Roteiro FomeDOC

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Fome.

doc
Ensaio sobre a necessidade e a liberdade.
Roteiro de Fernando Kinas.
Versão final de outubro de 2017.

No teatro. esquelético. O corpo alimenta-se de si mesmo.


Uma atriz, um ator, um músico.
Uma grande mesa de madeira. Duas cadeiras. Duas Sem outras fontes de energia, o cérebro também é
tribunas. prejudicado, perdendo aos poucos a função de coman-
dar o corpo. Dificuldade de raciocínio, tontura, in-
Os textos devem ser distribuídos ao elenco conforme consciência, náusea são comuns neste estágio.
os objetivos de cada montagem.
Na fase extrema da fome o metabolismo já não tra-
Recepção do público com sambas: O dia em que o morro balha normalmente, ele fica lento, comprometendo
descer e não for carnaval/Wilson das Neves; Balança o funcionamento de todos os órgãos e impedindo a
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povo/Martinho da Vila; Ronco da cuíca/Aldir Blanc produção de substâncias importantes como os hor-
e João Bosco; Batuque na cozinha/Martinho da Vila; mônios e as enzimas.
O Vendedor de Bananas/Jorge Ben Jor.
Não havendo mais recursos para satisfazer a fome, o
indivíduo morre.
PREFácio agridoce
O organismo humano precisa continuamente de Durante este trabalho, milhares de pessoas, em todo
energia. o mundo, vão morrer de fome e das suas complicações.

[Música de kalimba. Quem enuncia o texto deve estar [Música Quartets I-VIII/John Cage.]
sem fôlego.]

Em caso de carência alimentar, quando se passa fome, 1 • A mesa


o organismo busca outras fontes de energia, armaze- 1. Documento e metáfora
nadas no corpo, especialmente no tecido adiposo.
Assim as células capturam e absorvem a glicose e os Nossa história começa com esta mesa.
carboidratos, queimando as gorduras para manter as Uma mesa de madeira.
necessidades básicas do organismo. No teatro.
Em uma mesa banquetes são oferecidos.
Nos indivíduos que já não possuem gordura estocada, Em uma mesa banquetes são organizados. Decididos.
o organismo retira a energia dos músculos, levando à Em uma mesa, também, a fome pode ser decidida.
perda de massa muscular e deixando o indivíduo Organizada.
dossiêkiwi

Porque a fome como o banquete são decisões. Usura. Desgaste. Do ferro. Da luta. Da carne.
Organizam-se banquetes e fome. Do humano.
Decidem-se banquetes e fome.
Esta é a carne!
Nossa história começa com esta mesa. Esta é a carne!
Uma mesa de madeira. A carne é também documento.
No teatro. E a carne é também metáfora.
Em uma mesa banquetes são oferecidos. (Da luta, da dor, do sexo, do amor, do suor, da vida,
Em uma mesa banquetes são organizados. Decididos. da morte.)
Em uma mesa, também, a fome pode ser decidida.
Organizada. E tudo: colher, carne, mesa e madeira.
Porque a fome como o banquete são decisões. Metáfora ou documento.
Organizam-se banquetes e fome. Documento e metáfora.
Decidem-se banquetes e fome. Tudo existe no tempo.
Existe no espaço.
Não há fatalidade. A fome é uma decisão, como o (E ele também - tempo/espaço - é documento e
banquete. metáfora).
A fome tem muitas causas, a falta de alimentos não Uma história.
é uma delas. Uma história humana.
A causa da fome é a riqueza, não a pobreza. No mundo.
Há guerras, sim. Há secas, gafanhotos, inundações, No teatro.
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pragas. Sim.
Mas a fome é uma decisão. 2. Coro shakespeariano (Henrique V)
No entanto, não se organizam, não se assinam, não se [Música de viola. Lençol de linho.]
decretam banquetes e fome em uma mesa de teatro.
Não é verdade? Que a musa de fogo aqui pudesse
Uma mesa é uma metáfora. Subir ao céu brilhante da invenção!
E uma mesa é, também, um documento. Reinos por palco, príncipes atores,
Monarcas a observar a pompa cênica!
[Toc toc toc. Fim da música.] Então o próprio Henrique, qual guerreiro,
De Marte assumiria o porte; e, atrás,
Como esta colher é documento. Presos quais cães, a fome, a espada e o fogo
Esta colher. Aguardariam ordens. Mas perdoem
E metáfora. Os mesquinhos espíritos que ousaram
Esta colher. Neste humilde tablado apresentar
Documento e metáfora da fome. Da luta contra a fome. Tema tão grande: conterá tal arena
Da sobrevivência. As planícies da França? Ou poderemos
Do tempo e da história. Segurar neste cercado de madeira os elmos
Uma colher inspirada em um artista russo. Yuri Kuper. Que assustaram os ares de Agincourt?
Gasta. De ferro. Torta. Carcomida.
Marcada pelo tempo. [Revela o piso falso do teatro.]
Uma colher histórica!
foto fernando kinas

Fome.doc, 2017

Peço perdão! Mas já que um zero pode 3. A fome e a boca


Atestar um milhão em pouco espaço,
Deixem que nós, as cifras desta conta, Então, quem fala e toca (ator, atriz, músico) ocupa um
Acionemos a sua força de imaginação. lugar.
Suponham que no abraço destes muros Fala a partir do seu lugar. Deste lugar.
Estão confinadas duas monarquias, Neste lugar.
Cujas altas fachadas confrontadas Terras e tempos, diz Shakespeare.
Uma nesga de mar feroz separa. Invasão, genocídio, escravidão, latifúndio, monocul-
Com o pensamento curem nossas falhas; tura, agronegócio, commodities, especulação.
Em mil partes dividam cada homem, Esta lavoura arcaica travestida de máquinas, pesticidas,
E criem poderio imaginário planilhas e chicote.
Pensem ver os cavalos de que falamos, Um ponto de vista.
Imprimindo na terra suas pegadas: Este ponto de vista.
Pois suas mentes vestem nossos reis, Este ponto de vista.
Carregando-os, por terras e por tempos, Este.
Juntando o que acontece em muitos anos
Em uma hora; e, para ajudá-los, [Diferentes posições com as duas mãos.]
Admitam-me, o coro, nesta história
Pra que de sua paciência eu peça A humanidade, disse Josué de Castro, se divide em
Que julguem com bondade nossa peça. dois grupos:
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o grupo dos que não comem comienzan a hacer matanzas e crueldades extrañas en
e o grupo dos que não dormem, ellos. Entraban en los pueblos, ni dejaban niños ni
com medo daqueles que passam fome. viejos ni mujeres preñadas ni paridas que no desbar-
rigaban e hacían pedazos, como si dieran en unos
A ideia é a seguinte: corderos metidos en sus apriscos. Hacían apuestas
sobre quién de una cuchillada abría el hombre por
Não há monstros embaixo da cama. medio, o le cortaba la cabeza de un piquete o le des-
Não existem fantasmas. cubría las entrañas. Tomaban las criaturas de las tetas
de las madres, por las piernas, y daban de cabeza con
[Lençol de linho.] ellas en las peñas. Otros daban con ellas en ríos por
las espaldas, riendo e burlando e cayendo en el agua
Exceto nos teatros. O pai de Hamlet. Exigindo vin- decían: bullís cuerpo de tal; otras criaturas metían a
gança. espada con las madres juntamente e todos cuantos
Ou Pluft, o fantasminha medroso. delante de sí hallaban. Hacían unas horcas largas, que
É a história da “porta aberta da dor”. juntasen casi los pies a la tierra, e de trece en trece, a
Alguém abre a porta, alguém inventa a porta. Há uma honor y reverencia de Nuestro Redemptor e de los
porta. E há uma dor. doce apóstoles, poniéndoles leña e fuego los quemaban
vivos. Otros ataban o liaban todo el cuerpo de paja
E há também a luta que expulsa a dor. seca, pegándoles fuego así los quemaban.
Que tenta expulsar a dor.
Os cristãos, com seus cavalos e espadas e lanças,
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[Silêncio.] começam a fazer matanças e crueldades estranhas.
Entravam nos povoados indígenas, não deixavam
Passado o silêncio crianças e velhos, nem mulheres grávidas ou paridas
ditas estas palavras que não estripavam e faziam em pedaços, como se
— estas! - fossem cordeiros em seus currais. Faziam apostas
outras palavras, sobre quem com uma única facada abria um homem
gastas, de ferro (de sonho, de seda) e tortas, ao meio, ou cortava sua cabeça com um golpe ou
como esta colher expunha suas entranhas. Tomavam as crianças dos
— esta colher! - seios de suas mães, pelas pernas, e as jogavam de
circularão. cabeça contra as pedras. Outros, as atiravam nos rios,
A palavra circulará. rindo e gozando, e caindo na água diziam: mexam
Como documento e como metáfora. agora; em outras crianças enfiavam a espada com as
mães junto, e todos aqueles que estavam por perto.
Faziam umas forcas longas, de modo que os pés qua-
2 • Documentos exemplares se tocavam a terra, e de treze em treze, em honra e
1. O genocídio indígena (Bartolomé reverência a Nosso Redentor e aos doze apóstolos,
de las Casas) colocando lenha e fogo, queimavam-nos vivos. Outros
eram atados ou amarrados em todo o corpo com
[Música Marin Marais/Jordi Savall. Os textos em palha seca e depois punham fogo, assim os queimavam.
espanhol devem ser ouvidos em gravação.] Tienen los españoles de las Indias enseñados y ama-
estrados perros bravísimos y ferocísimos para matar
Los cristianos con sus caballos y espadas e lanzas y despedazar los indios. Sepan todos los que son
verdaderos cristianos y aun los que no lo son si se ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o di-
oyó en el mundo tal obra, que para mantener los dichos nheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A
perros traen muchos indios en cadenas por los cami- chuva passou um pouco. Vou sair.
nos, que andan como si fuesen manadas de puercos,
y matan dellos, y tienen carnecería pública de carne Eu tenho tanta dó dos meus filhos. Quando eles veem
humana, e dícense unos a otros: “Préstame un cuarto as coisas de comer eles bradam: Viva a mamãe. A ma-
de un bellaco desos para dar de comer a mis perros nifestação me agrada. Mas eu já perdi o hábito de sor-
hasta que yo mate otro”, como si prestasen cuartos rir. Dez minutos depois eles querem mais comida. Eu
de puerco o de carnero. mandei o João pedir um pouquinho de gordura pra Dona
Ida. Ela não tinha. Mandei-lhe um bilhete assim: Dona
¿Qué puede ser más fea ni fiera ni inhumana cosa? Ida peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura,
para eu fazer uma sopa para os meninos. Hoje choveu
Os espanhóis que estão nas Índias possuem cães e eu não pude ir catar papel. Agradeço. Carolina.
muito selvagens, instruídos e ensinados a matar e
despedaçar os índios. Que todos os que são cristãos [Frase não gravada.] Carolina Maria de Jesus.
e mesmo os que não o são, vejam se jamais se ouviu
coisa semelhante no mundo: para nutrir esses cães, Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno
os espanhóis, por toda parte aonde vão, levam consi- a gente come mais. A minha filha Vera começou
go muitos índios acorrentados, como se fossem por- pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espe-
cos e matam-nos para nutrir os cães, arrastando táculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia com-
consigo um açougue de carne humana. E um diz ao prar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui
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outro: empresta-me um quarto de índio para dar de pedir um pouco de banha a dona Alice. Ela me deu a
comer a meus cães, até que eu também mate algum; banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos.
fazem isso como se pedissem emprestado um quarto
de porco ou de ovelha. E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a
escravatura atual, a fome!
Haverá coisa mais horrível, brutal e desumana?
3. A utilidade da escravidão (José de
2. A escravidão atual (Carolina Alencar)
Maria de Jesus)
A utilidade da escravidão.
[Chuva teatral. Texto gravado, ouvido através de um
celular.] [O texto deve ser lido em dois grandes, velhos e
empoeirados livros.]
13 de maio de 1958.
A escravidão é um fato social, como são ainda o des-
Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para potismo e a aristocracia; como já foram a compra da
mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a mulher, a propriedade do pai sobre os filhos e tantas
libertação dos escravos. outras instituições antigas.

Continua chovendo. Eu tenho só feijão e sal. A chuva A escravidão caduca, mas ainda não morreu; ainda se
está forte. Mesmo assim mandei os meninos para a prendem a ela graves interesses de um povo. É quan-
escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu to basta para merecer o respeito.
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Lançar o ódio sobre as instituições vigentes, qualifi- pente e no seio da civilização.


cando seus defensores de espíritos mesquinhos e Por que razão?
retrógrados, é um terrível precedente em matéria de Os filantropos abolicionistas, elevados pela utopia,
reforma. A liberdade e a propriedade, essas duas fibras não sabem explicar este acontecimento. Vendo a
sociais, cairiam desde já em desprezo ante os sonhos escravidão por um prisma odioso, recusam-lhe uma
do comunismo. ação benéfica no desenvolvimento humano.

Mais bárbaras instituições, porém, do que a escravidão, Ressurge a escravidão no século XV suscitada pela
já existiram e foram respeitadas por nações não me- mesma indeclinável necessidade que a tinha criado
nores em virtude do que as modernas. em princípio e mantido por tantos milênios.

Toda a lei é justa, útil, moral, quando realiza um me- Sem a escravidão africana e o tráfico que a realizou, a
lhoramento na sociedade e apresenta uma nova situ- América seria ainda hoje um vasto deserto. O escravo
ação, embora imperfeita da humanidade. era um instrumento indispensável. Tentaram supri-lo
com o índio; este preferiu o extermínio.
Neste caso está a escravidão.
Vem muito a propósito parodiar a palavra célebre de
É uma forma, rude embora, do direito; uma fase do Aristóteles:
progresso; um instrumento da civilização, como foi “Se a enxada se movesse por si mesma era possível
a conquista. Na qualidade de instituição me parece dispensar o escravo.”
tão respeitável como a colonização; porém muito
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superior quanto ao serviço que prestou ao desenvol- [Pausa. Fim da Passacaglia/Heinrich Biber.]
vimento social.
Chego à questão da atualidade da escravidão.
Se a escravidão não fosse inventada, a marcha da É a escravidão um princípio exausto, que produziu
humanidade seria impossível. todos os seus bons efeitos e tornou-se, portanto, um
abuso, um luxo de iniquidade e opressão?
O primeiro capital do homem foi o próprio homem.
Nego, e o nego com a consciência do homem justo,
[Música Passacaglia/Heinrich Biber.] que venera a liberdade; com a caridade do cristão, que
ama seu semelhante e sofre na pessoa dele.
Na Europa, a salutar influência do Cristianismo adoçou
a escravidão; e a organização da sociedade foi operan- A raça branca, embora reduzisse o africano à condição
do nela uma transformação lenta. Entrou aquela anti- de uma mercadoria, nobilitou-o não só pelo contacto,
quíssima instituição em outra fase, a servidão, que só como pela transfusão do homem civilizado.
foi completamente extinta com a Revolução Francesa.
[Percussão e dança miscigenadas. Na sequência, 9ª
O escravo deixou de ser coisa, ou animal; tornou-se Sinfonia, Ode à alegria/Beethoven.]
homem, como exigia Sêneca; mas o homem proprie-
dade, preso ao solo ou à pessoa do senhor feudal. Sem esse enorme estômago, chamado Europa, que
anualmente digere aos milhões os gêneros coloniais, a
Havia quinhentos anos que se extinguira na Europa a escravidão não regurgitaria na América. Mas era preciso
escravidão, quando no século XV ressurge ela de re- alimentar o colosso; e satisfazer o apetite voraz.
O filantropo europeu, entre a fumaça do bom tabaco Todas as concessões que a civilização vai obtendo do
de Havana e da taça do excelente café do Brasil, se coração do senhor limam a escravidão sem a desmo-
enleva em suas utopias humanitárias e arroja contra ralizar. O cativo, se for libertado, permanecerá em
estes países uma aluvião de injúrias pelo ato de man- companhia do senhor; e se tornará em criado.
terem o trabalho servil. Mas por que não repele o
moralista com asco estes frutos do braço africano? O liberto por lei é inimigo nato do antigo dono; foge
da casa onde nasceu.
Em sua teoria, a bebida aromática, a especiaria, o
açúcar e o delicioso tabaco são o sangue e a medula Para a casta dominante, especialmente a agrícola, a
do escravo. Não obstante, ele os saboreia. Sua filan- libertação significa a ruína pela deserção dos braços e
tropia não suporta esse pequeno sacrifício de um gozo a impossibilidade de sua pronta substituição; signifi-
requintado; e, contudo, exige dos países produtores ca igualmente o perigo e o sobressalto da insurreição
que, em homenagem à utopia, arruínem sua indústria iminente.
e ameacem a sociedade com uma sublevação.
José de Alencar, escritor e político, 1867.
[Pausa curta.]
4. Hoje amanheceu chovendo
Conservar escravo o homem que nasceu tal é uma (Carolina Maria de Jesus)
instituição; reduzir à escravidão pessoa livre é um
crime. 13 de maio de 1958.

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A única transição possível entre a escravidão e a li- [Chuva, que continua durante a próxima cena.]
berdade é aquela que se opera nos costumes e na ín-
dole da sociedade. O domínio do senhor se reduz, Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para
então, a uma tutela benéfica. mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a
libertação dos escravos.
[Sinhazinha e escravo.]
70 anos. 100 anos. 130 anos…
Viesse ao Brasil algum estrangeiro, desses que deva-
neiam em sonhos filantrópicos nas poltronas estufa- 5. A fome e o campo (Primo Levi)
das dos salões parisienses, e entrasse no seio de uma
família brasileira. Vendo a dona da casa, senhora de Tudo ao redor é cinza, e nós também somos cinzentos;
primeira classe, desvelar-se na cabeceira do escravo de manhã, quando ainda está escuro, todos esquadri-
enfermo; ele pensaria que a filantropia já não tinha o nhamos o céu à espera dos primeiros sinais da prima-
que fazer onde morava desde muito a caridade. vera, e cada dia comenta-se o levantar do sol - hoje
um pouco antes do que ontem, hoje um pouco mais
Estudando depois a existência do escravo, a satisfação quente; em dois meses, num mês, o frio abrandará,
de sua alma, a liberdade que lhe concede a benevolên- teremos um inimigo a menos.
cia do senhor; se convenceria que esta revolução dos
costumes trabalha mais poderosamente para a extin- Acabado o frio, que durante todo o inverno nos pare-
ção da escravatura do que uma lei porventura votada cia o único inimigo, nos demos conta de ter fome, e,
no parlamento. voltando ao mesmo erro, hoje repetimos: - Se não
fosse por essa fome... Como poderíamos pensar em
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não ter fome? O Campo de Concentração é a fome; lestina. Minha Dama, eu mereço, mereço viver, porque
nós mesmos somos a fome, uma fome viva. você é a minha Dama.

Assim como nossa fome não é apenas a sensação de 7. Homens e caranguejos (Josué de
quem deixou de almoçar, nossa maneira de termos frio Castro)
mereceria uma denominação específica. Dizemos
“fome”, dizemos “cansaço”, “medo” e “dor”, dizemos Com as sombrias imagens dos mangues e da lama eu
“inverno”, mas trata -se de outras coisas. Aquelas são comecei a criar o mundo da minha infância.
palavras livres, criadas, usadas por homens livres que
viviam, entre alegrias e tristezas, em suas casas. [Música de viola.]

Se os Campos de Extermínio tivessem durado mais Triste vida de posseiro


tempo, teria nascido uma nova, áspera linguagem, e junto à Alagoa Amarela.
ela nos faz falta agora para explicar o que significa
trabalhar o dia inteiro no vento, abaixo de zero, ves- [Cantando.]
tindo apenas camisa, roupa de baixo, casaco e calças
de brim e tendo dentro de si fraqueza, fome e a cons- Vinte anos sobre a terra
ciência da morte que chega. cavando o faltoso pão,
vinte anos de promessa
Primo Levi. com a mesma enxada na mão,
catorze filhos no mundo
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6. A Dama (Mahmud Darwich) fora os que estão no caixão.
Peguei na espingarda velha
[Música Sur cette terre/Trio Joubran, incluindo a como quem pega o enxadão,
declamação de Mahmud Darwich + música de viola.] com a força que a fome dá
pra quem defende seu pão.
Nesta terra, há coisas que merecem viver: a hesitação
de abril, o cheiro do pão ao amanhecer, as opiniões de Foi assim que eu vi e senti formigar dentro de mim a
uma mulher sobre os homens, os escritos de Ésquilo, terrível descoberta da fome. Da fome de uma popula-
o início do amor, a erva sobre uma pedra, as mães de ção inteira escravizada à angústia de encontrar o que
pé sobre um fio de flauta e o medo que a recordação comer. Vi os caranguejos espumando de fome à beira
inspira aos conquistadores. da água, à espera que a correnteza lhes trouxesse um
pouco de comida, um peixe morto, uma casca de fru-
Nesta terra, há coisas que merecem viver: o fim de ta, um pedaço de bosta que eles arrastariam para o
setembro, uma mulher que entra nos quarenta com seco matando a sua fome. E vi também os homens
todo seu vigor, a hora de sol na prisão, as nuvens que sentados na balaustrada do velho cais a murmurarem
imitam um bando de criaturas, as aclamações de um monossílabos, com um talo de capim enfiado na boca,
povo pelos que caminham, sorridentes, para a morte chupando o suco verde do capim e deixando escorrer
e o medo que as canções inspiram aos tiranos. pelo canto da boca uma saliva esverdeada que me
parecia ter a mesma origem da espuma dos carangue-
Nesta terra, há coisas que merecem viver: nesta terra jos: era a baba da fome.
está a dona da terra, mãe dos prelúdios e dos epílogos.
Chamavam-lhe Palestina. Continua a chamar-se Pa- [Negros borrões. Lama.]
Pouco a pouco, por sua obsessiva presença, este vago Mesmo quando ia me distrair, assistindo aos canta-
desenho da fome foi ganhando relevo, foi tomando dores de feira ou ao espetáculo do bumba-meu-boi, o
forma e sentido em meu espírito. Fui compreendendo que encontrava diante de mim, representando, falan-
que toda a vida dessa gente girava sempre em torno do, gesticulando, era sempre a fome em seus nume-
de uma só obsessão – a angústia da fome. Sua própria rosos disfarces. Eram os violeiros cantando:
linguagem era uma linguagem que quase não fazia
alusão a outra coisa. A sua gíria era sempre carregada [Canta-se a mesma música do início da cena.]
de palavras evocando comidas. As comidas que dese-
javam com desenfreado apetite. A propósito de tudo E no bumba-meu-boi, o que eu via era um estranho
se dizia: é uma sopa, é uma canja, é um tomate, é uma boi de duas pernas apenas, o mais humano dos bois
ova, é um abacaxi, é batata, é pão-pão queijo-queijo, que eu tinha encontrado na vida, sofrendo como um
é uma marmelada, é mamão com açúcar… Era como homem, chorando e revoltando-se como gente. E eu
se esta gíria fosse uma espécie de compensação men- me tomava de amores por aquele boi magro e seco, tão
tal de um povo sempre faminto. De um povo inteiro magro e tão seco que, na verdade, era só cabeça e na
de barriga vazia, mas com a cabeça cheia de comidas cabeça era só chifres. Enormes chifres balançando no
imaginárias. É que a comida lhes havia subido à cabe- ar como um fantasma de boi.
ça, como o sexo sobe à cabeça dos impotentes, estes
famintos de amor. [Lençol de linho.]

Vê-los agir, falar, lutar, sofrer, viver e morrer era ver a Realmente o boi era só chifres e pelo, porque carne
própria fome modelando, com suas despóticas mãos não tinha, como afirmava em sua cantoria o vaqueiro
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de ferro, os heróis do maior drama da humanidade que, apalpando o boi por toda parte, nunca encontra-
– o drama da fome. va em parte alguma sinal de carne.

Pensei, a princípio, que a fome era um triste privilégio E foi assim que, pelas histórias dos homens e pelo
desta área onde eu vivia – a área dos mangues. Depois roteiro do rio, fiquei sabendo que a fome não era um
verifiquei que, no cenário da fome do Nordeste, produto exclusivo dos mangues. E quando cresci e saí
os mangues eram uma verdadeira terra de promissão pelo mundo afora, vendo outras paisagens, percebi
que atraía os homens vindos de outras áreas de mais com nova surpresa que o que eu pensava ser um dra-
fome ainda. Da área das secas e da área da monocul- ma do meu bairro, era um drama universal.
tura da cana-de-açúcar, onde a indústria açucareira
esmagava, com a mesma indiferença, a cana e o homem: Que a paisagem humana dos mangues se reproduzia
reduzindo tudo a bagaço. no mundo inteiro. Que aqueles personagens da lama
do Recife eram idênticos aos personagens de inúme-
Era um curso inteiro que eu fazia sobre a fome, quan- ras outras áreas do mundo, assoladas pela fome. Que
do ouvia, com um interesse sempre crescente, as in- aquela lama humana do Recife, que eu conhecera na
termináveis histórias contadas por meu pai sobre as infância, continua sujando até hoje toda a paisagem
agruras sofridas pela nossa família, na seca de 1877. do nosso planeta como negros borrões de miséria: as
Da presença da fome na zona do açúcar, tomei conhe- negras manchas demográficas da geografia da fome.
cimento mais detalhado através do relato monótono
de dois velhos negros que tinham sido escravos na Josué de Castro.
juventude e que desfilavam suas lembranças da época
enquanto cortavam grama para os cavalos de meu pai.
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8. Relatório sobre a fome no O tubarão-tigre é um animal enorme, da família dos


mundo: o caso dos tubarões-tigre carcarrinídeos, carnívoro e extremamente voraz. Do-
(Jean Ziegler) tado de grandes dentes e olhos negros, é um dos seres
mais temíveis do planeta. Está presente em todos os
[Música Não Fome!/Cólera + som do solstício de mares temperados e tropicais, preferindo as águas
inverno.] turvas. Com suas mandíbulas, exerce uma pressão de
várias toneladas por centímetro quadrado. Para man-
Apenas dez sociedades, entre as quais Aventis, Mon- ter a oxigenação de seu organismo, tem que nadar
santo e Syngenta, controlam um terço do mercado permanentemente. É capaz de detectar uma gota de
mundial de sementes, 23 bilhões de dólares por ano, sangue diluída em 4,6 milhões de litros de água.
e 80% do mercado mundial de pesticidas, 28 bilhões
de dólares. Dez outras sociedades, entre elas a Cargill, O especulador de bens alimentares que atua na bolsa
controlam 57% das vendas dos trinta maiores vare- de matérias-primas agrícolas de Chicago (Chicago Com-
jistas do mundo e representam 37% das receitas das modity Stock Exchange) corresponde muito bem à
cem maiores sociedades fabricantes de produtos ali- descrição do tubarão-tigre. Ele também é capaz de de-
mentícios e de bebidas. E cinco empresas controlam tectar suas vítimas a dezenas de quilômetros e de ani-
77% do mercado de adubos: Bayer/Monsanto, Syn- quilá-las em um instante, satisfazendo sua voracidade
genta, Basf, Cargill, DuPont. ou, dito de outra maneira, realizando lucros fabulosos.

Como funciona a Cargill: Em suma: com os Estados ocidentais mostrando-se


incapazes para impor quaisquer limites jurídicos aos
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Em Tampa, na Flórida, a Cargill produz adubos à base especuladores, o banditismo bancário floresce atual-
de fosfato. Com esse adubo, ela fertiliza as suas plan- mente mais do que nunca. Contudo, como consequ-
tações de soja nos Estados Unidos. Na Flórida, os grãos ência da implosão dos mercados financeiros, que eles
do cereal são transformados em farinha, nas fábricas mesmos provocaram em 2008, os tubarões-tigre mais
da Cargill. Em navios, da Cargill, essa farinha é envia- perigosos migraram para os mercados de matérias
da à Tailândia, onde alimenta os frangos criados em -primas, especialmente os mercados agroalimentares.
granjas da Cargill. Engordados, os frangos são abatidos
e eviscerados em instalações quase inteiramente au- As leis do mercado impõem a ignorância intencional
tomatizadas, da Cargill. A Cargill embala os frangos, do fato que a alimentação é um direito humano, um
que a sua frota transporta para o Japão, as Américas e direito de todos. O especulador de matérias-primas
a Europa. Finalmente, caminhões da Cargill os distri- alimentares atua em todas as frentes e sobre tudo
buem aos supermercados, muitos dos quais pertencem capaz de trazer algum ganho - joga especialmente com
às famílias… MacMillan. E Cargill. Acionistas que a terra, os insumos, as sementes, os adubos, os cré-
detêm 85% do controle do truste transcontinental. ditos e os alimentos.

No mercado mundial, os oligopólios jogam todo o seu [Canção do desabastecimento/Victor Jara. O próximo
peso para impor os preços dos alimentos. Oligopólio texto deve se sobrepor à música.]
é o nome científico para tubarão-tigre.
9. Lembrete 1
[Cena do tubarão-tigre. A música faz referência a
Jaws/John Williams.] Folha de S. Paulo, 22 de setembro de 2016.
O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, disse — Se você pudesse pedir o que quisesse, qualquer
nesta quarta-feira que a mudança da legislação para coisa, para um gênio da lâmpada, o que você pediria?
permitir a compra de terras por estrangeiros seria
positiva no esforço do governo para aumentar os Aisha demorou um tempo, como quem estivesse
investimentos no país. diante de uma coisa impensável:
“Esse é um assunto fundamental e nós achamos que
de fato seria positivo se fosse aprovado, na medida — O que eu quero é uma vaca, que me dê muito lei-
em que aumenta o investimento no Brasil e a produ- te; então, se eu vender um pouco do leite, posso
tividade geral da economia”, disse o ministro após comprar as coisas para fazer doce e vender no mer-
encontro com empresários em Nova York. cado. Com isso eu me ajeitaria mais ou menos.
— O que estou dizendo é que o gênio da lâmpada
A ideia de liberar a venda de terras agrícolas a es- pode lhe dar qualquer coisa, o que você pedir.
trangeiros tem sido discutida pelo governo Michel — De verdade, qualquer coisa?
Temer, depois de ter sido vetada em 2010. O objeti- — Sim, qualquer coisa.
vo é aumentar investimentos na produção, mas falta
detalhar o projeto. [Silêncio.]

10. O livro e o mapa da fome — Duas vacas?


(Graciliano Ramos e Martín Caparrós) Duas vacas. Ela me disse isso sussurrando e explicou:
— Com duas vacas eu não passaria mais fome.
[Lendo o livro Vidas secas.]
61
Era muito pouco. E era tanto.
Na planície avermelhada, os juazeiros alargavam duas
manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia 11. Veneno ou as irmãs siamesas
inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamen- (Cargill e Monsanto)
te andavam pouco, mas como haviam repousado
bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem [Um paletó para dois. Música March/Anthony Braxton.]
três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra.
A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos Produzimos e comercializamos internacionalmente pro-
galhos pelados da caatinga rala. dutos e serviços alimentícios, agrícolas, financeiros e
industriais. Em parceria com produtores, clientes, go-
Assim começa Vidas secas, romance de Graciliano vernos e comunidades, e por meio de 150 anos de expe-
Ramos, publicado em 1938. Eles continuam caminhan- riência, nós ajudamos a sociedade a prosperar. Temos
do, famintos. A história [folheia o livro] não acabou. 150 mil funcionários em 70 países que estão compro-
metidos em alimentar o mundo de forma responsável,
[Um mapa da região é mostrado.] reduzindo impactos ambientais e melhorando as comu-
nidades onde vivem e trabalham. Nós somos a Cargill.
Aqui está o Níger, África. Numa aldeia isolada mora
Aisha, ela tem entre 30 e 35 anos, olhos de tristeza, Bilhões de pessoas dependem do que os agricultores
um pano lilás cobrindo todo o resto [o mapa é usado produzem. E outros bilhões também dependerão no
como pano]. Aisha come todos os dias uma bola de futuro. Nas próximas décadas, os agricultores terão
milho, só uma bola de milho. Em alguns dias, nem que produzir uma quantidade de alimentos compa-
isso. Eu pergunto: rável à soma de tudo o que já produziram nos últimos
dossiêkiwi

foto ACERVO DA COMPANHIA


Fome.doc, 2017
62

10 mil anos. Nosso objetivo é trabalhar em conjunto agrícolas que produz maconha e pesticidas. Sua meta
com os agricultores, pesquisadores e diversas insti- é dominar os mercados de produtos químicos e me-
tuições para aumentar a produtividade e tornar a dicamentos para pessoas, plantas e animais.
agricultura mais sustentável. Nós ajudamos a produ- Lembrete 3: Também segundo a revista Exame, a
zir mais alimentos desenvolvendo sementes, biotec- Monsanto é famosa por produzir alguns produtos
nologia e produtos para a proteção de cultivos. Nós químicos controversos e altamente tóxicos, como os
somos a Monsanto. bifenilos policlorados, conhecidos como PCBs e atu-
almente banidos, e o herbicida agente laranja, que foi
[Cena improvisada revelando ao público que os textos usado pelo exército dos EUA no Vietnã. A Monsanto
acima foram retirados dos sites das empresas Cargill comercializou o herbicida Roundup nos anos 1970 e
e Monsanto.] começou a desenvolver milho e sementes de soja
geneticamente modificados nos anos 1980.
Lembrete 2: Segundo a revista Exame, em 2016 a
Bayer comprou a Monsanto por 66 bilhões de dólares. 12. Fome, colonialismo e filantropia
A Bayer é famosa pelas aspirinas que vende. Ela foi (Oscar Wilde)
contratada pelos nazistas durante a Segunda Guerra
Mundial e usou trabalho forçado. Atualmente, a em- Os homens estão cercados pelos horrores da pobreza,
presa com sede em Leverkusen, na Alemanha, fabri- pelos horrores da feiura, pelos horrores da fome. É
ca medicamentos e tem uma unidade de ciências inevitável que se emocionem diante de tudo isso. As
emoções são despertadas mais rapidamente do que a inconsciente, às vezes não, geram no primeiro caso, a
inteligência. esterilidade e no segundo a histeria.

É muito mais fácil sentir simpatia pelos que sofrem A esterilidade: aquelas obras encontradas fartamente
do que sentir simpatia por uma ideia. Assim, com em nossas artes, onde o autor se castra em exercícios
intenções louváveis, embora equivocadas, os homens formais que não atingem a plena possessão de suas
se atiram, séria e sentimentalmente, na tarefa de formas. O sonho frustrado da universalização: artistas
remediar os males que veem. Mas seus remédios não que não despertaram do ideal estético adolescente.
curam a doença: eles só a prolongam. Na verdade, seus
remédios são parte da doença. A histeria: um capítulo mais complexo. A indignação
social provoca discursos flamejantes. O primeiro
Eles buscam solucionar o problema da pobreza, por sintoma é o anarquismo que marca a poesia jovem
exemplo, mantendo vivo o pobre; ou, segundo uma até hoje. O segundo é uma redução política da arte
teoria mais avançada, divertindo o pobre. Mas isto não que faz má política por excesso de sectarismo. O
é uma solução: é um agravamento da dificuldade. A terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma sistema-
meta adequada é reconstruir a sociedade sobre bases tização para a arte popular.
que tornem a pobreza impossível. E as virtudes altru-
ístas têm na realidade impedido de alcançar essa meta. A fome latina, por isto, não é somente um sintoma
alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí
Assim, os piores escravagistas eram os que se mos- reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante
travam mais bondosos com seus escravos, pois impe- do cinema mundial: nossa originalidade é a nossa
63
diam que o horror do sistema fosse percebido pelos fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo
que o sofriam, e compreendido pelos que o contem- sentida, não é compreendida.
plavam. Então, nas atuais circunstâncias, os que mais
danos causam são os que mais procuram fazer o bem. [Febrilidade crescente.]

Oscar Wilde (1891). De Aruanda a Vidas secas, o Cinema Novo narrou,


descreveu, poetizou, discursou, analisou, exercitou os
13. Gênio da raça (Glauber Rocha) temas da fome: personagens comendo terra, perso-
nagens comendo raízes, personagens roubando para
Eztetyka da Fome comer, personagens matando para comer, personagens
A América Latina permanece colônia e o que diferen- fugindo para comer, personagens sujas, feias, descar-
cia o colonialismo de ontem do atual é apenas a nadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi esta
forma mais aprimorada do colonizador: e além dos galeria de famintos que identificou o Cinema Novo
colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que com o miserabilismo tão condenado pelo Governo,
também sobre nós armam futuros botes. O problema pela crítica a serviço dos interesses antinacionais
internacional da América Latina é ainda um caso de pelos produtores e pelo público – este último não
mudança de colonizadores, sendo que uma libertação suportando as imagens da própria miséria.
possível estará ainda por muito tempo em função de
uma nova dependência. Este miserabilismo do Cinema Novo opõe-se à ten-
dência do digestivo: filmes de gente rica, em casas
Este condicionamento econômico e político nos levou bonitas, andando em carros de luxo: filmes alegres,
ao raquitismo filosófico e à impotência, que, às vezes cômicos, rápidos, sem mensagens, de objetivos pu-
dossiêkiwi

ramente industriais. Estes são os filmes que se opõem


à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de
luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria mo-
ral de uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo
os próprios materiais técnicos e cenográficos pudes-
sem esconder a fome que está enraizada na própria
incivilização. O miserabilismo, que era escrito como
denúncia social, hoje passou a ser discutido como
problema político.

foto filipe vianna


O brasileiro não come, mas tem vergonha de dizer
isto; e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome.
Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tris- Fome.doc, 2017
tes, estes filmes gritados e desesperados onde nem
sempre a razão falou mais alto – que a fome não será
curada pelos planejamentos de gabinete e que os re-
mendos do tecnicolor não escondem mas agravam censura, aí haverá um germe vivo do Cinema Novo.
seus tumores. Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o
comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecni-
[Música Technicolor/Mutantes. Delírio Tropicalista.] cismo, aí haverá um germe do Cinema Novo. Onde
houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer
64
Assim, somente uma cultura da fome, minando suas procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão
próprias estruturas, pode superar-se qualitativamen- a serviço das causas importantes de seu tempo, aí
te: a mais nobre manifestação cultural da fome é a haverá um germe do Cinema Novo. A definição é esta
violência. A mendicância, tradição que se implantou e por esta definição o Cinema Novo se marginaliza da
com a redentora piedade colonialista, tem sido uma indústria porque o compromisso do Cinema Industrial
das causadoras de mistificação política e de ufanista é com a mentira e com a exploração.
mentira cultural: os relatórios oficiais da fome pedem
dinheiro aos países colonialistas com o objetivo de Este projeto se realiza na política da fome, e sofre,
construir escolas sem criar professores, de construir por isto mesmo, todas as fraquezas consequentes da
casas sem dar trabalho, de ensinar ofício sem ensinar sua existência.
o analfabeto.
[A música chega ao paroxismo. É interrompida com
O comportamento exato de um faminto é a violência, um corte seco.]
e a violência de um faminto não é primitivismo.
Glauber Rocha.
Uma estética da violência antes de ser primitiva é
revolucionária. Enquanto não ergue as armas o colo- 14. Pônei (Josué de Castro)
nizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial
morto para o francês perceber um argelino. [Um mapa da região é mostrado.]

Onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade Ilhas Shetland. Extremo setentrional do arquipélago
e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da britânico. 60º de latitude norte.
[Um cavalinho é mostrado ao público.] tava com tanta fome que eu disse assim prum moço
que vinha passando:
Nessas ilhas desenvolveram-se os menores cavalos do
mundo. Pensava-se que os pôneis das ilhas Shetland — Ô, decente, vosmecê não deixa eu comer uma gi-
fossem uma raça de cavalos. Mas quando alguns nego- letezinha pra vosmecê ver?
ciantes resolveram criar pôneis nos Estados Unidos, que — Sai pra lá. Tu não te manca não, ô, Pau de arara?
decepção! - em algumas gerações eles ficaram do tama- — Só uma, que eu ainda não comi nadinha hoje.
nho de cavalos normais. — Tu enche, hein?

É que não há raça de pôneis. Aquilo me deixou tão aperreado que se não fosse o
amor que eu tinha na minha violinha, eu tinha reben-
Foi a extrema pobreza do solo das ilhas Shetland que tado ela na cabeça daquele… filho de uma égua!
determinou, em muitas gerações, a progressiva degrada-
ção da espécie. [Cantando.]

15. Comedor de Gilete (Ary Toledo) Puxa vida, não tinha uma vida pior do que a minha
Que vida danada que fome que eu tinha
[Viola. Cantando a música de Carlos Lyra/Vinícius de Zanzando na praia pra lá e pra cá
Moraes/Ary Toledo, que dá nome à cena.] Quando eu via toda aquela gente num come-que-
come
Eu um dia cansado que tava da fome que eu tinha Eu juro que tinha saudade da fome
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Eu não tinha nada que fome que eu tinha Da fome que eu tinha no meu Ceará
Que seca danada no meu Ceará E aí eu pegava e cantava e dançava o xaxado
Eu peguei e juntei um restinho E só conseguia porque no xaxado
De coisa que eu tinha A gente só pode mesmo se arrastar
Duas calça velha e uma violinha Virgem Santa! A fome era tanta que inté parecia
E num pau de arara toquei para cá Que mesmo xaxando meu corpo subia
E de noite eu ficava na praia de Copacabana Igual se tivesse querendo voar
Zanzando na praia de Copacabana
Dançando o xaxado pras moça olhar [Narrando.]
Virgem Santa! Que a fome era tanta
Que nem voz eu tinha Às vezes a fome era tanta que volta e meia a gente
Meu Deus quanta moça, que fome que eu tinha... arrumava uma briguinha pra comer uma bóia lá no
Zanzando na praia pra lá e pra cá xadrez. Êta quentinho bom no estômago! Com perdão
da palavra, a gente devolvia tudo depois, que a bóia já
[Narrando.] vinha estragada. Mas enquanto ela ficava quietinha
ali dentro da barriga, quentinha, que felicidade! Não,
Foi aí então que eu arresolvi comer gilete… Tinha um mas agora as coisas tão melhorando. Tem uma dona
cumpadre meu lá de Quixeramobim que ganhou um muito bondosa lá em Higienópolis que gosta muito
dinheirão comendo gilete na praia de Copacabana. Eu não de ver é eu comer caco de “vrídrio”. Isso que é bon-
sei não, mas eu acho que ele comeu tanta, mas tanta, que dade da boa. Com isso eu já juntei uns quinhentos
quando eu cheguei lá aquela gente toda já estava até com merréis. Quando juntar mais um pouquinho, vou-me
indigestão de tanto ver o cabra comer gilete. Uma vez eu embora, volto pro meu Ceará!
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[Cantando.] A cidade do colonizado é uma cidade faminta, famin-


ta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A
Vou voltar para o meu Ceará cidade do colonizado é uma cidade acocorada, uma
Porque lá tenho nome cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade
Aqui não sou nada, sou só Zé-com-fome de negros, uma cidade de árabes.
Sou só Pau de arara, nem sei mais cantar
Vou picar minha mula O que o colonizado viu é que podiam impunemente
Vou antes que tudo rebente prendê-lo, espancá-lo, matá-lo de fome; e nenhum
Porque tô achando que o tempo tá quente professor de moral, nenhum padre, jamais veio rece-
Pior do que anda não pode ficar! ber as pancadas em seu lugar nem partilhar com ele
o seu pão.
16. Césaire e Fanon
Durante a colonização, o colonizado não cessa de se
Uma civilização que é incapaz de resolver os proble- libertar entre nove horas da noite e seis horas da
mas que o seu funcionamento suscita é uma civiliza- manhã.
ção decadente. A civilização chamada “europeia”, a
civilização “ocidental”, tal como foi moldada por dois Mas o confronto não pode ser adiado indefinidamente.
séculos de regime burguês, é incapaz de resolver os
dois principais problemas que sua existência originou: 17. Etimologia (Câmara Cascudo)
o problema do proletariado e o problema colonial.
Companheiro!
66
Segurança? Cultura? Justiça? Em todos os lugares onde Companheira!
existe colonizadores e colonizados, frente à frente, Esta palavra, companheiro, vem do latim cum panis.
só há lugar para a força, a brutalidade, a crueldade, o Significa aquele com quem dividimos o pão.
sadismo, o golpe, e, como paródia, a formação cultu- Aquele ou aquela em quem confiamos o suficiente para
ral, a fabricação apressada de alguns milhares de su- que venha se sentar na nossa mesa e dividir nossas
balternos, de empregados domésticos, de artesãos, de ideias, nossas vitórias e derrotas, erros e acertos.
empregados de comércio, e dos intérpretes necessários Ou para, simplesmente, dividir um pedaço de pão.
para o bom funcionamento dos negócios.
18. Lenda de párias (Tradição
Entre colonizador e colonizado só há lugar para o indiana)
trabalho forçado, a intimidação, a pressão, a polícia, o
tributo, o roubo, a violação, a cultura imposta, o des- [Música indiana com tambura.]
prezo, a desconfiança, o silêncio dos cemitérios, a
presunção, a grosseria, as elites descerebradas, as Lenda de párias.
massas aviltadas.
Dois viajantes indianos, que iam juntos pela estrada,
Colonização = coisificação. começaram a discutir na encruzilhada de um bosque.

[Música Zumbi/Jorge Ben Jor. A música é ouvida — Há muito teria eu chegado às margens sagradas do
através de um aparelho portátil de som, semelhante Ganges se não tivesse, para embaraçar-me, um com-
ao que ocorre na cena 2 com o telefone celular.] panheiro como tu.
— Que gracejo tão singular! - respondia o outro. Ig-
noras então que por muito tempo fiz parte dos cor-
redores do Marajá de Maissur?
— Parece que ouço a tartaruga desafiar a lebre, pois
tuas pernas degeneraram bem, depois dessa época.

Então ambos, desafiando-se mutuamente, tomaram


por testemunha um pária que cortava capim na flo-
resta. Os dois viajantes, tendo combinado que o
ponto final da corrida seria um tamarindeiro que se
encontrava a quinhentas calpas de distância (calpa é
uma medida de distância indiana, que ninguém sabe
quanto vale), depuseram seus alforjes abundante-
mente recheados de alimentos de toda espécie, e
partiram correndo. Vendo aquilo o pária apoderou-se
dos preciosos fardos e fugiu para o mais recôndito
ponto do bosque.

foto ACERVO DA COMPANHIA


Moral da história: É preciso aproveitar sempre as
brigas dos poderosos, retirando delas algum benefício.

19. Provérbios da fome (Tradição


popular brasileira)
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Quem tem fome tem pressa.


Para boa fome, não tem mau pão.
Para boa fome, não tem pão velho. É melhor ter um ovo hoje do que uma galinha amanhã.
Quem tem fome, sonha com pão. Mais vale um farto do que dois famintos.
A pão de quinze dias, fome de três semanas. Quando a fome bate à porta, o amor sai pela janela.
Pão de pobre cai sempre com a margarina pra baixo. Formosura não mata fome.
Casa onde não tem pão, todos brigam e ninguém tem Quem tem sede não morre de fome.
razão. Casa é onde não tem fome.
Deus dá a farinha, mas não amassa o pão.
Deus dá nozes a quem não tem dentes. 20. Casa é onde não tem fome!
Em tempo de guerra, urubu é frango. (Eliane Brum)
A fome é má conselheira.
A fome é boa cozinheira. [Cena com marionetes: pai, mãe, filho.]
A fome não espera pela fartura.
A fome é o melhor tempero. Eu acompanho Otávio das Chagas desde 2014. Naque-
A fome não tem lei. le momento, ele, sua mulher Maria e os nove filhos
O que não mata, engorda. estavam na primeira casa que não podia ser casa. Uma
Quem tem fome, tudo come. casa de madeira alugada numa periferia violenta de
Saco vazio não para em pé. Altamira. Em 2015, mudaram-se para uma “unidade”
Barriga vazia não conhece alegria. de Reassentamento Urbano Coletivo (RUC), nome dos
Comida pouca, meu pirão primeiro. conjuntos habitacionais padronizados que a Norte
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Energia construiu para abrigar as vítimas de “remoção “Dá uma dor no estômago, uma tontice”. É uma pista,
compulsória”. Em 2016, dividiram-se: os dois filhos mas ainda não é a fome por escrito. “Eu não sei o que
mais velhos permaneceram na casa padronizada, um fazer quando as crianças ficam pedindo por comida”,
deles já com sua própria família; Otávio, Maria e os ela continua.
filhos mais jovens transferiram-se para uma casa Encaro os olhos fundos de Adriano, o menino de sete
doada por um grupo de austríacos que se comoveu anos, e entendo sem letras. Entendo, mas sigo sem
com as tribulações do pescador sem rio e sem letras. alcançar. Meu olhar não afunda nos olhos de poço, me
Todas as vezes em que bati em cada uma das três falta a experiência. Adriano é mais uma doce criança
portas, eles passavam fome. Tinham teto, mas passavam com olhos de velho deste mundo. Quando o encontrei
fome. Era oficialmente uma casa, mas passavam fome. na segunda casa, a do RUC (Reassentamento Urbano
Em todas as vezes, só havia água na geladeira. Na se- Coletivo), em 2015, era o dia do seu aniversário. E não
mana passada, havia também uma cebola pequena. havia sequer um pedaço de pão para Adriano comer.
Fome é algo que fracasso em descrever. A fome não se
escreve. Carolina Maria de Jesus, a escritora brasileira Casa é onde não tem fome, eles me ensinam. Se tem
que conhecia a fome, escreveu: “A fome é amarela”. fome, é só teto.
Maria, a mãe, tenta fazer caber nas palavras o que
sente quando chega a passar até dois dias sem comer: [Um mapa da região é mostrado.]

foto filipe vianna


68

Fome.doc, 2017
Otávio das Chagas e sua família viviam há mais de enfiado na boca, chupando o suco verde do capim e
trinta anos na Ilha de Maria, uma das centenas de ilhas deixando escorrer pelo canto da boca uma saliva es-
do Xingu. Quando são expulsos da ilha a qual perten- verdeada que me parecia ter a mesma origem da es-
cem, Otávio, Maria e seus filhos já não reconhecem puma dos caranguejos: era a baba da fome.
nem se reconhecem, porque a ilha era também espelho.
Se alguém é obrigado a deixar sua terra por conta de A fome é amarela. A fome é amarela. A fome é amarela.
uma guerra, de um terremoto ou da fome, haverá
sempre a terra que ficou, haverá ruínas, haverá os 22. Um artista da fome
mortos ali enterrados para dar conta do que foram, (Franz Kafka)
mesmo que nunca possam voltar. Otávio, Maria e seus
filhos perderam a materialidade do que viveram, a — Você continua jejuando? — perguntou o inspetor.
memória física do que eram, do que são. Tudo o que — Afinal quando vai parar?
dizia deles virou água pela força de Belo Monte. Da — Peço desculpas a todos — sussurrou o artista da
ilha afogada não há sequer um retrato. Restou a eles fome; só o inspetor, que estava com o ouvido colado
apontar as cicatrizes que documentam uma vida no às grades, o entendia.
único território que lhes restou: o do próprio corpo. — Sem dúvida — disse o inspetor, colocando o dedo
na testa, para indicar aos funcionários, com isso, o
Quando foi expulso, em 2012, Otávio assinou com o estado mental do jejuador.
dedo papéis que não era capaz de ler. Seus filhos as- — Nós o perdoamos.
sinaram por ele papéis que não eram capazes de ler. — Eu sempre quis que vocês admirassem meu jejum
Receberam 12.994 reais e 2 centavos como indeniza- — disse o artista da fome.
69
ção. Sua casa não foi considerada uma casa. Não cabia — Nós admiramos — retrucou o inspetor.
no conceito de casa do empreendedor. Quando a — Mas não deviam admirar — disse o jejuador.
“remoção” dos habitantes das ilhas, das beiras e dos — Bem, então não admiramos. Por que é que não
baixões, assim como das terras rurais, foi determina- devemos admirar?
da, não havia defensoria pública na região. — Porque eu preciso jejuar, não posso evitar.
— E por que não pode evitar?
O Governo de Dilma Rousseff abandonou a população — Porque eu — disse o artista da fome, levantando
do Xingu sem qualquer proteção jurídica na maior um pouco a cabeça e falando dentro da orelha do
obra do setor elétrico do país, à mercê dos advogados inspetor com os lábios em ponta, como se fosse um
da Norte Energia, uma violação de direitos que man- beijo, para que nada se perdesse. — Porque eu não
chará para sempre a biografia da presidente afastada. pude encontrar o alimento que me agrada. Se eu ti-
Otávio e sua família foram jogados num dos bairros vesse encontrado, pode acreditar, eu não teria feito
mais violentos da periferia de Altamira, onde pagavam nenhum alarde e teria me empanturrado como você
um aluguel que, junto com a doença de uma das filhas, e todo mundo.
comeu o dinheiro da indenização em alguns meses. Estas foram suas últimas palavras, mas nos seus olhos
A casa alugada foi a primeira não-casa. apagados persistia a convicção firme, embora não mais
orgulhosa, de que continuaria jejuando.
21. Cena verde-amarela (Josué de
Castro e Carolina Maria de Jesus) — Limpem isso aqui! — disse o inspetor.

Vi homens sentados na balaustrada do velho cais a E enterraram o artista da fome junto com a palha. Na
murmurarem monossílabos, com um talo de capim jaula puseram uma jovem pantera. Até mesmo as
dossiêkiwi

pessoas mais insensíveis acharam agradável ver o atentos: era verdade, do canto de Hurbinek vinha de
animal selvagem pulando na jaula que durante muito vez em quando um som, uma palavra, ou melhor,
tempo parecera tão lúgubre. Nada lhe faltava. A co- palavras articuladas, variações experimentais sobre
mida que lhe agradava era trazida pontualmente pelos um tema, uma raiz, talvez sobre um nome.
empregados e ela nem mesmo dava impressão de
sentir a ausência de liberdade. Aquele corpo nobre, Hurbinek continuou, enquanto viveu, nas suas experi-
provido até estourar de tudo o que era necessário, ências obstinadas. Nos dias seguintes, todos nós o
dava a impressão de carregar consigo a própria liber- ouvíamos em silêncio, ansiosos por entendê-lo, e havia
dade; ela parecia estar escondida em algum lugar das entre nós falantes de todas as línguas da Europa: mas a
suas mandíbulas. E a alegria de viver brotava da sua palavra de Hurbinek permaneceu secreta. Não, não era
garganta com tamanha intensidade que para os es- certamente uma mensagem, nem uma revelação: talvez
pectadores não era fácil suportá-la. Mas eles se do- fosse o seu nome, se tivesse tido a sorte de ter um nome;
minavam, apinhavam-se em torno da jaula e não talvez quisesse dizer “fome” ou “pão”; ou talvez “carne”.
queriam de modo algum sair dali.
Hurbinek, que tinha três anos e talvez tivesse nasci-
23. Hurbinek, Yak, Abdulah, Josué do em Auschwitz, que nunca tinha visto uma árvore;
(Primo Levi) Hurbinek, que combateu como um adulto, até o últi-
mo respiro, para conquistar a entrada no mundo dos
mass mass… mass-ti… mass-tik… mass mass-tiklo… homens, do qual uma força brutal o havia banido;
mastiklo… mass mass… Hurbinek, o sem-nome, cujo minúsculo antebraço
também foi marcado, mesmo assim, com a tatuagem
70
Hurbinek era um nada, um filho da morte, um filho de Auschwitz.
de Auschwitz. Parecia ter três anos, ninguém sabia
nada dele, não falava e não tinha nome: aquele curio- Hurbinek morreu nos primeiros dias de março de
so nome, Hurbinek, foi dado por nós. Estava paralisa- 1945, livre, mas não redimido. Dele não resta nada:
do dos rins para baixo, tinha as pernas atrofiadas, finas Hurbinek testemunha através destas palavras.
como gravetos; mas os seus olhos, perdidos no rosto
pálido e triangular, eram terrivelmente vivos, cheios Junto com ele, por estas palavras pobres, magras,
de perguntas, de vontade de se libertar, de quebrar o também testemunham as crianças do Sudão do Sul,
túmulo do mutismo. As palavras que lhe faltavam, que do nordeste brasileiro, da Faixa de Gaza, de Bangladesh,
ninguém teve o cuidado de lhe ensinar, a necessidade da Somália, do Níger…
da palavra comprimia seu olhar com uma urgência
explosiva: era um olhar selvagem e humano ao mesmo
tempo, aliás maduro e de juiz, que ninguém podia 3 • O coração do bisão
suportar, tão carregado ele era de força e de tormento. [Música Heiliger Dankgesang/Beethoven.]
Ninguém suportava, salvo Henek: era o meu vizinho
de cama, dava de comer, ajeitava as cobertas, limpava Até aqui, com pena incompetente ou alheia,
o menino com mãos hábeis, desprovidas de repug- contamos a nossa história.
nância. Após uma semana, Henek anunciou com No final, a aposta.
seriedade, mas sem sombra de presunção, que Hur- Esta mesa muda.
binek “dizia uma palavra”. Qual palavra? Não sabia, Fome e banquete.
uma palavra difícil: alguma coisa como “mass-klo”,
“mastiklo”. De noite ficávamos com os ouvidos bem Uma Santa Ceia na parede.
Água na geladeira. [Revela o piso falso do teatro.]
Garapa no fogão.
Uma semente estéril. Tudo terá sido humano.
Mas que humano? Meu pai, minha mãe? Companhei-
[Toc toc toc. Fim da música.] ros dividindo o pão? Camaradas?
Uma história comum? Em comum?
Banquete e fome. Na sala ou na rua?
Carne, colher, mesa, madeira. Pão e terra. Pão e liberdade. Igualdade. Fraternidade.
Pônei, marionetes, lama, lençol, livros, mapas. Justiça. Socialismo.

A fome e a boca: humanos. Uma mesa muda.


O banquete e a fome: humanos.
O desumano humano. [Ouvidos na mesa, tentando escutar algo. Música
Heiliger Dankgesang/Beethoven.]
Uma aposta.
Um fio de cabelo. Partido em três. Imagens.
(Mas também saber distinguir, ainda antes do sol
nascer, um fio branco de um fio preto) [Imagens projetadas de bisões. Caverna de Chauvet.]

Porque é certo que um dia o sol se apagará. Estes são desenhos de bisões. Eles foram feitos há 15
E ele não será engolido pelo jaguar. Será apenas mais mil anos em cavernas no sul da França. Os bisões têm
71
uma estrela que morre. flechas cravadas na carne.
Isto é: o jaguar vai engolir o sol.
É o que diz uma antiga história indígena. O homem da idade da pedra talvez acreditasse que a
A metáfora. O discurso. A história. representação desses animais, no instante em que
E o real. eram mortos, poderia dar a ele um poder especial. Em
A realidade. A pedra. A mesa. A fome. O dinheiro. um mundo de necessidade e fome é fácil explicar esta
Vidas secas. Fome zero. País da fome. superstição.

Assim como é certo que um dia será nosso último dia Hoje, oitocentos milhões de pessoas passam fome.
sobre a terra.
E nossa vida terá valido a pena. Ou não. Metáfora e documento. Desenhar e caçar. A represen-
Terá sido uma aventura digna. Ou vã. tação e o alimento. A ficção, a vida.
Sim? Mas este homem precisava descobrir algo muito
Sim é uma afirmação. Sim. Mas há uma interrogação importante: ele tinha que encontrar o coração do
no fim: sim? bisão. Era assim que ele adquiria poderes mágicos. O
caçador-poeta tinha algo de anatomista, de cientista,
[Mostra o roteiro impresso ao público.] mas imaginava ser mágico. O lugar do coração.

Sim?, metáfora ou documento? Onde fica o coração do bisão?


Como a carne. Documento. Como a carne. Decisão.
Teatro [Silêncio.]
dossiêkiwi

Todo organismo humano precisa continuamente de Com uma foice. Um martelo. Com uma estrela.
energia. Senão, ele morre. Um sol.

Uma flecha no coração do bisão. Um tiro. Uma flecha. (E lembrar de dizer isto de forma simples, sem exagero,
Uma caçada (de verdade, de mentira). poupando o teatro).
Matar a fome com uma música (Beethoven).
Com um poema (João Cabral): [Silêncio.]

[Música com viola. A cena deve lembrar o coro Bisões.


shakespeariano da cena I.2.] Brutalidade. Fome. Mentira. Lucro. Incêndio. Roubo.
Cinismo. Arrogância. Misoginia.
Como todo o real O sofrimento não melhora o homem. Mentem os que
é espesso. dizem o contrário!
Aquele rio Como pode abraçar aquele a quem cortaram os braços?
é espesso e real.
Como uma maçã O infinito é o rosto do outro.
é espessa.
Como um cachorro [Silêncio.]
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso Aqui acaba esta história.
o sangue do cachorro História.doc. Teatro.doc. Fome.doc.
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do que o próprio cachorro. Este fio de cabelo partido em três. Como uma tora
Como é mais espesso seca. Minúscula.
um homem Uma esperança.
do que o sangue de um cachorro. Uma mesa muda.
Como é muito mais espesso Uma enxurrada pesada sobre a terra seca.
o sangue de um homem Fome e banquete.
do que o sonho de um homem. Palavras, discurso. Verbo e ação.
Sangue, músculos, nervos, carne.
Espesso Ar. Ideia. Luz. Voz.
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã Para aonde vão os nossos silêncios?
é muito mais espessa E os infinitos silêncios mudos
se um homem a come dos condenados da terra?
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa [Última referência ao lençol de linho, estendido sobre
se a fome a come. a mesa.]
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer Aqui onde estão os homens
a fome que a vê. — nós conhecemos a história —
De um lado cana-de-açúcar
Matar a fome De outro lado, o cafezal
com um bisão desenhado. Ao centro, os senhores sentados
Vendo a colheita do algodão branco A flecha e o bisão.
Sendo colhido por mãos negras A luta e o casaco guardado no armário enquanto
É a letra da música. A memória de um horror entre milhões passam frio do lado de fora.
tantos horrores.
[Som do solstício de inverno.]
— E deus?
— Deus? É uma das mais poderosas invenções da No solstício de inverno.
humanidade. Nosso ano-novo pagão

Metáfora e documento. (Desmoronam as paredes do teatro. Muita luz.


O território e o mapa. Aparentemente estamos no mundo.)
A fome e a falta de fome.

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foto filipe vianna

Fome.doc, 2017

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