais trabalhadas a partir do visual, auditivo e cinestésico que permiti-
ram ao aluno trabalhar, de maneira lúdica, os tópicos relacionados especificamente à leitura
e à escrita. Utilizou-se material concreto como: piano (instrumento musical) para trabalhar a
parte auditiva, lendo folhas com imagens usando como guia o método de leitura da escrita
Troncoso, uma máquina de palavras desenvolvida por ela, a fim de encontrar novas palavras
de uma maneira divertida e atraente.
Enquanto estudavam os alunos de Karen Miller, Ganschow e Sparks (1995) descobriram que,
adquirindo habilidades fonológicas em um idioma, os alunos também aprimoravam sua consci-
ência fonológica em outro idioma. Essa observação levou a uma variação no método de ensino
de fonologia na língua-alvo: ensinar o básico de fonologia na língua materna do aluno antes do
início do ensino de uma língua estrangeira. Ou seja, os alunos aprendem a reconhecer fonemas,
decodificar ou ler palavras de maneira eficaz e a codificar ou aplicar sons à linguagem escrita.
Basicamente, eles aprendem qual é o idioma e como funcionam seus sons e partes. Aplicar esse
conhecimento ao idioma que eles estão tentando aprender é o próximo passo. De fato, Gans-
chow e Sparks recomendam fortemente que essas habilidades fonológicas e reconhecem que
são estressantes quando as crianças aprendem a ler. Eles acreditam que as habilidades de leitura
e linguagem dos alunos serão muito mais fortes e que muitos dos problemas de aquisição de
línguas estrangeiras no futuro serão eliminados.
O primeiro é que é raro que uma escola esteja disposta a dedicar um espaço ou aulas inteiras
de línguas estrangeiras aos estudantes com deficiência, ou seja, criar um programa específico.
A segunda é encontrar professores dispostos e treinados para ensinar uma língua estrangeira a
estudantes com deficiência.
Na maioria das vezes, no mundo real, os estudantes com deficiência se encontram em uma
sala de aula dos chamados alunos “normais” ou no conhecido “ensino regular”. Nesse caso, os
alunos podem contar com a disposição do professor de ser criativo e flexível, bem como com a
escola ou o próprio sistema escolar para adaptar o aluno às suas habilidades e exigências da lei.
É quase igualmente doloroso quando um professor reconhece as necessidades de um aluno em
particular, mas não tem tempo, recursos e nem apoio para poder atender adequadamente às
suas necessidades.
Considerações finais
Familiares, psicopedagogos, profissionais da área educação, da saúde devem ser tradutores dos
contextos individuais e subjetivos de jovens com deficiência, quando necessário. Para que isso
ocorra deve-se pensar na comunicação da família alinhada com a escola e, a escola, por sua vez,
alinhada com o jovem. Lembrando que a escola não é importante apenas para a socialização da
criança com deficiência, mas também para a sua constituição como sujeito.
O educador deve estar empenhado à rotina de seus alunos para promover eventos onde todos
possam participar de atividades. Na interação e comunicação em de sala de aula, o professor
deve estar atento para a função da fala no processo da aprendizagem da leitura e da escrita,
por exemplo, quando se estuda uma língua de natureza alfabética, como a língua portuguesa.
Entender como se processa a aquisição de um idioma e da função da fala entra a função de com-
plexidade maior, que é a linguagem.
Sublinha-se que a deficiência não é algo que surge com o nascimento de alguém ou com a enfer-
midade que alguém contrai, mas é produzida e mantida por um grupo social na medida em que
esse mesmo grupo interpreta e trata as diferenças apresentadas por determinadas pessoas. Nin-
guém melhor que o psicopedagogo para equilibrar e mediar tais processos.
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