Roteiro FomeDOC
Roteiro FomeDOC
Roteiro FomeDOC
doc
Ensaio sobre a necessidade e a liberdade.
Roteiro de Fernando Kinas.
Versão final de outubro de 2017.
[Música de kalimba. Quem enuncia o texto deve estar [Música Quartets I-VIII/John Cage.]
sem fôlego.]
Porque a fome como o banquete são decisões. Usura. Desgaste. Do ferro. Da luta. Da carne.
Organizam-se banquetes e fome. Do humano.
Decidem-se banquetes e fome.
Esta é a carne!
Nossa história começa com esta mesa. Esta é a carne!
Uma mesa de madeira. A carne é também documento.
No teatro. E a carne é também metáfora.
Em uma mesa banquetes são oferecidos. (Da luta, da dor, do sexo, do amor, do suor, da vida,
Em uma mesa banquetes são organizados. Decididos. da morte.)
Em uma mesa, também, a fome pode ser decidida.
Organizada. E tudo: colher, carne, mesa e madeira.
Porque a fome como o banquete são decisões. Metáfora ou documento.
Organizam-se banquetes e fome. Documento e metáfora.
Decidem-se banquetes e fome. Tudo existe no tempo.
Existe no espaço.
Não há fatalidade. A fome é uma decisão, como o (E ele também - tempo/espaço - é documento e
banquete. metáfora).
A fome tem muitas causas, a falta de alimentos não Uma história.
é uma delas. Uma história humana.
A causa da fome é a riqueza, não a pobreza. No mundo.
Há guerras, sim. Há secas, gafanhotos, inundações, No teatro.
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pragas. Sim.
Mas a fome é uma decisão. 2. Coro shakespeariano (Henrique V)
No entanto, não se organizam, não se assinam, não se [Música de viola. Lençol de linho.]
decretam banquetes e fome em uma mesa de teatro.
Não é verdade? Que a musa de fogo aqui pudesse
Uma mesa é uma metáfora. Subir ao céu brilhante da invenção!
E uma mesa é, também, um documento. Reinos por palco, príncipes atores,
Monarcas a observar a pompa cênica!
[Toc toc toc. Fim da música.] Então o próprio Henrique, qual guerreiro,
De Marte assumiria o porte; e, atrás,
Como esta colher é documento. Presos quais cães, a fome, a espada e o fogo
Esta colher. Aguardariam ordens. Mas perdoem
E metáfora. Os mesquinhos espíritos que ousaram
Esta colher. Neste humilde tablado apresentar
Documento e metáfora da fome. Da luta contra a fome. Tema tão grande: conterá tal arena
Da sobrevivência. As planícies da França? Ou poderemos
Do tempo e da história. Segurar neste cercado de madeira os elmos
Uma colher inspirada em um artista russo. Yuri Kuper. Que assustaram os ares de Agincourt?
Gasta. De ferro. Torta. Carcomida.
Marcada pelo tempo. [Revela o piso falso do teatro.]
Uma colher histórica!
foto fernando kinas
Fome.doc, 2017
o grupo dos que não comem comienzan a hacer matanzas e crueldades extrañas en
e o grupo dos que não dormem, ellos. Entraban en los pueblos, ni dejaban niños ni
com medo daqueles que passam fome. viejos ni mujeres preñadas ni paridas que no desbar-
rigaban e hacían pedazos, como si dieran en unos
A ideia é a seguinte: corderos metidos en sus apriscos. Hacían apuestas
sobre quién de una cuchillada abría el hombre por
Não há monstros embaixo da cama. medio, o le cortaba la cabeza de un piquete o le des-
Não existem fantasmas. cubría las entrañas. Tomaban las criaturas de las tetas
de las madres, por las piernas, y daban de cabeza con
[Lençol de linho.] ellas en las peñas. Otros daban con ellas en ríos por
las espaldas, riendo e burlando e cayendo en el agua
Exceto nos teatros. O pai de Hamlet. Exigindo vin- decían: bullís cuerpo de tal; otras criaturas metían a
gança. espada con las madres juntamente e todos cuantos
Ou Pluft, o fantasminha medroso. delante de sí hallaban. Hacían unas horcas largas, que
É a história da “porta aberta da dor”. juntasen casi los pies a la tierra, e de trece en trece, a
Alguém abre a porta, alguém inventa a porta. Há uma honor y reverencia de Nuestro Redemptor e de los
porta. E há uma dor. doce apóstoles, poniéndoles leña e fuego los quemaban
vivos. Otros ataban o liaban todo el cuerpo de paja
E há também a luta que expulsa a dor. seca, pegándoles fuego así los quemaban.
Que tenta expulsar a dor.
Os cristãos, com seus cavalos e espadas e lanças,
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[Silêncio.] começam a fazer matanças e crueldades estranhas.
Entravam nos povoados indígenas, não deixavam
Passado o silêncio crianças e velhos, nem mulheres grávidas ou paridas
ditas estas palavras que não estripavam e faziam em pedaços, como se
— estas! - fossem cordeiros em seus currais. Faziam apostas
outras palavras, sobre quem com uma única facada abria um homem
gastas, de ferro (de sonho, de seda) e tortas, ao meio, ou cortava sua cabeça com um golpe ou
como esta colher expunha suas entranhas. Tomavam as crianças dos
— esta colher! - seios de suas mães, pelas pernas, e as jogavam de
circularão. cabeça contra as pedras. Outros, as atiravam nos rios,
A palavra circulará. rindo e gozando, e caindo na água diziam: mexam
Como documento e como metáfora. agora; em outras crianças enfiavam a espada com as
mães junto, e todos aqueles que estavam por perto.
Faziam umas forcas longas, de modo que os pés qua-
2 • Documentos exemplares se tocavam a terra, e de treze em treze, em honra e
1. O genocídio indígena (Bartolomé reverência a Nosso Redentor e aos doze apóstolos,
de las Casas) colocando lenha e fogo, queimavam-nos vivos. Outros
eram atados ou amarrados em todo o corpo com
[Música Marin Marais/Jordi Savall. Os textos em palha seca e depois punham fogo, assim os queimavam.
espanhol devem ser ouvidos em gravação.] Tienen los españoles de las Indias enseñados y ama-
estrados perros bravísimos y ferocísimos para matar
Los cristianos con sus caballos y espadas e lanzas y despedazar los indios. Sepan todos los que son
verdaderos cristianos y aun los que no lo son si se ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o di-
oyó en el mundo tal obra, que para mantener los dichos nheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A
perros traen muchos indios en cadenas por los cami- chuva passou um pouco. Vou sair.
nos, que andan como si fuesen manadas de puercos,
y matan dellos, y tienen carnecería pública de carne Eu tenho tanta dó dos meus filhos. Quando eles veem
humana, e dícense unos a otros: “Préstame un cuarto as coisas de comer eles bradam: Viva a mamãe. A ma-
de un bellaco desos para dar de comer a mis perros nifestação me agrada. Mas eu já perdi o hábito de sor-
hasta que yo mate otro”, como si prestasen cuartos rir. Dez minutos depois eles querem mais comida. Eu
de puerco o de carnero. mandei o João pedir um pouquinho de gordura pra Dona
Ida. Ela não tinha. Mandei-lhe um bilhete assim: Dona
¿Qué puede ser más fea ni fiera ni inhumana cosa? Ida peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura,
para eu fazer uma sopa para os meninos. Hoje choveu
Os espanhóis que estão nas Índias possuem cães e eu não pude ir catar papel. Agradeço. Carolina.
muito selvagens, instruídos e ensinados a matar e
despedaçar os índios. Que todos os que são cristãos [Frase não gravada.] Carolina Maria de Jesus.
e mesmo os que não o são, vejam se jamais se ouviu
coisa semelhante no mundo: para nutrir esses cães, Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno
os espanhóis, por toda parte aonde vão, levam consi- a gente come mais. A minha filha Vera começou
go muitos índios acorrentados, como se fossem por- pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espe-
cos e matam-nos para nutrir os cães, arrastando táculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia com-
consigo um açougue de carne humana. E um diz ao prar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui
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outro: empresta-me um quarto de índio para dar de pedir um pouco de banha a dona Alice. Ela me deu a
comer a meus cães, até que eu também mate algum; banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos.
fazem isso como se pedissem emprestado um quarto
de porco ou de ovelha. E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a
escravatura atual, a fome!
Haverá coisa mais horrível, brutal e desumana?
3. A utilidade da escravidão (José de
2. A escravidão atual (Carolina Alencar)
Maria de Jesus)
A utilidade da escravidão.
[Chuva teatral. Texto gravado, ouvido através de um
celular.] [O texto deve ser lido em dois grandes, velhos e
empoeirados livros.]
13 de maio de 1958.
A escravidão é um fato social, como são ainda o des-
Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para potismo e a aristocracia; como já foram a compra da
mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a mulher, a propriedade do pai sobre os filhos e tantas
libertação dos escravos. outras instituições antigas.
Continua chovendo. Eu tenho só feijão e sal. A chuva A escravidão caduca, mas ainda não morreu; ainda se
está forte. Mesmo assim mandei os meninos para a prendem a ela graves interesses de um povo. É quan-
escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu to basta para merecer o respeito.
dossiêkiwi
Mais bárbaras instituições, porém, do que a escravidão, Ressurge a escravidão no século XV suscitada pela
já existiram e foram respeitadas por nações não me- mesma indeclinável necessidade que a tinha criado
nores em virtude do que as modernas. em princípio e mantido por tantos milênios.
Toda a lei é justa, útil, moral, quando realiza um me- Sem a escravidão africana e o tráfico que a realizou, a
lhoramento na sociedade e apresenta uma nova situ- América seria ainda hoje um vasto deserto. O escravo
ação, embora imperfeita da humanidade. era um instrumento indispensável. Tentaram supri-lo
com o índio; este preferiu o extermínio.
Neste caso está a escravidão.
Vem muito a propósito parodiar a palavra célebre de
É uma forma, rude embora, do direito; uma fase do Aristóteles:
progresso; um instrumento da civilização, como foi “Se a enxada se movesse por si mesma era possível
a conquista. Na qualidade de instituição me parece dispensar o escravo.”
tão respeitável como a colonização; porém muito
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superior quanto ao serviço que prestou ao desenvol- [Pausa. Fim da Passacaglia/Heinrich Biber.]
vimento social.
Chego à questão da atualidade da escravidão.
Se a escravidão não fosse inventada, a marcha da É a escravidão um princípio exausto, que produziu
humanidade seria impossível. todos os seus bons efeitos e tornou-se, portanto, um
abuso, um luxo de iniquidade e opressão?
O primeiro capital do homem foi o próprio homem.
Nego, e o nego com a consciência do homem justo,
[Música Passacaglia/Heinrich Biber.] que venera a liberdade; com a caridade do cristão, que
ama seu semelhante e sofre na pessoa dele.
Na Europa, a salutar influência do Cristianismo adoçou
a escravidão; e a organização da sociedade foi operan- A raça branca, embora reduzisse o africano à condição
do nela uma transformação lenta. Entrou aquela anti- de uma mercadoria, nobilitou-o não só pelo contacto,
quíssima instituição em outra fase, a servidão, que só como pela transfusão do homem civilizado.
foi completamente extinta com a Revolução Francesa.
[Percussão e dança miscigenadas. Na sequência, 9ª
O escravo deixou de ser coisa, ou animal; tornou-se Sinfonia, Ode à alegria/Beethoven.]
homem, como exigia Sêneca; mas o homem proprie-
dade, preso ao solo ou à pessoa do senhor feudal. Sem esse enorme estômago, chamado Europa, que
anualmente digere aos milhões os gêneros coloniais, a
Havia quinhentos anos que se extinguira na Europa a escravidão não regurgitaria na América. Mas era preciso
escravidão, quando no século XV ressurge ela de re- alimentar o colosso; e satisfazer o apetite voraz.
O filantropo europeu, entre a fumaça do bom tabaco Todas as concessões que a civilização vai obtendo do
de Havana e da taça do excelente café do Brasil, se coração do senhor limam a escravidão sem a desmo-
enleva em suas utopias humanitárias e arroja contra ralizar. O cativo, se for libertado, permanecerá em
estes países uma aluvião de injúrias pelo ato de man- companhia do senhor; e se tornará em criado.
terem o trabalho servil. Mas por que não repele o
moralista com asco estes frutos do braço africano? O liberto por lei é inimigo nato do antigo dono; foge
da casa onde nasceu.
Em sua teoria, a bebida aromática, a especiaria, o
açúcar e o delicioso tabaco são o sangue e a medula Para a casta dominante, especialmente a agrícola, a
do escravo. Não obstante, ele os saboreia. Sua filan- libertação significa a ruína pela deserção dos braços e
tropia não suporta esse pequeno sacrifício de um gozo a impossibilidade de sua pronta substituição; signifi-
requintado; e, contudo, exige dos países produtores ca igualmente o perigo e o sobressalto da insurreição
que, em homenagem à utopia, arruínem sua indústria iminente.
e ameacem a sociedade com uma sublevação.
José de Alencar, escritor e político, 1867.
[Pausa curta.]
4. Hoje amanheceu chovendo
Conservar escravo o homem que nasceu tal é uma (Carolina Maria de Jesus)
instituição; reduzir à escravidão pessoa livre é um
crime. 13 de maio de 1958.
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A única transição possível entre a escravidão e a li- [Chuva, que continua durante a próxima cena.]
berdade é aquela que se opera nos costumes e na ín-
dole da sociedade. O domínio do senhor se reduz, Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para
então, a uma tutela benéfica. mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a
libertação dos escravos.
[Sinhazinha e escravo.]
70 anos. 100 anos. 130 anos…
Viesse ao Brasil algum estrangeiro, desses que deva-
neiam em sonhos filantrópicos nas poltronas estufa- 5. A fome e o campo (Primo Levi)
das dos salões parisienses, e entrasse no seio de uma
família brasileira. Vendo a dona da casa, senhora de Tudo ao redor é cinza, e nós também somos cinzentos;
primeira classe, desvelar-se na cabeceira do escravo de manhã, quando ainda está escuro, todos esquadri-
enfermo; ele pensaria que a filantropia já não tinha o nhamos o céu à espera dos primeiros sinais da prima-
que fazer onde morava desde muito a caridade. vera, e cada dia comenta-se o levantar do sol - hoje
um pouco antes do que ontem, hoje um pouco mais
Estudando depois a existência do escravo, a satisfação quente; em dois meses, num mês, o frio abrandará,
de sua alma, a liberdade que lhe concede a benevolên- teremos um inimigo a menos.
cia do senhor; se convenceria que esta revolução dos
costumes trabalha mais poderosamente para a extin- Acabado o frio, que durante todo o inverno nos pare-
ção da escravatura do que uma lei porventura votada cia o único inimigo, nos demos conta de ter fome, e,
no parlamento. voltando ao mesmo erro, hoje repetimos: - Se não
fosse por essa fome... Como poderíamos pensar em
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não ter fome? O Campo de Concentração é a fome; lestina. Minha Dama, eu mereço, mereço viver, porque
nós mesmos somos a fome, uma fome viva. você é a minha Dama.
Assim como nossa fome não é apenas a sensação de 7. Homens e caranguejos (Josué de
quem deixou de almoçar, nossa maneira de termos frio Castro)
mereceria uma denominação específica. Dizemos
“fome”, dizemos “cansaço”, “medo” e “dor”, dizemos Com as sombrias imagens dos mangues e da lama eu
“inverno”, mas trata -se de outras coisas. Aquelas são comecei a criar o mundo da minha infância.
palavras livres, criadas, usadas por homens livres que
viviam, entre alegrias e tristezas, em suas casas. [Música de viola.]
Vê-los agir, falar, lutar, sofrer, viver e morrer era ver a Realmente o boi era só chifres e pelo, porque carne
própria fome modelando, com suas despóticas mãos não tinha, como afirmava em sua cantoria o vaqueiro
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de ferro, os heróis do maior drama da humanidade que, apalpando o boi por toda parte, nunca encontra-
– o drama da fome. va em parte alguma sinal de carne.
Pensei, a princípio, que a fome era um triste privilégio E foi assim que, pelas histórias dos homens e pelo
desta área onde eu vivia – a área dos mangues. Depois roteiro do rio, fiquei sabendo que a fome não era um
verifiquei que, no cenário da fome do Nordeste, produto exclusivo dos mangues. E quando cresci e saí
os mangues eram uma verdadeira terra de promissão pelo mundo afora, vendo outras paisagens, percebi
que atraía os homens vindos de outras áreas de mais com nova surpresa que o que eu pensava ser um dra-
fome ainda. Da área das secas e da área da monocul- ma do meu bairro, era um drama universal.
tura da cana-de-açúcar, onde a indústria açucareira
esmagava, com a mesma indiferença, a cana e o homem: Que a paisagem humana dos mangues se reproduzia
reduzindo tudo a bagaço. no mundo inteiro. Que aqueles personagens da lama
do Recife eram idênticos aos personagens de inúme-
Era um curso inteiro que eu fazia sobre a fome, quan- ras outras áreas do mundo, assoladas pela fome. Que
do ouvia, com um interesse sempre crescente, as in- aquela lama humana do Recife, que eu conhecera na
termináveis histórias contadas por meu pai sobre as infância, continua sujando até hoje toda a paisagem
agruras sofridas pela nossa família, na seca de 1877. do nosso planeta como negros borrões de miséria: as
Da presença da fome na zona do açúcar, tomei conhe- negras manchas demográficas da geografia da fome.
cimento mais detalhado através do relato monótono
de dois velhos negros que tinham sido escravos na Josué de Castro.
juventude e que desfilavam suas lembranças da época
enquanto cortavam grama para os cavalos de meu pai.
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No mercado mundial, os oligopólios jogam todo o seu [Canção do desabastecimento/Victor Jara. O próximo
peso para impor os preços dos alimentos. Oligopólio texto deve se sobrepor à música.]
é o nome científico para tubarão-tigre.
9. Lembrete 1
[Cena do tubarão-tigre. A música faz referência a
Jaws/John Williams.] Folha de S. Paulo, 22 de setembro de 2016.
O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, disse — Se você pudesse pedir o que quisesse, qualquer
nesta quarta-feira que a mudança da legislação para coisa, para um gênio da lâmpada, o que você pediria?
permitir a compra de terras por estrangeiros seria
positiva no esforço do governo para aumentar os Aisha demorou um tempo, como quem estivesse
investimentos no país. diante de uma coisa impensável:
“Esse é um assunto fundamental e nós achamos que
de fato seria positivo se fosse aprovado, na medida — O que eu quero é uma vaca, que me dê muito lei-
em que aumenta o investimento no Brasil e a produ- te; então, se eu vender um pouco do leite, posso
tividade geral da economia”, disse o ministro após comprar as coisas para fazer doce e vender no mer-
encontro com empresários em Nova York. cado. Com isso eu me ajeitaria mais ou menos.
— O que estou dizendo é que o gênio da lâmpada
A ideia de liberar a venda de terras agrícolas a es- pode lhe dar qualquer coisa, o que você pedir.
trangeiros tem sido discutida pelo governo Michel — De verdade, qualquer coisa?
Temer, depois de ter sido vetada em 2010. O objeti- — Sim, qualquer coisa.
vo é aumentar investimentos na produção, mas falta
detalhar o projeto. [Silêncio.]
10 mil anos. Nosso objetivo é trabalhar em conjunto agrícolas que produz maconha e pesticidas. Sua meta
com os agricultores, pesquisadores e diversas insti- é dominar os mercados de produtos químicos e me-
tuições para aumentar a produtividade e tornar a dicamentos para pessoas, plantas e animais.
agricultura mais sustentável. Nós ajudamos a produ- Lembrete 3: Também segundo a revista Exame, a
zir mais alimentos desenvolvendo sementes, biotec- Monsanto é famosa por produzir alguns produtos
nologia e produtos para a proteção de cultivos. Nós químicos controversos e altamente tóxicos, como os
somos a Monsanto. bifenilos policlorados, conhecidos como PCBs e atu-
almente banidos, e o herbicida agente laranja, que foi
[Cena improvisada revelando ao público que os textos usado pelo exército dos EUA no Vietnã. A Monsanto
acima foram retirados dos sites das empresas Cargill comercializou o herbicida Roundup nos anos 1970 e
e Monsanto.] começou a desenvolver milho e sementes de soja
geneticamente modificados nos anos 1980.
Lembrete 2: Segundo a revista Exame, em 2016 a
Bayer comprou a Monsanto por 66 bilhões de dólares. 12. Fome, colonialismo e filantropia
A Bayer é famosa pelas aspirinas que vende. Ela foi (Oscar Wilde)
contratada pelos nazistas durante a Segunda Guerra
Mundial e usou trabalho forçado. Atualmente, a em- Os homens estão cercados pelos horrores da pobreza,
presa com sede em Leverkusen, na Alemanha, fabri- pelos horrores da feiura, pelos horrores da fome. É
ca medicamentos e tem uma unidade de ciências inevitável que se emocionem diante de tudo isso. As
emoções são despertadas mais rapidamente do que a inconsciente, às vezes não, geram no primeiro caso, a
inteligência. esterilidade e no segundo a histeria.
É muito mais fácil sentir simpatia pelos que sofrem A esterilidade: aquelas obras encontradas fartamente
do que sentir simpatia por uma ideia. Assim, com em nossas artes, onde o autor se castra em exercícios
intenções louváveis, embora equivocadas, os homens formais que não atingem a plena possessão de suas
se atiram, séria e sentimentalmente, na tarefa de formas. O sonho frustrado da universalização: artistas
remediar os males que veem. Mas seus remédios não que não despertaram do ideal estético adolescente.
curam a doença: eles só a prolongam. Na verdade, seus
remédios são parte da doença. A histeria: um capítulo mais complexo. A indignação
social provoca discursos flamejantes. O primeiro
Eles buscam solucionar o problema da pobreza, por sintoma é o anarquismo que marca a poesia jovem
exemplo, mantendo vivo o pobre; ou, segundo uma até hoje. O segundo é uma redução política da arte
teoria mais avançada, divertindo o pobre. Mas isto não que faz má política por excesso de sectarismo. O
é uma solução: é um agravamento da dificuldade. A terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma sistema-
meta adequada é reconstruir a sociedade sobre bases tização para a arte popular.
que tornem a pobreza impossível. E as virtudes altru-
ístas têm na realidade impedido de alcançar essa meta. A fome latina, por isto, não é somente um sintoma
alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí
Assim, os piores escravagistas eram os que se mos- reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante
travam mais bondosos com seus escravos, pois impe- do cinema mundial: nossa originalidade é a nossa
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diam que o horror do sistema fosse percebido pelos fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo
que o sofriam, e compreendido pelos que o contem- sentida, não é compreendida.
plavam. Então, nas atuais circunstâncias, os que mais
danos causam são os que mais procuram fazer o bem. [Febrilidade crescente.]
Onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade Ilhas Shetland. Extremo setentrional do arquipélago
e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da britânico. 60º de latitude norte.
[Um cavalinho é mostrado ao público.] tava com tanta fome que eu disse assim prum moço
que vinha passando:
Nessas ilhas desenvolveram-se os menores cavalos do
mundo. Pensava-se que os pôneis das ilhas Shetland — Ô, decente, vosmecê não deixa eu comer uma gi-
fossem uma raça de cavalos. Mas quando alguns nego- letezinha pra vosmecê ver?
ciantes resolveram criar pôneis nos Estados Unidos, que — Sai pra lá. Tu não te manca não, ô, Pau de arara?
decepção! - em algumas gerações eles ficaram do tama- — Só uma, que eu ainda não comi nadinha hoje.
nho de cavalos normais. — Tu enche, hein?
É que não há raça de pôneis. Aquilo me deixou tão aperreado que se não fosse o
amor que eu tinha na minha violinha, eu tinha reben-
Foi a extrema pobreza do solo das ilhas Shetland que tado ela na cabeça daquele… filho de uma égua!
determinou, em muitas gerações, a progressiva degrada-
ção da espécie. [Cantando.]
15. Comedor de Gilete (Ary Toledo) Puxa vida, não tinha uma vida pior do que a minha
Que vida danada que fome que eu tinha
[Viola. Cantando a música de Carlos Lyra/Vinícius de Zanzando na praia pra lá e pra cá
Moraes/Ary Toledo, que dá nome à cena.] Quando eu via toda aquela gente num come-que-
come
Eu um dia cansado que tava da fome que eu tinha Eu juro que tinha saudade da fome
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Eu não tinha nada que fome que eu tinha Da fome que eu tinha no meu Ceará
Que seca danada no meu Ceará E aí eu pegava e cantava e dançava o xaxado
Eu peguei e juntei um restinho E só conseguia porque no xaxado
De coisa que eu tinha A gente só pode mesmo se arrastar
Duas calça velha e uma violinha Virgem Santa! A fome era tanta que inté parecia
E num pau de arara toquei para cá Que mesmo xaxando meu corpo subia
E de noite eu ficava na praia de Copacabana Igual se tivesse querendo voar
Zanzando na praia de Copacabana
Dançando o xaxado pras moça olhar [Narrando.]
Virgem Santa! Que a fome era tanta
Que nem voz eu tinha Às vezes a fome era tanta que volta e meia a gente
Meu Deus quanta moça, que fome que eu tinha... arrumava uma briguinha pra comer uma bóia lá no
Zanzando na praia pra lá e pra cá xadrez. Êta quentinho bom no estômago! Com perdão
da palavra, a gente devolvia tudo depois, que a bóia já
[Narrando.] vinha estragada. Mas enquanto ela ficava quietinha
ali dentro da barriga, quentinha, que felicidade! Não,
Foi aí então que eu arresolvi comer gilete… Tinha um mas agora as coisas tão melhorando. Tem uma dona
cumpadre meu lá de Quixeramobim que ganhou um muito bondosa lá em Higienópolis que gosta muito
dinheirão comendo gilete na praia de Copacabana. Eu não de ver é eu comer caco de “vrídrio”. Isso que é bon-
sei não, mas eu acho que ele comeu tanta, mas tanta, que dade da boa. Com isso eu já juntei uns quinhentos
quando eu cheguei lá aquela gente toda já estava até com merréis. Quando juntar mais um pouquinho, vou-me
indigestão de tanto ver o cabra comer gilete. Uma vez eu embora, volto pro meu Ceará!
dossiêkiwi
[Música Zumbi/Jorge Ben Jor. A música é ouvida — Há muito teria eu chegado às margens sagradas do
através de um aparelho portátil de som, semelhante Ganges se não tivesse, para embaraçar-me, um com-
ao que ocorre na cena 2 com o telefone celular.] panheiro como tu.
— Que gracejo tão singular! - respondia o outro. Ig-
noras então que por muito tempo fiz parte dos cor-
redores do Marajá de Maissur?
— Parece que ouço a tartaruga desafiar a lebre, pois
tuas pernas degeneraram bem, depois dessa época.
Energia construiu para abrigar as vítimas de “remoção “Dá uma dor no estômago, uma tontice”. É uma pista,
compulsória”. Em 2016, dividiram-se: os dois filhos mas ainda não é a fome por escrito. “Eu não sei o que
mais velhos permaneceram na casa padronizada, um fazer quando as crianças ficam pedindo por comida”,
deles já com sua própria família; Otávio, Maria e os ela continua.
filhos mais jovens transferiram-se para uma casa Encaro os olhos fundos de Adriano, o menino de sete
doada por um grupo de austríacos que se comoveu anos, e entendo sem letras. Entendo, mas sigo sem
com as tribulações do pescador sem rio e sem letras. alcançar. Meu olhar não afunda nos olhos de poço, me
Todas as vezes em que bati em cada uma das três falta a experiência. Adriano é mais uma doce criança
portas, eles passavam fome. Tinham teto, mas passavam com olhos de velho deste mundo. Quando o encontrei
fome. Era oficialmente uma casa, mas passavam fome. na segunda casa, a do RUC (Reassentamento Urbano
Em todas as vezes, só havia água na geladeira. Na se- Coletivo), em 2015, era o dia do seu aniversário. E não
mana passada, havia também uma cebola pequena. havia sequer um pedaço de pão para Adriano comer.
Fome é algo que fracasso em descrever. A fome não se
escreve. Carolina Maria de Jesus, a escritora brasileira Casa é onde não tem fome, eles me ensinam. Se tem
que conhecia a fome, escreveu: “A fome é amarela”. fome, é só teto.
Maria, a mãe, tenta fazer caber nas palavras o que
sente quando chega a passar até dois dias sem comer: [Um mapa da região é mostrado.]
Fome.doc, 2017
Otávio das Chagas e sua família viviam há mais de enfiado na boca, chupando o suco verde do capim e
trinta anos na Ilha de Maria, uma das centenas de ilhas deixando escorrer pelo canto da boca uma saliva es-
do Xingu. Quando são expulsos da ilha a qual perten- verdeada que me parecia ter a mesma origem da es-
cem, Otávio, Maria e seus filhos já não reconhecem puma dos caranguejos: era a baba da fome.
nem se reconhecem, porque a ilha era também espelho.
Se alguém é obrigado a deixar sua terra por conta de A fome é amarela. A fome é amarela. A fome é amarela.
uma guerra, de um terremoto ou da fome, haverá
sempre a terra que ficou, haverá ruínas, haverá os 22. Um artista da fome
mortos ali enterrados para dar conta do que foram, (Franz Kafka)
mesmo que nunca possam voltar. Otávio, Maria e seus
filhos perderam a materialidade do que viveram, a — Você continua jejuando? — perguntou o inspetor.
memória física do que eram, do que são. Tudo o que — Afinal quando vai parar?
dizia deles virou água pela força de Belo Monte. Da — Peço desculpas a todos — sussurrou o artista da
ilha afogada não há sequer um retrato. Restou a eles fome; só o inspetor, que estava com o ouvido colado
apontar as cicatrizes que documentam uma vida no às grades, o entendia.
único território que lhes restou: o do próprio corpo. — Sem dúvida — disse o inspetor, colocando o dedo
na testa, para indicar aos funcionários, com isso, o
Quando foi expulso, em 2012, Otávio assinou com o estado mental do jejuador.
dedo papéis que não era capaz de ler. Seus filhos as- — Nós o perdoamos.
sinaram por ele papéis que não eram capazes de ler. — Eu sempre quis que vocês admirassem meu jejum
Receberam 12.994 reais e 2 centavos como indeniza- — disse o artista da fome.
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ção. Sua casa não foi considerada uma casa. Não cabia — Nós admiramos — retrucou o inspetor.
no conceito de casa do empreendedor. Quando a — Mas não deviam admirar — disse o jejuador.
“remoção” dos habitantes das ilhas, das beiras e dos — Bem, então não admiramos. Por que é que não
baixões, assim como das terras rurais, foi determina- devemos admirar?
da, não havia defensoria pública na região. — Porque eu preciso jejuar, não posso evitar.
— E por que não pode evitar?
O Governo de Dilma Rousseff abandonou a população — Porque eu — disse o artista da fome, levantando
do Xingu sem qualquer proteção jurídica na maior um pouco a cabeça e falando dentro da orelha do
obra do setor elétrico do país, à mercê dos advogados inspetor com os lábios em ponta, como se fosse um
da Norte Energia, uma violação de direitos que man- beijo, para que nada se perdesse. — Porque eu não
chará para sempre a biografia da presidente afastada. pude encontrar o alimento que me agrada. Se eu ti-
Otávio e sua família foram jogados num dos bairros vesse encontrado, pode acreditar, eu não teria feito
mais violentos da periferia de Altamira, onde pagavam nenhum alarde e teria me empanturrado como você
um aluguel que, junto com a doença de uma das filhas, e todo mundo.
comeu o dinheiro da indenização em alguns meses. Estas foram suas últimas palavras, mas nos seus olhos
A casa alugada foi a primeira não-casa. apagados persistia a convicção firme, embora não mais
orgulhosa, de que continuaria jejuando.
21. Cena verde-amarela (Josué de
Castro e Carolina Maria de Jesus) — Limpem isso aqui! — disse o inspetor.
Vi homens sentados na balaustrada do velho cais a E enterraram o artista da fome junto com a palha. Na
murmurarem monossílabos, com um talo de capim jaula puseram uma jovem pantera. Até mesmo as
dossiêkiwi
pessoas mais insensíveis acharam agradável ver o atentos: era verdade, do canto de Hurbinek vinha de
animal selvagem pulando na jaula que durante muito vez em quando um som, uma palavra, ou melhor,
tempo parecera tão lúgubre. Nada lhe faltava. A co- palavras articuladas, variações experimentais sobre
mida que lhe agradava era trazida pontualmente pelos um tema, uma raiz, talvez sobre um nome.
empregados e ela nem mesmo dava impressão de
sentir a ausência de liberdade. Aquele corpo nobre, Hurbinek continuou, enquanto viveu, nas suas experi-
provido até estourar de tudo o que era necessário, ências obstinadas. Nos dias seguintes, todos nós o
dava a impressão de carregar consigo a própria liber- ouvíamos em silêncio, ansiosos por entendê-lo, e havia
dade; ela parecia estar escondida em algum lugar das entre nós falantes de todas as línguas da Europa: mas a
suas mandíbulas. E a alegria de viver brotava da sua palavra de Hurbinek permaneceu secreta. Não, não era
garganta com tamanha intensidade que para os es- certamente uma mensagem, nem uma revelação: talvez
pectadores não era fácil suportá-la. Mas eles se do- fosse o seu nome, se tivesse tido a sorte de ter um nome;
minavam, apinhavam-se em torno da jaula e não talvez quisesse dizer “fome” ou “pão”; ou talvez “carne”.
queriam de modo algum sair dali.
Hurbinek, que tinha três anos e talvez tivesse nasci-
23. Hurbinek, Yak, Abdulah, Josué do em Auschwitz, que nunca tinha visto uma árvore;
(Primo Levi) Hurbinek, que combateu como um adulto, até o últi-
mo respiro, para conquistar a entrada no mundo dos
mass mass… mass-ti… mass-tik… mass mass-tiklo… homens, do qual uma força brutal o havia banido;
mastiklo… mass mass… Hurbinek, o sem-nome, cujo minúsculo antebraço
também foi marcado, mesmo assim, com a tatuagem
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Hurbinek era um nada, um filho da morte, um filho de Auschwitz.
de Auschwitz. Parecia ter três anos, ninguém sabia
nada dele, não falava e não tinha nome: aquele curio- Hurbinek morreu nos primeiros dias de março de
so nome, Hurbinek, foi dado por nós. Estava paralisa- 1945, livre, mas não redimido. Dele não resta nada:
do dos rins para baixo, tinha as pernas atrofiadas, finas Hurbinek testemunha através destas palavras.
como gravetos; mas os seus olhos, perdidos no rosto
pálido e triangular, eram terrivelmente vivos, cheios Junto com ele, por estas palavras pobres, magras,
de perguntas, de vontade de se libertar, de quebrar o também testemunham as crianças do Sudão do Sul,
túmulo do mutismo. As palavras que lhe faltavam, que do nordeste brasileiro, da Faixa de Gaza, de Bangladesh,
ninguém teve o cuidado de lhe ensinar, a necessidade da Somália, do Níger…
da palavra comprimia seu olhar com uma urgência
explosiva: era um olhar selvagem e humano ao mesmo
tempo, aliás maduro e de juiz, que ninguém podia 3 • O coração do bisão
suportar, tão carregado ele era de força e de tormento. [Música Heiliger Dankgesang/Beethoven.]
Ninguém suportava, salvo Henek: era o meu vizinho
de cama, dava de comer, ajeitava as cobertas, limpava Até aqui, com pena incompetente ou alheia,
o menino com mãos hábeis, desprovidas de repug- contamos a nossa história.
nância. Após uma semana, Henek anunciou com No final, a aposta.
seriedade, mas sem sombra de presunção, que Hur- Esta mesa muda.
binek “dizia uma palavra”. Qual palavra? Não sabia, Fome e banquete.
uma palavra difícil: alguma coisa como “mass-klo”,
“mastiklo”. De noite ficávamos com os ouvidos bem Uma Santa Ceia na parede.
Água na geladeira. [Revela o piso falso do teatro.]
Garapa no fogão.
Uma semente estéril. Tudo terá sido humano.
Mas que humano? Meu pai, minha mãe? Companhei-
[Toc toc toc. Fim da música.] ros dividindo o pão? Camaradas?
Uma história comum? Em comum?
Banquete e fome. Na sala ou na rua?
Carne, colher, mesa, madeira. Pão e terra. Pão e liberdade. Igualdade. Fraternidade.
Pônei, marionetes, lama, lençol, livros, mapas. Justiça. Socialismo.
Porque é certo que um dia o sol se apagará. Estes são desenhos de bisões. Eles foram feitos há 15
E ele não será engolido pelo jaguar. Será apenas mais mil anos em cavernas no sul da França. Os bisões têm
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uma estrela que morre. flechas cravadas na carne.
Isto é: o jaguar vai engolir o sol.
É o que diz uma antiga história indígena. O homem da idade da pedra talvez acreditasse que a
A metáfora. O discurso. A história. representação desses animais, no instante em que
E o real. eram mortos, poderia dar a ele um poder especial. Em
A realidade. A pedra. A mesa. A fome. O dinheiro. um mundo de necessidade e fome é fácil explicar esta
Vidas secas. Fome zero. País da fome. superstição.
Assim como é certo que um dia será nosso último dia Hoje, oitocentos milhões de pessoas passam fome.
sobre a terra.
E nossa vida terá valido a pena. Ou não. Metáfora e documento. Desenhar e caçar. A represen-
Terá sido uma aventura digna. Ou vã. tação e o alimento. A ficção, a vida.
Sim? Mas este homem precisava descobrir algo muito
Sim é uma afirmação. Sim. Mas há uma interrogação importante: ele tinha que encontrar o coração do
no fim: sim? bisão. Era assim que ele adquiria poderes mágicos. O
caçador-poeta tinha algo de anatomista, de cientista,
[Mostra o roteiro impresso ao público.] mas imaginava ser mágico. O lugar do coração.
Todo organismo humano precisa continuamente de Com uma foice. Um martelo. Com uma estrela.
energia. Senão, ele morre. Um sol.
Uma flecha no coração do bisão. Um tiro. Uma flecha. (E lembrar de dizer isto de forma simples, sem exagero,
Uma caçada (de verdade, de mentira). poupando o teatro).
Matar a fome com uma música (Beethoven).
Com um poema (João Cabral): [Silêncio.]
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foto filipe vianna
Fome.doc, 2017