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O Brasil no olho do furacão COVID-19: cartografando estratégias

ciberativistas de enfrentamento às (necro)políticas experienciadas em


tempos de pandemia

Marcelle Medeiros Teixeira1


Reginaldo Rosa Soares2
Dilton Ribeiro Couto Junior3
Resumo: Este texto é um desdobramento de duas pesquisas de mestrado recentemente
concluídas que foram desenvolvidas durante a pandemia de COVID-19, tendo como
pano de fundo o cenário (necro)político brasileiro. A primeira pesquisa realizou um
mergulho nas redes sociais Twitter e Facebook, cartografando episódios de barbárie
marcados pelas fake news em tempos necropolíticos. A segunda investigou o
(ciber)ativismo de um grupo de professores no Facebook em resposta às políticas de
enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. A cartografia online ancorada em
aportes pós-estruturalistas subsidiou teórico-metodologicamente as duas pesquisas que
acompanharam o fluxo informacional de internautas que fizeram das redes um
verdadeiro lócus de mobilização política em tempos de COVID-19. Acompanhar a
atuação das/os internautas nas diferentes redes sociais em resposta às ações
(necro)políticas experienciadas na pandemia significou perceber o desejo coletivo por
continuar defendendo a democracia brasileira. Reconhecemos ainda o importante papel
das redes sociais como (mais) um campo de batalha na cibercultura. Como educadoras,
continuamos apostando na potência do ciberespaço para um diálogo plural e aberto,
convidativo à mobilização de sujeitos interessados na ampliação de suas vozes e lutas.

Palavras-chave: Pandemia. Necropolítica. Ciberativismo. Fake news. Educação.


O cenário pandêmico brasileiro: “ninguém solta a mão de ninguém”

1
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd) da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ) (Bolsista CAPES). Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e
Comunicação em Periferias Urbanas (PPGECC) da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense da
UERJ. Integrante do Grupo de Pesquisa Juventude, Educação, Gênero e Sexualidade na Cibercultura
(JEGESC). E-mail: [email protected].
2
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas
(PPGECC) da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected].
3
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd) da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Professor Adjunto da Faculdade de Educação da UERJ, do ProPEd/UERJ e do Programa
de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (PPGECC) da Faculdade
de Educação da Baixada Fluminense da UERJ. Líder do Grupo de Pesquisa Juventude, Educação, Gênero
e Sexualidade na Cibercultura (JEGESC). Bolsista do Programa de Incentivo à Produção Científica,
Técnica e Artística – Prociência UERJ. E-mail: [email protected].
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As redes sociais digitais vêm se constituindo como importantes espaços de
mobilização política (CASTELLS, 2013). Seu imenso potencial interativo e
comunicacional tem ampliado o debate sociopolítico contemporâneo. As interações
online envolvem artefatos tecnológicos, principalmente telefones smartphones, que são
responsáveis por reconfigurações sociais significativas que vêm modificando a forma
como produzimos e compartilhamos informações com outras pessoas no ciberespaço.
Caminhando nessa linha de pensamento, Pretto e Assis (2008) reiteram que a
apropriação da cultura digital vem reorganizando as relações humanas, trazendo
repercussões significativas (em maior ou menor escala) para a vida cotidiana.
Nossa aposta em estudar os fenômenos comunicacionais na internet parte do
pressuposto de que a “liberação da emissão e a circulação da palavra em redes abertas e
mundiais criam uma interconexão planetária” (LEMOS, 2010, p. 25). A partir desta
interconexão em escala global, muitas/os de nós acessamos os dispositivos digitais para
enviar/consumir uma enorme quantidade de informações que refletem nossos gostos,
hábitos, desejos, ideias e sentimentos. Com isso, com a emergência e a popularização
desses dispositivos, passamos de meras/os consumidoras/es de informação a pessoas
que partilham, interagem e colaboram com outras/os sujeitas/os graças à mediação do
digital em rede (LEMOS; LEVY, 2010).
É nítida a força dos movimentos que surgem espontaneamente nas redes,
inspirando práticas ciberativistas em tempos de cibercultura (COUTO JUNIOR;
VELLOSO; SANTOS, 2020). Diferentes manifestações ciberativistas desdobram-se em
uma série de ações que ganham o espaço das ruas, evidenciando o desejo coletivo por
mudanças na esfera política (CASTELLS, 2013; PRETTO, 2014). No entanto, mesmo
considerando o potencial da rede no agenciamento e na mobilização política,
concordamos com as palavras de Recuero (2013, p. 62): “a conversação em rede é um
espaço frutuoso para a emergência de discussões inflamadas, discursos agressivos e
ofensivos e, mesmo, para a propagação da violência”. O ciberespaço reúne pessoas de
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diferentes perspectivas ideológicas, desencadeando, consequentemente, grande tensão
entre as/os usuárias/os.
Em tempos de cibercultura, essas discussões inflamadas são potencializadas
porque “são os próprios atores, as pessoas, as empresas (incluindo as empresas de
jornalismo), as instituições, os movimentos, os partidos, as associações, os
agrupamentos, as comunidades virtuais de todos os tipos que decidem aquilo que elas
vão publicar na web” (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 89). Diante do fluxo de informações
que circula na rede, nos interessa conhecer o modo como a internet vem mediando as
relações humanas, potencializando práticas sociais envolvendo disputas e lutas que
ganham visibilidade por meio de compartilhamentos, comentários e curtidas;
visibilidade que, antes da popularização da internet, era restrita às notícias transmitidas
pelas diferentes mídias de massa, como a televisão, o rádio e os jornais impressos.
Encontramos na internet grupos e fóruns de comunidades extremistas,
neonazistas, que fazem apologia ao ódio contra judeus, negras/os, nordestinas/os,
indígenas, mulheres, além de pessoas da comunidade LGBTQIA+. Esses grupos incitam
a violência e manifestam o desprezo e a intolerância contra as pessoas que integram as
chamadas minorias sociais, colocando em funcionamento práticas e ações que “visam
promover o medo, a insegurança e a opressão, através de ataques de ódio, com
motivação heterocisnormativa branca, racista, elitista, que é letal para as vidas
dissidentes” (CARVALHO, 2021, p. 18). Essas práticas intensificaram-se com a eleição
do presidente Jair Bolsonaro, que governou o Brasil entre 2019 e 2022 e foi responsável
pela tomada de decisões que culminaram no enfraquecimento das políticas sociais, com
constantes ataques à educação, à ciência e à universidade a partir de ações
necropolíticas.
De modo breve, podemos definir a necropolítica enquanto “um dispositivo de
governo para fazer morrer e não deixar viver” (KOHAN, 2020, p. 3, grifos do autor).
Com este dispositivo, percebemos que os sujeitos em situação de vulnerabilidade social
dificilmente apresentam qualquer tipo de apoio para saírem dessa condição, lhes
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restando como opção mais certa a morte. Há uma prática política que se alimenta do
aniquilamento da diferença, com a implementação de uma agenda que contribui para o
aumento das desigualdades no país, sejam elas de gênero, raça ou classe. A
necropolítica coloca em funcionamento um regime governamental que tem a
“capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer” (MBEMBE, 2018, p. 5),
visando deixar morrer aquelas/es que são lidas/os como suas/seus inimigas/os,
descartáveis e não passíveis de luto (BUTLER, 2015).
Destacamos a seguir alguns dados que refletem o aniquilamento da diferença em
tempos de pandemia no Brasil, deixando evidente o quanto determinados grupos sociais
foram mais atingidos. Considerando a questão de classe, é importante pontuar a
desigualdade entre as/os que tiveram acesso aos diferentes serviços de saúde para
tratamento/recuperação caso fossem infectadas/os e aquelas/es que tiveram que recorrer
às (necro)políticas assistencialistas colocadas em funcionamento pelo governo de
Bolsonaro. Outras questões também se mostraram urgentes, como a impossibilidade de
praticar o isolamento em locais superpovoados, habitações ocupadas por diferentes
famílias e a falta de acesso ao saneamento básico e à água potável (MAGALHÃES,
2020).
Além da questão de classe, o marcador de gênero foi o propulsor de uma
pesquisa realizada em 193 países pelo Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde
(IHME) da Universidade de Washington (EUA), entre março de 2020 e setembro de
20214. Esta pesquisa apontou que as mulheres são mais prejudicadas que os homens,
considerando que 26% delas perderam os empregos, em comparação aos homens, que
representam 20%. O cuidado com o outro, culturalmente associado como um atributo de
natureza feminina, é refletido nos dados, que indicam que as mulheres possuem uma
propensão duas vezes maior de abandonar seus empregos para cuidar de alguém (sendo,

4
Quantifying the effects of the COVID-19 pandemic on gender equality on health, social, and economic
indicators: a comprehensive review of data from March, 2020, to September, 2021. Disponível em:
<https://is.gd/EFKl9a>. Acesso em: 14 jul. 2023.
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na maior parte dos casos, uma função sem remuneração). Somando-se a isso, a
probabilidade de mulheres abandonarem os estudos é 21% maior do que a dos homens
e, quanto à violência de gênero, 54% das mulheres relataram que consideram ter tido
um aumento durante a pandemia.
Além dos marcadores de gênero e classe, é fundamental considerar o marcador
de raça em um país no qual 55,9% das pessoas se autodeclaram pretas e pardas, de
acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)5
realizada em 2022. Apesar de essas pessoas serem maioria numericamente,
historicamente o Brasil é um país marcado pela desigualdade racial, herança de um
projeto colonizador que permeia até os dias atuais (AKOTIRENE, 2019). No primeiro
ano da pandemia, enquanto 38% de brancas/os morreram de COVID-19, a proporção
entre as/os negras/os foi de 55%, conforme aponta o Núcleo de Operações e Inteligência
e Saúde6. O acesso à vacinação também mostrou-se discrepante, de acordo com uma
reportagem da Agência Pública7: 3,2 milhões de pessoas brancas foram imunizadas com
a primeira dose, em contraponto a 1,7 milhão de pessoas negras.
Esses números refletem as desigualdades de gênero, raça e classe no país
durante o período da pandemia. Trabalhar de forma interseccional significa lançar mão
de um compromisso ético e político que busca desconstruir concepções de sujeito e de
mundo hegemônicas, colocando em tensionamento “uma visão de sujeito universal que
é o homem branco, europeu, ocidental, heterossexual, cisgênero e pertencente às classes
sociais privilegiadas” (AUAD; SEPULVEDA, 2022, p. 197). Olhar para o cenário
brasileiro na pandemia é reconhecer que as desigualdades sociais fazem parte de um
projeto de governo cujo modus operandi ocorre dentro de uma política de extermínio

5
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Disponível em: <https://is.gd/BWoOtk>.
Acesso em: 14 jul. 2023.
6
Negras/os são as/os que mais morrem por COVID-19. Disponível em: <https://is.gd/1tpN0M>. Acesso
em: 14 jul. 2023.
7
Discrepância na vacinação entre brancas/os e negras/os. Disponível em: <https://is.gd/Zn83Hn>.
Acesso em: 14 jul. 2023.

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direcionada às pessoas em situação de vulnerabilidade social (KOHAN, 2020). Diante
de um contexto marcado/constituído por práticas necropolíticas, defendemos que é
preciso reconhecer as violações cotidianas às quais estamos submetidas/os, buscando
construir estratégias para enfrentar as diversas situações de vulnerabilidade (AMARO;
COUTO JUNIOR; GANEM, 2021).
Como nos ensina Foucault (2004), sempre há a possibilidade de resistência
quando apresentamos o mínimo de liberdade. Se, por um lado, a rede se transformou em
um verdadeiro palco da necropolítica na pandemia, por outro lado percebemos forças de
insurgência através da constituição de diferentes movimentos orquestrados pela internet,
cujas/os integrantes aspiravam por mudanças sociais durante o governo do
ex-presidente. O desejo por mudanças, aliado à interconexão com outras/os internautas,
permitiu que pudéssemos fazer (literalmente) barulho, colocando em ação o
descontentamento de muitas/os brasileiras/os diante do cenário político, como foi o caso
do que ficou popularmente conhecido como “panelaço”. Durante a pandemia, os
“panelaços” foram organizados por meio das redes sociais e podia ser ouvido em muitas
regiões das cidades brasileiras mais populosas. A intenção era bater algum utensílio de
cozinha na panela como forma de protesto toda vez que o ex-presidente fizesse um
pronunciamento em rede nacional. Essa e outras estratégias orquestradas pelas redes
sociais permitiu dar visibilidade à insatisfação de milhões de brasileiras/os, que se
reuniram para buscar o fortalecimento de suas lutas sob a premissa de que “ninguém
solta a mão de ninguém”8.
O panorama apresentado acima é o pano de fundo deste trabalho. Apresentamos
para este texto um desdobramento de duas pesquisas de mestrado recentemente
concluídas que foram desenvolvidas durante a pandemia de COVID-19 no Brasil. As
duas pesquisas foram realizadas no âmbito do Grupo de Pesquisa Juventude, Educação,

8
Esta frase compôs uma imagem que viralizou nas redes sociais digitais em 2018, após a apuração dos
votos, quando Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil. Devido à preocupação daquelas/es que
faziam oposição à Bolsonaro, a frase surgiu como uma forma de resistência e valorização das nossas
redes de apoio diante dos quatro anos seguintes.
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Gênero e Sexualidade na Cibercultura (JEGESC), no Programa de Pós-Graduação em
Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (PPGECC) da Faculdade de
Educação da Baixada Fluminense da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)9
. A primeira pesquisa, de autoria de Marcelle Teixeira, cartografou episódios de barbárie
marcados pelas fake news em tempos de necropolítica. A segunda pesquisa, de autoria
de Reginaldo Soares, investigou o (ciber)ativismo de professoras/es em resposta às
políticas de enfrentamento da pandemia do novo coronavírus.
Além desta introdução, o texto encontra-se organizado em outras três partes.
A seguir discutimos nossa aposta pela cartografia online ancorada em aportes
pós-estruturalistas, metodologia que subsidiou teórico-metodologicamente ambas as
pesquisas. Na terceira seção apresentamos e discutimos nosso mergulho nas redes
sociais Twitter e Facebook, acompanhando o cenário necropolítico pandêmico
impulsionado por fake news. Na quarta seção, nos voltamos para discutir o
(ciber)ativismo praticado por um grupo de professoras/es no Facebook em resposta às
políticas de enfrentamento da pandemia do novo coronavírus no Brasil. Por fim, na
conclusão, salientamos o importante papel das redes sociais como (mais) um campo de
batalha na cibercultura, permitindo que haja maior mobilização das/os internautas
interessadas/os na ampliação de suas vozes e lutas.

A cartografia online como aposta teórico-metodológica: breves


apontamentos

A cartografia online acompanha diferentes processos de produção e de


compartilhamento de saberes na/em rede, o que possibilita nos afetarmos e afetarmos
outros sujeitos na medida em que mergulhamos por caminhos não lineares. Oliveira e
Paraíso (2012) referem-se à cartografia enquanto um mapa aberto, apontando que não
há uma lógica do início e do fim, na medida em que não se busca seguir nenhum

9
As duas pesquisas de mestrado foram orientadas pelo Prof. Dr. Dilton Ribeiro Couto Junior.
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protocolo normalizado, dependendo muito mais do modo com o qual o cartógrafo
experimenta o traçado e seu próprio pensamento. Nosso mapa opera em movimento, em
“composições de fluxos de conhecimento e redes de afecção, traçados de redes
complexas de saber-poder, mapeamentos de processos de subjetivação ou daquilo que
interpela alguém a uma determinada forma de agir-pensar o/no mundo” (COUTO
JUNIOR; POCAHY, 2017, p. 614-615).
Rolnik (2011) afirma que a/o cartógrafa/o se apropria de tudo que encontra pelo
caminho para realizar seu trabalho, permanecendo aberta/o a percorrer e descrever
trajetos possíveis, munida/o de um olhar de alteridade que a/o acompanha ao longo da
investigação. Em tempos de cibercultura, neste mapa é analisado/desenhado um
território que compõe uma paisagem em constante transformação, com a centralidade no
modo como nos relacionamos com o outro a partir das tecnologias digitais. O método
cartográfico, portanto, possibilita produzir novos planos de experimentação por meio de
agenciamentos coletivos que afetam/modificam pesquisador/a e sujeitos (POCAHY;
SILVA; DOURADO, 2020). Destacamos que esses agenciamentos coletivos são
percebidos a partir de uma mobilidade dupla, que intercruza a mobilidade física e a
informacional (SANTAELLA, 2013). Isto quer dizer que defendemos a
indissociabilidade do online e offline como um dos principais marcos da cibercultura e
que traz implicações sobre nossa forma de pensar/fazer a pesquisa nos diferentes
(ciber)espaços.
Reconhecendo a centralidade das tecnologias digitais em rede nas práticas
sociais cotidianas, vimos argumentando em nossas pesquisas a importância de
mergulharmos no contexto cibercultural. A influência e a presença do digital em rede
na vida dos sujeitos são discutidas na pesquisa TIC domicílios10, realizada entre março e
julho de 2023, que aponta que 84% da população brasileira acessa a internet. Outro
dado relevante é que as/os jovens entre 16 e 24 anos são as/os mais conectadas/os,

10
Pesquisa TIC domicílios. Disponível em: <https://is.gd/R7r90h>. Acesso em: 29 jan. 2024.
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atingindo a marca de 95%. Com base nessas informações, coadunamos com Carvalho e
Pocahy (2020) sobre estarmos diante de novas formas de habitar o presente, que
reverberam em outras demandas e perspectivas para o campo da educação e os
processos formativos. Além disso, os autores apontam que essa presença na rede
também nos desafia a pensar sobre a forma como conduzimos nossas pesquisas
acadêmicas.
O mergulho nas intensidades de nossos cotidianos (ROLNIK, 2011) é
imprescindível à produção de um conhecimento que busca dialogar com os fenômenos
pesquisados. Cartografamos/acompanhamos as dinâmicas sociais online porque
buscamos analisar o que pensam, produzem e compartilham as/os internautas. Dessa
forma, apostamos no método cartográfico porque nos interessa buscar diferentes formas
de pensar, abrindo novas entradas de problematização (KASTRUP, 2005). Nas redes
sociais, nos deixamos mergulhar nas postagens, conversas e discussões para
acompanhar a constituição de práticas sociais. Dessa forma, consideramos “fundamental
conhecer a singularidade do contexto por onde operacionalizamos a pesquisa
cartográfica na cibercultura, pois ela influencia em nossas escolhas teóricas,
epistemológicas e metodológicas” (CARVALHO, 2021, p. 41).
Nossa aposta com o método cartográfico é ancorada em aportes
pós-estruturalistas, que abre mão da rigidez/fixidez dos sentidos, entendendo que os
achados são provisórios e que não buscam conhecer A verdade (MEYER, 2014;
PARAÍSO, 2014). Pelo contrário, duvidamos daquilo que é tido como verdade,
colocando em xeque as relações de causa e efeito e reconhecendo que todo processo
investigativo é desenvolvido dentro de um espaço-tempo singular (MEYER, 2014).
Além disso, compreendemos que todo fenômeno deve ser lido como uma produção
situada historicamente, socialmente e culturalmente, sendo, portanto, um convite à
problematização. Defendemos, como pesquisadoras, a importância de “colocar sob
suspeita o que pensamos para (re)construir outras possibilidades de constituição dos
sujeitos” e do mundo (MARCONDES; FERRARI, 2022, p. 263).
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Ao contrário do que muitas/os afirmam, discordamos da hipótese de que a
“internet é terra de ninguém”. Este tipo de discurso desconsidera que, por trás de cada
conteúdo criado e/ou compartilhado, existe um sujeito de carne e osso. Essa complexa
trama que constitui a cibercultura, conforme aponta Lemos (2010), pode ser
compreendida a partir de três princípios, que serão brevemente apontados em sequência.
Com 1) a liberação da palavra/polo de emissão, vivenciamos o momento em que os
sujeitos passam a ser os próprios produtores de conteúdos; conteúdos estes
compartilhados a partir de um contexto de 2) conexão e conversação mundial, abrindo
espaço para que haja uma 3) reconfiguração social, política e cultural. Dito isso,
buscamos participar de processos comunicacionais em rede partilhando saberes com
sujeitos que têm muito a nos contar sobre seus modos de ser/estar no mundo (COUTO
JUNIOR; TEIXEIRA; MADDALENA, 2023). Cartografar em tempos de cibercultura
significa, portanto, acompanhar um fluxo informacional fruto da produção e do
compartilhamento de informações emitidas por sujeitos de todas as partes do mundo.
Em diálogo com a perspectiva pós-estruturalista, percebemos o potencial de
nossas movimentações cartográficas nas esferas do ciberespaço como possibilidades de
acompanhar as dinâmicas comunicacionais de internautas que fizeram das redes um
verdadeiro lócus de mobilização política em tempos de COVID-19. Salientamos que
esses percursos não devem ser tomados como referências, do ponto de vista de um
roteiro, uma vez que toda cartografia é singular. Apresentamos a seguir nossos
percursos cartográficos em tempos de cibercultura, evidenciando o modo como
mergulhamos nas redes sociais e interagimos com os sujeitos.

“Não somos cobaias”: negacionismo científico impulsionado por fake news


em tempos de COVID-19

Ao longo de 2020 e 2022, o trabalho de Marcelle Teixeira investigou o cenário


de barbárie escancarado pela pandemia de COVID-19. Com a cartografia online, foi

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realizado um mergulho nas redes sociais Twitter e Facebook, com o objetivo de
acompanhar as fake news produzidas e compartilhadas por internautas sobre os
acontecimentos sociais e políticos no Brasil pandêmico. Essas duas redes sociais foram
privilegiadas na pesquisa pela popularidade delas no país e pelo potencial
comunicacional envolvendo a produção e o compartilhamento de imagens e vídeos.
Com o perigo eminente de sermos contaminadas/os, praticamos o isolamento
físico11 como uma alternativa viável para nos mantermos vivas/os, principalmente até
janeiro de 2021, quando o Brasil ainda não havia iniciado a campanha nacional de
vacinação. No entanto, não podemos ignorar que esta prática, apesar de indicada pela
Organização Mundial da Saúde (OMS), não pôde ser seguida por uma parcela
significativa da população, que precisou continuar se expondo nas ruas, principalmente
para assegurar o vínculo empregatício e o sustento da família.
Neste período, havia a defesa de que o vírus possuía caráter
universal/democrático, sem distinção entre os sujeitos. No entanto, nos colocamos na
contramão deste discurso, principalmente a partir da compreensão de que os efeitos não
são os mesmos para todas/os. A pandemia escancarou as desigualdades sociais,
evidenciando que o isolamento físico foi possível para poucas/os brasileiras/os
(MADDALENA; COUTO JUNIOR; TEIXEIRA, 2020); aquelas/es que puderam
experienciar este privilégio fizeram da quarentena um momento criativo, com direito a
lives e muitos momentos de interação por videoconferência com amigas/os e familiares
(COUTO; COUTO; CRUZ, 2020). Uma análise do cenário pandêmico brasileiro precisa
considerar os diferentes marcadores sociais de identidade e diferença, que funcionam
como organizadores sociais que englobam “todos os processos pelos quais a cultura
constrói e distingue corpos e sujeitos” (MEYER, 2014, p. 53).

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Optamos pelo uso da expressão “isolamento físico” no lugar de “isolamento social” porque defendemos
que, apesar de geograficamente dispersas/os, permanecemos interconectadas/os com outras/os internautas
graças ao digital em rede (MADDALENA; COUTO JUNIOR; TEIXEIRA, 2020).

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Reiteramos que estivemos mergulhadas/os em um cenário de barbárie marcado
pela (necro)política, cujos efeitos feriram os princípios democráticos e puderam ser
sentidos na educação, na arte e na ciência (SILVA JUNIOR; COUTO JUNIOR;
RODRIGUES, 2020). Essas políticas de morte e ódio buscaram alimentar uma “guerra
permanente, constante, persistente, um projeto racista, misógino, assassino que se afana
em excluir todas as formas da diferença que não se encaixam nele” (KOHAN, 2020, p.
1). A pandemia pareceu atuar “como mais um instrumento dessa necropolítica, quase
como uma oportunidade de consolidar a política da morte de forma mais rápida, segura,
econômica” (KOHAN, 2020, p. 3). Diante de inúmeras ações necropolíticas que se
intensificaram durante a pandemia, destacamos a captura de tela abaixo durante o
percurso cartográfico no Twitter, que resume o sentimento coletivo de indignação frente
a um cenário que “não dá mais”.

Figura 1 – Internauta desabafa no Twitter

Fonte: Captura de tela realizada no Twitter em maio de 2021.

Acompanhamos o desenvolvimento da necropolítica praticada pelo Governo


Federal durante a pandemia, que prezou por um discurso antivacina que minimizava a
COVID-19, acompanhada por esquemas de corrupção na compra dos imunizantes e da
priorização de contêineres para armazenar corpos no lugar da compra de respiradores. A
fala da internauta acima demarca também outras duas questões alarmantes. A primeira

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delas diz respeito à produção e disseminação de fake news, que estão entre as grandes
responsáveis por alimentar um cenário de incertezas na população, forjando discursos
com base nos interesses políticos ou, ainda, em teorias infundadas sobre a doença e sua
cura (LEMOS, 2021). A segunda questão levantada foram os constantes ataques à
ciência e às instituições científicas do país em meio à crise sanitária e o esforço mundial
para o desenvolvimento de um imunizante capaz de proteger a população contra a
COVID-19.
O movimento cartográfico também acompanhou a produção e o
compartilhamento de memes que viralizaram na rede e se propuseram a questionar os
inúmeros momentos da pandemia em que Bolsonaro minimizou a doença,
denominando-a de “gripezinha” (figura 2). Ao contrário do que muitas/os defendem
sobre os memes serem uma espécie de lixo virtual, partimos do pressuposto de que são
imagens-dizeres que “indicam compreensão e visões de mundo, registram momentos
que ficam na memória como os antigos álbuns de família. Elas circulam contando e
recontando histórias” (SANTOS; COLACIQUE; CARVALHO, 2016, p. 136). Uma
dessas visões de mundo pode ser compreendida como a insatisfação por parte
daquelas/es que se comprometem e confiam nas informações fornecidas pelas
instituições científicas, institutos de pesquisa e grande mídia.

Figuras 2 e 3 – Memes em resposta à banalização do novo coronavírus

Fonte: Meme capturado do Facebook no mês de março de 2020.


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Fonte: Meme capturado no Twitter no mês de junho de 2021.

No meme acima, o personagem homem-aranha encontra-se com as duas mãos na


cabeça, demonstrando sinal de preocupação/desespero, sentimento que é reforçado com
a frase “eles disseram que era só uma gripezinha”. Além deste, destacamos o meme em
que o rosto de um homem é inserido dentro da imagem de um vírus, fazendo alusão ao
novo coronavírus, acompanhado da frase “Eu sou uma piada pra vocês?”. Os memes
cartografados colocam em xeque as (necro)políticas de enfrentamento da pandemia,
funcionando como estratégias de resistência ao expor a banalização da doença. Eles têm
o potencial de disparar reflexões que permitem a constituição de entradas de
problematização acerca do contexto contemporâneo, oportunizando a participação
das/os internautas na elaboração e no compartilhamento da crítica (COUTO JUNIOR;
POCAHY; CARVALHO, 2019). Através do uso do humor e da ironia, os memes
cartografados expressam desacordo com os discursos antivacina do ex-presidente. Suas
falas e ações geraram preocupação desde o surgimento da doença, quando foi entendida
por ele como uma “gripezinha”, até a chegada dos imunizantes no Brasil, questionados
quanto à sua eficácia (OLIVEIRA; DUQUE, 2022).
O Brasil possui o Plano Nacional de Imunização (PNI), considerado um dos
maiores programas de vacinação do mundo, ofertando quase 50 imunobiológicos para

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toda a população12. Apesar de ser reconhecido como uma referência, o país enfrentou (e
continua enfrentando) períodos de instabilidade, marcados pela proliferação de fake
news e também pela constante descredibilização científica. Durante o percurso
cartográfico nas redes, nos deparamos com uma série de fake news envolvendo as
vacinas contra a COVID-19, incluindo: o imunizante é capaz de modificar o DNA dos
seres humanos, voluntárias/os que participaram dos testes morreram após serem
imunizadas/os, a presença de um chip líquido nas vacinas capaz de controlar a
população, além da maior propensão à transmissão de HIV. Todas estas falácias foram
motivos de preocupação durante a Campanha Nacional de Imunização contra a
COVID-19, haja vista o potencial comunicacional das redes na formação da opinião
pública.
A produção de fake news que reiteram o discurso antivacina é preocupante,
ainda mais quando foram amplamente disseminadas no contexto da maior crise sanitária
e hospitalar enfrentada no Brasil. Existe um “equívoco dos internautas no repasse de
informações inverídicas, sem maiores cuidados em averiguar as fontes” (MESQUITA;
SANTANA; SILVA; SANTOS, 2020, p. 414), aspecto que contribui para colocar em
risco a vida da própria população. Além das fake news, destacamos também a
descredibilização e o desmonte das instituições e pesquisas científicas, a começar pelo
próprio Governo Federal. A previsão orçamentária para 2021, aprovada no Congresso,
indicava o corte de 34% da verba anual. Além disso, evidenciamos também que durante
a pandemia houve o corte de quase 8 mil bolsas permanentes ofertadas pela
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)13.
Além das instâncias governamentais, não podemos desconsiderar que a própria
população foi responsável por alimentar o cenário do negacionismo. Durante a pesquisa,
também acompanhamos uma manifestação na Avenida Paulista, região central da cidade

12
Plano Nacional de Imunização (PNI) é um dos maiores programas de vacinação no mundo. Disponível
em: <https://is.gd/BMgbCR>. Acesso em: 17 jul. 2023.
13
Corte de verbas na ciência brasileira. Disponível em: <https://is.gd/nScGO2>. Acesso em: 17 jul. 2023.

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de São Paulo, no dia 01 de agosto de 2021. As/os manifestantes apoiavam as políticas
de Jair Bolsonaro, reforçando o desejo pela sua reeleição em 2022 nas urnas, o que não
aconteceu. A hesitação vacinal, conforme nosso registro fotográfico abaixo (figura 4),
ficou muito evidente ao longo da caminhada pela Avenida Paulista.

Figura 4 – Não somos cobaias, somos Bolsonaro

Fonte: Acervo da pesquisa, 2021.

Esta imagem incide sobre nossos interesses investigativos porque inter-relaciona


as fake news e a descredibilização da ciência através dos cartazes “NÃO SOMOS
COBAIAS” e “SOMOS BOLSONARO”. O uso do termo cobaia foi amplamente
utilizado diante da preocupação em relação ao tempo de criação/desenvolvimento das
vacinas contra a COVID-19. No entanto, esta preocupação mostra-se infundada, porque
o trabalho com a produção da vacina não foi iniciado em 2020, com a chegada da
pandemia14.

14
A pesquisadora e diretora do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Butantan, Viviane
Gonçalves, indica que se somam pelo menos 20 anos do desenvolvimento da tecnologia para combater o
vírus. Conforme aponta a pesquisadora, a tecnologia estava em andamento pelo menos desde 2003,
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Durante a manifestação, os sujeitos defendiam que não eram cobaias, ou seja,
não eram objetos de experiências ou testes para a validação de pesquisas. Cabe
mencionar ainda que esta manifestação ocorreu aproximadamente sete meses depois de
a primeira pessoa ser vacinada no Brasil, e que neste mesmo período a segunda dose da
vacina se encontrava disponível. Dessa forma, não se tratava de um questionamento
imediato ao início da campanha de imunização, tendo em vista que, neste momento,
muitas dúvidas já haviam sido sanadas, assim como muitas fake news já haviam sido
desmentidas pelos órgãos de pesquisa, representantes da saúde e grande mídia.
A população, não tendo ciência destas pesquisas ou não confiando no trabalho
das/os cientistas, questionou a suposta rapidez na produção das vacinas contra a
COVID-19. Décadas de pesquisa foram dedicadas ao desenvolvimento da vacina, e não
apenas alguns meses, tornando-se mais uma fake news motivo de preocupação para
aquelas/es que não checaram a veracidade dos fatos. Ademais, pesquisadoras/es de todo
o mundo buscaram trabalhar de modo coletivo para acelerar o desenvolvimento do
imunizante contra a doença. Isto aponta para a necessidade de acompanharmos
atentamente a produção de fake news que, na pandemia, trouxeram com força discursos
antivacina, desqualificando profissionais da saúde e instituições de pesquisa
(TAVARES; MAGALHÃES; BRITO, 2020).
Mesmo diante de uma doença que levou a óbito mais de 700 mil brasileiras/os15,
além das manifestações a favor de Bolsonaro que questionavam a imunização contra a
COVID-19, houve outras ações que caminharam na contramão de uma postura ética e
responsável socialmente durante a pandemia. Com o objetivo de mascarar o número de
vítimas, houve a divulgação massiva de fake news, até mesmo por parte do
ex-presidente, convocando a população a invadir hospitais com a justificativa de
comprovar que a superlotação e o colapso do sistema público de saúde eram

quando houve o primeiro surto envolvendo um coronavírus, no entanto, não houve a finalização de um
imunizante porque o surto se encerrou antes. Disponível em: <https://is.gd/wO4nIw>.
15
Mortes por COVID-19 no Brasil. Disponível em: <https://www.conass.org.br/painelconasscovid19/>.
Acesso em: 14 jul. 2023.
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informações falsas forjadas pela mídia. Este movimento foi colocado em prática por
deputados, em diferentes estados do país, como no Rio de Janeiro16, Espírito Santo17 e
São Paulo18. Essa postura reflete a força do negacionismo científico impulsionado por
fake news durante a pandemia.
Entendemos que não faltaram informações durante esse período, no entanto,
algumas crenças, por vezes, estão tão enraizadas que determinados grupos de sujeitos
passam a considerá-las como inquestionáveis, rotulando, inclusive, notícias verdadeiras
como notícias falsas (SANTAELLA, 2019). Apesar do cenário marcado pelas práticas
necropolíticas, alimentadas pela produção e disseminação de fake news, precisamos
continuar apostando na ciência e na educação como nossas maiores aliadas na
desestabilização de discursos ancorados em argumentos infundados.
Embora o cenário necropolítico tivesse ficado bem evidente durante a pandemia,
muitas críticas foram lançadas por pessoas de esquerda, como a falta (significativa) de
doses da vacina, o aumento do desemprego e o aumento do preço dos alimentos, apenas
para citar alguns exemplos. Estas críticas foram apontadas por muitas/os internautas,
que compartilharam suas dores e preocupações, conforme apresentamos a seguir a partir
da pesquisa de Reginaldo Soares. A investigação centrou-se em investigar a
mobilização política de docentes no Facebook, evidenciando o descontentamento com a
política do ex-presidente brasileiro.

“O momento é de ir às ruas”: mobilização política de docentes no Facebook

Entre 2020 e 2022, o trabalho de Reginaldo Soares buscou cartografar práticas


(ciber)ativistas de professoras/es em resposta às políticas de enfrentamento da pandemia
do novo coronavírus. Para isso, a pesquisa de campo foi conduzida no grupo do

16
Invasão em hospital do Rio de Janeiro. Disponível em: <https://is.gd/FqTVXq>. Acesso em: 18 jul.
2023.
17
Invasão em hospital do Espírito Santo. Disponível em: <https://is.gd/4RrWqG>. Acesso em: 18 jul.
2023.
18
Invasão em hospital de São Paulo. Disponível em: <https://is.gd/a7IuFo>. Acesso em: 18 jul. 2023.
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Facebook intitulado “Professores Pela Democracia”, criado em 2018, e que
contabilizava mais de 90 mil membros em junho de 2021.A escolha pelo Facebook
deu-se principalmente pelo número expressivo de internautas que estão reunidos nesta
rede social, que alcançou, no primeiro trimestre de 2020, a marca de 3 bilhões de
internautas ativos a cada mês19. Além disso, diferentemente das outras redes sociais, há
a possibilidade de criação de grupos, o que possibilita agregar pessoas com interesses
comuns. Em relação aos aspectos éticos da investigação, as/os participantes da pesquisa
produziram e compartilharam informações, opinaram e conversaram em rede, por isso
optamos por nomes fictícios para preservar suas identidades.
Adotamos o procedimento da conversa online para interagir com os sujeitos,
o que significou lançar mão de uma aposta metodológica que já faz parte de nosso
cotidiano. Se conversamos no dia a dia, “por que não enquanto pesquisamos?”,
questionam-se Sampaio, Ribeiro e Souza (2018, p. 25). A conversa configura-se como
um convite para que haja o intercâmbio de experiências entre duas ou mais pessoas
(RUANI; COUTO JUNIOR; AMARO, 2020). Em nosso percurso cartográfico, esse
intercâmbio ocorreu no contexto das dinâmicas ciberculturais, com os sujeitos da
pesquisa fazendo da internet um espaço potente para realizar “edição, manipulação,
produção e compartilhamento de todo e qualquer arquivo digital na infraestrutura
interativa e participativa do ciberespaço” (COUTO JUNIOR, 2015, p. 38).
Durante a realização do trabalho de campo, percebemos o engajamento do grupo
na organização de estratégias de resistência às diferentes políticas governamentais
praticadas durante a pandemia. Consideramos as/os docentes participantes da pesquisa
como ciberativistas, ou seja, sujeitos integrantes de movimentos online que se
fortalecem em tempos de intensas disputas políticas, mobilizando-se coletivamente com
o objetivo de que suas demandas sejam discutidas e colocadas em ação. Conforme
apontaram Sepulveda e Silva (2022) sobre o período pandêmico, profissionais do

19
Facebook alcança 3 bilhões de internautas por mês. Disponível em: <https://is.gd/deuuUL>. Acesso
em: 3 jun. 2021.
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campo educacional de todo Brasil, apesar do apoio insuficiente por parte das
autoridades locais e federais, “criaram redes de amizade e de solidariedade e inventaram
muitos possíveis para continuar lutando por um mundo melhor para todos e todas e,
sobretudo, buscaram afirmar a vida e a alegria nas escolas” (p. 2). Nessa linha de
pensamento, a pandemia nos ensinou que precisamos continuar investindo no campo da
educação, reconhecendo o importante papel das/os docentes e das diferentes instituições
de ensino para a formação humana. Essa valorização das/os profissionais da educação
foi percebida durante o movimento cartográfico, conforme apresentado na figura 5
abaixo, que diz respeito à comemoração do grupo no dia 15 de outubro.

Figura 5 – Professores na luta

Fonte: Grupo Professores Pela Democracia.

Rose: Parabéns a todos os mestres [pelo dia dos professores]!

Marsee:
Carmo:
Jose: #ForaBolsonaroGenocidaEsuaQuadrilha
Gilberto: Fora Bolsonaro
Iza: Fora

Em nosso movimento cartográfico, buscamos interagir com a/o outra/o mediante


uma postura dialógica e de alteridade, colocando em prática uma dinâmica
comunicacional centrada na perspectiva de que as ideias fossem “debatidas,

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confrontadas, tecidas e aprimoradas, com vistas a ir além da condição de consumidor de
conteúdos, passando também a criar, disponibilizar, discutir e compartilhar suas autorias
em rede” (SANTOS; CARVALHO, 2018, p. 34). Participamos ativamente do processo
de transformação experienciado em parceria com as/os docentes do grupo, tecendo
reflexões que se constituíram como “um horizonte de possibilidades de construções
coletivas do conhecimento” (RUANI; COUTO JUNIOR; AMARO, 2020, p. 212). Isso
aconteceu porque nos colocamos à disposição para aprender com o outro, de forma
afetiva e engajada, dialogando abertamente com os sujeitos.
As/os professoras/es do grupo atuam em espaços de conversação e de
colaboração, mantendo-se engajadas/os em discutir e combater práticas misóginas,
homofóbicas e racistas amplamente difundidas na rede durante a pandemia. A imagem
com a frase “vidas brasileiras importam”, conforme a figura 6 abaixo, foi compartilhada
no grupo com a intenção de promover um debate sobre as políticas de enfrentamento da
pandemia do novo coronavírus. Esta imagem representa o papel importante deste
engajamento coletivo na rede em defesa das chamadas minorias sociais, apontando para
a promoção da participação pública em um processo que revitaliza a democracia.

Figura 6 – Vidas brasileiras importam

Fonte: Grupo Professores Pela Democracia.

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CONTAGEM REGRESSIVA
FORA BOLSONARO!
Estamos há 715 dias para que o povo brasileiro não seja mais
motivo de piada mundo à [sic] fora por causa de um presidente
incompetente e facínora.
Paulo: “E daí?”, “gripezinha”, “não sou coveiro”, “país de
maricas”: desde que o coronavírus chegou ao Brasil, Bolsonaro
tratou publicamente com desdenho a crise. Enquanto a epidemia
avançava, suas falas causavam ultraje.
Anelisa: #ForaBolsonaro
Mario: Fora Bolsonaro

Defender a valorização da vida durante a pandemia foi um ato político; defender


a vida implicou também uma postura ética de combate às políticas de banalização da
morte, que pregaram o negacionismo científico e colocaram em risco a população
brasileira. As estratégias de funcionamento da necropolítica podem ser percebidas pela
postura do ex-presidente durante o período pandêmico, conforme apontado por Couto,
Couto e Cruz (2020, p. 211): “minimiza a gravidade da Pandemia, debocha dos doentes
e mortos, ironiza familiares que choram seus mortos, faz, apoia e ressalta discursos
autoritários, agride profissionais de saúde, jornalistas e instituições”, estimulando ainda
“os contínuos pedidos de seus apoiadores de intervenção militar no País”. A aliança
política das/os professoras/es do grupo foi fundamental para garantir maior mobilização
em torno das diferentes causas sociais, revelando um verdadeiro sentimento de
indignação durante a pandemia.
Como nos lembra Castells (2013, p. 8), as práticas ciberativistas são motivadas
pela “humilhação provocada pelo cinismo e pela arrogância das pessoas no poder, seja
ele financeiro, político ou cultural, que uniu aqueles que transformaram medo em
indignação, e indignação em esperança de uma humanidade melhor”. Essas práticas,
embora muitas vezes orquestradas nas redes, também ganharam o espaço das ruas
durante a pandemia, segundo percebemos durante o trabalho de campo. Conforme a
figura 7 abaixo, muitos convites foram compartilhados na rede com o objetivo de

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convocar as/os docentes a ocupar as ruas no dia 07 de setembro, Dia da Independência
do Brasil.

Figura 7 – O punho cerrado

Fonte: Grupo Professores Pela Democracia.

No dia 07 de setembro, para cada fascista na rua há de se erguer 2


punhos cerrados. Não se recua perante o fascismo, pois se assim for,
eles acabam se acomodando e a barbárie vai se naturalizando cada
vez mais.
O momento não é de discutir de ir ou não às ruas defender a
democracia. O momento é de ir às ruas para combater o avanço do
fascismo.
Com a extrema direita e com fascistas, nenhum diálogo! Luta .
#ForaBolsonaroeSuaQuadrilha
#VacinaNoBraçoComidaNoPrato

Em nosso percurso cartográfico, aprendemos que estamos imersas em processos


de transformação constantes, sujeitos a novas desestabilizações que podem nos inspirar
a buscar brechas para contestar o instituído (KASTRUP, 2005). O ciberativismo
praticado no grupo evidencia uma estratégia de (re)existência que busca contestar a
necropolítica instituída durante a pandemia. Reconhecemos que tais estratégias
ciberativistas “operam no âmbito de uma complexa estrutura social, visando
enfrentamentos que promovam (micro)rupturas no cenário contemporâneo” (COUTO
JUNIOR; BRITO; POCAHY; AMARO, 2019, p. 1.213). A própria existência do grupo,
a nosso ver, configura-se como um ato político de resistência em resposta à
necropolítica colocada em funcionamento durante o período pandêmico. O convite para
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ocupar as ruas (“O momento é de ir às ruas”) no comentário acima reforça a ideia de
que o ciberativismo das/os docentes no grupo não se restringiu à luta política praticada
no Facebook, mas buscou ocupar também o espaço das ruas, dando ainda mais
visibilidade às demandas dessas/es profissionais.
Nossa cartografia online permitiu reconhecer a importante função de
experienciar a troca com o outro, muito inspirada no modo como Carvalho e Pocahy
(2020, p. 96) operam epistêmico-metodologicamente: “pensamos-praticamos a
cartografia enquanto método, não no sentido de procedimentos a serem seguidos, um
passo a passo fechado em si, mas como modos de problematização de mundos, a partir
de um olhar-sentir o outro, a vida cotidiana”. Dessa forma, acompanhar o grupo do
Facebook Professores Pela Democracia trouxe como sentido partilhar coletivamente
aprendizados-ensinamentos com outras/os docentes, experienciando, em tempos de
cibercultura,
a constituição de novas redes de solidariedade e cooperação entre sujeitos
geograficamente dispersos.

As redes sociais como (mais) um campo de batalha: a título de conclusão

As redes sociais têm desempenhado um papel importante enquanto um lócus de


resistência por sujeitos que integram as chamadas minorias sociais, incluindo negras/os,
nordestinas/os, indígenas, mulheres, além de pessoas da comunidade LGBTQIA+. As
práticas ciberativistas orquestradas na rede contra as inúmeras ações necropolíticas
experienciadas durante o período pandêmico brasileiro apontam para o potencial
comunicacional da internet na promoção da participação pública e no engajamento
coletivo.
Conforme discutido anteriormente, o ciberativismo envolve reivindicações e
mobilizações coletivas, caracterizado como uma nova fronteira da participação política
em tempos de cibercultura, ao conectar pessoas geograficamente dispersas em torno de

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interesses comuns. Com isso, ambas as pesquisas apresentadas e discutidas neste texto
buscaram fomentar discussões que questionassem os acontecimentos contemporâneos,
evidenciando o papel ciberativista de internautas na luta contra as diferentes formas de
desigualdades escancaradas durante a pandemia. Em nossos percursos cartográficos,
partimos do pressuposto que “os movimentos ciberativistas […] nos permitem olhar
com mais atenção para as reivindicações e demandas dos diferentes grupos sociais no
Brasil” (COUTO JUNIOR; VELLOSO; SANTOS, 2020, p. 104).
Fomos provocadas pelas proposições de Harari (2020) sobre precisarmos pensar
no mundo pós-coronavírus. Segundo o autor, era necessário pensarmos não somente na
superação da ameaça imediata na qual estávamos inseridas, “mas também que tipo de
mundo habitaremos uma vez passada a tempestade” (HARARI, 2020, p. 29).
A tempestade chamada COVID-19 cessou em maio de 2023, quando a Organização
Mundial da Saúde (OMS) decretou fim da pandemia20; no entanto, ainda buscamos
rememorar tudo o que experienciamos durante o período pandêmico, porque os ventos
causaram danos que ainda precisam de muitos reparos. Não podemos esquecer que é
sempre possível criarmos, coletivamente, zonas de fuga, visando ampliar nossas
margens de liberdade (OLIVEIRA; DUQUE, 2022), mesmo no olho do furacão
COVID-19.
Nossas movimentações cartográficas realizadas entre 2020 e 2022 voltaram-se
principalmente para as redes do Facebook e do Twitter, tanto a partir das capturas de
telas e memes, como em diálogo com o grupo de professoras/es. Acompanhar a atuação
das/os internautas nas diferentes redes sociais em resposta às ações (necro)políticas
experienciadas na pandemia e impulsionadas por fake news significou também perceber
o desejo coletivo por continuar defendendo a democracia brasileira. Reconhecemos
ainda o importante papel das redes sociais como (mais) um campo de batalha em
tempos de cibercultura. Como educadoras, continuamos apostando na potência do

20
Organização Mundial da Saúde (OMS) declara fim da pandemia de COVID-19. Disponível em:
<https://is.gd/CeeynO>. Acesso em: 18 jul. 2023.

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ciberespaço para um diálogo mais plural e aberto, convidativo à mobilização de sujeitos
interessados na ampliação de suas vozes e lutas.

Referências

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2019.

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<https://is.gd/faVPet>. Acesso em: 16 jul. 2023.

AUAD, Daniela; SEPULVEDA, Denize. Relações de gênero e sexualidade no Brasil:


desafios interseccionais e justiça para mulheres negras e LBT’s. Aceno – Revista de
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BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de


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CARVALHO, Felipe. #Pedagogiasciberculturais: como nos tornamos o que somos?


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#Fiqueemcasa: educação na pandemia da COVID-19. Interfaces Científicas –
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Ensinar-aprender com os memes: quando as estratégias de subversão e resistência
viralizam na internet. Periferia, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 17-38, maio/ago. 2019.
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COUTO JUNIOR, Dilton Ribeiro; TEIXEIRA, Marcelle Medeiros; MADDALENA,


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Brazil in the eye of the COVID-19 hurricane:


mapping cyberactivist strategies to confront (necro)politics in times of pandemic

Abstract: This text unfolds two recently completed master’s theses, developed during
the COVID-19 pandemic in the Brazilian (necro)political scenario. The first research
delved into the social networks Twitter and Facebook, and mapped barbaric facts
marked by fake news in necropolitical times. The second examined the (cyber)activism
of a group of teachers on Facebook in response to the politics against the new
coronavirus pandemic. The online cartography, anchored in post-structuralist
contributions, provided theoretical and methodological support for both studies, which
followed the information flow of Internet users who established the networks as a real
locus of political mobilization in times of COVID-19. Observing the actions of Internet
users in social networks as reactions to the (necro)politics experienced during the
pandemic meant realizing the collective desire to continue defending Brazilian
democracy. We also recognize the important role of social networks as (another)
battlefield of cyberculture. As educators, we continue to believe in the power of
cyberspace for a more plural and open dialogue that stimulates the mobilization of
subjects interested in amplifying their voices and struggles.
Keywords: Pandemic. Necropolitics. Cyberactivism. Fake News. Education.

Recebido: 25/07/2023
Aceito: 06/02/2024

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