Comentário Bíblico Diane Bergant & Robert J Karris

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Dianne Bergant, CSÁ

Robert J. Karris, OFM


(organizadore s )

a
Comentário
Bíblica

Edkões L o jt o la
A atençao que a 6ibKa vem recetendo no B rasil
merece este instrum ento de estudo e aprofun­
damento: um com entário pastoral completo,
destinado a nao-especiaKstas e leitores de di­
versos credos.
A edição ongm al, T k e CoUegeville Bd>le
Com m entary , acompankava a N e w A m erican
B itle (N A B ). A edição brasileira e organiza­
da segundo a Traduçao Ecumemca da BibKa
(T E B ).
Tornam -se acessíveis, sem a m isteriosa Kngua-
gem dos especialistas, as aquisições do estudo
bíblico dos últim os decenios.

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Comentário
Bíblic©

V O L U M E
Diane Bergant, OSÁ
Eobert J. Karris, OPM
(organizadores)

Comentário
Bíblic©

Introdução

Pentateuco

Profetas A n terio res

Bdifões Lo yo la
Título original:
The Collegeville Bible Commentary
© 1989 by The Order of St. Benedict, Inc.
The Lituigical Press Collegeville, Minnesota
Publicado em português sob licença de The Liturgical Press
Todos os direitos reservados
ISBN: 0-8146-1484-1

TRADUÇÃO:
Barbara Theoto Lambert

REVISÃO:
Bagoberto Bordin
Maurício Balthazar Leal

ASSESSORIA CIENTÍFICA:
Johan Korings

DIAGRAMAÇÃO:
iíaurélio Barbosa

Edições Loyola
Rua 1822 n° 347 - Ipiranga
04216-000 São Paulo, SP
Caixa Postal 42.335
04299-970 São Paulo, SP
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obra pode ser reproduzida ou transm itida por
qualquer form a etou quaisquer meios (eletrônico
ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou
arquivada em qualquer sistema ou banco de da­
dos sem permissão escrita da Editora.
ISBN da obra: 85-15-01742-3
ISBN do volume I: 85-15-01945-0
2® edição: setembro de 1999
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1999
Plano da obra
V o L U M E

APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO BRASILEIRA

PREFÃCIO

INTRODUÇÃO À BÍBLIA

PENTATEUCO
Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio

PROFETAS ANTERIORES
Josué, Juizes, 1 Samuel, 2 Samuel, 1 Reis, 2 Reis

V O L U M E

II

PROFETAS POSTERIORES
Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas,
Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias

ESCRITOS
Salmos, Jó, Provérbios, Rute, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes (Coélet),
Lamentações, Ester, Daniel, Esdras, Neemias, 1 Crônicas, 2 Crônicas

LIVROS DEUTEROCANÔNICOS
Judite, Tobit (Tobias), 1 Macabeus, 2 Macabeus, Sabedoria, Sirácida (Eclesiástico), Baruc

V O L U M E

III

EVANGELHOS E ATOS
Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos dos Apóstolos

CARTAS
Romanos, 1 Coríntios, 2 Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses,
1 Tessalonicenses, 2 Tessalonicenses, 1 Timóteo, 2 Timóteo, Tito,
Filêmon, Hebreus, Tiago, 1 Pedro, 2 Pedro, 1 João, 2 João, 3 João, Judas

APOCALIPSE
Apocalipse
ABREVIATURAS
LIVROS BÍBLICOS
(em Srifo, os livros deuterocanônicos)

Ab Abdias Jt Jiidite
Ag Ageu Jz Juizes
Am Amós Lc Lucas
Ap Apocalipse Lm Lamentações
At Atos Lv Levítico
Br Baruc Mc Marcos
Cl Colossenses IM c 1 Macabeus
ICor 1 Corintios 2Mc 2 Macabeus
2Cor 2 Corintios Ml Malaquias
ICr 1 Crônicas Mq Miquéias
2Cr 2 Crônicas Mt Mateus
Ct Cântico dos Cânticos Na Naum
Dn Daniel Ne Neemias
Dt Deuteronômio Nm Números
Ecl Eclesiastes (Coélet)
Os Oséias
Ef Efésios
IPd 1 Pedro
Esd Esdras
z7PH
r Li 2 Pedro
Est Ester Dr
ri Provérbios
Ex Êxodo Drvi
Km Romanos
Ez Ezequiel
11Ixb
Pq 1 Reis
F1 Filipenses 7Do
ZK.S 2 Reis
Fm Filêmon
Rt Rute
G1 Gálatas
Gn Gênesis - Sb Sabedoria
Hab Habacuc Sf Sofonias
Hb Hebreus SI Salmos
Is Isaías ISm 1 Samuel
Jd Judas 2Sm 2 Samuel
J1 Joel Sr Sirácida (Eclesiástico)
Jn Jonas Tb Tobit (Tobias)
Jo João Tg Tiago
Jó Jó ITm 1 Timóteo
IJo 1 João 2Tm 2 Timóteo
2Jo 2 João ITs 1 Tessalonicenses
3Jo 3 João 2Ts 2 Tessalonicenses
Jr Jeremias Tt Tito
Js Josué Zc Zacarias

OUTRAS ABREVIATU

NAB New American Bible RSV Revised Standard Version


NEB New English Bible TEB Tradução Ecumênica da Biblia
V., vv. verslculo(s)

NOMES b íb l ic o s

Grafamos os nomes biblicos como a Tradução Ecumênica da Biblia


(TEB — Ed. Loyola); cf. também as “Equivalências” (ed. integral, pp. XIV-XV)
SUMARIO

A presentação da e d K ç ã o b r a s i l e i r a .............................. 9

P r e f á c i o .......................................................................................................... 11

I n t r o d u ç ã o à B í b l i a ........................................................................ 13
D ianne Bergant, CSA
Introdução aos profetas pós-exílicos (Mary Margaret Pazdan, OP) / 37 —
Introdução à Literatura sapiencial (Lawrence E. Boadt, CSP) / 42 —
Introdução aos Cinco Rolos (James A. Fischer) / 50 — Introdução às
novelas bíblicas (Irene Nowell, OSB) / 51 ■

P e n t a t e u c o ................................................................................................. 53
GÊNESIS.......................................................................................................... 55
PauUne A. Viviano
ÊX O D O ..............................................................................................: ............ 91
John F. Craghan
LEVÍTICO........................................................................................................ 121
Wayne A. Turner
NÚMEROS....................................................................................................... 145
Heleno Kenik M ainelli
DEUTERONÔMIO......................................................................................... 187
Leslie J. Hoppe, OFM

Profetas a n t e r i o r e s ........................................................................ 215


JO S U É .............................................................................................................. ■ 217
John A. Grindel, CM
JUÍZES............................................................................................................... 233
John A. Grindel, CM
1 E 2 SAMUEL................................................................................................. 247
Paula J. Bowes
1 E 2 R E IS ........................................................................................................ 273
A lice L. Laffey, RSM
APRESENTAÇÃO DA
EDIÇÃO BRASILEIRA

crescente interesse pelo estudo da Bíblia entre nós fez sentir a necessidade de
um com entário com pleto prático e acessível. Publicada prim eiro em fascículos
e depois, em 1989, num volum e único pela Liturgical Press do m osteiro bene­
ditino de C ollegeville (U SA ), a presente obra vem preencher essa lacuna. Pre­
parada po r reconhecidos especialistas — m ulheres e hom ens — , caracteriza-se pela sim ­
plicidade, pela objetividade e pela abertura para leitores de diversos credos ou sim ples­
m ente interessados em com preender m elhor a experiência de fé que se exprim e no docu­
m ento básico das tradições ju d aica e cristã.
Será certam ente bem -vinda para os estudantes de religião, ministros, cooperadores
pastorais e pessoas em busca de aprofundam ento religioso em geral.
O peram os algum as adaptações, principalm ente adotando o texto e a ordem da Tra­
dução E cum ênica da Bíblia (TEB — Ed. Loyola) e elim inando um a página d a Introdu­
ção dedicada às traduções da B íblia em língua inglesa.

Johan Konings, SJ
Aos 40 ANOS DE E dições L oyola
São Paulo, 1999
PREFACIO

estem unham os, nos dias de hoje, um interesse crescente pela Bíblia. H om ens e
m ulheres de todos os m odos de vida inscrevem -se em cursos, assistem a sem i­
nários e organizam grupos de estudos. A reflexão orientada sobre a tradição
bíblica é com ponente fundamental de programas de evangelização como The Rite
o f C hristian Initiation o f A dults (RCIA ) e RENEW. G rupos de oração procuram líderes
que possam guiá-los além da interpretação particular, para as profundezas espirituais da
tradição. As pessoas procuram um a com preensão nova e voltam-se para estudiosos bíblicos
que possam proporcioná-la. O s não-especialistas já n ã o estão satisfeitos com um entendi­
m ento apenas religioso da Bíblia. Fazem perguntas literárias, históricas e teológicas que
exigem respostas sábias.
Esforçando-se para satisfazer essa necessidade, The Liturgical Press encarregou trinta
e quatro especialistas para preparar cadernos individuais que, juntos, interpretassem todo o
cânon católico rom ano. Utilizando os m étodos críticos mais recentes e incluindo os frutos
da cultura contemporânea, em 1986 eles com pletaram o CoUegeville Bible Commentary,
série de trinta e seis livretes, todos incluindo perguntas para recapitulação e discussão. A
am pla seleção de autores resultou em um a variedade de posições teológicas e abordagens
metodológicas, o que contribuiu para a riqueza do empreendimento. Houve, do princípio ao
fim , um a tentativa consistente de ser sensível às preocupações contemporâneas. Este projeto
foi completado em pouco m ais de cinco anos, dessa form a assegurando o caráter atual da
interpretação. Em 1988, os autores dos comentários do Novo Testamento refizeram suas
obras à luz da edição revista do Novo Testamento da New A merican Bible.
Este volume reúne os eom entários de todos os trinta e seis cadernos. Sua abrangência
faz dela um recurso valioso, que permite ao leitor consultar com facilidade a interpretação de
todos os livros bíblicos. Além de ser usada para o estudo bíblico, tam bém serve de referência
para o planejamento litúrgico, para a preparação de homílias e para os serviços de oração
bíblica. A obra é resposta admirável à injunção do Concilio Vaticano II: “É preciso que o
acesso à Sagrada Escritura seja am plam ente aberto aos fiéis” (Dei Verbum, n° 22).

DIANNE BERGANT, C.S.A .

Coordenador geral. Comentário do Antigo Testamento

ROBERT J. KARRIS, O.F.M .


Coordenador geral. Comentário do Novo Testamento
INTRODUÇÃO A BÍBLIA
D ia nne Ber gan t, CSA

ma introdução à Bíblia não é apenas o papel que a autoridade desempenhou e con­


um prefácio à obra toda, algo elemen­ tinua a desempenhar nesta área, a primeira parte
tar ou preliminar, que prepara o cami­ tenta descrever o crescimento das Escrituras a partir
nho para a parte principal. É primor­ de seus primórdios até a época em que se decidiu
dialmente uma disciplina teológica por “encerrar o cânon”. Nosso conhecimento do desen­
seus próprios méritos e tem como norma examinar volvimento das tradições, sejam elas religiosas, so­
a origem dos livros individuais da Bíblia, a história ciais, políticas ou literárias, ajudou-nos em nossa
do cânon e a história da tradição textual. Embora investigação desse processo de criação e desenvol­
não seja uma introdução nesse sentido exato, este vimento. Nosso conhecimento da história socio-
artigo trata de algumas questões que se incluem no política e religiosa do antigo Israel e do cristianis­
âmbito de uma introdução. mo primitivo também deu contribuições significa­
Como, nesta obra, as introduções aos livros da tivas nessa área. Parece que o prpcesso de forma­
Bíblia abordam questões pertinentes à origem dos
ção da tradição foi dinâmico, não estático, empreen­
livros específicos, tais informações encontram-se dimento comunitário, não realização individual,
no comentário respectivo. Neste artigo damos aten­
isto é, obra de uma comunidade histórica, não de
ção à origem, ao crescimento e ao desenvolvimento
um único autor.
das tradições bíblicas em geral — tradições que,
Nessa mesma parte, tratamos da questão da
em última análise, abrangem o cânon da Sagrada
autoridade bíblica. O que é? Quem a tem? Como
Escritura. Depois esboçamos a história do cânon e
a obtiveram? Demos realce à importância de movi­
a “critica textual”, a documentação do texto. A for­
mentos históricos e acontecimentos específicos.
mação da tradição, o desenvolvimento do cânon e
Assim, vemos a Bíblia crescendo quando o povo
a critica textual são assuntos que parecem seguir um
ao outro de maneira lógica. Como a Bíblia reivin­ cresce, mudando com as mudanças do povo e se
dica a autoria divina, também examinamos o papel tomando padronizada à medida que o povo busca
da atividade de Deus neste processo de composição. estabilidade. Ver as Escrituras a partir dessa pers­
Por último, descrevemos os instrumentos interpreta- pectiva deve ajudar o leitor a valorizar a descrição
tivos necessários para entender a Bíblia. da Bíblia como “a palavra de Deus em palavras
À primeira vista, o material aqui tratado pode humanas”.
parecer esotérico e interessante apenas para o estu­ Mas o exame detalhado da dimensão humana
dioso profissional da Escritura. Entretanto, depois da composição da Bíblia não responde adequa­
de um exame mais rigoroso, deve ficar claro que damente à pergunta fundamental sobre sua nature­
muitas das perguntas básicas que a pessoa comum za como Escritura Sagrada. Por que ela é a palavra
faz sobre a Bíblia estão respondidas nestas páginas: de Deus? Como Deus falou essa palavra em primei­
Que livros pertencem à Bíblia? Por que algumas ra instância? Como Deus expressa essa palavra
igrejas têm mais livros que outras? Qual é a melhor hoje? Essas perguntas tocam no tema da inspiração,
versão? O que a Bíblia realmente significa? As par­ centro da segunda parte, bem menor porque supõe
tes foram organizadas de modo a responder a algu­ a descrição da formação da tradição esboçada na
mas delas à medida que surgirem. parte anterior. Apresenta um entendimento da ins­
Talvez uma das primeiras perguntas feitas pelo piração que a considera dinâmica e atuante em si­
principiante no estudo da Escritura seja: Que livros tuações e acontecimentos humanos comuns. Tal vi­
pertencem à Bíblia? Em seguida vem; Por que al­ são de modo algum deprecia as alegações de auto­
gumas igrejas têm mais livros que outras? São per­ ridade da Bíblia; ao contrário, amplia o objetivo da
guntas que dizem respeito ao cânon da Bíblia e são atividade divina e coloca o exercício da autoridade
tratadas na primeira parte. Em vez de apenas dar honestamente dentro do contexto da comunidade
as informações concretas sobre o cânon e explicar de fiéis. 13
INTRODUÇÃO Â BÍBLIA

A alegação de que a Bíblia é inspirada influencia senso nesta área reflete-se nos estilos diferentes dos
a maneira de perceber sua veracidade. A compreen­ autores. Apresentamos a obra aqui empreendida
são humana é limitada e o julgamento humano está como parte do processo permanente de interpreta­
sujeito a erro, mas com certeza a palavra de Deus ção biblica.
é fidedigna, Nos últimos anos vimos várias tentati­
vas de solucionar o dilema da autoria dual (divina e
humana) e as forças e fraquezas de cada solução. O CANON
Examinamos algumas delas nesta parte.
Mesmo o estudioso bíblico principiante logo CANON E AUTORIDADE
percebe a existência de grande variedade de edi­ Antes mesmo de abrir a Bíblia para iniciar o
ções da Bíblia. A menos que todos os membros de estudo de seu conteúdo, o pesquisador sério enfren­
um grupo de estudos bíblicos consultem a mesma ta diversas perguntas básicas. Que é a Bíblia? Como
edição, pode haver confusão. Essa confusão resulta a Bíblia adquiriu sua forma atual? Quem é respon­
de traduções diferentes ou do uso de fontes diferen­ sável pelo conteúdo da Bíblia? Por que a Bíblia per­
tes para elaborar o texto. A terceira parte apresenta durou através dos séculos? É a Bíblia relevante para
um breve resumo da história dos textos e versões 0 mundo contemporâneo? Embora respostas bem
que sobreviveram às devastações do tempo e formam conhecidas a essas peiguntas possam ocorrer imedia­
a base das Bíblias atuais. tamente, é freqüente o esquecimento de um denomi­
O significado do texto é, em última análise, nador
a comum muito importante: toda resposta supõe
questão mais importante. Saber como as tradições alguma dimensão de autoridade.
se desenvolveram, acreditar que foram inspiradas Que é a Bíblia? É uma coleção de tradições reli­
por Deus, recuperar versões antigas delas, tudo isso giosas reverenciadas como sagradas porque foram
tem pouca importância se essas tradições perma­ inspiradas por Deus. O reconhecimento oficial pela
necem ininteligíveis. A hermenêutica proporciona comunidade do caráter inspirado dessas tradições
instrumentos e métodos para interpretação, descri­
conferiu-lhes status “canônico”. Isso significa que
tos na última parte. À proporção que cada vez mais
gozam de um status de autoridade que nenhuma
pessoas se envolvem no estudo sério da Bíblia, ex­
outra tradição da comunidade possui.
plicações simplórias das Escrituras são questiona­
Como a Bíblia adquiriu sua forma atual? A
das e, às vezes, até rejeitadas. Continua a haver per­
história de sua criação e seu desenvolvimento é
plexidade diante de interpretações conflitantes.
longa e complicada e será tratada mais adiante.
Além disso, o uso de passagens bíblicas para forta­
lecer 0 ponto de vista do intérprete tomou-se muito Aqui basta dizer que as tradições que foram in­
popular na sociedade, até mesmo quando outro es­ corporadas à Bíblia e a forma que assumiram de-
pecialista apresenta uma interpretação contraditória. pienderam de escolhas dentro da comunidade, feitas
Tudo isso indica a necessidade de entender os meios por pessoas e grupos com autoridade para assim
de interpretação a fim de julgar a validade e a per­ escolher.
tinência do uso atribuído à Bíblia. Quem é responsável pelo conteúdo da Bíblia?
De modo algum esta última parte pretende Proeminentes legisladores, profetas e mestres, men­
abranger todas as abordagens interpretativas. Sua cionados pelo nome nos próprios textos, não foram
intenção é explicar os métodos básicos usados nos os únicos responsáveis pelo material bíblico; houve
estudos contemporâneos. Os autores dos comentá­ também redatores e compiladores que aprimoraram
rios neste volume freqüentemente identificam os e selecionaram material do vasto tesouro literário e
métodos que empregaram em sua pesquisa. As defi­ teológico da comunidade. Preservaram o que consi­
nições encontradas nesta parte talvez lancem algu­ deraram normas religiosas e, assim, exerceram sig­
ma luz nessa pesquisa e, assim, nas descobertas ofe­ nificativa autoridade na comunidade.
recidas pelos autores respectivos. Por que a Bíblia perdurou através dos séculos?
Como em toda obra, outro autor pode perceber Reconhecendo que contém material originário de
o material em discussão de maneira diferente. Um épocas do passado distante e de culturas tão dife­
dos objetivos primordiais do C omentário bíblico é rentes da nossa, só podemos nos maravilhar com
trazer as descobertas da cultura contemporânea ao sua permanência. A razão está no fato de que, ao
alcance do estudioso bíblico principiante. Essas des­ longo dos séculos, os fiéis permaneceram convictos
cobertas podem ser muito novas para alguns, nem de seu caráter de autoridade. Eles também conside­
tão novas para outros. Por causa da ampla seleção raram seu conteúdo normativo e tentaram moldar
de autores, estes comentários oferecem uma varie­ sua vida de acordo com ela.
dade de posições teológicas e abordagens metodo­ É a Bíblia relevante para o mundo contemporâ­
lógicas. Houve uma tentativa consistente de ser neo? Esta pergunta está no centro da maioria dos
sensível às preocupações contemporâneas. Embora debates bíblicos de nosso tempo. Não perguntamos
tenha havido esforço para evitar a referência a Deus simplesmente: como a Bíblia fala ao mundo moder­
14 em linguagem específica de gênero, a falta de con­ no?, mas pode a Bíblia falar ao mundo moderno?
o CANON

A primeira indagação diz respeito à interpretação, ' breve descrição do processo dinâmico conhecido
a segunda, à questão da autoridade. Tem a Bíblia como formação da tradição explica por que acontece
ainda hoje valor normativo para homens e mulhe­ isso. Quando a experiência de vida e os eventos da
res? Não basta dizer que é inspiradora. A questão história forçavam-no a procurar um significado, o
é: E inspirada e, portanto, tem autoridade? povo passava a entender a si mesmo e a suas rela­
Ao abordar o caráter de autoridade da Bíblia, ções com Deus em termos dessa história. Assim,
precisamos lidar com algumas questões bastante tradições surgiam, desenvolviam-se e muitas vezes
distintas, mas inter-relacionadas: 1) Por que emer­ tinham de ser remodeladas conforme o exigiam as
giram essas tradições e não outras? 2) Quem tinha circunstâncias da vida.
o direito de decidir sobre elas? 3) A Bíblia é rele­ A explicação definitiva para a durabilidade de
vante e ainda normativa? uma tradição parece ter sido sua capacidade de per­
manecer fundamentalmente inalterada e, mesmo
Por que essas tradições?
assim, aplicável a novas situações. Se não pudesse
Este estudo deve começar com uma breve ser remodelada nem renovada, deixaria de ter auto­
descrição instrumental de “tradição bíblica”. Em ridade e seu valor revelador seria questionável. Em
palavras simples, tal tradição é, em essência, uma sentido bastante real, a autoridade bíblica está pre­
afirmação sobre o auto-entendimento do antigo sente na interação entre uma tradição autêntica e a
Israel e/ou da comunidade cristã primitiva. Não só comunidade viva.
os definiu especificamente conforme entendiam a
si mesmos como também orientou o desenvolvi­ Quem decide?
mento posterior de seu auto-entendimento. Reconhecer o caráter oficial do processo conhe­
A expressão “povo de Deus” serve de exem­ cido como formação da tradição não é negar o pa­
plo. Nossos antepassados religiosos acreditavam que' pel desempenhado por pessoas expressivas dentro
eram “o povo de Deus”, e esse conceito não só os da comunidade. Alguém precisava tomar decisões
identificou, mas também moldou o caminho que muito importantes para o resto do grupo. Entretan­
seguiram através da história e lhes explicou a ra­
to, essas pessoas expressivas não criaram simples­
zão de continuarem a sobreviver. Para eles, ser “o
mente entendimentos ou doutrinas religiosas inde­
povo de Deus” significava que Deus os chamara e
pendentes da comunidade. Algumas podem ter tido
os conduzia e protegia. Acreditavam ser destinatá­
intuições criativas singulares, mas o que quer que
rios da revelação divina e suas tradições eram teste­
produzissem tinha de ser reconhecido e referenda­
munhas dessa revelação. Na medida em que expres­
sam com autenticidade o auto-entendimento fun­ do pelos outros como interpretação válida da fé co­
damental do povo, tais tradições podem ser conside­ munitária. Isso explica por que algumas das procla­
radas munidas de autoridade. mações dos profetas, por exemplo, não tiveram acei­
Tradições ligeiramente divergentes e, às vezes, tação imediata. Talvez a maioria do povo não tenha
até muito diferentes podiam surgir e, na verdade, considerado autênticas suas proclamações. Em tais
surgiram. Exemplos de tal diversidade incluem os casos, muitas vezes foram os discípulos dos profe­
dois relatos da criação (Gn 1,1-2,4a e Gn 2,4b-25) tas que preservaram os ensinamentos. Somente em
e os vários relatos da conversão de Paulo (G1 1,13­ época mais tardia, o caráter de autoridade dos pro­
17; At 9,1-9; 22,6-11; 26,12-18). Tradições diferen­ nunciamentos obteve amplo reconhecimento.
tes não causavam necessariamente tensões indevidas Segundo essa visão, uma variedade de forças
dentro da comunidade, desde que a identidade do agia para modelar e remodelar a consciência e o
povo não fosse ameaçada. Entretanto, quando havia auto-entendimento do povo. Isso significa que não
uma crise de identidade, a sobrevivência do grupo havia uma localização única de autoridade. Alguns
exigia que se chegasse a alguma espécie de acor­ indivíduos e grupos originavam as tradições; outros
do. Esta crise de identidade freqüentemente prece­ contribuíam para seu desenvolvimento e sua remo­
dia uma crise de autoridade. Qual das diversas afir­ delação; outros contribuíram para a determinação
mações de auto-entendimento era autêntica? Que de seu lugar e importância no auto-entendimento
tradições podiam reunir as forças dispersas dentro comunitário. Os que ocupavam posições de lide­
da comunidade? As que, subsequentemente, funcio­ rança dentro da comunidade podem ter autenticado
nariam como versão normativa da identidade pró­ as tradições, mas o povo precisava confirmar essa
pria da comunidade. Serviríam como uma espécie decisão.
de “cânon”, uma espécie de autoridade dentro da
comunidade. Continuariam como tal enquanto ex­ A Bíblia é relevante e ainda normativa?
pressassem a identidade do grupo. Esta pergunta pode ser feita igualmente por
Os estudiosos concordam que nem todas as tra­ fiéis e infiéis. Em cada caso, parte de determinado
dições sagradas do antigo Israel e/ou do cristianismo entendimento da natureza do material e evoca res­
primitivo foram conservadas. Entre as que foram, posta diferente. Qualquer um pode sentir-se profun­
nem todas gozam do mesmo grau de autoridade. Esta damente tocado pela qualidade inspirada da litera- 15
INTRODUÇÃO À BÍBLIA

tura, religiosa ou não. O fiel, entretanto, aceita as em seu entendimento da história das origens tribais,
tradições da comunidade de fé como sendo, de cer­ muitos concordam que a organização mais primi­
to modo, vinculadoras. Vê-as como algo que não só tiva do povo era a de uma federação unida de ma­
explica a fé, mas também forma os membros dentro neira imprecisa, formada de clãs e tribos, cada uma
dessa fé. São as normas e os padrões que orientam mantendo suas tradições singulares e ardentemente
a vida dos fiéis. Exercem um tipo de autoridade fiel a seus chefes e líderes militares. É provável
sobre essas pessoas. Para que fazem isso é questão que as tradições provenientes de suas experiências
da fé obediente da comunidade de fiéis. Por que o tenham sido preservadas em formas poéticas, en­
fazem é questão de inspiração. Como falam a uma quanto a estabilidade de suas estruturas sociais era
nova situação é questão de interpretação. salvaguardada pelas leis. Essas tradições primi­
O cânon, então, tem a ver com autoridade. Étivas eram encaixadas em sagas e outras narrativas,
uma afirmação do passado que continua a ser atuan­ e seus detalhes podiam mudar, e realmente muda­
te no presente. Como literatura, é uma coleção dos vam, com facilidade ao ser repetidamente narra­
escritos religiosos formativos da comunidade. Os das, enquanto as tradições essenciais permaneciam
fiéis crêem que esses escritos tiveram suas origens intatas.
na revelação e que, como memória histórica, conti­ Esse foi um período de grande fluidez (c. 1200­
nuam hoje a ser fonte de revelação. 1040 a.C.). Grupos de pessoas mudavam de situa­
ção e transferiam sua lealdade social e política com
bastante freqüência. A medida que povos diferentes
O CRESCIMENTO DA TRADIÇÃO se amalgamavam, suas tradições eram reunidas em
uma história comum. Embora essa história apareça
O estudo da tradição bíblica é um empreendi­
hoje bastante unida, o processo de assimilação ja­
mento bastante complexo. Inclui não só a análise
mais apagou por completo as características que
do testemunho final ou “canônico” da comunida­
diferenciam um grupo do outro. Essas característi­
de, mas também o exame do longo e complicado
cas revelam-se no estudo cuidadoso do texto.
processo que deu origem a esse testemunho. Não
A mudança sociopolítica de uma federação de
basta ver a tradição como um relato concluído. De­
tribos para uma nação sob a administração de um
vemos também valorizar o processo de tradição que rei (c. séc. X a.C.) exigiu o exame do relaciona­
criou e aperfeiçoou essa articulação. Um breve mento do povo com seu Deus. O povo foi forçado
exame desse processo esclarecerá o que, de outro a rever suas tradições religiosas, reafirmando umas
modo, pode ser bastante confuso. e reformando outras. As narrativas tribais anterio­
Uma das principais características desse pro­ res foram reformuladas com uma tendência a favor
cesso de transmissão era a interpretação e aplicação da monarquia. Como a situação contemporânea in­
constante de tradições mais antigas. O desenvolvi­ fluenciava a maneira de entender o passado, era ine­
mento da tradição não era apenas a transmissão de vitável que essas novas interpretações se tomas­
formulações estáveis; também incluía o processo re­ sem parte da narrativa original de maneira tal que
petido de atualização de material mais primitivo detalhes de períodos diferentes agora constavam
dentro de novos contextos. Mudanças nos universos de um único relato. Esse processo interpretativo
político, social ou religioso necessitavam de novas explica por que a tradição conhecida como javis-
expressões da fé fundamental, e também da articu­ ta (J) é ao mesmo tempo epos narrativo da histó­
lação de novas intuições. A interação entre aconte­ ria israelita primitiva e justificação da monarquia
cimentos históricos e forças dentro da comunidade davídica.
determinava a forma da tradição, forma que podia Em outra época e a partir de outra perspectiva,
mudar em outra ocasião e outro lugar. Esse proces­ formou-se a tradição agora conhecida como eloísta
so teria continuado até hoje se diversos eventos sig­ (E). Basicamente, era um novo relato da mesma his­
nificativos não forçassem a comunidade a preferir tória narrada pela tradição javista, mas as preocupa­
certas afirmações a outras e a lhes conferir autori­ ções não eram as mesmas e por isso o enfoque era
dade. A destruição do templo salomônico no tempo diferente. Durante aquele período, profetas como
do Exílio babilônico (587-538 a.C.) foi um desses Amós e Oséias, no norte, e Isaias, no sul, também
eventos. Um segundo divisor de águas foi a destrui­ clamavam por uma reavaliação das crenças e práticas
ção do templo herodiano na época do surgimento em uso pelo povo. Embora um pouco dessa teologia
do cristianismo primitivo (70 d.C). Cada uma dessas já se tivesse estabelecido com certo grau de autori­
catástrofes desempenhou importante papel na esco­ dade, grande parte dela ainda estava em mudança.
lha dos materiais tradicionais que deveríam ser pre­ Quando o reino do norte foi derrotado pelos
servados, na classificação específica do que era trans­ assírios (722 a.C.), as tradições originadas ali foram
mitido e na sua interpretação subseqüente como teo­ incorporadas às do sul. Assim, descrições diferentes
logia normativa. dos antepassados tribais foram reunidas em uma só;
Todos estão familiarizados com a designação os costumes legais de uma comunidade tomaram­
16 “tribos de Israel”. Embora os estudiosos diviijam -se parte da lei da outra. A seleção, a codificação e
o CANON

a cristalização dessas diversas tradições resultou em credibilidade dos profetas maiores como porta-vo­
um rico e, às vezes, contraditório testemunho da zes de Deus. Seus ensinamentos deviam ser obser­
ação de Deus na história da nação. Esse testemunho vados. Assim, a recém-formada comunidade exílica
tomou-se a história oficial, o auto-entendimento de reafirmava suas tradições normativas, preservan­
autoridade para o povo. Provavelmente, as mensa­ do-as para o futuro.
gens dos profetas primitivos foram proclamadas As necessidades da comunidade pós-exílica exi­
muitas vezes, enquanto puderam ser adaptadas às giram novas e diferentes tradições religiosas. Inter­
necessidades do povo. É quase certo terem sido pre­ pretações teológicas de eventos, pronunciamentos
servadas por seguidores dos profetas, e esses disci- proféticos, reflexões teológicas sobre a vida, narra­
pulos fizeram as adaptações necessárias, contudo tivas didáticas, hinos e outros cânticos cultuais sur­
apropriadas. giram como parte do tesouro religioso do período
A extinção do reino do norte também teve reper­ do segundo templo. A importância dessas tradições
cussões teológicas no sul. Tomou-se catalisadora para era foco de disputa dentro da comunidade.
a reformulação das histórias do povoamento da terra, Parece que os samaritanos se desligaram da
histórias que não só mencionavam as razões da queda comunidade que regressara do Exílio por volta de
como serviam de advertência para o sul. Houve reno­ 300 a.C., e até hoje os que permanecem fiéis à tra­
vada atenção à Lei e ao ressurgimento da crítica dição samaritana consideram inspirado apenas o
profética. Essas preocupações e a subseqüente refor­ Pentateuco, ou Torá. Os saduceus da era cristã pri­
mulação de tradições mais primitivas prepararam o mitiva eram herdeiros desse mesmo ponto de vista.
terreno para as teologias deuteronômista (D) e sacer­ Só bem depois do início da era cristã o judaísmo
dotal {priestly, P). decidiu sobre a autoridade das Escrituras conheci­
Como afirmamos acima, a destruição do tem­ das como “os Escritos”. Na época, havia diversas
plo, a queda da monarquia e a deportação do povo coleções de material inspirado, todas a reivindicar
desempenharam certo papel na formação das tradi­ uma posição privilegiada dentro da comunidade.
ções. E provável que o período decisivo do cativeiro A expansão do pensamento e da língua helenís-
tenha moldado as duas importantes partes biblicas ticos inspirou a tradução das tradições para o grego.
conhecidas como a Lei e os Profetas. As tradições Essa versão veio a ser conhecida como Septuagin-
históricas, proféticas e legais primitivas receberam ta (LXX) ou versão alexandrina. O primeiro nome
a forma que, em sua maior parte, foi transmitida vem de uma tradição que afirmava terem setenta
até os dias de hoje. O texto exato da história primi­ (LXX) tradutores produzido a mesma tradução, em­
tiva de Israel, inclusive a Lei, foi então estabilizado bora trabalhassem independentemente. A segunda
e não deveria mais receber nenhuma reinterpretação designação vem do nome da cidade de origem. Esta
significativa. Em Esd 7,14 e Ne 8,1, encontram-se versão contém alguns livros não encontrados na Bí­
referências à existência de uma versão da Lei e sua blia hebraica. Parece que a versão hebraica e a grega
importância para a comunidade pós-exílica. Livros gozavam do mesmo prestígio, embora em comuni­
proféticos como Jeremias e Ezequiel seriam ainda dades diferentes.
um tanto ampliados e revisados à medida que se Uma terceira coleção preservada desse período
acrescentava material novo, mas depois de cessa­ pertencia a um grupo sectário conhecido como es-
das essas ampliações e revisões o corpus profético sênios. Parte da biblioteca dessa comunidade foi en­
também recebeu uma espécie de posição de autori­ contrada nas grutas de Qumran, povoado no deserto
dade. No século II, 2Mc 15,9 menciona essa posi­ judaico. Parece que os essênios incluíram mais livros
ção. A comunidade de fiéis agora reverenciava essas em sua Escritura do que a Septuaginta e as Escritu­
tradições como normativas. O que as instituições da ras hebraicas mais tradicionais da época. A existência
monarquia, do sacerdócio e da profecia haviam feito desses diversos “cânones” evidencia o que afirma­
ao moldar a identidade da comunidade pré-exílica, mos acima sobre a diversidade de tradições religio­
as tradições autoritativas surgidas da situação afliti­ sas dentro da comunidade de fiéis. Essa diversidade
va do Exílio fizeram para a identidade do judaísmo resultou de diferentes perspectivas de vida, bem co­
mais tardio. mo de diferentes formas hermenêuticas ou interpre-
Esses livros de material literário e teológico nar­ tativas de abordar o material.
raram os primórdios do povo, mas terminaram a O “evento de Cristo” constituiu um impacto
história com o povo no limiar da terra prometida, comparável ao de outros eventos reveladores da his­
dessa forma proclamando uma mensagem de espe­ tória do “povo de Deus”, pois, como eles, forçou os
rança para a nação que almejava ter, no futuro, fiéis a reexaminar seriamente suas crenças. Entre­
uma terra sua. Agora a história nacional descrevia tanto, era radicalmente diferente deles em diversos
a prosperidade como dependente da fidelidade ao pontos significativos. Não foi apenas outra reve­
compromisso da aliança, explicando assim a atual lação de Deus — os fiéis insistem que foi a revela- .
situação difícil da nação como julgamento pelos ção de Deus. Por essa razão, tradições mais primiti­
fracassos passados e também incentivo ao arrepen­ vas podem agora ser vistas sob uma luz inteiramente
dimento futuro. O material profético estabelecia a nova. Nessa época, o judaísmo era uma religião do 17
INTRODUÇÃO À BÍBLIA

“Livro”; o cristianismo, por outro lado, é uma re­ Isso é interessante, pois estudos mostram que a ver­
ligião do “Cristo vivo”. Os Evangelhos retratam são de uso mais popular na época era a Septuaginta,
Jesus proclamando autoridade por seus próprios em especial entre os cristãos. Quando citavam as
méritos. Ele não parecia colocar-se dentro da cor­ tradições mais antigas, em geral referiam-se à versão
rente de autoridade tradicional, mas invocava dire­ grega.
tamente a autoridade divina. Além disso, explicava Embora a comunidade judaica possa ter toma­
as tradições de Israel em termos de si mesmo. Aqui, do algumas decisões sobre a lista oficial, a comu­
de maneira clara, Jesus, não a Bíblia, é o centro da nidade cristã, que usava as mesmas fontes, não o
autoridade. Daí, então, é inevitável que suija a pergun­ fez. Apesar das expressões: “a Lei ou os Profetas”
ta final: Que relevância tem a Bíblia hebraica para a (Mt 5,17) e “na Lei de Moisés, nos Profetas e nos
experiência e para a teologia cristãs? É uma pergunta Salmos” (Lc 24,44), a controvérsia continuou até
que se apresentou aos cristãos primitivos e, desde depois de iniciado o século IV Não foi tanto o
então, apresenta-se a toda geração de cristãos. conflito com forças de fora da comunidade, mas a
Como o próprio Jesus, os primeiros cristãos ha­ luta interna que repetidas vezes pôs em evidência
viam se formado dentro das tradições bíblicas anti­ a questão do cânon. Grupos como os gnósticos e
gas. Assim, aceitavam-no ou o rejeitavam à luz dessas mestres como Marcião, mais tarde condenados co­
tradições. As Escrituras tomaram-se a base de sua mo hereges, por causa de suas concepções do cris­
fé nele como S enhor e ele passou a ser o centro por tianismo, haviam usado suas interpretações bíblicas,
intermédio do qual eles entendiam as Escrituras. Um em especial a rejeição das Escrituras hebraicas, co­
novo grupo religioso nasceu dessa fé em Jesus e mo base para seus argumentos teológicos. Assim,
dessa reinterpretação das tradições. O novo fenôme­ tanto as Escrituras cristãs emergentes como as ju ­
no era a fonte de conflito dentro da comunidade ori­ daicas transformaram-se em armas na luta sobre a
ginal. A perspectiva radical de Jesus foi desafiada ortodoxia cristã.
pelas autoridades religiosas da época. Os Evange­ O grande apologista do século II Justino Mártir
lhos preservaram recordações dessa nova interpreta­ foi um dos primeiros a testemunhar a prática de ler
ção (veja Mt 5,17-48). Seus seguidores enfrentaram escritos cristãos junto com as Escrituras judaicas
a mesma oposição. Estêvão foi apedrejado por essa nos serviços litúrgicos. A defesa das Escrituras esta­
razão (veja At 7) e o próprio Paulo sofreu por causa va no centro de seu ensinamento. Todos os primei­
de sua pregação (veja At 14,4s; 19). ros paladinos da fé, como Irineu, Clemente de Ale­
O novo ensinamento de Jesus e o favorecimentoxandria, Tertuliano, Orígenes e Eusébio, preserva­
dele por seus seguidores deu origem a uma nova ram listas canônicas dos escritos cristãos. Algumas
tradição que logo gozou de proeminência paralela delas concordavam entre si, outras não. No século
às Escrituras (veja 2Pd 3,2). Entretanto, isso não IV, ambas as Igrejas, a do Ocidente e a do Oriente,
aconteceu sem conflito interno. Dentro da comuni­ aceitaram uma lista cristã de vinte e sete livros, mas
dade cristã havia os que sentiam que a Lei era não não adotaram um padrão para as Escrituras judai­
apenas irrelevante, mas também um estorvo. Essa cas, que teriam de esperar pela Reforma e a resposta
atitude aparecia com mais freqüência nas Igrejas a ela no Concilio de Trento.
estabelecidas por Paulo entre os pagãos (veja G1
3,23-4,7). Outros apegavam-se com tenacidade à
observância da Lei como necessária a si mesmos e A FORMA DO CÂNON
também aos novos convertidos. As comunidades ju- O longo processo de formação e desenvolvi­
deu-cristãs, em esjjecial a Igreja de Jerusalém e um mento da tradição aqui descrito foi, finalmente, en­
grupo conhecido como ebionitas, representavam essa cerrado. O encerramento resultou em uma versão
posição (veja At 15,1-4). Mais uma vez, a questão normativa da tradição que, como testemunho reco­
era o relacionamento de tradições mais primitivas nhecido da revelação divina, possibilitava à comu­
com uma nova revelação. nidade, daí em diante, organizar sua vida e confir­
Diversas forças atuavam durante aquele período. mar sua esperança. Um cânon, ou padrão, foi assim
A comunidade cristã expandia-se e assumia várias estabelecido nessa versão normativa. Devemos notar
formas diferentes e flexíveis. Na comunidade judai­ que a palavra “cânon” tem história longa e eom-
ca, da qual faziam parte muitos cristãos, as tradições plicada. Originalmente, significava “cana” e passou
bíblicas moviam-se para uma forma definitiva. Livros a significar algo que atuava como norma, vara de
de alguma forma associados a grandes figuras do medir. No uso cristão, refere-se a um modelo ou
passado hebreu recebiam proeminência não conce­ regra.
dida a outros escritos. A cultura moderna não co­ As formas canônicas definitivas das tradições
nhece todos os critérios para tomar essas decisões e, bíblicas atestam a presença e a revelação de Deus nas
portanto, muitos detalhes do encerramento do cânon experiências passadas do povo. Essas formas toma­
permanecem obscuros. Uma coisa podemos dizer: ram-se a regra ou o padrão para determinar a re­
nem a coleção da Septuaginta, nem a de Qumran velação dentro da comunidade de fiéis no presente
18 tomaram-se o cânon oficial da comunidade judaica. e no futuro. Também proporcionaram um meio de
o CANON

alcançar unidade dentro da fé. Nascidas da comuni­ mais antiga. Há quem acredite que essa escolha de­
dade, serviram de meio para o renascimento dessa veu-se à rivalidade que se criara entre as interpre­
comunidade, geração após geração. tações judaica e cristã de algumas das tradições e
Há três teorias judaicas principais no tocante ao também à prática cristã de acrescentar escritos cris­
encerramento do cânon. Como a maior parte das tãos às coleções. Outros estudiosos afirmam que
Escrituras hebraicas existia na época de Esdras, no controvérsias dentro da própria comunidade judaica
século V a.C., 0 término da coleção foi atribuído ao influenciaram a decisão sobre o cânon. Na época, os
próprio Esdras. Esta tradição é lendária e hoje goza fariseus estavam em conflito com algumas das seitas
de pouca proeminência. Uma segunda teoria afirma de disposição mais apocalíptica e adotaram posição
que um grupo de líderes da comunidade pós-exílica, a favor de uma interpretação mais conservadora. (A
precursores do que veio a ser conhecido como a apocalíptica era uma forma muito imaginativa e sim­
Grande Sinagoga, trabalharam sob o incentivo de bólica de interpretar os eventos da história. Com ffe-
Esdras e estabeleceram o cânon. Entretanto, não há qüência incluía uma descrição do futuro.) A época
nenhuma prova da existência de um organismo se­ de Esdras, o período posterior à destruição do primei­
melhante à Grande Sinagoga antes da Idade Média ro templo, foi recordada nesta, a época da destruição
e, assim, esta teoria também costuma ser descarta­ do segundo templo. Na época de Esdras foi elimina­
da. A terceira posição, geralmente aceita hoje, afirma da a especulação apocalíptica e messiânica e a cole­
que só na era cristã a comunidade judaica palesti- ção de livros advinda do Exílio tomou-se a versão
nense encerrou seu cânon. Parece que a cidade de normativa. Assim, a mesma seleção ocorreu na época
Jâmnia (também conhecida como Javné/Iabnêj foi de Jâmnia.
O centro do judaísmo farisaico. Aqui, os líderes da Entretanto, a especulação apocalíptica e messiâ­
comunidade que sobrevivera à queda de Jerusalém nica satisfez a necessidade cristã de entender “o
e à destruição do templo construído por Herodes evento de Cristo”. Essa provavelmente foi uma das
decidiram sobre a lista de livros inspirados. razões do uso continuado pelos cristãos de escritos
Assim como uma interpretação específica da que faziam parte da versão grega. Não está claro
presença e da revelação divinas formou a tradição, se Jesus e os discípulos usavam a versão hebraica
outra interpretação específica finalmente conside­ ou a grega. Contudo, está claro que as comunidades
rou o cânon encerrado. Não há certeza sobre os cri­ das quais surgiram as Escrituras cristãs citavam do
térios exatos seguidos para tomar essa decisão. O grego, pois a grande maioria dos cristãos do sécu­
conhecimento das forças sociopolíticas e religiosas lo I era formada de convertidos pagãos de língua
em ação naquela época determinada talvez lance grega. Como não acreditavam que a revelação ter­
alguma luz nesta questão. A história perdeu muita minara com a morte do último profeta, mas conti­
informação necessária, mas podemos supor alguns nuava em Cristo, continuaram a usar a versão grega
critérios. mais extensa.
Se as Escrituras dão testemunho da revelação Só nos séculos II e III as controvérsias dentro
divina, então obviamente a tradição profética, por­ do judaísmo provocaram um movimento dos cris­
tadora de revelação par excellence, desempenhou tãos para encerrar sua lista de livros sagrados ju­
papel significativo na canonização dessas Escritu­ daicos. No século IV, as Igrejas ocidentais já ha­
ras. Somente os livros que se acreditava terem tido viam aceitado a decisão dos concílios norte-africa-
origem antes do término da profecia genuína foram nos e adotado a Bíblia grega. Por outro lado, pare­
considerados inspirados de modo singular. O uso ce que as Igrejas orientais preferiram a lista orga­
litúrgico foi um segundo critério. Os livros que al­ nizada pelos judeus. Essas decisões eram tomadas
cançaram proeminência por causa de sua função por Igrejas locais ou regionais. Foi o Concilio de
cultuai ou litúrgica também receberam status canô­ Trento que finalmente decidiu sobre o cânon para
nico. A adesão a esses critérios produziu a Bíblia as igrejas unidas a Roma.
tríplice: a Torá, ou Lei (os cinco primeiros livros); A Reforma protestante rejeitou a autoridade do
os Profetas (os profetas anteriores, ou livros histó­ papado e seu uso da Escritura para legitimar algu­
ricos, e os profetas posteriores); e os Escritos (sal­ mas de suas doutrinas e, por isso, considerarou as
mos, escritos sapienciais, os cinco rolos litúrgicos, próprias Escrituras como normas para interpretar
Daniel e a história pós-exílica). Eram os livros sa­ a tradição e escolheram o cânon judaico mais cur­
grados de Israel, que “enodoavam as mãos”. Essa to para sua lista oficial. Ao aceitar o cânon grego
frase curiosa indica que, depois de manipular os mais amplo, a Igreja romana preservou uma tra­
rolos acima mencionados, as mãos do leitor deviam dição autêntica da Igreja primitiva e está coerente
ser lavadas em reconhecimento ritual da santidade com 0 uso por aquela comunidade de certos livros
das tradições e do desmerecimento do leitor. rejeitados pela comunidade judaica. Ao conservar
Como afirmamos antes, a versão grega originá­ o cânon mais conciso, as Igrejas protestantes pre­
ria de Alexandria era provavelmente a que estava servaram uma versão mais antiga. Essas decisões
em uso na época (c. 90 d.C.). Entretanto, a comuni­ eclesiásticas resultaram nas listas dadas na página
dade judaica de Jâmnia adotou a versão hebraica seguinte. 19
INTRODUÇÃO À BiBLIA

A história da criação e do desenvolvimento do


CÂNON CÂNON cânon judaico dá razões sólidas para a divisão tríplice
JUDAICO ALEXANDRINO Lei, Profetas e Escritos. Mas só podemos conjeturar
T orá (L ei) P entateuco sobre as razões da ordem do cânon alexandrino:
Gênesis Gênesis Pentateuco, História, Poesia, Profetas. Talvez remonte
Êxodo Êxodo ao fato de os judeus helenísticos serem treinados
Levítico em escolas gregas de retórica, onde a literatura era
Levítico
estudada de acordo com tipos literários. Por fim, há
Números Números
um aspecto teológico interessante nas orientações
Deuteronômio Deuteronômio
divergentes com as quais se encerra cada uma das
P rofetas H istória coleções. No cânon judaico, o leitor é exortado a
(Anteriores) Josué subir a Jerusalém e reconstruir o templo (2Cr 36,23),
Josué Juizes mensagem cara a todos os corações judeus. A ordem
Juizes Rute alexandrina, que reflete uma preocupação messiânica,
1-2 Samuel 1-2 Samuel termina com a promessa de enviar o profeta Elias
1-2 Reis 1-2 Reis antes da vinda do dia ^do S enhor (Ml 3,23). Os
1-2 Crônicas cristãos podiam facilmente considerar isso transição
(Posteriores) Esdras-Neemias apropriada ^tara suas tradições sagradas.
Isaías Ester Os sete livros que têm sua canonicidade con­
Jeremias Judite testada (Judite, Tobit, 1 e 2 Macabeus, Sabedoria,
Ezequiel Tobit Sirácida e Baruc) são chamados “deuterocanônicos”
(12 menores) 1-2 Macabeus pelos católicos romanos e “apócrifos” pelos protes­
Oséias tantes, que costumam incluí-los em uma seção sepa­
Joel rada no fim de suas Bíblias. A palavra “deuterocanô-
P oesia
nico” não sugere tanto um processo canonizador à
Amós Salmos
parte quanto um reconhecimento canônico delibe­
Abdias Provérbios
rado, julgado necessário por causa da controvérsia
Jonas Eclesiastes dentro da comunidade. A princípio, “apócrifos” sig­
Miquéias Cântico de Salomão nificava “ocultos”, o que indicava estar a mensagem
Naum JÓ desses livros oculta da maioria dos membros da co­
Habacuc Sabedoria munidade e poder ser entendida apenas pelos verda­
Sofonias Sirácida deiramente sábios. Aos poucos a palavra assumiu um
Ageu significado negativo, porque a ortodoxia dos livros
Zacarias P rofetas era duvidosa. Hoje, a palavra “apócrifo” refere-se ape­
Malaquias (Maiores) nas a escritos profundamente religiosos e inspirados,
Isaías mas que não são canônicos. Embora ausente do cânon
E scritos Jeremias hebraico, o material deuterocanônico ou apócrifo era
Salmos Baruc considerado parte da literatura religiosa judaica (e,
Jó Lamentações portanto, também da protestante) e, com frequência,
Provérbios Ezequiel usado em ambientes litúrgicos.
Rute Daniel Há outro grupo de escritos religiosos que, embora
Cântico dos Cânticos não sejam considerados canônicos nem pela comunida­
Eclesiastes (Menores) de judaica nem pela cristã, tiveram bastante influência
Lamentações Oséias sobre ambas. Neles encontram-se os alicerces de temas
Ester Amós como 0 Reino de Deus, o Filho do Homem, a ressur­
Daniel Miquéias reição dos mortos, os ensinamentos sobre anjos e de­
mônios. Essas obras intertestamentárias (escritos do
Esdras-Neemias Joel
período entre as épocas do Antigo e do Novo Testa­
1-2 Crônicas Abdias
mentos), quase sempre de caráter apocalíptico, estavam
Jonas
em expansão entre 200 a.C. e 100 d.C. e às vezes go­
Naum
zavam do mesmo respeito que alguns dos “Escritos”
Habacuc que acabaram por se tomar canônicos.
Sofonias Um grande número de manuscritos deste grupo
Ageu de escritos foi descoberto em Qumran, comunidade
Zacarias judaica que compartilhava muitas das esperanças apo­
Malaquias calípticas e messiânicas dos cristãos primitivos. A
O presente comentário segue para o AT o cânon judaico. intensidade dessas esperanças comuns explica a popu­
laridade deste tipo de literatura, que inclui obras co­
tratando logo em seguida os escritos deuterocanônicos.
20 mo 0 Livro de Henoc, o Livro dos Jubileus, os Testa-
OCÂNON

mentos dos Doze Patriarcas, os Oráculos Sibilinos, a quatro entre os muitos que foram compostos nos
Assunção de Moisés, para citar apenas alguns. Como primeiros séculos do período cristão? Até mesmo
sua alegada autoria é contestável, essas obras são mui­ Lucas nos diz que “muitos empreenderam compor
tas vezes citadas pelos protestantes como “pseudepí- uma narração...” (Lc 1,1)- Os estudiosos modernos
grafas”; devido a sua natureza um tanto esotérica, os alegam que essa variedade de evangelhos reflete a
católicos chamam-nas de “apócrifas”. Na verdade, diversidade e o pluralismo dentro do cristianismo
nenhuma dessas palavras é satisfatória, mas por causa primitivo e a aclaptação da tradição evangélica a
do uso tradicional as designações permanecem. novas e diferentes comunidades cristãs.
E mais fácil seguir o curso da elevação de escri­ O exame cuidadoso dos evangelhos apócrifos
tos cristãos ao status de Escritura do que o dos escri­ explica por que a Igreja rejeitou a maioria deles, mas
tos judaicos, porque se encontram testemunhos de não responde à pergunta sobre a quádrupla tradição
sua influência nos escritos dos “mestres apostólicos” evangélica. Têm sido apresentadas várias respostas,
dos primeiros séculos cristãos. Sua autori^de basea- todas um tanto hipotéticas. Alguns dizem que, como
va-se não tanto no fato de serem as tradições dos a origem apostólica era critério para a canonização e
cristãos da primeira hora quanto no de preservarem todos os quatro evangelhos podiam proclamar essa
a autêntica “tradição de Jesus”. As palavras de Jesus é origem (Mateus e João estavam entre os Doze; Mar­
que tinham autoridade. Paulo invocou essa autorida­ cos estava ligado a Pedro e Lucas a Paulo), todos os
de ao ensinar sobre a vinda do S enhor (ITs 4,15) e quatro tiveram de ser aceitos. Irineu aehava que como
a instituição da refeição do S enhor (ICor 1 l,23ss). havia quatro regiões no mundo, quatro ventos princi­
Embora a tradição oral possa ter sido preferida, logo pais, quatro alianças na tradição hebraica, devia ha­
ficou óbvia a necessidade de escritos cristãos. Com a ver quatro testemunhos evangélicos como colunas da
fundação de comunidades cristãs muito distantes de Igreja. Outros sugerem que o fato de Marcião rejeitar
Jerusalém e umas das outras, a comunicação escrita todos os evangelhos menos o de Lucas influenciou a
tomou-se necessária. Quando os apóstolos se disper­ decisão a favor de uma tradição evangélica quádru­
saram e as testemunhas oculares de Jesus começa­ pla. Qualquer que tenha sido a razão, no fim do sé­
ram a morrer, aumentou a necessidade de testemu­ culo II a coleção de quatro evangelhos era aceita em
nhos escritos oficiais. Esses testemunhos foram a toda a parte, exceto na Síria, onde um relato harmo­
base das Escrituras cristãs. nizado conhecido como Diatéssaron de Taciano con­
Essas próprias Escrituras existiam como obras tinuou oficial até o século V
individuais muito antes de serem reunidas em gru­ No fim do século 11, um novo cânon em duas
pos fixos. Os primeiros escritos conhecidos eram partes estava se formando. Era formada por quatro
as cartas de Paulo. Poderiam ter-se perdido para a evangelhos e uma coleção de escritos apostólicos.
história, se alguém não as tivesse reunido e circu­ O status de diversos escritos apostólicos foi assunto
lado essa coleção pela Igreja. Estudiosos sugeriram de controvérsia até o século V Embora as citações
que 0 compilador foi o autor de Efésios, que escre­ e listas da Igreja primitiva fossem os dois crité­
veu essa carta sob o nome de Paulo e enviou-a como rios principais para determinar a autoridade das
introdução geral a toda a coleção. Seja qual for o Escrituras cristãs, está claro que ainda não havia
caso, mesmo antes do fim do século 1, um autor um acordo universal. Talvez essas listas diversas
cristão primitivo chamou as cartas de Paulo de “ver­ da Igreja primitiva não reflitam nada mais que o
dadeira inspiração” (1 Clemente 47,3), semelhantes costume da Igreja local de cada autor. Se esse era
às Escrituras hebraicas (veja 2Pd 3,15-16). Todos 0 caso, a extensão do acordo encontrado é bastante
os grandes mestres dos séculos II e III — Inácio, significativa.
Policarpo, Tertuliano e Orígenes — sabiam das car­ A mais antiga lista oficial ou eclesiástica ainda
tas de Paulo e reconheciam a autoridade delas. Até existente chama-se Fragmento de Muratori e é consi­
Marcião, gnóstico que repudiou toda a tradição ju­ derada característica do uso romano do fim do século
daica, considerava Paulo proeminente. Arquitetou II. O fato de Irineu, Policarpo, Clemente e Tertuliano,
um cânon que consistia apenas em dez cartas pauli- concordarem todos, basicamente, com ela indica
nas e o Evangelho de Lucas. catolicidade. Vinte e dois dos vinte e sete livros de
A primeira referência a “tradição evangélica” nosso cânon estavam incluídos nessa relação.
aparece lá pelo meio do século II; pouco tempo depois, No início do século III, Orígenes foi além na
Justino Mártir menciona a leitura do Evangelho como classificação dos livros então em uso. Depois de via­
parte do culto dominical. Embora possa ter havido jar extensamente, pôde comparar as listas de diver­
indicações anteriores de que a “tradição de Jesus” sas Igrejas em regiões diferentes e classificou os li­
gozava da mesma autoridade de que a tradição hebrai­ vros em: 1) “reconhecidos” — quatro evangelhos,
ca, essa foi a primeira evidência clara de um novo treze cartas paulinas. Atos, duas epístolas não-pau-
cânon que se desenvolvia ao lado do tradicional. linas (mais tarde chamadas “católicas”, porque pare­
Não podemos deixar de perguntar: Por que qua­ cem mais enciclicas destinadas a toda a Igreja do que
tro evangelhos? Por que não apenas um, como su­ a comunidades individuais, caso das cartas paulinas);
geriu Marcião? E, se mais de um, por que apenas 2) “contestáveis”; 3) “falsos”. 21
INTRODUÇÃO À BÍBLIA

No século IV, Eusébio classificou os escritos porque inspiradas por Deus. Na parte anterior, exa­
de modo semelhante. Entretanto, foi a lista de minamos o processo de criação e desenvolvimento
Atanásio que incluiu todos e tão-somente os livros da tradição, mostrando como o fluxo e o refluxo
que formam nosso testamento cristão canônico. da história de Israel influenciaram-no de maneira
Além dos livros canônicos, ele relacionou alguns significativa à medida que reformava e reinterpre-
dos escritos que tinham sido incluidos em várias tava a tradição, e como decisões sobre a canonici­
listas anteriores e recomendou sua leitura. A Igreja dade puseram fim a esse processo criativo.
latina foi influenciada por essa decisão grega e, Até este ponto a autoria humana esteve no centro
posteriormente, diversos concilios norte-africanos desse estudo. As comunidades, primeiro do antigo
sancionaram a mesma lista de vinte e sete livros. Israel e depois do cristianismo primitivo, acreditavam
Apesar de haver concordância geral em todas as que Deus fora revelado em seu meio por intermédio
Igrejas gregas e latinas, isso aconteceu em resultado dos eventos de sua história. A Bíblia é uma coleção
de decisões tomadas por sínodos provinciais, não das tradições acalentadas como testemunhos autên­
por um concilio ecumênico. O cânon originou-se do ticos e duradouros da revelação divina. Ao canoni­
uso comum das comunidades cristãs. zar esses testemunhos, a comunidade declarava que,
Embora o Ocidente tivesse canonizado quatro embora Deus possa ser revelado de muitas maneiras,
evangelhos, a Igreja síria apegou-se ao Diatéssaron há um relacionamento único entre a revelação e essas
até o século V Nunca aceitou completamente todas Escrituras sagradas. Esse relacionamento é mencio­
as epístolas católicas, nem o Apocalipse. Por outro nado em termos de inspiração e autoria divina. Os
lado, a Igreja etíope ampliou seu cânon. Assim, a que, de qualquer forma, contribuíram para a reda­
Igreja do Oriente continuou a reverenciar uma Bíblia ção da Bíblia foram inspirados por Deus. Assim, a
cristã diferente. Bíblia orgulha-se tanto da autoria humana como da
Como já mencionamos, várias outras obras cris­ divina.
tãs primitivas foram com freqüência consideradas Essa consideração de inspiração bíblica come­
canônicas até bem depois do início do século V ça com uma passagem da própria Bíblia: “Toda a
Trata-se de 1 e 2 Clemente, a Epístola de Barnabé, Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar,
a Didaqué e o Pastor de Hermas. Ainda não está refutar, corrigir, educar na justiça” (2Tm 3,16).
claro, em todos os casos, por que não foram incluídas Aqui, a palavra “inspirada” pode significar “respi­
na relação definitiva. ra” Deus ou “é exalada” por Deus. Embora a comu­
Alguns fatores parecem ter sido aceitos gradati­ nidade creia verdadeiramente que as Escrituras con­
vamente para determinar quais livros deveriam e tinuem a nos comunicar a palavra de Deus hoje
quais não deveriam ser considerados canônicos. O (respira Deus), tradicionalmente o sentido passivo
primeiro desses fatores era a. origem apostólica. A do verbo é o preferido: as Escrituras foram “exala­
obra tinha de estar associada a um apóstolo ou a al­ das” por Deus. Essa idéia recorda o tema profético
guém da era apostólica. Segundo, deveria haver uma familiar do hálito ou espírito de Deus, aquela mani­
dimensão católica ou universal na mensagem. Esse festação dinâmica da ação divina no mundo.
requisito não negava que alguns dos escritos foram Não admira, então, que a inspiração bíblica tenha,
originalmente destinados a comunidades individuais, com freqüência, sido entendida como afim da inspi­
mas exigia que a mensagem falasse a todas. Terceiro, ração profética ou do êxtase profético. Entretanto,
o ensinamento precisava estar de acordo com a regra se usarmos o modelo profético de inspiração para
básica de fé e não propor uma mensagem esotérica. entender a inspiração bíblica — como muitas pes­
Não há nenhuma evidência direta de que esses foram soas fizeram no passado e algumas continuam a
os critérios usados para determinar a canonicidade. fazer no presente — , poderemos nos inclinar a pre­
Entretanto, alguns livros parecem ter sido rejeitados sumir que cada livro individual remonta a um único
porque se desviavam seriamente desses critérios. autor que era inspirado ou cujas palavras eram inspi­
Agora a Igreja tinha um cânon dual que ela radas. O processo de formação da tradição exami­
acreditava ter sido inspirado por Deus e que mani­ nado nestas páginas rejeita essa noção de autoria e
festava a presença e a revelação divinas nas expe­ mostra o modelo inadequado e enganador.
riências passadas do povo. Além disso, ela o consi­ Além de presumir uma só autoria, o modelo
derava regra ou padrão para determinar a revela­ profético muitas vezes minimiza o papel desempe­
ção dentro da comunidade de fiéis no presente e nhado pela reflexão e pela criatividade humanas.
no futuro. As vezes. Deus é descrito tomando posse da imagi­
nação e do pensamento e outras vezes até ditando
as idéias e as próprias palavras do indivíduo. Não há
INSPIRAÇÃO dúvida sobre a dificuldade de equilibrar os papéis
do humano e do divino nesse tipo de empreendimen­
INSPIRAÇÃO E AUTORIDADE to conjunto. Mas é melhor uma dificuldade ficar
A Bíblia tem sido definida como coleção de sem solução do que a contribuição de uma das par­
22 tradições religiosas reverenciadas como sagradas tes desse empreendimento ser subestimada.
INSPIRAÇÃO

Sem negar o papel singular desempenhado por estava acontecendo uma formação mútua: da mes­
alguns membros da comunidade, este estudo sugere ma maneira que a comunidade formulava a tradição,
ter sido a própria comunidade que realmente deu a tradição formava, isto é, influenciava, a identidade
origem às tradições sagradas. Se é esse o caso e se da comunidade. A força dinâmica atuante no desen­
essas tradições são, na verdade, inspiradas por Deus, volvimento do povo era a auto-revelação divina. A
então é na comunidade, e não apenas em alguns força dinâmica atuante no desenvolvimento da tra­
membros escolhidos dessa comunidade, que a ins­ dição era a inspiração divina. Assim, deve ficar
piração é atuante. As que primeiro reconheceram a claro que limitar a inspiração a apenas um momento
ação de Deus em sua história e depois desenvolve­ do desenvolvimento é restringir a atividade divina
ram uma tradição para afirmar essa ação, as que àquele momento.
mais tarde transformaram essa tradição para que ela Embora pareça difícil, é possível reconstituir o
falasse a uma nova comunidade em um novo tempo desenvolvimento de uma tradição. O mesmo não se
e as que estabeleceram a tradição em sua forma pode dizer sobre reconstituir o movimento da inspi­
final eram todas comunidades inspiradas por Deus. ração. O primeiro é um esforço humano verificável;
A partir dessa perspectiva, o próprio texto bíblico o segundo é, por definição, uma atividade divina
não é visto como expressão de inspiração inicial. que exige fé e só é acessível por essa fé. Uma comu­
Ao contrário, esse texto é a forma escrita que se tor­ nidade de fé acredita que Deus se revela em seu
nou normativa. A Bíblia representa um momento no meio e se comunica com o povo por intermédio de
longo processo de inspiração divina. Foi precedida suas tradições religiosas. Essas tradições serão reve­
pela criação e pelo desenvolvimento inspirados de renciadas como inspiradas desde que se perceba que
tradições religiosas e freqüentemente tem sido se­ Deus fala por meio delas. Como a fé dinâmica da
guida pela reinterpretação inspirada dessas tradições. comunidade proclama que Deus não está preso ao
Antes de passar à discussão do processo de passado, mas traz o poder do passado ao frescor do
inspiração, precisamos fazer uma pergunta crucial: presente com uma abertura para o futuro, então, de
Exatamente o que é inspirado? É o autor? E como maneira análoga, a inspiração divina deve ser vista
será essa última pergunta respondida se pensarmos como permanente. Na medida em que uma tradição
que quem criou a Bíblia foi a comunidade, não in­ continua aberta à comunicação divina, pode-se dizer
divíduos escolhidos? As palavras são inspiradas? que é inspirada Tradições que se originaram no pas­
Mas, então, que palavras? Seriam as usadas na pri­ sado devem continuar a interpelar a presença ativa
meira expressão das tradições, palavras que, com de Deus, na vida constante da comunidade. A Bíblia
toda a probabilidade, se perderam na história? Ou fo i inspirada, porque, durante sua criação e seu desen­
as palavras do texto final, nas línguas originais? E volvimento, continuamente fonnou uma comunidade
as traduções? Além disso, que versões das tradu­ de fiéis. A Bíblia é inspirada, pois não cessa de rea­
ções? São todas perguntas muito importantes, que lizar esse mesmo prodígio, dando até hoje testemu­
não serão negligenciadas, mas uma pergunta mais nho da origem da comunidade e continuamente des­
fundamental tem a ver com a maneira como a ins­ pertando-a para seus propósitos.
piração atua na comunidade. As outras perguntas
serão examinadas dentro desse contexto.
Nossa discussão anterior sobre a formação da INSPIRAÇÃO E VERDADE
tradição servirá de estrutura para este exame da Quando proclamamos que Deus é o autor da
inspiração. Nem todo acontecimento deixou marca Bíblia, estamos fazendo uma afirmação sobre sua
duradoura na consciência da comunidade. Somen­ veracidade. Com certeza a palavra de Deus é digna
te aqueles eventos que ajudaram a formar e aperfei­ de confiança. Deus não enganaria a comunidade,
çoar sua fé fundamental tornaram-se imprescindí­ nem permitiría que fosse induzida em erro pela igno­
veis à tradição. Um determinado evento em si pode rância ou pelas perspectivas limitadas dos autores
ter sido significativo ou, então, aparentemente in­ humanos. Ao seguir esta sucessão de idéias, muitas
significante. O sentido religioso do acontecimento pessoas insistem que a Bíblia é inerrante ou isenta
é que era lembrado e transmitido de geração a ge­ de todo erro. Tal alegação formula várias perguntas
ração. Os que passavam pela experiência real per­ difíceis.
cebiam que ela contribuía para sua identidade e Como explicamos tradições divergentes e até
sua vida. Ao transmitir essa tradição formativa a mesmo contraditórias? (Os seres humanos foram
outros, convidavam-nos a ser moldados pela tradi­ criados depois que surgiram as plantas e os animais
ção, da maneira exata como tinham sido. Assim, — Gn 1,12.21.25.27. Os seres humanos foram
havia uma dimensão da tradição que era continua­ criados enquanto a terra ainda estava desabitada
mente formativa. — Gn 2,5.9.) Devemos aderir a uma percepção do
Ora, se era o poder dinâmico de Deus que universo que contraria as descobertas científicas?
moldava um povo. em primeiro lugar, o que, senão (A própria luz foi criada antes dos corpos celestes
o mesmo poder dinâmico, podia continuar esse pro­ que emitem luz — Gn 1,3.16.) Podemos conciliar
cesso de formação? Aqui precisamos notar que a cronologia conflitante na história evangélica? 23
INTRODUÇÃO À BÍBLIA

(Jesus purificou o templo no início de seu ministé­ na não pode ser desprezado. Discrepâncias óbvias
rio durante uma de suas diversas visitas a Jerusalém e contradições aparentes podem ser atribuídas a
— Jo 2,13-17. A purificação ocorreu durante sua erro humano, mas também podem resultar das inter­
únipa visita, que aconteceu pouco antes de sua morte pretações e reinterpretações produzidas pela comu­
— Mt 21,12-17; Mc 11,15-19; Lc 19,45-48.) nidade viva em gerações de desenvolvimento das
Os esforços para explicar as inconsistências tradições. Tanto as necessidades de uma determina­
encontradas na Bíblia resultaram em diversos mé­ da comunidade de fé quanto as intuições específi­
todos de interpretação. Os que optaram por inter­ cas que teve em sua tradição religiosa influenciam
pretações fundamentalistas freqüentemente rejeitam a qualidade ou a limitação da expressão teológica
a evidência histórica e científica e adotam o sen­ que emergiu da transmissão da tradição. Com certe­
tido literal do texto, alegando não haver nenhuma za não rejeitaríamos como inadequada ou inexata
inconsistência real, pois Deus pode fazer o impos­ a teologia de Isaías ou Jeremias apenas porque os
sível, se necessário. profetas não se referiram ou não acreditavam na
Outra abordagem tenta conciliar a teoria da Trindade nem na vida depois da morte.
inerrância com as discrepâncias presentes no texto. As tradições bíblicas têm sido descritas como
As Escrituras são entendidas de forma bastante testemrmhos. O enfoque da parte anterior foi na pró­
literal até o encontro de uma passagem difícil. En­ pria composição humana desses testemunhos. Nesta
tão, como crê que a revelação divina não pode ser parte, o assunto é o relacionamento entre os testemu­
nem ilógica, nem incorreta, o intérprete conclui nhos e a revelação de Deus que eles atestam. Esse
que o que parece ser inconsistência na verdade relacionamento tem sido entendido de maneiras sig­
destina-se a ser interpretado alegoricamente. As­ nificativamente diferentes, dependendo de como a
sim, o que podería ser visto como discordante é inspiração é entendida. Os que afirmam que as pa­
harmonizado. lavras são inspiradas têm maior probabilidade de
Uma terceira maneira de resolver o dilema é reverenciar a própria Bíblia como revelação. Outros,
tomar uma decisão sobre o tipo de verdade que a que acreditam que Deus é revelado primordialmente
Bíblia se destina a revelar. Os estudiosos bíblicos nos acontecimentos da história, inclinam-se mais a
fazem exatamente isso, diferenciando entre verda­ considerar a Bíblia o testemunho interpretado desses
de histórica e/ou científica e verdade religiosa — eventos. Segundo esse último ponto de vista, a Bíblia
decisão nada fácil de tomar. As referências histó­ é testemunha da revelação. Em essência, a diferença
ricas, científicas e religiosas estão entrelaçadas. básica entre essas duas concepções é a diferença entre
Nem sempre está claro por que os autores expres­ o que se diz e o que se pretende. Embora ambas as
saram as idéias da forma como o fizeram. Se suas perspectivas sejam, na verdade, aspectos da mesma
referências históricas e científicas não devem ser realidade, com toda a certeza não são idênticas. Saber
entendidas como expressões exatas de verdade teo­ o que a Bíblia diz não é a mesma coisa que saber o
lógica, eram elas apenas as melhores construções que a Bíblia quer dizer.
literárias e figuradas disponíveis? Ou o entendi­ O estudo do desenvolvimento da tradição indi­
mento bastante humano, bastante limitado da rea­ ca que 0 que a comunidade lembrava com carinho
lidade é apenas a plataforma da qual eles lançaram não era, em princípio, alguma expressão específi­
sua profunda busca teológica de Deus e sobre a ca da tradição, mas sim seu sentido fundamental.
qual se desenrolou o drama do envolvimento amoro­ Se esse não fosse o caso, a comunidade teria resis­
so de Deus? Como quer que essas perguntas forem tido de maneira consistente a qualquer tentativa de
respondidas, precisamos decidir que orientações reformulação.
seguir ao fazer as distinções mencionadas. Na ten­ Como afirmamos antes, a força dinâmica atuan­
tativa de se concentrar no que é verdadeiramente te no desenvolvimento do povo era a auto-revela-
teológico, a crítica bíblica esforçou-se para ser o ção divina. A força dinâmica atuante no desenvol­
mais sincera possível ao aplicar métodos de pesqui­ vimento da tradição era a inspiração divina. A Bíblia
sa literária e histórica. Dessa maneira, emprestou alega ser não só um testemunho da auto-revelação
nova luz à questão da veracidade da Bíblia. divina e da transformação da comunidade no pas­
Nessa conjuntura, alguma coisa precisa ser dita sado, mas também ocasião singular para uma re­
sobre o que entendemos por “verdade”. Este termo velação e uma transformação comparáveis no
deve ser entendido como algo semelhante a sinceri­ presente. Na medida em que essa alegação é com­
dade, integridade, a antítese de trapaça? Ou também provada vezes sem conta, podemos afirmar a vera­
sugere precisão, acuidade de fato, isenção de erro? cidade da Bíblia. Não é tanto a exatidão das pala­
Os estudiosos contemporâneos insistem que a vras, mas 0 poder da mensagem que dá testemunho
Bíblia foi, na verdade, inspirada por Deus, mas ins­ de sua veracidade. O mesmo Espírito que foi atuan­
pirada mediante o processo natural de criação e de­ te na formação das Escrituras continua a dar teste­
senvolvimento da tradição. Já que a Bíblia é o relato munho de sua veracidade e a nos convencer de sua
não só da palavra divina, mas também da resposta natureza inspirada. Nesse ponto está a autoridade
24 humana a essa palavra, o caráter de autoria huma­ da Bíblia.
TEXTOS E VERSÕES

TEXTOS E VERSÕES O papiro vinha de uma planta alta semelhante


ao junco que cresce em abundância ao longo do rio
Quem inicia o estudo da Bíblia logo se dá conta Nilo. Era o papel comum do mundo mediterrâneo.
da quantidade de versões disponíveis. Por que exis­ O caule era cortado no sentido longitudinal e as tiras
tem tantas? Qual é a melhor? Perguntas como es­ estendidas lado a lado para formar uma camada. As
sas tocam em outro tema de investigação biblica camadas eram então sobrepostas em ângulos retos
— 0 da crítica textual. Este aspecto particular do e prensadas juntas para formar uma folha. Depois
estudo bíblico será examinado em detalhe na parte de secas eram coladas para formar um rolo, que
sobre interpretação, ou hermenêutica. Aqui daremos depois era enrolado em volta de uma vara. Os rolos
atenção aos diversos textos em si, não ao método tinham cerca de um metro de comprimento. Em
de examiná-los. alguma época do século II, a Igreja começou a usar
Há diversas razões para a variedade de versões um novo formato. As folhas de papiro eram eostura-
bíblicas. A mais óbvia é a diferença nas traduções. das em vez de coladas, produzindo assim uma espé­
Uma língua não se presta faeilmente à tradução lite­ cie de livro que passou a ser chamado de “códice”.
ral em outra e os tradutores precisam tomar decisões O papiro era relativamente barato, mas com o tempo
sobre a escolha de palavras e frases usadas. Alguns ficava quebradiço. Por isso, aos poucos entrou em
tradutores fizeram uma eseolha, outros fazem outra; uso um material novo, mais caro, porém mais durá­
daí resultam traduções diferentes. Abaixo trataremos vel. Descobriu-se que as peles de ovelhas e cabras,
desse assunto mais extensamente. depois de raspadas e secas, proporcionavam uma
Outra razão para algumas das diferenças é o superfície lisa para escrever. Este pergaminho, ou
erro de cópia. Todos sabemos como é fácil cometer velino, como era chamado, logo se tomou o mate­
erros ao transcrever alguma coisa. Se a essa ocor­ rial de uso mais comum.
rência muito humana, muito comum, acrescentar­ Em sua maioria, os textos antigos que foram
mos o fato de os escribas terem precisado trabalhar preservados eram escritos em grandes letras de for­
longas horas com manuscritos em línguas que rara­ ma. Isso é verdade não só a respeito do hebraico,
mente eram a deles, então as repetições, omissões escrito em caracteres relativamente quadrados, mas
e traduções incorretas são compreensíveis. Somente também do grego. Reconhece-se a influência das
prosseguindo na tarefa meticulosa de comparar di­ inscrições em grego antigo, que usava apenas letras
versos textos (e essa é uma tarefa da crítica textual) maiusculas (unciais), em manuscritos gregos pri­
podemos corrigir alguns desses erros. À medida que mitivos. Por essa razão, esses manuscritos passa­
mais textos antigos são encontrados, mais correções ram a ser conhecidos pelo mesmo nome — unciais.
podem ser feitas. Essa forma de escrita em letras de fôrma foi proe­
Essas duas explicações presumem que houve uma minente até o século IX, quando a escrita cursiva
versão bíblica comum, da qual surgiram traduções entrou no uso popular. Esta escrita permitiu aos
diferentes, algumas das quais tiveram erros de cópia escribas copiar manuscritos muito mais depressa e,
ocasionais. Uma terceira razão alegada para a varie­ assim, tomar disponível um número maior de có­
dade de traduções tem inferências que entram mais pias. Entretanto, essas cópias mais numerosas não
fiindo na tradição. Os estudiosos acreditam que, embo­ eram necessariamente mais fáceis de ler. Como a
ra possa haver listas que indiquem os livros que foram uncial, a escrita cursiva deu seu nome a uma forma
incluídos no cânon dos escritos inspirados, em muitos de manuscrito — minúscula.
casos não havia um texto-padrão, fixo. Ao contrário,
existiam várias versões da tradição bastante similares,
TRANSMISSÃO DOS TEXTOS DO
mas, ainda assim, diferentes. Essa explicação justifi­
ca algumas das verdadeiras discrepâncias encontradas ANTIGO TESTAMENTO
nas versões modernas. A primeira edição do Antigo Testamento que
Até recentemente, as mais antigas edições com­ pode, de algum modo, ser considerada crítica só
pletas da versão hebraica do Antigo Testamento dis­ apareceu no século XVI. Junto com o texto comple­
poníveis não eram anteriores ao século XV Sabemos to, incluía um sistema de marcas que representa­
agora que essas edições basearam-se em uma seleção vam sons vocálicos (o hebraico é lingua conso-
de manuscritos bastante limitada, alguns dos quais nantal), uma paráfrase aramaica do texto hebraico
não estão mais disponíveis para estudo. As versões (Targum) e parte do comentário judaico medieval
gregas mais antigas com ambos os Testamentos tradicional. Essa edição foi um progresso acentua­
datam do século IV; alguns fragmentos de livros são do sobre as que a precederam, baseadas em manus­
ainda mais antigos. As descobertas arqueológicas critos mais primitivos que, como a critica contempo­
do século XX elevaram a milhares o número desses rânea demonstrou, tinham abrangência muito limi­
manuscritos ou fragmentos de manuscritos. Foram tada e eram inferiores em legibilidade e exatidão.
classificados com base no material usado (papiro ou A edição do século XVI foi o modelo para a maio­
pergaminho) e o estilo da escrita (unciais era letra ria das Bíblias hebraicas até 1929, quando membros
de fôrma ou minúsculas cursivas). de uma sociedade bíblica alemã publicaram uma 25
INTRODUÇÃO À BÍBLIA

edição crítica bastante sofisticada, uma obra que proporcionaram discernimentos valiosos. Ao mes­
passou por revisões periódicas e continua a ocupar mo tempo, tais comparações deixaram os estudio­
lugar proeminente em alguns círculos. Essa edição sos com muitas perguntas novas. Uma das primei­
alemã inclui a menção de interpretações divergen­ ras questões a abordar é: Foi a tradução grega feita
tes, além de citações da Septuaginta. da versão hebraica específica que por fim se tor­
Na virado do século, duas descobertas no Egito nou a versão modelo conhecida como texto maso-
apresentaram ao mundo dos estudiosos uma visão rético? Segundo o estudo da transmissão do texto
prévia do que estava por vir. Em muitas sinagogas resumido acima, a resposta é não. Embora seja
medievais era costume armazenar cópias do texto uma reconstrução cuidadosa de manuscritos primi­
sagrado em uma sala designada especialmente para tivos, o texto masorético não faz jus a ser conside­
isso, já que esses textos não deviam ser destruidos, rado anterior à era cristã. Além disso, a padroniza­
mesmo quando não eram mais úteis. Descobriu-se ção da versão hebraica obviamente não ocorreu
que em uma sinagoga do Cairo, uma dessas salas, antes do século 11 d.C. Por outro lado, a versão
ou genizá, continha um tesouro de manuscritos dos grega ou alexandrina faz jus a uma origem anterior
séculos XI e Xll, inclusive diversas variantes bí­ ao século III a.C. É mais provável que não houves­
blicas. Além do conteúdo bíblico e litúrgico dos se uma tradição hebraica unificada para ser usada
manuscritos, o material revelou um sistema primi­ pelos tradutores.
tivo para auxiliar a pronúncia. Pelo exame dessas A tradução em si mostra inconsistências textu­
descobertas, os estudiosos puderam reconstituir o ais. A maioria dos estudiosos concorda que prova­
desenvolvimento do uso dos diacríticos vocálicos, velmente os livros do Pentateuco alcançaram rela­
procedimento originalmente destinado a ajudar a tiva padronização durante o período pós-exílico.
proclamação pública, que acabou por fazer parte Isso pode ser verdade não apenas a respeito do
da língua hebraica. conteúdo, mas também da forma textual. Essa pa­
A segunda descoberta foi um manuscrito de dronização explica por que a tradução desse mate­
papiro, que datava de cerca de 150 a.C., contendo rial parece bastante fiel e consistente com um tex­
os Dez Mandamentos e uma passagem do capítulo to hebraico muito semelhante ao que está por trás
6 do Deuteronômio. Para ter seu valor merecida- do texto masorético. O mesmo não é verdade a
mente avaliado e apreciado, essas descobertas te- respeito da tradução dos outros livros do Antigo
riam de esperar a revelação dos Manuscritos do mar Testamento; é provável que este processo se tenha
Morto. desenvolvido durante um período de duzentos einos.
Em 1947, ano que foi um marco no mundo da Assim como não houve padronização do texto
crítica textual, foram encontrados alguns rolos an­ hebraico, não havería uniformização no grego.
tigos em grutas nas proximidades do mar Morto. Somos levados a fazer uma segunda pergunta;
Os primeiros achados ocorreram em um lugar cha­ De onde o grego foi traduzido, se não o foi de um
mado Qumran. Foram descobertos manuscritos da­ texto hebraico padronizado? Provavelmente houve
tados desde 250-175 a.C. Outros fragmentos foram muitas fontes. A primeira a ser considerada é a va­
encontrados em diversos lugares da região do mar riedade de interpretações hebraicas que existiam
Morto, até em 1964. Cerca de 190 manuscritos ou ao lado das que finalmente se tornaram os textos
fragmentos foram descobertos em sítios arqueoló­ padrão, mas que não foram incluídas nesse grupo.
gicos que remontam aos séculos I e II d.C. A com­ A tradução do grego de volta ao hebraieo e a eom-
paração dos textos variantes mostra que as comu­ paração desse hebraico com o texto masorético le­
nidades judaicas dessa época ainda não haviam pa­ vou os estudiosos a acreditar que parte da tradição
dronizado suas tradições. Podiam ter chegado a um hebraica por trás da Septuaginta é mais antiga que
acordo sobre quais os livros que eram inspirados, a tradição por trás do texto masorético.
mas também toleravam grande diversidade de ex­ Uma segunda fonte veio do texto litúrgico da
pressão textual. comunidade. Quando o grego se tomou a língua
Esse extenso material ainda não foi completa­ do povo e o conhecimento do hebraico ficou cada
mente traduzido e avaliado. Mesmo assim, para ser vez menos comum, o povo planejou um meio de
considerada uma versão plenamente confiável do traduzir os sons hebreus para o aramaico. Dessa
Antigo Testamento, toda edição crítica das Escritu­ forma ainda podiam rezar o texto hebraico, enquan­
ras hebraicas precisa levar em consideração o co­ to 0 liam em aramaico. Essas transi iterações eram
nhecimento coligido dessas descobertas. conhecidas como targumim e também proporciona­
A história da versão grega do Antigo Testa­ ram material bíblico que podia ser usado em uma
mento não é menos complicada. Como já menci­ tradução grega.
onamos, a tradição sobre os setenta estudiosos que Finalmente, o próprio Novo Testamento lançou
trabalharam de modo independente, mas produzi­ alguma luz sobre essa questão. Como observamos
ram traduções idênticas, agora é considerada len­ antes, as eitações do Antigo Testamento encontradas
dária. Comparações de manuscritos hebraicos pri- no Novo foram, em sua maioria, tiradas da versão
26 mitivos com targumim aramaicos e versões gregas grega. Traduzi-las de volta para o hebraico levou,
TEXTOS E VERSÕES

em alguns casos, à descoberta de uma versão mais D ou de Beza, que data do século V ou VI. Não tem
de acordo com o Pentateuco samaritano do que com o Antigo Testamento, nem parte do material do
qualquer outra fonte hebraica conservada. Novo Testamento. E uma Bíblia poliglota, isto é,
Esses três exemplos sugerem que, quando as escrita em mais de uma língua. O grego e o latim
tradições bíblicas estavam sendo traduzidas para o estão em páginas opostas. A obra recebeu o nome
grego, as traduções usadas foram as versões he­ de Teodoro Beza, sucessor de João Calvino.
braicas que estavam em uso naquela época e naque­ Um outro códice talvez seja de interesse. É o
le lugar, por aquela comunidade. Como a tradição códice C, ou Ephraemi Rescriptus. O próprio nome
hebraica era um tanto fluida, a versão grega não nos diz que foi reescrito. O escrito anterior, prova­
seria menos variante. velmente uma Bíblia do século V, foi raspado e a
O século II viu cristãos e judeus em acalorada pele reutilizada no século XII para preservar alguns
controvérsia. Em seus argumentos, os cristãos usa­ dos escritos de Efrém. Esse foi o destino de muitos
vam com frequência a Septuaginta, o que levou os manuscritos bíblicos. Este códice é exemplo famoso
judeus a rejeitar essa versão e produzir novas tra­ de manuscritos reutilizados, chamados “palimpsestos”.
duções exclusivamente suas. Três dessas traduções Já mencionamos que no século IX houve uma
desempenharam um papel na critica textual que espécie de revolução na escrita. O cursivo (letra
seus autores e proponentes jamais poderiam ter ima­ corrida) começou a substituir a escrita uncial (em
ginado. O escritor cristão do século 111 Orígenes letra de fôrma). O resultado foi uma nova e exten­
produziu uma versão sextuplicada do Antigo Tes­ sa categoria de manuscritos biblicos que datam do
tamento, chamada Héxapla. Organizou o material século IX ao século XVIII.
em seis colunas paralelas nesta ordem: 1) o texto Além dos manuscritos unciais e minúsculos,
consonantal hebraico que era padrão no século II; outra fonte de informações sobre a tradição neotes-
2) uma transliteração grega do hebraico; 3) a ver­ tamentária é a evidência de obras teológicas primi­
são grega de Aquila (uma das traduções judai­ tivas. Escritores da Igreja primitiva, como Eusébio
cas); 4) a versão grega de Símaco (outra tradução e Clemente, citaram as Escrituras em seus escritos.
judaica); 5) a Septuaginta; 6) a versão grega de O exame dessas citações tem sido valioso para a
Teodocião (a terceira tradução judaica). Esta obra crítica textual.
monumental sobreviveu em fragmentos e também Apenas no fim do século XIX, quando as areias
em citações feitas por diversos escritores cristãos do Egito entregaram seus tesouros de papiro, os
primitivos. estudiosos puderam reconstruir um texto do Novo
Entre todas as versões do Antigo Testamento, Testamento anterior ao século IV. Alguns dos frag­
foi a Septuaginta que serviu de base para os prin­ mentos encontrados recentemente remontam ao
cipais manuscritos, os códices unciais, que surgi­ século II, apenas um ou dois séculos depois da
ram do século IV ao X. composição original. Embora só tenham sido en­
contrados fragmentos, eles mostram que, pelo
menos no Egito do século II, não havia um tipo
TRANSMISSÃO DOS TEXTOS DO
dominante de texto neotestamentário.
NOVO TESTAMENTO Por fim, está começando a ser avaliada a im­
No último século, as descobertas arqueológi­ portância dos textos litúrgicos antigos. Como o
cas desenterraram fragmentos de papiro de manus­ culto representava um papel tão importante para
critos do Novo Testamento que datam até do sécu­ formar os fiéis na tradição bíblica, esses textos
lo II. Antes disso, as cópias neotestamentárias dis- devem ser bastante esclarecedores. Como o estudo
poniveis mais antigas eram os grandes códices un­ dos lecionários ainda está na fase inicial, não se
ciais mencionados acima. Nessa categoria, há quatro pode fazer uma afirmação definitiva sobre sua
testemunhas principais e várias obras menos im­ contribuição ao estudo do texto.
portantes: 1) Códice B ou Vaticano, assim chama­ Com todas essas fontes textuais diferentes —
do porque foi conservado na Biblioteca Vaticana; unciais, minúsculas, citações de autores da Igreja
provavelmente o mais antigo, datado do século IV. primitiva, interpretações de lecionários — , o que
Embora outrora deva ter incluído toda a Bíblia gre­ fazer para decidir sobre um texto único? Com cer­
ga, hoje faltam algumas partes. 2) Códice K ou teza a reconstrução de um Novo Testamento com­
Sinaitico, a única versão que contém todo o Novo pleto é mais do que a seleção subjetiva de manus­
Testamento. Apesar de também datar do século IV, critos diversos. Uma das respostas mais famosas a
era relativamcntc desconhecido até o século XIX, essa questão é uma versão conhecida como Textus
quando foi encontrado no convento de santa Cata­ Receptus (TR), ou “Texto Recebido”. Talvez mais
rina no monte Sinai — daí seu nome. 3) Códice A que a excelência dos estudos, o fenômeno da im­
ou Alexandrino, obra do século V Como os outros prensa trouxe ao público essa obra de um impres-
manuscritos, agora está incompleto. Talvez tenha sor-editor. Até recentemente, as versões provenien­
recebido o nome da cidade de Alexandria, famosa tes desta edição mantiveram a proeminência para
por sua escola de interpretação biblica. 4) Códice muitos cristãos protestantes. Entretanto, os estudos 27
INTRODUÇÃO À BÍBLIA

atuais deram-nos mais evidências de manuscritos hebraicos e gregos originais de ambos os Testamen­
e, assim, possibilitaram uma reconstrução mais tos, bem como as versões da Septuaginta e dos tar­
verdadeira do texto. gumim, foram traduzidos para outras línguas, as
Uma das maneiras de se conseguir isso é pelo principais sendo o siriaco, o latim, o copta e o etió-
processo de classificação de todos os dados em pico. Algumas dessas versões antigas continuam a
categorias de famílias de textos. Nesse processo, desempenhar papéis significativos no estudo da Bí­
são avaliados a qualidade do grego usado, o estilo blia primitiva.
literário empregado e o conteúdo. Uma vez feito Pelo estudo da história antiga, todos sabemos
isso, os editores restringem-se a manuscritos com que Alexandre, o Grande, conquistou o mundo no
características semelhantes, à medida que tentam século IV A cultura e a língua gregas começaram
reconstruir o texto. No fim do século XIX, os tex­ a dominar o mundo antigo. O que talvez tenhamos
tos do Novo Testamento foram classificados em deixado de notar é que, desde o século V a.C., o
quatro grupos principais: aramaico passou a ser a língua internacional do
1) Textos neutros, reconhecidos como as formas Crescente Fértil. Essa situação perdurou até bem
mais primitivas e mais puras. Não tinham emendas, depois de iniciada a era cristã. Os targumim come­
nem reinterpretação deliberada, e eram considerados çaram a aparecer nos últimos séculos antes de Cristo
tradição comum de toda a Igreja oriental. e continuaram até o período medieval. São ainda
2) Textos alexandrinos, que receberam o nome hoje fonte de estudo judaico.
do centro literário do Egito. Esses textos tinham Além do Pentateuco samaritano, dos targumim
considerável estilo e aprimoramento. e do texto masorético, os escritos siríacos também
3) Textos ocidentais, preferidos pelos autores se originam da versão hebraica, não da Septuaginta.
cristãos ocidentais e que foram claramente edita­ Duas obras dessa tradição merecem destaque. Já
dos e intercalados para refletir essa preferência. fizemos menção ao Diatéssaron de Taciano, harmo­
4) Textos sírios, marcados pela combinação de nização dos quatro relatos evangélicos em uma só
interpretações dos outros grupos. Mostravam mui­ narrativa. Esse documento foi o Evangelho sírio
ta semelhança com a tradição bizantina. oficial até o século V Esse mesmo século viu a am­
Novas descobertas arqueológicas e o reexame pla aceitação de uma versão siríaca do Antigo e do
diligente dessas categorias resultaram em aperfei­ Novo Testamentos. Essa Bíblia é realmente uma
çoamentos nas classificações. O cotejo e a avalia­ combinação de diversas fontes. O Antigo Testamen­
ção do material ainda não terminaram e, por isso, to baseou-se, provavelmente, na versão hebraica,
os estudiosos ainda não têm todas as informações mas com influências dos targumim e da Septuagin­
necessárias para chegar a um consenso a respeito ta. O Novo Testamento revela várias características
dos agrupamentos. Nosso estudo não exige infor­ sírias. Essa Bíblia é conhecida como Peshitta, a
mações mais detalhadas sobre esse campo. Basta versão “simples”.
saber que foram dados passos que permitem aos A versão latina mais amplamente conhecida é
estudiosos trabalhar com determinada tradição tex­ a Vulgata de Jerônimo, texto oficial da Bíblia cató­
tual e, assim, chegar ao melhor texto possível. lica romana desde a época do Concilio de Trento
Este breve resumo da história da transmissão até recentemente. Embora não haja dúvida de que
de textos e da descoberta de nova evidência desti­ Jerônimo foi influenciado pela Septuaginta e por
na-se a dar uma explicação inicial para as muitas algumas versões latinas originárias dela, o Antigo
versões da Bíblia. Se edições contemporâneas pa­ Testamento da Vulgata é tradução do hebraico.
recem dizer coisas bem diferentes, talvez seja por­ Entretanto, o Novo Testamento origina-se realmen­
que se originaram de fontes textuais diferentes. Pode te de antigas versões latinas. Alguns estudiosos
ser que uma edição baseie sua tradução na evidên­ acham que Jerônimo revisou apenas os evangelhos,
cia derivada de um manuscrito uncial, enquanto deixando o resto da tradução para outra pessoa
outra considere superior a interpretação de Qumran. completar.
Uma boa edição crítica identifica suas fontes, para O copta é uma língua egípcia escrita no alfa­
que o leitor esclarecido saiba de que tradição tex­ beto grego. Esse fato faria com que a tradução do
tual a interpretação se originou. grego fosse muito mais fácil do que a da versão
hebraica do Antigo Testamento. A própria Bíblia
copta não deriva de uma única tradição, mas sim
VERSÕES ANTIGAS de diversas recensões ou revisões editoriais, o que
Quando as tradições religiosas judaicas e cris­ toma a qualidade da obra um tanto irregular. Como
tãs difundiram-se em novas áreas, tom ou-se óbvia acontece ffeqüentemente, o Novo Testamento é mais
a necessidade de traduzir as línguas originais. Já consistente do que o Antigo, provavelmente por­
vim os que essa necessidade estimulou a criação da que as fontes neotestamentárias usadas eram em
Septuaginta e de outras versões gregas. Também menor número e mais padronizadas.
levou à formação das paráfrases aramaicas conhe- Como o hebraico e o aramaico, o etiópico é
28 cidas como targumim. Aos poucos, os manuscritos língua semítica. Entretanto, o Antigo Testamento
HERMENEUTICA

da Bíblia etíope deriva da versão grega, não da he­ gem da maneira pretendida pelo autor. Ele é aces­
braica. De fato, é um dos testemunhos mais con­ sível sempre que autor e público compartilham a
fiáveis da Septuaginta não revisada. O Novo Testa­ mesma visão do mundo. Entretanto, um público
mento é a parte que demonstra ter sido mais revi­ com uma visão do mundo bastante diferente não
sada e, em conseqüência disso, é desprezada como tem tanta facilidade para compreender a intenção
versão confiável. do autor. A indefinição do sentido literal é óbvia
quando refletimos, por exemplo, sobre a rapidez
com que o significado das palavras muda. Os pais
HERMENÊUTICA de adolescentes muitas vezes ficam estarrecidos
ao ouvir os filhos falar uma língua que não faz
INTERPRETAÇÃO
sentido para eles. Em essência, os dois universos
Uma das questões mais excitantes e desafiadoras de significado — o dos pais e o dos filhos adoles­
do estudo bíblico contemporâneo é o da interpreta­ centes — simplesmente não coincidem por com­
ção, ou hermenêutica, que não só prende a imaginação pleto; assim não pode haver pleno entendimento
dos estudiosos como também provoca considerável mútuo.
confusão para o público em geral. A Bíblia significa Interpretações rigidamente literais ou funda-
precisamente o quêl Entre as muitas interpretações mentalistas de textos bíblicos muitas vezes deixam
divergentes, qual é a correta? Que escola de interpre­ de levar em conta as inegáveis mudanças e evolu­
tação, ou que biblista em particular, devemos se­ ções da língua. Os fundamentalistas bíblicos pare­
guir? Embora com certeza não responda satisfato­ cem relutantes em reconhecer que o universo do
riamente a todas essas perguntas, o exame minu­ significado, a visão universal dos textos bíblicos,
cioso dessa questão complexa e controversa poderá não são iguais aos contemporâneos. A necessidade
lançar alguma luz nas fontes de algumas das confu­ de interpretação aumentará se a isso acrescentar­
sões sobre o significado do texto bíblico. mos o fato de a Bíblia ser produto de uma cultura
Precisamos nos lembrar de que a Biblia, como e de um tempo diferentes. O sentido literal da Bí­
realidade literária básica, é uma forma de comuni­ blia, então, embora possa parecer o mais razoável
cação que abrange três componentes principais: re­ e provável, nem sempre é alcançado com a facili­
metente ou autor; mensagem ou texto; e destinatário dade que alguns alegam.
ou público. Historicamente, enquanto a comunica­ O sentido alegórico da Escritura, bastante proe­
ção registrada nos textos bíblicos permaneceu na minente nos primeiros séculos do cristianismo e
comunidade de origem, o público exigia muito pou­ também na Idade Média, expõe a Bíblia a uma in­
ca interpretação. A maior parte do público pertencia finidade de interpretações. Segundo essa aborda­
ao mesmo universo de significado que o autor. Só gem, o texto, na verdade, pretende dizer algo dife­
quando determinada mensagem bíblica era levada a rente do que sugere sua redação literal. A contenda
outro universo de significado havia necessidade de é que significados místicos mais profundos estão
amplos esforços de interpretação. Era inevitável que escondidos sob as palavras. Na verdade, esses sig­
resultassem entendimentos diferentes, conforme o nificados mais profundos em geral originam-se de
principal foco interpretativo estivesse no remetente, fora do texto bíblico em si e são levados a ele por
na mensagem ou no destinatário. intérpretes que colocam nas imagens e ações do
texto significados de sua própria visão universal.
A mensasem Por exemplo, a narrativa de Maria de Betânia que
Parece que nos primeiros séculos do cristianis­ escuta a palavra de Jesus, enquanto Marta se afoba
mo, O centro primordial da maioria das interpreta­ em um serviço complicado, foi alegoricamente in­
ções estava na mensagem. Por isso, a tarefa interpre- terpretada como se significasse que a vida contem­
tativa era traduzi-la para o novo universo ou os novos plativa simbolizada por Maria é vocação mais su­
universos de significado. Na Idade Média, já haviam blime que a vida ativa simbolizada por Marta.
sido desenvolvidos quatro tipos distintos de inter­ Contudo, dificilmente essa foi a preocupação do
pretação da mensagem. Sobreviveram à marcha do autor original. Assim, pode haver tantas interpreta­
tempo e continuam a influenciar a forma como hoje ções alegóricas de um texto quanto o número de
as pessoas entendem a Bíblia. São as interpretações intérpretes com seus pontos de vista diversos. Por
literal, alegórica, moral e escatológica. Como talvez isso, embora um texto apresente uma fecunda am­
essas designações específicas sejam desconhecidas plitude de significados, eles podem parecer arbitrá­
do leitor, um breve exame de cada uma trará algum rios, subjetivos e distantes da mensagem mais ime­
esclarecimento. diatamente aparente do texto.
Em geral, o sentido literal de um texto refere-se No sentido moral, o texto é entendido primor­
ao significado que as palavras transmitem. Neste dialmente em termos da vida espiritual de cada
caso, o texto é aceito por seu significado mani­ fiel. Por exemplo, todo indivíduo é Abraão chama­
festo. Este entendimento indica que o público com­ do a um novo relacionamento com Deus. A liber­
preende imediatamente todas as nuanças da lingua­ tação política do antigo Israel é entendida como 29
INTRODUÇÃO À BÍBLIA

verdadeira descrição da liberdade pessoal que a passado histórico. Só há bem pouco tempo este
salvação traz à alm a do fiel. Embora tenha sido movimento adquiriu proeminência em círculos
empregado com freqüência por autores espirituais católicos. Foi incentivado desde a época do papa Pio
para nutrir a vida interior das pessoas religiosas, XII (1943) e recebeu ampla aprovação no Concilio
este método de interpretação tem graves deficiên­ Vaticano II (Constituição Dogmática sobre a Reve­
cias. M uitas vezes o sentido comunitário da Bíblia lação Divina).
se perde e as responsabilidades sociais são quase O centro mudara dos sentidos múltiplos da
sempre esquecidas. As referências históricas têm mensagem ou do texto para o sentido “real” pre­
sua im portância minim izada e, às vezes, o texto tendido pelo autor. Assim, agora o biblista tinha
parece ser forçado a se ajustar ao formato prede­ que estar o mais bem informado possível sobre as
terminado do intérprete. circunstâncias que cercavam as origens dos escri­
O quarto método é o escatológico. Refere-se tos. Seus cenários históricos, culturais e religiosos
ao significado espiritual do texto no que diz res­ assumiram importância nova. As fontes emprega­
peito às futuras realidades celestes ou escatológicas. das em sua composição, o público para o qual se
Segundo esse sentido, a “terra prometida” não é destinavam e os propósitos aos quais deveríam ser­
nem o Israel histórico, como a interpretação literal vir passaram a ser assuntos que ocupavam a atenção
indicaria, nem a Igreja de Cristo, como o sentido dos intérpretes.
alegórico podería sugerir, nem a alm a do cristão Os resultados dessa mudança de método foram
redimido, como afirm aria o sentido moral. É o muitos. Embora sempre reconhecidas como inspira­
Reino do céu futuro. Este tipo de interpretação, tão das, as Escrituras começaram a ser apreciadas como
comum no fim da Idade M édia e até na época expressões humanas da fé de um povo. A partir
moderna, inclinava-se a minim izar a im portância dessa perspectiva humana, homens e mulheres con­
da vida neste mundo. Tudo se concentrava na vida temporâneos viam agora os antigos ocupados com
futura. Como o sentido moral, essa maneira de en­ as mesmas lutas da vida em que eles estavam e
tender servia principalmente à vida religiosa do estão engajados. Começaram a ler as narrativas bí­
povo. Se fazia ou não justiça ao texto bíblico é blicas com entusiasmo renovado. A teologia bíbli­
outra história completamente diferente. ca passou a ocupar um lugar significativo em suas
Como afirmamos antes, esses quatro sentidos vidas. Procuraram responder à presença de Deus
da Escritura continuam a influenciar a maneira em sua história, como haviam feito seus antepas­
como muita gente entende a Bíblia hoje. Parte da sados dos tempos bíblicos. Sem dúvida, o novo
confusão atual talvez se origine das perspectivas fervor bíblico introduzido pelo movimento históri­
variadas empregadas nos métodos individuais, bem co-crítico deu nova vida à Igreja.
como de qualquer mistura dos quatro. Traços de O estudo da Escritura logo se transformou em
todas essas abordagens ffeqüentemente vêm à tona empreendimento muito sofisticado. Os que eram
na pregação contemporânea e são proeminentes em inexperientes no método muitas vezes ficavam de­
certa literatura religiosa contemporânea. sanimados com o que ele exigia e com os primeiros
frutos. Alguns sentiam que o próprio fundamento
O rem etente de sua fé estava sendo despedaçado por descobertas
Uma conseqüência da Reform a foi a tentativa que não se harmonizavam com suas interpretações
persistente de evitar qualquer sinal de tendência religiosas, alegóricas, morais ou escatológicas. En­
dogmática ou teológica na interpretação da Bíblia. tretanto, os que adquiriram alguma habilidade no
Muitos mestres da Reform a criticavam príncipal- método e puderam apreciar seu valor logo tiveram
mente a maneira pela qual (alegavam eles) a igreja de reconhecer que ele tinha defeitos. Perceberam que
rom ana estava lidando com a Biblia. Insistiam que não bastava conhecer a teologia do passado. As ques­
a Bíblia estava sendo mal empregada para defender tões com que lidavam tinham a ver com a aplicabi­
a doutrina oficial, de modo algum estabelecida na lidade da mensagem bíblica ao presente: a teologia
Bíblia, e exigiam que se buscasse o sentido original bíblica tem alguma relevância para os nossos dias?
do texto, em vez de uma interpretação subjetiva ou Em caso afirmativo, como devemos traduzir para o
confessional. presente a mensagem teológica de outra era, outra
Essa preocupação pôs um fim às tendências à cultura, outra visão do universo?
alegoria de grande parte dos biblistas. Embora esse Essas perguntas levaram os estudiosos a olhar
estilo de interpretação persistisse entre os católicos além da crítica histórica e se voltar para a questão
romanos, os estudiosos e as comunidades protes­ da hermenêutica, ou interpretação. Mas mesmo essa
tantes, em sua maioria, começaram a salientar os mudança não parecia suficiente. Perguntas mais
antecedentes históricos da Bíblia. Assim começou radicais e mais abrangentes estavam vindo à tona.
o movimento histórico-crítico, isto é, uma ampla A revelação só ocorreu há milhares de anos? Deve­
iniciativa entre biblistas predominantemente protes­ mos apenas reencenar em nossas vidas os eventos
tantes para buscar o sentido de um texto bíblico por salvíficos do passado? Uma segunda importante
30 meio de cuidadosa investigação e análise de seu mudança interpretativa estava para acontecer.
HERMENÊUTICA

O destinatário de significado de hoje é idêntico ao dos autores


Agora a atenção está se concentrando no desti­ antigos. A posição fundamentalista proclama ser
natário, ou público. Isso quer dizer que o intérprete capaz de chegar ao significado literal apenas com a
contemporâneo e o ato de interpretar tomaram-se obje­ leitura do texto. Os críticos, por outro lado, insistem
to da análise. O método histórico-critico presume que que, para o universo dos autores se revelar, é neces­
é possível um entendimento objetivo do significado sária uma análise histórica precisa e ampla. Essa
original. Tal posição ignora que o intérprete chega análise critica abrange um grande número de metodo­
ao texto com preconceitos históricos e religiosos. Os logias distintas, mas relacionadas. As principais se­
novos métodos de interpretação admitem que a ma­ rão examinadas abaixo.
neira como o texto é entendido depende em grande A concentração naquilo que a Bíblia significa
parte das perspectivas sociopolíticas e religiosas do levou muitos estudiosos a estudos de caráter menos
intérprete. Assim, por exemplo, as pessoas que já so­ histórico e mais literário. Diversas teorias literárias
freram opressão política, econômica ou religiosa vêem foram examinadas e empregadas na interpretação
a Bíblia de maneira diferente daqueles que olham bíblica. Essa tendência levou à análise mais ex­
desde uma posição privilegiada. tensa de formas literárias, ao estudo do significado
Essa nova abordagem está apenas no início e, dos símbolos e ao exame da própria natureza da
portanto, ainda não pode ser adequadamente ava­ lingua em si como meio de comunicação. Ao con­
liada. Entretanto, já foram alcançados alguns re­ trário dos estudos históricos que lutam para apren­
sultados muito excitantes e desafiadores. Homens der mais sobre o mundo do autor, a fim de decobrir
e mulheres começam a considerar sua própria vida o significado original, é inevitável que os estudos
0 cenário onde está ocorrendo uma revelação, tão literários exponham o texto a uma pluralidade de
autêntica quanto aquela descrita nos textos bíblicos. significados.
A espiritualidade bíblica já não diz respeito exclu­ Sem negar a importância e a validade de cada
sivamente ao indivíduo. Recuperou sua dimensão uma dessas duas abordagens, muitos biblistas acre­
comunitária. ditam que nenhuma delas basta por si só. Insistem
que as Escrituras são mais que obras literárias —
HCRMENEUTICA CONTEAáPORANEA são também tradição inspirada de uma comunida­
de permanente de fiéis. Assim, o sentido literal de­
Outro jeito de abordar a questão da interpreta­
sempenha papel normativo para ajudar a comunida­
ção é distinguir entre o que a Bíblia significa e o
de atual a chegar ao entendimento de sua identidade
que a Bíblia significava. Como já mencionamos,
e à apreciação dos tipos de estilo de vida que devem
isso não é problema quando os autores e o públi­
co compartilham os mesmos universos de significa­ fluir dessa identidade. Entretanto, se isso for verda­
do. Toma-se problema quando a comunicação que de, então contextos históricos e/ou culturais dife­
atravessa culturas e gerações já não garante mais rentes reinterpretarão e reafirmarão essas tradições
um entendimento comum. Os biblistas comprome­ bíblicas de várias maneiras. O resultado será uma
tidos com a hermenêutica contemporânea compõem pluralidade de significados válidos. O desafio da
um amplo espectro de posições a respeito do centro hermenêutica contemporânea é planejar um méto­
principal desses dois pólos. Alguns afirmam que o do que leve em consideração essas duas abordagens.
significado real é o pretendido pelo autor original Tal método estará qualificado para transmitir fiel­
(o que a Bíblia significava). Outros alegam que, mente a tradição inspirada. Assim, determinada ex­
depois de sair das mãos do autor, a obra literária pressão válida do significado do texto atuará como
tem vida própria, independente da intenção do autor a palavra de Deus, que transforma um novo povo
(0 que a Bíblia significa). Muitas abordagens her­ em uma comunidade de fiéis.
menêuticas contemporâneas encontram-se em algum
lugar entre esses dois pólos, servindo de ponte entre
ABORDAGENS HISTÓRICO-CRÍTICAS
a intenção do autor e um contexto da atualidade.
Hoje, os biblistas referem-se à intenção do autor A expressão “método histórico-critico”, ou “crí­
(0 que a Bíblia significava) como sentido literal. É tica histórica”, tem sido usada de forma tão impre­
importante esclarecer o significado exato dessa desig­ cisa e errônea que a designação se tomou ambígua
nação. Essa forma de entendimento toma as pala­ e a utilidade da abordagem interpretativa foi ques­
vras em seu significado manifesto, mas de acordo tionada. Da forma como a entendemos aqui, é uma
com a intenção do(s) autor(es) ou editor(es) origi- abordagem que emprega todos os instrumentos his­
nal(is), não primordialmente como passaram a ser tóricos disponíveis na tentativa de reconstruir a
entendidas hoje. Uma interpretação fundamentalista história e entender os documentos que essa história
da Escritura também entende as palavras em sentido produziu. Sua meta é histórica e ela trabalha de ma­
literal, mas lhes atribui um significado contempo­ neira crítica e sistemática para alcançar essa meta.
râneo. A pressuposição que atua neste método, embo­ Busca entender e interpretar as descobertas, mas não
ra muitas vezes inconscientemente, é que o universo as julgar. 31
INTRODUÇÃO À BÍBLIA

O século XIX viu uma revolução em larga A segunda meta também é alcançada pela
escala na consciência histórica e o nascimento de comparação de textos, mas com um fim diferente
uma nova teoria histórica, o que levou ao desenvol­ em vista. A reconstrução é movimento para trás em
vimento de instrumentos críticos para estudar o direção a uma única interpretação. A história da
passado. Os textos sagrados não podiam escapar transmissão textual é busca para a frente, de inter­
ao olho crítico desse tipo de investigação. Logo as pretações variantes que permitam ao biblista seguir
comunidades de fiéis estavam divididas entre o arre- a mudança e o progresso que ocorreram à medida
batamento de novas descobertas, novas interpreta­ que 0 texto se desenvolveu.
ções e novos desafios à fé e o receio de que o que Como nenhum manuscrito contém o texto origi­
era tão estimulante também fosse uma ameaça em nal, todos são mais ou menos deturpados. A ques­
potencial a essa fé. O que fora acalentado como tão não é qual é a interpretação confiável, mas sim
“verdade” agora era questionado como “mito”. Prá­ de que maneira é confiável. Todo texto reflete o
ticas havia muito existentes eram consideradas irre­ período da história e a comunidade específica da
levantes e sem fundamento histórico. qual se originou e na qual sobreviveu. O exame cri­
Embora ainda haja quem a rejeite como “sem tico do texto e a comparação com os textos varian­
fé”, em geral essa abordagem crítica tem sido aceita. tes nos dizem algo sobre esse período da história
Entretanto, essa aceitação não significa que os mé­ e essa comunidade específica. As traduções exami­
todos históricos responderam a todas as perguntas nadas no capítulo anterior preenchem essa mesma
sobre interpretação. Na verdade, os biblistas estão função. Revelam o estágio específico de estudo
cada vez mais convencidos da deficiência desses crítico que a comunidade alcançou, o estágio atual
métodos, começam a perceber que esperaram mais da língua para a qual o texto foi traduzido e, fre-
dessas metodologias do que elas podiam oferecer. qüentemente, algumas questões teológicas de que
Talvez a abordagem dê certo para tratar das ques­ a comunidade precisa tratar.
tões históricas, mas certamente não é adequada para Essa disciplina específica exige conhecimento
expor as questões teológicas. Percebendo isso, os não só da língua original, mas também das línguas
biblistas continuam a empregar tais métodos histó­ relacionadas. A literatura de outras culturas que não
ricos, mas não de forma incompatível com outras as comunidades é estudada para entender essas co­
abordagens críticas. munidades bíblicas no contexto mais amplo de seus
A pesquisa e a espiritualidade bíblicas têm uma mundos respectivos. Embora pouca gente possa se
dívida com a abordagem histórica, que proporcio­ dedicar a esse tipo de pesquisa, as descobertas que
nou à comunidade de fiéis edições críticas da Bí­ dela derivam devem ser consideradas tanto pelo tra­
blia que superam de longe as edições anteriores dutor como pelo intérprete. Antes de ser dado qual­
em restauração e tradução textual. Essa abordagem quer outro passo interpretativo, é preciso estabele­
trouxe à luz a vida e a história do antigo Israel e cer a melhor versão possível do texto.
do cristianismo primitivo. Deu ao povo daqueles Grande parte da história da crítica textual e
tempos um enfoque mais nítido, que permitiu ao das explicações das principais fontes e tradições
leitor vê-lo como pessoas reais de quem podemos dos manuscritos foi examinada na parte anterior e
entender as preocupações e os sonhos. Revelou a não precisa ser estudada aqui.
profundeza da fé e a complexidade e o poder da
religião das comunidades de fiéis. A crítica literária
A palavra “crítica literária” é entendida de três
A crítica textual maneiras, pelo menos. 1) No sentido clássico, é a
A função da crítica textual é dupla; 1) restaurar abordagem crítica do estudo da literatura. São ana­
a redação original de um texto bíblico; 2) seguir o lisadas a estrutura, a forma e a linguagem. Essa
rasto desse texto através dos séculos. A primeira critica foi aplicada a material bíblico e, já no tempo
meta é impossível. Como o autógrafo ou m anus­ de Orígenes, levou os estudiosos a questionar a su­
crito original de todos os livros da Bíblia se perdeu, posta autoria de alguns dos livros bíblicos. 2) Com
0 melhor que os biblistas podem fazer é recons­ o surgimento da consciência histórica no século
truir o texto a partir dos manuscritos disponíveis. XIX, foram feitas perguntas históricas sobre dife­
Essa tarefa não garante nenhuma certeza histórica renças literárias e alguns passaram a chamar a
por causa da inconsistência inerente ao material disciplina de “crítica das fontes”. 3) Recentemente,
dos manuscritos. Por meio da comparação de m a­ os estudiosos estiveram outra vez fazendo pergun­
nuscritos os estudiosos criam o chamado “texto tas de natureza mais literária, indagações que tra­
crítico”, reconstituição hipotética, em geral acom­ tam do relacionamento entre conteúdo e forma e
panhada de extensas notas de rodapé (chamadas da filosofia da linguagem.
aparato crítico) que indicam as fontes dos manus­ No sentido bíblico tradicional, a critica literária
critos das passagens, além de interpretações alter­ realmente surgiu de um estudo textual. Depois de
nativas. As traduções modernas baseiam-se justa- observar os vários nomes para Deus no livro do
32 mente nesses textos críticos. Gênesis, um biblista do século XVIII descobriu pa-
HERMENÊUTICA

drões literários nesse livro. Concluiu que fora com­ mentação sugere uma situação humana que pode
posto a partir de diversas fontes preexistentes. Poste­ ou não ser identificada. Esses salmos ffeqüente-
riormente, a explicação para a composição do Penta- mente falam de corrupção e opressão social ou de
teuco veio a ser conhecida como “ffipótese documen­ calamidade nacional, embora também se queixem
tária” (quatro fontes foram “descobertas”: a javista, de infortúnio pessoal. Sabemos que os salmos fa­
a eloísta, a deuteronômica e a sacerdotal). De modo ziam parte da liturgia do templo, mas seu uso não
semelhante, a explicação para as diferenças na tra­ se restringia àquele local, nem à liturgia oficial.
dição evangélica foi denominada “Hipótese das duas Assim, o lamento reflete o sofrimento humano, mas
fontes” (afirmava que o Evangelho de Marcos e nem sempre é específico sobre esse sofrimento.
uma coleção de ditos conhecida como Q foram utili­ Sugere a prática litúrgica, mas não se limitava a um
zadas por Mateus e Lucas). Acreditando que houve ritual formal. Estava associado ao templo, mas seu
diversas fontes para os textos bíblicos, os estudiosos uso não se restringia àquela instituição religiosa.
começaram a fazer perguntas sobre suas origens, O último passo na análise de uma forma espe­
seus ambientes e as razões de sua composição. Desse cífica é determinar exatamente o que se pretendia
modo, a critica literária tomou-se uma disciplina que o gênero realizasse na comunidade. A lamen­
histórica. tação destinava-se a inspirar confiança em Deus?
Com todas as perguntas que foram respondi­ Oferecia um caminho legítimo para a queixa? Ser­
das, a crítica,literária também levantou algumas via de admissão de culpa e confissão de arrepen­
questões novas que não conseguiu responder. Es­ dimento?
tava aberta a porta para uma nova disciplina que A alguns, a crítica das formas pode parecer um
cuidasse dessas questões. (A nova crítica literária processo negativo, que destrói a narrativa bíblica.
será explicada mais adiante.) Na verdade, sua meta é positiva: reconstruir a tradi­
ção oral que está por trás da narrativa. As formas
A crítica das formas
são vistas como remanescentes da tradição primiti­
A função da critica das formas é ir além das va. Portanto, a combinação dos tecidos, a mistura
fontes identificadas pela critica literária e descobrir das cores e a descoberta dos desenhos permite aos
as situações de vida das quais se originaram. Pode estudiosos descobrir alguma coisa da peça original.
acontecer a critica literária ou das fontes estar inte­ Da mesma forma que a critica literária originou-
ressada na autoria, mas ela ainda identifica esse autor -se do estudo textual, a crítica das formas trata de
no singular. Por outro lado, a crítica das formas está
questões que a critica literária ou das fontes era in­
interessada nos cenários originais da vida da comuni­ capaz de resolver — questões sobre origens e cená­
dade. Descobre esses cenários por meio de identifi­
rios e razões por trás da composição. Mas, como sua
cação e análise das formas de expressão caracte­
predecessora, essa disciplina também tinha limita­
rísticas encontradas na literatura existente. Embora
ções. Conseguiu identificar as formas da obra literá­
comece como abordagem literária, seu propósito é
ria, mas não pôde explicar como se tomaram partes
descobrir o cenário histórico e a função histórica das
do todo. A critica das formas conseguiu desmontar
formas, a fim de entender seu estágio pré-literário
(oral). o texto, mas não soube juntá-lo novamente. Seria
E provável que o antigo Israel não fosse uma preciso a critica da tradição para fazer isso.
cultura altamente literária. Assim, suas formas de A crítica da tradição
comunicação oral deviam ser muito convencionais,
o que significa que, antes de atingir a forma lite­ A critica da tradição, ou história da tradição,
rária, essas formas alcançaram uma expressão oral como às vezes é chamada, é uma análise da histó­
bastante consistente. Essas expressões faziam parte ria do processo de transmissão das tradições. É essa
da vida usual da comunidade. Reconhecer e inter­ disciplina que segue o rasto da criação e do desen­
pretar essas formas é o primeiro passo para intuir volvimento de tradições, como esse processo foi
essa vida. descrito na primeira parte deste artigo. Enquanto a
A fim de realizar sua tarefa, primeiro os críti­ critica formal localiza os cenários de vida das uni­
cos formais examinam a estrutura do texto de modo dades, a crítica da tradição tenta descrever o que
a isolar as unidades individuais que o compõem e aconteceu neles. Está interessada naquilo que mol­
que são, então, classificadas conforme o gênero ou dou a tradição à medida que era preservada e trans­
tipo literário. Essa classificação leva diretamente a mitida, e procura seguir esse desenvolvimento. Daí
conclusões sobre o cenário, que aqui não se refere o nome história da tradição. Embora realmente se
à localização geográfica nem à determinação da ocupe do processo de transmissão, também exami­
época específica, mas a situações socioculturais na a tradição que está sendo transmitida, principal­
que possam ou não incluir determinada estrutura mente seu estágio oral. (A crítica redacional exami­
social ou religiosa. Por exemplo, o estudo dos sal­ na os estágios literários desse desenvolvimento. Al­
mos de lamento nos diz muita coisa, ao mesmo guns estudiosos tratam-na como um passo na abor­
tempo que deixa muitas outras sem resposta. A la­ dagem tradição-história.) 33
INTRODUÇÃO À BÍBLIA

A recorrência de motivos ou formas similares e o que essa redação interpretativa diz sobre os in­
toma possivel a crítica da tradição. Diversos exem­ teresses teológicos desse redator. Essa disciplina é
plos são analisados para descobrir diferenças signifi­ semelhante à crítica da tradição, pois ambas se ocu­
cativas. (Esse processo difere da crítica formal, que pam em mostrar como os estágios de desenvolvi­
realça as semelhanças.) Depois de descobrir as di­ mento deram novas formas à tradição. Entretanto,
ferenças, o passo seguinte é determinar se elas resul­ a crítica da redação preocupa-se com os estágios li­
tam ou não do desenvolvimento e, em caso afirma­ terários, não com os orais. Como a crítica da tradi­
tivo, formular hipóteses sobre a causa desse desen­ ção é, em princípio, disciplina do Antigo Testamen­
volvimento. E bastante difícil reconstrair a história to, a crítica da redação desenvolveu-se a par com
literária. Quando estamos examinando os estágios os estudos do Novo Testamento. Seu enfoque mais
orais de uma tradição, há ainda menos provas con­ importante está na forma literária final, aquela que
sistentes disponíveis e os estudiosos precisam ficar chegou até nós.
atentos para que sua reconstrução não se afaste do Foi nos estudos dos Evangelhos que a crítica
que 0 texto realmente diz. da redação proporcionou os maiores resultados.
A medida que descobrem por que a comuni­ Comparando episódios de um evangelho sinótico
dade de fiéis preservou as tradições nas formas em com os paralelos que aparecem nos outros dois, os
que o fez e por que essas tradições passaram pelas críticos da redação conseguem discernir o ponto
mudanças ocorridas, os estudiosos conseguem re­ de vista teológico do evangelista. Dessa forma, con­
construir a história da tradição da comunidade. Além tribuem para nosso conhecimento da história teo­
disso, esse estudo também revela informações que lógica do cristianismo primitivo.
podem ser consideradas históricas, no sentido estri­
to da palavra. Descobriu-se que as correntes da tra­
dição estão associadas a uma ou outra comunidade NOVAS ABORDAGENS CRITICAS
ou grupo, por exemplo os profetas ou a comunidade Por muitos anos, os métodos críticos resumidos
de Lucas. O exame dessas correntes de tradição nos acima desenvolveram-se e aperfeiçoaram-se cons­
põe em contato com esse grupo, com suas preferên­ tantemente. Entretanto, nos últimos anos, novas
cias, suas estratégias e sua influência. Frequente­ áreas de interesse foram examinadas, novas análises
mente, as tradições também são associadas a loca­ empregadas e novas informações reunidas. Isso é
lidades específicas. Jerusalém é um exemplo. Quanto verdade a respeito da abordagem histórica e também
mais detalhes conhecemos sobre o local, melhor po­ da análise mais estritamente literária.
demos reconstruir o processo de tradição ali ocor­
rido. Tudo isso ajuda na descoberta das dinâmicas Abordagens sociológicas
sociopolíticas e religiosas que atuaram na criação e A sociologia é entendida de duas maneiras dis­
no desenvolvimento das tradições. tintas, mas relacionadas. Em sentido amplo, é o es­
Talvez o fiel comum possa apreciar mais dire­ tudo da sociedade, o que inclui as ciências sociais,
tamente os frutos da crítica da tradição do que as tais como a própria sociologia, a antropologia, a
descobertas de outras disciplinas que já descreve­ economia, a ciência política etc. Em sentido estrito,
mos. Esses frutos nos dizem como o antigo Israel a sociologia ocupa-se com a origem, o desenvolvi­
entendia sua história. (Como o processo de tradição mento e os padrões do comportamento social.
que resultou no Novo Testamento aconteceu em um A critica histórica tradicional produziu estudos
espaço de tempo consideravelmente menor, em geral detalhados das realidades sociais do antigo Israel e
costuma ser estudado sob a crítica redacional. A crí­ do cristianismo primitivo (a sociologia em sentido
tica da tradição tomou-se primordialmente uma disci­ amplo). Os estudiosos concentraram-se nas estru­
plina veterotestamentária.) Também mostra como turas da vida social e usaram métodos de pesquisa
eventos significativos dessa história tornaram-se disponíveis para reunir os dados. A arqueologia foi
modelos para o entendimento de outras experiências; valiosa para essa abordagem, fornecendo artefatos,
por exemplo, a tipologia do Êxodo é com freqüên- literatura e documentos oficiais que foram exami­
cia usada para descrever o Exílio. Por fim, a crítica nados minuciosamente, classificados e interpreta­
da tradição mostra como Israel entendia a revelação dos. As descobertas desenterradas foram compara­
de Deus. Era dentro do próprio processo de forma­ das com material semelhante pertencente a outras
ção da tradição que Israel discernia a atividade de culturas antigas. Embora alguns estudos compara­
Deus. Quando a comunidade lutou para manter, em tivos se mostrassem valiosos, supôs-se que o ma­
novas situações e novos tempos, a validade de suas terial analisado, retirado de seu contexto social
tradições inspiradas, reconheceu o ativo e orientador Único, tinha em seu contexto o significado e a im­
envolvimento de Deus. portância de material semelhante em outro contex­
to. Além disso, as teorias sociais da época determi­
A crítica da redação naram a estrutura da interpretação. A perspectiva
A crítica da redação dedica-se ao estudo de evolucionária que com frequência equiparava mu­
34 como um editor ou redator usou as fontes escritas dança e desenvolvimento a crescimento e progres-
HERMENEUTICA

so foi proeminente entre essas teorias. Assim, as do material na formação de um livro bíblico e das
investigações sociológicas concentraram-se no de­ decisões finais que determinam a canonicidade. Di­
senvolvimento da religião e nas estruturas religio­ fere da crítica da tradição (que se interessa pelo
sas, não na dinâmica em jogo. mesmo desenvolvimento) no fato de não se ocupar
A virada do século viu os estudiosos fazendo da dinâmica histórica que formou a tradição, mas
perguntas sociológicas e criando métodos socio­ sim dos métodos hermenêuticos que foram empre­
lógicos para respondê-las. As ciências sociais ha­ gados nessa formação, o que não faz da crítica ca­
viam atingido a maioridade e a sociologia em senti­ nônica apenas outro método histórico, pois sua meta
do estrito (o sentido que doravante lhe será atribuí­ não é histórica, mas teológica.
do) começou a causar impacto não só nos círculos Como foi a interpretação que deu vida às tradi­
especializados mas também no mundo em geral. ções primitivas em um novo cenário, o estudo dos
Esse novo estudo incentivou os biblistas a empregar princípios de interpretação devem descobrir como
abordagens sociológicas em sua investigação das isso foi feito. Os proponentes dessa abordagem
Escrituras. crêem que os métodos empregados na formação da
O estudo sociológico das Escrituras ainda está Bíblia podem ser aqueles usados pelos fiéis contem­
no estágio primitivo e por isso é difícil avaliar suas porâneos quando buscam fazer a mesma coisa que
contribuições. Entretanto, já vieram à luz percep­ fizeram por seus antepassados, isto é, dar vida às
ções significativas. O entendimento das estruturas tradições primitivas em novos cenários. Assim, a
sociais e políticas do antigo Israel acentuou o papel Bíblia pode ser lida não só como literatura, mas
que os profetas desempenharam ao criticar aquela também como a Escritura Sagrada que é.
sociedade e incrementou a avaliação da mensagem Embora reconheçam que princípios interpreta-
profética. Estudos da sociedade romana do século tivos foram empregados pelas diversas comunidades
I mostraram a Igreja cristã como uma singular e
em todas as etapas de criação e desenvolvimento das
contestadora comunidade de iguais.
tradições, os biblistas não têm um registro claro
Um dos ramos da antropologia, um segundo
desses princípios. Somente ao aplicar os métodos
campo sociológico, tem causado profundo impacto
de critica histórica e literária, justamente aqueles
no estudo literário das Escrituras: a lingüística ou
aqui descritos, os biblistas podem ter esperança de
estudo da estrutura da linguagem. A partir dela se
descobri-los. Quanto mais se souber sobre cada
desenvolveu a exegese estrutural, ou estruturalismo.
etapa de desenvolvimento, mais fácil será discernir
Ao contrário dos métodos histórico-críticos que in­
o processo de desenvolvimento e os princípios que
vestigam o processo histórico e buscam descobrir
o guiaram.
0 significado original do texto, os métodos estrutu­
rais procuram o significado dentro da própria lin­ Está claro que o contexto, quer sociopolítico,
guagem, em vez de no evento histórico que fica quer religioso, desempenha importante papel nessa
além da linguagem. Dessa maneira, partilham com abordagem. Ao analisar os significados do passado
a nova crítica literária um mesmo enfoque. e também ao alcançar significados para o presente,
Talvez um dos discernimentos mais importan­ precisamos cuidar do contexto. Quando uma tradi­
tes que as abordagens sociológicas trouxeram aos ção do passado se deparava com novos interesses
estudos bíblicos seja a percepção de que não só o ou um novo contexto, era reinterpretada segundo
texto tem um contexto ou contextos sociais espe­ alguma perspectiva teológica. De modo semelhante,
ciais dos quais se originou, mas os intérpretes tam­ se essa tradição deve ser remodelada de maneira
bém atuam com preconceitos sociais. Todos os con­ autêntica e significativa, cabe ao intérprete com­
textos têm suposições e pré-compreensões que pre­ preender corretamente a situação contemporânea.
cisam ser reconhecidas para que haja uma comuni­ Nossa visão da realidade influencia, se é que não
cação atravessando cultjuras e gerações. Assim como determina, a forma que a tradição assumirá. Por
não podemos presumir que a linguagem tem o mes­ exemplo, o tema da aliança pode ser usado para
mo sentido em todos os contextos, não podemos convencer uma sociedade acomodada de que sua
supor que as estruturas ou dinâmicas sociais desem­ segurança é sinal da boa vontade divina e que ela
penhem sempre os mesmos papéis. tem todo o direito de se apegar a ela. Por outro lado,
pode desafiar essa sociedade para que assuma suas
A crítica da recepção responsabilidades com os menos favorecidos e re­
Um segundo desenvolvimento no estudo bíbli­ distribua seus recursos em nome da justiça social.
co, conhecido como critica da recepção, tem pouco As necessidades mais profundas da comunidade
mais de uma década apenas. Seu interesse é o texto (segurança ou desafio) devem ser reconhecidas.
bíblico em sua forma canônica ou final e o papel Embora ainda em suas etapas iniciais, essa
que ela desempenha na fé da comunidade. Busca abordagem da interpretação tem gerado bastante en­
pesquisar o desenvolvimento do cânon desde os tusiasmo. Muitos são os que têm esperança de que
primórdios da formação da tradição, por meio das seja um meio de preencher a lacuna entre o que a
etapas de interpretação, da seleção e organização Bíblia significava e o que a Bíblia significa hoje. 35
INTRODUÇÃO À BÍBLIA

A nova critica literária texto. E quando o texto em questão é reverenciado


A nova crítica literária busca entender a Bíblia como a tradição sagrada de uma comunidade de
estritamente como literatura. As questões históricas fiéis, tradição de certo modo enraizada na identi­
que relacionam o material a sua origem são igno­ dade própria dessa comunidade, para a interpreta­
radas. O mundo que interessa a essa crítica não é ção correta parece essencial um tipo de continui­
um mundo do passado, mas o mundo imaginoso dade histórica com aquela comunidade permanen­
criado pela própria obra literária. Para entendê-lo, te. O que segue é exemplo de como as abordagens
não consultamos a arqueologia, nem a sociologia, históricas e literárias podem contribuir para desen­
ou a crítica das fontes, mas a linguagem e as for­ volver um método de interpretação do texto bíblico
mas usadas, a estrutura criada e os movimentos como Escritura (tradição sagrada), não apenas como
literários desenvolvidos na obra. Dizer que o mun­ literatura.
do de uma obra literária é imaginoso não significa Voltando ao modelo de comunicação descrito
que seja irreal, mas que a obra não tem a pretensão no início desta parte, podemos nos concentrar no
de descrever a realidade como ela é; imita a reali­ remetente, na mensagem ou no público. Outra ma­
dade. Sua integridade não é determinada pela exa­ neira de entender essa tríade é falar de três universos;
tidão histórica, mas por sua harmonia interna. o universo do qual surgiu o texto, aquele criado pelo
Se o mundo imaginoso da literatura é imitação próprio texto e o do leitor. Cada universo é indepen­
do mundo histórico da realidade, então os compo­ dente dos outros. Entretanto, o do texto está em dí­
nentes dos quais é formado não são historicamente vida para com o universo do qual se originou, por
reais, mas simbolizam a realidade histórica. São sua estrutura e pelo significado fundamental que
todos basicamente metafóricos, análogos a alguma essa estrutura projeta. Isso não significa que o texto
outra coisa. Os indícios daquilo que esses componen­ se restrinja ao significado original e não possa gerar
tes representam não se encontram fora da obra, mas uma pluralidade de significados legítimos. A nova
dentro dela. A interpretação desses indícios devb ser crítica literária mostrou que isso pode ser feito. Como
procurada no objetivo do gênero ou forma literária usada aqui, a expressão “dívida para com o universo
a que pertence a obra. Como um gênero não é tanto do qual se originou” significa que o objeto das in­
um conjunto de significados quanto um conjunto de terpretações possíveis foi estabelecido amplamente
relacionamentos, toda obra literária está aberta a uma pelo contexto original. Esse universo pretendia ex­
pluralidade de interpretações. Existe pouco ou tal­ pressar uma mensagem (o significado original) e
vez nenhum controle externo sobre a interpretação, moldou o texto de modo a comunicá-la. Por exem­
e assim precisamos nos ater estritamente aos pa­ plo, os profetas castigaram a nação por meio de um
drões estabelecidos pelo gênero. Embora a obra lite­ oráculo de julgamento. Essa forma literária (o orá­
rária admita diversas interpretações, isso não quer culo de julgamento) limita o número de métodos
dizer que sua análise possa ser feita de qualquer jeito, pelos quais a obra literária pode ser interpretada.
nem que signifique qualquer coisa que o intérprete A interpretação é definida como o encontro
queira. Por exemplo, uma peça pode ter diversas do universo do leitor com o do texto, de um modo
interpretações, mas seus relacionamentos internos que 0 significado do texto se apodere do leitor. Esse
estabelecem certos limites. O mesmo acontece.com significado pode ou não ser o significado original
sonetos, poemas humorísticos, parábolas, relatos de do texto — isso vai depender do fato de o intérprete
milagres. ter ou não usado abordagens históricas ou literárias.
Este tipo de crítica literária passou por vários Segtmdo a nova crítica literária, com exceção da
estágios de desenvolvimento. A princípio, os textos escolha da forma e de todos os relacionamentos
caracterizavam-se como janelas pelas quais o intér­ internos intrínsecos a ela, o universo do qual se ori­
prete podia ver o significado à distância. Os críticos ginou o texto não precisa desempenhar nenhum
contemporâneos preferem ver o texto atuando como papel na interpretação. Entretanto — e este é um
janela e também como espelho. Seu significado ponto muito importante — , a Bíblia é um gênero
deve ser encontrado dentro dele mesmo, mas não de literatura único. E a palavra de Deus inspirada.
de maneira tal que limite o leitor a ele. A boa lite­ Nenhum fiel nega que seja reveladora, mas seu
ratura leva o leitor além dela. Essa abordagem inter- caráter revelador depende, de algum modo, do sig­
pretativa permite que o crítico descubra o que o nificado original? Em outras palavras, o significa­
texto significa, mas sem nenhuma consideração pelo do original é normativo? E, em caso afirmativo, de
que ele significava. que modo é normativo? Este estudo afirma que o
significado original é verdadeiramente normativo
e explica essa qualidade normativa como se segue.
PARA DESENVOLVER UM AáÉTODO Assim como, durante a criação e o desenvol­
DE INTERPRETAÇÃO vimento, a tradição contribuiu para a formação de
Obviamente, a interpretação é mais do que ape­ uma comunidade de fiéis, ela não cessa de realizar a
nas a coleta de informações sobre um texto (crítica mesma maravilha através dos séculos. Isto é, dá
36 histórica estrita). É explicação do significado do testemunho da identidade da comunidade e conti-
PROFETAS PÓS-EX(LICOS

nuamente desperta a comunidade para esse propó­ original pode ser entendido como normativo, em­
sito. Aconteceu no processo para transformar a tra­ bora significados subseqüentes também possam ser
dição conforme essa tradição fora transmitida à considerados válidos.
comunidade. A interpretação ou o entendimento Um ponto que precisa ser lembrado é o papel
da tradição que a comunidade recebeu talvez não desempenhado pela comunidade de fiéis para deter­
fosse idêntica ao significado original da tradição minar a validade ou a pertinência de significados
(pode ser que a fidelidade à aliança exigisse respos­ diversos. A comunidade é o mensageiro da tradição.
tas diferentes em circunstâncias diferentes). Entre­ A comunidade é o agente da reinterpretação criativa.
tanto, 0 significado recebido era aquele que fora Assim, embora qualquer critico possa fazer a inter­
preservado para ela e a ela transmitido; e era o sig­ pretação da Bíblia como literatura, somente a comu­
nificado que a comunidade considerava expressão nidade de fiéis pode interpretá-la como Escritura
correta de seu entendimento da própria identidade. reveladora, porque a remodelação da tradição acon­
Parece que em todo o processo de formação da tra­ tece em uma comunidade de fiéis.
dição a comunidade de fiéis exerceu bastante liber­ A interpretação tem sido definida como o en­
dade criativa. Entretanto, essa liberdade sofria res­ contro do universo do leitor com o universo do texto.
trição do conceito de identidade própria que herdou O leitor traz ao texto uma perspectiva ou um enten­
da geração anterior. Embora gerações diferentes dimento pessoal da vida; o texto expressa a tradi­
possam ter entendido e expresso essa identidade ção recebida pela comunidade. O significado des­
de diversas maneiras, elas preservaram sua essência. sa tradição é moldado pela perspectiva do leitor e,
Cada geração tinha de entender essa essência e de­ por sua vez, apodera-se desse leitor. Assim, a tradi­
pois reafirmá-la de uma forma que expressasse sua ção dá testemunho da identidade da comunidade e,
época. A partir desse ponto de vista, o significado no processo, é, ela mesma, remodelada.

INTRODUÇÃO AOS PROFETAS PÓS-EXÍLICOS


Mary Margaret Pazdan, OP

Há uma variedade de pontos de partida dispo­ As experiências do fotógrafo dirigem a escolha


níveis para estudar um texto da Bíblia. O processo do assunto. Muitas vezes a fotografia representa paia
de seleção é semelhante ao modo como as pessoas os que a vêem mais possibilidades do que o fotógrafo
vêem fotos num álbum. Um indivíduo concentra- viu ao enquadrar o assunto. O entendimento da fo­
se em uma única imagem, enquanto outro admira tografia aumenta quando quem a vê e o fotógrafo
os arranjos ou as qualidades de composição. Uma discutem sua importância. A realidade da fotografia
terceira pessoa aprecia a seqüência e a configura­ raramente se esgota, porque cada pessoa que a vê
ção de diversas páginas, enquanto uma quarta exa­ enxerga-a com percepção limitada.
mina o álbum todo, em busca de contornos imagi­ Como 0 fotógrafo e o que vê a fotografia alguns
nários. Se O álbum ou as fotos prendem a atenção biblistas começaram a dialogar com pessoas de ou­
de alguém, dão oportunidade a outras variações por tras disciplinas acadêmicas. Não mais confinados ao
meio de exame repetido. método histórico-critico do século XDC, os comenta­
ristas aplicaram cautelosamente os métodos caracte­
As experiências de quem examina o álbum tam­
rísticos da nova crítica literária, canônica e socioló­
bém influenciam o que é percebido. Um membro
gica para ampliar as possibihdades de interpretar a
da família, parente ou amigo sente grande prazer
profecia, inclusive os cinco livros tratados neste co­
ao encontrar lembranças repentinamente revitali­
mentário. O método interdisciplinar indicado em ar­
zadas por fotografias significativas que celebram a tigos eruditos e populares por mais de uma década
vida (por exemplo aniversários, férias de verão). proporcionou vislumbres do significado da profecia
Entretanto, justapostas a essas fotografias estão ou­ pós-exílica que fora generalizada e subestimada.
tras que trazem à lembrança circunstâncias que mo­ Por que a profecia a partir de seu desenvolvi­
dificaram o momento captado no filme (por exem­ mento (cerca de 1000 a.C.) até o período do exílio
plo distância, envelhecimento, morte). Quem não (586-538 a.C.) recebe mais atenção em estudos do
está familiarizado com elas talvez precise de expli­ Antigo Testamento?
cações dos outros para que as fotografias façam a) Os livros que relatam o crescimento da pro­
sentido. fecia formam uma literatura maravilhosa. Natan, o 37
INTRODUÇÃO À BÍBLIA

profeta da corte, acusa o rei David (100-967 a.C.) como testemunha da restauração depois da experiên­
por meio da parábola da ovelhinha do pobre (2Sm cia do exílio. As informações sobre determinado
12,1-15). Um ciclo de narrações sobre o Israel do autor, datação e composição são dadas antes do
norte (869-815 a.C.) relata as aventuras de Elias e comentário de cada livro, juntamente com um esboço
Eliseu; uma disputa no monte Carmelo com os do livro. Considerações comuns a Joel, Abdias, Ageu,
profetas de Báal, o encontro com Izébel, milagres, Zacarias e Malaquias são descritas abaixo.
experiências de Deus, envolvimento com chefes
políticos e religiosos (veja IRs 17-21; 2Rs 1-9). Localização no Antigo Testamento
Os livros proféticos designados pelo nome de O cânon hebraico e o cânon alexandrino incluem
indivíduos seguem as narrações sobre profetas. os livros de Joel, Abdias, Ageu, Zacarias e Malaquias
Apresentam pormenores biográficos, gestos dra­ entre os 12 profetas menores. Que significa essa
máticos e oráculos proféticos destemidos para co­ divisão? A designação “menores” tem sido inter­
municar a palavra de Deus. Isaías, Jeremias e pretada como significando “inferiores” ou “menos
Ezequiel surgem como figuras heróicas nas lutas importantes”, porque os 12 profetas menores se­
de Judá (782-586 a.C.). Os profetas estimulam o guem-se aos profetas posteriores (Isaías, Jeremias,
interesse e a imaginação dos biblistas. Ao mesmo Ezequiel) no cânon hebraico e aos profetas (Isaías,
tempo, apelam a crianças e adultos em contextos Jeremias, Baruc, Lamentações, Ezequiel, Daniel) no
catequéticos e de sermões e também por sua asso­ cânon alexandrino. A palavra “menor” refere-se pro­
ciação com literatura, música e arte. vavelmente à extensão dos textos comparada à dos
b) Muitos acontecimentos descritos pelos tex­ livros proféticos que os precedem.
tos são comprovados pela literatura paralela do Ao contrário dos profetas maiores, os fatores
antigo Oriente Próximo. Dados arqueológicos con­ históricos para ordenar e compilar os 12 profetas
firmam as perspectivas históricas e literárias da menores permanecem obscuros. Os biblistas exa­
profecia pré-exílica e exílica. Análise e compara­ minam os cânones e livros em busca de inferências
ção com materiais extrabiblicos geram estudo e de como o processo ocorreu. Ao comparar os câno­
descoberta adicionais. nes, percebemos que coincidem quanto ao primeiro
c) Os livros indicam dimensões político-religio- livro e os livros do sétimo ao décimo segundo (Oséias,
sas comuns de realeza e templo. A fidelidade do Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Mala­
rei e da comunidade ao Templo de Jerusalém é o quias), enquanto os livros do segundo ao sexto estão
padrão pelo qual o Israel do norte e Judá são julga­ em ordem diferente: cânon hebraico — Joel, Amós,
dos (veja IRs 12-2Rs 25). Os profetas exortam o Abdias, Jonas, Miquéias; cânon alexandrino —
povo a ser fiel aos preceitos da aliança formada Amós, Miquéias, Joel, Abdias, Jonas.
primeiro com Deus no monte Sinai por intermédio Qual das listas é a mais antiga? O que justifica
de Moisés. Eles criam as dimensões éticas da Torá, a mudança de ordem? Há três sugestões para a or­
imagens de Deus e de libertação futura, muitas dem dos livros em cada cânon: a) cronologia; b)
vezes evocando imagens do Êxodo. repetição de palavras e frases entre livros, por exem­
d) Os autores neotestamentários referem-se plo, Am 1,2 e J1 4,16; c) considerações mecânicas,
com frequência a pessoas e passagens da profecia por exemplo, a extensão de um rolo. Hoje, as per­
pré-exílica e exílica para descrever Jesus, os judeus guntas e as sugestões continuam sem resposta.
e comunidades primitivas de fiéis. Como 12 livros proféticos independentes se
Quando biblistas mais antigos comparavam a tornaram uma coletânea que foi considerada um
profecia pós-exílica com as características da profe­ livro único é um enigma. Com frequência, o fato de
cia pré-exílica e exílica mencionadas acima, a primei­ os 12 poderem ser escritos em um só rolo é dado
ra parecia sem importância e secundária na biblio­ como solução. Historicamente, o processo de com­
grafia profética. As narrações são limitadas, sem por­ pilação foi completado por volta de 300 a.C. Escre­
menores pessoais e raramente assunto da arte ou da vendo um século mais tarde, Sirac reconhece os
literatura. Os dados históricos e literários são escassos; profetas em seu louvor aos heróis de Israel:
quase sempre a reconstrução é contraditória. As con­
Quanto aos ossos dos 12 profetas,
dições políticas, sociais e religiosas posteriores ao exí­ que refloresçam de seus túmulos!
lio não se comparam favoravelmente com a unidade
Pois encorajaram Jacó
simbólica de realeza e templo. Os textos são pouco
e o libertaram pela fidelidade da esperança.
citados pelos autores neotestamentários. (Sr 49.10).
Já os biblistas contemporâneos não julgam a
profecia pós-exílica pela profecia mais primitiva. As Ao traduzir o texto hebraico para o grego de­
formas e o conteúdo proféticos alinhados com rei e pois de 132 a.C., o neto de Sirac inclui a divisão
templo já não são necessariamente normativos nem de profetas em seu prefácio: “Muitas coisas impor­
importantes. O que, então, é apropriado para a inter­ tantes nos foram transmitidas pela Lei, os profetas
pretação dos escritos pós-exílicos? Neste comentá- e os que os seguiram; por causa deles, convém
38 rio, o foco central é a contribuição de cada livro exaltar Israel por sua instrução e sua sabedoria”.
PROFETAS POS-EXILICOS

Os profetas menores também eram importantes restauração de templos e cultos. O Cilindro de Ciro,
para a comunidade de Qumran, pois os rolos dessa inscrição em argila que fala do triunfo babilônico
comunidade incluem um comentário sobre Miquéias de Ciro e de sua norma de devolver os cativos à
e também oito cópias dos 12 profetas menores. Na terra natal, indica suas intenções: “Que todos os
tradição cristã, o título “Profetas Menores” vem por deuses que coloquei em seus santuários façam uma
conta de Agostinho (De civitate Dei, XVI 11.29). Os prece cotidiana por mim... que meus dias sejam
críticos canônicos observam que o processo de or­ longos”.
denar e compilar os 12 profetas menores é menos Ciro também publicou um edito aos judeus da
importante do que os fatores envolvidos no ato de Babilônia. Sob a liderança de Sheshbasar, príncipe
moldar os livros e a maneira como a forma final do de Judá, um pequeno grupo retornou, trazendo
livro atuou em determinada comunidade de fé. doações dos vizinhos e os utensílios confiscados
do Templo (Esd 1,2-2,70). Enquanto isso, um gran­
Cenário histórico de número permaneceu na Babilônia, preferindo
O ministério e a tradição textual de Joel, seus lares, estruturas de vida comunitária e a leal­
Abdias, Ageu, Zacarias e Malaquias estenderam-se dade para com o governo tolerante a um futuro
por dois séculos de judaísmo pós-exílico. Embora incerto no Judá devastado (compare Jr 29,1-9).
0 período esteja mal documentado, alguns teste­ Os que voltaram encontraram uma terra dizi­
munhos bíblicos e dados arqueológicos estão dis­ mada, proprietários de terras inóspitos, casamen­
poníveis para reconstruir o contexto histórico dos tos mistos e culto sincretista. Nomeado governa­
profetas e seus registros literários. dor, Sheshbasar deu início a tentativas de restaurar
2Rs 23,36-25,30; 2Cr 36,9-21; Jr 32-34; 37-39; o altar sacrifical e os alicerces do Templo. A crono­
52 interpretam os últimos dias de Judá e a depor­ logia confusa e os pormenores narrativos de Esdras,
tação para a Babilônia. Em 599 a.C., o rei Joaquim único registro bíblico do período, não indicam o
recusou-se a pagar tributo a Nabucodonosor, sobe­ que aconteceu a Sheshbasar. Depois da morte de
rano do império neobabilônico. Embora sejam obs­ Ciro, seu filho Cambises reinou até 522 a.C. Por
curos a respeito do destino de Joaquim, os textos ocasião de sua morte, ocorreu uma rebelião genera­
bíblicos indicam que seu filho loiakin reinara ape­ lizada em muitas regiões do império. Dario, oficial
nas três meses, quando Nabucodonosor forçou-o do exército de Cambises, estabilizou o império de­
a entregar Jerusalém na primavera de 597 a.C., pois de dois anos de violentos combates. Nesse
loiakin, a família real, artesãos, chefes militares e tempo, outro grupo de judeus babilônicos voltou a
cidadãos proeminentes foram enviados ao cativeiro. Jerusalém, inclusive Zorobabel, nomeado governa­
Os utensílios sagrados do Templo também foram dor, e Josué, o sumo sacerdote. Durante essa dupla
transportados para a Babilônia. chefia, houve esforços renovados para reconstruir
Para reduzir a possibilidade de outra rebelião, 0 Templo.
Nabucodonosor designou Sedecias, tio de loiakin, para Entretanto, obstáculos continuaram a dificultar o
reinar em Judá. Durante onze anos, ele vacilou entre progresso. Dentro da comunidade, continuou o antago­
0 apoio do partido pró-egípcio e a proteção de Jere­ nismo sobre a propriedade de terras. As secas e o solo
mias. Tendo escolhido a resistência, como fizera seu pouco produtivo aumentaram o peso das impiedosas
irmão, Sedecias também foi forçado a se render a condições de vida. Vozes contrárias à restauração
Nabucodonosor, que ordenou a destruição do palácio, vieram de áreas vizinhas sob o controle persa e tam­
do Templo e da cidade; o soberano e os habitantes bém dos samaritanos, ao norte. Dario interveio para
foram deportados para a Babilônia em 586 a.C. decidir a controvertida autorização para a reconstru­
Para as poucas pessoas que permaneceram nas ção do Templo. Também Ageu e Ziacarias encoraja­
proximidades de Jerusalém, Nabucodonosor nomeou ram os residentes a perseverar em seus esforços.
Godolias governador de Judá. Depois que ele foi Na primavera de 515, quase 25 anos depois do
assassinado por um rebelde, a política babilônica de edito de Ciro, a comunidade ofereceu sacrifícios a
deportação e divisão da terra continuou em Judá e Deus e dedicou o Templo (Esd 3-6). Não há ne­
outras partes do império. Os edomitas, antigos ini­ nhuma avaliação da liderança de Zorobabel. Como
migos de Israel, tomaram parte do território de Judá. Sheshbasar, ele desapareceu misteriosamente da
O Livro de Abdias volta-se contra a traição deles. O narração de Esdras. E de presumir que Josué e a
Livro das Lamentações reflete a angústia e a tragé­ classe sacerdotal associada ao Templo tenham se
dia desse período para os judeus. tomado a fonte de autoridade política e religiosa
Depois da morte de Nabucodonosor, em 562 para a comunidade.
a.C., o império enfraqueceu-se gradativamente e Há um hiato de 50 anos no relato bíblico, em­
Ciro, o Persa, aproveitou a oportunidade para vin­ bora o texto sem data de Malaquias ofereça uma
te anos de conquista. Seu sucesso culminou na avaliação da vida comunitária antes da chegada de
rendição da Babilônia em 539 a.C. A atitude libe­ Esdras. O autor condena a irresponsabilidade dos
ral de Ciro para com os povos vassalos levou à au­ sacerdotes em questões cultuais, casamentos mistos
torização para seu retomo e ao financiamento da com não-judeus e injustiça social. 39
INTRODUÇÃO À BÍBLIA

Encarregado por Artaxerxes I, Esdras iniciou Tanto os residentes como os que retomaram fo­
uma reforma religiosa em 458 a.C., condenando o ram afetados por esses critérios. A tensão entre os
casamento misto, nomeando magistrados e juizes dois grupos acirrou-se, inclusive na ciasse sacerdotal.
honestos e reunindo o povo para a leitura da Lei O conflito entre os funcionários sacerdotais resultou
(Esd 7,1-10,16; Ne 8,1-9,37). Neemias, copeiro de em uma divisão de responsabilidade. Os sacerdotes
Artaxerxes I, foi governador de Judá de 445 a 433 filhos de Sadoq (que retomaram da Babilônia) assu­
a.C. Protegeu Jerusalém dos inimigos, supervisio­ miram a posição principal para o culto e a adminis­
nando a reconstmção dos muros da cidade. Depois tração; os levitas ficaram relegados a posições secun­
de breve ausência, Neemias voltou como governa­ dárias com pouca autoridade.
dor (430-418 a.C.), para fazer cumprir as leis religio­ Alguns biblistas afirmam que dessa situação siff-
sas a respeito do sustento dos funcionários do Tem­ giram duas correntes principais de autoridade religio­
plo, do casamento e da observância do sábado (Ne sa e que isso explica o declínio da profecia. O grupo
l,l-7 ,5 ; 11,1-13,31). teocrático era associado aos sacerdotes filhos de
O Livro de Joel, sem data, é considerado teste­ Sadoq, à reconstrução do Templo e à reconstituição
munha da situação da comunidade depois das refor­ da vida religiosa segundo aTorá e a visão de Ezequiel
mas de Esdras e Neemias. O autor exorta o povo à (Ez 40-48). O grupo apocalíptico era associado aos
oração pública e à penitência para afastar o julga­ levitas e a uma futura transformação da situação atual
mento divino. É uma preparação para “o dia do segundo a visão do Dêutero-Isaias (Is 40-55). Porém
S enhor” , o julgamento final entre Israel e as nações. essa avaliação é rígida demais. Não leva em conta a
Há um hiato de quase um século no relato bí­ pluralidade da experiência e da perspectiva religiosas.
blico, durante o qual o império persa enfraqueceu­ A forma de restauração da comunidade e de
-se e o império grego desenvolveu-se sob a lideran­ sua identidade relaciona-se com a interpretação da
ça de Alexandre Magno (336-323 a.C.). O Dêutero- revelação divina como um determinado profeta a
Zacarias (caps. 9-14) é dirigido à comunidade entende. Todo profeta era influenciado pelas ne­
judaica durante esse aparecimento de um novo im­ cessidades de uma comunidade específica. Cada
pério mundial. Os oráculos descrevem um combate um tinha uma proclamação provisional destinada a
cósmico, 0 Messias e o novo reino de Deus. incentivar aquela comunidade a ser fiel a Deus:
a) Abdias implorou a Deus que destruísse os
Atitudes e perspectivas acerca da reconstrução edomitas e defendesse Israel das falsidades deles.
Os judeus babilônicos que voltaram a Jerusa­ b) Ageu e Zacarias acreditavam que a restau­
lém em duas etapas participaram das múltiplas ração do Templo apressaria o advento de Deus com
tarefas de reconstrução. Que desafios enfrentaram o propósito de habitar para sempre em Jerusalém.
juntamente com o grupo já estabelecido em Judá Zacarias também levou em consideração o relacio­
durante o exílio? Além dos obstáculos menciona­ namento de Deus com outras nações. Os dois pro­
dos acima, os dois grupos tiveram de encarar a fetas enfrentaram a resistência dos habitantes de
questão complexa de identidade. Jerusalém, devido aos sonhos destruídos e às duras
Judá era uma entre diversas províncias incluí­ condições de vida, que cerceavam o entusiasmo e
das na satrapía “Além-Eufrates” (veja Esd 4,17.20; a perseverança para a reconstrução. Nenhum dos
5,6). É provável que seu administrador, o sátrapa, dois profetas estava seguro sobre o papel dos go­
residisse em Damasco. Judá gozava do tipo de inde­ vernadores e da classe sacerdotal. Mesmo depois
pendência concedida a membros das quase duas da conclusão do Templo, o passado não podia ser
dezenas de satrapias do vasto império persa, inclu­ modelo apropriado para o presente.
sive liberdade paia atividades cultuais. Tendo Jerusa­ O ministério desses profetas foi eficiente por­
lém como centro, Judá identifica-se como comuni­ que eles inspiraram uma identidade comum entre os
dade do Templo semelhante a outras restauradas e residentes, isto é, uma comunidade do Templo e o
subvencionadas pelo governo central. Jerusalém exer­ local restaurado para a atividade cultuai. Depois de
cia o papel de centro religioso e teimbém administra­ suas mortes, o dilema de profecia não cumprida e
tivo da província. de relacionamentos não resolvidos entre seus vizi­
Os funcionários nomeados pelo governo central nhos continuou. Incerteza, confusão e instabilidade
mediavam sua autoridade como governadores— por caracterizaram o período.
exemplo Sheshbasar, Zorobabel, Neemias. Nos afa­ c) Malaquias voltou-se para os abusos na prá­
zeres cotidianos, entretanto, os sacerdotes tinham tica cultuai. Joel admoestou a comunidade sobre
autoridade. Decidiam sobre a posição de indivíduos seu relacionamento com Deus e sua expressão sim­
segundo sua participação e ajuda ao culto. A legisla­ bólica no culto. Os dois profetas desejavam uma
ção sobre os padrões da pureza necessária para os renovação de vida religiosa dedicada para as pes­
participantes do culto incluía a condenação dos com­ soas que aceitassem sua mensagem.
prometidos com 0 culto sincretista, dos que se casa­ d) Os escritos do Dêutem-Zacarias despertaram
vam com estrangeiras residentes e dos que faziam a esperança latente e dissiparam a apatia da comuni­
40 negócios com nâo-judeus. dade por intermédio de visões da luta culminante
PROFETAS PÓS-EXÍLICOS

seguida pelo dia do Senhor, d ia em que um reino de (w. 10-14). O segundo conjunto foi acrescentado
paz e bênçãos seria assegurado para sempre. mais tarde para incluir o dia do S enhor como julga­
Estes cinco profetas podem ser lembrados pela mento para todas as nações (w. 15-16). O aconteci­
atividade durante um período triste da história de mento culmina com a restauração de Israel e o esta­
Israel. Com seu relato literário, cada profeta dá belecimento do reino universal de Deus (vv. 17-21).
testemunho de uma determinada situação um tanto Alguns biblistas afirmam que a estrutura dos orácu­
influenciada pelas normas imperiais persas e gregas, los (vv. 2-17) indica uma comunidade que cultua
contudo transcendendo-as com uma visão religiosa proclamando a soberania de Deus pela proclameição
relacionada à experiência da comunidade a quem é de oráculos contra seus inimigos.
dirigida a mensagem. Convencidos da fidelidade Os dois capítulos de Ageu também contêm
de Deus, transmitiram uma mensagem que chamava oráculos entremeados de estruturas editoriais para
a comunidade a responder de maneira apropriada. interpretá-los. As estruturas incluem: a) a cronologia
Exortaram a comunidade a ser fiel a Deus, à reali­ do ministério de Ageu para os residentes de Jerusa­
dade constante de sua história passada e à sua expe­ lém (1,1.15; 2,1.10.20); b) inserções de fórmulas
riência presente. proféticas tradicionais para apresentar um oráculo,
Ao julgar os profetas pós-exílicos desta série, tais como “a palavra do S enhor veio por intermé­
não podemos considerar se sua mensagem foi ou não dio de Ageu, o profeta...” (1,1.3; 2,1.10.20; compare
cumprida na história posterior. O mistério do Deus 1,12.13); c) um relato sobre o resultado da prega­
fiel e a maneira pela qual o indivíduo e a comuni­ ção de Ageu à comunidade (1,12.14). Embora pala­
dade respondem são as perspectivas criadas por vras de conforto estejam incluídas nos oráculos,
esses livros. Além disso, o fato de comunidades de sugerindo o julgamento de salvação característico
fiéis preservarem e compilarem estas proclamações da profecia clássica (1,13; 2,4.5), os oráculos acres­
e considerarem-nas a autêntica revelação de Deus centam uma nova revelação — o debate. Algumas
indica sua importância para o desenvolvimento da indicações desse padrão são perguntas retóricas
fé nas comunidades pós-exílicas. (1,4; 2,3,16) e o formato de pergunta e resposta
(1,9-11).
Formas literárias Oráculos não atuam como a principal forma
Os livros de Joel, Abdias, Ageu, Zacarias e literária de revelação no Primeiro Zacarias (caps.
Malaquias contêm poesia e prosa. São visões e orá­ 1-8); são, isso sim, um padrão secundário que ocor­
culos atribuídos aos profetas cujos nomes são os tí­ re em uma coletânea (caps. 7-8), ligado a visões, o
tulos dos livros e também inserções editoriais para padrão principal da revelação (1 ,7 ^,8 ). As visões
consolidar o material e proporcionar a interpreta­ constituem alguns dos textos mais difíceis de inter­
ção para comunidades mais tardias. Os livros refe­ pretar na literatura bíblica. Alguns biblistas afirmam
rem-se às Escrituras mais primitivas (Torá e Profe­ que a importância das visões da “noite” consiste em
tas), por meio de alusões e repetição de aconteci­ proporcionar uma alternativa aos oráculos e visões
mentos e idéias. Ocasionalmente, há citações diretas de Ezequiel (caps. 40-48) e de Ageu sobre a recons­
de profetas mais primitivos. trução do Templo. Zacarias compôs uma perspec­
A estrutura literária de cada livro origina-se do tiva teológica para a fidelidade a Deus na nova si­
contexto particular no qual a mensagem foi procla­ tuação de “intermediação”.
mada pela primeira vez. Fórmulas proféticas comuns No Livro de Malaquias, o formato de pergunta
a livros pré-exílicos e exílicos são às vezes localizadas e resposta que apareceu em Ageu (e no Primeiro
nas composições pós-exílicas; de vez em quando, com­ Zacarias) toma-se a estmtura básica dos oráculos.
binam-se com novos padrões. Em especial, com ífe- Esse padrão catequético era apropriado para exortar
qüência os biblistas consideram partes desses livros a comunidade e os encarregados do culto a ser res­
indicativas de nova forma literária, ponto de vista e ponsáveis por seus relacionamentos com Deus. Eram
conteúdo conhecidos como “apocalípticos”. Como a exortados a revitalizar práticas cultuais moderadas e
estrutura literária de determinado texto é indicador a observar as leis de casamento e as proibições contra
primordial de seu sentido religioso, é importante en­ o divórcio (1,2-3,21). Os dois apêndices (3,22-24)
tender a estrutura, a fim de interpretar o alcance reli­ terminam com uma instmção para ser fiel à Lei e
gioso do texto. Abaixo são apresentadas algumas con­ uma descrição de Elias, mensageiro divino que re­
siderações literárias para c a ^ livro, de acordo com a conciliará OS membros da família.
ordem cronológica já sugerida. O Livro de Joel é uma coletânea de oráculos
Abdias, o livro mais curto do Antigo Testamento, com dois temas correlates: devastação e salvação.
consiste em dois conjuntos de oráculos recebidos Na primeira parte (1,1-2,17), o profeta atua como
em uma visão segundo a tradição dos profetas de figura de culto. Chama o povo ao arrependimento
Jerusalém. O primeiro conjunto de oráculos descre­ em uma liturgia de lamentação comunitária destina­
ve a destmição de Edom (vv. 2-9) em linguagem da a evitar um desastre muito pior do que a praga
semelhante à de Jr 49,7-22. Este vizinho de Israel é dos gafanhotos. Depois de apresentar o conceito do
condenado por ter traído Jerusalém para a Babilônia “dia do S enhor” , Joel adverte o povo sobre suas 41
INTRODUÇÃO À BlBLIA

expectativas. Na segunda parte (2,18-4,21), o profeta peranças radicais de uma nova identidade pela trans­
descreve o dia do S enhor com mais pormenores. formação da situação presente. Hoje a análise interdis-
Em todos os oráculos há alusão ffeqüente ou citações ciplinar com as ciências sociais, em especial a antro­
diretas de declarações encontradas em outras cole­ pologia cultural, parece apoiar esta interpretação.
tâneas proféticas; por exemplo. Is 13,6 e Ez 30,2-3 O conflito intragrupo e circunstâncias osci­
(J1 1,15); Sf 1,14-15 (J1 2,1-2); Ab 17 (J1 3,5). lantes podem ser catalisadores para a formação de
O Dêutero-Zacarias (caps. 9-14) está separado grupos apocalípticos. A pergunta mais difícil não é
do Primeiro Zacarias por quase dois séculos de histó­ por que surgiram um ponto de vista e uma literatu­
ria política e religiosa Os capítulos estão divididos ra apocalípticos, mas por que surgiu essa determina­
em duas partes. Cada parte tem sua introdução (caps. da forma. A diversidade religiosa aparente nas co­
9-11 e 12-14). Ao contrário do Primeiro Zacarias, munidades pós-exílicas sugere que o desenvolvi­
a estrutura oracular é proeminente. Dentro dos orácu­ mento apocalíptico não foi o resultado inevitável
los não há nenhuma revelação original; em vez disso, de determinadas circunstâncias sociais.
a função dos oráculos é reunir as expectativas de A maior parte da cultura deste século tem con­
profetas mais primitivos e indicar como podem ser siderado a questão relacionada das origens da lin­
realizadas; por exemplo, Sf 3,14ss (Zc 9,9); Is 5,26 guagem apocalíptica. Surgiu da profecia? E uma
(Zc 10,8); J1 4 (Zc 14). Outra diferença importante adaptação do dualismo persa? A literatura sapien-
é a ausência de qualquer menção aos construtores e cial é a sua formadora? A busca de fontes parece
funcionários do Templo. Além disso, não há indica­ estar mal orientada, pois todo texto apocalíptico
ções cronológicas, nem nenhuma estrutura “históri­ combina alusões de uma ampla série de fontes. O
ca” coerente. Finalmente, os capítulos do Dêutero- sentido de qualquer texto depende das fontes e tam­
Zacarias foram avaliados pela linguagem e pelo ponto bém da maneira como elas são combinadas no pro­
de vista apocalípticos. cesso editorial.
As investigações atuais da estrutura e do con­
Relacionam ento com escrito s apocalípticos teúdo de escritos apocalípticos judaicos têm indi­
Tem havido renovado interesse na origem, na lin­ cado que algumas partes dos livros proféticos pós-
guagem, no conteúdo e na interpretação dos escritos exílicos podem ser classificadas como proto-apo-
apocalípticos judaicos. A profecia pós-exílica tem sido calípticas, por exemplo, o Dêutero-Zacarias; J1 3 ^ ;
considerada uma fonte possível dos escritos apoca­ Ml 3—4. Entretanto, o fato de partilharem seme­
lípticos, já que o fenômeno não corresponde à estru­ lhanças e aspectos de conteúdo não indica que al­
tura e ao conteúdo da profecia clássica. Alguns bi- guns textos pós-exílicos possam ser interpretados
blistas elaboraram uma polaridade entre os “tradicio­ segundo visões apocalípticas do mundo. A decisão
nalistas” e os “visionários” existentes na comunidade de investigar a afinidade lingüística e o paralelo
do Templo. Seu conflito de interesses resultou na estrutural da profecia pós-exílica com a literatura
formação de dois grupos distintos. Os “tradicionalis­ apocalíptica salienta a relutância de alguns biblis-
tas” reafirmaram a posição de apoiar o Templo e seus tas em analisar estes textos proféticos por suas
funcionários. Os “visionários” expressaram suas es­ contribuições.

INTRODUÇÃO A LITERATURA SAPIENCIAL


Lawrence E. Boadt, CSP

A natureza do livro sapiencial mudaria de novo. Achava que aquele não era o me­
lhor documento, mas estava longe de ser o pior e
Depois da guerra da independência dos Estados
votaria a favor dele. A Constituição logo foi aprovada
Unidos, quando os delegados das treze colônias por maioria esmagadora. Seu bom senso, sua prudên­
americanas estavam redigindo a Constituição, che­ cia e seu julgamento sensato deram-lhe o direito de
gou um momento em que todos contestavam algu­ ser chamado “Pai da Sabedoria Americana”.
ma parte do novo documento e parecia que ele nun­ Esse mesmo espírito que distinguia Franklin tam­
ca conseguiría ser aprovado. Durante a discussão, bém caracteriza os livros sapienciais do Antigo Testa­
Benjamin Franklin, o estadista mais velho do grupo, mento. Eles formam uma parte da Bíblia com ffe-
observou que, embora também não concordasse com qüência negligenciada, mas refletem importante dis­
todos os dispositivos, já vivera o bastante para saber cernimento do ideal religioso de Israel, o que não é
42 que muitas vezes mudara de opinião e provavelmente exatamente o mesmo que fidelidade à Lei mosaica
LITERATURA SAPIENCIAL

ou obediência aos profetas. O livro de Daniel des­ sabedoria vê o mundo de um ponto de vista bastan­
creve bem esta outra dimensão do ideal, quando o rei te profano. O exemplo mais importante disso é José
babilônio quer que alguns dos jovens judeus captu­ no Livro do Gênesis, que age com discernimento e
rados sejam trazidos a sua corte para estudar sabe­ prudência e faz a vontaide divina sem jamais receber
doria: “moços em quem não houvesse nenhum de­ uma revelação de Deus.
feito, belos de se ver, instruídos em toda sabedoria, Embora tais qualidades sejam apreciadas em
peritos de saber, compreendendo a ciência e cheios quase toda a parte no Antigo Testamento, só alguns
de vigor, para que permanecessem no palácio do rei” livros podem ser chamados especificamente “livros
(Dn 1,4). Encontram-se outras descrições do sábio sapienciais”, porque do princípio ao fim se concen­
em Gn 39,1-6; 41,8-32 (José), IRs 5,9-14 (Salomão) tram na reflexão intelectual sobre o mundo, de um
e 2Sm 16,15—17,14 (Ahitôfel e Hushai). ponto de vista humanista. São eles: Provérbios, Jó,
Os livros sapienciais não são todos iguais; dife­ Eclesiastes (ou, em hebraico, Coélet), Sirácida (ou
rem uns dos outros em estilo e conteúdo. Mas certas Eclesiástico) e Sabedoria (outrora chamado A Sabe­
características separam-nos de outros livros bíblicos; doria de Salomão). O Cântico dos Cânticos está es­
eles demonstram: treitamente relacionado com eles. Embora o Cântico
1) muito pouco interesse pelas principais tra­ seja poesia de amor, é também afirmação confiante
dições do Pentateuco, tais como a Lei do Sinai, a de criação e da capacidade humana para a felicidade.
aliança, o culto, a vocação especial de Israel; Há salmos que podem ser relacionados como escritos
2) pouca ou nenhuma preocupação pela história sapienciais; 1; 32; 34; 37; 49; 73; 111-112; 128 e
de Israel como povo; talvez alguns outros (19,8-15; 119; 127). Os biblis-
3) a busca do sentido da vida e o dominio da vida tas também chamam a atenção para influências sa­
como ela é conhecida pela experiência e não apenas pienciais nos profetas, em especial Isaías e Amós,
pela fé; que salientam o fato de conhecerem a sabedoria ou
4) a ânsia de analisar o desconhecido e os difí­ os desígnios divinos e, com frequência, empregam
ceis problemas de doença, sofrimento, morte, a desi­ expressões sapienciais. Alguns ecos do pensamento
gualdade entre ricos e pobres, a aparente arbitrarie­ sapiencial estão presentes alhures, como na narra­
dade da bênção divina sobre as pessoas; ção do jardim de Éden (Gn 2-3), na vida de Salomão
5) curiosidade sobre o mundo como um todo e (IRs 3-11), na história de José (Gn 37-49) e no
a experiência universal de todos os povos e nações; Livro de Daniel (caps. 1-6).
6) dedicação à descoberta do comportamento As observações sobre a vida não se restringiam
moral apropriado, o modo certo de viver. a Israel. Declarações proverbiais são quase universais.
Essas preocupações levaram os sábios a questio­ No passado, muitas vezes os biblistas trataram o ma­
nar a vida e, ao mesmo tempo, analisar e ordenar a terial sapiencial quase inteiramente em relação a ou­
experiência comum em regras para viver. A sabe­ tros livros da Bíblia; mas, nos últimos anos, aumen­
doria incentivava a disciplina do pensamento, o racio­ taram bastante as descobertas de escritos sapienciais
cínio cuidadoso e o controle das emoções. “Não te por egípcios, sumérios e babilônios, e agora a evidên­
deixes arrastar por teus desejos, e refreia tuas concu- cia mostra claramente o quanto Israel deve a essas
piscências. Se concederes a satisfação dos teus de­ nações por sua tradição sapiencial, o que não nos
sejos, isto fará de ti o escárnio de teus inimigos”, surpreende. É natural que o enfoque sapiencial nas
diz Sirac (Sr 18,30-31). Ao mesmo tempo, os sábios questões comuns aos seres humanos em toda a parte
eram extremamente tolerantes sobre adotar costumes levassem os israelitas a estudar obras famosas de
de outros povos. Estavam, em suma, interessados em outras nações.
todas as dimensões da vida, da perspectiva de “Como O Egito, em particular, foi fonte de estudos.
posso tirar disso o melhor proveito para mim e para Produziu muitas coletâneas de provérbios que datam
a sociedade em geral?”. de 2400 a.C. a 500 a.C., com freqüência na forma
Freqüentemente, essa abordagem faz com que de preceitos de um pai a seu filho, o que pode muito
os escritos sapienciais pareçam ter um ponto de vista bem ter sido um jeito formal de falar sobre mestre
muito secular. Muitos provérbios não têm qualquer e aluno. A coletânea mais primitiva. Instruções do
relação com a Lei divina. Até um infiel concorda v tir Ptah-hotep, reunia conselhos sobre como subir
sinceramente com a advertência “Não te metas com na vida e se parece com os provérbios mais antigos
os beberrões nem com os que se empanturram de do Livro de Provérbios. Compare: “Se estiveres à
carne. Pois bêbados e comilões caem na miséria e mesa de alguém mais importante que tu, aceita o
a sonolência se cobre de farrapos!” (Pr 23,20-21). que ele te der quando for colocado à tua frente”, de
Os rabinos dos primeiros séculos depois de Cristo Ptah-hotep, com Pr 23,1, “Se estás à mesa com um
discutiam com veemência se o Eclesiastes foi ou poderoso, presta atenção àquele que está na tua fren­
não ateu, antes de decidirem que o livro tinha de ser te”. A obra muito mais tardia Ensinamentos de
canônico porque o nome de Salomão estava ligado Amenêmope, escrita entre 1000 e 600 a.C., tem 30
a ele. Quer otimista a respeito do mundo, como Pro­ instruções que correspondem estreitamente à cole­
vérbios, quer pessimista, como Jó e Eclesiastes, a tânea em Pr 22,17-24,22. Um exemplo é Pr 23,10; 43
INTRODUÇÃO À BÍBLIA

“Não removas um velho marco, nem invadas o cam­ tências contidas na obra babilônica Conselhos de
po dos órfãos”. Compare com a instrução de Ame- Sabedoria: “Não freqüentes o tribunal... pois na con­
nêmope: “Não leve embora o marco dos limites da tenda serás chamado a testemunhar e moverão um
terra cultivável, nem mude a posição do cordel de processo contra ti que não poderás sustentar'’.
medir”. O sábio israelita modificou um pouco o adá- Em geral, as sabedorias egípcia, mesopotâmica
gio para aplicá-lo ao costume de deixar as respigas e israelita concordavam que a sabedoria tradicional,
para os pobres (Dt 24,19; Rt 2,1-7). Para mais deta­ transmitida havia muito tempo, tinha um valor espe­
lhes sobre a relação de Amenêmope com Provérbios, cial que nenhum indivíduo podia igualar em apenas
veja o comentário sobre Pr 22,17—24,22. uma vida de experiência. Quase todas as obras co­
As escolas sapienciais egípcias também produ­ nhecidas salientavam a importância de se sentar aos
ziram textos didáticos em louvor de escribas (veja pés de um pai ou mestre e aprender com o passado.
Sr 39,1-11), listas de nomes e classificações de todo A introdução à Sabedoria de Shuruppak, uma obra
tipo de coisas (veja a lista dos assuntos de Salomão suméria, é característica:
em IRs 5,13), reflexões pessimistas sobre a vida (Shuruppak) transmitiu ensinamentos a seu
(veja Jó e Eclesiastes) e até uma história de honesti­ filho...
dade e retidão ameaçadas pela luxúria (a História Oh!, meu filho, ofereço-te ensinamentos,
de Dois Irmãos), que se tomou o modelo para a ten­ aceita minha instrução...
tação de José pela mulher de Potifar em Gn 30,1-20. Não te descuides de minha instrução, não
Na Suméria e na Babilônia, a tradição sapiencial transgrida minha palavra falada.
estava tão desenvolvida quanto no Egito. As coletâ­ Como os escritos de ambas, a sabedoria meso­
neas proverbiais sumérias são anteriores a 2000 a.C. potâmica e a egípcia, estavam bem estabelecidos e
e muitos de seus provérbios parecem ter equivalentes altamente desenvolvidos muito antes que Israel exis­
em Israel. “Mal teus olhos pousam sobre ela [a rique­ tisse como nação, devemos concluir que sua influên­
za] e já terá sumido. Pois ela sabe tomar asas! Voará cia sobre o pensamento israelita mais tardio foi
qual águia para o céu” (Pr 23,5) tem mensagem pa­ bastante profunda.
recida com a do adágio sumério: “As propriedades
são pardais em fuga que não encontram lugar para O s dois cam inhos da sabedoria
pousar”. É curioso que os compiladores sumérios O filósofo grego Protágoras disse que “o homem
tenham reunido os provérbios por assunto, enquanto é a medida de todas as coisas”. Os antigos mestres da
é muito difícil encontrar ordem nas coletâneas de sabedoria do Oriente teriam concordado que esse é o
Israel. Além disso, os sumérios preferiam imagens da ponto de partida para a análise da exp)eriência. Em­
natureza e apresentavam um mínimo de julgamento bora não fossem filósofos no sentido moderno de
moral. Nesse ponto, eram diferentes de Israel. buscar uma explicação sistemática dos primeiros prin­
A Babilônia produziu grande número de obras cípios de realidade, os sábios eram argutos observa­
que tratavam de questões da vida humana. O poe­ dores do mundo em que viviam e tentavam encontrar
ma ionvareí o S enhor da Sabedoria (em babilônio, padrões e eventos previsíveis que ajudassem os ho­
o Ludlul bel nemeqí) trata do motivo pelo qual os mens a lidar com esse mundo. Devemos lembrar que
deuses permitiam o sofrimento imerecido. É, às eles pouco sabiam sobre as causas de doenças e en­
vezes, chamado “o Jó babilônio”. Outras obras exa­ fermidades, sobre as causas das condições atmosfé­
minam a questão da insignificância e há até um ricas e sobre a extensão da civilização, com exceção
Diálogo de Pessimismo entre um homem e seu es­ do que estava próximo. Isso significava que nada po­
cravo, que termina com uma insinuação de suicí­ diam fazer para evitar doenças deformantes ou curá-
dio. Uma obra conhecida popularmente como o las, impedir enchentes e prever secas, e entender os
“Eclesiastes babilônico” também examina os pro­ modos estranhos de povos distantes. O mundo físico
blemas de teodicéia (o tratamento dado por Deus em que viviam era muito mais incerto e, portanto, mais
ao sofredor inocente). ameaçador do que o nosso. Mas era tão interessante
Enquanto os provérbios sumérios tinham um lado quanto o nosso e a curiosidade dos mestres de sabedo­
impiedoso — as forças da natureza podem ser cruéis ria sempre procurava ligações entre as coisas. Apesar
e indiscriminadas e o mesmo acontece com os deuses das incertezas, estavam convencidos de que o mundo
— , a sabedoria bábilônica procurava lutar com as era bem organizado e podia ser entendido o bastante
incertezas da vida e reconciliar as contradições da para permitir a formação de normas para o comporta­
experiência. Salientava a necessidade de entender o mento moral.
universo em termos de leis morais que orientariam o Os sábios observavam, classificavam, refletiam,
comportamento humano. Assim, produzia muitos faziam comparações e analogias e, por fim, tiravam
provérbios de reflexão que não são diferentes dos conclusões para o comportamento cotidiano. A sabe­
preferidos pelos sábios no Livro dos Provérbios. “O doria orientava seus discípulos para a boa ordem do
que os teus olhos viram, não te apresses a depor em universo, quer ela se chamasse maat no Egito, quer
processo, pois o que farias, afinal, se teu adversário se chamasse ME na Babilônia ou sedeqá em Israel.
44 te confundisse? (Pr 25,8) não é diferente das adver­ A observação comum em geral apoiava um mundo
LITERATURA SAPIENCIAL

de ordem — o sol se levanta e se põe todos os dias, Embora a fé mosaica de Israel salientasse para
as estações são previsíveis, mas a certeza humana o povo a salvação pessoal pelo S enhor, seus círculos
também estava ligada à fé na ordem divina da cria­ de sabedoria baseavam suas descobertas na ordem a
ção. A causa dessa certeza estava na bondade dos ser encontrada no próprio plano de criação. Hinos
deuses e seu plano para o universo. Somente os em louvor da divina bondade e da majestade de
deuses entendiam esse plano em sua plenitude, mas Deus revelada na criação enchem a tradição sapien-
os homens podiam conhecê-lo de forma limitada e cial. Jó 28, Pr 8, Sr 16 e 43 e Sb 7 identificam a sa­
agir de acordo. Assim, em um nível a sabedoria an­ bedoria com a vasta e incompreensível grandeza da
tiga era extremamente confiante e positiva sobre a própria criação. Passagens em outras partes do An­
vida e a capacidade humana de levar uma vida bem- tigo Testamento (Gn 1; Ez 28; Is 40; SI 8) também
-sucedida segundo a ordem divina. O uso de provér­ louvam a criação como sinal da grandeza divina,
mas em nenhum lugar ela desempenha um papel
bios — ditos curtos que captam a essência do com­
tão central em nossa aproximação de Deus como na
portamento correto — reflete essa atitude.
tradição sapiencial. Quase todas essas passagens
Por outro lado, criou-se tensão entre o que se
podem ter sido influenciadas pela sabedoria. Mes­
deduzia como boa ordem e se transmitia como verda­ mo nos breves adágios dos Provérbios, o Criador
de e a experiência cotidiana de fracasso e incerteza
desempenha papel central (Pr 14,31; 17,5; Ecl 12,1).
que as pessoas tinham. Em contraste com a sabedoria Essa ênfase na criação coloca a sabedoria na
confiante de Provérbios e Sirácida, desenvolveu-se corrente das religiões do antigo Oriente Próximo,
uma segunda corrente de reflexão incrédula e ques- em especial a mesopotâmica, na qual a prática
tionadora — que lutava contra a dor e o sofrimento cultuai se concentrava na volta à ordem certa e à
humanos — , surgida do desconhecimento das razões perfeita bondade da primeira criação pelos deuses.
pelas quais a vida com freqüência era inconsistente Os povos pagãos tentaram apagar o intervalo entre
com as crenças baseadas na boa ordem divina. Os esse tempo e o presente — o pecado e o fracasso
livros de Jó e do Eclesiastes são às vezes veementes — e restaurar a integridade e a vitalidade daquele
em seus desafios da sabedoria tradicional. Questio­ primeiro momento. Até certo ponto, a religião babi-
nam totahnente nossa capacidade de conhecer e en­ lônica era uma fuga do presente para um mundo
tender por que a natureza age como age e o que Deus ideal intemporal, por meio do culto.
pretende que façamos. Ambos propõem soluções que Nesse ponto, a atitude de Israel era profúnda-
se baseiam mais em um relacionamento pessoal com mente diferente. Ele estava convencido de que o tem­
Deus do que em um entendimento da realidade. Na­ po caminhava para a frente e não se podia jamais
turalmente, tanto Jó como o Eclesiastes também co­ voltar ao que fora perdido. Mas Deus sempre agiria
meçam com a experiência e usam a regularidade novamente para curar, reconstruir ou tomar a aben­
descoberta para apresentar seus casos; somente ne­ çoar 0 mundo, e era possível ter total confiança em
gam sua capacidade última de explicar o propósito Deus porque ele age infalivelmente por bondade ina­
com 0 qual Deus age. ta. Em Gn 1-3 essa convicção se expressa pela bên­
Os mestres de sabedoria de Israel tentaram ção divina aos primeiros seres humanos, a rejeição da
resolver a tensão, afirmando cada vez mais que há bênção por eles e a nova bênção divina sem restau­
limites àquilo que os homens podem saber. Sr 3,21 rar por completo o que tinham perdido. Essa atitude
adverte; “O que está acima de tuas forças, não o está expressa nas proclamações de fé da aliança,
onde a fidelidade divina à promessa perdura apesar
investigues”; e 3,22 acrescenta: “não necessitas das
da infidelidade de Israel. E se expressa em sabedo­
coisas escondidas”. Deus sempre nos deixa saber o
ria, apelando ao ato divino de criação como fonte
bastante para dirigir nossas vidas, mas o sentido
para entender a bondade do mundo. A beleza da or­
último de cada vida está oculto no silêncio do pro­ dem e da harmonia divinas revela-se à nossa inteli­
pósito divino. Nisso, a sabedoria une-se às procla­ gência refletindo-se na criação e, embora não possa­
mações de fé da Lei e dos Profetas. mos entender plenamente seu significado, ela nos
(
mostra as opções básicas diante de nós; o caminho do
O horizonte cósm ico bem ou o do mal, o caminho do sábio ou o do tolo;
A experiência é tanto altamente pessoal como as atitudes da humildade ou da arrogância humanas.
muitas vezes impessoal. Quando a boa ou má sorte Esses temas são tratados de maneira mais completa
acontece apenas para mim, volto-me para a intimi­ nos comentários sobre o Livro dos Provérbios.
dade da oração para louvar a Deus ou lhe pedir A sabedoria tardia, refletida no Sirácida e no
ajuda; mas muitos acontecimentos, tais como guer­ Livro da Sabedoria, une mais as reflexões sobre a
ras, desastres naturais, a singularidade de animais fé e a criação, afirmando que, como Criador, Deus
estranhos e a regularidade das estações, nada têm só é conhecido em plenitude pela obediência à Lei
a ver com minha pessoa e levantam questões maio­ (veja em espeeial Sr 24 e Sb 18-19).
res sobre o universo como um todo. Não é, em
absoluto, surpreendente que a sabedoria desse muita Onde a sabedoria encontra seu lugar?
atenção às origens cósmicas e à maravilha da pró­ Os biblistas argiunentam a favor de diversas
pria criação. fontes diferentes para a tradição sapiencial. U m a 45
INTRODUÇÃO À BÍBLIA

que aparece freqüentemente por trás dos adágios Essa tradição atribui ao rei conhecimento en­
proverbiais é a família. Muitos provérbios são di­ ciclopédico e também a capacidade de governar
rigidos de maneira explicita de pai para filho (Pr com sucesso e fazer bom julgamento (IRs 3). Mas
1,8; 2,1; 10,1) ou de mãe para filho (Pr 31,1-2). os reis reuniam em tomo de si conselheiros habi­
Mas, mais do que isso, um número significativo de lidosos para assegurar que se sairíam o melhor
máximas é dirigido a questões de relações entre possível (veja 2Sm 16,15-17,23; ICr 27,32-33; IRs
pais e filhos, educação moral dos jovens e costu­ 12,6-7; Jr 8,8-9; Is 31,1-3). Os livros de Daniel e
mes familiares. Pr 19,26 adverte; “Maltrata o pai e Ester descrevem as cortes reais dos babilônios e
expulsa a mãe o filho que envergonha e desonra”; persas repletas de sábios conselheiros dos reis.
e Pr 20,11; “Um jovem é logo conhecido por seus Ainda outras passagens da Bíblia referem-se à fama
atos: percebe-se se puro e justo é seu agir”. dos sábios nas cortes dos reis de Edom e da Assíria
Embora todos concordem que alguma educação (veja Ez 28,3-4; Jr 49,7).
tinha de acontecer no lar, nem todos acreditam que os Quando David criou seu império, transformou
israelitas freqüentavam escolas formais. Mas as muitas Israel de organização tribal local em potência mun­
referências a mestres como “pais” nos Provérbios e a dial da noite para o dia. Ele precisava com urgência
existência difundida de escolas no Egito e na Mesopo- de diplomatas, administradores e escribas, o que tor­
tâmia sugerem que também Israel tinha programas de nou necessário tomar emprestadas as técnicas de
educação que pelo menos alguns meninos freqüenta­ reinos vizinhos, em especial o Egito. Sob seu filho
vam durante muitos anos. Esses programas incluíam Salomão, esse treinamento foi bem estabelecido e
o aprendizado do alfabeto, seguido da escrita e do do­ houve uma explosão de atividade literária, inclusive
mínio de provérbios curtos e, por fim, do estudo de
a primeira redação das tradições religiosas de Israel
obras literárias mais longas. O prólogo do Sirácida,
pelo javista, os relatos históricos da elevação de
escrito por volta de 132 a.C. traz um relato: “... meu
David ao poder e o desenvolvimento da sabedoria
avô Jesus [Ben Sirac], que se tinha entregue acima de
como arte. Até os títulos dos funcionários adminis­
tudo à leitura da Lei, dos Profetas e dos outros livros
trativos de Salomão — “os chefes que estavam a
de nossos pais, e que alcançara grande domínio sobre
seu serviço”, os secretários e o chanceler (IRs 4,1-
eles, foi levado também a escrever sobre a instrução
e a sabedoria...” Essa educação formal objetivava criar 6) — são tomados por empréstimo das altas funções
uma classe profissional de escribas e burocratas que no Egito e correspondem a vizir, escriba real e arauto
exerceriam fimções administrativas no Templo, no gover­ real. Nessa situação, teriam florescido as escolas para
no régio e nas casas de negócio. Há muitos exemplos os bem-dotados. O jovem israelita escolhido para es­
de ensaios sumérios e egípcios em louvor da profis­ tudar teria apoiado o grito entusiástico de um escriba
são de escriba como a mais elevada da terra. Passagem egípcio, Duauf: “O escriba — todos os cargos da cor­
semelhante encontra-se na Bíblia em Sr 38,24-39,11, te estão à sua disposição!”
e em outras passagens há muitas alusões á importân­ Não há, no Antigo Testamento, nenhuma decla­
cia do escriba (ICr 27,32-33; Is 8,16; Jr 26,1-21). ração que realmente afirme que alguém se manteve
No antigo Oriente Próximo, a sabedoria estava, como mestre de sabedoria, mas é bastante provável.
acima de tudo, associada aos reis e á administra­ Jeremias menciona o sábio na mesma situação que
ção régia. David é chamado de sábio em 2Sm 14,20 o sacerdote e o profeta: “Eles dizem: ‘Vamos armar
e a sabedoria de Salomão é descrita em pormenores um plano contra Jeremias; sempre será possível
em IRs 3-11. Pr 25,2 declara: “A glória de Deus achar instrução divina junto aos sacerdotes, conse­
é agir em mistério e a glória dos reis, agir após lho junto aos sábios, a palavra, junto aos profetas’”
exame”. IRs 5,9-14 declara sobre ele: (Jr 18,18).
Deus concedeu a Salomão sabedoria e inteli­ Embora seja difícil mostrar um perfil completo
gência em profiisão, bem como uma abertura de do sábio profissional atuando fora de um papel po­
espírito abundante como a areia à beira do mar. lítico no palácio, há nas Escrituras sinais suficien­
A sabedoria de Salomão ultrapassou a de todos tes para formar um esboço razoável. A filosofia de
os filhos do Oriente e a do Egito. Ele foi o mais vida encontrada no Livro dos Provérbios com ffe-
sábio dos homens; mais sábio do que Etan, o qüência reflete as preocupações dos ricos e daque­
ezrahita, e do que Heman, Kalkol e Dardá, filhos les que tinham tempo livre para estudar. A ênfase
de Mahol, e seu nome era conhecido em todas no modo de falar correto, nas habilidades para es­
as nações vizinhas. Pronunciou três mil provér­ crever, nos bons modos e no empréstimo de dinhei­
bios, e seus cânticos são em número de mil e ro descreve uma elite governante, não a classe agri­
cinco. Falou das árvores; tanto do cedro do cultora ou trabalhadora. A inclinação conservadora
Líbano como do hissopo, que brota nos mu­ da sabedoria proverbial é, às vezes, atribuída aos
ros; falou dos quadrúpedes, das aves, dos rép­ ricos que valorizam acima de tudo a estabilidade
teis e dos peixes. De todos os povos e da parte política. Assim, o mestre de sabedoria dava aulas
de todos os reis da terra que ouviram falar da para os jovens da classe alta. Um provérbio parece
sabedoria do rei Salomão vieram pessoas ou- subentender que as famílias ricas pagavam direta­
46 vir as palavras de sua sabedoria. mente ao mestre: “De que vale o dinheiro na mão
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do insensato? Para ganhar sabedoria? Falta-lhe Como as escolas de sabedoria desenvolveram


juízo!” (Pr 17,16). esses métodos eficientes para educar as pessoas,
os profetas muitas vezes apropriaram-se de suas
O s m étodos do sábio técnicas. A pergunta retórica era preferida dos pro­
Parte da tarefa de educação era memorizar os fetas maiores, em especial de Isaías, assim como o
valiosos ensinamentos do passado; outra parte eia diálogo entre Deus e profeta (veja as chamadas
aprender a raciocinar e fazer associações. Para al­ confissões de Jeremias em Jr 12; 15; 17; 18; 20).
cançar essas metas, os sábios aperfeiçoaram muitas Alguns profetas, principalmente Ezequiel, aprecia­
formas literárias distintas, sendo as principais o pro­ vam a parábola e a metáfora como meios de dizer
vérbio e a comparação. Como a maior parte da edu­ o que queriam (veja Ez 16; 17; 19; 23; 29; 30; 31;
cação era oral, podemos imaginar o mestre fazendo 32). Amós usou o provérbio numérico como instru­
perguntas aos estudantes e estes respondendo de acor­ mento dramático (Am 1,3-2,6). Porém, enquanto a
do com chaves estabelecidas que ajudavam sua me­ sabedoria empregava esses meios para abrir as men­
mória. Em vista disso, é surpreendente como são tes jovens para o mundo à sua volta, os profetas os
poucos os enigmas e as fábulas encontrados na litera­ usaram para contestar o entendimento que as pes­
tura hebraica. Os ensinamentos sapienciais da Meso- soas tinham da aliança. A introdução ao Livro dos
potâmia preferiam ambos como instrumentos didá­ Provérbios (cf vol. II) discute muitos desses pon­
ticos, mas apenas uma ou duas fábulas estão presen­ tos pormenorizadamente.
tes no Antigo Testamento (Jz 9,8-15; Ez 19,10-14)
e um único enigma completo (Jz 14,12-18). A peque­ Síntese dos livros sapienciais
na coletânea de provérbios numéricos em Pr 30,15-33 A fama da sabedoria de Salomão era tão grande
pode originalmente ter sido composta de enigmas, mas em Israel que se acreditava ter sido ele o autor dos
agora aparecem no texto como observações prover­ livros dos Provérbios e do Eclesiastes, do Cântico
biais sobre a vida. dos Cânticos e da Sabedoria. Divertida lenda no
O pmvérbio era elemento importante na sabedo­ Talmud conta como o grande rei escreveu o Cântico
ria israelita porque concentrava as lições do passado de dos Cânticos no vigor da juventude, os Provérbios
maneira prática e engenhosa, com um toque do ser­ na idade madura e o Eclesiastes na incredulidade
mão e em uma forma fácil de lembrar. A popularida­ da velhice!
de do provérbio em Israel devia-se a sua capacidade
— P rovérbios. Este livro é analisado em sua
de captar tanto o discernimento mais comum da vida
totalidade no comentário (vol. II), mas um breve
cotidiana como o problema mais difícil da exp>eriência
resumo dos outros importantes livros sapienciais a
de maneiras novas e interessantes. Da mesma forma,
esta altura ajudará a entender suas relações mútuas.
a comparação forçava o ouvinte a fazer analogias
— Jó. O Livro de Jó usa um antigo conto folcló­
entre o que era observado no mundo animal ou vege­
rico sobre um homem perfeitamente justo que se man­
tal e o comportamento humano. Nem o provérbio nem
tém fiel sob grandes provações (caps. 1-2; 42) como
a comparação esperavam explicar plenamente a reali­
estrutura para um grande diálogo sobre a questão do
dade, mas pela justaposição de diversas intuições
sofnmento humano e do problema da busca humana
alcançava-se uma imagem mais rica e mais variada.
Essa busca das múltiplas faces da vida também do conhecimento pessoal do Deus transcendente (caps.
ajuda a explicar os outros gêneros literários preferi­ 3 ^ 1 ). Tem muitos elementos de drama, com o des­
dos pelas escolas de sabedoria. São, em sua maior fecho incerto até o fim. O Jó dos diálogos não é nem
parte, não-dogmáticos, mas mesmo assim educativos. 0 sofredor paciente da tradição, nem o homem piedo­
O caminho da sabedoria era a persuasão, não o man­ so que aceita sua sina encontrado no conto folclórico.
do e, assim, os gêneros mais importantes incluem a Em vez disso, o autor (século VII ou VI a.C.) teve a
alegoria (Pr 5,15-23; Ecl 12,1-6); os provérbios nu­ coragem de transcender a simples aceitação da vontade
méricos (Pr 6,16-19; 30,15-33; Sr 25,7-11); ono­ divina para fazer duras perguntas à sabedoria tradicio­
másticos (isto é, listas de nomes: Ez 27,12-25; Sr nal e, às vezes, excessivamente confiante, apresenta­
24,13-17); hinos (Pr 8,22-31; Jó 28; Sr 24); diálo­ da por provérbios e instruções. Se Deus sempre cuida
gos (Jó); bem-aventuranças (“Feliz quem...”: Pr 3,13; do justo, por que os maus parecem prosperar? Por
8,32ss.; 14,21; 16,20; Ecl 10,17; Sr 14,1-2); forma­ que os inocentes sofrem? Que esperança a retidão
tos de pergunta e resposta, em especial perguntas oferece?
retóricas (Sirácida); confissões de louvor (Sr 33,16- O livro também examina a questão mais pro­
18; 51,13-22); enigmas parciais (Sr 39,3; Sb 8,8); funda de como podemos conhecer Deus. Muitas
citações usadas como ponto de partida para refle­ das queixas de Jó tratam do silêncio de Deus diante
xões (Eel 4,8; 10,18; 11,1; 7,3-4; 10,2) e reflexões da busca humana por justiça e fidelidade. A resposta
filosóficas (Livro da Sabedoria). Quando não usavam divina, quando vem, nega-nos qualquer reivindi­
uma das formas literárias mais engenhosas, os auto­ cação de relacionamento com Deus baseado em
res sapienciais recorriam à instrução direta, forma nossa justiça, mas exige o conhecimento pessoal
tomada emprestada dos egípcios (Pr 1-9). por meio da obediência e do culto reverente. Como 47
INTRODUÇÃO À BÍBLIA

Jó finalmente admite: “Só por ouvir dizer, te conhe­ em Alexandria e suas objeções à fé judaica durante
cia; mas agora viram-te meus olhos” (Jó 42,5). As o século I a.C. Por causa da data e de ter sido escrita
perguntas de Jó são também bem conhecidas na na língua grega, nunca entrou no cânon hebraico. O
literatura sapiencial babilônica, mas o autor de Jó principal propósito do livro é reafirmar à comunida­
situa a resposta dentro do compromisso de Israel de judaica do Egito que vale a pena manter a fé
com a auto-revelação pessoal do Senhor a eles. Em apesar dos reveses encontrados em uma cultura pagã.
muitos aspectos, Jó se assemelha aos salmos de la­ Para alcançar esse objetivo, o livro apropria-se da
mentação com sua estrutura tripla: 1) grito de dor e linguagem da filosofia Mas também se destaca dos
lamento; 2) clamor a Deus por ajuda; 3) promessa livros sapienciais mais primitivos por sua intensa
de louvar a Deus para sempre. Jó nos ensina que, preocupação com 1) a história da salvação como
em última análise, a verdade brota da dúvida e do lição dirigida aos sábios e 2) a imortalidade como ex­
questionamento. plicação do cuidado divino pelo sofrimento dos jus­
— E clesiastes. o autor deste livro é o mais in­ tos. Embora se classifique na tradição otimista dos
crédulo da Bíblia. Como Jó, ele contesta as certezas Provérbios e do Sirácida, muitas vezes toma a sabe­
tradicionais da sabedoria, examinando o mesmo doria tão abstrata que obscurece qualquer valor práti­
mundo da experiência. “Vaidade das vaidades, tudo co para viver (veja 7,22-25); manifesta porém a capa­
é vaidade”, ele começa e termina sem outra convic­ cidade da sabedoria judaica de enfrentar com criati­
ção. Não nos cabe entender o sentido da vida nem vidade 0 desafio do pensamento helenístico.
imaginar o propósito divino por trás dos aconteci­ — C ântico dos C ânticos. É difícil saber onde
mentos, em especial o sucesso e o fiacasso, a recom­ colocar o Cântico dos Cânticos entre os livros bíbli­
pensa e o castigo do comportamento moral, ou final­ cos. Com freqüência, ele é incluído entre os escritos
mente a própria morte. Em vez disso, o autor enaltece sapienciais porque sua mensagem é interpretada co­
a transcendência de Deus, a necessidade de reco­ mo alegoria do relacionamento extremoso de Israel
nhecer que existem limites para a sabedoria humana com o S enhor. Embora muitos biblistas de hoje
e a capacidade de aceitar a vida como ela é, supor­ admitam que começou como coletânea de cantos de
tando seus sofrimentos e gozando seus prazeres com amor realistas compostos para festas de casamento,
moderação (Ecl 5,17). Tudo tem seu tempo (Ecl 3,2), teve ele uma longa história de desenvolvimento antes
mas só Deus conhece esse tempo em plenitude. O de adquirir sua forma atual. Pode ter havido uma
conselho do Eclesiastes para gozar a vida conforme etapa de adaptação a casamentos da realeza (veja o
ela é concedida pode não parecer muito religioso, Salmo 45), o que teria dado aos cânticos um cenário
mas ele o ameniza com exortações para “temer a religioso. De qualquer modo, o livro tem sido sempre
Deus” (Ecl 5,6). As perspectivas são muito mais pes­ um convite à reflexão sobre a maravilha e a beleza
simistas do que as do otimista Livro dos Provérbios, da criação divina, o mistério do amor divino (e hu­
mas 0 Eclesiastes faz claramente parte da tradição mano) e as ramificações de relacionamentos btisea-
de perguntas minuciosas dirigidas a toda a criação dos na aliança. Emprega a forma de diálogos, uma
sobre os problemas de Justiça humana, sobre a exis­ das técnicas preferidas pelos mestres de sabedoria
tência do mal, sobre a vida e a morte. como meio de desafiar os estudantes para que pen­
— SiRÁciDA. Escrita no início do século II a.C., sem. É provável que o Cântico dos Cânticos tenha
a Sabedoria de Jesus Ben Sirac lembra muito o ponto recebido sua revisão final depois do Exílio, em círcu­
de vista positivo dos Provérbios.^ Reúne conselhos los que conheciam bem as tradições sapienciais de
sobre todos os assuntos tradicionais da sabedoria, Jó, Eclesiastes e Provérbios.
por assunto, e os expõe como guia para jovens estu­ — Salmos de iNSTRUçâo. Não há duas listas que
dantes que desejem obter sabedoria. Embora possa concordem quanto ao número de salmos pertencen­
ser alcançada pelo estudo, a finalidade da sabedoria tes a esta categoria. O problema está na decisão dos
é servir de diretriz para a conduta humana, não de critérios. Os critérios mais exatos são: 1) o contraste
especulação. Sirac insiste em identificar conselhos reflexivo entre o justo e o mau, ou entre o sábio e
sábios às práticas religiosas do judaísmo, ligando a 0 tolo — os Salmos 1; 34; 37; 49; 73; 112 se quali­
sabedoria em especial à Lei de Moisés (cap. 24). A ficam neste campo; 2) o uso de expressões sapien­
sabedoria é, assim, uma dádiva divina a Israel, de ciais especiais, tais como “feliz o homem que...” ou
forma singular. Mais ainda que para os Provérbios, “temer o S enhor”, como nos Salmos 32; 111; 128.
o “temor do Senhor” é o caminho da sabedoria. As Muitos outros salmos fazem uso de temas sapien­
realizações dos mestres só são corretamente aprecia­ ciais, mas dão ênfase a outros temas.
das à luz da revelação divina. Devido a sua data
tardia, o Sirácida nunca foi aceito no cânon hebraico, A conquista da sabedoria
mas tomou-se parte muito popular das escrituras Em geral, a teologia bíblica dá muito menos
cristãs — daí o nome mais tardio. Eclesiástico, “livro atenção à sabedoria do que aos profetas, à história
da Igreja”. da salvação e ao material legal. Contudo, a sabedo­
— S abedoria. Pode ter sido o último livro no ria foi importante durante toda a história de Israel.
48 Antigo Testamento e reflete a reação à filosofia grega Antes de suigir a profecia, a sabedoria tinha uma
LITERATURA SAPIENCIAL

longa tradição atrás de si. Os próprios profetas mui­ estratagema literário para expressar como o Deus
tas vezes apropriaram-se de intuições e expressões transcendente toma-se presente de um modo pessoal
s^ienciais e, quando a profecia ftacassou, após o e imanente, comunicando-se com nossa inteligência,
Exílio, a sabedoria estava chegando ao auge. Seu ca­ compreensão e fé. Sem esse ^rfeiçoam ento, a teo­
ráter internacional permitiu-lhe trazer ao pensamento logia cristã de Jesus como Filho de Deus e Verbo
de Israel o melhor de outras culturas e deu um con­ feito carne não teria encontrado essa expressão.
texto mais amplo à teologia especial da aliança, que 7) A sabedoria como dádiva divina. Enquanto
impediu uma idéia da vontade divina demasiado na­ dava alto valor ao raciocínio humano, a sabedoria
cionalista e intolerante. aprimorava cada vez mais sua compreensão dos
Algumas das principais contribuições do pensa­ limites do conhecimento humano para dar maior
mento sapiencial à religião de Israel foram: ênfase à iniciativa divina. Conhecer Deus e a reve­
1) Ênfase em causa e efeito. Atos têm conse- lação divina trazia luz à compreensão humana, luz
qüências e decisões morais nunca podem ser toma­ inalcançável só pela experiência do mundo. A sabe­
das fora do conceito de responsabilidade social e doria tinha sempre orientação ética, mas desenvol­
da experiência de outros que nos precederam. Com veu uma postura na qual o conhecimento e a ética
freqüência, muita coisa que é inexplicável pode ser religiosos atuavam unidos.
parcialmente explicada por analogias com a expe­ 8) O significado do sofrimento. Com base na
riência comum. experiência e na reflexão, a sabedoria enfrentou o
2) Apreciação do tempo. Israel não lutou para desafio do sofrimento e apresentou diversas respos­
apagar o tempo e voltar às origens. O tempo pas­ tas que podiam guiar as decisões práticas dos sofre­
sava e Deus sempre agia tendo em vista o presente dores. Nenhuma resposta era muito adequada (o mal
e o futuro, o que dava a Israel um verdadeiro senso como consequência do pecado, um teste da parte de
da história e a confiança de que Deus sempre agiria Deus, severa correção de nossas faltas), mas o mes­
de novo. Ao mesmo tempo, Israel não podia ter mo acontece com a maioria das respostas atuais. A
esperança de controlar o ciclo do tempo por meio sabedoria rejeitou as respostas pagãs de proteção
de culto ou magia, como faziam os pagãos; só Deus mágica ou desespero legítimo e colocou o mal firme­
conhecia os tempos e controlava o futuro. mente no campo da ética. Seja qual for a razão de
3) Confiança rui ordem. A sabedoria acredita­ determinado mal, os resultados estão sempre nas
va na busca empírica da ordem oculta do propósito mãos de um Deus justo e misericordioso que escuta.
divino no mundo. Era possível estudar e refletir 9) Confiança como virtude fundamental. A
sobre essa busca que proporcionava diretrizes para sabedoria reconhecia seus limites e enfatizava que
a conduta. Embora, sendo assim, a sabedoria atri­ a confiança era a virtude fundamental dos sábios.
buísse grande valor à tradição, também proporcio­ A experiência é quase sempre paradoxal e aparen­
nava à fé israelita confiança para fazer novas adap­ temente contraditória; as questões fundamentais da
tações em situações diferentes através da história. vida e da morte estão fora de nosso controle e não
4) Deus revelado na criação. A Lei mosaica e podemos fazer com que Deus se adapte a nossas
os profetas deram a Israel a compreensão de Deus expectativas. Assim, a sabedoria suprema pensa no
como salvador pessoal, mas a sabedoria revelou a futuro com confiança e coloca esperanças razoá­
dimensão mais universal do S enhor como o Criador veis e decisões responsáveis em uma firme dedica­
e 0 único Deus, chamando a atenção para a ordem e ção ao S enhor, aceitando todas as conseqüências.
a beleza da criação e a vontade divina nela revelada. 10) O valor da comunidade. Esta pode parecer
Também realçou o papel positivo da compreensão uma estranha contribuição para atribuir à sabedoria,
e da administração humanas do mundo. que com tanta freqüência realça a luta individual
5) Os homens como responsáveis. A sabedoria pelo crescimento. Mas ela é merecida no sentido
é, com freqüência, acusada de ter uma teologia da em que a preocupação da sabedoria com o conjunto
justiça divina, mas nenhuma da misericórdia divina do conhecimento humano universal levou-a a valo­
até os períodos mais tardios (Sirácida). Isso não é rizar outros povos e suas contribuições, o poder da
verdade. Enquanto os profetas enalteciam a mise­ comunicação e do diálogo por meio de palavras,
ricórdia depois do pecado, a sabedoria enaltecia ouvir e respeitar outras opiniões e a necessidade de
a continuidade da criação divina, de modo que, de­ justiça, honestidade e integridade nos negócios hu­
pois da desgraça ou do fracasso, havia outra opor­ manos. A visão que combinava a interdependência
tunidade. Mais do que isso, os homens comparti­ social e o mérito individual está muito mais desen­
lham o poder criador de Deus e precisam exercê-lo volvida nos escritos sapienciais do que em outras
com responsabilidade e prudência, de acordo com partes da Escritura.
a sabedoria. Portanto, a sabedoria não se opõe à doutrina
6) Personificação da sabedoria. Diversas passa­ do Pentateuco nem aos Profetas, mas serve para unir
gens tratam a sabedoria como se ela fosse um ser os ensinamentos da revelação e da obediência exi­
independente próximo a Deus (Pr 1,20-33; 8,22-31; gida pela fé à experiência prática da realidade coti­
Sr 24,1-31; Sb 9,9-11). Isso é, primordialmente, um diana, a fim de enriquecê-los. 49
INTRODUÇÃO ÀBfBLIA

A relevância da sabedoria hoje bíblicas, do culto religioso esmerado e das teolo-


No mundo moderno, a fé religiosa soffe crescen­ gias das Igrejas, quando Deus parece tão distante
te pressão da expansão do conhecimento. Setores da dos negócios humanos e tão desnecessário para re­
vida outrora considerados prerrogativa inviolável solver nossos problemas mundanos.
somente da ação divina agora estão abertos à inves­ E aqui que a sabedoria tem muito a nos dizer.
tigação e até ao controle humanos. As viagens espa­ Por um lado, afirma que a ordem, a bondade e a be­
ciais, o prolongamento da vida, a criação de em­ leza do universo que descobrimos e dominamos com
briões humanos em tubos de ensaio e a engenharia nossos poderes são, na verdade, revelação dos de­
genética entram em áreas que a sabedoria tradicio­ sígnios de Deus. Os homens foram criados à ima­
nal reservava ao mistério do propósito divino. Essas gem de Deus e receberam o domínio sobre o universo
atividades somam-se às vitórias humanas na com­ para govemá-lo com sabedoria pelos poderes do en­
preensão dos fatores climáticos, das causas de doen­ tendimento, da prudência e das habilidades verbais
ças e enfermidades e do movimento dos corpos com as quais Deus os dotou. Por outro lado, à medida
celestes que tanto frustraram os pensadores antigos que nossa compreensão do mundo se aprofunda, a
e levaram-nos a sugerir a oração onde o conheci­ literatura sapiencial nos assegura que é lícito e natu­
mento humano fracassava. Em nossa cultura, muita ral questionar e duvidar ao longo do caminho. Jó e
gente não mais imagina como Deus invade a vida Eclesiastes proclamam que questionar o Deus oculto
cotidiana de modo significativo; seu modo de ver muitas vezes nos ajuda a entender melhor que, mes­
tomou-se, de facto, totalmente secularizado, mesmo mo em silêncio. Deus está presente.
que ainda, supostamente, professem crer em Deus. Acima de tudo, a sabedoria incentiva-nos a usar
Seu mundo é um mundo de controle humano e nosso poder humano de reflexão e questionamento
tudo que importa são as decisões humanas. e também nos adverte que hoje, tanto quanto no
Muitos outros, sofrendo os horrores da guerra período veterotestamentário, corremos o risco de
moderna ou atravessando uma tragédia pessoal de que o orgulho humano reivindique coisas demais
doença ou morte repentina na família, perguntam- para si e, tolamente, com arrogância até, empur-
-se por que Deus fica em silêncio quando mais pre­ renos com violência para a destruição da boa cria­
cisamos dele. Questionam o valor de credos e leis ção divina.

INTRODUÇÃO AOS CINCO ROLOS


James A. Fischen CM

Este comentário contém uma explicação de truição do Templo pelo imperador romano Tito, em
cinco livros do Antigo Testamento, chamados Me- 70 d.C. — , portanto, um dia de luto.
gilloí (“rolos”) pelos judeus. Estão reunidos por O Eclesiastes era lido em Sukkot, a mais popular
conveniência, pois os judeus os liam em dias de das três festas principais. Sukkot era celebrada no
festa na sinagoga. Todavia, a tradição não é constan­ outono como festival dos lavradores para as colheitas
te e unânime e, com certeza, não é tão antiga quanto da uva e da azeitona O tema do envelhecimento, do
os livros. ano e das pessoas, enquadra-se na festa e também no
O Cântico dos Cânticos está em primeiro lugar livro. Algumas tradições afirmavam que o Cântico dos
porque era lido durante a Páscoa. Há nele passagens Cânticos lembrava Salomão na juventude e o Eclesias­
que falam do término do inverno, então o Cântico tes, Salomão na velhice, pois ambos referem-se a
é apropriado para a primavera. O Êxodo parece ser Salomão. Entretanto, o uso do Eclesiastes para leitura
sugerido pela referência às potrancas de Faraó (Ct na sinagoga é a parte menos consistente da tradição
1,9). Acima de tudo, o Cântico fala de juventude e e um desenvolvimento um tanto tardio. Alguns gmpos
amor e esse é, com certeza, o tema da Páscoa. não o usam de forma alguma.
O Livro de Rute era lido na festa de Shawot, O Livro de Ester contém a história que é a base
antigo festival da colheita, ou o que os cristãos para a celebração da festa dos Purim, espécie de
chamam de Pentecostes. A história de Rute acon­ carnaval judaico. Essa tradição teve início na Pérsia
tece durante a estação da colheita. Uma antiga e só mais tarde estendeu-se ao judaísmo ocidental.
tradição afirmava que o rei David nascera em Aparentemente, era uma tentativa de neutralizar as
Shawot. celebrações do Ano Novo pagão.
O livro das Lamentações era lido no dia nove A tradução grega da Bíblia conhecida como
50 de ab, julho ou agosto. É a data tradicional da des­ Septuaginta, concluída em 100 a.C., pelo menos.
CINCO ROLOS/NOVELAS

tem uma ordem diferente para estes cinco livros. O quisermos saber como as unidades originais foram
livro de Rute está colocado imediatamente depois compostas segundo padrões de redação, precisare­
de Juizes. mos da crítica das formas, da qual nos ocuparemos
Esse agrupamento interessante oferece a oportu­ com freqüência. Se quisermos saber como essas
nidade para uma palavra sobre o tipo de comentário unidades foram reunidas para formar um livro, usa­
feito a respeito destes livros. Não há nenhum tema remos a crítica da redação. Se perguntarmos qual
ou abordagem comum nos livros em si. Rute e Ester o papel desempenhado pelo livro dentro de todo o
são narrativas, mas de tipos bem diferentes; o Cântico conjunto da Escritura canônica, precisaremos da crí­
dos Cânticos é poesia de amor e Lamentações é tica da recepção. Se perguntarmos de que maneira
poesia triste; Eclesiastes é um ensaio sobre a vida essa narrativa, poesia ou ensaio atua como literatura
humana. Por serem tão diferentes, não podem todos e que qualidade possui, precisaremos da critica lite­
ser interpretados da mesma maneira. As conclusões rária ou retórica.
dependem do método adotado para interpretá-los. Todos esses métodos só mostram algum aspecto
Se a principal preocupação for descobrir o que do texto; nenhum deles é diretamente a chave para
dizia 0 texto hebraico original, então precisamos a interpretação. Todos são importantes, mas não ave­
estudar as alterações ocorridas quando da cópia dos riguam o que o leitor comum da Bíblia deseja saber,
manuscritos e modos alternativos de entender o isto é, como este livro ajuda minha fé ou compreen­
texto. Isso se chama crítica textual e gramatical. O são espiritual? Para chegar a um sentido espiritual
comentário aludirá ocasionalmente a esses proble­ para nós, precisamos adaptar a leitura à nossa expe­
mas verbais. Se quisermos descobrir o que realmen­ riência. O comentário a seguir (vol. II) foi escrito em
te aconteceu, precisamos da crítica histórica, para, grande parte na ótica da critica retórica, na esperança
tanto quanto possível, chegar aos “fatos”. Não há de que isso nos dê acesso à experiência da maneira
problemas históricos graves em nossos livros. Se mais rápida e mais precisa.

INTRODUÇÃO AS NOVELAS BÍBLICAS


Irene Nowell, OSB

As histórias são para contar a nós mesmos as Os autores desses três livrinhos não dão respos­
verdades que não podemos explicar. Os autores bí­ tas diretas às perguntas que lhes fazem; em vez
blicos usaram muitos tipos de literatura para trans­ disso, contam histórias. A um público do século V,
mitir a palavra de Deus. Além de relatos históricos, inclinado a separar-se do resto do mundo, um autor
parábolas, hinos e canções de amor, também usa­ conta a história do profeta do século Vlll que fugiu
ram histórias, contos fictícios produzidos para trans­ do chamado divino para que levasse a boa nova ao
mitir verdades mais profundas do que a simples resto do mundo (Jonas). A um público do século II,
enumeração de fatos cotidianos podería conter. que queria saber se Deus ainda agia em suas vidas,
Os livros de Jonas, Tobit e Judite estão entre os outro autor conta a história de uma família do sécu­
melhores exemplos dessa ficção em toda a narrativa lo VII que encontra o poder curador divino oculto na
bíblica. Os autores desses três livros tomaram elemen­ obediência e na atenção de uns para com os outros
tos essenciais da fé bíblica e usaram todas as técnicas (Tobit). A um público de meados do século II, que
de sua habilidade literária para criar histórias que perdeu a esperança da libertação divina, um tercei­
exemplificam a eficiência das crenças tradicionais ro autor conta a história da vitória divina pela mão
na situação de seu público. Construíram enredos que de uma mulher (Judite).. Cada autor usou o poder
mostram a participação de Deus nas atividades e nos e a beleza da habilidade literária para dar vida à pa­
acontecimentos humanos ordinários. Descreveram lavra de Deus na tensão e na necessidade da situa­
personagens que, com obstinada resistência e corajo­ ção contemporânea.
sa obediência, seriam testemunhas do relacionamento As verdades básicas sobre Deus e o povo que se
constante entre Deus e os fiéis. Usaram ironia e humor esforça para ser fiel a ele encontram-se em toda a
para atrair o público e fixar a mensagem em sua me­ Bíblia. A aplicação dessas verdades ao público espe­
mória. Em suma, os autores desses três livros eram cifico de seu tempo era a missão e o serviço dos au­
magistrais contadores de histórias. Sua mensagem tores dos livros de Jonas, Tobit e Judite. É nossa ta­
era vital para o público de seu tempo e continua refa descobrir o que esses três livros têm a nos dizer
vital para nós; a palavra de Deus é viva, eficiente e sobre a presença dinâmica e as insistentes exigências
exigente em todas as épocas, inclusive a atual. de Deus em nosso tempo. 51
entateuco
GENESIS
P a u lin e A. V ivian o

INTRODUÇÃO
Livro do Gênesis com frequência nos narrativa de suas origens a narrativa dos primórdios
parece uma obra literária antiquada que do universo e da história da humanidade no período
contém narrativas de valor discutível primitivo. É importante reconhecer que esse proces­
para nosso sofisticado mundo civili­ so levou séculos. As histórias eram contadas e re-
zado. E, contudo, porque faz parte da contadas, adaptadas e reinterpretadas. Receberam
Bíblia, achamos que deve nos dizer algo, alguma novo contexto e adquiriram novo significado. Cres­
coisa sobre Deus que transcende tempo e lugar. ceram e se desenvolveram além do relato original,
Parte do problema para encontrar sentido no livro até entrarem na narrativa maior das relações de Israel
do Gênesis está na vasta distância entre o mundo com Deus. O Livro do Gênesis dá testemunho desse
que compôs o Gênesis — um mundo oriental pré- longo processo de crescimento.
-científico — e o nosso mundo, caracterizado por Os biblistas começaram a dar rigorosa atenção
uma abordagem ocidental e científica da realidade. à formação do Pentateuco (os cinco primeiros li­
Para entender o Livro do Gênesis, precisamos entrar vros da Bíblia) quando reconheceram que no Livro
em seu mundo, determinar o que ele significava em do Gênesis havia dois nomes hebraicos diferentes
seu tempo e, só então, ousar dizer o que significa atribuídos à Divindade, a saber, YHWH, o nome
agora para o nosso mundo. próprio do Deus de Israel (O S enhor), e Elohim,
Neste comentário, interpretaremos o Livro do traduzido simplesmente por Deus. A presença des­
Gênesis em contraste com seu ambiente histórico. ses nomes diferentes em diversas narrativas coinci­
Para isso, recorreremos às descobertas da arqueolo­ dia com diferenças de estilo e vocabulário nas nar­
gia e aos instrumentos críticos da análise literária. rativas em que apareciam. As contradições dentro de
Entretanto, antes de nos voltar para o texto bíblico narrativas (por exemplo, compare Gn 6,19 com 7,2),
propriamente dito, queremos examinar como o Livro que havia muito tempo confiindiam os biblistas, fo­
do Gênesis veio a ser escrito e as formas em que foi ram solucionadas quando da divisão desses relatos,
escrito. com base no uso do nome divino, no que eram ori­
ginalmente duas tradições ou fontes independen­
A formação do livro do G ênesis tes. Outra confirmação da teoria sobre duas ou mais
O Livro do Gênesis é a narrativa da pré-história tradições separadas está evidente na ocorrência de
de Israel. Israel tomou-se nação apenas quando duas, às vezes três versões da mesma história (Gn
passou a ocupar e governar a terra de Canaã. Essa 12,10-20/Gn 20/Gn 26,1-11).
nação veio a se identificar como federação de tribos Pela análise cuidadosa dos dados, os biblistas
em aliança com um Deus que tirara seus ancestrais foram levados a concluir que pelo menos quatro
do Egito e os conduzira à terra prometida. O Êxodo autores contribuíram para a formação do Pentateuco.
foi interpretado como o instante do nascimento dessa São identificados como autores javista (J), eloísta (E),
nação. Mas, à medida que essas tribos consolida­ sacerdotal (priestly, P) e deuteronômico (D), também
vam suas tradições que falavam das ações de Deus citados como “fontes” ou “tradições”. Desses quatro
em seu passado, começaram a perceber que, mesmo autores, somente o javista, o eloísta e o sacerdotal
antes do Êxodo, Deus estava em ação, conduzindo- encontram-se no Livro do Gênesis, por isso omitire­
-os àquele momento. O Êxodo passou a ser visto mos de nosso exame a fonte deuteronômica.
como 0 auge de um processo que se iniciou quando A fonte JAVISTA é assim chamada porque usa o
Deus chamou Abraão pela primeira vez e prometeu nome YHWH (grafado Jahweh em alemão, daí a
fazer dele uma grande nação. abreviatura J) para a Divindade. A javista é a fonte
Posteriormente, Israel começou a ver sua his­ mais primitiva, originária do século X a.C., a era
tória no contexto da história universal e juntou à de David e Salomão. As narrativas da tradição 55
GÊNESIS

javista caracterizam-se por um vigoroso estilo de sença dessas três fontes no Gênesis e vai se referir
conto popular e uma pitoresca descrição de perso­ com ffeqüência à forma ou contexto final de uma
nagens, destacando o javista como autor de grande história. Se essa forma ou contexto final vem do
habilidade. O autor deixa que as ações dos perso­ autor sacerdotal ou de um redator mais tardio será
nagens falem por si mesmas e raramente faz um deixado aberto.
julgamento moral de seu comportamento. A apre­
sentação antropomórfica de Deus na tradição javista Formas literárias no G ênesis
dá um caráter muito pessoal à Divindade. Para o Ao interpretar o livro do Gênesis, não podemos
javista. Deus envolve-se ativamente na história da ignorar as formas em que foi vazado. A interpreta­
humanidade e, em especial, na de Israel. O javista ção baseia-se na forma. Se ouvimos uma narrativa
começa a narrativa com a criação (Gn 2,4b-31), que começa; “Era uma vez...”, não temos dificulda­
apresentando a história da humanidade como o pano de para reconhecer que o relato é um conto de fadas.
de fundo contra o qual o Senhor chama Abraão e Jamais o confundiriamos com um relato histórico,
lhe faz uma promessa que só o Êxodo e a conquista porque conhecemos sua forma. Mas as formas do
de Canaâ realizam plenamente. O tema de promessa Livro do Gênesis já não são do conhecimento geral.
e concretização predomina na apresentação javista Neste último século, os biblistas delinearam e iden­
da história patriarcal. tificaram essas formas. Como este eomentário ba­
A fonte ELOÍSTA usa o nome Elohim para o Deus seia-se no seu trabalho, é importante “redescobrir”
de Israel até Ex 3,14, onde o nome YHWH é revela­ as formas desse livro.
do a Moisés. Em geral se acredita que essa fonte A narrativa é a principal classificação literária
date do século IX a.C. e que tenha se originado no que encontramos no Gênesis. Uma narrativa é sim­
reino do Norte. A fonte eloísta está tão entrelaçada
plesmente uma história. Referir-se a sua forma como
com a javista, que é difícil separar as duas fontes
narrativa não é desvalorizar o livro nem depreciar,
em todas as situações. Como a fonte eloísta ficou
de modo algum, seu sentido teológico. Na verdade,
subordinada à javista, o que resta da narrativa eloísta
o modo mais característico de Israel falar sobre a
muitas vezes está incompleto. Onde encontramos
Divindade é narrar a história dos atos de Deus em
um relato completo, por exemplo, Gn 22, o eloísta
sua vida como nação.
parece ter sido um autor habilidoso. Recorre a sonhos
e anjos, fazendo-os o meio de comunicação divina, A forma de narrativa que predomina no Gênesis
em vez de permitir o contato direto com a Divindade, é a saga. As sagas são histórias fundamentadas em
como faz a javista. O eloísta é mais notável por sua fatos, mas que, ao ser transmitidas, são expandidas
sensibilidade moral, evidente em suas tentativas de e realçadas por elementos irreais. As sagas origi­
justificar, explicar ou atenuar as maldades dos an­ nam-se em nível oral e combinam tradição e imagi­
cestrais de Israel. Começa sua narrativa no período nação. Não é raro encontrarmos relatada em uma
patriarcal e pode ser encontrado pela primeira vez saga a intervenção direta de Deus nos negócios hu­
em Gn 20, embora talvez em forma fragmentária já manos. Na saga, o incrível simplesmente faz parte
se encontre em Gn 15. dos acontecimentos. As sagas explicam por que uma
O autor SACERDOTAL também prefere o nome coisa é da maneira que é (sagas etiológicas), por
Elohim para a Divindade, até a época de Moisés que algo ou alguém tem determinado nome (sagas
(Ex 6). Embora a obra sacerdotal deva ter sido es­ etimológicas), por que as tribos se relacionam da
crita durante o período do Exílio na Babilônia (c. maneira como o fazem (sagas etnológicas), por que
550 a.C.), as fontes usadas por este autor vêm de um certos lugares ou atos são considerados santos
período muito mais primitivo. O estilo sacerdotal (sagas cultuais), ou por que determinado local tem
tende a ser repetitivo e seus relatos são construídos características singulares (sagas geológicas). Todos
com rigor, o que dá um tom bastante solene à obra. esses tipos de sagas estão evidentes no Livro do
O autor sacerdotal preserva o caráter transcendente Gênesis.
de Deus, evitando antropomorfismos em sua descri­ Nas sagas patriarcais do Gênesis, o mundo é
ção da Divindade. O Gênesis começa com o relato visto em termos de famílias. Jacó não é mais Jacó,
sacerdotal da criação. Esse autor é responsável pelas é Israel; Esaú é o pai dos edomitas. A história do
genealogias que formam a estrutura do Livro do relacionamento entre essas tribos toma-se a narra­
Gênesis. O formato cronológico imposto ao Penta- tiva do relacionamento entre esses irmãos. Os pa­
teuco também tem origem no autor sacerdotal. triarcas são figuras exageradas. Não mais represen­
Em geral se afirma que o autor sacerdotal é tam pessoas históricas; passam a personificar as ca­
responsável pela redação final do livro do Gênesis. racterísticas de suas tribos.
Acredita-se que a tradição sacerdotal inclui as nar­ Muitas sagas individuais foram reunidas para
rativas javista e eloísta mais primitivas. Entretanto, formar a narrativa dos patriarcas. Essas narrativas
há alguma evidência de que um redator ou editor tomaram-se parte de um contexto maior e, assim,
mais tardio realmente combinou os escritos javista, seu significado original sofreu mudanças. A medida
56 eloísta e sacerdotal. Este comentário aceita a pre­ que nos familiarizarmos com as narrativas, dare-
GÊNESIS 1

mos atenção especial aos níveis de sentido adqui­ tiva, Esses poderes continuam a afetar nosso mundo
ridos por uma narrativa ao se tomar parte do Livro por meio do culto.
do Gênesis. A forma de expressão predominante entre os
Os biblistas continuam a discutir sobre a pre­ vizinhos de Israel era o mito. Era inevitável que
sença do mito no Livro do Gênesis. O fato de en­ Israel apreciasse os temas mitológicos do antigo
contrarem ou não o mito no Gênesis depende da Oriente Próximo. Entretanto, Israel não absorveu
definição que dêem ao mito. A definição comum simplesmente a mitologia das nações que a cerca­
de mito como narrativa sobre deuses e deusas o vam; essa mitologia foi mudada e adaptada para se
exclui da Bíblia, porque Israel aceita apenas YHWH harmonizar à visão característica que Israel tinha
como seu Deus. Mas não é preciso definir o mito de Deus e do mundo. Encontraremos, principal­
tão restritamente. O mito é uma forma de pensar mente em Gn 1-11, temas mitológicos dos quais
sobre a realidade. O que o distingue é o fato de fa­ Israel se apropriou, mas que transformou. Há outras
lar sobre a realidade de maneira simbólica em ter­ formas no Livro do Gênesis, mas delas trataremos
mos da interação dos poderes divinos na era primi­ no contexto do próprio comentário.

COMENTÁRIO
A HISTÓRIA PRIMEVA Primórdios, que precisava ser “aproveitado” para que
ocorresse a criação. Sobre esse caos aquoso, o so­
Gn 1,1-11,27
pro de Deus começa a agir. O texto hebraico traz
Os onze primeiros capítulos do Gênesis cha­ literahnente “sopro de Deus”, não “vento poderoso”,
mam-se “história primeva” porque tratam da história como em diversas traduções (v. 2). Embora a tradu­
da humanidade, não especificamente da de Israel. ção “vento poderoso” capte parte do sentido do ori­
A perspectiva universalista do autor javista é vista ginal, não leva em conta o fato de Deus ser a fonte
na disposição da história de Israel dentro do contex­ desse vento.
to maior da história humana, que se inicia com a O relato sacerdotal caracteriza-se pela repeti­
criação. A narrativa javista é agora introduzida e ção. Usando uma estrutura que permanece mais ou
suplementada pelas tradições do autor sacerdotal, menos constante para cada dia da criação, o autor
mas o tema dominante ainda é o do javista; por alcança um máximo de repetição, com suficiente
causa do pecado, a humanidade afasta-se cada vez variação para manter o relato avançando em veloci­
mais de seu Deus. dade rítmica. Esse ritmo dá ao relato seu aspecto de
hino. Um tom de solenidade impregna todo o relato
O RELATO SACERDOTAL DA CRIAÇÃO
da criação. A estrutura repetida é como se segue:
1. Anúncio', “e Deus disse...”
Gn 1,1-2/4a 2. Ordem'. “Que...”
O Gênesis começa com um relato da criação, 3. Relato'. “E assim aconteceu...”
pelo autor sacerdotal, altamente estruturado e seme­ 4. Avaliação'. “Deus viu que isso era bom...”
lhante a um hino. Embora haja semelhanças entre 5. Estrutura temporal'. “Houve uma tarde, hou­
este e o relato babilônio da criação, o Enuma Elish, ve uma manhã...”
0 autor sacerdotal reinterpretou e reescreveu o mito
antigo para que refletisse a teologia característica Além desse padrão estrutural, o autor correla­
ciona os atos de criação dos três últimos dias com
de Israel. Em contraste com o Enuma Elish, a cria­
ção não resulta de conflito. Não há guerra entre os os dos três primeiros dias.
Primeiro dia Luz
deuses, nada que se oponha a Deus. Em vez disso,
somos informados, em uma seqüência cuidadosa Segundo dia Firmamento, separação das águas
organizada, que Deus cria o mundo unicamente superiores e inferiores
pelo poder da palavra divina. Terceiro dia Terra e vegetação
Quarto dia Luminares no firmamento do céu
1,1-25 A criação do mundo. O v. inicial identi­
fica Deus como o ator principal e a criação como o Quinto dia Seres vivos do mar e pássaros
Sexto dia Animais terrestres e a humanidade
resultado da ação de Deus. O segundo v. nos diz que,
antes do ato criador de Deus, o mundo era massa A criação da luz no primeiro dia correlaciona­
informe que existia como caos aquoso. Essa descri­ -se com a que produz luz no quarto dia. De modo
ção do mundo está de acordo com a mitologia do semelhante, o firmamento, que separa as águas su­
antigo Oriente Próximo. Observe que a treva existe periores das águas inferiores, toma-se hábitat dos
— não é criada por Deus. A origem da treva, que pássaros, enquanto as águas inferiores enchem-se
simbolizava o mal e o terror no mundo antigo, fica de peixes. Os animais e a humanidade habitam a
envolta em mistério. O abismo era o oceano dos terra e comem sua vegetação. Este quadro alta- 57
GENESIS 1

mente esquematizado realça a ordem da criação. do universo criado, não deuses que mereçam ser
Nada é deixado ao acaso ou ao capricho, tudo é bem cultuados.
organizado e se encaminha como planejado pelo O céu que separa as águas superiores das águas
Criador. inferiores está cheio de pássaros, e as águas inferio­
O primeiro ato da criação é a luz, embora o sol res, cheias de peixes. No sexto dia, são criados os
e as estrelas, que dão luz, só sejam criados no quarto animais e a humanidade para habitar a terra, que
dia. O autor não se preocupa com fatos científicos, foi criada no terceiro dia.
mas com um universo organizado, e a luz é neces­ 1,26-31 A criação da humanidade. O relato
sária para enxergar. O autor também pode ter sido todo da criação prepara o caminho para a criação da
forçado a pôr a luz primeiro porque, no Eluma humanidade. Foi criado um hábitat para a humani­
Elish, ela é propriedade dos deuses e deles emana, dade. O tempo foi criado como medida pela qual a
sendo mencionada em primeiro lugar nesse relato humanidade governará sua vida. E, por fim, quando
da criação. Para nosso autor, a luz não é mais pro­ tudo está pronto, são criados o homem e a mulher.
priedade dos deuses e sim elemento do mundo cria­ Já que o autor sacerdotal descreve a criação da huma­
do. Deus chama à luz “dia” e à treva, “noite” (v. 5). nidade com mais detalhes do que os atos criadores
No antigo Israel, dar nome exprimia o poder sobre anteriores, e já que este ato é o último na série, o
0 que recebia o nome. Deus dá nome ao dia e à autor está indicando que a humanidade é o ponto
noite porque tem autoridade sobre eles. Da mesma alto de toda a criação. O caráter especial dessa cria­
forma. Deus dá nome ao firmamento, à terra e ao ção é salientado pelo fato dé só a humanidade ser
mar. A luz é vista como boa, como o é todo o uni­ descrita como criada à “imagem” e segundo a “seme­
verso criado. Uma vigorosa afirmação da bondade lhança” de Deus (v. 26).
do mundo criado impregna este relato. O parágrafo Nesta parte, há três expressões problemáticas
conclui com a estrutura temporal, em que a tarde que muitas vezes provocam confusão e má interpre­
é mencionada primeiro, depois a manhã, o que re­ tação. Quem são o “nós” em Gn 1,26? O que sig­
nifica ser criado à “imagem” de Deus? Que tipo de
flete a maneira do antigo Israel marcar o tempo —
o dia começava ao pôr-do-sol. criatura é este “homem”, criado macho e fêmea?
O “nós” em Gn 1,26 não é fácil de explicar.
Deus então cria o firmamento (vv. 6-8), que
Várias teorias têm sido apresentadas, mas nenhu­
separa as águas acima do céu das águas inferiores.
ma é inteiramente satisfatória. Alguns biblistas argu­
A cosmologia prefigurada pelo autor é a que ele
mentam que 0 “nós” deve ser explicado como exem­
partilhava com o resto do mundo do antigo Oriente
plo do “plural majestático”. Tal plural majestático
Próximo. A água cercava o mundo todo e era conti­
justifica o fato de, em hebraico, a palavra para
da apenas em cima pelos céus e embaixo pela terra.
Deus {Elohim) estar no plural mas ser encontrada
Ameaçava dominar a terra, em especial quando tem­
com o verbo no singular, indicando que deve ser
pestades e inundações cobriam a terra. O firmamen­ considerada substantivo singular. Supõe-se que, co­
to era descrito como uma tigela virada para baixo, mo Deus é tão grande e poderoso, os antigos he-
para manter as águas superiores no lugar. Essa tigela breus falavam de sua Divindade no plural. Para
tinha janelas, que permitiam à chuva, à neve e ao esses estudiosos, o “nós” em Gn 1,26 é exemplo
granizo alcançar a terra. As águas inferiores apare­ desse plural majestático.
ciam na terra como riachos, lagos e fontes. Como não há outra língua antiga que use esse
Deus impõe limites à expansão da água, para tipo de plural, outros biblistas preferem considerar
que a terra possa aparecer. Da terra Deus faz sur­ 0 uso de “nós” um resquício da mitologia pagã. Nos
gir a vegetação, que é capaz de se reproduzir (“con­ mitos do antigo Oriente Próximo, o deus supremo
tendo em si a sua semente”, v. 11). A fecundida- cria a humanidade em reunião com o conselho celes­
de não é algo que depende dos deuses da fertili­ te. O conselho celeste compõe-se dos deuses meno­
dade; Deus pôs o poder da reprodução na própria res que cercam o deus supremo e agem como conse­
vegetação. Mais uma vez, aqui o autor mostra um lheiros. Essa pode bem ser a origem da expressão,
mundo que não está sob o controle de divindades mas, como o autor evitou outreis sugestões pagãs, é
pagãs. de estranhar o fato de tomar menos cuidado aqui.
Em seguida Deus cria os luminares e os coloca Mais recentemente, argumentaram que o “nós”
no céu. O autor toma o cuidado de evitar as pala­ de Gn 1,26 deve ser entendido como artifício retó­
vras “sol” e “lua”, usando, em vez delas, as expres­ rico sem muita importância. É algo como alguém
sões “o grande luminar” e “o pequeno [luminar]” dizer “Vamos fazer isso”, depois de debater consigo
(v. 16). No mundo pagão antigo, o sol e a lua eram mesmo sobre uma atitude a tomar. Talvez o proble­
considerados divindades. Na verdade, ao evitar o ma do “nós” em Gn 1,26 nunca seja solucionado,
uso dessas palavras, o autor está dizendo: “Veja o mas essas teorias são ao menos plausíveis, se não
que outras nações consideram divindades! Não pas­ inteiramente satisfatórias.
sam de um ‘grande luminar’ e um ‘pequeno lumi- A fim de determinar que tipo de criatura é o
58 nar’ no céu”. O sol e a lua são apenas elementos ser humano, é essencial entender o que significa a
GENESIS 2

palavra “imagem”. Com frequência, acredita-se que O RELATO JAVISTA DA CRIAÇÃO E DO


isso signifique ser a humanidade dotada de alma e PECADO E A GEOLOGIA SACERDOTAL
que a alma existe à imagem de Deus. Isso não DE ADÃO
podería estar mais longe da intenção do autor de
Gn 1. A percepção de que a pessoa humana com­ Gn 2/4b-5,32
põe-se de corpo e alma é idéia nitidamente grega. Embora esteja depois do relato sacerdotal, o
De fato, a língua hebraica nem sequer tem uma relato javista da criação é, na verdade, o mais antigo
palavra para “alma”. De que maneira, então, a dos dois relatos. Foi escrito no estilo de um conto
humanidade “imagina” Deus? No mundo antigo, popular, sem a repetição nem a estrutura cuidado­
“imagem” era usada com referência a uma estátua samente delineada que caracteriza o relato sacer­
do rei enviada a partes remotas do reino, onde o dotal. A criação é formada pelo S enhor Deus, não
rei não podia estar presente em pessoa. A “ima­ chamada a existir pelo poder da palavra divina. O
gem” devia ser o representante do rei naquela re­ centro dessa narrativa não é a criação do mundo
gião. Se aplicarmos isso ao Gênesis, ser criado à como tal, mas o relacionamento do homem e da
imagem de Deus é ser representante de Deus na mulher um com o outro e com o mundo.
terra, o que é salientado pela sentença seguinte do 2,4b-9 A criação do “Hum ano”. Nesse relato
v. 26, onde é concedido à humanidade o domínio da criação, o que existe antes não é um caos aquo-
sobre a terra. Como Deus é soberano do reino so, como em Gn 1, mas um deserto. A terra é vista
celeste, assim a humanidade, como representante como seca por duas razões: não há água e não há
de Deus, é soberana do reino terrestre. E uma vi­ ninguém para cultivar o solo. O pano de fundo
são bastante enaltecedora da humanidade. dessa narrativa da criação é claramente a experiên­
O problema decisivo destes vv. surge mais das cia do agricultor, para quem a água e o cultivo do
limitações das línguas ocidentais do que do texto solo são necessários a fim de fazer a terra produzir
hebraico original. Em hebraico, 'adam geralmente vegetação. A água ajuda a criação, enquanto em
significa “humanidade”. Para referir-se a um indi­ Gn 1 ela teve de ser confinada para que a criação
víduo do sexo masculino, o hebraico usava outra prosseguisse.
palavra. Em Gn 1,26, a palavra é 'adam, assim, o A primeira coisa formada pelo S enhor é “o Hu­
texto de 1,27 pode ser traduzido: “Deus criou a mano”, o que não deve ser entendido como um indi­
humanidade à sua imagem... criou-os macho e víduo chamado Adão; antes, “o Humano” é toda a
fêmea”. A humanidade não foi criada como um humanidade. O uso do artigo definido “o”, diante de
tipo de ser andrógino; consiste, isso sim, do macho “humanidade” no texto hebraico deixa claro que o
e da fêmea. Juntos, homem e mulher constituem a autor vê esta criatura original como representante
humanidade. da humanidade indiscriminada e não como indivíduo.
2,l-4a A santificação do sábado. O descanso A criatura humana é feita do solo. Em hebraico,
do sábado está associado ao descanso de Deus no “humano” e “solo” são palavras de som semelhan­
sétimo dia. Em seis dias, houve oito atos de cria­ te {'adam, 'adamah) e, assim, têm um relaciona­
ção distintos. O autor variou a estrutura mencio­ mento mútuo especial. Este trocadilho é caracterís­
nada acima, colocando dois atos de criação no ter­ tico do autor javista. Usando duas palavras de sons
ceiro e no sexto dias e, assim, consegue manter a semelhantes, o autor consegue focalizar a atenção
estrutura de seis dias, apesar de haver oito atos de do leitor no relacionamento entre elas. Desse modo,
criação. Isso é feito para realçar o significado do é salientado o relacionamento entre a humanidade
sábado. O descanso no sábado ordenado nos man­ e o solo. A criatura humana vem do solo e por isso
damentos do Livro do Êxodo (Ex 20,8) aqui está depende dele para viver.
ligado aos primórdios do mundo; está atado à or­ O S enhor Deus insufla o hálito da vida no
dem criada. “Humano” e este se toma um “ser vivo” (v. 7). No
passado, isso foi interpretado como a criação da
alma, mas, como mencionamos acima, a língua
CONCLUSÃO
hebraica não tinha uma palavra para “alma”. “O
O relato sacerdotal da criação é reflexão teo­ Humano” toraa-se um ser vivo. A humanidade vive
lógica sobre o mundo que o autor conhece. É um porque o hálito do S enhor Deus está nela; quando
mundo no qual Deus é visto como Ser poderoso, 0 S enhor Deus sai, ela morre. Todo hálito, de toda
capaz de criar simplesmente pronunciando uma pessoa, depende diretamente do S enhor Deus. Deve
palavra. Deus é visto como estando fora do uni­ ser notado que os animais também são seres vivos
verso que cria. A Divindade transcende a ordem (2,19). Os seres humanos e os animais são criaturas
criada. A humanidade é vista como o ponto alto vivas, que respiram. Distinguem-se uns dos outros
da criação. O mundo em que a humanidade vive pelo fato de o S enhor Deus falar à criatura humana,
foi organizado por Deus, mas, como representante mas não aos animais. Além disso, a criatura huma­
de Deus na terra, a humanidade deve ter domina­ na dá nome aos animais, o que indica o controle da
ção sobre o mundo. humanidade sobre o mundo animal. . 59
GÊNESIS 2

Depois de formar a criatura humana, o S enhor o relacionamento conjugal, como indica o último
Deus passa a criar um lugar para a humanidade V. da narrativa (v. 24). Não podemos esquecer que,
habitar. Isso é diferente de Gn 1, onde o habitat foi ao descrever esse relacionamento, o autor escreve
criado primeiro e só mais tarde as pessoas foram da perspectiva do século X a.C. e apresenta a
criadas para viver nele. Aqui, o Senhor Deus cria mulher dessa perspectiva. A posição da mulher era
um jardim (v. 8) que se assemelha a um parque de apoio ao marido. Ela é, na tradução literal do
com árvores, não a um jardim de plantas e flores. texto hebraico “um auxilio [ou ajuda] adequado”.
Esses jardins semelhantes a parques eram cultiva­ No Antigo Testamento, “auxílio” significa quem
dos por grandes reis do antigo Oriente Próximo. dá apoio ou força, quem possibilita que os outros
Davam sombra, eram o tipo de lugar onde um rei realizem seu destino. Muitas vezes, no Antigo Tes­
podia repousar. É o jardim do Senhor Deus, que o tamento, Deus é chamado “auxílio” (Dt 33,7; SI
o usa na fresca da tarde para “repousai” . 33,20; 70,6 etc.). Ninguém afirmaria que Deus é
O autor menciona duas árvores que terão im­ subserviente a quem quer que seja. A narrativa não
portância em Gn 3, a árvore da vida e a árvore do é sobre a essência da mulher, mas sim sobre sua
conhecimento do que seja bom ou mau. A árvore da dignidade na instituição do casamento. A mulher é
vida aparece de novo apenas no fim de Gn 3 e por destinada a ser alguém em quem o homem encontra
isso podemos dizer que desempenha papel secundá­ apoio e força.
rio na narrativa. A árvore da vida era símbolo de — Em contraste com o relato sacerdotal, a cria­
imortalidade na mitologia do antigo Oriente Próxi­ ção não aparece como processo gradual e organi­
mo e, nessa narrativa, desempenha o mesmo papel. zado. Em vez disso, é feita uma coisa, depois outra,
Enquanto o primeiro casal fica no jardim e tem até Deus ficar satisfeito com os resultados. Como a
acesso a essa árvore, sua vida não está ameaçada. criatura humana, os animais são formados do solo
Depois que são expulsos do jardim, ficam sujeitos e se tomam “seres vivos” (2,19). A criatura humana
à morte. Em contraste, a árvore do conhecimento do e os animais compartilham uma origem comum.
que seja bom ou mau desempenha papel essencial Diferenciam-se pelo fato de a criatura humana dar
na narrativa seguinte, e consideraremos seu simbo­ nome aos animais, o que expressa autoridade sobre
lismo no contexto dessa narrativa. eles. Além disso, como já afirmamos, o S enhor
2,10-14 Os quatro rios. Em geral, reconhece­ Deus fala com a criatura humana, mas não se di­
-se que estes vv. interrompem a narrativa do javista, rige aos animais.
em nada contribuem para seu andamento. O v. 15 Embora as criaturas humanas e os animais se­
parece ser continuação do v. 9, não dos vv. 10-14. jam seres vivos, os animais não se mostram “auxí­
Além disso, essa inserção contradiz o que foi dito lios” adequados. O S enhor Deus tenta mais uma
antes no texto, sobre a localização do Éden (v. 8). vez formar um auxílio adequado e, dessa vez, for­
Segundo essa passagem, o Éden situa-se ao norte ma a mulher de uma das costelas do “Humano”
e os quatro grandes rios que cercam o mundo cor­ que Deus faz “cair num torpor”, para que o ato de
rem a partir dele. Somente dois rios são identificá­ criação não seja testemunhado. O ato de criação
veis — o Tigre e o Eufrates. O Pishon e o Guihon permanece um mistério divino.
não podem ser identificados com certeza, mas é Um dos aspectos mais admiráveis dessa passa­
provável que se refiram a rios na mesma área geral gem é 0 fato de o S enhor Deus formar a mulher
que o Tigre e o Eufrates. O propósito de tal inser­ de uma costela (v. 22). Não temos paralelos na
ção parece ser ligar o jardim de Éden a uma área mitologia do antigo Oriente Próximo e simples­
geográfica específica, na tentativa de dar caráter mente desconhecemos o que a costela simboliza
histórico à narrativa. no texto. Sabemos que, na língua suméria, “coste­
2,15-17 A ordem. A criatura humana é estabe­ la” e “vida” são a mesma palavra. A deusa da vida
lecida no jardim e recebe a tarefa de cultivá-lo e é, ao mesmo tempo, a “ S enhoru da Costela”. É
guardá-lo, repercussão da mitologia do antigo Oriente interessante notar que na eonelusão do capítulo 3
Próximo, na qual a hum ^idade é criada para fazer 0 homem chama a mulher de “Eva”, forma da
0 trabalho dos deuses. É dada a ordem para não palavra hebraica para “vida”, e reconhece que ela
comer da árvore do conhecimento do que seja bom será “a mãe de todo vivente” (3,20). A ligação da
ou mau, sem qualquer explicação para essa proibi­ vida e da costela com a mulher talvez indique que
ção. É simplesmente declarado que o S enhor Deus no fundo da narrativa está algo semelhante ao tro­
criou a humanidade e impôs alguns limites à ativi­ cadilho sumério.
dade humana. Quando a mulher é levada ao homem (v. 23),
2,18-24 A criação da mulher. O motivo dado ele exclama em forma poétiea que, dessa vez, foi
pelo Senhor Deus para a criação da mulher é “Não eneontrado um auxílio adequado. Ele já não está
é bom para o homem ficar sozinho”. Embora muitas sozinho. Em hebraico, há um trocadilho com as
vezes esse aspecto da narrativa tenha sido interpre­ palavras “homem” e “mulher” { ’ish, 'ishshá) que
tado como referência à natureza social da humani- realça o relacionamento especial entre eles. A mu­
60 dade, o que o autor pretende realmente é justificar lher vem do homem e, por isso, depende dele. Isso
GÊNESIS 2

é consistente com a posição da mulher na socieda­ deste texto a serpente é identificada como o diabo.
de do antigo Oriente Próximo, no século X a.C. Essa identificação só acontece no século I a.C.(Sb
Essa passagem tem sido usada com freqüência para 2,24; Hen 69,6).
fundamentar a opinião de que a mulher é inferior O que, então, a serpente representa? Em Canaâ,
ao homem e subserviente a ele. Com certeza, essa a serpente era associada aos cultos de fertilidade.
não é a intenção do autor. Está claro que a mulher Sabemos que esses cultos eram fonte constante de
não é inferior ao homem. Sua criação misteriosa tentação para Israel, que sucumbiu muitas vezes a
por Deus, de substância humana, acentua a nature­ ela, como indica o Antigo Testamento. A escolha de
za comum que ela compartilha com o homem e o uma serpente para representar o tentador da huma­
laço que os une. O fato de ser “ajuda” dele não nidade é a maneira de o autor dizer: “Não se envol­
indica subserviência. va com serpentes (isto é, os cultos de fertilidade);
O V. 24 é, de maneira clara, a conclusão do ca­ eles só causarão problemas, como fizeram para o
pítulo 2 e mostra que nossa narrativa é uma etiologia, primeiro homem e a primeira mulher”. E um jeito
uma narrativa sobre o passado que explica a realida­ de advertir Israel para que se mantenha afastado
de atual. Essa narrativa nos diz por que homens e dos cultos de fertilidade.
mulheres são atraídos uns aos outros sexualmente e A narrativa de Gn 3 não diz nada sobre os
se casam. As palavras “deixar” e “ligar-se” são pala­ motivos da serpente para tentar o homem e a
vras de aliança e sugerem que o casamento é visto mulher. Na verdade, a fonte do próprio mal perma­
aqui como relacionamento de aliança. nece um mistério em Gn 3. O que a narrativa nos
diz é que a presença do mal no mundo deve-se à
CONCLUSÃO decisão da humanidade de se opor à ordem de Deus.
O relato javista da criação tem alcance muito Muitos biblistas tentaram explicar por que a
mais local que o relato sacerdotal. Trata do relacio­ serpente trava conversa com a mulher, não com o
namento humano com o solo e do relacionamento homem. Suas respostas vão desde a interpretação
entre homem e mulher, não da criação de um uni­ da mulher como portadora de fraqueza inerente,
verso. Obviamente originária do meio agrícola, a curiosidade incurável, até a perspectiva de que é
narrativa apresenta a humanidade como originária muito mais forte que o homem. Se ela é levada a
do solo e dependente do solo para viver. Na morte, pecar, o homem automaticamente a seguirá. O texto
a humanidade voltará ao solo de onde veio. A mu­ não confirma nenhuma dessas opiniões. Está claro
lher é a única ajuda adequada ao homem, pois é que o autor descreve ambos, o homem e a mulher,
formada de carne humana. A atração dos sexos e dando atenção à serpente. A mulher come o fruto
a instituição do casamento são descritas como o e o dá também ao homem “que estava com ela” (v.
destino natural do homem e da mulher, resultante 6). O fato de a mulher ser apresentada primeiro
da maneira como foram criados. Por sua vez, o pode ser explicado simplesmente como estratage­
S enhor Deus não está distante da criação, mas sim ma literário que mantém a narrativa em movimento.
diretamente envolvido no ato da criação e preocu­ A serpente é apresentada primeiro, em seguida a
pado com todas as criaturas. mulher, depois o homem. Quando Deus vem ao
jardim, dirige-se primeiro ao homem, em seguida
2,25-3,7 O pecado de Adão e Eva. O último à mulher, depois à serpente. Quando Deus os cas­
V. do capitulo 2 é transicional e serve mais para tiga, castiga primeiro a serpente, em seguida a
introduzir a narrativa seguinte do que para con­ mulher, depois o homem. Esse movimento de ser-
cluir a anterior. Que o homem e a mulher estão pente-mulher-homem, homem-mulher-serpente,
nus, sem contudo sentir vergonha, é mais do que a serpente-mulher-homem mantém um fluxo cons­
mera observação de que não estão vestidos. Como tante na narrativa e não tem grande importância
ficará óbvio mais tarde, a nudez simboliza seu rela­ além desse fato. Está claro que a mulher está in­
cionamento com Deus. A essa altura da narrativa, cluída na ordem de Deus, embora não seja o desti­
esse relacionamento com Deus ainda está intato; natário explícito dessa ordem (2,17). E é óbvio,
assim, a nudez não provoca vergonha. Somente com como mencionamos acima, que o homem está junto
a ruptura desse relacionamento sua nudez se toma da mulher durante toda a cena da tentação.
motivo de constrangimento. A cena da tentação tem todas as características
Um novo personagem é agora introduzido na de uma descrição universal da tentação. É a ma­
narrativa — a serpente. Essa criatura é caracteriza­ neira como todo ser humano é tentado. A serpente,
da como “astuta”, palavra que tem conotações de com uma pergunta inicial, insinua que Deus tem
esperteza e inteligência e contrasta com a ingenui­ algum motivo oculto para dar essa ordem, que Deus
dade da mulher. Em hebraico, “astuto” ( ‘arum) está escondendo algo da humanidade. A mulher
forma trocadilho com “nu” ( 'arummim). Este troca­ sai em defesa de Deus, mas a serpente consegue
dilho realça o fato de homem e mulher ficarem atrair sua atenção e prossegue com três meias-ver-
conscientes de sua nudez por causa da astúcia da dades: 1) “vossa morte não está marcada”; 2) “vos­
serpente. É digno de nota que em nenhuma parte sos olhos se abrirão”; 3) “sereis como deuses, pos- 61
GENESIS 3

suindo o conhecimento do que seja bom ou mau” criação humana. O problema é que a humanidade
(vv. 4-5). E verdade que, quando o homem e a ultrapassou o limite imposto por Deus e se apro­
mulher comem, não morrem, porém ficam sujeitos priou desse conhecimento. Agora a humanidade
à morte e, de fato, morrerão. É verdade que seus existe na posição de decidir por si mesma o que é
olhos se abrem, mas não da maneira como previ­ melhor. Define-se em rebelião contra seu Criador.
ram. Agora estão conscientes, como nunca estive­ A humanidade torna-se realmente “como
ram antes, de toda uma nova área de experiência Deus”, no sentido de que agora toma as próprias
humana — a experiência de culpa e vergonha. decisões quanto ao que é melhor para si mesma,
Sabem que estão nus. E, por fim, tomam-se como mas as toma como criatura, sem a sabedoria e a
Deus, conhecendo o bem e o mal, mas não como visão do Criador. Quem sabe o que é melhor para
esperavam. Para determinar o que significa ser a criatura — Aquele que a criou ou a própria cria­
“como deuses, possuindo o conhecimento do que tura? A humanidade toma as próprias decisões mas
seja bom ou mau” precisamos tentar explicar o elas não têm a amplitude e a profundeza da sabe­
significado do símbolo da árvore do conhecimento doria divina.
do que seja bom ou mau. A conseqüência mais imediata do pecado do
Há muitas teorias quanto ao significado da homem e da mulher é a consciência da nudez, que
árvore do conhecimento do que seja bom ou mau procuram remediar costurando folhas de figueira e
em Gn 3. Embora algumas delas sejam atraentes, em delas fazendo tangas (v. 7). Quase imediatamente
geral baseiam-se em posições filosóficas atuais que vemos a futilidade desse gesto. No diálogo que se
têm pouca relação com o que na verdade está em segue entre o S enhor Deus e o homem, notamos
discussão no relato do Gênesis. A pergunta a que que este, em vez de responder à pergunta do Senhor
nos devemos ater ao lidar com este símbolo é: O Deus “Onde estás?” dá a razão de ter-se escondido
que signifiea a expressão “conhecimento do que — “porque estava nu”. A razão é apropriada, apesar
seja bom ou mau” nesta narrativa? Que tipo de do fato de não parecer verdade. Ele não está nu,
conhecimento Deus proíbe? está vestido com folhas de figueira. Entretanto, em
E muito difícil determinar o significado desse relação ao Senhor Deus, está nu, isto é, seu rela­
símbolo, pois não temos nenhum símbolo compa­ cionamento com Deus foi rompido e assim perma­
rável em outra literatura do antigo Oriente Próxi­ nece. A humanidade não pode “encobrir” sua cul­
mo. Nem é o símbolo, como tal, tratado em outra pa e sua vergonha e restaurar seu relacionamento
parte do Antigo Testamento. Entretanto, encontra­ com o S enhor Deus. O único que pode remover a
mos a expressão “conhecer o bem e o mal” no culpa e a -vergonha da humanidade é o S enhor
Antigo Testamento. Se descobrirmos o que signi­ Deus, 0 que é simbolizado no fim da narrativa (v.
fica era outros contextos e depois testarmos esse 21), quando o S enhor Deus faz vestiduras para o
significado no contexto do Gênesis, talvez seja homem e a mulher.
possível encontrar um significado plausível da ár­ 3,8-24 As conseqüências. O propósito da in­
vore do conhecimento do que seja bom ou mau. terrogação do homem e da mulher é levá-los à
Em Dt 1,39 e Is 7,15.16, a frase “distinguir o admissão de seu pecado. É interessante notar a
bem do mal” refere-se a um tipo de conhecimento resposta bastante humana que o homem dá, pondo
que os filhos ainda não possuem. São muito jo­ a culpa na mulher e indiretamente até em Deus
vens para isso. Em 2Sm 19,36, Barzilai recusa a (“A mulher que puseste a meu lado”, v. 12). A
oferta do rei para que volte com ele a Jerusalém, mulher, por sua vez, culpa a serpente.
dizendo; “Tenho hoje oitenta anos. Posso ainda dis­ Os castigos que se seguem são expressos em
tinguir o que serve do que não presta?” A inferência forma poética e considerados mais antigos que a
é que, velho, Barzilai está começando a perder suas narrativa em que se encontram agora. A narrativa é
faculdades e por isso não pode prestar serviços ao vista, então, como uma etiologia que explica coi­
rei. Em IRs 3,9 e 2Sm 14,17, a frase “o bem e o sas como as razões pelas quais as serpentes raste­
mal” é usada (embora sem o verbo “conhecer”) no jam, por que filhos são gerados com dor e por que
contexto de julgamentos sábios feitos pelo rei em a lavoura é tão difícil. Esses castigos originam-se
benefício do povo. Em suma, podemos dizer que do mundo em que o autor vive. Refletem as con­
conhecer o bem e o mal acarreta o tipo de conhe­ dições ambientais e sociais encontradas na antiga
cimento necessário para tomar decisões adultas em Palestina.
benefício próprio. A constante luta da humanidade para sobrevi­
Essa definição faz sentido na narrativa do ver aos ataques de serpentes venenosas é realçada
Gênesis? Deus estabelece um limite para a huma­ na primeira maldição (vv. 14-15). A dor sofrida
nidade. A humanidade pode saber muitas coisas, para dar à luz, incompatível com a grande alegria
mas quem decide o que é melhor para ela — o que cerca a dádiva da vida, é atribuída à participa­
Deus que criou a humanidade ou a criatura que foi ção da mulher no pecado. Que o marido a domi­
criada? O capítulo 3 do Gênesis diz que Deus quis nará reflete a posição da mulher na sociedade an­
62 reter o eonhecimento do que era melhor para a tiga (v. 16). A maldição sob a qual o homem tra-
GÊNESIS 4

balha (vv. 17-19) é testemunho do solo palestino, ser ignorado. O sangue de seu irmão assassinado
rochoso e semelhante ao deserto, que tanto dificul­ clama ao S enhor. N o antigo Israel, acreditava-se
ta a lavoura na região. Mas a narrativa não termina que o sangue e a vida estavam ligados de maneira
em tom negativo. A mulher recebe nome, Eva, e se inextricável. Como a vida pertence a Deus, o mes­
tornará de todo vivente. Apesar do pecado e suas mo acontece com o sangue.
consequências, a vida continuará. O S enhor Deus .O castigo de Caim é mais severo que o dos
faz vestiduias para o homem e a mulher, dessa forma primeiros pais. Ele é banido do solo, amaldiçoado
“encobrindo” a culpa e a vergonha dos dois. O cui­ para ser errante. Como no capítulo 3, o castigo do
dado do S enhor Deus pela humanidade não cessa pecador não é a última palavra. Quando Caim cla­
por causa do pecado, mas continua apesar dele. ma contra a severidade de seu castigo, e confessa
Por iniciativa do S enhor Deus, é restaurado o rela­ seu medo de que outros procurem vingar-se dele,
cionamento rompido pelo pecado. o S enhor põe nele um sinal para protegê-lo. Em­
No fim do capítulo 3, a árvore da vida assume bora se afaste da presença do S enhor (v. 16), Caim
importância. Ainda não atuou como parte integrante está misteriosamente sob a proteção de Deus.
da narrativa, mas agora, por causa do pecado, a A narrativa de Caim e Abel está ligada apenas
humanidade tem negado o acesso a ela árvore e é de maneira indefinida à narrativa precedente da
expulsa do jardim. A humanidade não consegue se queda, no capítulo 3. Essa narrativa pressupõe a
apoderar da prerrogativa divina de imortalidade. existência de outras pessoas (v. 14) e de uma socie­
Isso é assegurado pelos querubins postados à en­ dade organizada, em que há profissões distintas e
trada. Atuam como guardiães da árvore da vida e na qual se desenvolveu um culto sacrifical. A his­
impedem a humanidade de voltar ao jardim. Esses tória tem todos os sinais de ter sido reduzida ao
querubins devem ser identificados com os animais mínimo necessário. A preocupação da passagem
alados que guardavam as entradas dos palácios e está inteiramente no pecado de Caim e em seu cas­
templos da Assiria e da Babilônia. A espada fulmi­ tigo subseqüente, deixando muitas perguntas sem
nante representa o relâmpago, quase sempre sím­ resposta. Parece provável estarmos lidando com
bolo da ira divina. uma narrativa outrora de existência independente,
4,1-16 O primeiro homicídio. A narrativa de mas adaptada pelo autor javista para servir a seus
Caim e Abel segue-se à narrativa do pecado da propósitos.
humanidade e representa outra afastamento do Foi sugerido que a preocupação da narrativa
S enhor por parte da humanidade. Os w . iniciais original era a animosidade entre povos de formação
são transicionais. Outrora formavam a introdução e vocação diferentes, especificamente agricultores e
à genealogia que começa no v. 17, mas agora ser­ pastores. Na história, o modo de vida pastoril vence
vem para introduzir os principais personagens de o do agricultor, como é evidenciado pela aceitação
nossa história. O nome de Caim, primogênito de do sacrifício de Abel pelo S enhor. Se essa era a
Eva, significa “procriei”. Não é dada a etimologia preocupação da história original, não é mais o inte­
do nome de Abel, mas a raiz hebraica do nome resse principal da narrativa do Gênesis. Outra manei­
significa “vácuo” e talvez se refira à vida muito ra de justificar a origem da história é vê-la como um
breve de Abel. A desunião desses irmãos é demons­ relato da origem (etiologia) dos qenitas. Os qenitas
trada apenas pela sentença sucinta que contrasta formavam uma tribo que cultuava o S enhor e con­
suas profissões: Caim é agricultor; Abel, pastor. tudo nunca se tomou membro de Israel. Eram ferrei­
A medida que a história se desenrola, move-se ros e metalurgistas, e continuaram a viver como tribo
depressa para o homicídio de Abel e o julgamento nômade por um longo período depois que muitas
de Caim pelo S enhor. Muitos detalhes que interes­ tribos nômades tinham se fixado. Acredita-se que
sariam ao leitor atual são simplesmente ignorados. os membros dessa tribo usavam um sinal ou uma
Não sabemos por que o sacrifício de Caim não era tatuagem na fronte, o que a distinguia de outras tri­
aceitável, nem como Caim descobre que seu sacri­ bos. Essa narrativa sugere que Caim é seu fundador
fício não agradou a Deus. A narrativa concentra-se e a história é contada para justificar as característi­
na reação de Caim, no subseqüente homicídio de cas diferenciadas da tribo qenita.
seu irmão e no julgamento de Caim por Deus. O Embora alguns elementos da narrativa nos aju­
V. 7 sugere que Caim podería ter controlado sua dem a determinar sua intenção original, eles não
cólera. O pecado é apresentado em sentido figura­ mais explicam plenamente o uso que o autor javista
do como “agachado à porta” para tomar posse dele, faz dela. Este é o nível mais importante da história
contudo Caim ainda podia superar o pecado “fa­ para o leitor. Para o autor javista, a história ilustra
zendo 0 bem”. Ele não faz e, por isso, assume a a inclinação da humanidade para o pecado. Desde
plena responsabilidade por seu pecado. o primeiro pecado no jardim, a humanidade conti­
Ao ser interrogado pelo S enhor, Caim mente nua a se afastar do Senhor, tomando-se tão endure­
e depois faz uma pergunta sarcástica (v. 9). Ele é cida no pecado que o S enhor se arrepende de ter
pior do que o primeiro pecador, que procurou ape­ criado a raça humana (6,6). Segundo o autor javista,
nas transferir a culpa. O pecado de Caim não pode é contra a tela de fundo da crescente pecaminosi- 63
GÊNESIS 4

dade do gênero humano que por fim é escolhido Consistente com a teologia javista, o parágrafo ter­
um povo por intermédio do qual toda a humanida­ mina em tom positivo.
de se reconciliará com Deus (12,lss.). Tendo per­ Muitos debates eruditos têm se concentrado
missão para agir como bem entender, a humanida­ no fato de Gn 4,26 afirmar que a humanidade co­
de se encaminha para o pecado. A esperança se en­ meçou a invocar o nome do Senhor a partir da
contra na misericórdia sempre presente do S enhor época de Shet, enquanto a tradição sacerdotal e a
e em seu desejo de salvar. eloísta só introduzem o nome no tempo de Moisés
4,17-26 Genealogia de Caim. Embora a maio­ (Ex 6,2; 3,14). Como somos incapazes de recons­
ria das genealogias do Gênesis sejam atribuídas ao truir com certeza a pré-história das tradições de
autor sacerdotal, esta genealogia de Caim é obra Israel, é impossível conciliar essas duas tradições.
do javista. Que este fragmento é uma tradição à Pode ser que o nome do Senhor fosse conhecido
parte, originalmente não ligada à história de Caim por um pequeno grupo ou tribo e só mais tarde ti­
e Abel, fica evidente com o aparecimento surpre­ vesse se tomado conhecido de todo o povo, mas isso
endente da mulher de Caim. Como não são men­ é altamente especulativo.
cionados outros povos, de onde veio a mulher? Na 5,1-32 A genealogia de Adão. Os primeiros
história anterior, Caim é amaldiçoado: será errante dois vv. deste capítulo lembram a criação da huma­
(vv. 12.16); mas nessa genealogia é construtor de nidade no relato sacerdotal (l,26ss.) e servem de
uma cidade (v. 17) e pai de uma civilização. De transição para a genealogia de Adão baseada naque­
modo semelhante, enquanto Abel foi descrito como la fonte. A relação dessa genealogia com a de Caim
pastor (v. 2), nessa genealogia labal é o pai dos foi mencionada acima e pode ser vista claramente
pastores (v. 20). Ela é introduzida a fim de justi­ na comparação a seguir. A ordem dos nomes na
ficar a origem de cidades e o desenvolvimento da genealogia javista foi mudada para realçar a seme­
civilização com as profissões resultantes. Sua inclu­ lhança entre as duas listas. Os números à esquerda
são preenche a lacuna entre o relato da criação e indicam a ordem em que os nomes aparecem no
0 do dilúvio. texto.
Há pontos de contato entre essa genealogia e a Gn 4,17-26 (J) Gn 5,1-32 (P)
genealogia sacerdotal em Gn 5. Alguns dos nomes 1. Adão 1. Adão
são repetidos (Henoc, Lémek) e outros são simples­ 8. [Shet] 2. Shet
mente variações de nomes que aparecem na genea­ 9. [Enosh] 3. Enosh
logia javista (Mehuiael/Mahalalel; Metushael/ 2. Caim 4. Qenan
Metushálah). Parece que as duas genealogias vêm 5. Mehuiael 5. Mahalalel
de uma fonte comum que passou por um longo pe­ 4. Irad 6. léred
ríodo de transmissão, o que justificaria as diferenças 3. Henoc 7. Henoc
na grafia e na sequência dos nomes. Por trás de 6. Metushael 8. Metushálah
ambas está a tradição de uma lista antediluviana 7. Lémek 9. Lémek
dos reis da Mesopotâmia. Os pontos de contato 10. [Noé] 10. Noé
entre essas tradições e as genealogias do Gênesis Em essência, são genealogias iguais. A refe­
serão mencionados no comentário sobre Gn 5. rência do autor javista a Noé encontra-se em Gn
Inserido na genealogia de Caim está um “cân­ 5,29. A mudança na ordem dos nomes revela a na­
tico de jactância” de Lémek (vv. 23-24). É diferen­ tureza fluida das tradições genealógicas; podiam
te dar genealogia na forma e no conteúdo. Prova­ ser reagrupadas para se adaptar aos propósitos do
velmente foi incluído por mencionar Caim no últi­ autor. Não há dúvida de que a genealogia do capí­
mo versículo. O cântico reflete o orgulho e a arro­ tulo 5 tem relação com a lista antediluviana dos
gância da vingança desenfreada e é usado pelo ja­ reis da Mesopotâmia. Em ambas as listas a sétima
vista como outro exemplo da pecaminosidade do posição tem significado especial. Na lista mesopo-
gênero humano. A desobediência dos primeiros pais tâmica, o nome do sétimo rei, Enmeduranna, é o
levou a uma sempre crescente rebelião da humani­ mesmo da capital que servia como centro do culto
dade contra Deus — primeiro o homicídio e agora do deus sol. Talvez isso explique por que Henoc,
a vingança injustificada. À medida que a civiliza­ o sétimo na lista sacerdotal, viveu precisamente
ção progride, o mesmo acontece com a rebelião da 365 anos, mesmo número de dias do ano solar.
humanidade. Acreditava-se que o sétimo rei era levado para a
Um fragmento de Shet está anexado à genealo­ companhia dos deuses. Isso talvez explique a refe­
gia de Caim. O v. 25 é semelhante ao v. 17, e com rência um tanto enigmática ao destino de Henoc
ele voltamos a Adão. Como é característico do autor (v. 24). Como Noé, última pessoa mencionada na
javista, há um trocadilho: a palavra para “suscitou” genealogia sacerdotal, o último rei da lista mesopo-
soa como “Shet”. Em contraste com a genealogia tâmica tem papel importante na história do Dilú­
de Caim, que terminou com a rebelião da huma­ vio. Não há nenhuma relação direta entre quaisquer
nidade contra Deus, esse fragmento afirma que agora dos nomes nas duas listas, nem os números são os
64 a humanidade começou a invocar o nome do Senhor. mesmos. Na verdade, em contraste com a extensão
GENESIS 6

do reinado na lista mesopotâmica (18.600-64.800 tade oferecem um sacrifício agradável aos deuses,
anos), o tempo de vida dos patriarcas bíblicos é que, por sua vez, abençoam Utnapishtim e sua fa­
extraordinariamente curto. Contudo, há semelhan­ mília com a imortalidade.
ças notáveis. É evidente que a versão do Gênesis é, em
Em Gn 5, a genealogia é introduzida pela fra­ essência, a mesma história, mas há algumas dife­
se “Eis a lista da família...” (em tradução literal: renças significativas. No relato do Gênesis não há
“Este é 0 livro das gerações...”). Como as genea­ nenhuma insinuação de politeísmo. Deus, e só
logias sacerdotais subsequentes começam com uma Deus, está no comando, o tempo todo; a tempes­
fórmula semelhante, em geral se acredita que o tade jamais fica fora de controle. O Dilúvio não
autor sacerdotal tirou as listas de uma coleção de resulta de um capricho; é enviado como castigo
quadros genealógicos que os biblistas chamam de pelo pecado. Noé não ganha a imortalidade, mas
“Livro das Gerações”. faz uma aliança com Deus.
Consistente com o estilo sacerdotal visto em Ao contrário de Gn 1—5, onde as tradições javista
Gn 1,1—2,4a, a genealogia segue um padrão rigo­ e sacerdotal estão quase sempre separadas, em Gn
roso. Compõe-se dos seguintes elementos: 1) a 6-9, as duas versões estão amplamente entrelaçadas.
idade de X quando nasce seu primeiro filho; 2) o Isso é evidente nas duplicações e contradições na
número de anos que X viveu depois desse nasci­ forma atual da narrativa. As duplicações são estas:
mento; 3) a afirmação que X teve outros filhos e Deus nota a pecaminosidade do gênero humano (6,5/
filhas; 4) a idade com a qual X morreu. 6,12); Deus decide destruir a humanidade (6,7/6,13);
Como acontece com a genealogia javista, o pro­ Deus anuncia o Dilúvio (7,4/6,17); Noé recebe
pósito dessa genealogia é preencher a lacuna entre ordens para entrar na arca (7,1-3/6,18-20); Noé obe­
os relatos da criação e o do Dilúvio. Mas, além disso, dece (7,5/6,22); Noé entra na arca (7,l-3/7,18ss.);
são evidentes algumas preocupações caracteristica- todas as criaturas vivas da terra morrem (7,22/7,21);
mente sacerdotais. A bênção e a ordem para se multi­ as águas se acalmam (8,l/8,3a); Deus promete nun­
plicar dadas por Deus em 1,28 agora são cumpridas. ca mais destrair a criação por meio do Dilúvio (8,21/
A imagem de Deus segundo a qual o primeiro casal 9,11). Eis as contradições do texto: o número de
foi criado passa de geração a geração, de modo que animais levados à arca (7,2/6,19-20; 7,15-16); a causa
toda a humanidade é criada à imagem de Deus (5,3). do Dilúvio (7,4.12; 8,2b/7,ll; 8,2); a duração do
A amizade de Henoc com Deus (v. 24) salva-o do Dilúvio (7,24; 8,2a.3b; 8,13/7,4.10.12; 8,8-12). As
dilúvio. O nome Noé significa literalmente “descan­ diferenças nas duas versões ficarão claras no comen­
so”, mas, no v. 29, sugere conforto ou alívio, anteci­ tário a seguir.
pando o futuro papel de Noé. 6,1-4 (J) O c a s a m e n to d o d iv in o c o m o hu­
m a n o . Esta é, sem dúvida, uma das histórias mais
A NARRATIVA DO DILÚVIO estranhas do Antigo Testamento. Parece ser um mito
abreviado, assumido pelo autor javista e reescrito
Gn 6,1-9,29 para servir de introdução ao relato do dilúvio. Os
A história do Dilúvio no Gênesis tem notável “filhos de Deus” são certamente deuses, não anjos
semelhança com os relatos mesopotâmicos do di­ como muitas vezes se presume. Na mitologia an­
lúvio, em especial a versão babilônica da epopéia tiga, os filhos de Deus eram considerados mem­
de Guilgamesh. Guilgamesh, o herói dessa epo­ bros do conselho celeste, divindades menores que
péia, inicia uma busca da imortalidade que o leva prestavam serviços ao deus supremo.
a um ancestral antigo chamado Utnapishtim, que é O que parece estar em debate aqui não é o com­
imortal. Quando Utnapishtim relata como se tor­ portamento licencioso, mas o casamento entre deu­
nou imortal, imediatamente reconhecemos parale­ ses e seres humanos. Se eliminássemos o v. 3, a nar­
los com a narrativa do Dilúvio contida no Gênesis. rativa parecería simplesmente uma etiologia para
Eis a narrativa babilônica: o conselho de deuses explicar uma raça de gigantes ou heróis sobre-hu­
decide destruir a humanidade. Ea, o deus da sabe­ manos de antigamente. O v. 3 leva-nos a interpretar
doria, aparece a Umapishtim em um sonho e avisa- a ação descrita no v. 2 como um grande pecado. O
-o do desastre iminente. Instrui Utnapishtim para javista usa o mito para ilustrar a extensão do pecado;
que construa um barco e salve a si e a sua familia. até transgride os limites entre os reinos celeste e
Utnapishtim traz a bordo do barco sua família, terreno. E interessante que o castigo seja dirigido
animais selvagens e domesticados e artesãos. Os à humanidade, cuja vida é abreviada, e não aos deu­
deuses desencadeiam uma tempestade que não ses que iniciaram a ação. Isso se explica se reco­
demora a ficar fora de controle e os próprios deu­ nhecemos que 0 javista usa a história para introduzir
ses encolhem-se de medo nas esferas superiores do sua versão do dilúvio, o meio pelo qual o gênero hu­
céu. Quando a tempestade acaba, o barco pousa mano é punido por sua maldade.
em um monte e Utnapishtim envia pássaros do 6,5-8 (J) A decisão d o S enhor d e d e s tr u ir to ­
barco para determinar até onde as águas retrocede­ d a s as c ria tu r a s vivas. N este parágrafo, o javista
ram. Ao sair do barco, os sobreviventes da tempes­ cham a ainda m ais a atenção para a am plitude do 65
GÊNESIS 6

pecado. É universal. Tudo que é concebido no cora­ pois provoca a destruição de todo o cosmos e a re­
ção humano é mau. Na antropologia hebraica, o co­ versão ao caos primevo.
ração não é, em princípio, o centro das emoções, 8,2b.3a.6.8-12.13b.20-22 (J) O retrocesso das
mas a fonte do intelecto e da vontade. Todos os pen­ águas, o sacrifício de Noé, a promessa do Senhor.
samentos e atos humanos são maus. A aflição do As águas permanecem na terra um total de ses­
Senhor pela criação dá um toque bastante humano à senta e um dias. Noé solta aves para determinar se
descrição javista de Deus. A resolução do Senhor de as águas haviam baixado o suficiente para ele poder
destruir o que foi criado é reação ao comportamento desembarcar. O uso de aves por marinheiros com
da humanidade e, como tal, não é decisão arbitrária. propósitos de navegação não era desconhecido no
O Dilúvio é o julgamento da humanidade pelo S e­ mundo antigo. O javista, em bom estilo de conta­
nhor, mas este Julgamento é contrabalançado pelo dor de histórias, leva o tema de envio de aves ao
desejo do Senhor de salvar, que se expressa na pre­ clímax, fazendo Noé soltar três aves, a última das
servação de Noé e sua família. A escolha de Noé quais é bem-sucedida. Como no mito babilônico,
pelo S enhor permanece um mistério na versão javista ao sair da arca Noé oferece um sacrifício agradá­
da narrativa do Dilúvio. vel ao S enhor. Não podem ser esquecidas as su­
6,9-22 (P) Decisão divina de enviar o Dilú­ gestões mitológicas da frase “O S enhor aspirou o
vio e instruções para construir a arca. A fórmu­ perfume aplacador” (v. 21). A expressão tem origem
la “Eis a família de...” indica que voltamos ao autor em uma noção primitiva de que os deuses comiam
sacerdotal. Nota-se imediatamente a justiça de Noé; realmente o alimento a eles oferecido. Essa idéia
por causa dela, ele é preservado, como acontece na foi mais tarde rejeitada por Israel. Em nossa histó­
narrativa javista. Não é apenas a humanidade que ria, o detalhe serve para mostrar que o sacrifício foi
está corrompida, mas a própria terra. Como no aceito pelo Senhor e, assim, efetuou-se a reconci­
relato javista, o desejo que Deus tem de destruir é liação com a humanidade. Assim como a narrativa
em reação ao pecado. Como é característico do do javista começou com a reflexão do S enhor sobre
autor sacerdotal, vemos que é dada grande atenção a humanidade (6,5-8), agora ela termina com refle­
aos detalhes, tais como a construção da arca e a xões comparáveis. A humanidade é a mesma “que
datação do Dilúvio. Noé deve levar para a arca sua se inclina para o mal desde a sua juventude” (v. 21),
família e os machos e fêmeas de cada espécie de mas a maldade da humanidade nunca mais será a
animais, além de comida suficiente para alimentá- base para o S enhor destruir a terra. A ordem
-los durante toda a duração do Dilúvio. da criação é assegurada pelo S enhor.
7,1-5.7-10.12.16b. 17b.22-23 (J) Instruções a 8,l-2a.3b.4-S.7.13a.l5-19; 9,1-17.28-29 (P)
Noé e a chegada do Dilúvio. A ordem para cons­ Deus se lem bra de Noé. No relato sacerdotal, o
truir a arca foi omitida da versão javista, prova­ dilúvio dura todo um ano mais dez dias, e a restau­
velmente para dar lugar à versão sacerdotal. Em ração acarreta uma recriação. O “sopro de Deus”
vista da afirmação em 7,1 de que só Noé foi consi­ que começa a se mover sobre as águas ecoa o “so­
derado justo, é possível que a construção da arca pro de Deus” que atuou de modo semelhante em
sirva de teste para ele. Noé é instruído para levar Gn 1. O momento decisivo da narrativa será quando
para a arca sete casais de todos os animais puros Deus se lembrar de Noé. É a “lembrança” de Deus
e um casal de todos os animais impuros, em óbvia que põe em movimento esse novo ato de criação.
discordância com Gn 6,19. Para o autor sacerdotal, O tema do envio das aves não está integrado na nar­
a distinção entre animais ritualmente aceitáveis e rativa sacerdotal com tanto sucesso quanto na ver­
inaceitáveis (puros e impuros) só poderá ser feita são javista. N a verdade, é Deus que diz a Noé para
depois que Moisés introduzir as leis rituais na nar­ sair da arca. Noé não confia nas informações obti­
rativa do Sinai. O javista não tem problema para das por meio das aves.
apresentar o culto sacrifical como parte da história As primeiras palavras de Deus a Noé e seus
mais primitiva da humanidade (4,3-4; 8,20-22). O filhos reiteram a bênção dada na criação: “Sede fe­
estilo antropomórfico (que descreve Deus em ter­ cundos e prolíficos”. No mundo pós-diluviano, a
mos humanos) do autor javista está evidente na des­ bênção da procriação continua em vigor. O que se
crição do Senhor fechando a porta da arca (7,16b). altera é o relacionamento da humanidade com os
Aqui o Dilúvio é o resultado de quarenta dias e animais. Reconhecendo a natureza violenta da huma­
noites de chuva. O relato sacerdotal apresenta outra nidade, Deus permite que os animais sejam mortos
explicação. e comidos, mas o sangue, por causa de sua ligação
7,6.11.13-16a.l7a.l8-21.24 (P) Reversão ao com a vida, que pertence só a Deus, não deve ser co­
caos primevo. No relato sacerdotal, o Dilúvio não mido. A proibição de tirar a vida humana continua
é causado pela chuva, mas pelo encontro das águas em vigor. É interessante notar que a razão dada para
que estão acima do céu com as que estão abaixo isso é que a humanidade foi criada “à imagem de
da terra. Em outras palavras, o mundo volta ao caos Deus”. Se a lei de Deus contra o homicídio for trans­
aquoso que existia antes da criação (1,2). A exten- gredida, será a humanidade, não Deus, quem terá a
66 são do Dilúvio é muito maior no relato sacerdotal. responsabilidade de punir o crime. E provável que
GÊNESIS 11

a fórmula legal antiga em 9,6 se destinasse a a es- dos do autor javista. O princípio de divisão entre as
tabeleeer limites para a vingança de sangue. nações não é a raça nem a língua, mas os limites
Na conclusão sacerdotal da narrativa, a pro­ geográficos e as afiliações políticas. A ordem em
messa divina de nunca mais destruir a terra pelo que os filhos de Noé são relacionados — Shem,
dilúvio assume a forma de uma aliança. A aliança Ham, léfet — é revertida para apresentar os ances­
era a maneira de regular as relações entre indiví­ trais dos israelitas em uma posição final ascendente.
duos e grupos na sociedade antiga. Essa aliança é Os descendentes de léfet habitam a região norte
introduzida pelo autor sacerdotal como antecipação do crescente fértil até a região costeira a oeste da
da futura aliança entre Deus e Israel. A iniciação Palestina. Muitos dos povos mencionados são indo-
da aliança e a responsabilidade de mantê-la depen­ -europeus, mas não é possível identificar todos com
dem inteiramente de Deus. O arco-íris é sinal dessa certeza. Entre os que têm identificação certa estão
aliança. É um lembrete a Deus da promessa de os seguintes: Madai são os medos, lavan são os gre­
preservar o mundo; é um lembrete à humanidade gos, Kitim é o povo da ilha de Rodes.
da fidelidade e da misericórdia de Deus. Os descendentes de Ham incluem tribos africa­
A narrativa conclui em 9,28-29. Estes vv. reve­ nas e árabes que habitavam a região que rodeava o
lam a preocupação do autor sacerdotal com a cro­ mar Vermelho, o nordeste da África e a terra de Canaã.
nologia. O V . 29 recorda a genealogia do capitulo A Etiópia (Kush), a Líbia (Put) e o Egito são bem
5, interrompida pela história do Dilúvio, e, por sua conhecidos entre as nações mencionadas. É surpreen­
vez, proporciona uma transição para o quadro dos dente encontrar os canaanitas, que eram semitas, iden­
povos do capítulo 10. tificados como descendentes de Ham, mas é pro­
9,18-27 (J) A maldição de Canaã. Mais uma vável que isso reflita o fato de que o Egito controla­
vez vemos o autor javista adaptar uma narrativa que va a região antes da reivindicação da terra por Israel.
originalmente serviu a outro propósito. A história Os habitantes do lado asiático do mar Vermelho
original atuou como etiologia para explicar a ori­ também estão relacionados. Muitos desses nomes
gem da vinicultura e a descoberta dos efeitos ine- são conhecidos como povos desalojados pela con­
briantes do vinho. Como tal, não há nenhum julga­ quista de Canaã por Israel.
mento moral da condição de Noé. Simplesmente é Os descendentes de Shem são os povos que
constatado que ele se embriagou. O interesse do ocupam a região do crescente fértil e da península
javista não está na bebedeira de Noé, mas na mal­ Arábica. As nações conhecidas incluem Elâm, Assur
dição de Canaã e nas bênçãos de Shem e léfet, que e Arâm.
resultaram do comportamento deles em relação ao Um redator mais tardio inseriu materiais javistas
pai durante o entorpecimento deste devido à bebida. nesta genealogia sacerdotal (w. lb.8-19.21.24-30).
Não está clara, exatamente o que Ham fez a Noé, Essas inserções estão claramente separadas em
mas com certeza envolveu mais do que apenas olhar forma e conteúdo do material que as cerca. A inser­
para a nudez do pai (veja 9,24). Nem fica claro por ção de Nimrod (vv. 8-12) assume a forma de narra­
que Canaã é amaldiçoado quando, segundo a nar­ tiva em vez da de genealogia. A identificação de
rativa, Ham é o culpado. A fiase “Ham é o pai de Nimrod com um herói conhecido do passado é difí­
Canaã” (v. 18) certamente tem o propósito de pôr a cil. A ele é creditada a fundação de diversas gran­
maldição em harmonia com a história, mas não eli­ des cidades, o que levou alguns biblistas a identifi­
mina a dificuldade. car Nimrod com Tukulti-Ninurta 1 (século Xlll
A maldição de Canaã e as bênçãos de Shem e a.C.), o rei assírio que conquistou a Babilônia. O
léfet procuram justificar as relações entre os povos javista pretendeu que, em sua maioria, os nomes
que descendiam desses ancestrais. Os canaanitas nos vv. 21 e 24-30 fossem de indivíduos, ao contrá­
tomaram-se realmente servos dos israelitas (descen­ rio dos nomes do autor sacerdotal que representam
dentes de Shem). A identificação dos descendentes povos. Eber é o ancestral epônimo dos hebreus,
de léfet não é certa. Talvez sejam os filisteus, que isto é, aquele de quem tiraram o nome. A origem
“habitavam entre as tendas de Shem”, ou os hititas, e o significado do trocadilho com o nome Péleg (v.
que desapareceram da terra logo depois da chegada 25) perderam-se.
de Israel. Em todo caso, são apresentados como par­
Embora haja muita incerteza sobre esse quadro
ticipantes do domínio de Israel na terra de Canaã.
dos povos, seu significado teológico é claro. Mostra
0 cumprimento da ordem divina para crescer e se
A S NAÇÕES DO MUNDO multiplicar encontrada em Gn 1,28 e reiterada a
Noé em Gn 9,1. Também nos mostra que Israel é
Gn 10,1-11,27 uma entre muitas nações. A escolha de Israel pelo
10,1-32 O quadro dos povos. A genealogia de Senhor não se baseia em nenhuma façanha ou qua­
Gn 10 é, na verdade uma extensa classificação das lidade de Israel, mas apenas na misericordiosa
nações do antigo Oriente Próximo. É, basicamente, intervenção divina em sua história.
obra do autor sacerdotal, como indica a fórmula das 11,1-9 A torre de Babel. O autor javista conta
gerações, mas agora contém alguns fragmentos tira­ em forma de narrativa o que o sacerdotal apresen- 67
GÊNESIS 11

tou em forma genealógica no capítulo 10. Talvez a pessoas buscavam conquistar um “nome”, mas
história fosse outrora uma etiologia para explicar a “ali”, em “Babel”, o S enhor “confundiu” a língua
diversidade de línguas e nações. O javista, entretan­ de toda a terra.
to, usa-a não só como exemplo do constante pecado Contra o pano de fundo da história de Babel,
da humanidade, mas também como contraponto à o javista apresenta a vocação de Abraão. O povo
vocação de Abraão em Gn 12,lss. O cenário da his­ procurava conquistar um nome, mas é o Senhor que
tória é babilônico. Shinear é nome antigo para a tomará grande o nome de Abraão (12,2). Os ho­
Babilônia (Babel). O método de fabricar tijolos é mens foram dispersados pela face da terrà;^^o Senhor
característico da Mesopotâmia, não da Palestina, que escolherá uma única nação e por intermMio dela
usava pedra nas construções. Apesar do ambiente todas as nações da terra serão abençoadas. Àp pro­
babilônico da narrativa, ainda não encontramos um ceder como bem entendem, buscam o pecado.\Ago-
paralelo real dessa história em nenhuma mitologia ra 0 S enhor intervirá, não com o castigo como no
do antigo Oriente Próximo. dilúvio, mas com amor salvífico, usando Israel pára
A narrativa divide-se em três partes: w . 1-4, chamá-los de volta.
vv. 5-8, V. 9. A primeira parte é um relato no qual 11,10-2731-32 A genealogia de Abraão. Esta
os humanos são os atores; a segunda é um discurso genealogia do autor sacerdotal baseia-se na encontra­
no qual o S enhor é o ator principal. O último v. é da no capítulo 5, mas os tempos de vida concedidos
um suplemento explanatório que inclui uma etimo­ são consideravelmente menores. Há uma inserção
logia popular do nome Babel e conclui a história. da tradição javista nos w. 28-30. Esses vv. realmente
Leva-nos de volta ao início por reversão: as pes­ introduzem as narrativas de Abraão e assim serão
soas eram unidas e sua lingua era uma só, agora tratados com a vocação de Abraão (12,lss.). Alguns
não são. dos nomes mencionados são, na verdade, cidades
Os homens constroem uma cidade com uma do noroeste da Mesopotâmia (Serug, Nahor, Térah,
torre e o S enhor os castiga. Não está claro por que Haran), mas no antigo Oriente Próximo não era raro
exatamente são punidos. O que fizeram para for­ emprestar o nome de um lugar.
çar a mão do S enhor? O pecado pode ser deduzido Tanto na tradição sacerdotal (v. 31) como na
do motivo dado para construir a cidade; t‘Conquis- javista (v. 28), o lugar de nascimento de Térah, pai
temos para nós um nome, a fim de não ser dispersa­ de Abraão, é Ur dos caldeus. A identificação de Ur
dos”. Há uma dupla motivação. Por um lado, dese­ como a cidade dos caldeus é anacrônica — os cal­
jam conquistar um nome para eles mesmos por ini­ deus entraram na região mesopotâmica somente de­
ciativa própria, em óbvia independência do Senhor. pois que a cidade alcançara o auge e, conseqüente-
Por outro lado, buscam evitar ser “dispersados”, o mente, ela não podería estar ligada aos caldeus no
que foi ordenado por Deus quando lhes disse “en­ tempo da migração de Abraão. A migração de Abraão
chei a terra” (1,28; 9,1). Nessa história, as pessoas começa em Haran (11,31; 12,5), e a base cultural
adotada nas narrativas patriarcais é a da região
fazem justamente o contrário; juntam-se em um só
lugar, uma cidade. mesopotâmica noroeste, não do vale meridional do
Tigre-Eufrates, onde se localizava Ur. Ambas as
Com fieqüência, os comentaristas concentram­
-se na “torre cujo cume atinja o céu” (v. 4) como cidades, Ur e Haran, cultuavam o deus da lua, Sin,
e havia tráfego regular entre essas duas cidades. É
sinal do pecado de orgulho e rebeldia contra Deus,
provável que as inserções de Ur no texto reflitam as
mas não há razão para separar a torre da cidade.
antigas associtições entre as duas cidades.
Muitas cidades antigas eram construídas com torres
de vigia; " ... cujo cume atinja o céu” significa ape­
nas que era uma torre muito alta. Não há necessi­ CONCLUSÃO
dade de identificar a torre como templo babilônico A história primeva em Gn 1-11 é uma mistura
(zigurate), como se costuma fazer. Mesmo se a torre de tradições que relaciona a história de pecado que
fosse em alguma ocasião associada a um desses prejudicou a bondade da criação divina. A superio­
antigos locais de culto, em nossa história não é dado ridade do gênero humano sobre o resto da criação
nenhum significado religioso à torre. é indicada pela afirmação de que homem e mulher
Como é característico das narrativas javistas, são criados “à imagem de Deus” e pela ordem de
esta apresenta o Senhor de maneira bastante antro- Deus para que dominem a terra. Mas, por causa de
pomórfica e contém trocadilhos. O S enhor “des­ sua contínua desobediência contra Deus, a huma­
ce” para ver o que os homens estão fazendo, nidade está ligada à própria terra da qual foi for­
parecendo quase ciumento ou temeroso das cres­ mada. Deixada para proceder como bem entende,
centes habilidades das pessoas. Presume-se que o toma-se ainda mais profundamente presa ao peca­
“nós” a quem o S enhor se dirige (v. 7) sejam do. A indulgência de Deus é demonstrada quando
membros do conselho celeste (compare Gn 1,26; todo castigo divino é abrandado por cuidado, pro­
6,2). Há trocadilhos entre as palavras hebraicas para teção e restauração. Os onze primeiros capítulos
63 “Babel” e “confusão”, para “nome” e “lugaf’. As do Gênesis são o pano de fundo contra o qual a
GENESIS 12

história da salvação progride com o chamado de mais detalhes nas narrativas seguintes. A fama de
Abraão por Deus. Abrão surgirá em resultado de sua confiança nas
ações do Senhor, não, como no caso da história de
Babel, pela conquista de um nome para si mesmo.
AS NARRATIVAS PATRIARCAIS
O elemento final na promessa divina, a promessa de
Gn 11,28-36/43 que todas as comunidades da terra serão abençoa­
das em Abrão, provavelmente significava que Abrão
Da história que terminou com tod^ a humani­
seria considerado modelo de bênção divina (Gn
dade dispersa pela terra, a narrativa javista agora
48,20). Por fim, veio a ser entendido que Israel seria,
estreita o enfoque para um indivíduo e seus descen­
na verdade, mediador ou agente da bênção de Deus
dentes. Neste conjunto de sagas, o elolde ligação
para o mundo (Sr 44,21).
é 0 tema da promessa e seu cumprimento. A forma
O autor javista não nos dá nenhuma informa­
mais primitiva da promessa pode ter siqo apenas a
ção sobre a reação de Abrão à promessa do S e­
promessa de um filho, mas, à medida que a tradição
nhor, nem nenhuma indicação dos motivos de
se desenvolveu, expandiu-se para incluir muitos des­
Abrão para obedecer à ordem divina. Simplesmen­
cendentes, terra, grandeza como nação e bênçãos.
te afirma que “Abrão partiu, como o S enhor lhe
A preocupação por um descendente ocupa a maior
havia dito” (12,4). Os patriarcas Abraão e Jacó são
parte do ciclo de Abraão.
com frequência apresentados estabelecendo altares
É legítimo fazer perguntas históricas a respeito
e cultuando a Deus em cidades canaanitas antigas,
das narrativas patriarcais, mas somos advertidos
em resposta a alguma experiência do que é santo
contra uma reconstrução excessivamente simplifi­
nessEis cidades. É um meio de explicar por que
cada das vidas e do período histórico dos patriar­
essas cidades, originalmente pagãs, se transforma­
cas pela natureza das narrativas como saga. Con­
ram em centros de culto em Israel. O carvalho de
tudo, o campo da arqueologia tem contribuído para
Moré (12,6) era árvore sagrada, indicando que já
nosso conhecimento do antigo Oriente Próximo e
existia um culto antigo em Siquém antes da visita
há concordância geral que, em vista do estilo de
de Abrão. Com freqüência, eventos veterotestamen-
vida e dos costumes refletidos nas narrativas patriar­
tários de grande importância acontecem perto de
cais, devemos situar os patriarcas na região do Cres­
árvores sagradas, que se acreditava serem lugares
cente Fértil no segundo milênio a.C.
especiais para receber a comunicação divina. É aqui
que o S enhor promete dar a Abrão a terra de Canaã.
O CICLO DE ABRAÃO Além de ser uma afirmação de fato, a frase “Os
canaanitas estavam então na terra” (12,6) indica o
Gn 11,28-25,18 caráter incomum da promessa feita a Abrão. A terra
11,28-29; 12,1-9 A vocação e a resposta de será possuída e a promessa cumprida por seus
Abrão. Não há preparação para a vocação de Abrâo. descendentes, não durante a vida de Abrão.
(Abrão e Abraão são variações do mesmo nome, Ao continuar a viajar para o sul, Abrão pára
assim como Sarai e Sara. As mudanças em seus entre Betei e Ai, outra cidade canaanita antiga que
nomes ocorrem em 17,5.15 para indicar seu novo se toma importante em Israel. Mais uma vez, er­
relacionamento com Deus em conseqüência da gue um altar ao S enhor, embora não seja dito por
aliança.) É feita apenas uma brevíssima menção quê. As viagens de Abrão levam-no à região do
das migrações de Térah e sua família. E interes­ Négueb, a ele ligada de maneira especial.
sante que o pai de Milká é lembrado, mas não o da 12,10-20 A ancestral em perigo. Logo depois
mais importante Sarai. A esterilidade de Sarai é da promessa de terra (12,7), vemos Abrão viajando
mencionada em antecipação de narrativas posterio­ ao Egito por causa de uma fome. Não era raro os
res e toma mais paradoxal a promessa do S enhor povos semíticos irem ao Egito em busca de comi­
de muitos descendentes, em 12,2. da, como evidenciam os registros egípcios do pe­
A promessa a Abrão representa nova fase na ríodo. Mas, em vista da promessa de terra, isso
narrativa javista. Antes, movíamo-nos na esfera da não deixa Abrão em situação das mais favoráveis.
história primeva, a história de toda a humanidade. Ainda mais espantoso nessa narrativa é que, a fim
Agora nos centralizamos em um indivíduo que logo de garantir a própria segurança, o patriarca inten­
se tornará uma família e, por fim, uma nação. A cionalmente compromete a honra da mulher. Re­
escolha de Abrão permanece um mistério na narra­ ceia que a beleza de sua mulher chame a atenção
tiva javista e se baseia unicamente na iniciativa di­ de Faraó e que este o mate a fim de levar Sarai
vina. A promessa é dominada pelas palavras “bên­ para o harém real. Persuade Sarai a mentir, dizen­
ção” e “abençoar” (cinco vezes). O que o S enhor do-se sua irmã, para que a vida dele não corra
oferece a Abrão será sinal do favor divino e fonte de perigo. Como Abrão previra, a beleza de Sarai cha­
felieidade para o próprio Abrão. Para ser uma gran­ ma a atenção dos egípcios e Faraó, supondo que
de nação, Abrão precisará de descendentes e terra. Abrão é irmão dela, dá presentes a Abrão e leva
Ambos esses aspectos da bênção são explicados com Sarai para seu harém. O S enhor intervém infligindo 69
G Ê N E S IS 1 3

grandes males a Faraó, mas não castiga Abrão. acrescentada. O fato de Abrão andar por toda a
Faraó censura Abrão e manda-o embora sob escolta terra é um ato simbólico indicativo de que está to­
militar. mando posse legal dela, embora não seja sua (13,7).
O tema esposa-irmâ dessa narrativa talvez re­ Por fim, Abrão se instala perto do carvalho de
flita uma prática hurrita da Mesopotâmia seten­ Mamrê.
trional, pela qual o marido adotava a esposa como 14,1-24 A brão e Malki-Sédeq. Todos concor­
irmã, 0 que dava a ele maior controle sobre a espo­ dam que Gn 14 é um dos capítulos mais difíceis
sa, mas também dava a ela proteção e privilégios do livro do Gênesis. É muito diferente do resto das
além dos concedidos à esposa comum. Essa prática narrativas patriarcais. Começa como o relato de uma
acabou por desaparecer e o narrador da história crônica antiga e está repleto de detalhes históricos
não parece estar ciente disso. e geográficos. Abrão é descrito não como nômade
Em essência, a mesma história também se en­ pacífico, mas como comandante de forças envolvi­
contra em Gn 20,1-18 (E) e Gn 26,6-11 (J), mas das em guerra. O capítulo 14 interrompe a seqüên-
com algumas variações quanto a personagens e in­ cia de eventos que flui do capítulo 13 para o capítu­
cidentes. As alterações nas versões subseqüentes lo 15. E impossível determinar sua fonte. Conse­
indicam maior sensibilidade às implicações morais quentemente, os biblistas consideram-no uma inser­
da história. Abraão não mente mais, pois é afirma­ ção nas narrativas patriarcais, independente de todas
do que Sara é sua meia-irmã e Deus intervém antes as fontes (J, E, P).
que a honra dela seja comprometida. O narrador Há considerável debate sobre a confiabilidade
de Gn 12 não procura desculpar o comportamento de histórica do capítulo. As cidades e reis mencionados
Abrão, antes parece divertir-se com sua esperteza. são evidência da antiguidade e confiabilidade histó­
A história também mostra que, apesar do que fazem rica da passagem ou o autor dessa inserção está
Abrão e Sarai, estão sob a proteção de Deus, que apenas imitando o estilo histórico? É possível iden­
intervirá para assegurar o futuro cumprimento da tificar com certeza os reis e cidades mencionados
promessa quando ela estiver em perigo. no capítulo 14? As respostas a essas perguntas são
A história e o contexto em que se encontra apre­ muito complexas e, embora de interesse, estão além
sentam algumas dificuldades. Como Faraó sabe que do objetivo deste comentário. Nossa preocupação
os grandes males são infligidos por causa de Sarai? com o capítulo 14 se concentrará principalmente
Como fica sabendo que Sarai é mulher de Abrão? em Abrão e seu encontro com Malki-Sédeq.
Essas perguntas nunca são respondidas. A menção de O capítulo 14 compõe-se de duas partes dis­
camelos no v. 16 é, com certeza, anacrônica, pois os tintas: os vv. 1-16.21-24 e os vv. 17-21. Parece que
camelos só foram domesticados no século XIII a.C. Abrão foi introduzido na primeira parte do capítu­
Devemos supor que Sarai tem, realmente, sessenta e lo precisamente por causa de seu encontro com
cinco anos de idade na história (veja Gn 12,4b; 17,17)? Malki-Sédeq, que serve de conclusão e clímax do
Essas inconsistências não tinham importância para o capítulo. O nome Malki-Sédeq significa “Sédeq
narrador, embora incomodem os leitores contempo­ [um deus] é meu rei”. A cidade de Shalêm deve
râneos. O interesse do narrador está na intervenção ser identificada com a cidade de Jerusalém (SI
divina que redime a situação. 76,3). O fato de Malki-Sédeq ser rei e também
13,1-18 Separação de Lot e Abrão. A viagem sacerdote não é incomum — isso acontecia com
de Abrão, primeiro ao Négueb, seguindo depois, por ffeqüência no antigo Oriente Próximo. O Deus que
etapas, para o norte, em direção a Betei, era caracte­ ele cultua, “o Deus Altíssimo que cria céu e terra”
rística dos nômades em busca de pastos para os re­ (v. 19), era o chefe do panteão canaanita e supre­
banhos. Seus movimentos eram governados pela mo sobre os outros deuses e o mundo. Malki-Sédeq
necessidade de pastagens e, muitas vezes, andavam oferece a Abrão pão e vinho, que pode ter sido
perto de cidades. Abrão e Lot tinham grandes reba­ apenas um reffigério, mas que talvez tivesse algum
nhos e concordam em se separar para prevenir futu­ significado ritual; também abençoa Abrão. Por sua
ras discussões entre eles por causa do direito a pas­ vez, Abrão identifica o S e n h o r com o Deus Altís­
tagens. Seus pastores já haviam começado a brigar. simo (v. 22) e aceita a bênção de Malki-Sédeq. Há
Embora mais velho e, por direito, o que podia esco­ alguma dúvida a respeito de quem paga o dízimo a
lher primeiro, Abrão é magnânimo e cede a vez a quem (v. 20). O sujeito da sentença no texto he­
Lot. Lot escolhe a terra que parecia viçosa e fértil, braico é simplesmente “ele” , não Abrão, como está
0 distrito do Jordão, e se instala perto de Sodoma. em nosso texto. O contexto parece indicar que é
A escolha de Lot é irônica, pois esse é um território Malki-Sédeq que não só abençoa Abrão, mas tam­
que será destruído pelo S e n h o r . O narrador prevê bém lhe paga o dízimo.
aqui os acontecimentos de Gn 19. Muitos biblistas vêem nessa passagem um argu­
Talvez os vv. 14-17 não fizessem parte da his­ mento em apoio da dinastia davídica e sua assimi­
tória original, mas agora servem de clímax. A pro­ lação de deveres sacerdotais. E verdade que Malki-
messa de terra é paralela à promessa feita em Gn Sédeq era visto como protótipo do rei davidico
70 12,2-3.7; a promessa de descendência incontável é ideal (Sl 110,4), mas dizer que a aceitação da bên-
GÊNESIS 16

ção de Malki-Sédeq por Abrão sugere que os des­ tumes da Mesopotâmia no século XV a.C., o que
cendentes de Abrão aceitarão a dinastia davídica foi confirmado pela descoberta de textos legais de
vai além do texto. É provável que a inclusão da Nuzi. A resposta do S enhor a Abrão não é simples
passagem reflita o interesse do autor em ligar Abrão reiteração da promessa de inumeráveis descenden­
com Jerusalém e seu rei-sacerdote e na identificação tes. Assegura a Abrão, de maneira clara, que seu
do Senhor com o Deus em nome de quem Abrão filho será seu herdeiro. A resposta de Abrão é a fé
é abençoado. no Senhor. Confia completamente no Senhor e aban­
15,1-21 A aliança com Abrão. Uma análise dona suas dúvidas e ansiedades. Sua justiça é afir­
das fontes do capítulo 15 é difícil. Alguns biblistas mada com base nessa resposta. A total confiança no
argumentam em favor da presença da fonte eloísta S enhor põe-no em relacionamento direto com ele.
em 15,1-6, mas o consenso é que o capítulo todo O V. 7 começa com uma segunda auto-apre-
foi composto pelo autor javista, apesar de diversas sentação da Divindade em linguagem e forma tira­
inconsistências que indicam uma combinação de das do culto. Agora a promessa concentra-se na
fontes. É provável que o autor javista esteja recor­ terra, não em descendentes. A confirmação da pro­
rendo a diversas tradições e as harmonize com messa de terra que o S enhor faz é assegurada na
sucesso apenas parcial. cerimônia da aliança descrita nos vv. 9-11 e 17-20.
Os problemas do texto são óbvios. A cerimônia Este ritual primitivo e sua importância estão men­
da aliança acontece ao pôr-do-sol nos vv. 12 e 17, cionados em Jr 34,18, e descobertas no século pas­
contudo no v. 5 já é noite. No v. 8, Abrão expressa sado mostraram que essa maneira de fazer alianças
dúvidas, enquanto sua fé é enfatizada no v. 6. O era comum no antigo Oriente Próximo. Repartir o
nome do Senhor é revelado no v. 7, mas já é conhe­ animal ao meio e caminhar entre as partes separa­
cido de Abrão no v. 2. Essas inconsistências serão das ligava as partes em aliança. Se deixavam de
eliminadas se separarmos os vv. 1-6 e 13-16, que se cumprir os termos da aliança eram amaldiçoadas
referem à questão de descendentes, dos vv. 7-12 e para terem o mesmo destino do animal partido. As
17-21, que se concentram em um ritual de aliança aves de rapina que se atiraram sobre as carcaças
que cerca a promessa da terra. Assim, temos pelo devem, provavelmente, ser interpretadas como pres­
menos duas tradições separadas que formam este ságio do mal, mas o significado exato desse pressá­
capítulo, embora estejam inter-relacionadas em uma gio não está claro. Um torpor toma conta de Abrão,
passagem cuidadosamente elaborada. um estado de atividade suspensa, durante a qual
Os seis primeiros w. mostram elementos tira­ pode receber uma revelação divina. A cerimônia
dos das tradições proféticas e também da esfera da aliança termina quando um braseiro fumegante
cultuai. A frase “a palavra do S enhor foi dirigida a e uma tocha passam entre os pedaços do animal
Abrão” é reconhecida como fórmula profética (com­ (v. 17). O fogo é, com freqüência, sinal da presen­
pare Is 1,1; Ez 1,1; Am 1,1) e sugere que o autor vê ça de Deus, e é isso, certamente, o que ele repre­
no chamado de Deus a Abrão um chamado seme­ senta nesta passagem. O S enhor firma a aliança e
lhante ao de um profeta. A base cultuai da passa­ se compromete a mantê-la. Os últimos vv. (vv. 18-
gem é clara, pois sua estrutura imita o formato de 21) especificam a extensão da terra prometida, que
celebrações cultuais: a automanifestação divina (v. corresponde à extensão do império davídico sob
1) é seguida por um oráculo da salvação (vv. 4 e 5) Salomão.
e uma declaração de justiça (v. 6). A admoestação Os vv. 13-16 interrompem a descrição da ce­
do Senhor contra o medo não é incomum, pois no rimônia da aliança. Explicam por que não é o pró­
mundo antigo um encontro com a Divindade era prio Abrão e sim seus descendentes que possuirão
entendido como acontecimento aterrorizante. “Não a terra. Ao S enhor não falta poder; os emoritas
temas” encontra-se com freqüência no Antigo Tes­ têm um pouco de tempo antes de serem julgados
tamento acompanhando uma manifestação de Deus por Deus. Estes vv. mostram uma teologia da his­
(veja Jz 6,23; Is 41,10). O título “escudo” é ffe- tória em que o S enhor governa a história e efetua
qüentemente usado para Deus como protetor e li­ nela o cumprimento da promessa divina.
bertador (veja SI 3,4; 18,3; 28,7 etc.). É um titulo O capítulo 15 confirma a aliança de Deus com
tirado do culto e essa é sua única ocorrência nas Abrão: este terá um filho, terá muitos descendentes,
narrativas patriarcais. A recompensa que o Senhor e um dia eles possuirão a terra.
promete a Abrão deve, com certeza, ser interpretada 16,1-16 O nascimento de Ismael. A narrativa
em contraste com o capítulo 14, onde Abrão voltou do nascimento de Ismael é, em princípio, obra do
para casa sem nenhuma recompensa. autor javista. Somente nos w . 3 e 15-16 encontra­
Dificuldades no texto hebraico original tomam mos inserções do autor sacerdotal. As inserções
incerta a tradução do v. 2. Entretanto, o v. 3 é claro sacerdotais trazem os elementos essenciais da his­
e corresponde ao conteúdo do v. 2; Abrão preocupa- tória, mas não têm o caráter intenso e dramático da
-se porque um servo nascido em sua casa será seu narrativa javista. Pelos olhos do autor javista, vis­
herdeiro. A prática de um escravo tomar-se herdeiro lumbramos a frustração e o ciúme de Sarai, a arro­
de um casal sem filhos está de acordo com os cos­ gância de Hagar e a passividade de Abrão. 71
GÊNESIS 17

Na verdade, os elementos que compõem a princípio, em um discurso do S enhor e não tem a


história não são tão escandalosos como podem qualidade de interesse humano tão característica
parecer ao leitor moderno. A proposta de Sarai do javista. Seu tom é mais teológico, dizendo-nos
para que Abrão engravide sua serva, Hagar (v. 2), muito pouco sobre as reações pessoais de Abrão.
estava em conformidade com os costumes legais Os detalhes cronológicos, a orientação teológica e
da Mesopotâmia. A esposa estéril podia dar sua a preocupação com a circuncisão são característi­
serva ao marido para que houvesse filhos. Os fi­ cas do autor sacerdotal.
lhos da concubina eram considerados filhos legais Como a versão javista, a passagem se inicia
da esposa, exatamente como Sarai afirma: “talvez com a auto-apresentação de Deus. O nome “Deus
através dela eu tenha um filho” (v. 2). É, com Poderoso” (Shadai) tem alcance especial para o
certeza, compreensível que a serva que agora com­ autor sacerdotal, que limita o uso desse nome para
partilha o leito do senhor se considere igual ou Deus às narrativas patriarcais; assim, ele se toma
mesmo superior à esposa estéril. Entretanto, a lei o nome característico de Deus associado a esse
previa o caso de servas que “esqueciam seu lugar”, período (Gn 28,3; 35,11; 48,3). Na história primeva
especificando que voltariam à condição anterior Deus era chamado Elohim; no futuro. Deus será
de servas. É o que acontece na história (vv. 4-6). conhecido por Israel como o Senhor (E x 6,3 s .). O
Ao devolver Hagar ao controle de Sarai, Abrão significado do nome Shadai é incerto, mas há al­
está seguindo a lei. Contudo, a severidade de Sarai guma evidência que apóia o significado “deus das
com Hagar excede a lei e não realça seu caráter. montanhas”.
A egípcia Hagar foge para o sul por ter sido A descrição da aliança não faz dela um jura­
maltratada por Sarai. Aparentemente, está voltan­ mento feito por Deus, como na versão javista, mas
do para o Egito quando o mensageiro do S enhor a um contrato. Deus dará muitos descendentes a
encontra (v. 7). Não há uma distinção clara entre o Abrão, que, por sua vez, recebe ordens para andar
S enhor e o anjo do S enhor ( v. 13); é apenas um na presença de Deus, ser íntegro e praticar a circun­
meio de indicar que a mensagem vem do Senhor cisão como sinal da aliança entre eles. A mudança
e, ao mesmo tempo, preserva a transcendência do no nome de Abrão (v. 5) assinala seu novo relacio­
Senhor sobre o mundo criado. As palavras de com­ namento com Deus e a nova vida concedida pela
promisso do mensageiro repercutem a promessa aliança. Afirma-se que o novo nome, Abraão, signi­
dada a Abrão: Hagar será a mãe de muitos descen­ fica “pai de uma multidão de nações”, mas, na
dentes (v. 10). A etimologia popular explica o sig­ verdade, o nome é apenas uma variação do nome
nificado do nome Ismael como “Deus ouve”. O Abrão, que si^ ific a “meu pai [o deus] é elevado”.
S enhor ouviu o clamor de Hagar e veio em seu Devemos notar alguns novos elementos intro­
auxílio. A descrição de Ismael que se segue (v. 12) duzidos no relato sacerdotal. A aliança não é feita
é de caráter etiológico. Ismael, filho de mãe orgu­ apenas com Abraão, mas também com seus descen­
lhosa e rebelde, toma-se ancestral das tribos do dentes, e será uma aliança perene (v. 7). Além disso,
deserto, conhecidas por seu espírito selvagem e um novo relacionamento com Deus faz parte dela:
livre e por sua natureza belicosa. Israel não se es­ esse Deus que faz aliança com Abraão será seu
quece que tem um estreito parentesco com esses Deus e o Deus de seus descendentes, o que ante­
povos; são filhos do mesmo pai. cipa 0 relacionamento entre o S enhor e Israel que
Os últimos vv. (vv. 13-16) não são inteiramen­ será estabelecido no Sinai.
te claros, mas ptirece que é esboçada uma ligação A circuncisão só se tomou sinal importante da
entre o nome dado a um poço, “o poço de Lahai aliança durante o Exílio babilônico (586-538 a.C.).
que me vê” (?), e aquele dado ao S enhor por Hagar, É discutível que sempre tivesse essa importância
“Tu és Deus, que me vê”. Nos tempos antigos tal­ para Israel. A circuncisão era praticada no antigo
vez houvesse um santuário a esse Deus naquele Egito e pelos povos semíticos que viviam em Canaã.
lugar. “Tu és Deus, que me vê” era o nome de uma Não era praticada na Mesopotâmia, nem pelos filis-
divindade cultuada em Canaâ. teus, a quem Israel se referia como os “incircunci-
O interesse do javista não se concentra nas sos” (2Sm 1,20). Não está claro por que se desen­
etiologias da história; em maior extensão, o episó­ volveu a prática da circuncisão dos bebês, pois em
dio tem a intenção de mostrar que o cumprimento outras culturas era associada a ritos de puberdade.
da promessa divina depende somente de Deus, não Talvez originalmente ela tivesse algum significado
do espírito inventivo humano. Ao Situar este inci­ religioso agora perdido para nós, ou fosse pratica­
dente entre a promessa e seu cumprimento, a narra­ da apenas por razões higiênicas. Os exilados que
tiva retarda o cumprimento da promessa e, assim, viviam na Babilônias consideravam a circuncisão
aumenta a expectativa. O leitor é atraído para a sinal de sua identidade religiosa, distinguindo-os
história: quando o S enhor cumprirá a promessa? dos babilônios, que não praticavam o ritual. Para o
17,1-14 A aliança com Abrão. A aliança com autor sacerdotal, cujos escritos se originaram na
Abrão, relatada pelo autor javista no capítulo 15, é comunidade do Exílio, a circuncisão é o sinal de in­
72 contada aqui pelo sacerdotal. O relato consiste, em clusão na comunidade que cultua o S e n h o r . Para
GÊNESIS 18

essa fonte, a circuncisão é tão importante que os sacerdotal posterior, até o javista considera ambos,
in c irc u n c id a d o s n ã o s ã o c o n s id e ra d o s m e m b ro s d o Abraão e Sara, avançados em anos (v. 12). O cená­
povo da aliança (v. 14). rio da história são os carvalhos de Mamrê, lugar
17,15-27 Nascimento de Isaac. O anúncio do sagrado, bem apropriado a essa visitação divina.
nascimento de Isaac interrompe o relato da ordem Abraão está sentado à entrada da tenda em pleno
para circuncidar e sua decretação final relatada nos calor do dia, o único lugar para ficar no meio da
w . 23-27. Em todas as três fontes — javista, eloísta tarde, em especial quando se é um homem muito
e sacerdotal —, Isaac é o filho da promessa e o velho. Os três visitantes aparecem de repente, nessa
inesperEido de seu nascimento indica o grande poder hora insólita. Quem estaria caminhando no calor?
divino de fazer do impossível realidade. Assim Igualmente estranho é o detalhe de que esse velho
como o nome de Abrão muda para sinalizar seu corre e se prostra em terra. Todos os atos de Abraão
novo papel, também o novo papel de Sarai como são excessivos, o que sugere que ele pressente o
mãe é acompanhado pela mudança de seu nome (v. caráter divino dos visitantes e espera que, ao de­
15), embora Sara seja, na verdade, apenas uma monstrar sua grande hospitalidade, talvez obtenha
variante dialética do nome Sarai. deles um favor.
A reação de Abraão ao anúncio do nascimento Abraão fica extremamente loquaz, em contraste
de Isaac a Sara, que já ultrapassou em muito a com seu comportamento posterior (v. 9). Sua ofer­
idade de dar à luz Õem noventa anos) é uma com­ ta de um pedaço de pão e um pouco d’água é uma
preensível mistura de respeito e descrença. Ele atenuação da verdade, pois ele faz Sara amassar
demonstra reverência a Deus, prestando homena­ quase três medidas de farinha para fazer bolos,
gem, mas não pode deixar de rir. O tema do riso manda preparar um vitelo bem tenro e, além disso,
também se encontra nas tradições javista e eloísta. serve coalhada e leite na refeição. Isso não é um
Explica o nome de Isaac, que, em hebraico, signi­ pouco d’água e um pedaço de pão, mas sim um ban­
fica “riso”. Abraão pensa na idade avançada de quete adequado a um rei. Como bom anfitrião,
Sara e chama a atenção de Deus para Ismael. Pa­ Abraão serve os hóspedes e, como era costume. Sara
rece que Deus esqueceu a idade de Sara e Abraão não está presente, pois as mulheres não comiam
oferece a Deus uma saída, mas Deus não se deixa com os homens. Entretanto, ela está perto da tenda,
distrair. A promessa será cumprida nos descenden­ como fica evidente mais tarde.
tes de Sara, não nos de Hagar. Ismael não será Depois da refeição, os estranhos fazem uma
esquecido. Também será uma grande nação, mas a pergunta que só poderia ter causado grande choque
aliança deve ser com os descendentes de Isaac. no público do narrador (v. 9). De acordo com a
18,1-15 Anúncio do nascimento de Isaac. Esta hospitalidade do deserto, era concedido ao hóspede
é uma das narrativas mais encantadoras do autor tudo o que pedisse, o que incluía usufruir a mulher
javista, que se baseia em um tema comum de contos do anfitrião. Naturahnente, era indelicado solicitar a
populares — uma história na qual estranhos que mulher do anfitrião, mas nada podia ser recusado ao
foram tratados com hospitalidade vêm a ser hóspe­ hóspede. A rudeza da resposta de Abraão indica seu
des divinos. Eles, por sua vez, recompensam os que sobressalto com a pergunta. Sara, que está ouvindo
lhes foram bondosos. Com esse tema, desenvolvido perto da entrada da tenda, acha a conversa muito
contra o pano de fundo do costume da hospitalidade engraçada. Ela pode ter sido uma beldade no passa­
do deserto, o autor javista mistura o anúncio do do (12,10ss.), mas agora está velha.
nascimento de Isaac e a narrativa dá mais um passo Todavia, a pergunta chocante não é o que pa­
em direção ao cumprimento da promessa. recia a principio, mas serve para apresentar o anún­
O único problema real na narrativa é o relacio­ cio do tão esperado descendente de Abraão. O fato
namento entre o Senhor e os três estranhos. O de os hóspedes estarem cientes do riso e dos pen­
texto afirma que o S enhor apareceu a Abraão e, samentos de Sara deve tê-la amedrontado, pois ela
então, de repente, este vê três estranhos. A mudan­ se apressa a negar que riu. Mas os hóspedes não
ça de um lado para o outro entre o S enhor e os três aceitam sua negativa e a última palavra da narra­
estranhos continua em toda a narrativa. E difícil tiva, “riste”, faria uma platéia hebraica lembrar-se
determinar o que o autor quer dizer. É o S enhor do nome do filho prometido, Isaac, que significa
um dos três, ou os três representam o S enhor? “riso”.
Talvez o autor se baseie em uma tradição original­ 18,16-33 Intercessão de A braão por Sodoma.
mente politeista e se sinta constrangido por não a É evidente que essa parte não se originou das tra­
modificar. O javista pode ter deixado a ambigüida- dições antigas, mas é uma criação livre do javista.
de na narrativa para sugerir o mistério que cerca a Nela encontramos uma teologia bastante desenvol­
presença de Deus no mundo. vida, apresentada em duas conversas breves. Na
Do princípio ao fim dessa história, deve ser primeira (w . 17-18), em termos que lembram a
lembrado que Abraão é velho e Sara também. Em­ promessa (12,2-3), o S enhor decide contar a Abraão
bora as idades exatas de noventa e nove anos para o julgamento feito contra Sodoma. A intenção e as
Abraão e noventa anos para Sara venham da fonte ações divinas, antes ocultas, são agora reveladas 73
GENESIS19

ao escolhido, Abraão, para que ele possa ensinar a ções de sal em tomo do extremo meridional do mar
seus descendentes a justiça de Deus. Assim, a des­ Morto; a narrativa explica essa presença e mostra as
truição de Sodoma assume significado admonitório conseqüências da desobediência.
especial para as gerações futuras. Talvez a destruição de Sodoma se baseie em
A segunda conversa é entre Abraão e o S enhor. um violento desastre natural que realmente aconte­
É um exemplo bastante divertido da melhor forma ceu no passado distante, mas é impossível verificar
' de regateio oriental, mas suas preocupações funda­ isso. A preocupação do javista é explicar a destrui­
mentais são muito sérias. A questão de justiça está ção da região como julgamento divino do pecado.
em jogo: é justo destruir inocentes, mesmo que sejam O último V. (v. 29) é um resumo da narrativa, atri­
poucos, junto com a grande maioria dos culpados? buído ao autor sacerdotal.
Os inocentes são importantes o bastante para impe­ 19^0-38 A ascendência dos moabitas e amoni-
dir o castigo dos maus? A tensão no encontro é tas. Esta narrativa trata da ascendência dos vizinhos
criada por Abraão, que, embora respeitoso com o dos israelitas, que reconheciam ter com eles certo
S enhor, ousa discutir e continua a pressionar o parentesco, mas que, mesmo assim, eram seus inimi­
Senhor a cada passo da conversa, tentando corajo­ gos e impedidos de se tomar membros da comuni­
samente reduzir ao minimo o número de inocentes dade da aliança (Dt 23,4). É provável que original­
necessário para salvar a cidade. No diálogo, não só mente a história fosse contada em louvor dos ances­
se revela a paciência do S enhor, como também sua trais que tomam providências extremas para assegu­
grande disposição de revogar o castigo em conside­ rar a continuação da linhagem familiar. Com certeza,
ração aos poucos inocentes. eles não se envergonham de seus atos, pois seus fi­
19,1-29 Destruição de Sodoma. Embora ou- lhos ostentam orgulhosamente nomes que falam de
trora fosse uma saga independente, a história da seus feitos: Moab (“De meu pai”) e Amon (“Filho
destruição de Sodoma está agora bem integrada no de minha consangüinidade”). O javista inclui a his­
ciclo de Abraão. Os dois mensageiros, que se se­ tória a fim de depreciar a ascendência dos inimigos
pararam do S enhor em 18,22, chegam a Sodoma. tradicionais de Israel.
O propósito da visita é determinar se o clamor 20,1-18 A ancestral corre perigo um a segun­
contra Sodoma é justificado. Lot estava sentado à da vez. Esta narrativa é imediatamente reconheci­
porta da cidade, lugar costumeiro de encontro dos da como duplicata da história javista em 12,10-20.
habitantes. Ao contrário do capítulo 13, onde foi Todos concordam que deve ser identificada como
descrito como pastor e nômade, agora Lot mora na obra do autor eloísta. Além do uso do hebraico
cidade. Persuade os estranhos a passar a noite em Elohim (Deus) para o nome divino, a autoria eloísta
sua casa. À noite, os outros habitantes da cidade é indicada pelo emprego de sonhos como meio de
vêm exigir que Lot faça sair os hóspedes para comunicação divina. As preocupações característi­
abusarem deles. Está claro que, para o javista, a cas do autor eloísta são ainda mais aparentes quan­
falta de hospitalidade, tão grave em uma sociedade do comparadas à versão mais primitiva. Enquanto
nômade, e a perversão social, contra a qual há forte 0 autor javista descreveu com certa minúcia os
preconceito veterotestamentário, são os pecados motivos de Abraão para fazer Sara passar por sua
pelos quais a cidade é condenada. irmã e explicou como ela foi parar no harém de
Ficamos chocados com a tentativa de Lot de Faraó, essas preocupações são, em grande parte,
aplacar a gente da cidade oferecendo-lhe suas duas ignoradas pelo eloísta, que, em vez disso, se concen­
filhas virgens, mas é improvável que uma platéia tra na culpa e na libertação de Abimélek. Apesar
antiga ficasse tão horrorizada. Teriam visto na oferta de ter agido por ignorância e, portanto, não ter
de Lot uma tentativa nobre, embora extrema, de pretendido fazer mal, Abimélek é considerado cul­
satisfazer as exigências da hospitalidade. Lot fra­ pado. Pecou, levando a mulher de outro homem para
cassa e ele próprio é salvo pelos dois hóspedes que seu harém, embora agisse inocentemente, e esse
infligiram a cegueira à gente da cidade. A maldade ato não pode ficar sem alguma forma de castigo.
de Sodoma se confirma e sua destruição é iminen­ Nesse caso, Abraão, cuja culpa é esquecida, interce­
te. Lot e sua familia precisam fugir para se salvar derá em favor de Abimélek. Abraão, que tem acesso
da destruição. O caráter fraco e vacilante de Lot se especial a Deus em virtude de sua vocação, é descri­
revela em sua hesitação para sair. Precisa ser con­ to no papel de mediador e profeta.
duzido para fora da cidade (v. 16). Há outras diferenças entre os dois relatos. Na
Há temas etiológicos ligados à história. Lot se versão javista não fica claro se Faraó teve realmente
recusa a fugir para a montanha e quer fugir para relações com Sara, mas o autor eloísta não deixa dú­
uma cidade “pequena”, Sôar (v. 20). O nome Sôar vida de que Deus interveio antes de Abimélek tocá­
significa “pequeno” ou “insignificante”. Esse favor -la. Aqui, os presentes de Abimélek a Abraão são
lhe é concedido e Sôar é poupada do julgamento. A testemunho da respeitabilidade de Abraão e Sara.
mulher de Lot se toma uma coluna de sal, quando Na versão javista, os presentes são dados quando
se volta para olhar a destruição, pois tinham recebi- Sara é levada ao harém de Faraó. A tentativa de
74 do ordens de não olhar para trás. Há muitas forma­ justificar a atitude de Abraão, afirmando que, na
GENESIS 22

verdade, Sara era sua meia-irmã, indica a sensi­ O primeiro pacto (vv. 22-24.27.31.32b.34) é
bilidade moral do eloísta. Enquanto o javista deixa iniciado por Abimélek e pressupõe os aconteci­
que o comportamento do patriarca fale por si mes­ mentos do capítulo 20. Abimélek quer ter certeza
mo, 0 eloísta explica os atos de Abraão, a fim de da amizade de Abraão e sugere uma aliança como
apresentar uma imagem mais respeitável de seu garantia da lealdade de Abraão, que concorda. O
ancestral. juramento da aliança é feito em Beer-Sheba, nome
21,1-21 O nascimento de Isaac e a expulsão que significa “Poço-do-juramento”.
de H agar e Ismael. Todas as três fontes encontram­ A natureza do segundo pacto (vv. 25-26.28-
-se nesse relato do nascimento de Isaac. A versão ja­ 30.32a.33) é bem diferente. Abraão toma a inicia­
vista (21,1 .6b-7) apresenta simplesmente o nascimen­ tiva, em reação à disputa acerca de um poço. As
to de Isaac na velhice de Sara como o cumprimento sete ovelhas aceitas por Abimélek indicam que ele
da promessa do Senhor (18,10). O riso é ligado ao reconhece o direito de Abraão ao poço. O lugar foi
nome de Isaac porque é a reação que Sara espera chamado Beer-Sheba, “Poço-dos-sete”, por causa
dos vizinhos quando souberem que ela deu à luz na do presente de Abraão. Seu sentido cultuai é suge­
velhice. A versão sacerdotal (21,2-5) também diz rido no V. 33. Em Beer-Sheba, Abraão invoca o
que 0 nascimento de Isaac é a realização da promessa “Deus eterno” (El Olam), nome divino usado pelos
divina (17,21), mas esse autor acrescenta que Abraão canaanitas e posteriormente dado ao Senhor por
pôs nome no filho e o circuncidou conforme Deus Israel (veja SI 102,25.28).
ordenara (17,19.12). Na versão eloísta (21,6a), so­ 22,1-19 O sacrifício de Isaac. A história do
mente é mantido o motivo do riso associado ao nome sacrifício de Isaac, em geral atribuída ao eloísta, é
Isaac. O menino é chamado Isaac por causa da ale­ uma das grandes obras-primas da arte narrativa na
gria (riso) de Sara quando ele nasceu. Bíblia. Somos atraídos à ação da história desde o
A narrativa eloísta do nascimento de Isaac (vv. início e mantidos na expectativa até o clímax. Como
8-21) é duplicata da história da expulsão de Hagar leitores, sabemos que o que é relatado é um teste
e Ismael que se encontra na versão javista do capí­ para Abraão; assim, concentramo-nos na resposta
tulo 16. Mas, como seria de esperar, nessa versão há de Abraão, não no horror da ordem divina. Cabe­
diferenças significativas. É o ciúme de Sara, não a -nos imaginar o que Abraão pensa, enquanto o nar­
arrogância de Hagar, que a leva a exigir que Abraão rador nos relata apenas o que ele faz. Seguimos
expulse os dois. Ela teme que a herança futura de Abraão em todos os passos do caminho, enquanto
Isaac esteja ameaçada pela presença de Ismael na ele cumpre a ordem divina. Sentimos o silêncio
casa. Aqui Abraão reage com mais firmeza à exi­ enquanto pai e filho caminham juntos, a cada pas­
gência de Sara do que na versão javista, na qual ele so se aproximando mais do momento de decisão
permaneceu passivo. Ele só cede ãs exigências dela definitiva. Sorrimos à pergunta inocente de Isaac e
quando Deus lhe diz para fazê-lo e lhe assegura que compartilhamos os sentimentos de Abraão ao dar
Ismael será pai de uma grande nação. sua resposta tema mas evasiva. Acompanhamos o
O eloísta pinta um quadro bastante entemece- desenrolar de cada detalhe daquele momento final,
dor da partida de Hagar e seu desespero subseqüen- desde a constmção do altar até a mão estendida
te quando a falta d’água ameaça sua vida e a do para apanhar o cutelo, pronto para tirar a vida do
filho. Deus intervém por meio de um mensageiro filho. Aguardamos esperançosamente até que o anjo
que lhe infunde confiança sobre o futuro de Ismael. intervém e, por fim, alegramo-nos com a mudança
Com a ajuda de Deus, ela encontra água. Ismael se dos acontecimentos. Abraão passou no teste e Isaac
torna pai de nômades com camelos (ismaelitas) que ainda vive.
viviam no deserto entre a Palestina e o Egito. Vi­ É óbvio que a narrativa ocupa-se da grande fé
viam da caça e de pilhagens, como indica a frase de Abraão, que se expressa na disposição de sacri­
“Era um atirador de arco” (v. 20). ficar seu filho, o filho da promessa, em obediência
A narrativa eloísta suprime os interesses etioló- à ordem divina. Com freqüência é feita uma liga­
gicos da versão javista. Enobreee a figura de Abraão ção entre essa história e o sacrifício humano. A
e até Hagar é apresentada sob uma luz melhor do prática do sacrifício humano era comum entre os
que no capítulo 16. Deus dirige a ação assegurando vizinhos de Israel e, em algumas ocasiões, embora
o futuro de ambos, do filho da promessa e do filho proibida, foi realizada até mesmo em Israel (veja
de Hagar. IRs 16,34; 2Rs 3,27; 23,10). Pode ser que original­
21,22-34 A braão eAbim élek em Beer-Sheba. mente a história se centralizasse no repúdio à prá­
Esta passagem contém dois pactos independentes tica do sacrifício humano. Entretanto, qualquer sig­
entre Abraão e Abimélek e, assim, surge a questão nificado mais primitivo agora está suplantado pelo
de fontes distintas. Alguns biblistas tentam encon­ tema da fé de Abraão posta à prova.
trar nessa passagem evidência tanto do autor javista A conclusão original da história era o v. 14, mas
como do eloísta. Outros supõem que um único au­ foi acrescentado um suplemento (vv. 15-19) para
tor, 0 eloísta, baseou-se em duas tradições distintas ligar a história ao tema da promessa, dominante nas
na composição da passagem. narrativas patriarcais. 75
GÊNESIS 23

22^0-23 Genealogia de Nahor. Esta genealo­ permanece em segundo plano. Em primeiro plano
gia é atribuída ao javista. Relaciona os doze filhos está a orientação divina, porém dirigida por inter­
de Nahor, parentes semíticos (arameus) de Israel. O médio do coração. Deus não intervém diretamente.
propósito dessa inclusão é preparar o caminho para Segundo o costume, Abraão precisa arrumar
o surgimento de Rebeca (24,23). casamento para o fdho. Como está velho e perto da
23.1- 19 A com pra de M akpelá por Abraão. morte, confia a tarefa de encontrar mulher para Isaac
Com freqüência afirmam que o autor sacerdotal é a um servo que age mais como um administrador de
responsável por essa narrativa, embora a expressi­ confiança do que como servo. Abraão obriga o servo
vidade da apresentação nos lembre o javista. A pas­ por juramento a cumprir essa missão, salientando
sagem conta como Abraão comprou um pedaço de sua suprema importância. A “coxa” do v. 2 é eufe­
terra em Canaã para enterrar sua esposa. Ao fazer mismo para os órgãos genitais, vistos como sagra­
isso, nos dá outro vislumbre encantador da arte de dos porque eram considerados a fonte da vida. O
regateio oriental. servo não deve deixar Isaac desposar uma canaanita.
Abraão é migrante na terra e, como tal, tem Essa proibição tem o objetivo de excluir a possibi­
apenas direitos limitados. Não pode ser legalmente lidade de misturar religiões. Não reflete um precon­
dono de propriedades. Para que ele adquira uma ceito racial como tal. Em nenhuma circunstância
propriedade, a questão deve ser decidida pelos an­ Isaac deve ser reconduzido à terra de Abraão (v. 6).
ciãos da cidade. Os filhos de Het com quem Abraão Evidentemente, essa viagem era vista como um re­
negocia não são os hititas anatolianos que foram trocesso na promessa divina de terra. É assegurado
poderosos nos séculos XVI/XV a.C., mas um dos que Deus guiará todo o empreendimento e o levará
muitos grupos que viviam na Canaã pré-israelita. a uma conclusão bem-sucedida.
Durante a conversa, cada parte tenta sobrepujar a A narrativa menciona ligeiramente a longa via­
outra em cortesia. Os filhos de Het hesitam em gem do servo a Arâm-dos-Dois-Rios, mas logo pas­
vender terra para um migrante, mas permitem que sa à busca de uma esposa adequada. Perto de um
Abraão enterre Sara em qualquer de seus túmulos. poço fora da cidade, o servo põe o sucesso de sua
Não é isso que Abraão quer e ele deliberadamente missão nas mãos de Deus e sugere um sinal pelo
ignora a sugestão e indica o local exato que deseja qual reconhecerá a escolha divina. O sinal de tirar
comprar. Num gesto magnânimo, Efron, o proprie­ água, não só para o servo, mas também para dez
tário da terra, oferece-se para “dar” a Abraão não só camelos sedentos, destina-se a revelar o caráter da
a caverna que ele quer, mas também o campo onde mulher; somente uma mulher generosa e diligente
ela se encontra. Abraão cortesmente recusa-se a acei­ estaria disposta a tirar do poço os muitos cântaros
tar a terra de presente e insiste em pagâr por ela. de água necessários. Rebeca chega (v. 15) e, inocen­
Toda essa conversa está dentro dos limites da temente, satisfaz os requisitos do sinal. Por isso, é
convenção do regateio. Embora Abraão pudesse ter cumulada de presentes, que, com toda a probabili­
regateado por um preço menor, ele aceita a primei­ dade, fazem parte do preço da noiva. O servo fica
ra oferta de Efron. É difícil determinar se o preço ainda mais seguro da orientação divina quando des­
de quatrocentos sidos de prata pago por Abraão cobre que Rebeca é sobrinha-neta de Abraão e ela
era considerado exorbitante, porque o valor do sido o convida para ir à casa de sua mãe. Por essa refe­
variava. O fato de ser a primeira oferta de Efron, rência à casa de sua mãe e pelo fato de que todas
que certamente esperava uma contra-oferta de as negociações subseqüentes são feitas com seu
Abraão, sugere ser o preço elevado. Em compara­ irmão, Laban, parece claro que o pai de Rebeca já
ção, Davi paga apenas cinqüenta sidos por uma morreu.
eira e bois (2Sm 24,24). Nos w . 16-20 encontramos A pressa em convidar esse rico estranho para
um contrato de venda formal. Abraão alcança seu ir a sua casa, depois de ver os presentes caros que
objetivo — agora é dono de propriedade em Canaã Rebeca recebeu, revela o caráter de Laban. Sua
para o enterro de Sara. ganância ficará ainda mais aparente nas narrativas
Embora reflita de maneira correta os costumes de Jacó e Laban que vêm a seguir. O servo é tra­
legais e sociais do antigo Oriente Próximo, o propó­ tado com toda a cortesia devida, mas a urgência de
sito desse capítulo não é apenas registrar um acon­ sua missão obriga-o a relatar sua história antes de
tecimento da vida de Abraão. Mais exatamente, a comer. Essa parte repete o discurso de Abraão na
posse de um pedaço da terra por Abraão representa cena inicial, com uma única omissão significativa;
o penhor da posse futura de toda a terra. o servo não alude à recusa de Abraão a deixar
24.1- 67 Escolha de um a m ulher para Isaac. Isaac ir a sua terra natal, pois provavelmente isso
Essa encantadora história é outro exemplo da arte ofendería a família de Rebeca. Laban admite que
narrativa superior do javista. Há alguma evidência Deus orientou o servo e concorda com o casamen­
de compilação, mas isso não afeta a unidade da his­ to. De maneira apropriada, mais presentes são dados
tória. A repetição, que o leitor moderno acha cansa­ para selar o acordo (v. 53).
tiva, é característica da narrativa bíblica e, na verda- O costume exigia um período de celebração, mas
76 de, não deprecia a história. O tem a da promessa 0 servo quer ir embora e sugere partir imediatamente
GÊNESIS 25

com Rebeca. A objeção da família é compreensível, Laban, que talvez outrora tenha circulado à parte
mas 0 servo lembra a Laban que o S enhor orientava das histórias de Esaú e Jacó, agora também se rela­
a missão e, por isso, não havia necessidade de prote­ ciona com esse tema.
lação. Os sentimentos de Rebeca a respeito do assun­ 25,19-26 O nascimento de Esaú e Jacó. Com
to são solicitados, de acordo com costumes antigos a genealogia sacerdotal (vv. 19-20) que introduz
que consideravam o consentimento da mulher neces­ essa passagem, passamos a uma nova fase na his­
sário quando o irmão contratava seu casamento ou tória patriarcal — o período de Isaac e Jacó. O que
quando o casamento significava que ela precisaria se inicia como genealogia de Isaac é interrompido
sair da terra natal. Neste caso, ambas as estipulações pelo relato do nascimento de Jacó e Esaú, em geral
estão em vigor. Rebeca concorda e recebe uma bên­ atribuído ao javista (vv. 21-26a). A história pode
ção antiga que promete fertilidade e poder sobre os parecer deslocada em vista do que a precede e do
inimigos no futuro (v. 60). que a segue, mas está claramente pressuposta no
A cena final muda para o Négueb, quando a capítulo 27.
caravana está chegando de volta. O texto é intradu- A esterilidade de Rebeca repete a de Sara, mas
zível, por isso só podemos supor o que Isaac esta­ sua solução é quase imediata e o assunto não se
va fazendo quando viu sua futura noiva se aproxi­ toma tema importante das tradições de Isaac e
mar. Rebeca cobre-se com o véu, como era costu­ Rebeca, como aconteceu nas tradições de Abraão
me — 0 noivo só podia ver a noiva depois do ma­ e Sara. Como aconteceu com Sara, Deus intervém
trimônio. A passagem termina com o casamento e e Rebeca engravida. Apenas um resquício da base
o subseqüente amor dos dois. A ordem de primeiro cultuai da passagem conserva-se pelo uso das pa­
o casamento e depois o amor reflete o que era lavras “implorou”, “teve compaixão”, “foi consul­
comum nos casamentos arranjados. tar” e “respondeu”. A alegria de Rebeca por estar
25,1-18 A morte de Abraão. Essa parte combi­ grávida logo se transforma em desespero por cau­
na genealogias das fontes javista (w. 1-6.1 Ib) e sa­ sa da luta que se travava em seu seio. O oráculo (v.
cerdotal (vv. 12-18) com um relato da morte de 23), que, com certeza é o centro de toda a passa­
Abraão (vv. 7-1 la, P). E difícil ajustar os w . ini­ gem, é tanto uma certeza, como motivo de preocu­
ciais, que falam do casamento de Abraão, à narra­ pação. Que Rebeca será mãe de duas nações é, na
tiva precedente, na qual Abraão é velho e, com cer­ verdade, uma bênção; que uma ultrapassará a outra
teza, morre antes de Rebeca desposar Isaac (veja não é incomum. O que causa apreensão é que serão
24,65: Isaac é agora amo do servo). É provável que divididas e que, bem diferente do curso normal dos
essa discrepância se explique pela justaposição de acontecimentos, o mais velho servirá o mais novo,
narrativas javista e sacerdotal que não seguem as o que significa uma luta dolorosa entre os dois.
mesmas cronologias. Qeturá, a segunda mulher de Este oráculo se toma programático à medida que
Abraão, toma-se mãe das tribos árabes que habita­ prossegue a história de Jacó e Esaú.
vam o sul da Palestina e o noroeste da Arábia. As Por uma série de trocadilhos subentendidos e
doações que Abraão faz a esses filhos testemunham explícitos, o narrador destaca características de Jacó
sua generosidade, mas também salvaguardam a he­ e Esaú que fazem parte do comportamento e do
rança para Isaac. relacionamento futuros desses dois irmãos. Esaú é
Abraão morre depois de uma vida plena. Não “ruivo” ( 'admoni) e “peludo” {se ’ar); mais tarde ele
nos surpreende encontrar Ismael presente no fune­ se toma pai dos edomitas, que vivem na região de
ral do pai (v. 9), pois o autor sacerdotal não relata Seir. A afirmação de que Jacó sai com a mão agar­
a expulsão de Hagar. Abraão é enterrado no túmulo rada ao “calcanhar” de Esaú funciona como troca­
da família (cap. 23). A narrativa conclui com a dilho com 0 nome de Jacó e também como sinal
genealogia sacerdotal de Ismael, que se toma o pai indicativo de sua natureza gananciosa e do fato de
de doze tribos que ocupam o noroeste do deserto que suplantará o irmão. O nome Jacó é, na verdade,
árabe. A promessa dada a Abraão sobre Ismael forma abreviada de um nome semelhante a Jacobel,
(21,13, E) é considerada cumprida. que significa “Que Deus proteja”.
25,27-34 Esaú vende seu direito de primoge-
O CICLO DE JACÓ nitura. A tensão entre os dois irmãos é exemplifi­
cada por suas vocações diferentes. Esaú é caçador,
Gn 25,19-36/43 homem do campo e, por dedução, selvagem e rude.
O ciclo de narrativas de Jacó difere do ciclo de Jacó é pastor, habitante de tendas e, portanto, mais
Abraão em sua coerência interna. Somente o fio civilizado. A diferença entre os dois irmãos é mais
da promessa unia o ciclo de Abraão; cada seg­ acentuada pelo amor preferencial de Isaac por Esaú
mento permanecia uma unidade independente. No e de Rebeca por Jacó.
de Jacó, além do tema de promessa, ainda que pre­ O desenrolar da história mostra Esaú tão preo­
sente nessas narrativas, encontramos o tema da briga cupado com a satisfação imediata que perde todo o
entre irmãos, que integra essas histórias em um senso de proporção. Pôr um simples caldeirão de
nível mais profundo. Até o ciclo de narrativas de uma “coisa ruiva” (v. 30), vende seu direito de pro- 77
G Ê N E S IS 2 6

genitura, que correspondia a uma porção dupla da A adição sacerdotal (vv. 34-35) prepara para
herança familiar. No final, o narrador comenta que os acontecimentos de 27,46-28,9. Curiosamente, o
“Esaú menosprezou seu direito de primogenitura” conflito entre Esaú e Jacó está ausente da tradição
(v. 34), 0 que suas ações demonstram, com certeza. sacerdotal. O motivo de discórdia são as mulheres
Não há nenhuma crítica explícita da rematada ma­ estrangeiras de Esaú.
nipulação de seu irmão por Jacó. Este claramente se 27,1-46 A bênção. A história da trapaça de Jacó,
aproveita do irmão, forçando-o não só a vender seu por meio da qual ele recebe a bênção destinada a
direito de progenitura por um prato de lentilhas, mas Esaú, é mistura magistral das fontes javista e eloísta,
também a fazer um juramento, para tomar o trato mas é impossível separar as fontes nesta história
irrevogável. dramática cuidadosamente estruturada. A cena come­
O caráter de Jacó é um dos desenvolvidos com ça com Isaac e seu filho predileto, Esaú, depois
mais cuidado nas narrativas patriarcais. Embora o muda para Rebeca e seu predileto, Jacó. Depois da
narrador se abstenha de julgamentos morais explí­ trapaça de Jacó, Isaac está outra vez com Esaú e
citos, ele mostra que as ações de Jacó o afastarão de Rebeca com Jacó. Somente na cena central, cena
casa, sem dinheiro e à mercê de Laban. A escolha importante em que a bênção é transferida, os pais
de Jacó por Deus permanece um mistério, mas des­ não estão cada um com seu filho predileto.
de o momento em que Deus aparece a Jacó (28, Na cena inicial, Isaac, velho e cego, deseja aben­
lOss.) seu caráter começa a melhorar. çoar Esaú antes de morrer. No mundo antigo, acredi­
26,1-35 Fragmentos sobre Isaac. Há pouca tava-se que as bênçãos dadas no leito de morte ti­
coisa para unificar esse capítulo, exceto a presença nham eficácia especial e a refeição preparada e con­
de Isaac. Na verdade, este é o único capítulo dedi­ sumida antes da bênção tinha caráter sacro. Rebeca
cado a ele, mas quase só contém duplicatas ou ecos escuta as palavras de Isaac a Esaú e urde um plano
de histórias sobre Abraão. Com exceção dos vv. para fazer com que Jacó receba a bênção destinada
34-35, que são da fonte sacerdotal, o capítulo é a Esaú. Parece impossível que o plano de Rebeca dê
obra do javista. certo, 0 que apenas aumenta a expectativa na cena
A narrativa encontrada nos vv. 1-11 é outra seguinte. O único receio de Jacó é com o que aconte­
versão da história da ancestral em perigo (12,10ss.; cerá se for pego na trapaça. Rebeca atrai para si
20). Essa narrativa é a menos ofensiva e a menos mesma qualquer maldição que possa ser dirigida
fascinante das versões. Pela segunda vez, a fome é contra Jacó e ele não faz outras objeções. Na cena
dada como razão da mudança para um novo terri­ central do capítulo, a expectativa aumenta a cada
tório, mas esta fome é claramente distinta da fome declaração de Isaac: “Quem és tu, meu filho?”;
do tempo de Abraão. Não há nenhuma ameaça real “Como achaste depressa...!”; “Vem mais perto, meu
para Isaac ou para Rebeca. Pelas outras versões, filho, para eu te apalpar. És realmente meu filho
pode-se supor que ela foi levada ao harém de Esaú ou não?” Somente quando finalmente respira
Abimélek, mas isso não é mencionado nessa ver­ o odor das roupas do filho, Isaac convence-se da
são. Surpreendentemente, Deus está ausente. mentira e o abençoa.
Abimélek vê que Isaac “se divertia” com Rebeca Mal Jacó sai, entra Esaú (v. 30). A revelação
(v. 8) e percebe que o relacionamento deles não é da trapaça abala muito tanto Isaac como Esaú, que
de irmão e irmã. Mais uma vez, o nome de Isaac reagem com sobressalto e amargura. No mundo
é a base para um trocadilho, pois “divertir-se” e antigo, acreditava-se que uma bênção ou maldição,
“riso” derivam da mesma raiz hebraica. Não são depois de pronunciada, tinha vida própria e não
dados presentes na conclusão do episódio, mas Isaac podia ser anulada. A bênção dada a Jacó é irrevo­
e Rebeca têm proteção garantida. gável; não há nada que Isaac possa fazer para can­
Isaac recebe duas vezes uma aparição divina celá-la. Esaú reconhece como o nome de Jacó está
(vv. 2-5.24) em que a promessa feita a Abraão é certo, pois ele o “suplantou” (outro trocadilho com
reiterada quase com as mesmas palavras. O v. 5 é, o nome de Jacó) duas vezes — a primeira ao barga­
certamente, inserção de um período mais tardio, nhar o direito de progenitura e agora ao conseguir
pois fala da obediência de Abraão em linguagem a bênção. Esaú implora por alguma bênção e, embo­
deuteronômica. Como Abraão, Isaac levantou um ra Isaac tente ceder, suas palavras soam mais como
altar no local da aparição divina (v. 25). maldição. É compreensível que Esaú nutra um ran­
A bênção de Deus sobre Isaac é imediatamen­ cor assassino contra Jacó, o que força Rebeca a
te percebida na abundância da colheita e em sua afastar Jacó para a segurança dele. Nem ela nem
crescente riqueza. A disputa por poços (w . 15-25) ele percebem que nunca mais se verão.
já se encontrava nas histórias de Abraão e parece A bênção dada a Jacó assegura-lhe a futura
ser uma tradição variante do mesmo evento, assim fertilidade da terra e o domínio sobre os irmãos. A
como a aliança entre Abimélek e Isaac (w . 26-33) “bênção” de Esaú é o contrário, mas sua sujeição
é uma variante da história de Abraão (21,22ss.) ao irmão será apenas temporária. Esses dois orácu­
Aqui encontramos mais uma etimologia do nome los refletem-se nos irmãos como representantes de
78 Beer-Sheba (v. 33). suas nações respectivas, Israel e Edom. Edom tor-
GÊNESIS 29

nou-se nação antes de Israel, mas foi mais tarde Essas esteias eram símbolos cultuais cananeus da
conquistada por David e tomou-se vassala de Israel. fertilidade e foram encontradas em importantes
Os edomitas rebelaram-se muitas vezes eontra centros cultuais. Quando Israel conquistou a terra,
Israel e, por fim, reconquistaram a independência. herdou locais cultuais cananeus com essas pedras,
É interessante notar que o narrador evita fazer mas associou-os a acontecimentos da vida dos pa­
um julgamento moral direto sobre a trapaça de triarcas, desse modo eliminando o significado reli­
Rebeca e Jacó. O narrador não pode condenar Jacó, gioso pagão das pedras e usando-as simplesmente
pois sabe que ele é o herdeiro da promessa. O orá­ como esteias.
culo falou: 0 grande servirá ao pequeno (25,23). A versão javista (vv. 10.13-16.19) usa a aparição
Rebeca deve ser condenada por ajudar no cumpri­ do Senhor como oportunidade para estender a pro­
mento da palavra divina? Isaac não contraria a pa­ messa de Abraão a Jacó (12,1-3). O Senhor é identi­
lavra de Deus ao querer assegurar a bênção para o ficado como o Deus de Abraão e Isaac e assegura a
filho mais velho? O narrador deixa essas perguntas Jacó a presença e a proteção divinas em seu caminho.
sem resposta: apenas conta a história. Contudo, no O Senhor é revelado como Deus dos ancestrais, isto
jeito de contá-la, o narrador dirige nossa compaixão é, comprometido com uma família ou um clã, não
a Esaú como vítima inocente e magoada. Dá-nos, preso a um lugar ou a uma terra específicos.
com certeza, um sinal de desaprovação ao descrever A ligação de Abraão (12,8; 13,3-4) e Jacó a
os efeitos esmagadores dessa trapaça. A família se Betei mostra a preocupação de Israel com essa cida­
separa por causa dela. Vinte anos se passarão antes de. Betei se transformou em centro cultuai extrema­
que Jacó volte para casa. Ele não só agarrou o cal­ mente importante no antigo Israel (veja Am 5,5-6;
canhar do irmão como também o substituiu, a um 7,10-13; Os 10,15). Dominou a vida cultuai de Is­
custo altíssimo. rael no norte, desde a época do reino dividido (IRs
27,46-28,9 Jacó sai para procurar um a es­ 12,28-29) até ser destruído durante o período da
posa. Essa passagem do autor sacerdotal continua reforma deuteronômica (2Rs 23,15).
a narrativa da insatisfação de Rebeca com os casa­ 29,1-14 Chegada de Jacó a Harran. A fonte
mentos de Esaú, tema que se iniciou em 26,34-35. javista predomina nessa história da chegada de Jacó
Nessa tradição, o motivo da partida de Jacó é muito a Harran. Ele chega a um poço, presumivelmente o
diferente do da história anterior. Jacó não está fu­ mesmo em que o servo de Abraão encontrou uma
gindo da ira de Esaú; mais exatamente, parte com esposa para Isaac. Jacó, que antes pouco contribuira
a bênção paterna, em busca de uma esposa ade­ nas conversas, toma-se bastante loquaz nessa passa­
quada. A inimizade entre Esaú e Jacó desapareceu. gem. O autor descreve vivamente um jovem Jacó ani­
Na verdade, Esaú procura imitar o bom exemplo mado, tentando puxar conversa com os pastores locais,
de Jacó e consegue uma esposa da família do pai. um tanto taciturnos. O diálogo concentra-se na ina­
A questão do casamento entre judeus e não-judeus tividade dos pastores, que se explica pelo fato de
foi especialmente crucial durante o período da estarem esperando para dar de beber aos rebanhos
restauração (depois de 538 a.C.), quando Israel e não poderem fazer isso enquanto a grande pedra
estava preocupado com a integridade de suas prá­ que fechava a abertura do poço não fosse removida.
ticas religiosas e a pureza de raça. Obviamente, a pedra tinha a finalidade de garantir
28,10-22 Sonho de Jacó em Betei. A história a igualdade de acesso ao limitado suprimento de
da origem de Betei como santuário serve de elo água no poço: só podia ser removida quando todos
entre a vida anterior de Jacó na terra de Canaã e os pastores estavam reunidos.
sua vida futura em Harran. É combinação das fon­ A conversa inclui perguntas de Jacó sobre o tio
tes javista e eloísta e continua a narrativa de 27,42­ (vv. 5-6). Em resposta, os pastores apontam para
45. Nas duas versões da história, Jacó tem uma Raquel, filha de Laban, que se aproxima. Quando
profunda experiência religiosa em Betei, o que Raquel chega, Jacó retira a pedra do poço e faz as
testifica a santidade do lugar. ovelhas de Laban beberem. É o reverso do capítulo
A versão eloísta (vv. 11-12.17-18.20-22) do­ 24, quando Rebeca deu de beber aos camelos do
mina a passagem. Depois de fugir da ira de Saul, servo. Ao remover a pedra, Jacó revela sua grande
Jacó se vê em um santuário, onde passa a noite, força, 0 que impressiona Laban quando fica saben­
usando uma pedra como travesseiro. Como é ca­ do. Jacó se enche de alegria ao encontrar Raquel.
racterístico na tradição eloista, a revelação divina Depois que Raquel informa a chegada de Jacó,
vem em um sonho. Jacó vê uma escada que vai da Laban sai para saudá-lo. As palavras de Laban, “Tu
terra ao céu e a identifica como “a porta do céu” és com certeza meus ossos e minha came” (v. 14),
(v. 17). No mundo antigo acreditava-se que havia são ambiguas. Talvez expressem seu prazer ao en­
alguns lugares na terra onde os reinos divino e contrar Jacó, mas também poderíam trair seu desa­
terreno se encontravam. Um desses lugares era pontamento ao encontrar esse parente pobre. Jacó
Betei. Jacó reconhece a santidade do lugar; chama vem até ele, não com a riqueza que acompanhou o
a própria pedra de Betei, isto é “casa de Deus” (v. servo de Abraão, mas sem vintém. O que Laban po­
22). Jacó consagra a pedra e a erige em esteia. de fazer além de oferecer-lhe sua casa? Afinal de 79
GÊNESIS 29

contas, ele é da família. Em vista do tratamento Leá. Além de ser a esposa não amada, é lembrete
posterior que Laban dispensa a Jacó, é mais prová­ constante a Jacó da trapaça do tio.
vel que a expressão indique seu desapontamento. 29,31-30,24 Nascimento e nomes dos filhos de
29,15-30 Os casamentos. Nos vv. 15-30 são Jacó. Algumas unidades menores das fontes javista e
introduzidos temas que se tomam dominantes nas eloísta são reunidas para formar um relato integrado
narrativas seguintes. Eles desenvolvem-se em tomo do nascimento e do recebimento de nomes dos filhos
das palavras “serviço” e “salário” — o serviço de de Jacó. A etimologia popular é usada livremente
Jacó e 0 salário pago por Laban. para explicar a relação entre os nomes dos filhos e a
A pergunta “Por acaso servirás gratuitamente luta rancorosa entre Leá e Raquel por amor e reco­
por seres meu irmão? (v. 15) inicia os negócios nhecimento no lar, Laban criou uma situação em que
astutos e trapaceiros que caracterizarão o relaciona­ Jacó se vê casado com duas mulheres, amando ape­
mento entre Laban e Jacó. Parece que Laban está nas uma delas. Por fim. Deus controla o curso dos
sendo magnânimo ao se oferecer para pagar a Jacó acontecimentos, fazendo Leá fértil e Raquel estéril,
um salário por seus serviços, mas, de fato, está mas no nível humano a história gira em tomo dos
declarando nulo o laço de parentesco (tio-sobrinho). ciúmes de Leá e Raquel. O papel de Jacó na história
Jacó sugere sete anos de trabalho pela mão de limita-se em grande parte a gerar filhos.
Raquel em casamento; seu trabalho serviría de O paradoxo da narrativa centraliza-se na posi­
preço pela noiva. Esse costume de pagar um preço ção das duas mulheres. Leá, como primogênita,
pela noiva reconhecia a utilidade da mulher e tinha primeira esposa e primeira mãe, devería ter o amor
a finalidade de compensar a família pela perda e o reconhecimento do marido, mas Jacó ama Ra­
do trabalho dela com o casamento. A resposta de quel, a mais jovem. Raquel, embora amada, é estéril
Laban a Jacó é ambígua. Não diz que dará Raquel e teme a perda do amor de Jacó por causa de sua
a Jacó em casamento e sim que “prefere dá-la” a incapacidade de lhe dar filhos. A cada filho que Leá
Jacó do que a outro (v. 19). A razão para essa fal­ tem, Raquel se toma mais desesperada, a ponto de
ta de clareza toma-se óbvia com o desenrolar da exigir filhos de Jacó. Ele a faz lembrar-se de que é
história. Deus quem dá filhos. Conseqüentemente, a luta de
Para Jacó, apaixonado por Raquel, os sete anos Raquel é não só por amor, mas também pelo favor
passam depressa. Quando chega a hora do paga­ de Deus. Como Sara antes dela (cap. 16), Raquel
mento, Laban dá a Jacó a fiUia mais velha, Leá. finalmente se toma mãe por intermédio de sua ser­
Muitas vezes o leitor moderno fica admirado com va. Da mesma forma, Leá dá sua serva a Jacó quan­
a aparente “cegueira” de Jacó ao deixar de notar do cessa de engravidar durante algum tempo, o que
que a noiva não é Raquel, mas isso era possível em estava de acordo com o costume (veja cap. 16).
vista dos costumes matrimoniais da época. A noiva A história das maçãs de amor (mandrágoras)
era coberta de pesados véus e durante a festa das (30,14) revela como a situação doméstica se dege­
bodas era acompanhada na escuridão da noite até nerou. Uma Raquel ciumenta nega a Leá o acesso
a casa do marido. Só podemos presumir que a es­ ao marido. Leá barganha por seus direitos e “con­
curidão, o véu e, provavelmente, um embotamento trata” o marido por aquela noite. Jacó, que se toma­
dos sentidos provocado pela comemoração impe­ ra “servo” de Laban por “salários”, agora é “servo”
dem Jacó de perceber que a mulher com quem se de Leá por “salários” pagos a Raquel. Os salários
casou não é Raquel. Jacó, que enganara um cego são maçãs de amor, ervas que se acreditava terem
(cap. 27), é, ele próprio, tratado por Laban como poderes mágicos e que eram usadas como afrodisíaco
se fosse cego. Fica parecendo ainda mais tolo que e auxílio à fertilidade. Nessa narrativa, entretanto,
Isaac, pois tem visão e, conAxdo, foi facilmente en­ Raquel engravida graças à intervenção divina. É inte­
ganado por Laban. ressante notar que Deus só se lembra de Raquel
Laban nega-se a levar em consideração a indig­ depois que ela dá a Leá acesso ao leito de Jacó.
nação de Jacó ao descobrir a trapaça do tio. Laban Das filhas de Jacó só é mencionada Diná, mas
diz que não era costume entre eles “dar a caçula não é feita nenhuma associação etimológica com
antes da mais velha” (v. 26, em tradução literal). seu nome, como acontece com o nome dos filhos.
Isso tem de ser considerado afronta direta a Jacó, A referência a Diná talvez seja uma inserção des­
que, embora mais jovem, usurpara a posição do pri­ tinada a antecipar sua história no capitulo 34. O
mogênito ao adquirir o direito de prímogenitura e a nascimento de Benjamin não está incluído aqui,
bênção que caberíam ao irmão. Sem dar tempo a sendo adiado até 35,17ss., talvez porque Raquel
Jacó para responder, Laban sugere que quando ter­ morre no parto e sua morte ficaria fora de contexto
minar a semana das bodas, Jacó pode se casar com no capitulo 30.
Raquel, sob a condição de continuar a trabalhar para 30,25-43 Jacó adquire grande fortuna. Em­
Laban outros sete anos. Destinado a ser chefe bora haja nele evidência de múltiplas fontes, esse
(27,29), Jacó permanece servo na casa do tio outros texto é, em princípio, obra do javista. Os temas de
sete anos. Laban uso o amor de Jacó por Raquel “serviço” e salários”, antes predominante, desta­
80 contra ele, sem pensar na posição em que colocou cam-se mais uma vez. No capítulo 29, Laban en-
GENESIS 31

ganou Jacó e conseguiu quatorze anos de “servi­ não é livre para se separar do sogro com suas mu­
ço”, em troca de esposas, seus “salários”. Mas Jacó lheres e filhos, mas a razão disso não está clara.
aprendeu bem a lição e agora tenta superar em Talvez indique que o casamento de Jacó era um
astúcia 0 velho e ardiloso Laban. casamento-adoçâo, costume do antigo Oriente Pró­
A conversa entre os dois é outro exemplo da ximo. Se assim fosse, Jacó seria considerado filho
arte oriental de regateio. Lembrando a Laban seus adotivo de Laban e suas mulheres e seus filhos se­
anos de serviço, Jacó pede permissão para partir. riam propriedade de Laban. A fuga de Jacó com as
Laban, que deseja que Jacó continue a trabalhar para mulheres e os filhos teria sido ilegal.
ele, ignora o pedido de Jacó. Mas admite que se As inserções javistas no texto (w. 1.3) indicam
beneficiou com os serviços de Jacó e pergunta-lhe que a atitude dos filhos de Laban fizeram Jacó se de­
que salário deseja. Jacó, por sua vez, ignora a per­ cidir a partir. A contribuição do autor sacerdotal à
gunta de Laban e afirma a intenção de prover para história é mínima. Na verdade, há só a nota breve in­
sua família. Diz até que Laban não precisa pagar, o formando que Jacó partiu para voltar para casa (v. 18).
que é certamente hiperbólico, pois na mesma hora 31,17-35 Fuga de Jacó. A versão eloísta con­
estabelece o salário para a continuação de seu ser­ tinua a dominar a narrativa, embora a mão do javista
viço. Laban é iludido pelo modesto pedido de Jacó. apareça de vez em quando. A fuga de Jacó aconte­
Como pagamento, Jacó pegará todo cordeiro ma­ ce quando Laban está ocupado com a tosquia anual.
lhado e as cabras manchadas, o que seria muito Jacó consegue “ludibriar” (“enganou a vigilância”,
poucos animais, pois em geral as ovelhas eram bran­ V. 20) Laban. A tradução literal do texto hebraico
cas e as cabras pretas. Laban concorda, mas procura é: “Jacó roubou o coração de Laban”. (Na antropo­
cortar qualquer perda, retirando do rebanho todos logia hebraica, o coração não era a sede das emo­
os animais de cores anormais e pastoreando-os à ções, mas do intelecto.) A ação de Jacó é equipara­
distância de três dias de marcha do rebanho que da ao roubo de Raquel, no v. 19: “Raquel roubou
estava aos cuidados de Jacó. A distância funciona os ídolos que pertenciam a seu pai”. Os motivos de
contra Laban, pois dá a Jacó a oportunidade de le­ Raquel não estão claros. Pelo menos nos documen­
var a cabo seu plano sem ser observado. tos de Nuzi, os ídolos domésticos representavam
As práticas de criação de animais de Jacó ba­ as credenciais do verdadeiro herdeiro. Raquel podia
seiam-se na crença antiga de que o que a mãe sente estar tentando assegurar uma futura reivindicação
durante a gravidez é transmitido ao feto. Jacó arru­ da herança ou simplesmente desejando conseguir
ma três varas que corta a fim de deixar a nu a ca­ deles prosperidade e bênçãos.
mada de albumo. As cabras pretas olham para essas Antes de Laban alcançar Jacó, Deus lhe apa­
varas enquanto se acasalam, e o branco da camada rece em uirusonho e avisa-o para não prejudicar
de albumo se transfere para suas crias, que saem Jacó (v. 24). Isso deixa Laban em posição bastante
malhadas. Jacó faz as ovelhas brancas olharem para desconfortável. Chegou pronto a lutar, mas só pode
as cabras negras a fim de obter os mesmos resul­ se exasperar. Nada pode fazer a respeito da partida
tados. Usa propositalmente apenas os melhores de Jacó, mas o roubo dos ídolos domésticos não
animais do rebanho para seu acasalamento seleti­ pode ser ignorado. Jacó nega qualquer conheci­
vo, deixando Laban com um rebanho de animais mento do roubo e, sem querer, pronuncia a senten­
fracos e inferiores. ça de morte de sua amada Raquel. A expectativa
Em todo o relato das práticas de acasalamento que se forma durante a busca de Laban dissipa-se
de Jacó há uma série de trocadilhos. O “álamo”, as no momento em que o leitor descobre que a Ra­
“faixas brancas” e a “camada de albumo” são pala­ quel menstruada está sentada sobre os ídolos (v.
vras que em hebraico têm som parecido e se rela­ 34) Há algo irônico sobre os “deuses” reverencia­
cionam com o nome Laban e seu significado, “bran­ dos como sagrados sendo protegidos pelo tabu
co”. Em certo sentido, Jacó está usando o conheci­ antigo de “impuro” associado a sangue. Fosse qual
mento que tem da natureza de Laban (branco) contra fosse a importância original desses deuses, não há
ele. Jacó, o que foi enganado (cap. 29), toma-se uma dúvida de que o autor, para quem os ídolos não pas­
vez mais, o trapaceiro. sam de madeira e pedra, ridiculariza a crença pagã
31,1-16 Jacó prepara-se para deixar Laban. e o culto dos ídolos.
As diferenças mais importantes entre a versão eloís- 31,36-32,3 Aliança de Jacó com Laban. Jacó
ta do capítulo 31 e a javista do capítulo anterior obtém uma vantagem quando Laban não encontra
dizem respeito ao papel de Deus e de Jacó. Nessa os ídolos. Passa a descrever seus serviços leais e a
versão é o S enhor que inicia a ação e não o pró­ compará-los com o tratamento mesquinho de Laban.
prio Jacó (vv. 12-13). Deus protegeu Jacó da fal­ Este não parece impressionado com o discurso de
sidade de Laban, fez Jacó ser bem-sucedido na Jacó, pois continua a afirmar ser o dono das mulhe­
obtenção de riqueza e agora ordena-lhe que volte res, dos filhos e dos rebanhos de Jacó, mas não
para casa. O encontro de Jacó com suas mulheres pode fazer nada, por causa do aviso de Deus.
permite-lhe justificar-se e ver se elas estão de acor­ A forma atual do acordo a que chegam Laban
do. Em toda a narrativa está subentendido que Jacó e Jacó é combinação de duas alianças independen- 81
G Ê N E S IS 3 2

tes, uma da fonte javista e outra da eloísta. A alian­ v. 31 Jacó se admira de ter visto Deus e continuar
ça da versão javista é um pacto de não-agressão vivo. Talvez a ambigüidade seja mantida para evi­
entre Arâm e Israel. O sinal da aliança é um monte tar a afirmação explícita de que Jacó venceu, pois
de pedras e ela é selada com uma refeição. A ver­ nessa história o atacante noturno é, posteriormente,
são eloísta é tirada de um acordo de fronteiras entre identificado como Deus (v. 31).
Arâm e Israel. A aliança é marcada por uma esteia A história incorpora elementos tirados de fontes
e ratificada por um sacrifício e uma refeição. Nas muito antigas. O tema — para atravessar um rio a
duas alianças há trocadilhos ligados ao nome do pessoa deve aplacar um deus-rio — é encontrado
lugar onde a aliança foi ratificada. Na história com freqüência no folclore antigo. Há também a
javista, Galeed é um trocadilho da palavra hebraica idéia originária do folclore antigo de que o poder de
para “monte de pedras”; na versão eloísta, Mispá certos seres sobrenaturais limita-se ao período notur­
é assim chamado porque soa como o hebraico para no; ao raiar do dia, devem partir ou ser subjugados.
“esteia”. Esses elementos antigos explicam apenas um nível
O episódio conclui com a volta de Laban para da história. Deixam sem resposta questões sobre a
casa e o prosseguimento da viagem de Jacó (32,1­ relação dela com o ciclo maior de Jacó.
2). Imediatamente Jacó encontra os mensageiros Não há dúvida de que, além de preservar ele­
de Deus. Essa experiência proporciona o nome do mentos folclóricos antigos, a história recebeu um
lugar, Mahanáim (“dois acampamentos”). O moti­ tratamento distintamente israelita. A luta de Jacó é
vo da inclusão desse fragmento certamente deve lembrada por intermédio de seu novo nome, Israel,
ultrapassar o significado da palavra, mas o propó­ explicado pela etimologia popular como “o que
sito não está claro. O encontro com os mensagei­ luta com Deus”. A cidade de Peniel também recebe
ros de Deus dá a Jacó a idéia de enviar “mensagei­ seu nome depois da luta de Jacó e, mais uma vez,
ros” a Esaú? De dividir sua família em dois acam­ a etimologia popular é o veículo da explicação (v.
pamentos? Prepara para o ser misterioso que Jacó 31). Finalmente, a história justifica a regra dietética
encontra em 32,23-33? que proibia os israelitas de comer o músculo da
32,4-21 Jacó se prepara para encontrar Esaú. coxa, em memória da coxa ferida de Jacó, mas essa
Continuamos a encontrar uma mistura das fontes lei não está registrada em nenhuma outra passa­
javista e eloísta, à medida que a narrativa segue em gem do Antigo Testamento e Israel não a observava.
direção ao eneontro de Jacó com seu irmão Esaú. O interesse do javista na história ultrapassa
Na história javista (vv. 4-14a), Jacó envia mensagei­ quaisquer das preocupações mencionadas até aqui.
ros a Esaú, na esperança de obter suas boas graças. O javista mostra que Jacó, o contendor com Esaú
Quando os mensageiros comunicam que Esaú está e Laban, é levado a lutar com o próprio Deus e, por
a caminho com quatrocentos homens, Jacó fica com- isso, nunca mais será o mesmo. Essa experiência
preensivelmente assustado e divide o acampamento altera profundamente o caráter de Jacó. A partir
a fim de evitar o desastre total. Depois de tomar desse momento até sua morte, ele é uma pessoa de
medidas práticas, Jacó volta-se para Deus. Sua ora­ honra e integridade. Além disso, Jacó (agora Israel)
ção revela seu estado de ansiedade ao pedir a ajuda revela em sua vida a luta de Israel com Deus ao
divina, lembrando a Deus a promessa. viver como o povo da aliança.
No relato eloísta (vv. 14b-22), Jacó procura 33,1-20 O encontro de Jacó e Esaú. Em geral
apaziguar o irmão com muitos presentes. As pala­ se supõe que a fonte javista é responsável por essa
vras hebraicas para “presentes” e “acampamentos” cena final da narrativa da volta de Jacó a Canaã,
lembram o trocadilho anterior do v. 3 (Mahanáim); embora ainda possam ser percebidos traços da fonte
o uso freqüente da palavra “face” antecipa o epi­ eloísta. O encontro real dos irmãos acaba por ser
sódio de Peniel (“Face-de-Deus”, v. 31) que se um tanto anticlimático. Os amplos preparativos e
segue. os gestos subservientes de Jacó mostram-se efica­
32,22-33 Jacó luta com Deus. Essa história, zes. Esaú não mais deseja matá-lo e até expressa
que atrasa o encontro de Jacó com Esaú, é geral­ grande alegria com a volta de Jacó (v. 4). Por seu
mente atribuída ao javista. Sozinho, depois de enviar lado, Jacó compara seu encontro com Esaú ao que
suas mulheres, seus filhos e seus bens para o outro tivera com Deus (v. 10).
lado do rio, Jacó é atacado por um “homem”, com Entretanto, a conversa subsequente de Jacó com
quem luta até o amanhecer. Exatamente quem ven­ Esaú sugere que, na verdade, nenhum confia verda­
ce permanece ambíguo. O “homem” não tinha deiramente no outro. Jacó não aceita a companhia
condições de vencê-lo (v. 26) e usa o recurso de de Esaú, nem dos homens de Esaú, e persuade o
ferir Jacó por meio de mágica, contudo, no v 27, irmão a prosseguir sem ele. Então, em vez de seguir
0 “homem” pede para ser solto, como se não pu­ Esaú, Jacó volta-se para outra direção e prossegue
desse vencer Jacó. Jacó pede para ser abençoado, para Sukot. Posteriormente, Jacó continua até
mas recebe um novo nome. Quando pergunta o Siquém. Segundo a inserção eloísta nos vv. 19-20,
nome do misterioso contendor, seu pedido é posto Jacó compra terra em Siquém e ergue um altar a
82 de lado. O v. 29 sugere que Jacó venceu, mas no El, Deus de Israel. Siquém era uma cidade muito
GÊNESIS 36

antiga, importante desde os primeiros dias da ocu­ chama de “Filho-da-direita” (Benjamin). No mun­
pação da terra por Israel. do antigo julgava-se haver um relacionamento mis­
34.1- 31 O estupro de Diná. Essa história terioso
é entre o nome e seu portador; o nome deter­
basicamente do autor javista, mas foi suplementada minava o destino do portador. Em vez de marcar a
por fragmentos eloístas. Diná é violada por Siquém, vida do menino com a tristeza que cercou seu nas­
que porém passa a amà-la e quer se casar com ela. cimento, Jacó sabiamente dá-lhe um nome que su­
Hamor, pai de Siquém, falando em nome do filho, gere futuro honroso e bem-sucedido. O nome Ben­
recomenda a Jacó e a seus filhos a expansão de jamin significa “sulistas” e é provável que se refira
casamentos e do comércio entre os siquemitas e os à localização geográfica original da tribo. O local
israelitas. Os filhos de Jacó concordam, sob a con­ do túmulo de Raquel é desconhecido. Segundo ISm
dição de que os siquemitas fossem circuncidados. 10,2 e Jr 31,15, localiza-se no território de Benja­
Hamor expõe o assunto aos siquemitas, convencen­ min, ao norte de Jerusalém. Assim, Efrata não pode
do-os de que teriam benefícios econômicos ligando­ ser Bet-Lehem (v. 19), que está no território da tribo
-se aos israelitas por meio de casamentos. Os sique­ de Judá e ao sul de Jerusalém.
mitas concordam em se submeter à circuncisão e, A contribuição do autor sacerdotal às tradi­
enquanto se recuperam da operação, Simeão e Levi ções que cercam o patriarca Jacó são limitadas.
atacam Siquém e matam todos os homens da cidade. Consistem em pouco mais que resumos das tradi­
Jacó censura os filhos, mas é levado mais pelo medo ções mais primitivas encontradas nas narrativas do
da represália dos habitantes vizinhos do que por al­ javista e do eloísta. O autor sacerdotal menciona
guma objeção moral ao método de vingança dos apenas o que é considerado de importância teoló­
filhos. Simeão e Levi não demonstram remorso, mas gica, tomando nota da mudança do nome de Jacó
justificam seu comportamento como vingança da para Israel (v. 10) e reiterando a promessa feita a
injustiça sofrida por Diná. Abraão (vv. 11-12). A lista de nomes dos filhos de
Jacó fornecida pelo autor sacerdotal (vv. 22b-26) é
Talvez a narrativa preserve em forma de histó­
ria um ataque real à cidade de Siquém pelas tribos semelhante à encontrada alhures no Antigo Testa­
mento (Gn 49,lss.; Dt 27,12ss.; 33,2ss. etc.), mas
de Simeão e Levi. Além disso, a história pode servir
para explicar o declínio posterior das tribos de Si­ está em desacordo com a história do nascimento
de Benjamin nos vv. 16-20. Para este autor, o nasci­
meão e Levi.
mento de Benjamin acontece não em Canaã, mas
35.1- 29 Fim do ciclo de Jacó. Esse capítulo
na Mesopotâmia, enquanto Jacó ainda mora com
inclui duas narrativas do eloísta: a história do cum­
Laban. O autor sacerdotal, que registrou a morte e
primento de Jacó de seu voto de erigir um altar em
o sepultamento de Abraão, agora relata a morte e o
Betei (vv. 1-8) e a história do nascimento de Benja-
sepultamento de Isaac. Ambos, Jacó e Esaú, estão
min (w. 16-20). O resumo da vida de Jacó (w. 9-15),
presentes no enterro do pai (como estavam Isaac e
a lista dos filhos de Jacó e a morte de Isaac vêm
Ismael no de Abraão), pois no relato sacerdotal não
da fonte sacerdotal. A única contribuição da fonte
houve nenhum rompimento de relações entre Jacó
javista é a breve noticia sobre Rúben no v. 22a.
e Esaú.
Segundo o eloísta, Jacó volta a Betei por causa
A referência ao incesto de Rúben (v. 22) é
de uma ordem direta de Deus para que cumpra o
apenas fragmento de um relato que deve ter incluí­
voto que fez na primeira visita àquela cidade do a reação de Jacó ao comportamento ofensivo de
(28,10ss.). Os preparativos para a viagem indicam Rúben. É citado novamente em 49,4, mas sem ou­
que a viagem de Jacó deve ser uma peregrinação tros pormenores que poderíam nos dar um quadro
e refletir as práticas reais mais tarde associadas a mais completo do acontecimento.
peregrinações em Israel. A purificação ritual antes 36,1-43 A genealogia de Esaú. Na conclusão
de partir para uma peregrinação inclui a renúncia do ciclo de histórias de Jacó, está inserida uma ge­
formal a deuses estrangeiros e a qualquer coisa nealogia de Esaú. Na verdade, ela é composta de
associada ao culto pagão, tal como brincos, que seis listas distintas; 1) vv. 1-8; 2) vv. 9-14; 3) vv.
eram símbolos cultuais, e amuletos. Trocar de rou­ 15-19; 4) w. 20-30; 5) vv. 31-39; 6) vv. 40-43. A
pa é símbolo religioso comum de renovação. O primeira e a segunda listas são paralelas e diferem
“terror” que Deus semeou (v. 5) para proteger a apenas no início e no fim. A segunda lista inclui
família de Jacó é uma espécie de paralisia ou pâ­ netos, que têm os nomes repetidos na terceira lista.
nico inexplicável que toma o inimigo incapaz de A quarta lista cita os descendentes dos clãs originais
atacar (ISm 14,15; Ex 23,27; Js 10,10 etc.). Ao que se estabeleceram no território de Seir, mais
chegar a Luz, Jacó ergue o altar em cumprimento tarde habitado pelos edomitas. Esses habitantes são
de seu voto e muda o nome do lugar para Betei. chamados horitas, designação bíblica para os hur-
O nascimento de Benjamin (v. 17) é a resposta ritas. Mas não há nenhuma evidência arqueológica
à oração de Raquel quando José nasceu (30,24). de que os hurritas ocuparam território edomita e os
Ela queria chamá-lo de “Filho-do-luto” (Ben-Oni), nom es da lista são claramente semíticos; assim, é
por causa da dor que sentiu para tê-lo, mas Jacó o difícil determ inar a identidade desses ancestrais. A 83
GÊNESIS 37

quinta lista contém os nomes dos reis de Edom Jacó. As fontes javista e eloísta, a princípio sepa­
que reinaram antes do estabelecimento da monar­ radas (w. 3-4, J; vv. 5-11, E), combinam-se para
quia em Israel. A sexta lista, os clãs de Esaú, duplica formar o clímax do capítulo (w . 12-36, JE).
alguns dos nomes da segunda lista. Cada uma das três fontes dá sua razão para a
É difícil determinar a confiabilidade histórica hostilidade dos irmãos contra José. Na tradição
de qualquer dessas listas. Os edomitas vieram para sacerdotal (vv. 1-2), José relata a Jacó as conversas
o leste no século XIII a.C., com os amonitas e os “mal-intencionadas” dos irmãos. O conteúdo dos
moabitas. Tomaram-se nação antes de Israel, mas relatos não é especificado, mas a afirmação revela
foram conquistados por David e se tornaram a tensão existente entre José e os irmãos. A predi­
vassalos de Israel no século X a.C. leção de Jacó por José é a causa da desavença na
As sagas patriarcais começam com um chama­ tradição javista (w . 3-4). A “túnica principesca”
do à aventura em terra estranha com nada mais dada a José é sinal do favoritismo de Jacó e atiça
que uma promessa. Israel viu nas viagens de Abraão ainda mais o ciúme dos irmãos de José. Essa veste
sua vocação para prosseguir acreditando em Deus, era um manto especial diferenciado pelo compri­
viu na história da fé de Abraão um testemunho de mento das mangas, não pela cor. A tradução mais
sua fé. Até mesmo no comportamento questionável antiga “manto de muitas cores” baseava-se no tex­
de Jacó, Israel viu sua história. Mas, mais importan­ to grego do Antigo Testamento, não no hebraico.
te, Israel reconheceu nessas histórias a atividade di­ O autor eloísta (vv. 5-11) introduz na história
vina. Viu um Deus misericordioso que decidiu in­ de José o tema de um sonho, encontrado novamen­
tervir em nosso mundo por intermédio de um povo te nos capítulos 40 e 41. Nos sonhos não há dis­
chamado a ser um povo especial. Esse Deus não curso direto; o próprio sonho comunica sua men­
escolheu um povo perfeito, mas um que, apesar de sagem ao ser interpretado. A ciência de interpreta­
todas as suas faltas, estava disposto a ouvir e seguir, ção dos sonhos desenvolveu-se para ajudar a
aberto à intervenção da Divindade em sua vida. deciffá-los. Os antigos afirmavam que, em alguns
sonhos, havia um prenúncio do futuro e esse é o
sentido em que se deve entender esses sonhos. A
A HISTÓRIA DE JOSÉ
conseqüência óbvia dos sonhos — que José gover­
Gn 37,1-50,26 naria seus irmãos — afasta-os ainda mais de José.
A história de José destaca-se das outras narra­ Depois que os personagens foram apresentados
tivas do livro do Gênesis por sua forma literária e a situação delineada, a história se inicia quando
caracteristica. Muitas vezes é citada como “novela”, Jacó envia José para saber notícias dos irmãos que
ou “romance curto”, porque a narrativa é um todo estão apascentando o rebanho a alguma distância
orgânico unificado. Do começo ao fim, cada segmen­ de onde Jacó habitava. As contradições do episódio
to da história integra-se a toda a narrativa. Tem seu remontam à presença das duas fontes diferentes, a
tema característico — paz na família — , mas tam­ javista e a eloísta. Na tradição javista, os irmãos
bém é integrada ao conjunto mais amplo de histó­ planejam matar José, mas Judá intercede e os ir­
rias. Precisamos estar atentos a seu caráter singular, mãos decidem vender José aos ismaelitas (v. 27).
mas, também vê-la no contexto de todo o livro do Na narrativa eloísta é Rúben quem persuade os
Gênesis. irmãos a não matar José e sim colocá-lo em uma
Todos concordam que a história de José foi cisterna (w. 21-22). Rúben tem esperança de voltar
influenciada pela tradição sapiencial de Israel. Uma mais tarde para salvar José, mas comerciantes mi-
das preocupações dessa tradição era o sucesso do dianitas encontram José e o levam para o Egito.
indivíduo na vida. O sucesso era alcançado pela E irônico que os irmãos transmitam a notícia
diligência e pela autodisciplina. Era importante da morte de José usando sua túnica, agora suja de
aprender o eomportamento apropriado, o auto-con- sangue. Antes ela marcava a posição privilegiada
trole e o decoro na linguagem. Em Israel, o temor de José; agora anuncia sua morte. O grande sofri­
de Deus também era fator necessário para alcançar mento de Jacó é descrito vividamente, mas, em vez
a sabedoria. José personifica todas essas caracte­ de terminar com essa nota trágica, a cena muda para
rísticas e, assim, é apresentado, em toda a narrati­ o Egito e a venda de José a Potifar, despenseiro-
va, como modelo de sabedoria -mor da corte de Faraó.
37,1-36 José é vendido como escravo p ara o 38,1-30 Ju d á e Tamar. Devido à importância
Egito. A contribuição do autor sacerdotal a esse da tribo de Judá na história de Israel, não é sur­
capítulo (vv. 1-2), como em toda a história de José, preendente encontrarmos uma narrativa especifi­
é mínima. O v. 1 é a conclusão do autor sacerdotal camente sobre seu fundador. O problema com a his­
à história de Jacó e o v. 2 dá início à história de tória é sua localização atual, pois interrompe a histó­
José. As histórias de Jacó eram encabeçadas; “Eis ria de José. Mas, como veremos, há algumas liga­
a família de Isaac...”. Da mesma forma, a história ções entre essa narrativa e o eontexto em que agora
84 de José começa com uma referência à família de se encontra.
GÊNESIS 40

A narrativa é atribuída ao javista que condensa por Tamar para revelar a culpa de Judá (38,25-26).
toda uma geração em alguns w . Judá separa-se dos O pagamento de um cabrito (38,20) pelo Judá enga­
irmãos, casa-se com uma canaanita e tem três filhos nado lembra o bode em cujo sangue a túnica de
que alcançam a idade do casamento um tanto de­ José foi ensopada (37,31) para enganar seu pai,
pressa. O filho mais velho, Er, casa-se com uma Jacó. Finalmente, o desmascaramento de Judá resul­
canaanita, Tamar. Por alguma razão não especificada, ta de sua incontinência sexual, enquanto a castidade
Er desagrada ao S enhor e morre. No mundo antigo, de José no capítulo 39 o conduz da derrota aparente
acreditava-se que a morte inesperada na plenitude ao triunfo final. A história permite ao narrador com­
da vida era causada pelo pecado. Segundo a lei do parar as vidas de Judá e José; e também dá tempo
levirato (Dt 25,5-10), o irmão de Er deve desposar para que José viaje ao Egito.
sua viúva porque Er morreu sem ter filhos. O primei­ 39.1- 23 Ascensão e queda de José. A narrativa
ro filho dessa união seria legalmente reconhecido javista da história de José continua, levando o leitor
como herdeiro do irmão morto. Assim, Judá dá seu de volta ao momento em que José foi vendido aos
segundo filho, Onan, a Tamar. Mas Onan não queria ismaelitas (37,26-27.28b). Ao chegar ao Egito, José
dar um filho ao irmão e.não completa o ato sexual. é vendido como escravo a um egípcio (identificado
Onan morre porque recusou-se a cumprir a obriga­ como Potifar na tradição eloísta). José logo alcança
ção para com o irmão; não há nenhum julgamento posição de confiança e o egípcio é abençoado com
moral de seu comportamento sexual (vv. 9-10). prosperidade por causa dele. Na visão do javista, o
Depois de perder dois filhos, Judá reluta em dar o sucesso de José deve-se inteiramente ao Senhor. Em
terceiro filho a Tamar. A falha de Judá em cumprir toda a história de José, sente-se a presença do Se­
seu dever prepara a cena seguinte, na qual Tamar tem nhor nos bastidores, o que lhe dá seu caráter teoló­
0 papel principal. gico distinto.
Depois da morte de sua mulher, Judá viaja a Os vv. 1-6 preparam a cena para a tentativa de
Timná para tosquiar o rebanho (v. 12). Tamar apro­ sedução de José pela mulher de Potifar. José recusa
veita-se da situação, disfarça-se de prostituta e seduz seu assédio sexual, pois o ato de adultério seria um
Judá. Insiste em ficar com seu sinete, seu cordão pecado contra a confiança que seu senhor depositara
e seu bastão como penhor de pagamento. O sinete nele e contra Deus. A mulher persiste em suas exi­
funcionava como antigo meio de identificação. Era gências, tanto que certo dia agarra José e ele só se
gravado com o desenho especial do dono e usado livra dela deixando-lhe sua veste na mão (v. 12). A
em volta do pescoço, atado a um cordão. Quando veste é usada como evidência contra ele quando ela
Judá envia seu servo com o pagamento, Tamar não o acusa falsamente de tentar seduzi-la. O castigo
é encontrada. Para não se complicar mais, procu­ para o adultério é a morte. José está na mesma
rando a mulher, Judá deixa as coisas como estão. posição que estava no capítulo 37 — enfrentando
- Como seria de esperar, Tamar engravida de uma situação de vida ou morte. No capítulo 37, em
Judá (v. 18). Sua gravidez é comunicada a Judá, vez de ser morto, foi vendido como escravo; no ca­
que tem jurisdição no caso, porque Tamar está noiva pítulo 39, em vez de ser morto é colocado na prisão.
de seu terceiro filho. Judá a sentencia à morte, o Da mesma forma que se tomara escravo de con­
castigo do adultério, mas no momento critico ela fiança, na prisão José também alcança proeminên-
apresenta o sinete, o cordão e o bastão que o iden­ cia e ocupa uma posição de confiança. Como antes,
tificam como pai da criança. Judá absolve Tamar e o progresso é atribuído à presença do S enhor em
admite sua culpa por não ter cumprido a lei do sua vida.
levirato. O tema dominante neste capítulo, o de uma
A luta no ventre de Tamar (v. 29), como no de mulher imprudente que incrimina o homem que
Rebeca (25,21-26), antecipa o ftituro conflito entre recusa seu assédio, é comum na literatura universal.
tribos, enquanto um bebê tenta dominar o outro. O É interessante notar que um dos paralelos mais
nome de cada criança é associado à maneira de seu próximos dessa história é uma versão egípcia intitu­
nascimento. Péres “abre uma brecha” para tirar o lada “Conto dos Dois Irmãos” que, exceto pelo fim,
irmão do caminho, a fim de nascer primeiro; Zérah é semelhante à do Gênesis. Entretanto, isso não su­
recebe esse nome graças ao fio “escarlate” que a gere que haja uma relação direta entre as duas.
parteira amarrou-lhe na mão. Pelo ato corajoso de Sugere antes que ambas têm origem em um folclore
Tamar, a linhagem de Judá é salva da extinção; dessa amplamente difundido.
linhagem sairá o maior dos reis de Israel, David. 40.1- 23 José interpreta os sonhos dos prisio­
Poucos biblistas vêem uma ligação entre a his­ neiros. A volta à tradição eloísta é assinalada pela
tória de Judá e Tamar e a de José. Parece ser uma diferença na posição de José na prisão e a presença,
intromissão em uma narrativa que, de outra forma, mais uma vez, de sonhos. No capítulo 39, José foi
trata de José e seu destino. Contudo, há pontos de encarregado de todos os prisioneiros, mas, no capí­
contato a ser notados. A mesma fórmula (“Verifi- tulo 40, é descrito como escravo de dois nobres
ca/Reconhece... reconheceu”) usada pelos filhos de prisioneiros, o copeiro-mor e o padeiro do rei. O co-
Jacó para esconder sua culpa (37,32-33) é usada peiro-mor era o guardião e provador oficial do vi- 85
GENESIS 41

nho de Faraó, posição importante ocupada pelo fun­ posição de José no Egito. Durante a época de pros­
cionário mais leal e de confiança. Da mesma for­ peridade, José tem dois filhos que recebem nomes
ma, o padeiro do rei ocupava posição proeminente relacionados a sua nova vida. Seu sofrimento ante­
na corte de Faraó. rior é “esquecido”, assim o primeiro filho recebe o
Enquanto José serve aos dois funcionários, nome de Manassés. Seu estado atual de prosperida­
observa sua tristeza e descobre que ela se deve ao de é lembrado no nome do segundo filho, Eftaim,
fato de não conseguirem ninguém para interpretar- “Deus me tomou fecundo” (w. 51-52).
lhes os sonhos (v. 8). No Egito, a interpretação dos A única contribuição do autor sacerdotal (v. 46a)
sonhos era feita por profissionais. Na prisão, esses fala da idade de José. Treze anos se passaram desde
dois funcionários não têm acesso a interpretadores a chegada de José ao Egito e sua subida ao poder.
de sonhos. José encerra o problema deles, afirman­ 42.1- 38 José testa seus irmãos. Esse capítulo
do que a interpretação de sonhos cabe a Deus. é dominado pela fonte eloísta, mas recebe o suple­
Depois de ouvir os sonhos, José passa a inter-pretá- mento de alguns fragmentos do javista (p. ex., vv.
los. Ambos o copeiro-mor e o padeiro-mor, terão a 27-28). A narrativa volta ao tema do relacionamento
cabeça “levantada” (vv. 13.19); para o copeiro-mor entre José e seus irmãos, depois de descrever sua
isso significa o restabelecimento na corte de Faraó, elevação ao poder no Egito. A fome espalhou-se até
mas, para o padeiro, significa a morte. Dentro de a Palestina, fazendo Jacó enviar os filhos ao Egito,
três dias os sonhos se tomam realidade. Embora pois ouviu dizer que ali há comida disponível. Não
José pedisse ao copeiro para falar de seu caso a enviou Benjamin, o outro filho de Raquel, que, é
Faraó, o copeiro se esquece de José até que o pró­ de presumir, substituiu José no afeto do pai.
prio Faraó sonha. Assim, José fica na prisão por Os sonhos de José (37,5-10) realizam-se quan­
mais dois anos. do seus irmãos se prostram diante dele (v. 6). José
41,1-57 José interpreta os sonhos de Faraó. os reconhece, mas eles não o reconhecem. Ele co­
A fonte eloísta continua nesse capítulo até José meça a fazer um jogo com eles, cuja importância
subir ao poder no Egito, quando a versão javista se só se tom a clara quando a história continua. José
entrelaça a ela. José é trazido a Faraó para inter­ acusa os irmãos de serem espiões. Na ânsia de se
pretar seus sonhos depois que “todos os sacerdotes defender, revelam a José o que ele deseja saber so­
e todos os sábios do Egito” (v. 8) falharam. Faraó bre a família. Insiste em que tragam Benjamin até
conta seus sonhos a José, não apenas repetindo ele para provar a alegação de que não são espiões.
textualmente o relato encontrado nos vv. 1-7, mas Por esse meio, José pode concluir se os irmãos
realçando-o com mais detalhes (vv. 17-24). Por sua mudaram ou não. Sentem por Benjamin o mesmo
vez, José repete que é Deus quem interpreta os ódio que outrora sentiam por ele? Haviam subme­
sonhos e dá sua interpretação que se comprova ser tido José a um destino desconhecido; agora ele faz
verdadeira no final do capítulo (vv. 53-57). O sim­ o mesmo com eles.
bolismo dos sonhos adapta-se bem ao pano de A princípio José insiste que todos os irmãos
fundo egípcio da história. Sete anos bons, repre­ devem ficar na prisão, enquanto um deles volta
sentados por vacas gordas e sete espigas boas, serão para buscar Benjamin, mas, no fim, mantém apenas
seguidos por sete anos de fome descritos como Simeão na prisão como garantia de que os outros
vacas raquíticas e feias e espigas ressequidas. José irmãos voltarão (v. 24). Ele devolve o dinheiro a
junta a sua interpretação conselhos práticos que seus sacos; só o descobrirão mais tarde. A fusão de
Faraó imediatamente aceita. fontes revela-se pela contradição entre os vv. 27 e
Na tradição eloísta, José é nomeado mordomo, 35. Segundo o javista (v. 27), o dinheiro é encon­
o que o deixa encarregado das finanças do Egito. trado no primeiro dia da viagem para casa, mas no
Segundo o javista, José é nomeado vizir do Egito, V. 35 ele é encontrado apenas quando os irmãos
cargo ainda mais elevado. José é encarregado da chegam a seu destino. O capítulo termina no mesmo
administração da terra. A cerimônia de investidura tom que o capítulo 37, o lamento de Jacó pelo filho
reflete com autenticidade os costumes sociais e po­ predileto.
líticos do Egito. O anel era o selo real mantido pelo 43.1- 34 Os irmãos voltam ao Egito. A tensão
vizir, e o colar de ouro era, provavelmente, um em­ que se iniciou no capítulo 42 intensifica-se nos ca­
blema cerimonial do cargo (v. 42). As vestes de pítulos 43—44 até ser resolvida no capítulo 45. Na
linho fino e os carros indicam a posição nobre de narrativa dos capítulos 43-44, voltamos ã fonte
José, o mesmo acontecendo com os que proclamam javista, 0 que justifica algumas das irregularidades
“Atenção” diante de seu carro. da história à medida que ela continua. Na cena ini­
José é completamente atraído à corte egípcia. cial, Simeão, aprisionado no Egito, parece ter sido
Recebe um nome egípcio, Safnat-Panêah (“Deus fala completamente esquecido. Também parece que só
e vive”), e uma esposa egípcia. Seu novo nome e o agora Jacó é inteirado das condições da volta deles
fato de se casar com a filha de um sacerdote egípcio ao Egito. Somente a desesperança de sua situação,
aparentemente não causam problemas para o autor junto com a promessa de Judá de garantir a segurança
86 javista, que apenas relata-os como parte da nova de Benjamin, convence Jacó a deixar Benjamin
GÊNESIS 46

acompanhar os outros irmãos ao Egito. Jacó envia pação abnegada por Benjamin. Os irmãos, antes
presentes com eles, na esperança de aplacar o fun­ indiferentes à tristeza do pai, demonstram grande
cionário egípcio que tão falsamente acusou seus solicitude e farão o que puderem para poupar-lhe
filhos. mais tristeza.
Quando os irmãos chegam ao Egito (v. 16), tudo 45,1-28 José se revela aos irmãos. Nesse ca­
parece correr bem para eles. Simeão é solto. Aos pítulo, mais uma vez a fonte eloísta está entrelaçada
poucos superam a hesitação. A tentativa de devolver à narrativa javista, o que dá origem a duplicatas
0 dinheiro encontrado nos sacos é repelida. O dinhei­ (w. 3a/4b) e discrepâncias (45,16ss./46,3 Iss.). Mas,
ro é citado misteriosamente como dádiva de Deus (v. em vez de desorganizar o capítulo, a mistura de fon­
23). Embora iniciem o banquete com certa precau­ tes, na verdade, acrescenta ao capítulo uma credi­
ção, ela desaparece quando vêem como José trata bilidade interior.
Benjamin. Por fim, começam a se sentir à vontade e Com o discurso de Judá, o jogo foi até onde
a aproveitar as festividades. Ao ver Benjamin, José é podería ir. O clímax foi alcançado — José precisa
tomado de emoção e precisa sair da sala para recu­ agir. Ao ouvir o apelo de Judá, é tomado pela emo­
perar o controle, mas ainda não se revela aos irmãos. ção e decide finalmente revelar sua identidade. O
44,1-34 José testa seus irmãos pela última vez. espanto dos irmãos abre caminho para a segunda
A seriedade do jogo de José é demonstrada no últi­ revelação de José: “Não vos aflijais ... foi Deus quem
mo teste de seus irmãos. José instrui o mordomo para me enviou antes de vós (v. 5). A teologia fundamen­
devolver o dinheiro dos irmãos e colocar sua taça de tal da história de José toma-se explícita. Deus diri­
prata no saco de Benjamin. Causa-nos estranheza a giu e orientou os acontecimentos. O que os irmãos
devolução do dinheiro, pois ele não é mais mencio­ pretenderam como mal. Deus redimiu. Foi Deus
nado na história; só a taça serve de prova incrimina- quem enviou José ao Egito para constituir reservas
tória. Essa taça era um objeto sagrado usado para e possibilitar que a família de Jacó escapasse. “Reser­
adivinhação. Não se tem certeza de como era usada. vas (resto)” e “escapar” (v. 7) tomam-se importantes
Um meio possível era derrubar objetos dentro da palavras veterotestamentárias para expressar a con­
taça cheia de liquido e decifrar a resultante agitação vicção de Israel de que Deus intervém em sua história
desse liquido. Outra possibilidade era misturar óleo e preserva-o da destruição total.
e água na taça e examinar as figuras que assim se José liberta os irmãos e eles se reconciliam (w.
formavam, para encontrar o significado. O fato de 14-15). Os irmãos “conversaram com ele” (v. 15), o
José usar essa taça parece não ter preocupado o nar­ que mostra como a situação do capítulo 37 foi inver­
rador, mas as práticas de adivinhação eram proibidas tida (veja 37,4). A tensão que vinha aumentando
em Israel (Lv 19,31; Dt 18,10-11). desde o capítulo 42 é, fínalmente, resolvida. O desfe­
Os irmãos caminham apenas uma curta distância cho inclui dar a Jacó a notícia de que José vive, a
quando são alcançados pelo mordomo de José (v. 6). mudança de Jacó para o Egito e o encontro entre José
Ficam genuinamente chocados ao serem acusados de e seu pai.
roubo. Proclamam inocência e fazem juramento de Quando os irmãos revelam ao pai que José
morte ao ladrão e de escravidão para o resto deles, se vive e ocupa um cargo importante no Egito, é
a taça for encontrada era poder deles. Esses castigos compreensível que Jacó fique aturdido. Mas, aos
extremos são rejeitados pelo mordomo e mais tarde poucos, ele se convence da verdade do que afir­
pelo próprio José. O castigo será escravidão, não mam e decide ir para o Egito. Não é feita nenhuma
morte, para o ladrão e os outros partirão em liberda­ menção ao ato criminoso dos irmãos, pois ele foi
de. Ao isolar Benjamin dos irmãos, José quer ver se suplantado pela intervenção divina salvadora.
eles deixarão Benjamin se tomar escravo e aprovei­ 46,1^7,12.27-28 Jacó viaja ao Egito e lá se
tarão a oportunidade para partir em liberdade. instala ali. A fonte javista domina nas cenas finais
Como seria de esperar, a taça é encontrada no da história de José, mas os autores eloísta e sacer­
saco de Benjamin e os irmãos voltam ao Egito. dotal também contribuem para sua conclusão. Se­
Depois de severa reprimenda de José, Judá faz um gundo 0 javista, Jacó decide ir ao Egito (45,28;
discurso apaixonado. Talvez nos surpreendamos que 46,1a), mas para o eloísta a viagem é realizada em
admita a culpa (v. 16) logo depois de alegar inocên­ resposta à ordem divina (46,2-4). Essa inserção
cia, mas Judá vê na situação atual o julgamento de eloísta tem forma e estilo diferentes da história de
Deus sobre eles por causa do que fizeram a José. José. Muda o centro da história de José, do relacio­
Na verdade, são culpados, mas até agora não foram namento entre irmãos para a descida de Jacó ao
descobertos nem punidos. A ênfase de Judá na tris­ Egito e incorpora a história de José à imagem maior
teza do pai com a perda de José e o grande medo da história de Israel como preparação para o Êxodo.
que sentia de que Benjamin não voltasse para casa Com certeza a inserção genealógica do autor
tomam-se a base de seu pedido para ocupar o lugar sacerdotal (46,6-27) existia independentemente de
de Benjamin. Pelo discurso de Judá, José percebe seu contexto atual. Benjamin, na história de José é
que os irmãos mudaram. O ódio mortal que os fi­ uma criança, agora tem dez filhos! A lista parece
zera livrar-se dele foi substituído por uma preocu­ ser um resumo da genealogia encontrada em Nm 26. 87
GÊNESIS 47

Chega-se ao número “setenta” para os descenden­ senta. É um administrador sábio e competente, ca­
tes de Jacó (v. 27) apenas incluídos o próprio Jacó paz de tratar com eficiência cada nova crise.
e Diná entre os descendentes de Jacó. Não é pos­ 47,29-48,22 A bênção de Efraim e Manassés.
sível determinar o propósito original dessa genea­ A tradição dos últimos dias de Jacó encontra-se em
logia, nem está clara sua finalidade nesse con­ todas as três fontes. Na versão javista (47,29-31),
texto. A conclusão sacerdotal a essa genealogia o pedido de Jacó moribundo é ser enterrado com
(47,27-28) foi deslocada pela conclusão da história seus ancestrais em Canaã. A insistência de Jacó
de José. para que José faça um juramento (compare 24,2)
Gn 46,28 retoma a história interrompida pela de que fará como seu pai lhe pede indica a impor­
genealogia sacerdotal. O encontro tão esperado en­ tância do pedido. O sepultamento no túmulo da fa­
tre José e seu pai apresenta um quadro comovente. mília era não apenas um fim adequado para a vida
A alegria de Jacó é completa ao se reunir com o da pessoa, mas significava um elo com os ances­
filho que julgava morto (46,30). trais. Além disso, para Jacó, o enterro em Canaã
A cena final da história de José trata da con­ representa o direito à terra e antecipa o dia da volta
sideração prática de em que lugar do Egito Jacó e de seus descendentes do Egito.
sua família devem se instalar. As habilidades di­ Na tradição eloísta (48,1-2.7), José é chamado
plomáticas de José transparecem em suas instruções ao leito do pai, repetindo-se, em essência, a cena
ao pai e aos irmãos como preparação para o en­ encontrada em 47,29. A referência ao túmulo de
contro com Faraó (46,33-34). O território de Gôshen Raquel, em 48,7, está certamente incompleta. Tal­
oferecia terra adequada ao pastoreio, mas concor­ vez na tradição eloísta Jacó peça para ser enterra­
daria Faraó em instalar esses estrangeiros em uma do com Raquel, ao contrário da tradição sacerdo­
província fronteiriça não supervisionada? A insis­ tal, na qual Jacó é enterrado na caverna de Makpelá.
tência de José para que a família se apresente como Em 48,3-6, o autor sacerdotal descreve a ado­
pastores tem o propósito de assegurar a Faraó que ção por Jacó dos filhos de José, Effaim e Manassés,
suas intenções são paeíficas e também de indicar em palavras que lembram a promessa feita a Jacó
que Gôshen seria uma pastagem adequada, longe em Betei (35,6.9-12). No início de sua história (Jz
da cidade. Não há apoio extrabíblico para a afirma­ 5; Nm 26,5-51), a tribo de José dividiu-se em duas,
ção de que “o egípcio abomina todo pastor” (46,34), as tribos de Efraim e Manassés. Instalaram-se nos
mas a atitude de desconfiança entre povos sedentá­ montes samaritanos e se tomaram tribos poderosas
rios e nômades está bem eomprovada. do reino do norte. A cena de adoção tem o propósito
O encontro entre Faraó e a família de José corre de mostrar como Efraim e Manassés se tomaram
melhor que o previsto. Não só Faraó lhes dá Gôshen chefes tribais, embora não fossem filhos naturais
como lugar para se instalar, como também sugere de Jacó. Pela adoção, Jacó faz de seus netos mem­
que sejam designados “meeiros” para os rebanhos bros plenos da família (Israel) e iguais às outras
reais (47,5a). tribos.
A cena final, com Jacó diante de Faraó (47,5b- Uma segunda versão da bênção e da adoção
11), vem da fonte sacerdotal. Em uma troca polida de Manassés e Efraim é atribuída ao javista (vv. 8­
entre os dois, o patriarca descreve seus 130 anos 12). Manassés e Efraim não só são adotados como
de vida como “tempo breve e mau” (v. 9) em com­ filhos, mas ainda a posição futura das duas tribos
paração aos 175 anos da vida de Abraão e aos 180 é indicada pela maneira como Jacó os abençoa.
da vida de Isaac. Refere-se a sua vida como “mi­ José procura colocar o mais velho sob a mão direita
grações”. A palavra é usada com freqüência nas de Jacó, o lugar de honra, mas Jacó cruza as mãos,
narrativas patriarcais (17,8; 28,4; 36,7; 37,1) para de modo que o mais jovem recebe a precedência
descrever o estilo de vida dos patriarcas, para quem sobre o mais velho. E um tema comum encontrado
a posse da terra é dada apenas em promessa, uma no javista (Abel sobre Caim, cap. 4; Isaac sobre
promessa não cumprida durante gerações. Ismael, 17,19-21; o próprio Jacó sobre Esaú, cap.
47,13-16 A política agrária de José. Não há 27; Péres sobre Zérah, 38,27-30) e reflete o destino
ligação lógica entre os w. 13-26 (do javista) e a futuro das duas tribos, pois a tribo de Efraim logo
parte anterior; a localização dessa passagem seria suplanta a de Manassés e se toma a mais poderosa
mais apropriada depois do relato da elevação de do reino do norte.
José ao poder, no cjqrítulo 41. A passagem relata A própria bênção encontra-se em duas formas:
como a política econômica de José durante o perío­ nos w. 15-16 e no V. 20. Ambas são fórmulas de
do de fome permitiu aos egípcios sobreviverem ape­ bênçãos tradicionais. Nos w . 15-16, Jacó invoca
nas vendendo a terra a Faraó e se tomando servos. Deus como o Deus de Abraão e Isaac, desse modo
Somente as terras dos sacerdotes ficaram isentas. A estabelecendo um elo entre o Deus cultuado por seus
situação apresentada descreve com precisão o ancestrais e o Deus que ele próprio cultua. Diri­
declínio da classe dos camponeses livres no Egito. ge-se a Deus como “pastof’, título freqüente no
Entretanto, a história não é lembrada por seu inte- Antigo Testamento, que sugere a preocupação de
88 resse histórico, mas pela imagem de José que apre­ Deus com o povo. O terceiro título, “anjo”, refere-
GÊNESIS 50

se à experiência de Jacó da Divindade como liber­ 49,28-50,14 M orte e funerais de Jacó. É reto­
tadora. A bênção assegura numerosos descendentes mado agora o relato sacerdotal da cena do leito de
e um futuro glorioso para as tribos representadas morte de Jacó (49,1a), interrompido pela “bênção”
pelos filhos de José. A bênção do v. 20 lembra a do capítulo 49. E paralelo ã versão javista do pedido
promessa a Abraão (12,3b). de Jacó para ser enterrado com seus ancestrais (47,
O último V. do capítulo 48 não é claro. Parece que 29-31). A conclusão do autor sacerdotal (50,12-13)
Jacó dá a José uma parte da terra de Canaâ. A palavra mostra os filhos de Jacó realizando seu último pe­
traduzida como “Siquém”, referindo-se à cidade, tam­ dido. Segundo essa tradição, Jacó foi enterrado na
bém significa “espádua” ou “encostas de montanha”. caverna do campo de Makpelá, lugar do sepulta-
Não está claro o que Jacó quer dizer, mas a própria mento de Abraão e Sara.
cidade mais tarde é associada às tribos de Efiaim e A morte e os funerais de Jacó da fonte javista
Manassés. Se ele quer referir-se à cidade, a frase final encontram-se em 50,1-11.14. O embalsamamento
^resenta um problema pois, segundo o capitulo 34, do corpo de Jacó não parece ter significado religioso,
Jacó condenou a violência de Simeão e Levi em mas é feito apenas para preservar o corpo durante
Siquém. Talvez uma tradição variante da conquista de a longa viagem até Canaâ. O longo período de luto
Siquém forme a base deste versículo. (v. 3b) e a presença de importantes funcionários de
49,1-27 A bênção de Jacó. No capítulo 49, sob Faraó na procissão dos funerais (vv 7-9) sugerem
a alegoria da bênção dada por Jacó a seus filhos no que Jacó recebeu um funeral real. Segundo o javista,
leito de morte, encontramos uma coleção um tanto Jacó foi enterrado na Transjordânia (50,10-11).
fortuita de ditos sobre as características e o destino 50,15-21 José infunde confiança nos irmãos.
futuro das doze tribos. Alguns deles são com certeza Os irmãos de José temem que ele se vingue deles,
antigos, mas o poema em si não pode anteceder o agora que seu pai está morto. A cena dá ao eloísta
século X a.C., pois fala da soberania da tribo de Judá, a oportunidade de reiterar a teologia que fundamen­
que ocorreu nessa época. O texto está deturpado e ta a história de José, antes de encerrar sua narra­
partes do poema são intraduzíveis, o que aumenta os tiva. O que eles pretenderam como mal. Deus trans­
problemas de interpretação. formou em bem. José insiste que o que fizeram foi
A tribo de Rúben logo desapareceu como tribo ofuscado e redimido pela vontade divina salvadora.
independente. O dito dos w . 3-4 explica sua queda Eles foram apenas instrumentos no plano de Deus
da proeminência como castigo pelo crime de incesto para a salvação de Israel.
de Rúben (35,22). Por trás das maldições de Simeão 50,22-26 M orte de José. No epílogo, os últi­
e Levi (w. 5-7) estão os acontecimentos registrados mos dias de José são examinados pelo eloísta. A
no capítulo 34; a violência de sua vingança contra adoção dos filhos de Makir por José dá uma base
Siquém pelo estupro de Diná é condenada. O texto para mais tarde essa tribo participar da confedera­
sobre Judá (w. 8-12) é, em parte, obscuro. O que ção israelita (Nm 32,39-40; Jz 5,14). As últimas
está claro é a alusão à futura soberania de Israel por palavras de José sobre a terra da promessa são sig­
intermédio da tribo de Judá (v. 10). Da tribo de nificativas. Indicam que, embora essa história termi­
Zabulon é dito apenas que habitava na beira dos ne em terra estrangeira, a promessa feita por Deus
mares (v. 13). A tribo de Issacar é ridicularizada por a Abraão, Isaac e Jacó será cumprida. O fim do Gê­
se deixar fascinar pela planície fértil, só para se nesis indica o destino de Israel: serão o povo liber­
tomar escrava dos canaanitas (w. 14-15). Por meio tado do S enhor.
de um trocadilho (Dan vem de uma raiz hebraica
que significa “julgar”), a tribo de Dan é louvada por
estabelecer justiça em seu território (v. 16). A imagem CONCLUSÃO
da serpente no v. 17 não tem o propósito de ser pe­ No Livro do Gênesis, passamos do momento
jorativa, mas lembra as vitórias das tribos pequenas da criação por uma história de pecado à vocação
sobre inimigos poderosos. A tribo de Gad é carac­ de Abraão, de Isaac, de Jacó e, por fim, a José e
terizada por seus êxitos na defesa contra assaltos de as tribos no Egito. Nestas histórias, aprendemos
bandos de nômades (v. 19). A tribo de Aser ocupou sobre o relacionamento de Deus com o mundo e
a região fértil ao norte do monte Carmelo, conhecida com Israel. Aprendemos sobre Deus como criador,
por seus ricos produtos (v. 20). O dito sobre Neftali como juiz, como redentor. Encontramos um Deus
é obscuro (v. 21). A bênção para José (w. 22-27) que aceita a fraqueza da humanidade e continua a
fica à parte do resto do poema por causa de sua amar, um Deus que guia e orienta, um Deus capaz
forma diferenciada. É a única bênção propriamente de do mal tirar o bem. O Gênesis é só o começo
dita e parece se originar de uma bênção de fertili­ da história, o início dos atos de Deus. A história
dade muito antiga. Nos w. 25b-26a há paralelos continua, não só ao longo do Antigo e do Novo Tes­
diretos com bênçãos canaanitas. A tribo de Benjamin tamentos, mas também em nossas vidas e em nosso
é louvada por seu poder (v. 28). mundo.

89
EXODO
John F Craghan

INTRODUÇÃO
o sentido do Exodo do Isaías relatou a volta da Babilônia a Jerusalém
Êxodo ou saída do Egito está no pró­ como um segundo Êxodo: “No deserto abri um
prio centro da experiência de fé de Is­ caminho para o Senhor, nivelai na estepe uma estra­
rael. O Deus que agiu em prol de Israel da para o nosso Deus” (Is 40,3). No século II a.C.,
não era uma divindade insignificante do o autor de Judite descreveu a derrota de outra amea­
antigo Oriente Próximo isolada da realidade e relega­ ça à fé de Israel (o helenismo, na forma de Holo-
da ao reino do tempo mítico. Ao contrário, o Deus femes e suas tropas). Entre outras coisas, descreveu
de Israel entrou dramaticamente no palco do tempo apropriadamente a heroína como se fosse Israel no
real e das pessoas reais, como expressa a introdução mar dos Juncos: “Pois o Senhor é um Deus que
do decálogo: “Eu sou o S enhor, teu Deus, que te fiz esmaga as guerras, que instala seus acampamentos
sair da terra do Egito, da casa da servidão” (Ex 20,2). no meio do povo, ele arrancou-me à mão dos que
Mencionar o nome YHWH significa evocar a ima­ me perseguiam” (Jt 16,2). No século I a.C., o autor
gem de uma divindade totalmente engajada. Pronun­ do Livro da Sabedoria procurou resolver o problema
ciar esse nome é estabelecer uma identidade. O do julgamento dos justos e dos maus no Egito metro­
S enhor sem o Êxodo não é S enhor nenhum! politano. Adaptou a experiência do Êxodo e con­
O Êxodo identifica não só o S enhor, mas tam­ cluiu: “Assim, as mesmas realidades que tinham ser­
bém Israel. É precisamente no Êxodo que Israel vido para castigar seus inimigos [os egípcios] toma­
surge como o povo de Deus. Esse acontecimento ram-se para eles [os israelitas] um benefício em sua
sugere que os ex-escravos egípcios eram diferentes aflição” (Sb 11,5).
de todos os seus contemporâneos. Com a Aliança
do Sinai, o Êxodo os diferencia como o povo do Nenhum relato histórico
S enhor. Portanto, a saída foi um processo de sele­ Os registros egípcios são tão silenciosos quanto
ção. O autor de Ex 6,7 expressa de maneira sucinta a Esfinge a respeito desse acontecimento funda­
esse processo nestas palavras: “Tomar-vos-ei como mental na experiência de fé de Israel, o que não é
meu povo, e para vós eu serei Deus”. motivo de espanto. Os textos egípcios visam à maior
O livro biblico que preserva essa dupla identi­ honra e glória do faraó. As negociações de Moisés
dade é o Livro do Êxodo. É o documento bíblico com o chefe do Egito, que estava em desvantagem
por excelência para revelar as raízes de Israel. Israel nas pragas, não contribuiríam para o impulso da
percebeu que essas raízes estavam fora da Terra historiografia egípcia. Além disso, segundo um
Prometida. Entretanto, é a glória dos autores de ponto de vista amplamente aceito, os envolvidos no
Israel que suas origens pudessem ser apresenta­ Êxodo eram um fenômeno típico no antigo Oriente
das dessa maneira poderosa, mas profunda. O Li­ Próximo.
vro do Êxodo não é apenas o registro dos itine­ Os registros egípcios falam de 'apiru, enquan­
rários de Israel. Ê seu documento de identidade, to os escritos em acádico (língua semítica oriental)
0 registro de interação humana e graça divina, de referem-se a habiru. Estes ‘apini/habini eram mer­
sucessos e fracassos humanos e de ajuda e perdão cenários. Também sabemos que esses beduínos for­
divinos. mavam uma força de trabalho para as campanhas
A experiência preservada no Livro do Êxodo egípcias de construção.
nunca foi sujeita a conflitos de gerações. Ao propor­ A palavra “hebreu” deriva de habiru. Entretan­
cionar identidade, esse livro singular não sufocou o to, não podemos esquecer que habiru é original­
crescimento. Assim, Israel pôde aplicar a memória mente uma palavra sociológica, não étnica. É sig­
da primeira saída a situações de sua história, dife­ nificativo que “hebreu” ocorra no livro do Êxodo,
rentes, mas arriscadas. No século VI a.C., o Segun­ em especial quando se trata da estada no Egito e 91
EXODO

da opressão egípcia (veja 2,11). É provável que dos Juncos, há toda a dramatização de um relato
tenha havido um processo de assimilação: os ances­ épico. Nos preceitos para a Páscoa, os efeitos da li­
trais dos israelitas que foram livremente para o Egito turgia são óbvios. No Código da Aliança (20, 22-23,
mais tarde assimilaram-se a outros ‘apirti/habini. 19) e na legislação sacerdotal (25-31; 35-40), está
Como esses ancestrais eram pastores seminômades, em ação a mão legal. Em 15,lb-18, está presente
seria natural que se ressentissem da mudança em o cancionista. A variedade de tipos literários nessa
seu estilo de vida peja qual foram reduzidos a uma literatura popular dá testemunho dos muitos esfor­
força de trabalho escravo. ços humanos para enfatizar uma experiência fun­
Com o passar dos séculos, houve não só diver­ damental. Israel fez isso à sua maneira e o leitor
sas chegadas ao Egito, como também diversas par­ deve estar disposto a aceitar esse fato e, assim, se
tidas. O texto em si reflete uma percepção de várias beneficiar.
rotas diferentes. Entretanto, na ótica privilegiada Por causa da centralidade do Êxodo para a fé
da experiência de fé de Israel, há apenas o Êxodo, israelita, não devemos nos surpreender ao encontrar
a saída guiada por Moisés que também incluiu a teólogos em ação. Em geral, os exegetas mencionam
teofania no Sinai. É provável que esse grupo fosse pelo menos três teólogos na composição dessa obra.
relativamente pequeno. Como o evento era recitado O primeiro é o javista (J), que escreve no século X
com devoção e estudado pelos teólogos de Israel, a.C., no auge do reino davídico-salomônico. O se­
aos poucos assumiu proporções épicas. O pequeno gundo é o eloísta (E), que reflete um período de
grupo cresceu em tamanho e importância. Ao mes­ tumulto e sincretismo religiosos no século VIII ou
mo tempo não era apenas questão de aumento ari- IX a.C. O terceiro é o autor sacerdotal (P), que luta
mético. Era também questão de percepção de fé. para apresentar uma imagem de esperança durante
Todo o Israel via-se representado no grupo pe­ a catástrofe do Exílio no século VI a.C. Seria errado
queno mas crescente que conseguira libertar-se das para o leitor tentar harmonizar essas opiniões às
olarias de Faraó. vezes conflitantes. Ao contrário, o leitor deve deixar
a esses teólogos a liberdade necessária a suas in­
Cenário do Êxodo terpretações. Tal atitude reconhece que esses auto­
Embora o relato bíblico não dê nenhum infor­ res julgaram o passado à luz do seu presente e com
me histórico no sentido moderno do termo, há algu­ vistas às necessidades futuras de Israel. Como o co­
mas indicações do cenário. Em sua maioria, os mentário mostrará, esses autores tinham seus pre­
estudiosos fixam o Êxodo no século XIII a.C. Se­ conceitos — a inspiração não neutraliza a tendên­
gundo essas autoridades, o faraó que oprimiu os cia humana a impor a própria opinião. Em última
israelitas foi Ramsés II, o grande construtor do instância, precisamos ser tão abertos quanto a Bíblia,
Império Novo, que reinou de 1290 a 1224 a.C. que canonizou não apenas uma, mas, na verdade,
Uma das razões para essa opinião é o testemunho diversas linhas partidárias.
de Ex 1,11 que se refere à cidade-entreposto de
Ramsés. Sabemos que Ramsés II estabeleceu a Novos êxodos — novas libertações
capital no extremo nordeste do delta do Nilo e que A história do Êxodo continua a exercer impac­
a expressão “cidade de Ramsés” não foi usada to hoje, em especial na América Latina, berço da
depois de 1100 a.C. teologia da libertação. Pata os teólogos da liberta­
Embora haja quem distinga Ramsés II, o opres­ ção, a tarefa principal é reler o texto sob uma nova
sor dos israelitas, de seu sucessor, o faraó do Êxodo, luz, isto é, tomando por pano de fundo a exploração
com base em Ex 2,23, autores fidedignos ainda que caracterizou tão grande parte da história latino­
identificam Ramsés II como o opressor e também -americana. Em sua visão, a história antiga da ser­
0 faraó do Êxodo. Segundo esse ponto de vista, o vidão e da subseqüente libertação de Israel é mais
Êxodo teria ocorrido por volta de 1250 a.C., na oportuna do que nunca. Mostra que a libertação é
região a nordeste do Cairo atual e a oeste do canal um processo, não um resultado adquirido. É preocu­
de Suez. Ao mesmo tempo, precisamos não nos pação humana constante para revelar a manipulação
esquecer de mencionar os estudos em andamento de nossos iguais e apresentar os meios para a genuí­
do Êxodo e da data da Conquista. Um deles por na transformação humana.
exemplo, sugere que situemos esses acontecimentos A história do Êxodo também salienta a neces­
no século XV a.C. sidade do surgimento de novos profetas à maneira
de Moisés. Enfatiza a tarefa de tais profetas para
O tipo de literatura fazer as pessoas se conscientizarem do verdadeiro
O livro do Êxodo é literatura popular. Como mal de que sofrem. Tais profetas, portanto, precisam
mencionamos acima, não é um sóbrio tratado histó­ expressar a ausência da genuína liberdade que a
rico científico. Aliás, é a mistura de diferentes tipos sociedade moderna incentiva com tanto entusiasmo.
literários para corresponder às percepções e atitudes Há novos faraós cujas pretensões a divindade pre­
básicas de Israel. N as pragas há evidências claras cisam ser desmascaradas. Ao mesmo tempo, esses
92 de embelezamento lendário. N a travessia do mar profetas devem anunciar uma palavra de esperança.
ÊXODO 1

São chamados não só a conduzir seu povo para fora reconhecida como alcançável. Assim, Moisés trans­
das olarias, mas também a fortalecê-lo para a possi­ cende as limitações do século XIII a.C., fazendo
bilidade radical de uma existência genuína na qual com que a Palavra de Deus tenha um impacto sem­
a miséria seja reconhecida como mal e a esperança pre novo.

COA^NTARIO
PARTE I: O ÊXODO DO EGITO constata sem desvios o resultado da fertilidade de
Israel: seu rebaixamento ao trabalho escravo na
Ex 1,1-15,21 constmção. Embora essa fosse uma política lógica
A primeira parte do Êxodo apresenta tanto os para o estado autocrático egípcio (compare Gn
antecedentes da partida como o verdadeiro início 47,13-26), era totalmente contrária à tradição de
da saída. O redator final do livro (que escreveu liberdade de Israel. Entretanto, J não se contenta em
talvez por volta de 400 a.C.) trabalhou em harmo­ registrar a atitude usual do Egito. Salienta a ameaça
nia com a obra de suas principais fontes (JEP) e que Israel representava e os resultados opostos da
também com algumas tradições independentes. No opressão egípcia.
intuito de manter a fidelidade a essas fontes e tra­ J menciona a nova política do governo egípcio.
dições, este redator final preferiu não uniformizar Com o surgimento de um novo rei (que a tradição
diversas repetições e ineonsistências. Contudo, al­ prefere deixar sem nome), há uma nova maneira de
cançou certa unidade, de modo que, apesar dessas lidar com os prolíficos israelitas. Assim, a opressão
variações, a narrativa se apresenta fluente. relaciona-se diretamente com a ameaça política que
Nessa primeira parte de sua obra, o redator final esses números subentendem. Temos razão em per­
procura responder às seguintes perguntas; O que pro­ guntar se a imposição do trabalho escravo é real­
vocou 0 sofrimento pelo qual passaram os israelitas mente calculada para conseguir a redução da popu­
no Egito? Quais são as credenciais do líder? Como lação israelita. Entretanto, com certa ironia, J obser­
esse líder respondeu ao chamado divino? De que va que o plano egípcio foi contraprodutivo. Em vez
maneiras o líder tentou lidar com Faraó? Qual foi o de limitar a população, essa política apenas conse­
catalisador final que provocou a saída? Como Israel guiu incentivar seu crescimento.
deve continuar a celebrar essa saída? O que aconteceu 1,15-22 Â extinção do povo de Deus. Em ge­
quando Israel saiu rumo ao mar dos Juncos? Como ral, E é considerado o autor dessa duplicata, isto é,
Deus interveio no mar dos Juncos? a repetição de substancialmente o mesmo relato de
1,1-7 O crescimento de Israel. Os anteceden­ maneira um pouco diferente. (Aqui o autor prefere
tes dessa introdução estão em Gn 46,1-4, passagem “Deus” ['elohiml a “o S enhor” ÍYHWH) de J; ele
que resume o passado, referindo-se aos patriarcas também designa o soberano político de “o rei do
(Isaac e Jacó/Israel). Também prevê o futuro: a Egito”, enquanto J opta por “Faraó”). Aqui a manei­
saber, Israel se tomará uma grande nação no Egito ra de derrotar o povo de Deus não é pela opressão
e o próprio Deus os conduzirá para fora. Ao mes­ — o trabalho escravo da construção — , mas pela
mo tempo, essa passagem cria tensão e levanta um extinção — a morte de todos os bebês do sexo mas­
problema. O que acontecerá ao povo de Deus quan­ culino. Embora a extinção parecesse ser mais apta
do sair do Egito? Mas, de maneira mais fundamen­ do que a opressão para os propósitos de controle
tal, como um gmpo tão pequeno pode se tomar uma populacional, vai contra a conveniência política.
grande nação? Não é provável que os soberanos esgotem sua for­
P é o autor de 1,1-7. Genealogias e listas são um ça de trabalho e, assim, comprometam os programas
expediente favorito desse autor (veja Gn 5,1; 6,9). de construção, exterminando o suprimento de tra­
Além disso, a linguagem do v. 7 reflete o vocabu­ balhadores. Entretanto, nessa literatura popular, isso
lário de P (“frutificaram”, “aumentaram”, “multipli­ proporciona um maravilhoso cenário para solucio­
caram”). É a realização da ordem em Gn 1,28; “Sede nar a horrível situação. O redator final liga o relato
fecundos e prolíficos, enchei a terra...”. Pensando de E com o nascimento do herói descrito por J no
no Exílio, P pretende que essa passagem ofereça capítulo seguinte.
esperança e encorajamento ao desesperançado povo Há outras indicações dessa literatura popular.
de Deus que está tentado a desdenhar a Terra Pro­ Embora a taxa de natalidade seja alta, são neces­
metida e não voltar do Exílio (veja Nm 14,1-3.5- sárias apenas duas parteiras para ajudar os partos.
10.26-38). Na posição atual, essa passagem explica Embora os egípcios julgassem que o rei era divino
como 0 pequeno grapo se desenvolveu em número e portanto permanecesse separado das massas do
tão significativo. povo, aqui duas parteiras hebréias têm acesso direto
1,8-14 A opressão do povo de Deus. Essa pas­ ao divino Faraó. Além disso, a explicação enganosa
sagem consiste em J (vv. 8-11) e P (vv. 13-14). P que dão para a crescente população (v. 19) e, por- 93
ÊXODO 3

tanto, sua capacidade para superar o sagaz monarca aparecerá mais tarde. O problema é a pergunta feita
egípcio estão também em harmonia com o caráter pelo hebreu no v. 14: “Quem te estabeleceu como
da literatura popular. chefe e juiz sobre nós?” É precisamente essa ques­
O episódio reflete o que muitos críticos consi­ tão de credenciais que em breve Moisés terá de en­
deram um tema do autor E, o temor de Deus (veja frentar. A fuga de Moisés para Midian também
Gn 20,11; Ex 20,20). É essa ênfase no temor de prenuncia ou antecipa outros acontecimentos. Assim
Deus (v. 17) que leva à desobediência civil. Mas a como Moisés precisa fugir para o deserto, também
desobediência civil numa causa tão justa não fica o povo de Israel se dirigirá ao deserto. Assim como
sem recompensa. Não só a nação continua a au­ Moisés encontra Deus na montanha (3,1), também
mentar e se multiplicar (v. 20) como o mesmo acon­ o povo de Israel experimentará Deus no monte
tece com a descendência das duas parteiras (v. 21). (19,18).
Contudo, o capítulo se encerra com uma nota si­ A terra de Midian, lar temporário de Moisés, é
nistra que prepara o cenário para o nascimento do uma região deserta na península do Sinai. Em tra­
herói. dições mais tardias (veja Nm 25,6-9; Jz 6,1-7,25)
2,1-10 O nascimento do herói. Há uma pro­ esses midianitas habitantes do deserto se tornarão
pensão natural para saber algo sobre o nascimento inimigos implacáveis de Israel. Entretanto, nessa tra­
e a juventude do herói (compare as narrativas da dição, os midianitas e os que estão ligados a Moisés
infância de Jesus de orientação teológica em Mt 1-2 são tribos aparentadas (Reuel é nome tribal, não
e Lc 1-2). Os humanos buscam encontrar sinais pessoal.) O capítulo 18 mosúará como Moisés apren­
extraordinários que marquem a pessoa como sobre­ deu muitas coisas práticas com estes midianitas.
-humana desde o momento do nascimento. Por exem­ J apresenta Moisés como homem que teve uma
plo, Hércules estrangula uma cobra no berço. Aqui, formação cheia de altos e baixos. Embora goste de
J adere às necessidades de seu público. histórias de poços, por exemplo Rebeca (Gn 24,1 ss.)
O antigo Oriente Próximo fornece alguns ele­ e Raquel (Gn 29,1 ss.), J precisa apresentar esta
mentos análogos. Uma lenda descreve Sargon, o jovem-do-poço, Siporá, como não-israelita. Assim,
grande rei semítico que reinou no século XXIV Moisés é um israelita da tribo de Levi (2,1), criado
a.C., desta maneira: Sua mãe colocou-o em uma como egípcio, mas que foge de seu lar egípcio só
cesta de juncos calafetada com piche e lançou-o ao para encontrar não-israelitas, entre os quais encon­
rio, onde ele flutuou até ser retirado. Há também tra uma esposa. Dificilmente essas são as melhores
um relato de adoção em que um menino é encontra­ credenciais. Por isso, permanece a pergunta: com
do e entregue a uma pajem paga para cuidar dele tais credenciais, Moisés conseguirá acabar com a
durante três anos, findos os quais o menino é ado­ opressâo/extinção no Egito?
tado e educado como escriba. Não é improvável 2,23-25 O Êxodo como liturgia de lamentação.
que o relato de J também seja inspirado por essa Esta descrição não é apenas uma nota passageira na
narrativa de adoção. narrativa como um todo. O redator final combinou o
O redator final sabiamente decidiu ligar essa longo período (v. 23a — provavelmente de E) com
passagem ao relato de E sobre a extinção e, assim, o estado miserável do povo (vv. 23b-25 — uma
preparar a lenda de Moisés. Esse arranjo faz com passagem P). Este estado é apresentado em lingua­
que o vilão. Faraó, seja apanhado na própria arma­ gem de lamentação (“gemeram... e clamaram”).
dilha. Não é um qualquer que liberta o menino — (Observe a repetição dessa linguagem em 3,7.9; 6,5.)
é a filha de Faraó! O verbo “clamar” é a expressão típica dos pobres e
Moisés é nome egípcio que significa “nasceu”. desprivilegiados; é um grito que Deus não pode igno­
Em harmonia com as sensibilidades israelitas, é rar. O lamento é ligado à Aliança (v. 25). Na teolo­
omitido o nome do deus egípcio. (Compare Tutmés, gia da Aliança, o problema do povo toma-se neces­
que significa “o deus Tut nasceu”.) Essa forma de sariamente problema de Deus; a frustração do povo
nome egípcio era dada a crianças nascidas no ani­ toma-se necessariamente frustração de Deus. A liber­
versário do deus. Há outras evidências da forma­ tação sempre começa pelo reconhecimento da situa­
ção egípcia de Moisés nos nomes egípcios de ção difícil dos pobres.
membros de sua família (veja Merari, em 6,16 e 3,1-6 A sarça ardente. Essa passagem é uma
Pinhás, em 6,25). É também digno de nota que, em combinação de J e E, embora seja mais J. (E está
2,19, as filhas de Reuel refiram-se ao herói como presente em partes do v. 1, por exemplo, “à monta­
“um egípcio”. Entretanto, além dessas notas, não nha de Deus, ao Horeb”, e no v. 4b.) Essa combi­
há outras informações sobre os antecedentes de nação de fontes ficará bem evidente no restante do
Moisés. Aliás, o interesse do público israelita esta­ capítulo 3.) Também devemos notar que aqui (v. 1)
va em outra parte. o sogro de Moisés é litrô, enquanto em 2,18 é Reuel.
2,11-22 A fuga para Midian. J, o autor respon­ Ao contrário de Reuel, litrô é nome pessoal. (Para
sável por esse episódio, esforça-se para mostrar outras dificuldades, veja Jz 1,16; 4,11.)
Moisés como alguém interessado em seu povo. Tra- É provável que J tenha escolhido a palavra
94 ta de prenunciar ou antecipar um problema que “sarça” (em hebraico s^neh) a fim de ligar essa
EX0D0 3

passagem com a montanha do Senhor (em hebraico restre. A referência aos canaanitas, hetitas e outros
sinai). A sarça ardente é, assim, associada ao fogo (w . 8.17) concerne aos habitantes pré-israelitas da
da teofania do Sinai (veja 19,18). Portanto, desde terra (para uma enumeração de sete povos, veja Gn
0 início, há estreita associação entre o Êxodo e o 15,20-21; Dt 7,1). O Êxodo, portanto, não é apenas
Sinai. Para J, o que emerge dessa passagem é a uma saída — é também uma subida, a saber, à terra
dupla dimensão de reverência e continuidade his­ antes habitada por essas nações.
tórica. A reverência se expressa no gesto de Moisés As provas exigidas por Moisés na tradição E
tirar as sandálias por causa da santidade intrínseca são significativas. No v. 12, o sinal para fornecer a
do encontro com o S enhor — a presença do Senhor Moisés credenciais perante Faraó e Israel é que o
santifica o solo. Por conseguinte, Moisés cobre o povo mais tarde se reunirá para cultuar a Deus nessa
rosto. A continuidade histórica é articulada no v. 6. mesma montanha. Isso é uma irregularidade na narra­
O Deus que fala a Moisés tem estado atuante atra­ tiva vocacional, pois sinais ocorrem imediatamente,
vés dos séculos em sua preocupação por este povo. não em algum momento futuro. Talvez a concisão
O Deus de Moisés é também o Deus dos patriarcas da tradição E seja a razão dessa anomalia.
(veja também 3,16). Moisés ainda precisa de outra prova para falar
3,7-15 A missão de Moisés. Essa passagem aos israelitas (v. 13). Na tradição E, essa prova é a
está intimamente ligada à revelação divina na sar­ revelação do nome divino (vv. 14-15). Deve ser
ça ardente. A experiência de Deus é, assim, relacio­ mencionado que, para J, essa revelação do nome
nada com a missão de Moisés em Israel. Os teólo­ YFIWH não exigiu cenário especial. Desde o início
gos de Israel.refletiam a tradição que considerava de sua narrativa (Gn 2,4b), J usa o nome pessoal
Moisés um profeta. Ele era, portanto, alguém que YHWH e a partir de Gn 4,26 presume que esse
falava ao povo de Israel em nome de Deus — era nome é conhecido dos homens. Até esta passagem
0 porta-voz de Deus (veja Dt 18,15-20). Fiéis à
no capítulo 3, E simplesmente usou a palavra geral
percepção da missão profética de Moisés, J e E
“Deus” ( 'elohim em hebraico — por isso a distin­
empregam o gênero literário de narrativa vocacio­
ção dos nomes divinos logo tomou-se critério fun­
nal. (Veja Jz 6,11-21; Is 6,1-13.) Este não se des­
damental para separar as fontes J e E). Como po­
tina a ser um relato minucioso do que aconteceu
deriamos imaginar, essa passagem tem importân­
em Midian. Em vez disso, tenta comunicar a um
cia teológica fundamental no sistema de E. (Para o
público determinado o sentido da escolha divina,
uso dos nomes divinos por P, veja 6,2.)
sem excluir um tipo de experiência original. A nar­
rativa da vocação baseia-se na necessidade humana Para Israel e também para o antigo Oriente Pró­
de sinais e reafirmação. ximo, os nomes indicavam existência real. Uma coisa
J e E oferecem versões um tanto diferentes da era realidade quando seu nome era conhecido. O nome ,
vocação de Moisés. Entretanto, a estrutura básica subentendia uma dimensão de intimidade. Saber o
é a mesma: a) resposta divina a oração que pres­ nome de alguém era estar em termos pessoais com
supõe determinada dificuldade: 3,7 (J), 3,9 (E); b) ele. Entretanto, quando chegamos ao nome pessoal
promessa divina de salvar: 3,8 (J), 3,10 (E); c) a do Deus de Israel, há duas questões distintas.
missão: 3,16-17 (J), 3,9 (E); d) objeção de Moisés: A primeira questão é a etimologia de S enhor
4,1 (J), 3,11 (E); e) a objeção é superada por um (na verdade, o texto hebraico fornece apenas qua­
sinal: 4,1-9 (J), 3,12 (E); f) segunda objeção: 4,10 tro consoantes [YHWH] e o acréscimo das vogais
(J), 3,13 (E); g) resposta divina final ou aparente­ a e e já é uma tentativa de interpretação). As solu­
mente final : 4,13-16 (J), 3,14-15 (E), 4,7 (E?). ções para esse problema etimológico são em grande
Ambos, J (3,7) e E (3,9), começam pela men­ número e nenhuma solução predomina. Uma con­
ção da situação difícil do povo em linguagem de cepção popular é que o nome divino é, na verdade,
lamentação ("clamar, clamor”). Ao desenvolver a forma causativa do verbo “ser”. A segunda questão
promessa divina de salvar, J e E salientam dimen­ é o sentido que o autor (E) pretendeu dar à passa­
sões diferentes da missão de Moisés. Em 3,8 (J), é gem. Aqui pisamos em terreno mais firme, o pró­
0 S enhor que pretende libertar os israelitas, en­ prio contexto.
quanto em ^ 1 6 (J) Moisés é encarregado de falar O v. 15 (“O S enhor... enviou...”) é a verdadeira
com o povo. Em 3,10 (E) Moisés é enviado espe­ resposta ao v. 13, pois dá o nome que Moisés pediu.
cificamente para tirar os israelitas do Egito. Embora O V. 14a (“Eu sou aquele que serei”) explica o nome
0 verbo “enviar” (vv. 10.12.13) designe o profeta em termos de existência: a existência do S enhor
como enviado (veja Jr 1,7; 26,12.15), E parece significa participação e envolvimento. Segundo o v.
atribuir a Moisés um papel muito mais importante. 10, 0 nome significa conduzir o povo para fora do
J enfatiza não só a libertação de Israel dos Egito; segundo o v. 12, significa ajudar Moisés. O
egípcios, mas também o objetivo dessa intervenção: v. 14b (“Eu sou me enviou a vós”) liga o v. 13 (“o
a entrada na Terra Prometida. Essa terra mana leite Deus de vossos pais me enviou a vós”) ao v. 15 (“O
e mel (v. 8) — expressão emprestada da mitologia Senhor... enviou-me a vós”). O S enhor comprome­
para descrever a terra como verdadeiro paraíso ter­ te-se a agir em benefício do povo. 95
ÊXODO 3

3,16-22 Expansão da missão. Nessa passa­ 4,18-23 A volta de Moisés ao Egito. Com
gem de J, Moisés é primeiro enearregado de reunir exceção dos vv. 18 e 20b, esta passagem é de J.
os anciãos (v. 16) e, em seguida, de comunicar o Segundo E, Moisés fez sozinho a viagem de volta
descontentamento divino com a opressão dos israe­ ao Egito (v. 18; veja 18,5), mas segundo J, Moisés
litas. Essa missão é, então, expandida nos w . 18- fez essa viagem em companhia da mulher e dos
22. Não só Moisés, mas também os anciãos devem filhos (v. 20a). (A presença da mulher e dos filhos
abordar Faraó (v. 18). Essa expansão não é um pro­ de Moisés será importante para o rito da eircunci-
longamento desnecessário. O autor está preparando são nos w . 24-27.) Devido à relutância de Faraó
o leitor para um duplo êxodo: um êxodo-fuga e um em deixar o povo ir (a tradição êxodo-fuga), J faz
êxodo-expulsão. No v. 19, Faraó não permitirá que Moisés exercer a missão de profeta nos vv. 22-23;
0 povo parta, a não ser que seja obrigado; por isso o a) missão (“Então dirás a Faraó”); b) fórmula do
povo será forçado a fugir. Nos vv. 21-22, o S enhor mensageiro (“Assim diz o S enhor”); c) mensagem
fará os israelitas conquistarem o favor dos egípcios. (“Meu filho primogênito é Israel”). A recusa de
Na verdade, as mulheres israelitas até receberão Faraó em prestar atenção à palavra profética ante­
como presentes jóias e vestidos. O Senhor arran­ cipa a morte dos primogênitos na décima praga
jará as coisas para que os israelitas sejam, final­ (veja 11,5).
mente, expulsos (veja 12,35-36). 4,24-26 A circuncisão. A passagem J, na qual
4,1-9 Objeção de Moisés e sinais subseqiien- o S enhor tenta matar Moisés, parece ligada à nar­
tes. Como E em 3,11-12, J tem sua tradição de rativa de J em Gn 32,24-32, luta de Jacó luta com
objeção (v. 1) e sinais (w. 2-9). Para que Moisés o S enhor. Em ambos os casos, o S enhor aparece
possa ter credibilidade diante de seu povo e, assim, de repente durante a noite como um poder diabólico
comprovar suas alegações, há necessidade de sinais. ameaçador. Jacó está a caminho da terra da promes­
Os sinais proporcionados são um bastão ou um sa, mas deve primeiro confrontar seu hostil irmão
tipo de varinha de condão (w . 2-4) e um estrata­ Esaú. Também Moisés recebeu uma promessa, mas
precisa primeiro enfrentar o hostil Faraó.
gema para a mão ficar com lepra (vv. 6-8). É inte­
ressante notar que, mais tarde, P usará em um con­ Os egípcios não praticavam a circuncisão, en­
quanto, aparentemente, os hebreus a praticavam.
texto diferente a tradição do bastão transformado
Embora alguns vejam essa passagem como um ato
em serpente (7,9-12). De qualquer modo, os sinais
apotropaico por ocasião de um casamento — isto
mencionados aqui são posteriormente bem-suce­
é, destinado a afastar todos os perigos nessa oca­
didos (4,31) e estabelecem o direito de Moisés falar
sião — , é ao menos concebível que a falta de cir­
em nome do S enhor.
cuncisão de Moisés tenha provocado uma infec­
4,10-17 Mais objeções, respostas e sinais. J
ção. A ação de Siporá teria então salvo sua vida e
realça a enormidade da tarefa dada a Moisés, for­
dado origem à expressão “esposo-de-sangue”. De
mulando uma segunda objeção. Moisés agora afir­ toda maneira, J faz Siporá circuncidar o marido por­
ma não possuir os meios para relações públicas que, considerando-se a prática israelita, não ficava
porque não tem eloqüência (v. 10). A resposta do bem o grande líder ser incircunciso.
Senhor eoncentra-se na onipotência divina (v. 11). 4,27-31 E ncontro en tre Moisés e A arão.
O Senhor promete proporcionar duas coisas: a) Aarão é um personagem um tanto enigmático, mas
ajuda na expressão oral e b) assistência no conteúdo essa tradição primitiva (J) parece constrangida a
(v. 12). Apesar dessas concessões, a narrativa vo­ associá-lo com Moisés. No v. 30, é Aarão que rea­
cacional de J continua com um último esforço da liza os sinais, mas segundo a tradição J em 4,2-9
parte de Moisés para fugir a sua vocação e um é Moisés quem deve realizá-los. Contudo, o resul­
compromisso final por parte dq Senhor, para apoiar tado é positivo. No V . 31, o povo acredita e, alegre,
0 candidato vacilante. Aqui há certa audácia, mas ajoelha-se e prostema-se. Entretanto, J sente-se
uma audácia em harmonia com a propensão huma­ compelido a expressar a inconstância ou falta de
na de escapar à responsabilidade e passá-la a outrem verdadeira fé desse povo, pois, na passagem se­
(v. 13). A reação do Senhor é a cólera, mas, de ma­ guinte, ele murmura. Para J, o povo acredita ver­
neira surpreendente, é logo reprimida, de modo que dadeiramente no S enhor e em seu servo Moisés
Aarão se toma profeta de Moisés (w. 14-15). Assim, apenas em resultado do evento do mar dos Juncos
Moisés atuará à maneira do S enhor e Aarão será o (veja 14,31).
porta-voz divino (v. 16; veja Dt 18,18; Jr 1,9). 5,1-6,1 Prim eira audiência com Faraó. Ago­
A respeito do bastão (v. 17), inclinamo-nos ra que os israelitas ouviram e aceitaram a mensa­
naturalmente a pensar na tradição J nos vv. 2-4, gem do S enhor apresentada por Moisés e Aarão,
onde 0 bastão é um sinal dado a Moisés para le­ está na hora de fazer os chefes se encontrarem
gitimar sua missão e fazer o povo se dispor a acei­ com Faraó, para negociar a saída deles do Egito.
tá-lo. Aqui, entretanto, o bastão está ligado a sinais. Esta narrativa bem construída consiste em seis
Talvez originalmente fizesse parte da tradição E, cenas, cinco das quais se iniciam com um verbo de
96 na qual faltam sinais imediatos (veja 3,12). ação.
ÊXODO 6

A primeira cena (5,1-5) começa contando que 6,2-13 A missão de Moisés segundo P. Em­
“Moisés e Aarãoforam". O v. 2 apresenta uma ques­ bora conhecendo as tradições J e E sobre a voca­
tão que o resto da narrativa desenvolverá: Quem é ção de Moisés nos capítulos 3—4, P opta por dar sua
o Senhor? A viagem de três dias no deserto está versão dessa vocação. Em resposta ao lamento do
provavelmente ligada à tradição do êxodo-fuga. Se­ povo em 2,23b-25 e à luz dos reveses em 5,1-6,1,
gundo a tradição preservada nos capítulos 15-19, a vocação do profeta é a garantia de apoio ao esco­
há apenas três dias ou acampamentos entre o Egito lhido de Deus e, ao mesmo tempo, o triunfo sobre
e o Sinai (15,27; 16,1; 17,1; 19,2), Esta passagem a opressão/depressão do povo escolhido de Deus.
apresenta uma atitude realista em relação àquilo Para P é questão tanto de continuidade como de
que é uma força de trabalho: não deixar ir embora descontinuidade. O Deus que fala a Moisés é o
os escravos, mas mantê-los no trabalho. (Segundo mesmo que apareceu aos patriarcas. Entretanto, há
E, em 1,15-22, pelo contrário. Faraó projeta a extin­ uma diferença: Deus não lhes revelou seu nome
ção do povo.) pessoal, o S enhor. Em vez dele, usou “El Shadai”
A segunda cena (5,6-9) mostra Faraó falando (traduzido por “Deus Poderoso”, “Deus da monta­
aos chefes de corvéia e aos escribas do povo. (Essa nha”, “Deus da estepe” ou “Deus dos seios”). Ao
distribuição de trabalho estrangeiro, segundo a qual eontiário de 3,14-15, essa passagem (veja w . 6-8)
os chefes de corvéia são egípcios e os escribas, não transmite a Moisés uma honra pessoal que forne­
membros do povo escravizado, está historicamente ça eredeneiais. E uma comunicação especial que trata
correta.) Ao contrário das outras passagens, aqui de aliviar o sofrimento de Israel. Para P, há uma só
não há verbo de ação, pois não podemos supor que aliança em questão, aquela feita com Abraão em Gn
0 divino Faraó vá até seus subalternos. Os tijolos 17. Assim, a presente cena cria uma tensão entre a
em questão são de adobe — tijolos não queimados,
promessa antiga e a falta de realização atual. Essa
secados ao sol. falta será tratada agora.
A terceira cena (5,10-14) começa com um verbo Para a missão a Moisés, P adota a mesma narra­
de ação (“Os chefes da corvéia e os escribas do povo
tiva vocacional básica que J e E: a) resposta divina
saíram " ) e junta os chefes da corvéia, os escribas
à oração (v. 5); b) promessa divina de salvar (w.
do povo e o povo. O povo é obrigado a procurar pa­
lha, enquanto os escribas são espancados porque o
6-8); c) a missão (vv. 9-11) (há apenas alusão à
missão para o povo); d) objeção de Moisés (v. 12,
povo não produz.
repetido no v. 30; e) a objeção é superada (7,1-5).
A quarta cena (5,15-19) mostra os escribas he-
breus diante de Faraó. A literatura popular permite, Os vv. 6-8 são um oráculo de salvação, gênero
e na verdade às vezes exige, a interação do divino literário empregado principalmente na literatura pro­
Faraó com tais subalternos, nesse caso os deprimi­ fética do século VI a.C. Visto sobre o pano de fundo
dos escribas do povo. Mais uma vez, a passagem de P, o Exílio, este oráculo traz esperança e lança
se inicia com um verbo de ação (“Os escribas dos um novo fundamento para a fé de Israel. Mostra que
filhos de Israel foram ") . Entretanto, o resultado do 0 Deus que julga é também o Deus que liberta. E, o
encontro não é o que os escribas esperavam. A que é mais importante, essa dádiva de graça não está
quantidade de tijolos permanece a mesma, mas ain­ ligada ao sucesso de instituições no passado. De
da sem o fornecimento da palha! maneira paradoxal, o insucesso de Israel não der­
A quinta cena (5,20-21) concentra-se nos escri­ rota Deus.
bas e em Moisés e Aarão. Mais uma vez há um ver­ A expressão “Eu sou o Senhor” é caracterís­
bo de ação a indicar o encontro dos escribas com os tica de P. É estilo régio, como o usado no início de
dois chefes {“precipitaram-se sobre..i'). O encontro inscrições régias. Foi usada repetidamente eomo
não acidental não é de bom augúrio para os dois auto-introdução na liturgia (veja 20,2). Sugere: “Eu
chefes, que recebem uma maldição: “Que o S enhor estou aqui, presente e atuante”. É fórmula que exige
constate e que ele julgue”. O início do plano gran­ atitude compreensiva por parte de Israel. (Veja a
dioso de Moisés tem pouca possibilidade de ser oti­ Lei da Santidade em Lv 17-26, por exemplo, 19,4.)
mista e o futuro parece realmente sombrio. Para P e também para a “escola sacerdotal”, as in­
A sexta cena (5,22-6,1) traz Moisés apelando ao tervenções divinas a favor de Israel são indicações
Senhor. O verbo de ação no v. 22 é “Moisés voltou - claras da identidade desse Deus (veja Ez 20).
s e ". A passagem descreve um Moisés desanima­ 6,14-30 Genealogia de Moisés e Aarão. P in­
do, na verdade um Moisés típico, que não cessa de terrompe 0 relato da missão de Moisés para inserir
apoquentar o S enhor com suas queixas. Não nos esta genealogia. (O último v. antes da inserção é
surpreende, portanto, que hesitasse em aceitar sua repetido depois [veja w . 13 e 26-27].) Embora haja
missão. Em todo caso, Moisés fica sabendo que o quem ache as genealogias um tanto enfadonhas e,
Senhor interviiá de forma dramática. É natural que por isso, passe-as por alto, devemos observar sua
O leitor esteja preparado para a primeira praga. En­ utilidade. Representam uma forma de sobrevivên­
tretanto, P prefere considerar novamente a vocação cia — a tribo, por exemplo, cuida de' todos os seus
de Moisés. membros. Fornecem identidade — dizem à pessoa 97
ÊXODO 7

quem ela é. Indicam status — por exemplo, infor­ 7,8-13 Introdução às pragas. Nesta passagem,
mam ao rei sua linhagem. Estruturam a história — P menciona a primeira demonstração do poder do
são os parâmetros da atividade humana e/ou divina. S enhor diante de Faraó, pois para ele esse é o primei­
Aqui fica claro que P está realmente interessa­ ro encontro entre Faraó e os emissários do S enhor
do na tribo de Levi. Passa apressado por Rúben e (para J veja 5,1-6,1). Como já mencionamos, P mu­
Simeão para chegar a Levi (vv. 14-15 — os três dou 0 bastão de Moisés, de um instrumento compro-
eram tribos de Leá [veja Gn 29,31-34]). Moisés e vador diante do povo (veja J em 4,2-4), num instru­
Aarão são filhos de Amrâm (v. 20) e, em última mento para obter permissão diante de Faraó. Não nos
análise, descendentes de Levi. Embora P mostre surpreende que Aarão tenha um papel importante a
Miriâm como irmã de ambos, Aarão e Moisés (Nm desempenhar. Como o Senhor previu (veja 7,4),
26,59), Ex 15,20 afirma que ela é irmã apenas de Faraó recusa-se a ceder, apesar do bastão engolidor
Aarão. (Observe também a oposição de Aarão e de serpentes de Aarão.
Miriâm a Moisés, em Ex 32 e Nm 12.) Essa passagem introdutória deve servir como
Originalmente, “levita” era nome leigo, signifi­ uma espécie de guia para abordar as pragas. Um
cando “membro da tribo de Levi”. Somente no fim bastão que se transforma em serpente e um rio con­
de um longo processo passou a ser designação de vertido em sangue são indicações do mundo do fol­
uma pessoa um tanto subalterna que desempenha­ clore, não de explicações científicas. Contudo, os
va tarefas cultuais servis (veja 28,1-43). Ao realçar intérpretes procuraram uma explicação supostamen­
Aarão, P pretende estabelecer o direito à legitimi­ te natural dos fenômenos. De acordo com a explica­
dade do grupo de sacerdotes que basicamente con­ ção cósmica, um cometa fez contato com a terra,
trolava o Templo de Jerusalém. (P menciona apenas trazendo consigo poeira vermelha, pequenos meteo­
de passagem outras famílias sacerdotais antigas, ritos, terremotos etc. De acordo com a explicação
tais como os filhos de Mushi, citados no v. 19.) geológica, a violenta erupção de um vulcão no sé­
Para P, portanto, essa genealogia serve para dar culo XV a.C. provocou uma onda gigantesca cujos
identidade e fortalecer o status dos descendentes efeitos secundários provocaram as pragas. De acor­
de Aarão. do com uma terceira opinião, houve uma sucessão
7,1-7 Reafirm ação e obediência. Em respos­ natural de catástrofes, começando com uma en­
ta à objeção de Moisés sobre sua falta de eloqüência chente excepcionalmente grande do Nilo em julho
(6,13.30), P mostra o S enhor garantindo a Moisés e agosto e culminando com um siroco em março
que ele terá uma função quase divina (o hebraico ou abril que matou as primícias restantes, não os
'elohim pode significar alguém que não seja Deus primogênitos.
— veja SI 45,7 face a face com o profeta Aarão). Entretanto, em última análise, os autores bíbli­
Em resultado da intervenção divina, o S enhor real­ cos tinham apenas um conhecimento imperfeito dos
mente fará Israel sair do Egito (vv. 4-5). Entretanto, assuntos egípcios. Por exemplo, os gafanhotos (a
essa intervenção também provocará o reconheci­ oitava praga) são conhecidos tanto no Egito como
mento pelo Egito da identidade real do S enhor: em Israel. Entretanto, o Nilo de sangue (a primeira
“conhecerão que eu sou o S enhor...” (v. 5). praga) e as rãs (a segunda praga) são conhecidos
A tradução literal do início do v. 3 é: “endu­ apenas no Egito, enquanto o granizo (a sétima pra­
recerei o coração de Faraó”. Para os autores bíbli­ ga) é excepcional no Egito, mas não em Israel.
cos, o coração era o órgão da raciocínio e da von­ O próprio relato bíblico contém duplicatas e in­
tade (veja Is 6,10; 29,13) que se concentrava na consistências. Uma explicação científica é impos­
pessoa como o sujeito racional e desejoso. Deve­ sível. A narrativa deve ser abordada como litera­
mos mencionar que Livro do Êxodo emprega três tura popular. A quarta praga, então (os insetos), é
maneiras diferentes para expressar o endurecimento duplicata da terceira praga (os mosquitos). Da mes­
do coração de Faraó; a) o coração de Faraó ficou ma forma, a sexta praga (os furúnculos, epidemia
endurecido (7,13.14.22; 8,15; 9,7.35); b) Faraó en­ que afeta animais e humanos), é duplicata da quin­
dureceu o (próprio) coração (8,11.28); c) O S enhor ta praga (a peste do gado). Com respeito à con­
endureceu o coração de Faraó (7,3; 9,12; 10,1.20.27). sistência, podemos levantar algumas questões. Se
O Livro do Êxodo, portanto, admite tanto a liber­ todos os animais foram mortos na quinta praga
dade humana como a onipotência divina. Como o (9,6), como poderíam ter sido afetados pelos furún­
resto da Bíblia, não tenta dar nenhuma explicação culos na sexta praga (9,10), pelo granizo na sétima
dessa admissão. (9,25) e pela morte dos primogênitos na décima
Além de notar a obediência de Moisés e Aarão praga (12,29)? Se as rãs já cobriam a terra do Egito
no V. 6 , P continua, para registrar a idade dos dois (8.2) , como os magos poderiam repetir a proeza
líderes. Isso se adapta a seus interesses cronoló­ (8.3) ?
gicos gerais. Depois da caminhada de quarenta Antes de passar à questão do arranjo literário
anos, P mais tarde menciona que Moisés morreu das pragas, precisamos mencionar que a presença
98 aos cento e vinte anos (veja Dt 34,7). de E é duvidosa nesses relatos. Por isso, falamos
EX0D0 9

com mais cautela de JE, combinação das mais an­ JE faz referência à morte dos peixes e à poluição
tigas fontes escritas do Pentateuco, em vez de dis- subsequente. Segundo P, entretanto, as águas de
tingui-las mais pormenorizadamente como J ou E. todo o Egito são afetadas (v. 19), não apenas as do
Quanto à distribuição, o redator final tomou cin­ Nilo.
co pragas só de JE (quarta, quinta, sétima, oitava Em termos de progresso, precisamos notar que
e nona), duas só de P (terceira e sexta) e três de os magos egípcios são capazes de igualar a proeza
uma combinação de JE e P (primeira, segunda e realizada pelos emissários divinos (v. 22). A respeito
décima). de Faraó, o reconhecimento dele exigido é relati­
As diferenças entre JE e P referem-se a vários vamente simples: “Nisto conhecerás que eu sou o
pontos. Quanto aos papéis, JE faz Moisés aparecer S enhor” (v. 17). À medida que prossegue a narrativa
simplesmente como profeta, enquanto P faz Aarão das pragas, há diferenças significativas em ambos
desempenhar o papel principal, de modo que os relatos.
Moisés fica em segundo plano. A respeito de fórmu­ 7,26-8,11 Segunda praga: as rãs. As fontes
las, JE faz Moisés empregar a fórmula do mensa­ JE (7,26-29; 8,4-9a) e P (8,1-3.1 Ib) estão presentes
geiro, enquanto P faz o Senhor falar com Moisés, de maneira inconfundível neste relato. Como acon­
que depois fala com Aarão. Finalmente, em termos tece com a primeira praga, o presente episódio reve­
de caráter, para JE as pragas são atribulações para la que os magos egípcios ainda conseguem igualar
castigar Faraó por se recusar a deixar o povo sair. as proezas realizadas por Moisés e Aarão (8,3). Em
Para P, entretanto, são sinais e prodígios que legiti­ outros aspectos há diferenças. Faraó procura agora
mam Moisés e Aarão como representantes do Se­ ativamente a intercessão de Moisés (8,4), embora
nhor, não flagelos como tais. (Compare a praga
no fim continue inflexível (8,11). Além disso, o re­
dos mosquitos [8,12-15 — P] com a dos insetos conhecimento exigido agora de Faraó é mais abran­
gente do que 7,17: “para que saibas que ninguém é
[8,16-28 — JE].)
A presença das diferentes tradições bíblicas como o S enhor, nosso Deus” (8,6).
8,12-15 Terceira praga: os mosquitos. Neste
levanta outras questões: Como o redator final reu­
relato, exclusivo de P, há uma clara evidência de
niu tudo? Esperava encontrar algo concreto? Em
progresso. Ao contrário das duas primeiras pragas,
caso afirmativo, quais são as indicações disso?
esta os magos não conseguem reproduzir. No relato
Ao procurar responder a essas perguntas, pre­
dos magos a Faraó, há esta observação; “É o dedo
cisamos considerar dois pontos. Primeiro, o relato
d e Deus” (v. 1 5 ). Entretanto, como previu o S e n h o r ,
das pragas começa realmente em 7,8-13, porque
Faraó decide não deixar Israel sair.
esta passagem contém a mesma perspectiva e o
8,16-28 Q u arta praga: os insetos. Esta pas­
mesmo vocabulário que as pragas em si. Segundo,
sagem de JE parece pressupor que os egípcios não
a décima praga (a morte dos primogênitos) é excluí­ estão muito afastados dos israelitas, pois os primei­
da aqui, pois sua composição e suas características ros poderíam ver os sacrifícios oferecidos pelos últi­
são diferentes. O resultado é haver dez episódios: a mos (v. 22). Essa nota é um tanto surpreendente,
introdução em 7,8-13 e as nove pragas (7,14-10,29). pois o autor alega uma distinção para os israelitas,
Além disso, esses episódios estão organizados de a saber, que a praga não afetará a terra de Gôshen
forma concêntrica, de modo que a introdução, a pri­ (v. 18). Portanto, os egípcios e os israelitas não
meira praga etc. têm duplicatas de aproximadamen­ vivem lado a lado. De qualquer modo, os sacrifí­
te a mesma extensão e com a mesma fórmula na cios de animais dos israelitas deviam perturbar as
nona praga, na oitava praga etc. (Compare 8,12-15 sensibilidades religiosas dos egípcios. Talvez isso
com 9,8-12.) Este arranjo concêntrico não é fortuito. acontecesse porque os animais tinham um lugar
Foi intencionalmente planejado para indicar o pro­ proeminente na religião egípcia ou porque o sacri­
gresso definido à medida que lemos o restante da fício de animais inteiros não era prática comum
história. entre eles. Aqui é significativo, antes de mais nada,
O relato das pragas não é tanto uma série de o reconhecimento por Faraó de “que eu, o S enhor,
devastações quanto uma série de contendas entre estou no meio da terra” (v. 18). Assim, Faraó deve
Faraó e Moisés, ligadas à pergunta em 5,2; “Quem admitir que o S enhor está presente no Egito. Se­
é 0 S enhor para que eu escute a sua voz e deixe par­ gundo, a permissão para a viagem de três dias é
tir Israel?” O fracasso de Moisés e Aarão nes­ para um lugar no deserto não muito distante (v.
sas negociações com Faraó não é decisivo, pois a 24). Mais uma vez,.Moisés deve orar pelo podero­
história continua no relato do mar dos Juncos. Essas so soberano do Egito. Há um claro progresso no
pragas apontam para um prodígio ainda maior, caráter de Faraó.
no mar. 9,1-7 Q uinta praga: a peste do gado. Neste
7,14-25 Prim eira praga: a água convertida relato JE, precisamos notar que não há negociação
em sangue. O redator final combinou JE (vv. 14- entre Faraó e Moisés depois do início da praga,
18.20b-21a.23-25) e P (vv. 19-20.2 lb-22). Segun­ como em 8,21. Entretanto, em harmonia com a
do JE, é o Nilo, o Rio, que será afetado. Além disso. praga precedente, há a distinção entre egípcios e 99
ÊXODO 9

israelitas. A peste atacará o gado egípcio, não o de vós”. Assim, desde a primeira praga. Faraó progre­
Israel. Vemos que neste relato Faraó se dá ao traba­ diu em sua compreensão da presença e da força do
lho de verificar que realmente existe essa distinção S enhor. Depois do costumeiro pedido de perdão e
(veja vv. 6b-7a). do resultado positivo desse pedido, há, contudo, a
9,8-12 Sexta praga: os furúnculos. Neste observação final de que Faraó continua obstinado
relato P, causa certa estranheza o fato de Aarão de­ e, por isso, o povo permanece no Egito.
sempenhar um papel relativamente sem importân­ 10,21-29 Nona praga: as trevas. Muitos ligam
cia, o de assistente de Moisés. Em termos de desen­ essas trevas a um fenômeno típico do Oriente Próxi­
volvimento, o que surge é a espiral descendente mo, o khamsin, um vento quente que sopra do de­
dos magos. Embora conseguissem enfrentar as duas serto em março e abril, trazendo consigo trevas e
primeiras pragas, fracassaram na terceira e foram uma atmosfera muito opressiva. No relato bíblico,
forçados a admitir que a praga era obra de Deus. essas trevas assumem um caráter mais agourento,
Aqui o redator final arrumou as coisas de modo que pois sugerem os poderes maus do caos. Esse cará­
os magos não fossem exceção. Eles também sofrem ter combina com o impulso do relato JE. Há exas­
da doença de pele e não podem permanecer na pre­ peração, que leva à interrupção de quaisquer outras
sença de Moisés (v. 11). negociações (v. 28). Faraó agora está disposto a
9,13-35 Sétima praga: o granizo. Neste relato deixar todo o Israel sair com propósitos de culto
JE é dada uma explicação para o fracasso das pra­ (compare 10,11), mas não os rebanhos (v. 24).
gas anteriores em induzir Faraó a ceder. O Senhor Moisés reage a tal permissão com ironia. Afirma
agiu dessa forma para mostrar sua força e fazer seu que sacrifícios de animais fazem parte do culto e
nome ser publicado em toda a terra (v. 16). Quase por isso os rebanhos são necessários. Entretanto,
esperamos o ato decisivo do Senhor imediatamente. como os animais sacrificais são determinados ape­
Embora nem mesmo èsta praga faça Faraó conceder nas na chegada ao lugar do culto, é preciso levar
todo o rebanho. A resposta de Faraó ao irônico pe­
a permissão necessária para sair, ela contribui para
revelar o caráter do divino soberano do Egito. dido de Moisés é a suspensão de todas as nego­
No V. 14 há o aviso que Faraó e também seus ciações. Chegaram a um impasse que resultará na
morte de Moisés se ele se atrever a voltar à pre­
súditos devem confessar que ninguém na terra é co­
sença de Faraó. Com certeza, é preciso encontrar
mo 0 S enhor, o que é seguido no v. 27 pelo mea cul­
um novo meio para forçar a mão de Faraó.
pa de Faraó: “Desta vez eu pequei. É o S enhor que
11,1-10 Décima praga: a m orte dos prim o­
é o justo. Eu e meu povo somos os culpados”. É
gênitos. Devido ao aparentemente último compare-
uma confissão verdadeiramente notável. Por fim,
cimento de Moisés diante de Faraó, o leitor espera
há a afirmação de que a praga de granizo induzirá
uma rápida investida para o mar e depois a jornada
uma confissão ainda maior, a saber, que a terra no deserto. Em outras palavras, até este ponto, os
pertence ao S enhor (v. 29). O Deus de Israel recebe autores criaram uma expectativa e é natural que o
do poderoso deus egípcio, o Faraó em pessoa, um leitor espere o alívio da tensão e o desenlace. Ao
reconhecimento mais digno. contrário, há outra (e última) praga, totalmente em
10,1-20 Oitava praga: os gafanhotos. Este desacordo com as nove anteriores. (Na verdcide, a
relato JE inicia-se com uma explicação da dureza cena no mar não pressupõe a décima praga.) Agora
de coração de Faraó e seus servos. Essa obstinação 0 leitor fica atolado não em um mar de Juncos, mas
é planejada para demonstrar a força do Senhor e em um turbilhão de preceitos. Há a ordem repen­
fornecer uma tradição crescente das explorações na tina para a preparação da liturgia, não para a espe­
comunidade israelita (vv. 1-2). O autor faz menção rada fuga para a liberdade. Presumimos que os au­
especial da ida de Moisés até Faraó e alonga-se na tores bíblicos tivessem uma razão para o desapare­
irritação do S enhor: “Até quando recusarás humi­ cimento temporário da narrativa e a exaltação da
lhar-te diante de mim?” (v. 3b). Pela primeira vez liturgia.
ficamos sabendo que os servos de Faraó estão exas- A morte dos primogênitos não é surpresa total.
pierados a ponto de instar com o rei para ser pruden­ Em 4 ,2 3 ,0 S enhor, por intermédio de Moisés, diri­
te e razoável (v. 7). O resultado dessa intervenção giu-se a Faraó nestes termos: “Deixa partir meu
é que Moisés e Aarão são reconduzidos à corte de filho (Israel, primogênito do S enhor) para que me
Faraó (v. 8). Nesta passagem, o autor chama a aten­ sirva. E tu, no entanto, te recusas a deixá-lo partir!
ção para a suspeita de Faraó de que uma espécie Pois eu vou matar teu filho primogênito”. Nem é
de conspiração esteja em andamento, já que Moisés completa surpresa a pilhagem dos egípcios. Em
pede que toda a comunidade israelita tome parte no 3,21-22, os israelitas são assegurados de que não
culto no deserto (w. 10-11). deixarão o Egito de mãos vazias. Entretanto 11,1-3
O progresso na descrição da mudança de cará­ (J OU E), que pertence à tradição do êxodo-expul-
ter de Faraó encontra-se nos w . 16-17. Depois da são, presume que essa décima praga é, na verdade,
pronta convocação segue a clara afirmação de peca- a única. De que outra maneira os israelitas pode­
100 do: “Pequei contra o S enhor, vosso Deus, e contra ríam obter dos egípcios ornamentos de prata e ouro
EX 0D 012

e vestidos? De que outra maneira podemos expli­ Embora a etimologia de “Páscoa” não seja co­
car o prestigio de Moisés com os servos de Faraó nhecida, o sentido da palavra para Israel está claro.
e com 0 Egito como um todo? “Passar sobre” significa “poupar, proteger, liber­
O arranjo literário dos w . 4-8 (de J; w. 9-10, tar”. O que Israel fez, portanto, foi interpretar a
de P) sugere que esta praga não está ligada às nove antiga festa de pastores seminômades em termos
anteriores. Em geral, J informa o leitor que Moisés de seu relacionamento com o Senhor. Não era mais
deve falar ao Faraó, mas no v. 4 não está claro a a busca de lun pasto temporário, mas da pastagem
quem Moisés transmite a mensagem divina. Até o v. 6, definitiva, da própria Terra Prometida. A antiga
0 destinatário parece ser Israel, mas nos vv. 7-8 é festa, com seu enfoque na mudança, servia admi­
Faraó. No fim do v. 8 Moisés sai cheio de cólera da ravelmente para interpretar a mudança no destino
presença de Faraó. Mas, segundo 10,29 (E), nunca de Israel. Os pastores eram agora um povo em
mais deveria se apresentar diante de Faraó. Embora fuga (v. 11). (Para os pães sem fermento nos vv.
haja quem pressuponha um elo histórico — uma 14-20, cf. 13,3-10.)
epidemia que atacou os egípcios e, assim, facilitou 12,21-28 Promulgação da Páscoa. Nesta pas­
a partida dos israelitas — , não é desarrazoado con­ sagem J (com exceção de P no v. 28), Moisés cha­
cluir que a décima praga foi planejada para fazer ma os anciãos, os chefes responsáveis pelo cum­
ligação com a festa da Páscoa. primento da ordem do Senhor. Aqui a ênfase está,
12,1-20 O ritual da Páscoa. Nesta composição em princípio, no rito de sangue. Aliada à aplicação
litúrgica, P fornece detalhes de uma festa então já do sangue está proibição de sair de casa até o ama­
antiga entre os pastores seminômades do antigo nhecer (v. 22) por causa da devastação noturna.
Oriente Próximo. Era uma oferenda desses pasto­
Os preceitos nos vv. 24-27a são significativos
res pela prosperidade de seus rebanhos, quando a para a aversão de Israel a toda e qualquer forma de
tribo partia em busca de novas pastagens. Isso acon­
conflito de gerações. Os que tomam parte no êxodo
tecia na primavera e, na verdade, em uma ocasião
original e todas as comunidades israelitas subse­
bastante decisiva na vida do rebanho. Era a época
quentes estão unidas nessa experiência essencial.
em que nasciam as crias das ovelhas e das cabras.
A pergunta feita pelos filhos no v. 26 não tem inte­
As indicações da antiguidade da festa são as seguin­
resse apenas histórico, é planejada para a interpretar
tes: nenhum sacerdote, nenhum santuário, nenhum
o passado em vista do presente. Seguramente, o
altar.
S enhor poupou os israelitas e esmagou os egípcios.
Outros detalhes se encaixam nesse ambiente
pastoril. O animal é assado, não cozido (v. 9), pois Mas os acontecimentos do século XIII a.C. afetam
existem pouquíssimos utensílios de cozinha. Tal­ a comunidade atual: “quando [o Senhor] golpeou o
vez isso explique por que os ossos não são que­ Egito e libertou nossas casas” (v. 27a). Celebrar a
brados (w. 9.46). A hora é o anoitecer da primeira Páscoa significa transpor gerações e aliar-se em uma
lua cheia da primavera (v. 6), o que coincide com experiência que explica e unifica todo o povo.
a volta dos pastores ao acampamento na noite 12,29-39 M orte dos primogênitos e partida.
mais clara do mês. Os pães sem fermento (v. 8) J, o autor destes vv., segue a tradição do êxodo-
são os pães comuns consumidos por esses pasto­ expulsâo de 11,1-3. A morte dos primogênitos é
res, e as ervas amargas (v. 8) são as plantas do tão grave que Faraó convoca Moisés e Aarão à noite
deserto usadas por eles como condimentos. As (v. 31). Não há mais dúvida se o gado pode ir junto
vestes e os trajes combinam com esse ambiente: (v. 32; cf. 10,24). Na verdade, a devastação foi tão
“o cinto à cintura, as sandálias aos pés e o bastão cruel que os egípcios incentivam os israelitas a
na mão....” (v. 11). O rito de sangue (v. 7) tem partir antes da hora. A pressa da partida reflete-se
propósito apotropaico, isto é, passar o sangue nos na condição dos pães. Os israelitas estavam tão
umbrais e na verga da porta das casas tem o propó­ apressados que a massa ainda não estava fermentada
sito de afastar todo o perigo para os membros da (v. 34) e, conseqüentemente, tiveram de se conten­
tribo, em especial para os que estavam prestes a tar com pães ázimos (v. 39). (No v. 15, P não disse
nascer. Esse perigo é personificado pelo “Destrui­ por que razão o povo comeria tais pães durante sete
dor” (v. 23). O sangue, portanto, impede-o de atacar dias.) Por fim, em harmonia com a tradição do êxo-
humanos e animais. do-expulsão, os israelitas pediram aos egípcios
É o rito de sangue que estabelece o elo entre objetos de prata e ouro e também vestes. Entretanto,
a décima praga e a Páscoa. “O Destruidor” está o despojamento foi muito além. Os israelitas aca­
agora sujeito a uma nova interpretação, originada baram por pedir aos egípcios tudo o que queriam
na história de Israel. O Senhor atravessará a terra (V . 36).
do Egito, matando os primogênitos de homens e J menciona o primeiro destino e o número de
animais (v. 12). Mas, quando o S enhor vir o sangue pessoas envolvidas. Sukot está quarenta e oito qui­
nas casas, não permitirá que “o Destruidor” ataque. lômetros a sudeste de Ramsés e no meio do istmo
Em vez disso, o Senhor “passará sobre” os israelitas entre o mar Mediterrâneo e o golfo de Suez. J esta­
(V . 13). belece o número como “aproximadamente seis- 101
EXODO 12

centos mil homens a pé — os varões, sem contar pães feitos com o cereal novo. Esses pães eram
as crianças” (v. 37). Isso indicaria uma população ázimos ou sem fermento, porque não eontinham
de cerca de três milhões de homens, mulheres e nada da colheita anterior. Como esta festa pressu­
crianças. Embora seja provável que a palavra he­ põe um ambiente agrícola, supõe-se que foi adotada
braica para “mil” originalmente significasse a sub­ pelos israelitas (possivelmente proveniente dos ca-
divisão de uma tribo, o que daria um número total naanitas) somente depois da caminhada no deserto.
de cinco ou seis mil, a natureza épica dessa litera­ Só mais tarde as festas da Páscoa e dos Pães
tura popular enfatiza o número maior. “Numerosa sem fermento foram reunidas, o que provavelmen­
mescla de gente” (v. 38) sugere que elementos nâo- te aconteceu por volta do tempo do rei Josias (se­
israelitas da força de trabalho escravo também par­ gunda metade do século VII a.C. — 2Cr 35,17).
tiram do Egito na companhia de Moisés. Como as duas festas ocorriam na mesma época do
12,40-51 Cronologia e outros preceitos da ano e ambas faziam uso do pão sem fermento (mas
Páscoa. Nos vv. 40-41, P revela seu pendor para a por razões diferentes — veja 12,8), acabaram por
cronologia. Calcula a permanência dos israelitas ser reunidas.
no Egito como um período de 430 anos (veja Gn Enquanto em 12,34 J liga os pães sem fermen­
15,13). Entretanto, a complexidade dos dados bíbli­ to à pressa do Êxodo, o autor de 13,8 atribui uma
cos exige maior precisão. A permanência no deserto nota pessoal: “Foi por isso que o S enhor agiu em
não foi necessariamente contínua, vivida pelo mes­ meu favor quando de minha saída do Egito”, que
mo grupo e abrangendo todo o povo. provém do conceito de lembrança expresso no v. 3.
De um ponto de vista teológico, P revela um Lembrar significa reviver, tomar verdadeiro/signi-
Deus absorto na vida real de seu povo. O Senhor ficativo agora. Por isso, a festa não é uma recorda­
agiu em um momento preciso. Consequentemente, a ção estática do passado, mas o ato de reviver o pas­
vigília mantida pelo S enhor naquele momento de­
sado de forma dinâmica por causa de suas reper­
ve-se refletir na vigília mantida por Israel nessa oca­ cussões no presente.
sião todos os anos.
13,1-2.11-16 Redenção dos primogênitos. É
P também fornece preceitos adicionais para a
interessante observar que esta tradição não está li­
Páscoa, relativos principalmente à admissão à cele­
gada ao relato da Páscoa em si, mas sim às mortes
bração da Páscoa. (Tais preceitos pressupõem uma
dos primogênitos dos egípcios. Da mesma forma,
situação em que Israel já está levando uma existên­
outros textos (por exemplo, 22,28-29) não ligam a
cia agrícola na Terra Prometida.) Estrangeiros (v.
43) e assalariados (v. 45) estão excluídos; sua exis­ redenção dos primogênitos à experiência do Exodo
(V. 15).
tência na terra não estava enraizada com tanta fir­
A prática de “resgatar” o primogênito revela a
meza. Migrantes residentes (v. 48) e servos adquiri­
dos por dinheiro (v. 44) podem tomar parte na cele­ preocupação de Israel com a vida humana e o trata­
bração, desde que tenham sido circuncidados (veja mento especial que dá ao primogênito. Embora
Gn 17,13). A celebração é descrita como celebração Israel tivesse conhecimento do sacrifício dos primo­
doméstica (v. 46) a ser realizada por “toda a comu­ gênitos entre seus vizinhos canaanitas, revoltou-se
nidade de Israel” (v. 47). Essa é uma expressão fa­ contra essa prática (veja Gn 22,1-19). Israel via o
vorita de P, que realça a organização de Israel, em primogênito dos homens e dos animais como pro­
especial no deserto e salienta os responsáveis dentro priedade exclusiva de Deus. Consequentemente,
dessa organização. tinham de ser resgatados (veja Lc 2,23).
13,3-10 Festa dos Pães sem fermento. Já se Depois de ouvir que o israelita precisa resgatar
julgou que 13,1-16 reflete a linguagem do livro do seu primogênito, tendemos a pensar que o ato divino
Deuteronômio. Entretanto, sua linguagem é mais de redenção é apenas isso — um resgate. Em resul­
proto-deuteronômica, isto é, um estilo incipiente que tado, somos propensos a ver na ação divina reden­
culminaria na linguagem mais desenvolvida encon­ tora em Jesus apenas outro caso de tal resgate. En­
trada no Deuteronômio. Em seu contexto atual, esta tretanto, esta passagem (como várias outras do Êxodo)
tradição lida com dois assuntos: a) a redenção dos dá exemplos da profundeza e da variedade do pensa­
primogênitos (vv 1-2.11-16); b) a festa dos Pães mento bíblico.
sem fermento (vv. 3-10). Segundo o v. 3, Israel “saiu”. Esse verbo é
Ao contrário da Páscoa, que não exigia santuá­ termo legal que os contadores de história de Israel
rio e era celebrada em casa, a festa dos Pães sem tomaram emprestado (veja 21,2) para interpretar a
fermento era uma peregrinação que exigia a pre­ experiência do Êxodo. Nos vv. 3 e 8, é uma saida
sença do homem adulto no santuário (veja 23,15). do Egito, e o V. 3 acrescenta: “da casa da servidão”.
Enquanto a Páscoa era a festa de pastores seminô- Assim, para os israelitas, a redenção é a conquista
mades, a dos Pães sem fermento era a dos lavrado­ da liberdade, algo de importância especial para um
res. A festa expressava frescor, registrando o início seminômade.
da colheita da cevada (a primeira colheita a ser feita). Outro termo é “dispensar, deixar ir embora”.
102 Nos sete primeiros dias desta colheita eram comidos Em sentido legal significa “libertar” (verbo favorito
EXODO 14

de J). Por exemplo, em 21,26-27, o senhor que mal­ traz a TEB. O junco em questão é uma planta de
trata o escravo deve deixá-lo em liberdade. O autor papiro que cresce nos pântanos ao norte do delta
da presente passagem usa esse verbo no v. 15 (“res­ (não no golfo de Suez, nem no golfo de Áqaba).
gato”) e, assim, subentende que Faraó é um dono de Embora o nome sugira uma porção de água relati­
escravos que se recusa a emancipá-los. Para os israe­ vamente pequena, sua localização é duvidosa e não
litas, a redenção significa ser afastado dos caprichos muito significativa para o problema da rota do Êxo­
de Faraó e dessa forma reconquistar a integridade. do. (A expressão “mar Vermelho” deriva dos tradu­
Outro exemplo é o verbo “fazer sair”. Como tores gregos das Escrituras hebraicas. Entretanto,
Faraó recusou-se a libertar os israelitas, o Senhor pode incluir até o golfo Pérsico.)
decide fazê-los sair. Neste contexto, o verbo é usado A primeira rota é a setentrional. De acordo
quatro vezes (vv. 3.9.14.15), três vezes com a ex­ com este itinerário, quando os israelitas saíram do
pressão: “com mão forte”. Isso transmite a pode­ Egito, teriam ido diretamente para leste, isto é, atra­
rosa maneira milagrosa pela qual o S enhor liberta vessando de parte da península do Sinai para
seu povo. (Com toda a probabilidade, a frase origi­ Qadesh-Bamea. Entretanto, a tradição E observa,
nou-se da forma pitoresca como o Senhor libertou no V . 17, que os israelitas não tomaram a estrada
Israel no mar dos Juncos.) Redenção não significa da terra dos filisteus, isto é, a que corre ao longo
apenas um ato jurídico, mas uma intervenção dra­ do mar Mediterrâneo, ligada à rota setentrional.
mática que resulta em vitória para os oprimidos e Mesmo assim, as menções de Ramsés (1,11), Sukot
derrota para os opressores.
(12,37), Etâm (13,20) e Pi-Hahirot, em conexão
Outro termo é “fazer subir”. Essa expressão não com Migdol e Báal-Sefon (14,2.9 — todas de J, com
diz respeito a escravidão nem a libertação, mas trata
exceção das duas últimas) tendem a apoiar essa
do futuro (cf. 3,8). Significa subir à terra de Canaã
rota setentrional.
e, assim, é o oposto exato de descer ao Egito (cf Gn
A segunda rota é a meridional. De acordo com
46,3-4). Embora os que tomaram parte no Êxodo o
ela, ao partir do Egito, os israelitas teriam se diri­
considerassem uma saída, as gerações posteriores
gido para sul ou sudeste, para a parte inferior da
viram-no em termos de entrar em uma nova terra,
península do Sinai, onde teria sido feita a aliança
uma “subida”. Redenção significa que o israelita tem
um lar, um futuro. do Sinai. Seria o caminho do deserto mencionado
por E em 13,18.
Outro termo é o verbo “salvar”. (Em geral tra­
duzido como “salvação”, o substantivo é encontra­ É provável que essas duas tradições recordem
do em 14,13; 15,2.) A palavra é tirada da lingua­ duas experiências de êxodo diferentes. Elementos
gem da sala do tribunal, onde o salvador está sem­ das tribos de Rúben, Simeão, Levi e Judá (as tribos
pre do lado da justiça, como advogado ou testemu­ de Leá) foram possivelmente os primeiros a sair
nha da defesa. No Segundo Isaías, que celebra um do Egito, tomando a rota setentrional. Também é
segundo Êxodo, o S enhor é um salvador, pois re­ provável que sejam o grupo ligado à tradição do
toma sua propriedade de direito, Israel (cf Is 43,3). êxodo-expulsão que invadiu a terra de Canaã vin­
Redenção também significa que o Senhor assume do do sul (cf a tradição J em Nm 13,22-23; 14,24).
a causa dos que são tratados com injustiça. É possível que elementos das tribos de Benjamin,
Uma última expressão é “ser resgatador” (cf. Efraim e Manassés (as tribos de Raquel) tenham
15,13). Resgatador é o membro responsável pela deixado o Egito mais tarde sob a liderança de Moisés,
integridade da família. Por exemplo, se a proprie­ por meio da rota meridional. Esse grupo teria vaga­
dade familiar está em perigo de ir para um estra­ do no deserto, conhecido o Senhor no Sinai e inva­
nho, 0 resgatador providencia para que ela perma­ dido a terra de Canaã vindo do leste (o rio Jordão).
neça na família (cf. Rt 4; Jr 32). Assim, o resgatador Além disso, estaria ligado à tradição do êxodo-
intervém em momentos cruciais da vida familiar. fuga. Quando combinadas as diferentes entradas
Redenção também significa que Deus é identifica­ em Canaã na narrativa definitiva, as diferentes
do como membro da família interessado em outros experiências de êxodo também teriam sido unidas.
membros dessa família. Redenção é muito mais do Nos vv. 21-22, J distingue uma coluna de nu­
que apenas resgatar. vem durante o dia e uma coluna de fogo à noite.
13,17-22 Israel a caminho. Esta passagem, E Entretanto, em 14,24, J tem uma única coluna de
nos vv. 17-19, J nos vv. 20-22, traz à baila o proble­ fogo e de nuvem. Apesar dessa variação, o que fica
ma da rota do Êxodo. Embora a questão deva per­ claro é a experiência da presença divina. O fogo/
manecer aberta, é possível apresentar uma hipótese, nuvem é a percepção de Israel da participação de
fazer um esforço para explicar alguns dos dados seu Deus nos acontecimentos principais do Êxodo
contidos nas tradições bíblicas. Essa hipótese leva e da caminhada no deserto. Essa manifestação fogo/
em conta duas rotas diferentes seguidas por dois nuvem não é diferente da presença “angélica” do
grupos diferentes. Senhor (compare 3,2 com 3,4a).
Embora muitas traduções falem no mar Verme­ 14,1-10 Perseguição de Israel pelo Egito. A
lho, a tradução provável é mar dos Juncos, como ligação litúrgica da Páscoa (e da festa dos Pães 103
ÊXODO 14

sem fermento) com o Êxodo, por meio da décima do S enhor. O Divino Guerreiro é, assim, devida­
praga, e a sutura litúrgica entre a redenção dos mente reconhecido.
primogênitos e a décima praga chegaram ao fim. 14,19-31 Duas tradições p ara a travessia do
A narrativa retoma a ação das nove pragas dos mar. As tradições bíblicas não apresentam um relato
capítulos 7-10 e, depois do interlúdio do êxodo- minucioso daquilo que realmente aconteceu no mar
expulsão (cf. 11,1-3; 12,33-36), retoma a tradição dos Juncos porque faltam as fontes necessárias. En­
do êxodo-fuga (v. 5). Agora a ação muda para o tretanto, Israel preferiu interpretar esse aconteci­
milagre no mar, empreendimento militar que não mento insistindo na bravura militar do S enhor. A
pressupõe a morte dos primogênitos. teologia da guerra santa permite que as tradições
Esta passagem contém as tradições P (w . 1-4. reunidas nesta seção revelem a imagem de um Deus
8-10) e J ou JE (vv. 5-7). Por exemplo, de acordo que pensa resolutamente a favor dos israelitas em
com P, Israel está encurralado no deserto, mas, fuga. Libertação não significa ficar livre do aborre­
mais exatamente, é Faraó que é enganado para cimento das lamentações de Israel, mas sim estar
pensar assim. A razão dada por P é que a determi­ livre para o povo desnorteado e cercado.
nação categórica de Faraó de perseguir Israel re­ Segundo J, o S enhor se manifesta de duas ma­
sultará no definitivo recebimento de glória pelo neiras: a) 0 anjo de Deus (v. 19a) e b) a coluna de
S enhor por intermédio de Faraó e seu exército. Na nuvem (v. 19b). Na forma de um mensageiro divino
tradição JE, Faraó muda de idéia ao entender per- e na de uma nuvem, o Senhor agora assume uma
feitamente a perda dessa valiosa força de trabalho. posição entre os israelitas e os egípcios (v. 20). Esta
O que é comum a ambas as tradições é o fato posição subentende proteção para Israel. Além dis­
de terem interpretado a travessia do mar em ter­ so, durante a noite, o S enhor repele o mar com um
mos de uma guerra santa. A guerra santa não era forte vento leste (v. 21b), possibilitando, assim, uma
apenas o encontro entre duas forças opostas, mas passagem em terra seca. Pouco antes do amanhecer,
um empreendimento religioso. Para os israelitas o S enhor, presente na coluna de fogo e nuvem, com
isso significava que o Senhor lutava por Israel, um olhar desencadeia o pânico entre os egípcios, o
não Israel pelo Senhor. (Este mode de ver subsistiu que resulta na perda da disciplina militar (v. 24). O
até a época do exército “secular” de Davi no século olhar do S enhor que cria o pânico é agora seguido
X a.C.) A guerra santa tem cinco elementos; a) pela travação das rodas dos carros dos egípcios,
sacrifícios e oráculos para consultar o S enhor (em gesto que leva ao toque de retirada (v. 25). Entre­
razão da coluna de fogo/nuvem, o S enhor já mar­ tanto, ao amanhecer o mar recupera a profundida­
chava com Israel); b) confiança absoluta no Senhor de normal. Nessa conjuntura, o S enhor arremessa
(cf 14,31); c) purificações rituais (cf 19,14-15); os egípcios em retirada no meio do mar (v. 27b).
d) pânico desencadeado pelo S enhor no meio dos O resultado é que Israel reconhece a intervenção
inimigos (cf 14,24-25); e) total destruição do inimi­ do Senhor e acredita nele e em seu servo Moisés
go (cf 14,28.30). O que os autores de Israel enten­ (vv. 30-31).
deram claramente foi que seu comandante-em-chefe Segundo P, Moisés estende a mão sobre o mar
era ninguém menos que, o próprio S enhor. (v. 21a). O resultado é um milagre muito especial.
14,11-18 A superação do medo. Nos w . 11-14, Aparece terra seca para a passagem segura dos israe­
J tem uma reação bem humana à perseguição dos litas, enquanto as águas formam uma espécie de
egípcios. É a realidade do medo que ameaça solapar muralha à direita e à esquerda deles (v. 22). A esta
todo o propósito do Êxodo. As pessoas são tentadas altura, as forças egípcias perseguem os israelitas em
a preferir o recomeço da escravidão no Egito à morte terra seca (v. 23). A uma ordem do S enhor, Moisés
no deserto. O tema da murmuração reaparecerá na mais uma vez estende a mão sobre o mar (vv. 26-
experiência da caminhada no deserto por Israel. Ar­ 27a). As águas que voltam recobrem todo o exército
gumentando com fé, Moisés responde que essas egípcio (v. 28). Por fim, P menciona, de forma muito
alternativas são inválidas. Insistindo na teologia da mais dramática que J, a passagem dos israelitas em
guerra santa, faz um pedido para um compromisso terra seca, com uma muralha d’água à direita e à
renovado (v. 13), e conclui com a certeza da vitória. esquerda (v. 29). Em P, o gesto de Moisés substitui
“É o S enhor que combaterá por vós. De vossa parte, o forte vento leste do Senhor.
não fareis nada!” (v. 14). 15,1-21 Cântico do mar. A tradição mais antiga
Nos vv. 15-18, P responde ao clamor de frus­ sobre a travessia encontra-se nesta passagem (w. 1­
tração de Israel. A ação do S enhor consiste em dar 18.21), que, ao contrário das tradições J e P, está em
orientações que assegurem a passagem segura dos verso, não em prosa. Em geral, é considerada tradi­
israelitas pelo mar. Assim, Moisés deve erguer o ção independente, encaixada na posição atual por
bastão, estender a mão e dividir o mar em favor de meio dos w . 19-20. Com base em diversos critérios,
Israel. Como previsto no v. 4, os obstinados egípcios podemos datar o poema por volta de 1100 a.C.
perseguem Israel até o mar. Seus cadáveres se tor- Baseia-se ele em um poema canaanita mais
104 nam testemunhas mudas, mas eloqüentes, do poder primitivo (c. 1400 a.C.), que descreve o combate
ÊXODO 16

entre Báal, deus da fertilidade, e Yamm, deus do sada; tu me seguias no deserto, por uma terra não-
mar. O resultado do combate é que Yamm é vencido -cultivada” (Jr 2,2; veja também Os 2,17). Depois,
por Báal, que no episódio seguinte recebe seu tem- a tradição da rebelião de Israel contra o S enhor,
plo/palácio. No relato bíblico, o Senhor vence os captada no tema da murmuração predominante
egípcios, criando uma tempestade no mar que, su­ no confronto entre o Senhor e Israel: “Mas a casa
cessivamente, afunda seus barcos e os leva à morte de Israel se revoltou contra mim no deserto; eles
por afogamento (w. 8-10). (Aparentemente, o vento não caminharam segundo minhas leis, rejeitaram
leste de J [14,21b] foi adaptado da referência do meus costumes, que fazem viver o homem que os
poema ao vento forte do S enhor no v. 10.) É inte­ pratica” (Ez 20,13). No Êxodo e, geralmente, em
ressante notar que o poema se concentra na des­ Números, a primeira tradição, a misericórdia divi­
truição do inimigo, com apenas uma alusão à pas­ na, é primordial, enquanto a segunda, a rebelião de
sagem dos israelitas. Entretanto, ele ultrapassa as Israel, é secundária. Os teólogos de Israel estavam
proezas no mar dos Juncos para mencionar os efei­ livres para adaptar a experiência do deserto, a fim
tos de tal poder destruidor sobre os vizinhos de Israel de explicar crises teológicas mais tardias.
(vv. 14-16). Finalmente, o poema conclui com uma 15,22-27 Queixas em M ará. Este episódio
alusão à régia posse do S enhor sobre seu santuário consiste em três tradições: P (vv. 22a.27), J (vv.
(v. 17). (Essa necessidade não se limita a Jerusalém. 23-25) e deuteronômista (D) (v. 26). P apresenta as
É fórmula geral para descrever a morada do Senhor, informações à maneira de um itinerário — partida
na esteira do combate bem-sucedido.) e chegada, de lugar de parada a lugar de parada.
Essa travessia do mar dos Juncos relaciona-se, Assim, Moisés conduz o povo do mar de Juncos,
obviamente, à travessia ritual do Jordão em Js 3-4. pelo deserto de Shur, até Elim. O v. 26 aplica ao in­
Talvez devido à influência da travessia do Jordão, cidente em Mará a teologia básica do Livro do Deu-
a travessia do mar dos Juncos mudou o enfoque das teronômio. A obediência à vontade do S enhor ex­
proezas militares do S enhor contra os egípcios para pressa em seus mandamentos e preceitos evitará
a marcha de seu povo em direção à Terra Prometi­ conseqüências desastrosas, tais como as doenças in­
da (V. 13). fligidas pelo S enhor aos egípcios.
A tradição J enfatiza a generosidade divina ao
satisfazer as necessidades da comunidade do de­
PARTE II: ISRAEL NO DESERTO serto. Depois de três dias de viagem, a comunidade
encontra água em Mará, no entanto amarga, não-
Ex 15,22-18,27
potável. A situação difícil do povo faz Moisés cla­
Estes capítulos apresentam um resumo da ex­ mar ao S enhor, que providencia então um remédio
periência de Israel no deserto. Por exemplo, tratam para adoçar a água. Embora J fale do povo que mur­
da proteção do S enhor, em termos de proporcionar mura contra Moisés (v. 24), não há nenhum sinal
comida e bebida (15,22-17,7), a derrota dos ini­ de rebelião. Além disso, o conteúdo das queixas
migos de Israel (17,8-16), a organização do povo do povo está longe de ser claro. Segundo o v. 25,
(18,13-27). Ao mesmo tempo, prenunciam eventos é o S enhor que põe Israel à prova, não o contrário
que 0 Livro dos Números vai explorar. Portanto, o (como em 17,2). Assim, havendo necessidade con­
leitor não se surpreende quando toda a geração do creta, 0 Senhor responde com generosidade.
deserto, com exceção de Kaleb e Josué, fica proi­ Junto com 16,1-17,7, esta passagem destaca as
bida de entrar na Terra Prometida e condenada a feições femininas do S enhor. N os conceitos sociais
vagar pelo deserto. daquele tempo, era tarefa da mãe e mulher provi­
Estes capítulos também tratam do símbolo hu­ denciar comida e bebida. A mãe S enhor, portanto,
mano da caminhada, símbolo que reflete a vida percebe a necessidade de seus filhos em apuros e
como busca de sentido no nível dos indivíduos e dá os passos necessários para amenizar a situação.
da comunidade (cf. também Eneida, Moby Dick, A O Divino Guerreiro que venceu os poderosos egíp­
divina comédia). Lembramo-nos do Jesus de Lucas, cios no mar dos Juncos é também a mãe amorosa
que resolutamente decide tomar a estrada de Jeru­ que reage com presteza aos problemas familiares.
salém (Lc 9,51) e, assim, representar o sentido de 16,1-36 As codornizes e o m aná. Este relato
sua vida e de sua comunidade, passando por paixão, concentra-se em duas realidades da península do
morte e ressurreição. Em seu cenário atual, esses Sinai. O maná é a secreção de dois insetos que
capítulos são 0 prelúdio à experiência de Israel ao vivem na tamargueira. A substância cai no chão,
fazer a aliança do Sinai. onde endurece um pouco com o ar noturno. Os
Na literatura profética, há duas tradições dife­ beduínos apreciam este manjar do centro do Sinai
rentes desse período da história de Israel. Primeiro, por sua doçura. As codornizes migram para a
a da misericórdia divina e da resposta generosa de Europa na primavera e voltam no outono. Quando
Israel a ela: “Eu te lembro teu devotamento do pousam, exaustas, na costa noroeste da península
tempo de tua juventude, o teu amor de recém-ca- do Sinai, são apanhadas com facilidade. (Para as 105
ÊXODO 17

codornizes como substitutas do maná, cf. Nm 11,5­ Se omitirmos a crítica do povo ao S enhor no
6.31-33.) final do v. 2, o restante desse v. poderá ser enten­
P, autor principal deste relato (J encontra-se, pro­ dido simplesmente como uma briga com Moisés e
vavelmente, nos vv. 4-5.29-32), decide desenvolver uma exigência para que ele satisfaça as necessida­
certas dimensões “espirituais”. Assim, nos w. 17-21, des do povo. O clamor de Moisés ao S enhor no v.
o maná é suficiente, quer recolhessem muito ou 4 não é diferente de seu pedido em 14,15 (P), que
pouco. Além disso, qualquer quantidade guardada resulta em uma resposta positiva do S enhor. Aqui, a
para o dia seguinte se enche de vermes e estraga. resposta favorável encontra-se no v. 5, onde Moisés
De modo semelhante, nos vv. 22-26, há o elo entre recebe ordens para golpear o rochedo com o bastão.
0 maná e o sábado. Em consequência, no sexto dia (Compare com a interpretação diferente em Nm
todos recolhem o dobro, a fim de observar o des­ 20,11-13.) O resultado é que o S enhor mais uma
canso completo requerido no sétimo. O que sobra vez satisfaz as necessidades de seu povo — aqui a
do sexto dia é usado no sétimo. Na verdade, os que necessidade de água. Devemos também observar
saem no sábado para recolher maná estão profanan­ que no v. 5 não há indicação de nenhum castigo.
do esse dia sagrado — além disso, nada encontram O V. 3 contém a tradição secundária de rebeldia
(V . 27). neste relato. Na verdade, não é a sede que é funda­
A tradição original deste episódio expressava mental. Antes, ela serve de pano de fundo para
o misericordioso cuidado divino do povo no deserto. contestar o valor do Êxodo; “A troco de que... fi­
Devido às murmurações nos vv. 2 e 7, seria de es­ zeste-nos subir do Egito para cá?” Como no capí­
perar que a repentina chegada da glória do S enhor tulo 16, o Êxodo é 0 objeto de crítica por causa da
(v. 11) incluísse um castigo para os rebeldes. Em falta de água. Nesse nível da tradição, há a rejeição
vez disso, no v. 12, por intermédio de Moisés, o do plano divino.
S enhor assegura ao povo que suas necessidades de Uma perspectiva da origem do tema de murmu­
alimento serão satisfeitas. Se o povo tivesse se rebe­ rações de J afirma ser ele uma polêmica contra o
lado contra o S enhor, seria um tanto surpreendente reino do Norte, de Israel, de forma específica contra
que este cedesse às exigências dos rebeldes. Portan­ 0 culto de Jeroboão I (931-910 a.C.) em Dan e
to, a explicação mais simples é a invocação da tra­ Betei (cf IRs 12,26-33). Essa nova orientação da
dição de misericórdia: o povo estava faminto e o experiência do deserto tem o propósito de explicar
S enhor atendeu às suas súplicas de pão e carne, como o reino do norte perdeu o direito à eleição
fornecendo o maná e as codornizes (cf Sl 105,40). divina e por que o reino do sul o conservou (cf Sl
Em vista do Exílio e, conseqüentemente, do en­ 78,67-72). Pela rebelião da geração do deserto, o
tendimento do episódio como rebelião da geração norte perdeu o direito à eleição, enquanto o sul
do deserto, P introduziu o tema da murmuração, preservou sua posição por meio do reino davídico
que se expressa em forma de desejo de morrer, no em Jerusalém.
V. 3: “Quem dera tivéssemos sido mortos pela mão 17,8-16 Combate contra os amalequitas. É
do Senhor na terra do Egito, quando estávamos aliviador deparar com uma narrativa que exalta uma
sentados junto à panela de carne e comíamos pão grande proeza humana, no meio da impressionante
à vontade”. Esse desejo de morrer, no entanto, con­ exibição de poder divino. Essa narrativa de J é
tém o elemento de rejeição do plano salvífico di­ uma lenda, uma narrativa com o propósito de edi-
vino. Ao optar pela morte prematura no Egito, os ficar, nesse caso refletir sobre a estatura heróica de
israelitas rejeitam os eventos que conduziram ao Moisés. Embora a salvação sempre envolva a inte­
impasse atual, o Êxodo. Não o sofrimento da fome, ração de graça divina e colaboração humana, é ani­
mas 0 desespero teológico ocupa o centro da cena mador encontrar uma história em que o protago­
nesse nível de tradição. A resposta de Moisés e nista humano está em evidência.
Aarão no v. 6 apóia essa interpretação da rebelião. Com exceção dos esclarecimentos nos vv. 14-15
É uma questão que envolve o Deus que os fez sair sobre o ódio implacável que Israel sente por Amaleq
do Egito. A tradição da misericórdia divina con­ e a origem de um altar (tais explicações chamam-se
verte-se na tradição de se recusar a reconhecer que etiologias), todo o movimento concentra-se em Moisés,
0 Deus de Israel pode, na verdade, realizar o que não no S enhor. N o v. 9, Moisés encarrega Josué
se dispõe a fazer. de fazer os preparativos para o combate e acrescenta
17,1-7 M urm urações em Massá e M eribá. que ele próprio assumirá sua posição em uma co­
Esta é uma narrativa de J, introduzida pelo itine­ lina próxima. Apesar de não serem fornecidos
rário de P no v. la. Como a história de J em Mará, detalhes do combate, há farta descrição da contri­
a tradição primordial deste trecho expressava a buição de Moisés para o resultado feliz. Sua tena­
misericórdia do S enhor para com seu povo ne­ cidade e sua firmeza levam Israel à vitória. A per­
cessitado. Ao contrário da tradição de Mará, esse severança demonstrada ao manter as mãos erguidas,
episódio contém também a tradição secundária da embora com a ajuda de Aarão e Hur (v. 12), é pre­
contenda de Israel com o S enhor sobre a questão cisamente 0 que deveriamos esperar de tal gigante.
106 do Êxodo. Essas dimensões heróicas são representadas pela
Ê X O D 018

expressão “mãos... firmes”, no v. 12. A firmeza tinção entre os assuntos mais e menos importantes
descrita no relato é a fidelidade demonstrada ao (v. 22) indica a descentralização da autoridade
realizar uma tarefa oficial (cf. 2Rs 12,16; 22,7). É legal. Segundo alguns especialistas, talvez indi­
a coragem desse homem que muda o curso do com­ que as^tribuições judiciais durante o tempo do rei
bate. Apesar de todas as suas falhas, Moisés man­ Josafat (871-848 a.C. — c f 2Cr 19,5-11). De
tém a imagem de herói e super-homem (cf Dt qualquer modo, uma situação subseqüente foi trans­
34,7.10-12). portada para a experiência do deserto e, eissim, a
Os amalequitas, que controlavam as rotas das ca­ solução mais tardia foi atribuída a Moisés. Toda­
ravanas entre o Egito e a Arábia, viviam no Négueb, via, a história fornece, ao mesmo tempo, outra opor­
no extremo sul de Israel (cf. ISm 15,7). Já que se tunidade para E enfatizar seu tema do temor divi­
ligam à tribo de Judá e, provavelmente, à tradição no (cf 1,17.21). Seu sogro aconselha Moisés a es­
do êxodo-expulsão, aqui a história está deslocada. colher homens tementes a Deus (v. 21). Esta orien­
Entretanto, como descrição das qualidades lieróicas tação básica do temor de Deus assegurará o bem
de Moisés é, na verdade, muito oportuna em sua comum, em especial evitando o suborno (veja Dt
posição atual. 16,19).
18,1-27 O encontro de Moisés com litrô. Este
capítulo, obra de E, contém duas cenas: a) o encon­
PARTE III: A ALIANÇA
tro de Moisés com o sogro, que culmina com um
banquete de aliança (vv. 1-12); b) a descentraliza­ Ex 19,1-24,11
ção da autoridade judicial em Israel, que resulta na Alianças fazem parte da vida social humana.
nomeação de juizes “menores” (vv. 13-27). O episó­ Como os humanos são atraídos a relacionamentos
dio ocorre no deserto próximo à montanha de Deus com outros humanos, os termos desse relaciona­
(v. 5). Ao contrário da montanha de Deus no capítu­ mento devem, antes de mais nada, ser esclarecidos
lo 19, essa montanha não é cenário de uma teofania, e depois aceitos. A aliança, portanto, é um relacio­
mas de um encontro. namento no qual o elo moral entre as partes envol­
litrô não é novo na história. Em 2,11-22, J narrou vidas é definido e depois aceito. Por exemplo, em
o casamento de Moisés com a filha dele. O surpre­ Gn 31,43-32,3, Jacó e Laban fazem uma aliança.
endente nesse relato é que E se concentra em litrô. Elemento significativo nesse relacionamento é o jura­
Embora este último traga mesmo a filha e os dois mento por ambas as partes de não atacar a outra
netos para se encontrar com Moisés (em 2,22, Moisés (Gn 31,52-53). Além disso, um monte de pedras
tem um só filho, mas veja 4,20), a mulher e os dois serve de testemunha da aliança (Gn 31,45-48). Por
filhos desempenham um papel insignificante. No fim, uma refeição ritual também é fundamental:
V. 7, Moisés praticamente os ignora. Moisés e litrô
“Jacó ofereceu um sacrifício na montanha. Convi­
são claramente as figuras centrais. dou seus irmãos para a refeição” (Gn 31,54).
O encontro gira em tomo do que Moisés conta A posição do S enhor é diferença óbvia entre
sobre os feitos do S enhor ( v. 8), da reação cheia de a aliança de Jacó e Laban e a do Sinai. O S enhor
alegria de litrô à história (vv. 9-11) e de um banque­ não é um parceiro igual na aliança. Ao contrário,
te de aliança com litrô, por um lado, e com Aarão é 0 superior, e Israel, o inferior. Em conseqüência,
e os anciãos, por outro (v. 12). Embora alguns con­ o S enhor comanda, enquanto se espera que Israel
siderem a declaração de litrô sinal de sua conver­ obedeça. A palavra empenhada de Israel para agir
são ao culto do S enhor ( v. 11; cf. 2Rs 5,15), tam­ de acordo com os termos do relacionamento é, por­
bém é provável que litrô apenas tenha reconhecido tanto, fundamental para sua existência como povo
que 0 Deus de Moisés, o S enhor, era mais pode­ escolhido do S enhor. A vida da aliança é, por defi­
roso que todos os outros deuses (cf Js 2,9-11). nição, 0 desafio constante à fidelidade contínua.
Embora litrô seja chamado de sacerdote (v. 1) e, Já que a aliança do Sinai foi a experiência
portanto, exercesse uma função cultuai, na verdade pela qual esse povo passou a ser o povo de Deus,
não há nenhum fundamento indicando que fosse é natural presumir que o cenário da montanha
um sacerdote do S enhor ou partilhasse sua fé nele seria o lugar de encontro lógico para uma varieda­
com Moisés. No v. 12, aliás, é digna de nota a au­ de de interpretações deste relacionamento. A varie­
sência de Moisés. Aqui litrô participa das oferendas dade de tradições reflete os esforços inexoráveis
sacrificais, indicando assim a aceitação de um re­ de Israel para compreender sua posição única em
lacionamento mútuo com os israelitas. Levando em relação ao S enhor. Por isso, o Senhor e Israel podiam
conta a posterior inimizade entre midianitas e is­ ser percebidos de várias maneiras. Ao mesmo tempo,
raelitas, essa tradição reflete uma primitiva ligação OS presentes capítulos testemunham certo conserva­
mais amigável entre os dois grupos. dorismo. Israel não se contentava em empregar uma
Os vv. 13-27 pressupõem uma situação criada tradição e depois descartá-la. Ao contrário, preferiu
depois da experiência no deserto, em uma época conservar diversas tradições, porque cada uma delas
em que a população era grande e sedentária. A dis­ preservava um valor diferente. 107
ÊXODO 19

Em meio às características das tradições da é um titereiro que puxa os cordões por capricho
aliança de Israel, há também certo esquema válido para controlar o comportamento humano. Somente
para a maioria delas. Primeiro, há o encontro com a resposta livre é resposta adequada.
0 S enhor que intimida seu povo. Segundo, há a ex­ Essa tradição litúrgica sugere uma abordagem
pressão da vontade do S enhor para seu povo. Aqui, pela qual o Senhor pode ser considerado o suserano e
Moisés é 0 destinatário dos termos da existência Israel, o vassalo. Aqui há traços dessa concepção, que
da aliança. Terceiro, Moisés comunica ao povo a se completarão no Livro do Deuteronômio, em que o
vontade do S enhor, como a recebeu. Esse esquema modelo de aliança é o de um tratado no qual o Senhor
básico é também testemunho da posição única de é 0 suserano e Israel é o vassalo. Israel podia, assim,
Moisés como mediador da aliança. usar modelos políticos com grande vantagem.
19,1-2 O cenário. P continua seu itinerário (cf. 19,9-20 Duas tradições de teofania. Esta passa­
16,1; 17,1), dessa vez mencionando que os israelitas gem contém as tradições J e E da teofania do Sinai
chegaram ao Sinai. A tradição seguinte de P só virá — a manifestação divina sobre a montanha. (O v. 9
em 24,15b, por isso não há tradição do preparo da é uma glosa que reúne a tradição anterior a J e E.)
aliança do Sinai, comparável a J e E. Para P há ape­ Para J (w. 10-1 la.I2-13a.l4-16a.l8.20), a teofania é
nas a aliança com Abraão, que ainda perdura (cf. a de uma erupção vulcânica. E uma descrição literária,
Gn 17,13). Contudo, o Sinai será o lugar ideal de P que não exige a busca de um vulcão agora extinto
para muitas das tradições cultuais de Israel. em alguma parte da Arábia. Para E (vv. 1Ib.l3b.l6b-
A localização exata do Sinai não é conhecida. 17.19), a teofania é a de uma tempestade que provoca
Para os que seguem a rota meridional da tradição o medo.
do êxodo-fuga, a montanha em questão é muitas No relato de J, é o S enhor que escolhe Moisés
vezes identificada como Gebel Musa (montanha para ouvir a revelação e, então, partilhá-la com o
de Moisés). Seu tamanho (2.294 m) é considerado povo (v. 10). Moisés deve preparar o povo para
imponente o bastante para a importância das tradi­ uma cerimônia no terceiro dia (vv. 11 a. 15a — veja
ções ligadas á narrativa bíblica. No sopé dessa também Os 6,1-3 e ICor 15,4 para o uso do tercei­
montanha no deserto do Sinai, ergue-se agora o ro dia em um ambiente de aliança). A cerimônia
mosteiro ortodoxo grego de santa Catarina. envolve lavar as vestes e a continência (vv. 14b. 15b).
19,3-8 A titude em relação à aliança. A tradi­ Embora a menção de prontidão (vv. 1 la.l5a) tam­
ção contida nos vv. 3b-8 é de caráter independente, bém faça parte dos preparativos para a guerra santa,
tirada da liturgia agora introduzida pelo v. 3a. Seu a ênfase está mais na santidade e menos na guerra
propósito é promover a atitude apropriada que deve (cf. 7,14; 38,7). O que se espera do povo é que res­
guiar o povo de Deus. Embora seja obviamente peite os limites da montanha (v. 12), pois o S enhor
uma proclamação, não fornece regras de conduta a ocupará (v. 20). O poder e a majestade desse
exatas. Ao contrário, enfatiza a noção de palavra Deus estão evidentes no fogo, na fumaça e no tre­
(v. 5; “se ouvirdes a minha voz”). Israel recebe mor da montanha. E sua presença que produz a
ordens para ouvir e, assim, agir de acordo com a aliança. (As estipulações exatas deste relaciona­
palavra do S enhor. O uso do discurso direto (“eu” mento encontram-se agora no capítulo 34.)
e “vós”) acrescenta solenidade e força. Na verdade, No relato de E, o povo escolhe Moisés para
Israel deve aprender por meio dos poderosos fei­ ser seu porta-voz (20,19). O medo causado pela
tos divinos contra os egípcios (v. 4) a natureza do tempestade (19,16b) leva a essa decisão. Também
Senhor e a grande responsabilidade de prestar aten­ esse medo deixa-os dispostos a receber a vontade
ção a sua palavra. do Deus da tempestade. Ao contrário do relato de
Há também outras dimensões, como a ênfase J, a tradição E faz Moisés organizar uma procis­
na intimidade. O S enhor conduz o povo, não são litúrgica, mas que coloca o povo no sopé da
apenas a determinado destino no deserto, mas até montanha (19,13b. 17b). A tradição também alude
ele (v. 4). A aliança é especificamente do S enhor ao encontro com esse Deus no cenário de uma
(v. 5: “minha aliança”) e o povo é unicamente seu. guerra santa. O acampamento do v. 17 não precisa
A palavra hebraica traduzida por “parte pessoal” se limitar a um acampamento nômade; é igual­
(v. 5) evoca a idéia de propriedade particular pes­ mente militar. Embora seja um instrumento litúr-
soal de um rei (cf. Dt 7,6; 14,2; 26,18). Há tam­ gico (SI 47,6), a trompa é também instrumento mi­
bém ênfase na santidade de Israel (v. 6), caracterís­ litar usado com propósitos de guerra (c f Jz 7,20;
tica pela qual a nação é afastada do domínio dos igualmente Js 6: o chifre de carneiro mencionado
profanos. A expressão “reino de sacerdotes” não no V. 13b é litúrgico e também militar). O verbo he­
supõe que todo israelita seja sacerdote. É provável braico usado em Ex 19,17 (“ficaram parados”)
que o propósito seja indicar a totalidade de Israel: também significa alinhar-se em formação militar
uma realeza de sacerdotes e uma nação santa. Final­ (cf Jz 20,2). Assim, no Sinai, Israel é a milícia
mente, há ênfase na liberdade. Israel não é coagido divina, pronta para obedecer à vontade deste coman­
a aceitar o relacionamento (v. 5: “Agora, pois, se dante cuja presença é marcada pela nuvem sobre a
108 ouvirdes a minha voz”). Em Israel, o S enhor nunca montanha.
ÊXODO 20

19,21-25 A santidade da m ontanha. Nesta ma legislativo impessoal (cf. Gn 2,17). Embora o


passagem, J dá seqüência ao tema da santidade da homicídio e o adultério já fossem proibidos no anti­
montanha mencionado nos w . 12-13a. Ao notar que go Oriente Próximo, o quinto e o sexto (resp. sexto e
o povo será tentado a ver o S enhor, J faz Moisés sétimo) mandamentos são leis novas.
exortá-lo a manter distância reverente. Não só o Com exceção dos três (resp. quatro) primeiros,
povo em geral deve se santificar (v. 10), mas tam­ os dez mandamentos são originalmente uma forma
bém os sacerdotes (v. 22). Embora Aarão tenha de sabedoria tribal. Antes de serem unidos na forma
permissão para acompanhar Moisés na subida até atual, circularam em diferentes séries de ordens que
o Senhor, os sacerdotes e o povo são expressamente os jovens de uma tribo deviam aprender com os an­
proibidos (v. 24). O campo do Senhor deve ser ciãos (cf. Lv 18; Tb 4; Jr 35). Os anciãos das tribos
respeitado. procuravam prover o bem comum e sua posição dava
20,1-17 Os dez mandamentos. Embora o es­ autoridade ao que diziam.
quema básico exija a expressão da vontade divina Como deixa claro o v. 1, o S enhor é a pessoa
depois do encontro com o Senhor, a forma atual do por trás dessa legislação. Entretanto, ele é mais que
texto bíblico é um tanto desconcertante. No texto um ancião tribal. Identifica-se como alguém que
J de 19,25, Moisés desce a montanha para falar agiu em benefício da comunidade. Usando a fórmu­
com o povo. Em seguida, em 20,1, Deus comunica la introdutória litúrgica (“Eu sou”), o texto insiste
os dez mandamentos de maneira um tanto brusca, na centralidade do papel do Senhor no Êxodo. Israel
0 que, por sua vez, é seguido pela observação no
está ligado a esses mandamentos, não só porque
texto E de 20,19 de que a fala direta de Deus a eles
são para o bem comum, mas também porque esse
resultará em morte. Finalmente, em 20,22, o Senhor
Deus interveio de forma decisiva em sua vida. (Cf.
fala diretamente a Moisés.
como Dt 5,15 usa a tradição do Êxodo como moti­
Tanto os Dez Mandamentos como o Código
vação para a observância do sábado, em vez da
da Aliança (20,22-23,19) têm sido associados à tra­
tradição da criação usada aqui nos w. 9-11.)
dição E. Com toda a probabilidade não são obra
20,18-21 Designação de Moisés como media­
pessoal de E, mas tradições independentes inseridas
dor. O temor originalmente atribuído à teofania
por E nesse ponto. Em uma primeira etapa, o temor
experimentado pelo povo (cf. E em 20,18) foi resul­ (19,16b) agora relaciona-se à proclamação divina
tado direto da teofania da tempestade no capítulo nos dez mandamentos. (O monte envolto em fumaça
19. Em conseqüência disso, Moisés foi encarregado do V . 18 harmoniza as tradições de J e E.) Neste
de ouvir a revelação toda. Devido à importância texto E, Moisés é encarregado de ouvir o restante
dos dez mandamentos, em uma segunda etapa, o da revelação (v. 19). Não é surpreendente que E en­
povo ouviu essa lei fundamental. Esse ato de ouvir fatize o tema do temor de Deus no v. 20; esse temor
os levou ao temor, que, por sua vez, levou ao rece­ ajudará a evitar o pecado. Aqui, E conclui com a
bimento por Moisés do resto da legislação (o Có­ menção da subida de Moisés, no v. 21, subida que
digo da Aliança). Essa segunda etapa realçou cla­ se expandirá em 24,12-15a.
ramente a estatura dos Dez Mandamentos, pois, ao 20,22-26 Introdução ao Código da Aliança.
contrário do Código da Aliança, Deus os comunicou A legislação que Moisés agora ouve sozinho come­
diretamente ao povo. ça em 20,22 e termina em 23,19. Chama-se Código,
A forma dos Dez Mandamentos é significativa. ou Livro, da Aliança, porque, em 24,3, o povo con­
É uma série de leis apodícticas, isto é, que impõem corda em aceitar a vontade divina, depois especifi­
uma ordem diretamente a alguém, obrigando essa camente chamada em 24,7 “livro da aliança”. Como
pessoa a desempenhar (ou abster-se de desempe­ aconteceu com os Dez Mandamentos, E toma em­
nhar) uma ação que o legislador julgue desejável prestado uma ou algumas coleções independentes
(ou prejudicial). As leis apodícticas admitem duas que insere neste ponto da teofania do Sinai. Embora
formulações: a) terceira pessoa, como em Dt 17,6 esta passagem do Êxodo possa parecer a alguns lei­
(“Não haverá condenação à morte com base no tores excessivamente legal e talvez legalista, portan­
depoimento de uma só testemunha”); b) segunda to árida, mesmo assim precisamos procurar os valo­
pessoa, como em Lv 18,8 (“Não descobrirás a nu­ res que Israel percebia aqui. Um deles é a conside­
dez de uma mulher de teu pai”). Embora essas leis ração de Israel pela pessoa humana, valor que se
apodícticas só se encontrem excepcionalmente no destaca quando comparado a outros códigos legais
antigo Oriente Próximo, são características de Israel. do antigo Oriente Próximo. Essa atitude tem origem
Além disso, na medida em que expressam a orien­ nas convicções religiosas de Israel.
tação religiosa de todo um povo, as formulações na Estes w . iniciais dão prosseguimento à forma
segunda pessoa são exclusivas de Israel. Há, portan­ apodíctica dos Dez Mandamentos (todavia, o v. 23
to, uma dimensão de intimidade, em esp>ecial nessas está no plural e o v. 25 é uma forma mista). Ao
formulações na segunda pessoa do singular, pois o contrário das tradições J e E, que associam a presen­
Senhor Éila diretamente ao indivíduo israelita. Essas ça de Deus de uma ou outra forma à montanha,
leis baseiam-se em uma pessoa, não em um siste­ essa tradição independente faz Deus falar do céu 109
EXODO 21

(v. 24). A proibição de imagens origina-se do fato me seus caprichos. Os casos mencionados nos vv.
de que o S enhor não podia ser visto e, por isso, 20-21 e 26-27 indicam limitações em seus direitos.
não podia ser representado. A lei do altar (w. 24-26) Os vv. 23-25 enunciam a lei do talião, que tem o
pressupõe a primeira fase da vida de Israel na ter­ propósito de reprimir a vingança desenfreada, insis­
ra. É permitido erigir mais de ura santuário — de tindo na compensação proporcional. Entretanto, os
fato tantos quantos fossem os lugares onde a pre­ escravos não gozam desse direito, porque recebem
sença de Deus era reconhecida. É proibido um altar apenas a liberdade em compensação pela lesão so­
elevado, pois pode envolver imodéstia da parte frida (vv. 26-27). O V. 32 é outro indício da situa­
do sacrificante (cf. as precauções tomadas em ção do escravo. Na morte de um escravo por chi­
28,40-42). fradas, 0 dono negligente do animal é obrigado a
21,1-11 A lei sobre os escravos. O v. 2 intro­ pagar ao senhor do escravo morto o preço atual de
duz a parte casuística ou de jurisprudência do Có­ um escravo.
digo da Aliança. (Essa parte continua até 22,16.) 21,33-22,14 Leis sobre danos à propriedade.
Essa era a forma de lei típica do antigo Oriente Israel nunca estabeleceu a pena de morte por crimes
Próximo. Por natureza, a lei casuística é pragmáti­ contra a propriedade, restrição que os Estados oci­
ca; não depende diretamehte de nenhum princípio dentais mais progressistas só reconheceram no iní­
ético. O sujeito é apenas lembrado das conseqüên- cio do século passado. O princípio geral exempli­
cias desagradáveis que advirão da transgressão da ficado nesta passagem é que o indivíduo que foi
lei. Em termos de obrigação, a lei casuística obriga prejudicado em sua propriedade deve ser compensa­
o juiz ou juizes que atuam para o legislador. O pró­ do. A compensação tem caráter penal e, em geral, é
prio centro destas leis é a solução: se ocorreu isto maior do que o prejuízo causado. Assim, o homem
ou aquilo, então o resultado é este ou aquele. Embora que rouba um boi ou uma ovelha e depois mata-o
tenham um tom personalista por causa da ambien- ou vende-o deve pagar cinco vezes pelo boi e quatro
tação no Sinai, afora essa nota importante, são leis vezes pela ovelha (21,37). O ladrão que não pode
humanas leigas e práticas, escritas, na maior parte, fazer restituição plena por seu crime deve ser ven­
na terceira pessoa. (Para um exemplo de lei casuísti­ dido como escravo (22,2).
Os vv. 6-10 têm a ver com a sentença divina.
ca na segunda pessoa, veja 21,2.) Seu ambiente indi­
Segundo os vv. 7 e 8, a justiça é administrada diante
ca um tempo em Israel logo depois da ocupação da
de Deus, isto é, em lugar santo ou santuário. Nas
terra
disputas legais expressas nestes vv., o modo da
A parte que trata dos escravos distingue de
sentença é melhor explicado pelo v. 10. A parte ou
modo claro escravos e donos e formula determina­
as partes envolvidas precisam jurar em nome do
das limitações nos direitos dos donos. A palavra
S enhor. Esse procedimento reflete a santidade do
“hebreu” no v. 2 significava originalmente habini
nome divino; menosprezar o nome é menosprezar
— pessoas apátridas e rebeldes que assolavam o a pessoa.
antigo Oriente Próximo. Entretanto, em seu uso 22,15-23,9 Leis sociais. (Embora os vv. 15-16
atual, a palavra significa “israelita”. A situação des­ pertençam à parte casuística do Código da Aliança,
crita no V. 4 indica que as mulheres pertencem ao estão aqui agrupados por causa do conteúdo.)
dono. O ideal (cf Jr 34,8-22) é que a escravidão 22,17—23,19 constitui a parte apodíctica do Código
de israelitas seja apenas temporária; seis anos para da Aliança. Digna de nota aqui é a sensibilidade
os homens israelitas (v. 2). (Dt 21,10-14 aplica a ética às exigências da caridade para com o compa­
mesma regra às mulheres israelitas.) Os vv. 8-11 triota israelita. Insistindo com tanta freqüência na
contêm legislação especial para o caso de dar a obrigação do amor, transcende os Dez Mandamen­
escrava em casamento. Nesse caso, ela goza de tos, que dizem respeito apenas às exigências de
certos direitos como esposa. justiça.
21,12-17 Ofensas puníveis com a morte. Em­ A sedução de uma virgem não prometida em
bora esta passagem contenha uma mistura de for­ casamento resulta em graves problemas financeiros
mas legais, o que a toma uma unidade é o assunto; para o pai, porque seria difícil para ela encontrar
ofensas à vida humana que envolvem a pena de mor­ um pretendente. (Para a preocupação do pai com a
te. Embora o v. 12 estabeleça um princípio geral, os filha, cf. Sr 42,9-14.) Em 22,15, a lei estabelece
vv. 13 e 14 fazem distinções. No caso de homicídio que o sedutor deve desposá-la ou, ho caso de o pai
não premeditado ou morte acidental (“ato de Deus”), se recusar a dá-la, pagar o preço costumeiro do
é dado asilo em um santuário. No caso de homicídio dote das virgens. Em Israel existe um critério moral
premeditado, nem mesmo o santuário valerá. Com duplo. É a situação da mulher que determina o adul­
0 respeito devido aos pais (vv. 15.17), a legislação tério, não a do homem. Se a mulher é prometida ou
israelita é mais exigente que a do antigo Oriente casada e, portanto, propriedade de outro homem, é
Próximo e Médio em geral. adultério. Se a mulher não é nem prometida nem
21,18-31 Leis a respeito de lesões corporais. casada, não é adultério, mesmo que o homem em
110 Os donos não podem dispor dos escravos confor­ questão seja casado.
EXODO 23

A feitiçaria (22,17) e a bestialidade (22,18) acar­ devem deixar de ser cultivados a cada sete anos.
retam a pena de morte. Embora ofensa capital, o Os pobres são vistos como os principais beneficiá­
sacrifício a falsos deuses (22,19) é tratado de maneira rios dessa instituição (cf também Lv 25,2-7; Dt
diferente. Essa pessoa deve ser votada ao interdito 15,1-3). A menção do sábado no v. 12 sugere que
— totalmente destruída. Alguns acham que essa in­ 0 ano sabático deve acontecer em uma data fixa.
terdição aplica-se também a seus pertences. Entretanto, não há evidência positiva para docu­
Em 22,20-23 e 23,9, as leis tratam dos que são mentar sua observância real. A respeito do sábado,
legalmente incapazes. Os migrantes (cf. 12,48) são a lei no V 12 declara que escravos, migrantes e até
estrangeiros que vivem entre os israelitas e gozam animais devem se beneficiar do dia de descanso.
de certos direitos. Como não gozam de direitos ci­ (A palavra “sábado” em hebraico sugere “fazer alto,
vis plenos em igualdade de condições com os israe­ parar”. E um dia marcado pelo descanso, quando
litas, muitas vezes são vítimas de opressão. O v. 20 cessam todas as atividades cotidianas.)
mostra uma peculiaridade da jurisprudência israeli­ Depois de mencionar o culto exclusivo do nome
ta, a exortação. Israel não só declara a lei, como (e, portanto, da pessoa) de Deus no v. 13, o Código
também muitas vezes dá razões para sua observân­ da Aliança considera as peregrinações a ser obser­
cia. Neste caso, Israel deve se lembrar de sua exis­ vadas em Israel, isto é, festas que exigem a presença
tência precária no Egito e, por isso, trata o migran­ dos homens nos santuários locais. A Festa dos Azi-
te de maneira apropriada. Como a economia depen­ mos ou Pães sem fermento celebra o início da colhei­
de dos homens da casa, as viúvas e os sem-pai (sig­ ta da cevada (cf 13,3-10). Aqui é ligada a quando
nificado de “órfão” nesse contexto sociológico) estão Israel saiu do Egito (v. 15). A Festa da Ceifa ou das
expostos aos maiores perigos. Para neutralizá-los, Semanas (Pentecostes), que ocorre cerca de cinquenta
a legislação dos vv. 22-23 insiste no envolvimento dias depois da dos Pães sem fermento marca o fim
divino. O S enhor ouvirá os clamores e punirá os da colheita. Finalmente, a festa no fim do ano, tam­
culpados. A convicção de Israel é que uma socieda­ bém chamada da Colheita ou das Tendas, celebra a
de verdadeiramente forte cuida de seus membros colheita de toda a produção do campo. Como essas
mais fracos. três festas de peregrinação são agrícolas, eram cele­
A exortação também é proeminente nos vv. bradas somente depois da experiência do deserto.
24-26. O manto tomado em penhor deve ser devol­ O Código da Aliança termina com diversas in-
vido ao pôr-do-sol, porque também serve de cober­ junções sacrificais. Como o pão fermentado envol­
tor. O clamor de um israelita sem manto merece ve alteração, talvez fosse considerado inadequado
pronta ação do Senhor. para o uso em sacrifícios (v. 18a). A gordura do
A matéria de 23,1-3.6-8 trata de procedimen­ animal é considerada a parte mais saborosa (cf. Lv
tos legais. Os que formam os tribunais populares 3,17), mas sua conservação de um dia para o outro
de Israel são exortados a não dar falso testemunho resultaria em estrago (v. 18b). Por ser o Deus de
(v. 1), nem seguir a maioria em detrimento da jus­ Israel, o S enhor é digno de receber as primícias
tiça (v. 2), e a não aceitar propinas (v. 8). Positi­ dos frutos do solo no santuário local (v. I9a). Não se
vamente, devem absolver os inocentes e condenar sabe explicar a proibição de cozinhar um cabrito no
os culpados (v. 8). Como é improvável que alguém leite da mãe (v. 19b) (outrora se pensava que fos­
se incline a favorecer os pobres em um processo, se uma prática cultuai entre os canaanitas). Parece ser
alguns emendam o v. 3 para; “Não favorecerás o uma prática pagã da qual ainda não conhecemos os
rico em sua ação judicial”. Em qualquer caso, o detalhes.
V. 6 claramente defende os necessitados nos lití­ 23,20-33 Comportamento na Terra Prometida.
gios. Infelizmente, os profetas de Israel tiveram Alguns vêem esta passagem à maneira de Lv 26 e
de censurar a manipulação dos pobres na admi­ Dt 28 — uma lista de bênçãos que fluem da obe­
nistração da justiça (c f Is 1,23; 10,2; Ez 22,29; diência aos termos do código. Outros consideram-
Am 5,10). na um discurso de despedida vagamente ligado ao
As provisões de 23,4-5 concentram-se no ini­ código. Como essas bênçãos não têm ligação estrei­
migo pessoal de alguém (há quem identifique esse ta com os preceitos que as antecedem, a segunda
inimigo em termos de uma disputa legal real ou opinião é a preferida. (Entretanto, a fonte da tradi­
iminente). A obediência ao S enhor da aliança tem ção não está clara.)
precedência sobre os antagonismos pessoais. Ou O trecho é um discurso de despedida que visa
melhor, tal obediência exige ver nossos inimigos a encorajar o povo durante a monarquia primitiva
de uma nova perspectiva. Em todo caso, bois ou no século X a.C. (cf as fronteiras do reino davídi-
jumentos perdidos devem ser devolvidos ao dono, co-salomônico no v, 3 1). Nessa época, Israel é amea­
e um jumento sobrecarregado deve ser ajudado para çado por costumes canaanitas, pois agora povo úni­
ajeitar a carga. co de Israel vive lado a lado com canaanitas. Deus
23,10-19 Leis religiosas. Os vv. 10-12 refe­ está presente por intermédio de seu mensageiro
rem-se ao ano sabático e ao próprio sábado. Segun­ (vv. 20.23). Essa presença significa proteção, mes­
do os vv. 10-11, os campos, as vinhas e os olivais mo contra esmagadora superioridade numérica. En- 1 11
ÊXODO 24

tretanto, a ação militar divina será apenas gradual o cenário para a narrativa do bezerro de ouro no
(vv. 30-31). Durante todo esse tempo, a obediência capítulo 32. Encaixado entre esses dois textos está o
ao Senhor e sua aliança deve ser predominante relato de P sobre as instruções recebidas por Moisés
(vv. 21-22.24.32-33). Embora devam viver com os para a construção do santuário do deserto. Embora
canaanitas, não devem adotar seus costumes. É obe­ P rejeite claramente qualquer aliança no Sinai, ele
diência desse quilate que produzirá as bênçãos de acha esse cenário o lugar ideal para desenvolver
abundância de comida e bebida, saúde, fertilidade seus interesses cultuais. Por isso, esta passagem e
e vida longa (vv. 25-26). os capítulos 3 5 ^ 0 podem bem ser chamados de
24,1-2.9-11 Conclusão da aliança e o banquete documento político de P.
cerimoniai. Seguindo as tradições J e E da teofa- Ao lembrar a infidelidade de Israel que provo­
nia e da legislação subseqüente nos capítulos 20-23, cou 0 saque de Jerusalém e o exílio subseqüente
agora vêm duas outras tradições da conclusão da em 585 a.C., P deseja salientar a natureza da comu­
aliança: a) vv. 1-2.9-11 e b) vv. 3-8. Em forma de nidade restaurada, um povo santo. De maneira con­
ações rituais, proporcionam ainda duas outras vi­ creta, a santidade acarreta instituições como sacer­
sões de resposta à iniciativa divina. Embora 24,1 dócio, sacrifícios etc. Mas as instituições destinam­
esteja acrescentado um tanto desajeitadamente às -se a alcançar um propósito — a presença divina.
tradições J e E, e embora 24,3 interrompa a tradi­ Embora para P não seja o lugar de conclusão da
ção inicial, mesmo assim preservam grandes valores aliança, o Sinai é o lugar por excelência para a ma­
em termos de conclusão de alianças, valores que nifestação do S enhor.
Israel esforçou-se bastante para preservar. Embora P apresenta o santuário do deserto como
Em 24,1-2.9-11, há a celebração de uma refei­ réplica perfeita do templo de Jerusalém, é errado
ção na presença divina. Essa cena muito simples, considerar todas essas elaborações cultuais uma re-
mas profunda, é uma tradição bastante antiga prove­ troprojeção daquele templo na experiência do deser­
niente da percepção que Israel tem do S enhor como to. Aliás, P também emprega tradições mais primi­
chefe tribal. Por meio da refeição, o S enhor aceita
tivas, muitas delas ambientadas na religião canaa-
em sua família toda a comunidade, representada
nita antiga. Embora se aproprie dessas instituições
pelos anciãos dos clãs. A refeição é a garantia e o
canaanitas, P também as confronta, impondo-lhes
apoio dados pelo superior, o S enhor, ao inferior,
uma teologia da presença divina consonante com a
Israel. E digno de nota que os anciãos não precisam
fé israelita.
acatar estipulações determinadas. O que precisam aca­
tar é a proteção a eles concedida pelo chefe tribal. 24,12-15a A subida de Moisés. Esta passa­
gem E expande a declaração um tanto lacônica da
A resposta específica de Israel a esse gesto será
subida de Moisés em 20,21. Embora agora introdu-
desenvolvida em tradições subsequentes.
243-8 A conclusão da aliança e o rito de san­ za 0 material P, originalmente servia para posicio­
gue. Sacrifícios (aqui sacrifícios de paz) efetuam a nar Moisés na montanha a fim de receber a revela­
aliança. Em resposta à disposição do povo de acei­ ção divina (cf. 20,18-20). Essa revelação está liga­
tar a vontade do S enhor ( v . 3; cf. também v. 7), da às tábuas que o S enhor escreverá. (Em P, as
Moisés escreve as estipulações (v. 4). Depois de ler tábuas são escritas pelo dedo de Deus [31,18], en­
“o livro da aliança”, ele asperge o povo com me­ quanto em J Moisés as escreve [34,28].) É interes­
tade do sangue dos animais abatidos. Para Israel, sante notar que, no antigo Oriente Próximo, só
sangue é vida. O sangue aspírgido une-os ao san­ Israel representava seu Deus escrevendo ou ditando
gue borrifado sobre o altar, que simboliza Deus. legislação. Para E, a nuvem também é significante
Esse relacionamento de sangue criou uma união. por marcar a presença divina (cf. 19,16b; 20,21).
Entretanto, os termos para preservar esse relacio­ Finalmente, a noção de juizes adicionais no v. 14
namento também são explicados em detalhe. Viven­ está em harmonia com os juizes “menores” de E,
do segundo esses termos, Israel recebe a garantia em 18,21-26.
de sua constante união com o S enhor. A o contrá­ 24,15b-18 Teofania de P. Para P, essa breve
rio do antigo banquete cerimonial, esta forma de passagem não é apenas uma introdução aos capí­
conclusão de aliança dá maior destaque às exigên­ tulos 25-31; é também uma profunda declaração
cias do Deus da aliança. teológica da importância do Sinai. Aqui, ele liga a
manifestação divina no Sinai à construção do san­
tuário (40,17.33b) e à execução do primeiro sacri­
PARTE IV: INSTRUÇÕES PARA A fício (Lv 9,1.23-24). Assim como a nuvem cobre a
CONSTRUÇÃO DO SANTUÁRIO montanha e a glória do S enhor permanece ali (vv.
15b-16a), também a nuvem cobre a tenda do Encon­
Ex 24,12-31^ tro e a glória do Senhor enche o santuário (40,34).
Depois das tradições finais da conclusão da No v. 16b, 0 S enhor chama Moisés no sétimo dia,
aliança (24,1-11), Moisés sobe com Josué à mon- e em Lv 9,1 Moisés convoca Aarão, seus filhos e
112 tanha para receber as tábuas. Essa partida prepara os anciãos de Israel no oitavo dia. Segundo o v. 17,
ÊXODO 27

a glória do S enhor é vista como um fogo devorador, (cf Jr 3,16). Com certeza, a arca original funcionava
e segundo Lv 9,24a o fogo vem da presença do como suporte ou pedestal para o Deus invisível de
Senhor e consome o sacrifício. Há, assim, claro pa­ Israel (cf. Nm 10,35-36). Depois que chegou à Terra
ralelismo entre a manifestação no Sinai e o primeiro Prometida, a arca servia de trono ou escabelo do
ato de culto depois da manifestação. Portanto, o S enhor (veja ISm 4,4). Os dois querubins de ouro,
Sinai se toma o modelo para o culto. divindades menores emprestadas dos vizinhos de
25,1-9 Coleta de m ateriais. O conceito de P Israel, davam proteção ao trono e, assim, sugeriam
da morada terrena do S enhor retoma, mas reinter- a presença do Deus de Israel.
preta, tradições canaanitas antigas. Nessa religião, 25,23-40 A mesa e o candelabro. A mesa con­
El, 0 chefe do panteão, tinha uma tenda no alto de tém o pão de oferenda (v. 30), que consiste em doze
uma montanha, onde divulgava decretos ou orácu­ pães sem fermento (cf. Lv 24,5-9), reabastecidos
los (cf. 33,7-11). No V. 9, Moisés recebe instruções todo sábado e reservados para os sacerdotes. Este
para fazer uma cópia da tenda na montanha. Há, pão serve de lembrete da aliança divina com as doze
assim, semelhança de forma entre a morada terrena tribos de Israel. O candelabro ou menorá, embora
da divindade e seu modelo celeste. P emprega dois descrito minuciosamente, deixa os estudiosos descon­
nomes para o lugar do S enhor ; a) o mais tradicio­ certados. De qualquer modo, é um candelabro para
nal, “tenda do Encontro” (por exemplo, 40,32) e b) sete lâmpadas. Hoje a palavra menorá é usada para
0 nome especial “a Morada” (na TEB sempre com um dos símbolos mais conhecidos do judaísmo, o
inicial maiúscula). Usando a primeira expressão, P candelabro de sete braços. (Para os dez candelabros
entende o Deus transcendente de Israel que encon­ do templo de Salomão, c f IRs 7,49.)
trará esse povo (cf. 29,42-43; 30,36). Para P, o 26.1- 37 Instruções para fazer o santuário do
S enhor ocupará uma morada permanente no meio deserto. Na concepção de P, o santuário do deserto é
de seu povo (c f 33,7-11). um templo desmontável com exatamente a metade do
Ao contrário de J e E, P dá orientações para tamanho do templo de Salomão (veja IRs 6,2.16-17).
erigir o santuário e mobiliá-lo (c f também 36,8- Primeiro, molduras de madeira formam uma constru­
38). Apesar das elaborações de P, apresentadas ção retangular com q>roximadamente dez côvados de
segundo o modelo do templo de Jerusalém, a rea­ comprimento, um côvado e meio de largura, um cô­
lidade básica é a de um santuário portátil, uma tenda vado e meio de altura e aberto no lado leste (w. 15,29).
semelhante às de Israel durante a caminhada no Segundo, tapeçarias de linho são costuradas para fa­
deserto. Prática semelhante à das antigas tribos de zer duas grandes peças unidas por meio de laçadas e
beduínos, que carregavam uma pequena tenda sa­ ganchos e com os querubins bordados sobre elas (w.
grada feita de couro vermelho. Durante suas via­ 1-6). Terceiro, tapeçarias de pêlo de cabra são esticadas
gens, essas tribos sentiam a presença de seus deuses para formar uma tenda por cima do santuário. Essas
devido aos idolos de pedra contidos na tenda. Na tapeçarias são um pouco maiores que as dos w. 1-6
experiência humana, a presença do deus das pessoas e caem em ambos os lados (w. 7,13). Finalmente,
é considerada imperiosa. peles de carneiro tingidas de vermelho cobrem toda
25,10-22 Projeto da arca. Seguindo a prática a construção e peles de tahash (couro curtido leve)
mencionada acima, Israel encontra seu Deus por cobrem as peles de carneiro (v. 14).
causa da arca que, com toda a probabilidade, fica­ Esta passagem também menciona dois véus. Há
va guardada na tenda. A arca é um estojo retangu­ uma cortina sobre a entrada do santuário (vv. 36-37)
lar de madeira, de dois côvados e meio de compri­ e um véu entre o lugar santo e o lugar santíssimo
mento, um côvado e meio de largura e um côvado (w. 31-32). O véu é mais suntuoso que a cortina.
e meio de altura, que contém as tábuas de pedra Por trás do véu, no lugar santíssimo (a área mais
dadas a Moisés pelo S enhor ( vv. 16.21) — daí o santa ou mais sagrada), fica a arca com o propicia­
nome “arca da aliança”, ou “arca do testemunho”. tório (w. 33-34). E o lugar reservado ao S enhor. N o
(No antigo Oriente Próximo era prática comum lugar santo ficam o candelabro e a mesa do pão de
colocar tratados em um lugar sagrado, com a inten­ oferenda (v. 35).
ção de lê-los em ocasiões estipuladas.) 27.1- 8 O altar dos holocaustos. Basicamente
Embora J e E não associem a arca à tenda, P uma caixa de madeira oca, esse altar tem cerca de
acrescenta que a arca tem um propiciatório ladeado cinco côvados de comprimento, cinco côvados de
por dois querubins. O propiciatório é a tampa de largura e três côvados de altura, com revestimento
ouro da arca, associada ao perdão divino. Acima de bronze. É difícil entender como operava, pois o
do propiciatório, o S enhor fala a Moisés e, assim, calor das oferendas totalmente queimadas destruiría
aos israelitas. (Para o papel do propiciatório no Dia 0 altar. Para resolver esse problema, há quem sugi­
do Grande Perdão, cf. Lv 16,15-16; também Rm ra que eram colocadas pedras sobre o altar para
3,25.) É provável que esse propiciatório fosse um queimar (c f 29,18). Nos quatro ângulos do altar,
substituto para a arca, isto é, a sede da presença ou há chifres, importantes para quem procura asilo no
misericórdia divina depois da destruição da arca templo (c f 1Rs 1,50; 2,28). 113
ÊXODO 27

27,9-19 O átrio do santuário. P agora descre­ ao peitoral para o julgamento (v. 15). O peitoral,
ve o átrio bastante primoroso para o santuário do de­ do mesmo material que o efod, era uma bolsa que
serto, com aproximadamente cem côvados de com­ continha as sortes sagradas conhecidas como Urim
primento, cinqüenta de largura e cinco de altura (v. e Tumim (v. 30). Essas sortes respondem “sim” ou
18). Uma bárreira de colunas e varetas de prata (que “não” para os que buscam oráculos dos sacerdotes
seguram cortinados de linho) separa o pátio de todas (veja ISm 14,36-37; 28,6). Com a ascendência do
as outras áreas. Lembramo-nos naturalmente da profetismo, os sacerdotes não eram mais procura­
visão de Ezequiel, que imaginou o templo cercado dos para dar oráculos. Em harmonia com essa evo­
por um muro para “separar o sagrado do profano” lução, 0 Urim e o Tumim, ao contrário dos outros
(Ez 42,20). objetos sacerdotais, são apenas mencionados, não
27,20-21 O óleo para o candelabro. O óleo elaborados. Na descrição de P, esses instrumentos
de oliveira puro deve vir do povo, mas ser mani­ originalmente oraculares agora contêm pedras gra­
pulado pelos sacerdotes. A luz do santuário tem a vadas com os nomes das doze tribos (vv. 12.29)
finalidade óbvia de ser um lembrete perpétuo da 29,1-9 Investidura dos sacerdotes. Esta Consa­
presença do S enhor no santuário do deserto (cf. gração envolve três passos; o banho de purificação,
Lv 24,2-4). a vestição e a unção (cf. também Lv 8,1-38). Em
28,1-43 As vestes sacerdotais. Algum conhe­ resultado da purificação ou banho, o sacerdote pode
cimento da história do sacerdócio em Israel é útil, entrar no recinto do santo (cf 30,17-21). É provável
ou até necessário, para apreciar o documento po­ que o rito de ungir o sumo sacerdote (v. 7) só tenha
lítico de P. O sacerdócio propriamente dito só apa­ surgido depois do Exílio, quando ele assumiu uma
receu depois de haver considerável desenvolvimento posição política e, consequentemente, recebeu o sinal
da constituição social da comunidade. (C f a ausên­ da realeza. (Segundo 28,41 e outros textos, todos os
cia de sacerdotes para a Páscoa em 12,1-20.) Com sacerdotes são ungidos.) Esta passagem conclui afir­
0 surgimento da monarquia, dois fenômenos ocorre­ mando de maneira inequívoca as reivindicações
ram: a) santuários rivais e b) centralização cres­ aaronitas dos sacerdotes sadoquitas de Jemsalém (cf.
cente no templo de Jerusalém (cf ISm 2,27-36; também o v. 44).
2Sm 15,24-29). Com a doutrina do Deuteronômio 29,10-37 Os sacrifícios da consagração sacer­
acerca do santuário único em Jerusalém, os sacer­ dotal. Há três tipos diferentes de sacrifício nesta
dotes que serviam nos outros santuários perderam descrição pormenorizada. Primeiro, o sacrifício pelo
suas funções (cf Dt 12,4-14). Esses sacerdotes pecado, o novilho (vv. 10,14). Como a oferenda é
rurais, muitos descendentes de Levi, tomaram-se pelos pecados dos sacerdotes, eles não comparti­
cidadãos de segunda classe no templo de Jerusa­ lham a vítima. Segundo, o holocausto: o primeiro
lém e, muitas vezes, eram objeto de caridade, como carneiro (vv. 15-18). Terceiro, o sacrifício de paz:
as viúvas, os órfãos de pai e os migrantes (cf Dt o segundo carneiro (vv. 19-26.31-37). No v. 20,
26,12). Os únicos sacerdotes legítimos eram os sa- Moisés consagra os sacerdotes, esfregando o sangue
doquitas de Jerusalém — os descendentes de Sadoq do animal nas extremidades do corpo de Aarão e
(cf IRs 2,26-27; 4,2), que não descendiam de Levi. seus filhos. Nos vv. 24-25, Moisés deposita partes
A fim de realizar o ideal deuteronômico de que das vítimas nas mãos deles, fá-los oferecê-las com
todos os sacerdotes, independente da linhagem, o gesto de apresentação diante do S enhor e as re­
devem ser descendentes de Levi (cf Dt 17,9), os cebe de volta. Em resultado desse gesto ritual,
sadoquitas de origem não-levítica alegavam ser um Aarão e seus filhos são investidos no poder sacerdo­
grupo especial de levitas, a saber, os aaronitas, ou tal. (Os w. 27-30 interrompem a cerimônia. Deter­
descendentes de Aarão. O resultado foi que agora minam 0 tributo devido as sacerdotes e fazem provi­
os levitas eram sinônimo de empregados cultuais são para transferir as vestes sacerdotais.) Em segui­
inferiores, subordinados aos filhos de Sadoq (cf da, os sacerdotes cozinham a carne do segundo car­
Ez 44,10-31). No Êxodo, P reflete a reivindicação neiro e a compartilham em uma refeição sagrada.
dos sadoquitas de serem aaronitas. Como essa refeição é sagrada por estar ligada à
Este capítulo endossa as reivindicações dos sa­ consagração sacerdotal, os profanos não podem
doquitas (v. 1). Concentra-se em Aarão, reservando acompanhá-los (vv. 31-35). Esta passagem conclui
aos filhos de Aarão apenas os vv. 41-43. Convém mencionando a extensão da cerimônia. A excepcio­
lembrar que no Antigo Testamento não havia orde­ nal santidade do altar (lugar de encontro do S enhor
nação de sacerdotes como tais. A palavra traduzida — c f os vv. 43-44) é salientada no preceito do sa­
por “conferir a investidura”, no v. 41, literalmente crifício cotidiano de um novilho durante o período
significa “encher as mãos”, frase cujo sentido origi­ de sete dias (vv. 35-37).
nal não está evidente. Em todo caso, os sacerdotes 29,38-46 Sacrifícios cotidianos. O sacrifício
eram santos ou sagrados em razão de suas funções. cotidiano de dois cordeiros de um ano de idade (vv.
Entre as vestes aqui mencionadas, as mais inte­ 38-42) leva a uma profunda declaração teológica
ressantes são 0 efod e o peitoral. Originalmente, o por P (vv. 43-46). A consagração do altar, do san­
114 efod era uma veste usada pelos sacerdotes e ligada tuário e dos sacerdotes espera a presença constante
ÊXODO 32

de Deus no meio de Israel. De maneira específica, Assim, o sopro de Deus em Gn 1,2 está ligado ao
esse Deus que habita entre eles é justamente o Senhor arquiteto cheio de espírito da construção do deserto
que fez os israelitas sair do Egito. As instituições (v. 3), por sua vez ligado ao chefe inspirado das
cultuais de Israel estão, assim, enraizadas no Êxodo forças de ocupação, Josué (cf Nm 27,18; Dt 34,9).
e no Sinai. Um elemento estrutural basilar em P é a exe­
30.1- 38 Outros rituais de culto. O altar dos per­cução de uma ordem dada direta ou indiretamente
fumes (chamado altar de ouro em IRs 7,48) é talvez por Deus (cf 7,6; 12,28). Como mencionado em
uma inserção sacerdotal mais tardia, pois pela lógi­ 25,1-9, é muito importante haver exata correspon­
ca devia ser mencionado em 26,33-37 e não está in­ dência entre o plano de Deus e sua execução. Assim,
cluído nos episódios relacionados com incenso no a ordem divina comunicada por intermédio de
deserto (cf. Nm 16,6-7.17-18; 17,11-12). Todas as Moisés aos artesãos (vv. 6.11) será totalmente cum­
manhãs e todas as tardes (vv. 7-8) um sacerdote prida. No capítulo 39, essa execução será mencio­
retira com uma pá pedaços de carvão do altar dos nada em um contexto que também liga a construção
holocaustos, asperge pó nos carvões e os coloca no do santuário à criação do mundo.
altar dos perfumes (cf. Lc 1,8-9). Os vv. 34-38 for­ 31,12-18 A im portância do sábado. Embora
necem a mistura para esse perfume plenamente sa­ antes ligasse a observância do sábado ao maná
grado. No dia do Grande Perdão (v. 10), o sumo (16,23-30), agora P desenvolve o significado dessa
sacerdote leva esta proteção de fumaça salvadora instituição para Israel. Como nas outras tradições
ao lugar santíssimo e esfrega o sangue do animal do sábado no Êxodo, é mencionada a cessação do
sacrifical nos chifres do próprio altar dos perfumes trabalho (c f 20,9; 23,12; 34,21) e o elo com acria-
(cf Lv 16,12-13.18). ção (cf. 20,11). Nessa passagem, entretanto, P sa­
O recenseamento é interpretado como tarefa lienta o valor do sinal (vv. 13.17) e o objetivo da
perigosa (cf 32,30-35; 2Sm 24). Todos com vinte aliança (v. 16) do sábado. Como o S enhor santi­
anos ou mais que procuram ser registrados e dese­ ficou o sábado (Gn 2,3) e descansou (Gn 2,2)
jam evitar a praga do recenseamento devem fazer depois da criação (aqui, no v. 17o S enhor retoma
a contribuição de meio sido para o santuário (vv. alento), por sua observância Israel reconhece o
11-16; c f Ne 10,33-35). Essa precaução religiosa Santo em seu meio e, assim, entra no ritmo total
é oferenda adequada para a manutenção da morada da criação, celebrando mais uma vez seu laço com
do S enhor. o Deus criador e o mundo criado. Israel é santifi­
Os vv. 17-33 decretam outras exigências para a cado pelo S enhor e a ele pertence (v. 13), assim
equipe e os objetos do culto. Segundo os w. 17-21, como 0 sábado é sagrado e pertence ao S enhor
os sacerdotes devem empregar a bacia (cf 2Cr 4,6) (vv. 14.15). Mais tarde (39,43), P ligará a bênção
para lavar as mãos e os pés antes de entrar no san­ do S enhor no sétimo dia à bênção dos artesãos por
tuário e ao oficiar no altar (todos os muçulmanos Moisés.
observam esse rito antes da oração na mesquita).
Como não há menção da bacia em 38,20-31 e como
logicamente faz parte do altar dos holocaustos em PARTE V:
27,1-7, ela é, com toda a probabilidade, uma in­ A APOSTASIA DE ISRAEL
serção sacerdotal mais tardia. Além de lavados, os E A RENOVAÇÃO DA ALIANÇA
sacerdotes (v. 30) e todos os acessórios sagrados
Ex 32,1-34,35
(vv. 26-28) devem ser ungidos com um óleo santo
muito especial (vv. 23-25). Estes preceitos indicam Esta parte do Êxodo está cercada de enormes di­
o caráter único da equipe e dos objetos cultuais. ficuldades. A divisão por fontes dos capítulos 32-33
Devem ficar afastados de tudo que tenha laivos do está longe de ser clara. O acontecimento original por
profano (vv. 32-33). Para P, entretanto, a santidade trás da narrativa do bezerro de ouro não é evidente.
do santuário com sua equipe destina-se a ter um Contudo, a perplexidade não deve inibir a interpre­
efeito santificador sobre todo o povo do S enhor. tação geral do texto final. Embora a história das
31.1- 11 Escolha de artesãos. A construção dotradições destes capítulos continue a ser de difícil
templo de um deus não é uma decisão casual. Na compreensão, o que emerge com clareza é Israel
antiga literatura canaanita, a construção do templo compreender definitivamente a si próprio como po­
de Báal compete a um deus artesão especial. Contra vo da aliança. A multiplicidade de tradições, além
esse pano de fundo, P faz o S enhor escolher Besalel disso, indica a centralidade desse episódio para seu
e, como seu assistente, Oholiab. P salienta que o ta­ auto-entendimento.
lento de Besalel resulta de um espírito divino (v. 3; Muitos biblistas estão convencidos de que um
cf. também 35,31). Esse detalhe é fundamental para acontecimento real está por trás da história do bezer­
o plano de P da presença divina, no qual estão inter- ro de ouro, ocorrido durante a caminhada no deser­
-relacionadas a criação do mundo, a construção do to. Talvez houvesse um grupo que se opunha a
santuário do deserto e a edificação do santuário. Moisés e seu símbolo da arca da aliança. Tal gru- 115
ÊXODO 32

po, sob a liderança de Aarão, pode ter rompido lacionamento com o S enhor de certos indivíduos
o compromisso de fidelidade a Moisés e insistido privilegiados. É também digno de nota que Moisés
na figura de um touro como símbolo da presença consegue se opor ao Deus de Israel e, mesmo assim,
divina. Entretanto, ser mais específico é ir além da não ser considerado desleal.
evidência. A violenta reação do S enhor é precisamente
Devemos notar que o bezerro de ouro não trans- 0 contrário da prevista pelos devotos do bezerro.
gride 0 preceito dos Dez Mandamentos a respeito O Senhor planeja eliminar esse povo e começar de
de imagens falsas (20,4-5). Essa proibição diz res­ novo (w . 7-10). Moisés enceta seu papel de inter-
peito à pessoa do S enhor, enquanto o bezerro de cessor com o argumento da continuidade na histó­
ouro (na verdade um touro jovem) se refere a uma ria. Fazer o povo morrer no deserto só provocaria
qualidade do Senhor — a força. Tais touros serviam escárnio dos inimigos do Senhor no Egito. A ação
de apoio para o trono do S enhor (c f os querubins iniciada no Egito deve ser concluída. Abandonar
em 25,10-22). Entretanto, a história de Israel mos­ Israel agora seria renegar as promessas feitas ao
tra que nem sempre o povo distinguia entre a divin­ patriarcas (vv. 11-13). No fim, o S enhor permite
dade e os atributos dela e, assim, identificava o que o persuasivo Moisés vença a discussão (v. 14).
jovem touro com o S enhor (cf. Os 13,2). 32,15-24 Dupla destruição. As tábuas desem­
Jeroboão I (931-910 a.C.), primeiro rei do reino penham papel significativo nesta história. Nos vv.
do Norte, estabeleceu tal imagem de um bezerro 15-16, as tábuas são únicas. Embora o costume fos­
de ouro em Dan e Betei (cf. IRs 12,26-32), como se ter tais inscrições em apenas um lado, aqui elas
gesto cultuai contra o templo de Salomão. O uso estão em ambos os lados. Percebe-se a tradição de
dessas imagens por Jeroboão sugere que já eram E. (A presença de Josué no v. 17 já foi explicada
tradição antiga. Por isso, Ex 32 não precisa ser por E em 24,12.) A revelação divina que Moisés
analisado como condenação direta dessas mudanças devia comunicar ao povo agora é remodelada para
cultuais régias. Entretanto, é provável que esse capí­
fazer o relato da infidelidade de Israel e, assim,
tulo seja uma condenação indireta das reformas
forçar a volta de Moisés à montanha, onde receberá
cultuais de Jeroboão.
novas tábuas. Embora J faça Moisés escrever sobre
Em sua colocação atual, os capítulos 32-34
as tábuas (34,28), essa tradição insiste que o pró­
refletem uma teologia de renovação de aliança. Os
prio Deus fez a gravação (cf. também P em 31,18).
elementos nessa construção teológica são: a) peca­
A tradição, portanto, ultrapassou a compreensão
do, geralmente a apostasia; b) castigo; c) arrepen­
que o antigo Oriente Próximo tinha da escrita di­
dimento; d) restauração (cf. Nm 13-14; Jz 3,7-11).
vina, pela qual uma divindade não produzia o do­
Esse padrão é teologicamente significativo. Suben­
cumento fisicamente. Em conseqüência, a escrita
tende que o S enhor decide revelar-se, não só por
intermédio de um povo (o que, na verdade, é uma do S enhor salienta seu valor e autoridade. Por outro
vantagem), mas também por intermédio de um povo lado, a quebra das tábuas é a quebra do relaciona­
pecador. A esse respeito, Israel considera-se refúgio mento da aliança entre o Senhor e Israel. A atitude
de pecadores. do povo ao fazer a imagem do bezerro resulta na
32,1-6 Confecção do bezerro de ouro. Nesse destruição do laço da aliança.
padrão de renovação da aliança, o pecado é o dese­ A destruição das tábuas é seguida pelo relato
jo que 0 povo tem de se livrar de Moisés e, assim, da confecção e subseqüente destruição do bezerro
conseguir um novo chefe (w . 1.4). Com certeza, de ouro. Representando uma fiaca tentativa de absol­
essa tradição não é sacerdotal. Nessas tradições, ver o papel de Aarão nos w . 2-5, os vv. 21-24 são
Aarão nunca é identificado como sacerdote nem interessantes do ponto de vista da confecção de
ancestral de sacerdotes; na verdade, como aqui, ele objetos cultuais. Na literatura canaanita antiga, por
até se opõe ao chefe escolhido pelo S enhor (cf. exemplo, os objetos cultuais adquiriam sozinhos a
Nm 12,1-8). Aarão concorda prontamente com os forma desejada. O palácio de Báal é concluído de­
desejos do povo, faz a imagem do bezerro e convoca pois de um incêndio moldar a prata e o ouro por seis
uma celebração que inclui holocaustos e sacrifícios dias. A resposta de Aarão no v. 24, dizendo que a
de paz (vv. 2-5). Não está claro que a diversão no imagem surgiu por si mesma, é prontamente inteli­
V. 6 seja uma forma de deboche. O pecado de apos­ gível. A destruição é ainda mais interessante. Segun­
tasia de Israel consiste em rejeitar Moisés como do 0 V. 20, Moisés emprega atos mutuamente ex­
chefe e, portanto, rejeitar o S enhor. clusivos para destruir a imagem: queimar e reduzir
32,7-14 A cólera do S enhor e a intercessão de a pó. Na literatura canaanita antiga, Mot, deus da
Moisés. Moisés aparece como mediador da alian­ morte, é destruído da mesma maneira. Anat, con­
ça, alguém que intercede pelo povo, aqui no con­ sorte de Báal, queima, reduz a pó e espalha Mot.
texto do pedido de perdão que, em última análise, O ato final de fazer os israelitas beberem a água
leva à renovação da aliança. Israel, então, previu poluída pela imagem (veja também Dt 9,21) é seme­
uma.função especial de intercessão, orHaciona- lhante ao ato de Anat de espalhar os restos de Mot
116 mento do povo com o S enhor estando ligado ao re­ nos campos, onde as aves os consomem. Em Êxodo,
ÊXODO 34

0 bezerro de ouro, como Mot, é completamente des­ Os w . 8 e 10 presumem que a tenda está colocada
truído, ficando irrecuperável. no meio do acampamento (cf P em 25,1-9). Mas o
32,25-29 O zelo dos levitas. Há duas tradi­ V. 7 afirma que a tenda está fora do acampamento,
ções para o castigo do povo. Segundo o v. 35, o na verdade a certa distância dele.
S enhor fere o povo por seu ato pecaminoso. Segun­ Parece que E introduziu mudanças em uma
do os w . 25-29, membros da tribo de Levi atendem tradição mais primitiva relativa à tenda da caminha­
ao chamado de Moisés para cingir a espada e execu­ da de Israel no deserto, a fim de demonstrar que
tam os israelitas que sacrificaram ao bezerro de a teofania da tenda é reprodução em miniatura da
ouro, inclusive seus parentes. A lealdade obtém revelação do Sinai. Tanto a montanha como a tenda
para eles as prerrogativas sacerdotais (vejaDt 33,9). estão fora do acampamento (v. 7; 19,17). Em ambos
Essa tradição não condena Aarão como ancestral os casos, o povo permanece a distância (v. 8; 20,18).
dos aaronitas. Expressa a reação dos levitas dedica­ (Em hebraico, o mesmo verbo é usado para as pes­
dos à aliança, que rejeitaram o culto estabelecido soas se posicionarem [v. 8; 19,17].) Em ambos os
por Jeroboão 1 em Betei, uma das cidades nas quais casos, uma nuvem indica a presença divina (w. 9-10;
esse rei erigiu a imagem de um bezerro. Esse epi­ 16ab). Em ambos os casos, Josué auxilia Moisés
sódio também condena a atitude do rei ao fazer sa­ (v. 1Ib; 24,13). Por fim, em ambos os casos Moisés
cerdotes de pessoas tomadas do meio do povo, que aparece como íntimo de Deus. O relacionamento
não eram levitas (veja IRs 12,31). de Israel com o S enhor depende bastante deste in­
32,30-35 A expiação. Esta tradição enfatiza a tercessor singular.
identidade de Moisés com o povo. Se o S enhor é 33,12-17 Intercessão de Moisés. Esta passa­
implacável, então o intercessor deseja compartilhar gem liga-se à posição de Moisés face a face com o
o destino do povo. O conceito do livro de Deus era Senhor ( v. 1la) e sua ordem para conduzir o povo
conhecido no antigo Oriente Próximo e está em (v. la). Segundo o v. 12, a dedução é que um anjo
consonância com a noção de recrutamento militar não é adequado. Apelando a sua posição de amigo
onde as vidas dos registrados no livro eram cheias íntimo de Deus, Moisés argumenta em nome do
de perigo. Nesta passagem, Israel adapta a tradição povo (v. 13). Se a posição de líder é genuína, a con­
— um Israel que se considera exército divino. Por clusão divina deve ser a favor do povo. O v. 14 mos­
ocasião de um recenseamento (cf. 30,11-16) havia tra que o apelo é bem-sucedido. Entretanto, é dirigi­
um rito de reparação (cf “absolvição” no v. 30) e do apenas a Moisés. Ainda não satisfeito, Moisés
os nomes dos israelitas eram escritos em tábuas. insiste, demonstrando que a graça divina só é real se
Os inscritos dessa forma gozavam os direitos de incluir o povo (w. 15-16). Finalmente, o argumento
membros da milícia divina, por exemplo posse da em favor da comunidade obtém a aprovação divina
terra e culto no santuário. Quem fosse retirado das (v. 17). A importância dessa discussão não deve ser
tábuas era colocado entre os mortos, isto é, sepa­ esquecida. Significa que o bem-estar do povo da
rado da comunidade. aliança (aqui sua renovação como povo de Deus)
33,1-6 O rdens para a partida. Esta passa­ baseia-se no amor e na confiança entre o Deus da
gem segue a tendência de 32,33-34, a continuação aliança e o intercessor dela.
da caminhada para a Terra Prometida com a ajuda 33,18-23 Preparações p ara a teofania. Com
de um anjo. Entretanto, em 32,34, o anjo apenas não pouca audácia, Moisés busca mais segurança
confirmou o papel de liderança de Moisés. Aqui a para seu povo, pois pronunciar o nome divino é a
questão fundamental é a presença do S enhor junto garantia da presença e, portanto, da compaixão (pa­
a Moisés e aos israelitas (vv. 2-3). Um anjo não é ra essa compaixão c f 34,6-7). O nome divino segue
o mesmo que o Senhor . Esta má notícia é reiterada junto com a aliança. Por causa dos perigos ligados
nos vv. 4-6 e marcada por um sinal do arrependi­ à demonstração direta da glória divina, Moisés deve
mento de Israel, a retirada de todos os trajes festi­ ser colocado na fenda de uma rocha e coberto pela
vos. O povo agora está sob julgamento divino. É mão de Deus (vv. 21-22). A visão das costas de
natural que façamos conjeturas sobre a eficácia da Deus (mas não de sua face) é o limite e a prova da
intercessão de Moisés. intimidade de Moisés, relacionada com o bem-estar
33,7-11 Moisés e a tenda do Encontro. Esta do povo. (Para a teofania semelhante de Elias, c f
tradição, em geral atribuída a E, levanta a questão IRs 19,9.11-13.)
da presença divina já mencionada nos vv. 1-6. En­ 34,1-9 A teofania. A maior parte desta passa­
tretanto, o próprio texto não é uma unidade. Segun­ gem é de J (w. la.2-4.6a.8). Na verdade, junto com
do o V. 7, todos os israelitas podem visitar a tenda. a maioria do material restante no capítulo 34, esta
Entretanto, segundo o v. 8, somente Moisés visita passagem é a sequência natural da subida de Moisés
a tenda, enquanto o povo permanece em suas ten­ à montanha em 19,20 (J). Em harmonia com o es­
das em grande respeito. Segundo o v. 1Ib, um auxi­ quema básico do processo da aliança, é esperada no
liar reside permanentemente na tenda. Contudo, o relato de J uma expressão da vontade divina. Essa
V. 1 la presume que o diálogo íntimo entre Deus e expressão foi retirada de seu lugar natural — depois
Moisés exclui a presença de uma terceira pessoa. de 19,20 — por causa da infidelidade de Israel no 117
ÊXODO 34

incidente do bezerro de ouro. Em outras palavras, mediar essas bênçãos. O dodecálogo, portanto, é a
a expressão da vontade divina no encontro inicial forma de insistência de J na fidelidade ao Deus da
na montanha em J toma-se a expressão da vontade aliança em um ambiente pagão (vv. 12-15). É com
divina no segundo encontro da renovação da aliança. razão chamado por alguns de “lei do privilégio do
Segundo o padrão de renovação da aliança, a res­ Senhor” — declaração das prerrogativas do S enhor
tauração é agora oportuna. A confecção de novas baseadas em seu caráter como um Deus ciumento
tábuas simboliza uma nova aliança. (Referências (v. 15). A singularidade de Israel flui da singularidade
no V . Ib às primeiras tábuas quebradas e à nuvem de seu Deus.
no V. 5 são retoques redacionais para fazer o relato 34,27-35 O impacto da teofania. J menciona a
J se adaptar ao novo cenário.) ordem divina para registrar os termos da aliança e
A teofania de J traz primeiro Moisés talhando a subseqüente execução dessa ordem na montanha,
as pedras e subindo a montanha sozinho (vv. la.2- por um período de quarenta dias e quarenta noites
4). Em seguida, o S enhor passa diante de Moisés (w. 27-28; Dt 9,9.18; Mt 4,2). J então narra a reunião
(v. 6a). Finalmente, em deferência à presença divi­ que Moisés faz do povo para lhes comunicar tudo
na, Moisés se inclina em adoração (v. 8). que o Senhor ordenou na montanha (vv. 31-32).
Os vv. 6-7 e 9 são a conclusão do papel inter- A tradição contida nos vv. 29-30.33-35 trata
cessor de Moisés iniciado em 33,12-23. A teofania do rosto irradiante de Moisés, ligado a sua posição
anunciada em 33,19 ocorre agora. Na sua posição intercessora já mencionada nos capítulos 33 e 34.
atual, o dito cultuai nos w. 6-7 (cf também 20,5-6) Segundo a tradição, Moisés precisa cobrir o rosto
é uma declaração sobre o perdão e o castigo divinos. quando não está desempenhando seus deveres ofi­
A palavra traduzida por “misericordioso” no v. 6 ciais (w. 33-34). Sejam quais forem os antecedentes
(também o verbo “fazer misericórdia” em 33,19) do véu em si, o que é fundamental no relato bíblico
deriva da palavra hebraica para “ventre”. Assim, a é o rosto irradiante de Moisés, na medida em que
mãe YHWH demonstra por Israel aquela compai­ deriva de Deus e é o símbolo de sua autoridade pe­
xão que se espera que a mãe demonstre pelo filho rante Deus. O homem que foi rejeitado pelo povo
de seu ventre. Ao mesmo tempo, o S enhor não dei­ (32,1.4) é o homem que o restaurou à aliança e
xa que os culpados escapem (v. 7). Em última ins­ que agora apropriadamente usa o símbolo de sua
tância, 0 pedido de perdão (v. 9) baseia-se mais uma função divina. (C f o emprego paulino dessa tradi­
vez no relacionamento de Moisés com o S enhor. ção em 2Cor 3,7-A,6.)
Agora a renovação da aliança pode prosseguir, por­
que Moisés se identificou com Israel.
34,10-26 O dodecálogo. Não há menção da PARTE VI:
resposta explícita de Israel às propostas iniciais do A EXECUÇÃO DAS INSTRUÇÕES PARA
Senhor nesta renovação da aliança. A intercessão de A CONSTRUÇÃO DO SANTUÁRIO
Moisés e o arrependimento do povo parecem ade­ Ex 35,1-40,38
quados (cf também ISm 12,16-25). Os vv. iniciais Agora P relata a execução das instruções dadas
(vv. 10-11) transcendem o cenário imediato con­ a Moisés nos capítulos 25-31. E tentador analisar
centrando-se nos perigos que confrontarão Israel na os capítulos 35-40 junto com o capítulo 34, como
Terra Prometida (cf. também 23,20-33). O Sinai apa­ um tipo de restauração. Os capítulos 25-31 são então
rece, portanto, como o lugar apropriado para anteci­ uma criação e os capítulos 32-33 uma queda. De
par esses perigos em razão dos laços da aliança que qualquer modo, P utiliza o cenário do Sinai para
distinguirâo Israel das nações vizinhas. desenvolver sua teologia da presença divina.
Embora o v. 28 fale em dez palavras, essa série 35,1-36,7 O início da construção e a genero­
de leis é na verdade um dodecálogo, doze manda­ sidade de Israel. A estrutura básica de P, aqui, é
mentos. (A expressão “dez palavras” do v. 28 é um a execução de ordens dadas direta ou indiretamente
desenvolvimento mais tardio.) O dodecálogo é muitas por Deus. Assim, há ordens divinas para: a) a obser­
vezes classificado como cultuai ou ritual em contra­ vância do sábado (35,2, inclusive a proibição de
posição ao decálogo ético (cf a injunçâo para as acender fogo, no v. 3); b) a arrecadação de mate­
festas de peregrinação no v. 23 e a lei da redenção riais (35,4); c) a convocação de artesãos (35,10);
nos vv. 19-20). Entretanto, as proibições de imagens d) o início do trabalho no projeto (36,1). P mencio­
(v. 17) e de casamentos mistos com os canaanitas (v. na que os israelitas respondem generosamente à
16) são manifestamente éticos. Além disso, em sua ordem do Senhor (35,20-29). De fato, são bastante
maioria, tais mandamentos são formulações na se­ solícitos. Moisés precisa fazer um apelo especial pa­
gunda pessoa do singular (c f 20,1-17). Para J, essa ra interromper o fluxo de contribuições (36,2-6). O
coleção cria saudável tensão em sua abordagem teo­ resultado é, contudo, uma abundância de materiais
lógica. Segundo Gn 12,1-3, Israel deve ser o media­ para completar a obra (36,7). Besalel e Oholiab,
dor de bênçãos para as nações conquistadas. Mas infundidos de sabedoria (cf 31,1-11), e também os
118 um ambiente pagão pode apresentar problemas para outros artesãos respondem à ordem divina para exe-
ÊXODO 40

cutar toda a obra. É interessante comparar essa res­ embeleza com uma formulação mais solene. O v.
posta entusiástica no relato visionário de P à relu­ 32 pode ser traduzido literalmente: “Os filhos de
tância para reconstruir o templo depois do Exílio Israel fizeram tudo segundo o Senhor tinha orde­
(cf. os profetas Ageu e Zacarias). O relato bíblico nado a Moisés: assim o fizeram”. Da mesma forma,
não hesita em registrar o visionário e o real. o V. 42: “Tudo segundo o Senhor ordenara a Moisés,
36,8-39,31 Execução das instruções divinas. assim fizeram os filhos de Israel toda obra”. P
Com exceção de 38,21-31, essa passagem especifica também apresenta uma segunda estrutura, a conclu­
como as instruções divinas comunicadas a Moisés são bem-sucedida do trabalho (v. 32a). Além disso,
nos capítulos 25-31 foram, de fato, cumpridas. Há, P faz Moisés emitir um julgamento sobre o trabalho
entretanto, uma diferença na seqüência. Enquanto do povo. Eis o V. 43a traduzido literalmente: “Viu,
a arca, a mesa e o candelabro (25,10-39) encabeçam pois, Moisés toda a obra, e eis que a tinham feito
a lista de instruções por causa de sua maior impor­ segundo o S enhor havia ordenado”. Logo depois
tância, a tenda (26,1-37) é a primeira na ordem de desse julgamento, P faz Moisés abençoar o povo
execução. Dessa maneira, há progresso de fora para (v, 43b).
dentro. Em geral, essa passagem basicamente repro­ Os paralelos com o relato da criação de P são
duz os capítulos 25-31, insistindo no ponto que o evidentes. Em Gn 1,31, Deus vê tudo que tinha feito
produto final corresponde às orientações iniciais. e classifica-o como muito bom. Gn 2,1 observa que
Para a tapeçaria, a cobertura, as estruturas de ma­ o céu, a terra e todos os seus elementos foram termi­
deira e os véus (36,8-38), cf. 26,1-29.31-37. Para nados. Depois de concluir os seis dias de criação.
a arca com o propiciatório, a mesa e o candelabro Deus abençoa o sétimo dia (Gn 2,3). Como Deus
(37,1-24), compare 25,10-39. Para o altar dos per­ não pode dar uma ordem a Deus, o relato da criação
fumes (37,25-28) e também para o óleo da unção não leva em conta a estrutura de execução de ordens.
e o perfume puro (37,29), cf. 30,1-6.23-25.34-36. Como foi mencionado anteriormente (31,1-11), o
Para o altar dos holocaustos e o átrio (38,1-7.9-20), sopro atuante na criação (Gn 1,2) também age em
cf. 27,1-19. Para as vestes sacerdotais e outras (39,1­ Besalel, o chefe da construção do santuário.
31) cf. 28,1-43. 40,1-33 A edificação do santuário. Aqui P
Em 38,8, P observa que a bacia de bronze (30, relata minuciosamente como Moisés executa as ins­
18-21) foi feita com os espelhos das mulheres que truções do Senhor para erigir o santuário do deser­
cumpriam seu serviço à entrada da tenda do Encontro. to. Além de indicar com precisão o tempo (vv. 2.17)
Elas reaparecem em uma glosa de ISm 2,22. Não e salientar os privilégios dos aaronitas (w. 13-15),
está claro que função exerciam exatamente. Nenhuma P esforça-se para realçar a importância do evento
evidência sugere que fosse no culto público. por meio de suas estruturas. A estrutura de execução
A passagem que trata da quantidade de metal de ordens é mencionada nada menos que oito vezes
usado (38,21-31) é inserção mais tardia. O imposto (w. 16.19.21.23.25.27.29.32). Na verdade, o v. 16
do santuário no v. 26, que recorre ao primeiro recen- tem a forma mais solene da estrutura, que pode ser
seamento de Israel (a ser mencionado mais tarde traduzida literalmente: “E tudo fez Moisés segundo
em Nm 1,45-46), obviamente ignora a tradição de 0 S enhor lhe havia ordenado: assim o fez”. A es­
35,21 e 36,3, segundo a qual Israel contribui gene­ trutura da bem-sucedida conclusão da obra está tam­
rosamente, em base voluntária. O v. 21 menciona bém em evidência. Segundo o v. 33, Moisés conclui
a posição de Itamar, filho de Aarão, como chefe dos todos os trabalhos.
levitas. Entretanto, os levitas (cf 28,1-43) só foram P liga não só a criação e a edificação do santuá­
instituídos em Nm 3,5-10 e Itamar assume seu papel rio, mas também o estabelecimento desse santuário
de chefe apenas em Nm 4,33. na Terra Prometida partilhada. Em Nm 27,18 e Dt
39,32-43 Apresentação da obra a Moisés. 34,9, P descreve Josué como inspirado chefe e cria­
Além de enumerar os materiais cultuais concluídos dor do plano de ocupação de Israel. Em Js 14,5, ao
que são apresentados a Moisés, esta passagem tem narrar a divisão da terra, P emprega a forma mais
significado especial para a teologia de P sobre a solene da estrutura de execução de ordens. Pode
presença constante de Deus. Pelo uso sutil das es­ ser traduzida literalmente: “Os filhos de Israel fize­
truturas, P interliga a criação do mundo, a constru- ram assim como o S enhor ordenara a Moisés e re­
ção/edificação do santuário do deserto e o estabe­ partiram a terra”. No mesmo livro, P também usa a
lecimento desse santuário na Terra Prometida (para estrutura de execução bem-sucedida de ordens ao
este último ponto, cf. 40,1-33). Apesar da infideli­ narrar a última prescrição: (literalmente): “Eles con­
dade de Israel, o plano de Deus não será frustrado. cluíram repartindo a terra” (Js 19,51b). Além disso,
O Deus que criou no início continuará a criar na este ato final acontece na porta da tenda em Shilô,
história contínua de Israel. O culto, portanto, é o Em harmonia com a ordem divina de dominar a terra
meio principal pelo qual a presença criadora se (Gn 1,28), em Js 18,1, P afirma que a terra estava
manifestará entre os israelitas. submissa aos filhos de Israel. No mesmo texto,
P não só reintroduz sua estrutura de execução observa que a comunidade de Israel reuniu-se em
de ordens (cf. 35,1-36,7), como aqui também a tomo da tenda que foi instalada em Shilô. Portan- 119
ÊXODO 40

to, para P o evento em Shilô relembra o Sinai, que, (cf. IRs 8,10-11). A teofania da nuvem de P tam­
por sua vez, relembra a primeira criação. A pre­ bém antecipa a contínua jornada de Israel pelo de­
sença permanente de Deus na terra é o sacramento serto. A nuvem de P, que agora desempenha as
da esperança para os exilados desesperados de P. funções da tradição da coluna de nuvem e da colu­
Em última análise, os preceitos enfadonhos são na de fogo (cf. 13,21-22; 14,19-20), também serve
impregnados de vida. de sinal. Indica quando e por quanto tempo Israel
40,34-38 A presença permanente. Para P, o deve montar acampamento e quando deve levantá­
Sinai é o modelo de culto. Segundo 24,15b-16a, a -lo (cf. Nm 9,15-23).
nuvem cobre o monte e ali se estabelece. Também Nestes capítulos finais, P mostra-se um teólogo
aqui a nuvem cobre a tenda do Encontro e a glória verdadeiramente pastoral. Para um povo que sentiu
do Senhor enche a Morada (v. 34). Assim, para P, a ausência de Deus na queda de Jerusalém e no
0 santuário do deserto capta a experiência do Sinai exílio subseqüente, P agora proclama a boa nova da
e a imortaliza. presença divina Consciente de que Israel está priva­
Esta tradição da nuvem cobrir e se instalar é do do culto no templo porque habita em terra estran­
também o selo de aprovação e a legitimação de tudo geira, P anuncia que Israel será restaurado na terra e,
que Moisés e os israelitas fizeram. Aqui o S enhor na verdade, que a terra será santificada pela presen­
toma posse de seu santuário. É também a expe­ ça divina no santuário. (Para as condições da volta,
riência de Israel, quando a glória do S enhor enche cf. Lv 26.) Voltamos assim ao evangelho de criação.
o templo de Salomão e os sacerdotes não conse­ Com atenção cuidadosa e apropriada ao culto, o is­
guem ficar ali para seu serviço por causa da nuvem raelita recebe a força para ir do caos ao cosmo.

120
LEVITICO
Wayne A. Turner

INTRODUÇÃO
ste livro é sobre santidade. Conhecido Ao ler o Levítico, precisamos ter em mente que
também como o terceiro livro de Moisés, tudo se ajusta na ordem apropriada, o que serve à
o Levítico é um dos cinco volumes da obra integridade que reflete a unicidade de Deus que
chamada Pentateuco. A palavra Toiá, que chamou o povo para ser santo. A simples ordem de
em geral significa lei, mas mais exata­ obediência, pureza ritual e santidade é tão válida
mente é ensino, instrução ou orientação, refere-se à hoje quanto na ocasião em que foi apresentada pelos
mensagem deste livro. Embora costumemos nos referir autores sacerdotais. A verdadeira obediência planta
ao Levítico como livro, é melhor chamá-lo de um ca­ a semente de um ritual autêntico que purifiea e pre­
pítulo da história completa da Torá, capítulo sobre um para para a vida de seintidade. Assim que essa lição
Deus santo e um povo chamado a ser santo. simples foi reconhecida, o materiai levítico se con­
cretizou. Então este livro atuou como peça princi­
1. Santidade significa integridade pal para o Pentateuco e se tomou o terceiro livro de
Para entender este capítulo da história da Torá, Moisés. Os cinco livros formaram um relato com­
precisamos considerar “integridade” como um dos pleto de relacionamento divino-humano, com o Le­
significados de santidade (wholeness/holiness). Isso vítico bem no centro da Torá.
é mais do que um jogo de palavras e é necessário
para entender o livro do Levítico. Em certo sentido, 2. O s títulos contam a história
“integridade” descreve a vida de Deus. Mais precisa­ Os títulos hebraicos dos cinco livros de Moisés
mente, a integridade descreve nossas vidas quando explicam detalhadamente um tema que se repete
refletem a vida de Deus. com freqüência na Bíblia e na própria vida — Deus
O sentido bíblico de santidade inclui não só o cria, identifica e chama as pessoas do deserto desta
mistério de Deus, mas também a resposta da cria­ vida para a vida (santa) una e completa que é de
tura a ele. “Sede santos, pois eu sou santo, eu, o Deus. Esses livros fazem as vezes de “entrada” para
Senhor, vosso Deus” (11,44-45; 19,2; 20,7.26). A a Bíblia toda.
raiz da palavra santo significa “isolar, separar”, refe­ Na Bíblia hebraica, a primeira palavra significa­
rência a separar o santo do profano (ímpio). “Santo” tiva de cada livro é seu título. No Pentateuco, os tí­
refere-se a pessoas, lugares ou coisas abordadas tulos hebraicos fazem um relatório lógico da experiên­
ou tocadas apenas sob certas condições de pureza cia divina-humana. Quando Deus iniciou (Gênesis) a
ritual. criação; estes são os nomes (Êxodo); o Senhor cha­
“Integridade” descreve principalmente a reação mou (Levítico) Moisés no deserto (Números); eis as
do povo à ordem: “Sede santos, pois eu, o S enhor, palavras (Deuteronômio) que Moisés dirigiu a todo
sou santo”. Pois, enquanto certa integridade tende à Israel). Note o lugar do Levítico; os nomes (Êxodo)
idéia de unidade, só Deus habita em unicidade abso­ dos que foram tirados da escravidão precisavam de
luta. Também se estende certa unicidade sobre a in­ orientação para seguir sua vocação como “um reino
tegridade, refletindo o que o Gênesis chama de “ima­ de sacerdotes e uma nação santa” (Ex 19,6) em espe­
gem e semelhança de Deus” (Gn 1,26). cial no deserto (Números).
Ao contrário da unicidade, a integridade tem Ao ler o Levítico, tenha-se presente o “caráter
partes ou componentes. É na ordenação apropriada orientador” deste capítulo na história única consti­
das partes da vida que a integridade acontece e tuída pelo Pentateuco.
serve à causa da santidade. Por exemplo, um que­
bra-cabeça precisa ser montado na ordem apropria­ 3 . O título
da. Se uma única peça for deixada de lado, o que­ Em hebraico, o título é uma só palavra que signi­
bra-cabeça carecerá de integridade e unidade. fica “e ele chamou”. Hoje, o título comum é o nome 121
LEVÍTICO

grego latinizado Leviticus, que descreve atividades decálogos em cada seção. Dizem que seguem o decá-
dos levitas (sacerdotes) da tribo de Levi. O título he­ logo (os Dez Mandamentos) dado no monte Sinai.
braico alude a urna vocação-chamado na instrução da Assim, como coração da Torá, o Levítico reflete o
Torá. Assim, ao usar o Levítico, é bom lembrar-se belo modelo de um coração e a simplicidade de um
da conotação hebraica de “chamado” ou “vocação”. de seus simples batimentos vivificantes.
O tema central de chamado à santidade encon­ Os mandamentos deviam agora tomar-se vivos
tra-se na Lei de Santidade (17-26). É possível que nas vidas do povo recentemente formado. O coração
formasse um “manual de santidade” original, em da nova nação sacerdotal deve agora bater e pôr em
tomo do qual os redatores finais do livro reuniram prática a instrução para ser santo (19,2). Essa santi­
outro material sacerdotal (levítico). dade age na Torá e em toda a Bíblia. “Santo” e “sa­
grado” e outras formas relacionadas são usadas mais
4. Três códisos de lei (instrução) no Pentateuco de mil vezes, com quase um quarto dessas referên­
Três desses códigos de lei foram identificados cias no Levítico.
no Pentateuco: o Código do Sinai ou da Aliança, Em uma carta ao clérigo Paulino, são Jerônimo
que é 0 mais antigo e se encontra no Livro do Êxo­ afirma a santidade do livro: “No livro do Levítico é
do (19-24); a Lei levítica da Santidade (Lv 17-26); fácil ver que todo sacrifício, sim, quase todas as sí­
e uma atualização da Torá nas leis deuteronômicas labas, e tanto as vestes de Aarão como a ordem
(Dt 12-26). Embora esses três sejam considerados completa do Levitico, respiram mistérios celestes”.
os códigos da Lei, muitas outras passagens do Pen­ Muitos anos antes, Pedro incentivara o chamado vo­
tateuco falam de preceitos legais. De fato, os precei­ cacional do Levítico: “Por isso, com o espírito aler­
tos levíticos não estão só no livro do Levítico, mas ta para os discernimentos necessários, ponde toda a
também no segundo e no quarto livros de Moisés, vossa esperança na graça que vos deve ser concedi­
Êxodo e Números. Na verdade, há mais referências da por ocasião da revelação de Jesus Cristo. Como
aos levitas em outras partes do Pentateuco do que no filhos obedientes, não vos conformeis com os dese­
livro do Levítico. Aqui nos concentramos no “cha­ jos pecaminosos de outrora, do tempo da vossa igno­
mado à santidade”. rância; ao contrário, assim como é santo aquele que
vos chamou, também vós tomai-vos santos em toda
5. Levítico — coração da Torá a vossa conduta, porque está escrito: ‘Sede santos,
O Levítico não apenas ensina santidade; o livro porque eu sou santo’” (IPd 1,13-16, cit. Lv 19,2).
em si é exemplo de santidade. A disposição ordenada Essa mesma pulsação de santidade persiste hoje no
é nossa primeira evidência da presença da santidade. chamado vocacional de todos.
Uma disposição clara do material é testemunha im­
portante da santidade. Note que o ritual dos sacrifí­ 6. A forma do Levítico — data e autoria
cios (caps. 1-7) leva naturalmente ao tema dos que o Nossa idéia costumeira de livros é que possuem
oferecem (caps. 8-10) com suas disposições de um ou dois autores e foram escritos em pouco
pureza legal (caps. 11-16) e de santidade (caps. 17­ tempo, no máximo alguns anos. Entretanto, a Bíblia
27) — um arranjo tão simples e, contudo, imponente é a história do povo de Deus escrita por muitos auto­
e autoritativo, chamando o povo para seguir a Torá. res e editores durante dois mil anos. Assim como
O livro é algo como a presença simples mas podemos esperar muitas mudanças na história de
decisiva do coração no organismo humano. Mesmo um povo, também podemos prever mudanças nos
quando sua presença e a precisão de seu funciona­ documentos que registram essa história. Às vezes,
mento não são reconhecidas, ele continua a bater os estudiosos falam de determinada família de ma­
para o bem de todo o organismo. O material atribuí­ nuscritos, ao se referirem a manuscritos diversos.
do ao Levítico parece ter relação semelhante a essa Reconhecemos agora que alguns redatores fi­
com toda a Torá. O Levítico é o coração da Torá nais eram não apenas compiladores, mas verdadei­
e 0 batimento deste coração chama-se Lei da San­ ros autores. Eles também transformaram ou acres­
tidade (caps. 17-26). centaram materiais. No Levítico, a forma do mate­
A profundidade e o refinamento da disposição rial é histórica e legal, trata da vocação para a san­
clara do Levitico revela-se primeiro no ritmo palpi­ tidade. Grande parte do material, em especial nos
tante da expressão repetida: “O S enhor falou a primeiros capítulos, é “litúrgica”, foi escrita e redi­
Moisés”. Depois do chamado vocacional de Moisés gida por levitas ou sacerdotes e recebeu o nome de
no capítulo 1, quase todos os capítulos começam “sacerdotal” (Prieslly, P).
com esse mesmo refrão. A repetição lembra também O livro do Levítico tem formato singular e se
a forma de um documento legal com sua repetição encaixa numa unidade maior do Pentateuco. Essa
de frases, detalhes e instruções formais. De fato, cor­ unidade maior estende-se de Ex 25, passando pelo
respondendo grosso modo às quatro áreas de orga­ Levítico, até Nm 10. Todos os livros do Pentateuco
nização acima citadas, alguns comentadores de men­ têm algumas seções escritas por P. A ênfase dada
talidade jurídica apontam arranjos pormenorizados por esses autores e redatores finais concentra-se na
122 subjacentes. Alguns encontram sete conjuntos de necessidade fundamental de ser santo.
LEVITICO

Ficamos com a impressão de que o Levítico, um novo projeto. Esse conselho pode ser sugerido
embora revisto, foi substancialmente preservado em à meditação para a leitura do Levítico. De certo
vez de resumido, para formar uma síntese de pre­ modo, o Levítico serve de bula de instruções para
ceitos de culto. Isso talvez explique por que o leitor toda a Torá.
bíblico muitas vezes salta o Levítico com a alega­ O Levítico dá uma instrução simples para a vida.
ção de que é apenas um punhado de leis e preceitos. A instrução é tão importante e duradoura quanto o
Isso é válido como primeira impressão, mas os re­ batimento e a pulsação do coração são para o corpo.
datores usaram esse material para satisfazer a neces­ Encontra-se no plano da lição de obediência, pureza
sidade de instrução e integridade. Os editores finais e santidade. A ordem é importante. Começamos com
deram intencionalmente um cenário de deserto ao uma obediência que ocasiona a purificação. Essa
Exodo, ao Levítico e aos Números. O que podería combinação, por sua vez, nos condiciona para a vida
ser mais necessário no deserto do que um livro sobre de santidade. Assim, a instrução para levar uma vida
a lei (instrução) e a ordem? santa está no Levítico, centralizada em tomo da
Assim como reconhecemos escolas de escrito­ simples orientação do capítulo 19: “Sede santos, pois
res, também encontramos hoje escolas de biblistas eu sou santo, eu, o S enhor, vosso Deus”.
que apresentam respostas diversas para questões de O Santo de Israel (Is 1,4) é Deus e o nome de
data, texto e autoria. Para alguns, o autor é Moisés, Deus é santo (Lv 22,32). Também o povo deve ser
enquanto outros afirmam que o livro é pós-exílico santo. Este é o preceito da vida: “Santificai-vos,
(fim do século V a.C.). Contudo, outro grupo defen­ portanto, para serdes santos... Observai as minhas
de uma posição intermediária e dá uma data por leis e ponde-as em prática. Eu sou o S enhor, que
volta do século VIII a.C. Além disso, talvez a forma vos santifico” (20,7-8; cf. também 22,31-33).
final não fosse decidida em nenhuma dessas épo­ B. Responsabilidade de Israel para com os vizi­
cas. Tais teorias devem ajudar o leitor a entender a nhos. Para entender o Levítico, precisamos respeitar
forma final de um livro bíblico. a região em que Israel vivia e se movimentava Agi­
É na redação final que a mensagem completa mos com cautela a partir do que conhecemos para
é transmitida. A forma do livro, quando ele entra buscar o desconhecido. Às vezes esperamos maior
na vida sagrada da Bíblia, é a ocasião em que sua responsabilidade (capacidade de responder) por parte
divina fonte de vida (isto é, a inspiração divina) se de Israel do que devemos. Com ffeqüência isso é feito
afirma. Todas as tradições orais e escritas, o desen­ pela inclusão de todas as pessoas do mundo então
volvimento do pensamento e da prática, a redação, conhecido no círculo da resposta de Israel à vida. Tal
a edição e a reedição, juntam-se na Bíblia para abordagem tende a se tomar uma experiência asfixi-
servir ao Deus uno e santo. O Levítico testemunha ante em vez de informativa. Precisamos saber mais
essa presença de Deus. sobre o povo daquela época, antes de transferir a
Considerando o cenário de deserto do livro do narrativa bíblica para experiências da vida real e jul­
Levítico, em alguma parte o preconceito contra o gar acontecimentos históricos.
culto no templo podería ter influenciado a formação O relacionamento de Israel com os canaanitas
do material. Esse preconceito deve ter ocorrido mais e outros povos em cuja terra passou algum tempo
de uma vez. Além disso, a dispersão da população e ou se deslocou tem importância fundamental. As
a distância do percurso afetam a prática ritual. Tam­ descobertas em Ras Shamra (às margens do Me­
bém é possível a existência dos que estavam conven­ diterrâneo, que datam de 1400 a.C.) e Ebla (110
cidos de que o S enhor devia ser um Deus peregrino, km a noroeste, que datam de 2300 a.C.) lançaram
sem morada fixa neste mundo, exceto no santo dos alguma luz sobre os vizinhos do povo da Bíblia
santos do tabernáculo, morada que podia viajar com (c f, por exemplo, Ex 23). Entretanto, muito mate­
eles onde quer que fossem, até no exílio. rial ainda está na etapa de análise e publicação crí­
O presente comentário busca ratificar o livro ticas. As traduções levam muitos anos. Ras Shamra
do Levítico como ele está no Pentateuco, pois esse (Ugarit) foi escavado pela primeira vez em 1929 e
é 0 resultado da redação final. Os redatores antigos foram reconhecidos alguns paralelos com a lingua­
apresentaram uma coerência específica para a coleta gem e a literatura de Israel, ali e em Ebla (1968­
de todos os materiais e tradições. Às vezes, aquela 1974).
parte antiga do Levítico, a Lei da Santidade (17-26), C. Meu santo nome. Uma tradução mais exata
é atribuída a um autor chamado H (de Holiness), de “meu santo nome” é “o nome de minha santida­
anterior a todos os autores sacerdotais. de”. Em hebraico, “santidade” refere-se a uma rea­
lidade concreta que se pretende enfatizar. Outro
7. Temas levíticos exemplo, “meu bom dia”, é, na verdade, “o dia de
A. Leia as instruções. Um preceito da vida minha bondade”. O hebraico põe a ênfase no devido
cotidiana diz simplesmente: “Leia as instruções”. lugar.
Às vezes se diz, com um toque de ironia: “Se todo Outra diferença importante é usar o superlativo
o resto falhar, leia as instruções!” Ler as instruções para preservar certa identidade majestosa. Para “san­
é, sem dúvida, a primeira coisa a fazer ao iniciar tíssimo”, 0 hebreu diz “o santo dos santos”. 123
LEVITICO

Uma tereeira diferença a ser observada quando soas fossem envenenadas. O “bom sinal” incenti­
lemos a Bíblia é o fato de, no pensamento hebraico, vava as pessoas a comer de maneira apropriada. As
certas realidades não serem consideradas entidades considerações práticas para um povo tomaram-se
separadas, como em nosso pensamento ocidental. diretrizes baseadas em crenças religiosas para outro
Idéias como corpo e alma, sangue e vida, pensa­ e foram transmitidas como tradições para sucessivas
mento e ação, são quase sempre consideradas a mes­ gerações. Grande parte do que chamamos mito an­
ma realidade. Por exemplo, no pensamento hebraico, tigo eram apenas atividades dos humanos em busca
não há palavra para corpo. A palavra usada é “car­ da fonte de vida e de como sobreviver. Era inevitável
ne”. Assim, “toda carne” é reahnente toda coisa viva que os modos de vida nômade, agrícola e, por fim,
criada e equivale a “toda alma viva”. Como o sangue urbano trouxessem mudança de perspectiva, costu­
e a vida estão intimamente associados, é o sangue de mes e prática religiosa. Simplesmente a mudança
Abel que clama a Deus do solo (Gn 4,10). Nem estão natural das estações e a luta por comida, às quais às
o entendimento e o bem separados da própria vida: vezes nos referimos como atos da natureza, influen­
“Dá-me discernimento e viverei” (SI 119,144). A ex­ ciaram a formação do desejo, do entendimento, do
pressão “Adão conheceu Eva e ela concebeu Caim” projeto e da celebração da vida.
significa que tiveram relações sexuais (já que não Reconhecemos certo tipo de linguagem usada
há separação de corpo e alma, o ato pode ser chama­ em todo o Oriente Próximo a respeito da crença e
do de conhecimento). É partilhar a vida com outra da prática religiosas. Israel também usava essa lin­
pessoa na ação que verdadeiramente (conscientemen­ guagem, mas com sentido especial e ênfase volta­
te) expressa a unicidade de Deus refletida na criação da para o único S enhor santo.
homem-mulher. Quando as pessoas começaram a se instalar na
O pensamento biblico não contém realmente o terra com um estilo de vida agrário e com o alimen­
que estamos acostumados a considerar código de to garantido, a necessidade de preservar certa esta­
ética. Assim, ao falar da Torá, devemos evitar a pa­ bilidade tomou-se predominante. Sacerdotes, pro­
lavra ocidental “lei”. A Torá não é um sistema de fetas, reis e rainhas estabeleceram a ordem para so­
leis. A Torá vem de Deus, para ensinar, regular, ins­ breviver, não só como indivíduos, tribos ou peque­
truir e distinguir. Em nosso pensamento ocidental, nos grupos familiais, mas como nações. Assim, a
“lei” transforma-a em mero código de ética. A Bíblia é o relato de dois mil anos de idade de um
Bíblia diz: “Quanto amo a tua Lei, todos os dias eu povo que estabeleceu sua identidade em relação a
a medito” (SI 119,97). seu Deus e a seus vizinhos.
D. Uma linguagem comum de atividade cultuai Na verdade, nao sabemos muito sobre o desen­
no antigo Oriente Próximo. Através dos séculos, volvimento inicial do culto e da prática religiosa.
muitas razões têm sido dadas para preceitos rituais A exegese, que aplica à Escritura métodos de estu­
e alimentares. O historiador Fílon e o filósofo Mai- do críticos, com o auxílio de outras ciências, em
mônides acreditavam que Deus deu alguns dos pre­ especial a arqueologia, ajuda nossa compreensão,
ceitos e das ordens a fim de servirem como auto- até certo ponto. Sabemos muito pouco sobre o exato
disciplina dos apetites. Fílon diz que Moisés proibiu ritual do sacrifício e praticamente nada sobre as
a carne de porco porque essa é a mais deliciosa de orações ou o comentário que acompanhavam a ação
todas as carnes e que a abnegação refrearia a satis­ ritual e as leis alimentares. O Levítico é mais uma
fação excessiva dos próprios apetites. Proibiu ani­ lista de preceitos rituais do que uma descrição deta­
mais e pássaros carnívoros a fim de ensinar as pes­ lhada do procedimento real. Não temos registros
soas a serem tolerantes e bondosas. Às vezes eram do que se rezava, dizia ou cantava durante o cumpri­
feitas analogias entre o físico e o espiritual. Assim, mento dos preceitos.
os animais ruminantes eram permitidos, pois aju­ É no serviço do Santo, então, que levamos nos­
dam as pessoas a ser sábias (ruminando muitas ve­ sa vida de santidade, e nosso primeiro preceito é
zes o que aprenderam). E os animais de casco fendi­ restabelecer a ordem da criação divina em nós mes­
do, por terem o casco assim, ajudam as pessoas a mos e na comunidade. “Sede santos” é o significa­
decidir entre idéias diferentes. do principal de séder (“tudo na ordem apropriada”)
Quanto às proibições a respeito de alimento, na celebração da Páscoa, que continua até hoje na
achamos que a maioria dos povos antigos usavam o prática religiosa judeu-cristâ. O coração da Torá
método de tentativcis baseado no sabor. O que tinha ainda bate no livro do Levítico. O chamado repeti­
gosto bom e não deixava as pessoas doentes era do de Moisés e do povo à santidade, na pulsação
puro ou bom. O que chamamos de tabu era prova­ da Lei de Santidade, é ouvido e respondido na re­
velmente uma tática de susto para evitar que as pes­ feição pascal.

124
LEVITICO 1

COMENTÁRIO
PARTE I: RITUAL DE SACRIFÍCIOS Moisés, podia ter evocado parte da resposta ritual do
Lv 1-7 primeiro capitulo do Levítico. Rituais que acompa­
nhavam os sacrifícios de animais não eram novidade
È oportuno começar a ler o Levítico na IV em seu mundo. Sua tentativa, então, seria devolver
Parte, Lei da Santidade (caps. 17—26). tudo ao Senhor. A primeira ordem para o povo é des­
Os sete primeiros capítulos do livro falam de pojar a comunidade de toda submissão estranha e
preceitos rituais para oferecer sacrifícios e parecem investir na vida do Deus santo e único. A resposta
supor que o leitor já tenha tomado conhecimento natuiáT^seria usar as práticas rituais já desenvolvidas
das idéias básicas da santidade israelita. Os capítu­ até que uma aliança impusesse outra coisa.
los 1, 2 e 3 tratam das oferendas consumidas (holo- A ação disciplinar por causa da infidelidade
caustos); os capítulos 4 e 5 falam geralmente de também parece ter desempenhado um papel em
sacrifícios pelo pecado, enquanto os capítulos 6 e 7 parte do comportamento ritual. Quaisquer que fos­
trazem prescrições especiais para os sacerdotes. sem a história ou as razões iniciais para algumas
Agora que a presença de Deus encontra lugar das práticas que nos parecem tão estranhas, o propó­
no meio do povo, na Morada construída por Moisés sito principal da inclusão desse material é dar uma
(Ex 26-40), Moisés é chamado por Deus para dizer lição de obediência. O parceiro inferior de um re­
ao povo como reconhecer a presença do santo. Se lacionamento de aliança precisa primeiro aprender
lermos os três primeiros capítulos juntos, veremos essa lição e testemunhar seu exercício dentro da
que a mesma ordem se estende por todos eles e a comunidade a fim de preservar a tradição. A ênfa­
ênfase está na obediência, início da santidade. se está na obediência permanente, pois a expressão
1,1 Moisés ainda é o intercessor. Os vv. 1 e 2ritual pode mudar. Sem obediência não há vida de
são elos de ligação com o segundo e o quarto livros santidade para o povo.
de Moisés (Êxodo e Números). Em todo o Êxodo, Um dos significados de santidade é “integri­
0 S enhor diz a Moisés: “Fala aos filhos de Israel”. dade”. Ficar livre da escravidão e voltar ao S enhor
Esta frase continua no Levítico e vai até Números. é restaurar a integridade à vida. Todos os aspectos
Atua como introdução a diversos preceitos de culto da vida precisam ser continuamente examinados e
e como declaração de solidariedade israelita. O povo confirmados à luz do chamado à integridade. Quan­
disperso precisa reorganizar-se em tomo de seu único do essa vocação é posta por escrito no modo de pen­
líder e intercessor, Moisés, para celebrar sua uni­ sar hebraico, não admira que o cântico de Israel
dade e solidariedade. chegue a nossos ouvidos de forma bem concreta,
O título hebraico deste livro, traduzido por “e em termos de carne e sangue (Ex 3,9; Lv 23; Dt
ele chamou”, é a primeira palavra do capítulo 1. O 12,7). Assim como foi o sangue de Abel que do solo
“e” mantém-nos em contato com o chamado de clamou a Deus, agora o coração e a carne deste
Moisés para construir a morada (Ex 25,8-9). Agora povo gritam ao Deus vivo (SI 84,3). Até mesmo os
que a morada está completa, Moisés deve atuar como órgãos internos do animal sacrifical são preparados
intercessor do ato cultuai (Ex 40,32; Lv 1,2). Deus de maneira especial e devolvidos em oferenda ao
chama Moisés a fim de lhe dar as regras de culto Senhor da criação (Lv 1,8-9.13).
para o povo obedecer. Moisés é o único intercessor 1,10-17 O sacrifício que sobe ao S enhor. Os
e somos lembrados muitas vezes da instrução da três sacrifícios do gado (v. 5), do rebanho (cordeiros
Torá para a unidade do povo sob Moisés. ou cabritos; v. 10) ou de ave (v. 14) são descritos
13-9 Dar-se inteiram ente a Deus. À primeira como holocaustos (oferendas consumidas). O verbo
vista, parece que recebemos apenas muitos preceitos hebraico correspondente significa simplesmente
rituais. Nosso primeiro impulso é pô-los de lado, “subir”; assim, o sentido primordial de tais oferen­
afastando-nos do sangue do abate, dos animais reta­ das é confirmar o S enhor como autor do dom da
lhados e queimados. O fedor do abate, animais que vida. O sacrifício consome-se por completo para o
gritam e a fumaça sufocante de carcaças no holo­ Senhor. A o “subir” e encobrir o cheiro do abate, a
causto são repugnantes a nossa atmosfera ocidental fumaça da combustão, misturada à do incenso sa­
de banquete litúrgico. Entretanto, precisamos levar grado, apresenta ao S enhor uma oferenda de perfu­
em conta que este é o relato do povo de Deus, povo me aplacador (Ex 30; Lv 1-8).
que nessa fase de sua história levava nos próprios 1,9.13.17 Uma oferenda de perfum e aplaca­
ossos a lembrança da escravidão. E, em vista do dor. Em Gn 8,21, o S enhor aspirou o perfume
primeiro preceito da aliança do Sinai, precisava ser aplacador da oferenda de Noé e prometeu nunca
afastado dos outros deuses e aproximado do Deus mais amaldiçoar a terra. O Pentateuco fala de Deus
único, o S enhor. em termos humanos, e ele aspirar o perfume apla­
O incidente da adoração do bezerro de ouro, junto cador é como dizer que o sacrifício o agradou. Essa
com o chamado à santidade por parte do intercessor idéia do “perfume aplacador” repete-se com fre- 125
LEVlTICOa

qüência no Pentateuco; em Ex 29, os carneiros, os dias do Êxodo). Devemos também notar que carre­
alimentos sem fermento e o novilho tomam-se obla- gar pão sem fermento é, com certeza, um meio se­
ções de odor aplacador (cf. também Lv 1-8; 23; guro de conservar trigo, centeio e aveia durante uma
26; Nm 15; 18; 28; 29). Também na narrativa do viagem. Afirma-se também que precisaram sair do
dilúvio da Mesopotâmia “os deuses sentem o odor Egito às pressas e não tiveram tempo de fermentar
dos sacrifícios”. Essa demonstração de aprovação a massa (Ex 12,33-34). Comer pão sem fermento
era provavelmente usada no culto canaanita e foi seria um lembrete da partida apressada. Este cos­
adotada pelos israelitas na época em que se acredi­ tume foi mantido na Festa dos Pães sem fermento
tava que os deuses nutriam-se cheirando ou aspiran­ (Ex 12,17).
do o alimento que era queimado. Até os relatos de Esta última festa foi reunida à Festa da Páseoa,
oferendas vegetais e de sacrifícios de paz concluem­ na qual um cordeiro foi sacrificado e o sangue pas­
-se assim; “uma oferenda consumida para o S enhor” sado nos umbrais e na verga das portas como sinal
(Lv 2; 3). para que o S enhor as pulasse. As pessoas que vi­
Quando a oferenda era completamente queima­ ajam precisam levar algo para comer. Assim, as
da pelo sacerdote, certa totalidade, uma santidade duas festas se juntaram muito naturalmente. Hoje,
da volta da criação para o S bshor , era expressa e entretanto, permanece apenas a celebração do pão.
experimentada. Significava a mesma elevação ou Para o judeu, a vítima pascal é lembrada apenas na
entrega da pessoa a Deus como oferenda de perfu­ perna do cordeiro e na ordem (sêder) da celebração.
me aplacador (1,4). Agora o povo encontrara um Ambos os memoriais fundem-se em um, chamado
jeito de se envolver por completo. Séder da Páscoa (Lv 23). Dentro da Lei de Santi­
Observe que, em geral, o ofertante realizava o dade do livro do Levítico, essas festas peregrinas
abate. A aspersão, o derramamento ou borrifo do ganham ênfase especial.
sangue sobre o altar era reservado aos sacerdotes. Prevenimos para que não se leia no texto mais
O povo trazia o animal sacrific^ para a entrada da do que se vê atualmente. Não devemos, entretanto,
tenda do Encontro, onde toda a comunidade in­ esquecer um chamado à santidade transmitido pelo
cluía-se no ato sacrifical. Ali eles deviam se aco­ autor sagrado. Errar a respeito de uma dessas ques­
modar e santificar os costumes do povo canaanita tões seria uma injustiça para com a Palavra viva de
com quem viviam. Deus. Assim, no modo de pensar hebraico, tudo
A Lei dada no monte Sinai exigia completa obe­ tinha de ser levado ao S enhor. Todo abate, toda
diência sobre o uso do gado, do rebanho e do cereal morte para a obtenção de comida, precisavam ser
(1—3). Todas as criaturas incluem-se em “quando um santos. De algum modo, deviam ser interpretados
dentre vós”. Até os pobres, que de outro modo talvez como sacrifício, ato de santificação, pois o sangue
não pudessem participar, podem pegar as rolas ou derramado tinha de voltar à fonte de vida, o Criador.
pombas abundantes na região. Assim, Ex 19,6: “e A vida está no sangue (17,14; 19,26). Para o povo
vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma de Deus e para aqueles com quem vivia ou viviam
nação santa”, se tomaria realidade. Obedecendo fiel­ com ele, todo sinal de vida tinha de cair dentro do
mente a esses decretos, identificar-se-iam com as círculo do santo (Ex 23).
oferendas e encontrariam favor como sacrifícios de Esse povo esforçou-se para responder ao cha­
perfume aplacador para o S enhor. mado à santidade (integridade). Esse esforço é o
Em Êxodo, Levítico e Números, a morada do impulso e 0 desejo da própria vida com a qual se
S enhor está na tenda do Encontro. É de onde vem relaciona o desejo de sobreviver. O dever agora era
0 chamado e é o local do sacrifício. Na oferenda, o cooperar em uma aliança com o Santo presente em
povo e os sacerdotes santificam-se, entrando em seu meio (Ex 19) e ocasionar certa perfeição para
contato com a presença do S enhor. O modo de sua vida e sua linguagem (Ex 23). Uma aliança in­
pensar real e concreto da mente hebréia fala do clui necessariamente a condição de obediência para
S enhor chamando da tenda do Encontro e do povo uma das partes e para a outra o eleneo das bênçãos
vindo para a entrada da tenda em obediência (Lv e maldições que se seguirão à obediência ou deso­
1,1-4). Tal ação prepara o contato com á santidade bediência à aliança (Lv 26).
e o sacrifício não fica completo (santo), se essa 2,13 O sal da aliança. O sal era símbolo da
condição não for satisfeita (1,3; 3,8; 4,4). aliança duradoura, pois impedia que os alimentos
2,11 Fermento e mel não devem ser queima­
se estragassem. Nos tempos antigos, compartilhar o
dos. As oferendas a ser queimadas já estavam mor­ sal era sinal de amizade e aliança. Talvez haja tam­
tas, mas a ação do fermento e a fermentação do bém um trocadilho hebraico; a palavra para sal se
xarope das frutas (incluído na palavra mel) sugere relaciona com a palavra para rei. É a Deus e só a
algo que ainda está vivo e, como tal, não podia ser ele que pertence a primeira obediência, e este é o
queimado no altar (2,11). Na tradição pascal (23), sentido da obediência à aliança.
o fermento era proibido (Ex 12,15) e o povo devia 33.16 “Toda gordura cabe ao S enhor ” . Para
comer pão sem fermento {maízah) durante sete dias os israelitas, as referências a comida para o S enhor
126 (segundo alguns, em memória dos primeiros sete podem ser tentativas sinceras de reunir as práticas
LEVfTICO5

de seus vizinhos e de tudo devolver ao S enhor em Nm 15,22-31.) A primeira pessoa considerada


único e santo, inclusive a saúde, a propriedade e o aqui é o sacerdote que peca. Desse modo, o povo
bem -estar geral de toda a com unidade. também se toma culpado (Lv 4,3). Assim como o
O pão era compartilhado (2,10; 3,9-11.14-16) sacerdote oferece em beneficio do povo e junto com
e, assim, o costume de comer com os deuses agora ele, a comunidade é afetada por outros atos da vida
está incluído na expressão do relacionamento entre do sacerdote.
o Deus único e o povo, iniciada pela obediência à 4,2 Pecado por inadvertência. Incluem-se aqui
aliança. Até hoje, consolidamos relacionamentos todos os casos de impureza ritual inevitáveis (por
com o convite para partilhar uma refeição. Eis uma exemplo, enterrar os mortos). Em Lv 4,1-12, no
expressão exterior no ato de obediência. Na crença rito de purificação para um sacerdote, a vítima toda
e na prática hebraicas, a presença de um vizinho é levada para fora do acampamento. Nem mesmo
confirmava a presença de Deus em seu meio. a pele é guardada para ser dada ao sacerdote, como
Pode ser que queimar a gordura no altar de­ é usual (7,8). Agora, até o santuário é impuro, pois
sempenhasse um papel para preceituar que a parte aquele que em geral recebe a impureza do povo está,
gordurosa pertencia ao S enhor. No fogo forte a ele próprio, impuro. Há outros casos de peeado por
banha inflama-se e produz uma nuvem de fumaça, inadvertência que afetam toda a comunidade (cf
que talvez lembre a coluna de fogo durante a noite Nm 15,26.27).
e a coluna de nuvem durante o dia (Ex 13). Os he- 4,5-7 O rito do sangiíe. O anjo da morte pulou
breus podem ter considerado esse lembrete gráfico as casas em cujos umbrais das portas fora aplicado
como indicação divina de que esta parte da vítima o sangue do cordeiro pascal (Ex 12,23). Aqui e em
pertencia ao S enhor. Lv 14,7, 0 sangue é aspetgido sete vezes diante do
Assim, a parte gordurosa sobre o altar provoca­ S enhor. Parte do sangue é aplicada nos chifres do
va grande comoção. Na nuvem (Ex 13,21; 16,10; altar (Ex 29,12; Lv 8,15; 9,9). A aspersão é um lem­
19,9; 24,16; 40,34; Lv 16,2.13; Nm 12,5) e na co­ brete do sangue da aliança e sua renovação (Ex 24,8).
luna de fogo (Ex 13,21.22; 40,38), o S enhor reve­ A aplicação nos chifres era para que as pessoas se
lava a presença divina. Deus vinha falar com Moisés lembrassem de todas as aplicações de sangue: na
e, por intermédio dele, com o povo. (C f Mt 17,5; estaca da tenda no acampamento, nas ombreiras das
At 1,9; 2Pd 1,17; Ap 14,14 — nestas referências portas na cidade e no altar no sopé do monte Sinai.
neotestamentárias e nas referências veterotestamen- A idéia básica era afastar a morte e ligar-se à fonte
tárias citadas acima, as palavras hebraicas e também de vida. Nesse caso, a intenção é libertar-se da es­
as gregas para nuvem e esplendor estão associadas cravidão de impureza que divide os participantes da
à idéia de aparição-revelação.) aliança e ser restaurado como parceiro pleno da co­
Um último comentário sobre os capítulos 1,2 e 3. munidade humana-divina. A vida que está no sangue
A disposição sistemática do material nestes três pri­ é devolvida ao S enhor pelo contato real com o altar.
meiros capitulos talvez tenha servido de ajuda mne- Com essa volta da vida à sua fonte, o indivíduo, e com
mônica, com algumas palavras-chave: holocausto, ele a comunidade, recupera a pureza e a liberdade
vegetal e paz. A ordem tem certa santidade (perfeição) para voltar a viver.
ao apresentar o relato dos sacrifícios. A comunidade toda é afetada pela impureza,
Os capítulos 4 e 5 expõem uma ordem que gira embora tenha sido cometida por um indivíduo. A
não tanto em tomo do objeto do sacrifício quanto ao referência à inadvertência é a tentativa de abranger
redor da disposição do ofertante. O pecado e a culpa todas as situações possíveis.
são 0 assunto, junto com a expiação pelo pecado 4,6 O sangue é aspergido sete vezes. Aqui e
cometido por ignorância (4,1-35), omissão (5,1-13) alhures (4,17; 14,7.16.27; 16,19; Nm 19,4), o sangue
ou perpetração (5,14-26). Essas situações parecem é aspergido sete vezes. Nos tempos antigos, o número
abranger as disposições possíveis do pecador e as sete era sinal de integridade e perfeição (santidade).
oferendas necessárias para reparar as situações no O sete comporta o agrupamento de um, ladeado por
relacionamento da aliança. dois grupos de três. Observe-se o desenho do cande­
Capítulos 4 e S, sacrifícios pelo pecado e de labro ou menorah: um único ramo central, com dois
reparação. Nos capítulos 1, 2 e 3, os sacrifícios grupos de três ramos ladeando-o. A “menorá” é o
eram trazidos por obediência (por causa da aliança), símbolo da vida perfeita (santa). Poderiam ser citados
mas voluntariamente. Nos capitulos 4 e 5, são trata­ muitos outros exemplos do uso do sete como número
das oferendas de obrigação para aqueles culpados sagrado. Exemplo primordial é a obra santa da cria­
de pecados por inadvertência (4,1-31) ou intencio­ ção. Deus criou o mundo em seis dias e depois aben­
nais (5,1.21-26). Nessa relação de aliança, como to­ çoou o sétimo dia e o consagrou (Gn 2,3). Em Ex
da ação está em um relacionamento com Deus, toda 31,15, 0 sétimo dia é de descanso completo, consa­
ação também se relaciona com todos os outros en­ grado ao S enhor.
volvidos na mesma aliança. Deus é a fonte de vida 5,1-26 Exemplos concretos. Aqui percebemos
e a aliança é, em certo sentido, a volta à vida (Gn a insistência dos redatores para incluir todas as situa­
2,7; 6,17-18). (O material também está resumido ções de culpa e castigo possíveis, com referência 127
LEViTICO 8

não só aos chamados para testemunhar sobre um tudo que diz respeito à vida da pessoa (e, assim, à
caso especifico, mas até aos que sabem alguma da comunidade) precisa, de algum modo, mover-se
coisa sobre o pecado (impureza) de outrem, mas se em relação com o Santo. A crença é a prática.
recusam a testemunhar. Também eles têm uma res­ A ordem de crença e prática é a obediência
ponsabilidade comunitária para confessar. Note que (caps. 1-27), depois a purificação pelo ritual (caps.
a palavra hebraica para culpa contém não só o as­ 11-27) e, por fim, a santificação (caps. 17-27). Pa­
pecto consciente de culpa por desobedecer à Lei rece tão simples quanto o exemplo de alguém que
(Torá), ou a omissão de determinado preceito, mas segue uma prescrição, encontra a cura e depois goza
também a auto-acusação e a aceitação do castigo. de boa saúde. O segredo está na “ordem” de santi­
6,1-7,38 Prescrições rituais complementares. ficar. E uma experiência não termina onde a outra
Os capitulos 6 e 7 trazem preceitos que parecem começa. A obediência está em atividade na pureza,
ter-se desenvolvido de perguntas surgidas enquanto ambas estão em ação na santificação e as três estão
era realizado o ritual básico descrito nos cinco pri­ plenamente vivas na vida de santidade. Entretanto,
meiros capitulos. Por exemplo; Onde isto deve ser se nos concentramos em apenas uma ou tentamos
feito? O que o sacerdote deve usar? Que fim deve fugir de uma indo para outra, vemos nossa vida ser
ser dado às cinzas? E se o animal fosse selvagem apenas uma interminável solicitação de obediência.
e/ou morto por um animal selvagem? A medida Isso explicaria por que muitas vezes o livro do Le-
que essas perguntas eram respondidas, formavam- vítico é negligenciado ou evitado (c f também Intro­
se outros preceitos, por fim acrescentados ao Le- dução, 5, p. 122).
vitico. Preceitos adicionais não parecem de modo A disposição geral no livro é muito simples,
algum perturbar a ordem simples dos primeiros ca­ mas é possível o leitor se emaranhar nos muitos
pítulos. Observe-se, entretanto, a ordem aqui preser­ preceitos e tradições. Basta olhar para os interminá­
vada. O capítulo 6 trata do material dos capítulos veis volumes de transações legais em nosso sistema
1, 2 e 3, enquanto o capítulo 7 traz alguns acrés­ judiciário com suas decisões inconstantes e normas
cimos aos capítulos 4 e 5. Mas precisamos reiterar instáveis! Acrescente-se a isso a facilidade que as
que tudo e todos precisam ser incluídos na aliança. tradições orais têm de se desenvolver e mudar por
Nada pode ser omitido nem mesmo na coleta dos si mesmas. Então, pode transcorrer um tempo longo
preceitos rituais mais insignificantes; toda situação antes que as tradições orais sejam postas por escrito.
de vida possível deve ser ordenada como material Finalmente, precisamos considerar o lapso de tempo
de construção para a pureza e a vida de santidade para reunir o material e as inúmeras coisas que po­
definitiva. dem acontecer entre a coleta e a redação. No Le-
No capitulo 7, encontramos primeiro o castigo vítico, a redação final parece indicar a progressão
de ser “cortado de sua parentela” (7,20.21.25.27; muito simples para levar a vida de santidade —
17,4.9.10.14; 18,29; 19,8; 20,3.5.17.18, continuando obediência, pureza, santidade.
até Números). Lv 17,10 e 20,6 deixam claro que Deus,
não o sacerdote nem o povo, conferirá o castigo. Al­
guns comentadores interpretam esse castigo como a PARTE II: CERIMÔNIA DE ORDENAÇÃO
morte prematura. Parece que o castigo é apenas uma Lv 8-10
afirmação de fato daquilo que acontece quando uma
parte viola a aliança. A frase hebraica para fazer uma Os capitulos 8, 9 e 10 são o lugar adequado
aliança é “cortar uma aliança”. Assim, na violação da para introduzir a dedicação da tenda do Encontro e
aliança, a pessoa é cortada da outra. Além do troca­ a investidura do sacerdote na disposição do material
dilho hebraico, há uma boa tática de susto na afirma­ para o Levítico. P, o autor sacerdotal, continuará
ção de um fato. Ao consumo do sangue (17,10) e à mais tarde com os preceitos de pureza (caps. 11-16)
adoção dos modos licenciosos dos adivinhos (alguns e os preceitos para a santidade (caps. 17-27). Embora
podem ter-se envolvido em ritos de sangue vizinhos, a cerimônia de investidura e a dedicação da tenda
c f 20,6), segue-se que o castigo viria de Deus, pois do Encontro já tenham sido explicadas em Ex 29,
a vida está no sangue e Deus é a fonte de vida. Deus são novamente apresentadas para manter a ordem
seria então a fonte imediata do castigo pela violação apropriada do tema da santidade.
direta da vida. Ao mesmo tempo, quase podemos ouvir a ca­
Evitar ser cortado, de qualquer modo que isso dência e repetição do fluxo de vida do povo; a che­
acontecesse, era preocupação especial, pois ser exco­ gada e a aliança no Sinai (Ex 19-24); a revelação de
mungado não refletiria a presença do Santo no meio Deus (Ex 19); a construção e a cerimônia da Morada
do povo. Mais adiante, no capítulo 20, vemos a ne­ (Ex 25-28); a consagração dos sacerdotes e do altar
cessidade de preservar a união da família e uma or­ (Ex 29); a lei do sábado (Ex 31); o pecado (Ex 32);
dem apropriada ao conjunto de toda a vida da pessoa, Moisés, o intercessor (Ex 33); a renovação da aliança
a fim de preservar a comunidade como um grupo. (Ex 34) e a entrega da lei do sábado, com prescrições
Na comunidade reflete-se a unicidade de Deus. para a construção da Morada (35—40); a cerimônia
128 Portanto, a pessoa deve evitar ser cortada. De fato, (Lv 1-7); a investidura dos sacerdotes (Lv 8-10); a
LEVÍTIC011

purificação do santuário, dos sacerdotes e do povo Outros dizem que o incenso deles não era a mistu­
(Lv 11-16); uma nova vida de aliança (Lv 17-27); ra pura que devia ser. Assim, foram punidos com a
e a revelação de Deus. Esta cadência não é apenas morte pelo fogo, um fogo santo do altar. Um raio
uma repetição sem sentido. A cada vez a afirmação podería tê-los morto. Como estavam no altar, o povo
da vida é dada na pulsação do povo. certamente interpretaria qualquer acontecimento
São evidentes os sinais de vida, amadurecimento como vindo do S enhor.
e novas intuições. A colocação dos capítulos 1-7 10,9-10 Capacidade de distinguir. Seja o que
indica a necessidade de obediência ao ritual de sacri­ for que tenha acontecido, o ponto principal é revela­
fício. Esse ritual expressa o desejo de santidade e o do nos vv. 9 e 10, onde Moisés diz que nenhum
elemento condicionador para a purificação. Tudo isso vinho nem bebida inebriante deve ser tomado antes
é antecedente da vida e da prática de santidade (caps. do dever sacerdotal na tenda do Encontro. “É para
17-26). terdes condição de distinguir o sagrado do profano”.
8.1- 36 A cerimônia de investidura. Moisés é oAssim, na celebração de sete dias, talvez Aarão e os
intercessor até do sacerdócio (w. 1-4). Uma descri­ filhos tenham bebido muito vinho. Embora Nadab
ção mais detalhada das vestimentas e cerimônias já e Abihu pudessem ter sido atingidos por um raio, é
foi dada em Ex 28-29. De conformidade com o tema possível que pusessem a mistura errada no fogo, o
do Levítico, é confirmada a ordem a ser seguida na que resultou em uma explosão de chamas e na con-
cerimônia de investidura (vv. 5-33). É dada ênfase seqüente asfixia (já que o v. 5 diz que foram enter­
à expiação para o altar e os que estão sendo inves­ rados vestidos com sua túnica).
tidos (vv. 15.34), identificando-os à vítima do sacri­ Em vista de outras referências em Ex 24 e Nm
fício (vv. 22-31), em vez de enfatizar sua ordenação 3 e à parte da injunção de Moisés para evitar a ingestão
por Deus por meio de Moisés (v. 35). de vinho ou outra bebida inebriante em serviço (10,9),
9.1- 7 O sacrifício do oitavo dia. O sacrifício faríamos bem em continuar nosso exame. O momen­
completa a consagração do sacerdote. Consiste na to é bastante sarado; “Por aqueles que se aproxi­
combinação do sacrifício de um bezerro pelo peca­ mam de mim eu quero ser santificado, e diante do
do, no holocausto de um carneiro (por parte de um povo inteiro, eu quero ser glorificado” (10,3). Abihu
sumo sacerdote) e no sacrifício de um bode pelo (“Ele é meu pai”).e Nadab (“Na é generoso”) pode­
pecado. Um bezerro e um cordeiro para um holo­ ríam também representar um sacerdócio mais primi­
causto e um touro e um carneiro para um sacrifício tivo, agora substituído pelo sacerdócio aarônico e
de paz, junto com uma oferenda vegetal amassada levítico. O incidente, então, é usado aqui para intro­
com azeite, também são oferecidos no oitavo dia. duzir, de forma literária, mas mesmo assim real, a
Que celebração extraordinária, que inclui pratica­ nova ordem (ou, pelo menos, a extinção da antiga).
mente todos os sacrifícios dos quais mais tarde o Agora é por intermédio de Aarão e seus filhos que o
sacerdote participa! A celebração é magnífica, pois novo e o antigo são representados na cerimônia de
nesse dia “a glória do S enhor apareceu a todo o ordenação (10,3). Outros sacrifícios de fogo são proi­
povo” (v. 23; cf. também os vv. 4.6). bidos. Lembremos que no capítulo 9, depois da ceri­
O autor ou os autores parecem transmitir dois mônia de investidura de sete dias, no oitavo dia o
sinais essenciais do sacerdócio. Primeiro, quanto ao povo viu surgir a glória do S enhor em forma de fogo
dever intercessor do sacerdote, todo sacrifício preci­ da presença do S enhor. Se ocorresse um raio, teria
sava ser trazido para ficar diante do S enhor. O s dado ensejo a uma explicação.
sacerdotes deviam interceder a respeito de decisões 10,11 Os sacerdotes devem ensinar a Torá.
já tomadas e daquelas para as quais era preciso enten­ Acresce outra responsabilidade interessante para o
dimento. Era de que tratava a santificação — estar sacerdote quanto à preparação e o amadurecimento
presente na presença do S enhor (9,5). O sacerdote da santidade. Ele deve ser mestre da Torá, “todos os
decretos que o S enhor promulgou para eles por inter­
deve “manter contato” com o S enhor. A comunida­
de tinha de se apresentar na entrada da tenda e, então, médio de Moisés” (v. 11 — mais uma vez, insistência
em Moisés como intercessor). A palavra hebraica
vir ao altar na pessoa do sacerdote (v. 7). O poder
(de onde tõrãh) significa “ensinar” e “orientar”. O sa­
divino podia então agir no meio do povo, por inter-
cerdote deve aprender a orientação apropriada (ordem)
cessão do sacerdote em contato com a presença de
e depois ensinar aos outros. Em português, o mesmo
Deus. A segunda coisa essencial na qual os autores
sentido rico se esconde nos termos “discípulo” e
parecem se concentrar era Moisés como intercessor.
“disciplina” (do latim discere).
Ele foi 0 profeta para Faraó. Agiu como rei ao condu­
zir o povo para fora do Egito. E agora o sumo sacer­
dote no sacrifício e na investidura dos que tomarão PARTE III:
parte no sacrifício. LEIS A RESPEITO DA PUREZA LEGAL
10.1- 5 M orte de Nadab e Abihu. Houve quem
sugerisse que os filhos de Aarão, Nadab e Abihu, Lv 11-16
haviam enchido seus incensórios com fogo que não A inserção aqui dos capítulos sobre o sacerdó­
era santo, isto é, tirado de outro lugar, não do altar. cio é natural. Caso contrário, a obediência podería 129
LEVlTlCOII

ser praticada por amor à própria obediência. A do perdão de Deus é o receptáculo para a vida de
obediência tomou-se agora uma resposta à relação santidade; não é o estado de santidade. Por isso,
da aliança pela intercessão do sacerdócio e continua até hoje, uma vez por ano, é feita expiação por
viva na purificação-preparação (caps. 11-16) para todos os pecados, na festa de Yom Kippur, o dia do
a santidade (caps. 17-27). Grande Perdão.
Agora a pureza legal (caps. 11-15) será expli­ Isso explica o lugar da Lei de Santidade (caps.
cada e enfatizada como condição, aliado à obediên­ 17-27) no livro do Levítico; há uma progressão or­
cia, para a santidade legal que vem mais tarde (caps. denada para a plenitude da vida, a vida de santidade
17-27.) (19,1-7). Também explica o lugar do capítulo-ponte
Para lembrar o que foi dito sobre os padrões de 16 descrevendo o dia do Grande Perdão, a condição
pensamento hebraicos, respeitamos esses preceitos permanente para a vida de santidade. Mais tarde
como vivos, não apenas como orientações para a veremos como o capítulo 27 também se toma um
vida. Todos indicam e fazem parte da vida de santi­ capítulo-ponte, seguindo-se a apresentação do mate­
dade ou integridade — estar plenamente vivo é res­ rial sobre a santidade.
peitar 0 poder do criador da vida. Parece que os re­ Os capítulos 11-16 tratam do puro e do impuro.
datores finais prepararam um caminho muito simples Os capítulos 11 e 12 consideram o que é tomado in-
para a santidade. Perceberam que agora era o mo­ temamente: alimento puro e impuro e a impureza
mento, em todo o texto da Torá, de mencionar este do parto que resulta na perda de sangue (a semente
preceito levítico. Sem ele, a Torá ficaria sem um foi recebida intemamente). O que aparece exteraa-
coração e seu batimento, que seria sinal evidente da mente na pele ou nas vestes é o assunto dos capí­
presença do Santo e a expressão da plenitude da vida, tulos 13 e 14. O capítulo 15 trata daquilo que flui
a Lei de Santidade em 17-26 (o capítulo 27 é outro de dentro da pessoa. O bem-conhecido capítulo 16,
capítulo-ponte). Como o Levítico é o coração da Torá, que traz o relato do dia do Grande Perdão, é o impor­
referimo-nos à Lei de Santidade como o batimento tante capítulo-ponte que liga o puro e o santo.
desse coração. 11,1-23 Alimento puro e impuro: as leis ali­
Para os que devem se tomar santos, o S enhor mentares. Aqui estão relacionados os animais que
diz: “Dize aos filhos de Israel: ‘Santificai-vos, por­ podem e os que não podem ser comidos: os terrestres
tanto, para serdes santos, pois eu sou o S enhor vosso (vv. 1-8), os aquáticos (w. 9-12) as aves (vv. 13-19)
Deus’” (Lv 20,7; Ex 31,13; e Lv 11,44). A obediên­ e, finalmente, os encontrados em todas as três áreas
cia vem primeiro (caps 1-7); depois o S enhor ma­ — insetos e criaturas de enxame (w. 20-23).
nifesta sua glória ao povo por intermédio do gmpo Os cadáveres dos animais impuros não devem
de sacerdócio santo da comunidade (caps. 8-10). ser tocados; quem os toca toma-se impuro (vv. 24­
Mas antes que a pessoa experimente a santidade deve 32). A maior parte desses preceitos são repetidos
ser limpa (pura) (cqjs. 11-16). E, como “a limpeza em Dt 14,3-20. No Levítico e também no Deutero-
está próxima da santidade”, assim a pureza, resultado nômio as pessoas são advertidas para se tomar e se
da obediência à lei, está próxima da santidade. Esse manterem santas simplesmente evitando certos ali­
é o material tratado em seguida no caminho da santi­ mentos (Lv 11; Dt 14,3-21). Entretanto, a razão
dade. Obediência, pureza, e santidade não podem ser direta pela qual certos alimentos causam impureza
separadas, da mesma forma que é impossível separar ou contaminação não é conhecida. A simples obe­
corpo, sangue e alma. (No modo de pensar hebraico, diência parece ser uma boa razão, em vista de Gn
estes três últimos estão incluídos na palavra “ser”.) 2,16, onde no princípio Deus disse: “Poderás co­
E importante considerar este modo de pensar, para mer... mas não comerás...” . Até mesmo hoje há
podermos entender a forma como o material levítico certos alimentos permitidos pelo preceito alimen­
transmite o significado de santidade. A obediência tar judaico, chamados kósher, “apropriado” para
está incluída no entendimento e na experiência da comer.
pureza. Agora os preceitos tomam-se mais rigoro­ As vezes, são feitas suposições a respeito do
sos. A pureza põe a pessoa em condições para a Lei relacionamento israelita com a prática cultuai dos
de Santidade. vizinhos. Embora tenham emergido algumas refe­
Como a pureza só pode vir de Deus, a presença rências literárias, precisamos ser cautelosos e pes­
de Deus deve ser no meio do povo, acima da arca quisar para obter mais evidências de associações
(16,2). É o lugar de expiação, onde estão contidos o com a vida real. Parece ter havido uma linguagem
perdão e a reconciliação que resultam em pureza. cultuai comum usada no Oriente Próximo. Dessa
Os capítulos 11-16 narram como é estabelecida base, todas as tribos ou nações tomaram o que me­
a condição de pureza. Os materiais reunidos nes­ lhor expressaria seu relacionamento com a presença
ses preceitos apresentam um receptáculo adequado do Santo no conjunto da criação (cf. também In­
(puro), “para dar” santidade. Esta expressão contém trodução, 7D, p. 124)
as idéias de perdão e a condição necessária para a A força simples e clara deste material em Le-
santidade. Uma coisa é ser perdoado, outra levar uma vítico parece ser que tudo e todos precisam ser con­
130 vida de santidade. O estado de pureza resultante duzidos à ordem e à soberania do Deus santo único.
LEVÍTICO 14

A totalidade da criação já se unira à ordem e à so­ Em vista do extenso tratamento da moléstia de


berania divinas nas narrativas da criação, no Gêne­ pele nos capítulos 13 e 14, parece que na época
sis; agora a vida cultuai do povo dirige-se a esse pode ter havido uma epidemia de doenças de pele
Deus. A Morada acabara de ser erigida (Ex 40) e desconhecidas. Sem dúvida conhecemos a impor­
era chegado o momento de o “material levítico” tância do sangue que contém a vida de todas as
passar pelo lugar santo em preparação para entrar criaturas (17,11.14). Hoje, é bem conhecida a im­
no lugar santíssimo. A experiência do relacionamen­ portância de análise sanguínea como indicação da
to divino-humano podia ser vivida até no registro saúde geral da pessoa. Da mesma forma, no Leví­
escrito deste povo. Como observou são Jerônimo: tico, a mais leve descoloração ou mancha precisa­
“No livro do Levítico, há um odor de santidade”. va ser analisada, para que se tomassem os cuida­
H',36 Uma fonte ou cisterna permanece pura. dos apropriados, a fim de confirmar o poder de
A pureza da água era necessária, não só porque a Deus em todos os fluxos de sangue.
água potável era escassa, mas também porque sua Sabemos como é fácil levar o dedo à boca
fonte atual é o solo (manancial) ou o céu (a chuva quando o cortamos. A palavra hebraica na proibição
na cisterna). é “não comer” (Lv 7,26; 17,10). Embora talvez a
12,1-8 Im pureza da mulher que deu à luz. A proibição se referisse a uma prática nos rituais de
razão para esta contaminação encontra-se no v. 7; outros povos, 0 respeito pela vida em reconheci­
“... ela está purificada da sua perda de sangue”. É mento a seu criador deve ser considerado seu sen­
o fluxo de sangue que contamina. (A vida está no tido primordial.
sangue e, como o corrimento é periódico, é impos­ 14.3 O sacerdote sai do acam pamento. O
sível manter o controle apropriado. Lv 15,32-33 impuro não faz parte da comunidade viva, mas o
menciona que homens e mulheres são tratados da sacerdote pode ir até essa pessoa. Entretanto, para
mesma maneira.) Só podiam chegar até a entrada evitar a contaminação da comunidade, o sacerdote
da tenda ou, em outra época, eram barrados do deve sair do acampamento para fazer seu exame.
outeiro do Templo. Aqui, “lepra” significa qualquer moléstia de pele.
Hoje ainda há muito mistério e sofrimento ligados 14.4 O rito de purificação. A água doce é talvez
à menstruação e ao parto. Desenredamos parte do obtida de uma fonte ou cisterna, mergulhando um
mistério, mas o sofrimento permanece (Gn 3,16). Na­ recipiente de barro na água. A água doce era usada
quele tempo, 0 medo e o tabu também desempenha­ porque a purificação era fora do acampamento e de
vam certo papel na experiência. As secundinas fa­ sua comunidade pura. O sangue da única ave dego­
ziam com que se p>ensasse que uma espécie de cas­ lada cai na água doce e recebe o cuidado apropriado
tigo estava sendo imposta à pessoa. E, naturalmente, pelo contato com a água. A água pode, então, ser
havia as histórias e tabus das vizinhas. A taxa de despejada no solo e o recipiente é purificado. A ma­
aborto devia ser alta, o que enfatizava a necessidade deira de cedro (do tipo usado na construção do telha­
de explicar a doença e exigia um preceito a respeito do do Templo), púrpura carmesim (da cor do sangue)
da contaminação e da necessidade de purificação. e hissopo formam um regador. O hissopo é prova­
A oferenda só é feita quando o eorrimento pára velmente amarrado à madeira de cedro com a púr­
(Lv 15,13-14.28-29), por isso não há o problema pura. Tudo é molhado com o sangue da ave pura,
da prática de magia — ritual realizado a fim de pois a vida está no sangue. Uma das aves representa
provocar alguma mudança. Israel (a pessoa doente), prestes a reentrar no relacio­
12,2.5 A duplicação do tempo de purificação namento da aliança. A ave é mediadora da purifica­
quando a mulher dá à luz meninas. Deve ter algo ção, pois passa grande parte da vida voando entre o
a ver com o fluxo menstruai. Lembre-se, a vida está céu e a terra.
no sangue e devem ser tomadas todas as precauções 14,7 Purificação pelas sete aspersões. Algu­
para reconhecer Deus como a fonte de vida. mas referências à aspersão do sangue encontram-se
13,4 Isolamento de sete dias. Provavelmente em Ex 12,22; 24,8; 29,21; Lv 4,6; 5,9 e nos fazem
precaução prática no caso de moléstia de pele. lembrar a aliança do Sinai. De fato, em Ex 24, o
Qualquer mudança na pele deve acontecer ao fim sangue aspergido sobre o altar e o povo é chama­
desse tempo, para que o sacerdote possa decidir do de “o sangue da aliança”. Assim, agora, na re­
sobre a pureza da pessoa. A espera é santificada novação da aliança, o sangue é aspergido. É tam­
pela escolha de sete dias. bém lembrete do sangue da Páscoa que libertou o
13,46 M orar fora do acampamento. Em al­ povo da escravidão. A escravidão agora é a mo­
guns casos isso significa morar sozinho. Morar fora léstia de pele, que mantém a pessoa presa fora do
do acampamento veio a ser descrito como “fora dos acampamento.
muros da cidade” ou, às vezes, no caso de preceitos No mundo antigo, sete era um número sagra­
do Templo, “fora do outeiro do Templo”, ou no de­ do, considerado número completo (santo). Havia
serto, “fora da comunidade do tabemáculo”. A pes­ sete planetas (cinco, mais o sol e a lua) que tinham
soa só podia chegar até a entrada da tenda, como se movimento próprio entre as estrelas fixas. Sete é
vê nos capítulos 12 e 15. um franqueado por dois grupos de três; três era 131
LEVÍTICO 14

também um número perfeito, pois tem começo, tório do pão e do vinho. Pode referir-se à oração
meio e fim (1-1-1). A aspersão voltada para o com as mãos erguidas. Em todo caso, a palavra he­
S enhor deve ser perfeita, completa, santa; a asper­ braica relaciona-se com “altura”. O v. 13 refere-se
são em expiação pelos doentes também deve ser ao sacrifício de reparação como “coisa santíssima”,
perfeita, completa (santa), pois a infecção da pele pois é confirmada a integridade de todos os mem­
dificilmente é em apenas um lugar, mas sim em bros da aliança.
muitas áreas diferentes do corpo. A purificação deve 14,14 Sangue aplicado no lóbulo da orelha di­
estender-se a todo o corpo do leproso; não tocar um reita, no polegar da mão direita e no polegar do
único local deixaria a pessoa impura e seria neces­ pé direito daquele que se purifica. Os antigos acre­
sária outra purificação. ditavam que o acesso dos espíritos à vida de uma
14.7 A segunda ave é libertada. A ave é como pessoa realizava-se por essas extremidades — como
o bode expiatório, levando a lepra para um lugar no caso do que está impuro (5,2) e do que está san­
sem volta. Note a importante orientação ritual: o tificado (6,11). O sangue era usado para purificar e
sacerdote faz a ave voar para o campo aberto. Pri­ para afastar a impureza ou o mal. Mais adiante vere­
meiro, efetua a aspersão sobre o que se purifica. mos a unção de azeite sobre o sangue. Aparente­
Depois, quando se realiza a purificação, toma a mente, essa unção preparava para a purificação e a
outra ave. O purificado solta a ave (expiatória). entrada do espirito bom. Hoje, durante o batismo, o
Assim se completa a purificação. Podemos imagi­ lóbulo da orelha e a boca são tocados em preparação
nar a pessoa sentindo-se realmente purificada, rece­ para receber e falar a palavra de Deus.
bendo do sacerdote o pássaro restante e, então, dei­ No rito de investidura do sacerdote, o sangue do
xando sair a infecção junto com a ave (um verdadei­ carneiro da consagração é aspergido no altar (Ex
ro pombo-correio!) em direção ao Deus que absol­ 29,19-25; Lv 8-9). O sacerdote é consagrado ao
ve. São restauradas para o indivíduo a vida, a inte­ S enhor. Aqui não é mencionada a aspersão do altar,
gridade da aliança com Deus e a comunidade. Não pois é o sacrifício de reparação do sangue do cor­
existe magia, pois a pessoa já está curada quando deiro que é aspergido sete vezes diante do S enhor.
o rito de purificação é realizado (14,3). Um para­ A modificação da direção do ato ritual, ou a omis­
lelo é o.atual rito de reconciliação, que trata da lepra são de determinado rito onde seria de esperar que
do pecado. O penitente aproxima-se do rito de re­ fosse repetido, pode indicar um significado desse
conciliação, embora o pecado seja perdoado por um ritual. Assim, cada campo da vida pode ser abran­
ato de contrição. O sacerdote é o mediador do ritual gido por preceitos positivos. Entretanto, a precisão
sacramental (momento santo), que confirma o poder do preceito levítico parece fazer com que alguns
de perdoar e curar de Deus presente na comunidade leitores se afastem dessas instruções da ibrá. Mas,
e reconcilia a pessoa com o relacionamento comuni­ para outros, essa exatidão presta-se a uma excitante
tário da aliança. caça ao tesouro.
14.8 Aquele que se purifica permanece fora. 14,17 Azeite sobre o sangue do sacrifício de
Está agora dentro do acampamento, mas fora da reparação. Aplicar o azeite por cima do sangue
tenda, o que poderia significar fora do santuário exprime a volta total à vida da aliança. O azeite
ou Templo, pois só no oitavo dia a pessoa tinha representa Deus que age no indivíduo e na vida co­
permissão para levar sacrifício ao Templo. munitária do povo. Deus dá vida ao relacionamento
14.9 No sétimo dia, aquele que se purifica de sangue. Para o sacerdote necessitado de tal puri­
torna a raspar os pêlos. As raízes cresceram e as ficação, esse ritual atua como pequeno rito de re-
pontas da contaminação são eliminadas. O cabelo consagração (cf também 8,10). A aliança é reno­
é purificado e lavado mais uma vez. A razão talvez vada e todos estão prontos para a vida de santidade
seja mais prática que simbólica, pois então se pode com suas permanentes e amadurecidas obediência,
decidir melhor quanto à moléstia. purificação e conduta santa.
14.10 A oferenda do oitavo dia. O ritual acon­ 14,21 O sacrifício do leproso pobre. A exigên­
tece no Templo. O efá é considerado equivalente a cia reduzida de rolinhas em vez de cordeiros faci­
desde 22 até 45 litros e um log contém pouco mais lita 0 ritual de purificação para os pobres. A ênfase
de meio litro. O único tipo de oferenda não mencio­ está no reconhecimento da aliança, não na exigên­
nada é o sacrifício de paz, pois tais sacrifícios costu­ cia da oferenda. Entretanto, parece que a exigência
mavam ser voluntários. O sacrifício de reparação era do sacrifício de reparação permaneceu a mesma
necessário (cf. 5,14-26). Além disso, a pessoa purifi­ para todos, pois está envolvida a confirmação de
cada talvez tivesse de trazer o sacrifício de reparação Deus e do próximo. O mesmo requisito para todos
para compensar a ausência do ritual do Templo durante expressa abertamente esse envolvimento, embora
o tempo em que foi excluída. o lado culpado agisse com relutância ou inadverti-
14,12-13 O gesto de apresentação. Este ato damente (5,14-26).
pode ser melhor descrito como “elevação” do que 1433-57 Purificação das casas. Assim como o
como gesto de apresentação. Talvez seja a elevação indivíduo tem necessidade de absolvição e purifica­
132 das mãos à maneira do sacerdote de hoje no ofer- ção, 0 mesmo acontece com sua morada. Lembremos
LEVITIC016

que até a morada do Senhor precisava de purificação pítulo 10, que prepara o terreno para a purificação
de tempos em tempos. No dia do Grande Perdão, do santuário. Seus cadáveres deixaram o lugar san­
havia purificação de toda contaminação que pudesse tíssimo impuro e necessitado de purificação. Talvez
ter ocorrido durante o ano anterior (16,16-19). tivessem chegado muito perto do propiciatório sobre
14,37 a mancha nas paredes...” Isso pare­ a arca. Havia alguns preceitos para fazer uma entra­
ce ser mofo e ferrugem, mas, em vista do v. 34 e na da apropriada no lugar santíssimo. Note como o pri­
opinião de alguns rabinos, era considerada uma meiro vão da ponte para a santidade é construído
contaminação enviada como castigo pela falta de fé. com 0 material que sobrou dos capítulos 11-15 e
O mofo e a ferrugem garantiam que algum tipo de remonta ao capítulo 10. Esse primeiro vão é estabe­
vida devia estar presente. Portanto, um preceito tinha lecido. Deus e a nação estão prontos para obedecer
de assegurar o reconhecimento adequado da fonte à ordem de purificação.
de vida e o respeito pela vida em si. 16,2-5 O propiciatório sobre a arca. E o pro­
Alguns tipos de contaminação são inevitáveis piciatório do Senhor, que deve ser o lugar de expia­
ou acidentais e há os que ocorrem no curso normal ção. Cobre a arca que contém os dez mandamentos.
dos acontecimentos (enfermidades e corriraentos pe­ Agora a absolvição do santuário com a purificação
riódicos). Alguns acontecem durante o desempenho conseqüente pode acontecer aqui. Em hebraico, a
de atos louváveis (Lv 16,21-28; Nm 19,7.8.10). Os própria palavra para cobrir relaciona-se a expiação.
rabinos os chamam de “contaminações do corpo”. Significa que a culpa está coberta ou que a expiação
Os rabinos pensavam que o pecado ocorre é 0 pagamento para ser reintegrado.
quando o impuro e o santo, ou o puro e o profano, 163-21 O rito de purificação. As vestes doura­
reúnem-se em um espírito de desobediência — por das e brancas altemam-se, o que denota a presença
exemplo, a entrada no lugar santo de alguém proi­ de Deus e do povo agindo juntos. Mutuamente, tomam
bido de fazê-lo, ou comer alimento puro enquanto parte no ato de expiação que remove toda a conta­
se está em estado impuro. A obediência ainda é a minação do ano anterior, mesmo a que aconteceu
chave em um relacionamento de aliança. Deus é o inadvertidamente. Juntos na vida de santidade, um
único que pode dizer: “Eu sou o S enhor” . novo ano começa para Deus e o povo (caps. 17-27).
A obediência é a chave para a purificação e a Assim, esse capítulo do Grande Perdão atua
santidade. Pode parecer que o livro do Levítico fala como a ponte onde os dois parceiros da aliança
apenas de obediência ritual, mas a Lei de Santida­ (Deus e o povo) juntam-se para celebrar a união
de menciona a necessidade de obediência na tota­ que será experimentada na Lei de Santidade.
lidade da existência. Lv 1-7 tratam da obediência. 16,20-28 O ritual do bode expiatório: meios
Os capítulos 11-15 expressam a purificação que de expiação. Na verdade, há dois bodes e um carnei­
resulta da obediência. Então, e só então, a pessoa ro para o holocausto. Um dos bodes é oferecido co­
começará a levar uma vida santa. mo sacrifício pelo pecado. Pela imposição das mãos,
15,13 E preciso lavar-se em água de fonte. A0 outro recebe os pecados da comunidade e é man­
pureza contém uma idéia dupla: primeiro, ser curado dado para levá-los a um lugar sem volta. Azazel
de uma doença ou purificado do pecado (cf 14,48. (talvez “poder de El”) parece ser um trocadilho sobre
49) e, segundo, lavado (em alguns casos, banhan­ a sujeição de um deus (demônio) estrangeiro.
do-se em uma fonte ou um lago de água doce, ou Um dos bodes representa o ato de absolvição
seguindo o preceito exigido) para estabelecer a puri­ para o santuário (v. 20). O outro representa a expia­
ficação. O processo é uma minilibertação do Egito, ção do povo no que veio a ser conhecido como ri­
que leva à Terra Prometida. tual do bode expiatório. O bode é conduzido para
16,1-34 O dia do G rande Perdão. Esse capí­ uma terra estéril, o lugar sem volta e também o
tulo tem lugar especial no Levítico porque atua lugar do “deserto justo”. Esse último trocadilho
como ponte para ligar o rito da purificação e a vida sobre o deserto altera todo o sentido da palavra.
de santidade (caps. 17—26). E o S enhor que inicia Com o vão adicional de remoção e castigo
a expiação. Faz isso exigindo a purificação do lugar completado, o capítulo-ponte incrementa sua cons­
santíssimo, contaminado pelas mortes de Nadab e trução para a renovação da aliança.
Abihu. Durante o ritual, Aarão muda do dourado para o
Depois 0 rito de purificação do santuário é reu­ branco, de volta para o dourado e mais uma vez para
nido à confissão e à absolvição dos pecados dos o branco. Antes e depois de cada troca, ele lava o coppo
sacerdotes e do povo (16,33). Essa última purifica­ de acordo com o ritual. Deus e o povo estão represen­
ção acontece no que é chamado de ritual do bode tados nas vestes. O ritual ordena que o sacerdote se
expiatório. A celebração conjunta, com a mortifica­ vista com trajes diferentes para representar personagens
ção do jejum (vv. 29-31), inicia a vida de santidade. diferentes. O simples linho branco era também sinal
No dia do Grande Perdão, o santuário e a nação de humildade e sincera contrição fluindo entre os dois
celebram a festa da expiação. parceiros da aliança. Ações como a troca de vestimentas
16,1 Purificação depois da morte de Nadab e(16,4.23.24.32) preparam o caminho para a expiação
Abihu. Aqui é o lugar para nova referência ao ca­ que está em andamento. 133
LEVÍTIC017

Hoje o Yom Kippur ou dia do Grande Perdão é luta com os animais arrastados até a entrada da ten­
celebrado com grande fé na união de Deus e do povo. da do Encontro ou do Templo; a vergonha, a exibi­
É um dia muito importante para o judeu que busca a ção, a inconveniência e a humilhação de ter de se
reconciliação com outros membros da comunidade e manter afastados quando a atenção e o apoio da
depois recebe a absolvição de Deus (cf. também Mt comunidade eram tão necessários e que eram
5,24). Uma das leituras da celebração da expiação obrigados a gritar: “Impuro! Impuro!” (13,45). Que
judaica é hoje Is 57,14-58,14, que fala de uma verda­ variedade de procissões de ofertório para o Santo!
deira renovação moral interior pelo jejum (Lv 16,29- Então vinha o abate e o sangue, esguichado, asper-
31). O jejum toma-se genuíno na busca do outro, em gido e passado, o cheiro encoberto pelo incenso.
especial do pobre e do faminto e quando se concentra Como um grande final, a nuvem sugeria que os
em uma mudança de vida para todos (Is 58,6-9). No sons de pecado e morte transformavam-se, então,
Levítico, todos agora estão preparados para mudar em coro de louvor pela presença de Deus no meio
para uma vida de santídade. do povo (26,11-13). Quase podemos ouvir o chifre
de carneiro (shofar) e o som suave da harpa, agora
PARTE IV: LEI DA SANTIDADE silenciosos. Talvez haja a sensação de “longe de
casa” no coração de todos hoje, mas a mensagem
Lv 17-26 santa do Levítico está viva e vibrante, na expectati­
Essa seção do Levítico enfatiza a vida mais do va e na emoção do Santo, o Messias-Redentor, que
que 0 ritual, mas a obediência à ordem divina ainda estabelecerá a morada eterna (SI 43,3).
está presente. O acordo da aliança ainda deve ser Aqui recebemos leis, diretrizes, princípios mo­
preservado (17,2). Deus deve ser reconhecido primei­ rais e disposição de espirito que batem e pulsam com
ro (v. 4). Se isso não for cumprido, a pessoa será situações da vida real. Lv 26 dará os toques finais
cortada dos que desejam manter esse acordo de alian­ no acordo da aliança, especificando as recompensas
ça de vida (v. 4). É um modo de vida totalmente novo da obediência e os castigos da desobediência —
(vv. 5-7). O que é apresentado na Lei da Santidade especificações em geral incluídas em um tratado de
(17-26) é para todos (17,8). Precisamos estar em aliança. Eram incentivo e também tática de medo
contato com preceitos que surtiram efeito antes, mas para assegurar a soberania do rei sobre o súdito e
não podemos esquecer a prática da obediência, e a encorajar o súdito a seguir as ordens do rei.
ponte (Lv 16) precisa ser mantida intacta (17,2. 4.9). Capítulo 17. Os biblistas têm discutido se este
A obediência ainda está em vigor agora, com ênfase capítulo faz parte ou não da Lei da Santidade. Al­
em princípios e não em preceitos. É essa mudança guns acham que ele atua como ponte para todo o
que parece incentivar mais a ler esta seção do Leviti- material gue precede a Lei da Santidade, já que faz
co em vez dos capítulos 1-16, que enfatizam a obe­ menção às oferendas de Lv 1-3 como introdução a
diência ritual. A conformidade ritual, praticada ape­
Lv 18,5. Ali Deus é reconhecido como a fonte da
nas por amor à obediência, toma-se, com o tempo,
ordem para estar plenamente vivo.
um fardo muito pesado. Entretanto, junto com a pu­
Foi ordenado ao povo que trouxesse para a
rificação, a obediência é necessária a fim de se estar
entrada da tenda do Encontro tudo que seria ofe­
plenamente vivo na vida de santidade. Agora trata-
recido ao S e n h o r (L v 1,3; 2,2; 3,2; e, correspon­
-se de obediência a um estilo de vida concretizado
dendo a essas ordens, 17,4.5.6). O sacerdócio (caps.
na Lei da Santidade.
Devemos notar a diferença entre “sacrifício” e
8-10) e a purificação (caps. 11-16) também corres­
“santificação”. Sacrifício é “tomar-se santo” e santi­ pondem ao capítulo 17. Por causa desses aspectos,
ficação pode ser “viver santamente”. A vida de pu­ este capítulo parece assumir papel adequado como
rificação da pessoa (caps. 11-16) pela obediência introdução à Lei da Santidade. Ele pode até ter
(caps. 1-7) abre caminho para a santificação (caps. sido uma adição ao pequeno “Manual de Santida­
17-27). de” original. Mas vemos mais razão para aceitá-lo
Chegamos agora ao próprio batimento do cora­ como o primeiro capítulo original do Manual de
ção na Lei da Santidade (caps. 17-27). “Sede santos, Santidade. Todos os capítulos anteriores talvez se­
pois eu sou santo, eu, o S enhor, vosso Deus”. Até em jam idéias, práticas e tradições desenvolvidas da Lei
português a fluência da inflexão nesta citação do da Santidade original.
tema central (19,2) tem um ritmo vibrante. Em Lv 1—7, a ênfase foi na obediência, simples­
Estes capítulos apresentam orientações para mente porque Deus ordenou obediência. O capítulo
levar uma vida de santidade. Eram diretrizes para 17 dá a razão pela qual a pessoa deve obedecer, e
0 povo antigo da mesma forma que o são para o a ordem para obedecer assume importância maior
povo de hoje. no relacionamento da aliança.
Aceitamos, então, a situação de vida real de nos­ 17,3.8.13.15 A santificação do sangue. A to­
sos ancestrais e nos rejubilamos com sua atividade dos é ordenado que reconheçam a fonte de vida no
litúrgica, tenha a expressão que tiver. Imaginamos a Deus único e santo. A expiação das vidas das pes­
134 intimidade que tinham com a vida e a morte; sua soas realiza-se pelo respeito da vida que está no
LEVITIC018

sangue e pela concretização desse respeito por meio a parte errada do rolo (como em um procedimento
do ritual do sangue sobre o altar (17,11). O texto diz cirúrgico), colocava-a em um pequeno escrínio e a
que o sangue, como sede da vida, faz a expiação. Isso enterrava (como em um funeral). Como a vida está
é interessante e compreensível, pois acreditava-se no sangue (v. 14), assim o Espírito de Santidade
que a presença do S enhor estava sobre o propicia- está na Palavra Santa.
tório que cobre a arca no lugar santíssimo. Deus, a Embora a aspersão do sangue sobre o altar fosse
fonte de vida, está oculto no sangue, e o pecado do mais tarde modificada, no Deuteronômio, e não seja
povo está agora oculto ou coberto pela presença ex­ mais possível depois que os romanos destruíram o
piatória de Deus (16,13). templo em 70 d.C., a proibição de comer sangue
A Lei da Santidade é divulgada no capítulo 18. subsiste até hoje na prática judaica. O preceito só
E convite ao enlace humano-divino (18,5) — para podería ser mudado se Deus, a fonte de vida, convi­
participar do fruto da árvore da vida, comê-lo e viver dasse o povo a comer o sangue. Assim, a ordem
para sempre a vida de santidade. O último capítulo seria: “Comei o meu sangue” que, no pensamento
do Levítico alude ao caráter eterno dessa vida. hebraico, seria: “Uni-vos com minha vida”.
Primeiro, temos um comentário final sobre o 18,1-30 A santidade do sexo. Da afirmação da
respeito e o uso do sangue. Muitos preceitos sobre fonte de vida segue-se que todo controle sobre essa
0 sangue estavam contidos no destino do sangue do vida precisaria seguir a ordem (o mandado) da fonte
animal sacrificado. Embora o pensamento ociden­ de vida. A relação da aliança a respeito da vida exi­
tal tenda a espiritualizar a vida e a realidade (no ge que a parte inferior (a criatura) receba orientação
sentido de construir um mundo ideal) e a falar da (vida e ordem) da parte superior ou fonte (criador).
morte como algo que perturba a ordem perfeita, A santidade no controle da vida (sexo) encontra-se
para o povo bíblico tudo era concreto. O sangue era na ordenação que está de acordo com o plano divino.
vida e o derramamento de sangue era morte, e a Não só o homem tem vida (18,5) como pode também
morte agia como um ladrão que rouba a vida.
participar do controle da vida (18,3). Essa é a razão
Para entender a Bíblia é imprescindível pensar
para o lembrete constante de que Deus é a fonte de
como os autores das Sagradas Escrituras. O povo
vida: “Eu sou o S enhor” . O único plano de vida
bíblico pensava e se expressava em termos concre­
autêntico (Lei de Santidade) é o plano do “Deus que
tos. Já que Deus escolheu esse meio para fazer a
é” (o S enhor). Assim, o autor começa o capítulo 18
Palavra Divina entrar no mundo, precisamos estar
com o S enhor dizendo a Moisés: “Fala aos filhos
cônscios desse modo de pensar.
de Israel: Eu sou o S enhor vosso Deus” (v. 2). Po­
Para a mente hebraica, a Palavra de Deus era
demos ouvir esse batimento do coração da Torá em
real, pronunciada de maneira tão real quanto a sau­
18,2-6.21.30; 19,2.4.10.11.13.15 e alhures. Encon­
dação entre vizinhos (“O S enhor falou a Moisés...
e da tenda do Encontro deu-lhe esta mensagem...”). tramos a vida, seguindo o plano de Deus (v. 5).
Os hebreus antigos viviam a vida na presença de 18,18 Versículo-ponte. Na linguagem dos pre­
Deus. A linguagem da Escritura reflete um povo ceitos, a palavra sexo representa o homem e tam­
que pensava, vivia e se movimentava em um mun­ bém a mulher, embora cada um tenha participação
do real, e seu Deus fazia parte do mundo real. Sua singular no controle da vida única de Deus.
expressão do que Deus tinha a dizer também era O V. 18 é um versículo-ponte. Liga uma lista de
real. Verdade, justiça e paz não eram idéias, mas proibições de incesto a uma lista de outras relações
coisas vivas. Para os hebreus, “a Fidelidade e a Ver­ sexuais “fora de ordem”. Lv 18,6-17 relaciona os
dade se encontraram, elas abraçaram a Paz e a atos de incesto licenciosos; depois o v. 18 diz: “Não
Justiça. A Verdade germina da terra e a Justiça se tomarás por esposa a irmã de tua mulher, com o
inclina do céu” (SI 85,11-12). risco de provocar rivalidades descobrindo a nudez
Além disso, todo abate de animais, mesmo se dela enquanto tua mulher estiver viva”. A segunda
apenas para consumo, tinha de ser sacrifício (tornar parte do v. refere-se à desordem criada no plano de
santo) ou santificação (viver santamente), pois a ví­ Deus para a vida (no hebraico, El-Deus é mencio­
tima animal possibilitava que o ofertante continuas­ nado como ligado à própria vida da esposa). Esta
se a viver; Deus, a fonte de vida, tinha de ser reco­ parte atua também como ponte para todas as outras
nhecido de alguma maneira. Assim, quando o povo desordens ou relações imorais proibidas (vv. 19-23).
não ficava mais próximo do altar, o primeiro precei­ A desordem indicada na primeira parte do v. 18
to para pôr o sangue sobre o altar foi modificado resulta quando um homem já unido a uma mulher
(Dt 12,24). Devia ser derramado no chão como água transgride o acordo da aliança, casa-se com a irmã
e podia, então, voltar ao S e n h o r . da esposa e cria um relacionamento polígamo. Essa
17,13 O sangue do animal puro. No caso dodesordem relaciona-se com o incesto e afeta a co­
animal puro morto durante uma caçada, o sangue munidade, na qual todos, inclusive a irmã, devem
devia ser enterrado. Da mesma forma, o escriba que levar a mesma vida santa. A primeira parte do v. liga­
errava ao copiar a Sagrada Escritura não amassava -se como ponte às proibições de incesto; a “desgraça”
a página e começava de novo. Extraía com cuidado liga-se a outras desordens da comunidade. 135
LEViTICO 19

Conviría observar que o incesto entre pai e filha com a desistência de alguma parte da vida ou pela
nem precisaria ser mencionado, mas está incluído privação de um membro. Entretanto, o sentido bási­
no V. 6 e recebe uma das frases vibrantes: “Eu sou co de tal pacto de aliança é submeter-se ao parceiro
o S e n h o r ” . No v. 22, a desordem sexual é chamada superior.
de abominação, o que, em hebraico, significa tentar As diretrizes negativas do capítulo 18 foram
tomar santa uma união que não pode se completar divulgadas porque em diversas ocasiões o povo segui­
no sentido real do ato. É essa a razão pela qual cos­ ra um caminho contrário ao plano de santidade. Com
tuma ser igualada a sacrificar a um deus estran­ freqüência, ao avaliar a culpa, não é preciso conside­
geiro. A ordenação da fonte de vida e o plano orde­ rar 0 bem ou o mal da ação preciso considerar, mas
nado de Deus dentro da aliança é interrompido. sim a ordem ou a maneira de seu desempenho. No
Quando o convite de casamento, no capítulo 18, capítulo 18, há muitos exemplos. As relações sexuais
é aceito por ambas as partes da aliança, a vida santa em si não são proibidas. Proibem-se são as situa­
assume a dimensão renovada de unicidade junto ções desordenadas contrárias à Lei da Santidade e
com perfeição. Estar unido ao S e n h o r é a meta da ao poder vivificante do Criador.
aliança divina-humana. O que parece ser dado como castigo ■— “para
No capítulo 19, precisamos tomar cuidado para que não vos vomite esta terra” — é apenas o resul­
não ler no texto nem mais nem menos do que o tado declarado de conduta desordenada, semelhante
autor ou os redatores pretendiam. ao que acontece no caso de uma desordem estoma­
Nos capítulos 17—26, a Lei da Santidade (Holiness, cal social. No capítulo 26, vemos que Deus, como
H), parte do material tem vocabulário e unidade a fonte de vida, usa o próprio tempo para livrar a
próprios e é reconhecido pelos biblistas como de ordem divina da desordem causada pelo parceiro
origem data bastante primitiva. Este material tam­ humano da aliança. E um aspecto da aliança perene
bém se concentra em tomo do chamado de Israel
— Deus ainda nos dá tempo para viver e nos sus­
para ser santo. Essa Lei pode ter sido o centro em
tenta na vida quando preferimos nos fazer de tolos
torno do qual os redatores finais reuniram outro
ou mesmo quando nos cortamos da aliança.
material sacerdotal. Por essas razões, esta seção é
19,2 “Sede santos, pois eu sou santo, eu, o
freqüentemente citada pela letra H. Os preceitos
S enhor , vosso Deus.” É a primeira regra de conduta
rituais estão ausentes e o texto começa a falar em
na vida de santidade — reconhecer Deus como a
termos de princípio e conduta. O tom é mais ético
fonte de vida. Se desejamos viver, precisamos guar­
do que ritual. Nesta seção do Levítico, o leitor sen­
dar a ordem divina. A santidade tem importância
te-se mais à vontade. Aqui temos diretrizes para
levar uma vida santa. Nos preceitos da Lei da San­ primordial porque Deus é, antes de tudo, santo.
tidade ouvem-se ecos do Gênesis e do Êxodo. Para Em Deus, a santidade (integridade) e a unicidade
Adão e Eva em Gn 1,28, para Noé e a família de­ são a mesma coisa. Falamos do Deus santo, único.
pois do dilúvio em Gn 8,17 e 9,7, e para todo o O segredo de uma vida plena (santa) encontra-se
povo em Ex 20, “comei e multiplicai-vos” é a diretriz, na Lei da Santidade. A ordem é tão simples que
“mas não vos tomeis impuros por tais ações. Eu sou somos inclinados a esquecer o significado de co­
o S e n h o r , v o s s o Deus”. mando.
19,1-37 Diversas regras de conduta. As duas Em Deus, a ordem é perfeita, pois Deus é um
regras básicas do relacionamento divino-humano só. A unicidade de Deus é um mistério, e na unici­
encontram-se aqui — o amor de Deus e o amor do dade não há lugar para a desordem. Essa concepção
próximo. O fato de essa dupla diretriz estar viva e monoteista da vida e da fonte de vida no mundo e
atuante hoje é testemunho suficiente de sua validade na história do povo israelita remonta à revelação a
permanente. Os vv. 2 e 18 dão as ordens; “Sede san­ Moisés em Ex 3,14: “Eu sou aquele que serei” . O
tos, pois eu sou santo, eu, o S e n h o r , vosso Deus” e destaque divino de um líder (Moisés) e de um povo
“amarás o teu próximo como a ti mesmo”. (Israel) reflete um novo modo de pensar monoteista.
Em 20,1-8 e 20,9-21, são estipulados os castigos Deus faz surgir do povo a vida de Deus presente em
respectivos pela desobediência a essas ordens. Os vv. seu meio, em sua própria vida. Quando o povo foi
restantes do capítulo 20 explicam em detalhes o que mantido na escravidão, a vida de Deus no povo
acontecerá aos desobedientes. Em outras palavras, foi mantida prisioneira. A ordem para ser santo comple­
do ponto de vista ético, e também ritual, o relaciona­ ta 0 círeulo, fazendo surgir e devolvendo a vida à
mento da aliança ainda se fundamenta na obediên­ fonte de vida. “Eu sou aquele que serei” é a maneira
cia. É princípio básico do acordo da aliança e indica de Deus dizer “Eu sou a fonte de vida”.
uma ordem perfeita. A obediência à ordem das rela­ A ordem é a primeira lei do céu. A ordem per­
ções de obediência é a base para aceitar as regras da feita vem primeiro. O “Único” vem primeiro. Deus
vida de santidade. A pergunta importante não é; “A é 0 Únieo que pode dizer “Eu sou aquele que serei” .
quem a vez?” (ordem de oportunidade), mas sim; Assim, Deus vem primeiro e o livro do Levitico
“Quem vem primeiro?” (ordem de precedência). relata a ordem perfeita. Ser santo porque Deus é
136 Muitas vezes pensamos que a santidade é alcançada santo é aceitar Deus como a fonte de vida.
LEVITIC019

Em Lv 19,3, a ordem seguinte é o temor aos nidade. A vida de santidade trata da perfeição e da
pais, pois por eles entramos em contato de aliança integridade.
com Deus, a fonte de vida. Por isso, no texto, o A mesma regra se aplica a respeito das vinhas.
temor aos pais e a observância dos sábados estão O povo recebe ordem para deixar as uvas que caí­
ligados. O temor filial reconhece os pais como rem (v. 10). E a forma divina de dá-las ao pobre e
ponto de contato com a realidade da vida e o Cria­ ao migrante. Mas não devem deixar nada para os
dor de toda a vida. deuses da fertilidade em pagamento pela colheita,
Os pais e o sábado ligam-se por outra razão. como era o costume da terra. “Eu sou a fonte de
Deus descansou no sétimo dia e o consagrou (Gn toda a vida. Eu sou o S e n h o r , v o s s o Deus”.
2,3). O sábado é, então, um dia santo para toda a Esta última exclamação repete-se diversas vezes
família. Em uma ordem perfeita, a celebração da nos capítulos 18 e 19. Parece que esses capítulos
fonte primordial da vida incluirá a fonte secundá­ formam uma unidade; talvez sejam a primeira reu­
ria (os pais). A ordem não pode ser invertida. O nião dos materiais em um manual de santidade. A ex­
preceito do sábado é, em última análise, o preceito clamação; “Eu sou o S e n h o r , vosso Deus” é clara
do dízimo, que põe Deus em primeiro lugar. A referência ao primeiro mandamento da Lei da alian­
parte, um dia de cada sete (a unidade santa), é o ça do Sinai e chama a atenção para o Deus único
dízimo ordenado por Deus (Lv 27.30). como a fonte de vida. Esse reconhecimento vem em
19,4 “Não vos volteis para os falsos deuses, primeiro lugar (Ex 20,2-6; Lv 26,45). A repetição da
não fabriqueis para vós deuses em forma de es­ exclamação pode ter sido usada como auxilio mne-
tátua.” Note que a fabricação de imagens não é mônico para o manual original. Poderia também sig­
proibida; o que é proibido é voltar-se para deuses ou nificar que havia práticas inaceitáveis nas nações
imagens fundidos, usados como objetos de culto. vizinhas (Lv 18,3; 20,23), bem conhecidas por eles
De fato, é o Espírito de Deus que continua a se mo­ na ocasião, e as pausas ffeqüentes no texto poderiam
ver hoje no talento criativo de artistas que tentam, ensejar uma resposta em forma de litania de breves
em uma ordenação de criação específica, expressar juramentos de fidelidade. A exclamação é o início
a imagem e a semelhança de Deus como a fonte de do primeiro mandamento. A comunidade continuaria,
toda a vida. Na transcrição hebraica dessa regra de então, a aclamar publicamente a Deus, o Santo, como
conduta (v. 4), há um trocadilho com “El”, o nome a fonte de vida.
do deus de povos vizinhos (18,3). A mesma raiz é 19,16 “Não levantes uma acusação que faça
usada para expressar “falsos deuses”. derram ar o sangue do teu próximo”. Este precei­
19,5-8 Um sacrifício de paz aceitável. A paz é to está ligado à ordem para evitar a calúnia. Não é
a tranquilidade da ordem. Quando a ordem é mantida, de admirar, pois a expressão usada para calúnia
o resultado é a paz. O sacrifício de paz deve ser co­ significa “diminuir alguém pela palavra falada”. É
mido no dia em que é oferecido ou no dia seguinte, possível atrapalhar, ficar indiferente ou levantar-se
pois então toma-se deteriorado (impuro). Quem leva para apoiar a vida em perigo no próximo. A asser­
a vida de santidade profana-se ao comer o sacrifício ção de Deus como a fonte de vida é testemunho da
de três dias. A razão óbvia, além da deterioração, é verdade. Em todas as circunstâncias somos obriga­
que a ordem não é seguida. Foi ordenado que no dos a pesar apropriadamente a vida de nosso próxi­
terceiro dia a parte restante fosse queimada, não mo na balança da justiça. Portanto, se aceitamos a
comida Lembremos que esses sacrifícios de paz vida de santidade, não podemos ficar indiferentes
são melhor chamados de oferendas do bem-estar. quando a falsidade se exibe disfarçada de verdade,
Assim, 0 reconhecimento da fonte de vida e a certe­ acarretando a destruição da vida.
za do bem-estar do povo são realizados pelo segui­ 19,17.18 “Amarás a teu próximo como a ti
mento da ordem. A própria razão para o sacrifício de mesmo”. Esta passagem e a de 19,2, “Sede santos,
paz é reconhecer a presença constante do divino pois eu sou santo, eu, o S e n h o r , v o sso Deus”, são
como a fonte de vida para o bem-estar do povo. os vv. mais citados do Levítico. Mais tarde, Jesus
Consumir comida impura profana a presença sagra­ reunirá as duas, ao responder à pergunta; “Qual é o
da do Único, parte vital da comunidade. grande mandamento da Lei?” Sua resposta: “Ama­
19,9 P artilhar a colheita. Em seguida na or­ rás o S e n h o r teu Deus de todo o teu coração, com
dem da vida estão as vidas ameaçadas pela falta de toda a tua alma e com todo o teu pensamento''’ (Mt
alimento. Os que têm comida e podem reconhecer 22,37, cit. Dt 6,5). “Um segundo é igualmente im­
a fonte de vida por meio do sacrifício de paz (ação portante; Amarás o teu próximo como a ti mesmo”
de graças pelo bem-estar) são, na verdade, incapa­ (Mt 22,39, cit. Lv 19,18). Se alguém está vivendo a
zes de dar autêntico testemunho de uma vida na vida de santidade, descrita pelo uso de todo e toda,
santidade (perfeição da comunidade) enquanto então todos são o próximo dos outros nesta vida.
existem nessa comunidade os que são pobres. O Entretanto, há uma sequência santa. O amor de Deus
preceito do v. 9 foi estabelecido para dar aos pobres vem primeiro e inclui o amor do próximo, mas o
a oportunidade de viver. Isso permite que, como a amor do próximo não leva, necessariamente, ao amor
fonte de toda a vida. Deus atue em toda a comu­ do Santo. 137
LEV(TIC019

No V. 19, são proibidas certas misturas. Na sexual com ela está claramente agindo fora de ordem.
tentativa de refletir a unicidade de Deus na integri­ A união sexual entre humanos, então, tem a ver com
dade da vida comunitária, os autores sacerdotais a ordenação ou o controle apropriado da vida. Pri­
relacionam algumas combinações desordenadas: a meiro, é afirmada a unicidade de Deus como única
hibridação, a semeadura de duas sementes diferen­ fonte de vida, depois segue-se a unicidade do casal
tes (uma sobre a outra) e a tensão entre fibras in­ como fonte secundária de vida.
compatíveis. O resultado da hibridação pode ser 19,23-25 Fruto incircunciso. As árvores frutí­
monstruoso; sementes diferentes disputam o mesmo feras levam tempo para crescer, e os primeiros frutos
chão e a mesma umidade; perde-se a pureza do te­ não podem ser dados ao S en h o r antes do quarto ano.
cido e a unidade da tecelagem desaparece. Então, os fhitos podem ser dados ao S e n h o r pela co­
19,20-22 Reparação para relações sexuais com lheita do ano, como oferenda de ação de graças. Assim
uma escrava. A afirmação da única fonte de vida e como 0 rito da circuncisão levava o varão judeu a
o reflexo dessa unicidade na comunidade tem impor­ um relacionamento vital com a aliança, da mesma
' tância fundamental. Assim, a gravidade da desordem forma o fruto tinha de ser considerado incircunciso
no sexo ou no controle da vida (v. 20) é demonstra­ (v. 23) até 0 quarto ano, quando era trazido à alian­
da pela exigência de um carneiro em sacrifício de ça, e só podia ser comido no quinto ano.
reparação. A importância de reconhecer e afirmar a 19,32 Respeito pelo ancião. O v. afirma que le­
fonte de vida é mais profunda do que parece. Por vantar-se diante dos idosos é maneira de demonstrar
exemplo, a serva não tem vida própria, não é dona de respeito. A duração da vida é dom do S e n h o r ; o res­
sua vida, pois não é livre. Supomos que ela fosse peito pela duração da vida é reverência pelo Deus de
morta, então conquistaria a liberdade (o relaciona­ vida. Em outras palavras, não olhamos para a pessoa
mento da criatura com Deus ultrapassa a vida e a como tal. O critério para o respeito não é a riqueza
morte), e seria feita a justiça do S e n h o r . A questão que a pessoa acumulou nem a fama alcançada, mas
em pauta não é apenas que a justiça seja feita, mas simplesmente a extensão dos anos. O tempo durante
também que a santidade da vida seja preservada. O o qual o poder de vida do Criador tem atuado no
homem envolvido nessa relação sexual desordenada mundo, no indivíduo e na comunidade deve ser res­
é dono de sua própria vida. Assim, pelo sacrifício de peitado na vida de santidade.
reparação, o pecado lhe é perdoado (v. 22). Ela, por 20,1-21 Dispositivos penais p ara diversos
sua parte, mantém seu “não-status'’, não há pena de pecados. Há dois grupos de castigo aqui, que cor­
morte, e o homem é purificado para a vida na san­ respondem ao mandamento duplo de amor de Deus
tidade. A ordem perfeita do reconhecimento de Deus e amor do próximo. Nos vv. 1-8, é tratada a trans­
como a fonte de vida não é perturbada. O santuário gressão do santo nome (o nome de santidade). Nos
também é envolvido (v. 21), pois o texto fala de sexo vv. 9-21, é considerado o amor do próximo, a come­
como o controle sagrado da vida. O suporte defini­ çar pelo dos pais. O castigo pela transgressão é, na­
tivo do controle da vida (sexo) deve ser uma orien­ turalmente, a morte real ou simbólica. Ser cortado
tação apropriada (ordem no culto) para Deus, a fonte e ser morto parecem unir-se no significado e na ex­
de vida. tensão do castigo. A Lei põe o reconhecimento de
O ato sexual dos humanos fora do casamento Deus como a fonte de vida no início da lista. Segue­
não está em ordem. Há uma ordem para o uso do -se que quem age contrário ao reconhecimento é
sexo. A união de duas pessoas no ato sexual forma cortado de toda a vida; é o significado da morte. Ser
um só corpo (Gn 2,24). São os dois que decidem santo significa estar plenamente vivo.
agir como um. Essa nova unicidade resulta na afir­ 20,2 Castigo capital. Israel permitia o castigo
mação da vida existente e na criação da vida. Quan­ capital pelo apedrejamento, praticado por toda a
do Deus abençoa o homem e a mulher em Gn 1,28, comunidade. Quem se recusava a reconhecer Deus
com a ordem: “Sede fecundos e prolíficos”, convi­ como a fonte de vida era cortado da comunidade e
da-os a uma participação mais profunda na unici­ morto por apedrejamento. Aqui há uma referência a
dade divina, uma participação no próprio poder da Môlek. A palavra tem afinidade com a palavra
única fonte de vida para criar nova vida. Essa di­ hebraica para “rei” e talvez seja uma forma gráfica
mensão de unicidade acrescentada deve ser afirma­ de explicar que Deus vem primeiro. O santuário é
da antes que o casal realize a união sexual — uni­ profanado quando o palácio se toma o lugar de culto.
cidade que, por sua vez, se toma fonte de vida aqui Se o rei é posto em primeiro lugar, então toma-se
na terra. Essa nova afirmação de Deus como a única fonte de vida. As pessoas são cortadas da vida do
fonte de vida também afirma o verdadeiro papel do Santo e mortas para a vida na santidade. Se o rei é
casal no relacionamento da aliança. A aliança con­ invocado, o S e n h o r não é reconhecido como a fonte
jugal trata dessa afirmação. de vida. Só Deus pode dizia: “Eu SOU a q u e le q u e
No caso da serva, devemos lembrar que ela já serei ” . Não admira que os judeus ficassem perturbados
vive com um homem (Lv 19,20), o que talvez signi­ quando Jesus falou: “Em verdade, em verdade, eu vos
fique que a unicidade da Fonte de Vida já está reco- digo, antes que Abrão fosse, eu Sou”, e que colhes­
138 nhecida e afirmada. O homem que agora tem união sem pedras para atirá-las contra ele (Jo 8,58.59). O
LEVÍTICO 23

santo nome é blasfemado em Lv 24,16 e o castigo sumo sacerdote-legislador. É ele que dirige e orienta
consequente é o apedrejamento pela comunidade os filhos de Aarão, os sacerdotes (21,1).
inteira. Esse indivíduo não tem mais permissão para As irregularidades de 21,2-22,33, em especial
ser membro da comunidade de pessoas que levam a as de 21,16ss., podem nos parecer estranhas, mas
vida de santidade. devemos nos lembrar de que hoje sabemos bem
20,9 Insultar os pais. Os castigos aqui mencio­ mais sobre muitas dessas doenças do que o povo
nados relacionam-se aos preceitos dos capítulos 17, bíblico. Naquela época, algumas irregularidades
18 e 19. A santidade da relação com os pais encabe­ eram simplesmente consideradas castigo de Deus.
ça a lista. Os outros castigos dizem respeito à desor­ Os julgamentos de impureza e profanação basea­
dem do controle da vida (sexualidade) e de relacio­ vam-se com freqüência na incapacidade da pessoa
namentos familiares e com o próximo. Insultar é des­ para realizar determinada ação, como no caso de
denhar. O que condena a pessoa não é só recusar o indivíduos cegos, aleijados e desfigurados.
crédito apropriado, mas até desacreditar a ordem O capítulo 23 tem uma beleza toda própria.
apropriada. Quem insulta os pais perde o direito à Descreve a vida de santidade em termos das festas
vida (v. 9). Isso, por sua vez, não deixa espaço para de Israel. A lista começa com o descanso do sábado
O reconhecimento de Deus como a fonte direta de (23,3). Mantendo um dia de descanso completo.
vida. Tal estado resulta em morte. Não é possivel Deus é reconhecido como a fonte da vida de san­
cortar a fonte de vida sem experimentar a morte. tidade (Gn 2,3). A lista continua com a menção da
20,22-27 Propriedade de terra. A identidade Páscoa, de Pentecostes, do dia do Ano Novo, do
é estabelecida quando o povo tem um lugar que pode Dia do Grande Perdão e, por fim, da Festa das
chamar o seu. Deus separou a terra para o povo Tendas. A ordem em que são apresentados é signifi­
“distinguido” entre os outros povos (w. 24.26). De­ cativa. O propósito do Levítico não é dar instruções
vem reconhecer essa ordem e realmente realizá-la, detalhadas para a observância das festas, mas sim
separando-se, os puros dos impuros (20,25). Assim, chamar a atenção para a necessidade dessas celebra­
afirmam a posição de comando do S enhor. ções, a fim de dar reconhecimento ao plano de vida
20,24 Terra que m ana leite e mel. Aqui é ci­ divino. “Eu sou o S e n h o r , v o s s o Deus” deve se
tado Ex 3,8. A vaca, a ovelha, a cabra e o camelo são repetir no fím de cada sexto dia. O número santo
a fonte secundária do leite, mas Deus é a fonte pri­ era o sete; assim, o sétimo dia tomou-se o dia do
mária do leite e do mel das abelhas (cf. Sr 39,26). S e n h o r . O sétimo dia representa o dízimo que per­
Por causa da escassez de água pura, o leite era a tence a Deus.
bebida mais importante. A terra de Canaã é gorda 23,1-44 Dias santos. Em todo o Pentateuco há
ou rica (um dos significados da palavra hebraica calendários de dias santos (Ex 23,14-18; 34,18-25;
para leite). E, na verdade, uma “terra que mana leite Lv 23; Dt 16,1-16). No Levítico, são mencionadas
e mel”. As abelhas eram abundantes e depositavam as três Festas de peregrinos; Páscoa-Pães sem fer­
0 mel nas fendas dos rochedos ou em árvores ocas, mento (23,4-14); a Festa das Semanas, ou Pentecos­
até mesmo no deserto. No v. 24, Deus é confirmado tes (23,15-22); e a Festa das Tendas (23,33-44).
como a fonte desses alimentos revigorantes. Acrescentam-se o dia de Ano Novo (vv. 23-25) e
Nos vv. 1-21 são relacionados os castigos por o Dia do Grande Perdão (vv. 26-32). O sábado
não reconhecer a ligação com Deus e o próximo. encabeça a lista (v. 3). Deus fez o sábado santo
Nos vv. 22-27, é identificada a ordem apropriada (Gn 2,3; veja Ex 20,8-11 e Hb 4,4.9). A relação é
de obediência. Pela obediência, Deus e o povo apenas um anúncio por parte de Moisés (Lv 23,44).
mantêm uma identidade baseada na fé da aliança, Desde que a pessoa seja membro da aliança, todo
não na adivinhação (20,27). dia é santo. Entretanto, certos dias são designados
Caps. 21-22 Intercessores, banquetes sacri­ por Deus, por intermédio de Moisés, para ser cele­
ficais e vítimas sacrificais. Foram estabelecidas brados com uma reunião sagrada (23,1-3).
as identidades de Deus e do povo. Para Deus, a Nas narrativas antigas de outros povos, a reu­
identidade está na ordenação. Para o povo, a iden­ nião sagrada acontecia entre os deuses. Com Israel,
tidade está na resposta obediente. É apropriado con­ o Santo inicia a reunião do povo (Lv 23,4; Ex
siderar agora os intercessores dessas relações de 12,16). Reunindo as festas principais em um único
aliança; Moisés, que orienta o sacerdócio (21,1­ lugar (no material levítico do Pentateuco), os auto­
24), e as vítimas dos sacrifícios (22,17-33). As irre­ res sacerdotais afirmam a intercessão de Moisés nas
gularidades relativas ao sacerdote e à vítima encon­ celebrações do povo.
tram certa apresentação equilibrada no texto. Mui­ A ordem em que a lista aparece dá ao leitor
tos preceitos exigidos para o estado de purificação um mosaico da vida de santidade no mundo -— o
são reafirmados em relação ao sacerdote e à vítima. Santo vivendo no meio do povo. A festa da Pás­
Essas considerações atuam como introdução para coa-Pães sem fermento celebra a libertação da es­
o que virá no capítulo 23. Moisés ainda é o inter- cravidão. Cinquenta dias mais tarde, o fim da co­
cessor. Seu papel seria melhor descrito como o de lheita e a oferenda das primícias, começam com a 139
LEViTICO 24

celebração da festa das Semanas (Pentecostes). De­ os nomes das tribos fixadas nas vestes do sacerdote
pois, há uma última lembrança do deserto com a (Ex 28,9-12). Assim, o Santo e o povo estão presentes
Festa das Semanas, que comemora a cabana feita um para o outro por sinais reais de vida. O óleo é
de ramos e a morada nas tendas durante a caminha­ reabastecido (Lv 24,2) e os pães são mantidos fres­
da no deserto. Era também chamada Festa dos Ta- cos (24,8). Para uma vida de santidade é necessário
bemáculos e, como era celebrada no fim da colhei­ ter uma experiência perene da presença um do outro
ta, recebeu o nome de Festa da Colheita. Em toda — do Santo e do povo que deve ser santo.
essa descrição de vida, o início de cada ano é anun­ 24,10-23 Punição da blasfêmia e do homicídio.
ciado em uma celebração, e todo ano a vida toda O que é santo pode ser profanado (a luz é apagada
rejubila-se no dia do Grande Perdão. quando deveria ficar acesa) ou o povo pode ser con­
A Festa das Tendas é mencionada no fim da taminado (os pães tomam-se impuros, secos). Entre­
lista. Seus muitos nomes e sua ênfase na habitação tanto, seiâo dados meios para afirmar o santo e o povo
mostram um desenvolvimento em seu significado. ou redimi-los da profanação ou contaminação (cf o
Não admira que mais tarde Pedro peça permissão cap. 25). Nesta vida de santidade não há expiação/re-
para levantar três tendas, uma para Moisés, o legis­ denção possivel para o blasfemador (24,16) nem para
lador, uma para Elias, o profeta, e uma para Jesus, 0 homicida (Nm 35,31). O raciocínio é este: a pala­
o que dá a vida. vra hebraica para blasfêmia sugere uma perfuração,
Os capítulos 23-25 devem, provavelmente, ser de certo modo, do nome do Santo. A perfuração podia
lidos como uma unidade, pois falam de dias santos, provocar o derramamento do sangue vital da vítima,
lugares santos e terra santa. Os dias são santos (23,1- como no caso de homicídio. A vida de Deus está no
-44) e a lâmpada do santuário (24,1-4) e os pães da Nome Santo e a vida do humano está no sangue,
proposição (24,5-9) indicam o lugar santo de reu­ assim, pela blasfêmia e pelo homicídio. Deus e o
nião. O ano sabático (26,1-7) e o jubileu (25,8-22)
humano são perfurados. O blasfemador e o homicida
com 0 resgate da propriedade (25,23-55) tratam da
devem ser mortos.
terra santa (25,1-22), dos direitos de propriedade
Há também um trocadilho no texto sobre o
(25,23-38) e da liberdade (25,39-55). O capitulo 23
nome Shelomit (24,11), semelhante ao de uma deu­
descreve a vida de santidade com ênfase na presen­
sa vizinha, considerada perfeita, santa. Essa substi­
ça do Santo vivendo no meio do povo, enquanto as
tuição do Santo de Israel era uma blasfêmia. O cas­
celebrações do ano sabático e do jubileu do capítulo
tigo para essa transgressão seria o apedrejamento e
25, com sua nota de perfeição no número sete santo,
parecem olhar além desta vida para a vida da san­ a conseqiiente eliminação desse ofensor da aliança
tidade perfeita em Deus (o lugar santíssimo etemo). da vida de santidade.
A cada sete anos a terra tem descanso total, como É importante notar que o texto mantém o acor­
um sábado para o S e n h o r (25,2-4). Então, na vida do da aliança (24,23). Perguntam a Moisés o que
de jubileu de perfeição (sete vezes sete semanas de fazer com o blasfemador, mas Deus é o Santo que
anos), todos retomam a sua propriedade (25,10.13). dá a ordem para o blasfemador ser eliminado da
Mas 0 S e n h o r não tem um papel no resgate da terra vida de santidade (v. 14). Os que ouviram a blasfê­
como o santuário tinha um papel na purificação mia devem se juntar, pois receberam a profanação
(cap. 16), pois Deus é a fonte da vida e o proprie­ pelos ouvidos. São reunidos na vida do Santo. Pela
tário da terra (25,23). Lembremos que Deus real­ imposição das mãos, devolvem a blasfêmia ao ofen­
mente habitava apenas na nuvem sobre o propicia- sor e, pelo apedrejamento, mandam-no para a
tório, em 16,2. morte, lugar sem volta (24,14).
24,1-4 A lâm pada do santuário. Essa passa­ No capítulo 25, o enfoque é na expiaçâo, não
gem repete os preceitos de Ex 27,20.21. O Êxodo se no sentido de perdão, mas no sentido de uma união
encerra com Moisés pondo o candelabro na tenda que resulta da plena aceitação da aliança. A arruma­
do Encontro e arrumando os pães sobre a mesa da ção ordenada do material sacerdotal continua nes­
proposição diante do S enhor (E x 40,22-40). Assim, tes capítulos finais.
agora, no final do Levítico, a lâmpada e a mesa são Podemos agora ver a expiaçâo (cap. 16) efetua­
arrumadas na ordem levítica apropriada. Aqui, entre­ da na vida de santidade e por ela refletida (caps.
tanto, a ênfase não está no óleo puro como em Ex 17-26). A celebração dos dias santos (cap. 23) rea­
27, mas na presença do Santo. (Isso se assemelha liza a expiaçâo para uma vida mais completa (cap.
ao simbolismo da luz do sacrário nas igrejas de 25) com as recompensas e os castigos ligados à
hoje.) Quando há luz na janela, há alguém em casa. obediência ou desobediência à Lei da Santidade (cap.
Assim, 0 Santo e o povo que deve ser santo estão 26) . Os dois parceiros da aliança são reidentificados
em casa na aliança única. Os pães da mesa da pro­ e reafirmados (cap. 24). O capitulo 27 toma-se outro
posição representam o povo (Lv 24,5-9), com seis capítulo-ponte, mas, ao contrário do 16, essa ponte
pães em cada uma das duas pilhas sobre a mesa está apenas parcialmente construída.
pura. As pilhas servem de memorial das doze tribos, 25,1-22 O ano sabático e o jubileu. Durante o
140 da mesma forma que as duas pedras de berilo com sétimo ano, a terra terá descanso completo (25,4),
L E V ÍT IC O 2 5

será um sábado para o S en h o r . Até a terra é santa e, final sobre o resgate de propriedade no capítulo 25
como 0 S e n h o r separou o sétimo dia, assim a terra e o material do capítulo 26, que era a maneira co­
é confirmada santa no sétimo ano. No sétimo mês do mum de encerrar um tratado de aliança.
quadragésimo nono ano e continuando no qüinqua- 25,23-55 Resgate de propriedade. O calen­
gésimo, a celebração se chama jubileu, “o ano do dário perfeito (santo) é apresentado na primeira
chifre do carneiro”. Pensamos em jubilação. Neste parte do capítulo 25, seguido pela atividade sagra­
dia do Grande Perdão, a trompa é tocada para convo­ da do ano santo do jubileu (w. 23-55). Os resulta­
car a reunião sagrada. A palavra para chifre (shofar) dos pretendidos pela Lei deviam ser: o S e n h o r reco­
também tem o significado de remover o véu para ver nhecido como rei (vv. 23.55); a riqueza redistribuída
a beleza da mulher ou ver o céu azul claro quando a a cada jubileu (vv. 6.7); famílias (v. 10), a terra
nuvem se vai. Diz 25,10; “Declarareis santo o qüin- (vv. 2-4) e todos gozando de liberdade (vv. 10.54);
quagésimo ano e proclamareis na terra a libertação a terra dando fruto (v. 19) por si mesma (v. 11);
para todos os habitantes; será para vós um jubileu”. todas as dívidas canceladas (vv. 36.37); o pobre res­
O povo está livre e volta para suas famílias gatado (vv. 25.35.39.47.48) — tudo e todos com­
(25,10). Não há mais semeadura nem ceifa (v. 11). pletos na vida de santidade. Observe que a terra
Se obedecerem, habitarão com segurança (não mu­ permanece propriedade do Santo. “A terra não será
dando de lugar, como no deserto, v. 18). A terra dará vendida em caráter perpétuo, pois a terra é minha;
seu fruto. Terão comida em abundância, a fim de não passais de migrantes e moradores em minha
viver sem preocupações (v. 19). Haverá colheitas propriedade” . (Mais tarde, podeis tomar-vos meus
por três anos e até no nono ano comerão da antiga filhos, mas por ora sois meus locatários.) “Por isso,
colheita, porque teve início a aliança eterna na vida em toda essa terra que tereis em posse, concedereis
de santidade. 0 direito de resgate sobre as terras” (vv. 23.24).
Em 24,17-21, vimos o aspecto legal da Lei da Isto é, se permanecem na vida de santidade, preci­
Santidade naquilo que costuma ser citado como a sam reconhecer o S enhor como o proprietário ori­
lei do talião ou da retribuição — olho por olho, ginal, a fonte de vida.
dente por dente, vida por vida etc. Três códigos da O S e n h o r já ordenara e participara da limpeza
Torá mencionam este equilíbrio humano de justiça e da purificação do santuário, da tenda do encontro
(Ex 21,24; Lv 24,17-21; Dt 19,21). À medida que e do altar, bem como dos sacerdotes e de todo o
continuamos a ler a Lei, começamos a sentir a jus­ povo da comunidade (16,20.23). Agora é dada outra
tiça de Deus em harmonia com o amor incondicio­ ordem. Ao contrário da ordem negativa de Gn 2,17
nal. Certa santidade começa a entrar em situações (cf. também Gn 3,22): “Mas não comerás da árvore
da vida real, concedida incondicionalmente por do conhecimento do que seja bom ou mau”, há a
Deus. Certa estabilidade e integridade de todos os ordem positiva para compartilhar a vida de santi­
relacionamentos de vida alcançam os que, em obe­ dade; “Sede santos”.
diência, reconhecem o Deus santo único como a Embora não possamos com certeza separar as
fonte de vida e vivem de acordo com a Lei. diversas tradições entrelaçadas no Levítico, pode­
Aqui não estamos lidando apenas com lembran­ mos reconhecer situações várias na narrativa e che­
ças ou esperanças vãs, mas com diretrizes morais gar a algumas conclusões quanto a sua mensagem
que dão pulsação e energia à vida real. São dinâ­ na época da redação final. Por exemplo, cidades
micas de apoio vital da celebração da integridade muradas e lugarejos ao ar livre recebem atenção
(santidade) de vida. São as vértebras da aliança aqui, e em todo o Levítico é dada ênfase à Morada
divina-humana. Escravidão e exílio ainda são a con­ itinerante. Tais referências sugerem diferentes épo­
dição humana de membros infiéis da aliança, mas cas cronológicas do desenvolvimento de Israel. Con­
a presença perseverante e amparadora do Santo está tudo, por trás dessas observações e da estrutura or­
atuante no meio do povo (Lv 26,44.45). denada dos preceitos e diretrizes, vemos a verdade
É até aqui que o livro do Levítico nos traz na de Lv 25,23; Deus é o dono da terra e da proprie­
Torá do Santo. dade; o povo compõe-se apenas de migrantes que
Alguns comentaristas referem-se a essas seções se tomaram moradores.
posteriores como retrato de uma vida ideal. Isso é 25,25 Resgate de propriedade. Depois de re­
verdade, mas a vida de santidade nunca teve o propó­ conhecer que o S e n h o r é dono da terra e da proprie­
sito de permanecer apenas como ideal. Quando foi dade, os pobres vêm primeiro, para o bem da famí­
dada a Torá, com o Levítico em seu coração, o mun­ lia (vv. 23-28). Quando lemos os vv. 23-55, é como
do recebeu o plano de levar uma vida santa. se o proprietário estivesse se preparando para resga­
A forma final da santidade começa a se concre­ tar a morada no meio do povo no deserto. O capí­
tizar. As peças restantes logo serão colocadas no tulo 27 vai expandir essa idéia do plano de resgate.
lugar. Este capítulo da obra da Lei em cinco volumes O capítulo 26 parece dizer; “Faça sua escolha, mas
está prestes a completar sua mensagem. só há uma escolha certa, se quiser viver a vida de
Antes de considerar a ponte parcialmente cons­ santidade. Se escolher obediência ou desobediência,
truída (cap. 27), precisamos examinar uma nota eis as respectivas consequências!” 141
LEViTICO 26

263-13 “Vivei de acordo com meus preceitos”. da aliança se encontram e se preparam para o clímax
Se a pessoa obedecer a esses preceitos da vida de do relacionamento da aliança na vida de santidade
santidade e aos mandamentos (na verdade, a Lei da (Lv 27). O capítulo 27 descreve apenas o início da
Santidade no capítulo 19 inclui os mandamentos da vida perfeita e, por essa razão, é “um capítulo-
aliança de Ex 20), então acontecerão todos os tipos ponte aberto”. A vida de santidade perfeita começa
de experiências vivificantes (vv. 3-13). “Se obede­ com a aceitação e a prática da Lei da Santidade.
cerdes, porei a minha morada no meio de vós; não
terei aversão a vós” (w . 11-13).
PARTE V:
26,14-46 Castigo pela desobediência. Se os
membros da comunidade forem infiéis, acontecerão TARIFAÇÃO DAS PROMESSAS
coisas terríveis (w. 16.17). Se ainda desobedecerem, Lv 27
coisas terríveis acontecerão ao mundo em que vivem
Compreende-se por que muitos comentadores
(w. 19.20). Se se tomarem desafiadores, as coisas
tratam este último capítulo como apêndice ao Le­
ficarão sete vezes piores (a cada vez, nos w. 18.21.
24.28, 0 castigo aumenta sete vezes), até serem for­ vítico. Dá a impressão de uma reflexão tardia, acres­
çados a comer os próprios filhos (v. 29). Essa situa­ centada mais tarde por causa de sua importância.
ção calamitosa podia acontecer para a sobrevivência O significado de Lv 27 é tão simples que pode ser
ao cerco de cidades muradas. Em sua luta desafiado­ facilmente esquecido: confirma Deus e o povo co­
ra para sobreviver, eles próprios revogariam os resul­ mo membros fiéis da aliança. Seu caráter liberal
tados (filhos) de sua aliança com a Fonte de Vida. sugere que a aliança divina-humana ainda está na
Ocorrería um colapso completo nas relações de Deus etapa da promessa.
e do povo, com a totalidade da vida sendo subvertida Alguns podem ser tentados a ler no texto como
na morte e no exílio (w. 30-33). razão do final aberto o fato de que o Messias-Reden-
2634 A terra cum prirá seus sábados perdi­ tor ainda não viera. Isso seria uma suposição além
dos. E o plano de castigo que Deus incorporou ali. do que o Levítico contém. A concentração ainda é
Enquanto o povo está no exílio, a terra descansa. em Deus como criador de vida e Moisés como inter-
Tudo pára. Os sábados precisam ser guardados e os cessor-legislador, que apresenta as regras de conduta
preceitos, seguidos pelo povo, ainda que com relu­ da aliança do Sinai. O Levítico reafirmou a aliança
tância. O cumprimento dos sábados é feito para Deus do Sinai ao acrescentar a nova dimensão de santidade
e o povo nada pode fazer a respeito. O v. 36 volta no sentido de perfeição. O povo deve agora se tomar
à ameaça do v. 17. Finalmente, um dia “o coração plenamente vivo (santo).
incircunciso deles se humilhará e o castigo deles se O segredo para entender o capítulo 27 está no
cumprirá” (v. 41). Deus recomeçará com o povo. significado do voto/promessa. Começa com a dedi­
Deus é santo e se lembra da aliança feita com os cação de toda a criação a Deus: pessoas (vv. 2-8);
ancestrais deles (v. 42). O exílio, na verdade, dá à gado (vv. 9-13); casas (vv. 14.15); terra hereditária
terra e ao povo tempo para descansar (v. 43). A terra (vv. 16-24). O capítulo termina com a devolução
contaminou-se quando o povo se contaminou por de tudo a Deus, no dízimo (vv. 26-34).
sua desobediência. Agora ambos estão desolados, co­ No capítulo anterior, o parceiro divino da alian­
mo descanso para a terra e castigo para o povo (v. 43), ça explicou as conseqüências, boas ou más, da obe­
até que se passe um tempo igual aos sábados conta­ diência ou desobediência do parceiro inferior. Aqui,
minados. A terra é santa porque também pertence o Santo respeita o livre-arbitrio do parceiro humano
ao S enhor (25,23). Sempre que a terra é contamina­ e indica o caminho de respeito pelo parceiro divino.
da (poluída), fica desolada. É muito antiga a prática de fazer um voto à
O amor divino é incondicional, pois o Santo divindade, a fim de receber um favor ou cura. En­
não permite que a aliança seja invalidada, embora tretanto, estamos lidando com uma idéia mais bási­
Deus seja o único fiel que resta (vv. 44.45). Esse ca: a santidade de vida. O voto e seu resgate, junto
amor incondicional está sob, atrás e em tomo da Lei com a prática do dízimo, confirmam a vida santa.
da Torá. O livro do Levítico tomou-se agora o co­ Como oferenda espontânea, o voto confirma a vida
ração inserido na Torá e, com seu vivo batimento humana. O dízimo confirma a vida divina.
da Lei da Santidade, o povo de Deus vê-se outra No capítulo 27, Deus confirma o livre-arbítrio
vez convidado a compartilhar a vida do Santo. humano e dá condições pelas quais a oferenda votiva
Em toda a leitura do Levítico foi enfatizado este pode ser resgatada. São considerados todos e tudo
simples esquema: obediência (caps. 1-27), purifi­ na criação. O significado do voto chega à própria raiz
cação (caps. 8-27) e santidade-santificação (caps. da vida. De certo modo, todo voto a Deus é promes­
17—27). A obediência persiste como requisito. A sa de levar uma vida santa. Deus quer que a criatura
obediência da parte humana da aliança é exigidh e esteja plenamente viva, isto é, seja santa. Em Gn
possibilitada por Deus. A purificação do relaciona­ 1,26.27, a criatura é criada à imagem e semelhança
mento alcança seu anticlímax no capítulo sobre o de Deus, capaz de assegurar a própria liberdade. O
142 dia do Grande Perdão (Lv 16). Aqui os membros resgate da vida em toda a criação precisa ser feito
L E V ÍT IC O 2 7

de acordo com os termos divinos. O sacerdote esta­ dos no capítulo 27 para confirmar e assegurar a
belece o preço, mas os termos estão de acordo com presença contínua de Deus. O dízimo toma-se o vão
as regras do jubileu, a celebração vivificante de Deus da ponte que colocamos no lugar, embora construí­
(vv. 17.18.21.23.24). Deus, então, permanece a fon­ da de material pertencente ao S e n h o r .
te de vida e santidade. Precisamos repensar nossa definição de dízimo.
Certas oferendas não podem ser resgatadas; o Não estamos falando de um décimo no sistema de­
(animal) primogênito e, na outra extremidade da vida, cimal. Na criação do mundo, o dízimo era o séti­
os votados a morrer (w. 26-29). Confirmam Deus mo dia. Cada um dos seis dias de criação é formado
como a fonte definitiva de vida. Aqui há um refina­ das coisas criadas do dia anterior mais suas obras.
mento da dedicação de Ex 13. Entre os israelitas, O sétimo dia foi consagrado (Gn 2,3). O sétimo dia
todo primogênito que abre o ventre de humanos e do plano da criação tomou-se um mundo em minia­
também de animais, pertence ao S e n h o r . Não pode tura, santo e completo, uma expressão adequada
ser objeto de voto (dependente do livre arbítrio hu­ da dádiva do mundo pelo criador. O dia do S e n h o r
mano). Ainda atua como lembrete da morte dos pri­ é um dia santo. E a forma original do dízimo. “Sé­
mogênitos dos egípcios que não quiseram reconhe­ timo” e “descanso completo” vêm da mesma raiz
cer o S e n h o r como a fonte de vida (Ex 13,14-16). hebraica. O sétimo dia é o dia de perfeição.
A morte ainda é a condição humana (Gn 3,19), mas Dt 14,22-29 dá o toque final no entendimento
agora a ênfase está na dedicação e na redenção. do dízimo. “Todo ano, separarás o dízimo de todo...
27,28-29 “Todo homem votado ao interdito”. Na presença do S e n h o r , teu Deus, no lugar que ele
A palavra hebraica para “interdito” no v. 28 também houver escolhido para nele fazer habitar o seu no­
tem o sentido de “dedicado”, isto é, “separado para me, comerás o dízimo...; assim aprenderás a temer
o S e n h o r ” . S ó Deus tem controle sobre o ser huma­ o S e n h o r , teu Deus, todos os dias” (Dt 14,22-23).
no, o animal ou a terra que se tomou coisa santíssima Em 14,26, depois de fazer provisões para todos, o
(dedicada). Em um paralelo dos dias atuais, as pes­ Deuteronômio os orienta para que participem do dí­
soas que estão no corredor da morte estão condena­ zimo e se alegrem com suas famílias.
das a morrer, mas é possível fazer uma apelação à O Deuteronômio continua o preceito: “Cada
autoridade superior. Outro significado da palavra é três anos, separarás todo o dízimo... daquele ano,
“pessoas dedicadas a Deus por voto solene”. Na mas o deporás em tua cidade, então virão o levita...,
ordem da santidade, estão no “corredor da vida”. E 0 estrangeiro, o órfão e a viúva... e comerão à
vontade do parceiro divino da aliança que todos vontade” (14,28-29). Que todos gozem plenamente
vivam. A vida, não a morte, é a vontade de Deus. A a vida de santidade.
morte veio ao mundo por causa do membro humano O pagamento do dízimo está em partilhar a re­
da aliança (Gn 3) e ainda está presente na comuni­ feição (o Santo e os chamados a ser santos) com os
dade dos membros humanos da aliança. Entretanto, pobres para que todos possam ter vida plena. É a
0 parceiro divino pode desempenhar o papel de par­ vida de santidade, vida que está sendo vivida hoje
ceiro inferior e depois restaurar a vida à condição na Páscoa-Eucaristia, a celebração da redenção do
humana. Primogênito. Reunidos com os autores do livro do
27,30-33 A santidade dos dízimos. A explica­ Levítico, na ponte parcialmente construída para a
ção acima é apenas parcial. Em um capítulo-ponte Morada do Santo Nome, começamos a ouvir o cân­
inacabado, esperamos apenas respostas parciais. Co­ tico de celebração; “Santo, Santo, Santo é o S e n h o r
mo em Gn 28, o voto e o dízimo são agora reuni­ dos exércitos! Toda a terra está cheia de sua glória!”

143
NÚMEROS
Hel eno K e ni k M a in e l l i

INTRODUÇÃO
livro dos Números, quarto livro do Pen- Números. Todas as diretrizes de Nm 1-10, por
tateuco, tem esse nome porque contém exemplo, são comunicadas a Moisés no Sinai.
dois recenseamentos das tribos israe­ Além disso, do Sinai há uma volta à criação.
litas (1,20-46 e 26,5-51) e dos levitas A lei do sábado, dada no Sinai (Ex 31,12-17), liga-
(3,14-51 e 26,57-62). Também inclui -se ao evento da criação (Gn 2,2-3).
listas de diversos tipos, algumas com números: dos
chefes de família que assistem no recenseamento O s autores sacerdotais e suas platéias
(1,5-15), de presentes trazidos para a dedicação do A história primitiva recebeu a forma final no
altar (7,10-83); dos enviados para explorar a terra século VI a.C. de sacerdotes preocupados com a
(13,4-15); de oferendas a serem trazidas para os dias restauração do culto no Templo. Por isso a obra é
de festa e festivais (28,1-29,38); e uma dos despe­ chamada Sacerdotal, ou P (Priestly). Os autores
jos capturados dos midianitas (31,32-52). Embora o eram da família de sacerdotes, filhos de Sadoq,
nome “Números” seja adequado a parte do conteú­ que obtiveram a liderança entre o povo deslocado
do, não indica com exatidão a história narrada no do Exílio (século VI a.C.) e motivaram esse povo
livro. a centralizar sua vida no culto do S e n h o r . Escre­
Em Números, a narrativa começa no deserto veram a história especificamente para dar aos israe­
do Sinai, logo depois do evento da aliança, e termi­ litas exilados esperança e consolo baseados na lem­
na quarenta anos mais tarde com o povo esperando brança dos atos divinos. Incentivaram os exilados
na planície de Moab para entrar na Terra Prometida. a se lembrar dos acontecimentos antigos, em espe­
É a história do povo de Deus enquanto caminha cial as maneiras pelas quais Deus estava presente
pelo deserto por quase quarenta anos sob a liderança entre o povo, o conduziu e cuidou de sua subsistên­
de Moisés e Aarão. cia em seus anos formativos.
A questão fundamental é a presença do S e n h o r Os sacerdotes escreveram a história de Deus
com o povo enquanto este caminha pelo deserto. com Israel, para pessoas cujas identidade e fé, como
Deus caminha com eles e dirige suas vidas. De sua as nossas, eram questionadas em face de dramática
parte, o povo com freqüência murmura e se rebela; revolução política, cultural, social e religiosa. Des­
provoca o julgamento divino e busca o perdão. pertaram as pessoas a procurar por trás das institui­
O livro dos Números é a última parte da narra­ ções falidas aquele tempo primitivo do relaciona­
tiva que começa no Gênesis com a criação e conti­ mento amoroso de Deus na aliança, para redescobrir
nua no Êxodo com a libertação e a eleição do povo os benefícios da dependência e da obediência. Os
de Deus. Enquanto o lermos, nos lembraremos con­ sacerdotes especificaram os caminhos da presença
tinuamente que esta é apenas uma parte da narrati­ divina naquela época primitiva, para que o povo pu­
va contínua identificada como a história primitiva. desse redescobrir Deus em seu meio de novas manei­
ras em uma nova era. Eles transmitiram uma palavra
A organização da história primitiva de esperança e incentivo para todos nós em nossas
A história primitiva divide-se em eras: as idades experiências do deserto, para sabermos que outros
de Adão, Noé e os ancestrais de Israel (Gênesis); a caminharam antes de nós sob a proteção e a liderança
era do deslocamento de Israel do Egito para o Sinai do S e n h o r .
(Êxodo) e a era do deslocamento de Israel do Si­ Os sacerdotes transmitiram tradições do passa­
nai para o limiar da Terra Prometida (do Êxodo a do de Israel. Não eram autores que inventaram his­
Números). tórias, nem historiadores com a intenção de relatar
O evento do Sinai está no centro. O que come­ acontecimentos passados. Eram escritores que cole­
ça no Êxodo com o Sinai continua no livro dos taram antigos documentos, listas, relatórios e nar- 145
NÚMEROS

rativas, e os revisaram e organizaram em um relato intermédio de Moisés (Ex 29,42; Nm 1,1; 2,2; 3,7-8
de Deus com o povo, que ao mesmo tempo narrava etc.). A tradição sacerdotal às vezes usa “tenda do
a história do passado e tratava das necessidades das Encontro” como metáfora para a Morada, o lugar
gerações contemporâneas. Eram escritores que se onde é revelada a glória do S e n h o r ( c f Nm 16,19).
lembraram do passado e transmitiram fundamentos Arca é identificada pelo autor sacerdotal como
de tradição para estabelecer a base da nova identi­ “arca da aliança” (Nm 10,33), “arca do Documento”
ficação do povo de Deus. (Nm 4,5) e “arca do testemunho” (7,89). Na tradição
primitiva, a arca era o lugar sobre o qual se acreditava
A teo lo sia sacerdotal que o Senhor estava presente de forma invisível. Este
A seleção e a organização de material tradicio­ instrumento da presença do S enhor foi reinterpretada
nal na narrativa foram determinados pela teologia pelos sacerdotes como o recipiente para guardar o do-
das alianças. Os sacerdotes pesquisaram as alianças eumento da aliança. Na tradição sacerdotal, a alian­
desde o início da história israelita e, ao fazê-lo, en­ ça é representada pelo Decálogo ou as tábuas da lei
fatizaram a perpetuidade do relacionamento entre (cf Ex 25,16.21.22).
Deus e o povo. A aliança do S enhor é eterna. As Santuário é usado para falar sobre o lugar san­
alianças com Noé (Gn 9,1-17) e Abraão (Gn 17,1­ tíssimo, local da arca e da tenda do Encontro, onde
27) prepararam o caminho para a auto-revelação 0 S enhor habita entre o povo. É palavra geral para
definitiva de Deus a Israel no Sinai, aliança que “lugar santo” e usada altemadamente com “Morada”.
perdurou até o Exílio e além dele. Comunidade refere-se ao povo da aliança e a
No Sinai, a aliança deu origem a um beneficio — toda a família do povo de Deus. Os sacerdotes consi­
a presença do S enhor no meio de Israel. A glória do deram Israel uma congregação, no sentido de um
S enhor permaneceu sobre o monte Sinai e continuou povo em adoração. Essa comunidade, que participa
presente entre o povo em aliança (Ex 24,16; 25,8). O do culto e da adoração, receberá as bênçãos inerentes
autor sacerdotal escolheu as palavras com muito cui­ à eterna aliança (cf Nm 1,2.16.18; 3,7 etc.).
dado. Aqui o verbo traduzido por “permaneceu” signi­ “Eu sou o S enhor” é fórmula de reconhecimen­
fica literalmente “acampaf’ ou “perambular no meio to que identifica Deus como o libertador do povo da
de”. Não era uma presença no sentido estático da escravidão no Egito e, portanto, como o Deus que
proximidade em um santuário. Os sacerdotes lembra­ escolheu Israel para um relacionamento especial:
ram-se dos dias era que o S enhor, presente na arca e Eu sou o Senhor .
na tenda, movia-se com o povo. Ligando a idéia do Eu vos farei sair das corvéias do Egito....
Senhor “acampando” ou “se movendo entre” a diver­ Tomar-vos-ei como meu povo, e para vós eu serei
sas fórmulas de aliança, chegam ao ponto teológico Deus (Ex 6,6a.7a).
fundamental em toda a narrativa;
O autor sacerdotal usa essa fórmula de reconhe­
Morarei entre os filhos de Israel e, para eles, serei
cimento em toda a narrativa para levar o povo a re­
Deus. Reconhecerão que eu, o S enho r , sou o seu
conhecer que 0 S enhor Deus que agiu no passado
Deus, eu que os fiz sair da terra do Egito para
continua a estar presente e ativo em benefício do
morar no meio deles (Ex 29,45-46; cf. Lv 26,11-13
povo da aliança (cf Nm 3,13.45; 35,34).
e Jo 1,14).
A spectos estilístico s na edição sacerdotal
Vocabulário específico usado na edição
Os sacerdotes apresentam seu material em formas
sacerdotal padronizadas, úteis para o leitor reconhecer algumas
Glória do S enhor é a designação característica das peculiaridades literárias. Dividimos esse comentá­
para o Deus que se revelou em majestade e poder. rio em capítulos, por exemplo, com base no uso que
A fonte sacerdotal usa a expressão “glória do S enhor” os autores sacerdotais fizeram da fórmula de viagem.
sempre que fala sobre Deus realmente presente e O conteúdo do livro está colocado nos diversos seg­
manifesto (cf Nm 16,19; 17,7). mentos do esquema de viagem.
M orada é a palavra-chave da teologia sacerdo­ Fórmula de viagem. A caminhada pelo deserto
tal. Derivada do verbo “acampar” ou “andar no meio começa no Sinai e termina em Moab, em uma se-
de, como morador de tenda”, essa idéia indica mobi­ qüência de etapas. Em momentos precisos, o autor
lidade e proximidade, além de santidade e transcen­ sacerdotal insere a fórmula “Os filhos de Israel par­
dência. Foi a palavra escolhida pelo autor sacerdotal tiram de... e acamparam em...” para indicar o movi­
para indicar o lugar da presença de aliança do S enhor mento de lugar para lugar. Depois dos acontecimen­
e dá a idéia de que o S enhor está sempre presente tos no deserto do Sinai (Nm 1,1-10,10), o povo ca­
entre o povo (cf. Nm 1,50-53). Essa palavra espe­ minha do Sinai para o deserto de Paran (10,12); do
cial abrange todas as outras designações para a pre­ deserto de Paran para o deserto de Sin em Qadesh
sença do S enhor: tenda, arca, lugar santo etc. (20.1) ; de Qadesh para Hor-a-Montanha (20,22); de
T enda do encontro refere-se ao lugar tradicio­ Hor-a-Montanha para o deserto em frente de Moab
nal do encontro do divino com o humano. É o lugar (21,10-11) e, finalmente, para a planície de Moab
146 onde o Senhor se encontra e fala com o povo por (22.1) , onde permanecem no fim do livro.
NÚMEROS 1

A viagem do Sinai para Moab acontece em Deus se zanga e castiga; 3) o povo clama por aju­
seis etapas. A viagem do Egito ao Sinai também. da; 4) Moisés intercede a favor do povo; 5) o S e­
A fórmula de viagem ocorre em Ex 12,37a; 13,20; n h o r responde dando alívio do castigo. Este pa­

14,1-2; 15,22a; 16,1 e 17,1a. Essas doze etapas cor­ drão ocorre nas narrativas em Nm 11,1-3; 12,2.9-
respondem a uma antiga tradição sobre a viagem, 16; 17,6-15; 21,4-9.
que o autor sacerdotal preserva em Nm 33,5-49.
A p alavra de Deus falada e obedecida.
Moisés é apresentado no livro dos Números como ESQUEA4A DO LIVRO
exemplo de líder que cumpre fielmente a palavra 1, 1- 10,10
de Deus. É útil notar a fórmula típica: “O S enhor No deserto do Sinai: Preparativos para a viagem
disse a Moisés: ‘Faça assim e assim’. Moisés fez co­
mo 0 Senhor lhe havia ordenado” (cf. Nm 1,1.18-19; 10, 11- 22,1
3,14-15.40-42 etc.). Na viagem do Sinai a Moab
Ciclo de rebelião, castigo, perdão. Uma das Acontecimentos no deserto de Paran
intenções do autor sacerdotal é esclarecer a histó­ (10,11-19,22)
ria da infidelidade de Israel. Para fazer isso, em­ Ultimas paradas ao longo do caminho
presta tradições de infidelidade e fixa os inciden­ (20, 1- 22, 1)
tes em um padrão narrativo previsível. Cada narra­ 22,2-36,13
tiva tem estes elementos; 1) o povo se queixa; 2) Na planície de Moab: Preparação para a vida na terra

COAAENTARIO
NO DESERTO DO SINAI: PREPARATIVOS vadas por membros da escola sacerdotal para cons­
PARA A VIAGEM truir de maneira ideal essa experiência primitiva.
Mais importante para os sacerdotes é a mensagem
Nm 1,1-10,10 de esperança contida na memória do passado. O re­
Os capítulos iniciais do livro dos Números des­ lato apresenta a comunidade exílica com um modelo
crevem acontecimentos que acontecem enquanto o que tem o S e n h o r no centro e o povo como comu­
povo está acampado no Sinai. Estão se aprontando nidade em adoração, organizada em tomo da mora­
para a grande marcha à Terra Prometida. Primeiro, da. Os preceitos esclarecem responsabilidades para
é realizado um recenseamento (cap. 1) e o povo é os sacerdotes, os líderes e o povo para que pos-sam
organizado em tomo da morada, com a presença ser santos dentro da organização da nova comunidade
do S enhor entre eles (cap. 2). Em seguida há uma de fé.
contagem dos levitas que têm o dever principal de 1,1-3 O recenseamento. O cenário é o deserto
cuidar da morada (cap. 3) e uma descrição de suas no sopé do monte Sinai, onde o S enhor e Israel
funções (caps. 4 e 8). Segue-se uma série de pre­ celebraram o relacionamento de aliança singular.
ceitos que asseguram a santidade do acampamento Ali, segundo a ordem do S e n h o r , Moisés erigiu a
(caps. 5 e 6). Há então uma listagem das oferendas Morada e colocou a arca na tenda do Encontro no
pelos chefes/líderes para servir à morada no trans­ primeiro dia do primeiro mês do segundo ano de­
porte (cap. 7), com preparativos finais para sair do pois que os israelitas saíram da terra do Egito (Ex
acampamento: as luzes são acesas na morada (8,1- 40,2.17-19; cf. 19,1).
4) e é dada orientação para a jornada pelo deserto O S e n h o r fala a Moisés nesta tenda do Encon­
(9,15-23). A segunda Páscoa é celebrada para lem­ tro, um mês mais tarde, no primeiro dia do segun­
brar que um ano se passou desde a libertação do do mês deste segundo ano depois do Êxodo (v. 1),
Egito (cap. 9) e as trombetas de prata soam para dar ordenando-lhe que faça um recenseamento do povo.
0 sinal da partida (10,10). A ordem afirma de forma especifica que os filhos
Estes capítulos foram escritos pelos sacerdotes de Israel devem ser registrados individualmente e
no período exílico, quando a comunidade precisava também de acordo com seus clãs na linha paterna
de instruções relativas a sua circunstância atual. Ela (v. 2). São contados somente os varões de vinte anos
se via mais uma vez no deserto e se preparando para para cima. Vinte anos é a idade na qual uma pessoa
a volta à terra natal. A visão de uma comunidade do sexo masculino toma-se adulta e, portanto, su­
organizada em tomo da morada abrange ao mesmo jeita a todos os deveres religiosos, inclusive a parti­
tempo aquela primeira entrada na Terra Prometida e cipação no serviço militar (v. 3).
esta nova época de espera para a volta à terra. O recenseamento assinala a preparação inicial
Estes dez primeiros capítulos contêm lembranças para a grande peregrinação à terra prometida. O
da vida no deserto. São tradições antigas preser­ S e n h o r indicou Moisés como líder da grande mar- 147
NÚMEROS 1

cha. Deve ser ele o representante do povo diante de mento (2,3-31). Como chefes das forças militares,
Deus e aquele por intermédio de quem Deus fala ao conduzem o povo na viagem que partiu do deserto
povo. A fórmula: “O S e n h o r falou a Moisés” (v. 1) do Sinai (11,13-28).
é repetida mais de oitenta vezes no livro. A impor­ Não se sabe ao certo se os nomes dos chefes
tância de Moisés não pode ser enfatizada o bastante. das tribos sobreviveram de um tempo primitivo ou
Em continuidade com a tradição do Êxodo (Ex 24; se são nomes de chefes do período pós-exílico. Co­
32), Moisés será ajudado no papel de liderança por mo alguns dos nomes aparecem em 1 e 2 Crônicas
seu irmão Aarão: “Tu e Aarão recenseai...”. O papel (cf ICr 6,12; 7,26; 12,3.10; 15,24; 24,6; 2Cr 11,18;
dominante de Aarão se expandirá no decorrer do 17,8; 35,9 etc.), que vêm do tempo em que o Tem­
livro. plo foi reconstruído, presumimos que esses homens
l,4-19a Auxiliares de Moisés: doze chefes de eram chefes verdadeiros, conhecidos dos sacerdotes,
Israel. Para ajudar Moisés e Aarão com o recen- não uma lembrança de chefes do tempo da estada
seamento, um homem que ocupa posição de auto­ no deserto.
ridade em cada unidade tribal é designado para A lista das doze tribos encontrada nos vv. 5-15
realizar a contagem em seu clã (v. 4). Esses indi­ é uma das importantes genealogias do povo e reflete
víduos têm autoridade que se estende a todas as as regras de protocolo na hierarquia tribal. Ela segue
dimensões da vida. São “delegados” ou represen­ a seqüência de nomes registrada primeiro em Gn
tantes da comunidade de culto, “chefes” dentro da 35,22b-26 na narrativa do nascimento dos filhos
família e “chefes” das forças militares (v. 16). Como de Jacó, com variações que refletem as necessidades
representantes dentro da comunidade de culto, esses do período posterior. Segundo o protocolo, os filhos
líderes apresentam oferendas para a dedicação do das mulheres legítimas sempre têm precedência
altar (7,10-88). Como chefes em suas respectivas sobre os filhos das servas. As listas apresentam-se
famílias, são responsáveis pela ordem no acampa­ assim:

Gn 35,22b-26 Nm 1,5-15
Filhos de Jacó e Leá: Rúben Rúben Porque em Números a tribo de Levi
Simeão Simeão é relacionada separadamente (cf.
Levi 1,47-54), Levi foi omitido da lista.
Judá Judá
Issacar Issacar
Zabulon Zabulon
Filhos de Jacó e Raquel: José Efraim Para conservar a contagem de
Benjamin Manassés doze, a tribo de José foi dividida nos
Benjamim dois filhos (cf. Gn 48,1).
Filhos de Jacó e Bilá, serva de Raquel: Dan
Neftali Dan
Aser
Filhos de Jacó e Zilpá, serva de Leá: Gad Em todas as listas em que os filhos
Aser Gad de José são relacionados separada-
Neftali mente, os nomes Neftali e Aser inver-
tem a posição, por razão desconhe-
cida (ef 13,4-15).

Existe outro modelo para a listagem das tribos va sacerdotal. O registro da contagem do recensea­
que examinaremos quando comentarmos a distri­ mento é típico da linguagem padronizada. Cada uma
buição das tribos no acampamento e na caminhada das doze tribos, com sua contagem de membros ho­
(cf. 0 cap. 2). mens, é descrita em retórica estilística, primorosa-
No próprio dia em que o S en h o r instrui Moisés mente captada na tradução. Observe que a narração
e Aarão para fazer o recenseamento, isto é, no pri­ esquematizada tem uma introdução: “Moisés os re-
meiro dia do segundo mês (v. 18; c f v. 1), são nome­ censeou” (v. 19b), e uma conclusão (vv. 44-45), que
ados os assistentes e começa o recenseamento. Cada reitera as fórmulas para indicar que a ordem divina
varão adulto é registrado conforme o S en h o r ordena­ foi cumprida com exatidão. A apresentação estilizada
ra (w. 18b-19; c f w. 2-3). Assim, acontece o recen­ tem duas funções: 1) dá ênfase ao grupo incluído no
seamento, com Moisés, Aarão e os chefes tribais obe­ recenseamento — adultos varões aptos para o servi­
decendo à palavra de Deus. ço militar, registrados em suas tribos individuais na
l,19b-46 Contagem das doze tribos. Estrutura linhagem paterna; 2) destaca os nomes dos indiví­
148 rígida e expressão preceitual caracterizam a narrati­ duos e 0 tamanho de cada grupo.
NÚMEROS 2

A ordem em que as tribos são apresentadas cessor na tenda, bem como o chefe designado do
segue o padrão que descrevemos acima. A única povo a caminho da terra.
variação da lista dada nos vv. 5-15 é a substituição A palavra do S e n h o r vem a Moisés e Aarão (v.
da tribo de Levi por Gad. A repetição do padrão 1) com a ordem para que o povo rodeie a tenda do
exato dá-nos uma idéia da confiança dos sacerdo­ Encontro, guardando certa distância, e se agrupe
tes nas informações tradicionais ao relatar a lem­ conforme as divisões de clã e família do recensea­
brança daquele tempo primitivo no deserto a fim mento (v. 2). As tribos devem ser arrumadas em
de manter a fé do povo em sua passagem atual de formação precisa, três de eada lado, em tomo da
um deserto exílico. tenda do Encontro (cf. a página seguinte). Os levitas
O total de 603.550 no v. 46 — bem como os situam-se no centro para separar os israelitas da
números dados para as tribos individuais — dificil­ tenda da presença do S e n h o r ( v. 17a; cf. também
mente pode ter precisão histórica. O que era lembra­ 3,23.29.35.38).
do daquele período idilico no deserto era o grande O lado leste do acampamento é o mais proe­
número de ancestrais que povoaram a terra e o minente, pois defronta-se com o sol nascente em
orgulho da história nacional que teve início nas frente da tenda. Ao nos mover para a direita a partir
experiências do deserto-Êxodo. Embora idealizada do leste, descobrimos a posição relativa das tribos.
e exagerada, a lembrança desse passado glorioso É dada prioridade à tribo de Judá e a posição menos
nutre um povo para quem a esperança de um futu­ importante é dada a três tribos que remontam seu
ro se constrói na lembrança do passado. nascimento às servas das esposas de Jacó (cf. Gn
1,47-54 Os levitas. Por lhes ser designado o 35,25-26).
cuidado do santuário, os levitas não estão incluídos A ordem das tribos difere ligeiramente das listas
no recenseamento daqueles aptos para o serviço mi­ do recenseamento em 1,5-15 e 20-43. Começa com
litar (v. 47). Seus deveres são carregar a Morada, Judá, em vez de Rúben.
cuidar dela e acampar em tomo dela (v. 50). Só eles 1,20-43 2,3-31
podem desmontá-la e montá-la novamente enquanto Rúben Judá
0 povo vai de um lugar para outro. A morte será o Simeão Issacar
castigo para todo profano que se aproximar da mo­ Gad Zabulon
rada (v. 51). Quando as tribos estão acampadas em Judá Rúben
tomo da Morada, os levitas formam uma espécie de Issacar Simeão
escudo para isolar o povo da presença divina (vv. Zabulon Gad
52-53). Efraim Efraim
A Morada é o lugar onde o S e n h o r está pre­ Manassés Manassés
sente com o povo, presença enraizada na aliança. Benjamin Benjamin
A expressão “morada do Documento” (v. 50) indi- Dan Dan
ca-a como o lugar onde se localiza a arca com os Aser Aser
mandamentos. Aqui há uma fusão das diversas tra­ Neftali Neftali
dições da presença divina, a fim de enfatizar o que
sempre foi verdade: Deus habita no meio do povo. Reunindo as tribos em grupos de três, vemos
Entregue aos cuidados dos levitas, a morada simbo­ que o grupo de Judá posiciona-se na frente do grupo
liza a presença do S e n h o r , não de forma concreta, de Rúben em ordem de statiis. A variação é impor­
mas pelo relacionamento da aliança. tante porque a tradição da preeminência de Judá
A tarefa designada para os levitas é o serviço na organização do acampamento persiste na ordem
da Morada. No v. 53, a frase “desempenharão o do culto (7,12-83) e na da caminhada (10,14-28).
serviço” vem do verbo “servir”, usado mais comu- Com essa ordem, o autor sacerdotal reflete uma si­
mente em contextos de culto. Significa realizar um tuação real de sua época Os exilados originavam-se
serviço meritório, honrar e cuidar do que é sagrado. do território de Judá e voltam ali para restabelecer
A tarefa dos levitas é uma espécie de desempenho Jerusalém como centro religioso para o povo. Assim,
contínuo de culto. a proeminência de Judá sugere a importância da re­
2,1-34 Acampamento em torno da tenda do gião meridional como o lugar onde o povo se esta­
Encontro. Agora que o recenseamento foi comple­ belecerá, bem como o novo Templo para a presen­
tado, o foco muda para a distribuição das tribos em ça do S e n h o r .
tomo da tenda do Encontro. Segundo a tradição, a Quando as tribos caminham, o fazem precisa­
tenda do Encontro era o lugar onde Deus se comu­ mente na ordem designada (v. 17b) — primeiro a
nicava com o povo por intermédio de Moisés (cf tríade de Judá (v. 9), em segundo lugar a de Rúben
Ex 33,7-11). A tenda do Encontro podia ser movi­ (v. 16), a de Efraim em terceiro (v. 24) e por último
da junto com 0 povo. Para onde quer que ele fosse, a de Dan (v. 31). Cada grupo consiste nos varões que
a voz do S e n h o r podia sempre vir até Moisés. No foram contados (v. 32) e cada um caminha sob as
discurso introdutório, o nome de Moisés precede o insígnias de sua tribo (v. 2). Tudo isso era feito “se­
de Aarão porque Moisés é tradicionalmente o inter- gundo a ordem dada pelo S e n h o r a Moisés” (v. 34). 149
NÚMEROS 3

N
O -|- L
S
Dan
Aser e Neftali
(vv. 25-31)

Efraim Judá
Manassés Issacar
Benjamin Zabulon
(vv. 18-24) (vv. 3-9)

Rúben
Simeão e Gad
(vv. 10-16) '

ORGANIZAÇÃO DAS TRIBOS EM TORNO


DA TENDA DO ENCONTRO

3,1-4 Sacerdotes distintos dos levitas. Esse que se identificam com Moisés. A designação dos
capítulo começa com uma fórmula genealógica di­ filhos de Aarão para as funções do sacerdócio é
ferente do estilo do autor sacerdotal: “Eis os descen­ enfatizada em toda a parte (cf., em especial, 17;
dentes de fulano e sicrano”. Este cabeçalho é usado 25,10-13; 27,12-23).
tipicamente pelo autor sacerdotal para separar perío­ Notamos que os acontecimentos relatados em
dos importantes na história do povo de Deus. Da Números são sempre ligados ao evento do Sinai.
criação aos ancestrais de Abraão, a fórmula ocorre Assim, também, é a designação dos filhos de Aarão
cinco vezes para indicar conjunturas importantes ligada à “época em que o S e n h o r falou a Moisés no
(Gn 2,4a; 5,1; 6,9; 10,1; 11,10), e dos ancestrais de monte Sinai” (v. Ib; c í Ex 24,1-2). Aarão tinha
Abraão a Jacó, mais cinco vezes (Gn 11,27; 25,12. quatro filhos; Nadab, Abihu, Eleazar e Itamar (v. 2;
19; 36,1; 37,2). Depois do relato dos ancestrais de cf. também Ex 6,23), que foram “ungidos” e “orde­
Israel, a fórmula não é mais usada até essa passa­ nados” para o sacerdócio (v. 3). Os sacerdotes eram
gem de Números, onde encontramos a genealogia ungidos com óleo derramando sobre suas cabeças
dos filhos de Aarão, a quem os sacerdotes remon­ (Ex 29,7), ato pelo qual eram dedicados a Deus (Lv
tam sua linhagem. Assim, há um elo consciente 21,12). Ordenar significa literalmente “encher a mão
dos sacerdotes de volta dos ancestrais e, antes deles, da pessoa”, isto é, colocar alguma tarefa ou respon­
à criação. sabilidade em confiança nas mãos de alguém. Os
O nome de Aarão vem antes do de Moisés sacerdotes são incumbidos do bem do povo que vem
(compare 2,1), porque aqui o autor sacerdotal está à presença de Deus. Estão encarregados da liturgia,
falando especificamente dos descendentes de Aarão, dos sacrifícios e das festas, atividades pelas quais os
que exerce as funções do sacerdócio. A partir desse dons divinos de cura e vida fluem para o povo. Un­
ponto, em Números, é feita uma distinção entre os gido e ordenado, o sacerdote é consagrado para cum­
150 sacerdotes que descendem de Aarão e os levitas prir essas responsabilidades (cf. Ex 28,41).
NÚMEROS 3

Dois dos quatro filhos de Aarão, Nadab e o povo de Israel no recenseamento (c f 1,47-48).
Abihu, morreram tragicamente no deserto do Sinai, Como sinal de que são dedicados ao serviço, é feito
sem deixar descendentes (v. 4a). Essa história pode um recenseamento especial (v. 15). Em seu caso, não
ser lida em Lv 10,1-5. A linhagem de Aarão foi são contados os varões de vinte anos ou mais, aptos
continuada por Eleazar e Itamar (v. 4b). Esses dois para o serviço militar, (compare 1,3.18.45), mas toda
ramos da familia podem ser seguidos até o tempo a população masculina, a partir de um mês de idade
de David: Sadoq de Eleazar e Ahimélek de Itamar (v. 15b). Isso significa que os levitas são “doados”
(cf. 2Sm 8,17; ICr 18,16; 24,1-4). Por fim, a linha­ ao Senhor desde o nascimento, ou seja, pertencem ao
gem de Sadoq alcançou uma posição de proeminên- Senhor desde o começo da existência. A indicação
cia (Cf. 2 Sm 15,24-29; IRs 2,35; Ez 44,15-16). A de “um mês” significa que o bebê resistiu ao perío­
designação dos filhos de Aarão como grupo com do crítico da infância e, portanto, tem potencial para
as funções especiais do sacerdócio reflete, portan­ uma vida plena. Na verdade, os levitas desempenham
to, a prática real a partir do século X. A distinção as funções a eles destinadas apenas entre as idades
entre os sacerdotes e os levitas persistiu até depois de trinta e cinqüenta anos (cf 4,3). Como todos os
da época em que o povo voltou do exílio (c f Esd israelitas, são registrados por clãs na linhagem pa­
2,36.40; Ne 7,39.43) terna (vv. 15a e 20b).
3,5-13 Os filhos de Levi: a serviço dos sacer­ A listagem dos nomes dos filhos de Levi tem
dotes. No restante deste capítulo, o S enhor fala só o propósito de corresponder à dos filhos de Aarão
com Moisés (vv. 5.11.14.40.44). Os levitas são em 3,2, embora aqui esteja ausente a fórmula genea­
considerados distintos dos sacerdotes e, de modo lógica. Obviamente, o autor sacerdotal pretende que
específico, auxiliares deles (v. 6). a ênfase esteja nos sacerdotes, ligados pela introdu­
Tradicionalmente, os levitas são identificados ção genealógica aos ancestrais e à criação. A posi­
como seguidores de Moisés (cf Ex 32,25-29), em­ ção dos levitas está subordinada à dos sacerdotes.
bora a verdadeira descendência de Moisés seja obs­ Há três filhos de Levi, cada um deles citado com
cura. O que está claro é o status tradicional dos le­ seus descendentes: Guershon, com seus descenden­
vitas como ministros para os sacerdotes e a comuni­ tes Libni e Shimeí; Qehat, com seus descendentes
dade. Somente os filhos de Aarão podem atuar como Amrâm, lisehar, Sebron e Uziel, e Merari, com seus
sacerdotes (v. 10). Os levitas são doados aos sacerdo­ descendentes Mahli e Mushi. A lista de nomes nos
tes como indivíduos “separados” do povo de Israel; vv. 17-20 corresponde aos dados fornecidos em
são “doados” para o S enhor (v. 9; c f 8,16; 18,6). seções nos vv. 21.27.33. Embora sejam escassas as
Eles “estarão a serviço” de Aarão e de toda a comu­ informações sobre os descendentes, é provável que
nidade (v. 7) e “cuidarão” dos utensílios da tenda do se refiram a pessoas bem como a lugares. O que
Encontro (v. 8). Em ambos os casos, o verbo é “ser­ fez o autor sacerdotal foi colocar o material tradi­
vir”, que significa mais precisamente “honrar e zelar cional sobre os levitas em um padrão de relaciona­
por alguma coisa sagrada”. Os levitas, então, cuida­ mentos que tem correspondência com as outras tribos
riam para que os sacerdotes e a comunidade cultuas­ israelitas.
sem de maneira apropriada a presença divina (v. 7), As informações sobre os clãs em cada uma das
cuidando dos utensilios e supervisionando as funções seções são apresentadas em seqüência padronizada.
do povo no culto (v. 8). Depois dos nomes nos vv. 21, 27 e 33, é dado o
Entende-se que os levitas são propriedade do total de cada clã: o número dos descendentes de
S enhor no lugar dos primogênitos de Israel (vv. Guershon é 7.500 (v. 22); o dos de Qehat é 8.600
12-13). Para comemorar o direito do S enhor sobre (v. 28) e o dos de Merari é 6.200 (v. 34). O total de
Israel, demonstrado com a morte dos primogênitos 22.000 é dado no v. 39. Esses números têm apenas
dos egípcios (v. 13a; Ex 11,4-8), os de Israel pas­ 0 propósito de esclarecer a disparidade numérica
saram, desde então, a pertencer ao Senhor (v. 13b; entre os levitas e as outras tribos (1,20-23). Se nos
Ex 13,2-16; 34,19-20). Como propriedade do S e­ lembrarmos que todos os levitas a partir de um mês
nhor, os levitas atuam como substitutos do que é de idade foram contados, em contraste com a con­
verdadeiro direito do S enhor — os primogênitos tagem apenas dos varões adultos das outras tribos,
das outras tribos. O S enhor escolheu os levitas, a disparidade será ainda maior. Os sacerdotes que­
que a ele são doados em lugar dos primogênitos rem que o leitor tome consciência do número com­
(v. 12). A idéia de ser resgate pelos primogênitos é parativamente pequeno de levitas.
discutida em nosso comentário sobre Nm 3,40-51 Em seguida, em cada seção, os clãs levíticos
e 8,5-26. são designados para um dos pontos cardeais entre
3,14-39 Os filhos de Levi: recenseamento e 0 santuário e as tribos de Israel. Acampam imedia­
funções. Mais uma vez somos convidados a lembrar tamente em tomo da morada e, assim, atuam para
que esses acontecimentos se passam no deserto do proteger e expiar em capacidade mediadora (cf
Sinai, de acordo com a ordem do S enhor (v. 14). Os 8,19). Os guershonitas localizam-se a oeste (v. 23);
filhos de Levi foram excluídos de ser contados entre os qehatitas, ao sul (v. 29) e os meraritas ao norte 151
NÚMEROS 3

(v. 35b). A designação para um ponto cardeal espe­ que morreram os do Egito (cf Ex 12,29). O primo­
cífico parece ser arbitrária. Entretanto, o lado leste gênito de toda família israelita em todas as gera­
preferido é reservado a Moisés, Aarão e aos filhos ções sueessivas lembra-se desse acontecimento e,
de Aarão (v. 38a — c f a figura na p. 150). portanto, é ele próprio poupado. Por causa desse
Cada um dos grupos tem funções específicas evento, o primogênito pertence ao S e n h o r ( E x
a respeito do lugar santo. Somente os filhos de 13,2.12-25; 34,19-20).
Aarão exercem o serviço do santuário (v. 38b). Os le- O fundamento lógico para os levitas pertence­
vitas cuidam do equipamento do santuário. Segundo rem ao S e n h o r está enraizado nessa tradição dos
os vv. 25-26, os guershonitas cuidam da tenda, de primogênitos pertencerem ao S e n h o r . Pela lembrança
suas cortinas, cortinados, cobertura e cordas. (Com­ desse evento, as pessoas vêm a conhecer o S e n h o r ,
pare a descrição do santuário do deserto, em Ex seu Deus. Aqui aparece a fórmula de reconheci­
26; 27,9-16; 36,8-19.35-38.) Segundo os vv. 28b.31, mento “Eu sou o S e n h o r ” : “... os levitas me perten­
os qehatitas são encarregados de cuidar do conteú­ cem. Eu sou 0 S e n h o r ” ( v. 45b; c f 13b). A ligação
do sagrado do santuário do deserto; a arca, a mesa, entre a libertação da escravidão egípcia e a dedica­
o candelabro, os altares, os utensílios e o véu. (Esses ção dos primogênitos leva à compreensão de que
equipamentos são descritos em Ex 25; 27; 30,1-10; Israel pertence ao S e n h o r e é chamado a um relacio­
37; 38.) Segundo os vv. 36-37, os meraritas cuidam namento singular que dura para sempre. A dedicação
dos quadros, vigas e colunas, isto é, as partes que dos levitas testemunha a natureza do Deus de Israel
mantêm a estrutura material. (Veja as descrições ela­ como alguém que continua a agir em beneficio de
boradas desses aspectos físicos em Ex 26,15-37; Israel e que também exige dedicação e serviço. (Para
27,9-19; 36.20-34; 39,40.) Junto com essa divisão de um breve exame da fórmula de reconhecimento, veja
tarefas, devemos recordar a descrição das funções p. 146b.)
dos levitas em 1,50-51, em especial seu papel quan­ 4,1-33 Definição das funções dos levitas. A
do 0 acampamento é levantado e remontado quando
palavra do S e n h o r é mais uma vez dirigida a Moisés
o povo muda de um lugar para outro no deserto.
e Aarão, nessa ordem (w. 1.17; veja também 34.46).
Em cada seção há também o nome de um
A ordem é para fazer um recenseamento dos sub­
“ehefe” de cada um dos clãs levíticos (w . 24.30.
grupos dos levitas (vv. 2.22.29), os de idade entre
35a) para corresponder à relação de líderes de cada
trinta e cinquenta anos (vv. 3a.23a.30a).
uma das tribos israelitas em l,5b-15. Como esses
As descrições das funções de cada um dos gru­
indivíduos não são mencionados de novo, sua fun­
pos levíticos são postas dentro da estrutura da ordem
ção de liderança permanece obscura. Certa é a lide­
de recenseamento. Aos varões da idade indicada são
rança de Eleazar, filho de Aarão, identificado como
designadas tarefas específicas para o transporte da
0 chefe supremo dos levitas (v. 32). É ao sacerdote
Eleazar, sucessor de Aarão, que os levitas respon­ tenda do Encontro. Em cada caso, a fórmula “cum­
dem pela execução de suas diversas funções (com­ prir serviço” (vv. 3b.23b.30b) introduz as responsa­
pare 3,6.9a). bilidades determinadas. Os verbos dessa fórmula
3,40-51 Primogênitos dos israelitas. Esta se­ enfatizam serviço, no sentido de um exército prepa­
ção retoma o assunto introduzido em 3,11-13 — rado para empenhar-se em combate junto com a
os levitas como substitutos dos primogênitos. Aqui idéia de serviço no culto. Em sua escolha de palavras,
0 resgate é descrito em detalhes. o autor destaca a seriedade das funções dos levitas.
A apresentação herda o padrão da palavra do As tarefas específicas correspondem às designadas
S enhor ( w . 40.44), seguido pela execução dessa para os grupos levíticos em 3,25-26.31.36-37. Aqui,
palavra (w. 42.49-50). Moisés faz exatamente como a ênfase está no desmonte e no transporte da tenda
o S e n h o r lhe ordena. Faz um recenseamento dos e dos objetos sagrados (cf 1,50-51).
primogênitos de sexo masculino a partir de um mês, As funções dos qehatitas são fornecidas primeiro
um total de 22.273 (v. 43). Designa, então, os levi­ porque lhes cabe cuidar dos objetos mais sagrados
tas como resgate pelos primogênitos de Israel e os (v. 4); presumivelmente, isso lhes dá siattis especial.
animais dos levitas como substitutos dos primogê­ Entretanto, a sua é uma tarefa modesta, pois não
nitos dos rebanhos (w. 41.45). podem tocar os objetos sagrados, nem mesmo olhar
O número de primogênitos do sexo masculino para eles (w. 15b. 18-20). Somente depois que os
de Israel equipara-se aos dos levitas, com uma difer­ sacerdotes cobriram os objetos da maneira apro­
ença de 273 (v. 46). O excedente pode ser resga­ priada (vv. 5-14), fixaram as barras (vv. 6b.8b.l4b)
tado por uma soma de dinheiro dada aos sacerdo­ e colocaram os objetos em andotes (vv. 10b. 12b), os
tes (v. 48). O preço de cinco sidos, medidos pelo qehatitas têm permissão para transportá-los (v. 15).
valor do sido do santuário, em vez do sido comer­ Nesta seção, a atenção volta-se dos qehatitas
cial, proporciona o resgate para os que restaram para os sacerdotes, os únicos que podem tocar os
entre os primogênitos (v. 49). objetos sagrados. Primeiro cobrem a “arca do Docu­
Tal atenção a detalhes indica a importância mento” com três camadas; o véu de separação, uma
152 dos primogênitos que foram poupados na noite em capa de pele e um pano de púrpura roxa (vv. 5-6).
NÚMEROS 4

Só a arca, que contém o documento da aliança com censearam todos os grupos levíticos (w . 34.38. 42),
o S enhor, tem uma coberta externa colorida que lhe como 0 S enhor ordenara (vv. 17.41.45).
dá destaque entre os objetos sendo transportados. Os Os varões, registrados por clãs na linhagem
outros são cobertos com um pano de púrpura roxa paterna, eram os compreendidos dentro dos limites
e uma capa de pele (w. 7-14). Sob pena de morte, de idade para o serviço obrigatório — trinta a cin­
os qehatitas não podem tocar em nada a não ser nas quenta anos de idade. (Compare esse recenseamento
alças dos veículos de transporte. A santidade e a com 0 de todos os levitas em 3,15.40.) O número
transcendência de Deus estão sendo enfatizados nesse total de levitas designados para o serviço no trans­
tratamento reverente dos objetos que têm uso direto porte da tenda do Encontro é significativamente
no culto. menor do que o total de levitas registrados (v. 48;
Os sacerdotes e os levitas tinham funções espe­ c f 3,43).
cíficas a respeito do santuário. A divisão de funções Assim, os levitas, separados para o serviço es­
predomina na mente do autor, que representa famí­ pecial, recebem tarefas relacionadas diretamente
lias sacerdotais e escreve esse relato em uma época com 0 santuário. Enquanto o povo se prepara para
em que os sacerdotes dominam o governo da vida iniciar a caminhada pelo deserto em direção à Terra
religiosa do povo. Só os filhos de Aarão são encarre­ Prometida, os levitas têm a importante função de
gados do lugar santo, e Eleazar, em especial, é en­ desmontar e carregar a estrutura material da mora­
carregado da morada (v. 16; c f 2,32; 3,1-4). da. Toda essa cuidadosa preparação e a designação
As funções dos guershonitas e meraritas corres­ de funções acentuam o fato da permanência da pre­
pondem às que lhes foram atribuídas respectivamente sença divina com o povo e, na verdade, acompa­
em 3,25-26 e 3,36-37. Aqui, uma vez mais, a ênfase nha-os em sua caminhada.
está no transporte do lugar santo na jornada prestes Nesse ponto, há uma pausa nos preparativos,
a se iniciar. Os guershonitas carregam tapeçarias,
enquanto a atenção concentra-se na vida dentro do
cobertas, peles, cordas etc., que fazem parte da es­
acampamento. Como Deus habita no meio do povo,
trutura material e seus adornos (vv. 25-26). Os me­
não há lugar para nada indigno do Deus santíssimo.
raritas carregam quadros, vigas, colunas etc., as
Portanto, nessa conjuntura, os israelitas recebem
partes de madeira e de metal que dão forma ao lugar
uma série de leis pertinentes à pureza ritual e ética
ou são usadas para apoiá-lo (w. 3 lb-32a). Como no
(cap. 5) e leis relativas ao nazirado, que se dedicam
caso dos qehatitas, esses gmpos levíticos ficam sob
completamente ao S e n h o r (cap. 6).
as ordens dos sacerdotes (v. 27) e, especificamente,
5,1-4 Exclusão dos impuros. As leis aqui esta­
sob a supervisão de Itamar, o outro filho de Aarão
belecidas são para assegurar a pureza do lugar onde o
(vv. 28.33; c f 3,1-4).
S e n h o r habita no meio do povo (v. 3b; c f Lv 15,31).
O leitor de hoje não pode deixar de perceber a
reverência dos israelitas pelo lugar sagrado e seus Eram leis que, na verdade, governavam a vida na
utensílios. Somente os panos mais preciosos e as terra de Canaã, de importância especial para a vida
peles mais raras serviam para cobrir os objetos sa­ da comunidade devota pós-exílica, como se reflete na
grados (w. 5-14). E esse respeito pelo lugar de culto organização e na ordem do acampamento no deserto.
e pela posição dos sacerdotes em relação ao lugar O lugar da presença do S e n h o r é santo. Tudo que
santo que tem influenciado a prática religiosa atra­ for impuro precisa ser excluído; tais coisas são in­
vés da história. Sem menosprezar a palavra de Deus, compatíveis com o lugíU" santo enquanto permane­
é importante lembrar que esse documento vem de cerem impuras (vv. 3-4).
um certo período da história e reflete a prática an­ Segundo o direito consuetudinàrio, eram impu­
tiga. A verdade aqui contida sobre a presença de ros os que tinham moléstia de pele, os acometidos
Deus com o povo para todos os tempos e em todos de corrimento dos órgãos genitais e os que tiveram
os lugares às vezes se perde na leitura dos preceitos contato com um cadáver (v. 2). Essas leis minuciosas
detalhados. Lembremos que as delimitações de fun­ governavam todo o povo, mas eram especialmente
ções e a distinção de papéis indicam a santidade da rígidas a respeito dos sacerdotes (cf Lv 22,4).
Presença no meio do povo. Essa morada de Deus A moléstia de pele, identificada como lepra,
no meio do povo não se limita a uma forma, nem podia ser qualquer variedade de problemas comuns
depende de determinadas instituições. A questão nos climas tropicais. O fator distintivo são feridas
toda desse relato dramático é que Deus está pre­ abertas e supuradas. E a ejeção da ferida aberta que
sente e constantemente revela a personalidade di­ toma a pessoa doente ritualmente impura. As leis
vina de maneiras significativas em cada nova era que governam tal moléstia encontram-se completas
da história. em Lv 13-14. Ali aprendemos que vários períodos
4,34-49 O recenseamento completado. Os re­ de sete dias de quarentena, isto é, exclusão do acam­
sultados do recenseamento ordenado acima (w . 2­ pamento, podem ser necessários antes que a pessoa
3.22-23.29-30) estão resumidos nessa última seção. seja declarada pura (cf Lv 13,4-6.26-27.31-34.50­
Composta dtis fórmulas repetitivas características 51; 14,8-9). Toda moléstia, na medida em que seja
do autor sacerdotal, afirma que Moisés e Aarão re- visível, é uma contaminação e, portanto, exclui o 153
NÚMEROS 5

indivíduo da com unidade cultuai onde habita o nidade exige que nada viole nem desintegre o bem
Senhor ( v. 3b). eomum e, quando tal ocorre, é necessário haver
O corrimento refere-se a fluidos dos óigãos restituição e reparação.
sexuais de homens ( c í Lv 15,1-17; Dt 23,10-15) e Se essa restituição não puder ser paga ao ofen­
mulheres (cf. Lv 15,19-30), quer seja ele normal, dido, deverá ser paga ao parente mais próximo (v.
quer ligado a doença. Nas leis levíticas não há 8a). Se não houver parente, a restituição pertence
nenhuma cláusula para a exclusão da comunidade; aos sacerdotes, que a aceitam como dada ao S e n h o r
apenas em Números tal exclusão é indicada, o que (v. 8b). Essa restituição soma-se á do carneiro expia­
não significa atitude negativa contra o sexo, é antes tório pelo qual se fará o rito de absolvição do pe­
a idéia de que todos os corrimentos físicos conta­ cado (v. 8c; veja Lv 5,14-26).
minam. São incompatíveis com a perfeição física O lugar dado ao parente mais próximo nos diz
e, portanto, indignos da santidade de Deus que algo sobre a solidariedade da comunidade do povo
habita no meio do povo (v. 3b). Os ritos purificado­ de Deus. O parente mais próximo é parente consan-
res prescritos para homens e mulheres eram exata­ güineo do sexo masculino por parte de pai da famí­
mente os mesmos, como o era sacrifício exigido lia. Ser 0 parente mais próximo envolve sérias res­
(cf. Lv 15,5-10.19-24; 15,13-15.25-30). Principal­ ponsabilidades para assegurar a vida da família pró­
mente nessa questão, os sacerdotes demonstram ter xima e ampla. Se a mulher fica viúva e não tem fi­
consciência da igualdade da pessoa do homem e lhos, o parente mais próximo tem de se casar com
da mulher (v. 3a; c f Lv 15,32-33). ela para que a linhagem familiar floresça (Rt 4). Se
Na Antiguidade era forte a ligação entre a morte há ameaça de perda da propriedade que pertence à
e o mal, como muitas vezes ainda o é hoje. Acre­ família, o parente mais próximo deve comprá-la para
ditava-se que o mal emanava de um cadáver, toman­ que permaneça na família (Lv 25,25). Se um membro
do todo aquele que entrasse em contato com ele da família é escravizado, o parente mais próximo é
impuro e, portanto, indigno da presença de Deus responsável para assegurar a liberdade dessa pessoa
(v. 3b). Segundo a lei, quem tocasse um cadáver (Lv 25,47-52). Assim como o parente mais próximo
era banido pelo período estipulado de sete dias (cf. provê quando a vida ou a propriedade é ameaçada,
Nm 19,11). também recebe bens quando a restituição não pode
5,5-10 Reparação dos delitos. Essa passagem ser feita a quem foi prejudicado. O que foi tirado de
estabelece uma situação de pecado em termos determinada família é, desse modo, restituído e com­
bastante amplos. Especifica tanto o homem como pensado, e a comunidade fica unida dentro de si mes­
a mulher como possíveis ofensores (v. 6a) e descre­ ma e com Deus.
ve a ofensa como toda transgressão de seres huma­ Acrescentada a essa lei que governa a restitui­
nos, isto é, afrontas feitas a outra pessoa (v. 6b). É ção está uma afirmação sobre as “coisas santas”
uma reafirmação da lei de reparação dada em Lv que pertencem aos sacerdotes (vv. 9-10). Essa con­
5,20-26. tribuição sagrada pode ser parte reservada da ofe­
No ensinamento bíblico há uma ligação direta renda que o sacerdote movimenta para cima e para
entre as maldades feitas dentro da comunidade hu­ baixo em ato ritual, ou pode ser toda a oferenda que
mana e o relacionamento com Deus (v. 6c). O amor um israelita apresenta ao S e n h o r , elevando-a. Em
a Deus e o amor ao próximo estão inextricavel- ambos os casos, a contribuição sagrada é a que é
mente ligados. Basta ler o decálogo (Ex 20,1-17; elevada e pertence ao sacerdote oficiante.
Dt 5,6-21), as normas estabelecidas para a conduta 5,11-31. Ritual para o julgamento. Outra cir­
dentro da comunidade (Lv 19,1-37), os discursos cunstância imprópria para o lugar da presença divina
proféticos (Os 4,1-3; Am 5,21-24; Is 1,12-16), ou é a desconfiança entre marido e mulher descrita como
o Novo Testamento (IJo 4,20-21; Mt 5,23-24; ciúme (w. 14.30a). O caso apresenta um marido que
23,34-40; 25,31-46), para perceber que o respeito suspeita que a mulher cometeu adultério (w. 12-13.29)
pelo bem-estar da comunidade é expressão direta e pode, portanto, dar-lhe um filho que não é dele, po­
de reverência por Deus. rém, ele não tem nenhuma evidência concreta e, as­
Segundo a lei, o indivíduo que comete uma sim, não pode instaurar processo legal normal, pelos
transgressão contra outro não só confessará o peca­ tribunais. Quando não há testemunhas nem outra
do e compensará o mal feito ou o caráter difamado, prova, o marido recorre a um ordálio.
mas também fará restituição da quantia devida Esse é 0 único caso na literatura bíblica em que
acrescida de um quinto do valor (v. 7). A compen­ um ritual de ordálio é descrito em detalhe. O ordálio
sação de um quinto a mais desse valor é a restitui- parece ter sido usado quando a questão de culpa ou
ção-padrão exigida em todos os casos (cf. Lv inocência não podia ser averiguada pelos métodos
5,16.24; 22,14; 27,13.27.31). Tão sagrada é a pessoa normais de fazer julgamento. A pessoa acusada sub­
na comunidade que todo dano ao indivíduo causa mete-se a alguma prática, tal como tomar uma po­
dano a toda a comunidade. E tão sagrada é a comu­ ção ou andar sobre o fogo. Se ficar incólume, está
nidade que toda violação de seu bem-estar exige comprovada a inocência. O adultério era a ofensa
154 reparação. A presença de Deus dentro dessa comu­ para a qual o ordálio era invocado mais vezes, como
NÚMEROS 6

sugere a descrição detalhada neste texto. Dt 17,8- haverá a comunidade ideal que tem Deus residindo
13, entretanto, afirm a que casos que envolvem ho­ no meio do povo, notamos a ênfase na santidade e
micídio, disputas sobre direito de propriedade e na pureza exigidas da comunidade de fiéis. O autor
agressão pessoal podem ser resolvidas pelo ordálio. sacerdotal inclui a essa altura um texto sobre a con­
O caso apresentado aqui é decididamente injus­ sagração de indivíduos, homens e mulheres (v. 2),
to, pois o homem acusa a mulher, que, então, supor­ realçando a santidade e a nobreza da dedicação total
ta 0 Ônus da acusação, enquanto o homem fica ao S e n h o r . Tal individuo é chamado “nazir”, palavra
isento de culpa, mesmo quando a acusação é infun­ derivada do verbo que significa “separar” ou “con­
dada (v. 31). A questão grave a ser decidida é a de sagrar”. O nazir faz um voto de dedicação ao S e n h o r
paternidade. O rito destina-se a determinar a legi­ (v. 21) por determinado tempo (w. 4.5.6.8.12.13). A
timidade dos filhos do homem. tradição do nazirado era antiga entre o povo de Deus.
O marido traz a mulher perante o sacerdote com Julga-se que Sansão (Jz 13,5) e Samuel (ISm 1,11)
uma oferenda de cevada sobre a qual não derrama fossem consagrados para toda a vida. A prática
nem óleo nem incenso, “pois é uma oferenda de chegou até o tempo de João Batista (Lc 1,15) e do
ciúme” (v. 15). O grão seco significa que a oferenda apóstolo Paulo (At 18,18; 21,23-26).
é um sacrifício pelo pecado (cf Lv 4,11-13). O óleo Nosso texto consiste em três seções indepen­
e 0 incenso sobre o grão bruto produziría uma obla- dentes dentro da estmtura dos vv. 1-2.21. Os vv. 3-
ção de perfume agradável, sugerindo alegria e gene­ 8 descrevem as condições e as leis que governam
rosidade (Lv 2,1-2; 6,8). um indivíduo que decide fazer um voto por um
Segue-se o ritual para o julgamento. Em essên­ tempo determinado. Os vv. 9-12 descrevem a pu­
cia, a mulher comparece diante do S e n h o r ( vv . rificação exigida se a pessoa inadvertidamente se
16.30b), atitude que traz Deus ao processo de in­ tomar impura. Os vv. 13-21 introduzem as cerimô­
vestigação legal. A cabeça dela está descoberta, nias que devem ser realizadas ao término do tem­
sinal de desgraça e impureza, e em suas nas mãos po do voto.
está a oferenda de denúncia (v. 18). Enquanto isso, Ao fazer o voto de dedicação, o nazir aceita
o sacerdote prepara a água, colocando nela pó do três restrições. As obrigações abrangem a questão
chão da morada (v. 17). Essa água é chamada “san­ de bebida e comida (vv. 3-4), o corte do cabelo (v.
ta”, porque é conservada no santuário. O acréscimo 5) e o contato com os mortos (vv. 6-7).
do pó aumenta a santidade da bebida e seu perigo O nazir é proibido de consumir uvas em qual­
para a mulher que a beberá. É o consumo dessa quer forma — não pode beber vinho, vinagre ou
água, chamada “da amargura”, que decide a inocên­ mesmo suco de uva (v. 3a), nem comer uvas ftescas
cia ou a culpa (v. 18c). Observe a referência feita ou secas, nem sementes ou cascas de uva, ou qual­
a essa água nos vv. 19.22.24.27. quer parte da videira (w. 3b-4). A abstenção é da
O sacerdote, então, põe a mulher sob juramento uva, não da bebida alcoólica como tal. A videira re­
para falar a verdade (vv. 19a.21a). As palavras presenta a cultura urbana, a vida acomodada, o con­
pronunciadas pelo sacerdote fazem a água da amar­ forto e o modo intenso de viver — prazeres em opo­
gura ser eficaz para confirmar a inocência (v. 19b) sição à fidelidade ao S enhor (cf. Am 4,1b; 6,6).
ou a culpa (vv. 20-22). A mulher responde: “Amém, Segundo, o nazir não porá a navalha no cabelo
amém”, concordando assim com a eficácia do ordá­ da cabeça (v. 5). O crescimento do cabelo é sinal
lio. A maldição em si é um eufemismo para o aborto visível de consagração. Símbolo de integridade e
ou talvez a esterilidade. “Seio” é usado com fre- dignidade, o cabelo longo distingue de maneira
qüência para indicar os órgãos sexuais. É caracte­ dramática o indivíduo como alguém que serve a
rística dos relatos de julgamento o castigo ser a Deus de modo especial (v. 7b).
anulação do pecado. Se a mulher pecou por rela­ Terceiro, o nazir nunca se aproxima dos mor­
ções sexuais ilícitas, seu castigo é o término da gra­ tos, nem mesmo dos cadáveres de membros da
videz (v. 27) ou a incapacidade de ter filhos. A si­ família (vv. 6-7a). (Sobre a impureza associada ao
tuação contrária, descrita no v. 28, seria a capaci­ contato com os mortos, c f o comentário de 5,1-3
dade de ter filhos. e 9,11-22.) Esta lei é mais severa do que no caso
Antes que a mulher beba, as palavras de maldi­ do sacerdote comum, que é isento no caso de famí­
ção são escritas e depois dissolvidas na água (v, 23) lia (Lv 21,1-3); é, entretanto, comparável às restri­
para que sejam eficazes (v. 24). Por último, o sacer­ ções impostas ao sumo sacerdote (Lv 21,11).
dote queima um punhado da farinha da oblação sobre Essas práticas destacam o nazirado como lem­
0 altar; o restante do cereal pertence ao sacerdote brete continuo à comunidade daquilo que deve ser
(cf Lv 2,2-3). Depois que a mulher bebe a água, há a dedicação total ao S e n h o r . Aparentemente, no
dois resultados possíveis (vv. 27-28): ela é procla­ tempo de Amós, o testemunho dos nazires era tão
mada culpada e, portanto, impura, ou inocente e, perturbador que o povo tentava fazê-los quebrar o
portanto, pura. voto (Am 2,11-12).
6,1-21 Dedicação dos nazires. No contexto de A segunda seção do texto trata da situação em
preparação para a jornada em direção à terra, onde que o nazir pode acidentalmente tomar-se impuro 155
NÚMEROS 6

pelo contato com um morto (w, 9-12). O cabelo, Com a conclusão deste ritual, o nazir cumpre
sinal de consagração, toma-se, assim, contaminado e 0 período de voto e pode tomar vinho (v. 20c). O
precisa ser raspado (v. 9) e o período de dedicação, indivíduo, então, retoma sua vida normal.
agora inválido, precisa ser iniciado novamente (v. 12). 6,22-27 A bênção sacerdotal. Com uma espé­
Segundo a lei, o período de purificação dura sete dias cie de interlúdio, desligado do que o precede e do
(v. 9; cf. Nm 19,11.14.16). Em seguida o nazir traz que o segue, o autor sacerdotal insere uma fórmula
a oferenda de duas aves, que é a requerida dos pobres de bênção que é uma das mais antigas composi­
(V. 10; cf. Lv5,7; 12,8; 14,22; 15,13-15). O sacerdote ções poéticas das Escrituras. Talvez esteja coloca­
oferece uma ave como sacrifício pelo pecado, para da aqui para mostrar a bênção divina para o povo
restaurar o relacionamento com um Deus santo que que leva a vida santa de acordo com os preceitos
foi interrompido pelo contato com o que toma a pessoa estabelecidos nos capítulos 5-6.
impura; a outra é oferecida como holocausto, o sacri­ A oração em si (vv. 24-26) está posieionada
fício exigido de todos que vêm diante do Senhor, e, dentro de uma estrutura que começa com a frase
portanto, deve ser completamente consumida (v. 11). típica: “O S enhor falou a Moisés dizendo”. A bên­
Depois de oficiada a absolvição, a cabeça do nazir é ção dada ao povo pelos sacerdotes é vista como a
mais uma vez santificada (v. 1Ib) e é feito o sacri­ vontade do S enhor comunicada por intermédio de
fício de reparação de um cordeiro de um ano de ida­ Moisés (cf Dt 10,8; 21,5). A referência específica
de, é uma espécie de multa punitiva paga a Deus pela ao sacerdócio aarônico (v. 23a) reflete a época pós-
perda do que é devido. Com a anulação do voto, é exílica, quando a tarefa principal dos sacerdotes
perdido algo que apropriadamente pertencia ao Se­ no santuário era mediar a bênção, o manancial de
nhor com base nesse voto. (Cf. Dt 23,22-24 para as vida que deriva do Senhor, fonte de toda vida (cf
leis que governam todos que decidem fazer um voto; SI 115,12-15; 118,26; 129,8; 134,3). Na posse do
notem-se as restrições impostas às mulheres em Nm sacerdote, seu primeiro ato é erguer a mão para
30,4-16.) abençoar (Lv 9,1-24, esp. vv. 22-24). Essa força
A terceira seção prescreve o ritual a ser obser­ para a vida que é mediada pelos sacerdotes mantém
vado ao término do período de consagração (vv. viva a promessa de que, por intermédio desse povo,
13-20). As instruções são dirigidas ao sacerdote as bênçãos divinas fluem para o mundo.
que realizará os detalhes da cerimônia. O indiví­ Na bênção, o nome do Senhor é repetido três
duo comparece à entrada da tenda do Encontro vezes e é o sujeito subentendido mais três vezes.
com oferendas específicas (vv. 13-15). Depois que Pronunciar esse nome é, por si só, bênção eficaz.
0 sacerdote oferece o sacrifício, a cabeça do nazir Assim, a conclusão afirma que os sacerdotes “po­
é raspada e o cabelo queimado no fogo do sacrifí­ rão meu nome sobre os filhos de Israel” (v. 27a). A
cio de paz (vv. 16-18). O sacerdote toma sua parte apresentação hebraica é uma expressão incomum
das oferendas sacrificais (vv. 19-20) e só então o que literalmente afirma que eles “porão o nome
nazir pode beber vinho (v. 20c). sobre” o povo, em vez do esperado “invocar o nome”.
Essa expressão idiomática específica parecería su­
A série completa de sacrifícios indica a soleni­
bentender estreito relacionamento, indicação de pro­
dade da ocasião (vv. 14-15). O holocausto é ofere­
priedade e proteção divinas. Os israelitas são procla­
cido por todos que se aproximam do Senhor; o sa­
mados propriedade do Senhor, por intermédio da
crifício pelo pecado é dado em expiação por todas
colocação do nome do S enhor sobre eles pelos
as violações cometidas, mesmo que involuntárias. O
sacerdotes. A afirmação final “e eu os abençoarei”
sacrifício de paz é apresentado em ação de graças (v. 27b) significa então que, quando os sacerdotes
junto com a oblação e a libação. Sugerem um ban­ puserem o nome divino sobre os israelitas, na verdade
quete e significam a comunhão entre Deus e o par­ 0 Senhor os abençoará.
ticipante (vv. 16-17). O cabelo que foi cortado é A bênção em si é um das mais belas composi­
queimado no fogo do sacrifício de paz, significando ções da poesia antiga. É escrita em três versos, ca­
a destruição daquilo que fora consagrado ao Se­ da um com duas partes e em um padrão métrico
nhor, depois de servir a seu propósito (vv. 18-19a). complexo que aumenta progressivamente em nú­
Ao realizar o sacrifício, o sacerdote põe uma mero de palavras (três no primeiro verso, cinco no
parte dele nas mãos do nazir, para que ela seja for­ segundo e sete no terceiro) e em contagem métrica
malmente apresentada ao sacerdote (v. 19b) com o (dez, doze e catorze, respectivamente). A bênção é
gesto de apresentação (v. 20a). Esse movimento dirigida a “ti”, no singular, que significa todo o
parece representar o ato de devolver a Deus parte Israel como uma entidade coletiva e também como
do que Deus deu. Essa porção está incluída no pre­ cada indivíduo. Este “tu” (“te”) é expressado duas
sente especial apresentado ao sacerdote. A dádiva vezes como objeto direto (vv. 24ab) e quatro vezes
costumeira devida ao sacerdote em todos os sacri­ como objeto indireto (vv. 25ab.26ab).
fícios são o peito e a coxa (v. 20b; c f Lv 7,34 e A primeira metade de cada verso invoca a ação
Nm 18,8-11). O nazir deve fazer as oferendas pres­ pessoal do S enhor sobre o povo: “abençoe” (v. 24a),
critas, mas também pode apresentar outras, de acor- “faça resplandecer [sobre ti] seu olhar” (v. 25a) e
156 do com os meios do indivíduo (v. 21a). “volte [para ti] seu olhar” (v. 26a).
NÚMEROS 7

“Abençoar” significa derramar o contínuo e sus- tensão nos últimos preparativos para a caminhada
tentador poder de vida que se manifesta como cresci­ (caps. 7-9).
mento, aumento, sucesso, fertilidade e prosperidade O capítulo divide-se em duas seções desiguais.
(cf Gn 24,34-36). A bênção deriva do ser divino Na primeira, w . 1-9, os chefes dão carros e bois. Na
essencial do qual surgem as promessas: “Eu... te segunda, vv. 10-88, há uma relação minuciosa dos
abençoarei. Tomarei grande o teu nome” (Gn 12,2); presentes trazidos por eles.
“eu estarei contigo e te abençoarei” (Gn 26,3). Os chefes, responsáveis pelas casas ancestrais,
Fazer “a face [do Senhor] resplandecer sobre” são os mesmos líderes do povo que auxiliaram
significa olhar com prazer ou estima. Obviamente Moisés com o recenseamento (v. 2; c f o comentário
um antropomorfismo usado de maneira metafórica, sobre 1,4-19a). Esses homens contribuem com seis
a referência a “olhar” (literalmente “face”) suben­ carros e doze bois para uso no transporte do san­
tende a totalidade da bondade divina dirigida ao tuário (v. 3). Os veículos e animais carregarão os
destinatário da bênção (c f SI 67,2). Quando o S e­ objetos sagrados na longa jornada pelo deserto.
nhor é indulgente para com o povo, este vê a face No padrão estilístico da palavra do S e n h o r ,
do S enhor (SI 31,17; 80,4.8.20). Por outro lado, falada e obedecida (vv. 4.6), a Moisés é ordenado
para expressar descontentamento com o povo, o que receba os presentes e entregue os carros aos
Senhor declara: “ocultei meu rosto” (Ez 39,23; c f levitas para que os usem segundo a necessidade do
Is 57,17). ofício de cada um (v. 5). Moisés dá dois carros com
“Voltar [para ti] seu olhar” sugere a concessão quatro bois aos guershonitas (v. 7), responsáveis
do amor divino em gestos de indulgência e ajuda. pela tenda e por todos os cortinados e cobertas de
A atenção do S enhor volta-se para aquele que é pano (3,25-26; 4,24-26); e quatro carros com oito
dependente e necessita de ajuda (cf. SI 33,18; 34,16; bois aos meraritas (v. 8), que cuidam da estrutura
IRs 8,29,52). material do santuário (3,36-37; 4,31-32). Somente
A cada um desses atos do S enhor segue-se os qehatitas, que cuidam dos objetos sagrados, in­
uma conseqüência da bênção invocada. O S enhor clusive da arca (3,28b.31; 4,4-15), têm de transpor­
“guardará” (v. 24b), “concederá sua graça” (v. 25b) tar nos ombros as cargas cuidadosamente cobertas
e “dará paz” (v, 26b). (v. 9).
“Guardar” significa que, em conseqüência da O r e s ta n t e d o te x to ( w . 10-88) c o n s is te n a o r ­
bênção, o S enhor protegerá Israel dos reveses que d e m d o S e n h o r p a r a q u e a s o f e r e n d a s tr a z id a s p e lo s
trazem o oposto da vida e da prosperidade, tal como c h e f e s p a r a a d e d ic a ç ã o s e ja m a p r e s e n ta d a s e m d ia s
a infecundidade, o fracasso da colheita, a ameaça s u c e s s iv o s (vv. 10-11); d á u m a d e s c r iç ã o r e p e titiv a
dos inimigos. “Conceder sua graça” significa de­ e d e ta lh a d a d o s p r e s e n te s o f e r e c id o s p e l o s líd e r e s
monstrar benevolência imerecida. Em conseqüên­ (v v . 12-83) e u m r e s u m o f i n a l , c o m a c o n t a g e m d o
cia do fato do olhar do S enhor resplandecer sobre (vv. 84-88).
n ú m e r o to ta l d e p r e s e n te s
Israel, esse povo experimenta a benevolência que Embora os lideres sejam os mesmos citados
deriva da natureza divina (cf. Ex 33,19; 34,6; Nm como assistentes de Moisés em 1,5-15, a seqüência
14,18; Dt 5,9-10). Finalmente, o S enhor “dá a paz” corresponde à das tribos no acampamento em 2,1-34
como conseqüência de voltar seu olhar. O conceito e, mais uma vez, na ordem da caminhada em 10,14-28
de paz é o resumo do ato de abençoar: “o S enhor (cf o comentário sobre 2,1-34). A posição privile­
abençoará seu povo com a prosperidade” (SI 29,11). giada do grupo de Judá reflete a importância dessa
É uma expressão que significa muito mais do que tribo no restabelecimento do centro religioso para o
liberdade de guerra ou discórdia. A paz é o estado povo que volta do exílio.
de ser íntegro, de perfeição, de felicidade e harmo­ Os presentes entregues por todos os chefes são
nia, fazendo com que a pessoa seja capaz de um idênticos na ordem e na quantidade. São relatados
desenvolvimento de vida pleno e livre. Paz signifi­ em fórmula precisa, exceto por ligeira variação gra­
ca a salvação que pertence àqueles cuja vida está matical no V 19. As únicas mudanças estão nos
totalmente em harmonia com a vontade divina (cf. nomes dos líderes e das tribos. Os chefes trazem
SI 34,15; Is 32,17). O propósito da vida de Jesus presentes para todas as oferendas regulares — holo­
era trazer a paz (Jo 14,27; 16,33; 20.21.26). causto, sacrifício pelo pecado e sacrifício de paz.
7,1-88 Oferendas dos chefes. O capítulo 7 Também trazem bandejas de prata e bacias de prata
volta aos preparativos para a partida do Sinai de­ cheias de farinha amassada no azeite para a ofe­
pois do interlúdio dos preceitos que governam a renda e uma taça de ouro cheia de perfume. Essa
vida no acampamento e na comunidade. Não hou­ descrição exaustivamente repetitiva e detalhada das
ve passagem de tempo da data do recenseamento oferendas enfatiza a generosidade dos chefes e tem
(1,1.18), que ocorreu exatamente um mês depois como intenção o exemplo e a exortação a respeito
do término, edificação e consagração da morada das provisões para o lugar do culto e suas celebra­
(v. 1; Ex 40,2.17; c f o comentário sobre 1,1-3). A ções cultuais. E intencional a não-especificação das
descrição minuciosa dos presentes cria um cenário oferendas. O foco não é desviado da liberalidade
de dedicação ao S enhor, à medida que aumenta a em dar. 157
NÚMEROS 8

O texto conclui com uma espécie de relatório Ex 25,31-40. O V. 4 corresponde exatamente a essa
contábil do número de presentes entregues por oca­ descrição. Ex 37,17-24 faz um relato detalhado da
sião da dedicação do altar (v. 84a). Há uma relação construção do candelabro. Finalmente, o candelabro
precisa dos numerosos presentes (v. 84b), do peso é posto contra a cortina do lado sul da tenda do En­
dos metais preciosos (vv. 85-86) e do número de contro, defronte à mesa no lado norte (Ex 40,22-25).
cada espécie de animal oferecido (vv. 87-88) para Em nosso texto, a ênfase está na direção da luz
revelar a extensão da generosidade dos chefes ao “à frente do candelabro” (vv. 2-3; cf. Ex 25,37).
entregar tais presentes para o culto de Deus. Essa posição dos pavios das lâmpadas de óleo é
Essa exibição de presentes é conclusão apro­ necessária para focalizar luz em uma direção. Como
priada para a preparação do santuário e do culto única fonte de luz na tenda do Encontro, os pavios
dentro dele. A intenção do autor sacerdotal ao re­ são colocados para lançar luz sobre a mesa onde é
criar esse cenário ideal no deserto é que seja segui­ colocado o pão de oferenda (Ex 40,23).
do na comunidade pós-exílica, na qual o povo de 8,5-26 Purificação dos levitas. A contínua
Israel, apropriadamente, se reúna em tomo da Pre­ ênfase na completa dedicação ao S e n h o r concen­
sença no meio dele, na qual tudo que é impuro seja tra nossa atenção no ritual para a consagração dos
purificado, onde a consagração total seja incenti­ levitas. Primeiro, o texto descreve os ritos e também
vada, e na qual o povo tenda ao culto assíduo e os propósitos da dedicação dos levitas no modelo
contribua com generosidade para o sustento do culto da palavra divina dada (w. 5-19) e obedecida (vv.
e dos sacerdotes. 20-22), depois determina a idade limite para o ser­
7,89 A voz. Acrescentado à descrição do povo viço levítico (vv. 23-26).
de Deus reunido em tomo da Morada, pronto para Antes, nos capítulos 3 e 4, aprendemos sobre o
0 culto, está um breve texto que por si só parece
recenseamento e as funções dos levitas. Aqui a ênfase
incompleto, mas na realidade conclui mais que o
está nos levitas como oferenda especial ao S e n h o r .
capítulo ao qual está ligado. O v. fala de Moisés
Eles “pertencem ao S e n h o r ” (vv. 14.16.18), são to­
entrando na tenda do Encontro para falar com o
mados “do meio dos filhos de Israel” (vv. 6.14.16.18)
S e n h o r ( c f . Ex 33,7-11). Embora Moisés ouça “a
e “doados” (w. 16.19) para o serviço, como contri­
voz”, a mensagem se perde para o leitor. E provável
buição especial (vv. 11.13.15.21; veja a argumenta­
que o texto tenha o propósito de transmitir a idéia
ção abaixo sobre o gesto de apresentação).
de que a presença divina habita, na verdade, o lugar
Quando o levita alcança a idade de serviço,
santo e dali fala ao povo por intermédio de Moisés.
submete-se a um rito de purificação (v. 7). E primei­
O propósito de toda a preparação da morada é ouvir
ro aspergido com a “água lustrai”, isto é, a água
a voz do S e n h o r .
No Sinai, onde as instmções para a construção que realiza o perdão dos pecado^. Depois passa a
da morada foram comunicadas a Moisés, o S en h o r navalha em todo o corpo, dessa forma removendo
prometeu que quando o lugar santo estivesse comple­ toda imperfeição e fazendo com que o cabelo futuro
to, “Lá eu te encontrarei e, do alto do propiciatório, cresça puro e limpo. Por último, lava as vestes para
entre os dois querubins sobre a arca do Documento, tomá-las puras, como os israelitas fizeram no Sinai
comunicar-te-ei todas as ordens que preciso dar-te quando se prepararam para a presença divina (Ex
para os filhos de Israel” (Ex 25,22). Nosso texto é o 19,10.14).
cumprimento direto da promessa do S en h o r . Esses levitas distinguem-se claramente do sa­
O “propiciatório” é uma placa de ouro coloca­ cerdote que é consagrado com óleo (Ex 29,7; Lv
da sobre a arca, onde está guardado o documento 8.12) e adornados com vestes completamente no­
da aliança (cf. Ex 26,34). Em ambas as extremi- vas (Ex 28,40-43; 29,8-9; Lv 8,13). Os levitas são
' dades do propiciatório há querubins de frente um homens tomados do meio do povo para representar
para o outro, com as asas estendidas em uma es­ o povo. Para dramatizar essa representação, os levi­
pécie de pálio sobre a arca. É o lugar mais alto de tas vêm diante da comunidade reunida. O povo
expiação, onde, no dia do Grande Perdão, o sacer­ “lhes impõe as mãos” (w . 9-10). A dedicação dos
dote queima incenso e asperge o sangue do sacri­ levitas substitui a consagração dos primogênitos
fício para purificar o povo de todos os pecados (Ex de todas as famílias israelitas (vv. 16-18; cf. 3,11­
25,17-22; 37,6-9). Neste lugar, o povo volta-se no­ 13.40-51). Desse modo, os levitas servem no lugar
vamente para a aliança e ouve a voz que o liga ao e em nome da comunidade. Seu serviço no cuidado
S enhor. do santuário é uma espécie de proteção para que
8,1-4 O candelabro. Continuam as atividades nenhum mal aconteça a quem quer que se aproxime
para aprontar o acampamento como o lugar onde o do santuário de maneira indigna (v. 19).
S e n h o r está presente e é cultuado. De acordo com Para o sacrifício, os levitas trazem oferendas
a palavra d o S e n h o r ( vv . 1.3), Aarão acende as sete para um holocausto e um sacrifício pelo pecado (vv.
lâmpadas. Esse acontecimento é o auge do que 8.12) . Os levitas põem as mãos sobre a cabeça dos
fora ordenado no Sinai. Instruções para o material animais para demonstrar que se entregam totalmente
158 e o desenho do candelabro foram apresentadas era a Deus. Um novilho e a farinha, como um banquete.
NÚMEROS 9

simbolizam a união entre o S e n h o r e os levitas e, do deserto, este último caso sugere um tempo poste­
assim, são totalmente consumidos. O outro novilho rior, quando as pessoas viajavam ao exterior e pre­
é oferecido para o sacrifício pelo pecado. valecia a prática de observar a festa no santuário
O sacerdote participa, apresentando os levitas central (cf Dt 16,2; Esd 6,16-22).
como “oferenda apresentada” (vv. 11.13; também A resposta a essas situações estipula que uma
vv. 15.21). Em outras ocasiões, o ritual seria para segunda festa pode ser celebrada um mês mais tarde
0 sacerdote pôr parte do sacrifício nas mãos do na mesma hora e de acordo com todas as leis para
ofertante, que o devolvería ao sacerdote. O sacer­ a festa (w. 11-12; c f Ex 12,8-10). Segundo esse
dote recebería essa parte como a que lhe cabia. dispositivo, quem está impuro pode ser purificado e
Esse movimento de dar e receber de volta e dar ao quem está ausente em viagem pode observar a festa
S enhor assemelha-se a um aceno. Nesse dia de de­ nessa data posterior. Que essa legislação suplemen­
dicação, 0 sacerdote recebe o próprio levita que é tar era realmente observada é evidente no caso de
dado como a parte de todo o Israel para uso e ser­ Ezequias. O Cronista (2Cr 30,1-5) registra a ocasião
viço do sacerdote (vv. 13-14; veja 3,5-10). O levita em que Ezequias convidou o povo das tribos seten­
entra no serviço do santuário subordinado aos sa­ trionais para que viessem a Jerusalém para a festa.
cerdotes aaronitas (v. 19). Pertence ao S enhor e A fim de acomodar a situação, naquele ano a festa
toma conta do lugar onde o S enhor habita no meio da Páscoa foi observada durante o segundo mês.
do povo. Entretanto, esse dispositivo não deve ser inter­
O levita dedica-se ao serviço especial do san­ pretado erradamente para isentar, por qualquer ra­
tuário apenas durante a flor da vida. Os limites de zão, as pessoas da observância da festa no dia espe­
idade estão entre vinte e cinco e cinqüenta anos cificado. Pelo tom do v. 13, deduzimos que só cir­
(vv. 24-25). Aparentemente, o tempo para iniciação
cunstâncias acidentais ou situações que fogem ao
no serviço varia conforme a necessidade e o número
controle são isenções legítimas. Quem se exime
de homens disponíveis. No capítulo 4, a idade para
dessa observância comunitária por razões de negli­
o início do serviço é trinta anos (vv. 35.39. 43.47);
gência provoca a exclusão da comunidade para si
em outros textos, a idade inicial é vinte (IC r 23,24; mesmo. O texto diz que “será cortado de sua paren-
2Cr 31,17; Esd 3,8). Não há variações para a idade
tela” (v. 13).
de aposentadoria do serviço. Quando o levita alcan­
A segunda situação diz respeito a migrantes
ça cinqüenta anos, pode auxiliar no trabalho dos
ou estrangeiros que desejem celebrar a festa. É uma
levitas mais novos, mas não pode mais ser respon­
sável por funções determinadas (v. 26). questão que deve ter surgido muitas vezes no decor­
9,1-14 A segunda Páscoa. Um novo impulso rer da história israelita. O problema também é trata­
é criado com uma série de preparativos finais para do em Ex 12,43-49, nos preceitos para a festa da
a partida do deserto do Sinai. E o tempo prescrito Páscoa. O que encontramos em Números correspon­
para a celebração da Páscoa (vv. 1-5), celebrada de exatamente. O migrante que aceitou a circunci­
pela primeira vez na véspera da libertação da escra­ são, “que mora entre vós” (v. 14), o que significa
vidão no Egito (cf. Ex 12-13). A legislação para alguém que aceitou o Deus dos israelitas, pode par­
celebrar a festa é imposta por Moisés no estilo das ticipar da festa. Entretanto, para esses indivíduos
ordens do S enhor (vv. 1-3), seguida pela execução não há exceções das normas e dos preceitos. Obser­
obediente da ordem (vv. 4-5). Moisés ordena ao varão a festa exatamente da mesma maneira que o
povo que celebre a festa na mesma data e ocasião, natural da terra.
isto é, no início do ano, no mês de Abib, ao entar­ 9,15-23 A nuvem e a Presença. Chegou a hora
decer do dia catorze (vv. 2-3.5; cf. Ex 12,2.6.18; da partida do local do deserto. Nesse ponto, chega
13,4; Lv 23,5). ao fim o grande evento no Sinai. A Morada está
O restante do texto apresenta situações da vida completa; está cheia da “glória do S enhor” e “a
real que interferem com a observância da Páscoa. nuvem cobriu a tenda do Encontro” (Ex 40,34-35).
Encontramos aqui um exemplo de novas instruções A nuvem é o sinal visível da presença divina
que se tornam o precedente para a prática posterior. na morada. Onde ela é visível, o S enhor está pre­
O povo consulta Moisés a respeito desses proble­ sente. Ela manifesta o S e n h o r “no meio deste povo”
mas, e Moisés busca orientação do S enhor para (Nm 14,14). A nuvem guiou o povo na fuga do
resolvê-los (v. 8; c f 15,34; 27,5; Lv 24,10-23 para Egito (Ex 13,21-22) e escondeu-o dos egípcios que
outros exemplos de busca de decisão do S enhor). se aproximavam (Ex 14,19.24). Quando a nuvem
A primeira situação é a de impureza. O que está visível sobre a tenda do Encontro, Moisés entra
deve fazer quem se tomou ritualmente impuro pelo na tenda para falar com o S e n h o r (Ex 33,9-10; Nm
contato com um cadáver (v. 6; c f 19,11-22), mas 12,5). Essa mesma nuvem determinará os movi­
que deseja participar da festa (v. 1)1 A instração mentos de Israel na longa caminhada pelo deserto
dada em resposta inclui outra situação — a da (Ex 40,36-38; Nm 10,12). Paira sobre a Morada
pessoa que “estiver fazendo uma longa viagem” (v. durante o dia e, à noite, assume a aparência de fogo
10). Embora o caso de impureza reflita a situação (vv. 15-16). 159
NÚMEROS 10

Com o centro na presença do S enhor no meio O restante do texto regula o uso das trombetas
do povo sob o símbolo da nuvem, o autor salienta depois que o povo estiver em sua “terra” (v. 9a). Soar
dois pontos importantes para as gerações de fiéis as trombetas é tarefa dos sacerdotes (v. 8). A práti­
que lerão ou ouvirão a história repetidamente. O ca é muitas vezes mencionada na literatura do pe­
primeiro é que a nuvem determina a duração da ríodo pós-exílico (cf. ICr 15,24; 16,6.42; 2Cr 7,6;
permanência de Israel em determinado lugar (vv. Ne 12,35.41). As trombetas são usadas para assina­
19-22). Às vezes a estada é longa; às vezes dura só lar a entrada em combate (v. 9; c f 2Cr 13,12). Soam
alguns dias; outras vezes é só do entardecer até de com mais freqüência para anunciar a observância
manhã. As horas de partir e montar o acampamento das diferentes festas, convocar o comunidade para o
não são, de modo algum, autodeterminadas. Quan­ culto e expressar ação de graças em ocasiões alegres
do o povo inicia a caminhada, cada fase do movi­ (V . 10; c f 2Cr 5,12-13; 29,26-28; Esd 3,10-11).
mento será em resposta à nuvem. O texto nos diz que a razão de se soar a trom-
Segundo, a afirmação enfática é que o S enhor beta é fazer com que sua lembrança seja “evocada
fala por meio da nuvem. Duas frases enfatizam diante do S enhor” e serem “salvos” (v. 9b; c f tam­
que os israelitas obedecem a ordem do S enhor para bém o V. 10b). O som da trombeta é um ato de
acampar e partir. Movem-se “segundo a ordem do oração e dependência, um chamado para que Deus
S enhor” ( vv. 18.20.23), expressão usada sete ve­ esteja presente, em especial em situações de neces­
zes; “asseguravam o serviço ao Senhor” e “garan­ sidade e celebração.
tiam o serviço do Senhor” ( v. 23). Israel adapta-se Essa passagem e, na verdade, toda a seção nos
totalmente à vontade de Deus em todos os passos caps. 1-10, terminam com a fórmula de reconhe­
do caminho na longa viagem para a terra. A ima­ cimento “Eu sou o S enhor, vosso Deus” (v. 10c;
gem é de uma época ideal, quando o povo ouve a para uma explição, c f também p. 146). Foi o S e­
voz de Deus e obedece voluntariamente às instru­ nhor quem convidou Israel para o relacionamento
ções e ordens divinas. único que resultou em tantas bênçãos. É o S enhor
10,1-10 Duas trombetas de prata. Nossa aten­ que atua nesse momento para estar com o povo,
ção volta-se da nuvem como presença orientadora guiá-lo, protegê-lo e levá-lo com segurança para
do S enhor para as trombetas de prata, instrumen­ sua terra.
tos usados para reunir e movimentar a comunidade
(v. 2). Conhecida do período da comunidade pós-
NA VIAGEM DO SINAI PARA MOAB
-exílica, a associação das trombetas com a geração
do deserto reforça a percepção de que o autor sacer­ Nm 10,11-22,1
dotal pretende unir a comunidade ideal do deserto, Até aqui, 0 povo esteve acampado no deserto
reunida em tomo do lugar santo, à comunidade do Sinai. Agora, inicia uma viagem que incluirá
devota do período mais tardio, quando o povo está algumas paradas no decorrer de muitos anos e ter­
sendo instruído nos ideais para viver apropriada­ minará na planície de Moab, localizada além do
mente na presença de um Deus santo. rio Jordão, em frente à Terra Prometida. Esta seção
Essas trombetas soam em um toque contínuo começa com a partida do Sinai (10,12) e termina
para convocar a comunidade. O verbo específico com a chegada em Moab (22,1). Do princípio ao
“soar” é usado nos vv. 3-4 e novamente nos vv. 7a. fim observamos a fórmula de viagem e a menção de
8.10 para indicar o tipo de sinal. Quando ambas diversos locais que deixam o leitor ciente do movi­
soam, toda a comunidade está sendo chamada para mento de um lugar para outro (10,12.33; 11,35;
se reunir (v. 3); quando apenas uma soa, só os 12,16; 20,la.22; 21,4.10-20; 22,1). O autor sacer­
chefes estão sendo chamados (v. 4). dotal usa uma estrutura baseada na tradição da ca­
O sinal para partir, quer em viagem, quer para minhada no deserto para apoiar o relato de eventos
a guerra, é uma série de toques breves modulados. que acontecem pelo caminho.
As trombetas de prata são mencionadas aqui porque Muitas histórias sobre a ameaça de perigo, a
o povo está prestes a iniciar a viagem. Os prepa­ falta de comida e de água, facções tribais e ciúmes
rativos já descritos nos capítulos anteriores, agora foram transmitidas dentro das famílias que fizeram
estão completos e o povo está pronto para avançar a caminhada. Essas narrativas tomaram-se a fonte
sob a proteção orientadora do S enhor. Quando é da qual nosso autor reuniu material para falar sobre
dado o primeiro sinal, parte o grupo de Judá no as provações da caminhada. As histórias encontram­
lado leste do acampamento (v. 5). Ao segundo sinal, -se nos capítulos 11-14; 16-17; 20-21. Sua narração
segue-se o grupo de Rúben, estacionado ao sul; de­ é viva e bastante diferente da linguagem estilizada
pois 0 grupo de Efraim, do lado oeste do acampa­ dos capítulos anteriores. Dão ao leitor um vislumbre
mento e, por fim, o grupo de Dan, do lado norte das lutas bem reais do povo ao qual Deus favorece­
(V. 6 ; cf. à p. 150, a disposição das tribos em tomo da ra. Ensinam lições importantes sobre as conseqüên-
Morada). As tribos são preparadas para partir de forma cias para indivíduos e grupos que deixam de seguir
160 ordeira e na ordem de precedência. a Deus e aos chefes designados. Voltada para a co-
NÚMEROS 11

munidade que está de passagem do deserto do Exí­ tos”, o grupo de Dan segue em último lugar (w .
lio para sua terra e em processo de restabelecimento 25-27).
e reorganização como comunidade de fé, as narra­ 10,28b-32 O cunhado de Moisés como guia.
tivas dão lições de história para a vida futura. A necessidade bastante prática de sabedoria huma­
Disseminados por toda a narração destes capí­ na na caminhada pelo deserto equilibra a história
tulos, encontramos tesouros da poesia antiga (10,35- que se concentrou exclusivamente na orientação
36; 12,6-8; 21,14-15.17-18. 27b-30). Estes fragmen­ divina. Moisés pede ao cunhado, Hobab, o midianita
tos sobreviveram do tempo do tempo que celebram (v. 29a), para servir de “olhos” para o povo, porque
e permitem ao leitor ouvir o que o próprio Israel ele conhece “os lugares onde devemos acampar no
cantava, recitava e lembrava. deserto” (v. 31). Os midianitas são nômades que
Como uma espécie de interrupção da ação dra­ vivem no deserto e conhecem suas rotas e lugares
mática desses capítulos, o autor insere alguns precei­ para acampar. Hobab é do clã de Siporá, mulher de
tos nos capítulos 15, 18 e 19. Não há nenhuma li­ Moisés, que era, segundo uma tradição, filha de
gação aparente entre o conteúdo das narrativas e Reuel (cf Ex 2,15-22). Em outras passagens, o pai
esses preceitos cultuais. São dirigidos às gerações do sogro de Moisés é litrô (veja Ex 3,1; 4,18; 18). As
futuras, fomecendo-lhes diretrizes para viver de modo tradições concordam que o sogro era sacerdote de
santo na presença de um Deus santo. Midian (Ex 2,16; 18,1).
Em seu pedido, Moisés promete a Hobab uma
Acontecim entos no deserto de Paran participação na felicidade que o S e n h o r prometeu na
(10,11-19,22) terra (w. 29b.32). A inferência é que os que se asso­
10,ll-28a Partida do Sinai. A partida do deser­ ciam ao povo do S e nhor participam dos benefícios
to é, mais uma vez, associada pela data à experiência que resultam da promessa de aliança do S e n h o r .
do Êxodo. Depois de quase um ano de atraso no A princípio, Hobab recusa o convite, porque
Sinai — desde o primeiro dia do terceiro mês (Ex prefere voltar a seu povo (v. 30). Essa passagem não
19,1) até o vigésimo dia do segundo mês, um ano relata a resposta final de Hobab. Supomos que sua
mais tarde (Nm 10,1 la) — e de preparativos finais resposta foi afirmativa, pois os parentes de Moisés
encurtados para apenas dezenove dias (cf. Nm 1,1) estão relacionados entre os que entram na terra (cf
é dado o sinal para o início da marcha. Jz 1,16; 4,11; ISm 15,6. Os qenitas mencionados
A nuvem que cobria a morada sai do lugar para nesses textos fazem parte do grupo midianita).
indicar a partida do acampamento (v. 1l,b; cf. a dis­ 10,33-36 A arca precede no deserto. Mais
cussão sobre a nuvem em 9,15-23). A nuvem guiará uma vez, a atenção se volta para a presença contí­
os israelitas em movimento até acomodar-se sobre o nua do S e n h o r no meio do povo. No acampamento,
deserto de P^ran, primeiro local de acampamento a nuvem se elevou sobre o santuário (v. 11) e, na
na caminhada contínua (v. 12). Embora a localização marcha, a nuvem se move com “a arca da aliança
não seja certa, é provável que essa primeira parada do S e n h o r ” ( v . 33) para guiar o povo. Tradicional­
fosse em Wadi Feiran, oásis na península seten­ mente o trono portátil da presença invisível do S e ­
trional do Sinai, ao sul do Négueb (cf. 13,17). O no­ n h o r , a arca é mencionada de maneira especial para

me Paran sugere que o autor tem em mente o bem mostrar que, na verdade, o S e n h o r caminha com o
conhecido oásis Feiran. povo e o lidera.
A ordem da marcha nos vv. 13-28 corresponde Inserido aqui está um antigo clamor ritual, re­
à organização designada no acampamento e às citado durante muitos anos sempre que o povo de
instruções para a partida em 2,1-31, incluindo mais Israel entrava em combate (c f SI 68,2; 132,8). Um
uma vez a menção aos chefes das tribos individuais. hino é entoado quando a arca parte com as tropas
O grupo de Judá do lado leste da morada ocupa o (v. 35), outro quando volta com elas ao acampa­
primeiro lugar e lidera a marcha (vv. 14-16). Depois mento (v. 36). Os hinos sustentam a tradição de que
deles, partem os levitas, que transportam os aces­ o S e n h o r , o Deus dos exércitos, marcha à frente
sórios da morada (v. 17; 2,17; veja as funções dos para derrotar os inimigos.
guershonitas e meraritas em 4,21-33). Em seguida A linguagem do hino é clara. Quando a arca
vêm as três tribos chefiadas por Rúben (vv. 18-20) se move, o S e n h o r se eleva e vai adiante do povo
e atrás delas os objetos sagrados da morada leva­ para dispersar os inimigos. Quando a arca descan­
dos pelos qehatitas (v. 21; cf. 4,4-20). Os objetos sa, o S e n h o r volta e se senta entronizado no meio
sagrados são separados da estrutura e das cober­ das tropas.
turas para que a tenda possa estar montada no novo Segundo a tradição, a arca conduziu o povo
local em preparação para abrigar a arca, o altar, a através do deserto e até aterra (cf Js 3,1-8), A arca
mesa e o candelabro no novo acampamento (v. 21b). permanece com o povo no acampamento quando
O grupo efraimita segue os objetos sagrados (vv. ele se queixa e se mostra infiel.
22-24), atuando, sem dúvida, como retaguarda. Fi­ 11,1-3 Descontentamento emXabeerá. Assim
nalmente, “na retaguarda de todos os acampamen­ que 0 povo saiu do Sinai, fez o que fará muitas 161
NÚMEROS 11

outras vezes — “se entregou a lamentações, e o “A ira do S enhor se inflamou em viva cólera”
Senhor as ouviu com desagrado” (v. 1). Este pri­ por causa da demonstração de cobiça dos israelitas
meiro relato do descontentamento do povo funcio­ (v. 10). Moisés e o S enhor respondem às lamen­
na como introdução resumida, pois estabelece um tações. Em vez de responder com intercessão,
padrão de comportamento que reaparecerá muitas Moisés sente pena de si mesmo. Lamenta que sozi­
vezes nas histórias dos acontecimentos no deserto. nho tenha de prover a grande multidão, dizendo:
Há um ciclo previsível de ações: o povo se entrega “Onde encontrarei came para dar a todo este povo
a lamentações (v. la); a cólera do S enhor provoca que me segue em lágrimas...?” (v. 13). Moisés supõe
0 castigo (v. Ib): 0 povo lança brados a Moisés que é sua responsabilidade encontrar came, mas
para obter alívio (v. 2c). expressa sua incapacidade de fazê-lo. Em vez de
Na verdade, há dois temas separados que essas buscar a ajuda do S enhor, demonstra ressentimento
narrativas realçam. Um é o da revolta e do castigo pela posição em que se encontra.
como característica da relação de Israel com o O S enhor, entretanto, ignora a lamentação de
Senhor no deserto (cf. também Ex 14,11-22; 15,23- Moisés e lhe fala em sua capacidade como mediador
25a; 16,2-15; 17,1-7, embora a narrativa de Núme­ (w . 18a.24a). O Senhor responde, não à preocupação
ros seja altamente estilizada em comparação). O expressa por Moisés, mas sim diretamente ao que o
outro tema é o de Moisés como intercessor a quem povo dissera. Deixa claro que, na verdade, o povo
0 S enhor responde com perdão e libertação. Este deseja voltar para o Egito (w. 18.20b), dessa forma
último tema é especialmente importante. A posição rejeitando a libertação divina. O Senhor instrui Moisés
de liderança única de Moisés e sua autoridade são a dizer ao povo para se “santificar” (v. 18), pois rece­
questões de tal interesse que as controvérsias a res­ berão came em tal abundância que ela lhes provocará
peito dele formam a base das narrativas nos capí­ fastio (vv 19-20). Moisés aparteia com uma dúvida
tulos 11-12; 16-17. sobre a capacidade do Senhor para fornecer a quan­
O incidente em Tabeerá é narrado para introdu­ tidade de carne necessária para satisfazer a tanta
zir os dois temas principais. Não é explicada a razão gente (w. 21-23).
pela qual o povo se entrega a lamentações nem são No cumprimento da palavra do S enhor (vv.
dados detalhes sobre o fogo enviado como castigo. 31-34), Moisés está conspicuamente ausente. O
O ciclo de revolta e perdão move-se rapidamente S enhor envia codomizes do mar em grande abun­
para a explicação do nome do lugar (v. 3). O nome dância. O povo as recolhe (vv. 31-32), mas, antes
Tabeerá deriva do verbo “queimar” ou “consumir”. de começarem a comê-la, o Senhor envia uma praga
Muitas vezes eram contadas histórias para explicar para punir os cobiçosos por sua lamentação (v. 33).
0 nome de lugares. Este aspecto é, de fato, uma Assim, o lugar foi chamado “sepulcros da cobiça”
característica das narrativas mais antigas (cf., por porque ali foram sepultados os que se deixaram
exemplo, Gn 16,13-14; 19,20-23; 21,31; 28,19-22; levar pela cobiça (v. 34).
Ex 15,23; 17,7). Comparando os elementos desta narrativa com
11,4-35 Reclamação em Qibrot-Taavá. Outro os descritos no incidente em Tabeerá (vv. 1-3), fica
incidente, mais complexo em sua estrutura, também claro que a resposta de Moisés à situação faz a
termina com a explicação do nome do lugar. Qibrot- diferença. Quando Moisés intercede pelo povo, o
-Taavá significa “sepulcros da cobiça” (v. 34). A S enhor responde com o perdão (v. 2). No incidente
história é sobre a reclamação do povo por não ter das codomizes, falta a intercessão de Moisés e o
carne suficiente para comer no deserto. Em resul­ resultado é a cólera do S enhor. A o colocar essas
tado, o povo é alimentado com codomizes (w. 4- histórias lado a lado, o autor está deliberadamente
9.10.13.18-24a) e também é punido por sua cobiça dando destaque à eficácia da intercessão de Moisés.
(w . 31-33). O lamento de Moisés (vv. 11-15) fornece o elo
Entrelaçada ao relato sobre o desejo de carne para a inclusão da segunda história a respeito da
está uma história sobre a participação na liderança participação na liderança de Moisés. A questão le­
de Moisés (vv. ll-12.14-17.24b-30). Examinaremos vantada por esse lamento é que ele está sobrecar­
cada história separadamente e veremos como se regado com a liderança de um povo que não é dele
combinam. (w . 12.14). Moisés vê isso como castigo (v. 11) e
O relato das codomizes contém os elementos sua mágoa é tão grande que a morte é preferível
de uma típica história de lamentação. Dois gmpos (v. 15). Moisés não pede ajuda na liderança; pede
independentes de pessoas — o elemento estrangeiro apenas o fim definitivo do jugo.
e os israelitas — lamentam a falta de came (v. 4). O Senhor ignora o desejo da morte de Moisés
Sentem saudades do tempo que passaram no Egito, e trata da questão de Moisés estar sozinho. Ordena
quando tinham abundância de peixe e vegetais (v. 5). a Moisés que escolha setenta anciãos e os leve à
Estão insatisfeitos porque tudo que têm para comer tenda do Encontro (v. 16; c f Ex 18,13-26 para a
é o maná, com o qual diariamente fazem pães com tradição a respeito da escolha de juizes para ajudar
gosto de bolo amassado no azeite (w . 6-9; cf. Ex Moisés a cuidar do povo). O SEtfflOR to-mará “um
162 16,13-14.31). pouco do espírito que está em [Moisés]” e o porá
NÚMEROS 12

nos anciãos para que carreguem com Moisés “o Na segunda lamentação, Miriâm e Aarão desa­
fardo do povo” (v. 17). Moisés faz exatamente como fiam Moisés com a alegação de que são tão profetas
0 S enhor ordenou (w . 24b-25a). Entretanto, nessa quanto ele — “Porventura o S e n h o r ...não falou
execução é acrescentado um novo elemento. Na também a nós?” (v. 2). Essa oposição revela ressen­
participação do espírito de Moisés, nada é dito sobre timento contra o papel exclusivo de Moisés como
compartilhar o jugo da responsabilidade atribuída mediador entre Deus e o povo, questão levantada na
a Moisés (v. 25b). Em vez disso, quando o espírito narrativa anterior (11,26-30). Se todos podem ser
pousa sobre os anciãos, eles profetizam (v. 25c). profetas, Moisés tem direito à exclusividade? A res­
Essa narrativa também apóia a singularidade da posta e o castigo são tais que esclarecem (w. 6-8)
posição de Moisés como líder. Outros podem profe­ e confirmam (w. 13-14) a autoridade de Moisés.
tizar, mas não compartilham o fardo da responsa­ Moisés não responde às lamentações. O texto
bilidade atribuída a Moisés — comunicar a pala­ afirma que ele é “um homem muito humilde, mais
vra do S enhor e levar o povo em segurança à Terra humilde que qualquer outro sobre a terra” (v. 3).
Prometida (v. 12). Essa afirmação tem sido interpretada como descri­
O tema de profecia ainda continua em outra his­ ção de alguém com honra pessoal e integridade de
tória (w. 26-30). Eldad e Medad, embora não sejam caráter. Apesar da oposição, Moisés honradamente
chamados de anciãos, estão entre os escolhidos por cumpre sua responsabilidade como chefe, quando
Moisés. Em vez de ir à tenda do Encontro com os se­ lhe pedem para interceder por Miriâm (v. 13).
tenta, permanecem no acampamento, onde o espírito A resposta à lamentação vem diretamente do
também pousou sobre eles, de modo que profetizam S enhor, em forma de instrução (vv. 4-8) e castigo
(v. 26). Josué, jovem auxiliar de Moisés (cf Ex 33,11), (w . 9-15). Reprimindo a queixa, o Senhor convoca
por alguma razão protesta contra isso e pede que Moisés, Aarão e Miriâm para a tenda do Encontro
Moisés os proíba (w. 27-28). Em vez disso, Moisés (v. 4), chama Aarão e Miriâm de lado (v. 5) e os
expressa o desejo de que “todo o povo do Senhor se instrui com um relato detalhado da diferença entre
tomasse um povo de profetas, sobre o qual o Senhor Moisés e um profeta (vv. 6-8). As palavras do
pusesse seu espírito” (v. 29). Não é o espirito de Senhor expressam uma tradição sobre Moisés que
Moisés, mas sim o espirito do Senhor que está sobre sobrevive em um fragmento de poesia antiga. O
eles. Moisés aprova a distribuição do espírito do Se­ poema afirma que o S enhor comunica-se com o
nhor e não se preocupa com a perda do próprio pres­ profeta em “visões” e “sonhos” (v. 6), mas, com
tígio: “Estás ciumento por minha causa?” (v. 29). O Moisés, o S enhor fala “de viva voz” e deixando-
que parece ser uma diminuição da posição de Moisés se ver (v. 8). Assim, ele é colocado acima de todos
na participação do espírito leva, em vez disso, a outro os outros como o mediador incomparável da pala­
esboço da singularidade de Moisés no capítulo 12, vra do S enhor. Aarão e Miriâm são repelidos com
esboço que se concentra no papel profético. a última pergunta que defende a autoridade de
Antes da história seguinte, há uma breve nota Moisés — “Como pois ousais criticar meu servo
sobre a caminhada do povo de Qibrot-Taavá a Haserot Moisés?” (v. 8b).
(v. 35), local do próximo incidente de revolta. Depois dessa repreensão, o S enhor se inflama
12,1-16 Ciúme de Aarão e Miriâm. A oposi­ de cólera contra eles (v. 9). Miriâm fica “branca
ção a Moisés vem dos que lhe são mais próximos. como a neve” por causa da lepra (v. 10). Aarão
A tradição afirma que Aarão e Miriâm acompanha­ apela à ajuda de Moisés e se identifica com o
ram Moisés desde a época do Êxodo (Ex 15,20-21; castigo em sua confissão de que ambos pecaram
cf. Ex 6,20). Miriâm e Aarão criticam Moisés por (v. 11). Moisés clama pela cura de Miriâm e por
duas razões: seu casamento com uma mulher kushita sua intercessão obtém o perdão do S enhor. A au­
(v. 1) e sua posição singular como porta-voz do toridade de Moisés é legitimada e confirmada com
Senhor (v. 2). Temos aqui outra história contada no a cura de Miriâm (vv. 14-16).
padrão de revolta e perdão final pela intercessão de A lepra de Miriâm é descrita como sendo “bran­
Moisés (cf. a argumentação sobre 11,1-3). ca como a neve” (v. 9) e comparada à aparência de
A razão para a lamentação por Moisés ter se um natimorto (v. 12). Recupera-se plenamente de­
casado com uma mulher kushita é obscura, pois só pois de passar sete dias fora do acampamento (vv.
há notícias de seu casamento com Siporá, que era 14-15a). Para esclarecer a situação, verifiquemos a
midianita (c f Ex 2,15-22; 4,24-26; 18,2-3). Se, lei que diz respeito ao leproso em Lv 13,9-17. Em
entretanto, a referência a Kushan é, na verdade, suma, a lei afirma que a pessoa leprosa é levada ao
um paralelo com Midian, como em Hab 3,7, então, sacerdote. Se a lepra cobre todo o corpo que se tor­
a critica é contra o casamento de Moisés com uma nou branco, o sacerdote declara puro o leproso. A
estrangeira. Há, de fato, uma tradição registrada brancura de Miriâm e sua exclusão do acampamento
em Nm 25,6-18 que polemiza o casamento com por sete dias não indicam uma lepra ativa, mas sim
midianitas, descritos como arquiinimigos de Israel. extinta. Miriâm foi punida com uma condição pós-
Essa lamentação reflete um forte preconceito con­ lepra. Sua exclusão do acampamento é pelo período
tra Moisés, por causa de sua mulher estrangeira. necessário para verificar sua pureza. 163
NÚMEROS 13

Durante o tempo da exclusão de Miriâm, o povo as cidades e as fortalezas (v. 19), o terreno e o solo.
permanece acampado em Haserot (v. 15b). Em se­ Também lhes ordenou que trouxessem frutos da
guida, parte e se instala no deserto de Paran (v. 16; terra (v. 20).
cf. o estudo sobre 10,11-28). 13,25-33 A volta dos exploradores. Depois
Os capítulos 13-14 apresentam o drama contí­ de quarenta dias, estada de duração significativa
nuo da revolta do povo, mesmo quando avistam a para avaliar adequadamente a situação (v. 25), os
Terra Prometida. Estes capítulos desenvolvem-se a exploradores voltam a Qadesh, onde se apresentam
partir de um número de tradições antigas que o a Moisés, Aarão e toda a comunidade e lhes entre­
autor sacerdotal organiza em uma única explicação gam os frutos (v. 26). Relatam que a terra “mana
para a longa caminhada de Israel no deserto. Em­ leite e mel” (v. 27), expressão que tradicionalmente
bora tenhamos uma única história, abordaremos o identifica a terra como a prometida pelo S e n h o r
conteúdo em seções para facilitar a leitura. (cf Ex 3,8.17; 13,5; 33,3 e muitas passagens do
13,1-24 Os exploradores entram em Canaã. Deuteronômio). Mas logo acrescentam que os ha­
Em obediência à palavra do S e n h o r ( v. 1), Moisés bitantes são descendentes poderosos dos anaquitas
envia uma delegação para explorar a Terra Prome­ e que as cidades são bem fortificadas (vv. 28.31­
tida (v. 2). Os israelitas estão acampados no deserto 33). Prevalecia a tradição que os anaquitas eram um
de Paran (v. 3a), em Qadesh (cf. v. 26), oásis bem povo numeroso, alto e forte (cf Dt 1,28; 2,21) que
conhecido, localizado a sudoeste do extremo meri­ precisava ser derrotado quando Israel entrasse na
dional do mar Morto. Estão diretamente ao sul da terra (Js 11,21-22; 14,12.15). A afirmação de que
Terra Prometida e próximos da entrada. Dali, a população era misturada — amalequitas, hetitas,
Moisés envia doze chefes, um de cada tribo, para iebusitas, emoritas e canaanitas (v. 29) — também
explorar a terra (vv. 3b-16). está de acordo com a tradição a respeito dos habi­
Os nomes dos chefes estão em uma lista tribal tantes antes da conquista. Os amalequitas encon­
que é disposição um tanto livre da contida em 1,5­ travam-se perto do Sinai (Ex 17,8-16); os hetitas
15. Os chefes não são os mesmos que os que apa­ eram primitivos habitantes de Hebron (Gn 23,13­
receram antes (cf também 7,12-83). Exceto por 19); os iebusitas controlavam Jerusalém (2Sm 5,6­
Kaleb e Josué, que desempenham papel importan­ 9). Os emoritas eram primitivos habitantes de Canaã
te nesta história (13,30; 14,6.24.30), os chefes não mais tarde forçados a deixar as planícies costeiras
são mais mencionados pelo nome. Há uma nota e se estabelecer nas terras altas. Faziam parte da po­
especial: Moisés mudou o nome de Hoshea para pulação canaanita nativa. Este último grupo esta­
Josué (v. 16). Josué, que significa “O S e n h o r é belecera-se nos vales férteis e na região costeira.
salvação”, relaciona-se com Hoshea, que significa Os exploradores descrevem um quadro ame-
“salvação”. Josué recebe seu novo nome em prepa­ drontador e recomendam que os israelitas desistam
ração para seu futuro papel como sucessor de da tentativa de entrar na terra porque nunca sobre­
Moisés (cf 27,12-23). E Josué quem fmalmente viverão ao poder dos habitantes (vv. 31-33). Assim,
conduzirá para a terra a geração seguinte de israe­ os exploradores desafiam a liderança do S e n h o r e
litas (14,30; c f Dt 31,7-8; Js 1,1-11). a promessa da terra a seu ancestral Abraão. De fato,
Os exploradores são enviados ao Négueb, área rejeitam a terra que o S enhor está prestes a lhes
seca ao sul de Judá, para prosseguir até as terras dar. Somente Kaleb incentiva o povo a prosseguir
altas que se estendem pela parte central de Canaã e expressa confiança no sucesso (v. 30). A exclama­
(v. 17). Chegam a Hebron, cidade localizada cerca ção de Kaleb neste ponto prepara seu papel, ao lado
de 32 quilômetros ao sul de Jerusalém, onde vivem de Josué, como um dos chefes que confiam no Deus
três tribos (v. 22; c f Js 15,14; Jz 1,20). O território de Israel (14,6-9). Segundo a tradição, os descenden­
em tomo de Hebron é conhecido por suas uvas, ro­ tes de Kaleb controlavam o território abundante de
mãs e figos. Por isso o lugar se chama Wadi Eshkol, Hebron e seus arredores (Js 15,13-14; Jz 1,20). Esta
“vale do Cacho” e é contada a história exagerada narrativa de Números explica a razão de Kaleb e seus
sobre o cacho de uvas que exigiu dois homens para descendentes serem favorecidos com essa posse.
ser transportado (vv. 23-24). O relatório dos exploradores prepara o terreno
Uma tradição afirma que os homens explora­ para a rebelião do povo. Nesse sentido, todo o capi­
ram desde o deserto de Sin até Lebô-Hamat (v. tulo 13 funciona como introdução ao ciclo de revolta
21); isto é, foram da fronteira meridional ao limite e perdão que se segue no capítulo 14.
setentrional da terra. O deserto de Sin faz parte do 14,1-10 O protesto do povo. Toda a comuni­
deserto de Paran perto de Qadesh (c f 20,1; 27,14; dade murmura contra Moisés e Aarão por causa do
33,36), e Lebô-Hamat, desfiladeiro perto do Orontes, relatório dos exploradores (vv. l-2a). Quando deseja
localiza-se no Líbano, na fronteira setentrional do nunca t e r saído do Egito, o povo rejeita o S e n h o r .
território de Israel (cf. 34,8; Js 13,5; Jz 3,3; 2Rs Temem o desastre que aguarda suas famílias e eles
14,25; Am 6,14). próprios (w. 2b-3). Concluem que seria melhor vol­
Moisés instruiu os exploradores para que obti- tar para a segurança da escravidão no Egito e até
164 vessem informações sobre a terra e o povo (v. 18), decidem nomear um chefe de sua escolha (w. 3b-4).
NÚMEROS 14

Moisés e Aarão respondem prostrando-se com pela criação de uma nova nação a partir de Moisés
0 rosto por terra, sentindo-se impotentes (v. 5). ou de qualquer outra pessoa. Como o único modo
Kaleb e Josué, pesarosos, rasgam suas vestes (v. de vida de Israel é o relacionamento com o S e n h o r ,
6). Apelam à comunidade, lembrando que a terra há lugar para castigo que não inclua a extinção da
é boa (v. 7), que o S e n h o r prometeu a terra e os aliança.
levará a ela (v. 8). Exortam o povo a confiar no 14,20-38 A sentença. O S e n h o r responde à ora­
S e n h o r que está com eles (cf. Ex 33). E lembram ção de Moisés anunciando o perdão (v. 20), isto é,
ao povo que não precisa temer os habitantes, por­ a continuação do relacionamento fundamental da
que “a sombra de seus deuses afastou-se deles” (v. aliança que é a base da existência de Israel. Mas
9). A palavra “sombra” significa literalmente que também há castigo. Na linguagem forte de um jura­
os habitantes estão expostos e são vulneráveis à mento (v. 21; cf. também w . 28.35), o S e n h o r afir­
ferocidade do sol e, metaforicamente, que o S e n h o r ma que aos que se rebelaram será negada a entrada
eliminou a proteção de seus deuses locais. Os habi­ na terra por causa de sua infidelidade; “nenhum verá
tantes não têm nenhuma proteção e “nós os engoli­ a terra que prometi a seus pais” (v. 23). Somente
remos de uma só vez”, isto é, serão destruídos com Kaleb, que confiou na promessa d o S e n h o r , entrará
facilidade. na terra e seus descendentes a herdarão (v. 24; c f Js
As palavras de Kaleb e Josué não são bem re­ 14,6-15). Também Josué é poupado do castigo (vv.
cebidas. O povo se rebela e ameaça apedrejá-los (v. 30b.38; 32,12).
10a), e o teria conseguido se o S e n h o r não intervies- O S e n h o r continua com uma descrição precisa
se. “A glória do S e n h o r apareceu... sobre a tenda do dos membros aos quais será negada a entrada na
Encontro” (v. 10b). A frase “glória do S e n h o r ” terra: todos os que não cessam de “protestar contra
é sem-pre usada pelo autor sacerdotal para expres­ mim” (v. 27) e os de mais de vinte anos de idade
sar a revelação do S e n h o r em poder e majestade. que foram recenseados (v. 29). Somente os filhos, a
geração seguinte, entrarão na terra e dela usufruirão
14,11-19 Castigo do povo e intercessão de
(v. 31). Os israelitas são, assim, condenados a perma­
Moisés. O S e n h o r , manifesto a todo Israel, fala a
necer no deserto por quarenta anos, um ano para
Moisés sobre o desprezo do povo e sua recusa em
cada dia da exploração (v. 34). Os filhos têm de
acreditar, apesar de todos os sinais (v. 11). O S e ­
sofrer o pecado dos pais, extenuando-se com eles
n h o r anuncia a extinção de todo o povo e promete
no deserto até que o último da geração tenha morrido
começar de novo, criando uma nação maior e mais
(vv. 33.35). Embora a comunidade esteja sendo
poderosa (v. 12).
punida, a aliança do S en h o r continua e perdura.
A essa altura, Moisés intercede e persuade o
Há um julgamento mais imediato dos explora­
Senhor a abandonar esse julgamento severo (vv. 13-
dores que instigaram os protestos com seu relató­
19). Ele pede com coragem, usando como argumento rio desencorajador. São atingidos por uma praga e
a fama do S enhor entre as outras nações (vv. 13- têm morte brutal (vv. 36-37).
16). Afirma que o Senhor é conhecido como um Esta história de rebelião responde a duas per­
Deus no meio do povo, um Deus que o acompanha guntas. Primeiro, dá o motivo da estada prolongada
dia e noite. Se esse povo for aniquilado, as nações de Israel no deserto, de modo que toda a geração que
terão motivo para dizer que o S enhor não teve o saiu do Egito ali pereceu. Como os israelitas rejei­
poder de fazê-lo entrar na terra e, por isso, os massa­ taram a terra são rejeitados para nela entrar. Segun­
crou no deserto. Moisés adverte que a honra e a po­ do, explica porque Israel caminhou para o leste a
sição do S enhor entre os deuses está em jogo. fim de entrar na terra pelaTransjordânia, em vez de
Citando uma fórmula confessional de Ex 34,6- seguir o caminho mais direto a partir do sul. A ex­
7, Moisés sugere que o poder do S enhor será me­ plicação dada é que, como os amalequitas e canaani-
lhor demonstrado, não matando, mas com paciên­ tas vivem nas planícies, Israel precisa voltar para o
cia, bondade, perdão e justo castigo do pecado (vv. sul e tomar o caminho que os levará ao redor do mar
17-18). Moisés resume seu apelo pedindo que o dos Juncos (v. 25; cf. 20,14-22,1 para os detalhes da
Senhor perdoe a iniqüidade do povo, como o pede viagem).
a grandeza do amor da aliança, exatamente como 14,39-45 Invasão fracassada. Outra narrativa
0 S enhor perdoou-o muitas vezes desde o Egito de revolta surge da questão do caminho a ser to­
até aqui (v. 19). Moisés pede ao S enhor que pre­ mado para entrar na terra. É um relato de fracasso
serve 0 relacionamento da aliança que foi feita por causa da recusa em obedecer à palavra de Deus.
quando o S enhor tirou o povo do Egito. Dessa for­ O povo se lamenta quando Moisés diz que é
ma, ele apela à fidelidade do S enhor à aliança e, preciso voltar e seguir para o sul longe dos ca-
ao mesmo tempo, reeonheee a completa liberdade naanitas e amalequitas (v. 39; c f vv. 25.43a.45).
do S enhor para manter ou romper o relacionamento Os israelitas admitem que estavam errados quando
com 0 povo. O perdão que Moisés pede é a preser­ ouviram o relato dos exploradores (13,27-33; 14,1-4)
vação do relacionamento entre o S enhor e o povo e resolvem dirigir-se diretamente para o norte nos
e a decisão de não deserdar a comunidade atual contrafortes de Canaã (v. 40). Moisés adverte-os 165
NÚMEROS 15

que estão sendo desobedientes. Avisa que o fracasso ' 15,17-21 Tributo sobre o pão. A segunda
é certo porque o S e n h o r não está em seu meio (w. prescrição faz parte da categoria de primeiras coi­
41-43). Este povo teimoso ousa partir sem a presen­ sas que pertencem ao S e n h o r (cf. Ex 13,11-16; Dt
ça da arca e da liderança de Moisés e em oposição 26,1-2; Nm 18,12-13). O texto concentra-se no
à palavra do S e n h o r ( v. 44). tempo futuro na terra (w . 18-19a) e aplica-se a
É uma narrativa de fiacasso. Demonstra as con- todas as gerações futuras (v. 21a).
seqüências de agir separadamente da palavra que é O preceito identifica de modo especial o pão
a base para o relacionamento da aliança com o feito do grão grosseiro tirado da eira (v. 20). Como
S e n h o r . Israel enfrenta o inimigo por conta própria toda a colheita é dádiva divina, a primeira massa
e é perseguido até Hormá, cidade localizada na re­ feita com o cereal colhido pertence a Deus.
gião de Beer-Sheba (v. 45; a derrota final de Hormá No período do Templo, o pão feito com a pri­
está relatada em 21,1-3). meira massa era apresentado ao sacerdote para que
A longa seção nos capítulos 11-14 contém O comesse. Essa oferenda simbolizava a devolução
cinco narrativas de rebelião: o incidente em Tabeerá, a Deus de parte da abundância recebida e fazia
a gula por came, o ciúme de Moisés, a rejeição da parte das provisões dos sacerdotes (cf. 18,13; Lv
terra e a invasão fracassada. Segue-se uma inser­ 23,10-11).
ção de cinco leis rituais que não têm ligação apa­ 15,22-31 Sacrifícios pelo pecado. A terceira
rente. Todas as instruções têm o propósito de guiar instrução divide-se em duas seções: os sacrifícios
a comunidade quando ela chegar à terra. Assim, as pelos pecados ou faltas “por inadvertência” ou invo­
leis voltam-se para o futuro. Refletem modifica­ luntárias (vv. 22-29) e o castigo pelo pecado preme­
ções que surgem da prática cotidiana. ditado (vv. 30-31).
15,1-16 Oferendas secundárias. Toda dimen­ No caso das faltas involuntárias, é feita uma
são da vida pertence ao S e n h o r ; portanto, todas as prescrição separada para expiação quando a comu­
leis são diretamente atribuídas ao S e n h o r . Cada nidade estiver envolvida (vv. 22-26) e quando um
uma das diretrizes é instrução explicita do S e n h o r indivíduo estiver envolvido (vv. 27-29). Os sacrifí­
(v. 1). Todas concentram-se na ocasião em que Israel cios prescritos (w . 24.27) devem ser oferecidos
tiver entrado na terra (v. 2). em expiação pelo sacerdote para que o pecado co­
A primeira lei descreve as quantidades de fari­ metido por inadvertência possa ser perdoado (vv.
nha, azeite e vinho que devem acompanhar as “ofe­ 25.28). Mais uma vez há menção específica de
rendas de agradável perfume” dadas para os diver­ que o preceito se aplica igualmente ao israelita e
sos sacrifícios (v. 3). A frase “de perfume agradá­ ao migrante (vv. 26.29).
vel” significa que a oblação é agradável ao S e n h o r . Quando o caso é de pecado premeditado, uma
Baseia-se na idéia que Deus cheira e se deleita com “injúria” contra o S e n h o r , nenhum sacrifício pode
0 sacrifício apresentado em ocasiões de alegria. absolver. De fato, o israelita ou migrante que ousa-
Todo sacrifício, de um cordeiro (w. 4-5), de um damente “desprezou a palavra do S e n h o r ” e “violou
carneiro (vv. 6-7), de um novilho (vv. 8-10) ou de os seus mandamentos” escolheu ser cortado da co­
uma cabra (v. 11), deve ser apresentado com um munidade do povo de Deus. O castigo para ele é a
peso proporcional de farinha, azeite e vinho. As separação da comunidade.
quantidades de farinha, azeite e vinho aumentam 15,32-36 O violador do sábado. O quarto
conforme o tamanho do animal. preceito é dado como solução para um comporta­
Não se sabe ao certo por que uma oferenda de mento específico. O povo encontra um homem apa­
farinha e uma de vinho devem acompanhar todos nhando lenha em dia de sábado (v. 32). O homem
os sacrifícios. Talvez a idéia fosse oferecer uma re­ “foi posto sob guarda porque não se havia determi­
feição completa. Podia também ser a idéia de ofere­ nado qual a pena que lhe seria imposta” (v. 34). Q
cer os recursos naturais da terra (cf. Dt 7,13). Qual­ caso em questão é exemplo da maneira como sur­
quer que seja o significado do sacrifício, o texto giam novos preceitos que seriam normativos para
diz respeito a dar a Deus uma oferenda completa situações futuras semelhantes (cf. o comentário so­
e aceitável. bre 9,6-13).
Há uma nota adicional para reforçar que a ins­ A lei do sábado afirma claramente que o traba­
trução aplica-se tanto aos israelitas como aos mi­ lho é proibido (cf Ex 20,8-11) e a condenação à
grantes (vv. 13-16). Afirma que o estrangeiro que morte é o castigo prescrito por desobedecer à lei do
veio habitar entre os israelitas tem direitos iguais sábado (cf Ex 31,14-15; 35,2-3). O que não está
e também as obrigações correspondentes. O deta­ claro é a forma de execução a ser usada no caso de
lhe dessa nota sugere que a presença de “migrantes violação deliberada da lei.
residentes” é questão de importância considerável. A resposta é que toda a comunidade apedrejará
O princípio da lei — “Diante de Deus vós e o mi­ o homem fora do acampamento (v. 35). Essa pessoa
grante são iguais” (v. 15) — reflete uma atitude é, assim, excluída da comunidade de maneira sim­
básica de justiça que dá testemunho da autentici- bólica, ao ser levada para fora do acampamento, e
166 dade da fé israelita. também de maneira física, pela sentença de morte
NÚMEROS 16

(v. 36). A estrita observância do sábado assumiu vamente o primeiro plano no exato momento em que
importância maior depois do Exílio e continuou no 0 documento está sendo escrito pelo autor sacerdotal.
tempo de Jesus (cf. Jo 9,16). Há uma luta dos sadoquitas, descendentes de Eleazar
15^7-41 As franjas das vestes. O quinto pre­ para assegurar o sacerdócio (c f 3,1-4, esp. v. 4b;
ceito faz da antiga prática de usar franjas nas bordas ICr 24; Ez 44,10-31). A narrativa de Números reflete
da veste externa um requisito com significado espe­ a supremacia de Eleazar e dos sadoquitas (17,1-5).
cífico (cf. Dt 22,12). Essa prática sobreviveu até o Os qehatitas levíticos tinham de se contentar em ser
judaísmo (Mt 9,20; 14,36; 23,5; Mc 6,56; Lc 8,44). porteiros (lC r26,l) e cantores (SI 42-49.84.85.87.88).
As franjas são atadas com um fio de púrpura A própria história de Qôrah reflete dois confli­
(v. 38) e têm o propósito de atrair o olhar. Servem, tos importantes. No primeiro, Qôrah e os duzentos
assim, de lembrete da presença e dos mandamen­ e cinqüenta conspiradores afirmam que a tribo de
tos do S enhor ( v. 39). O ornamento externo tem o Levi, que inclui Moisés, Aarão e seus descenden­
propósito de lembrar o povo que um Deus santo tes, não é mais sagrada que as outras tribos (vv. 2-
está no meio dele e que, para viver na presença de 3). Argumentam que, como o S enhor está no meio
um Deus santo, precisam observar os mandamen­ da comunidade, Moisés e Aarão não têm o direito
tos pelos quais a aliança é preservada. O cumpri­ de reivindicar santidade para si mesmos acima do
mento dos mandamentos é o sinal de um povo resto. Todo membro da comunidade é santo por
santo (v. 40). causa da presença do S enhor . Um segundo confli­
A razão para observar a instrução é que o to apresenta Qôrah e seus seguidores como levitas
S enhor está presente e continuará a estar com um que se opõem à autoridade de Aarão e tentam tomar
povo fiel. A fórmula “Eu sou o S enhor, vosso Deus o poder do sacerdócio para si mesmos (vv. 8-11).
que vos tirou da terra do Egito para ser, para vós. Os levitas não se contentam com a posição especial
Deus" (v. 41) é um lembrete do próprio fundamen­
a eles foi destinada no serviço do santuário, mas
to da existência de Israel. Conclui a última instru­
desejam a plena autoridade do sacerdócio. Estas
ção e também a série de cinco instruções. O povo
duas lutas muito antigas e bastante reais — o reco­
é convidado a dar uma resposta obediente para
nhecimento da santidade de cada pessoa e o conflito
demonstrar lealdade à aliança. Se o relacionamen­
sobre a posição privilegiada do saeerdócio — fun­
to da aliança é rompido, é porque Israel deixou de
dem-se em uma única narrativa de revolta, à qual
observar a palavra que o S enhor deu para sua orien­
Moisés responde.
tação desde o Egito.
A seção 16,1—17,5 retoma o tema de revolta. Moisés prostra-se (v. 4); não intercede. Em vez
É uma narrativa contínua formada de duas histórias disso, deixa o S enhor decidir quem é o santo e quem
de revolta independentes: Qôrah e seus compa­ Deus escolhe para se aproximar (v. 5). Essa revolta
nheiros contra Aarão (16,la.2-l 1.16-24.32b.35; contra os líderes é reconhecida como revolta contra o
S enhor, a ser por ele resolvida (v. 11).
17,1-5) e os dois rubenitas, Datan e Abirâm, con­
tra Moisés (16,lb.l2-I5.25-32a.33-34). As duas nar­ Moisés instrui Qôrah e seus seguidores para
rativas refletem antigas lutas pelo poder que irrom­ preparar incensórios com fogo e incenso (vv. 6-7),
peram vezes sem conta no decurso da história. A ação reservada ao sacerdote. Moisés está dizendo a
tradição sacerdotal é responsável por juntar os dois Qôrah para assumir o sacerdócio e depois ver quem
incidentes em uma narrativa contínua de rebelião o S enhor escolhe.
simultânea. 16,12-15 Revolta de D atan e Abirâm. A ge­
16,1-11 Revolta de Qôrah. O relato começa nealogia de Datan e Abirâm aparece no início do
com a apresentação da genealogia de Qôrah, filho capítulo, na fusão das duas histórias independentes.
de lisehar, filho de Qehat, filho de Levi (v. la; c f São descendentes do primogênito de Jacó, Rúben
Ex 6,17-25, esp. vv. 18.21.24). Em geral, quémto (v. Ib; 26,5-8; Gn 35,23). A tradição de sua revolta
mais longa a lista de nomes, mais importante o in­ é antiga e contada em outras passagens (Sl 106,16-
divíduo. É digno de nota que Qôrah é levita e per­ 18; Dt 11,6).
tence à família dos qehatitas, a quem é designado Datan e Abirâm representam a facção política
o cuidado dos objetos mais sagrados do santuário que se recusa a reconhecer a liderança de Moisés.
(cf 3,27-32; 4,1-20). Todavia, na execução de seu Quando dizem: “Não subiremos” (w. 12b. 14c), so­
serviço estão sempre subordinados ao sacerdote mos tentados a pensar que talvez sejam chefes que
(4,15.20). conspiraram com os exploradores na recusa de entrar
A revolta de Qôrah surge, sem dúvida, de uma na terra (14,1-4). Suas preocupações os identificam.
longa luta por maior autoridade. Os qehatitas podem Lamentam terem sido trazidos do Egito e temem
chegar perto dos vasos sagrados, mas, se os toca­ morrer no deserto (v. 13a). Queixam-se que Moisés
rem, morrerão. Transportam-nos, mas só depois que se estabeleceu como chefe (v. 13b; cf. Ex 2,14).
foram cobertos pelos sacerdotes. Qôrah, chefe entre Queixam-se também que ele não cumpriu a promessa
os qehatitas, lidera a revolta contra a autoridade dos de levá-los a uma terra onde teceberiam campos e
sacerdotes. A tensão entre esses grupos alcança no­ vinhas (v. 14a). Como insulto final, os rebeldes ale- 167
NÚM EROS 16

gam que Moisés os está enganando, quando pergun­ lheres e seus filhos postam-se à entrada de suas
tam: “Julgas que este povo é cego?...” (v. 14b). É uma tendas, em expectativa (v. 27). Está montado o ce­
expressão idiomática para seduzir com falsas pro­ nário para um ato de julgamento.
messas (cf ISm I I A Pr 30,17). A palavra de julgamento vem diretamente de
Moisés responde encolerizado. Não se defen­ Moisés, para confirmar sua autoridade e refutar
de contra a acusações e sim confessa que não fez qualquer suspeita de estar agindo por conta própria
mal a ninguém (v. 15). A afirmação; “Não tomei (v. 2 8 ) . O julgamento será reconhecível pelo fato
deles um asno sequer” é usada para defender-se de que a morte, “a sorte de todo mundo”, não será
contra a acusação de abuso de posição (cf. ISm por causas naturais (v. 2 9 ) . O S e n h o r fará “algo de
12,3; 8,16). extraordinário”, isto é, um ato de criação, para que
16,16-24.35 Castigo de Qôrah. A história de morram de uma forma da qual jamais se ouviu
Qôrah é resumida aqui, retomando o v. 11. Moisés falar antes (v. 30a). A terra se abrirá literalmente e
diz a Aarão e a Qôrah e seu grupo para cada um os engolirá com todos os seus bens (v. 30b).
preparar seu incensório e se colocar à entrada da Assim que Moisés pronuncia a palavra de jul­
tenda do Encontro (vv. 16-17). A preparação dos gamento, sua autoridade é comprovada à vista de
incensórios é descrita em detalhe para enfatizar o todos. A terra se abre e, por ironia, os que se recu­
ato de assumir o sacerdócio (v. 18), o que é feito em saram a subir (vv. 12.14) enfrentam o destino de
antecipação do julgamento. descer à morada dos mortos com tudo que lhes
Neste momento, “a glória do Senhor” se mani­ pertencia (vv. 31-33). Os que acusaram Moisés de
festa em poder e majestade diante de toda a comu­ tirá-los do Egito “para fazê-[los] morrer no deser­
nidade (v. 19). Moisés e Aarão são instruídos para to” (v. 13) sofrem o cumprimento de sua acusação.
se separar do grupo que vai ser castigado, porque Datan e Abirâm desaparecem da face da terra e
estão isentos do julgamento (vv. 20-21). Respondem não resta nenhuma evidência nem sinal deles. No
prostrando-se e implorando para que todo o povo de V. 32b é mencionado que a gente de Qôrah sofre o
Deus não pereça por causa do pecado de um único mesmo destino, para unir os dois relatos.
grupo (v. 22). Dirigem-se ao S enhor, chamando-o De forma bastante compreensível, todos os israe­
pelo título antigo, “El”, que significa simplesmente litas fogem, com medo de que o mesmo lhes acon­
Deus, 0 Criador da vida. Pedem que Deus não des­ teça (v. 34). A história é contada para que Israel
trua a vida que foi dada (cf também 27,16). O Se­ conheça a singularidade de Moisés em sua vocação
nhor, assim, isenta a comunidade de julgamento. Ao de conduzir o povo do Egito à Terra Prometida.
povo é dito para que se afaste do lugar (w. 23-24). 17,1-5 Um sinal para os israelitas. Esta passa­
Assim que a comunidade obedece, um fogo irrompe gem apresenta uma explicação para as chapas que
do S enhor e consome os rebeldes (v. 35). Há uma cobrem o altar e também prenuncia a sucessão de
nota em 26,11, afirmando que nem todos os descen­ Eleazar como sacerdote depois de Aarão (cf 20,22-
dentes de Qôrah pereceram. 29). A Moisés vem a palavra (v. 1) que Eleazar deve
Essa narrativa resolve de uma vez por todas a juntar os incensórios que foram consagrados e, de­
questão da autoridade sacerdotal. O objetivo da re­ pois de espalhar o fogo, reduzi-los a lâminas para
volta de Qôrah eram o desejo e a amljição de ser recobrir o altar (vv. 2-3). Eleazar faz exatamente o
sacerdote, tomar o incensório, o fogo e o incenso que o Senhor ordena (w. 4-5). Como os incensórios
e ficar diante do S enhor. O s qehatitas haviam sido foram consagrados à custa de tantas vidas, devem
avisados que não deviam tocar nenhum dos objetos ficar protegidos de qualquer abuso (cf Ex 29,37;
sagrados sob pena de morte (4,15.20). A morte pelo 30,29). A cobertura feita dos incensórios consa­
fogo foi prenunciada na retirada do fogo do altar (cf grados seria um lembrete de que ninguém que não
a narrativa em 3,1-4 e Lv 10,1-2). seja um sacerdote verdadeiro, um descendente de
A menção de Datan e Abirâm junto com Qôrah Aarão, se aproxime do altar. A cobertura funciona
nos vv. 24 e 35 reflete a intenção de fazer das duas como aviso das consequências de qualquer ação
histórias uma só. O castigo de Qôrah ocorreu perto imprópria.
da tenda do Encontro. A referência à morada nes­ 17,6-15 O povo se revolta. Outra narrativa que
tes vv. vem da história de Datan e Abirâm, que, contém os elementos da típica história de revolta e
segundo o relato seguinte (vv. 25-34) são castiga­ perdão (cf o comentário sobre 11,1-3) surge dos
dos perto de suas tendas. acontecimentos da revolta de Qôrah. O povo protes­
16,25-34 Castigo de Datan e Abirâm. Esta é ta e culpa Moisés e Aarão pela morte de tantos de
a conclusão da história da revolta contra a liderança seus compatriotas (v. 6).
de Moisés. E retomada diretamente do v. 15. O S enhor aparece da maneira usual e resolve
Moisés e os anciãos aproximam-se dos rebeldes aniquilar toda a comunidade. Somente Moisés e
Datan e Abirâm (v. 25). Moisés fala diretamente às Aarão serão poupados. Moisés instrui Aarão para
pessoas da comunidade, avisando-as para que se tomar seu incensório, pôr nele fogo do altar e fazer
afastem dos rubenitas rebeldes, para não sofrerem o ato de absolvição para o povo (v. 11). A ação inter-
168 o castigo também (v. 26). Datan e Abirâm, suas mu­ cessora de Aarão põe fim ao flagelo, mas não antes
NÚMEROS 18

que um número significativo de pessoas tenha funções dos sacerdotes e levitas que se segue res­
morrido (vv. 12-15). O sacerdote Aarão age assim ponde à preocupação.
na capacidade de sumo sacerdote, mediando cura 18,1-7 Funções dos sacerdotes e levitas. So­
e vida de Deus. Permanece “entre os mortos e os mente nesta seção a palavra do S enhor é dirigida
vivos” (v. 13); sua intercessão impede efetivamente diretamente a Aarão (v. 1; c f também os vv. 8.20),
mais destruição. o que é apropriado, pois a instrução distingue os
A narrativa confirma Aarão e seus descendentes sacerdotes dos levitas e dá prioridade aos sacerdo­
e esclarece ainda mais o papel do sacerdote, consa­ tes. Fica claro o papel de cada um. Como legíti­
grado para o bem o povo. Por intermédio do sacer­ mos possuidores do sacerdócio, Aarão, seus filhos
dote, as forças vivificantes fluem de Deus. Somen­ e seus descendentes são os únicos responsáveis pelo
te o sacerdote é escolhido para essa tarefa de me­ santuário (v. 1). Somente eles podem chegar perto
diação. A escolha divina da família sacerdotal ba­ do altar, desempenhar as funções sacerdotais e tocar
seia-se na lenda a seguir. 0 que pertence ao altar (vv. 1.5.7).
17,16-26 O bastão de Aarão. O florescimento A morte é o castigo para todo profano que se
do bastão de Aarão é passagem literária encantado­ aproximar do altar (vv. 4b.5b.7b). Os levitas, paren­
ra, criada a partir de um trocadilho. As palavras tes dos aaronitas, foram separados em lugar dos
hebraicas para “bastão” e “tribo” são exatamente as primogênitos de Israel para o serviço do santuário,
mesmas. O bastão inanimado que floresce represen­ pois “assim os filhos de Israel não serão mais feri­
ta a tribo que Deus escolhe e abençoa para o serviço dos por minha cólera, por se terem aproximado do
do sacerdócio. A história é contada para silenciar de lugar santo” (cf o comentário sobre 8,19). São de­
uma vez por todas os “protestos” (vv. 20.25) contra dicados ao S enhor e doados aos sacerdotes (v. 6;
Aarão e seus filhos como os escolhidos de Deus. veja 3,5-4,49; 8,5-26). Os levitas devem ser auxilia­
A repetição de detalhes na palavra de Deus a res dos sacerdotes. Estarão a serviço dos sacerdotes
Moisés (vv. 16-20), cumprida de maneira precisa e do lugar santo, mas não podem tocar o altar nem
(vv. 21-23), destaca a escolha divina do bastão/tri- os objetos sagrados (vv. 2-4).
bo. De acordo com a orientação do Senhor , Moisés A prioridade evidente do sacerdócio aarônico
ordena que cada chefe, representando uma das tri­ sobre os levitas é definida neste texto pela palavra
bos, traga um bastão no qual esteja escrito seu no­ “doados” (v. 6). Os levitas são doados a Aarão e seus
me. O nome de Aarão é escrito no bastão da tribo filhos. A ascendência do sacerdócio aarônico foi mais
de Levi (v. 18). Os doze bastões são, então, postos pronunciada no período do Exílio e depois dele.
na tenda do Documento, diante do S enhor, que ex­ 18,8-20 Participação dos sacerdotes nos sa­
primirá a escolha da tribo por um milagre. crifícios. Esta é uma cuidadosa descrição da remu­
No dia seguinte, Moisés entra na tenda e vê neração devida aos sacerdotes e suas famílias por
que o bastão de Aarão havia florescido e que nele seus serviços em benefício do povo. Os sacerdotes
despontara um botão, uma flor havia desabrochado não têm terras nem patrimônio; seu único bem é o
e amêndoas haviam amadurecido (v. 23). Moisés Deus a quem pertencem (v. 20; c f Js 13,14; 14,3-4).
traz todos os bastões para fora, para que o povo os Portanto, têm direito de ser sustentados pelo povo.
veja, e devolve cada um a seu dono (v. 24). O bas­ O que é oferecido em sacrifício a Deus pertence
tão de Aarão, entretanto, é levado de volta à tenda aos sacerdotes como sua parte (v. 8).
do Encontro, onde permanecerá como sinal e para Os sacerdotes têm participação em todas as
que as gerações futuras saibam que os filhos de oferendas mais sagradas, sejam elas oblações, sacri­
Aarão foram escolhidos para ser os únicos sacer­ fícios pelo pecado ou sacrifícios de reparação. A
dotes legítimos (v. 25). única injunção é que sua parte seja tratada como
17,27-28 Objetos sagrados. Estes vv. estão santíssima (vv. 9-10). Recebem o peito e a coxa
apropriadamente inseridos como transição entre a direita oferecidos por apresentação (vv. 11.18b).
série anterior de narrativas e o esclarecimento que Também o melhor do azeite novo, o melhor do vi­
se segue de funções e recompensas sacerdotais. Os nho novo e do trigo, apresentados como primicias,
vv. apresentam o povo clamando a Moisés, como pertencem aos sacerdotes e podem ser consumidos
fazem tantas vezes ao enfrentar o castigo (v. 27). pelos membros de suas famílias (vv. 12-13). Deles
Neste caso, clamam com medo de todos morrerem é tudo que for “votado ao interdito”, isto é, o que
com certeza se chegarem perto da morada (v. 28). foi dedicado a Deus e não puder ser resgatado (v.
A preocupação expressa aqui reflete uma questão 14). No antigo Israel, por exemplo, tudo o que
real que provocava disputas entre as categorias de fosse tomado na guerra pertencia a Deus e tinha de
sacerdotes. E também preocupação legítima do povo ser destruído. Em anos posteriores, o que pertence
que acampa em torno da morada e conhece o cas­ a Deus é reivindicado pelos sacerdotes, inclusive
tigo que acontece a quem ultrapassa os limites do todos os primogênitos. Os filhos primogênitos e os
santo. O desespero que repercute na escolha de animais impuros devem ser resgatados e o dinheiro
verbos — “morrer”, “perecer”, “destruir” — real­ entregue aos sacerdotes. Os primogênitos dos ani­
ça a gravidade da questão. O esclarecimento das mais puros pertencem aos sacerdotes, exceto o san- 169
NÚMEROS 18

gue que é derramado sobre o altar e a gordura quei­ ção total (v. 4). O animal é então queimado em sua
mada no fogo (vv. 15-18á). totalidade diante do sacerdote, que acrescenta ao
O S enhor promete tudo isso aos sacerdotes e fogo madeira de cedro, hissopo e carmesim brilhan­
suas famílias, filhos e filhas, como “aliança con­ te (vv. 5-6). Acredita-se que esses artigos tenham
sagrada pelo sal, perene aos olhos do S enhor” . efeito purificador e são também usados para purifi­
Essa linguagem forte significa literalmente “alian­ car leprosos (cf Lv 14,6-7). Em seguida, o sacerdote
ça de sal”. A frase ocorre novamente apenas em e aquele que tiver queimado a novilha lavam suas
2Cr 13,5, com referência à realeza davídica. Segun­ vestes e se banham. Permanecem impuros até a tarde,
do os sacerdotes responsáveis por ambos os tèxtos, quando podem voltar ao acampamento (vv. 7-8).
somente o que se aplica aos sacerdotes e à família Finalmente, um homem em estado de pureza
de David é garantido para sempre. do ponto de vista cultuai recolhe as cinzas e as de­
18,21-24 Dízimos devidos aos levitas. Os le- posita em um lugar puro, fora do acampamento, a
vitas que cuidam da propriedade do santuário prote­ fim de que estejam disponíveis para uso na água
gem o povo do perigo (vv. 22-23a). Não têm ne­ lustrai (v. 9a). A afirmação de que a novilha é um
nhum patrimônio próprio (vv. 23b.24b) e, portan­ sacrifício pelo pecado (v. 9b) é estranha, pois o
to, dependem do sustento do povo. O S enhor de­ animal não é sacrificado nem apresentado a Deus,
termina que os dízimos dados como contribuição mas sim totalmente queimado e usado para produzir
ao S enhor sejam entregues aos levitas em retribui­ cinzas para a água lustrai aspergida em ritos de pu­
ção pelo seu serviço (vv. 21.24a). O dízimo con­ rificação. O homem que recolhe as cinzas também
siste em um décimo do produto da terra, das árvo­ se torna impuro e deve lavar suas vestes e perma­
res e do rebanho (cf Lv 27,30-33). A prática de necer fora do acampamento até a tarde (v. 10). O
apresentar o dízimo para o sustento dos levitas con­ ritual aqui descrito não tem paralelo. Faz insinua­
tinuou, com algumas variações, dos tempos primi­
ções mágicas que sugerem adaptação de uma prática
tivos até 0 período pós-exilico (cf. Dt 14,22-29;
dos arredores estrangeiros.
12,17-19; 26,12; 2Cr 31,4-6).
19,11-22 Uso das cinzas. As cinzas são prepa­
18,25-32 Dízimos pagos pelos levitas. Os dí­
radas especificamente para uso nos ritos de purifi­
zimos entregues aos levitas para seu sustento devem
cação dos que se tomaram impuros pelo contato
ser considerados dádivas divinas dadas a eles, vin­
com cadáveres. Já vimos que o contato com os mor­
das da terra e da vinha. Também os levitas devem
tos é um meio de contaminação (5,2). Os diversos
pagar o dízimo. O S enhor ordena que apresentem
preceitos e rituais para eliminar essa impureza são
um “dízimo dos dízimos” (v. 26) aos sacerdotes
apresentados nesta passagem.
como oferenda, como se fossem provenientes de
suas eiras e seus lagares (vv. 27.30). São exortados Segundo a lei, quem tocar um cadáver fica im­
a oferecer a melhor parte, para que devolvam a puro por sete dias. Esse indivíduo precisa ser bani­
Deus o melhor do que lhes foi dado (vv. 28-30. do do acampamento para que a comunidade não
32a). O que resta pode ser comido por eles e suas seja contaminada. A pessoa contaminada é indigna
famílitis — é sua remuneração pelo serviço. Esse do lugar santo onde o Senhor habita. Para se puri­
alimento é sagrado porque foi oferecido como con­ ficar a pessoa precisa ser aspergida com água no
tribuição a Deus. Deve, portanto, ser consumido, terceiro e no sétimo dias (vv. 11-13).
para que o levita não atraia sobre si o castigo por Segue-se uma lista de circunstâncias que pro­
abuso daquilo que foi consagrado (vv. 31-32). vocam impureza (vv. 14-16). Quem entrar em uma
Além de distinguir entre o sacerdote e o levita, tenda onde há um cadáver, bem como quem já es­
este capítulo estabelece a prática de dar sustento tava ali por ocasião da morte, ficará impuro. Assim
aos dedicados a Deus que desempenham funções a também o que for exposto ao morto, como o con­
serviço do povo. teúdo de um recipiente aberto. Não é preciso tocar
O capítulo 19 apresenta um ritual antigo sem no corpo. Todavia, se alguém tocar em um cadáver
relação nenhuma com o contexto, salvo o fato de ser — mesmo que só em uma parte dele ou no túmulo
realizado por um sacerdote. O ritual tem a ver com — , ficará impuro. Não importa se a morte foi por
a pureza cultuai, de modo específico a purificação causas naturais ou não.
depois do contato com os mortos. Em seguida, são apresentadas instruções para
19,1-10 Cinzas da novilha vermelha. O ani­ a purificação (vv. 17-18). Os indivíduos devem sub­
mal a ser usado para o rito é uma novilha vermelha, meter-se a um ritual de purificação no qual as cin­
sem defeito no sentido cultuai, e que não foi utiliza­ zas da novilha vermelha, misturadas com água de
da para nenhum outro propósito (v. 2). Deve ser en­ fonte, são aspergidas sobre eles, suas tendas e seus
tregue a Eleazar, levada para fora do acampamento bens. Isso é feito por alguém ritualmente puro, não
e degolada em sua presença (v. 3). O sacerdote to­ necessariamente um sacerdote, no terceiro e no
mará com o dedo um pouco do sangue e com ele sétimo dias. Então os que estão sendo purificados
fará sete vezes a aspersão em direção à tenda do lavam suas vestes, banham-se e voltam ao acampa­
170 Encontro, presumivelmente para significar dedica­ mento na tarde do dia da purificação. A pessoa que
NÚMEROS 20

asperge a água também se toma impura e precisa, 1). Para aludir a essa associação é salientada a ques­
portanto, lavar suas vestes e ficar fora do acampa­ tão da santidade do Senhor.
mento até a tarde. Entretanto, o bastão toma-se objeto de desobe­
A pessoa impura que não se submete ao rito diência. É identificado com o bastão de Aaiâo, que foi
de purificação permanece impura. Tudo e todos colocado diante do Senhor no santuário (v. 9; 17,16-
que entrarem em contato com essa pessoa tomam- 26). Em vez de fazer exatamente como o S enhor or­
-se impuros. Esse indivíduo precisa ser excluído denara, Moisés faz à comunidade uma pergunta que
da comunidade, sendo indigno do lugar onde o sugere dúvida e falta de fé; “Acaso poderemos nós
S enhor habita (w . 20.22). fazer jorrar água deste rochedo?” (v. 10). Usando o
É provável que o lembrete sobre pureza ritual bastão, Moisés em seguida bate no rochedo não uma,
seja acrescentado nesse ponto para novamente con­ mas duas vezes. O rochedo produz água em abun­
centrar a atenção na comunidade que está prestes dância para todos beberem (v. 11), embora Moisés
a avançar em sua caminhada em direção à terra. E não “falasse” ao rochedo, como o Senhor ordenara.
um povo no meio do qual o S enhor habita. Quer A tradição afirma que essa infidelidade provo­
no deserto, quer na terra, somente um povo cou a decisão do S enhor de que nem Moisés nem
ritualmente puro é digno da presença de um Deus Aarão entrariam na terra (v. 12; veja v. 24; SI 106,
santo. A pureza ritual é, então, sinal da fidelidade 32-33). Entretanto, não está claro se a infidelidade
do povo ao S enhor. é falta de fé ou ato de desobediência. Talvez a falta
de clareza seja intencional para que o povo se lem­
Últimas paradas no cam inho bre de ambas. Essa história é contada perto do fim
(20,1- 22,1) da caminhada para preparar a designação de novos
20,1 M orte de M iriâm. Depois de um longochefes e também para dar a razão da necessidade
intervalo de lutas e revolta, o enfoque volta à co­ deles. (Compare com Dt 1,37; 3,26; 4,21-22 para
munidade acampada no deserto de Sin, em Qadesh outra explicação do motivo da recusa da entrada de
(v. 1a). Esse deserto faz parte do deserto maior de Moisés na Terra Prometida.)
Paran, de onde foram enviados os exploradores (cf 20,14-21 A recusa de Edom. A passagem mais
10,12; 13,3.21.26). Segue-se uma seqüência de fácil de Qadesh pelo extremo sul do mar Morto seria
eventos para assinalar a passagem do tempo e o através de Edom e Moab. Para fazer isso e evitar
movimento em direção à terra. conflito, Moisés envia mensageiros ao rei de Edom,
Há uma breve nota para dizer que Miriâm pedindo permissão para atravessar sua terra (v. 14a).
morreu e foi enterrada em Qadesh (v. Ib); c f o Moisés ^ l a ao parentesco entre os dois povos (v. 14b),
cap. 12 e Ex 15,20-21). É um lembrete que por pois Edom/Esaú e Israel/Jacó são ancestrais gêmeos
causa da revolta do povo toda uma geração morre­ das nações (Gn 25,21-26; 32,4; 33,1-17). Moisés rela­
rá antes de Israel entrar na Terra Prometida. ta a história de como o Senhor conduziu o povo do
20,2-13 Moisés e Aarão são punidos. Em um Egito àquele lugar no deserto perto dos limites do
novo relato do incidente de Meribá (v. 13; c f Ex território edomita (w. 15-16). Promete que o povo
17,2-7) é explicado por que é negada a entrada na não perturbará seus campos e vinhedos, nem beberá
terra a Moisés e Aarão. O motivo parte da contenda sua água. Passarão pelo distrito no caminho real, sem
sobre água. (Meribá significa “contenda” ou “con­ se desviar para a direita nem para a esquerda (vv.
trovérsia”.) O povo briga com Moisés e Aarão e os 17.19). O caminho real, ãs vezes chamado Estrada
acusa de ter trazido a comunidade do Egito, onde do Rei, era uma rota de caravanas que atravessava
havia bastante comida, para o deserto, onde não há Edom, usada com frequência (cf. 21,22; Dt 2,27).
nem mesmo água para beber (vv. 2-5). Tudo que Edom recusa duas vezes o pedido de Moisés e
Moisés e Aarão podem fazer é voltar-se para o ameaça atacar se Israel tentar passar (vv. 18.20; c f
S enhor, que nesse momento lhes aparece na entrada Am 1,11-12). Israel é, então, forçado a viajar para o
da tenda do Encontro e lhes fala (w . 6-7). O Senhor sul, até Elat, no golfo de Ácaba, para contornar o
instrui Moisés e Aarão para tomarem o bastão, reuni­ território de Edom e entrar pelo deserto oriental.
rem 0 povo e, na presença da comunidade, ordenar Essa narrativa, enraizada na tradição da desavença
ao rochedo que dê água para todos beberem (v. 8). entre os irmãos, dá uma explicação para iniciar uma
Há uma diferença significativa entre a história rota tão tortuosa.
mais antiga e o incidente como aqui relatado pelo 20,22-29. M orte de A arão. Antes de começar
autor sacerdotal. Em Ex 17,5-6, Moisés recebe or­ a caminhada para o sul, toda a comunidade vai para
dens para golpear o rochedo com o bastão. Aqui o Hor-a-Montanha, localizada perto de Qadesh, na fron­
S enhor ordena a Moisés e Aarão que “falem” ao teira de Edom (vv. 22-23).
rochedo, para que por uma ocorrência milagrosa na A palavra do S enhor falada (vv. 23-26) e cum­
presença de todos a santidade do S enhor possa se prida (w. 27-28a) mais uma vez indica a orientação
manifestar (vv. 12-13; veja Is 29,23). As palavras divina no curso dos acontecimentos. A palavra é
hebraicas para “santidade” e para “Qadesh”, o lugar muito simples e clara. Aarão está prestes a morrer
dessa controvérsia, derivam da mesma raiz (cf o v. (v. 24; c f 33,37-39), em cumprimento da palavra 171
NÚMEROS 21

dada em 20,12. Deus ordena que Moisés estabeleça instruções para pôr fim ao sofrimento. Moisés faz
Eleazar como sacerdote em sucessão a seu pai, trans­ exatamente o que o Senhor ordena: uma serpente
ferindo as vestes de Aarão a seu filho (w. 25-26. de bronze, que fixa numa haste. Quem olha para a
27a.28a; cf. Ex 39,1-31; Lv 8,7-9, para uma descri­ serpente se recupera (vv. 8-9). A cura das mordidas
ção das vestes e da cerimônia de investidura). Quan­ está ligada à obediência e à fé. E, por ironia, a fonte
do isso é feito, Aarão morre na montanha e a comu­ de cura é semelhante à do castigo.
nidade chora durante trinta dias (v. 28b). Da primeira Pela última vez no deserto, Israel se revolta e
geração, só resta Moisés para levar o povo à terra. é perdoado. A medida que os membros da nova
Mais tarde, Moisés morrerá em uma montanha e geração avançam em direção à terra, seguem as
será chorado por trinta dias (Dt 34,1.5-8). pegadas de seus ancestrais que pereceram por ser
21,1-3 Vitória contra Arad. Essa narrativa rebeldes.
explica o nome Hormá, relacionado a uma palavra 21,10-20 Cam inhada em torno de Moab. Pas­
hebraica que significa “interdito” (v. 3b; c f Jz 1,17). sagem notável, formada de uma série de topônimos
Em um relato mais primitivo, os israelitas haviam intercalados por fragmentos de poesia antiga, apres­
tentado entrar em Canaâ pelo sul por iniciativa pró­ sa a caminhada em direção à planície de Moab,
pria. Foram cercados pelos habitantes e enxotados onde terão lugar os acontecimentos seguintes. O
de volta a Hormá (c f 14,39-45; Dt 1,41-46). O movimento parte da Arabá, a região ao sul do mar
ataque bem-sucedido pelo rei canaanita é um deta­ Morto, pelo vale do Jordão. O povo alcança o Wadi
lhe em continuação dessa história mais primitiva Zered, fronteira entre Edom e Moab (vv. 11-12).
(v. 1). Entretanto, há mudança nos acontecimentos, Dali prosseguem para o Amon, rio que separa o
quando os israelitas se voltam para o S enhor com território de Moab do dos emoritas (v. 13). O reino
o voto de votar “suas cidades ao interdito” se o emorita está entre Moab e Amon. É esse território
S enhor entregar os canaanitas em suas mãos (v. 2). que Israel terá de atravessar para chegar ao Jordão
Por causa desse voto, Israel destrói as cidades ca­ (c f os vv. 21-32). Ao que se sabe, todos os lugares
naanitas derrotadas e dá ao lugar o nome de Hormá, citados nos vv. 16.18b. 19-20 estão no lado oriental
o “interdito” (v. 3). do mar Morto. Nahaliel é um vale próximo ao norte
Esta narrativa parece deslocada, pois, para che­ do Amon e a Pisgá é um dos picos que se elevam
gar a Hormá, os israelitas, que se dirigem para o acima da planície onde o rio Jordão entra no mar
sul, têm de seguir para o norte. Em uma lista antiga, Morto.
há uma alusão ao acontecimento depois da morte Dentro do esquema de viagem, há dois fragmen­
de Aarão (cf. 33,40). Como o autor sacerdotal usou tos de poesia (w. 14-15.17-18). O primeiro deles é
essa lista como base para esta narrativa, a história considerado como do “livro das Guerras do S enhor”
de Hormá é contada aqui, sem levar em conta o pro­ (v. 14). Embora o livro só seja conhecido por essa
blema geográfico criado. citação, é provável que outrora existisse uma coleção
21,4-9. A serpente de bronze. Esta é uma his­ de cânticos celebrando vitórias dos primeiros dias do
tória muito antiga que explica por que havia uma assentamento. O poema foi incluído porque menciona
serpente de bronze no Templo de Jerusalém. Essa 0 Amon e comprova que esse rio formava a fronteira
imagem foi destruída no tempo de Ezequias por de Moab. O outro poema é um cântico tradicional
causa do culto surgido em torno dela (cf 2Rs 18,4). para celebrar o surgimento da água quando o poço
Por causa da capacidade de se regenerar, a serpente foi cavado. Foi acrescentado neste contexto por causa
simboliza a vida e era usada como símbolo de fer­ do topônimo Beer, que significa “poço” e porque a
tilidade desde os tempos primitivos. água de todos os lugares no deserto era celebrada
Da forma como temos a história, ela é contada como dom de Deus (cf o v. 16).
no padrão formalizado de revolta-castigo-interces- 21,21-32 Vitória sobre Sihon. O reino emorita,
são-perdão, já muitas vezes usado (cf 11,1-3; 12,2­ com a capital em Heshbon, localizava-se entre
16; 17,6-15; 21,4-9). Nossa atenção volta-se mais Moab e Amon. O soberano, Sihon, combatera con­
uma vez para um povo rebelde. Embora essa seja tra Moab e tomara todo o planalto de Moab desde
uma nova geração e embora esteja quase entrando o rio Jaboc no norte até o rio Arnon, e desde o de­
na terra, o povo critica Deus e Moisés (v. 5a). Logo serto a leste até o rio Jordão a oeste (v. 26; c f Jz
que parte de Hor-a-Montanha em direção ao golfo 11,22). A posse deste território poria Israel próximo
de Acaba, o povo perde a paciência (v. 4). Mais uma da Terra Prometida. A derrota dos emoritas é, por­
vez, a critica concentra-se em comida e bebida e o tanto, a primeira das narrativas da conquista.
desejo de voltar ao Egito (v. 5b). Segundo o texto, Moisés envia mensageiros
O S enhor responde imediatamente com o cas­ para pedir passagem pela terra, na estrada real. O
tigo, enviando serpentes que mordem o povo, resul­ leitor atento reconhece imediatamente que o pedi­
tando em grande número de mortes (v. 6). O povo do é paralelo exato do que foi feito ao rei de Edom
pede ajuda a Moisés. Confessam que pecaram e (w . 21-22; c f 20,14.17). Os biblistas acreditam
pedem a Moisés que peça ao Senhor para afastar que a tradição de Heshbon é mais antiga e que o
172 deles as serpentes (v. 7). Moisés intercede e recebe texto de Edom seguiu seu modelo.
NÚMEROS 22

Sihon, rei dos emoritas, nega o pedido e dá com­ de Moab. Toda a terceira parte do livro de Números
bate a Israel em lahas (lahsa). Israel derrota as for­ acontece em Moab e concentra-se na vida futura
ças de Sihon e toma posse de toda a terra entre os na terra prometida.
rios Jaboc e Amon até o território dos emonitas (vv. O conteúdo da presente seção é uma mistura de
24-26.31-32). Tão significativa é essa vitória que dá tradições coligidas pela escola sacerdotal de uma varie­
a Israel a posse da terra canaanita que sua tradição dade de fontes que abrangem a história da nação.
é relatada de novo em Dt 2,24-37; Jz 11,19-22. A história de Bileâm (caps. 22-24), o relato do
Ligado a essa narrativa de vitória há também desastroso incidente em Shitim (cap. 25) e a polê­
um antigo poema nos w . 27-30, celebrando a vitória. mica midianita (cap. 31) são narrativas muito an­
É interessante que o poema é composição não-israe- tigas reunidas pelo autor sacerdotal. Esses relatos
lita de grande antiguidade. A referência a Kemosh conservam o forte estilo narrativo e poético e, por­
(v. 29a), deus dos moabitas, e a afirmação de que tanto, sobressaem à linguagem formalizada da legis­
Moab e o povo de Kemosh foram aprisionados pelo lação (27,1-11; caps. 28-30; 32; 35; 36) e das listas
rei emorita Sihon sugerem que este é o poema origi­ (caps. 26; 33).
nalmente entoado para celebrar a vitória emorita O objetivo principal desse material é a prepa­
sobre Moab. Os israelitas apropriaram-se do poema ração para o futuro, quando Israel se organizará
sem alterá-lo e o incluíram para lembrar que o con­ como comunidade devota de fé centralizada na pre­
quistador é agora o conquistado. O poema é citado sença do S enhor em seu meio. As questões sobre
outra vez em uma palavra profética contra Moab posse territorial e os assuntos pertinentes à herança
(cf. Jr 48,45). de propriedade são resolvidos antes da entrada na
21,33-22,1 Vitória sobre Og. Como os nomes Terra Prometida para impedir brigas e divisões den­
dos reis Sihon e Og estão associados na tradição tro da comunidade. As leis para a observância das
(SI 135,11; 136,19-20), a narrativa da derrota de principais festas garantem uma vida religiosa orde­
Og segue imediatamente a da derrota de Sihon. nada. A ênfase na obediência à palavra do S enhor
Bashan é o território emorita ao norte do rio lembra a Israel que só ele pode se afastar do rela­
Jaboc. Há uma descrição mais completa do con­ cionamento de aliança. A observância da lei e do
fronto com Og, rei de Bashan, em Dt 3,1-11. Os culto possibilitam que o S enhor habite para sempre
vv. 1-3 do discurso deuteronômico de Moisés for­ no meio deste povo.
mam a substância da narrativa de Números. E con­ Ao reunir esse material, o autor sacerdotal reflete
tada como história da vitória do Senhor (v. 34; sobre a história de Israel para a instrução de um povo
veja Dt 3,2-3a). Como sinal de total dedicação ao que mais uma vez está em um deserto de exílio, es­
S enhor, a população é destruída e a terra habitada perando 0 dia em que reentrará na Terra Prometida e
pelos israelitas (v. 35; compare Dt 3,3b-6). Com se reorganizará como comunidade de fé.
essa vitória, Israel obtém o controle de toda a região Os caps. 22-24 contêm um notável conjunto
fora dos limites de Amon, Moab e Edom. Israel narrativo, formado da lenda sobre um profeta es­
está agora de posse de toda a terra canaanita da trangeiro e narrado como base para uma série de
Transjordânia, separada de Canaã propriamente dita oráculos que expressam a bênção do Senhor sobre
apenas pelo rio Jordão. o povo de Deus. O cenário para a narrativa é a
Uma fórmula de itinerário conclui a seção para chegada dos israelitas à planície de Moab. Ame­
resumir a partida final para a planície de Moab drontado pela presença dos israelitas tão perto de
(22,1; c f a discussão sobre a fórmula de viagem na suas fronteiras, Balaq, rei de Moab, procura o pro­
p. 146). Todos os acontecimentos restantes do livro feta Bileâm para que este lance uma maldição sobre
desenrolam-se enquanto o povo está neste acampa­ Israel. Bileâm, entretanto, apresenta-se como pro­
mento. Aqui Moisés morrerá e será enterrado (Dt feta fala tão-somente a palavra do S enhor e, assim,
34,1-8) e daqui Josué guiará o povo para a frente
toma-se herói e modelo para todas as gerações de
(cf 27,12-23; Dt 34,9). israelitas.
A palavra do S enhor para Israel é de bênção.
NA PLANÍCIE DE MOAB; PREPARATIVOS Todos os oráculos apresentam Israel como povo de
PARA A VIDA NA TERRA eleição que foi extraordinariamente abençoado no
passado e que será vitorioso e próspero no futuro.
Nm 22,2-36,13 Os oráculos são narrados nessa conjuntura em vista
A longa caminhada a partir do Sinai abarcou de seu conteúdo, que prenuncia o que Israel se tor­
toda uma geração. Entende-se que a extensão da nará na terra e dá o exemplo de um indivíduo verda­
estada no deserto e a recusa de entrada para Moisés deiramente obediente que depende de forma radi­
e Aarão são conseqüência da infidelidade à palavra cal da palavra divina.
do S enhor. A s mortes de Miriâm e Aarão assina­ 22,2-14 Bileâm é convocado. A narrativa co­
lam a passagem do tempo para uma nova geração meça com a apresentação de um dos personagens,
de adultos. Finalmente, sob a liderança de Moisés, Balaq, rei de Moab, que teme as forças israelitas
O povo que sobreviveu ao deserto chega à planície acampadas tão perto de suas fronteiras. É o exér- 173
NÚMEROS 22

cito que derrotou os emoritas, o povo que antes conhecidos do Deus de Israel. Bileâm responde
derrotara Moab (vv. 2-3; cf. 21-26). Os israelitas repetindo o pedido enviado por Balaq (vv. 10-11;
são um povo numeroso “que cobre a face da terra” c f w . 5-6). Deus diz a Bileâm para não ir com os
e que tem demonstrado sua força (v. 5b). mensageiros e não amaldiçoar o povo israelita, “pois
Balaq envia mensageiros de Moab e de Midian é bendito” (v. 12). Essa afirmação é o ponto crucial
(vv. 4.7) a fim de contratar Bileâm para amaldi­ da narrativa. Como o S enhor os “abençoou”, os is­
çoar este inimigo, tomando assim possível a vitória raelitas são abençoados; nenhuma palavra de mal­
sobre eles (v. 6a). O objetivo da maldição é criar dição virá sobre eles. A palavra “bendito” identifica
uma situação que possibilite a derrota dos israelitas, Israel como um povo ao qual foi dada uma identi­
isto é, remova a proteção do Deus deles. Amaldi­ dade singular. A repetição da frase “saído do Egito”
çoar é colocar um deus contra outro e, desse modo, nesta seção (w. 5.11) indica o Êxodo como o funda­
desencadear as forças destruidoras do Deus inimigo mento da vida de Israel, o relacionamento de aliança
(Cf Jr 10,25; SI 35,4-8; 79,6-7; 2Sm 18,32). que une o S enhor e Israel. Por causa desse relacio­
O motivo pelo qual os midianitas, vizinhos do namento singular, Israel é abençoado com grande­
deserto ao sul de Moab, estão envolvidos com Balaq za, prosperidade e a presença do S enhor em seu
gera dúvidas. Talvez sejam citados aqui no interes­ meio (w . 3.5.11).
se da continuidade dos incidentes de Peor e Midian É digno de nota que Bileâm age segundo a orien­
que se seguem, ambos ligados a Bileâm em 31,8.16. tação divina. Sua resposta ao convite dos mensa­
Conforme a narrativa, Balaq envolve Midian geiros é que o S enhor recusou-se a deixá-lo ir (v.
mencionando a devastação de que Israel é capaz, 13). Desse modo, apresenta-se como profeta fiel à
usando a notável metáfora: “como um boi devora a palavra dita a ele.
erva dos campos” (v. 4). Buscam um estrangeiro, um Quando os mensageiros voltam para junto de
profeta do vale do Eufiates na Mesopotâmia, para Balaq, não mencionam que Bileâm buscou a orien­
pronunciar uma maldição (v. 6a). Esse profeta, de no­ tação do S enhor; dizem apenas que se recusou a
me Bileâm, é conhecido por falar a palavra de Deus vir com eles (v. 14).
com tal eficácia que Balaq tem certeza do poder de 22,15-20 Segundo apelo a Bileâm. Mais uma
sua palavra: “Pois eu sei que aquele a quem abençoas vez, Balaq envia mensageiros a Bileâm. Dessa vez
abençoado está, e a quem amaldiçoas amaldiçoado são mais numerosos e mais importantes (v. 15).
está” (v. 6b). Profetas como Bileâm eram conhecidos Seduzem Bileâm com a promessa de uma bela re­
em muitos dos países do mundo antigo desde tempos compensa e tudo que desejar, se vier e amaldiçoar
bem primitivos. Ele pode ser comparado aos primei­ os israelitas (vv. 16-17).
ros profetas de Israel, tais como Samuel e Elias, res­ A resposta de Bileâm indica sua total depen­
peitados por sua poderosa palavra de Deus. dência da palavra de Deus em todos os casos. Ele
Em seguida à introdução, há uma série de pas­ diz que, independente do que Balaq lhe der, “eu
sagens que apresentam o profeta. Na primeira passa­ não podería fazer uma coisa, pequena ou grande,
gem, vv. 7-14, os mensageiros, com a retribuição contrária à ordem do S enhor, meu Deus” (v. 18).
na mão, visitam Bileâm em seu território (v. 7). Da Dado esse aviso, Bileâm mais uma vez pergunta o
perspectiva dos que convidam o profeta, Bileâm é que 0 S enhor lhe ordena (v. 19). Nessa noite. Deus
um dos adivinhos que transmitem mensagens me­ vem a Bileâm, dá-lhe permissão para acompanhar
diante uma retribuição. Quando o adivinho é pago os mensageiros e o previne para fazer exatamente
por seus serviços, é mais provável, como seria de o que ele disser (v. 20).
esperar, que pronuncie as palavras que o cliente O centro da narrativa é a dependência de
quer ouvir. Bileâm da palavra do S enhor a cada passo. Antes
Entretanto, a resposta que os mensageiros rece­ Deus ordenara a Bileâm que não fosse; agora lhe
bem pela oferta mostra que Bileâm tem outra índo­ diz que pode ir. Antes o S enhor dissera a ele para
le. É um homem que fala apenas a palavra do Se­ não amaldiçoar aquele povo; agora a palavra do
nhor, independente das conseqüências e sem recom­ S enhor é apenas: “farás o que eu te disser” (v. 20).
pensa. Os mensageiros e o leitor devem prestar 22,21-35 A jum enta falante. Segue-se uma
atenção, pois esse Bileâm, estrangeiro da Mesopo­ fábula independente, desajeitadamente encaixada
tâmia, cita o Senhor como fonte de sua palavra. na narrativa. Deus acabou de lhe dizer para ir, mas
Logo no início, ele identifica-se como profeta obe­ quando Bileâm sai com os dignitários Deus se en­
diente ao Deus do povo sobre o qual Balaq deseja che de cólera porque ele foi (vv. 21-22a). No fim.
uma maldição. O terreno está preparado para as Deus mais uma vez diz a Bileâm para ir e falar
passagens que se seguem. apenas o que o S enhor lhe disser (v. 35). É uma
Bileâm convida os mensageiros a passar a noite volta ao tema da narrativa. Dentro desses parâme­
para poder perguntar ao Senhor o que fazer (v. 8). tros literários, é inserida uma fábula outrora inde­
O leitor é informado da conversa entre Deus è pendente sobre uma jumenta falante, para aumen­
Bileâm. Deus pede a Bileâm que identifique seus tar a sensação da necessidade que o profeta tem de
174 visitantes (v. 9). Como é óbvio, são individuos des­ ficar atento à orientação do Senhor.
NÚMEROS 23

Segundo a fábula, Bileâm viaja de sua casa para e ofereça sacrifícios em todos eles (23,1-2), o jeito
um local não citado. Como sua viagem está em costumeiro de suplicar a uma divindade. Entretan­
oposição ao que Deus lhe disse, “o anjo do S enhor” to, o profeta deixa Balaq ao lado do altar e vai em
bloqueia seu caminho. Três vezes a jumenta vê o busca do S enhor. Anuncia ao rei que se o S enhor
anjo e reage de acordo; e três vezes Bileâm bate na o encontrar relatará o que ele o fizer conhecer.
jumenta para forçá-la a continuar a viagem (vv. Deus 0 encontra, põe “na boca de Bileâm uma
23-27). Somente a jumenta vê o que o profeta não palavra” e lhe diz para voltar para junto de Balaq
vê; ela responde ao anjo enviado para impedir e lhe falar a palavra (vv. 3-6).
Bileâm de continuar em um caminho contrário à Na tradição profética, as palavras “conhecer” e
intenção divina. “ouvir” (23,3; 24,4.16) são com frequência alterna­
Na passagem seguinte, o animal e Bileâm con­ das para expressar o meio pelo qual a palavra do
versam como se isso fosse perfeitamente normal. Senhor é recebida (veja Is 1,1;2,1; 13,l;Am l,l;M q
A jumenta pergunta por que Bileâm lhe bateu três 1,1). Alguns dos profetas eram visionários que fala­
vezes e afirma que nunca tratou Bileâm assim antes vam a palavra segundo as visões que tinham (cf Is
e não 0 faria agora se não houvesse uma razão para 6,1-13; Am 7,l-3.4-6.7-9; 8,1-3; 9,1-6; Ez 1-3).
isso (w . 28-30). A inferência parece ser que Bileâm Bileâm volta ao altar, onde deixara Balaq e os
devia ter confiado mais na percepção do animal do dignitários (v. 6), e profere o oráculo que o S enhor
que na sua. pôs em sua boca (vv. 7-10). Embora o oráculo não
Então o profeta vê o que antes só o animal vira, contenha uma palavra de bênção explícita, Bileâm
cai de joelhos e prostema-se diante do anjo de Deus não amaldiçoa Israel: “Como amaldiçoarei aquele
(v. 31). O anjo censura-o pelo modo como tratou o a quem Deus não amaldiçoou?” (v. 8). O oráculo
do animal e lhe explica que o caminho está barrado realça que Israel é um povo que vive separado das
porque sua viagem é contrária aos desígnios do nações; os israelitas são um povo único porque
Senhor (vv. 32-33; c f o uso disso em 2Pd 2,15-16). pertencem ao Senhor ( v . 9). São um povo tão nu­
Bileâm confessa que pecou e decide voltar para casa meroso que não podem ser contados; são como
(V . 34). “pó” ou “areia” (v. 10a). Essa grandeza é sinal da
A fábula mostra um Bileâm que tenta agir de bênção prometida a Israel (cf Gn 13,16; 28,14).
modo contrário à palavra do S enhor. O Senhor, en­ Bileâm conclui o oráculo invocando uma bênção
tretanto, intervém para mudar a ação. Essa tradição para si. para que ele e seus descendentes tenham o
negativa sobre Bileâm era freqüentemente lembrada mesmo aumento que Israel recebeu sob a bênção
e reafirmada para demonstrar a ação de Deus pelo de Deus (v. 10b).
bem (Cf Dt 23,5b-6; Js 24,9-10; Mq 6,5; Ne 13,2). É compreensível que Balaq fique aflito por causa
2236-40 Bileâm chega. A terceira passagem do oráculo de Bileâm (v. 11). Bileâm retruca com o
na narrativa relata o primeiro encontro direto entre lembrete de que só pode repetir o que o S enhor põe
o rei Balaq e Bileâm. Quando Balaq fica sabendo em sua boca (v. 12). Assim, Bileâm é consistente ao
da vinda de Bileâm, vai ao Amon, o rio que separa se apresentar como alguém que depende totalmente
Moab dos israelitas, para encontrar o profeta (v. 36). do S et^hor para toda palavra que pronuncia.
Sua saudação é mais uma eensura por Bileâm não 23,13-26 Segundo oráculo. Balaq e Bileâm vão
ter vindo assim que foi convocado. Ele lembra ao a outro lugar, o cume da Pisgá (cf. 21,20), do qual
profeta que as recompensas seriam grandes (v. 37). podem ser vistos alguns dos israelitas. Ali preparam
Como desculpa por sua recusa inicial, Bileâm sete altares e oferecem sacrifício em antecipação da
explica que só pode dizer o que Deus põe em sua maldição (w. 13-14), As circunstâncias desse en­
boca (v. 38). A resposta de Bileâm retoma o tema contro são relatadas no mesmo padrão da tentativa
da lenda e esclarece mais a dependência do profeta anterior de conseguir uma maldição.
em relação ao Senhor. O rei ouve pessoalmente o O profeta diz ao rei para ficar perto de seu
que Bileâm diz sobre a fonte de sua palavra, mas sacrifício, enquanto ele se separa para um encontro
não entende as conseqüências da confiança que (v. 15). O S enhor se encontra mais uma vez com
Bileâm tem no S enhor, o Deus dos israelitas. Bileâm, põe uma palavra em sua boca e o manda de
Esta passagem conclui com o sacrifício de ani­ volta a Balaq para falar a palavra (v. 16). Ao voltar
mais pelo rei, partes dos quais são enviadas a Bileâm a Balaq e aos dignitários de pé junto ao sacrifício,
e aos que o acompanham. Cada um dos oráculos é 0 rei que cita o S enhor como fonte da palavra do
prestes a ser transmitidos é comunicado em um profeta; “Que disse o Senhor?” ( v . 17). Em respos­
lugar diferente, onde animais são sacrificados. A ta, Bileâm profere o oráculo de bênção sobre Israel.
mudança da cena sacrifical separa um oráculo do Ao procurar oráculos, a prática era persistir até
outro. uma palavra favorável ser recebida. Balaq faz isso
22,41-23,12 Primeiro oráculo. Balaq e Bileâm porque não aprecia o relacionamento do S enhor com
vão para Bamot-Báal, os lugares altos de Báal, de Israel. O rei moabita não percebe que o S enhor é
onde podem ver alguns dos clãs de Israel (22,41). um Deus que nunca “fala para depois não agir” (v.
Ali, Bileâm ordena que Balaq prepare sete altares 19). O S enhor abençoou Israel e a palavra dada 175
NÚMEROS 23

para Bileâm falar sempre será uma palavra de bên­ lidade comparável à do búfalo que devora as nações
ção (v. 20). Nenhum mal pode advir a Jacó/Israel adversas (v. 8; cf. 23,22) e à de um leão e uma leoa
porque o S enhor-D ous, seu rei, está com ele (v. 21). cercando a presa (v. 9a; cf. 23,24). A mensagem aos
O Deus de Israel trouxe este povo do Egito e é vizinhos de Israel é que este povo é abençoado por­
impossível imaginar as maravilhas que Deus ainda que é o povo do S enhor. Para as nações, confirmar
fará em benefício de Israel (vv. 22-23). a bênção seria aceitar o Senhor como Deus e, por­
Duas metáforas descrevem a nação da qual o tanto, ficar sob a promessa de abençoar a si mes­
Senhor é aliado. Israel “possui a força do búfalo” mas. Isso cumpriría a promessa “Bendito seja quem
(v. 22b), animal com chifres capazes de ferir os ini­ te abençoar, e maldito quem te amaldiçoar!” (v. 9b;
migos mais poderosos (compare Dt 33,17). E Israel cf. Gn 12,3a). Como o rei de Moab está decidido a
tem a força da “leoa” e do “leão”, que não descansam amaldiçoar Israel, a conseqüência para sua nação é
enquanto não devoram a presa (v. 24; c f Gn 49,9; a derrota certa.
Mq 5,7). O oráculo é um aviso claro; Israel, apoiado Balaq fica muito encolerizado porque Bileâm
pelo poder do S enhor, pode facilmente derrotar abençoou Israel três vezes e dispensa-o sem recom­
Moab ou qualquer outra nação. pensa e com a observação de que o S enhor é respon­
Depois desse oráculo, o rei demonstra impaciên­ sável por ele ser privado da recompensa (v. 11), como
cia com Bileâm. Diz ao profeta que, se não pode se para ridiculizar Bileâm por ter obedientemente
amaldiçoar Israel, pelo menos não deveria aben­ falado a palavra de Deus sem tentar obter uma gran­
çoá-lo (v. 25). Em vez de diminuir a força de Israel de recompensa e honra, manipulando a palavra. Até
Bileâm aclamou a união entre Israel e o Senhor, 0 fim, Bileâm fica firme em seu propósito. A remu­
fonte de força e poder. neração não importa, como disse antes aos mensa­
A explicação de Bileâm mostra, mais uma vez, geiros (v. 12; c f 22,18). Sua única motivação é fazer
por que a história é contada: Bileâm é um homem 0 que 0 Senhor ordena e dizer o que o Senhor põe
que precisa fazer “tudo o que o S enhor disser” (v. em sua boca (v. 13). Só uma coisa lhe interessa —
26). Com isso o profeta exemplifica uma caracte­ não agradar o anfitrião, não riqueza, nem honraria,
rística desejável para todo o Israel. mas fazer e dizer o que o S enhor ordena.
23,27-24,13 Terceiro oráculo. Embora duas 24,14-25 Q uarto oráculo. Antes de seguir seu
tentativas para conseguir uma maldição tenham sido caminho, Bileâm fala uma palavra espontânea que
infrutíferas, Balaq tenta mais uma vez. Os dois vão anuncia a vitória definitiva de Israel sobre os po­
ao cume do Peor e preparam um sacrifício em sete vos da região. E um oráculo magnífico pronuncia­
altares, como antes (23,27-30). Desta vez, entretanto, do sobre a palavra do S enhor (vv. 15-16), a culmi­
Bileâm não deixa o rei a fim de consultar o Senhor; nância de uma série de oráculos. Promete a futura
imediatamente vê o S enhor abençoando Israel (24,1). ascensão da nação — uma “estrela” e um “cetro” de
Bileâm levanta os olhos e vê Israel acampado por Jacó/Israel (v. 17a). Esses símbolos para soberanos
tribos e o espírito de Deus vem sobre ele (v. 2). Dizer e reis indicam a monarquia davídica (cf. Gn 49,10).
que o “espírito de Deus” vem sobre alguém é atribuir O império incluirá Moab e Edom, os povos que ne­
ao destinatário a investidura do poder de Deus. garam a Israel passagem por suas terras (vv. 17b-19;
Bileâm é como outras grandes figuras por intermédio 20,14-21; 21,10-20; c f 2Sm 8,11-12). O oráculo
das quais o Senhor agiu em benefício de Israel, tais propriamente dito termina nesse ponto, com o anún­
como os juizes (cf Jz 3,10; 6,34; 14,6.19); os profe­ cio da derrota das nações.
tas (cf ISm 10,10; Mq 3,8); e os reis (cf ISm 10,6.10; O oráculo se expande com uma série de ditos
11,6; 2Sm 23,2). que começam da mesma maneira: “Bileâm viu... e
O oráculo de Bileâm vem de alguém que vê a proferiu seu encantamento nestes termos” (vv.
verdade, porque o que o profeta vê e ouve é a pa­ 20a.21a.23a). Estes ditos atacam outras nações que
lavra do S enhor dada a ele (vv. 3-4). O oráculo ameaçaram Israel em diversas épocas de sua histó­
enfatiza mais uma vez a força e a vitalidade dos ria. “Amaleq” (v. 20b) refere-se às tribos errantes
israelitas. Fala da plenitude da bênção de Israel e dos desertos do Sinai, tradicionalmente os mais
do poder, da prosperidade e da vida que fluem des­ odiados inimigos de Israel. Os israelitas enfrenta­
sa bênção. Tantas e tão grandes são as tendas dessa ram os amalequitas logo que saíram do Egito (Ex
nação que são comparadas à abundância dos jar­ 17,8-13; Dt 25,17-19) e outra vez quando procura­
dins bem regados e à força dos cedros vigorosos vam entrar (Nm 14,43-45) e colonizar a terra (Jz
(vv. 5-6). Não haverá fim para sua prosperidade; 3,12-13; 6,3.33; 7,12; 10,12). Os amalequitas fo­
seus poços transbordarão com água; possuirá as ram derrotados sob Saul (ISm 14,48; 15,2-9) e
terras até o mar e seu rei dominará todos os outros novamente sob David (ISm 30,1-20; 2Sm 8,12).
(vv. 6-7). Israel é descrito em sua grandeza, resul­ A razão pela qual os qenitas são citados entre
tado da bênção prometida a Abraão (Gn 12,2-3) e as nações inimigas não é certa, pois, segundo a
realizada quando se tomou uma nação (2Sm 7-8). tradição, os qenitas são ancestrais de Moisés (veja
Por causa do relacionamento de aliança enrai- Jz 1,16; 4,11). A tradição também afirma que os
176 zado na saída do Egito (v. 8a), Israel tem uma vita­ qenitas habitaram entre os amalequitas (cf ISm
NÚMEROS 25

15,6; Jz 1,16). É provável que devido a sua associa­ O incidente acontece em Shitim (v. la; 33,49),
ção com 0 pior dos inimigos de Israel enfrentem a lugar de onde mais tarde os israelitas partiríam
derrota descrita no oráculo (v. 22). O primeiro verso para atravessar o Jordão e chegar a Canaã (cf Js 2,1;
do oráculo, v. 21b, embora de significado obscuro, 3,1). Eles têm relações com as mulheres moabitas,
contém as palavras “morada” e “ninho”, ambas as sacrificam aos deuses delas e comem os sacrifícios
quais fazem jogo de palavras com o som de “qenita” (vv. lb-2). Essa descrição sugere que o povo tomou
em hebraico. O valor poético tem mais importância parte nos ritos de fertilidade da religião canaanita.
que o significado. O deus da fertilidade, Báal, era aplacado por atos
Finalmente, os ismaelitas, descendentes de sexuais e sacrifícios, na tentativa de garantir a pro­
Abraão e da serva Hagar (Gn 16; 21), são eitados dutividade do solo e a procriação. Essas práticas
entre os inimigos a ser derrotados (v. 24a; cf. Gn mostraram-se bastante tentadoras a Israel na Terra
16,12). Os ismaelitas que habitavam o deserto de Prometida (cf. Os 2,10.15; 4,14) e expressavam a
Paran (Gn 21,20-21), espalharam-se pela terra desde rejeição do S enhor por Israel (cf Jz 2,13; 3,7; Dt
o Egito até Ashur (Gn 25,18), entre os outros ini­ 6,12-14; 7,5; 8,19 etc.). Por toda a terra havia lu­
migos vizinhos (cf. SI 83,7-8). gares altos para o culto de Báal. O nome Báal de
Neste caso, os vitoriosos não serão os israelitas, Peor refere-se simplesmente a um desses lugares
mas sim os Kitim, que também derrotarão Ashur em Peor (v. 3a).
(os assírios e Êber), ancestral patronímico da região Voltar-se para outro deus é rejeitar o S enhor e
que Abrão deixou pela Terra Prometida (cf. Gn provocar sua cólera do Senhor, já que é um Deus
10,21-25). “Kitim” é o nome dado ao povo que ciumento (cf Dt 4,24; 5,9; 6,15; Ex 20,5; 34,14-15).
povoou a ilha de Chipre (Is 23,1.12; Jr 2,10; Ez Como 0 povo, na verdade, afastou-se do S enhor,
27,6). Sem dúvida, os Kitim eram os povos do mar, Moisés recebeu ordens para fazer os chefes execu­
os filisteus, que invadiram terras às margens do mar tarem os culpados à vista de toda a comunidade
Mediterrâneo, inclusive Canaâ e a terra de outros (vv. 4-5). O castigo costumeiro para a transgressão
da união da aliança é o enforcamento público com
inimigos de Israel. A referência aqui às vitórias dos
a quebra dos ossos (cf 2Sm 21,6.9.13). A palavra
filisteus trata de seu futuro papel como provocado-
usada para esse castigo significa também alhear-se
res no surgimento do império (cf. ISm 4—6; 2Sm
um do outro (Jr 6,8; Ex 23,17-18). Assim, a conse-
5,17-25) e sua derrota por Israel: “também ele corre
qüência da separação entre parceiros de aliança é
para a ruína” (v. 24b; Js 13,2-3; 2Sm 5,17-25; 8,12).
a separação dos membros do corpo.
Todos os oráculos, mesmo os acrescentados,
25,6-15 Zelo de Pinhás. A segunda narrativa
são dirigidos à derrota dos inimigos de Israel e à
aborda o tema de infidelidade e castigo, mas seu
ascensão deste como grande nação. Os oráculos são
principal ponto de interesse é a legitimação do sa­
apropriadamente proferidos no momento da che­ cerdócio sadoquita, que alega descendência de
gada de Israel à planície de Moab, para se projetar
Eleazar por intermédio de Pinhás (cf Ex 6,25; ICr
deste lugar para a futura posse da terra. No restante 24,3a; 2Sm 8,17).
do livro, toda a ênfase está na vida futura de Israel Nâo há nenhuma ligação com o que aconteceu
na terra. Até Bileâm, da forma como está inserido em Peor, e parece que estão faltando partes da his­
nesta tradição, serve de modelo para uma vida fiel tória. O povo chora à entrada da tenda do Encontro
à palavra de Deus. Como Bileâm obedeceu à pa­ (v. 6b) e uma praga está matando israelitas (v. 8b).
lavra do S enhor, o resultado foi a bênção, e isso é Não há menção explícita da praga, o castigo costu­
prometido a um Israel obediente. meiro para o pecado, embora isso esteja certamente
O capítulo 25 contém duas narrativas, vv. 1-5 subentendido. E a natureza do pecado não está clara.
e 6-13, que têm como cenário um lugar próximo à O fragmento narrativo conta apenas que um israelita
Terra Prometida. Ambas envolvem mulheres e falam trouxe uma midianita para o acampamento (v. 6a)
da infidelidade israelita e do castigo conseqüente. e que, quando Pinhás, neto de Aarão, vê isso, tras-
Funcionam como prenuncio de como será a vida passa ambos com sua lança, desse modo aplacando
quando Israel entrar na terra (c f Jz 2,10-23). Essas o furor divino (v. 11). Para destacar o feito de Pinhás,
narrativas seguem imediatamente os oráculos de os nomes do homem e da mulher aparecem no texto,
bênçãos para esclarecer que a bênção não é automá­ junto com sua ascendência. Ambos eram de origem
tica, mas dependente da fidelidade ao relaciona­ nobre (vv. 14-15).
mento da aliança entre o S enhor e Israel. A ação de Pinhás obtém para ele a fama de zelo
25,1-5 Culto de Báal de Peor. Por ironia, o que pela honra divina (v. 11; c f Sr 45,23-24) e a suces­
Balaq não conseguiu fazer a Israel por meio de mal­ são ao sacerdócio. A palavra do Senhor a Moisés é
dição, 0 povo mesmo faz. Balaq desejara que a maldi­ penhor de amizade com Pinhás e seus descendentes
ção trouxesse vulnerabilidade e destruição, os resul­ que lhes concede direitos especiais (vv. 12-13; c f a
tados da separação de Deus. Essa narrativa relata história dos levitas em Ex 32,25-29).
como 0 povo se afasta de Deus e desencadeia sobre A presença da história de Pinhás em Números
si mesmo a cólera de Deus e o castigo da morte. reflete as lutas entre os grupos de sacerdotes por 177
NÚMEROS 25

posição e poder depois do Exílio. Embora o sacer­ seamento (1,23), agora é a menor (v. 14). O maior
dócio sadoquita que descendia de Pinhás dominas­ aumento é registrado por Manassés (v. 34; c f 1,35),
se desde a época da primeira monarquia, sua posi­ fato que justifica a transposição de ordem entre ela
ção precisa ser assegurada uma vez mais enquanto e Eftaim (v. 28; c f 1,32.34). Judá mantém sua po­
a comunidade anseia por se reinstalar na terra. sição como a maior das tribos em ambas as listas
25,16-18 Vingança contra os midianitas. Um (V. 22; c f 1,27).
apêndice às narrativas serve para juntar os dois A lista toma-se mais interessante graças ao
incidentes anteriores, alegando que a midianita foi comentário nos vv. 9-11. Essa elaboração está colo­
responsável pela infidelidade em Peor e ligando cada aqui para justificar a perda de determinados
sua morte e a praga dos israelitas à infidelidade clãs. Datan e Abirâm (v. 9) pereceram por causa de
em Peor (v. 18). sua revolta, o mesmo acontecendo com os filhos
Esta passagem é obra do autor sacerdotal, que de Qôrah (cf o cap. 16). O lembrete de que nem
tinha outro propósito em mente— explicar por que os todos os filhos de Qôrah morreram (v. 11) reflete
midianitas tomaram-se inimigos (v. 16), embora tra­ um período posterior, quando os filhos de'Qôrah
dicionalmente fossem amigos e até aparentados com estavam ativos como cantores (cf os cabeçalhos
a mulher de Moisés (cf. 10,29). A continuação dessa de SI 42; 44-49; 84; 85; 87). A menção no v. 19 da
passagem e a execução da praga sobre os midianitas morte de Er e Onan, filhos de Judá, tem o mesmo
seguem-se em 31,1-18. efeito. A perda desses clãs é lembrada porque deixa­
26,1-51 Segundo recenseamento. O autor sa­ ram de obedecer à lei de Deus. A história é contada
cerdotal liga o novo recenseamento à narrativa, re­ em Gn 38,6-10.
ferindo-se à praga (25,18b; 25,8-9), embora ele não Um problema oposto, a possibilidade da ex­
seja resultado desse castigo. Como toda uma gera­ tinção de um clã, é a razão do comentário sobre
ção de israelitas pereceu no deserto, de modo que Selofhad no v. 33. É afirmado que este indivíduo,
não restava nenhum dos citados no primeiro recen­ chefe de um clã, tem cinco filhas, mas nenhum filho.
seamento, exceto Kaleb e Josué, o Senhor ordena a O problema que surge quando só há herdeiras é
Moisés e a Eleazar, que sucedera a Aarão (20,22­ tratado em 27,1-11 e no capítulo 36.
29) que façam um levantamento dos que estavam 26,52-56 Partilha da terra. O recenseamento
prestes a entrar na terra. Este recenseamento acon­ é realizado em preparação para a distribuição da
tece enquanto o povo está acampado às margens do terra. Dois principios nos quais a partilha se baseará
Jordão na planície de Moab, em antecipação da são expostos nessa legislação. A terra será repartida
entrada na terra (v. 2; cf. v. 63). de acordo com o tamanho da tribo (vv. 53-54) dis­
O cabeçalho da lista, os “que haviam saído da tribuída por sorteio (v. 55). Uma legislação sumá­
terra do Egito” (v. 4b), pode ser desorientador. Tem ria tenta harmonizar os dois principios, combinando
0 propósito de mostrar que o segundo recenseamento os dois métodos (v. 56; 33,54). O sumário combina
equipara-se e substitui o primeiro, realizado no Sinai 0 elemento humano do tamanho tribal e o elemento
(cf 1,1.19a). divino do sorteio.
Os critérios para os recenseados são os mesmos 26,57-62 Recenseamento dos levitas. À parte,
do primeiro recenseamento. A contagem inclui ho­ é realizado um recenseamento dos levitas, exata­
mens de vinte anos pata cima que estejam aptos para mente como antes (3,17-39). Como no primeiro
0 serviço militar, são relacionados pela linhaigem recenseamento, o critério para sua contagem é a
paterna (w. 2.4; veja 1,2-3.18). A ordem das tribos é época do nascimento (v. 62a; cf. o comentário so­
a mesma do primeiro recenseamento (1,20^3), exceto bre 3,14-39). Entretanto, no primeiro recenseamento
por Manassés, que está relacionado antes de Eftaim são contados separadamente por causa de sua consa­
(v. 28; c f 1,32-35). Nessa segunda lista, os clãs indi­ gração ao serviço do santuário (1,47-54); aqui é
viduais também são citados para enfatizar a estrutma, porque não recebem nenhuma terra como patrimô­
o tamanho e a genealogia tribais na época pós-exílica. nio (v. 62b). Esse recenseamento é realizado em
(Há outras listas de clãs em Gn 46,8-25 e ICr 2, com preparação para a partilha de cidades e da terra
variações que refletem flutuações na estrutura em onde os levitas podem residir na terra dada às tribos
épocas históricas diferentes.) como patrimônio (cf 35,1-8).
O propósito da lista de recenseamento é deter­ Os grupos de levitas citados no v. 57 são os
minar o tamanho proporcional de cada grupo, em três tradicionais: Guershon, Qehat e Merari. Estão
preparação para a partilha da terra que se seguirá relacionados aqui como chefes de clãs, não sim­
(vv. 52-56). Uma comparação entre os números plesmente como filhos de Levi (compare 3,17),
nas duas listas revela que, enquanto os totais não para enfatizar que seus descendentes é que viverão
diferem muito — 601.730 em 26,51 e 603.550 em nas cidades designadas. Os clãs citados no v. 58 são
1,46 —, há mudança marcante na força das tribos apenas cinco dos que constavam da lista de 3,17-20.
individuais. Cinco tribos — Rúben, Simeão, Gad, Só podemos especular que esses cinco clãs levíticos
Effaim e Neftali — diminuíram de tamanho; e Si- eram mais proeminentes na época em que isso foi
178 meão, que era a terceira maior no primeiro recen­ redigido.
NÚMEROS 27

A genealogia de Amrâm, descendente de Qehat, Esta legislação especial é significativa neste


é traçada em detalhe porque dessa linhagem vieram ponto da narrativa porque a terra em questão per­
Moisés, Aarão e Miriâm (vv. 59-60; cf. Ex 6,20) tence à metade da tribo de Manassés que se esta­
Somente a família de Aarão (v. 60) recebe outra belecerá na Transjordânia (v. 1; cf. 32,39-42). A
menção. A lembrança da morte de Nadab e Abihu questão da herança da terra pelas filhas de Selofhad
atribui a perda dessas famílias a sua infidelidade estabelece um direito territorial à terra que será
(v. 61; cf. 3,4; Lv 10,1-5) e indiretamente indica designada antes da travessia do Jordão.
Eleazar e Itamar como os únicos sucessores na li­ 27,12-22 Josué sucede a Moisés. O tempo da
nhagem sacerdotal. liderança de Moisés está chegando ao fim. O mode­
26,63-65 Conclusão do recenseamento. Uma lo é o mesmo que o da passagem da morte de Aarão
breve afirmação anuncia a conclusão do recensea­ em 20,22-26. Moisés recebe ordens para subir à
mento na planície de Moab, como se quisesse fazer montanha da cordilheira dos Abarim (v. 12), Nebô,
O leitor voltar à percepção de que o povo está no o lugar de sua morte, para contemplar a Terra Prome­
limiar da terra (v. 63). Os que estão registrados fa­ tida (cf. Dt 32,48-52; 33,47; 34,1-6). Antes da morte
zem parte da nova geração que cresceu no deserto de Moisés, o S enhor lembra-lhe que ele não chega­
enquanto esperava a morte dos pais. Junto com rá à terra por causa de sua infidelidade no deserto
Kaleb e Josué, foram poupados do julgamento (v. (v. 14a). A menção das “águas de Meribá de Qadesh”
65; cf. 14,28-35). (v. 14b) tem a finalidade de lembrar o incidente,
27,1-11 Patrimônio de filhas. Essa passagem que envolveu uma “contenda” (Meribá) sobre água,
contém uma questão legal para a qual não há so­ durante a qual Moisés foi instruído para manifestar
lução na legislação vigente. O assunto, portanto, a “santidade” (Qadesh) do S enhor, ordenando que a
precisa ser trazido diante dos chefes da comunida­ água jorrasse (cf 20,2-13).
de (v. 2), que, por sua vez, buscam a orientação do A última preocupação de Moisés é a designação
S enhor (v. 5). Encontramos outros casos semelhan­ de um sucessor capaz de chefiar o povo. Dirigin­
tes em 9,6-14 e 15,32-36. Cada um dá exemplo de do-se ao S enhor como “o Deus que dispõe do sopro
novas instruções para uma situação específica, tor­ de toda criatura”, título para o Criador (cf. também '
nando-se precedente para a prática subseqüente. 16,22), Moisés pede ao S enhor que preserve a vida
O caso em questão refere-se às cinco filhas de da nação, escolhendo para ela um novo chefe (v.
Selofhad, da tribo de Manassés (v. 1; cf. 26,33), 16). Um chefe que, literalmente, “saia e entre”,
únicas descendentes de seu pai. Em circunstâncias “que os faça sair e os faça entrar”, como um pastor
normais, a terra da família passa para os filhos, conduz as ovelhas (v. 17). O papel do chefe será
que têm o direito exclusivo de retê-la, bem como o novo, embora em sucessão a Moisés. Por isso pede
nome da família. As filhas argumentam que o nome Moisés ao Criador uma coisa nova. As frases “saia
de seu pai desaparecerá da tribo, só porque ele não e entre”, “que os faça sair e os faça entrar” são
tem filhos. Sem nenhum homem para herdar a terra, linguagem técnica para liderança politica e militar
não haverá propriedades na família e o nome da (cf ISm 18,13.16; 29,6; Js 14,10b-ll; IRs 3,7),
família não mais existirá na comunidade. As filhas como a referência ao pastor (IRs 22,17; Ez 34,5-6;
pedem para herdar a terra e, assim, manter vivos o Zc 10,2-3; 11,8; 13,7). O sucessor de Moisés che­
nome e o patrimônio de seu pai (v. 4). Seu argu­ fiará 0 povo nas batalhas da conquista e no assenta­
mento é persuasivo. Salientam que, embora seu pai mento na terra.
tivesse morrido no deserto, sua morte não se rela­ O escolhido para essa tarefa é Josué, filho de
cionava com 0 julgamento de Qôrah (16,16-24.35). Nun, homem inspirado que já demonstrou ter uma
Ele morreu “por causa do próprio pecado”, o que capacidade dada por Deus para a liderança (cf.
significa que estava sujeito ao julgamento geral 11,28; 14,6.30.38; também Dt 34,9)
sobre o Israel rebelde (cf. 14,26-35). Não há, por­ A cerimônia de investidura tem o efeito de
tanto, nenhuma razão para o nome do pai delas ser distinguir o papel de sacerdote do de líder político.
eliminado. Josué fica diante do sacerdote Eleazar e de toda a
A decisão de Moisés primeiro responde ao pe­ comunidade (vv. 19.22), e Moisés lhe impõe as
dido das filhas e depois dá uma nova legislação mãos (v. 18), sinal de transferência de autoridade
geral pertinente ao patrimônio. O caso é decidido ao sucessor (v. 20). Josué, entretanto, não é igual
a favor das filhas; recebem a herança do pai e um a Moisés, que recebia instruções diretamente do
lugar dentro da família, em virtude de sua herança S enhor (c f 12,6-8). Ele buscará orientação por in­
(v. 7). A legislação geral que se segue estabelece termédio do sacerdote, que usará as sortes sagra­
que a herança familiar seja mantida dentro da fa­ das, o Urim e o Tumim, para obter a decisão do
mília, embora não haja filhos (vv. 8-1 la). A norma S enhor (v. 21; veja Dt 33,8; Ex 28,30)
legal estipula que a terra seja mantida na família Nesta investidura, Josué recebe autoridade de
na linha paterna (v. 1 Ib) para assegurar que nenhu­ Moisés, para que o povo o obedeça (v. 20b); mas,
ma propriedade seja perdida para determinada tribo, em todos os outros aspiectos, o papel de Josué é dife­
desse modo desequilibrando os bens tribais. rente. A transição na liderança salienta a singulari- 179
NÚMEROS 28

dade do papel de Moisés em toda a história israelita; 28,16-25 Na Páscoa. A festa da Páscoa é cele­
também remonta à distinção entre o poder sacerdotal brada no décimo quarto dia do primeiro mês do ano
e o político à época de Josué. Este último era questão (v. 16; c f 9,1-5; Ex 12,2.18) e, o dia seguinte, chama­
de preocupação especial na época posterior ao Exílio do de festa dos Pães sem fermento, é o início do pe­
(cf. Zc 6,12-13; 4,14; Ez 45,17; 46,2). ríodo de sete dias durante o qual se comem apenas
Moisés realiza a investidura de Josué exatamente pães sem fermento (v. 17). O primeiro e o sétimo
como o S enhor lhe ordenou (w. 22-23). A designa­ dia desta semana são ocasiões sagradas para reunião,
ção de um sucessor está completa e a morte de Moisés quando não se realiza nenhum trabalho (vv. 18.25).
é esperada. Porém o relato da morte está separado na Em cada um dos sete dias, é oferecida a oblação
estrutura do documento, para que Moisés possa com­ apropriada para festas solenes (vv. 19-22; c f vv. 11­
pletar a instrução do povo. Toda a legislação final é, 15 acima). E um acréscimo ao holocausto exigido
assim, atribuída a Moisés. O relato de sua morte para cada dia (vv. 23-24).
encontra-se em Dt 32,48-52; 34,1-9. 28,26-31 Em Pentecostes. Sete semanas depois
Os capítulos 28-29 contêm os preceitos para o da festa da Páscoa, é celebrada a festa da colheita.
culto sacrifical público a ser realizado pela comu­ Presentes das primícias são trazidos ao Templo co­
nidade na terra. A ênfase está no culto pela comuni­ mo oferenda (v. 26a; cf. Lv 23,9-22). Esse dia é uma
dade como um todo e lida com observâncias coti­ ocasião sagrada, quando não se pode fazer nenhum
dianas, semanais, mensais e anuais. São preceitos trabalho (v. 26b). O sacrifício aceitável para essa
que os sacerdotes reuniram neste lugar e atribuíram festa solene consiste nos holocaustos e no sacrifí­
a Moisés. Uma lista comparável, embora menos cio pelo pecado prescritos para todas essas festas
detalhada, encontra-se em Lv 23. (vv. 27-30; cf. os vv. 19-22.11-15). Essas oferen­
28,1-2 Sacrifícios gerais. Essa introdução es­ das são feitas em acréscimo às exigidas para cada
tipula que, no tempo fixado, serão holocaustos apre­ dia (v. 31).
sentados a Deus. Queimados sobre o altar, produ­ 29,1-6 No dia de Ano Novo. O primeiro dia
zem um odor agradável ao S enhor. A linguagem do sétimo mês, também ocasião da lua nova (veja
fala em sentido figurado de Deus realmente se de­ 28,11-15), marca o início do Ano Novo. Essa festa
leitando com o odor do alimento apresentado. “Ofe­ solene é, às vezes, chamada de festa das Trombe-
rendas queimadas de agradável odor” é metáfora tas, porque nela se faz soar a trombeta (v. 1c; c f
para um sacrifício aceitável. o comentário sobre 10,1-10). Nessa ocasião sagra­
28,3-8 Toda manhã e todo entardecer. Os ho­ da não é permitido nenhum trabalho (v. Ib) e são
locaustos de manhã e ao entardecer consistem em oferecidas as oblações prescritas para todas essas
dois cordeiros de um ano, um oferecido de manhã e festas, exceto que apenas um novilho é prescrito,
0 outro ao entardecer (vv. 3-4), junto com uma obla- em vez dos dois de costume (vv. 2-5; c f 28,11-15).
ção (v. 5) e uma libação (v. 7). O vinho é derramado O que justifica a mudança no número de animais
ao redor do altar e o alimento é completamente quei­ exigidos é o fato de as oferendas para a ocasião se­
mado sobre o altar como sinal de dedicação plena rem acréscimo às oblações exigidas para a lua nova
ao S enhor. Essa oblação é a oferenda comunal re­ mensal e para a oferenda cotidiana (v. 6).
gular exigida e o sacrifício básico ao qual são acres­ 29,7-11 No dia do G rande Perdão. O décimo
centadas todas as outras oferendas. Como tal foi dia do mesmo mês que o dia de Ano Novo (v. 7a;
legislada no Sinai (cf Ex 29,38-42). A referência a c f V. 1) é 0 dia do Grande Perdão, dia de jejum e
esta tradição sinaítica é feita no v. 6. abnegação. Não se pode realizar nenhum trabalho
28,9-10 No sábado. Para separar o sábado dos neste dia (v. 7b). A oferenda é a mesma do dia de
outros dias, são apresentados um holocausto, uma Ano Novo, com um animal a menos (v. 8; compare
oblação e uma libação, além das oblações normais. V . 2) e a oblação (vv. 9-10 ) e os sacrifícios pelo pe­
Assim, a oferenda do sábado é o dobro da dos dias cado costumeiros (v. 11a). As oferendas prescritas
de semana. para o dia são acréscimo à exigida para o sacrifício
28,11-15 Na festa da lua nova. No calendário pelo pecado do dia do Grande Perdão (v. 1 Ib; cf. Lv
antigo, o dia da lua nova marca um novo início e 16 para o ritual do bode expiatório).
é tratado como dia de festa. É necessário um sacri­ 29,12-39 Na festa das Tendas. Exatamente seis
fício de quantidade maior. Além dos sacrifícios meses depois da Páscoa e da peregrinação de sete
normais para cada dia (v. 15b), o sacrifício para dias dos Pães sem fermento, Israel celebra outra festa
essa ocasião festiva consiste em dois novilhos, um que dura oito dias (v. 12; compare 28,16-17). O pri­
carneiro e sete cordeiros (v. 11), com quantidades meiro e o último dias são ocasiões sagradas nas quais
proporcionais de cereal e vinho para cada um dos não é permitido nenhum trabalho (w. 12.35). É uma
animais (vv. 12-14; cf. o comentário sobre 5,1-16). alegre celebração da colheita, com peregrinação e
Além disso, é oferecido um bode em sacrifício grandes sacrifícios. Neste dia, Israel recorda o tempo
pelo pecado (v. 15). As oferendas aqui relaciona­ passado no deserto (veja Lv 23,39^3).
das são as oblações costumeiras para todas as oca- Os holocaustos exigidos para cada dia da festa
180 siões solenes. são relacionados em detalhe. No primeiro dia, são
NÚMEROS 31

oferecidos treze novilhos, dois carneiros e catorze que ficar sabendo do voto. A responsabilidade pela
cordeiros de um ano (v. 13). Em cada dia subse- falta de cumprimento do voto recai sobre o marido,
qüente, o número de novilhos diminui em um, en­ se ele tentar invalidá-lo mais tarde.
quanto 0 número de outros animais permanece o O capítulo 31 relata uma guerra santa contra
mesmo (vv. 17.20.23.26.29.32). As oblações e os midianitas como prelúdio à série de guerras em
libações proporcionais acompanham o holocausto que Israel se envolverá para tomar posse da terra.
de cada dia e o sacrifício pelo pecado é realizado Em todos os casos uma guerra santa termina com
todos os dias, além das oferendas costumeiras exigi­ uma vitória ideal, porque é uma guerra da qual o
das para cada dia (v. 16). No oitavo dia (vv. 35-38), S enhor participa.
0 sacrifício prescrito é o mesmo que o exigido O relato da guerra é seguido de descrições dos
para as outras festas celebradas no sétimo mês — ritos de purificação e disposição de despojos que têm
a do Ano Novo (vv. 2-5) e a do dia do Grande como seu interesse a pureza ritual e a lealdade a Deus
Perdão (vv. 8-10). esperada de um povo que vive com Deus em seu
O comentário final no v. 39 conclui os capítulos meio. As ações que se seguem à batalha estão de
28-29. É um lembrete que a relação de oferendas é acordo com os preceitos estabelecidos em Números
0 sacrifício exigido para cada ocasião. Entretanto, e dão testemunho da fé de Israel na presença de
os indivíduos podem fazer outras oferendas além aliança do S enhor. Este capítulo foi formado para
dessas, de acordo com sua capacidade e seu desejo. esclarecer o significado da fidelidade total e intran­
30,1-17 Validade e anulação de votos. A obe­ sigente ao S enhor e para encorajar os que voltavam
diência total de~Moisés é realçada com o comen­ do Exílio à terra, se enfrentassem dificuldades na ten­
tário no V. 1. Está colocado aqui como lembrete tativa de se reinstalar como comunidade de fé.
que os preceitos anteriores e posteriores devem ser 31,1-18 G u erra contra os midianitas. O nar­
obedecido pela comunidade devota fiel. rador escolhe como contexto para a guerra santa o
Esta seção trata apenas da questão de quando
incidente da midianita (25,6-15). Anteriormente ele
votos ou compromissos feitos a Deus são obriga­
foi ligado a Peor (25,16-18), e aqui ambas as narra­
tórios. Esta legislação sobre votos esclarece a ques­
tivas, de Peor e da midianita, estão ligadas ao pro­
tão de autoridade e é, portanto, dirigida aos chefes
feta Bileâm (vv. 8b. 16). Outros pontos de contato
das tribos (v. 2).
são 0 sacerdote Pinhás, que chefia a batalha contra
O varão, como tem plena autoridade, é sempre
os midianitas (v. 6) e que, no incidente da midianita,
responsável por suas ações e deve, portanto, cumprir
o voto ou o compromisso que faz (v. 3). A mulher, demonstrou zelo pelo S enhor, traspassando o casal
por outro lado, não tem autoridade; é dependente com uma lança (25,7.11-13), e a menção de Sur,
do pai antes e do marido depois do casamento (cf. um dos cinco reis midianitas mortos (v. 8a), que
V. 17). Somente a viúva ou a divorciada, ambas
era também o pai da midianita (25,15). A guerra
contadas entre os desprivilegiados, são responsáveis santa é combatida para cumprir a maldição sobre
pelas próprias ações (v. 10). Todas as outras mu­ Midian que se seguiu ao caso da midianita (cf
lheres estão sob a autoridade dos homens. Os pre­ 25,16-17).
ceitos deste capítulo asseguram que a mulher não A base pápa uma guerra santa é o entendimento
deve fazer nada que possa privar a família de pro­ que o inimigo'de um povo é inimigo do deus desse
priedade ou descendência, pois os membros ho­ povo. Assim, 0 deus executaria a vingança (v. 3b).
mens retêm o direito a ambas. Por exemplo, a mu­ Neste contexto, a palavra técnica “vingança” signi­
lher poderia dedicar um filho a Deus (cf 1Sm 1,11) fica demonstração de poder ou uso de força pela
ou assumir um compromisso que resultaria na perda autoridade legítima contra o inimigo desse poder e
de bens. autoridade. Por uma razão não esclarecida na nar­
A legislação divide-se em três seções: leis que rativa antiga, os midianitas se mostram inimigos
govemam a mulher solteira que mora na casa do de Israel e, assim, provocam uma exibição do poder
pai (vv. 4-6); leis que govemam a mulher que fez do S enhor . Os componentes de uma guerra santa
votos antes do casamento (vv. 7-9) e leis que go­ são os usuais: um número limitado de homens toma
vemam a mulher casada (vv. 11-13). Em cada caso, parte na luta (vv. 4-5); cerram fileiras atrás do chefe,
a situação para fazer o voto é a mesma. Se o pai que leva consigo as alfaias do santuário e as trom-
ou marido nada diz ao ficar sabendo do voto, este betas para os sinais (v. 6), e a vitória é completa
é válido e a mulher deve cumpri-lo (vv. 5.8.11-12). (vv. 7-8). Há outra descrição de uma batalha contra
Se, por outro lado, o pai ou marido desaprova o os midianitas sob a liderança de Guideon, à qual este
voto, este não obriga. A voz do marido invalida o relato corresponde em muitos pontos (cf Jz 6-8).
voto e desobriga a mulher de cumpri-lo perante o Para exprimir a posse completa pela divindade
S enhor ( vv. 6.9.13). vitoriosa, tudo que é tomado em combate pertence
A seção final, vv. 14-16, tem o propósito de im­ ao S enhor. Por essa razão os israelitas matam todos
pedir que o voto se tome caso de divisão no casamen­ os homens (v. 7); queimam as cidades e os acampa­
to. A autoridade do marido deve ser exercida assim mentos (v. 10) e apresentam as mulheres, as crian- 181
NÚMEROS 31

ças, todos os rebanhos e objetos valiosos a Moisés, no santuário, o ouro é memorial de que Deus pou­
ao sacerdote Eleazar e à comunidade (w. 9.11-12). pou a vida de todos os guerreiros (cf. 17,5), para que
Mas, por causa das circunstâncias que tomaram ine­ Deus se lembre de Israel no futuro.
vitável a guerra, Moisés irrita-se porque as vidas O capítulo 32 trata da partilha da terra daTrans-
das mulheres foram poupadas (vv. 13-16). Ordena a jordânia, território que os israelitas tomaram de
morte de todas as crianças do sexo masculino e de Sihon (21,21-32) e Og (21,33-35) enquanto cami­
todas as mulheres, exceto as virgens (w. 17-18). nhavam em direção à planície de Moab. As decisões
31,19-24 Purificação após o combate. Tudo a respeito da terra são tomadas em diálogo com as
e todos que entram em contato com um cadáver tribos requisitantes. Nota-se que a frase esperada:
tomam-se impuros e devem submeter-se a um ritual “O S enhor falou a Moisés”, está ausente da narrati­
de purificação (cf. o cap. 19). Depois da guerra va. O fato de que o S enhor não fala e de que Deus
contra os midianitas, os combatentes e tudo que está não dá a terra sugere que a divisão do povo nas
com eles precisam passar pelo período de sete dias duas margens do Jordão continua uma questão não-
de exclusão do acampamento e pelo ritual de asper- -resolvida. Tão importante é esse assunto que sua
são (v. 19). Objetos perecíveis, como tecidos, couro, conclusão é narrada por completo em Js 1,12-18;
pêlo de cabra e madeira, são purificados com eles 4,12-13; 22,1-8.
(v. 20). Materiais que resistem ao fogo têm de ser 32,1-5 Pedido de Gad e Rúben. As tribos de
purificados no fogo e na água lustrai, enquanto os Rúben e Gad solicitam a Moisés, Eleazar e os chefes
materiais que não resistem ao fogo são purificados da comunidade que lhe dêem a terra a leste do Jordão
apenas na água (vv. 22-23). como herança. Argumentam que a região seria ideal
No sétimo dia, depois de lavar as vestes, os sol­ para seus rebanhos. E para tomar o pedido legítimo,
dados estão puros e podem voltar ao acampamento lembram aos chefes que esta é terra “que o S enhor
(V. 2 4 ). conquistou à frente da comunidade de Israel” (v. 4).
31,25-42 Partilha dos despojos. Resta a dispo­ Referem-se à região que se estende para o sul, do
sição final de tudo que for tomado em combate. Para rio Jaboc até o Araon, terra que os israelitas haviam
exprimir a dedicação ao S enhor, a distribuição na tomado dos emoritas (cf. 21,24).
comunidade é proporcional. Metade é dada aos que O problema causado pelo pedido é resumido
tomaram parte na luta e metade ao resto da comuni­ na declaração: “Não nos faças atravessar o Jordão”
dade, para que também eles participem da glória e (v. 5b). Desde o Sinai e através do deserto, o qua­
dos benefícios da vitória (v. 27). Uma parte da pro­ dro tem sido de um só povo caminhando para en­
priedade distribuída é dada aos sacerdotes e levitas trar em uma só terra. A concessão do pedido sig­
como contribuição ao S enhor (cf. o cap. 18). nificaria um povo dividido em uma terra dividida.
A parte destinada-aos sacerdotes vem dos des­ 32,6-15 Resposta irada de Moisés. A respos­
pojos dados aos combatentes. Dão ao sacerdote um ta de Moisés à idéia de divisão dentro da comuni­
de cada quinhentos de pessoas e dos animais (w. dade é imediata e exaltada. Ele vê o pedido como
28-29). A parte destinada aos levitas vem da metade ameaça a todo Israel. As outras tribos se sentirão
dos despojos destinada à eomunidade. São tomados desencorajadas para ir à terra que o S enhor lhes
um de cada cinqüenta pessoas e animais dados a deu (v. 7). Moisés acusa os gaditas e rubenitas de
eles (v. 30). A enorme quantidade de despojos to­ serem uma “raça de pecadores”, responsáveis por
mada na guerra — sinal de importância do combate impedir os israelitas de entrar na terra e, assim,
— é explicada detalhadamente no texto; a quantida­ provocando mais uma vez a cólera do S enhor con­
de total de despojos tomados (w. 32-35); a quanti­ tra a nação (vv. 14-15).
dade da metade dada aos combatentes, bem como a Moisés invoca o incidente (relatado nos capí­
taxa dos sacerdotes (w. 36-41) e a quantidade da tulos 13-14) do fracasso dos israelitas para entrar
metade dada à comunidade, mencionando que um na terra pelo sul (vv. 8-13). Alega que o comporta­
em cada cinqüenta pertence aos levitas (vv. 42-47). mento das duas tribos é como o dos exploradores
31,48-54 Presentes dos comandantes. Uma que antes desencorajaram o povo. Assim como a
última oferenda é apresentada pelos comandantes cólera do S enhor fez Israel vaguear durante qua­
da campanha, em ação de graças pela segurança de renta anos até que toda uma geração morresse, o
todos os israelitas que tomaram parte no combate S enhor castigará outra vez. O resultado será a perda
(v. 49). Prometem que cada um contribuirá com um de todo 0 povo (v. 15b).
objeto precioso que encontrou durante o combate 32,16-19. Compromisso. As tribos de Gad e
(v. 50). O ouro que os sacerdotes recebem dos co­ Rúben oferecem um acordo. Moisés não se opõe à
mandantes é de grande valor (w. 51-52). É colocado posse da terra da Transjordânia; sua preocupação e
na tenda do Encontro como parte livremente ofere­ sua cólera concentram-se na relutância desses gru­
cida a Deus (v. 54). O comentário no v. 53 — os pos em atravessar o Jordão. As tribos então prome­
soldados têm permissão de guardar o que saqueiam tem acompanhar os israelitas à terra como van­
— indica a espontaneidade e generosidade dos co- guarda, não voltar enquanto todos os israelitas não
182 mandantes ao dar parte de seu tesouro. Colocado tiverem tomado posse de sua herança e não exigir
NÚMEROS 33

uma herança para si na terra de Canaã (vv. 17a. de Makir da família de Manassés tomou-se pro­
18.19a). blema (27,1-11).
Entretanto, os gaditas e rubenitas asseguram seu Com essa distribuição de terra, foi tomada a
futuro, antes de ajudar o resto de Israel. Sua pro­ providência para o assentamento de parte de Israel.
messa de ajuda depende de receberem uma herança Outras questões pertinentes à designação de fron­
naTransjordânia (v. 19b) e de garantirem suas famí­ teiras também serão resolvidas por Moisés antes
lias e animais antes da partida (w. 16.17b). de sua morte (caps. 34-36). A história desta época
32,20-32 Acordo alcançado. Moisés aceita o é apresentada de tal maneira que o futuro é visto
compromisso proposto pelos rubenitas e gaditas. como a realização da liderança de Moisés sob a
As negociações são acertadas em uma seqüência autoridade do S enhor.
de quatro discursos. 33,1-49 Etapas da cam inhada. Para resumir
Em sua aceitação, Moisés propõe o oposto do e concluir o relato da caminhada no deserto, o
que foi sugerido pelas duas tribos (w . 20-24). Provê autor sacerdotal acrescenta um relato muito antigo
primeiro a entrada e o assentamento dos israelitas que relaciona as etapas do Egito à planície de Moab
na terra de Canaã, e só depois o estabelecimento (vv. 5-49). É a mesma lista usada como estrutura
das tribos no território da Transjordânia. para a narrativa da caminhada no deserto.
Os gaditas e rubenitas reafirmam seu compro­ As palavras introdutórias formais repercutem o
misso (vv. 25-27). Respondem que, deixando suas cabeçalho estilizado, característico do autor sacerdotal.
famílias e seu rebanho para trás, atravessarão o “Estas são as et^as... “ (v. la) segue o modelo do ca­
Jordão para combater diante do S enhor, Ainda põem beçalho “Eis a lista da família... “ (cf Gn 5,1; 6,9; 10,1;
seus interesses à frente dos do resto dos israelitas. 11,10; 11,27; 25,12.19; 36,1; 37,2). A introdução
Moisés então instrui Josué, o sacerdote e os confiante realça a importância da lista de etapas que
chefes sobre o cumprimento do acordo (w. 28-30). se segue. Seu alcance é também acentuado pelo fato
O assentamento depende da boa fé das duas tribos. de o Senhor ordenar que Moisés os registre (v. 2).
Se atravessarem o Jordão como combatentes e quan­ A caminhada começou em Ramsés no Egito (Ex
do a vitória for alcançada, Josué lhes dará a posse 1,11; 12,37), com a celebração da Páscoa (Ex 12-13),
de Guilead. Mas se não mantiverem a promessa de na ocasião em que o S enhor feriu todos os primogê­
acompanhar e lutar com os israelitas receberão uma nitos da terra do Egito (Ex 12,29-30). A lembrança
propriedade em Canaã, como todo o resto de Israel. da partida do Egito nos w. 3-4 vem de um cântico
A instrução de Moisés indica uma solução futura da composto para celebrar a ocasião.
situação. O pedido não será honrado se os gaditas e A lista de etapas nos vv. 5-49 é muito mais
rubenitas não cumprirem sua parte do acordo. detalhada que a seqüência de paradas mencionadas
Os dois grupos prontamente respondem que na narrativa. Sobre muitos dos lugares não foi
farão o que o S enhor ordena (vv. 31-32). Assim, preservada nenhuma tradição, por isso o autor sa­
percebem que o S enhor concorda com suas ações. cerdotal emprega a lista apenas em linhas gerais.
Reafirmam que atravessarão o Jordão para a terra O primeiro segmento vai de Ramsés [no Egito]
de Canaã, como soldados diante do S enhor, e fica­ ao deserto do Sinai (vv. 5-15). É a parte da cami­
rão com a propriedade na Transjordânia. Sua res­ nhada relatada no livro do Êxodo, de 12,37 a 19,2.
posta é entusiasta e tem motivação religiosa. A maioria dos lugares da lista ocorrem também
32,33-42 Moisés dá a terra. Parece que Moisés como cabeçalhos no Êxodo (cf Ex 12,37; 13,20;
responde à evidência de fé nas duas tribos, pois, ao 14,1-2; 15,22-25a; 16,1; 17,1a; 19,2). O que acon­
contrário de suas instruções nos vv. 28-30, dá a teceu no Sinai é relatado pelo autor sacerdotal em
terra aos gaditas e rubenitas e também à metade da Nm 1,1-10,10.
tribo de Manassés. A terra distribuída é a tirada de O segundo segmento descreve a caminhada do
Sihon, rei dos emoritas, e de Og, rei de Bashan Sinai a Qadesh (w . 16-36). Este trecho da viagem
(vv. 33; c f 21,21-35). A terra não é designada por é relatado em Nm 10,11-19,22. Os limites da cami­
sorteio, nem pelo tamanho da tribo, como a instru­ nhada são mencionados na fórmula de viagem em
ção estipula claramente (veja 26,52-56). Neste sen­ 10,12, embora neste texto Qadesh seja substituída
tido, a terra está fora daquela legitimamente desig­ pelo deserto de Paran, nome da localidade que
nada para os israelitas. inclui Qadesh (cf. Nm2,16; 13,3.26). Quibrot-Taavá
Os rubenitas e gaditas recebem o território de (vv. 16b-17a) aparece na narrativa em conexão com
Sihon, a região ao sul do rio Jaboc (vv. 34-38). A a história das codomizes (1 l,34-35a), e Haserot (w.
meia-tribo de Manassés recebe a terra ao norte do 17b-18a) é o lugar onde Aarão e Miriâm revolta­
Jaboc, tomada de Og. Esta terra de Guilead foi ram-se contra Moisés (11,35; 12,16). Na narrativa,
designada aos clãs de Makir e lair da tribo de Ma­ o deserto de Paran deve incluir toda a série de lu­
nassés, que a tinham invadido e nela se estabele­ gares da lista que não foram citados de forma ex­
cido (vv. 39-42; c f 21,33-35). Foi por causa desta plícita (vv. 18b-36).
posse territorial antes da entrada na terra que o O terceiro trecho da marcha vai de Qadesh à
caso da herança de terra por mulheres da linhagem montanha de Hor (vv. 36-40), lugares citados em 183
NÚMEROS 33

fórmulas de viagem em Nm 20,la.22. Os aconte­ estão definidos no tratado de paz entre o Egito e
cimentos são narrados na seção relativamente breve os hetitas. O autor sacerdotal empresta essa des­
de 20,1-21,9. Nos vv. 38-39, a lista se expande com crição específica da terra de Canaã porque inclui
a menção de dois incidentes específicos que fazem apenas o território realmente possuído por Israel e
parte da narrativa: a morte de Aarâo (vv. 38-39; cf. porque a fronteira oriental chega ao Jordão. Para o
20,23-29) e o confronto com o rei Arad (v. 40; c f propósito da narrativa, o autor não está interessado
21.1-3; 14,39-45). na terra além do Jordão nessa época.
Finalmente, os israelitas caminharam da monta­ A descrição da fronteira leste (vv. 3-5) é muito
nha de Hor à planície de Moab (vv. 41-49). Esses semelhante à da fronteira meridional de Judá apre­
lugares são citados nas fórmulas de viagem em Nm sentada em Js 15,1-4.
21,10-11; 22,1, cabeçalhos que abrangem o material A fronteira oeste no grande mar (v. 6) lembra
narrativo de 21,10 ao fim do livro. Na narrativa, a a descrição idealizada nas afirmações de promessa,
localidade chamada de “deserto em frente de Moab, como Gn 15,18 e Ex 23,31.
do lado do sol nascente” (21,11) é citada para incluir A descrição da fronteira setentrional (vv. 7-9)
toda a série de lugares citados nos vv. 42-48a. tem apenas ligeiras variações da descrição da terra
33,50-56 Instruções para a conquista e a divi­ em Ez 47,15-17; 48,1.
são de Canaã. O efeito da lista de etapas é devolver A fronteira leste, entretanto, difere a extensão
ao leitor a consciência de que o povo permanece da terra idealizada usual, que incluiría território em
na fronteira da terra. Neste lugar, o S enhor dá a ambos os lados do Jordão (cf Ez 47,18). A defini­
Moisés mais instruções a respeito do futuro (v. 50). ção dos w. 10-12 segue o contorno do rio Jordão e,
A primeira trata da conquista e da distribuição da assim, exclui a terra da Transjordânia.
terra na outra margem do Jordão (v. 51). A fronteira do Jordão é, naturalmente, intencio­
A tarefa para os israelitas é expulsar os habitan­ nal, para indicar que a terra em questão é a que vai
tes da terra e destruir todos os vestígios de sua reli­ ser dada às “nove tribos e à meia-tribo” (v 13). As
gião ( w 52.55a; veja Dt 12,2-3). A conquista precisa outras duas tribos e a metade da tribo de Manassés
ser absoluta. Não deve permanecer nenhum não-is- já receberam seu patrimônio na margem leste do
raelita, nem nada que não seja característico do Deus Jordão (vv 14-15; 32). A terra realçada é a que
de Israel. É uma terra que o S enhor deu a Israel será dividida no futuro.
como patrimônio. É sinal do relacionamento da alian­ Para realizar a distribuição da terra, Josué e
ça entre o S enhor e Israel (v. 53). Esse relaciona­ Eleazar devem ser auxiliados por chefes das tribos
mento exige amor e fidelidade totais. individuais (vv. 17-18), de maneira semelhante à
A ordem é seguida de um aviso expresso na em que Moisés e Aarão foram auxiliados no recen-
maldição condicional tipica (veja Dt 30,16-17). Se seamento (veja 1,4-16). Todos os nomes dos che­
for permitido que os habitantes da terra permane­ fes nos w. 20-28 são novos. Apenas Kaleb (v. 19),
çam, eles serão fonte constante de irritação e proble­ que sobreviveu ao período do deserto, tem lugar
mas (vv 55; cf. Js 23,13) e, em última instância, a na tradição (cf. 14,6.24.30.38).
expulsão da terra planejada para os habitantes acon­ A ordem das tribos difere de todas as outras, quer
tecerá aos próprios israelitas (v. 56). Esta última paia o recenseamento, quer para a disposição no acam­
afirmação tem significado especial para o povo no pamento. Aqui a listagem é orientada pela ordem
exílio, que foi tirado da terra. A questão é a fide­ geográfica em que eada tribo recebe a terra em Ca­
lidade radical e intransigente. Como idéia teológica, naã, do sul para o norte (cf Js 14-19). As nove tri­
a terra do S enhor é o lugar para seus seguidores bos e a meia-tribo que vão ocupar Canaã estão agru­
fiéis e só para eles. padas nas quatro tribos meridionais (vv 19-22), na
Encravada na instrução a respeito da ocupação tribo e na meia-tribo centrais da família de José (vv.
da terra está uma repetição do procedirnento para 23-24) e nas quatro tribos setentrionais (vv. 25-28).
a divisão da terra (v. 54; c f 26,52-56). É repetido 35,1-8 Cidades para os levitas. Como os le-
intencionalmente que a terra será atribuída “por vitas não têm terra para seu patrimônio, recebem
sorteio”, para que Israel saiba que o S enhor dará cidades onde viver e uma extensão de terra em
a terra, sem seus habitantes, para a posse das famí­ tomo das cidades para seus pastos (vv. 2-5). As
lias de Israel. cidades e a terra devem ser apropriadas das tribos
34,1-49 As fronteiras. A instrução do S enhor conforme seu tamanho (v. 8). Ao todo, quarenta e
para o futuro na terra continua com uma descrição oito cidades serão dadas aos levitas (v. 7).
das fronteiras do território que será dado a Israel Aqui temos apenas os preceitos para a designa­
(vv. 1-2). Uma antiga lista de fronteiras é usada ção de cidades e terras para os levitas. A partilha
para esta descrição territorial idealizada. A descrição que soma precisamente quarenta e oito cidades en­
não corresponde às fronteiras reais durante qual­ contra-se em Js 21,4-8. A terra deve vir do território
quer período depois do século V a.C.; corresponde de todas as tribos, inclusive as da Transjordânia.
aos limites da possessão do Egito em Canaã no 35,9-15 Cidades de refúgio. As cidades de refú­
184 século XIll a.C., da maneira como esses limites gio estão ligadas às cidades levíticas no v. 6. Este v.
NÚMEROS 36

afirma que das quarenta e oito cidades cedidas aos dádiva preciosa do S enhor. O derramamento de san­
levitas, seis devem ser instituídas como lugares onde gue profana a terra — a própria terra onde o S enhor
os homicidas involuntários encontrem refugio (tam­ habita no meio de Israel, onde o S enhor está pre­
bém V. 11). Três dessas cidades serão em Canaã e três sente com 0 povo em aliança. A terra não deve ser
na Transjordânia (w. 13-14). Este preceito só especi­ profanada, pela simples razão de que o Deus pre­
fica que tais cidades precisam ser instituídas; seus sente com Israel é o S enhor, o Deus que tirou Israel
nomes são dados em Js 20,1-9, em especial nos w . 7­ do Egito a fim de habitar no meio dos filhos de
8; e em Js 21,21.27.32.36.38. Israel (v. 34; c f Ex 29,45-46; Lv 26,11-13).
As cidades são designadas como lugares onde O capítulo termina com uma nota que resume
todas as pessoas, israelitas ou migrantes (v. 15a) o enfoque teológico da obra sacerdotal. Todos os
podem buscar refúgio contra a vingança antes de ter preparativos para a entrada na terra e toda a legis­
a oportunidade de ser julgados (w. 12.15b), em casos lação para viver fielmente na terra têm uma única
em que houve derramamento de sangue. A lei esti­ motivação — tomar Israel um lugar santo digno de
pula que quem comete homicídio merece a morte um Deus santo que está presente em seu meio.
(Ex 21,12.14). A sentença de morte é muitas vezes 36,1-12 Propriedade de herdeiras. O caso
executada pelo “vingador” (v. 12), o parente homem trazido para Moisés solucionar em 27,1-11 criou
mais próximo do morto, antes de haver uma prova um problema aqui apresentado para consideração.
que a morte foi causada deliberadamente. A desig­ O caso tem cenário imediato no clã de Makir, da
nação de cidades de refúgio representa um progres­ tribo de Manassés, que já recebeu território na
so na lei, baseado no respeito pela vida humana. A Transjordânia. Os chefes desse clã vêm agora diante
legislação garante proteção legal para o acusado. de Moisés e Eleazar (v. 1) com a preocupação de
35,16-34 Homicídio e homicídio culposo. As que as filhas de Selofhad se casem em outra família
estipulações deixam claro quais indivíduos têm direi­ israelita e, dessa forma, façam com que a tribo de
to ao refúgio. O homicida voluntário deve ser entre­ seu pai perca a terra (vv. 2-3), pois quando a mulher
gue ao vingador, o parente mais próximo do morto, se casa todos os seus bens passam a ser proprieda­
responsável pela execução da sentença de morte (w. de do marido. A questão é a diminuição da terra
19.21b). A intencionalidade evidencia-se pelo porte atribuída à tribo sob a orientação divina. Os chefes
de arma mortífera (vv. 16-18) ou quando há indica­ acrescentam que, quando chegar o ano do jubileu,
ção de ódio ou inimizade (vv. 20-21). a terra se tornará parte permanente do patrimônio
Por outro lado, se a morte foi causada acidental­ da tribo do marido (v. 4; cf. Lv 25,8-34). As leis
mente (w. 22-23), a comunidade deve salvar o acu­ que governam o ano do jubileu exigem que toda
sado da mão do vingador (w. 24-25a). Depois de terra que foi vendida seja devolvida ao possuidor
determinar que não houve intenção de matar, a co­ original a cada cinqüenta anos. Aparentemente, essa
munidade mandará o acusado de volta para a cidade lei não afeta a terra que passou a outra tribo em
de refúgio, onde ficará em segurança até a morte do resultado de casamento nessa tribo.
sumo sacerdote (v. 25b). A perda da vida é assunto A primeira norma criou um problema que exige
tão sério que, embora causada acidentalmente, a pes­ modificação. A nova regra não anula a primeira
soa envolvida é privada da liberdade. De fato, o acu­ decisão, que dá às mulheres o direito de herança,
sado que sai da cidade de refúgio antes da época quando não houver membros do sexo masculino.
especificada pode ser morto pelo vingador (w. 26­ Moisés apresenta uma modificação: as filhas de
28). Latente nesta ânsia por tirar vida por vida está Selofhad só poderão se casar em um clã dentro de
um agudo senso de manter o equilíbrio do poder nas sua família, para que esta não perca nenhuma terra
tribos individuais. A perda intencional da vida em (vv. 5-7). A nova legislação, então, toma-se o prece­
uma família exige a perda da vida na outra. dente para todos os casos de herança por mulheres,
Outras regras governam a comunidade quando de modo que cada tribo possa reter o patrimônio
ela toma decisões para que a justiça prevaleça e antes a ela atribuído (vv. 8-9).
ambos, acusado e comunidade, sejam protegidos Uma nota final é acrescentada com o anúncio
(v. 29). Primeiro, o acusado não pode ser condena­ de que as filhas de Selofhad se casaram dentro dos
do à morte exceto com o depoimento de várias tes­ clãs da família de seu pai (vv. 10-12).
temunhas (v. 30; cf. Dt 17,6; 19,15). Segundo, o 36,13 Conclusão. O livro dos Números termi­
homicida condenado não pode substituir a perda na com uma subscrição às ordens e regras reunidas
da vida por uma compensação em dinheiro (v. 31), nos capítulos 27-36. Foram dadas enquanto os fi­
nem a pessoa relegada a uma cidade de refúgio lhos de Israel permaneciam na planície de Moab
pode pagar para sair da cidade (v. 32). para que pudessem viver fielmente quando entras­
As exigências parecem muito grandes. Israel é sem na terra que o S enhor lhes deu e, assim, possuir
uma sociedade na qual a vida é considerada uma a terra como patrimônio permanente.

185
DEUTERONOMIO
L e s li e J. Ho pp e, O.FM.

INTRODUÇÃO
o Deuteronômio e a tradição bíblica mo documento da aliança, exemplo de pregação
Deuteronômio é, com certeza, um dos levítica, projeto para renovação religiosa, resposta
livros mais importantes e influentes das ao choque cultural da dominação estrangeira, tenta­
Escrituras hebraicas. Proporcionou as tiva de humanizar antigas leis, chamado à pureza
perspectivas teológicas que influencia­ cultuai e a base para a centralização do culto. Tem
ram os Profetas anteriores (Josué, Juizes, Samuel e sido depreciado como moralmente simplista e exal­
Reis), agora em geral conhecidos como a História tado por seu chamado a Israel para amar a Deus
Deuteronomista de Israel. Influenciou a forma final (Dt 6,5). Os deuteronomistas foram considerados
mestres severos e insensiveis e também alguns dos
de vários livros proféticos, principalmente Oséias e
Jeremias. Exerceu influência indireta na História de maiores teólogos de todos os tempos. A diversi­
dade desses comentários e as caracterizações do
Israel pelo Cronista (Crônicas, Esdras e Neemias).
Deuteronômio demonstram como é difícil encontrar
O Rolo do Templo da comunidade de Qumran era es­
uma descrição simples para obra teológica tão com­
sencialmente uma reinterpretação essênia do Deute­
plexa e sofisticada.
ronômio. O Novo Testamento cita ou alude a textos
Apesar das complicações apresentadas pelos in­
deuteronômicos quase duzentas vezes. A reinterpre­
térpretes do Deuteronômio, o objetivo do livro era,
tação deuteronômica de tópicos seletos da lei e da
na verdade, bastante simples. Os deuteronomistas
história israelitas serviu de modelo para os rabinos queriam fazer a tradição antiga falar novamente em
que compuseram a Mishná e o Talmud. Finalmente,
uma época de grande crise para Israel, a fim de aju­
0 auto-entendimento do Deuteronômio como docu­ dá-lo a superá-la. Perceberam que as grandes ins­
mento oficial escrito deu origem aos próprios con­ tituições do antigo Israel estavam mortas ou agoni­
ceitos de Escritura e cânon. zantes. A monarquia, a profecia, o Templo e o sacer­
O Deuteronômio ocupava um ponto essencial dócio, nenhum conseguiu evitar que a nação chegasse
na vida do antigo Israel. Suas páginas preservaram à beira da destruição, que estava sendo provocada
tradições já antigas na época de sua criação. Algu­ por forças internas e externas. O Deuteronômio suge­
mas das tradições legais transmitidas pelos deutero- riu que Israel reaprendesse as lições de seus anos for-
nomistas originaram-se na era pré-israelita do an­ mativos no deserto, sob Moisés: a obediência à lei
tigo Oriente Próximo. Todavia, os deuteronomistas do S enhor era a única maneira de Israel garantir seu
não eram antiquários, nem mesmo historiadores. Ao futuro. Assim, o significado do Deuteronômio era o
preservar, transmitir e reinterpretar a tradição antiga próprio Deuteronômio. O livro apresentou-se a Israel
seu propósito era proporcionar a Israel orientação como a última esperança: obedecer e viver, ou deso­
para seu futuro em uma época em que esse porvir bedecer e morrer (Dt 30,15-20).
era muito duvidoso. Os deuteronomistas desempe­
nharam bem sua tarefa, pois o fenômeno que hoje A s origens do Deuteronômio
conhecemos como judaísmo primitivo foi, em gran­ Não existe um acordo universal quanto à crise
de parte, concebido a partir do livro do Deuteronô­ especifica que inspirou a criação do Deuteronômio.
mio. Esta obra, então, serviu de ponte entre a reli­ Uma das posições dos modernos estudos bíblicos
gião do antigo Israel e a fé do judaísmo primitivo. mantidas há mais tempo data do início do século
XIX e identifica o livro do Deuteronômio com o
O significado do Deuteronômio “livro da Lei” encontrado na casa do Senhor pelo
Devido a sua importância óbvia, o livro do sumo sacerdote Hilqiáhu durante o reinado de Josias
Deuteronômio tem atraído muita atenção através (2Rs 22,8ss.). Embora o livro inclua muito material
dos anos. Os intérpretes do livro descrevem-no co­ datado do fim do século VII a.C. e anterior, está claro 187
DEUTERONÔMIO

que, na forma atual, o Deuteronômio data do Exílio de tratados do antigo Oriente Próximo. No mundo
babilônico (587-539 a.C.). Foi durante essa época antigo, os tratados entre as nações seguiam um
que 0 remanescente da nação correu o risco de ex­ padrão determinado que, em geral, incluía estes cinco
tinção. Nessa situação de vida ou morte, os deutero- componentes: 1) título que identificava o rei que ofe­
nomistas apresentaram a Israel o desafio da obediên­ recia o tratado; 2) prólogo histórico, no qual o rei
cia a um autoritativo livro da Lei escrito e chama­ que oferecia o tratado relacionava seus atos bene­
ram a nação para que escolhesse a vida (Dt 30,19). ficentes para com o povo que aceitava o tratado; 3)
Essa data exílica para o Deuteronômio não elimina cláusulas ou exigências feitas pelo rei que oferecia
a possibilidade de tradições mais primitivas terem 0 tratado; 4) lista de testemunhas do tratado e, oca­
sido usadas na criação do livro. Pelo contrário, o Deu­ sionalmente, dispositivos para sua guarda e sua lei­
teronômio foi o resultado de uma reinterpretação tura periódica; 5) maldições e bênçãos que se segui­
consciente de antigas tradições legais, a fim de dar a ríam à transgressão e à observância do tratado. Até
Israel esperança para o futuro. uma leitura superficial do Deuteronômio deixará
Quem eram os deuteronomistas? De que círcu­ claro que há uma ligação entre o Deuteronômio e a
los se originaram? Mais uma vez, tem havido uma forma do tratado internacional.
variedade de respostas. A princípio, os profetas Ao mesmo tempo, é importante notar que o
foram apresentados como responsáveis pelo Deute­ Deuteronômio não é apresentado como se fosse
ronômio, porque houve uma época em que tudo um tratado. Faz uso de formas literárias da tradição
que houvesse nas Escrituras hebraicas de valor ético de tratados, mas é apresentado como uma série de
ou teológico era atribuído a círculos proféticos. discursos feitos a Israel por Moisés, pouco antes
Mas o Deuteronômio não trata os profetas realmente de sua morte. O Deuteronômio é o testamento de
muito bem (cf o comentário sobre 18,9-22). Moisés para Israel, que dentro em breve deve tomar
Outros intérpretes afirmam que o Deuteronômio posse da terra de Canaã. Não é o texto de um tra­
reflete a pregação dos levitas. Entretanto, na Bíblia tado ou uma aliança. Embora contenha elementos
não há exemplos da pregação levítica, por isso é im­ da forma de tratado, também contém material que
possível dizer que o Deuteronômio é produto de tal não pode ser incluído entre essas formas (cf Dt
atividade. Além disso, o livro retrata, de maneira con­ 32-34).
sistente, os levitas como objetos de caridade. Seria Em sua forma atual, o Deuteronômio compõe­
um auto-retrato pouco lisonjeiro. -se de quatro discursos feitos a Israel por Moisés. O
A criação do Deuteronômio tem sido até mes­ tom dos discursos é exortativo. O livro tem o pro­
mo atribuída aos sábios de Israel, mas eles nunca pósito de incentivar Israel a obedecer a lei. Moisés
aparecem no livro que supostamente compuseram retrata Israel como especialmente escolhido por
e apresentaram a Israel como modelo de vida. Deus para tomar posse de Canaã. Israel manterá a
A única possibilidade que resta é o grupo dos posse dessa terra enquanto for obediente. (Este co­
anciãos de Israel. Eram eles os chefes da comuni­ mentário seguirá a estrutura evidente no próprio
dade que tinham a função de administradores das livro, que divide o material em quatro discursos se­
leis preservadas no Deuteronômio. Eram os princi­ parados, cada um introduzido por uma expressão
pais guardiões das tradições legais do antigo Israel. ritual para assegurar que as palavras que se segui­
Por que não lhes atribuir o Deuteronômio, o deposi­ rão são de Moisés — Dt 1,1; 4,44; 29,1; 33,1.)
tário dessas tradições? A exortação à obediência é o centro do Deute­
O Deuteronômio foi composto a fim de apre­ ronômio, mas, como indica Dt 29,1, essa exortação
sentar um novo modelo de vida para Israel em sua transformou-se no texto de um tratado ou aliança
terra. Durante o Exílio, Israel viu-se fora dessa terra, entre Deus e Israel. Os antigos costumes e leis que
esperando dela tomar posse mais uma vez. O Deu­ regulavam os relacionamentos mútuos do povo tor­
teronômio surgiu durante o Exílio. Foi criado pelos naram-se o teste de sua lealdade a Deus. A qualida­
anciãos, que se consideravam guardiões das anti­ de dos relacionamentos intersociais dentro de Israel
gas tradições legais de Israel. Tomaram essas tradi­ tomou-se o barômetro do relacionamento de Israel
ções, atualizaram-nas, desenvolveram-nas, amplia- com Deus. Assim, para o Deuteronômio, conhecer
ram-nas e delas tiraram conclusões teológicas — e amar a Deus significa amar ao próximo e fazer-
tudo para dar a Israel um novo modelo de vida. Era -Ihe justiça. Isso, já se vê, é afirmado em muitas
a visão de uma nova vida que deu aos anciãos o passagens do Novo Testamento, por exemplo, Mc
estímulo para criar o livro do Deuteronômio. 12,29-31; IJo 4,7-12.20-21. Desse modo, os ele­
mentos dos tratados do antigo Oriente Próximo fo­
Forma e estrutura ram introduzidos no livro do Deuteronômio a fim
Toda análise da forma literária do Deuteronômio de dar novo valor e importância à obediência. O
precisa partir das ligações do livro com as tradições efeito dessa transformação foi fazer do amor ao
próximo modelo e teste do amor a Deus.

188
DEUTERONOMIO 1

COMENTÁRIO
PRIMEIRO DISCURSO DE MOISÉS Os vv. 9-18 interrompem o relato da partida
de Israel do Horeb, retomada no v. 19. Depois de
Dt 1,1-4/13
chegar ao Horeb, Moisés previu as dificuldades à
O cenário do discurso de Moisés a Israel é a frente e sugeriu que o povo escolhesse chefes para
região conhecida como planície de Moab, imedia- partilhar com ele os encargos de liderança (v. 13).
am ente a leste do rio Jordão. A época é pouco Embora Moisés desempenhasse um papel indispen­
antes das tribos tomarem posse da terra prometida sável para levar Israel do Egito ao limiar da Terra
a seus ancestrais. O contexto dessas últimas pala­ Prometida, Israel chegou a um ponto em sua vida
vras de Moisés é uma exortação à obediência. Esse em que outros deviam primeiro partilhar e, por fim,
“testamento” de Moisés é seu conselho a Israel assumir, as responsabilidades que até aquele mo­
para que siga as lições do passado, se quiser asse­ mento Moisés tivera de suportar sozinho. E sig­
gurar seu futuro. A lição é bastante simples: Deus nificativo que Israel precisasse escolher seus che­
espera de Israel fidelidade completa; nada menos fes. Qualquer colapso na disposição ou na fideli­
é satisfatório. A viagem de Israel pelo deserto de­ dade do povo seria motivado pelas decisões desses
pois da partida do Egito ensinou-lhe repetidamente chefes. Deus não podería ser acusado, pois Moisés
que a fidelidade é recompensada e a infidelidade,
apenas confirmava os chefes que o próprio povo lhe
castigada. Agora, Moisés gastará as últimas ener­ apresentava.
gias tentando levar Israel ao tipo de obediência, fi­
Entre aqueles confirmados nessa função por
delidade e compromisso que assegurará seu futuro
Moisés estavam juizes especificamente encarrega­
na terra que em breve possuirá.
dos de administrar justiça sem considerar as dife­
1,1-5 Prefácio ao primeiro discurso. Estes
renças sociais e econômicas entre as pessoas que
vv. funcionam como preâmbulo, introduzindo não
tinham pendências diante deles (vv. 16-17). A justi­
só 0 primeiro dos quatro discursos de Moisés mas
também todo o livro. Especificam as pessoas en­ ça baseava-se na premissa da igualdade de todos os
volvidas nos acontecimentos do livro, o cenário da israelitas. De fato, o manto da igualdade foi até mes­
ação e o tempo e os propósitos exatos da obra. O mo colocado nos ombros dos migrantes que mora­
Deuteronômio pretende ser as palavras de Moisés vam entre os israelitas (v. 16).
dirigidas a todo Israel. Aqui o livro salienta a uni­ Esta passagem se encerra com a nota parentética
dade do povo de Deus, sujeito à vontade divina. de que Israel foi plenamente instruído a respeito de
Embora o local onde é feito o discurso seja suas responsabilidades no novo relacionamento com
especificado com precisão (vv. lb-2), a localiza­ Deus (v. 18). Israel, portanto, não poderia alegar igno­
ção exata de todos os lugares mencionados não é rância, se fracassasse.
conhecida, apesar de estar claro que o cenário da 1,19-46 Fracasso de Israel em Qadesh-Bamea.
ação é a margem leste do rio Jordão. A caminhada a partir do Horeb terminou em Qadesh-
Moisés começa seu primeiro discurso às tribos Barnea, lugar ao sul de Canaâ. O local serviría de
pouco antes de Israel atravessar o Jordão para tomar base de operações da qual as tribos israelitas come­
posse da terra prometida a seus ancestrais. O Êxodo çariam o processo de adquirir a terra a eles prome­
aconteceu há quarenta anos. Já foram obtidas vitó­ tida. Deveria ser o cenário de vitórias iniciais; em
rias preliminares, mas Israel, acampado na planície vez disso, foi cenário da primeira derrota de Israel,
de Moab, ouve Moisés fazer um último apelo à por causa de sua falta de confiança em Deus.
obediência, enquanto esclarece de maneira absoluta O povo sugeriu que exploradores fossem en­
a vontade divina para todo o Israel. O propósito des­ viados para fazer um reconhecimento da terra e de
sa exposição é conduzir Israel a um compromisso seus habitantes (v. 22). Os exploradores voltaram
renovado. com relatos apaixonados sobre a terra, mas aterra­
1,6-18 A partida do Horeb. O primeiro discur­ dores sobre a população nativa de Canaã. Os
so de Moisés começa com uma citação direta das israelitas revoltaram-se contra a possibilidade de
palavras divinas no Horeb (monte Sinai), convo­ ter de enfrentar os canaanitas em qualquer tipo de
cando Israel para começar a caminhada que termi­ conflito armado. Moisés tentou incentivar o povo,
nará com a aquisição da terra que será o cenário de lembrando-lhe de que Deus o libertara do Egito e
sua história subseqüente. As dimensões dadas para o guiara pelo deserto, mas isso de nada adiantou.
a terra (v. 7) refletem a promessa feita a Abraão A resposta divina foi dar ao povo exatamente
(Gn 15,18) em vez de um conjunto de fronteiras 0 que ele queria — um porto seguro fora da Terra
históricas. Essa promessa é agora cumprida à me­ Prometida. Deus esperaria a geração seguinte para
dida que a terra é mostrada a Israel e, dessa forma, começar o assentamento em Canaã. Além disso,
passa para sua posse. Tudo que resta a Israel é tomar Moisés foi condenado a morrer fora da nova terra
posse de sua herança, o que, entretanto, não será (v. 37). Como chefe do povo, ele era o responsável
tarefa fácil. último pela perda de fé de Israel. Somente Kaleb, 189
DEUTERONÔMIO 2

Josué e os filhos da geração revoltosa seriam pou­ Bashan sob Og são apresentados como violentos ao
pados dos efeitos da decisão do povo de permane­ extremo (2,34; 3,6). Por causa da quantidade limi­
cer fora de Canaã. tada de terra cultivável na região, todo conflito tinha
Depois de algum tempo, o povo decidiu que, na o potencial de se tomar muito caro em termos de
verdade, queria tomar posse de Canaã, mas era tarde vidas humanas, da mesma forma que os conflitos
demais. Foram facilmente derrotados pelos emoritas. semelhantes na mesma região hoje. Não é surpreen­
Tiveram de viver com as conseqüências de sua de­ dente a intensidade desses conflitos, nem a tendên­
sobediência. Qadesh, não Canaã, seria seu lar. cia humana de atribuí-los à vontade divina. O lado
2,1-23 Travessia pacífica de Edom, de Moab sombrio da crença de Israel, que recebeu a terra
e de Amon. Ao narrar a história das experiências como dádiva divina, era a prática de eliminar os que
de Israel naTransjordânia, os deuteronomistas pre­ tinham uma crença diferente.
sumem que houve uma travessia pacífica das áreas Outra questão teológica levantada por este texto
agora ocupadas pelas tribos israelitas. Não houve é a relação entre as vontades humana e divina. Sihon
nenhum conflito sobre esses territórios, pois Deus opôs-se à entrada de Israel em seu território, mas
os concedera a seus respectivos habitantes em outra isso aconteceu porque Deus tomara obstinado seu
época (vv. 5.9.19). coração (2,30). As vitórias obtidas por Israel contra
Outras tradições bíblicas consideram as popu­ Sihon e Og foram causadas pelo S enhor (2,33; 3,3),
lações desses territórios aparentadas com os israe­ contudo os exércitos de Israel tiveram de combater
litas; no caso dos moabitas e emonitas por intermé­ e derrotar as forças desses dois reis. O texto parece
dio de Lot, sobrinho de Abraão (Gn 19,36-38); no assegurar que ambas, a ação divina e a humana, eram
caso dos edomitas, por intermédio de Esaú, irmão necessárias, mas não esclarece como as duas se re­
de Jacó (Gn 36,9). lacionavam.
Ainda outras tradições preservam a lembrança 3,11 é uma observação parentética sobre o
de tensões que existiram entre esses povos e os grande tamanho do leito ou sarcófago de Og, que
israelitas que avançavam. Segundo Nm 20,14-21, ainda podia ser visto na época dos deuteronomistas.
Edom recusou-se a permitir que os israelitas atra­ Apesar do grande poder de Og, seu reino caiu diante
vessassem seu território e Nm 22-24 relata a ten­ de um Israel obediente. A fidelidade tem um poder
tativa de Balaq de Moab para conseguir uma mal­ que excede muito o poder militar ou político.
dição sobre Israel. As vitórias sobre Sihon e Og resultaram na dis­
O aspecto mais significativo da tradição deu- tribuição de seus territórios entre as tribos de Rúben
teronômica sobre as relações de Israel com esses e Gad e entre Makir e lair, dois clãs de Manassés.
povos é o universalismo que envolve essa tradição Como Sihon e Og desafiaram o S enhor (2,30; 3,1),
aqui. O Deus de Israel também dá aos povos des­ foram derrotados pelo poder do S enhor. Suas terras
ses países da Transjordânia a terra que habitam. foram confiscadas e passadas a Israel. A distribui­
De modo claro, a preocupação divina se estende ção dos territórios conquistados foi mais do que o
além do território de Israel. estabelecimento de fronteiras geográficas. Foi, antes
Segundo o Deuteronômio, embora fosse pou­ de tudo, celebração da vitória divina e afirmação de
pado do conflito com essas nações, Israel ficou crença na origem divina das reivindicações territo­
preso em um conflito que tirou a vida de toda uma riais feitas pelas tribos aqui citadas. O mesmo padrão
geração de guerreiros. O inimigo que fez Israel — conquista seguida de distribuição de terra — for­
sofrer tal derrota devastadora era justamente Deus nece 0 esboço básico do livro de Josué (conquista;
(vv. 14-15). A infidelidade de Israel em Qadesh- Js 1—12; distribuição: Js 13—21). As vitórias sobre
Barnea custou caro. Embora lutasse por Israel con­ Sihon e Og e a distribuição de suas terras entre as
tra Faraó, com a mesma facilidade Deus se volta tribos israelitas foram precursoras de vitórias futuras
contra um Israel infiel. Os deuteronomistas querem na outra margem do Jordão.
fazer um aviso: os atos divinos de libertação no pas­ As estipulações em 3,18-20 enfatizam a uni­
sado não são garantia para o futuro! O único jeito dade de Israel, importante tema deuteronômico. A
de Israel poder olhar o futuro com esperança é pela milícia de nenhuma tribo pode descansar enquanto
obediência. toda a terra de Canaã não for adquirida segundo a
2,24-3,22 Conflitos com Sihon e Og. Embora promessa divina.
a presença histórica de Israel na margem leste do 3,23-29 Josué. A tradição localiza o túmulo de
Jordão fosse efêmera, a tradição deuteronõmica afir­ Moisés fora da Terra Prometida (Dt 34,5). É pre­
ma que as tribos de Rúben e Gad e dois clãs de Ma- ciso, então, haver uma explicação para essa aparente
nassés se instalaram ali. A tradição também presu­ injustiça e para a sucessão ã posição de liderança
me que 0 território dessas tribos foi adquirido de de Moisés entre as tribos. A respeito da primeira
maneira semelhante à das terras a oeste do Jordão, questão, os deuteronomistas optam por uma solução
onde as outras tribos se estabeleceram — por meio que preserve a integridade de Moisés. Embora pes­
de confronto armado com a população nativa. Os soalmente inocente de qualquer culpa, foi uma pena
190 conflitos com os emoritas sob Sihon e o povo de que Moisés fosse apanhado nas esteira de infideli-
DEUTERONÔMIO 5

dade que envolveu toda a geração da revolta em A obediência, então, é a base do relaciona­
Qadesh-Bamea (1,26). Isso contrasta com a tradi­ mento de Israel com Deus, pois aproxima Israel de
ção sacerdotal, que acusou o próprio Moisés de Deus mais do que é considerado humanamente
abuso de confiança que resultou em sua exclusão possível (v. 6). E a singularidade do Deus de Israel
da Terra Prometida (Nm 20,12). Essas duas expli­ (v. 39) e da aliança que esse Deus faz eom Israel
cações diferentes para a tradição sobre o túmulo (v. 13) que faz Israel, diferente de todos os outros
de Moisés refletem provavelmente a controvérsia povos. Para assegurar seu futuro, Israel precisa ape­
exílica entre a culpa comunitária e a responsabili­ nas reconhecer o que é tão óbvio e ordenar sua vida
dade pessoal como explicação para a presença do conforme os mandamentos. Uma vida de obediência
mal e do sofrimento na vida de Israel. trará não apenas renome (vv. 6-7), mas também vida
Outra preocupação dos deuteronomistas é de­ longa na Terra Prometida (v. 40).
monstrar que a função mosaica podia continuar de­ Este texto é um aviso claro: a desobediência pro­
pois da morte de Moisés, de quem Josué foi o primei­ voca 0 Deus de Israel, que não tolera infidelidade.
ro sucessor. Havería outros no futuro que poderíam A desobediência significa que o poder divino se
fazer o que Moisés fez outrora por Israel — trans­ voltará contra Israel, tão facilmente como outrora
mitir e interpretar a vontade divina. Se a Lei devia se manifestou por Israel (vv. 34-35). A chave do fu­
ser 0 único guia para a vida de Israel na terra, Moisés turo de Israel é o próprio livro do Deuteronômio, já
precisava ter sucessores legítimos que dessem a Israel que ele é o conjunto das “leis e dos mandamentos”
acesso à Lei e sua interpretação (cf. Mt 23,2; Pirke a que Israel precisa obedecer para assegurar uma
Abot 1,1). longa vida na terra (4,1.40).
4,1-40 Conclusão do primeiro discurso. O 4,41-43 As cidades de refúgio. Uma apresen­
primeiro discurso de Moisés conclui com um resu­ tação completa sobre as cidades de refúgio ocorre
mo não apenas do material precedente, mas de todo em Dt 19, que não faz menção a esta passagem.
o livro do Deuteronômio. O material encontrado Nm 35,13-14 afirma que três cidades de refúgio
aqui foi incluído no Deuteronômio durante o Exí­ devem ser estabelecidas no lado leste do Jordão. As
lio (587-539 a.C.), quando as circunstâncias força­ três cidades em questão são citadas em Js 20,8. É
ram Israel a reconsiderar o significado de seu re­ óbvio que este texto foi acrescentado ao contexto
lacionamento com Deus e examinar a posição des­ atual sob a impressão de que essas cidades foram
se relacionamento. estabelecidas por Moisés. Provavelmente este texto
O livro do Deuteronômio como um todo e esse se encaixaria melhor depois de Dt 3,12-17, quando
capítulo em particular falam da fidelidade fundamen­ Moisés distribui terra para as tribos que vão ficar
tal indispensável para o relacionamento singular de naTransjordânia. A localização exata dessas cidades
Israel com Deus. Aqui o Exílio é explicado como é desconhecida.
resultado de grave apostasia nessa fidelidade, mani­
festada no descaso por Israel da proibição de ídolos SEGUNDO DISCURSO DE MOISÉS
(vv. 25-27). A insensatez de servir a outros deuses
provocou o Exílio (v. 28). Depois que Israel percebe Dt 4/44-28^9
0 que acontece aos que são infiéis, o arrependi­ 4,44-49 Introdução. O tempo e o lugar do se­
mento é possível (vv. 29-30). Finalmente, a miseri­ gundo discurso de Moisés são especificados. Moisés
córdia divina não permite que a infidelidade de Israel o pronuncia perto de Bet-Peor (4,46), local de um
ponha termo ao relacionamento que existe entre vergonhoso ato de apostasia (Nm 25). Aqui os israe­
Deus e Israel, pois Deus permanece fiel à promessa litas tinham se mostrado prontos a comprometer a
feita aos pais de Israel (v. 31). Por mais desastrosa fidelidade absoluta que Deus esperava deles. Estava
que fosse a infidelidade de Israel, ainda assim não também dentro das fronteiras da nova terra que Deus
significava o fim de seu relacionamento com Deus. acabara de dar às tribos (Dt 2,24-3,17). Assim, Bet-
Está claro que a obediência é a chave para man­ Peor é memorial da complacência divina que supe­
ter 0 relacionamento de Israel com Deus, que se rou a infidelidade de Israel. A lei que se segue deve
toma tangível pela posse da Terra Prometida. Este ser 0 meio de assegurar que Israel permanecerá com­
texto fala cinco vezes da ligação entre obediência e prometido somente com o serviço de Deus. Moisés
posse da terra (vv. 1.5-8.14.21-22.40). O texto usao faz este discurso depois das vitórias iniciais de Israel
exemplo concreto da proibição de imagens para sobre os emoritas (w. 46-47). Essas últimas demons­
mostrar os resultados da desobediência (w. 3-4.15- trações da complacência divina devem ser forte estí­
26). Quando Israel desprezou os mandamentos de mulo à fidelidade.
Deus, seguiu-se o desastre. Zombar das palavras da 5,1-6,3 Os Dez M andamentos. Com Israel
aliança (v. 13) resultou para Israel no exílio da terra acampado na Transjordânia, a promessa feita aos
(w. 26-27). A fé dos deuteronomistas leva-os a espe­ ancestrais das tribos israelitas está prestes a ser
rar que Deus traga a bênção da maldição do Exílio cumprida. O povo que vivera pela promessa agora
(v. 31) e devolva Israel a uma intimidade sem par precisa aprender a viver com o cumprimento. A
com Deus (w. 32-39). mudança mais dramática nesta transição é apren- 191
DEUTERONOMIO 5

der que a posse contínua da terra depende da fide­ -se no relacionamento entre Deus e Israel, enquanto
lidade a Deus. A aquisição inicial da terra resulta os sete últimos tratam dos relacionamentos que de­
da fidelidade de Deus às promessas feitas aos an­ vem existir dentro da própria comunidade israelita.
cestrais das tribos israelitas. Agora os israelitas pre­ Israel conseguirá permanecer fiel a Deus enquanto
cisam retribuir essa fidelidade, se quiserem perma­ as pessoas permanecerem fiéis umas às outras. O
necer na nova terra. relacionamento entre pais e filhos é análogo ao re­
Os Dez Mandamentos devem guiar Israel nesta lacionamento entre o divino e o humano (1,31) e
transição de viver pela promessa para viver com sua também o relacionamento essencial dentro da co­
realização. O Decálogo dá a Israel um meio de man­ munidade israelita.
ter um relacionamento contínuo com Deus. As “Dez A comunidade não conseguirá perseverar se a
Palavras”, como a tradição judaica as chama, servem vida humana puder ser tirada por razões pessoais
para moldar a resposta de Israel ao Deus que o tirou e ilegítimas, por isso o homicídio é proibido (v. 17),
da escravidão no Egito (5,6) e que está prestes a con­ pois ignora a posição e o valor da pessoa como cria­
duzi-lo a uma nova terra. Os mandamentos são res­ tura de Deus e, como tal, é um ataque às prerro­
tritivos apenas de uma forma: exigem a fidelidade gativas do Criador. Outra ameaça à vida da comuni­
inflexível de Israel ao Deus que cumpriu todas as dade é qualquer ameaça ao compromisso obrigató­
promessas feitas a Israel. Comprometem Israel com o rio de fidelidade feito por marido e mulher. O sexto
serviço exclusivo de Deus, o que assegura que Israel mandamento (v. 18) almeja proteger o relaciona­
viverá e prosperará na terra que Deus está na imi­ mento conjugal. A infidelidade é repreensível a Deus,
nência de lhe dar (5,33-6,3). que também é fiel.
{Nota: A numeração dos mandamentos segue Com toda a probabilidade, o sétimo mandamento
aqui a tradição católica romana e luterana. Outros (v. 19) trata de crimes contra pessoas, não roubo de
cristãos e os rabinos dividem a proibição contra o propriedade. Os membros da comunidade israelita
falso culto em dois mandamentos [w. 6-7 e 8-9] e não devem voltar-se uns contra os outros. Por exem­
unem as proibições de cobiça em um único [v. 21]. plo, o comércio de escravos é proibido aqui. Mas, em
Outra versão dos Dez Mandamentos encontra-se sentido mais amplo, toda ação pela qual um ser hu­
em Ex' 20,2-17.) mano assume o controle da vida de outro é ilegal. Os
O primeiro mandamento (vv. 6-10) exemplifica seres humanos não devem ser manipulados, mas ter
a paixão divina pela fidelidade absoluta de Israel. a liberdade necessária para conservar um relaciona­
Depois que Israel se instalar em sua terra, haverá mento fiel com Deus.
tentações para comprometer a fidelidade devida a A integridade e a sinceridade nos relaciona­
Deus. Os israelitas anseiam pelo que será uma nova ’ mentos humanos são outros requisitos prévios para
experiência para eles — uma vida de liberdade em uma comunidade sadia. O oitavo mandamento (v.
sua terra. O que não deve mudar para eles é o com­ 20) busca proteger esses valores. O Deus que é fiel
promisso com Deus. Toda a sua vida deve ser deter­ em cada palavra e ação exige a mesma sinceridade
minada pelo relacionamento com o Deus que os nos relacionamentos humanos. Finalmente, os dois
tirou do Egito. A proibição de ídolos (vv. 8-9) lem­ últimos mandamentos (v. 21) proíbem a cobiça.
bra Israel que seu conhecimento de Deus deve ser Não só são proibidas as ações que subvertem a
obtido da experiência da realidade de Deus encon­ vida da comunidade como são condenados os dese­
trada no Êxodo do Egito e na liderança no deserto. jos que levam a esses crimes. O egoísmo precisa ser
O segundo mandamento (v. 11) proíbe a tentati­ reprimido antes de se tomar a força dominante na
va de utilizar com magia o poder que os antigos vida da pessoa. A posição da esposa na forma deu-
acreditavam ser inerente ao nome divino. Na tradição teronômica desse mandamento difere da de Ex
judaica primitiva, era habitual evitar completamente 20,17, em que a esposa está colocada entre as pro­
a menção do nome divino. O Deus de Israel estava priedades do marido. Aqui a mulher tem posição
além da manipulação. O nome de Deus não podia ser mais favorável.
ligado a nenhum propósito humano egoísta. O man­ Os mandamentos vêm de Deus, mas são inter­
damento a respeito do sábado (vv. 12-15) impõe duas pretados por intermédio de Moisés (vv. 22-33). O
obrigações: guardar o dia do sábado, considerando-o povo e Deus escolhem Moisés como mediador da
sagrado (v. 12), e não trabalhar nesse dia (v. 13). As Lei, que obtém sua autoridade de Deus e sua apli­
duas obrigações relacionam-se, pois o dia de descan­ cabilidade de Moisés. Mais adiante, o Deuteronô-
so dá aos israelitas a oportunidade de se lembrar da mio falará sobre os sucessores na função mosaica
escravidão no Egito e de sua libertação pelo poder de (18,15-19). Mas o presente texto evidencia a auten­
Deus. O sábado deve ser um lembrete semanal da ticidade do encontro de Israel com Deus por inter­
dependência de Israel em relação a Deus. médio de um ser humano.
O quarto mandamento (v. 16) funciona corno A seção do segundo discurso que contém os
ponte entre os que o precedem e os que o seguem. Dez Mandamentos encerra-se com breve exortação
Os mandamentos tratam de dois tipos de relaciona- que tenta dar motivos para a obediência (6,1-3). A
192 mento. Os três primeiros mandamentos concentram- principal razão dada é que a obediência levará à
DEUTERONÔMIO 7

realização das promessas feitas aos ancestrais de cia prefigurada pelo v. 5 (cf Mt 23,5). Os judeus
Israel: uma terra fértil e uma descendência nume­ também começaram a prender um meznzah (peque­
rosa. O Exílio, que significava viver fora da terra e no estojo contendo um texto bíblico escrito) à parte
em números dizimados pela guerra com a Babilônia, superior da ombreira da porta. Em vez de estabe­
podia ser visto como nada menos que o resultado lecer costumes específicos, o Deuteronômio tenta
da desobediência de Israel. assegurar que cada israelita, suas casas e toda a
6,4-25 O am or de Deus. A preocupação deste comunidade se destaquem na fidelidade a Deus. A
texto é promover a obediência a um mandamento base dessa fidelidade é a libertação divina de Israel
em particular: a proibição do culto de outros deuses da escravidão (v. 12) e a insistência divina na fide­
além do S enhor. Os israelitas preparam-se para lidade (v. 14). Não há necessidade de determinar a
entrar em uma terra muito próspera (w . 10-11). força da fidelidade de Deus a Israel; isso foi tenta­
Moisés previne-os contra a conclusão precipitada do anteriormente, com resultados desastrosos (v. 16;
de que a prosperidade da terra existe graças à bene­ c f Ex 17,1-7).
volência dos deuses adorados pela população nativa A última parte dessa passagem (vv. 20-25) é
da terra. Israel não deve nunca se esquecer do que apenas uma repetição do que já foi dito. (Tais re­
aconteceu no Egito (v. 12). A libertação de Israel petições são características do Deuteronômio e
da escravidão no Egito realizada pelo S enhor for­ levam alguns intérpretes a localizar as origens do
mou um elo que não deve nunca ser rompido pelo livro na situação de ensinar e/ou pregar.) Em certa
serviço de Israel a divindades adoradas por outros ocasião, Israel era escravo de Faraó (v. 21). Deus
povos. Israel não deve dividir sua fidelidade. libertou Israel da escravidão com uma poderosa
Há muitas maneiras de traduzir o v. 4 (c f a exibição de força contra o Egito (v. 22). O propó­
tradução da Bíblia Mensagem de Deus; “Javé, nosso sito desse ato misericordioso era o cumprimento
Deus, Aquele-Que-É é o Unico”; e a tradução habi­ das promessas feitas aos pais de Israel (v. 23). Agora
tual no judaismo: “O S enhor é nosso Deus, o Senhor Deus exige de Israel fidelidade absoluta, e é ela é
é um”). Embora todas possam ser defendidas com a única esperança de Israel para o futuro (v. 24).
fundamentos lingüisticos e teológicos, a tradução Obediência, fidelidade e respeito são as chaves do
daTEB enfatiza a indivisibilidade do Deus de Israel tipo de relacionamento com Deus que preservará o
e do serviço a ele. Este v. e seu contexto salientam futuro de Israel (v. 25).
a fidelidade que Israel deve ao S enhor, mas essa 7,1-26 As nações. O pêndulo da Bíblia oscila
não é uma afirmação de monoteísmo explícito. De para a frente e para trás no que diz respeito às na­
fato, aqui está implícita a possibilidade da existência ções não-israelitas. Às vezes, também elas compar­
de outros deuses. Para Israel, entretanto, só existe tilham as bênçãos prometidas a Israel (Gn 12,1-3;
um Deus e todas as suas energias devem se voltar ao Is 42,1-4). Converter-se-ão ao S enhor (Is 45,14-25;
serviço desse único Deus. Jonas). Outras vezes as nações são apresentadas
Alguns podem achar estranho que o v. 5 ordene como inimigos implacáveis de Israel e sua queda é
o amor de Deus. O amor prefigurado aqui é o tipo motivo de alegria (Am 1-3; Naum).
de profunda fidelidade e afeição que Israel deve ao Este texto é uma das condenações mais cruéis
Deus que pôs um fim a sua cruel servidão no Egito. de toda a Bíblia, exigindo que Israel aniquile a po­
Em segundo lugar, no Deuteronômio, amor é pra­ pulação nativa de Canaã no decorrer de seu estabe­
ticamente sinônimo de obediência. A imagem por lecimento na terra prometida aos ancestrais de Israel
trás dessa injunção é o relacionamento entre pais e (v. 2). Essa ordem é obviamente contrária às sensibi­
filhos, no qual amor e obediência são termos equiva­ lidades dos leitores contemporâneos, mas devemos
lentes. O amor que Israel deve a Deus é abrangente. lembrar que nunca foi cumprida, nem era para ser.
De fato, 0 livro todo do Deuteronômio não é nada Qual seria, então, o propósito de proibir alianças e
mais que um esboço das conseqüências práticas do casamentos com nações não-israelitas (vv. 2b-3)?
V. 5. Quando lhe perguntaram sobre o grande man­ Este capítulo representa um julgamento teológico das
damento da Lei, Jesus citou este v. (Mt 22,36-37; Mc nações, não um relato histórico do tratamento a elas
12,28-30). dispensado por Israel.
As injunções dos vv. 7-9 salientam como a Embora também não seja muito atraente aos
devoção de Israel aos mandamentos de Deus deve fiéis de hoje, esse julgamento teológico reflete a ex­
ser total. Israel deve se lembrar dos mandamentos periência de Israel com as nações, em especial a
sempre e sob todas as circunstâncias. O judaísmo Assíria e a Babilônia, sérias ameaças à própria exis­
primitivo transformou essas metáforas em ordens. tência de Israel na época em que a tradição deute-
Os Judeus iniciaram o costume de usar filactérios ronômica estava começando a se formar. Nessas
(pequenos estojos de couro contendo rolos diminu­ circunstâncias, o Deuteronômio usa as expressões
tos, onde estavam escritos os vv. 4-9 e também ou­ mais fortes possíveis para ordenar que Israel evite
tros textos bíblicos). A crítica de Jesus a esse costu­ qualquer contato com as nações. A pressuposição
me presume que a obediência a essa ordem nem por trás dessa proibição é que a assimilação cultu­
sempre era acompanhada pelo tipo de total obediên­ ral é uma arrieaça à existência de Israel tão grande 193
DEUTERONÔMIO 7

quanto a pressão política e militar empregada con­ em terrível pânico, o que resultará na vitória com­
tra Israel pelas nações poderosas que a combatiam. pleta de Israel. O v. 22 é um interessante trecho de
7,1-5 Os inimigos de Israel. Aqui a atitude apologética para explicar por que as vitórias de Is­
para com as nações é inegavelmente negativa: todo rael durante a conquista não foram completas. Jz
contato possível com elas deve ser evitado. Não deve 2,20-23 dá ainda outra explicação; foi permitido que
ser firmada nenhuma aliança política com elas (v. alguns dos inimigos de Israel sobrevivessem a fim
2b), pois firmar tais alianças significaria reconheci­ de testar a fé de Israel.
mento explícito dos deuses das nações. Embora o v. 8,1-20 Estudo de contrastes. Embora Israel
3 possa ser aplicado a qualquer tipo de casamento possa eliminar as ameaças externas à fidelidade que
misto, é mais do que provável que os deuteronomis- deve a Deus, isso não significa que essa fidelidade
tas tivessem em mente os casamentos como mano­ esteja assegurada. Há também ameaças internas ao
bras políticas (cf. IRs 11,1-8). É inevitável que estes compromisso de Israel, que precisam ser identifica­
também envolvam o reconhecimento explícito de di­ das. Podem não parecer tão insidiosas como o culto
vindades estrangeiras. Finalmente, Israel deve des­ a deuses estrangeiros, mas na realidade não são me­
truir os acessórios do culto associado a esses deuses nos ameaçadores à fidelidade que Deus espera de
(v. 5). Adaptá-los ao culto do S enhor, o que aparen­ Israel. Moisés agora volta-se para esses perigos inter­
temente foi tentado (cf. 2Rs 18,4b), toma confusa a nos e fala deles pondo em contraste “lembrar” e
distinção entre o Deus de Israel e os deuses das “esquecer”, o deserto e a terra cultivável, a presunção
nações. Israel deve se dedicar exclusivamente ao humana e a dependência de Deus. Esses três contras­
serviço do Senhor (Dt 6). tes estão entrelaçados neste capítulo, que tem o pro­
7,6-11 Santidade. As proibições a respeito do pósito de manter Israel sempre obediente a Deus.
contato com as nações surgiram, não de uma supe­ Lembrar-se dos atos misericordiosos de Deus
rioridade da parte de Israel, mas por causa da eleição no Êxodo do Egito e na orientação no deserto é
de Israel e do grave perigo do fiãcasso de Israel em fundamental para o relacionamento de Israel com
suas responsabilidades para com Deus. Israel foi Deus, pois essa lembrança é estímulo à obediência.
separada de todas as outras nações. A Lei lhe foi Lembrar-se do que Deus fez permite que todas as
dada a fim de manter esse relacionamento especial gerações experimentem a realidade e a fidelidade
com Deus. Não são as qualidades inerentes de Is­ de Deus. É inevitável que esquecer Deus leve à de­
rael que formam a base desse relacionamento, mas sobediência. A vontade humana substituirá a vonta­
o amor divino que concentrou sua escolha no menor de divina. As exigências de Deus são relegadas ao
de todos os povos. Israel deve ser reconhecido como segundo plano da percepção humana.
a escolha de Deus por seu amor e obediência volta­ O contraste entre o deserto e a terra cultivável
dos para Deus. Essa fidelidade será recompensada, não pretende realçar a aridez do primeiro e a fertili­
mas uma imediata retaliação virá aos infiéis. dade da segunda; o contraste entre os dois está em
7,12-16 Bênção. A fidelidade de Deus está fora como o deserto impediu Israel de esquecer Deus, en­
de questão. O futuro de Israel, então, depende em quanto a fertilidade da nova terra que Israel possuirá
grande parte da qualidade de sua adesão às respon­ insensibiliza Israel à presença divina O deserto foi
sabilidades que fluem de seu relacionamento singu­ lugar de teste enquanto Israel aprendia a considerar
lar com Deus. Em certo sentido, a completa realiza­ sua existência totalmente dependente de Deus. A de­
ção das promessas feitas a seus ancestrais depende solação da vida no deserto tomou quase impossível
da obediência de Israel. Aqui, o Deuteronômio junta ignorar a proteção divina Para esclarecer as coisas de
duas tradições de aliança. As promessas incondicio­ maneira mais dramática. Deus eliminou até o escasso
nais feitas a Abraão, Isaac e Jacó ligam-se às tradi­ suprimento de comida no deserto e fez Israel viver de
ções de aliança condicionais relacionadas com Moi­ maná, fonte milagrosa de nutrição. Na Terra Prome­
sés. O resultado da obediência é a bênção, descrita tida, Israel terá comida em abundância e, então, terá
aqui como abundância de vida, prosperidade e bem- a inevitável tentação de acreditar que a abundância é
-estar — contraste completo com as condições que o resultado de esforços humanos. Na verdade, a divi­
afligiram os que sofreram a escravidão no Egito. na providência supre as necessidades de Israel tanto
Mas essas bênçãos dependem da firme dedicação no deserto como na nova terra.
de Israel a Deus e da preservação de sua identidade O propósito de Deus para Israel foi alcançado
única como povo eleito de Deus. por intermédio da colaboração humana. Moisés foi
7,17-26 As vitórias de Israel. A nação de Israel o instrumento usado por Deus para tirar Israel do
deve devotar-se à obediência com total abandono. Egito e conduzi-lo pelo deserto. A terra da promessa
A metáfora usada para exemplificar esse tipo de deve ser adquirida por intermédio da liderança de
obediência são os conflitos armados de Israel com Josué e dos esforços da milícia tribal. O que se ini­
a população de Canaã. Se Israel enfrentar esses cia com colaboração humana termina com a pre­
conflitos com absoluta confiança em Deus e total sunção da auto-suficiência humana. Moisés adver­
destemor em face da oposição humana, a vitória é te Israel para não ignorar nunca o poder alentador
194 certa, pois Deus porá todos os adversários de Israel de Deus, que pode ter sido mais evidente no deserto.
DEUTERONÔMIO 9

mas é, da mesma forma, uma realidade na terra rebelde e teimoso na recusa de servir somente a
cultivável. Israel será tão dependente de Deus na Deus. A única razão de Israel ser favorecida em
nova terra quanto o foi no deserto. relação às nações é o juramento de Deus a Abraão,
Esses três contrastes estão entrelaçados com Isaac e Jacó (v. 5).
três ordens que convocam a constante fidelidade 9,7-14 Revolta. Enquanto Moisés estava em
fundamental a Deus, marca distintiva da tradição comunhão com Deus no Horeb, Israel voltou-se
deuteronômica (vv. 1.11.18). Em cada uma dessas para a idolatria. No próprio momento em que a
ordens, a palavra “hoje” enfatiza que todas as gera­ aliança estava sendo firmada, estava sendo rompida
ções de Israel precisam se lembrar de Deus. O es­ por Israel. A ironia é amarga. Não podería haver
quecimento levará ao desastre. uma ocasião mais imprópria para revolta, contudo
A primeira ordem (v. 1) é o típico chamado deute- foi o que Israel fez, quando estava no sopé da mon­
ronômico à obediência. Localiza a motivação para a tanha de Deus.
obediência nas dádivas de terra e prosperidade. No V . 6 , Moisés chamou Israel de povo de “dura
A segunda ordem (v. 11) é advertência mais cerviz”; no v. 13 é o S enhor que exprime essa con­
específica contra ignorar o papel constante que denação do povo, junto com a intenção clara de
Deus desempenha na vida de Israel. O amparo do destruí-lo. A maldade das nações levou Deus a des­
S enhor a Israel não se limita ao período no deser­ tituí-las; agora a revolta de Israel voltava Deus tam­
to. Israel deve ampliar seus horizontes além daqui­ bém contra ele. Moisés não considerou as palavras
lo que é conhecido e experimentado de imediato. de Deus dirigidas a ele, no v. 14: “Deixa-me agir!”,
A prosperidade na terra não deve permitir que a proibição, e sim convite à intercessão. Moisés con­
realidade de Deus desapareça de sua consciência. seguiu desviar a cólera divina de Israel, mas antes
Finalmente, a terceira ordem (vv. 18-20) é lem­ de iniciar sua intercessão desceu da montanha e con­
brete severo das conseqüências do “esquecer”. Põe frontou 0 povo que esquecera seu Deus.
Israel no mesmo nível das nações que não foram 9,15-21 Rompimento da aliança. Qualquer que
escolhidas para ser o povo de Deus. Esse, já se vê, tenha sido a razão para o bezerro de ouro ser cons­
seria o pior tipo de desastre, pois Israel deve conti­ truído, 0 Deuteronômio entende esse fato como rom­
nuar a ser um povo com um relacionamento singular pimento direto da ordem de Deus que proibia o culto
com Deus. Mas, se Israel não se “lembrar” de Deus, falso e 0 uso de ídolos. A ação de Moisés ao quebrar
será fácil seguir e servir os deuses das nações. Israel, as duas tábuas não foi o resultado de um acesso de
então, se comportaria exatamente como se compor­ raiva; destruiu as tábuas que simbolizavam a aliança
tam as nações que desalojou. Se Israel se esquecer de entre Deus e Israel porque este último decidiu des­
Deus, poderá esperar ser expulso da terra da mesma truir esse relacionamento. Como símbolos, as tábuas
forma que o foram as outras nações. perderam todo o sentido, quando Israel construiu o
9.1- 10,11 Teimosia de Israel e graça divina. bezerro de ouro. Ao não hesitar em incluir Aarão
Outra ameaça interna ao relacionamento de Israel entre os culpados (v. 20), os deuteronomistas estão
com Deus é a crença de Israel na própria integri­ prontos a culpar os sacerdotes por ajudarem Israel a
dade. E claro que Israel depende completamente escolher o caminho da revolta.
da ajuda divina para adquirir a terra, mas a fim de 9,22-24 Mais revoltas. Israel revoltou-se mais
reforçar o tema do desmerecimento de Israel o Deu- de uma vez. Estes vv. mencionam outros quatro
teronômio faz Israel se lembrar de sua revolta no incidentes de revolta, a fim de comprovar o caráter
deserto. No momento em que Moisés firmava a rebelde de Israel. Esse defeito fatal mostrou-se mais
aliança entre Deus e Israel, o povo adorava um de uma vez durante o período no deserto. Israel so­
ídolo. O ato de revolta foi suficiente para levar breviveu por causa da intercessão de Moisés, mas
Deus a destruir Israel. Somente pela intercessão o que será dele quando não houver ninguém como
de Moisés Israel foi salvo dos efeitos totais da có­ Moisés para interceder?
lera divina para que as promessas feitas aos ances­ 9,25-29 Oração de Moisés. Esta oração é ou­
trais de Israel fossem cumpridas. tro contraste delineado pelos deuteronomistas. Ao
9.1- 6 A te rra como dádiva. As vitórias de Is­falar a Israel, Moisés recordou o passado para que
rael sobre os canaanitas, representados pelos ana- o povo se lembrasse da própria maldade e desobe­
quitas (gigantes lendários) e suas cidades fortifica­ diência. Ao falar a Deus, Moisés lembrou-o das
das, acontecerão graças ao poder e à fidelidade de promessas feitas aos ancestrais de Israel (v. 27) e
Deus. Mas, como o próprio Israel terá de submeter os atos misericordiosos de salvação no Êxodo do
os canaanitas (v. 3b), haverá a tentação de ignorar Egito (v. 29). Moisés lembrou a Deus a identidade
a ajuda divina. Além disso, a crença afirmada aqui do povo destinado à destruição: é “teu povo, teu pa­
(vv. 4-5) e em Gn 15-16, de que as nações são des­ trimônio” (v. 25). É o povo que Deus libertou da
tituídas por serem culpadas, pode facilmente ser de­ escravidão no Egito. Moisés esperava conseguir
turpada para uma crença na integridade de Israel. evocar de Deus outro ato de libertação divina. Israel
A verdade é que Israel não é melhor que as nações. precisava ser libertado dos efeitos debilitantes de
Apesar de tudo que Deus fez por Israel, o povo foi sua rebeldia. 195
DEUTERONÔMIO 10

10,1-5 A arca da aliança. Para simbolizar uma essa escolha. Entre eles está a circuncisão. Mas essas
aliança renovada entre Deus e um Israel rebelde, o observâncias devem ultrapassar a atividade ritualista
S enhor ordenou a Moisés que talhasse duas novas para a transformação do espírito. Toda a aproximação
tábuas. Depois de novamente serem escritos os Dez de Israel a Deus precisa ser examinada (v. 16).
Mandamentos nas tábuas, elas foram colocadas em Uma maneira de o povo mostrar como leva a sério
uma arca de madeira, usada para guardar esses me­ sua escolha como povo de Deus é aceitando a respon­
moriais da aliança. Originalmente, a arca era sím­ sabilidade pelos membros da comunidade cuja posi­
bolo da resistência das tribos israelitas aos filisteus ção social e econômica não lhes assegura a sobrevi­
(cf. ISm 4,1b; 7,2). Mais tarde ficou guardada no vência. Ao se ligar a Israel, Deus escolheu um povo
Templo e era considerada o escabelo do trono de fiaco e impotente para ser o objeto de um amor único
Deus e, portanto, símbolo da presença divina (cf. (Dt 7,7). Ao responder a esse amor, Israel precisa
Ex 25,1-22). No Deuteronômio, a arca é apenas um amar o mesmo tipo de pessoas que Deus ama. Esse
recipiente para as tábuas da Lei. É a obediência a padrão de comportamento trará a completa realização
essa Lei que garante o favor de Deus, não a suposta das promessas feitas por Deus aos ancestrais de Israel.
presença de Deus no Templo. Uma das promessas já foi cumprida com o cresci­
10,6-9 Uma inserção. Este texto interfere na mento fenomenal do número de israelitas (v. 22; c f
narrativa da intercessâo de Moisés pelos israelitas Gn 15,5-6). Ainda resta para ser cumprida outra parte
rebeldes. Os vv. 6-7 refletem uma tradição sobre a da promessa, a dádiva da terra (Gn 17,8). A obediên­
morte de Aarão um tanto diferente da que se encon­ cia de Israel levará à realização completa de todas as
tra em Nm 22; 33. Os vv. 8-9 dão informações en­ promessas divinas.
contradas em outras passagens do Deuteronômio 11,1-25 Memórias. Aqui, altemam-se ordens e
(cf 31,9.25-26). Eram os levitas que transportavam narrativas da memória coletiva de Israel para incen­
a arca quando necessário. Duas outras funções le- tivar a obediência. O v. 1 inicia esse padrão. Sua for­
víticas são mencionadas: sua responsabilidade para mulação da ordem básica que fundamenta todo o
liderar o culto e abençoar o povo em nome de Deus.
livro apresenta três lições do passado que deviam
10,10-11A resposta à oração de Moisés. Israel
promover a obediência: o Êxodo (vv. 2b-4), a expe­
não seria destruído. A aliança seria restabelecida.
riência do deserto (v. 5) e o caso de Datan e Abirâm
Tudo isso foi resultado da misericórdia e do amor
(v. 6; c f Nm 16). Essas referências ao passado de
divinos. A justiça divina exigia a aniquilação de Israel.
Israel dão exemplos positivos e negativos de como a
A fidelidade do S enhor às promessas feitas aos an­
graça e o julgamento divinos afetam a vida dos obe­
cestrais de Israel e sua disposição de ouvir as súpli­
cas de Moisés possibilitaram a continuação da exis­ dientes e dos desobedientes. Lembrar essas grandes
tência de Israel. e terríveis experiências é educação nos caminhos do
10.12- 11,32 O grande mandamento. Antes Senhor.
de entrar nos aspectos específicos da Lei para a O V. 8 mais uma vez exorta o povo a guardar
vida de Israel na terra (caps. 12-26), os deuterono- os mandamentos do S enhor. N os vv. 9-12, uma
mistas voltam a apresentar o grande mandamento comparação entre o Egito e Canaã estabelece a mo­
que exige o amor irrestrito de Israel a Deus (10, tivação para a obediência. A Terra Prometida que
12-11,25). Então, como ponte para as ordens espe­ aguarda Israel é abençoada por uma abundância
cíficas, é feita uma advertência (11,26-32), afirman­ que se apóia na providência divina. Em contraste,
do que a Lei tem o potencial de trazer para o povo 0 Egito proporciona colheitas apenas por causa de
uma grande bênção ou uma terrível maldição. As um sistema de irrigação que é obra de engenhosi-
exigências que Deus faz à nação têm conseqüências. dade e esforço humanos. O cuidado providencial
A experiência de Israel mostrou de maneira bas­ de Deus pela terra de Canaã é outro incentivo à
tante conclusiva que Deus é capaz de cumprir toda obediência.
promessa feita. Se Israel deseja assegurar seu fu­ O pensamento da seção anterior é retomado pelo
turo na terra, a fidelidade a Deus e a obediência à V . 13, que exige a obediência como meio de asse­

Lei são 0 único caminho para fazê-lo. A infideli­ gurar de Deus provisões e prosperidade no futuro.
dade ao S enhor e o menosprezo dos mandamentos Deus mandará a chuva que, na ocasião apropriada,
trarão o desastre. trará sucesso aos esforços agrícolas de Israel. Se
10.12- 22 Fidelidade de Israel. A ordem queIsrael sucumbir às mentiras que garantem ser a fer­
exige total dedicação a Deus inicia essa transição tilidade da terra garantida por outros deuses, verá
para as Leis do S enhor (caps. 12-26). Uma única que é impossível sobreviver na terra. O povo terá, en­
mensagem é transmitida de várias maneiras: o amor tão, de aprender a verdade da maneira mais difícil.
de Deus é o centro da resposta de Israel ao S enhor. Os últimos Yv. desta passagem (w. 16-25) são
Este Deus não é outro senão o Criador do universo um resumo final do discurso de Moisés até agora.
que livremente decidiu escolher os antepassados Aqui a principal ênfase são as obrigações que Deus
de Israel para um amor especial. A resposta de Israel impõe a Israel. Estes w . são um pasticho de admoes-
196 deve incluir a observância de rituais que celebram tações feitas anteriormente por Moisés (cf Dt 1,7-8;
DEUTERONÔMIO 12

2,25; 4,9-10.38.40; 6,2.8-9.17; 7,23-24). A repetição tudo do estilo retórico hebraico está apenas come­
dessa mensagem salienta sua importância; a própria çando. Talvez algum dia a “lógica” da disposição
existência de Israel depende de sua disposição de do Deuteronômio fique clara. Todavia, ainda é im­
corresponder ao amor divino. portante lembrar que este livro não é uma compila­
11,26-32 As alternativas. Moisés quer que Is­ ção legal completa. Oferece aos leitores um resumo
rael decida seu futuro. Expressa as alternativas com conveniente de práticas tradicionais e convoca pa­
muita clareza. O povo pode escolher ser abençoado ra sua observância. Os deuteronomistas tentam ins­
ou amaldiçoado. A bênção depende, naturalmente, pirar uma atitude de submissão e obediência. Não
da obediência de Israel à Lei. As estipulações deta­ estão necessariamente preocupados em dar ao povo
lhadas dessa Lei estão prestes a ser apresentadas ao um código de leis completo.
povo. Moisés adverte os que o ouvem que a aceita­ 12,1-28 Centralização. A lei que requer a cen­
ção de uma vida guiada pela Lei é a única maneira tralização do culto sacrifical de Israel é exclusiva
pela qual podem esperar as bênçãos prometidas a do Deuteronômio e da literatura dele dependente.
seus ancestrais. A Lei, então, não é apenas um có­ A legislação e a prática anteriores prefiguravam esse
digo legal para modelar o comportamento de Israel; culto acontecendo em muitos altares por toda a terra
é a chave para a plenitude de vida que esptera Israel (cf. Ex 20,24). O afastamento do Deuteronômio do
do outro lado do rio Jordão. costume anterior baseia-se na preocupação pela pu­
Os últimos vv. (vv. 29-32) fazem o esboço de reza no culto de Israel e na crença de que uma mul­
um ritual que celebra o relacionamento entre Deus tiplicidade de santuários é incompatível com o culto
e Israel (há uma apresentação mais detalhada desse do Deus de Israel. A preocupação com a pureza
ritual em Dt 27,1 -26). A escolha que o povo é cha­ cultuai e o desejo de unidade cultuai estão relacio­
mado a fazer é realmente muito simples — é uma nados, porque ambos fundamentam-se no reconhe­
escolha entre o S enhor e outros deuses. A escolha cimento de que o Deus de Israel não é como os
de Israel é representada de forma dramática por um deuses das nações. Os muitos santuários locais antes
ritual celebrado perto de Siquém, nos montes gemi­ associados às antigas divindades canaanitas são im­
nados Garizim e Ebal. Israel sabe que Deus o esco­ próprios para o culto do S enhor. Esses santuários
lheu entre todas as nações do mundo. Agora cabe a foram substituídos por um só local escolhido pelo
Israel escolher o S enhor acima de todos os outros Deus único.
deuses. Na verdade, não há nenhuma escolha real, Nesta passagem, há outras duas dinâmicas im­
mas se Israel abandonar o S enhor por aquilo que, portantes características do Deuteronômio: dessacra-
na verdade, não são deuses o que se seguirá será so­ lizar e humanizar. Ao contrário dos deuses de Canaâ,
mente miséria e desastre. Se, entretanto, permanecer o S enhor não é uma força natural personificada;
fiel a Deus, não haverá limites para as expressões conseqüentemente, nada na natureza é sagrado em
do amor divino. si mesmo. Se um lugar se toma veículo da presença
12,1-26,19 O Código Deuteronômico. Algu­ divina, é por causa da livre escolha divina, não devido
mas das leis encontradas aqui são exclusivas do Deu- à santidade inerente ao lugar.
teronômio; muitas, entretanto, encontram-se em ou­ Segundo, esta passagem permite o abate de ani­
tros códigos, tanto israelitas como do antigo Oriente mais domésticos para uso profano (vv. 15.20). Em­
Próximo. A marca especial do Deuteronômio pode bora não deva ser consumido com a came, o sangue
ser reconhecida na preocupação permanente pelos não tem nenhum caráter sagrado especial e é, por
pobres, na humanização de leis mais antigas e, princi­ isso, derramado como água (w. 16.24). O sangue
palmente, na associação da obediência à continuação deve ser oferecido a Deus (v. 27), provavelmente
da existência na terra. Se o povo deseja assegurar em reconhecimento da soberania divina sobre a
um futuro para si na terra que Deus concedeu, há só vida, simbolizada pelo sangue.
um caminho — o da obediência. Finalmente, o Deuteronômio investe no sacrifí­
Aqui usamos a palavra “código” de maneira cio com um propósito duplo. O primeiro representa
generalizada. O livro do Deuteronômio é menos as preocupações religiosas particulares, tais como o
um guia prático para questões legais do que uma cumprimento de um voto (v. 7). Um segundo propó­
enumeração de valores e práticas tradicionais que sito é mais humanitário em sua orientação, dando
os membros respeitáveis da comunidade conside­ ao devoto a oportunidade compartilhar a bênção
ram característicos da identidade israelita. Não há da terra, alegrar-se no S enhor e oferecer ajuda aos
nenhuma disposição “lógica” neste código e, a par­ economicamente dependentes (vv. 7.12.18).
tir do capítulo 22, há uma sucessão de leis isoladas Há aqui repetições, pontos de vista conflitantes
que não são explicadas com detalhes; de fato, pare­ e diferenças em terminologia que indicam sua com­
cem não ter relação umas com as outras. Isso pode plicada história literária. A lei original a respeito do
confundir o leitor contemporâneo. santuário central encontra-se nos vv. 13-19. Adições
As vezes, palavras-chave fazem a ligação entre posteriores (vv. 2-7.8-12.20-28) concordam todas
diversas leis, mas em outras ocasiões isso não é com a restrição do culto a um único santuário, cuja
prontamente visível na tradução. Além disso, o es­ escolha cabe somente a Deus. 197
DEUTERONÔMIO 12

12,1-7 Destruição dos santuários canaanitas. o abate ritual dos animais. O v. 28 é uma conclu­
A centralização do culto é apresentada como conse- são homilética de toda a passagem sobre ó santuá­
qüência lógica do cumprimento de uma ordem pre­ rio central. É recomendada a obediência porque ela
viamente dada para destruir santuários canaanitas assegura a Israel o favor divino.
e seus pertences (v. 3; cf. Dt 7,5). Colinas e árvores Embora a lei da centralização seja importante
frondosas eram com freqüência escolhidas como inovação deuteronômica, a parte principal do livro
locais para santuários porque diversos povos semí- trata de legislação que não exige nem mesmo men­
ticos as associavam ao divino. A atividade cultuai ciona a centralização. Ainda assim, essa inovação
nesses locais era inequivocamente condenada como foi momento decisivo na vida do antigo Israel.
pecado pelos profetas (cf. Os 4,3; Jr2,20; Ez 6,13). Apresentou um senso de unidade e coesão em uma
A expressão “houver escolhido... para ali morar” época em que as outras instituições de Israel esta­
(v. 5) é uma fórmula usada pelos reis do antigo vam mortas ou moribundas. A centralização do
Oriente Próximo para indicar posse. A História Deu- culto foi, realmente, uma inovação, mas que resul­
teronomista usa essa mesma expressão para se refe­ tou de uma nova interpretação do antigo modelo
rir a Jerusalém (IRs 9,3; 11,36; 14,21; 2Rs 21,4.7). cultuai do deserto. O que era perfeitamente viável
Da mesma forma, a expressão “entre todas as tribos” na época de Moisés nunca mais foi percebido por
refere-se a Jerusalém em IRs 8,16; 11,32; 14,21; Israel até o Deuteronômio. Sob a influência desse
2Rs 21,7. Isso indica que Jerusalém é o lugar esco­ livro, a centralização tomou-se o meio para expres­
lhido pelo S enhor para o único santuário permitido. sar a natureza única do Deus de Israel e do relacio­
Naturalmente, o Deuteronômio não poderia citar a namento único de Israel com o Divino.
cidade, pois Jemsalém só foi incorporada a Israel 12.29- 13,18 O espectro da infidelidade. O tra­
no tempo de David (cf. 2Sm 5,6-12). tamento insensível das nações no Deuteronômio não
12,8-12 A centralização como meta da pere­ resulta tanto de um sentimento de superioridade étni­
grinação de Israel. Os deuteronomistas estão bem ca ou cultural por parte dos deuteronomistas quanto
cientes de que a exigência de um único santuário de seu medo de que Israel estivesse em perigo real de
vai contra práticas legítimas mais primitivas. Essa se perder para sempre em um mar de assimilação.
passagem caracteriza todas essas práticas anteriores Se for para Israel ter algum futuro, será por causa
como temporárias. O “descanso” que o S enhor dá a de uma autodefinição formulada com clareza mani­
Israel (cf. IRs 5,4; 8,36) inaugura uma nova era festada por intermédio de padrões culturais distintos
marcada por Deus. Aparentemente, Ezequias (2Rs que marcam Israel como diferente das outras nações.
18,4) e Josias (2Rs 23,8-9.12-15.20) procuraram cen­ Certamente, o mais distinto desses padrões é a reli­
tralizar o culto, mas suas tentativas não sobrevive­ gião de Israel, com sua ênfase na fidelidade a um,
ram a eles. A meta deuteronômica de centralização e só a um. Deus. Em resultado dessa preocupação,
do culto foi bem-sucedida porque a guerra contra a o Deuteronômio é quase implacável na determina­
Babilônia reduziu a terra sob o controle israelita a ção de assegurar que Israel mantenha sua fidelidade
Jerusalém e alguns quilômetros quadrados em redor somente ao S enhor. Esta passagem em particular
dela. Assim, os deuteronomistas fizeram da necessi­ trata das tentativas de subverter a fidelidade de Israel
dade uma virtude. e de como elas devem ser enfrentadas.
12,13-19 Alguns efeitos da centralização. A 12.29- 31 Rituais religiosos estrangeiros. Os
mais antiga das leis sobre o santuário central é diri­ historiadores da religião têm certeza de que o culto
gida a Israel na segunda pessoa singular, como acon­ israelita adotou grande parte dos rituais religiosos de
tece com a maioria da legislação deuteronômica pri­ Canaã, modificados para se adaptar às crenças no
mitiva. Uma das conseqüências dessa lei é a permis­ S enhor. Por exemplo, a festa agrícola da Páscoa as­
são para 0 abate profano de animais domésticos, que sumiu um tom distintamente javista pela associação
se toma uma necessidade prática, porque o abate ri­ com o Êxodo (cf. Dt 16,1-6). De modo semelhante, o
tual deve se limitar ao santuário central. Embora a sacerdócio israelita, o sistema sacrifical e até mesmo
dieta diária raramente inclua came, o abate de ani­ O Templo de Jerusalém derivaram de padrões canaa­
mais para a aliriientação tem de ser separado do culto. nitas em uso por um longo tempo antes de Israel co­
Os levitas que oficiam nos santuários que serão eli­ meçar a existir. Porém tudo isso já se perdera na me­
minados em favor do santuário único são recomen­ mória coletiva de Israel quando o Deuteronômio foi
dados à caridade dos israelitas, da mesma forma que escrito.
outros grupos economicamente dependentes (viúvas, O que os deuteronomistas têm diante dos olhos
órfãos e migrantes; Cf. Dt 12,12; 14,27-28; 16,11; é a tentação que Israel enfrenta: a deserção do S enhor
18,6-7; 26,11-12). em favor dos deuses das nações conquistadas. Para
12,20-28 Uma limitação. O efeito do v. 21 é neutralizar essa tentação, o Deuteronômio relembra
limitar a permissão bastante ampla do v. 25 a res­ tradições associadas ao período do assentamento (w.
peito do abate não cultuai de animais para alimen­ 29-30) e faz Israel se lembrar da natureza repugnan­
tação. Tal permissão restringe-se a lugares cuja dis- te dos rituais religiosos nunca adotados oficialmente
198 tância do safituário central impossibilita na prática por Israel, tais como sacrifícios de filhos (v. 31). A
DEUTERONÔMIO 14

crítica incansável da religião não-israelita é para 14,1-21 Santidade. À primeira vista, o material
superar a tendência de assimilação que ameaça não deste capítulo parece ter pouco a ver com santidade.
só a identidade religiosa única de Israel, mas tam­ Isso é verdade se definimos santidade em termos de
bém sua própria existência. virtudes a serem adquiridas e vícios a serem evitados.
1232-13,18 Ameaças internas. Apesar da críti­ Da perspectiva israelita, a santidade é conseqüência
ca severa às religiões não-israelitas, os deuteronomis- da singularidade divina O Deus de Israel não é
tas reconhecem que as ameaças mais sérias à aliança como os deuses das nações e, por isso, os que servem
vêm de dentro. Os passos a dar a respeito dessas a ele não podem pautar seu comportamento segundo
ameaças mostram como os deuteronomistas levam os costumes associados ao serviço dos deuses estran­
a sério a fidelidade absoluta a Deus. geiros. Israel deve ser santo, isto é, único, como Deus
De modo bastante surpreendente, os primeiros é santo.
a passar por um exame minucioso são os profetas Os vv. 1 e 2 proíbem a observância de ritos fú­
(13,1-5). A incitação à apostasia pode vir, e vem, nebres praticados nas religiões canaanitas. (Aparen­
de autoridades religiosas tais como os profetas. Ao temente, tais ritos perduraram em toda a história de
relacioná-las em primeiro lugar como as que podem Israel, até mesmo no período exílico — c f Ez 9,14­
levar Israel a comprometer sua fidelidade ao S e­ 15.) Esses rituais fúnebres estão associados ao culto
nhor , o Deuteronômio revela uma verdadeira falta do deus que morre e ressuscita, refletindo os ciclos
de confiança nessas autoridades religiosas. Como agrícolas de infertilidade e fertilidade que se alter­
é natural, o Deuteronômio se apresenta como a pa­ nam. Para Israel, esses ciclos não formam uma me­
lavra autorizada de Deus, o que, com efeito, toma táfora apropriada para o S enhor que tem soberania
obsoleta a profecia. O povo pode determinar a von­ absoluta sobre o cosmos. Israel pertence ao S enhor
tade divina consultando este autoritativo documento (v. 2). É impensável, então, para o povo do S enhor
escrito em vez de confiar em autoridades humanas observar rituais estrangeiros.
e falíveis, capazes de induzi-lo em erro. Israel nunca O resto desta unidade (vv. 3-21) trata de leis ali­
se enganará se obedecer os preceitos encontrados mentares. E impossível saber a origem dessas obser-
no Deuteronômio. vâncias. Mesmo as traduções para as línguas ociden­
A fidelidade que Israel deve a Deus transcende tais dos nomes de alguns dos animais e pássaros
todo laço humano, mesmo o da família (13,6-11). relacionados aqui não são mais que conjeturas. Qual­
Se um membro da família é incentivo à idolatria, quer tenha sido a origem dessas leis, é grande sua
os israelitas fiéis a Deus não deixarão o amor fa- importância na comunidade exílica e pós-exílica.
milial ter precedência sobre o amor que têm a Deus. A observância de tais leis alimentares ajudaram
Embora este texto faça uso de linguagem legal, seu o judaísmo primitivo a desenvolver sua identidade.
impulso básico é homilético. Concentra-se no valor Eliminou com eficácia a socialização com não-ju-
da fidelidade a Deus, em vez de na apresentação deus e, assim, ajudou a afastar o impulso à assimi­
de regras de conduta específicas, e deve ser inter­ lação. Gradativamente, à medida que foram criadas
pretado da mesma forma que passagens semelhan­ e se desenvolveram no judaísmo antigo, as leis ali­
tes no Novo Testamento, como Mt 10,34-38 e seus mentares ficaram tão enraizadas na identidade re­
paralelos. ligiosa judaica que os primeiros cristãos tiveram
Uma terceira ameaça interna pode ser toda uma dificuldade para imaginar a possibilidade de uma
cidade que passou para o culto de outros deuses religião verdadeira sem elas (At 15,29; Cl 2,21).
(13,12-18). Da perspectiva do Exílio, este não é A suposição fundamental por trás dessas leis alimen­
um exagero retórico. As conquistas assírias e babi- tares é que 0 povo de Deus não pode ser como o
lônicas reduziram Israel a uma fração daquilo que povo que adora deuses estrangeiros, e essa distinção
ele era outrora. Toda a Galiléia e o centro da Pales­ deve estender-se até mesmo a questões alimentares.
tina foram perdidos. Das perspectivas dos deutero­ De interesse especial é o v. 21b, que proíbe que
nomistas, essas perdas tinham uma única explica­ se cozinhe um cabrito no leite de sua mãe. (Mais
ção — a infidelidade de Israel. Se o remanescente tarde, os rabinos extrapolaram dessa lei a proibição
de Israel não for engolfado pelas nações, será por de comer laticínios e carne na mesma refeição.)
causa da firme decisão de adotar absoluta fideli­ Essa proibição é diferente de outras nesta passagem
dade ao S enhor . que tratam de animais puros e impuros. Há alguma
Segundo o Deuteronômio, a continuação da evidência de que era ela a rejeição consciente de
existência de Israel depende da manutenção de sua determinado ritual canaanita, mas a evidência não
dedicação a Deus. Toda transigência equivale ao é suficiente para tirarmos uma firme conclusão. De
suicídio comunitário. Os deuteronomistas fazem qualquer modo, todas essas leis fazem Israel se
essa afirmação com clareza chocante e convicção lembrar de que seu futuro depende da disposição
sincera. Dentro da comunidade não há espaço para de se afastar de tudo que possa comprometer sua
ninguém que adote uma atitude de apostasia. A fidelidade a Deus.
vida e o futuro de Israel estão na balança. Qual é 14,22-15,23 Generosidade de Israel. Uma
a escolha de Israel? crença israelita fundamental era que, embora Deus 199
DEUTERONÔMIO 14

tivesse dado a terra a Israel, ela realmente pertencia A lei da remissão das dívidas (15,1-11) reflete
ao S enhor que a deu de presente a Israel, conforme a prática israelita de deixar a terra sem cultivo em
as promessas feitas a Abraão, Isaac e Jacó. Uma intervalos regulares (Ex 23,10-11). Como é óbvio, a
consequência importante dessa crença foi o reco­ observância de tal prática teria causado impacto na
nhecimento da dependência de Israel da genero­ terra de Israel, mas cada vez que era observada por
sidade divina. Os ricos e os pobres igualmente um lavrador, o ano sem cultivo dificultava as coisas
deviam reconhecer Deus como fonte de seu sus­ para os que dependiam economicamente da agricul­
tento. A legislação desta passagem descreve algu­ tura. Ser-lhes-ia quase impossível saldar seus débi­
mas das maneiras pelas quais Israel decidiu expres­ tos. É provável que esta lei pretendesse que os dé­
sar essa crença; o dízimo, o ano da remissão das dí­ bitos não fossem cobrados durante o ano sem cul­
vidas, a alforria dos escravos e a consagração dos tivo de um lavrador, embora a tradução judaica mais
primogênitos. tardia exigisse que as dívidas fossem perdoadas
Em toda esta passagem é bem evidente a con­ em vez de apenas adiadas. O “estrangeiro” citado em
sideração especial do Deuteronômio pelos pobres. 15,3 não é o migrante, de certo modo integrado ao
De fato, Dt 15,4-5 afirma que a obediêneia pode­ sistema agrícola e econômico israelita, mas o merca­
ría fazer com que a pobreza não existisse, mas dor ou artesão itinerante, que não é afetado pelo ano
uma avaliação mais realista do potencial de Israel sem cultivo. A lei deixa claro que ninguém deve tirar
para a obediência reconhece a existência da pobre­ vantagem das dificuldades financeiras de outrem. Os
za e a necessidade de generosidade por parte dos pobres devem sentir a generosidade de seus irmãos
ricos (15,11). Essa preocupação pelos pobres é uma israelitas (15,9-11).
das manifestações de uma inclinação humanitária Uma forma de saldar dívidas é pelo trabalho
mais ampla dentro do Deuteronômio. Por exemplo, dos devedores. Os vv. 12-19 tentam impedir abusos
Dt 14,22-27 sugere que o propósito do dízimo é for­ neste sistema. O serviço do escravo que trabalha
necer alimentos especialmente para os pobres. Não para pagar dívidas deve ser limitado. Servos do
há menção de nenhum propósito sagrado para o sexo masculino e feminino têm os mesmos direitos.
dízimo, como oferenda para o benefício de Deus. Quando se completa o trabalho dos escravos, eles
Mesmo o uso do dízimo como sustento de sacer­ devem receber apoio financeiro a fim de facilitar
dotes e levitas é ignorado pelo Deuteronômio (cf sua transição para a liberdade. Para motivar a obser­
Nm 18,21-28). Os levitas recebem parte do dízimo vância desses preceitos humanitários, o Deutero­
não por sua posição sacerdotal, mas por causa de nômio lembra a seus leitores que eles são descen­
sua necessidade como os que não têm posição eco­ dentes de escravos. O israelita que trabalha para
nômica (14,27.29). pagar uma dívida continua sempre a ser israelita.
Finalmente, o Deuteronômio faz acomodações O credor precisa se lembrar da origem comum de
práticas em vista de sua expectativa de que haja todos'(15,15).
apenas um santuário. Dt 14,25 fala de trocar o dízimo A lei a respeito da oferenda dos primogênitos
por dinheiro, o que tomaria óbvia a necessidade de machos (15,19-23) teve sua origem provável nos
transportar produtos agrícolas por longas distâncias rituais destinados a assegurar a fertilidade contínua,
até o santuário central. Da mesma forma, enquanto oferecendo os primogênitos aos deuses. O Deutero­
Ex 22,30 espera que o sacrifício dos primogênitos nômio preserva essa prática adotada por Israel (cf.
aconteça oito dias após o nascimento, Dt 15,20 elimi­ Ex 13,2), mas o propósito dessa ação mais uma vez
na a necessidade de viagens freqüentes ao santuário não é sustentar o santuário e seu clero e sim forne­
central, afirmando que esse sacrifício podia aconte­ cer alimentos para uma refeição festiva.
cer em qualquer ocasião durante o ano. Israel sente o poder maravilhoso que tem o
O dízimo (14,22-29) era a oferenda de uma parte S enhor dç prover para todo o povo. A resposta de
da produção agrícola originalmente destinada ao Israel a essa experiência de abundância divina deve
sustento dos santuários e seu pessoal. Era costume ser uma partilha pela qual ricos e pobres reconhecem
amplamente praticado no antigo Oriente Próximo. sua dependência de Deus. Pelos dízimos, os ricos
(Embora a palavra “dízimo” em hebraico pareça ter dão testemunho de que Deus é a fonte de sua abun­
relação etimológica com a palavra “dez”, nem todos dância. Aceitando a generosidade dos irmãos israeli­
os filólogos hebraicos concordam. Consideram tas, os pobres recebem seu sustento de Deus, que dá
“dízimo” relacionado com a palavra ugaritica para a todo Israel participação na riqueza da terra.
“libação, oferenda”.) No período monárquico, o rei 16,1-17 Calendário de festas. Esta passagem
provavelmente apropriava-se de parte do dízimo para trata das festas de peregrinação da Páscoa-Pães sem
sustentar santuários reais, tais como o Templo de fermento, das Semanas e das Tendas. Essas festas
Jerusalém. O Deuteronômio ignora esse uso do dízi­ são conhecidas de outras passagens do Pentateuco
mo. Simplesmente dá o cardápio para uma refeição (Ex 23,14-17; 34,18-23; Lv 23; Nm 28-29). A marca
festiva celebrada no santuário central. A cada três distintiva do Deuteronômio sobre sua celebração está
anos, o dízimo deve ser usado localmente para o na transformação delas era ocasiões de peregrinação
200 bem-estar dos pobres (14,28-29). ao santuário central. Por exemplo, segundo este tex-
DEUTERONÔMIO 16

to, a refeição da Páscoa deve ser comida no santu­ lico, quando Judá estava reduzido a Jemsalém e a
ário central (vv. 5-6), não nas cidades da terra, como alguns quilômetros quadrados em tomo dela.
antes era costume (Lv 23,3). 16.18- 18,22 Os chefes de Israel. A qualidade
A primeira festa, Páscoa-Pâes sem fermento, é de sua liderança era motivo de grande preocupação
combinação daquilo que antes eram duas observân- em Israel. Os deuteronomistas descrevem suas expec­
cias separadas. A Páscoa, marcada pelo consumo de tativas em relação aos que exercem funções esptecífi-
um cordeiro do rebanho, provavelmente originou-se cas: juiz, rei, sacerdote e profeta. O mais significati­
entre os pastores enquanto trocavam de pastagens vo na apresentação do Deuteronômio é a pressupo­
na primavera (Abib corresponde a março/abril). É sição de que os chefes de Israel, em especial o rei,
provável que a festa dos Pães sem fermento se te­ estão sujeitos à Lei autoritativo encontrada no livro
nha originado entre os agricultores, quando todo ano do Deuteronômio. O domínio do rei não é absoluto.
renovavam os estoques de fermento, livrando-se Todos OS chefes de Israel estão obrigados a seguir
primeiro do estoque do ano anterior. Estas duas festas as tradições sagradas que encontram expressão no
já estavam unidas antes que os deuteronomistas Deuteronômio. Isso serve para limitar a autoridade
iniciassem sua obra. A tradição israelita associava da classe líder e toma-a mais responsável perante o
esta festa ao Êxodo do Egito. O Deuteronômio man­ povo como um todo. O Deuteronômio defende, de
tém essa ligação, mas não a desenvolve de maneira modo claro, a crença no valor do governo limitado.
significativa, exceto para insistir em sua celebração 16.18- 17,7 Juizes e escribas. Antes do estabe­
no santuário central. lecimento da monarquia, os chefes de Israel eram,
A festa das Semanas deriva seu nome da for­ em sua maior parte, anciãos tribais. Os anciãos eram
ma como é calculada a época de sua celebração. os chefes de famílias e clãs importantes. Atuavam
Como ela é observada no qüinquagésimo dia depois de maneira a impedir que o poder central se concen­
da Páscoa, o Novo Testamento a chama de Pentecos- trasse nas mãos de uma única pessoa. Com o surgi­
tes (At 2,1). Ela também surgiu como festa agríco­ mento da monarquia, a influência dos anciãos dimi­
la para celebrar a colheita de cereais (cf. 15,9), que nuiu e seu papel na sociedade israelita foi assumido
ocorria em junho. Na tradição rabínica, tomou-se por funcionários nomeados pelo rei. O v. 18 sugere
associada à entrega da Lei no Sinai, mas aqui não nomeações feitas por algum tipo de autoridade cen­
é feita nenhuma associação desse tipo. O v. 12 tralizada. É difícil ter certeza de tudo isso, porque a
lembra os leitores da escravidão no Egito, a fim de Bíblia não apresenta nenhum relato teórico das ins­
levá-los à obediência. Mais uma vez, a principal tituições sociais, políticas e judiciais de Israel. Em
preocupação do Deuteronômio é incentivar a pere­ 2Cr 19,5, há menção das reformas judiciais de
grinação ao santuário central para uma festa de Josafat, que reinou em Judá durante o século IX
alegria com a participação de todos (v. 11). a.C., assim, há evidências da nomeação de juizes
A terceira festa é a das Tendas, festa agrícola pela autoridade central.
outonal, celebrada ao término da colheita de tâma­ O papel desempenhado pelos juizes na socie­
ras, azeitonas, uvas e outras frutas. O nome deriva dade israelita não se limitava à esfera judicial. Os
provavelmente das habitações temporárias erigidas juizes equivaliam, provavelmente, aos governadores
nos pomares para os ceifeiros. A tradição rabínica locais responsáveis pelos negócios dos distritos a
usava-a para comemorar a época de Israel no deser­ eles designados. Exerciam prerrogativas legislativas
to, quando o povo vivia em habitações temporárias e também judiciais. .Enquanto os juizes formulavam
(tendas). Mais uma vez, o texto aqui não alude a as normas, os escribas eram responsáveis pop comu­
esse fato. Predominam as dimensões agrícolas da nicar e impor as decisões dos juizes perante os quais
celebração. De fato, não há nenhuma .alusão a qual­ eram responsáveis.
quer elemento da tradição do Êxodo. O Deutero­ O Deuteronômio é inflexível a respeito da inte­
nômio simplesmente descreve a festa das Tendas gridade do sistema legal, na Antiguidade mais expos­
como a terceira festa de peregrinação a ser cele­ to à corrupção do que hoje. Os juizes sustentavam-
brada no santuário central. se com seus cargos e o suborno era a maneira mais
Os dois últimos vv. (15,16-17) resumem a fácil de alcançar uma posição confortável. O v. 20
obrigação de fazer as três peregrinações anuais ao afirma que a justiça é o caminho para assegurar
santuário central. Como essas festas celebram a abun­ prosperidade a todos. Uma sombria experiência en­
dância agrícola da terra, é apropriado que os que sinou a Israel como podem ser destrutivos lapsos da
fazem a peregrinação tragam oferendas em sinal de autoridade judiciária.
ação de graças pelos frutos que Deus lhes deu. Como À primeira vista, o material de 16,18-17,7 pare­
exposta, esta legislação é bastante impraticável. Ima­ ce ser estranho em um contexto que trata de lideran­
gina toda a população do sexo masculino (no míni­ ça. A preocupação aqui é a pureza do culto de Israel.
mo) no santuário central para cada uma destas festas. Entretanto, esta passagem dá um exemplo de como
A cena improvável toma-se um pouco mais provável opera o sistema judiciário (17,2-7) e amostras das
se considerarmos que essa parte da legislação deute- questões que devem ser resolvidas pelo judiciário
ronômica originou-se no período exílico ou pós-exí- (16,21-7,1). Os juizes devem ficar atentos a quais- 201
DEUTERONÔMIO 17

quer tentativas de introduzir práticas religiosas ca- nar sua vida conforme o livro da Lei. É importante
naanitas no culto do S enhor. Essas tentativas se­ freio na tendência inerente da monarquia ao abso-
riam repulsivas a Deus e destruidoras da sociedade lutismo. A obediência à Lei levará à manutenção
israelita. do rei e a desobediência com certeza levará ao de­
Segundo, os juizes devem fiscalizar as práticas sastre. Como todos os outros israelitas, o rei está
sacrificais, a fim de assegurar que Israel leve a sujeito à observância da Lei. Unidos nessa obser­
sério esse aspecto do culto. Oferecer animais infe­ vância, rei e súditos são um único povo de Deus.
riores para o sacrifício não passa de um arremedo 18,1-8 Sacerdotes e levitas. Sacerdotes e levi-
do propósito desse culto. tas como tais não são discutidos no Deuteronômio,
Finalmente, o processo judicial exige integri­ exceto quando uma pessoa comum tem ocasião de
dade não só dos que o conduzem, mas de todos os tratar com eles. A única exceção é este texto, que
envolvidos (17,6-7). Ninguém pode ser condenado contrasta fortemente com a legislação do autor sa­
com base no depoimento de uma só testemunha. cerdotal. Esta passagem tenta lidar com o conflito
As testemunhas devem estar preparadas para en­ sobre direitos sacerdotais — conflito que grassou
frentar os castigos mais severos, se ficar compro­ entre os sacerdotes de Jemsalém e os dos santuários
vado que seu depoimento é falso. Israel inteiro é locais proscritos. Com a centralização do culto
responsável pela integridade do sistema judiciário. sacrifical ordenada pelo Deuteronômio, estes últi­
O principal propósito desse sistema é purificar mos perderam sua fonte de renda. A solução ofere­
Israel de práticas corruptas que ameaçam a própria cida pelos vv. 6-8 é de todo irrealizável e provavel­
existência da comunidade. mente nunca foi posta em prática (cf 2Rs 23,8-9).
17,8-13 O tribunal do santuário central. O No início da era pós-exílica, foi formulado um ajus­
Deuteronômio toma providências para o julgamento tamento pelo qual os levitas se tomaram sacerdotes
de questões complicadas demais para o judiciário de segunda classe no Templo, enquanto os sacerdo­
local. O texto não deixa claro quem inicia a apela­ tes de Jerusalém mantinham sua posição exclusiva
ção, embora Ex 18,13-23 mencione que as apelações como responsáveis pela condução do culto sacrifical
são feitas pelas autoridades locais. O tribunal cen­ (cf Ez 44,9-31). Entretanto, o fim da hostilidade
tral compõe-se de sacerdotes e um juiz. A inclusão entre esses dois grupos não se deveu aos círculos
dos primeiros baseia-se no tradicional conhecimen­ deuteronômicos.
to dos sacerdotes em questões legais. E provável que Alguns intérpretes afirmam que o Deuteronô­
os deuteronomistas introduzam o juiz como um mio foi produto de círculos levíticos. A luz deste
meio de romper o controle exclusivo dos sacerdotes texto, tal alternativa parece improvável, pois os au­
nesses assuntos. Os julgamentos do tribunal central tores presumíveis de um livro como o Deuteronô­
são para resolver programas legais de maneira de­ mio resolveriam em favor próprio todas as dispu­
finitiva. Sem essa finalidade, o sistema judiciário tas nas quais fossem parte interessada. Deveríam,
seria fraco demais para ser eficaz. no mínimo, ter apresentado uma sugestão mais
17,14-20 O rei. A instituição da monarquia co­ viável do que a dada aqui. Em algumas das outras
meçou como resposta à anarquia causada pela pres­ vezes em que são mencionados no Deuteronômio,
são imposta às tribos israelitas pelos fdisteus (cf os levitas são apresentados como objeto de carida­
ISm 8-10). Como os primórdios da monarquia fa­ de com uma situação econômica tão arriscada que
ziam parte da memória histórica de Israel, esta insti­ precisam da ajuda dos outros israelitas (14,28-29;
tuição não podia ser mitificada, como o foi nas outras 16,11-14; 26,12). Não é um auto-retrato muito li­
culturas do antigo Oriente Próximo, como parte da sonjeiro pelos supostos autores do Deuteronômio.
ordem de criação por vontade divina. Israel sabia 18,9-22 Profetas. Antes de examinar o papel
que a monarquia foi estabelecida em resultado da do profeta, os deuteronomistas tratam de algumas
iniciativa humana, o que possibilitou a abordagem das técnicas divinatórias obviamente muito popu­
da monarquia pelo Deuteronômio. lares no antigo Israel. Segundo a tradição bíblica,
O Deuteronômio não rejeita a monarquia como há três métodos legítimos de comunicação entre o
tal. Faz parte do passado de Israel e não pode ser divino e o humano: os sonhos (Gn 40), o Urim e
ignorada; entretanto, seu papel no futuro de Israel Tumim (veja abaixo o comentário sobre 33,8-11) e
precisa ser entendido com cuidado. O rei não deve a profecia.
imitar os outros reis do antigo Oriente Próximo, O antigo Oriente Próximo em geral, e a Meso-
formando um grande exército, dedicando-se à diplo­ potâmia em particular, era famoso pela variedade
macia por meio de casamento, nem acumulando de técnicas desenvolvidas para determinar a vontade
vasta riqueza. Se o Deus de Israel é diferente dos divina. Os w . 10-11 mencionam algumas. O Deu­
deuses das nações, o rei de Israel também tem de teronômio rejeita todas elas, por serem incompatí­
ser diferente. veis com o culto ao S enhor. E provável que a prin­
Para o Deuteronômio, o que toma singular a cipal objeção a essas técnicas não seja seu uso
monarquia de Israel é a sujeição do rei à Lei. Como para determinar a vontade divina, mas sua utiliza­
202 todos os outros israelitas, o rei também deve orde­ ção em diversos rituais destinados a manipular a
DEUTERONÔMIO 19

divindade. Depois de determinada a vontade divina, O Deuteronômio dá apoio teológico a essa institui­
os que faziam a consulta recebiam conselhos sobre ção, assegurando que impede o derramamento de
como podiam mudar quaisquer decisões da divin­ sangue inocente e a culpa conseqüente, com o re­
dade que pudessem afetá-los de maneira adversa. sultado da perda da terra (compare Gn 4,8-14).
O sacrifício infantil citado no v. 10 é provavelmente Em sua apresentação das cidades de refúgio, o
um dos rituais mais horripilantes usados com a Deuteronômio discute o uso (vv. 4-10) e o abuso
adivinhação. Do ponto de vista deuteronômico, o (vv. 11-13) delas. Por mais lamentável que seja um
Deus de Israel está acima dessa torpe manipula­ homicídio acidental, seus terríveis efeitos serão
ção. O uso de técnicas divinatórias é a justificativa multiplicados se as pessoas fizerem um julgamento
para a expulsão dos canaanitas da terra (v. 14). apressado e punirem os responsáveis por mortes
O tratamento deuteronômico do profeta não acidentais como se fossem homicidas. Tal reação
leva à confiança irrestrita nessa forma de liderança. provocaria outro ato de “justiça” e poderia iniciar
Os vv. 15-19 evidentemente presumem a continua­ um ciclo incessante de homicídios. As cidades de
ção da função profética, mas quem pode alegar ser refúgio dão a oportunidade para uma calma deter­
outro Moisés (v. 15)? O texto não supõe que haverá minação de culpa ou inocência.
muitos profetas capazes de fazer essa alegação. Al­ Infelizmente, as pessoas erradas podem se apro­
guns intérpretes afirmam que esse texto dá teste­ veitar do santuário proporcionado por essas cida­
munho da existência de uma sucessão de profetas des. Os anciãos, que eram os administradores de
em uma função de “o profeta”. Não há evidência justiça pré-monárquicos, precisam ficar vigilantes
direta de tal função em nenhuma parte da Bíblia. para impedir o homicida de escapar à justiça. Os
Sua existência é improvável. culpados de homicídio devem, eles próprios, ser
Os profetas são mencionados apenas duas vezes mortos, porque seu derramamento de sangue ino­
no Deuteronômio — aqui e em 13,1-6. Em ambos cente ameaça a continuação da existência de Israel
os casos, são apresentados como ameaças potenciais na terra. Segundo a perspectiva religiosa dos deute-
à fidelidade que Israel deve a Deus. Eles devem ronomistas, os efeitos de um pecado como o homi­
ser controlados com muito cuidado, pois podem cídio alcançam não só o responsável por ele como
afastar, e presumivelmente afastam, Israel do servi­ também todos os que aparentemente concordam
ço e da obediência totais ao S enhor (veja Jr 28). O com ele. Ao punir o indivíduo culpado, a comuni­
teste para a profecia verdadeira dado no v. 22 não dade demonstra sua reação ao crime e, dessa forma,
é nada prático e não serve para ninguém que tenha escapa a qualquer culpa e castigo que derivem dele.
de tomar uma decisão a respeito de um caso especí­ As cidades de refúgio ajudam a impedir o derrama­
fico com certa urgência. mento de sangue inocente, mas nunca devem se
O Deuteronômio pode se dar ao luxo de ser tão tomar um meio para os culpados fugirem às conse­
negativo sobre a profecia porque efetivamente eli­ quências de seus crimes.
mina sua utilidade. Se as pessoas quiserem conhecer 19,14 Os limites territoriais. Esta é a versão
a vontade divina, tudo que precisam fazer é estudar deuteronômica de uma lei pré-israelita antiga en­
o livro da Lei, isto é, o próprio Deuteronômio. O contrada em outros códigos legais do antigo Oriente
tratamento que o livro dá à profecia faz com que Próximo. Sem as salvaguardas legais de feitos regis­
seja muito improvável que o Deuteronômio tenha trados e mantidos por autoridades civis, o respeito
surgido em circulos proféticos, como afirmam al­ aos limites territoriais é imprescindível para evitar
guns intérpretes. Em certa época, todo texto que disputas de território. O Deuteronômio acrescenta
refletia sensibilidade moral era atribuído a círculos sua característica a essa lei antiga: a terra foi dada
proféticos. O Deuteronômio partilha com a profe­ pelo S enhor para seus donos atuais. As tentativas
cia uma preocupação ardente pela dimensão ética da de expropriá-la não passam de atos de revolta con­
vida de Israel com Deus, mas apresenta uma ima­ tra 0 S enhor.
gem nada lisonjeira do profeta. 19,15-21 Testemunhas. A integridade do sis­
19,1-13 As cidades de refúgio. Embora o Deu­ tema judiciário depende da veracidade das teste­
teronômio não use a expressão “cidades de refúgio”, munhas. O que foi decretado a respeito de acusa­
como faz Nm 35, ambos os textos prefiguram a ções de idolatria (17,6-7) estende-se a todos os
mesma instituição. Não é fácil determinar suas ori­ casos. Quando a veracidade das testemunhas é
gens. Como as cidades de refúgio pressupõem uma duvidosa, pode-se apelar para o tribunal no santuá­
identidade que transcende as tribos, devem ter sido rio central (v. 17). O texto não descreve os proce­
estabelecidas na última parte do período de assen­ dimentos usados pelo tribunal para decidir a ques­
tamento. Por outro lado, é provável que a monar­ tão do perjúrio. Aqui o enfoque está no castigo dos
quia proporcionasse algum tipo de autoridade cen­ culpados de mentir durante os procedimentos judi­
tralizada para lidar cora a determinação judicial ciais. O castigo pelo perjúrio corresponde ao cas­
dos homicídios como acidentais ou criminosos. As­ tigo pelo crime do qual as testemunhas falsas acu­
sim, as cidades de refúgio eram uma instituição in- saram outros israelitas. No fim, o mal alcançará os
tertribal que procurava coibir os atos de vingança. que planejam o mal para outros. O v. 21 salienta 203
DEUTERONÔMIO 20

esse princípio. Os que, com seu peijúrio, põem em O tratamento das cidades inimigas parece bru­
perigo a vida dos inocentes descobrirão que a pró­ tal, mas o que é descrito aqui (vv. 10-18) não é mais
pria vida está perdida. brutal que as práticas de outras nações no antigo
20,1-20 Regras para a guerra. O Deuteronômio Oriente Próximo. Ao interpretar estes vv., é impor­
já tratou do assunto da guerra (cf. 7,1-26). O presen­ tante lembrar que o Deuteronômio é mais visionário
te capítulo traz legislação adicional, que será au­ que realista na apresentação das normas militares
mentada por Dt 21,10-14; 23,9-14; 24,5; 25,17-19. israelitas. Israel não está em posição de se conduzir
Toda essa atenção à guerra é ofensiva às sensibili­ conforme essas prescrições. Corre mais perigo de
dades modernas, mas não podemos negar que o an­ ter suas cidades destruídas do que seus vizinhos.
tigo Israel adquiriu a terra de Canaã, em parte, por Nenhuma mercê deve ser dada às cidades ca-
meios violentos. De fato, alguns intérpretes acredi­ naanitas por causa dos perigos que os canaanitas
tam que, nos primeiros anos da história de Israel, representam a respeito da fidelidade absoluta que
a guerra era uma instituição cultuai. A expressão Israel deve a Deus (vv. 16-18). O fato de seus pro­
“guerra santa” é particularmente inadequada. Não fetas 0 repreenderem consistentemente por seguir
ocorre em parte nenhuma da Bíblia. É duvidoso que os modos das nações é prova suficiente de que
alguma forma de guerrear fosse um padrão cultuai Israel não se dedicou a um extermínio em grande
em algum ponto da história de Israel. A teologia de escala dos canaanitas. Embora houvesse conflitos
guerras desejadas e dirigidas divinamente era um entre os dois povos, muitos dos últimos foram as­
antigo lugar-comum no Oriente Próximo. O que le­ similados pela população israelita, à medida que
mos aqui e alhures na literatura deuteronômica é Israel adquiria hegemonia sobre Canaã.
uma interpretação das experiências e memórias do Finalmente, os vv. 19-20 indicam que Israel
campo de batalha de Israel. Dificilmente descreve não deve executar a tática da terra arrasada em seus
estratégia e táticas reais. conflitos com outras nações. Os recursos, em espe­
Uma convicção básica dessa ideologia de guer­ cial os ligados à produção de alimentos, devem ser
ra é que o resultado é determinado nos céus, onde preservados com cuidado. Aqui Israel se afasta da
os deuses das nações em guerra lutam uns com os prática mais comum na época, que testemunhava o
outros pelo poder e o domínio da esfera celeste. O uso indiscriminado do extermínio militar. Somente
que acontece nos campos de batalha terrenos ape­ 0 que ameaça a fidelidade de Israel a Deus deve ser
nas reflete o que já aconteceu nas regiões celes­ tratado sem misericórdia; em outros casos, o lado
tes. Por isso o sacerdote é o primeiro a exortar os humano e o bom senso devem controlar o potencial
que entram em combate (vv. 2-4). Por isso a força destruidor da guerra.
de Israel não depende de superioridade numérica 21.1- 25,19 Leis heterogêneas. Os cinco capí­
nem de armamento formidável. O Deuteronômio tulos seguintes contêm leis que abrangem uma am­
lembra a Israel que Deus lutou e derrotou o Egito, pla variedade de assuntos. Não estão organizadas
um império poderoso, quando o próprio Israel era em nenhuma ordem determinada, mas todas servem
impotente. para descrever o padrão da vida de Israel na terra.
O presente capítulo trata de três preocupações Todas são apoiadas por uma única pressuposição:
específicas a respeito da conduta de guerra: a isen­ a obediência a essas leis ajudará Israel a assegurar
ção do serviço militar (vv. 5-9); o tratamento de ci­ seu futuro na terra.
dades inimigas (vv. 10-18) e a proteção dos recursos 21.1- 9 O homicídio anônimo. É outro caso de
naturais em tempo de guerra (vv. 19-20). adaptação deuteronômica de uma prática que prova­
As leis que especificam as circunstâncias que velmente era de origem pré-israelita. Os códigos
permitem diversas isenções do serviço militar en­ legais do antigo Oriente Próximo afirmavam que a
contram diversos paralelos nas leis de outros países eidade mais próxima do local de um homicídio não
do antigo Oriente Próximo. Originalmente, essas esclarecido devia assumir a responsabilidade pelo
isenções reconheciam que as pessoas em “transi­ crime. Os chefes dessa comunidade deviam realizar
ção” estavam em uma situação especialmente vul­ um ritual que não só aceitasse a responsabilidade
nerável. Os antigos falavam dessa vulnerabilidade pelo crime, mas também desviasse da cidade a culpa
em termos de sujeição a poderes demoníacos. Não e 0 castigo pelo crime. Essa prática reflete a sólida
havia necessidade de expor o exército todo a esses crença do antigo Oriente Próximo na solidariedade
perigos, assim os que passavam por transições na do grupo e nas implicações religiosas de um crime
vida eram simplesmente isentos do serviço militar. como o homicídio. A não ser que fosse realizada
O Deuteronômio reinterpreta os elementos mitoló­ uma ação específica, as consequências desse crime
gicos dessas práticas e permite as mesmas isen­ poderíam destruir pessoas inocentes.
ções em bases puramente humanitárias. Além disso, O texto descreve um rito que não pode ser con­
isenta do combate todos os de pouca coragem. Em siderado sacrifical, pois o Deuteronômio só permite
circunstâncias difíceis, sua fraqueza podería afetar o sacrifício no santuário central. Os sacerdotes le-
todo o exército. E melhor que não tomem parte no víticos são apenas testemunhas mudas, não ofician-
204 combate. tes. O rito é todo conduzido pelos anciãos da cida-
DEUTERONÔMIO 22

de mais próxima do local do homicídio não esclare­ 21,22-23 Enforcamento. No antigo Israel, o
cido. Ao término do ritual, os anciãos rezam para enforcamento não era uma forma de castigo capital.
que a culpa do crime não seja atribuída à sua cida­ Depois de alguma outra forma de execução, o corpo
de, nem à nação como um todo. As palavras dessa do criminoso ficava exposto como lição objetiva
oração transformam os fragmentos de um rito mági­ para os que, por seus crimes, ameaçassem a exis­
co em um ato de obediência à lei e uma súplica por tência de Israel. Compassivamente, os deuterono­
misericórdia. Esta composição deuteronômica é tes­ mistas limitam o espetáculo horripilante, ordenan­
temunha da crença no perdão como ato de graça do 0 enterro no mesmo dia da execução.
divina que não pode ser manipulado pela execução 22,1-4 Respeito pela propriedade. O princípio
de nenhum ritual. subjacente a essa lei é que a propriedade de uma
21,10-21 Relacionamentos familiares. Nas pessoa sobre um bem não cessa com a perda dessa
duas primeiras situações aqui tratadas (o casamento propriedade. É dever do israelita respeitar os direitos
com uma prisioneira de guerra, vv. 10-14, e os di­ de propriedade de todas as pessoas. Há outra versão
reitos de herança do primogênito, vv. 15-17), os deu- em Ex 23,4-5. O Deuteronômio generaliza o benefi­
teronomistas presumem a existência da poligamia. ciário da lei, estendendo-a de “teu inimigo” (Ex
Embora a poligamia fosse praticada no antigo Israel, 23,4) a todo israelita, e a propriedade relacionada
a monogamia era muito mais comum, por razões com animais a qualquer tipo de propriedade. Para
econômicas e sociais, como as apresentadas nesta o Deuteronômio, essas prescrições não surgem de
legislação. Mais tarde, por razões teológicas, a mo­ uma noção abstrata de direitos de propriedade, mas
nogamia tomou-se a única forma de casamento per­ sim da convicção de que o futuro de Israel depende
mitida no Judaísmo. da capacidade do povo para permanecer unido. As
Quando um soldado israelita deseja desposar disputas sobre propriedade só provocam dissensão.
uma prisioneira de guerra, precisa levar em conta O respeito pela propriedade alheia é um dos com­
as sensibilidades da mulher e controlar seus impul­ ponentes práticos do espírito comunitário genuina­
sos. Antes de mais nada, a mulher deve ter certo mente eficaz.
tempo para lidar com o choque do cativeiro, a sepa­ 22,5 O travestir-se. A lei aqui mencionada abran­
ração da familia e a integração a uma nova casa. ge mais do que uma simples proibição de usar vestes
Para que essas transições aconteçam, o casamento do sexo oposto. Os deuteronomistas também têm
deve ser consumado apenas depois de um mês. em mente ornamentos, armas e outros objetos que
Depois que a ex-prisioneira se toma mulher de um pertencem a um ou outro sexo. Não é possível ter
israelita, deve ser tratada como tal. Em caso de di­ certeza se esse texto proíbe o travestimento por
vórcio, não volta à posição anterior, mas recebe a causa de sua associação com a homossexualidade,
liberdade devida a toda mulher israelita. proscrita por Lv 18,22, ou por causa de possíveis
No mundo antigo, as leis de herança tendiam elos com diversos rituais canaanitas. A proibição
a favorecer o primogênito. Em conseqüência disso, reflete também uma preocupação evidente em todas
criou-se o costume pelo qual o pai escolhia seu as culturas do antigo Oriente Próximo — aceitar
“primogênito”. Essa situação ficou especialmente as distinções existentes na natureza. Das perspec­
complicada em uma família polígama. Os deutero- tivas da Antiguidade, é tolice empanar essas distin­
nomistas querem assegurar os direitos do primo­ ções, já que estão presentes na natureza por uma
gênito verdadeiro, independente dos sentimentos boa razão determinada pelo Criador.
do pai em relação a ele ou à mãe dele. Sem dúvida, 22,6-7 Pássaros no ninho. Aqui os deutero­
conflitos como este contribuíram para favorecer a nomistas mostram como estavam adiante de seu
forma monogâmica de casamento. tempo. Esta lei, característica do Deuteronômio,
Por fim, os deuteronomistas tratam das dis­ aceita a possibilidade de ataque a um ninho de
putas que surgem entre pais e filhos (vv. 18-21). pássaros para pegar alimento. Embora permita que
Por causa do grande respeito devido à geração se peguem ovos e filhotes, o texto exige que o pás­
mais velha em geral e aos pais em particular, os saro adulto seja libertado. Esse ato evita a possível
jovens rebeldes punham-se em situação precária. extinção de uma espécie na busca por comida. O
É provável que os anciãos sirvam de mediadores pássaro adulto fica livre para reproduzir novamente
para acalmar as paixões surgidas de altercações e, assim, fica assegurada a sobrevivência da espé­
domésticas. Impedem os pais de se deixarem levar cie. A caça sem restrições ameaça a sobrevivência
pela cólera com um filho recalcitrante. Os anciãos da espécie.
têm autoridade para fazer com que o pleno casti­ 22,8 Código de construção deuteronômico.
go da lei (v. 21) caia sobre o filho, “um transvia- No antigo Israel, os telhados faziam parte do espaço
do e rebelde” somente em casos em que não há habitado das casas. Eram usados para entreter, dor­
outra alternativa. Dessa forma, os anciãos ser vem mir e trabalhar. Aqui os deuteronomistas exigem
como válvula de segurança social, impedindo que se tomem simples precauções de segurança.
que as discussões familiares cheguem a um ponto Embora a construção de um parapeito seja uma
incontrolável. despesa adicional, evita acidentes graves e suas 205
DEUTERONÔMIO 22

consequências. Em nossa cultura, essas consequên­ mas das pressuposições por trás desta lei, devemos
cias incluiriam ações judiciais. No antigo Israel, um admirar a preocupação demonstrada pelos direitos
acidente que resultasse de negligência podia ini­ da mulher, em vista das falsas acusações do marido.
ciar uma vingança de sangue, que o Deuteronômio Os casos visados pelo resto do capítulo não são
quer evitar. apresentados com tantos detalhes como o anterior.
22,9-11 M isturas. No mundo antigo, uma das O valor em jogo em cada um deles é a proibição
atividades reconhecidas dos estudiosos era a clas­ de adultério (Dt 5,18). Como o adultério envolve a
sificação dos fenômenos naturais. É provável que ruptura do relacionamento conjugal, o castigo é
estes w . reflitam a preocupação de respeitar as di­ severo. (A noiva é tratada como a mulher casada,
ferenças na natureza que esses esforços de classifi­ pois ambas estão comprometidas com um relacio­
cação revelaram. Elementos separados na natureza namento exclusivo com um homem.) O estupro de
não devem ser misturados por esforços humanos. uma mulher solteira (vv. 28-29) é tratado de forma
O judaísmo rabínico assumiu e desenvolveu essa diferente porque não envolve a ruptura de nenhum
preocupação deuteronômica. Todo um tratado da relacionamento conjugal. Isso, já se vê, ignora o
Mishná é dedicado à elaboração e aplicação do trauma da mulher solteira resultante de um estupro;
princípio subjacente a esses w . não será menos grave do que o da mulher casada.
22,12 Franjas. Este é outro trecho de legisla­ A lei procura proteger os direitos da mulher estu­
ção deuteronômica que se tomou importante no prada, mas não de uma forma aceitável por nossa
judaísmo rabínico. Mt 23,5 dá testemunho da preo­ cultura.
cupação dos contemporâneos de Jesus com a obser­ A última lei desta série (23,1) proíbe o relacio­
vância dessa lei, ainda observada pelos judeus orto­ namento incestuoso entre um homem e a mulher
doxos atuais que acrescentam franjas a uma veste de seu pai. É provável que essa lei se referisse à
íntima especial. Mais uma vez, a origem e o propó­ madrasta do homem, pois é duvidosa a necessidade
sito dessa lei são desconhecidos. Uma lei seme­ de uma lei explícita para proibir o incesto com a
lhante em Nm 15,37-41 descreve as franjas como mãe natural.
lembretes dos mandamentos a que Israel deve obe­ 23,2-9 Quem é israelita? A legislação aqui apre­
decer. Esta é, certamente, uma explicação homi- sentada tem uma visão um tanto estreita da partici­
lética mais tardia, de um costume cujo significado pação plena na comunidade de Israel. Tal atitude é
original era desconhecido até mesmo dos autores compreensível, dada a situação na qual o Deutero­
sacerdotais de Números. nômio foi escrito. Era uma época em que a própria
22,13-29 Casamento e relações sexuais. O res­ existência de Israel estava ameaçada por forças in­
tante deste capítulo é dedicado à legislação que re­ ternas e externas. Não admira que os deuteronomistas
gula a expressão da sexualidade humana. Embora não estivessem dispostos a incluir todo o mundo ao
em geral os antigos fossem bastante reticentes sobre lidar com a questão de quem devia ser admitido ple­
esses assuntos, não consideravam a sexualidade hu­ namente na comunidade.
mana como uma força má que precisa ser cuidado­ Embora os deuteronomistas não cheguem a reti­
samente controlada ou sufocada. Por outro lado, rar a proteção tradicional dada ao migrante residente
estavam bem cientes de como a sexualidade huma­ (cf. 1,16; 10,18-19), traçam o círculo de admissão
na é poderosa. O que na aparência é um comporta­ plena na comunidade com muito cuidado — pode­
mento voluntário entre adultos pode ter importan­ riamos dizer cuidadosamente demais. Por exemplo,
tes repercussões para toda a comunidade. Tais ques­ as leis dos vv. 2-3 tencionam provavelmente barrar
tões precisam ser abordadas com prudência, a fim as pessoas diretamente associadas ao serviço de
de manter relacionamentos saudáveis dentro da divindades estrangeiras. Com toda a probabilidade,
comunidade. o V . 2 visa aos que se fizeram castrar a fim de par­
O primeiro caso trata das acusações contra a ticipar de certos rituais não-javistas. Também há
virtude de uma mulher recém-casada pelo marido algumas preocupações cultuais por trás da lei do
insatisfeito (w. 13-21). Comparado aos outros casos V . 3, que talvez se refira a filhos concebidos pela
apresentados no presente capítulo, este é explicado mulher envolvida em rituais de fertilidade canaa-
com certo detalhe. Os valores subjacentes a esta lei, nitas. A tradição rabínica entende que essa lei se re­
bem como a lei em si, não sintonizam imediatamen­ fere a filhos de relacionamentos incestuosos.
te com os pontos de vista contemporâneos a respeito Talvez essa interpretação tenha sido incentiva­
do papel e da posição das mulheres na sociedade. da pela proibição permanente que negava participa­
Em especial, a preocupação com a virgindade da ção plena na comunidade israelita aos moabitas e
mulher, sem uma preocupação concomitante com amonitas. O Gênesis preserva a tradição de que am­
a do marido, é injusta. Segundo, é injusto que a bos os grupos eram filhos do relacionamento inces­
mulher não exerça papel algum no tribunal onde tuoso entre Lot e suas duas filhas (Gn 19,30-38).
seu futuro está sendo determinado. Tal legislação Todavia, o Deuteronômio justifica essa proibição
salienta como a sociedade israelita era diferente da recorrendo a tradições associadas à entrada de Israel
206 nossa. Embora possamos com razão rejeitar algu­ em Canaâ (cf Dt 2; Nm 22-24). Os deuteronomistas
DEUTERONOMIO 24

demonstram um pouco mais de abertura em relação dará provisão adequada a todo o Israel, se a comu­
aos egípcios e à terceira nação da Transjordânia, os nidade for fiel à lei. Não deve haver necessidade de
edomitas. Indivíduos de ambos os grupos podem suplementar a generosidade complacente de Deus
ser admitidos à comunidade israelita porque os edo­ com juros ganhos em empréstimos feitos a irmãos
mitas são parentes por intermédio de Jacó, e os egip- e irmãs em necessidade financeira.
cios proporcionaram hospitalidade a Jacó e sua famí­ 23,22-24 Votos. Fazer votos de devoção religio­
lia durante uma época de fome (Gn 25,24-26; 36,1). sa não é obrigatório, mas uma forma permitida de
Em época mais tardia, elementos de dentro do piedade. Depois que as pessoas se comprometem a
judaísmo primitivo tentaram romper a censura des­ algum tipo de ação por um voto, é importante cum­
sas leis. A escola de Isaías, principalmente, merece pri-lo. Os votos não cumpridos criam uma atmosfe­
destaque por sua abordagem mais universal. Is 56, ra em que se toma aceitável aprovar falhas no relacio­
em especial, deve ser mencionado como uma abor­ namento de Israel com Deus. Da perspectiva do Deu­
dagem mais tardia e mais aberta de alguns dos gru­ teronômio, essa atitude é desastrosa.
pos aqui mencionados. 23,25-26 C om partilhar a generosidade di­
23,10-15 Regras de decência. Entre os israeli­ vina. O Deuteronômio considera a fertilidade da
tas, a decência era uma força mais poderosa do que terra um dom de Deus a todo o Israel. Os indiví­
o é entre as pessoas da cultura ocidental contem­ duos devem estar dispostos a partilhar a generosi­
porânea. Estas leis especificam certas ações como dade divina com seus irmãos israelitas. Os deute-
expressões desse sentimento de vergonha. De um ronomistas são bastante práticos para reconhecer
ponto de vista positivo, podemos dizer que aqui o que pode haver abuso de tal atitude. Aquele que
Deuteronômio reflete a preocupação do antigo Israel semeou o trigo e plantou a vinha é quem deve fa­
com a dignidade e a higiene. O Deuteronômio quer zer a colheita. Os outros podem se servir em caso
manter esses padrões. Mais tarde, a comunidade de necessidade, mas esse direito é limitado pelos
de Qumran será marcada por forte solicitude a res­ direitos de propriedade dos que possuem o campo
peito dessas mesmas questões. As práticas dessa e a vinha.
comunidade mostram uma especificação posterior 24,1-4 Novo casamento depois do divórcio.
das leis gerais aqui encontradas. Este texto não legisla a respeito do divórcio, mas
23,16-17 Escravos fugitivos. Esta lei trata de es­ apenas o aceita como questão de costume. Sua preo­
cravos que fugiram de senhores estrangeiros (não é cupação é proibir o homem de voltar a se casar com
feita nenhuma provisão para escravos que fugiram de a ex-mulher se ela se casou de novo e o marido se
seus senhores israelitas). Escravos fugidos que bus­ divorciou dela. As razões dessa proibição não são
cam asilo em Israel devem receber proteção. Em geral, imediatamente claras, mas talvez os deuteronomis-
tratados internacionais traziam a extradição para es­ tas preocupem-se que divórcios e novos casamentos
cravos fugidos. O Deuteronômio não prevê a possi­ irrestritos sirvam para fazer do divórcio uma forma
bilidade de tais acordos, porque um tratado interna­ legal de adultério.
cional é reconhecimento, ao menos implícito, de divin­ 24.5 O utra isenção do serviço militar. Acrés­
dades estrangeiras. Embora essa lei dê ajuda a escra­ cimo às isenções concedidas em 20,5-8. Encon­
vos fugidos, seu propósito real é preservar a santida­ tram-se isenções semelhantes entre outros povos
de da aliança de Israel com o S enhor. do antigo Oriente Próximo. A transição do estado
23,18-19 A prostituição sagrada. A atividade de solteiro para o de casado era considerada pelos
sexual não pode ser mitificada em um rito quase sa­ antigos como tempo em que o homem era particu­
grado que asse^qre o favor divino, em especial quanto larmente vulnerável a ataques dé poderes maléficos.
à fertilidade. E disso que tratam os rituais de fertili­ Não faria sentido ter tais pessoas no exército. O
dade canaanitas. A atividade sexual é atividade huma­ Deuteronômio oferece um fundamento lógico hu­
na. Agir como se fosse outra coisa indica falta de fé manitário próprio para essa isenção.
em Deus, única fonte da fertilidade da terra. Como a 24.6 Penhores. Se o que empresta exige de
prostituição sagrada é proibida como um mal, todo quem toma emprestado um penhor para um emprés­
ganho monetário dela obtido é abominável e não pode timo, este não pode ser a mó, peça essencial do
ser oferecido ao S enhor. equipamento da casa. Sem ela, o grão não pode ser
23,20-21 Juros. Os empréstimos prefigurados moído para preparar o pão, a base da dieta do antigo
aqui não se assemelham às práticas de empréstimo Israel. Exigir esse penhor envolvería uma verdadeira
fundamentais em uma economia capitalista moderna. provação para qualquer família.
Na situação abordada pelo Deuteronômio, os emprés­ 24.7 Rapto. O rapto aqui descrito não inclui
timos são usados apenas como meio de fugir ao de­ manter alguém preso para receber resgate, mas a
sastre econômico. Tirar vantagem de parceiros na venda de uma pessoa como escravo. Isso é tratado
comunidade da aliança quando estão em dificulda­ como crime merecedor de pena capital, porque as
de financeira é incompatível com a visão de comu­ vítimas desses crimes são afastadas de suas comuni­
nidade do Deuteronômio. Os empréstimos feitos aos dades, que são a fonte de suas vidas. A lei protege a
que estão fora da comunidade são diferentes. Deus pessoa que não goza da segurança proporcionada 207
DEUTERONÔMIO 24

por família e riqueza, pois a vítima de rapto seria pelos que não têm participação plena na riqueza da
tipicamente um abandonado social. Entretanto, nin­ comunidade.
guém deve ser afastado da comunidade da aliança, 25,1-3 Castigo corporal. Os deuteronomistas
não importa qual seja sua posição econômica. aceitam o castigo corporal como um meio de lidar
24,8-9 Lepra. Esta passagem não apresenta com os culpados. Ao mesmo tempo, exigem salva­
nenhuma orientação sobre como a lepra deve ser guardas específicas para proteger os que sofrem o
tratada. Esse é uma questão para os sacerdotes. Os castigo porque, apesar de seus crimes, ainda são
leitores do Deuteronômio são aconselhados a respei­ israelitas. O castigo deve seguir-se a um julgamento
tar o conhecimento que os sacerdotes têm do as­ legal. Deve ser ministrado sob a supervisão de uma
sunto. O texto provavelmente supõe a existência da autoridade competente e limitar-se a um número
legislação sacerdotal de Nm 13-14 e refere-se de especificado de golpes de açoite. A tradição rabínica
modo específico à tradição sobre Miriâm (Nm 12,9­ limitava o castigo a trinta e nove chibatadas para
16). Esta é uma boa evidência de que as origens do evitar a possibilidade de transgressão da determi­
Deuteronômio encontram-se entre a laicidade e que nação do V. 3 (c f 2Cor 11,24).
a fonte sacerdotal antecede o Deuteronômio no mí­ 25,4 Preocupação com o boi. Outra lei exclusiva
nimo em alguns anos. do Deuteronômio que mostra a que ponto esta tradi­
24,10-13 Mais sobre os penhores. E bastante ção chegou em sua preocupação para que todos com­
difícil pedir um empréstimo sem ter de lidar com partilhem a generosidade da terra dada por Deus. Até
a perseguição dos credores. O tratamento de quem os bois têm de ser bem tratados. O Novo Testamento
pede emprestado deve ser marcado por compreen­ cita essa passagem como justificativa para a prática
são, compaixão e caridade. Não há desculpa para pela qual os ministros do Evangelho sustentam-se
aumentar os encargos dos pobres. com seu ministério (ICor 9,9; ITm 5,18).
24,14-15 O salário dos pobres. O Deuteronô­ 25,5-10 O levirado. O costume descrito aqui
mio é marcado por uma preocupação especial com (levir é o latim para “cunhado”) era praticado de
os que ocupam uma posição social marginal. Aqui alguma forma em todo o antigo Oriente Próximo.
os deuteronomistas exigem que o salário dos po­ A suposta origem deste costume estava no desejo
bres seja pago todos os dias, pois o pouco que con­ do sistema social patriarcal de manter a riqueza (o
seguem é a única barreira que suas famílias têm dote) e a fertilidade da viúva na mesma linhagem
contra a fome e a necessidade. A falta de pagamento patriarcal. Com o surgimento da urbanização e a
do salário dos pobres fará com que eles se voltem devolução de direitos da família patriarcal ampla
ao S enhor em busca de ajuda. Como Deus ouve o no antigo Israel, esta questão tornou-se menos
clamor dos pobres (SI 69,34), a cólera do S enhor importante, embora, aparentemente, o levirado persis­
se voltará contra Israel por não considerar o bem- tisse até o século 1 d.C (cf Mt 22,23-28; Lc 20,27-33).
estar dos necessitados. Os anciãos usam sua autoridade moral para incenti­
24,16 Responsabilidade individual. Esse tex­ var a anuência a esse antigo costume, mas não po­
to parece ser oposto ao de Dt 5,9. Ambos os textos dem obrigá-la (v. 8).
contêm importantes intuições na realidade de crime 25,11-12 Mutilação como castigo. Embora a
e castigo. Este texto afirma de maneira inequívoca mutilação fosse um castigo comum no antigo Oriente
que cada pessoa deve ser tratada como indivíduo Próximo, este é o único caso desse castigo na Bíblia,
quando é uma questão de responsabilidade crimi­ além da lex talionis (Dt 19,21). De fato, alguns intér­
nal, o que significa que o culpado precisa aceitar pretes consideram esta passagem uma extensão da
a pena criminal por qualquer transgressão da lei. O lex talionis, que, neste caso, não pode ser aplicada
texto de Dt 5,9 afirma que a natureza do ato crimi­ literalmente. Embora a intenção da mulher de livrar
noso é tal que seus efeitos não se limitam a um úni­ o marido do adversário seja boa, há limites para o
co indivíduo. Por exemplo, é inevitável que as ações tipo de atitude que ela pode tomar em benefício dele.
do pai afetem toda a família. O castigo de um crime 25,13-16 Leis de comércio. Que tipo de socie­
pode ser dirigido a indivíduos, mas suas repercus­ dade teria alguma coesão se toda transação comer­
sões atingirão muito mais pessoas. cial fosse suspeita? A confiança é um componente
24,17-22 Respigadura da colheita. Mais uma básico da vida comunitária. Aqui os deuteronomis­
vez, a preocupação do Deuteronômio pelos pobres tas exigem que os envolvidos no comércio mante­
vem ao primeiro plano. Esta legislação dirige-se nham-se fiéis a práticas comerciais honestas.
aos prósperos proprietários de. terra e pede uma 25,17-19 Os amalequitas. Na época em que o
forma de ineficiência proposital na hora da colheita Deuteronômio foi escrito, os amalequitas já haviam
que permita aos pobres sobreviver sem exigir que desaparecido nas páginas da história. Os deuterono­
aceitem a caridade óbvia. Têm de trabalhar para o mistas sugerem que isso se deveu a pessoas que
sustento próprio. Os deuteronomistas lembram aos obedeceram à ordem do Senhor . Uma inferência
ricos que todo Israel seria escravo não fosse pela adicional é que Israel deve se lembrar de tudo que
misericórdia divina. A resposta esperada dos que as nações lhe fizeram. Essa lembrança deve ajudar
208 se beneficiaram da bondade divina é a compaixão Israel a evitar o desastre de assimilação, para que
DEUTERONÔMIO 27

essas nações não alcancem com a ajuda de Israel o das bênçãos que vêm aos obedientes. A tripla ocor­
que não conseguiram pela força das armas. rência de “hoje” (vv. 16.17.18) reflete uma assem­
26,1-15 Duas liturgias de recordação. O ritual bléia litúrgica na qual Israel mais uma vez aceita a
do antigo Israel era um veículo para o reconheci­ lei como componente de seu relacionamento com
mento de sua dívida de gratidão para com Deus Deus. Um efeito desse relacionamento é a grande
que deu a Israel uma terra fértil. Ao pagar essa dí­ fama de Israel entre as nações. Uma vida nacional
vida de gratidão Israel também quis se lembrar de levada de acordo com a lei divina só pode refletir a
um ato divino anterior que foi até mesmo mais im­ glória divina (v. 19). A substância deste ritual de
portante que a dádiva da terra: o Êxodo, que trans­ compromisso mútuo ou renovação da aliança serve
formou Israel de uma nação de escravos em um de conclusão para o Código Deuteronômico e tam­
povo libertado. Os dois ritos aqui descritos fundem bém de transição para o que se segue: a séria adver­
ambas as tradições de ação de graça: gratidão pela tência de Moisés sobre as conseqüências terríveis
libertação e pela terra. que sobrevirão a um Israel desobediente.
Os vv. 1-11 tratam do dízimo anual de produtos 27.1- 28,69 Bênçãos e maldições. Agora os deu­
agrícolas feito pelo israelita agradecido. O retrato teronomistas voltam-se para o futuro. Para a Lei ter
que os deuteronomistas pintam aqui é o de um lavra­ seu efeito benéfico, toda geração terá de lembrá-la,
dor muito bem-sucedido que vem ao santuário cen­ com suas cláusulas, e estar preparada para cumpri-la.
tral para apresentar seu dízimo. Seu grupo inclui Este discurso descreve os esforços para assegurar
não só sua família, mas também os levitas e os mi­ que Israel nunca se esqueça da Lei e permaneça fir­
grantes residentes que dele dependem economica­ memente apegado a ela.
mente. Toda a comunidade se beneficia com a gene­ 27.1- 8 A Lei escrita. Estes vv. consideram o
rosidade de Deus para Israel e, assim, todo o Israel Deuteronômio a Lei escrita autoritativa para a vida
deve se envolver no ritual de ação de graças. de Israel na terra. É, então, apropriado que cópias
O centro dessa passagem é a confissão do israe­ dela sejam deixadas em locais significativos ligados
lita quando a oferenda é colocada diante do S enhor à entrada de Israel na terra. Pedras com a Lei escrita
(vv. 5-10). Os devotos reconhecem sua origem devem ser erguidas no local exato em que Israel atra­
como povo sem terra nem liberdade. Podem agora vessar o Jordão. Outras pedras devem ficar no monte
apresentar seus dízimos apenas porque Deus tomou Ebal, onde deverá acontecer uma grande cerimônia
o partido de seus ancestrais contra os egípcios e de renovação da aliança.
porque lhes deu uma terra fértil para morar. Este texto preserva indiretamente a memória de
Seguindo o ritual, todo o grupo reunido pelo dois santuários israelitas onde um ritual lembrou a
rico lavrador celebrava com uma refeição festiva a entrada na terra. O primeiro era em Guilgal, a oeste
felicidade concedida por Deus. Isso está de acordo do Jordão; o segundo em Siquém, a cidade no sopé do
com a visão tipicamente deuteronômica dos ele­ monte Ebal. Os rituais em ambos esses lugares cele­
mentos de um sacrifício sendo usados pelos partici­ bravam não só a entrada de Israel em Canaã, mas tam­
pantes do ritual. bém a entrega da Lei, que entrou em vigor no momen­
Os vv. 12-15 tratam do dízimo trienal, que não to em que o povo chegou à sua nova terra.
é trazido ao santuário central, mas deve ser usado 27,9-10 Moisés e os sacerdotes falam. De uma
em cada localidade para o sustento dos pobres. Em perspectiva teológica, estes dois vv. são muito signi­
vez de uma profissão de fé na atividade misericor­ ficativos, pois afirmam que a obediência aos man­
diosa de Deus por Israel, o lavrador que apresenta damentos deve ser a resposta de Israel a sua eleição.
o dízimo afirma com devoção que foi obediente a A obediência não foi a razão pela qual Israel se tor­
todas as estipulações a respeito da apresentação do nou o povo eleito de Deus; a eleição de Israel foi
dízimo. A oração termina com uma súplica para que obra de graça. Em geral, a teologia deuteronômica
Deus continue a ser benevolente para com Israel, é caricaturada como teologia de retribuição que ins­
que depende totalmente de Deus para seu sustento. pira uma teologia de barganha com Deus. Aqui fica
Esta passagem difereneia Israel de seus vizi­ muito claro que o Deuteronômio afirma que a base
nhos canaanitas, que vêem a fertilidade como re­ do relacionamento divino-humano é um ato imere­
sultado da manipulação habilidosa dos poderes cido de graça divina. É porque foram escolhidos co­
divinos. Para Israel, a fertilidade é uma dádiva que mo povo de Deus que os israelitas devem obedecer
só pode ser recebida com gratidão. A liberdade, a aos mandamentos.
felicidade e o futuro de Israel pertencem somente 27,11-26 Um ritual nos montes Garizim e Ebal.
a Deus. Israel se alegra por causa das dádivas que Como o restante deste capítulo, estes vv. refletem
Deus livremente lhe concedeu. algum tipo de rito ligado à renovação da aliança
26,16-19 Compromisso mútuo. O Código Deu- entre Deus e Israel. Infelizmente, não é possível re­
teronômico, que começou no capítulo 12, conclui construir o formato desse rito apenas com base no
com uma declaração de compromisso mútuo de Deus que resta aqui. A imagem criada pelo texto divide os
e de Israel. O povo proclama sua fidelidade a Deus e, devotos em dois grupos, um em cada um dos montes
por intermédio de Moisés, Deus assegura o povo que flanqueiam Siquém. Os dois grupos devem 209
DEUTERONÔMIO 28

recitar as bênçãos e maldições associadas à aliança número de maldições talvez seja apenas um estra­
de Israel com o S enhor. O propósito provável do tagema retórico para incentivar Israel à obediência.
ritual é demonstrar a livre aceitação por Israel das Para os deuteronomistas, muitas das maldições já
conseqüências provenientes do relacionamento es­ se tomaram realidade. Estão tentando levar o povo
tabelecido com Deus por intermédio da Lei. de volta à obediência, pois seu futuro depende da
As doze maldições nos vv. 14-26 apresentam obediência fiel.
uma lista resumida de ações incompatíveis com a Em termos de forma, os vv. 1-46 e 58-68 con­
posição de Israel como povo de Deus. Com certeza têm bênçãos e maldições condicionais. Se Israel
a lista não está completa; serve apenas para lembrar for obediente, poderá esperar o favor divino; se for
o povo que a obediência à Lei deve caracterizar a desobediente, o julgamento divino. Embora fosse
vida da nação. A resposta do povo a cada maldição questão de graça divina, a eleição de Israel não o
indica seu entendimento e sua aceitação das conse­ isenta de suportar as conseqüências da infidelidade.
qüências para o desobediente. O relacionamento de Israel com Deus depende da
Não parece haver nenhum tema unificador do fidelidade à vontade divina como expressa na Lei.
conteúdo das maldições, embora alguns intérpretes Os w. 47-57 prometem as maldições divinas
vejam o sigilo dos atos proscritos como elemento sobre um Israel desobediente. Parece não haver a
comum. Se isto está certo, é provável que os deute- questão “se Israel for desobediente”. Estes w. pres­
ronomistas estejam tentando evitar um tipo de lega- supõem a infidelidade do povo: Por não teres servido
lismo que só vê culpa quando o ato é descoberto. ao Senhor, teu Deus...” (v. 47a). Aparentemente, o
Aqui, talvez estejam dizendo que todo ato que não texto reflete a tragédia que aconteceu a Israel durante
leva em consideração a Lei é uma ofensa a Deus, 0 cerco de Jerusalém e das outras cidades de Judá
quer essa ofensa aconteça à luz do dia, quer não. (597-587 a.C.). Os w. 53-57 são bem horripilantes
A última maldição é abrangente. Coloca a maldição em sua descrição dos horrores que acompanham um
divina na apatia e inatividade dos que sabem o que cerco demorado. Na verdade, as conseqüências da
a Lei exige, mas não se esforçam por obedecer. A desobediência são terríveis.
expressão “desta Lei” (v. 26) é outra indicação de Um elemento comum às bênçãos e maldições é
que essa lista de maldições foi composta depois que a relação delas com a terra. Em primeiro lugar, a
o Deuteronômio fora aceito como documento escri­ bênção significa a fertilidade do povo e da terra. As
to autoritativo. maldições trazem doença, morte, seca, desassossego,
28,1-69 Bênçãos e maldições. Muitos intér­ colheitas escassas e um cerco terrível, seguido pelo
pretes acreditam que os deuteronomistas conscien­ exílio da terra e a volta à escravidão em uma terra
temente usaram a aliança (tratado internacional) estrangeira. A terra é a grande dádiva divina para
como metáfora para apresentar o relacionamento um Israel libertado. A desobediência traz o contrário
entre Deus e Israel. Embora todos os elementos da de todos os atos beneficentes divinos (w. 60-68).
forma de aliança típica não estejam presentes no Embora os feitos de Deus por Israel fossem gran­
Deuteronômio, os três mais importantes estão. Os des, podiam ser desfeitos por um povo ingrato. E a
capítulos 5-11 equivalem ao prólogo da aliança, maldição pela desobediência, especificada simples­
que é exortação à fidelidade baseada no que Deus mente nos vv. 15-68.
O-segundo discurso de Moisés termina com
fez por Israel. As estipulações dos capítulos 12-26
formam o centro da aliança, onde as obrigações de um intenso chamado à fidelidade de Israel. A inten­
sidade da linguagem das maldições demonstra como
Israel para com Deus são descritas com clareza. Fi­
Israel deve levar a sério seu relacionamento com
nalmente, este capítulo representa um dos elemen­
tos decisivos da.aliança, as bênçãos e maldições. Deus. É, na verdade, questão de vida ou morte.
Aqui são estabelecidas com inequívoca clareza as
conseqüências da fidelidade e da infidelidade. Co­ TERCEIRO DISCURSO DE MOISÉS
mo aeontece nos tratados do antigo Oriente Pró­
ximo, as maldições são muito mais numerosas que Dt 29,1-32^ 2
as bênçãos. A metáfora da aliança explica o relacio­ A principal preocupação deste discurso é o fu­
namento entre Deus e Israel de uma forma pronta­ turo imediato de Israel. Moisés providencia para que
mente compreensível pelos antigos israelitas. Além Josué assuma a liderança das tribos depois de sua
disso, salienta a apresentação deuteronômica da Lei morte. Igualmente importantes são as providências
como resposta amorosa de Israel ao Deus que o li­ para guardar o livro da Lei e para sua leitura perió­
bertou da escravidão egípcia. dica. A Lei deve ser o guia da existência futura de
O simples número de maldições (w . 15-68) Israel na terra. Líderes humanos vêm e vão, mas a
comparado com as bênçãos (vv. 1-14) parece des­ lei perdura como o meio mais eficiente de salvaguar­
mentir a afirmação de que, para os deuteronomistas, dar 0 compromisso de Israel com o S enhor.
a obediência é uma resposta de amor. Embora algu­ 29,2-8 Um chamado à fidelidade. O terceiro
mas delas possam ter sido introduzidas nesta lista discurso de Moisés começa de uma forma que já
210 depois do Exílio (por exemplo, os w . 36-38), o deve ser bastante conhecida — a recitação dos atos
DEUTERONÔMIO 30

salvíficos de Deus a favor de Israel, desde a derro­ ficado do texto, ele serve para reconhecer que o
ta de Faraó (v. 2) até a derrota de Sihon e Og (v. 6). Deus de Israel não pode ser medido pelas perspecti­
Continua no estilo característico com um pedido de vas teológicas dos deuteronomistas, por mais respei­
obediência, seguido da promessa de prosperidade tados que sejam seus pontos de vista. O que temos é
na nova terra (v. 8). certa intuição parcial das obras do divino. Tal intui­
O que toma singular esta passagem é o comen­ ção é dada em nosso benefício, não deve servir para
tário no V. 4 que afirma que Israel nem sempre limitar as prerrogativas de Deus. Aqui é que o Deute-
conseguiu reconhecer a presença divina nos acon­ ronômio chega o mais próximo a reconhecer a rela­
tecimentos que consideramos “milagrosos”. Isso tividade da percepção humana. O mistério do divino
deve ser um lembrete de que os feitos salvíficos de sempre foge a nosso entendimento.
Deus não são tão inequívocos a ponto de não exi­ 30,1-14 Arrependimento. Os seres humanos
gir fé da parte dos que os experimentam. Se Israel não são apenas limitados na capacidade de entender
reconhece a presença de Deus em sua vida, é porque plenamente o mistério do divino; a vontade humana
Deus dá o tipo de compreensão e discernimento que também é incapaz de assumir um compromisso livre
percebe essa presença. do risco de infidelidade. Esta passagem pede a Israel
29,9-14 Participantes da aliança. Aqui os deu- que volte ao S enhor depois de apostasias. O arrepen­
teronomistas desejam incluir todas as gerações de dimento trará a volta à terra da qual Israel foi exilado
israelitas como membros da aliança feita com Deus. (v. 4). A restauração significa a completa revogação
O compromisso de fidelidade cabe não só ao povo dos efeitos da infidelidade. Israel será restaurado a
que passou pelo Êxodo e pela caminhada no deser­ sua terra e também gozará de renovada prosperidade.
to, mas também a todas as gerações. A aliança que O único requisito é a obediência — fruto do amor de
Moisés conclui entre Deus e Israel envolve não só Israel por Deus.
os que estavam presentes no Horeb e em Moab, mas Para que Israel não se sinta desencorajado por
também os que ainda vão nascer e que terão, da mes­ suas faltas. Deus providenciará uma fonte de dedi­
ma forma, os benefícios da bondade de Deus para cação antes inacessível. Israel não mais terá de se
com Israel. apoiar na própria força, pois receberá um coração
29,15-20 Admoestaçâo contra o falso culto. circuncidado por Deus e adequado a um compro­
O grande mandamento da Lei é a obrigação de misso renovado (v. 6). Moisés continua para asse­
Israel de servir somente a Deus. Aqui Moisés repete gurar ao povo que a obediência não é tarefa impos­
essa ordem central. Em geral, quando Moisés men­ sível. O desempenho de Israel no passado pode dar
ciona o Egito é para lembrar a Israel sua maravi­ origem à idéia de que é impossível cumprir os man­
lhosa libertação da escravidão. Aqui, entretanto, o damentos, mas o texto (vv. 11-14) apresenta a obe­
Egito serve de modelo do tipo de falso culto que diência como possibilidade genuína,
Israel deve evitar. O povo será tentado a abandonar A Lei tem o propósito de ser um guia para a
0 serviço de Deus pelo de divindades estrangeiras. vida humana. Não faz parte de um mistério divino
Se alguém sucumbir a essa tentação, pode esperar inacessível (v. 12). Crer outra coisa é nada menos
o mais severo dos castigos. Não pode haver nenhu­ que uma tentativa de fugir à responsabilidade. Se­
ma transigência a respeito do compromisso exclusi­ gundo, a Lei é um guia prático para a vida cotidia­
vo que Deus exige de Israel. na. Não é um sistema racionalista, insensível, que
29,21-27 Consequências da desobediência. está além da maioria das pessoas (v. 13). A Lei é o
Quando as pessoas virem os terríveis efeitos da caminho de vida aberto a todos.
infidelidade de Israel, terão de saber a verdade. O 30,15-20 A escolha. Todo o Deuteronômio con­
primeiro impulso será culpar os deuses das nações duz a esta escolha dramática que Moisés coloca
que derrotaram Israel. Talvez concluam que uma diante do povo. Estes vv. contêm todos os elementos
nação pequena como Israel não poderia suportar encontrados no restante do livro: mandamentos,
os ataques furiosos de poderosos impérios mundiais. bênção e maldição, apelo à obediência. Depois de
A verdade é que a queda de Israel foi provocada tudo que foi dito, a força do livro resume-se em uma
por deixar de observar as estipulações da aliança escolha que as pessoas precisam fazer. O futuro de
do S enhor ( v. 25). As conseqüências foram a derrota Israel depende dela. A misericórdia divina não está
e o exílio. A ênfase constante na resposta divina ao em debate. É a resposta de Israel que faz seu futu­
comportamento de Israel destaca a natureza pessoal ro pender na balança. Moisés não é um observador
do Deus de Israel. Isso já foi revelado nos muitos neutro no processo; está ajjaixonadamente preocu­
atos de amor de Deus em benefício de Israel; pode pado com 0 futuro de Israel. Por isso, praticamente
também ser revelado pelos atos de julgamento de ordena a Israel que escolha a vida (v. 19a).
um Israel infiel. As alternativas de vida e de morte são mais
29,28 Uma retratação. Este v. é provavelmente amplas do que pode parecer ao leitor contemporâ­
uma glosa introduzida no texto por um redator tardio, neo. “Vida” refere-se à esfera de atividade humana
o que, já se vê, não afeta, de modo algum, seu valor sob proteção do divino; “morte” refere-se à esfera
teológico. Embora não haja consenso sobre o signi­ de atividade humana desprovida da presença divina. 211
DEUTERONÔMIO 31

A morte, então, é mais do que a cessação da vida os guardiões da doutrina legal. Aqui recebem ordem
física; é existência fora da terra, existência no infer­ para ler periodicamente a Lei ao povo, “para que
no do exílio. A morte é a vida sem Deus. Vida é a ouçam e aprendam, e temam o Senhor ...” (v. 12).
bênção, morte, a maldição. Este costume de leitura pública era o veículo de re­
Aqui o bem e o mal não se referem necessaria­ novação da aliança.
mente a escolhas morais. O bem refere-se às conse- Não há registro de que esta ordem foi cumprida
qüências da vida com Deus: fertilidade, prosperida­ como aqui prescrito, embora, sem dúvida, houvesse
de e felicidade. O mal refere-se às conseqüências da algum ritual de renovação do compromisso. Mais im­
vida sem Deus: exílio, doença e morte. Cabe a Israel portante do que o ritual em si é a expressão da opinião
fazer uma de duas escolhas: 1) vida com Deus, que do Deuteronômio de que a função mosaica é desem­
traz bênçãos e o bem ou 2) vida sem Deus, que é penhada em parte pelos anciãos, que transmitiam e
nada menos que a maldição da morte. Não há outras administravam a observância das tradições legais do
alternativas. antigo Israel.
Moisés toma o céu e a terra como testemunhas 31,14-32 Introdução ao cântico de Moisés. As
da escolha de Israel (v. 19b). Nos tratados do antigo instruções divinas a Moisés a respeito do cântico que
Oriente Próximo, forças personificadas da natureza ele deve compor e ensinar a Israel (vv. 16-21) são
eram testemunhas da conclusão de um tratado e se formuladas pela designação divina de Josué. Mais
presumia que lidariam com qualquer membro do uma vez são tomadas providências, em vista da morte
tratado que se mostrasse infiel a seus dispositivos. iminente de Moisés (vv. 14.16). Josué deve dar a
Israel, naturalmente, desmistifica esse aspecto da Israel a liderança necessária no início do assenta­
forma de aliança, mas retém a idéia de testemunhas mento em Canaã. O cântico deve ser uma força mo­
da aliança, referindo-se aqui ao céu e à terra. ral que toque a consciência de Israel no meio da
Israel encontrará sua verdadeira personalidade bênção material que a nova terra deve trazer.
tomando uma decisão de vida. A própria finalidade O determinismo que marca os vv. 16-21 indica
da nação é amar o S enhor ( v. 20). Todas as gerações sua introdução tardia neste contexto. A infidelidade
de Israel devem se pôr no lugar dos que ouviram de Israel não é uma possibilidade — é inevitável.
pessoalmente Moisés, porque tudo que Israel precisa O abandono do povo por Deus, em vista de sua in­
lembrar é que tem apenas duas escolhas e que ao fidelidade é igualmente inevitável. Estes w . datam
fazer a escolha certa terá “longevidade” (v. 20). do Exílio, quando os plenos efeitos da revolta de
31,1-8 Josué, sucessor de Moisés. Os deute- Israel e da ausência de Deus estavam sendo sentidos
ronomistas já prepararam os leitores para a morte por Israel. E no meio dessa experiência que o cânti­
de Moisés e seu significado para o futuro de Israel co servirá para lembrar a Israel que o que lhe aconte­
(1,37-38; 3,23-29). Embora Moisés fosse mais que ceu é tão-só a maldição que ataca os desobedientes.
uma figura heróica na história épica da libertação 31,24-29 O livro da Lei. Outra tentativa de
de Israel do Egito e sua caminhada para a Terra Pro­ lidar com a perda de Moisés. A Lei que ele promul­
metida, Deus foi o verdadeiro libertador de Israel e gou deve ser preservada para as gerações futuras.
guerreiro em seu benefício (v. 3a). Moisés deve Moisés escreveu um relato da aliança que mediou
morrer, mas sua morte não privará Israel da lide­ entre Deus e Israel. Esse documento escrito, sob a
rança de que necessita para se estabelecer na terra. proteção dos levitas, será um memorial perpétuo
O papel de Israel na vida de Israel será assumido da aliança. Moisés chama os anciãos do povo e lhes
por Josué. Ele é quem conduzirá Israel enquanto fala da própria falta de fé na disposição de Israel
este enfrenta o período crucial do assentamento em de permanecer dedicado a Deus. Experiências amar­
Canaã. gas demonstraram o nível de dedicação da nação.
31,9-13 A leitura da Lei. Embora a responsa­ Mais uma vez Moisés roga o testemunho do céu e
bilidade de Moisés de liderar o povo deva ser assu­ da terra para sua última ordem a Israel (v. 28). A
mida por Josué, haverá um arranjo diferente a res­ invocação dessas testemunhas por Moisés é o elo
peito da função de Moisés como mestre da Lei para entre esta passagem e o cântico que segue. O cân­
0 povo. Moisés escreveu a Lei e agora entrega-a tico começa com uma invocação semelhante (32,1).
aos sacerdotes levíticos que conduzem a arca, onde 31,30-32,47 O cântico de Moisés. O cântico de
está depositado o documento escrito. Moisés é, em parte, uma acusação da infidelidade
A Lei escrita é também dada aos anciãos. Os de Israel à aliança. Assemelha-se aos procedimentos
sacerdotes recebem a custódia do documento, mas legais por uma parte ofendida em uma aliança para
os anciãos assumem a tarefa de ensinar a Lei que receber satisfação da parte ofensora. O cântico co­
competia a Moisés. Os anciãos eram tradicional­ meça com a convocação de testemunhas (w. 1-3).
mente responsáveis pela preservação da vida normal Aqui são o céu e a terra que podem testemunhar a
da comunidade, orientando-a e resolvendo disputas existência de uma aliança entre Deus e Israel (veja
em termos de práticas e valores tradicionais. Não só 30,19; 31,28). Em seguida vem uma declaração da
em Israel, mas em todas as sociedades pré-monár- falta de dedicação ao relacionamento da aliança (vv.
212 quicas do antigo Oriente Próximo, os anciãos eram 4-6). A denúncia começa com a argüição da apos-
DEUTERONÔMIO 34

tasia de Israel (w. 15-18). Finalmente, é declarada a As bênçãos citam doze tribos, embora esteja
culpa do povo e pronunciada a sentença (vv. 19-25). faltando Simeão (compare Gn 49; Nm 1,5-15). O
Em vista de sua apostasia total, Israel pode esperar número doze é mantido, porque a tribo de José está
completa destruição. dividida em Efiaim e Manassés. A julgar pelas apa­
Depois do julgamento, o cântico muda de re­ rências, cada bênção tribal existia independentemen­
pente nos vv. 26-27. Os inimigos de Deus não te, como evidencia a diversidade de forma e conteú­
entenderão a derrota de Israel. As nações que não do. Estes ditos independentes estão reunidos por um
sabem discernir o poder de Deus em ação na derrota clirnax adequado ao Deuteronômio. A última pala­
de Israel vão se ver enfrentando a própria sina. O vra dita às tribos é uma palavra de bênção.
cântico resume a história trágica de Israel, afirman­ Entre as bênçãos individuais que merecem co­
do ao mesmo tempo que a derrota da nação não é mentário específico, destaca-se a de Levi (w. 8-11).
a última palavra de Deus para Israel. O Tumim e o Urim (v. 8) sâo oráculos de sorte, por
O cântico é corretivo sutil de uma aplicação meio dos quais é possível obter respostas a per­
mecanicista da teologia deuteronômica. Da perspec­ guntas que pedem sim ou não. Não é possivel deter­
tiva do Exílio, está bastante claro que Israel esco­ minar com certeza a aparência desses objetos e
lheu a morte em vez da vida. Aqui o Deuteronômio como eram manipulados (cf ISm 14,18-19.41-42;
dá um avanço significativo ao prefigurar a bênção 23,9-12). O v. 10 mostra que os sacerdotes são
adiante da maldição e proclamar uma nova vida mais que funcionários do culto; também são respon­
para Israel apesar de sua infidelidade. O que come­ sáveis pelo ensino dos valores morais tradicionais
ça com uma sentença de morte termina com a pro­ de Israel.
messa de vida nova. 34,1-8 A m orte de Moisés. Estes vv. finais
32,48-52 A morte iminente de Moisés. Estes são uma elaboração daquilo que os deuteronomis­
vv. são uma elaboração de Nm 27,12-14, que vem
tas escreveram em 3,27. A afirmação de que Moisés
da história sacerdotal de Israel. Isso é evidente pela foi enterrado “no vale, na terra de Moab, defronte
explicação que o v. 51 oferece para a morte de
a Bet-Peor” pode dar a impressão que está sendo
Moisés fora da Terra Prometida. Em Dt 1,32, a culpa
indicado um local de sepultura bem conhecido; en­
pela sina de Moisés é posta no pecado do povo e
tretanto, o V. 6 b afirma que o local exato da sepul­
não em uma falha pessoal dele mesmo. tura de Moisés é desconhecido. Aparentemente, na
ocasião em que essas palavras foram escritas, a se­
QUARTO DISCURSO DE MOISÉS pultura de Moisés já não era visitada, ou nem mes­
mo conhecida, embora os autores estivessem cientes
Dt 33,1-34,12 de uma tradição sobre a área geral associada à mor­
O último componente do Deuteronômio inclui te de Moisés.
0 testamento final de Moisés às tribos fcap. 33) e 34,9-12. Conclusão. Aqui Moisés é um líder
0 relato de sua morte (cap. 34). As últimas palavras único, insubstituível (cf. Dt 18,18). De fato, o v. 12
de Moisés assumem a forma de uma bênção na qual descreve Moisés em linguagem geralmente reserva­
prevê o destino de cada tribo (compare Gn 27; 49). da somente a Deus. Tal descrição poderia tomar-se
O último capítulo não vem dos deuteronomistas, opressiva. Embora Moisés seja lembrado como
que desejavam enfatizar a continuidade entre a era grande líder, outros terão de ocupar seu lugar, para
mosaica e todos os períodos subsequentes da histó­ que Israel permaneça fiel à aliança. Com certeza,
ria de Israel. O objetivo principal do último capí­ os deuteronomistas consideram-se continuadores do
tulo é enfatizar a mudança radical provocada pela papel de Moisés para sua geração. Mais tarde, até
morte de Moisés. Jesus reconhecerá o direito dos fariseus à cátedra
33,1-29 A bênção de Moisés. A essência desse mosaica (cf Mt 23,2). Jesus também acreditava
texto são as bênçãos que Moisés concede às tribos que sua missão era cumprir “a Lei” e “os Profetas”
individuais. São bênçãos envoltas em um cântico de (Mt 5,17-18) e, desse modo, completar a tarefa de
louvor que celebra a majestade e as vitórias divinas Moisés. Assim, as gerações posteriores que reco­
em beneficio de Israel e também a dádiva da pros­ nheceram o papel especial de Moisés na vida de
peridade da terra (w. 2-5.26-29). E pela conquista Israel também reconheceram que aquilo que Moisés
que o Senhor se toma o rei das tribos israelitas fez pela primeira geração de israelitas, outros de­
(v. 5). Nesse ponto começam as bênçãos. viam fazer pelas gerações seguintes. -

213
rofetas
Ánteriores
JOSUE
John A. Grindel, C.M.

INTRODUÇÃO
Livro de Josué recebeu o nome de seu portantes em períodos de significativa transição na
principal protagonista, Josué, filho de narrativa (p. ex., Js 1; 24; ISm 12; IRs 8), pas-
Nun. Josué fora auxiliar de Moisés e sagens-elo e resumos. Os biblistas discutem se essa
o substituiu como chefe do povo. Em obra é produto de uma só pessoa ou de um grupo
hebraico, o nome Josué significa “o de autores. A maioria supõe que a edição atual foi
S enhor salva” ou “Que o S enhor salve”. composta logo depois do último acontecimento
O tema do livro é a ocupação da terra a oeste do nela relatado, a saber, a libertação do último rei
rio Jordão. O livro se divide em três partes distintas: judeu, loiakin, de sua prisão babilônica, em 561
a conquista de Canaã (caps. 1-12); a divisão da terra a.C. Muitos acreditam que a obra foi composta
(caps. 13-21); a volta das tribos transjordanianas e a na Palestina, mas outros acham que foi escrita na
despedida de Josué (caps. 22-24). Babilônia.
Embora Martin Noth julgasse que houve apenas
A História Deuteronom ista uma edição da obra, escrita por volta de 550 a.C.,
Na Bíblia hebraica, o Livro de Josué é o primeiro hoje é mais comum se falar em duas edições. A pri­
dos “Profetas anteriores”, assim chamados por cau­ meira edição, mais primitiva, foi provavelmente escrita
sa da importância da palavra profética nesses livros. durante o governo do rei Josias (620-609 a.C). A se­
Hoje em dia o livro é, em geral, considerado o pri­ gunda edição, mais tardia, bastante exaustiva, teria
meiro volume daquilo que é conhecido como “Histó­ sido compilada durante o Exílio, no século VI. Este
ria Deuteronomista, que inclui os livros de Josué, comentário interpretará o livro na perspectiva da se­
Juizes, Samuel e Reis e abrange o periodo que vai gunda edição, a do redator exílico.
desde a conquista de Canaã, no século XII a.C., até A História Deuteronomista não foi escrita ape­
a época do Exílio no século VI a.C. Com ffeqüência, nas para preservar a lembrança do passado; seu pro­
o livro do Deuteronômio é considerado a introdução pósito era, isso sim, apresentar uma explicação
a esses livros. teológica da perda dos dois reinos de Israel e Judá e
Nosso entendimento moderno da História Deu­ dar uma base teológica para a esperança no futuro.
teronomista deve muito ao trabalho de um biblista Para entender a obra é necessário vê-la contra o
alemão, Martin Noth. Ele mostrou que alguém que pano de fundo da época em que foi escrita.
compartilhava a perspectiva teológica e também o Em 721 a.C., os assirios destruíram o reino
estilo literário encontrado no livro do Deuteronô­ setentrional de Israel e, em 587 a.C., os babilônios
mio, formou uma obra histórica contínua reunindo destruíram o reino meridional de Judá. Em 587 a.C.,
em um conjunto coerente muitas unidades de ele­ quando Jerusalém caiu, a cidade, com o Templo e o
mentos diversos, originalmente independentes e palácio magníficos, foi arrasada e os chefes do povo
provindos de vários períodos da história de Israel. foram levados para o exílio na Babilônia.
O autor inspirou-se em numerosas fontes orais e O período do Exílio foi época de desespero e
escritas, tais como anais, listas de reis e narrativas dúvidas profundas por parte do povo. O SkwHOR pro­
de vários tipos. Algumas das unidades eram de ta­ metera zelar pelo povo e protegê-lo e guiá-lo, mas
manho considerável, tais como Js 2-11. As adições agora tudo estava perdido. Por que o Senhor permitira
do próprio autor estabeleceram uma estrutura in- essa destruição e a perda de tudo? Em especial, o povo
terpretativa que concatenou os elementos diversos perguntava a si mesmo se ainda era o povo de Deus e
e estabeleceu julgamentos sobre os eventos da nar­ se havia alguma base para a esperança no futuro. Deus
rativa. As adições do redator encontram-se princi­ permanecería fiel às promessas feitas no passado,
palmente em comentários enfáticos — sermões e apesar de tudo que acontecera desde então? A História
discursos colocados na boca de personagens im­ Deuteronomista foi escrita neste contexto. 217
JOSUÉ

O propósito do autor é explicar que Israel per­ teológico. Além disso, o autor entremeou toda a
deu tudo por causa de sua pecaminosidade. O S e­ obra de discursos originados por essa perspectiva
nhor chamara o povo à fidelidade à aliança e o teológica.
prevenira das conseqüências da infidelidade, mas A evidência arqueológica também levanta ques­
o povo pecara. Por isso, no exílio estavam sentindo tões a respeito da confiabilidade histórica de parte
o julgamento divino. Israel não fora fiel ao S enhor do material do livro, em especial as tradições so­
e sua longa história de pecado justificava o castigo bre as cidades de Jericó e Ai. Enquanto o livro de
que sofria. Josué traz extensos relatos sobre a conquista dessas
A obra é também uma exortação ao povo duas cidades, a evidência arqueológica mostra que
para se arrepender e voltar ao S enhor e crer que elas não foram ocupadas depois do século XIV a.C.
Deus cumprirá as promessas antigas. O povo deve e que Ai fora destruída cerca de mil anos antes que
crer que, assim como no passado Deus respondeu os israelitas entrassem na terra.
de maneira positiva ao povo arrependido, também Em conclusão, é óbvio que o Livro de Josué
agora ouvirá seus clamores e o perdoará uma vez contém uma narrativa simplificada, esquemática,
mais. Todas as promessas antigas ainda estão em incompleta, influenciada pelos pontos de vista teo­
vigor, embora temporariamentb suspensas por cau­ lógicos do autor e que resultou da compilação de
sa da pecaminosidade do povo. Ao mesmo tempo, dados muito diversos. Faremos algumas críticas
se o povo se arrepender, essas promessas servirão sobre a exatidão histórica das narrativas individuais,
de base para o futuro. à medida que continuarmos este comentário.
E interessante notar que a maior parte do ma­
O propósito do Livro de Josué
terial dos capítulos 1-12, que trata da conquista da
No contexto da História Deuteronomista, o pro­ terra, parece estar associada ao território de Ben-
pósito específico do Livro de Josué, com ênfase na jamin (c f Js 18,11-28) e ao santuário de Guilgal.
conquista e na divisão da terra, é mostrar a fideli­ Parece que as tradições da primeira parte do livro
dade de Deus às promessas feitas no passado aos foram reunidas e transmitidas no santuário de Guil­
patriarcas e a Moisés — em especial a promessa gal. Por outro lado, as listas tribais dos capítulos
da terra. Um dos temas principais encontrados no
13-21 datam todas do período da monarquia. Em­
Pentateuco é a promessa da terra. Essa promessa é
bora algumas das listas aqui incluídas remontem
cumprida no Livro de Josué, de modo a suscitar no
ao tempo de David e Salomão, no século X, outras,
povo a confiança nas promessas divinas. Agora
como as dos capítulos 20 e 21, vêm do período de
Israel, no meio do Exílio, pode confiar na atenção
Josias, no século VIL Devemos ser cautelosos
e na presença contínuas de Deus e crer principal­
mente que a promessa da terra continua em vigor. quanto à história bíblica da conquista e da divisão
Ao mesmo tempo, é importante a obediência à Lei, da terra. A realidade era muito mais complexa.
para que, tendo sido perdoado e levado de volta à Precisamos ter em mente que o autor estava mais
terra, Israel não atraia de novo sobre sua cabeça interessado em revelar o significado e o alcance dos
uma destruição como a que está experimentando. acontecimentos relatados do que em contar exata­
mente 0 que aconteceu. Pois é no significado dos
Exatidão histórica acontecimentos que aprendemos sobre Deus, sobre
Uma questão ffeqüentemente levantada a res­ nós mesmos e sobre o que Deus exige de nós.
peito do livro de Josué é sobre sua exatidão histó­ A pessoa e a obra de Josué
rica, especialmente quanto a seu relato da conquista
da terra no século XII a.C. Essa não é uma pergun­ Visto 0 que foi dito sobre a confiabilidade his­
ta fácil de responder. Há inconsistências e contra­ tórica do material contido no livro de Josué, a pes­
dições no próprio livro (cf 4,3 e 4,9; 8,3 e 8,12). soa e a obra de Josué também são um problema.
O que devemos pensar dos relatos conflitantes da Se aceitarmos, como é apresentado na História Deu­
conquista da terra encontrados em Js 1—12 e Jz teronomista, que a conquista resultou de uma ação
1,1-2,57 Enquanto o quadro apresentado em Josué militar unida, então, como comandante supremo das
é de uma violenta e completa conquista da terra forças israelitas, Josué desempenha papel importan­
por um Israel unido, o quadro pintado em Juizes é te. Mas quando entendemos que a conquista foi um
o de tribos ou clãs individuais lentamente tomando processo secular de revolução interna, infiltração
sua terra e acomodando-se ao lado dos canaanitas lenta e ocupação por grupos individuais, então fica
no país. E provável que este segundo quadro esteja difícil explicar a figura de Josué. Contribui para o
mais próximo da realidade. problema o fato de que, enquanto as tradições da
O autor usa diversos tipos de material no livro, conquista preservadas no livro de Josué são da tribo
de documentos reais a lendas. Também está claro de Benjamin, Josué era da tribo de Eftaim.
que 0 autor, escrevendo quinhentos anos depois dos Tudo isso mostra que a história complicadís­
acontecimentos que estão sendo apresentados, esco- sima da conquista foi reduzida, no Livro de Josué,
218 lheu os dados para salientar um ponto de vista a um pequeno grupo de narrativas típicas agora
JOSUÉ 2

atribuídas a todo Israel, mas que tiveram origem bem conhecida, que foi ativo quer na ação militar,
principalmente nas tradições da tribo de Benjamin. quer na resolução de conflitos na região montanhosa
Essas façanhas são agora atribuídas a Josué, pessoa central da Palestina.

CO/AENTÁRIO
PARTE I: A CONQUISTA DE CANAA Lei, c o n fia n ça no S enhor e as prom essas de p re ­
sença do S enhor).
Js 1,1-12,24
1,10-18 Ordens de Josué ao povo. Recebidas
1.1- 2,24 Preparativos. O livro começa com oas instruções do S enhor, Josué agora dá ordens para
relato dos preparativos para a entrada na terra de que o povo prepare provisões, porque em três dias
Canaã. Primeiro, há a investidura de Josué pelo deve marchar e tomar posse da terra que o S enhor
S enhor (1,1-9), seguida das ordens de Josué ao povo lhes dá (vv. 10-11). Observe que a conquista é des­
(1,10-18) e do envio de espiões ao outro lado do rio, crita como uma coisa pacífica, quase uma procis­
a fim de fazer o reconhecimento da terra, especial­ são religiosa. É como se o S enhor já tivesse decre­
mente de Jerico (2,1-24). tado que Israel possuiría a terra e agora o povo só
1.1- 9 Investidura de Josué. Como todo o capí­precisasse cumprir esse decreto.
tulo 1, essa passagem vem da mão do historiador Nos vv. 12-15, Josué lembra às tribos que já se
deuteronômico (doravante D) e forma a transição estabeleceram na região a leste do rio Jordão a or­
da morte de Moisés (cf Dt 34) à conquista da terra. dem de Moisés (cf Dt 3,12-20): todos os guerreiros
A passagem retoma e desenvolve a investidura ori­ dessas tribos devem ajudar os irmãos a se estabele­
ginal de Josué em Dt 31. Em estilo de sermão, a cer na terra além do Jordão, antes de voltarem a
passagem segue a fórmula da investidura divina de sua terra. A conquista deve ser vista como um em­
uma pessoa em função pública: descrição da tarefa preendimento unificado por parte de Israel.
a ser desempenhada, manifestação de encoraja­ Os vv. 16-18 apresentam a resposta das tribos
mento e a certeza da ajuda divina. Josué é apresen­ transjordanianas. Farão tudo que Josué prescreveu,
tado como sucessor de Moisés com a ordem de pois têm certeza de que o S enhor estará com ele
completar seu trabalho. (vv. 16-17). O principal propósito desses vv. é mos­
A tarefa dada a Josué é conduzir o povo à ferra trar a aceitação da transferência da liderança de
que o S enhor dá aos israelitas. Desde o início (v. 2), Moisés para Josué.
fica evidente que a terra é uma dádiva do S enhor ao 2,1-24 Patrulha de reconhecimento de Jericó.
povo; não é algo que o povo conquistou. A conces­ O leitor atento notará imediatamente a tensão entre
são dessa dádiva é a realização da promessa feita a esse capítulo e o material dos capítulos 1 e 3. Pri­
Moisés (v. 3). A descrição das fronteiras da terra no meiro, agora se afirma que o local do acampamento
v. 4 é a mais abrangente descrição da terra encontra­ israelita é em Shitim, provavelmente a Abel-Shitim
da na Bíblia. Há três pontos fixos nesta descrição: mencionada em Nm 33,49.
0 “deserto”, que se refere ao Négueb no sul e à Segundo, a cronologia deste capítulo é incom­
região a leste do rio Jordão; o “Eufrates”, que descre­ patível com a dos capítulos 1 e 3. O capítulo 1 fala
ve a fronteira setentrional, e o Grande Mar, que de três dias como intervalo entre as ordens de Josué
descreve o Mediterrâneo no oeste. Como definida ao povo e a verdadeira entrada na terra (cf. o v. 11).
aqui, a terra incluía a região do Líbano a noroeste Entretanto, o capítulo 2 diz que os espiões passaram
e quase toda a Siria de hoje e de então. Entretanto, três dias na montanha antes de voltar ao acampa­
essas fronteiras nunca foram realidade. A única oca­ mento israelita (2,22), sem mencionar o tempo gasto
sião em que Israel começou a ter essas fronteiras ex­ de ida e volta a Jericó. Além disso, os w. 1 e 2 do
tensas foi no tempo de David e Salomão, no século capítulo 3 parecem a seqüência direta de 1,18.
X. Josué conseguirá realizar a promessa graças à Por fim, nesta narrativa encontramos um estilo
presença do S enhor junto a ele (v. 5). diferente daquele do material dos capítulos 1 e
Embora a terra seja uma dádiva do S enhor, os 3. Tudo isso significa que esta história é, sem dú­
vv. 6-9 insistem na necessidade de Israel ser “forte vida, uma inserção mais tardia na narrativa. De
e corajoso”, isto é, observar tudo que está escrito fato, há indicações de que a história de Rahab é
na Lei, a fim de obter a posse da terra. Em outras muito antiga e talvez remonte à época anterior a
palavras, a desobediência de Israel pode frustrar as David. Parece que D usou a história como a en­
promessas divinas. Tudo isso é mensagem impor­ controu, com a possível exceção da profissão de
tante para os exilados, que ouvem nesta passagem fé de Rahab nos w . 9-11, profissão que reflete
a razão da perda da terra (sua desobediência) e as temas deuteronômicos (cf. com Dt 26,5b-9 e Js
condições para reconquistar a terra (obediência à 24,2b-13). 219
JO SUÉ 3

Na forma original, a história de Rahab e dos tes a acontecer — o Deus vivo que é Senhor de
espiões era provavelmente um conto etiológico, isto toda a terra. E esse S enhor que parará as águas
é, uma narrativa que explica algo a partir da histó­ para que o povo possa atravessar. O v. 10 relaciona
ria de suas origens. A história explicou a sobrevi­ a população nativa da terra de modo estereotipado;
vência da família canaanita de Rahab no meio dos os canaanitas encontram-se nas cidades costeiras;
israelitas depois da conquista. No contexto atual, os hetitas, em pequenas colônias aqui e ali; os hi-
entretanto, o interesse do autor está na profissão vitas, ao redor de Siquém e Guibeon; os emoritas
de fé de Rahab, por meio da qual ele enfatiza que habitam a região montanhosa e os iebusitas, Jeru­
o S enhor é o responsável por tudo que está prestes salém. Não está claro quem são os perizitas e os
a acontecer. Aquele que é Deus lá em cima nos guirgashitas.
céus e aqui embaixo na terra deu a terra a Israel e, 3,14-17 A travessia. Agora tudo acontece como
com poder, agora os conduzirá à terra. D está ten­ previsto. Em procissão solene, o povo segue os sa­
tando instilar esperança nos exilados, lembrando­ cerdotes que carregam a arca da aliança e, quando
-os de quem seu Deus é. Se o S enhor agiu assim no as águas param, o povo atravessa. A travessia é
passado, então esse mesmo Senhor agirá agora com conscientemente apresentada como paralela à do
poder em beneficio deles. mar Vermelho, porque a entrada na Terra Prometida
3.1- 5,12 A travessia do Jordão. Depois de é, em certo sentido, a conclusão do grande ato de
tratar dos preparativos para entrar na terra, o autor libertação realizado pelo S enhor, que começou com
narra a travessia do Jordão. Nesta seção encontra­ o Êxodo. Vemos aqui como o Êxodo se transforma
mos uma série de eventos carentes de unidade inter­ no prisma pelo qual são vistos todos os grandes
na, mas unidos pela preocupação com a travessia atos divinos de libertação. A volta do Exílio tam­
e com a arca da aliança. É o único lugar em que a bém será vista como novo Êxodo. Para aumentar a
arca é mencionada na narrativa da conquista. A sensação de milagre e da grandeza da atividade
travessia divide-se em três passagens: preparativos
divina, fica claro que é fim de inverno ou começo
(3,1-13); travessia (3,14-17); construção do memo­
da primavera, quando o Jordão transborda por todas
rial (4,1-9); término da travessia (4,10-18) e o acam­
as margens por causa do derretimento da neve das
pamento cultuai em Guilgal (4,19-5,12).
montanhas ao norte. O rio pára em “Adâm”, cida­
3.1- 13 Preparativos. Esta narrativa, junto com
de situada na junção dos rios Jaboc e Jordão, alguns
a da travessia, apresenta o acontecimento como uma
quilômetros ao norte de Jericó. O mar do Sal re­
solene procissão litúrgica. É mais do que provável
fere-se ao mar Morto. O povo atravessa em frente
que a história se tenha desenvolvido como recons­
a Jericó. Há muitas ocasiões conhecidas em que o
tituição cultuai e memorial da travessia do Jordão.
O autor tomou essa liturgia antiga e a usou como Jordão ficou represado durante horas porque suas
esboço para a história, principalmente para mostrar ribanceiras desmoronaram e formaram um dique
que era o Deus vivo o responsável por conduzir natural. Talvez um evento desses esteja por trás
Israel à terra (vv. 10-11). Mais uma vez, aqui está desta história.
importante mensagem para os israelitas, a saber, 4,1-9 Construção do memorial. Este episó­
que o S enhor é poderoso e pode conduzir os exi­ dio é uma inserção secundária no texto, o que se
lados de volta à terra, como outrora conduzira o evidencia pelo resumo em 4,10, que se reporta à
povo à terra. travessia em 3,14-17, e pelo interesse especial nas
O texto dos vv. 1 e 2 resulta mais de 1,18 do doze pedras de Guilgal. Embora a verdadeira locali­
que do capítulo 2. Os w . 2-6 indicam ser o S enhor zação de Guilgal seja desconhecida, fica em algum
quem conduz o povo. A arca é sinal da presença do lugar na região de Jericó. Desde um periodo bas­
S enhor. A distância que o povo deve manter da arca tante primitivo, era santuário nacional israelita. É
enfatiza o respeito que se deve mostrar ao Senhor. mais que provável que fosse a presença natural de
O convite à santificação no v. 5 brota da idéia de um grupo de pedras nesse santuário, mais tarde
que 0 povo está prestes a experimentar maravilhas ligadas à travessia do Jordão, que deu origem a
realizadas pelo S enhor, isto é, ações extraordinári­ este episódio. Acreditava-se que as pedras eram
as. Essa intervenção divina exige adequada prepa­ um lembrete físico, um memorial perpétuo (v. 7)
ração humana. Envolvidas nessa santificação estão de como “as águas do Jordão foram cortadas dian­
uma série de ritos de purificação e a abstinência de te da arca da aliança do Senhor, quando ela passou
toda atividade sexual e de certos alimentos (cf. Ex 0 Jordão!” O episódio, então, originou-se como
19,10-15; Nm 11,18; Js 7,13). conto etiológico, como a história de Rahab no capí­
O V . 7 apresenta o propósito da ação que se tulo 2. Duas tradições se combinam nestes vv.: uma
seguirá: é exaltar Josué à vista de todo o Israel e que explica a presença das pedras em Guilgal (vv.
confirmar seu papel como sucessor de Moisés. O 1-8) e outra que explica a presença das pedras no
que vai acontecer mostrará a presença do S enhor meio do rio Jordão (v. 9). Não está claro de onde
junto a Josué. O sermão de Josué nos w . 10-13 de- veio a segunda tradição e por que ela está incluída
220 clara quem é responsável por aquilo que está pres­ no V. 9.
JOSUE 4

No presente contexto, estes w . têm o propósito de atravessar o Jordão é identificado de forma


de enfatizar que foi o S enhor quem conduziu os explícita pela primeira vez: Guilgal, aqui localiza­
israelitas na travessia do Jordão. Para os exilados, do nos limites orientais de Jericó.
é uma mensagem de esperança: esse mesmo S enhor Na história das pedras memoriais (4,20-24), o
pode conduzi-los de volta à terra. A explicação das que importa é a explicação do significado das pe­
doze pedras no v. 17 é o ponto central de todo o dras. Observe a comparação explícita da secagem
conjunto de dados de 3,1-5,12. A inclusão deste das águas do Jordão com a secagem do mar Verme­
episódio pode também ser uma tentativa de mais lho (veja Ex 14,21). Os dois eventos proporcionam
íntima assimilação da travessia do Jordão à tradição os pontos de início e fim do período de libertação.
do evento do Êxodo-Sinai (cf com as doze pedras Com a entrada na terra, Israel alcançou o objetivo
para as doze tribos de Israel que comemoram a para o qual foi libertado do Egito (cf. Ex 3,8). O
aliança no Sinai em Ex 24,4). propósito das ações do S enhor é explícito: que
4,10-18 Término da travessia. Embora estes todo o povo da terra conheça o poder de Deus e
vv. estejam embaralhados, há neles certa lógica. O que os israelitas temam o S enhor. É mensagem
estado em que o texto se encontra é conseqüência de importante para os exilados; em meio à dor, devem
que diversos redatores lidaram com os vários assun­ depositar esperanças no poder de seu Deus e dedi­
tos. Depois da inserção de 4,1-9, o v. 10, resumindo car-se inteiramente ao S enhor que liberta.
3,14-17, faz o leitor voltar à narrativa principal. O O objetivo de 5,1 é mostrar que o propósito do
V. 11 é um resumo adiantado da saída da arca do rio. Senhor foi alcançado entre os reis na terra de
Na procissão litúrgica, depois de atravessar o rio a Canaã. Reconheceram o poder do S enhor nos acon­
salvo, o povo agora faz fila para testemunhar a saí­ tecimentos da travessia e “perderam o alento”, lite­
da da arca do rio. ralmente “sua coragem se dissolveu”. A mesma ex­
Os vv. 12-13 são uma adição por D, que deseja pressão é usada por Rahab (2,10-11) e em Ex 15,13­
enfatizar aqui, como em 1,12ss., que todas as tri­ 17, que narra os resultados do Êxodo. Mais uma
bos de Israel estavam envolvidas — até mesmo as vez, o autor põe em paralelo a travessia do Jordão e
que receberam terra a leste do Jordão. O número a do mar Vermelho.
quarenta mil é, com certeza, exagero. Talvez a so­ A história da circuncisão em 5,2-9 está aqui por
lução seja que a palavra que pode ser traduzida razões antes teológicas que históricas. Ex 12,48 ex­
como “mil” também pode ser usada como termo plica que somente os circuncisos podem tomar parte
técnico para indicar uma unidade militar de tama­ na celebração da Páscoa. Entretanto, por alguma
nho considerável. razão (o texto não dá nenhuma), os meninos nasci­
O V. 14 volta a 3,7 e salienta o propósito prin­ dos no deserto durante os quarenta anos de cami­
cipal dessa travessia milagrosa, a saber, exaltar Josué nhada depois da saída do Egito não tinham sido cir-
diante de todo Israel. Esse propósito foi alcançado cuncidados. Por isso, para a celebração apropriada
pelo grande milagre; dali em diante, o povo respei­ da Páscoa, agora a circuncisão é necessária. A refe­
tou Josué como havia respeitado Moisés. Depois de rência à circuncisão acontecendo “novamente” (v. 2)
alcançados todos os objetivos do milagre, os sacer­ pretende mostrar a circuncisão e a celebração da
dotes saem agora do rio e, assim que chegam em Páscoa em Guilgal, como repetição dos ritos em
terra firme, o Jordão retoma seu curso e mais uma tomo do Êxodo (cf Ex 12). O lugar do ritual cha­
vez inunda as margens. ma-se colina dos Prepúcios, referindo-se a um local
4,19-5,12 Acampam ento cultuai em Guilgal. perto de Guilgal onde foi praticado o rito da circun­
Com a travessia do Jordão, um período da vida de cisão. Observe a necessidade que D tem de expli­
Israel está prestes a terminar e outro prestes a co­ car a razão da morte de todos os guerreiros que
meçar. Com a ênfase em vários ritos cultuais em haviam saído do Egito (cf Nm 14), provavelmente
Guilgal, esta seção forma a transição desde o perío­ para explicar aos exilados a razão de terem per­
do de libertação até a ocupação da terra. A seção dido a terra, a saber, por causa de sua desobediên­
apóia-se em dois eventos cultuais que se reportam cia. No V. 9, é feita uma tentativa para explicar o
explicitamente à libertação do Egito: a colocação nome Guilgal. O lugar recebeu esse nome porque
das pedras em Guilgal (4,20-24) e a celebração da ali o Senhor “removeu”, literalmente “fez rolar para
Páscoa (5,10-12). A narrativa em 5,1 mostra o im­ longe”, 0 opróbrio do Egito. Um dos significados
pacto sofrido pelos habitantes da região com a en­ da raiz da palavra gilgol é “fazer rolar para longe”.
trada de Israel na terra. A circuncisão de todos os Não está claro o que se deve entender por “opróbrio
israelitas do sexo masculino, relatada em 5,2-9, deve do Egito”.
preparar para a celebração da Páscoa. A seção conclui com a celebração da Páscoa
O cenário é montado em 4,19. A data é o déci­ (vv. 10-12), festa que celebra o Êxodo. O décimo
mo dia do primeiro mês, conhecido como nisan. É quarto dia do primeiro mês era a data apropriada
a época da colheita, março-abril. A data é impor­ para essa celebração (cf Ex 12,1-6). Assim como
tante, tendo em vista a celebração da Páscoa, que o Êxodo começou com a celebração da Páscoa,
está próxima. O lugar onde o povo acampa depois também a entrada na terra, que conclui esse perío- 221
JO SUÉ 5

do de libertação, termina com a mesma celebração. dos e invioláveis. Chegar perto demais é aproxi­
No dia seguinte, o povo come produtos da terra e, mar-se demais de Deus. Destruí-los é ato de devo­
com esse acontecimento, o maná (cf. Ex 16 e Dt ção ao S enhor.
8,3) cessa, pois já não há necessidade dele. É, na Aliados à referência a Rahab no v. 17, os w.
verdade, o fim de uma era. 22,25 são provavelmente uma adição para ajudar a
5.13- 12,24 A conquista. Esses capítulos con­unir a história da queda de Jericó à história de Rahab
têm a narrativa da conquista: a conquista da parte no capítulo 2. Eles concluem a etiologia iniciada no
central da terra (5,13-9,27), a da parte meridional capítulo 2 que explica a presença de Rahab e sua
(10,1-43) e a da parte setentrional (11,1-15). Os família no meio de Israel. A menção ao tesouro da
vv. finais (11,16-12,24) apresentam um resumo. Casa do S enhor no v. 24 muitas vezes é entendida
5.13- 9,27 A conquista da Palestina central. como referência ao templo de Jerusalém, que ainda
Estes capítulos narram a tomada de Jerico (5,13-6, não fora construído! E mais provável que se refira
27), a derrota e a vitória em Ai (7,1-8,29), o altar a Guilgal.
no monte Ebal (8,30-35) e a aliança com os guibeo- A narrativa da queda de Jericó parece trazer
nitas (9,1-27). lembranças de uma conquista militar por meio de
5.13- um estratagema (6,1.20.21.25). Podem bem ser anti­
6,27 A tom ada de Jericó. A história co­
meça com a aparição de um ser divino que lembra gas lembranças da queda original da cidade. A mal­
Ex 3, a vocação de Moisés. Josué deve ser visto dição relatada em 6,26 explica por que a cidade
como o novo Moisés. Embora seja provável que o não foi reconstruída, e é cumprida em IRs 16,34.
material de 5,13-15 pertencesse originalmente a (Um desses textos depende do outro, mas não está
uma epopéia independente, agora forma uma uni­ claro qual deles é o dependente.)
dade com 6,1-5, que fala da proclamação do S enhor 7,1-8,29 Derrota e vitória em Ai. O material
sobre a queda de Jerusalém e de suas instruções dos capítulos 7 e 8 compõe-se de, no mínimo, duas
sobre a forma como a cidade deve ser tomada. A narrativas que foram combinadas, provavelmente no
presença do chefe do exército do S enhor mostra a tempo de D. A história principal falava de uma
presença do S enhor na conquista, desde o início. derrota original de Israel em Ai. A ela foi combina­
Como 6,2 revela, o S enhor é o responsável pela da uma antiga história do crime e castigo de Akan,
queda de Jericó. Em geral, as trompas feitas de a fim de dar uma explicação para a derrota. A única
chifre de carneiro (6,4) eram usadas em guerras e dificuldade com a narrativa agrupada é que, na época
liturgias. da conquista israelita. Ai (hoje identificada como
A evidência arqueológica mostra que Jericó já et-Tell) era desabitada. A evidência arqueológica
estava em ruínas quando os israelitas entraram em mostra que a cidade foi habitada pela última vez no
Canaã. As moradias de Tell-es-Sultan, local identi­ fim do terceiro milênio e ocupada novamente apenas
ficado como Jericó, eram escassas na época da con­ no século XI. Várias teorias foram desenvolvidas
quista. O que deu origem à crença de que fora des­ para explicar essa narrativa. Uma teoria proeminente
truída durante a conquista foi o fato de ter estado diz que a história originalmente descrevia a queda
em ruínas no período dos Juizes e até o período da de Betei, que está a apenas alguns quilômetros de
monarquia. Por estar perto do santuário nacional distância, e depois foi ligada às ruínas em et-Tell. A
de Guilgal, surgiu a pressuposição de ter sido des­ base para essa teoria é a evidência arqueológica,
truída sob Josué. Historicamente, não é possível que mostra que Betei foi destruída lá pelo fim do
dizer o que está por trás dessa narrativa. século XIII. Entretanto, não está claro que essa
A narrativa do capítulo 6 é bastante complicada destruição se deveu aos israelitas. Embora a verda­
e parece ter passado por diversas redações. Em sua deira fonte da história seja desconhecida, é evidente
forma final, a história tem as características de um que ambas as narrativas são bem antigas. Como
ritual religioso, uma liturgia. D quer salientar aos veremos, o objetivo principal das narrativas reuni­
exilados que o S enhor foi responsável pela conquista das é mostrar aos exilados que a transgressão da
da terra e que esse mesmo Senhor pode mais uma aliança leva à derrota e à destruição, enquanto a fé
vez levá-los à vitória. Este primeiro sucesso em e a obediência conduzem à vitória.
Canaã assume um valor simbólico do poder do Se­ O autor começa (7,11) com a explicação de
nhor. O múltiplo uso do número sete, número sagra­ que 0 S enhor estava irado com Israel porque Akan
do em Israel, representa a presença do S enhor nesta transgredira o interdito (cf 6,18); por isso, a der­
narrativa. rota que estava para vir não deveria causar surpre­
Depois de receber instruções do S enhor sobre sa. Aqui é introduzida a idéia da culpa coletiva,
como realizar a conquista de Jericó, Josué as trans­ isto é, como todo o povo podia sofrer por causa do
mite para o sacerdote e o povo. Essas ordens são pecado de uma única pessoa.
executadas e a cidade cai diante dos israelitas (6,12­ Observe que os w . 2-3 nada dizem sobre o
21). A questão do “interdito” nos w. 17ss. é que, envolvimento do Senhor. Tudo está sendo feito pela
como o S enhor é o guerreiro e o vencedor, o inimi- iniciativa de Israel. Por isso, quando Israel ataca, é
222 go e os despojos pertencem a ele. Assim, são sagra­ derrotado e a coragem do povo se dissolve (7,4-5).
JOSUÉ 9

A palavra usada aqui para “mil” provavelmente re­ tomam a cidade, ateando-lhe fogo. Quando os sol­
fere-se a um contingente militar de certo tamanho. dados de Ai percebem o que está acontecendo, é
Junto com os anciãos, Josué agora consulta o tarde demais. Vêem-se presos entre os dois grupos
S enhor (7,6-9). A verdadeira preocupação de Josué do exército dos israelitas, e são eliminados até a úl­
é expressa no v. 9, a saber, que quando os outros tima pessoa. Somente o rei de Ai é poupado e con­
habitantes da terra souberem da derrota voltem-se duzido vivo a Josué. O ato de Josué estender o dardo
contra Israel. Os ritos descritos nesses vv. referem- (8,18.26) lembra a ação de Moisés durante a guerra
-se ao ritual do luto (cf. Dt 9,26; Ex 32,11; 2Sm contra Amaleq (cf. Ex 17,8-13). Parece ser outro
12,15-17). A passagem relembra as queixas de incidente onde a vida de Josué é posta em paralelo
Israel no deserto contra Moisés e o S enhor (cf. com a vida de Moisés.
Ex 16,2-8). A história conclui (8,24-29) com o relato da
Na resposta do S enhor (7,10-15), Josué fica execução de todos os habitantes de Ai (veja Dt
sabendo a razão da derrota, isto é, que Israel tomou 20,16-18), a tomada do butim e a destruição da ci­
o que era interditado e, assim, transgrediu a aliança. dade. Estes vv. finais contêm outra dupla etiologia
Israel está agora sob o interdito e o S enhor não pode que explica como tudo foi transformado em ruína
e não quer permanecer com Israel, a não ser que ele “que ainda hoje existe” (explicação do nome da ci­
elimine de seu meio aquele que incorreu no interdi­ dade, “a ruína”) e como surgiu o montão de pedras
to. O procedimento legal descrito (7,14) é o do julga­ na entrada da cidade — foram usadas para cobrir
mento pela sorte sagrada, embora não sejam dados o cadáver do rei de Ai.
detalhes do procedimento. Os vv. expressam clara­ Em contraste com o capítulo 7, o capítulo 8
mente a idéia de que a comunidade toda pode sofrer mostra como Israel é vitorioso quando luta sob a
pelos pecados de uma única pessoa. liderança do Senhor e faz a vontade do S enhor. A
Depois da identificação de Akan como culpa­ mensagem para os exilados é clara; o pecado leva
do, ele e todos os seus bens são levados ao vale de à derrota e a obediência conduz à vitória.
Akor e apedrejados, e a ira do S enhor contra Israel 8,30-35 O altar no monte Ebal. Esses vv. são
se aplaca (7,16-26). Os vv. finais apresentam duas uma adição dos redatores, pois interrompem o fluxo
etiologias como explicação da história de Akan. da narrativa em 8,29 e 9,1. Os vv. relatam o cumpri­
Uma delas explica um montão de pedras no vale mento das ordens de Moisés (cf. Dt 27,1-8.11-13;
de Akor (7, 26); a outra, o nome do vale de Akor 11,29) a respeito do que vai acontecer depois que
(7,24.26). Esta última etiologia desenvolve-se por o povo entrou na terra. Note a referência a Moisés
meio de um jogo com as palavras “Akor” e “Akan” muitas vezes repetida nestes vv. que, como veremos
e pelo fato de a raiz hebraica para “desgraça” e mais adiante, se relacionam estreitamente com o
“aflito” (cf. 7,25) ter som semelhante a “Akor”. material do capítulo 24.
Mais importante, entretanto, o propósito da história Os montes Ebal e Garizim defrontam-se dos
é explicar aos exilados que a transgressão da alian­ dois lados de uma profunda ravina no norte do
ça leva à derrota. Israel central, cerca de trinta quilômetros ao norte
Agora que a ira do S enhor contra Israel foi de Ai. Entre eles está a cidade de Siquém, antigo
aplacada, o S enhor diz a Josué que se prepare para lugar de culto. Essas duas montanhas flanqueavam
atacar Ai. Note que, em contraste com o capítulo o importante desfiladeiro que cortava de leste a
7, a vitória é assegurada (8,1), porque é o S enhor oeste a região montanhosa central de Israel.
que conduz Israel no combate. Portanto, Israel não 9,1-27 Aliança com os guibeonitas. As duas
deve temer; deve apenas ser obediente e destruir narrativas dos vv. 1-2 e 3-27 mostram as possíveis
Ai, como destruiu Jerico (8,2). Entretanto, agora reações de um povo ameaçado de destruição total;
os Israelitas são autorizados a tomar o butim e o formar uma aliança comum contra a ameaça ou
S enhor estabelece as linhas gerais da conquista — fazer uma aliança com quem o ameaça.
deve ser por meio de uma emboscada. A referência (v. 1) à região montanhosa, à Bai­
Josué, então, dá instruções aos guerreiros que xada e ao litoral do Grande Mar identifica as três
devem preparar a emboscada (8,3-8) e eles vão as­ regiões (de leste a oeste) da terra da Palestina.
sumir suas posições (8,9). Observe-se mais uma vez A narrativa sobre os guibeonitas nos w. 3-27
a certeza de que os israelitas vão se apoderar da reflete uma história literária complexa. Além das adi­
cidade, porque o S enhor entregou-a nas mãos deles ções mais tardias de D, nos vv. 9-10, 24-25 e 27b,
(cf 8,1). a figura de Josué parece ter sido uma inserção secun­
Os w . 10-23 descrevem o combate. Quando a dária no texto e os vv. 16-27 parecem ser uma adi­
maior parte dos israelitas fugiu outra vez em apa­ ção secundária à história original (é possível pular
rente derrota diante do rei de Ai, todos os soldados de 9,15 para 10,1, sem nenhuma sensação de hiato).
de Ai saíram atrás deles, deixando a cidade aberta Não está claro se apenas uma ou quatro cidades (cf
e desprotegida. Quando Josué, seguindo as ordens o V. 17) fizeram aliança com Israel; também nem
do S enhor, estende o dardo em direção de Ai, os sempre está claro quem agia por Israel —- os “filhos
soldados que estavam de emboscada se levantam e de Israel” ou Josué. 223
JO SU E10

Como a história de Rahab (cf. o cap. 2), essa Josué lidou com Ai e Jerico e seus reis e que Guibeon
é uma etiologia preservada para explicar a presença fez uma aliança com Israel, fica atemorizado e cha­
dos guibeonitas no meio de Israel, apesar das proibi­ ma outros quatro reis da vizinhança para ajudá-lo a
ções de Dt 20,10-18, e seu papel como servos (le­ atacar Guibeon (w. 1-4). O medo brota da força de
nhadores e aguadeiros) em um santuário israelita. Guibeon e porque esta cidade passou para o lado de
A história também explica como Israel assumiu o Israel, dando-lhe importante cabeça de ponte na re­
controle da região montanhosa central e serve de gião montanhosa central. Assim, os cinco reis cercam
base para o capítulo 10. Para os exilados, no século Guibeon, como meio de impedir o avanço de Israel
VI, o propósito da história teria sido chamá-los à na região montanhosa e como castigo. A Guibeon
fé no poder e nas promessas do S enhor (cf. os w . do capítulo 10, “cidade grande, tanto quanto as cida­
9-10; 24-25). Não há dúvida sobre a historicidade des reais” (v. 2), contrasta com a Guibeon do capí­
de uma aliança entre Israel e os guibeonitas (cf. tulo 9, tão fiaca que buscou uma aliança com Israel.
2Sm 21,1-9). O quadro apresentado no capítulo 10 também está
A primeira parte da narrativa (w. 3-15) relata em desacordo com a evidência arqueológica. Quando
a trapaça dos guibeonitas e a conclusão da aliança. os guibeonitas apelam para seu protetor, Josué, este
Guibeon identifica-se com a el-Jib atual, localidade responde imediatamente e, depois de marchar toda
na região montanhosa central, cerca de onze quilô­ uma noite, ataca os cinco reis de surpresa e inflige-
metros a noroeste de Jerusalém e situada ao longo lhes uma grande derrota (vv. 5-10). A marcha teria
de importante estrada leste-oeste de Jerico à planície coberto cerca de trinta quilômetros ao longo de ca­
costeira. Aparentemente, Guibeon pertencia a uma minhos montanhosos. Observe que Josué é vitorioso
pequena aliança de quatro cidades (cf o v. 17). porque o Senhor entregou os cinco reis em seu poder
Qualquer que fosse a povoação existente em el-Jib (v. 8). As grandes pedras de granizo mencionadas
na época de Josué, a evidência arqueológica mostra no V. 11 resultaram, sem dúvida, de uma tempestade
que não era grande, embora mais tarde se tornasse de verão excepcionalmente rigorosa que provocou
cidade importante. tantos estragos quanto o exército de Israel. Bet-Horon
Os guibeonitas foram ter com Israel em Guilgal era o nome de importante desfiladeiro, um dos prin­
(v. 6), para onde Israel voltou depois da cerimônia cipais pontos de entrada no lado oriental da região
de aliança relatada no capítulo anterior. A hesitação montanhosa.
de Israel a respeito da aliança proposta (v. 7) brota Qs vv. 12-14 não devem ser tomados ao pé da
de Dt 7,2; 20,10-18, A aliança teria incluído a paz letra. Com certeza, o compilador entendeu-os como
entre as duas partes e também a defesa mútua (cf descrição de um milagroso prolongamento do dia,
10,1-15). A razão dada para a busca dessa aliança para que Josué tivesse luz do sol suficiente para
é a fama do S enhor, o Deus de Israel, e tudo que liquidar o inimigo. Entretanto, devemos ver esses
esse Deus fizera por Israel no Egito e contra os vv. como descrição poética que enfatiza o fato de
reis Sihon e Og (cf Nm 21,21-35). Sem procurar o S enhor ter lutado por Israel e ser responsável
os conselhos do S enhor, Israel concorda com a pela vitória. Grande parte dessa história está rela­
aliança e as partes compartilham uma refeição de tada em Jz 1,4-20, onde consta que três das cida­
aliança para selá-la (vv. 14-15). des aqui relacionadas foram tomadas pela tribo de
A segunda parte da narrativa (vv. 16-27) relata Judá.
a descoberta do estratagema e a reação de Israel. Qs vv. 16-27 descrevem a morte dos cinco reis
O juramento era tão importante que nem a desco­ que iniciaram o ataque a Guibeon. Maqedá ficava
berta da trapaça foi razão suficiente para livrar a oeste de Jerusalém. Quando os reis são descober­
Israel de suas obrigações. Entretanto, os guibeonitas tos, Josué não quer perder tempo com eles. Depois
devem ser castigados, por isso recomenda-se que de se certificar que não podem fugir, Josué manda
se tornem “lenhadores e aguadeiros” (vv. 16-21), seus homens perseguir os soldados em fuga e ma­
expressão que se refere a uma forma inferior de tá-los antes que fujam para suas cidades fortifica­
participação na comunidade (cf Dt 29,10). Josué das (vv. 16-19). A humilhação posterior dos reis
chama os guibeonitas e lhes diz que devem desem­ (v. 24) teve o propósito de desenvolver a confiança
penhar suas tarefas “para a casa do meu Deus” (v. de Israel e enfatizar o poder do S enhor em seu
23). Não está claro se aqui a referência é a Guibeon meio. A história termina com uma nota etiológica
ou a Guilgal. A resposta dos guibeonitas parece que explica a existência de um monte de pedras na
refletir o conhecimento de Dt 20,10-18. entrada de uma gruta em Maqedá (v. 27). Assim,
10.1- 43 A conquista do sul. Em uma série de o objetivo da história é desenvolver a confiança
incidentes relacionados, Josué assume o controle dos exilados no poder de seu Deus para vencer os
da parte meridional de Israel. A oportunidade para inimigos (cf. vv. 8-14.25).
essa conquista é o ataque a Guibeon pelos cinco 10,28-43 Conclusão da conquista do sul.
reis do sul. Depois de derrotar a coalizão dos cinco reis, Josué
10.1- 27 A cam panha de Guibeon. leva Quando
avante essa vitória com ataques de surpresa
224 Adoni-Sédeq, rei de Jerusalém, ouve falar de como contra seis cidades a oeste e sudoeste de Jerusalém
JO SU E11

(vv. 28-29). As descrições desses ataques seguem norte do mar da Galiléia, era uma cidade magnífi­
um padrão definido que relata como a cidade foi ca e bem podia se encaixar na descrição que dela
tomada e seus habitantes passados a fio de espada, fazem esses vv. As escavações mostram também
sem deixar um sobrevivente sequer. Dessa manei­ que foi destruída em meados do século XIII, o que
ra, Josué realiza a destruição de cada cidade con­ podería coincidir com a época de Josué. As outras
forme a vontade do S enhor (Dt 20,10-18). Israel três cidades aqui citadas localizam-se ao sul de
foi bem-sucedido porque o S enhor entregou as Hasor. A Arabá é a grande fenda que contém o
cidades em seu poder. mar da Galiléia (aqui chamada “Kinéret”), o rio
Não é possível harmonizar completamente a Jordão e o mar Morto. O tamanho do exército ini­
descrição da coalizão nos vv. 1-5 ao relato da cam­ migo está, sem dúvida, exagerado, para engrande­
panha contra o sul descrita nesses vv. Embora haja cer a vitória.
certa sobreposição de cidades, os vv. 28-39 pare­ Israel foi bem-sucedido contra a coalizão por­
cem refletir uma tradição diferente da dos vv. 1-5. que o S enhor entregou os canaanitas em seu poder
O que parece estar por trás deles é a pressuposi­ e porque Josué obedeceu o S enhor, seguindo a tá­
ção de que, ao avançar contra Jerusalém em diferen­ tica estabelecida para ele (vv. 6-9). Observe que
tes ocasiões da história, os inimigos de Israel se­ nada é dito sobre onde Josué recebeu a palavra do
guiam sempre a mesma rota. Foi a rota de Senaque- S enhor. Pelo contexto, parece que ainda estava em
rib em 701 a.C. (cf. 2Rs 18,13) e de Nabucodonosor Guilgal. A mutilação dos cavalos impediu os ca­
em 587 a.C. (cf. Jr 34,7), quando avançaram sobre naanitas de usar seus carros, em seguida queimados.
Jerusalém. Então os canaanitas tiveram de fugir a pé, o que
Os vv. finais (40-43) resumem esta parte da permitiu a vitória de Israel. Como Israel só come­
conquista. O propósito do autor é mostrar que Israel çou a usar carros no tempo de David e Salomão,
conquistara todo o território ao sul de Guibeon sob é duvidoso que tivessem conseguido derrotar um
a liderança de Josué. A descrição é muito exagerada exército equipado com carros.
e 0 autor usa o resumo para enfatizar como Josué A razão das ações de Josué contra Hasor é que
seguira as ordens do S enhor e alcançara o sucesso este fora o principal de todos esses reinos (vv.
porque o Senhor lutou por Israel. Mais uma vez, 10-12). Por trás da observação sobre Israel não ter
para os exilados a mensagem é clara; devem ser queimado nenhuma das outras cidades “que se er­
obedientes e confiar no poder do S enhor. guiam sobre suas colinas” (v. 13) está um lembrete
11,1-15 A conquista do norte. O capítulo co­ que Israel não possuía nem a força nem o conheci­
meça repentinamente sem nenhuma ligação clara mento técnico para derrotar os exércitos de carros
com o material precedente, exceto que o rei de dos canaanitas. A extensão da destruição descrita
Hasor “soube disso”. E provável que, originalmente, nestes w . é, portanto, provavelmente exagerada.
este material fosse uma tradição independente; Essa seção conclui com um resumo a respeito
agora é apresentado como o equivalente setentrional da obediência de Josué: ele fez tudo que o S enhor
da conquista do sul relatada no capítulo 10. Essa ordenara a Moisés (v. 15). A mensagem aos exilados
tradição pode ter pertencido a uma ou mais tribos é reiterada: a necessidade de obediência ao S enhor
do norte e depois se estendido a todo o Israel. As­ e confiança em seu poder. Com tal confiança, a
sim, também, a figura de Josué foi provavelmente vitória é possível.
introduzida na história de forma suplementar. En­ 11.16- 12,24 Resumo da conquista. A conquis­
tretanto, a tradição parece se basear em um funda­ ta se encontra agora resumida por dois textos se­
mento histórico. Note que esse capítulo segue o parados. O sumário em 11,16-23 era o original re­
mesmo esboço do capitulo 10: um rei forma uma sumo e conclusão da narrativa. O capítulo 12, com
coalizão para derrotar os israelitas, mas Josué a der­ a lista de reis conquistados, foi inserido mais tarde.
rota com um movimento de surpresa e ataca as ci­ 11.16- 23 Sumário redatorial. Estes vv. vêm do
dades envolvidas. compilador original das histórias da conquista. O tema
A narrativa começa com labin, rei de Hasor, básico, estabelecido em nos vv. 16 e 23, é que Josué
formando uma coalizão de reis do norte. Observe “tomou aquela terra” . Assim, o S enhor cumpriu
como a descrição começa com detalhes específicos todas as promessas feitas a Moisés (cf. Js 1,1-9). A
e depois fica cada vez mais vaga. Todos os mem­ descrição da terra conquistada (vv. 16-17) ultrapassa
bros da coalizão, com tropas, cavalos e carros, reú­ de maneira significativa a descrição nos capítulos
nem-se perto das águas de Merom, alguns quilô­ anteriores “de Dan a Beer-Sheba”. O monte Halaq,
metros a sudoeste de Hasor, para lançar um ataque que assinala a fronteira meridional, está no extremo
contra Israel (vv. 1-5). A topografia desses capítu­ sul do deserto do Négueb, ao sul de Judá. Báal-Gad,
los abrange a região da Galiléia em geral, mais a fronteira setentrional, refere-se a um local no extre­
tarde designada à tribo de Neftali. Escavações ar­ mo sul do vale do Líbano.
queológicas mostram que, no século XIII a.C., O V. 18 tenta afastar a idéia de que a conquista
Hasor, localizada cerca de doze quilômetros ao foi rápida. Menciona que Israel teve de combater 225
JO SUÉ 12

todas essas cidades porque tal era a vontade do S e­ PARTE II: A DIVISÃO DA TERRA
nhor: determinara que todas as cidades, exceto
Js 13,1-22,34
Guibeon, lutariam contra Israel e, assim, dariam mo­
tivos para ser exterminadas (cf. Dt 20,10-20). 13-22 A divisão da te rra. Estes capítulos con­
Os w . 21-22 estão um pouco dissonantes no têm detalhes geográficos pormenorizados sobre
contexto. Os anaquitas são descritos alhures como como a terra foi dividida entre as diversas tribos e
“gigantes” (Nm 13,33). O redator quer mostrar que dão informações estatísticas sobre pessoas, lugares
houve pontos de distúrbio onde nem toda a popula­ e tribos. Seu propósito é mostrar como Deus deu
ção nativa fora exterminada. 0 país todo a Israel como seu patrimônio, exata­
Mais uma vez, a conclusão no v. 23 salienta mente como prometera a Moisés (cf. 11,23). Era
que o S enhor cumpriu as promessas feitas a Moisés. mensagem importante para o público original deste
O mesmo v. forma a transição para a partilha da livro, os exilados, que recentemente tinham perdi­
terra que começa no capítulo 13. A insistência na do a terra. Para eles, o Livro de Josué promete aci­
fidelidade do S enhor às promessas feitas a Moisés ma de tudo que o S enhor é fiel às antigas promessas
era mensagem importante para o povo no exílio. feitas aos patriarcas.
12,1-24 Lista dos reis derrotados. Este capi­ Os dados encontrados nesses capítulos são o
tulo divide-se em duas partes: uma relação dos reis resultado da combinação de diversas fontes, Martin
derrotados pelos israelitas sob Moisés, a leste do Noth afirma que essa parte é o resultado da com­
Jordão (vv. 1-6), e uma relação dos reis que Israel binação de dois documentos, uma lista de cidades
derrotou sob Josué, a oeste do Jordão (vv. 7-24). O do reino de Judá, que data da época do rei Josias,
capítulo é um aperfeiçoamento de 11,23 e tem o e um levantamento de fronteiras anterior à monar­
propósito de enfatizar que o país todo fora conquis­ quia. Realmente, as raízes de alguns desses dados
tado por Israel. são bem antigas, mas os capítulos refletem o im­
O material dos vv. 1-6 foi desenvolvido de Dt pacto de acontecimentos mais tardios. Esta seção
3,8-17 e Js 13,9-32. O v. 1 menciona as fronteiras pode ter sido composta antes da redação de Josué
setentrional e meridional do território conquistado e pode até mesmo ser uma inserção mais tardia na
a leste do Jordão, a saber, o monte Hermon no narrativa original da conquista (cf. 13,1b e 23,1b).
norte e o rio Amon no sul. A metade meridional Embora o interesse principal destes capítulos
dessa região desde o rio Amon até o rio Jaboc per­
esteja na região a oeste do Jordão, a seção começa
tencera a Sihon, rei dos emoritas, que tinha a ca­
com um levantamento da distribuição da terra a leste
pital em Heshbon (vv. 2-3). A região ao norte do
do Jordão, que Moisés fizera às tribos de Rúben e
Jaboc esteve sob o controle de Og, rei do Bashan
Gad e à metade da tribo de Manassés (13,8-33).
(vv. 4-5). Nm 21,21-35 (cf. Dt 2,26-3,11) relata a
Conclui com a narrativa da volta dessas tribos a
derrota de Sihon e Og. Nm 32 relata como Moisés
seu território a fim de tomar posse dele (cap. 22).
designou essa terra aos rubenitas, aos gaditas e à
metade da tribo de Manassés (v. 6). Os refaítas Os capítulos 14-21 tratam da distribuição de terras
às tribos de Judá e de José em Guilgal (caps. 14—17),
mencionados no v. 4 eram um povo lendário de
grande estatura que habitara a Síria e a Palestina da distribuição em Shilô às sete tribos restantes
em tempos antigos (cf. Gn 14,5; Dt 2,11; 3,11; (caps. 18-19) e da separação das cidades de refúgio
2Sm 21,16-20). (cap. 20) e das cidades levíticas (cap. 21).
A relação dos reis derrotados a oeste do Jordão No material a seguir, este comentário não apre­
nos vv. 7-24 é uma lista muito importante porque sentará uma análise detalhada das fronteiras e listas
os w . 13b-24 contêm nomes de cidades não men­ de cidades fornecidas no texto bíblico. Os leitores
cionadas antes. Estes últimos vv. não são simples­ interessados em tais detalhes devem consultar atlas
mente um resumo das histórias anteriores, mas e comentários mais técnicos. Este comentário se
representam uma tradição independente da conquis­ restringirá a observações gerais.
ta que alguns biblistas dizem ser muito antiga e 13,1-33 Introdução à divisão da terra. Quan­
datar do tempo de Salomão. Os vv. 16b-24 têm do Josué está em idade avançada, o S enhor lhe
especial interesse, pois relacionam cidades encon­ ordena que distribua a terra a oeste do Jordão entre
tradas nos territórios de Efraim e Manassés na Pa­ as nove tribos e a metade da tribo de Manassés,
lestina central, onde nenhuma conquista anterior que ainda não têm terra. Este capitulo é uma com­
foi mencionada. posição D na qual o autor menciona que nem todo
A impressão dada por essas listas é a de uma o território a ser distribuído fora conquistado (v.
conquista total da terra e essa é, quase com certeza, 1), descreve a terra que ainda precisa ser conquis­
a intenção do autor. O interesse do autor nos capítu­ tada (vv. 2-6), lembra o leitor que Moisés já dis­
los sobre a conquista (6-11) não foi fazer um rela­ tribuira terras a leste do Jordão para as tribos de
to histórico exato, mas sim mostrar Deus cumprindo Rúben e Gad e a meia-tribo de Manassés (v. 8) e
promessas passadas por meio de grandes atos em faz uma descrição geral (vv. 9-13) e específica (vv.
2 26 benefício de Israel. 15-31) dessa terra. Duas notas de rodapié foram
J0 5 U E 15

acrescentadas para explicar por que a tribo de Levi das doze tribos e algumas tradições nem mesmo re­
não recebeu um patrimônio de terra como todas as conheciam o esquema de doze tribos. Por exemplo,
outras tribos (vv. 14.33). Embora o propósito do enquanto uma tradição falava de José como uma
autor pareça claro, é aparente certa falta de lógica tribo (17,14-18), outra tradição falava dos descen­
e continuidade nestes vv. (cf. o v. 7 com os vv. 1-6 dentes de José como duas tribos. Por isso, o redator
e 0 V. 14 com os vv. 8-13). Isso nos diz que nesses esclarece desde o início que os descendentes de José
capítulos há várias camadas de material. formavam duas tribos, Efraim e Manassés.
Os vv. 1-7 identificam as partes de Canaã que 14.6- 15,63 O quinhão da tribo de Judá. Essa
Israel não conseguira conquistar. A falta de ligação seção compõe-se de quatro unidades: a parte dada
entre a descrição da terra a ser conquistada e a a Kaleb (14,6-15), a relação das fronteiras de Judá
ordem subsequente para distribuir a terra entre as (15,1-12), o presente a Omiel (15,13-19) e a lista
nove tribos e meia (v. 7) deixa claro que os w. 2-6 das eidades de Judá (15,20-63).
foram acrescentados posteriormente. A área prefi- 14.6- 15 O quinhão de Kaleb. A história narra
gurada por eles é aquela pertencente ao império de como Kaleb entrou na posse da cidade de Hebron:
David e Salomão. foi uma recompensa por sua fidelidade ao S enhor
Os vv. 8-14 são outra adição ao texto para quando Moisés o enviou para espionar a terra mui­
explicar por que Josué devia distribuir terra apenas tos anos antes. Nm 13-14 (cf Dt 1,20-45) relata
a nove tribos e meia (v. 8) e para dar uma visão como todos os espiões, exceto Kaleb e Josué, deram
geral desse território (vv. 9-13). Esses vv. parecem conselhos contra a invasão. Consequentemente,
basear-se em Dt 3. Deus retardou a conquista até toda a geração morrer,
Os vv. 15-31 descrevem as terras distribuídas exceto Kaleb e Josué. Embora em Nm 13-14 não
às tribos de Rúben e Gad e à meia tribo de Manas- se encontre uma promessa específica de terra para
sés. Os rubenitas recebem o planalto que se estende Kaleb, ela está pressuposta em Dt 1,36.
desde o norte do rio Amon até Medebá e Heshbon; Em diversas passagens do Antigo Testamento,
os gaditas recebem os planaltos ao norte de Heshbon Kaleb é identificado como judaíta (p. ex., Nm 13,6;
e a meia tribo de Manasses recebe a área de Bashan 34,19), mas em outras é dado como qenizita (p.
e parte do Guilead. ex., Nm 32,12). Originalmente, os qenizitas faziam
O capítulo conclui lembrando que Moisés dis­ parte do povo edomita (Gn 36,11.15.42) que se
tribuiu as terras a essas tribos quando estava na estabelecera na região montanhosa meridional de
planície de Moab. Judá. Assim, supõe-se que Kaleb faça parte da tribo
14.1- 21,42 Distribuição da te rra a oeste dode Judá. Observe que, em Jz 1,10, a região mos­
Jordão. Essa é a parte central da segunda metade trada aqui como ocupada por Kaleb foi conquista­
do livro de Josué e se divide em cinco seções: in­ da por Judá e Simeão, que derrotaram os três che­
trodução (14,1-5); quinhão das tribos de Judá e fes anaquitas.
José em Guilgal (14,6-17,18); sorteio em Shilô Como essa passagem e também 15,13-19 sub­
para as sete tribos restantes (18,1-19,51); lista das vertem uma apresentação de outra forma organiza­
cidades de refúgio (20,1-9) e relação das cidades da dos sorteios tribais, há quem alegue terem elas
levíticas. sido inseridas no texto como suplementação. Há
14.1- 5 Introdução. Esses vv. apresentam a in­quem afirme que 14,6-15 originalmente seguia
trodução específica ao sorteio da terra a oeste do 11,21-23 e que 15,13-19 foi tirada de Jz 1,10-20.
Jordão. Salientam que o sacerdote Eleazar e Josué 15,1-12 Fronteiras de Judá. Essa primeira lista
e os chefes das famílias dividiram a terra (v. 1), que de fronteiras é também a mais detalhada e indica
foi atribuída por sorteio, de acordo com as instru­ que o compilador D tinha registros mais completos
ções que 0 S enhor prescrevera por intermédio de de Judá que das outras tribos. Embora artificial, a
Moisés (vv. 2.5; cf. Nm 33,54; 34,13). Também é lista é antiga e talvez anteceda o período da monar­
explicado por que a terra foi dividida entre doze quia. É, com certeza, mais antiga do que a lista de
tribos, embora a de Levi não recebesse terra, por­ cidades em 15,21-62.
que os descendentes de José formavam duas tribos 15,13-19 O presente p ara Otniel. Essa histó­
(vv. 3-4). ria, duplicata quase literal de Jz 1,10-15, é uma
Nas tradições veterotestamentárias tardias, o etiologia para explicar por que os filhos de Omiel,
sacerdote Eleazar (v. 1) é apresentado como filho que também pertenciam ao grupo qenizita, tinha
de Aarão (Ex 6,25; Lv 10,5; Nm 3,2). Embora o acesso a reservatórios de água que deveriam perten­
uso do sorteio seja citado diversas vezes no Antigo cer aos kalebitas em Hebron. Observe que aqui se
Testamento, os contextos não deixam claro o que afirma que Kaleb tomou pela força a área que lhe
estava envolvido. A razão da necessidade de expli­ foi dada como patrimônio em 14,6-15.
car por que os descendentes de José formavam duas 15,20-63 Cidades de Judá. Essa lista de cida­
tribos (vv. 3-4) vem da tradição que afirmava ser des baseia-se em um catálogo de doze províncias
Israel composto de doze tribos. Entretanto, nem que compunham o reino meridional de Judá, pro­
todas as tradições concordavam sobre a identidade vavelmente formada com propósitos administrativos 227
JO SU E16

governamentais, em algum momento depois de ção histórica foi altamente complexo e durou certo
David. O V. 63 foi acrescentado para explicar por tempo. Note-se que, enquanto as tribos de Judá e
que Jerusalém não aparece na lista de cidades, a José iniciaram o procedimento para receber seu
saber, porque os judaítas não conseguiram expul­ quinhão, aqui Josué (v. 3) adverte as outras sete
sar os iebusitas que moravam na cidade. É David tribos por não tomarem mais iniciativa para tomar
quem finalmente tomará a cidade (2Sm 5,6-9). posse da terra conquistada. É provável que a refe­
16.1- 17,18 O quinhão das tribos de José. rência a Shilô seja secundária, pois a referência a
Esta seção é formada de quatro partes: descrição Judá no sul e a José no norte (v. 5) não faz sentido
geral da área ocupada pelos filhos de José, onde se 0 ponto de referência for Shilô, que ficava no
eles são apresentados como uma única tribo (16,1­ território de Efraim. A tradição original suponha
3); lista das fronteiras da tribo de Efraim (16,4-10); ser Guilgal o lugar desse sorteio da terra. Historica­
lista do quinhão dos descendentes de Manassés, mente, Shilô sucedeu a Guilgal como santuário na­
exceto Makir, que já recebera terra a leste do Jordão cional. A referência à Tenda do Encontro (v. 1) é
(17,1-13); e a história de como os descendentes de estranha, pois referências a ela são muito raras nas
José reclamaram que precisavam de mais terra partes deuteronômicas do Antigo Testamento (cf
(17,14-18). Dt 31,14-15; ISm 2,22). Essa referência à Tenda
Essas listas contrastam com as listas judaítas do Encontro deve-se, provavelmente, a uma revisão
detalhadas dos capítulos anteriores. São dados me­ mais tardia do texto.
nos detalhes e o material é, com frequência, apre­ Em geral, os quinhões dados às diversas tribos
sentado de maneira bastante confusa. Observe a são descritos em termos de antigas listas de fron­
preocupação de explicar por que os canaanitas con­ teiras e de listas de cidades elaboradas com pro­
tinuaram a morar no meio dessas tribos (16,10; pósitos administrativos. Note-se que não são da­
17,12), embora em ambos os casos se insista que das fronteiras tribais para Simeão (19,1-9). A ra­
eles foram reduzidos a servos, já que não haviam zão é que, desde tempos bem primitivos, a tribo
sido expulsos. de Simeão era absorvida pela tribo de Judá e não
Em 17,1-6, por meio de uma formulação tinha território próprio. Em vez disso, Simeão ocu­
genealógica, estão descritos os membros da meia pava algumas cidades dentro da área pertencente a
tribo de Manassés, que se estabeleceram na área a Judá. D justifica essa distribuição aos simeonitas
oeste do Jordão (cf Nm 26,28-34). O clã de Makir alegando que a parte de Judá era maior do que o
(v. 1) formava a meia tribo que se estabeleceu a necessário.
leste do Jordão. Aparentemente, o quinhão original de Dan era
17,14-18 consiste em duas versões (17,14-15; bastante pequeno. Entretanto, os danitas foram for­
17,16-18) da mesma tradição combinada em uma çados a migrar para o norte (19,47) principalmente
narrativa. O tema de ambas é um pedido de mais porque não conseguiram dominar os canaanitas na
território, feito pelos descendentes de José, porque planície costeira que fazia parte de seu quinhão ori­
a área montanhosa que haviam recebido não era ginal (veja Jz 17-18).
grande o bastante para acomodar a todos. Nos vv. Só aqui é relatado que Josué recebeu uma ci­
16-18, também se queixam de que não consegui­ dade específica. Talvez a passagem (19,49-50) fosse
ram expulsar os canaanitas, por causa dos carros acrescentada para justificar a afirmação mais tar­
de ferro destes últimos. Em ambas as versões, Josué dia de que Josué foi enterrado dentro de seu patri­
responde dizendo aos filhos de José para aproveitar mônio (Js 24,30; Jz 2,9).
melhor a área montanhosa, desmaiando parte da A conclusão dessa seção baseia-se em 14,1 e
floresta. Na segunda versão, também os incentiva 18,1.
a desapossar os canaanitas. 20,1-9 As cidades de refúgio. O direito de san­
18.1— 19,51 Sorteio em Shilô. Depois de apre­tuário é tradição remota encontrada na Antiguida­
sentar 0 quinhão de terra das importantes tribos de de clássica e na oriental e está normalmente asso­
Judá e José, o redator faz uma introdução (18,10) ciada a alguns santuários. Esta passagem relaciona
e descreve os quinhões das sete tribos restantes: as cidades onde quem tivesse matado alguém in­
Benjamin (18,11-28); Simeão (19,1-9); Zabulon voluntariamente encontrava refúgio e asilo. Por trás
(19,10-16); Issacar (19,17-23); Aser (19,24-31) e desta passagem está o fato de na sociedade semítica
Neftali (19,32-39). antiga, no caso de homicídio, ser responsabilidade
A introdução (18,1-10) descreve o procedimen­ do parente mais próximo da vítima vingar a morte,
to para o sorteio da terra: depois que um grupo de­ tirando a vida do homicida. Isso era verdade mes-
signado (três membros de cada tribo) faz um levan­ ,mo no caso de homicídio acidental. Por isso, havia
tamento e prepara a descrição dela, a terra é divi­ necessidade de proteger a pessoa que acidental­
dida em sete partes. Josué distribui as diversas par­ mente matasse outra. Ao que sabemos, as cidades
tes às sete tribos, por sorteio, mas é bastante impro­ de refúgio não tinham paralelo. As seis cidades aqui
vável que as tribos realmente recebessem a terra relacionadas aparecem de novo na lista de cidades
228 dessa maneira. Na verdade, o processo de ocupa­ levíticas do capítulo 21, e Siquém e Hebron abri-
JOSUE22

garam santuários famosos. Também é provável que 21,43—22,9 Resumo e despedida das tribos
existisse um santuário em Qadesh (que significa orientais. Os vv. 43-45 são um resumo do livro até
“sagrado”). Portanto, parece que o direito de asilo este ponto. Como os outros contidos no livro (9,1-2);
está ligado a essas cidades por causa dos santuários 10,40-43), este resumo vai além do que foi real­
nelas existentes. mente narrado nas histórias que o precedem. Ape­
Uma das dificuldades apresentadas por esse sar das alusões em contrário (13,1-6), o redator
capitulo é que, à parte as leis concernentes ao cos­ afirma aqui que Israel conquistou toda a terra. To­
tume de asilo em Nm 35,9-15 e Dt 19,1-13, nenhum davia, O importante é a mensagem que ele deseja
texto bíblico dá um exemplo concreto dessa práti­ transmitir: o Senhor foi fiel a todas as promessas
ca. Assim, sérias dúvidas podem ser levantadas a feitas aos patriarcas. Em conseqüência disso, Israel ,
respeito da historicidade do que está apresentado tomou posse de toda a terra e encontrou a paz.
aqui e não há evidência suficiente disponível para Como já observamos, este é o tema principal do
respostas satisfatórias. livro de Josué e mensagem importante para o povo
21,1-42 As cidades levíticas. D menciona di­ exilado no século VI. Os exilados podem confiar
versas vezes que a tribo de Levi não recebeu ne­ neste Deus que é fiel a promessas passadas e que
nhum patrimônio, isto é, nenhuma parte de territó­ tem 0 poder de cumpri-las.
rio (13,14.33; 14,4; 18,7). Os levitas receberam O material de 22,1-9 está estreitamente ligado
apenas cidades para nelas morar, junto com suas a 21,43-45, porque é a “paz” descrita em 21,45
pastagens (14,4). Este capítulo relaciona as cida­ que permite a despedida das tribos orientais des­
des dadas aos levitas em obediência à ordem do crita em 22,1-9. Estes vv. estruturam o tema de­
S enhor a Moisés (Nm 35,1-8). senvolvido em 1,12-18. Josué reconhece a fide­
O principal problema no que diz respeito ao lidade das tribos orientais (22,1-3) e, como as tri­
capítulo é se a instituição das cidades levíticas é bos a oeste do Jordão estão estabelecidas, despede
ou não verdade historicamente. A lista de cidades as tribos orientais para que voltem a suas terras
que temos está organizada de maneira artificial, (22,4) com a advertência para que permaneçam
como se vê no esquema de doze tribos nela imposto. fiéis à Lei de Moisés (22,5). Depois despede-os
Mais uma vez, não vemos em nenhuma parte do com sua bênção (22,6). No livro todo, o redator dá
Antigo Testamento um exemplo concreto de como atenção especial às tribos orientais, a fim de enfa­
funcionava essa instituição. Não é surpreendente, tizar que a conquista da terra foi obra de todo o
então, que alguns considerem a instituição de cida­ Israel. A união de todas as tribos era muito impor­
des levíticas e, portanto, sua lista, puramente teó­ tante para ele.
rica e idealista. Entretanto, há biblistas atuaiè que 22,10-34 Apêndice: construção do grande
afirmam a existência de uma realidade histórica altar. Esta história constitui um apêndice à narra­
subjacente na história. De maneira específica, dizem tiva da conquista e divisão da terra. Aparentemen­
que as cidades levíticas representam “colônias”, te, narra como, a caminho de casa, as tribos orien­
isto é, lugares designados para grupos fiéis como tais constroem um altar bem grande na região do
os levitas, a fim de levar estabilidade a determina­ rio Jordão (v. 10). Quando as outras tribos tomam
da área. Outros argumentam que a lista representa conhecimento disso, reúnem-se para declarar guer­
um arranjo administrativo estabelecido por David ra às tribos orientais (vv. 11-12). A razão para essa
para governar as áreas fronteiriças de seu novo reação tão forte ao altar encontra-se na acusação
império. É verdade que Israel controlou o extenso da delegação enviada para pedir explicações, a sa­
território pressuposto pela lista apenas no tempo ber, o altar é visto como ato de rebeldia contra o
de David e Salomão e que, em sua maioria, as ci­ Senhor ( v. 16). As tribos discordantes estão teme­
dades aqui relacionadas foram áreas fronteiriças rosas das consequências desse pecado para todas
difíceis do império conquistado por David. Os le­ as tribos (vv. 17-20). O que se pressupõe aqui é a
vitas não eram seus únicos habitantes dessas cida­ crença do compilador D de que só pode haver um
des, mas tinham certos direitos e prerrogativas a único lugar de culto. As tribos ocidentais se abran­
respeito e suas pastagens. dam quando as orientais lhes garantem que o altar
A história da origem dos levitas como descen­ não se destina a sacrifícios, mas é um memorial —
dentes dos três filhos de Levi (Qehat, Guershon e um lembrete a todas as tribos de que as tribos orien­
Merari) é tardia (pós-exílica) e excessivamente sim- tais, apesar de não morarem na Terra Prometida
plificadora da realidade. Note que os qehatitas estão em sentido estrito (cf. o v. 19), tinham o direito de
divididos em dois grupos: os descendentes de Aarão cultuar 0 S enhor ( vv. 21-29).
(os sacerdotes) e os outros qehatitas. Por trás da história está uma narrativa mais
21,43-22,34 Conclusão. Estes vv. concluem a antiga que provavelmente lidou com um conflito
narrativa da divisão da terra (21,43-22,9) e forne­ entre as tribos orientais e ocidentais a respeito de
cem um apêndice a respeito da construção de um práticas religiosas e que forneceram uma etiologia
grande altar pelas tribos transjordaniánas quando para descrever algum grande altar. A história foi
regressaram a suas terras (22,10-34). tão minuciosamente reelaborada, que nada se pode 229
JO SUÉ 23

dizer sobre a narrativa original. Como está, é uma ção. Enfatizando que o S enhor cumpriu todas as
clara advertência contra lugares cultuais ilegítimos promessas feitas no passado (w . 2-11), o autor diz
e salienta a união de todas as tribos. Esse último ao povo que, se se apegarem novamente ao S enhor,
ponto encontra-se no conceito de culpa comunitária terão a terra de volta, porque o S enhor é fiel a pro­
expresso nos w . 17-20, onde se entende que a su­ messas passadas. Por meio de advertências especí­
posta traição das tribos orientais afeta todas as tri­ ficas no texto, 0 autor diz aos exilados como devem
bos e na razão dada pelas tribos orientais para a agir na situação atual.
construção do altar — como testemunho da união Depois que o S enhor deu aos israelitas descan­
das tribos orientais e ocidentais. so de todos os seus inimigos, Josué, na velhice,
Os vv. 10 e 11 não deixam claro se o altar foi convoca Israel para seu discurso de despedida (w.
construído na margem leste ou oeste do Jordão. 1-2). Relembra tudo que o S enhor fez pelo povo (v.
Para a história de Peor, c f Nm 25,6-18. O objetivo 3), menciona que, de acordo com as promessas fei­
da observação no v. 18 parece ser indicar que Is­ tas diante dos israelitas, o S enhor expulsará as na­
rael ainda está oferecendo sacrifícios para expiar ções das regiões a eles foram destinadas (w. 4-5) e
esse pecado. convoca o povo à obediência à Lei de Moisés (vv.
6-8). O povo deve evitar qualquer atividade que possa
até mesmo sugerir a existência dos deuses dos estran­
PARTE lil: geiros (v. 7). Depois 0 autor mais uma vez recorda
DESPEDIDA E MORTE DE JOSUÉ como o S enhor expulsou as nações diante de Israel
(v. 9) por fidelidade às promessas feitas no passado
Js 23,1-24,33 (v. 10) e convoca Israel a amar o S enhor ( v. 11).
23-24 Discurso de despedida de Josué. Em­ Josué ameaça Israel: se abandonar o S enhor e, de
bora estes dois capítulos tenham introduções sepa­ algum modo, aliar-se às nações estrangeiras (v. 12),
radas, juntam-se na edição final do livro como então o S enhor não mais expulsará as nações diante
última vontade e testamento de Josué. Percebendo dele e o abandonará às nações (v. 13). Israel deve
que seu fim está próximo, Josué reúne o povo para reconhecer que todas as promessas do S enhor foram
lembrar-lhes tudo que aconteceu e incentivá-lo a cumpridas (v. 14). Josué menciona que, como o
ser fiel à aliança. Também os adverte sobre as ter­ S enhor cumpriu todas as promessas feitas no passa­
ríveis conseqüências da revolta contra o S enhor. do, assim também cumprirá todas as ameaças, a sa­
Os dois capítulos devem ser vistos contra o pano ber, erradicar Israel da terra, se ele transgredir a
de fundo dos tratados do antigo Oriente Próximo. aliança (w. 15-16).
Os biblistas estão cientes de fortes paralelos entre a 24,1-28 Renovação d a aliança. Em contraste
maneira como a aliança do Sinai é apresentada no com 0 capítulo 23, este capitulo baseia-se em uma
Antigo Testamento e a forma dos tratados de vassa- tradição que contém lembranças autênticas de an­
lagem do antigo Oriente Próximo. Em geral, tais tigas cerimônias de renovação de alianças. A supo­
tratados continham estes elementos: introdução pes­ sição de que esta cerimônia de aliança data do fim
soal pelo soberano; relato de história, isto é, o que da vida de Josué baseia-se apenas no contexto, não
o soberano fez para o vassalo; condições que o vas­ no relato em si. Estes vv. relacionam-se estreita­
salo deve observar como resposta àquilo que o sobe­ mente com a cerimônia no monte Ebal, relatada
rano fez por ele; bênçãos e maldições pela fidelida­ em 8,30-35, e, do ponto de vista histórico, se adap­
de, ou falta dela, ao tratado; cooperação de testemu­ taria melhor naquele contexto do que no fim da
nhas e a exigência de que o tratado seja lido periodi­ vida de Josué.
camente diante do povo. Esses elementos dão forma Embora o texto possa ter origem em uma ce­
a estes capítulos, de diversas maneiras. rimônia passada, como a renovação da aliança do
23,1-16 Último apelo de Josué. Este capítulo Sinai da qual os siquemitas foram convidados a
entra na categoria de um discurso de despedida. participar, foi influenciado por cerimônias de reno­
Josué relembra o passado, em especial as ações di­ vação de alianças celebradas periodicamente em
vinas em benefício do povo, lembra o povo daqui­ Israel. Essas cerimônias, por sua vez, haviam sido
lo que Deus exige dele e daquilo que ainda precisa influenciadas pela forma dos tratados de vassalagem
ser feito. O discurso foi afetado pelo estilo do ser­ do antigo Oriente Próximo.
mão levítico, onde há muita repetição e uma mistura Josué reúne todas as tribos de Israel em Siquém,
de história, condições, maldições e •‘ênçãos. Nestes a fim de lhes falar (v. 1). Siquém, antigo centro
últimos elementos, vemos a influência dos antigos cultuai, ficava perto da atual cidade de Nablus,
tratados de vassalagem. cerca de 48 quilômetros ao norte de Jerusalém.
O capítulo é criação total do autor D e forma a Não há nenhuma informação disponível sobre como
conclusão à narrativa da conquista. O propósito do Israel assumiu o controle da região montanhosa
capítulo é explicar aos exilados por que perderam a central onde se localizava Siquém. E provável que
terra — por sua infidelidade ao S enhor, o que pro- a ocupação tenha sido pacífica. Josué agora dirige­
230 vocou a realização das ameaças divinas de destrui­ -se ao povo (vv. 2-15). A parte principal do discur-
JOSUE24

so é a recitação da história de Israel desde o tempo Em seu contexto atual, o propósito deste capí­
dos patriarcas até o período da conquista (w . 2­ tulo é claro. O autor está convocando os exilados
13). Josué salienta que o S enhor foi o responsável à fidelidade total ao S enhor, em resposta a tudo
por tudo que aconteceu. que 0 S enhor fez por eles. Assim como os primei­
O rio citado nos w . 2 e 3 é o Eufrates e a ros israelitas haviam se dedicado ao S enhor, tam­
montanha de Seir (v. 4) refere-se à região ao sul do bém agora os israelitas no exílio escolhem a quem
mar Morto. A terra dos emorítas (v. 8) é a região vão servir. Ao relatar a renovação da aliança, o
a leste do Jordão. Sobre Bileâm, cf. Nm 22-24. O compilador também deixa claro aos exilados que a
V. 14 contém as cláusulas da aliança; dedicação total aliança pode ser renovada outra vez, se Israel es­
ao S enhor por causa de tudo que fez por eles. O tiver disposto a se dedicar completamente ao S e­
V. 15 contém o desafio de Josué ao povo: decidi nhor , como fizeram seus ancestrais. A ameaça sobre
quem ides servir! A resposta do povo (w. 16-18) é a resposta do S enhor à infidelidade de Israel (w .
que, como familia de Josué, servirão ao S enhor, por 19-20) tem o propósito de lembrar mais uma vez
causa de tudo que fez por eles. aos israelitas que perderam a terra por causa de
Em resposta à advertência de Josué sobre as sua desobediência.
conseqüências da infidelidade (vv. 19-20), o povo 24,29-31 M orte de Josué. Depois de uma
reafirma sua dedicação (v. 21). Depois de se decla­ longa vida, Josué morre e é enterrado em Timnat-
rarem testemunhas (v. 22), o povo professa solene­ -Sérah, cidade efraimita que lhe fora dada por seus
mente sua disposição de servir ao S enhor em res­ serviços (19,49-50). O v. 31 serve de treinsição para
posta ao convite de Josué (vv. 23-24). Então é fir­ o livro dos Juizes.
mada a aliança, uma grande pedra é erguida para 24,32-33 Tradições de sepultamento. Outra
comemorar o acontecimento e o povo é dispensado pessoa acrescentou estas breves notas sobre o novo
(vv. 25-28). A função da pedra não está clara. É sepultamento dos ossos de José em Siquém (cf. Gn
possível que nela estivessem escritos os termos da 50,25; 33,19) e sobre o sepultamento de Eleazar,
aliança. contemporâneo de Josué.

231
JUIZES
John A. Grindel, C.M.

INTRODUÇÃO
Livro dos Juizes narra a história de bos individuais e por isso tinham limitada abran­
Israel entre a morte de Josué e a ele­ gência geográfica. Somente mais tarde os heróis
vação de Samuel. O centro do livro é foram transformados em libertadores do Israel todo.
uma compilação de histórias sobre Essas narrativas heróicas do folclore do povo tinham
vários heróis do passado de Israel — o propósito de entreter e edificar e foram reunidas
os juizes. Diversas tradições a respeito do período antes que o historiador deuteronomista (D) deci­
anterior à monarquia estão ligadas às histórias. disse fazer uso delas. (Sobre a obra do historiador
O livro divide-se em três partes: um prólogo deuteronomista, veja a introdução ao livro de Josué,
(1,1-2,5), histórias dos juizes (2,6-16,31) e um p. 217.)
apêndice que trata da migração da tribo de Dan e É provável que tenha sido D quem deu a esses
da guerra civil contra Benjamin (17,1-21,25). heróis a orientação pan-israelita. D também impôs
uma estrutura teológica às histórias dos juizes
O s ju izes maiores. Tal estrutura apresenta uma introdução que
O livro recebeu o nome em homenagem aos descreve como o povo pecou; como Deus permitiu
principais protagonistas que, segundo consta, “jul­ que o povo caísse nas mãos dos inimigos e como,
garam” Israel. O autor distingue entre os juizes quando o povo protestou, o S enhor enviou um
“maiores” e os juizes “menores”. Os juizes maio­ salvador para libertá-lo. Cada uma das histórias
res são chefes militares carismáticos, assunto de termina com uma nota sobre quanto tempo a terra
longas narrativas. Os juizes menores são aqueles ficou em repouso graças à libertação efetuada pelo
sobre os quais poucas informações são dadas além juiz-salvador. A estrutura D apresenta a chave para
dos nomes e da extensão de seu cargo. interpretar as histórias dos juizes, isto é, como o
O verbo hebraico normalmente traduzido por pecado leva ao castigo, mas o arrependimento à
“julgar” tem dois significados básicos: exercer a libertação.
função de juiz (no contexto de um tribunal ou de
um julgamento particular) e governar. Nenhum dos O propósito do Livro dos Juizes
juizes é jamais associado a qualquer função de O livro dos Juizes deve ser lido no contexto da
julgamento ou arbitragem, exceto Deborá (4,4-5); história deuteronomista. O propósito do autor é
mas isso foi antes de ser chamada por Deus. Mais apresentar uma teologia básica da história: o pecado
exatamente, os juizes maiores aparecem exercendo leva ao castigo, mas o arrependimento traz perdão
um papel especificamente militar e, às vezes, agin­ e libertação. Essa mensagem era dirigida ao povo
do como governantes civis. Não é dada nenhuma no exílio que havia pouco perdera sua terra. O
informação sobre a atividade dos juizes menores. autor explica-lhes que perderam a terra por causa
Outro titulo usado para vários juizes é “salva­ de sua pecaminosidade; mas, se agora se arrepen­
dor”, provavelmente titulo original de pelo menos derem e voltarem ao S enhor, este mais uma vez os
alguns juizes. Os juizes maiores são apresentados perdoará e libertará. Embora uma mensagem de
como carismáticos, isto é, pessoas escolhidas pelo esperança esteja presente, o livro como um todo
S enhor para livrar o povo da opressão. Todo poder mostra a intensificação progressiva do pecado do
dado a eles é considerado medida excepcional. povo. No primeiro capítulo é apresentada a oca­
sião deste pecado, a saber, Israel não expulsou da
Com posição do livro terra as nações com suas práticas idólatras. Ao
O livro é uma série de histórias sobre heróis avançarmos na leitura do livro, as consequências
israelitas que livraram o povo da opressão. Origi­ desastrosas dessa situação ficarão cada vez mais
nalmente, as histórias falavam da libertação de tri­ aparentes. 233
JUÍZES 1

Exatidão histórica raelita” foi introduzida em época mais tardia em


As tradições básicas sobre os juizes maiores, o histórias que originalmente falavam da libertação de
material sobre a conquista no capítulo 1 e os relatos um número limitado de tribos. A cronologia encon­
das atividades das tribos de Dan e Benjamin no trada no livro é diferente. Se somarmos os anos
apêndice são bastante antigas. Os redatores deutero- mencionados no texto, então o período dos juizes
nomistas ulteriores não reelaboraram de maneira sig­ abrangería 410 anos, tempo demais, pois a evidên­
nificativa essas histórias, limitando-se a acrescentar cia disponível coloca o período dos juizes entre
comentários no início e no fim delas e a inserir co- 1200 a.C. e 1050 a.C., aproximadamente 150 anos.
nectivos entre as histórias. Não há razão para negar Uma leitura atenta mostra de maneira clara que a
que as histórias baseiam-se em acontecimentos reais, cronologia do livro é estereotipada e artificial. D
embora cada tradição deva ser estudada separada­ impôs a cronologia para corroborar o comentário
mente em termos de sua historicidade. Só porque as em IRs 6,1 de que houve 480 anos entre o Êxodo
histórias são antigas não significa que possam ser e o início da construção do Templo de Jerusalém.
aceitas sem críticas como históricas. Embora o livro mostre os juizes em seqüência, na
Redatores mais tardios modificaram dois as­ realidade alguns dos maiores poderíam ter sido con­
pectos das histórias, ao lhes impor a perspectiva temporâneos. A cronologia em seqüência é exigida
“pan-israelita” e adotar uma cronologia artificial. para cada um dos juizes ser um libertador de todo
Como mencionamos acima, a perspectiva “pan-is­ Israel.

COMENTÁRIO
PARTE I: A CONQUISTA fornecer a base para a explicação em 2,1-5 da razão
pela qual os israelitas não conseguiram expulsar os
Jz 1,1-2,5 habitantes da terra de seu meio, a saber, porque de­
Essa parte apresenta uma visão da conquista sobedeceram ao S enhor, fazendo pactos com os ha­
da Palestina diferente da apresentada em Js 1-12. bitantes da terra e não destruindo seus altares. Con-
Aqui não está presente a idéia de uma conquista seqüentemente, o S enhor não expulsará essas nações
abrangente da Palestina por um exército de Israel do caminho de Israel, mas as deixará na terra para
unido. Ao contrário, a imagem é a de cada tribo, que possam se opor a Israel e seus deuses sejam uma
sozinha ou com uma ou duas outras, lutando para cilada para Israel (2,3).
conseguir um território próprio. Quando o livro começa, o redator parece pressu­
O capitulo não é uma composição literária por que Israel ainda está em Guilgal (cf Jz 2,1; Js
unificada, mas foi formado de tradições separadas, 4,19; 10,43; 14,6 e os comentários sobre Js 18,5).
muitas das quais são bastante antigas e vêm de Agora que a terra foi subjugada e dividida entre as
fontes diferentes das tradições usadas em Js 1-12. tribos (cf. Josué), é necessário que cada uma reivin­
O material foi organizado para descrever a ativida­ dique seu território. Consultam o S enhor para ver
de das várias tribos em uma linha de sul a norte. quem será o primeiro a atacar os canaanitas (1,1). A
O Israel aqui apresentado é incapaz de ocupar as resposta do S enhor é que Judá será o primeiro, e
planícies costeiras, tanto no sul como na parte cen­ Judá convida Simeão para se juntar a ele (1,2-3). Essa
tral do país, e de controlar a planície de Jezreel. Em associação mostra que a tribo de Simeão foi absorvi­
resultado, o povo fica afastado das grandes áreas da pela de Judá em um período bastante primitivo e
férteis da terra. Isso parece estar mais de acordo não tinha território próprio (cf. Js 19,1-9).
com a evidência arqueológica do que a imagem Os vv. 4-36 apresentam os sucessos e fracassos
apresentada em Josué. das diversas tribos. O fato de Judá ser apresentado
Entretanto, é importante entender que o redator primeiro e receber tanto espaço (vv. 4-20) mostra que
não introduziu esse material para contradizer nem 0 compilador pressupunha a proeminência da tribo
para corrigir a imagem em Josué, mas sim como de Judá. Judá é, em grande parte, bem-sucedido nos
relato das atividades da geração posterior à morte de combates com os habitantes da terra, mas não com­
Josué, porém durante a vida dos anciãos que lhe so­ pletamente (cf. vv. 18-20). Os perizitas (v. 4) faziam
breviveram. Isso fica claro pelo fato de 1,1-3, prove­ parte da população nativa da Palestina (cf. Js 17,15
niente de D, pressupor a visão singular da conquista e Gn 34,30). O incidente com Adoni-Bézeq, em
encontrada em Josué e a distribuição da terra relatada Bézeq, lembra a história de Adoni-Sédeq, em Js 10
em Js 13-22 e porque o material de Jz 2,10 se refere e talvez esteja relacionada a ela. A localização de
à geração posterior aos anciãos que sobreviveram a Bézeq é incerta. A mutilação de Adoni-Bézeq tem
Josué. O redator, então, introduziu esse prólogo como 0 propósito de humilhá-lo e tomá-lo incapaz de com­
preparação para a avaliação negativa do período en- bater no futuro. O v. 8, que trata da tomada de Jeru­
234 contrado em 2,1-5. Portanto, o capítulo 1 pretendia salém, parece ser uma inserção mais tardia e não
JUIZES 2

está de acordo com o v. 21. O material dos w. 10­ 2,6-9 Relato da m orte de Josué. Estes vv. são
15 é basicamente duplicata de Js 15,13-19 e tem o paralelos a Js 24,28-31, mas em seqüência diferen­
propósito de explicar por que os filhos de Otniel te. A repetição mostra que Jz 1,1-2,5 é inserção
tinham acesso aos reservatórios de água que deviam tardia no texto pelas razões já dadas e para propor­
pertencer aos kalebitas em Hebron. A referência aos cionar um plano de fundo para a compreensão da
qenitas no v. 16 explica a presença deles entre as pecaminosidade do povo e do julgamento deles pelo
tribos de Judá. Judá é in c ^ a z de assumir o controle Senhor como está descrito em 2,10-23. O relato da
da planície costeira meridional porque o povo de lá morte e do sepultamento de Josué é repetido aqui
tinha carros de ferro (w . 18-19). Os benjaminitas para mostrar que se uma nova era se inicia.
são mencionados em seguida (v. 21) por causa de 2,10-23 Introdução específica às histórias dos
sua estreita associação com a tribo de Judá. Jerusa­ juizes. Este material não está unificado. E bastan­
lém só será tomada quando David conquistá-la pes­ te repetitivo, com um conteúdo quase idêntico en­
soalmente. contrado nos vv. 11-17; 18-19; 20-23. É mais do
O compilador agora apresenta o ataque à parte que provável que o v. 10 e os vv. 20-23 eram origi­
central do país pela casa de José (vv. 22-29). Note nais e que D inseriu os vv. 11-19 posteriormente.
que a casa de José aparece tomando Betei, embora Seu propósito é mostrar a tremenda apostasia den­
a cidade tenha sido dada a Benjamin (Js 18,22). O tro de Israel durante o período dos juizes. Os deuses
propósito da história (vv. 22-26) é, provavelmente, dos habitantes nativos tomaram-se verdadeiramen­
mostrar como Israel fez pactos com os habitantes te uma cilada para Israel (veja 2,3), daí a necessi­
da terra. Os vv. 27-29 relatam que as tribos foram dade dos “salvadores”, os juizes. Os vv. deixam
incapazes de assumir o controle da planície costei­ claro que, apesar da libertação que será trazida
ra central, nem da planície de Jezreel. Estes vv., pelos juizes, ninguém deve ser levado a pensar que
junto com as referências aos fracassos no norte os israelitas arrependeram-se verdadeiramente de
(vv. 30-35), são relatados Oomo exemplos da manei­ sua pecaminosidade. Ao contrário, o período todo
ra como Israel pecou, morando no meio dos habi­ é descrito como época de apostasia sempre cres­
tantes originais da terra, em vez de expulsá-los. cente (2,19).
Observe que não se diz que não puderam expulsar O autor menciona que uma nova era começou.
os nativos, mas sim que não os expulsaram; em vez Há agora uma geração que não conheceu nem as
disso, impuseram a corvéia aos nativos. obras salvíficas do S enhor em benefício de Israel,
Em 2,1-5, o compilador dá a razão para o es­ nem a Lei da Aliança (v. 10). Ao contrário servi­
boço do capítulo 1, a saber, explicar por que, nas ram ao deus pagão Báal e as Astartes (forma plural
histórias que se seguem, Israel não conseguirá ex­ para indicar diversas manifestações da deusa
pulsar os habitantes nativos da terra: porque o S e­ Astarte), abandonando o Deus de seus pais que os
NHOR não estará com eles, pois foram desobedientes tirara do Egito, dessa forma provocando o S enhor
(veja Js 23,12-13). Estes w ., compostos por D, são (vv. 11-12). Báal e Astarte (v. 13) eram a personi­
a chave para a seção toda e transmitem mensagem ficação do culto idólatra canaanita. O uso do plu­
elara para os exilados. D explica que perderam a ral “Baalim” e “Astartes” não indica muitas divin­
terra porque foram desobedientes e não cumpriram dades, mas sim as várias formas locais delas.
as exigências da reform a de Josias (veja 2Rs Esse abandono encoleriza o S enhor e, assim,
22,1-23,30). A localização de Bokim é incerta. Mui­ este permite que o povo caia em poder nos inimi­
tos biblistas supõem que o texto original trazia ori­ gos (vv. 13-15; veja Js 23,11-13). Mesmo quando
ginalmente “Betei” (veja 20,18.26; 21,2). A mudan­ o S enhor suscita juizes para libertá-los, o povo
ça para “Bokim” em 2,1 confirma a etiologia de não os ouve nem segue seu exemplo de obediência
2,5, onde está explicado que o lugar recebeu o nome e continua a cultuar outros deuses. E quando o juiz
de Bokim (os chorões) porque o povo chorou ali. O morre o povo reincide e faz ainda pior do que
antes (vv. 16-19). Muitos biblistas aereditam que
anjo ou “mensageiro” do S enhor é o enviado do
D inseriu os vv. 11-19 aqui para servirem de intro­
S enhor, que fala em nome do Senhor.
dução às histórias dos juizes e que neles se encon­
tram os elementos da estrutura teológica para as
II PARTE: O S JUÍZES histórias, isto é, a pecaminosidade do povo, a có­
lera do S enhor contra o povo e sua permissão para
Jz 2,6-16,31 que eaíssem nas mãos dos inimigos, o pranto do
2,6-3,6 Introdução. Estes vv. proporcionam povo e a libertação pelo S enhor. Note, entretanto,
uma introdução específica para as histórias dos que o terceiro elemento da estrutura, o pranto do
juizes. Várias mãos participaram da formação des­ povo, só é mencionado de passagem (v. 18). Note
te texto que se divide em três partes: o relato da também que o pranto do povo não é de arrependi­
morte de Josué (2,6-9); a introdução específica ãs mento, mas apenas de dor e aflição (mas veja 10,6­
histórias dos juizes (2,10-23) e uma lista das na­ 16). O S enhor parece mais comovido pelo sofri­
ções que restaram no meio de Israel (3,1-6). mento do que pelo arrependimento do povo. Aqui 235
JUIZES 3

são revelados o am or e a dedicação do S enhor S enhor atiça um opressor, o povo clama e o S enhor
pelo povo. envia um salvador (vv. 12-15). A história é cheia de
A pecaminosidade do povo é tão grande, entre­ humor. O opressor é “Eglon”, que significa alguma
tanto, que o Senhor precisa julgá-lo; assim, o Se­ coisa semelhante a “touro jovem” ou “novilho gordo”
nhor jura não expulsar mais nenhuma das nações (cf. o v. 17). Este rei de nome ridiculo é assassinado
que Josué deixou quando morreu. Essas nações porão pelo benjaminita canhoto (literalmente, Benjamin
os israelitas à prova e farão com que demonstrem significa “filho da mão direita”) e o rei é tão gordo
novamente sua fidelidade ao S enhor ( w . 20-23). que o punhal de 30 cm se perde em seu ventre. A
A mensagem em tudo isso para os exilados é história tripudia sobre eomo o herói israelita vence
clara: Israel perdeu a terra por causa da contínua em esperteza o opressor e seus guardas. Em resulta­
infidelidade à aliança. Entretanto, ainda há espe­ do da libertação por intermédio de Ehud, a terra
rança porque, assim como o Senhor respondeu aos fica em repouso por oitenta anos (v. 30).
gritos de desgraça do povo no passado, poderá fa­ Moab (v. 12) está situada na margem sudeste do
zê-lo de novo agora. Além disso, a idéia de prova mar Morto. Aqui o rei de Moab aparece em aliança
enfatizada no v. 22 deixa uma porta aberta para os com 0 povo do norte (os emoritas) e com nômades
exilados — talvez possam passar na prova. A úni­ do sul (os amalequitas). Entretanto, o cenário para a
ca coisa que fica bastante clára com essa passa­ história é a margem oeidental do Jordão nas cerca­
gem é que a salvação divina é uma dádiva; não é nias de Jericó (v. 13), confirmado pela referência ao
uma resposta mecânica a uma ação por parte do “fresco quarto de cima” (v. 20), apropriado à área
povo. nem mesmo um ato de arrependimento (cf. deserta em volta de Jericó. A localização de Seirá (v.
10,10-17). 26) é desconhecida. Confusos pela descoberta do rei
3,1-6 As nações que restaram. Estes w. dão morto, os moabitas tentam atravessar o Jordão e voltar
duas listas das nações que permaneceram no meio para casa; mas os israelitas estão prontos para eles
de Israel, além de reflexões mais tardias sobre a nos vaus (vv. 26-29). Originalmente, a história tratava
razão pela qual o S enhor as deixou. A clássica lista apenas da tribo de Benjamin nas cercanias de Jericó
das nações que viviam na Palestina antes da con­ (v. 13, “cidade das Palmeiras”).
quista está no v. 5 (cf. Js 3,10). Os “cinco tiranos 3,31 Shamgar. Tanto a origem como a razão
filisteus” (v. 3) refere-se às cinco cidades habitadas dessa referência a Shamgar são incertas. A refe­
pelos filisteus (não-semitas que entraram na Pales­ rência não tem paralelo nem nas histórias dos juizes
tina mais ou menos ao mesmo tempo que os israe­ maiores, nem nas referências aos juizes menores.
litas) na planície costeira meridional. As razões acres­ Além disso, parece ser uma inserção tardia, já que
centadas para o S enhor deixar as nações no meio de 4,1 parece seguir-se diretamente a 3,30. A referên­
Israel (3,1-2) têm o propósito de ser mais benevo­ cia aos filisteus como inimigos de Israel é estranha
lentes do que as vistas anteriormente. aqui, pois eles só se tomaram problema para Israel
3,7-11 Otniel. Este relato sobre o primeiro dos no fim do período dos juizes. A morte dos filisteus
juizes parece ser elaborado por D e apresenta um com uma aguilhada lembra as façanhas de Sansão
exemplo ideal da teologia de D. Por causa da na­ (15,14-17). Shamgar não parece ser nome semítico
tureza generalizada da história, é dificil atribui-la e há quem suponha ser ele realmente um canaanita
a algum tempo e lugar. Sendo tão breve, ajuda-nos que derrotou os filisteus e, assim, libertou Israel.
a entender com clareza os elementos básicos da teo­ 4.1- 531- Deborá e Baraq. A história de Deborá
logia histórica de D. e Baraq é contada duas vezes. O capitulo 4 é um
Esquecendo o S enhor, Israel serve aos Baalim relato em prosa e o capítulo 5 contém um poema
e às Asherás (v. 7). Isso inflama a cólera do S enhor, que celebra a mesma vitória. Ambos os textos tra­
que entrega o povo ao poder de Kushan-Rishatáim, tam de um combate entre Israel e uma coalizão for­
rei de Arâm-dos-Dois-Rios. Quando o povo clama te, talvez formada por canaanitas e filisteus, perto
ao S enhor, este envia-lhes um salvador, Otniel, fi­ da torrente do Qishon, no vale de Jezreel, nas vizi­
lho de Qenaz, irmão mais novo de Kaleb (cf. Js nhanças do monte Tabor, mas o capítulo 5 locali­
15,17). Aqui são vistas em toda sua simplicidade za-a mais para o sudoeste do vale.
as fórmulas introdutórias estruturais de D. A locali­ 4.1- 24 A narrativa em prosa. A narrativa em
zação de Arâm-dos-Dois-Rios é desconhecida. O prosa começa com o quadro estrutural costumeiro de
espírito do S enhor que desce sobre os juizes nessas D (vv. 1-3). Desta vez o opressor é o rei de Canaã,
histórias significa um poder ou força impessoal labin, que reina em Hasor e tem um general chama­
que envolve de tal forma a pessoa que ela se toma do Siserá, que mora em Harôshet-Goim. O verda­
capaz de feitos extraordinários. O v. 11 apresenta deiro protagonista é Siserá e a menção a labin pa­
a fórmula de conclusão normal de D. rece secundária, referência talvez relacionada a Js
3,12-30 Ehud. Na história de Ehud percebe­ ll ,l s . A localização de Harôshet-Goim é incerta,
mos, pela primeira vez, a existência de uma tradição mas devia ser na parte setentrional da Palestina.
antiga adotada e usada pelo redator. A história co- Os w . 4-7 relatam a chamada de Baraq por
236 meça eom o quadro estrutural de D: Israel peca, o intermédio de Deborá e a reunião por ele das tri-
JUIZES 6

bos de Zabulon e Neftali para o combate. Deborá louvor especial a Zabulon e Neftali. Os vv. 19-22
é descrita como profetisa e alguém que o povo descrevera o combate. Por trás dos vv. 20-22 há a
procurava para julgamentos (vv. 4-5). E uma juíza, idéia de uma tempestade repentina que apanhou e
então, no sentido forense. Ramá e Betei estão a atolou os carros de Siserá, de modo que seu exér­
apenas alguns quilômetros ao norte de Jerusalém. cito foi derrotado facilmente.
As ligações tribais de Deborá não são claras. Os eventos que cercam a morte de Siserá são
Embora julgue nas regiões montanhosas de Effaim, relatados nos vv. 23-30. Primeiro, a cidade de Meroz
é ligada aqui com as tribos de Zabulon e Neftali. é amaldiçoada porque, ao contrário de lael, não
Baraq é de Qédesh, ao norte de Hasor, no territó­ ofereceu nenhuma ajuda a Israel, talvez ignorando o
rio da tribo de Neftali. O número de dez mil ho­ Siserá em fuga. Os vv. 24-27 descrevem alegremente
mens (v. 10), de apenas duas tribos, parece ser um a morte de Siserá nas mãos de lael. Este relato é um
exagero. pouco diferente do que é narrado em 4,21. Aqui lael
O v. 11 atua como nota de rodapé a fim de parece agredir Siserá enquanto este tomava o leite.
preparar para o v. 17, explicando como um grupo Os vv. 28-30 relatam em tom irônico a preocupação
de qenitas, que deveriam estar bem mais para o da mãe de Siserá com a demora de sua volta e a
sul, encontravam-se nesta região. resposta que ela recebe da mais sábia de suas prince­
O combate propriamente dito é descrito nos sas. O V. 31 resume a teologia do poema e apresenta
vv. 12-16, mas o relato dá poucos detalhes. Deus a parte final da estrutura D.
é considerado responsável por tudo que acontece. Para os exilados, o episódio de Deborá e Baraq
Só o S enhor é merecedor de glória. é forte motivação de esperança e confiança no
O assassinato de Siserá (vv. 17-22) é flagrante S enhor , que destrói os inimigos de Israel e conce­
violação da lei de hospitalidade. Parece também de liberdade da opressão, bastando para isso que
que Hasor e o clã de Héber, o qenita, tinham uma Israel clame a ele.
aliança mútua! Por alguma razão, lael, mulher de 6,1-8,28 Guideon. Estes capítulos reiteram o
Héber, decide ficar do lado dos israelitas. Os vv. ciclo básico de pecado, castigo, arrependimento e
23-24 são a conclusão normal de D, embora parcial. libertação. Desta vez são os midianitas que opri­
D adia a referência cronológica final até 5,31, para mem Israel e o salvador enviado pelo S enhor é
apresentar os capítulos 4 e 5 como uma unidade. Guideon. Guideon destrói o altar de Báal em Ofrá
5,1-31 O Cântico de Deborá. Considerado um e, em seu lugar, ergue um altar ao S enhor, e recebe
dos textos bíblicos mais antigos, devido à idade e um novo nome, lerubáal. Com um punhado de ho­
à condição do texto, esse poema é sabidamente di­ mens alcança grande vitória sobre os midianitas,
fícil. O significado de muitas palavras hebraicas mas não aceita ser soberano, como querem os ho­
primitivas é incerto e alguns vv. são quase incom­ mens de Israel. Embora a narrativa pareça basi­
preensíveis. Além disso, as ligações com o capí­ camente clara e consistente, há dentro dela muitas
tulo 4 nem sempre são claras. Em sua forma atual, tensões. Primeiro, há o duplo nome do herói, Gui­
o poema é um cântico de louvor ao S enhor, o Deus deon e lerubáal. Segundo, o capítulo 6 é obviamente
do Sinai e da Conquista, por aquilo que realizou formado de uma série de tradições diferentes (6,11­
por intermédio de Deborá e Baraq. 24; 25-32; 33-35; 36-40). Há significativa tensão
Originalmente, o v. 1 pode ter estado ligado entre 6,33-35, em que todas as tribos estão reuni­
diretamente à oração do v. 31, antes de o cântico das, e 7,3-6, em que, quase imediatamente, a maio­
ser inserido. O v. 2 introduz o assunto do cântico, ria é mandada de volta para casa por razões pura­
a saber, os chefes de Israel e os nobres feitos do mente teológicas. Em 8,1-3, Efraim está zangado
povo, isto é, 0 que foi realizado por Deborá e Baraq. com Guideon porque ele não os convocou, mas isso
O v. 3 é um convite para que escutem este hino ao parece diretamente oposto ao que é dito em 7,24s.
Deus de Israel. Os vv. 4-5 lembram como o S enhor Por fim, Guideon é apresentado não só como defen­
conduziu Israel à Palestina, com o acompanhamento sor do povo, mas também como um homem resol­
de uma série de acontecimentos cósmicos. Os vv. vido a vingar a morte de irmãos. Tudo isso sugere
6-8 descrevem a situação antes de Deborá: não era que os capítulos são um conjunto de tradições ori­
seguro viajar nas estradas, o povo adorava deuses ginalmente independentes que foram organizadas
novos e Israel estava desarmado diante de exérci­ em um bloco contínuo, mas sem habilidade sufi­
tos estrangeiros. Os vv. 9-11 fazem outro convite ciente para livrar as histórias de todas as inconsis­
para cantar sobre os chefes de Israel e sobre o tências. Originalmente, muitas das histórias diziam
S enhor . Os vv. 12-18 descrevem a reunião das tri­ respeito apenas à família de Abiézer, da tribo de
bos para o combate prestes a acontecer. O v. 12 Manassés, mas, mais tarde, fizeram-nas referir-se
descreve o chamado geral para Deborá e Baraq a todo Israel.
reunirem as tribos. A reunião das tribos está des­ Em sua maioria, os biblistas aceitam a histori-
crita no V. 13 e os vv. 14-17 descrevem as tribos cidade da opressão dos israelitas pelos midianitas,
que responderam de forma positiva ao convite do povo da região do deserto a sudeste da Palestina.
S enhor e as que não o fizeram. No v. 18 é dado Gn 25,2ss. menciona que Midian era um filho de 237
JUfZES 6

Abraão enviado para o leste, para que não interfe­ consome a oferenda de um jeito especial. Consa­
rissem na herança de Isaac. Não está claro aqui se grado pelo fogo do rochedo, Guideon aí constrói
os capítulos descrevem apenas ataques isolados, o um altar ao Senhor e o chama “O Senhor é paz”
deslocamento de tribos seminômades para áreas (vv. 22-24). “Shalom” é palavra complexa, que ex­
cultivadas em determinadas épocas do ano ou uma prime idéias de paz, colaboração e acordo entre as
invasão em larga escala, semelhante à invasão da partes. A idéia de que ver o Senhor pode ser fatal
terra por Israel. Essa questão não pode ser resolvi­ (v. 22) encontra-se diversas vezes no Antigo Testa­
da, mas o que está claro é que o redator estava mento (p. ex. Ex 19,21; 33,18-23).
mais interessado em apresentar uma mensagem A história da destruição do altar de Báal e da
teológica aos exilados do que em relatar um evento construção de um altar apropriado ao Senhor (vv .
político e militar. 25-32) é uma variação da história anterior. O reda­
Esses capítulos dividem-se em quatro partes tor incluiu-a aqui por duas razões: mostrar que
principais; a vocação de Guideon (6,1-40); a derrota Guideon só pode esperar derrotar os inimigos de
dos midianitas (7,1-8,3); a perseguição dos reis dos Israel se eliminar o culto dos deuses estrangeiros e
midianitas (8,4-21) e a oferta de realeza (8,22-28), explicar o outro nome de Guideon, seu nome “báal”,
6,1-40 A vocação de Guideon. A história de “lerubáal”, que tem a explicação ligada à reação
Guideon começa com a estrutura padrão das histó­ do povo à demolição do altar de Báal por Guideon.
rias dos juizes. A opressão midianita é descrita como Querem que o pai de Guideon, loash, entregue-o
muito grave e difundida, estendendo-se da Palestina para que o matem (vv. 28-30). A resposta de loash
central e setentrional até o sudoeste. Junto com outros (v. 31) é que todo aquele que defender Báal, agin­
povos nômades, os amalequitas e os filhos do Orien­ do contra Guideon sem a autorização de Báal, tam­
te, os midianitas estavam rápida e indiscriminada­ bém será morto e, se Báal é realmente Deus, que
mente saqueando o campo. Os israelitas foram força­ ele mesmo defenda sua causa. O segundo nome de
dos a procurar esconderijos, onde estabeleceram uma Guideon é um trocadilho com a palavra hebraica
série de refúgios e inventaram um sinal para avisar que significa “litigar, tomar uma atitude contra, pro­
cessar”. Portanto, seu nome significa algo como
a aproximação dos midianitas (vv. 2-5). Reduzidos
“que Báal processe” ou “tome uma atitude” .
a completa miséria, os israelitas clamam ao Senhor
Os vv. 33-40 formam a transição para o com­
(v. 6). Agora aparece um novo elemento: em resposta
bate contra os midianitas descrito no capítulo 7. Os
ao clamor de Israel, o Senhor envia um profeta para
midianitas e seus aliados atravessam o Jordão, vin­
lembrar o povo de tudo que o Senhor fez por ele e
dos do deserto, em um de seus ataques e assumem
como o Senhor lhe ordenara para não venerar os
o controle da planície de Jezreel (v. 33). Original­
deuses pagãos dos emoritas. Mas Israel desobedeceu
mente, a história tratava apenas da família de Gui­
e, na verdade, cultuou os deuses pagãos. O propó­ deon e da família de Abiézer, da tribo de Manassés,
sito destes vv. (7-10) é a acusação de que, pela deso­ mas em alguma etapa da compilação do material
bediência, os israelitas provocaram o próprio sofri­ tomou-se uma história sobre todo Israel. Por isso, as
mento, mensagem importante para o público do livro, referências aqui às tribos de Aser, Zabulon e Neftali
isto é, os exilados. são secundárias. Antes de entrar em combate, Gui­
A vocação de Guideon é relatada no que pare­ deon busca a certeza da aprovação divina por meio
cem ser duas tradições divergentes, nos vv. 21-24 de um oráculo (vv. 36-40). Os oráculos antes do
e 25-32. A primeira é uma lenda cultuai que explica combate são comuns no Antigo Testamento ( c f , por
as origens do santuário em Ofrá e mostra Guideon, ex., 4,6-7; Js 6,2-5; 7,10-15; 8,1-2). Talvez o uso do
um agricultor, batendo o trigo em um lagar, a fim velo fosse prática aceita. Guideon pede uma segunda
de escondê-lo dos saqueadores. Um anjo do Senhor prova, porque a primeira pode ter sido inconclusa,
aparece a Guideon e convoca-o para salvar o povo isto é, porque o velo poderia ter recebido orvalho,
(v. 12). Aqui, como em outras passagens do Antigo embora o chão parecesse seco.
Testamento, o anjo representa o Senhor e é permu­ 7,1-8,3 Derrota dos midianitas. Convencido da
tável com o Senhor .Obviamente sem ter consciên­ aprovação divina para entrar em combate, Guideon
cia das explicações do profeta nos vv. 7-10, Guideon acampa em uma colina acima do acampamento dos
contesta a saudação do anjo com um comentário midianitas. Os detalhes topográficos no v. 1 não es­
sarcástico, afirmando que em vez de estar com ele, tão muito claros, mas parece que as forças oponentes
0 S enhor abandonou o povo (v. 13). Apesar do estavam acampadas no extremo sudeste da planície
sarcasmo de Guideon, o Senhor o envia para salvar de Jezreel. Embora o Senhor não dissesse nada quan­
Israel (v. 14) e assegura-lhe o sucesso porque “Eu do Guideon reuniu suas tropas (6,34-35), agora lhe
estarei contigo” (vv. 15-16). Esta troca de palavras diz para reduzir o tamanho de seu exército, para que
reforça a idéia de que só Deus é responsável pelo os israelitas não recebam o crédito pela vitória futura
que está prestes a acontecer (cf o cap. 7). Não sa­ O propósito de 7,1-8 é mostrar que o Senhor é o
tisfeito ainda, Guideon pede um sinal, que o Senhor responsável pela vitória contra os midianitas. A his­
238 dá (w. 17-21). Aqui, o sinal é cultuai: a divindade tória original descrevia a vitória de apenas trezentos
JUiZES 8

filhos de Abiézer contra os midianitas. Mais tarde, tribo mais importante da época. Com boa diploma­
quando a vitória foi atribuída a todo Israel, os reda­ cia oriental, Guideon acalma os efraimitas, citando
tores aproveitaram a oportunidade para afirmar que um provérbio que diz como a família de Abiézer rea­
Deus concedera a vitória, fazendo Guideon man­ lizou pouco em comparação com o que fez Efraim
dar todos os guerreiros para casa, exceto trezentos. (vv. 2-3).
Há duas reduções de tropas (vv. 3-6). A natureza 8,4-21 A perseguição dos reis midianitas. Aqui
do teste nos vv. 4-6 é incerta. Por que escolher os o foco passa das ações de Deus às de Guideon. O
soldados que lambem a água com a língua, como Senhor não aparece nesse capítulo, exceto por uma
cães? Talvez tenha sido um teste arbitrário para referência no discurso de Guideon (vv. 7.19). O re­
fornecer um meio pelo qual Deus pode escolher. O dator só pode ter querido mostrar o que aconteceu
v. 8 explica como os trezentos conseguem cântaros a Guideon. Não é uma imagem lisonjeira.
e trompas suficientes para usar na estratégia de com­ A passagem começa com um retrospecto da si­
bate (cf. os vv. 16-22). tuação em 7,22, com Guideon perseguindo os mi­
Conhecendo a necessidade que Guideon tem dianitas em fuga. Sukot e Penuel eram cidades no
de contínuas garantias de sucesso, o Senhor agora vale do Jordão, mas a leste do rio. A referência aos
toma a iniciativa e lhe diz para se esgueirar até o dois reis midianitas no v. 5 é surpreendente, já que
acampamento midianita com seu servo e ouvir o não houve nenhuma menção anterior a eles. Parece
que dizem (vv. 9-11). Em contraste com a fiaqueza que 8,4-12 é uma variante de 7,22-8,3. Os nomes dos
e o temor de Guideon, o que é revelado é o poder reis estão deturpados e significam algo como “vítima
do Senhor .O que Guideon ouve é um homem con­ sacrifical” e “proteção negada”, referências óbvias
tando a outro seu sonho (vv. 13-14). O propósito ao que lhes vai acontecer. Os ocupantes de Sukot e
da migalha de pão que simboliza Israel é mostrar Penuel não estão muito convencidos de que Guideon
como ela é pequena e inadequada em relação ao vai sair vitorioso e, assim, não estão prontos a ajudá-
que é capaz de fazer. Mais uma vez, é demonstra­ lo, para mais tarde não sofrer represálias dos midia­
do que o Senhor será o responsável pela vitória. nitas (vv. 6-8).
Os vv. 16-22 descrevem o ataque contra os mi­ Guideon captura os dois reis quando eles fogem
dianitas. Note-se que Guideon e seus homens não de um ataque de surpresa a seu acampamento (w.
se envolvem em nenhuma luta; em vez disso, é o 10-12). A localização de Qarqor é incerta, mas pode
S enhor que joga os midianitas uns contra os outros ter sido o acampamento central do qual os midiani­
(v. 22). Israel dividiu a noite em três vigílias de tas faziam ataques periódicos à Palestina. Não há
quatro horas cada. O ataque começa no início da proporção real nos vv. 13-17 entre o crime e o cas­
vigília da meia-noite (v. 19). É difícil imaginar tigo. Obviamente, Guideon está tentando enviar uma
como os soldados israelitas podiam simultanea­ mensagem aos outros habitantes da área Os “anciãos
mente realizar as ações descritas nos vv. 19-20. É da cidade” (v. 16) eram os governantes quando não
mais provável que diversas tradições diferentes havia rei.
tenham sido combinadas aqui. Amedrontados pela Os w . 18-21 surgem como verdadeira surpresa,
repentina explosão de luz ao redor de seu acampa­ mas explicam por que Guideon estava perseguindo
mento e pelo barulho provocado pela quebra dos os dois reis midianitas, a saber, vingança de sangue.
cântaros, pelas trompas e pelos gritos, os midianitas Eles haviam matado seus irmãos de sangue, por
entram em confusão e fogem para o leste e o rio isso agora devem ser mortos. Nada é conhecido do
Jordão. incidente em Tabor (v. 18) que deu origem a essa
Mais uma vez Guideon reúne as tribos para o vindita.
combate e as envia aos vaus do rio para interceptar 8,22-28 O ferta de realeza. Originalmente (vv.
os midianitas em fuga, enquanto eles tentam atra­ 22-23), a realeza não teria sido oferecida a Guideon
vessar o Jordão. Do ponto de vista logístico, esse por todo Israel, como apresentado aqui, mas por
procedimento de Guideon não faz muito sentido. um grupo mais limitado ou uma determinada cida­
Ele reúne todas as tribos e manda todas para casa, de. Como bom seguidor do Senhor ,Guideon recu­
com exceção de trezentos homens. Então, quase sa a oferta e afirma um princípio javista ortodoxo;
imediatamente, volta atrás e convoca as outras tri­ o Senhor seja vosso soberano. Embora Guideon
bos de volta, o que levaria algum tempo e não é recuse o título de rei, 8,24s. e 9,2s. deixam claro
compatível com a velocidade necessária para al­ que ele aceita o poder sobre o povo e exige os or­
cançar os vaus do rio presumida pelo texto. Essa namentos de um juiz. O efod feito dos despojos era
tensão no texto resulta da transformação daquilo objeto cultuai usado para obter oráculos (cf. Ex
que originalmente era a vitória de uma única tribo 28,15-30). Este efod tomou-se objeto de prática
em uma vitória de todo Israel. A convocação de idólatra, prática na qual o redator põe a culpa pela
Efraim no v. 24 não se encaixa bem com a queixa queda final da família de Guideon (cf o cap. 9).
de Efraim em 8,1-3. Aparentemente, os effaimitas Note-se como o redator salienta que “todo” Israel
queixam-se de ter sido convocados muito tarde para prestou homenagem idólatra ao efod (v. 27). A
o combate. O texto pressupõe que Efraim era a pecaminosidade de Israel continua. 239
JUÍZES 8

8,29-9,57 Abimélek. Embora haja algumas ten­ por intermediários, os irmãos de sua mãe que ali
sões nesse material, a maior parte da história pros­ moravam (9,1-3). Os “proprietários”, as pessoas
segue com uma série de cenas definidas com cla­ proeminentes de Siquém que formavam uma as­
reza. Abimélek, um dos filhos de Guideon, con­ sembléia eívica, tinham o poder de nomear um rei.
segue fazer-se aceito como rei da cidade de Siquém, Por trás da história está o fato de que, embora
matando todos seus irmãos, exceto um, lotâm, que Guideon não aceitasse a realeza, depois de sua mor­
invoca uma maldição sobre a cidade e Abimélek. te seus filhos exerceram considerável influência, e
Logo se cria tensão entre Abimélek e os proprietá­ os proprietários de Siquém estavam descontentes
rios de Siquém e inicia-se um conflito militar, em com tal situação. Dispõem-se, então, a dar a Abi­
conseqüência da conspiração chefiada por um ho­ mélek o dinheiro para contratar vagabundos e aven­
mem chamado Gáal. Abimélek é vitorioso, mas é tureiros para matar seus irmãos (vv. 4-5). A refe­
uma vitória vazia. Ao sufocar a revolta, ele destrói rência a “de uma só vez” (v. 5) sugere uma execu­
a cidade, elimina os proprietários e é morto. Não ção pública no mesmo lugar. 70 é um número re­
há nenhuma razão para negar a historicidade do dondo que significa muitos. Sobre o terebinto (car­
que é aqui narrado. Siquém ficava na fronteira valho) sagrado de Siquém, c f Gn 12,6; Dt 11,30;
meridional do território da tribo de Manassés, no Js 24,26.
planalto central e no século XII se tomara parte da A fábula de lotâm (vv. 7-15) foi encaixada aqui
confederação israelita. A arqueologia confirma uma pela adição do v. 15 e reflete a forte rejeição da
destruição da cidade no fim do século XII. instituição da monarquia. Embora a oliveira, a fi­
A história de Abimélek não se enquadra no gueira e a vinha sejam árvores típicas e apreciadas
padrão de outras histórias dos juizes maiores. Pri­ na Palestina, o espinheiro, à parte o fato de produzir
meiro, Abimélek não é retratado como herói que belas flores na primavera, parecia inútil aos antigos
salva Israel da opressão. Segundo, falta o quadro e verdadeira praga por causa dos espinhos. O pro­
estrutural de D, exceto pela afirmação inicial sobre pósito da fábula é mostrar que só os piores e menos
o pecado de Israel. Essa passagem (8,33-35), junta­ qualificados estão dispostos a aceitar a coroa. O
mente com a conclusão (9,56-57), fornece a chave discurso de lotâm (vv. 16-21) é dirigido aos proprie­
para entender a história. Em 8,33-35, Israel é acu­ tários de Siquém que não agiram de forma honrosa
sada de pecaminosidade e de ser ingrato à familia ao fazer Abimélek rei, e ele pronuncia uma maldi­
de lerubáal-Guideon; em 9,56-57, encontramos a ção contra os proprietários e Abimélek. Os vv. 17­
explicação da história: é mostrado como Deus se 18 são uma adição posterior ao texto, para explicar
vinga do mal que Abimélek fizera e dos homens a afirmação do v. 16.
de Siquém que se voltaram para a idolatria e des­ Depois de apenas três anos, os proprietários
truiram a família de Guideon. Em outras palavras, de Siquém se rebelam contra Abimélek. O autor
a história é sobre a pecaminosidade e o castigo de atribui isso â ação de Deus (v. 23), para iniciar a
Israel. Como vem imediatamente após a recusa da sucessão de acontecimentos que levam à destrui­
coroa por Guideon, a história de Abimélek se des­ ção de Siquém e à morte de Abimélek. A assem­
taca como 0 conto do filho mau que aceitou a bléia cívica podia nomear o rei e também depô-lo.
coroa — de fato, procurou-a. A história tem tam­ O que realmente leva à fase decisiva é a chegada
bém forte sentimento antimonarquista. A ênfase no de Gáal, que instiga uma rebelião em larga escala
pecado e no castigo destina-se especialmente aos contra Abimélek (vv. 26-29).
exilados: a razão da destruição de Jerusalém e da Quando Abimélek fica a par disso por intermé­
perda da terra no tempo deles é sua pecaminosi­ dio do governador da cidade, chega com seu exér­
dade, em especial o culto de deuses estranhos. cito e derrota Gáal (vv. 30-40). Note que Abimélek
A ênfase em todo Israel na história é clara­ não reside em Siquém, mas em Arumá, cidade
mente secundária, isto é, acrescentada depois do próxima. Tabur-Haares significa “Umbigo da Terra”
fato. Abimélek nunca reinou sobre todo Israel, mas e Elon-Meonemim significa “Carvalho dos Adivi­
somente sobre a cidade-estado de Siquém e seus nhos”. Referem-se a lugares próximos a Siquém.
territórios. Depois que Gáal é derrotado, Zebul não lhe permite
A descrição dos filhos de Guideon e a nota continuar a usar Siquém como base de operações
sobre a morte de Guideon em 8,29-32 atuam como e ele desaparece. No dia seguinte, Abimélek volta e
transição para a história de Abimélek. A concubina arma uma emboscada contra a população de Siquém
é mulher legítima, mas de segunda categoria. O que foi ao campo verificar os estragos em suas
deus Báal-Berit (v. 33) era a divindade padroeira plantações. Semear sal sobre um local (v. 45) é um
de Siquém. Ao aceitá-lo, o povo voltou à forma antigo rito de maldição. Pelos vv. 46-49, ficamos
pré-israelita de governo conhecida em Siquém, a sabendo que Abimélek destruiu apenas a parte baixa
monarquia. A rejeição do Senhor é também a rejei­ da cidade. A cidade alta ficava sobre uma plata­
ção de um sistema sociopolítico. forma artificial que sustentava o palácio do gover­
Como Abimélek não tinha direito de governar nador e o templo de Báal-Berit (também conhecido
2 40 a cidade, teve de abordar os proprietários de Siquém como Bet-Milõ; veja os vv. 6.20). Os proprietários
JUIZES 11

restantes refugiam-se na caverna do templo de (v. 16). O autor está dizendo aos exilados o que se
El-Berit. O verdadeiro significada da palavra espera deles.
traduzida aqui por “caverna” é desconhecido. Al­ Desta vez os opressores são os amonitas, que
guns gostariam de traduzi-la por “cidadela”. A refe­ ocuparam o território dos moabitas a leste do rio
rência é a alguma parte do templo fortificado que Jordão. Afligiram especialmente os israelitas em
Abimélek incendeia, matando os que se haviam Bashan, a leste do Jordão, perto do mar da Galiléia
refugiado ali (vv. 46-49). e na parte meridional de Guilead, que pertencia à
O fim de Abimélek chega quando ele ataca tribo de Gad. As vezes, atravessavam o Jordão e
Tebes, cidade a nordeste de Siquém (vv. 50-55). saqueavam as tribos meridionais de Judá, Benjamin
Aparentemente, Tebes participara da revolta. A morte e Efraim.
nas mãos de uma mulher era considerada desgraça 10,17-11,11 Jefté é chamado de volta. 10,17-
(v. 54). Com sua morte, falha a primeira tentativa 18 deixa claro que nenhum dos chefes de Guilead
de iniciar a monarquia em Israel. queria começar a guerra contra os amonitas. Por
10,1-5 Tolá e lair. São os primeiros dos juizes isso, a atenção se volta para Jefté, chefe de um ban­
“menores”. As descrições desses homens seguem do que saqueava a área (11,1-3). Por causa de seu
um padrão regular; nome, origem, tempo na função, nascimento ilegítimo, fora expulso de sua terra pelas
morte, sepultamento e família. Como os números mesmas pessoas que agora querem-no de volta para
de anos na função não são estereotipados, é prová­ chefiá-los no combate. Ao contrário das histórias
vel que sejam originais da tradição. Embora agora dos outros juizes, o chamado de Jefté para ser juiz
se diga que julgaram todo Israel, sua esfera origi­ não ocorre em um único momento; acontece por
nal de influência devia se limitar a uma área deter­ meio de conversações. Nas conversações com os
minada. Além disso, seu trabalho deve ter sido con­ anciãos (vv. 4-10), eles primeiro lhe oferecem ape­
temporâneo ao de outros juizes menores ou até ao nas 0 papel de comandante (v. 6). Quando Jefté
dos juizes maiores. Seu papel não é claro. Já expli­ não aceita imediatamente, aumentam a oferta para
camos na introdução que a palavra hebraica para ser “o chefe de todos os habitantes de Guilead” (v.
“julgar” também significa “governar”. É possível, 8), 0 que parece sugerir que a função de juiz in­
então, que fossem espécies de administradores lo­ cluía responsabilidades administrativas, além de
cais. É afirmado que Tolá “salvou” Israel, o que militares. O v. 11 trata de certa forma de investidura.
talvez signifique que, depois da confusão e ansie­ 11,12-28 Conversações com os am onitas.
dade da época de Abimélek, Tolá trouxe estabilida­ Antes de correr para a batalha, Jefté tenta esclare­
de com sua administração. cer as razões da hostilidade dos amonitas e desco­
10.6- 12,7 Jefté. A história de Jefté é uma com­bre que querem de volta a terra que alegam lhes
posição de diversas tradições às quais foram acres­ ter sido tomada pelos israelitas quando estes subi­
centadas algumas adições mais tardias. A história ram do Egito (vv. 12-13). Então, Jefté expõe a jus­
desenvolve-se assim; prólogo (10,6-16); Jefté é cha­ tificativa histórica e teológica para a ocupação por
mado de volta (10,17-11,11); conversações de Jefté Israel da terra disputada a leste do Jordão. O mate­
com os amonitas (11,12-28); promessa de Jefté, der­ rial dos vv. 13-27 é, sem dúvida, uma inserção
rota dos amonitas (11,29-40) e derrota dos efrai- mais tardia para justificar a posse da terra entre os
mitas (12,1-7). rios Arnon e Jaboc por Israel. O argumento históri­
10.6- 16 Prólogo. Estes w . introduzem a his­co é que 0 território em disputa não pertencia nem
tória de Jefté e contêm uma versão ampliada do a Amon nem a Moab, mas fazia parte do antigo
quadro estrutural de D. O interessante aqui é como reino de Sihon, que Israel conquistara sob Moisés.
essa estrutura se ampliou: primeiro, pela inserção O argumento teológico é que os territórios perten­
da lista de divindades, no v. 6; depois pela inser­ cem aos que os receberam de sua divindade parti­
ção da lista dos oponentes passados, presentes e fu­ cular e que o Deus israelita lhes dera esse território.
turos de Israel, nos vv. 11 e 12, e a discussão entre O esboço histórico nos vv. 15-22 está de acordo
0 S enhor e o povo a respeito da resposta do S enhor com Nm 20-24.
a seus gritos, nos vv. 10-16. Recapitulando 2,6-3,6 11,29-40 A promessa de Jefté e a derrota
e referindo-se aos inimigos passados e futuros dos amonitas. Agora o espírito do S enhor vem
(filisteus) de Israel, esta parte se torna uma intro­ sobre Jefté, que inflige severa derrota aos amonitas.
dução teológica à segunda metade do livro dos O centro de atenção nesta cena é o voto de Jefté;
Juizes. A questão é que não há nada automático na se o S enhor entregar os amonitas em suas mãos,
resposta do S enhor ao clamor de Israel (cf. os vv. ele oferecerá em holocausto ao S enhor quem quer
11-14). É necessário mais do que palavras admi­ que saia das portas de sua casa quando ele voltar
tindo a culpa. O que finalmente faz o S enhor não (vv. 30-31). Quem sai a seu encontro é sua filha.
suportar o sofrimento dos israelitas (v. 16) é que, Há alguns paralelos a esse acontecimento no fol­
além de admitir a culpa, eles também se mostram clore comparado. O que surpreende é o autor não
dispostos a aceitar o castigo (v. 15) e, mais impor­ ter censurado esse relato de sacrifício humano!
tante, a erradicar os deuses estrangeiros de seu meio Alhures no Antigo Testamento ele é condenado (Lv 241
JUÍZES 12

18,21; 20,2-5; Dt 12,31; 18,10; Mq 6,7). Entretan­ rota dos filisteus por Sansão (cap. 15) e captura e
to, aqui o fato do sacrifício humano é secundário morte de Sansão (cap. 16).
ao tema da irrevocabilidade da promessa de Jefté. 13,1-25 Nascimento de Sansão. O capitulo
Uma vez feita, a promessa tem de ser cumprida. O começa com uma forma breve da estrutura de D
que complica a situação é que agora a história é (v. 1). Os filisteus tinham entrado na Palestina cer­
usada como etiologia para uma festa de lamenta­ ca de cinquenta anos depois dos israelitas, como
ção extinta em Israel (vv. 39-40). Alguns a conside­ parte da migração dos povos do mar do Egeu e de
ram um mito transmitido como história para expli­ Creta. Repelidos pelos egípcios por volta de 1200
car a festa. Talvez ela tenha o propósito de mostrar a.C., estabeleceram-se na costa mediterrânea da
os efeitos lamentáveis de não confiar na disposição Palestina.
do S enhor de salvar Israel. Não há necessidade Os w. 2-5 relatam o anúncio pelo anjo do pró­
dessas práticas pagãs. ximo nascimento de Sansão a sua mãe, cujo nome
12.1- 7 D errota dos efraim itas. Esta história,não é citado. Seu pai é de Soreá, cidade no território
que preserva lembranças de conflitos de fronteira originahnente entregue à tribo de Dan e ponto de par­
entre Guilead e Efraim, está vagamente ligada ao tida para a migração dos danitas para o extremo norte
resto. Como na história de Guideon (8,lss.), os da Palestina (cap. 18). A esterilidade é tema comum
efraimitas ficam transtornados por não terem sido no Antigo Testamento (cf. Gn 11,30 e ISm 2,2s.) e
convocados para ajudar no combate aos amonitas. é usada como oportunidade para a milagrosa inter­
Jefté alega que foram convidados mas não respon­ venção divina, por meio da qual uma criança nasce
deram (vv. 1-3). No dialeto falado pelos efraimitas, para cumprir missão especial. Nos w. 4 e 5, a regra
a sibilante inicial de shibólet não podia ser pronun­ do nazirado (Nm 6,1-8) é adaptada para a consagra­
ciada corretamente, desse modo, dando-os a co­ ção de uma pessoa no ventre. Normalmente, o nazir
nhecer. O sentido do insulto no v. 4 não está claro. era um adulto que, de livre e espontânea vontade, se
A conclusão da história de Jefté em 12,7 vem consagrava ao S enhor pela vida toda ou por determi­
da fórmula usada para os profetas menores, levando nado período. Sansão é consagrado desde a coneep-
alguns a considerar Jefté um desenvolvimento mais çâo, por isso os ritos antes de seu nascimento apli-
tardio de alguém que originalmente era apenas um cam-se também a sua mãe. Sansão viverá sob estes
dos juizes menores. Essa idéia é apoiada pelo fato regulamentos: abster-se de vinho e bebidas alcoó­
de que a história de Jefté está entre as duas relações licas, não raspar a cabeça e evitar todo contato com
de juizes menores (10,1-5 e 12,8-15). os mortos. O v. 7 acrescenta que será um nazir até a
12,8-15 Ibsan, Elon e Abdon. Segunda e últi­ morte.
ma relação dos juizes “menores”, seguindo o modelo Como os capítulos seguintes não se referem
da primeira relação (10,1-5). ao voto de nazirado sob o qual se encontra Sansão,
13.1- 16,31 Sansão. As histórias de Sansãoé possível que esse capítulo tenha sido composto
contêm o ciclo mais extenso de tradições do livro mais tarde como introdução ao ciclo, a fim de trans­
dos Juizes. Embora não haja razão para negar sua formar a história de Sansão em uma narrativa da
historicidade, está claro que essas tradições foram transgressão do voto do nazirado. É essa pessoa
profundamente alteradas por elementos lendários, pecaminosa que o Senhor usa para começar a liber­
cultuais e folclóricos — talvez até por antigos mitos tação do povo do poder dos filisteus (v. 5).
solares. O nome de Sansão (Shimshon) relaciona-se Nos vv. 6-23, 0 pai de Sansão, Manôah, mos­
com a palavra hebraica para sol, e ele vem de uma tra a característica cautela semitica sobre o teste­
região próxima a Bet-Shémesh (templo do sol). munho de uma mulher e, assim, precisa ouvir ele
Há algumas diferenças significativas entre as mesmo o que ele e sua mulher precisam fazer pelo
tradições de Sansão e o outro material do livro. O • menino que vai nascer (vv. 8-14). Na conversa com
quadro estrutural de D reduz-se a um relato sobre 0 anjo, Manôah procura um sinal, que recebe na
0 pecado do povo e sua entrega pelo Senhor ao consumação do holocausto pelo fogo e na elevação
poder dos filisteus. Nada é dito sobre um clamor do anjo na chama (v. 19). Só então se convence de
ao S enhor. Além disso, Sansão jamais comanda um que 0 mensageiro vem de Deus. Quando Manôah
exército e não liberta Israel nem dos filisteus nem pergunta-lhe o nome, o anjo não o revela, dizendo
de qualquer outro opressor. Suas relações com os que ele é “misterioso”, isto é, incompreensível, como
filisteus parecem estar no nivel de um feudo par­ as obras de Deus (veja os w . 18.19).
ticular. Entretanto, o redator considera essas faça­ 14,1-20 Casam ento de Sansão. As primeiras
nhas 0 início da libertação de Israel do poder dos façanhas de Sansão acontecem no contexto de seu
filisteus. casamento. Em Timná, cidade filistéia, distante
Cada uma das diversas tradições tinha uma alguns quilômetros de Soreá, Sansão se apaixona
existência independente anterior. Entretanto, o reda­ por uma filistéia e pede aos pais que vão tomá-la
tor habilidosamente juntou-as em um todo coerente. para ser sua esposa (vv. 1-3). Normalmente, as con­
O material divide-se em quatro partes: nascimento versações de casamento eram conduzidas pelo pai
242 de Sansão (cap. 13), seu casamento (cap. 14), der­ do noivo. Os pais de Sansão ficam descontentes
JUÍZES 16

porque ela não é israelita; uma esposa estrangeira sobre ele, movendo-o mais uma vez a ação extraor­
era considerada perigosa para a segurança. No dinária (vv. 14-16), outro feito pelo qual o S enhor
Antigo Testamento, a palavra “incircuncisos” (v. 3) começa a libertar Israel dos filisteus (cf. 13,5).
é usada apenas a respeito dos filisteus, indicando Note que Sansão transgride outra vez a lei do
o fato de que eram os únicos na região que não nazirado, tocando a carcaça de um animal. O v. 17
praticavam o rito da circuncisão. Talvez o redator nos diz que o nome do lugar, “Rámat-Léhi” (Alto da
também não aprovasse esse casamento, mas no v. queixada) explica-se pela ação de Sansão de jogar
4 ele fornece a chave interpretativa para o resto do para longe a queixada. Os w. 18-19 apresentam a
capítulo; 0 que está prestes a acontecer faz parte etiologia de uma fonte em Léhi chamada “En-Qoré”,
do plano do Senhor .Embora não esteja explícito, isto é, “fonte daquele que invoca”.
parece que o autor considera esses acontecimen­ É provável que a nota sobre a magistratura no
tos, especialmente os dos vv. 19-20, o meio pelo V. 20 indique a conclusão de uma edição primitiva
qual o Senhor começa a libertar Israel dos filisteus das histórias de Sansão e que o capítulo 16 tenha
(13,5). sido acrescentado mais tarde (c f 16,31).
Todo o processo da ida e volta de Sansão a 16,1-31 C ap tu ra e m orte de Sansão. Este
Timná (vv. 5-9.10) é obscuro e as referências a seus capítulo tem três episódios separados; Sansão e a
pais nos vv. 5 e 10 são embaraçosas. Talvez sejam prostituta (vv. 1-3); Sansão e Dalilá (vv. 4-22) e a
adições mais tardias para mostrar que os pais de morte de Sansão (vv. 23-31). Os dois últimos episó­
Sansão concordaram com ele e arrumaram o casa­ dios estão claramente relacionados, mas o primeiro
mento apesar de sua oposição. Entretanto, a parte parece ser independente. Entretanto, por causa da
importante é a morte do leão e o encontro posterior força de Sansão, é um bom preparo para a pergunta
do mel em sua carcaça. E o espírito do S enhor que do V. 5.
dá a Sansão a força para lidar tão facilmente com o O episódio com a prostituta (vv. 1-3) acontece
leão (v. 6). Note que Sansão quebra o voto do nazi- em Gaza, uma das cidades filistéias na costa meri­
rado, comendo o mel, impuro por ter sido tirado de dional da Palestina. As portas da cidade de então
um cadáver. tinham uma abertura semelhante a um túnel, ladeada
E impossível solucionar o enigma de Sansão por salas de guarda. Sansão conseguiu escapar à
(vv. 10-18) sem conhecer as ações privadas do herói. emboscada na porta, saindo em uma hora inespera­
Os filisteus só conseguem resolvê-lo ameaçando da, quando os homens estavam esperando nas salas
sua mulher (v. 15). Essa traição faz com que Sansão de guarda, pois não esperavam que Sansão saísse
realize uma de suas façanhas contra os filisteus (v. antes de amanhecer. A distância de Gaza a Hebron
19). Ashqelon era uma fortaleza filistéia na costa, é de cerca de sessenta quilômetros e o caminho é
a sudoeste de Timná. ascendente.
15,1-20 D errota dos filisteus. Quando a raiva Sansão agora se apaixona por Dalilá. Esse epi­
passa, Sansão vai visitar sua mulher, levando-lhe sódio (vv. 4-22) é uma série de cenas estereoti­
um cabrito de presente (v. 1). Entretanto, não o padas em que Sansão parece tão enfeitiçado por
deixam entrar, porque o pai dela já a deu ao acom­ Dalilá que seu comportamento é ridículo e anormal.
panhante de honra de Sansão, tendo interpretado a Um forte elemento de magia percorre o episódio.
saída repentina de Sansão (14,19) como repúdio e Primeiro, os filisteus parecem acreditar que um
divórcio dela. O pai propõe uma alternativa, mas poder mágico ou sobrenatural dá força a Sansão (v.
Sansão sai irritado (v. 3). 5). As três primeiras explicações que Sansão dá de
É difícil visualizar o incidente com as raposas sua força também se baseiam em idéias mágicas
(vv. 4-5). Obviamente, tem o propósito de ser uma (vv. 6-14). Cordas de arco (v. 7) eram feitas de ten­
espécie de tática de guerrilha. Em tudo isso, Sansão dões de animais abatidos; mais uma vez, Sansão
parece estar exagerando, pois foi ofendido por uma desrespeita a regra do nazirado, tendo contato com
única família. parte de um cadáver. Por fim, na quarta vez que dá
Os filisteus não demoram a retaliar contra a a explicação de sua força, Sansão fala a verdade
mulher de Sansão e a família dela. Sansão se vinga (vv. 15-17). E a primeira vez que a força de Sansão
dos filisteus (vv. 6-8) e foge para Etâm, no territó­ é apresentada como algo permanente e que reside
rio da tribo de Judá. Os filisteus pressionam Judá em seu cabelo não cortado. Nas outras histórias, a
para que lhes entregue Sansão (vv. 9-10). Tanto a força lhe é dada apenas em ocasiões especiais como
localização de Etâm como a de Léhi são desconhe­ dádiva do espírito do S enhor (14,6.19; 15,14). A
cidas. Léhi significa “queixo” e sua presença aqui história em 16,1-3, entretanto, supõe algum tipo de
nos prepara para o trocadilho no v. 17. Agora ho­ força permanente, da mesma maneira que 15,8. A
mens de Judá descem para capturar Sansão e, para nota ameaçadora no v. 22 prepara para os w. 28-30,
seu espanto, encontram-no pronto a se render (vv. em que a força de Sansão é novamente o resultado
11-13). O grande número que foi capturá-lo mostra de uma dádiva do S enhor para a libertação de Israel.
que não esperavam tanta facilidade (v. 11). Quando Sansão é incapaz de fugir depois que seu cabelo
Sansão vê os filisteus, o espírito do Senhor desce foi cortado (v. 20), porque o S enhor se afastara 243
JU(ZES17

dele. A última das transgressões da regra do nazi- que é expressamente proibido pela Lei mosaica
rado — que acontecem com demasiada freqüência (cf. Ex 20,4-6). Miká também faz um efod (cf
— ocorre quando raspam a cabeça de Sansão. 8,24-27) e ídolos domésticos, isto é, artigos usados
Talvez a razão do acréscimo do episódio da para a adivinhação (v. 5). No começo, ele faz de
morte (vv. 23-31) fosse mostrar que embora Sansão um de seus filhos o sacerdote, isto é, aquele que
tivesse esbanjado sua força por egoismo, no fim ele tomava conta do santuário e proferia oráculos.
se voltou para o S enhor (v.28) e teve morte honrosa, Um jovem levita de Bet-Lehem aparece pro­
fazendo a justiça divina cair sobre os filisteus. Dagon curando uma situação melhor e Miká o convence
(v. 23) era uma antiga divindade agrícola do mundo a ser seu sacerdote (vv. 7-13). O interesse de Miká
semítico ocidental. Na Bíblia, aparece exclusiva­ em ter um sacerdote levita sugere que os levitas já
mente como divindade filistéia. Dagon significa eram conhecidos como mais habilidosos em ques­
“grão”. O número três mil no v. 27 parece exagero, tões cultuais. O título “pai” (v. 10) enfatiza o papel
o que foi, provavelmente, intenção do redator, em do sacerdote como adivinhador cultuai e transmis­
vista da afirmação no v. 30. sor de oráculos.
O capítulo conclui (v. 31) repetindo a extensão O capítulo 18 começa com a afirmação que os
do tempo em que Sansão julgou Israel (c f 15,20). danitas procuravam um território onde morar, pois
Não há nenhuma referência à paz na terra, pois o não haviam recebido nenhum patrimônio entre as
compilador percebeu que as façanhas de Sansão tribos de Israel (v. 1). À luz de Js 19,40-48, é di­
foram apenas o começo da libertação de Israel dos fícil aceitar essa afirmação. Eles haviam recebido
filisteus. território a oeste de Benjamin, ao sul de Efraim e
ao norte de Judá. Entretanto, foram tão restringidos
pelos emorítas e filisteus (veja 1,34) que não conse­
PARTE III: APENDICE guiram controlar o território, por isso enviaram ex­
Jz 17,1-21,25 ploradores para procurar um distrito melhor. Soreá
O apêndice do livro dos Juizes contém dois epi­ e Eshtaol (v. 2) são cidades do antigo território
sódios aqui colocados porque tratam do período danita encontradas nas histórias de Sansão. Os ex­
anterior à monarquia: a migração de Dan para o ploradores reconheceram provavelmente o levita co­
norte (17,1-18,31) e aguerra civil contra Benjamin mo proveniente do sul pelo sotaque (v. 3). Um dos
(19,1-21, 25). A afirmação: “Naquele tempo não principais papéis do sacerdote era consultar Deus
havia rei em Israel, cada um fazia o que era certo em benefício do povo (v. 5). A resposta favorável
a seus olhos”, aparece no início (17,6) e no fim do do sacerdote será usada mais tarde para justificar
apêndice (21,25). Em 18,1 e também em 19,1, há a conquista de Láish e a morte de seus habitantes
o lembrete que “naqueles dias, não havia rei em (V . 10).

Israel”. São, na verdade, declarações pró-monarquia Láish (v. 7) era uma cidade na extremidade
que 0 redator inseriu porque não considerou louvá­ setentrional da terra, perto das fontes do rio Jordão.
veis os acontecimentos narrados nesses capítulos. O lugar é rico em recursos e o povo, tranqüilo e
Só podiam ter acontecido porque não havia rei na confiante, vive em uma cidade sem muros. A afirma­
terra. O redator via a monarquia como um fator ção de que o povo vivia “à maneira dos sidônios”
estabilizador necessário em Israel. parece indicar que a cidade seguia os costumes
17,1-18,31 A migração de Dan. O propósito fenícios. Os exploradores justificam sua recomen­
destes dois capítulos não é apenas relatar a história dação para atacar a cidade, dizendo que Deus a
de Dan, mas sim dar informações sobre as origens entregou a suas mãos (vv. 8-10, e c f v. 6). “Mahanê-
e a natureza do santuário de Dan. Esse santuário Dan” (v. 12) significa “acampamento de Dan”.
tomara-se importante em 922 a.C., quando as tribos Os danitas põem à frente os nâo-combatentes,
do norte se separaram das do sul e formaram o rei­ o rebanho e as bagagens (v. 21) porque esperam
no de Israel. Em resultado dessa separação, o san­ ser atacados pelas costas assim que Miká descobrir
tuário de Dan passara a ser o santuário nacional do que roubaram seus ídolos e seu sacerdote. Miká
reino do norte, juntamente com o de Betei. Os sa­ vai atrás deles, mas volta para casa quando descobre
cerdotes de Jerusalém desaprovaram o culto do força numerosa, (vv. 22-26).
Senhor no santuário de Dan. Esses dois capítulos A matança da população de Láish (v. 27) é
argumentam contra esse santuário, mencionando injustificável. A que o pecado levou! Os danitas
que 0 culto ali representava uma fusão de devotos reconstroem a cidade, poem-lhe o nome de seu
desiguais e que a prata usada para fazer o objeto ancestral e erigem o ídolo fundido que pertencera
sagrado ali era proveniente de dinheiro roubado. a Miká (vv. 28-30). No v. 30, o levita de repente
Embora tendo linhagem nobre, o sacerdócio ali apa­ tem nome, lehonatan, filho de Guershom, filho de
rece como tendo transigido. Moisés. A “época da deportação da terra” (v. 30)
O capítulo 17 constitui o pano de fundo para refere-se ao ano 734 a.C., quando a Palestina se­
os acontecimentos do capítulo 18. Note-se que o tentrional caiu nas mãos dos assírios e o templo de
244 ídolo fundido (vv. 3-4) é um ídolo do S enhor, o Dan foi destruído. O v. 31 menciona que os danitas
JUÍZE5 21

tinham preservado seu santuário em Dan durante o e meridionais do antigo Israel. Os israelitas do lado
tempo que a verdadeira casa de Deus subsistiu em leste do rio Jordão (teiVa de Guilead) também vêm
Shilô. à assembléia. O tamanho dos exércitos (vv. 8-10) é
19.1- 21,25 Guerra civil contra Benjamin. exagerado. Talvez a palavra hebraica para “mil” re­
Esses três capítulos são formados por algumas fira-se a determinado agrupamento ou contingente
narrativas de origem independente combinadas com militar, como vimos no livro de Josué.
habilidade em uma história contínua. Apresentam No v. 16, o narrador parece sugerir que uma
outro exemplo de como as coisas podiam dar erra­ das razões pelas quais os benjaminitas resistirão e
do porque “naqueles dias não havia rei em Israel; serão capazes de infligir grandes perdas aos israe­
cada um fazia o que era certo a seus olhos” (21,25). litas são os setecentos exímios atiradores canhotos.
Um crime hediondo é cometido e Israel reage de Os israelitas vão para Betei, distante alguns quilô­
tal maneira que provoca uma guerra civil em larga metros, para consultar o Senhor sobre quem deve
escala. atacar primeiro. A sorte cai sobre Judá (vv. 17-19).
Os capítulos dividem-se em três passagens; O Os dois primeiros ataques contra Guibeá são
episódio com o levita e sua concubina (19,1-30); a rechaçados e os israelitas sofrem algumas perdas
assembléia de Israel e a guerra punitiva contra Ben­ significativas (vv. 20-25). Depois da segunda derrota,
jamin (20,1-48) e a obtenção de mulheres para os eles consultam o S enhor, jejuam e oferecem holo-
benjaminitas sobreviventes (21,1-25). caustos e sacrifícios de paz (vv. 26-27). Dessa vez
19.1- 30 O levita e sua concubina. A históriaouvem que alcançarão sucesso, porque o S enhor
do levita que vai a Bet-Lehem para reconduzir sua entregará os benjaminitas em suas mãos.
mulher e que, na volta, sofre gritante ultraje é nar­ Os w . 29-43 são dois relatos do mesmo aconte­
rada para explicar por que a guerra explode entre cimento, toscamente combinados. O relato nos vv.
Benjamin e as outras tribos de Israel. A história 29-36 descreve mais a tática de campo das tropas
é cheia de dramática ironia: a hospitalidade do so­ e e dos vv. 37-43 a vitória da perspectiva da embos­
gro retarda tanto a volta do levita que ele não con­ cada bem-sucedida. Ambos têm semelhança com a
segue fazer a viagem de volta para casa em um só captura de Ai em Js 8. Note que, no v. 35, é o
dia; se tivesse parado em lebus, a cidade canaanita, S enhor que derrota Benjamin. Os vv. 44-48 dão as
teria evitado o ultraje; em Guibeá, não é um ben- estatísticas dos derrotados. No fim, restam apenas
jaminita que lhe oferece hospitalidade, mas uma seiscentos, que fogem para o rochedo de Rimon (v.
pessoa de fora. 47). A localização de Rimon é desconhecida. Em­
Para o propósito da história não é importante bora a tradição de guerra contra Benjamin possa
que o homem seja levita. Embora o redator identifi­ ser antiga, a história, como a temos aqui, foi revis­
que “lebus” como “Jerusalém” (v. 10), na verdade ta para tomá-la conveniente. É provável que a tra­
Jerusalém nunca teve esse nome. Talvez lebus fos­ dição original tratasse de uma guerra entre Ben­
se um subúrbio de Jerusalém. A esse tempo, Jeru­ jamin e seu vizinho do norte, Efraim. E imprová­
salém ainda era uma cidade canaanita. Guibeá fi­ vel que a destruição total de uma tribo chegasse a
cava cerca de cinco quilômetros ao norte de Jeru­ ocorrer.
salém e Ramá, três quilômetros mais para o norte. 21,1-25 M ulheres p a ra os benjam initas.
Ao entrar em Guibeá, o levita não recebe ne­ Depois de quase extinguir toda uma tribo, os israe­
nhum oferecimento de hospitalidade dos benjami­ litas percebem que para essa tribo sobreviver eles
nitas dali, mas é levado por um estranho, um ancião precisam conseguir mulheres para os seiscentos ho­
que, como o levita, vinha da montanha de Efraim. mens sobreviventes. Este capítulo apresenta dois
O ancião oferece ao levita a mesma hospitalidade relatos de como as obtiveram. Os relatos separados
que seu sogro lhe oferecera em Bet-Lehem. No foram harmonizados pela explicação de que cada
Antigo Testamento, o verbo “conhecer” (v. 22) tem estratagema trouxe apenas uma solução parcial para
emprego eufemístico para significar relações se­ 0 problema (v. 14).
xuais. Aqui é usado de maneira deliberadamente O primeiro relato (vv. 1-14) fala do problema
ambígua. subjacente; em Mispá os homens de Israel tinham
O ato horripilante de cortar a mulher morta e jurado que nenhum daria suas filhas em casamento
enviar pedaços dela a todas as tribos serve ao pro­ a um benjaminita (v. 1). A solução que acabam por
pósito de incitar as tribos contra Guibeá pelo ultra­ encontrar foi ver se alguém não subira para a assem­
je cometido (cf. ISm 11,7). A dedução é que as bléia, já que fora prestado um juramento solene
tribos precisam ajudar o levita a se vingar de Guibeá que quem não subisse seria morto (vv. 2-5). labesh-
ou sofrer destino semelhante. de-Guilead ficava a leste do Jordão.
20.1- 48 G uerra contra Benjamim. Em respos­ O segundo estratagema tem paralelos no fol­
ta ao chamado do levita, os israelitas se reúnem clore grego e romano (vv. 15-23). Os anciãos lem­
em Mispá, cerca de treze quilômetros ao norte de bram-se da festa anual em Shilô, quando as filhas
Jerusalém (vv. 1-2). “Desde Dan até Beer-Sheba” de Shilô saiam para dançar. Cada benjaminita rece­
é uma frase que representa os limites setentrionais beu ordem de raptar uma delas para ser sua mulher. 245
JUÍZES 21

Os anciãos prometem interceder pelos benjaminitas aconteceram porque “naquele tempo, não havia rei
quando os pais ou irmãos vierem se queixar. Como em Israel; cada um fazia o que era certo a seus
elas foram raptadas deles, não dadas aos benjami­ olhos” (v. 25). A história de pecado de Israel come­
nitas, os homens de Shilô não serão culpados de çou. Por fim, essa pecaminosidade levará à destrui­
quebrar a promessa de não dar as filhas em casa­ ção do reino do sul, Israel, no século VIII e à des­
mento para os benjaminitas (v. 22). A grande assem­ truição do reino do sul, Judá, no século VI. Entre­
bléia convocada em 20,1 agora se dispersa e os is­ tanto, o livro menciona mais de uma vez não só o
raelitas voltam para seu patrimônio (v. 24). poder salvífico do Senhor ,mas também a vontade
O narrador conclui dizendo mais uma vez que divina de salvar os israelitas quando eles clamam
todos esses tristes comportamentos censuráveis ao Senhor .

246
1 E 2 SAMUEL
Paula J. Bow es

INTRODUÇÃO
riginalmente, 1 e 2 Samuel eram um só Calamidades e libertação
livro, da mesma forma que 1 e 2 Reis É digno de nota que a libertação que surge
e 1 e 2 Crônicas. Foram divididos em para Israel no início da missão profética vem acom­
dois na tradução grega da Bíblia He­ panhada pela ruína da casa sacerdotal de Eli e a
braica conhecida como Septuaginta, da
perda do bem mais precioso de Israel, a Arca da
qual foram feitas as primeiras traduções em latim e
Aliança, o sinal de que Deus habitava no meio dos
outras línguas. Os livros de Samuel são o centro de
israelitas (ISm 2-4). Nessa calamidade nacional, a
um conjunto maior de narrativas que abrangem a
Deus é atribuída a devolução da arca pelos filisteus
história de Israel desde a entrada em Canaã, por
(1 Sm 6). Seria de esperar que a aliança de Samuel
volta do século XII a.C., até o cativeiro na Babilônia
com o Senhor em Mispá (cap. 7) trouxesse satis­
(587-586 a.C.). Esta parte da história deuteronomista,
assim chamada porque os autores basearam sua teo­ fação ao povo, mas este teme os filisteus o bastante
para pedir um rei humano como outras nações. Em
logia nos ensinamentos do livro do Deuteronômio,
foi compilada por volta do século Vll a.C. Sua men­ Nm 11, Deus respondeu ao pedido de carne pelo
sagem básica era que Deus escolheu Israel para ser povo com codomizes, até não agüentarem mais.
um povo especial e, por intermédio de Moisés, redi­ Aqui Deus lhes dá o que querem, apesar das desvan­
miu-o da escravidão no Egito e com ele fez uma tagens de um rei humano e sua rejeição do divino.
aliança no monte Sinai. A palavra de Deus, que Não obstante as objeções de Samuel, Deus manda
chegou a Israel por intermédio de Moisés, continua 0 profeta ungir Saul, com a expectativa implícita
a guiar e a castigar o povo e também seus reis, por de que o rei sempre estará sob orientação profética
intermédio dos profetas. Se os israelitas forem fiéis e terá de obedecer à Lei mosaica.
às leis da aliança, terão prosperidade e paz; se deso­
Israel ganha um rei
bedecerem, podem esperar o castigo por calamida­
des naturais, invasão e até exílio. Assim, por fideli­ O primeiro rei, Saul, embora talentoso e aceitá­
dade e gratidão, devem guardar os mandamentos do vel para os israelitas, mostra-se inaceitável para o
Senhor que lhes demonstrou tanta estima e graça. Senhor ,que, então, determina nova tentativa com um
Portanto, os livros de Samuel não são história no homem segundo o coração de Deus, David (ISm
sentido moderno, mas história teológica — narrati­ 13,13-14). Agora surge a situação confusa (para nós)
vas dos procedimentos divinos com o povo escolhido. de dois reis ungidos, um dos quais empenhado em
violenta perseguição ao outro, temendo que seu trono
O s protagonistas lhe seja tirado. Durante toda a perseguição de David
Há pessoas importantes nesses livros, principal­ por Saul, o fugitivo recebe ajuda de várias partes, até
mente três: Samuel, o profeta do título, e os dois mesmo dos filhos de Saul, Jônatan e Mikal.
primeiros reis de Israel, Saul e David, ungidos por Alguns anos mais tarde, a carreira de Saul che­
Samuel. O relato do milagroso nascimento de Samuel, ga ao fim, em batalha desastrosa contra os filisteus
tão semelhante a outros nascimentos auspiciosos na (ISm 31). David é finalmente escolhido rei, primei­
história de Israel, estabelece o espírito do conjunto. ro pelos judaítas (2Sm 2,11) e, depois, com a morte
Deus interveio para trazer outro salvador em resposta do último herdeiro qualificado de Saul, pelos israe­
à necessidade que Israel tinha da palavra de Deus. litas (2Sm 5). Essa unção independente pelas duas
Como a maior parte da Escritura, os livros de Samuel partes de Israel mostra a divisão religiosa e políti­
falam do cuidado e do castigo divinos para este ca, que durou enquanto existiu a monarquia, isto é,
povo especial e da justiça e misericórdia divinas para até 586 a.C., quando Jerusalém foi saqueada pelos
com ele. babilônios. 247
1 SAMUEL 1

A ascensão de David inimigos subjugados por todos os lados (2Sm 7,1)


O período desde a prímeira unção de David e um reino próspero e ampliado (2Sm 8). Como
(ISm 16) até sua entronização sobre as duas casas fez Adão, David desobedece a palavra de Deus, o -
de Israel (2Sm 5) costuma ser designado como re­ que acarreta tristezas inesperadas. Confirmando a
lato da ascensão de David. Assim como a elevação profecia de Natan em 2Sm 12, uma espada jamais
de Samuel no início do primeiro livro de Samuel foi se afastará da casa de David, pois quatro de seus
concomitante com a queda da casa de Eli, a ascen­ filhos terão mortes prematuras e violentas. Os capí­
são de David é simultânea ao desaparecimento de tulos 9 a 20 relatam-nos essas provações com dra­
Saul. O segundo livro de Samuel contém os relatos mático realismo. O uso do diálogo para retratar o
da elevação de David (cap. 5), o traslado da Arca da personagem e prosseguir com a ação proporciona
Aliança para Jerusalém (cap. 6), a promessa de uma uma das leituras mais fascinantes de toda a Bíblia.
sucessão duradoura (cap. 7) e a envolvente história Embora o autor desconhecido use técnicas de
da vida de David como rei (caps. 9-20). romance, esses relatos não são produtos de sua ima­
ginação. Mostram, por meio de histórias animadas,
O reino tranqüilo e a família perturbada que Deus opera com liberdade humana, cuidando
Bastante semelhante à vida tranqüila de Adão do povo com um amor que continuamente perdoa
no jardim do Éden (Gn 2), David se vê com os e salva.

ESQUEMA DOS LIVROS DE SAMUEL


ISm 1-3 Parte 1 Samuel e a casa de Eli 2Sm 1-8 Parte V: a luta pelo reino
ISm 4-7 Parte II a Arca da Aliança 2Sm 9-20 Parte VI: o rei David
ISm 8-15 Parte III Saul, o primeiro rei 2Sm 21-24 Parte VII: apêndices
ISm 16-31 Parte IV Saul e David

COMENTÁRIO: 1 SAMUEL
I. SAMUEL E A CASA DE ELI anuais de Elqaná e Haná mostram que são pais dig­
nos de um filho especialmente favorecido, Samuel.
1Sm 1-3 Também são mencionados, no v. 3, Eli e seus
O Primeiro Livro de Samuel começa com dupla filhos, Hofni e Pinhás, todos sacerdotes no santuário
necessidade: o desejo de Haná de ter um filho e, de de Shilô, centro do culto do Senhor , antes que a
modo equivalente, a necessidade espiritual que Israel cidade fosse tomada pelos filisteus (cf o cap. 4).
tem da palavra de Deus. A palavra do S enhor, tão Embora os filhos de Eli ainda não figurem na histó­
necessária à vida de Israel, é, segundo a tradição ria, sua presença no início da narrativa sugere uma
deuteronomista, a maior bênção de Israel, exata­ ligação entre Haná e os graves problemas de Israel.
mente como a maior bênção de uma mulher em Nem mesmo as tentativas pacientes e amoro­
Israel é ter um filho. A necessidade de Israel não sas de Elqaná para a consolar impedem Haná de
é revelada, enquanto os leitores não experimentam chorar. Ela nem consegue comer. Dessas profunde­
o sofrimento de Haná. Entender esse sofrimento pre­ zas, a ação só pode surgir na esperança de mudan­
para-os para apreciar a magnanimidade do Senhor , ça e alívio.
que supre as duas necessidades. l,9-19a Haná reza pela dádiva do S enhor.
1,1-8 Haná pede um filho. Como acontece Depois de ter descrito o que acontece nessa família
em outros anúncios de nascimento na Bíblia, esse ano após ano, o autor focaliza determinado dia em
começa com uma breve genealogia do marido de Shilô. De sua cadeira à entrada do Templo, Eli observa
Haná, Elqaná (cf. a de Manôah em Jz 13 e a de a perturbada Haná em oração. Ela regateia; se tiver
José em Mt 1). Nenhum deles é o protagonista; em um filho, ela o consagrará ao S enhor como nazir.
vez deles, suas mulheres conduzem a ação. Aqui a Esse voto impunha abstinência de vinho, de bebidas
mulher Haná, estéril e desprezada (por todos, me­ alcoólicas, de cortar o cabelo e de contato com cadá­
nos pelo marido, Elqaná), tem ciúmes da rival veres (cf. Nm 6; Am 2,11-12). Sansão (Jz 13-16)
Peniná, fértil e desdenhosa. Da mesma forma, Hagar estava sob esse voto, mas, no seu caso, foi o anjo que
tripudiou Sara (Gn 16,4) e Leá lutou contra Raquel ao anunciar seu nascimento o exigiu, não sua mãe.
(Gn 30). Haná oferece essa condição espontaneamente, mos­
Outra característica das narrativas bíblicas de trando considerável abdicação, pois a criança ficaria
nascimento é a descrição desse filho especial como com ela apenas três anos.
devoto e obediente aos mandamentos do S enhor É irônico que o que Haná oferece inclua a absten­
248 (ISm 1,3; Lc 1,5-6). A peregrinação e o sacrifício ção de bebida, enquanto seus movimentos fazem
1 SAMUEL 2

Eli suspeitar de embriaguez. Depois de Haná con­ Normalmente, os sacerdotes israelitas recebiam
vencer Eli de que esse não é o caso, ele endossa seu partes do animal sacrifical, em especial o peito e a
pedido. Como não ouviu as palavras, não sabe que, na perna direita (Lv 7,29-36). Mas os filhos de Eli
realidade, ela faz um pedido por aquele que o substi­ exigiam sua parte antes da queima ritual da gordura
tuirá no sacerdócio. Depois das orações de Eli e e até mesmo antes que a carne estivesse cozida —
Haná, esta última passa por notável mudança. Agora dificilmente o controle dignificado que seria de
não chora mais e consegue comer e beber (v. 18)! esperar dos sacerdotes.
l,19b-28 Nasce Samuel. Quando Haná dá à A história de sua irreverência cultuai é imedia­
luz seu filho, chama-o Samuel, explicando que o tamente seguida pela imagem idílica do menino
pedira ao Senhor .Entretanto, o nome Samuel signi­ Samuel vestindo o efod, prenuncio de seu futuro
fica “o que é de Deus”, não “pedido”. O nome Saul papel. A bênção agradecida de Eli aos pais de
seria mais próximo desse significado. Esse tipo de Samuel resultou no nascimento de mais cinco filhos,
ambivalência não é raro nos nomes bíblicos. dádiva divina muito bem-vinda para os israelitas
Elqaná foi de uma bondade característica ao dis­ (c f Gn 18,13-14; 21,5-8; Rt 4,11-15).
pensar Haná das três peregrinações seguintes até que 2,22-26 Eli repreende os filhos. Ao repreender
Samuel seja desmamado. A preocupação dos pais os filhos, Eli faz a pergunta que David não fará a
pelo culto do Senhor é realçada por sua proeminên- seu filho quando este se declarar rei durante a vida
cia na história e nos generosos detalhes de oferendas do pai: “Por que fazeis semelhantes coisas?” (IRs
e costumes daquela época (século XI a.C.). 1,6). Pode haver intercessão por sua fomicação, mas
Quando, finalmente, ela leva Samuel ao Templo, seus pecados contra o Senhor , os ligados ao sacri­
é natural que Haná deixe Eli saber que sua oração fício, não têm mediador. Eli previne em vão, mas
foi respondida, pois ele a apoiou (cf Jz 13 e Mt I). Hofni e Pinhás não podem alegar ignorância. Como
As palavras-chave “pedir”, “conceder” e “orar”, re­ se recusaram a obedecer o pai, o autor comunica­
petidas em 1Sm 1,17-28; 2,1, dão provas da resposta -nos que mereceram o castigo, pois o Senhor deci­
dira sua morte. O v. 26 mais uma vez salienta o con­
divina à oração persistente. Haná não desconfia
que 0 menino Samuel suprirá não apenas sua neces­ traste entre os filhos infiéis de Eli e Samuel, que, ao
crescer, conquista a aprovação do Senhor e dos ho­
sidade de ser mãe, mas também a necessidade de
mens (cf. Lc 2,52).
Israel de um profeta que leve a palavra do Senhor
2,27-36 A profecia contra a casa de Eli. A
ao povo.
acusação pelo homem de Deus começa no padrão
2,1-10 O cântico de Haná. O cântico que o
profético tradicional de lembrar os benefícios an­
autor bíblico pôs na boca de Haná encontra equiva­
teriores do Senhor aos acusados, relacionando seus
lente no Novo Testamento, no Magnificat de Maria
deveres, sua transgressão e, por fim, seu castigo.
(Lc 1,46-55). Os dois hinos expressam alegria pelo No V. 29, Eli é envolvido junto com os fdhos por ter
nascimento de uma criança especial; ambos louvam se fartado com o que eles tomaram. O âmago da
o poder, a santidade e a salvação de Deus. Nos dois, questão é ele ter preferido os filhos ao Senhor .Por­
os ricos orgulhosos são rebaixados e os pobres hu­ tanto, a função deles como sacerdotes é, na maior
mildes são exaltados. O poema de Haná faz-nos parte, suprimida e os que ministram terão existência
lembrar a Justiça divina; o de Maria, a misericórdia miserável, implorando um emprego que lhes dê uma
divina. O Magnificat apenas alude a inimigos, mas remuneração.
o cântico de Haná começa e termina com sua derro­ O encontro de Natan com David (2Sm 12) de­
ta e o desprezo por eles (vv. 1.10). pois do adultério deste com Bat-Sheba e do assassi­
Neste poema, o Senhor é visto como santo, oni­ nato de Uriá tem aqui diversos paralelos. Para ambos,
potente, onisciente e no controle de todos os even­ Eli e David, o castigo se revelará dentro de suas
tos da vida de todas as criaturas. Há fortes contras­ famílias. Como Hofni e Pinhás, o filho de David com
tes entre os famintos e os saciados, as estéreis e as Bat-Sheba morrerá (2Sm 12,19; 1Sm 2,34), mas, ao
férteis, os fiéis e os maus. Permeia a passagem o contrário de Eli, David é perdoado e tem permissão
tema da proteção do povo pelo Senhor , inclusive para continuar rei (2Sm 12,13). Talvez a chave para
do rei prenunciado e ungido do v. 10. os tratamentos diferentes de Eli e David esteja em
2,11-21 Os pecados dos filhos de Eli e as 2,25, que afirma que os pecados contra o Senhor
bênçãos de Samuel. Nestes vv., o serviço aprova­ não têm intercessor. Enquanto o pecado de David
do de Samuel, desde pequeno, é posto em contraste foi contra Uriá, os filhos de Eli pecaram contra o
com 0 desregramento dos filhos de Eli, descritos Senhor ,profanando o culto divino. Portanto, a reale­
como sujeitos vadios (literalmente “filhos de Belial”), za de David permanece, mas o sacerdócio dos filhos
a mesma designação que Haná esperava que Eli não de Eli é substituído. O novo sacerdote, que agirá de
lançasse contra ela em 1,16. A acusação sumária acordo com o coração e o desejo de Deus, terá uma
contra Hofni e Pinhás é que eles não conheciam o casa estável e ministrará diante do ungido do Senhor
Senhor ,conhecimento que significava experiência (ISm 2,35). A profecia é fluida o bastante para incluir
e obediência a Deus. como sacerdote fiel (em hebraico o mesmo adjetivo 249
1 SAMUEL 3

que o empregado para [casa] “estável”), Samuel, o dos filhos de Eli e a inauguração formal de Samuel
rei Saul ungido, Sadoq, David e até mesmo o Mes­ como profeta. Durante essa época, a liderança de
sias, cujo nome significa “o ungido”. Israel centraliza-se na Arca pois, apesar do silêncio
3,1-18 Vocação de Samuel. A profecia que da palavra, o S enhor permaneceu com Israel. Mesmo
afastou do sacerdócio Eli e sua casa não se cumpre quando é capturada, a Arca atua contra o inimigo
imediatamente. Samuel estava sendo instruído e pelo bem de Israel. Essa parte da narrativa mostra
ainda não tinha consciência de seu papel futuro. os israelitas em grande desvantagem diante do ini­
Embora nessa época fosse rara a palavra direta do migo filisteu e tentando usar a presença do S enhor
S enhor, Israel ansiava por seu Deus tanto quanto para lhes trazer a vitória.
Haná ansiava por um filho. O Senhor agora vai re­ 4.1- 11 Israel leva a A rca p ara a batalha.
mediar isso, da mesma maneira que a esterilidade Depois da desastrosa derrota em Afeq (vv. 1-2), o
de Haná foi revogada, sendo Samuel instrumento povo de Israel procura uma defesa mais eficiente
dos dois atos divinos. contra seu inimigo mais perigoso, os filisteus. Estes
A imagem de Eli adormecido e praticamente “povos do mar” haviam entrado em Canaã pelo oeste
cego descreve o estado de Israel em relação ao e se estabelecido ao longo da planície costeira por
Senhor. A lâmpada de Deus, isto é, a palavra de volta de 1200 a.C. Eram não-semitas, adoradores
Deus, está quase apagada pelo desmerecimento dos do deus dos cereais, Dagon, e, militar e culturalmen­
sacerdotes oficiantes. O S enhor ignora Eli e cha­ te, superiores aos israelitas.
ma diretamente o menino Samuel para receber a Como a costumeira estratégia de combate fa­
palavra divina. Há humor no fato de Samuel correr lhou, os israelitas mandam buscar a Arca do S enhor.
até Eli três vezes antes que o velho sacerdote per­ O S enhor é descrito (v. 4) sentado sobre querubins,
ceba que quem está chamando é o S enhor. O quar­ representações de bestas mitológicas aladas que guar­
to chamado traz a resposta pronta de Samuel: “Fala, davam os templos pagãos. Os querubins estavam na
o teu servo escuta”, correspondente ao “Eis-me tampa da Arca como emblemas dos espíritos de Deus
aqui” de Abraão quando o Senhor o chamou para que ministravam o culto divino. A presença da Arca
sacrificar Isaac (Gn 22,1-2). A presteza de Samuel no acampamento israelita desaponta os filisteus, mas
contrasta com a má vontade dos sacerdotes para os estimula a lutar com extraordinária bravura por
ouvir (ISm 2,25). Samuel é o fiel sacerdote esco­ medo de se tomarem escravos de Israel. Não só 30
lhido que logo substituirá a casa infiel e rejeitada mil israelitas foram mortos (v. 10) como a própria
de Eli. Mais tarde, um drama semelhante será re­ Arca é tomada — notícia que faz todos os ouvidos
presentado entre Saul, o primeiro rei de Israel, arderem (4,11).
rejeitado, e David, o rei escolhido. 4,12-22 A glória de Israel vai embora. Depois
O capítulo começa com a observação de que da tomada da Arca, o ministério da casa de Eli chega
■eram poucas as visões vindas do S enhor e termina ao fim com a morte de Hofni, Pinhás e o pai de
com Samuel recebendo frequentes revelações em ambos. O choque da perda é tal que a mulher de
Shilô. No meio, Eli e Samuel se falam duas vezes Pinhás morre ao dar à luz (v. 19). Seu filho, chama­
(w. 4-9.16-18). O centro do capítulo é dado às pala­ do por ela simbolicamente de I-Kabod, que signifi­
vras que o Senhor dirige a Samuel sozinho (vv. 10­ ca “Não há mais glória”, vive e é mencionado em
14). O Senhor nada diz sobre o futuro de Samuel, ISm 14,3 como tio de Ahiá, sacerdote no acampa­
mas se concentra na condenação da casa de Eli, mento de Saul. (Dar o nome conforme as circuns­
acrescentando que não há possibilidade de expiação. tâncias do nascimento da criança é comum na Bí­
A resignação de Eli com essa sentença é um reconhe­ blia. O filho de Sara, Isaac, tem um nome assim
cimento exemplar da soberania e da justiça divinas. [Gn 21,36] e também os filhos de Jacó [Gn 30,6­
Quando Samuel abre as portas do Templo pela 24; 35,18]. E muito pertinente no caso de Raquel
manhã, interpreta a comunicação da palavra do que, como a nora de Eli, morre durante o parto.)
Senhor ao povo depois de um longo silêncio. Para 5.1- 5 A humilhação de Dagon. Como alívio
Israel e para Samuel, será um novo dia. dos tristes acontecimentos do capítulo 4, esse relato
introduz um tom mais leve. É assegurado ao público
israelense que, embora a Arca estivesse perdida, o
li. A ARCA DA ALIANÇA
Senhor ,cuja presença ela representava, não perdeu
ISm 4-7 o poder divino. Aqui, o deus filisteu Dagon é desde­
Desde a caminhada no deserto do Sinai, os nhado em dois episódios cada vez mais humilhantes.
israelitas foram acompanhados pela Arca da Alian­ No primeiro, ele pareee se curvar diante da Arca que
ça, símbolo tangível da presença do S enhor que fora levada a seu templo. No segundo, está desmem­
habitava no meio deles (Ex 37,1-9). A Arca era brado diante dela. Ficamos sem saber se foi possível
uma caixa de madeira recoberta de ouro que se consertá-lo. Tal é o destino, diz a história, de deuses
acreditava conter as tábuas da lei dadas a Moisés fabricados por mãos humanas.
no monte Sinai (Ex 19-20). As tradições dos capí- 5,6-12 A Arca aflige as cidades filistéias. Na
250 tulos 4—7 preenchem a lacuna entre o ministério passagem anterior, a Arca criou problemas para o
1 SAMUEL 7

deus Dagon em seu templo de Ashdod, uma das começou, com a Arca indesejável para os filisteus
cinco principais cidades filistéias. Agora cria pro­ e para o próprio povo de Deus.
blemas para os próprios filisteus. Há uma praga de 7,1-6 Samuel começa seu ministério. Exceto
ratos em Ashdod, hemorróidas em Gat e morte em pela transferência para Jerusalém em 2Sm 6, a histó­
Eqron. Quatro vezes (vv. 6.7.9.11) ficamos sabendo ria da Arca termina no v. 2. Apesar da acolhida du­
que isso acontece porque a mão do Senhor pesa vidosa e da ausência de um santuário adequado como
sobre os filisteus. Com a mesma repetição, dessa existira em Shilô, os israelitas estão satisfeitos porque
vez do verbo hebraico “transferir”, o autor bíblico pelo menos ela está de novo na terra deles. A perma­
enfatiza que a Arca foi transferida de uma cidade nência da Arca em Qiriat-learim tem resultados po­
para outra (vv. 8.9.19). Em cada cidade, o sofrimen­ sitivos, pois o V. 3 fala do desejo do povo de voltar
to aumenta, como aconteceu com a indignidade de para o Senhor. Vinte anos mais tarde, estão dispostos
Dagon. Houve uma escalada semelhante durante as a assumir isso em público diante de Samuel em Mispá,
dez pragas em Ex 7-12 e nas pressões exercidas provavelmente o local ao norte de Jerusalém. (A
sobre os que detinham Sara e Rebeca antes de solta- passagem lembra Jacó em Betei [Gn 35,1-7], onde
rem-nas (Gn 12,20.26). Podemos sorrir com os israe­ o Senhor pediu-lhe que fizesse um altar. Lá como
litas porque os filisteus foram derrotados dessa ma­ aqui, foi exigido o abandono de todos os deuses es­
neira e também porque seu grito de dor subiu, não trangeiros.) Samuel menciona, de maneira explícita,
a Dagon, mas ao Deus de Israel no céu. Báals e Astartes, objetos de fertilidade usados no
6,1-9 Os filisteus planejam devolver a arca. culto idólatra.
Nesta narrativa teológica, os filisteus realizam o de­ Os israelitas expressam submissão em uma ce­
sejo de devolver a Arca. Depois de consultar seus rimônia de expiação, que inclui derramamento de
conselheiros, separam duas vacas de suas crias para água, jejum e a confissão dos pecados. A liderança
que elas apontem o causador das pragas. De fato, de Samuel nesta ocasião inicia seu ministério ativo
a reação normal seria que as vacas voltassem para em Israel. Hofhi e Pinhás eram sacerdotes que não
suas crias. Mas, se se voltassem para a fronteira is­ tinham nenhum conhecimento do S enhor (2,12).
raelita, isso significaria que fora o S enhor quem Agora Samuel vem no lugar deles como sacerdote
provocara seus problemas. e juiz, com esse conhecimento, e por seu intermédio
Os filisteus conhecem bastante a história israe­ Israel recebe bênçãos e vitória.
lita para ver um paralelo entre esse acontecimento 7,7-17 A liderança de Samuel. A reunião de
e as pragas causadas aos egípcios antes do Êxodo e
Israel em Mispá tinha propósitos religiosos, mas os
estão determinados a não repetir a teimosia de Faraó,
filisteus usam-na para um confronto militar. Mais uma
nem suas conseqüências. Como “simpatia”, fundem
vez Samuel intercede e, antes que seja preciso lutar,
o ouro de suas ofertas aplacadoras em forma de cinco
os filisteus se dispersam com medo dos trovões. Israel
tumores e cinco ratos, um para cada uma de suas
aproveita a oportunidade para persegui-los. A vitória
cidades. Deixando os animais levar os símbolos das
é atribuída ao Senhor e devidamente assinalada por
pragas, esperam eliminá-las de sua terra.
Samuel com uma pedra. Esta “Pedra do Socorro”
6,10-18 A Arca retorna; algumas conseqüên­
cias inesperadas. As vacas atreladas ao carro da (Ében-Êzer) não é a mesma que a de 4,1, embora
Arca comportam-se de maneira exemplar, como se ambas mostrem o Senhor ajudando Israel, uma por
estivessem à frente de uma procissão para Bet- meio da Arca, a outra pela intercessão de Samuel.
-Shémesh, provavelmente a cidade israelita mais Agora a presença de Samuel substitui a da arca.
próxima de Eqron, para onde a Arca fora levada Nas mãos dos filisteus, a Arca percorreu as cidades
por último. Os israelitas se alegram ao vê-la e cele­ deles; agora é Samuel que percorre as quatro cida­
bram oferecendo um sacrifício, da mesma forma des mencionadas, julgando.
que Eliseu sacrificará seus bois, usando o equipa­ Por enquanto, os filisteus não são mais ameaça
mento para fazer o fogo (IR s 19,19-21). Como para Israel. David terá de combatê-los mais tarde (caps.
acontece com freqüência, uma grande pedra marca 13; 23; 2Sm 5,17-25), mas, a essa altura, as cidades
o lugar do sacrifício e da intervenção divina. que a Arca visitara ficam sob o controle israelita.
6,19-21 Problema para Israel. A volta da arca Ao construir um altar para o S enhor, Samuel
é prejudicada pela morte de várias pessoas que está na tradição de Noé (Gn 8,20), Abraão (Gn 12,7;
deixaram de saudá-la e, assim, cometeram o peca­ 22,9), Isaac (Gn 26,25), Jacó (Gn 35,7), Moisés (Ex
do de irreverência (cf. a desgraça de Uzá em 2Sm 17,15; 24,4), Aarão (Ex 32,5) e Josué (Js 8,30).
6,6-8). O poder e a santidade do Senhor represen­ Samuel é profeta como Moisés e, como Josué, sacer­
tados na Arca tomam-se tão amedrontadores para dote e também juiz. É a única figura bíblica que é
os israelitas quanto haviam sido para os filisteus. sacerdote, profeta e juiz. Depois dele, as vocações
Sem revelar a razão, o povo de Bet-Shémesh envia sacerdotal e profética começam a se separar. Entre­
mensagens aos habitantes de Qiriat-learim, cerca de tanto, mesmo Samuel, com a plenitude de autori­
doze quilômetros ao norte de Jerusalém, para que dade e carisma, não satisfaz o povo, que deseja ser
venham buscar a Arca. O capítulo termina como conduzido por um rei, como outras nações. 251
1 SAMUEL 8

III. SAUL, O PRIMEIRO REI 9,1-2 Saul é apresentado. Duas vezes nos é
ISm 8-15
revelado que Saul é um benjaminita do norte, em
contraste com David, cujas origens estão em Judá,
Estes capítulos relatam a mudança turbulenta no sul. À medida que a história se desenvolve, essa
do governo de líderes como Samuel para o de um distinção significa mais. A entrada de Saul na rea­
rei. Com a perda da Arca e a constante ameaça dos leza é auspiciosa. É bonito, mais alto que a maioria,
filísteus como pano de fundo, os israelitas cada e filho de um homem rico. “Bonito” e “valente” são
vez mais vêem no estabelecimento da monarquia a palavras também usadas para descrever David (16,18)
solução para suas fraquezas. A princípio Samuel cujo ancestral, Bôaz, era homem rico (Rt 2,1). Nos
resiste, mas, por ordem do Senhor , unge Saul livros de Samuel há muitas pessoas belas ou boni­
(8,22). Depois de ser escolhido pela sorte (10,21) tas: David, Bat-Sheba, Amnon, Absalão e Adonias,
e derrotar os amonitas, Saul é oficialmente empos­ mas que, quase sempre, tiveram um fim infeliz (cf.
sado em Guilgal (11,15). Em um estado de espírito 2Sm 11.13; IRs 1-2). O autor parece advertir que
negativo, Samuel adverte o povo sobre as prerro­ tais dons exteriores não indicam necessariamente a
gativas de um rei (cap. 12). A monarquia traz vanta­ aprovação divina e que podem ser fonte de orgulho
gens, mas é preciso estar preparado para os efeitos e desobediência à Lei. Não é a aparência que Deus
colaterais. aprova, mas o que está no coração (16,7).
A advertência de Samuel encontra certa concre­ 9,3-10 A busca infrutífera. Aqui vemos Saul
tização quando mais tarde o Senhor rejeita o pri­ em ação. Filho obediente, procura com diligência
meiro rei ungido de Israel. O texto indica que Saul as jumentas perdidas do pai. Saul e seu servo atra­
fracassa porque desobedeceu à palavra do Senhor vessam quatro regiões diferentes em sua busca
a ele foi transmitida pelo profeta Samuel (caps. 13 ampla, mas infrutífera. Quando estão prestes a
e 15). Nem circunstâncias atenuantes nem o zelo desistir, a sugestão do servo leva-os ao homem de
pelo culto do Senhor podem invalidar este teste cru­ Deus em Suf. Só no v. 14 é revelado que o homem
cial de obediência à palavra, para o rei e também de Deus é Samuel. Na discussão para resolver se
para todos os israelitas. e como vão até o homem de Deus e que presente
8,1-5 O povo pede um rei. O texto hebraico lhe dar em retribuição pelo conselho sobre as ju ­
usa 0 substantivo ou o verbo para ter um rei uma mentas (vv. 3-10), o verbo “percorrer” é usado onze
dezena de vezes neste capítulo, com a palavra “juiz” vezes em hebraico. Os verbos de ação transmitem
empregada quase o mesmo número de vezes. A a intensidade da busca.
realeza está prestes a substituir o antigo sistema de 9,11-13 Samuel preside ao sacrifício. Agora
governo de Israel. Até agora, heróis carismáticos os verbos mudam de “percorrer” para “subir”, mos­
enviados pelo Senhor haviam conduzido o povo no trando que Saul e seu servo precisam não só subir
combate aos inimigos. Agora, em vez de pedir um para alcançar a cidade, mas também, depois de
novo juiz, o povo pede que Samuel designe um rei. entrar nela, subir de novo até o lugar alto onde o
8,6-22 O preço da realeza. Descontente com homem de Deus abençoaria o sacrifício. Aqui o
esse pedido, Samuel se zanga por causa do Senhor , lugar alto é local de culto do Senhor , mas mais
a quem reconhece como o verdadeiro e único rei de tarde esses lugares seriam condenados por causa
Israel. Na conversa reveladora com o Senhor ,Samuel de culto idólatra (Jr 2,20; 3,6).
enfrenta a realidade de um povo que foi continua­ Em vez de “homem de Deus”, perguntam pelo
mente infiel, apesar de receber grandes favores. O vidente, isto é, alguém que vê com maior percepção
V. 8 está entre uma ordem dupla para Samuel obe­ o presente ou o futuro. O narrador interpõe a infor­
decer ao povo. Depois que Samuel descreve o que mação de que na ocasião em que escreve a palavra
0 rei fará, a ordem contida nos w. 7 e 9 repete-se certa para ambos era “profeta” (v. 9). O v. 13 é
no V. 22. Se os filhos de Samuel aceitarem suborno, importante, pois não só inclui todas as palavras de
o rei tomará tudo que eles valorizam, inclusive a ação do capítulo; chegar, subir, encontrar, comer (três
liberdade (vv. 11.13.14-17). vezes) e chamar ou convidar, como contém a proi­
A advertência não é levada em consideração, bição exposta com cuidado contra comer antes que
apesar do lembrete de que não há caminho de volta Samuel chegue e abençoe o sacrifício. Saber isso
(v. 18), porque, depois que o rei for empossado, ajudará o leitor a entender a importância do fato de
será inútil reclamar. As vezes, O Senhor nos dá o Saul não esperar a chegada de Samuel no capítulo
que pedimos antes de sabermos se realmente o 13. E mais: a menção de convidados significa que
queremos. o sacrifício não era uma cerimônia pública, mas só
Talvez os vv. 11-17 tenham sido escritos como para convidados. As moças que dão informações
percepção tardia, depois que os israelitas aprende­ não parecem ser participantes.
ram bem o que significava ter um rei. A descrição 9,14-25 Samuel e Saul se encontram. Na reve­
é a de um reino florescente bem estabelecido, difi­ lação em que o Senhor prepara Samuel para a che­
cilmente comparável ao reinado simples e primitivo gada de Saul, a palavra “rei” nunca é usada. Saul
252 de Saul. deverá ser um comandante militar que salvará o povo
1 SAMUEL 11

das mãos dos filisteus. Embora essa não fosse a 17-21; 2Rs 1-9] eram desse tipo.) A experiência de
prática com os juizes, Samuel é instruído para ungir Saul aqui prenuncia um acontecimento semelhante
Saul. Essa unção e a porção especial que Saul rece­ em ISm 19,22-24.
be para comer (vv. 23-24) são indicações do caráter 10,14-16 Silêncio de Saul. Seria a modéstia
religioso da monarquia recém-instituída. natural que fez com que Saul omitisse a noticia de
Sem saber o que o aguarda e antes de ser ungi­ sua unção, quando o tio o interrogou? Ou Saul
do, Saul se vê como hóspede de honra no banquete precisava da ratificação pelo povo de sua realeza
de Samuel. Saul protesta com humildade contra o antes de tomá-la pública? De qualquer modo, a
louvor de Samuel, insistindo, como fizera Guideon, ratificação acontece mais tarde em Mispá (vv. 20­
que sua família é a mais insignificante de sua tribo 24). O mesmo acontecerá no caso de David, que
(Jz 6,15). Samuel promete dizer tudo o que se passa será ungido por Samuel (16,1-13) muito antes de
no coração de Saul. Com esse apoio profético, Saul se tornar rei de Judá (2Sm 2,4). Um futuro rei de
inicia um processo de autodescoberta à medida que Israel, lehu, também será ungido anos antes de
o S enhor faz Samuel conhecer sua vontade. Em vista subir ao trono (2Rs 9-10). De fato, Saul só se tor­
da revelação anterior recebida por Samuel de que nou rei depois de ser vitorioso contra os filisteus.
Israel rejeitara o S enhor em favor de um rei (8,7), 10,17-27 Saul é designado pela sorte. Como
é pura ironia Samuel descrever Saul como alguém aconteceu em 7,5, Samuel mais uma vez reúne todo
ardentemente desejado por Israel (9,20). Em seus Israel em Mispá para a escolha formal do novo rei
papéis diferentes, Samuel e Saul satisfazem neces­ pela sorte. A mensagem do S enhor começa como
sidades de Israel, um a de um profeta, o outro, a de um tratado entre um senhor e seu vassalo, lembran­
um rei. Qual deles será o verdadeiro líder de Israel? do 0 bem que o S enhor fizera pelo povo no passa­
9,26-27 Depois da festa. É uma surpresa que do. Embora o tenha libertado dos opressores, o povo
a unção não seja pública. Se todo Israel esperava rejeitou o rei divino em favor de um rei humano. O
um rei, por que todo esse sigilo? Talvez fosse um tom de Samuel é de repreensão e castigo, em vez de
meio de lembrar ao povo que o S enhor opera em alegria por um presente esperado. A escolha de Saul
seu tempo e de seu jeito oculto. prossegue em forma de uma inquisição. Inúmeras
10,1-8 Os sinais da unção de Saul. Samuel vezes pequenos embaraços anuviam a elevação de
dá a Saul três sinais para confirmar sua unção como Saul, dando a entender que desde o começo nem
chefe de Israel. Cada um deles ocorre em um lugar tudo estava bem.
diferente e satisfaz uma necessidade futura de Saul. Em resposta ao clamor do povo no deserto.
O primeiro é em Selsá, nome derivado do verbo Deus enviou maná e codornizes (Ex 16; Nm 11).
hebraico “vir sobre”. O verbo aparece duas vezes Comer as codornizes satisfez o desejo dos israelitas
neste capitulo e refere-se ao espírito que veio so­ de comer carne, mas lhes trouxe a morte. O maná
bre Saul (vv. 6.10). Esse sinal aponta para a loca­ foi a resposta divina à necessidade de alimento; logo
lização das jumentas e também para a vida e obra enjoaram dele, mas o maná os manteve vivos. De
de Saul. O segundo sinal, a provisão de cabritos, modo semelhante, Saul era o que o povo queria,
pães e vinho, dá-lhe o sustento para sua tarefa. As mas ele fracassou como rei. A pergunta dos vadios
dádivas são consagradas como oferendas a Deus e, se Saul podia salvá-los será respondida pela liber­
por isso, indicam a aprovação divina. O terceiro tação dos homens de labesh (11,9).
sinal liga a realeza de Saul ao dom do espírito e à 11,1-11 O desafio dos amonitas. Os amonitas
capacidade de profetizar. A existência de prefeitos eram antigos e importunos vizinhos de Israel que se
filisteus (v. 5) em Guibeá de Deus lembra a previ­ estabeleceram ao longo da costa nordeste do mar
são de Samuel (9,16) de que Saul salvará Israel Morto. A resposta de Nahash ao pedido de um trata­
desse incômodo inimigo. do com labesh é cruel, especialmente para ouvidos
Apesar dos sinais positivos, isto é, a transfor­ modernos. Enquanto essa resposta aterroriza todos os
mação de Saul em outro homem e a promessa de que a ouvem, hoje a reação de Saul seria igualmente
Samuel de que o Senhor está com ele (vv, 6-7), Saul detestável. O interessante é que Saul, o rei ungido,
passa por um teste imediato: deve esperar Samuel não sabe o que aconteceu porque estava arando (!) e
por sete dias em Guilgal e, então, o profeta lhe dirá precisa ser informado pelo povo. Só então o espírito
0 que fazer. Desde o início, Saul é “outro homem”, lhe sobrevêm e o impele à ação militar.
mas não é um homem dono de si mesmo, O sangrento chamado às armas por Saul traz
10,9-13 Saul como profeta, É fácil ver que as consigo uma terrível ameaça de castigo, fazendo com
habilidades proféticas de Saul não lhe trazem o que milhares venham ao combate. Um desmembra­
respeito conferido a Samuel. Na época, a profecia mento semelhante com o envio das partes a todas as
era um fenômeno mais comum em Israel do que tribos de Israel é relatado em Jz 19-20, desta vez
seria o caso mais tarde. Os primeiros profetas via­ para punir uma atrocidade israelita.
javam em bandos chefiados pelo “pai” (v. 12) e Além da liderança carismática de Saul, não há
entravam em estados de transe, muitas vezes pro­ nenhum sinal especial de intervenção divina no
vocados por música (v. 5). (Elias e Eliseu [IRs combate contra os amonitas (v. 11). Os habitantes 253
1 SAMUEL 11

de labesh haviam levado os amonitas a esperar a Sem carros nem cavalaria, os três mil homens são
rendição (v. 3), estratagema bem-sucedido que deve deploravelmente sobrepujados. A única nota alegre
ter agradado aos ouvintes israelitas. O zelo de Saul é 0 ataque bem-sucedido de Jônatan ao posto
traz a vitória que confirma sua realeza. filisteu em Guibeá (v. 3). Depois disso, Saul pro­
11.12- 15 Renovação da realeza de Saul.clama a vitória (v. 4), fazendo os fiiisteus retomar
Embora o povo peça a Samuel para entregar os a luta. Os soldados amedrontados desertam em
homens que desafiaram o governo de Saul, é Saul grande número (vv. 6-7), enquanto Saul, apegan­
que toma a decisão de perdoá-los. Entretanto, a do-se aos que restaram, espera Samuel para presi­
iniciativa de Samuel causa a renovação da realeza dir ao sacrifício que os preparará para o combate.
em Guilgal. Samuel conserva seu papel de líder 13,8-18 O teste de Saul. Com a deserção de
religioso e fazedor de reis, mas Saul emerge como suas tropas dispersas, houve enorme pressão sobre
herói militar triunfante, digno de ser rei. Saul para impedir que o exército se desintegrasse.
12,1-5 Samuel exige uma avaliação. Quando O fato de Samuel não conseguir chegar a tempo é
a vida de Samuel se aproxima do fim, ele exige intrigante, pois o atraso estava desmoralizando os
uma avaliação de seu ministério, atitude incomum soldados. Foi afirmado que o povo era obrigado a
na história bíblica. Sua lista de possíveis infrações esperar o sacerdote para realizar o sacrifício (9,13).
daria um exame adequado para a carreira de qual­ Assim, é desobediência Saul usurpar o papel de
quer político. Samuel é completamente isento de Samuel e oferecer ele próprio o sacrifício. A con­
culpa. Não tomou nada, em contraste com o rei, fiança de Saul estava na “mágica” das oferendas
que, como previsto em 8,11-18, tomará tudo que o — e talvez na força que o alimento daria — mais
povo valoriza. Samuel sugere que o governo de um do que no Deus a quem as oferendas eram feitas
profeta é justo, comparado com o de um rei. e que decidiría o resultado do combate.
12,6-12 Uma história de infidelidade israe­ O impulsivo Saul fracassou nesse teste e a con-
lita. Com seus antecedentes esclarecidos, Samuel seqüência desse fracasso foi a perda da realeza.
desanda a falar sobre a ingratidão de Israel para Saul é figura trágica e sua história tem diversos
com 0 Deus que tirou seus pais do Egito e os presságios de um fim infeliz. A reprimenda de
salvou dos inimigos. Antes, Israel recebera um juiz Samuel sugere isso e indica nova escolha divina,
em tempos de opressão, mas agora o medo do um homem segundo o coração do Senhor (v. 14).
amonita Nahash é bastante grande para fazê-lo Samuel parte, deixando Saul com um exército di­
exigir o governo permanente de um rei. Embora zimado para enfrentar um ataque triplo dos fiiisteus.
agora Saul seja esse rei, Samuel ainda sofre por 13,19-23 A vantagem filistéia. Qs fiiisteus
causa da rejeição pelo povo do Senhor como o controlavam não só o preço das ferramentas amola­
verdadeiro rei de Israel. O v. 10 menciona explici­ das, mas também a manufatura do ferro. Os israelitas
tamente a tentação perene de Israel: a confiança e tinham de se contentar com relhas de arado e armas
o culto de outros deuses. que só podiam ser amoladas pelos fiiisteus. Saul e
12.13- 18 Um sinal do descontentamento doJônatan, os únicos que possuíam armas, tentaram
Se n h o r .O povo está enganado se pensa que pode combater, apesar dessas desvantagens, porque acredi­
descansar facilmente no que diz respeito à obe­ tavam que a vitória na guerra pertencia ao Senhor .
diência e ao culto do Senhor . Samuel mais uma Se Israel perdesse, seria porque, irado, o Senhor se
vez adverte-os de que o Senhor seu Deus é o afastara do povo. Se vencesse, o Senhor estava com
Senhor da história, com ou sem um rei humano. O eles. Um aspecto importante da guerra israelita no
rei não está acima da lei divina. O sinal da sobe­ tempo de Samuel era o interdito que exigia que
rania divina vem com o pedido de Samuel para todos os despojos tomados na vitória fossem dedi­
que troveje e chova durante uma estação em que cados ao Senhor , isto é, fossem completamente
isso quase nunca acontece. A colheita fica arruina­ destruídos, como holocausto ou sacrifício. A ques­
da; irado, o Senhor fez a vontade do povo. tão da destruição de um povo conquistado apresenta
12,19-25 Samuel intercede pelo povo. Embora um segundo teste para Saul no capítulo 15.
o povo admita ter pecado ao pedir um rei, não pode 14,1-15 Jô n atan provoca pânico entre os
desfazer esse ato. Quando pedem a Samuel para fiiisteus. A presença de Ahiá (v. 3) associa os es­
interceder junto aô Senhor ,ele lhes dá apoio e in­ forços de Saul ao sacerdócio rejeitado da casa de
centivo, mas adverte contra a idolatria. Essa será a Eli. Jônatan, que domina este capítulo, é exceção,
mensagem típica dos profetas posteriores, apesar da pois, em contraste com seu pai, nada adverso foi
infidelidade do povo. Os israelitas serão punidos se jamais relatado sobre ele. A fé de Jônatan está por
fizerem o mal, mas, como Samuel, o Senhor nunca trás de sua atribuição do sucesso ao Senhor (v.6).
os abandonará. Por sua parte, eles devem temer e A fidelidade do escudeiro lembra a fidelidade que
cultuar o Senhor ,para não ser aniquilados. 0 Senhor esperara e não recebera de Saul. Nessa
13,1-7 Vitória de Jônatan contra os fiiisteus. percepção do Senhor ,Jônatan é como David, que,
Depois da vitória contra os amonitas (11,11), Saul antes de entrar em combate, sempre consultará o
254 enfrenta um inimigo muito superior, os fiiisteus. S enhor (cf. 23,2.4; 30,8; 2Sm 2,1). Na façanha de
1 SAMUEL 16

Jônatan, o pânico filisteu e o terremoto que se 15,10-23 Segunda rejeição de Saul. Quando
segue são claramente atos do Senhor .A confiança Saul desobedece, poupando a vida de Agag e o
de Jônatan contrasta com o julgamento incorreto e melhor dos despojos amalequitas, o S enhor se
a impulsividade de Saul. arrepende de tê-lo feito rei. O governo de Saul
14,16-23 Saul chefia a desordem. A confu­ toma agora um rumo visivelmente decadente. Pro­
são anormal no acampamento filisteu causada pelo curando repreender Saul, Samuel descobre que ele
ataque de Jônatan tem dois resultados vantajosos foi a Karmel para erigir um monumento a si pró­
para Israel: os antes destemidos filisteus começam prio. Quando se encontram, Saul diz em tom con­
a se matar uns aos outros e os desertores israelitas fiante: “Eu obedeci à voz do S enhor”. Esses inci­
voltam a Saul, que mais uma vez lucra com o su­ dentes mostram a vaidade de Saul e o fracasso no
cesso de Jônatan (cf. 13,4). O autor atribui a vitória conhecimento do Senhor.
ao S enhor ( v. 23). O encontro é jocoso e também irônico. Samuel
14,24-30 O juram ento temerário. O juramen­ não deveria estar ouvindo os balidos e mugidos
to irrefletido de Saul, proibindo os soldados exaus­ que ouve; a desobediência que Samuel veio casti­
tos de comer, é obedecido por todos, menos por gar é negada pelo culpado. O oráculo poético de
seu filho, que não fora informado. O soldado que Samuel (vv. 22-23) põe em perspectiva o sacrifício
informa Jônatan e o próprio Jônatan criticam aber­ exterior relacionado a uma atitude interior de obe­
tamente a ordem de Saul (vv. 28-30). O soldado diência. Também liga as práticas israelenses de adi­
menciona a fraqueza do povo; Jônatan fala de seu vinhação e idolatria ao pecado e à presunção. Ao
próprio restabelecimento por ter comido um pouqui­ superestimar o ritual, Saul fatalmente confundiu
nho de mel, descrevendo o ato do pai como incômo­ seus valores (cf. 13,11-13; 14,33-35).
do para o povo e, portanto, contraproducente (cf. 15,24-31 Saul se arrepende. Saul admite sua
Jz 11,29-31). culpa, culpando o povo, mas Samuel não aceita a ex­
14,31-36 Saul corrige a desobediência ritual. plicação nem reconhece que Saul pode ter agido com
Saul mais uma vez demonstra pouco juízo quando boa-fé. Saul acha a rejeição impossível de suportar e
o povo por demais faminto não deixa o sangue es­ suplica a Samuel que o acompanhe no sacrifício.
correr da carne antes de comê-la, como eram obri­ Samuel concorda, mas não antes de apresentar outra
gados a fazer (Lv 3,17). Saul mostra-se piedosa- rejeição simbólica: arrancar a ponta do manto de
mente preocupado com o ritual apropriado e, para Samuel é como se a realeza de Saul fosse arrancada.
seu mérito, faz depressa os arranjos necessários. 15,32-35 Samuel realiza a tarefa de Saul. A
Embora queira fazer a vontade do S enhor, é um sentença de Samuel para Agag é uma reafirmação da
desastrado que põe mais fé na cerimônia do que no lex talionis que prescreve que o castigo deve condizer
S enhor. Até o altar que constrói por devoção parece com 0 crime (Lv 24,17-21). Assim como Agag, por
desnecessário. sua espada, privou as mulheres dos filhos, sua mãe
14,37-46 Jônatan salvo pelo povo. Tendo de ficará sem seu filho. E sentença lapidar e incontes­
ser lembrado para consultar o S enhor (v. 36), Saul tável do Senhor (v. 33), que usa acontecimentos hu­
não recebe resposta e conclui que a causa é o manos para fazer sua inescrutável vontade.
pecado de alguém. Até a vida de seu filho não é Talvez o leitor de hoje fique atônito com o
um preço baixo demais para pagar a fim de afastar sangue-frio do profeta ao completar o interdito com
o silêncio do S enhor. O desconhecimento da von­ a morte de Agag, mas os profetas bíblicos não são
tade de Deus atormenta o reinado de Saul e pre­ conhecidos como covardes diante da morte (cf Ex
nuncia sua morte (cf. os caps. 28 e 31). Quando o 32,25-28; IRs 18,40). Não pode haver sentimenta-
povo salva Jônatan do fanatismo do pai, a sanidade lismo na obediência a Deus, que “faz morrer e faz
viver” (2,6).
de Saul é posta em dúvida.
14,47-54 As guerras e a genealogia de Saul.
Apesar do que foi dito acima, Saul parece ter supe­ IV. SAUL E DAVID
rado militarmente seus inimigos vizinhos (v. 47). O
capítulo conclui com uma lista dos filhos, mulhe­ ISm 16-31
res e generais de Saul. É tratamento bíblico padrão Da mesma forma que o sacerdócio da casa de
no fim de um reinado. Talvez também assinale o Eli foi eliminado e substituído por Samuel, aqui
fim da realeza de Saul. Saul é rejeitado e substituído por David. A casa de
15,1-9 Saul “reinterpreta” suas ordens. As Eli pecou contra o culto do S enhor; Saul pecou ao
palavras de Samuel deixam claro que o S enhor é não impor o interdito contra Amaleq e ao usurpar
supremo e que, como fez Saul rei, o rei precisa obe­ 0 papel de Samuel como sacerdote no oferecimen­
decer ao S enhor. O fato de Saul poupar Agag frus­ to do sacrifício. As duas infrações dizem respeito
tra o decreto divino do castigo, que devia recompen­ ao culto do S enhor e ficaram sujeitas à destruição
sar Israel pela crueldade de Amaleq (Ex 17,8-16; das respectivas casas.
Dt 25,17-19) e zomba do interdito (cf. comentário Do mesmo modo que Eli atuou como sacerdo­
sobre 13,19-23). te depois de sua rejeição (ISm 2-3), também Saul 255
1 SAMUEL 16

continua como rei, embora o Senhor já não esteja litas. A destemida aceitação por David do desafio
com ele. Orientado pelo Senhor ,Samuel unge um de Goliat destaca-se contra o terror abjeto dos is­
novo rei, David, que se mostra soldado competente raelitas (v. 11).
e bem-sucedido em tudo que faz. Nestes capítulos, A recompensa que Saul promete ao defensor
Saul o persegue por ciúme desse sucesso, mas de Israel lembra contos de fedas em que se prome­
David habilmente escapa sempre. Por fim, Saul cai tem ao herói fortuna e a mão da filha do rei. Uma
vítima do próprio inimigo cuja derrota fora o propó­ vantagem mais realista vem em forma de isenção
sito de sua coroação (9,16; 10,1). de impostos para a família do herói. Por isso tudo,
David tem todas as características desejadas em vemos como o exército e o governo de Saul eram
um herói bíblico: aparência agradável, oratória e financiados e que a advertência de Samuel sobre
também habilidade musical. Comparado a Saul, os direitos do rei estava se cumprindo (8,10-17).
David é superior desde sua primeira apresentação. A oferta de Saul para fazer de David seu genro
O mais importante é o Senhor estar com ele, o que dá-lhe um grande direito de suceder ao trono. A
é dito apenas uma vez sobre Saul (10,7) e diversas previsão posterior de Jônatan de que David seria
vezes sobre David (16,18; 17,37; 18,12.14.28; 20,13). rei reflete esse costume (20,12-16; 23,17).
16.1- 13 Unção de David. O pesar de Samuel Agora um pequeno drama doméstico acontece
pela rejeição de Saul sugere não só que ele alimen­ na acolhida zangada que David recebe do irmão
tara esperança pelo sucesso de Saul como rei, mas mais velho Eliab (v. 28). O papel de David aqui é
também que se sentia ligado a ele (c f 15,11). A comparável ao de José, enviado aos irmãos pelo pai
brusca intervenção do S enhor impede mais tristeza; enquanto eles apascentavam os rebanhos (Gn 37).
ele está decidido a escolher outro rei. Nos dois casos um irmão mais moço de extraordi­
O temor que Samuel tem de que Saul o mate nária promessa é objeto de ciúme e desprezo.
(v. 2) nos surpreende, pois nega a impressão de 17,38-54 O encontro decisivo. Quando David
que Samuel tinha autoridade sobre Saul. O Senhor não consegue usar a armadura de Saul para lutar
encoraja Samuel com um subterfúgio. A nova unção com o filisteu, recorre a outras habilidades e confia
deve ser feita sob a capa de um sacrifício na casa no S enhor. Junto com pedras e uma funda, esses
de Jessé em Bet-Lehem. A pergunta dos anciãos: eram os meios simples para derrotar Goliat. A teo­
“E uma ocasião feliz que te traz?” (v. 4), adverte logia do evento resume-se na declaração de David;
que a palavra profética podería trazer tanto o bem “Não é pela espada, nem pela lança que o S enhor
como o mal (cf. IRs 1,9-16; 2,23-24). concede a vitória” (v. 47).
Samuel unge David em um banquete particular, Há um anacronismo óbvio no v. 54, pois Jeru­
sem ostentação (compare com a unção de Saul em salém só se tornou cidade israelita quando David
9,22-27; 10,1). E o último ato profético registrado já era rei (2Sm 5). A menção de Jerusalém e da
de Samuel antes de sua morte (25.1; 28,3). tenda de David é adição mais tardia.
16,14-23 David, o futuro rei. Em outro sinal 17,55-58 Saul encontra David pela primeira
de rejeição, o espírito do Senhor agora se afasta de vez. E esquisito que Saul, que fizera de David seu
Saul e é substituído por um espírito maligno. Mas escudeiro e tocador de citara em 16,21 -23, nada saiba
Saul não fica sem alívio. O fato de David ser o meio sobre o novo herói, o mesmo acontecendo com seu
para expulsar o espírito maligno dificilmente pode general, Abner. Os comentadores suspeitam que aqui
ser coincidência. possa ter sido acrescentado um relato alternativo.
O relacionamento de David com Saul tem co­ 18,1-4 A aliança de amigos. Pai e filho são
meço feliz. Saul sente imediata atração por David imediatamente atraídos a David, em resultado de sua
e lhe dá a função de escudeiro, o que significa trei­ vitória sobre Goliat. Saul fá-lo parte de sua família e
namento em serviço para a realeza. Mas essa mes­ Jônatan tira as vestes e as armas para entregá-las a
ma proximidade logo causará problemas. David. O presente equivale à abdicação do trono em
17.1- 11 Goliat insulta o exército de Israel. Ofavor de David. Essa amizade é profusamente gene­
desafiante que sai do acampamento filisteu é tão rosa e dura a vida toda, enquanto que o amor menos
forte e está com uma armadura tão imponente que desinteressado de Saul por David logo se acaba.
aterroriza Saul e seu exército acampado na colina 18,5-30 Saul se volta contra David. Quando
oposta. Parecem ter se esquecido que quem deter­ a popularidade de David aumenta com suas vitó­
mina a vitória é o Deus de Israel (14,6; 17,47). rias, a ponto de fazer que as mulheres cantem sobre
17,12-37 David, herói e salvador. Sem men­ ele em detrimento de Saul (v. 7), em um ataque de
cionar sua unção anterior por Samuel, o autor rein- ciúmes Saul tenta cravar David na parede enquanto
troduz David como um filho mais novo enviado ao este toca sua citara. O medo do rei aumenta quan­
acampamento israelita com provisões para seus do David foge e ele percebe que o espírito do
irmãos. Alguns comentadores atribuiram essa dis­ Senhor o abandonou e está com David (vv. 12.15).
crepância a uma outra tradição aqui incluída no Essa transferência do espirito foi a explicação bíbli­
texto. Entretanto, o que hoje vemos como contra- ca para o contínuo sucesso de David contra os filis-
256 dição muitas vezes não era problema para os israe­ teus (vv. 5.30).
1 SAMUEL 21

Saul, que tinha motivos para ser grato a David, A principio, Jônatan parece ser um obstáculo para
age três vezes com má-fé contra ele. Primeiro, ofe­ que David se tome rei, já que é o legítimo herdeiro
rece-lhe a mão de sua filha mais velha, Merab, de Saul. Ao contrário, é o meio pelo qual se cumpre
somente para dá-la a outro homem (w. 17.19); se­ 0 destino de David. Este capítulo marca a mudança
gundo, envia David para a guerra, na esperança de no papel de Jônatan de príncipe herdeiro ptira súdito
que os filisteus o matem (v. 17), tática que o próprio de David. E mais: em seu sucesso contra os filisteus
David usará contra o marido de Bat-Sheba em 2Sm no capítulo 14 e sua salvação subsequente pelo povo,
11-12); terceiro, oferece a David a posição de genro Jônatan, com efeito, substitui o pai como rei. Quando
em troca da entrega de cem prepúcios de filisteus, dá a David todos os acessórios da realeza, Jônatan
na esperança de que o perigo da incumbência traga abdica do trono (cap. 18). A realeza de David, insti­
a morte a David (v. 25). Embora, por modéstia, David tuída divinamente pela unção de Samuel (cap. 16),
hesite em se tomar genro (vv. 18.23), fica contente tem, assim, a intercessão humana de Jônatan.
e parece não ter consciência da animosidade de Saul 20,11-17 O juram ento de fidelidade. O pacto
(v. 26). Na entrega do dobro de prepúcios, Saul dá entre David e Jônatan contém duas premonições:
a David a mão de sua filha mais nova, Mikal. Jônatan, o esperado herdeiro do trono, dará lugar a
David parece já ter ultrapassado Jônatan mili­ David e depois morrerá (vv. 14-16). Ambos enfren­
tarmente, de quem não é relatada nenhuma outra tam a morte; ambos estão na fila para a realeza. A
vitória além da do capítulo 14. Jônatan cai, enquan­ bênção de Jônatan para David (v. 13) reconhece a
to David sobe (compare Jo 3,30). rejeição de Saul e indica a sucessão de David.
19.1- 17 Jônatan e Mikal ajudam David. Em 20,18-34 Jônatan testa seu pai. Saul tenta de­
defesa do amigo, Jônatan consegue do pai um jura­ sesperadamente conter a maré favorável a David,
mento de que não matará David (v. 6). Entretanto, matando-o. Quando Jônatan desculpa a ausência de
quando o espírito maligno volta para incitar Saul a David, a reação de Saul vem com vingança. Em
cravar David na parede com sua lança, Mikal junta­ palavras bastante abusivas, Saul ataca não somente
-se a Jônatan para proteger David. Depois de conven­ Jônatan, mas também sua mãe, insinuando uma trai­
cê-lo do perigo de Saul (v. 11) e fazê-lo descer em ção não revelada por parte dela. Em vez de tentar
segurança pela janela, ela demonstra espírito inven­ atrair Jônatan para seu lado, Saul aumenta o afasta- •
tivo ao enganar os soldados do pai (vv. 13-16) e co­ mento, brandindo a lança contra o próprio filho.
ragem ao enfrentar sua repreensão (v. 17). Assim, o Pela primeira vez, Jônatan se zanga e sai da sala.
infeliz Saul vê-se afastado dos dois filhos por causa 20,35-42 Jônatan m anda David se pôr a ca­
de seu comportamento com David. O fato de haver minho. Aqui, Jônatan se junta à irmã Mikal para
um ídolo na casa de Mikal sugere que, na prática, corajosamente defender David contra a intenção
0 culto do S enhor não era tão puro quanto exigia o assassina de seu pai. Quando Jônatan se afasta do
ideal bíblico (compare Gn 31). pai, 0 isolamento de Saul aumenta e com ele sua
19,18-24 Saul junta-se aos profetas. O espírito loucura. Ao término da cuidadosa charada de atirar
do Senhor age para frustrar Saul em sua tentativa de flechas, David apresenta a Jônatan a tripla home­
agarrar David. Os que estavam por perto devem ter nagem que cabe a uma pessoa régia. Salvando-lhe
achado engraçado ver todos os emissários de Saul e a vida, Jônatan ajudou David a ser rei. Mais tarde,
depois ele próprio arrebatados pelo espírito ao se David preservará a posteridade de Jônatan, salvan­
aproximarem dos profetas entre os quais David se do seu filho (2Sm 9; 21,7).
escondera. A passagem em que Saul, em situação 21,1-10 Ahimélek ajuda David. Com a ines­
altamente indigna, caminha em transe com seus emis­ perada chegada de David sozinho em Nob, Ahimélek
sários confirma o dito popular de 10,11-12: “Tam­ tem a premonição de que nem tudo está bem. Teme
bém Saul entre os profetas?” Essa descrição reforça que David seja um fugitivo e que ele e seus compa­
a incompetência e a rejeição de Saul e ao mesmo nheiros não estejam religiosamente preparados para
tempo reflete a depreciação popular da profecia pri­ comer o pão destinado aos sacerdotes. Apresentan­
mitiva. O ponto principal é que o Senhor está prote­ do-se como se estivesse em missão confiada por
gendo David contra Saul, para decepção do rei. Saul, e sob o preceito da guerra santa, que exigia
20.1- 10 Jônatan promete lealdade a David. abstinência de relações sexuais (Lv 15,18; Dt 23,10),
Com as mesmas palavras ditas por Saul ao poupar David minora seu medo e recruta sua ajuda. Con­
os rebeldes que antes haviam se oposto a seu governo vencido de que tudo está em ordem, Ahimélek não
(11,13), Jônatan pronuncia o que é quase um decre­ procura esconder de Doeg, um servo de Saul, o fato
to real, afirmando que David não morrerá nas mãos de ter dado pão e armas a David (v. 8). Mais tarde,
de Saul (v. 2). Ao fazer isso, opõe-se à vontade de a presença de Doeg exigirá um ajuste de contas. O
seu pai e transfere sua lealdade de Saul para David. episódio mostra que as necessidades humanas têm
Por seu lado, é tão grande a confiança de David em precedência sobre as normas cultuais, pormenor
Jônatan que ele pede a Jônatan que o mate, se for também salientado quando os discípulos arrancam
provado culpado (v. 8), em vez de deixá-lo morrer espigas de trigo para comer no sábado (Mt 12,3-4;
nas mãos de Saul (compare 2Sm 14,32). Mc 3,25-26; Lc 6,3-4). 257
1 SAMUEL 21

21,11-16 David foge para Akish de Gat. A S enhor está com David de maneira concreta, pois
segunda pessoa que David encontra ao fugir de Saul 0 efod permite-lhe acesso cultuai à vontade do
é Akish, rei de Gat. Com Ahimélek, David repre­ Senhor.
sentara o papel de alguém que recebera uma missão 23,7-13 Saul frustrado mais uma vez. Saul
de Saul; com Akish, finge loucura, pois os atacados entende a presença de David em Queilá como
de insanidade eram considerados possuídos por um oportunidade dada por Deus para agarrar o inimigo.
espírito maligno, o que os tomava intocáveis. Em­ Dois outros usos do efod dão a conhecer a David
bora David, o caçado, pareça estar louco, não está; o plano de Saul de persegui-lo e a traição dos in­
Saul, 0 caçador, é o verdadeiro louco. gratos cidadãos de Queilá. Por causa desse conhe­
22.1- 5 David provê para seus pais. O refúgio cimento, David foge com seus homens, agora em
de David na caverna de Adulâm possibilita a for­ número de 600. Mais uma vez, a narrativa contras­
mação de um bando. Agora não mais hostis, seus ta Saul e David; este último é visto como devoto,
irmãos juntam-se a ele e, com alguns rejeitados temente e obediente a Deus; o primeiro titubeia
pela sociedade, dão-Uie proteção. E o começo de por sua falta do conhecimento de Deus.
uma base de poder que levará à coroação de David. 23,14-18 David e Jônatan se encontram pela
Em vista da perseguição de Saul, David pede última vez. Os detalhes essenciais do relacionamento
permissão para que seus pais morem provisoria­ entre David e Jônatan, esboçados em 18,1-4, são
mente em Moab. A dúvida de David sobre aonde aqui ampliados. Jônatan reconhece abertamente que
devia ir em seguida resolve-se com as instruções David será rei e seu pai não conseguirá alcançá-lo
do profeta Gad para que volte a Judá — e o peri­ (v. 17). Só a previsão da posição de Jônatan como
goso campo de ação de Saul. Em todas as vicissi- ajudante de David não se concretiza, pois Jônatan
tudes, o S enhor continua a cuidar de David. não vive o bastante para ver David coroado rei. As
22,6-23 Doeg trai Ahimélek. A cena muda palavras de Jônatan confirmam sua lealdade a David
para o acampamento de Saul, onde, de lança em e a desistência de qualquer direito ao trono.
punho, ele se queixa da deslealdade de seus ho­ A breve visita de Jônatan fortalece a resolução
mens. A paranóia está envolvendo a apreciação dos de David e confirma o cuidado oculto que o S enhor
eventos por Saul, de modo que até mesmo os mais tem pelo rei que favoreceu. Depois de renovada sua
próximos a ele são suspeitos. A revelação por Doeg aliança, Jônatan se despede de David e da narrativa,
do encontro de David com Ahimélek em Nob leva exceto pela notícia de sua morte em 31,6-7.
Saul a agir. Quando Ahimélek se apresenta diante 23,19-28 Saul é desviado da perseguição.
dele, Saul, mais uma vez, faz uma acusação de Quando os habitantes de Zif se oferecem para reve­
conspiração (vv. 8.13) e se recusa a ouvir sua pa­ lar 0 esconderijo de David, Saul inexplicavelmente
tética, mas válida, defesa. O castigo de Ahimélek pede mais investigações. Anteriormente, quando
é um resultado previsto, mas não a reação à ordem soube que David estivera em Nob, agira imediata­
de Saul para matar os sacerdotes. Quando nenhum mente (22,11). Agora propõe uma busca ampla,
homem se move para obedecer à ordem, Saul pres­ que só dará a David mais tempo para fugir.
siona 0 edomita Doeg para que realize a tarefa Desde sua queixa de que ninguém lhe conta
cruel, presumindo que um estrangeiro teria menos nada (22,7-8), duas vezes Saul recebe informações
escrúpulos para executar israelitas. que quase levam à captura de David (vv. 7.19). Em
Doeg começa a matança pelos sacerdotes e es­ ambas as vezes tem de abandonar a perseguição
tende-a ao resto dos habitantes e aos rebanhos e ao devido a acontecimentos inesperados ou à interven­
gado de Nob. O que Saul deveria ter feito a Agag ção divina. Entretanto, Saul nem tem consciência
e aos amalequitas, faz aqui contra seu próprio povo disso, nem desiste da perseguição.
(15,3). Enquanto o verdadeiro alvo da animosidade 24,1-16 David pede justiça ao Senhor. É a
de Saul escape, um filho de Ahimélek, Ebiatar, terceira vez que espiões leais a Saul avistam David.
sobrevive para relatar o massacre a David (vv. Os três mil homens de Saul (v. 3) sobrepujam com
20.21). Com a chegada de Ebiatar, a história volta folga os 600 de David (23,13). Descoberto na caver­
aos fugitivos na floresta. Aqui, David aceita a res­ na, por David e seus homens, Saul está agachado
ponsabilidade pela matança em Nob, oferecendo a na mais humilhante das posições. O constrangi­
Ebiatar toda a proteção possível. mento do rei serve de realce a duas características
23.1- 6 David consulta o S enhor. Em contras­de David; o comedimento quando o inimigo está a
te com Saul, que precisou ser lembrado para con­ seu alcance e o extraordinário cuidado para não
sultar o S enhor e depois não recebeu resposta ofender o ungido do S enhor. Como a piedade impe­
(14,36-37), ao perguntar se deve combater os filis- de-o de matar Saul, David procura o S enhor para
teus, David não só recebe resposta afirmativa como defendê-lo.
também pergunta uma segunda vez por causa dos David dirige-se a Saul com humor considerá­
homens amedrontados. A vitória de David é previ­ vel. Depreciando-o como a um cão morto, ou a
sível porque o efod está em seu acampamento, uma pulga, tenta mostrar ao rei a inutilidade da
258 trazido por Ebiatar quando fugiu de Saul. Agora o perseguição.
1 SAMUEL 26

24,17-23 Saul adm ite que David será rei. O Nabal por agir como idiota e a si mesma por não
hábil discurso de David (cf. 16,18) é tão persuasivo ter visto os homens que David enviara. Mencio­
que Saul começa a chorar. A resposta de Saul é nando que o S enhor salvou David de incorrer em
grata e contrita, mas o anúncio de que sabe que homicídio (v. 26), oferece seus presentes. Prova de
David será rei é profético. Como seu filho Jônatan, sabedoria é sua percepção de que, como David
Saul também pede a David para poupar sua posteri­ está combatendo as guerras do S enhor e não há
dade, contrariando o costume aceito da eliminação maldade nele, o S enhor estabelecerá uma dinastia
da casa reinante anterior pelo novo rei. duradoura para ele (v. 28).
Aqui Saul não é mais um perigoso persegui­ Abigáil conclui seu discurso com uma bênção
dor, mas um cativo vencido à mercê daquele que para David (v. 29), em que emprega duas metáforas:
se recusa a matá-lo. A situação está carregada de 1) refere-se ao “bomal dos vivos”, onde David será
tanta emoção que, esquecendo por algum tempo a mantido como promessa de vida e 2) pede ao S e­
inimizade, cada um voltou para seu lugar. nhor que arremesse para longe as vidas dos inimi­
25,1 Israel pranteia Samuel. Com a morte de gos de David, como se fosse da cavidade de uma
Samuel, o papel de juiz de Israel passa para o rei. funda, recordando a vitória de David sobre Goliat
Samuel era sacerdote e também profeta, duas fun­ com uma funda (17,40.49s.). O último desejo de
ções que agora assumem crescente importância para Abigáil, que David se lembre dela quando tudo
pôr um freio ao poder do rei. que ela previu acontecer, recebe resposta igualmente
25,2-11 David busca provisões com Nabal (o afável de David, que depois deixa-a partir em paz.
idiota). Entre os dois encontros de Saul e David 25,36-39 O festim de Nabal. Em três breves
(caps. 24 e 26), há aqui um romântico interlúdio. vv., a vida de Nabal chega ao fim, com uma orgia
Se perguntávamos a nós mesmos como David sus­ de embriaguez seguida de um acesso. Ele prepara­
tentava seus homens no deserto, essa história dá a ra para si mesmo o festim de rei (v. 36) que deve­
resposta. Nabal oferece a David um tipo de oposi­ ria ter sido preparado para o verdadeiro rei, David.
ção diferente da de Saul, mas que poderia ser igual­ David apelara a ele como se fosse um servo; ao
mente ameaçadora. Nabal se recusa a partilhar contrário, a mulher de Nabal se apresenta como
alimento com David e seus homens em uma época serva (vv. 27.41) enquanto prediz a realeza de
de hospitalidade tradicional, a festa da tosquia do David. Assim, o bem que David fez (vv. 15.21) é
rebanho (compare Gn 38,13; 2Sm 13,23ss.). recompensado (v. 30) e o mal que Nabal fez a
Quando pede presentes da festa de Nabal, David David (vv. 17.21,26.39) é castigado.
0 faz começando astutamente com saudações poli­ 25,40-43 As esposas de David. Ao fazer de
das, insinuações ao provável débito de Nabal, alu­ Abigáil sua esposa, David recebe não só uma mu­
são à festa e, por fim, o pedido de provisões. Em lher de sabedoria, que sabe falar, mas também,
resposta, primeiro Nabal tenta fazer de David um muito provavelmente, o controle da propriedade de
zero e depois iguala-o a um escravo fugido. David Nabal no território kalebita de Hebron (Js 14,13­
trata Nabal como irmão (v. 6) e pai (v. 8), mas 14). Essa vantagem é contrabalançada pela entrega
Nabal menospreza-o como a um desconhecido (v. de Mikal a outro por Saul. Ahinoam, mais tarde
11). Embora David possa não ter tido nenhum direi­ citada como mãe do primogênito de David, Amnon
to estrito de participar da festa. Nabal, por sua vez, (2Sm 3,2), aparece como mulher de Saul em 14,50.
falha em “saber” o que é para o seu bem. Se agora ela era mulher de David e fora de Saul,
25,12-35 Abigáil (a sábia) salva David. Depois isso talvez se relacione com a explosão violenta de
de ouvir a rejeição de Nabal, David, irado, cinge a Saul ao afirmar que Jônatan era filho de uma trans-
espada, ordenando a seus homens que façam o viada (20,30).
mesmo. Repetindo três vezes o verbo cingir, o autor 26,1-12 David enfrenta Saul. Este eapítulo
protela a ação para aumentar a expectativa e mos­ apresenta o irmão de loab, Abishai, segundo no
trar a implacável determinação de David e seus comando do exército de David e um homem sempre
homens famintos. pronto com a espada (2Sm 3,22ss.; 8,16). Quando
Nesse ínterim, os servos de Nabal informam ele pede a David para matar Saul adormecido, David
sua senhora Abigáil sobre o que transpirou e ates­ recusa, mais uma vez honrando a santidade de um
tam o bem que David e seus homens lhes fizeram rei ungido (24,7). Em vez de tirar a vida de Saul,
(vv. 14-17). A franqueza deles ao descrever Nabal David leva embora seus meios de defesa, a lança e
como “idiota” (literalmente, “filho de Belial” — c f o cantil de água. A entrada e a tomada têm sucesso
a palavra “vagabunda” de Haná, em 1,16) indica não por causa do sono profundo que o S enhor mandou
só que ela merecia a confiança deles, mas também sobre o acampamento (v. 12). E outro exemplo das
que a rabugice de Nabal era bem conhecida. ajudas divinas continuamente concedidas a David à
Ao contrário do marido, Abigáil sabe o que é custa de Saul (cf. 19,22ss.).
para seu bem. Apressa-se com presentes em tempo 26,13-20 Dupla repreensão. Abandonando o
de aplacar a ira crescente de David. Em discurso acanhamento que mostrou no encontro anterior com
tão habilidoso quanto o de David, ela primeiro culpa Saul (cap. 24), David, de uma distância segura em 259
1 SAMUEL 26

um monte oposto, acusa abertamente Abner, gene­ fica sem orientação divina, desvantagem que David
ral de Saul, de negligenciar a guarda do rei. Quan­ nunca tem de enfrentar.
do isso chama a atenção de Saul, David deixa Abner 28,7-14 Saul procura uma necromante. Em
para atacar o rei com palavras. David está disposto hebraico, o nome “adivinho” é uma forma do verbo
a aceitar a perseguição de Saul se ela vier do Se­ “conhecer”. Em contraste com Akish, que saberá (v.
nhor, mas se vier de homens (isto é, de Saul) será 2) 0 que David fará, Saul não sabe o que o S enhor
forçado a fugir para uma terra estrangeira, onde fará e, para descobrir, procura alguém que saiba.
será tentado a servir a outros deuses (v. 19). Embora isso signifique desobedecer a seu próprio
26,21-25 Saul se arrepende novamente. Con­ decreto, Saul, muito amedrontado, procura uma necro­
trito e agradecido, Saul admite que tem sido louco mante. Imediatamente, ela se defende de seu pedido,
(compare Nabal, cap. 25). David, entretanto, não faz afirmando que Saul — e todo o mundo em Israel —
nenhum pacto com ele como fez no encontro ante­ sabe que é ofensa grave praticar a adivinhação. Logo
rior (eap. 24). Ignorando a promessa de Saul de não que evoca Samuel, ela sabe quem é o suplicante. Seu
lhe fazer mal (v. 21), David lembra ao rei que a única grito de reconhecimento tem ecoado através dos sé­
razão de ter sido poupado é o fato de ser ungido. culos, na música e na literatura.
Isso reflete mal em Saul, que, ao perseguir aquele 28,15-19 Saul descobre o que quer saber.
que ele sabe que será rei, não tem esses escrúpulos Demonstrando surpresa por Saul não ter aceito a
de consciência. Embora ambos se separem com bên­ retirada do S enhor para longe dele, Samuel repete
çãos mútuas, Saul fez a paciência de David chegar a rejeição divina de sua realeza. Aqui Saul está sendo
ao limite. punido por não ter matado Agag (cap. 15). Israel
27.1- 4 David sai de Israel. David sente um cairá diante dos filisteus, como acontecerá com Saul
desânimo parecido com o de Abraão depois das e seus filhos. A resposta relutante de Samuel diz a
repetidas promessas de um filho (Gn 15,4). Embora Saul tudo que ele preferiría não saber.
tanto Saul como Jônatan tenham previsto que será
28,20-25 A bondade da necromante. Apro­
rei, enquanto Saul o persegue, David não tem espe­
veitando a declaração de Samuel de que Saul de­
rança para sua vida no futuro.
sobedecera à palavra do S enhor, no v. 18, o autor
27,5-12 Akish dá Siqlag a David. Em um
agora inicia um jogo de palavras com o verbo “obe­
acordo mutuamente agradável, Akish encontra em
decer”. Quando a mulher vê que Saul caiu por terra
David um soldado hábil, e David consegue, por in­
de tanta fraqueza, ela faz com que ele se lembre de
termédio de Akish, prover para si mesmo e seus
que até agora ela lhe obedeceu (v. 21). Por sua vez,
homens. Talvez imaginemos por que não há indica­
ele deve obedecer-lhe (v. 22), quando ela insiste
ção do encontro anterior, quando Akish se mostrou
relutante em abrigar outro louco (21,11-16). Com em lhe preparar alguma comida. Por insistência de
as informações que temos, não dá para chegar a seus servos, Saul obedece (v. 23) e lhe é oferecido
uma conclusão sobre essa incompatibilidade. um bezerro cevado (compare Lc 15,23.27). É o úl­
Nos dois encontros com Akish, David nunca timo banquete de Saul antes de sua morte no com­
trai sua firme lealdade a Israel. Os ataques que faz, bate do dia seguinte.
ostensivamente a favor de Akish, são contra inimi­ 29,1-11 R elutantem ente, Akish dispensa
gos tradicionais de Israel e dos filisteus. David tem David. Como quando da perda da Arca, os filisteus
o cuidado de matar todos os humanos, para evitar estão mais uma vez acampados em Afeq (4,1), pron­
que 0 traiam, se voltarem como prisioneiros. Como tos para lutar contra Israel. Akish ordenara a David
outras na Bíblia, essa trapaça fica sem castigo. e a seus homens que partissem com ele, mostrando
28.1- 2 Akish confia em David. Quando Akish que sua confiança em David era firme. Entretanto,
diz que David deve saber que partirá com os filis­ os outros chefes filisteus se lembram da história
teus contra Israel, David responde que Akish saberá que dizia ter matado David milhares de seus homens
0 que seu servo fará. A resposta de David é um (v. 5; 18,6-7; 21,11-12) e, com realismo, vêem em sua
disfarce para sua lealdade que jamais se afastou de presença entre eles o perigo de ele se unir a Saul e
Israel e significa que ele não espera ter de se trair atacá-los pela retaguarda.
diante de Akish. No capítulo seguinte, a questão O discurso com o qual Akish manda David de
foge a seu controle. volta é lisonjeiro, a ponto de chamá-lo de Anjo de
28,3-6 O S enhor não responde a Saul. No­ Deus (compare 2Sm 14,17; 19,28). Quando Akish
vamente nos é comunicada a morte de Samuel, um não vê nada de errado em David, ele está na tra­
fato que, junto com o banimento por Saul dos dição de Potifar e seu carcereiro, que não viram
adivinhos (segundo Dt 18,10-14), limita bastante nada de errado em José e confiaram nele o bastan­
seu conhecimento da vontade divina ao enfrentar o te para deixá-lo encarregado de tudo (Gn 39,6.23).
inimigo. Vendo-se superado em número de tropas, David inspira a mesma confiança em Akish. Vindo
Saul tem medo, algo que jamais é dito a respeito de estrangeiros, esse é um alto elogio tanto para
de David, a não ser em relação à perseguição por José como para David. Os irmãos israelitas, porém,
260 Saul (23,15). Mais uma vez, como em 14,37, Saul não se deixaram cativar com a mesma facilidade.
2 SAMUEL 1

David pergunta a Akish por que ele não pode (30,23). A decisão rápida e fume de David de com­
partir e combater “os inimigos de meu senhor, o partilhar o butim entre todos os membros do exér­
rei” (v. 8). Suas palavras podem se referir a Akish cito toma-se precedente para Israel (v. 25).
ou ao rei Saul (cf. 28,2). Aqui David mais uma vez 30,26-31 A divisão do butim. David se mostra
escapa astutamente, levando intata sua amizade com um político astuto ao enviar presentes do butim aos
Akish. povoados judaítas no Négueb, onde já era conhecido.
30,1-10 Ataque amalequita contra Siqlag. Esses presentes podem ser meios para conseguir acei­
Embora a devastação deles por Saul no capítulo 15 tação mais tarde, quando for cogitado para a realeza
devesse tê-los tomado impotentes, os amalequitas depois da morte de Saul (2Sm 2,1-4).
agora vingam-se saqueando a cidade que Akish dera 31,1-8 Como Saul e Jônatan morreram. A
a David. Em vez de serem postos sob o interdito, imagem feliz de David compartilhando os despojos
como Saul tinha ordens de fazer, os ocupantes de da vitória sobre os amalequitas dá lugar à imagem
Siqlag foram aprisionados com vida. Antes de sabe­ mais sombria de Saul e dos soldados israelitas fugin­
rem disso, a narrativa mostra em crescendo a triste­ do e caindo diante dos filisteus. Mais uma vez, a
za dos soldados que regressavam, com o relato de sorte de David aumenta enquanto a de Saul entra em
seus soluços e choro até não terem mais forças, a declínio, como rei e também como ser humano.
informação de que as duas mulheres de David esta­ Ignorando detalhes do combate, a parte narra­
vam entre os cativos e, por fim, a extrema amargura tiva, que começa e termina no monte Guilboa (vv.
dos homens para com David, a ponto de estarem 1-8), repete a notícia da morte dos três filhos de
dispostos a apedrejá-lo, sinal raro de desencanto com Saul e do encontro de Saul (morto) (vv. 2.4.8), a
David. Ao se voltar para o Senhor ,David reconhece chegada dos incircuncisos/filisteus (vv. 3.7.8), a
que Deus é a fonte de sua força e seu sucesso. fuga dos israelitas (vv. 1.7) e a descoberta da morte
Em obediência ao oráculo recebido por meio do de Saul, primeiro pelo escudeiro e depois pelos is­
efod (v. 8), David persegue Amaleq e deixa para trás raelitas (vv. 5.7). De modo concêntrico, esses acon­
200 dos soldados mais exaustos, que ficam tomando tecimentos encerram a mensagem central da morte
conta da bagagem; esses soldados teião papel signifi­ de Saul (v. 6). O embelezamento literário aumenta
cativo na distribuição do butim (w. 21-25). o patético e a importância do evento.
30,11-16 O egípcio abandonado. David rece­ 31,9-13 M isericórdia p ara os corpos dos
be ajuda providencial na pessoa do escravo egípcio mortos. Os filisteus profanam o corpo de Saul de
doente que os amalequitas tinham abandonado. Em três maneiras: cortam-lhe a cabeça, sabendo que
troca de comida, água para beber e proteção, o es­ qualquer mutilação de um cadáver é um horror para
cravo leva-o até os amalequitas que estão festejando. os israelitas; despojam-no figurativa e literalmente
Esse egípcio inclui-se em uma extensa lista dos que de sua glória como soldado, tirando suas armas e
ajudaram David: Mikal, Jônatan e Ahimélek, todos depositando-as no templo deles; por último, fazem
surgindo no momento crucial. 0 imperdoável: pregam seu corpo na muralha da
30,17-25 David salva os cativos de Siqlag. cidade. Aparentemente, troféus de guerra pendura­
Depois de um número incontável de amalequitas dos em uma casa de culto creditam a vitória ao deus
terem sido massacrados, todos os cativos são liber­ (cf 5,2; 21,10).
tados. Em seguida, David enfrenta outro desafio de Embora a queima de corpos seja um costume
seus homens que não queriam partilhar o butim com abominável, aqui é misericórdia, pois assim não
os que ficaram para trás com a bagagem (v. 10). Os podem mais ser cometidas atrocidades com eles. O
que reclamaram são chamados de malvados e vadios sepultamento apropriado significa que estão em paz.
(v. 22), mas é de gente assim que o pequeno exérci­ O corpo de Saul volta a labesh, cenário de sua
to de David foi formado (22,2). Ele precisa continua­ primeira vitória depois de ser ungido rei (cap. 11).
mente encorajá-los a confiar no Senhor (23,1-5) e O homem que devia salvar Israel dos filisteus (9,16)
a fazer o bem aos companheiros, por gratidão a ele caiu, ele próprio, nas mãos deles.

COMENTÁRIO: 2 SAMUEL
V. A LUTA PELO REINO de do norte que lhe é trazida por Abner, ex-general
de Saul. Embora esse plano seja frustrado pela
2Sm 1-8
morte de Abner nas mãos de loab, o último obstácu­
Depois da morte de Saul, David não toma o lo ao reinado sobre um Israel unido é removido por
poder, mas espera que o Senhor lhe conceda a acontecimentos fora do controle de David (caps.
realeza. Rejeita a coroa de Saul oferecida pelo 4—5). Uma vez rei, David consolida sua posição
mensageiro amalequita, mas, depois de ser ungido tanto política como religiosa, trazendo a Arca de
pelos habitantes de Judá (cap. 2), aceita a fidelida­ Deus para a nova capital em Jerusalém. Todo Israel 261
2 SAMUEL 1

é, então, dádiva divina a David que, apesar de reve­ 2,25-32 Benjamin e Judá contam suas per­
ses temporários, prospera com a bênção e a proteção das. A história passa de um confronto sangrento
de Deus. em Guibeon para outro em Gueba. Embora as per­
1.1- 16 O relato dos amalequitas a David. das
A de Benjamin sejam muito maiores que as de
palavra “morte” é usada oito vezes nesta passagem, Judá, os dois lados ficam gratos por voltar a seus
começando com a morte de Saul e terminando com respectivos acampamentos.
a execução por ordem de David do amalequita que 3,1-6 A casa de Saul e a casa de David. A casa
lhe trouxera o diadema e o bracelete de Saul como de Saul se enfraquece, enquanto a casa de David se
testemunho de sua morte. Se o amalequita esperava fortalece, processo marcado pela morte dos filhos
recompensa do homem que ele supunha ambicioso de Saul em contraste com a fertilidade de David:
pela realeza, estava redondamente enganado. Em vez suas seis mulheres tiveram o mesmo tanto de filhos,
de gratidão, recebe a morte por alegar ter matado dos quais somente três— Amnon, Absalão e Adonias
um rei ungido. Aqui David é consistente em sua — aparecem na narrativa bíblica.
notável reverência por quem o Senhor ungiu, como 3,7-11 A questão de Rispá, a concubina. O
demonstrou em ISm 24,7; 26,9. relacionamento de Abner com a concubina de Saul,
1,17-27 A queda dos fortes. O vocábulo Rispá, mais do que insulto a um superior, podia ser
hebraico para “guerreiro”, que também aparece na considerado tentativa de ocupar o trono. Entretanto,
tradução como “herói” (v. 22) e “mais valentes” (v. Abner abstém-se de um golpe, reconhecendo David
23), é a palavra-chave para a elegia de David. A como o chefe profetizado de Israel (vv. 9-10).
repetição de “abatido” e “tombar” salientam a dis­ 3,12-21 Abner e David fazem uma aliança.
posição sombria, enquanto o amor especial de Com a deserção de Abner, todas as tribos de Israel
David por Jônatan é enfatizado no v. 26. As instru­ ligadas a Saul estão prontas para ficar sob o governo
ções para não dar a notícia às filistéias, que talvez de David. Mas David impõe a volta de sua mulher
se regozijem, contrastam com as ordens, no v. 24, Mikal, filha de Saul, como condição para a aliança.
para que as israelitas chorem sobre Saul e se lem­ Sem nenhuma consideração por Paltiel, para não
brem da generosidade de Saul para com elas. O falar dos sentimentos de Mikal, o trato é feito, abrin­
orvalho e a chuva são convocados para participar do caminho para sérias negociações entre Abner e
do luto, não aparecendo sobre os montes onde ja ­ David. Abner não se refere a nenhuma passagem
zem os mortos (v. 21). O escudo negligenciado de bíblica conhecida quando diz que o Senhor falou
Saul, não mais ungido com óleo, simboliza a rejei­ que David salvará Israel dos filisteus (v. 18). Isso foi
ção da unçâo de Saul. prometido a respeito de Saul, se ele tivesse obede­
2.1- 7 Anúncio de realeza por David. Em vez
cido ao Senhor (ISm 13,13-14). A narrativa ressalta
de ir a sua terra natal, Bet-Lehem (ISm 16,4), o que Abner partiu em paz (vv. 21-24), mas não era
Senhor ordena a David que suba a Hebron. Numa uma paz durável.
mensagem de gratidão pronunciada ali, ele inclui o 3,22-30 O zelo de loab. A insubordinação de
anúncio de que foi ungido rei de Judá. Como a região Abner para com Ishbôshet (vv. 8-10) é branda com­
em volta de Hebron fazia parte do patrimônio kale- parada ao ataque de loab a David por fazer uma
bita tradicional, talvez David tenha obtido controle aliança com Abner. Com efeito, loab diz: “Por que
da propriedade em Hebron por intermédio de seu o deixaste partir assim?” Então, sem ordens, loab
casamento com Abigáil, viúva do kalebita Nabal (Js mata Abner a sangue-frio (v. 27). Essa não é a últi­
14,13; ISm 25,3). ma vez que loab age com violência para o bem do
2,8-11 Israel segue Ishbôshet, filho de Saul. Estado. Sem castigar de fato, mas cheio de frustra­
Não o Senhor , mas Abner, general de Ishbôshet, ção, David lança horrível maldição em loab e sua
constitui este como rei sobre todo Israel, exceto o posteridade (v. 29). Presumivelmente impressionado
território de David em Judá. Essa fraqueza política pela explosão de David, loab submete-se ã ordem de
de Ishbôshet é auspiciosa para o futuro de David. David de prantear Abner em público.
2,12-24 Os três filhos de Seruiá. Combate 3,31-39 O sepultamento de Abner. A tristeza
simbólico, mas inconclusivo entre os israelitas sob de David pela morte de Abner pode ser sentida na
Abner e os judaítas sob loab, general de David, amarga elegia que ele compôs para o funeral. A
transforma-se em batalha acirrada. Depois da der­ elegia e o pranto imoderado do rei (v. 32) conven­
rota israelita, Asahel, irmão de loab e Abishai (v. cem 0 povo que David não ordenara a execução de
18), recusa-se a desistir. De maneira compulsiva, Abner. A reconhecida fraqueza de David diante de
persegue Abner, que tenta dissuadi-lo, sabendo que, loab é enigma persistente na narrativa (v. 39). Exi­
se matar Asahel será passível de vingança de san­ gia que ele suportasse um homem que era espinho
gue. Quando Abner é forçado a ferir Asahel com constante a seu lado, mas, ao mesmo tempo, David
sua lança, loab e Abishai continuam a perseguição. devia a loab grande parte do sucesso de suas guer­
A apresentação dos três irmãos, primos de David, ras e de seu governo.
começa com violência, a eles associada durante 4,1-4 Os sucessores de Saul. Restando da casa
262 toda a vida. de Saul apenas o neto aleijado, Mefibôshet, além
2 SAMUEL 7

do apavorado Ishbôshet, os israelitas não podem está comandando a marcha. Saul jamais teve a van­
procurar uma liderança eficiente dentro das tribos tagem desse apoio tangível.
do norte. Parece não haver mais nenhum empecilho 6.1- 10 O golpe em Uzá. O traslado da Arca é
no caminho da realeza de David. relatado com mais detalhes em 1Cr 13; 15. Apren­
4 ^ 1 2 O assassinato de Ishbôshet Com Ishbôshet demos em 13,6 que Baalá é outro nome para Qíriat-
desmoralizado e a segurança relaxada, é fácil para -learim, onde a arca foi deixada (ISm 7,1-2). A
os dois homicideis entrar no quarto real. É compre­ alegre procissão de 30 mil (!) é interrompida pela
ensível que considerem o governo de Ishbôshet ter­ morte inesperada de Uzá quando ele toca a Arca
minado, mas dificilmente poderíam esperar que (v. 6). David, transtornado pelo acontecido, deixa a
David não acolhesse o presente de sua cabeça. É um Arca na casa de Obed-Edom, significativamente
segundo exemplo da recusa de David de tomar o identificado como cidade filistéia de Gat. Se é para
reino por meios violentos (compare 1,1-16). a Arca trazer destruição aos israelitas, que fique
A execução dos dois homens, cruel para nós, com os filisteus, parece dizer a ação de David. Em­
é realizada segundo a Lei em Dt 21,22s. Como os bora este relato não tente explicar a morte de Uzá,
filisteus trataram Saul, da mesma forma são trata­ em ICr 15,13 David atribui a cólera do Senhor à
dos os matadores de seu filho. ausência dos sacerdotes e levitas.
5,1-5 Rei de todo Israel. Quando as tribos 6,11-19 David traz a Arca a Jerusalém. Quan­
israelitas (do norte) vêm ungir David rei, têm duas do 0 rei ouve falar das bênçãos para a casa de
motivações. Primeiro, proclamam-no irmão (seus Obed-Edom, arrisca-se a outro traslado. Na procis­
ossos e sua carne), condição para a realeza, exigida são festiva, David, vestido somente com o efod de
para evitar o governo estrangeiro (cf Dt 17,15). linho usado pelos sacerdotes nas funções litúrgicas,
Segundo, recordam a liderança militar de David faz-se notar por dançar com todas as suas forças
(ISm 18,16) e a promessa divina de que o trono de (v. 14). É ocasião de alegria, música e distribuição
David seria estabelecido sobre ambos, Israel e Judá de presentes (v. 19). Com o traslado da Arca para
(3,10). Assim, ele se toma rei de uma nação exte­ Jerusalém, a cidade firma-se como capital religiosa
riormente unida, mas com conflitos internos nunca e política de Israel.
muito distantes da superfície. 6,20-23 O escárnio de Mikal. Pela terceira vez,
5,6-16 Uma cidade e um a casa para o novo a presença da Arca traz problemas (ISm 6,19; 2Sm
rei. O relato de como David fez de Jerusalém, antes 6,6-7). O Senhor ,que se acredita estar nela presente,
habitada por iebusitas pagãos, sua capital está trun­ indica assim que é livre para habitar onde quiser e
cado e confuso. Apesar da fama de Jerusalém ser não necessariamente conforme o desejo do rei. Agora
inexpugnável (os cegos e os aleijados podiam de­ David encontra outro revés: o escárnio de Mikal,
fendê-la), David consegue tomá-la depois que loab pelo que ela considera uma dança indecente (v. 20).
corajosamente sobe no poço para ganhar acesso à A resposta magoada de David fá-la lembrar-se de que
cidade. Essa informação vem de ICr 11,6, que o Senhor rejeitou a casa do pai dela. Seu castigo é
acrescenta ter David recompensado a bravura de não ter filhos até o dia de sua morte — naquela so­
loab fazendo-o chefe e príncipe. ciedade, a maior desgraça que poderia acontecer a
Para propósitos políticos, a nova capital de David uma mulher (cf ISm 1).
tem situação ideal, pois está na fronteira entre duas 7.1- 17 A casa do Senhor e a casa de David.
das principais tribos de seu reino: Judá e Benjamin. Em paz com todas as nações circundantes, David tem
Depois de instalado, David tem tempo e recursos para tempo para se dedicar aos assuntos internos, inclusive
construir um palácio para si. Manda buscar madeira o culto público de Deus. No mundo antigo, um deus
de cedro e trabalhadores de seu amigo, Hirâm, rei de estava reabnente estabelecido quando tinha uma casa
Tiro, exatamente como seu filho Salomão fará mais adequada. A imediata aprovação de Natan para o plano
tarde para construir o Templo (IRs 7). de David de construir uma casa para o Senhor é re­
5,17-25 O Se n h o r segue à frente de David vogada por um oráculo noturno. O fato de o Senhor
na batalha. O sucesso ainda não subiu à cabeça de não se comunicar diretamente com David, mas por
David, pois ele continua a consultar o Senhor antes intermédio de Natan, salienta a contínua importância
de ir combater os filisteus, que agora parecem se da profecia em relação à monarquia.
ressentir do novo poder de David. Depois do pri­ Mencionando com orgulho sua simples morada
meiro ataque do inimigo, David chama o lugar de no deserto, o Senhor muda as boas intenções de
Báal-Perasim (literalmente, “Dono das Brechas”), David. O próprio Senhor estabelecerá uma casa, no
jogo de palavras que se refere à brecha feita pelo sentido de uma dinastia que governará para sempre
Senhor nas linhas inimigas para espalhar os solda­ (v. 13). Em um meticuloso jogo de palavras, “casa”
dos filisteus e os deuses que eles deixaram para trás significa palácio (v. 1), casa (vv. 2.5.6.7), dinastia
(vv. 20-21; compare Gn 38,29). real (vv. 11.16) e templo (v. 13). Fazendo David
No segundo ataque dos filisteus, é o Senhor quem lembrar-se de suas origens humildes, o Senhor in­
orienta a defesa, ordenando um ataque de retaguarda condicionalmente promete-lhe um grande nome (v.
por Israel e dando um sinal audível (v. 24) de que 9) e um trono firmemente estabelecido (vv. 13.16). 263
2 SAMUEL 7

A profecia que afirma que o filho de David cons­ mada narrativa da corte, porque relata a história da
truirá um templo realiza-se sob Salomão (IRs 8). vida de David como rei. É considerada uma tradi­
Para outro relato da promessa dinástica, c f ICr ção separada das tradições sobre Saul e David, cha­
28,1-10. mada fonte tardia. Entretanto, há nos capítulos 9—20
Esta passagem tem sido interpretada como a elos narrativos com temas mais primitivos, que dão
aliança pessoal do Senhor com David. Nela, o go­ evidências contra a completa independência das fon­
verno direto do S enhor sobre Israel é substituído tes, por exemplo a influência de loab sobre David e
por um rei humano, escolhido por Deus. A posteri­ a divisão recorrente entre as tribos do norte e do sul.
dade desse rei continuará a ocupar o trono por todas 9.1- 13 David cumpre seu juramento. Um
as gerações. A atitude anteriormente hostil de Samuel David próspero lembra-se da aliança e da amizade
quanto a deixar Israel ser como outras nações trans­ com Jõnatan, a cujos descendentes pode demonstrar
forma-se no endosso divino da realeza davídica e bondade. Com laços tão estreitos com a casa de
também no estabelecimento de sua firme sucessão Saul, é estranho que David tivesse de perguntar se
dinástica. Junto com SI 89 e ICr 17, este texto é o havia algum sobrevivente da casa de Saul. Entre­
fundamento lógico bíblico para a teologia régia se­ tanto, se os eventos relatados no capítulo 21, em
gundo a qual o rei era o representante do Senhor para que David poupou Mefibôshet quando entregou à
trazer a Israel vitória e bênçãos. vingança guibeonita dois filhos e cinco netos de
7,18-29 David louva o S enhor. Em grata res­ Saul, aconteceram antes dos relatados no capítulo
posta à promessa do S enhor, David compara a 9, fica mais fácil entender por que só Mefibôshet
própria pequenez com a grandeza do Senhor ( vv. foi poupado.
18.19.22). O S enhor é o único Deus e Israel seu Quando o filho aleijado de Jônatan, neto de
povo especialmente favorecido (vv. 22.23). Como Saul, é trazido da casa de Makir para a corte de
o S enhor fez no v. 6, David também recorda a David (cf 17,27), David faz todo o possível para
libertação de Israel da escravidão no Egito (v. 23). que Mefibôshet se sinta bem-vindo. Embora pro­
Então, em uma renovação da aliança, David reafir­ teste ser um cão morto — expressão de inferiorida­
ma Israel como o povo do S enhor e o S enhor como de política e psicológica — , Mefibôshet toma-se
seu Deus (v. 24), encerrando com uma oração pela parte da família de David e tem a honra de comer
bênção do S enhor ( v. 29). à sua mesa. Sibá, seu criado, é designado para cul­
8,1-14 As vitórias de David. Este capítulo tivar a terra da família, que sustentaria a todos eles,
podería se chamar “David ataca”, porque o verbo, inclusive os quinze filhos e vinte servos de Sibá.
variadamente traduzido como “derrotar”, “vencer” Ao fazer isso, David cumpre o juramento e
e “matar”, aparece nos vv. 1, 2, 3, 5, 9 e 13. A lista mostra que nada tem a temer desse descendente de
de vitórias começa com os filisteus e continua pelos Saul. O narrador menciona duas vezes que Mefibô­
países que fazem fronteira com Israel. A série de shet é paralítico, dizendo, com efeito, que ele não se
conquistas inclui Moab, Arâm (Síria) e Edom. qualifica para ser rei (vv. 3.13). E, então, duvidoso
O fato de David utilizar apenas cem cavalos que fazer Mefibôshet membro de sua família teria
de carro mostra a inferioridade de seu exército em sido um meio de vigiar um possível pretendente ao
relação aos dos inimigos. Entretanto, o abundante trono. No sentido contrário existe a alegação de
butim enriqueceu David com escudos (v. 7), e traição que Sibá dá a entender quando o trono de
objetos de ouro, prata e bronze (w. 8.10), todos David está em perigo (16,1-4).
consagrados ao S enhor ( v. 11). 10.1- 5 David e os amonitas. David continua
8,15-18 As cabeças do governo. Além de ser suas boas obras, aqui apresentando condolências
líder militar, David governa e administra com justi­ ao rei amonita pela morte de seu pai. Mas as coisas
ça (compare 15,1-6). loab comanda o exército e se tornam adversas devido aos conselhos negativos
Benaiáhu, os kereteus e os peleteus, que se acredita dos auxiliares do jovem rei. Raspando a barba e
serem cretenses e filisteus (veja 15,18). Usando mer­ expondo a nudez dos emissários de David, Hanun
cenários estrangeiros, os reis antigos sabiam como faz o insulto máximo. David é ponderado e permite
se proteger de golpes palacianos. que os homens fiquem em Jerico até suas barbas
crescerem outra vez.
VI. O REI DAVID 10,6-12 loab conduz a defesa contra Amon.
Esperando a represália, os amonitas preparam-se
2Sm 9-20 para atacar primeiro, com a ajuda de mercenários
David senta-se no trono em Jerusalém em paz arameus. Depois de dispor habilmente os soldados
com os vizinhos. Certo de uma dinastia duradoura para a defesa, loab encoraja-os para que lutem com
(cap. 7), busca fazer o bem com seu crescente poder bravura e deixem o resultado por conta do S enhor.
e fortuna. Em um momento de paixão, David trans- O sucesso do combate será, então, a típica combi­
gride a Lei, trazendo sobre si o castigo divino que nação bíblica de esforço humano e poder de Deus.
passa por sua família e ameaça até mesmo seu trono. 10,13-19 A derrota dos amonitas e arameus.
264 Estes capítulos abrangem uma unidade narrativa, cha­ Quando os arameus fogem diante de loab, seus
2 SAMUEL 12

aliados amonitas fazem o mesmo diante do resto das A reação de David é inesperadamente branda.
tropas sob o comando de Abishai (v. 10). A vitória Coisas assim acontecem na guerra, diz ele, e a
é apenas temporária, pois os arameus, depois de espada devora ora de um lado, ora de outro (v. 25).
reunir recratas de soberanos simpatizantes do outro Mais tarde, David ficará muito preocupado com
lado do Eufrates, tentam mais uma vez conquistar quem a espada devora, quando se tratar de seus
Israel. Agora David chefia o combate pessoalmente, filhos. Aqui ele responde como se a um relatório
aniquila o inimigo e transforma os arameus em sú­ comum, com mensagens apropriadas de encoraja­
ditos. Esse relato marca o ponto alto das façanhas mento para que o cerco seja mantido.
militares de David. Depois de se demorar na passagem entre o
11,1-15 David e Bat-Sheba. Enquanto o exér­ mensageiro e David, a narrativa recupera a veloci­
cito cerca Rabá, David não tem nada que fazer, além dade, para contar o luto de Bat-Sheba por Uriá,
de tirar sonecas e passear pelo terraço. Em uma seu casamento com David e o nascimento do filho
dessas tardes ociosas, vê a bela Bat-Sheba e manda deles, tudo nos vv. 26-27. Completados o adultério
buscá-la. Em prolongado jogo de palavras com o e 0 homicidio, o julgamento do Senhor vem final­
verbo “enviar”, o autor faz David “enviar” com mente: o que David fizera desagradou ao S enhor
freqüência nos capítulos 10 e 11, alertando o leitor (v. 27). Esse julgamento é a chave para o que se
para seus plenos poderes reais. Entretanto, também segue.
Bat-Sheba envia, quando informa David que está 12,l-7a “Tu és esse homem!” Agora é a vez
grávida (v. 5), e loab envia Uriá de volta das linhas do Senhor de enviar. O David ébrio de poder está
de frente (v. 6). prestes a recobrar o juízo. Natan, o profeta que trou­
Nem mesmo a informação de que Bat-Sheba era xe a promessa de um reino estável para David (7,16),
mulher de um dos oficiais de seu exército impede agora transmite a desaprovação do S enhor. Em uma
David de possui-la. Quando sabe que está grávida, parábola, Natan conta sobre o pobre (Uriá) cuja
ele começa uma cuidadosa intriga para encobrir sua ovelha querida (Bat-Sheba) foi tomada por um rico
paternidade. Quando faz a Uriá a pergunta tripla sobre (David). A imagem da vida cotidiana da ovelha com
como estão loab, o povo e a guerra, isso é só conver­ seu dono reflete o casamento feliz que David usur­
sa fiada para disfarçar seu verdadeiro intento de fazer pou por egoísmo e crueldade. Embora na parábola
Uriá descer a sua casa, para sua mulher. nada seja dito sobre homicídio, David interrompe,
Essa tentativa é feita durante três noites (vv. decretando a morte do rico. Quando acrescenta que
8.10.13), mas, em vez disso, Uriá pernoita com os o ladrão pagará uma indenização quatro vezes maior,
servos do rei. Quando David pergunta por quê, a inadvertidamente prenuncia a perda de seus quatro
resposta surpreendente de Uriá contrasta as más filhos (12,18; 13,28; 18,15; IRs 2,24-25).
intenções do rei com a honradez de seu fiel solda­ 12,7b-15a A espada sobre a casa de Davi.
do. Na terceira noite, embora David o tenha embria­ Reproduzindo as palavras do S enhor, Natan enume­
gado, ele persiste em evitar sua casa. O frustrado ra todos os benefícios concedidos a David: o reinado
David, então, planeja uma solução para seu dilema, sobre Judá e Israel, o harém do falecido Saul, fato
instigando a morte de Uriá, sob a cobertura do antes desconhecido. Isso não bastava? O Senhor te-
combate. É irônico que David envie as instruções ria acrescentado mais se David tivesse pedido (v. 8),
para loab em uma carta levada pela própria vítima. tão contente estava ele com esse seu favorito. David
11,16-27 David planeja a m orte de Uriá. As era como um filho mimado, para quem nunca é feito
instruções de David a loab não são exatamente o suficiente. Agora traiu a generosidade do Senhor,
cumpridas. David planejara que apenas Uriá fosse desprezando sua palavra (v. 9).
morto e que o fato parecesse acidente. loab, com- O castigo que Natan descreve vem em ordem
preensivelmente preocupado com a própria repu­ inversa dos fatos que o provocaram. Por causa do
tação como estrategista militar, atrai os homens de homicídio, a espada jamais se afastará da casa de
Rabá ao ataque, provocando a morte de alguns is­ David. Porque ele tomou Bet-Sheba, um outro (de
raelitas, entre eles Uriá. identidade não revelada) se deitará com as mulheres
Ora, loab, prevendo a cólera de David por causa do rei. Como David fizera isso secretamente, o cas­
da divergência, prepara o mensageiro com cuidado tigo acontecerá diante de todos. Quando David hu­
para uma possível reação irada. O que David diz mildemente admite ter pecado, Natan responde que
dá não só uma visão de como as guerras eram 0 S enhor já o perdoou. A morte que David merecia
combatidas naquele tempo, mas também do que se não será a sua, mas a do filho de Bat-Sheba, ainda
passava na mente de loab. Por exemplo, a advertên­ por nascer.
cia sobre deixar as tropas chegarem perto de mura­ 12,15b-25 David im plora pela vida do filho.
lhas de cidades lembra a morte vergonhosa de Abi- Embora, além de rezar, Davi jejue e durma no chão
mélek em circunstâncias semelhantes, nas mãos de (traço irônico, em vista da preocupação de David
uma mulher (v. 21; Jz 9,50-54). loab talvez esteja com o sono, no capítulo 11), a criança fica doente
comunicando a David como a morte de Uriá real­ e morre. Com efeito, David pranteou a morte com
mente aconteceu. antecedência e, quando ela é confirmada, surpre- 265
2 SAMUEL 12

ende seus familiares, levantando-se, lavando-se, mu­ Uma notícia falsa de que todos os filhos tinham
dando as vestes e comendo. O israelita de luto cos­ sido assassinados (v. 30) faz David temer o pior. Sur­
tumava se abster de tudo isso; ao ignorar o costume, preendentemente bem informado, lonadab explica que
David mostra sua independência do ritual estabe­ só Amnon fora morto. Aqui, o comportamento de
lecido e também a aceitação da morte da criança David assemelha-se ao de muitos chefes poderosos
(compare ISm 21,1-7). isolados dos planos dos subordinados. Como aconte­
Depois que David consola Bat-Sheba, agora sua ceu com Amnon (v. 21), David nada faz a Absalão
mulher, o Senhor abençoa a união com outro filho. que, incontido, foge para junto de seu avô na região
A aprovação divina é marcada pelo envio de Natan nâo-israelita de Gueshur (cf Gn 34).
para acrescentar o nome ledidiá, ou “Amado do Se­ 14,1-24 A m ulher sagaz de Teqoa. Quando
nhor ”,ao nome já a ele dado, Salomão. O amor do loab acha que é a ocasião certa, manda buscar uma
Senhor por Salomão será comprovado por sua ele­ mulher sagaz para instigar a volta de Absalão. Como
vação ao trono depois de David (IRs 1). a parábola de Natan (12,1-6), a história dela deve
12,26-31 David conquista Rabá. Em vez de levar David a fazer julgamento sobre um caso se­
tomar a cidade sitiada de Rabá ele mesmo, loab melhante à verdadeira situação do rei, mas com
chama David para dela se apoderar. Juntamente com bastante diferença para afasto as suspeitas até que
a coroa de ouro da divindade amonita Milkom, seja tarde demais. Como a de David, a história da
David toma muitos despojos e muitos cativos que mulher tem dois filhos que brigaram e, em conse-
pôs no trabalho. A história agora passa das vitórias qüência disso, um foi morto. Há duas diferenças:
militares de David para David, rei e pai. a morte do filho dela não foi homicídio premedi­
13,1-22 O estupro de Tamar. Absalão, terceiro tado como a de Amnon e a família dela está exi­
filho de David, domina o capítulo por causa de seu gindo a vingança de sangue, o que não acontece
relacionamento com Tamar, que seu meio-irmão com a de David. Ambas têm o problema de salvar
Amnon ama. O “amor” vem a ser uma paixão irracio­ o filho sobrevivente, porque, no caso da mulher,
nal que deixou Amnon doente. Partindo daí, o esperto ele é o único para estabelecer a posteridade, e, no
amigo de Amnon, lonadab, aconselha-o a usar a caso de David, Absalão é o herdeiro do trono.
“doença” como desculpa para David vir vê-lo. Quando David promete proteger o filho dela,
David não desconfia do pedido de Amnon para a mulher imediatamente faz uma analogia com a
que Tamar prepare tortas para um irmão adoentado. situação de David. Sem perceber, o rei julgou a si
Quando Tamar apronta a refeição e todos saem do mesmo, porque o que fizer pelo dela fará pelo
quarto (v. 9), em vez de comer, Amnon exige que próprio filho (v. 13). A mulher enfatiza seu propó­
ela se deite com ele. Usando o verbo “deitar” nos sito: Deus não traz os mortos à vida, mas planeja
w . 5,6,8,11 e 14, o narrador recorda o fato de David meios de fazer voltar os banidos. Se o rei protege­
se deitar com Bat-Sheba e a recusa de Uriá de ir se ria o filho dela da morte contra um vingador, as­
deitar em sua casa (cap. 11). A reiteração de “ir­ sim também deveria dar um lar a Absalão (v. 17).
mão” e “irmã” salienta o mal que consome a famí­ Para conquisto David, a mulher usa disfarce
lia de David. (v. 2), homenagem (v. 4), metáfora (v. 7) e franca
Tamar faz uma súplica entemecedora e elo- bajulação (vv. 17.20). (Compare ISm 29,10; 2Sm
qüente para Amnon não cometer um crime intolerá­ 19,27.) Por fim, David reconhece a mão de loab
vel (literalmente, “infâmia”) em Israel, mas Amnon na charada, mas não se zanga. O estratagema de
recusa-se a ouvir esses argumentos sensatos. Con­ loab permite-lhe trazer de volta Absalão pela razão
sumida sua paixão, o ódio latente de Amnon vem aparente de que a nação precisa do herdeiro do trono.
à tona. Antes ele mandara que todos os seus servos Entretanto, Absalão volta a Jerusalém sem estar
saíssem (v. 9), agora ele chama o criado para ex­ completamente reconciliado com o pai, pois David
pulsá-la (v. 17). Tamar implora para não ser humi­ não autoriza sua presença na corte.
lhada ainda mais; novamente, Amnon recusa. 14,25-27 Absalão é belo. Para preencher a pas­
Amnon mandá-la embora é o contrário de David sagem do tempo antes do contato seguinte de David
mandar buscar Bat-Sheba (11,4). Cheia de mágoa, com Absalão, o narrador concentra-se na beleza de
Tamar rasga sua túnica de princesa e no fim encon­ Absalão e no peso de seu cabelo. Isso nos deve alertar
tra um lar com Absalão. Embora ficasse muito irri­ para um possível problema, porque Bat-Sheba e Tamar
tado quando soube desse caso, David nada faz con­ também eram belas e ambas tiveram problemas por
tra seu primogênito. Todavia, a cólera silenciosa de causa da beleza.
Absalão tem um ar de presságio. 14,28-33 Absalão reconciliado com David.
13,23-39 Absalão pune Amnon. Paciente, mas Mais uma vez, Absalão deixa passar dois anos (com­
determinado, Absalão espera dois anos para ajusto pare 13,23) antes de demonstrar sua frustração. Fi­
as contas com o odioso Amnon por Um crime que seu camos sem saber a razão pela qual loab, que plane­
pai deixara de punir. Absalão usurpa a prerrogativa jou a volta de Absalão, recusa-se a vir quando cha­
de seu pai e, por causa disso, vemos David aos pou- mado, e por que Absalão decidiu valer-se de meios
266 COS perder o controle sobre os filhos. agressivos para trazer loab até ele. A violência do
2 SAMUEL 16

caráter de Absalão está aparente nisso e em sua informações sobre as atividades de Absalão em
disposição de fazer com que David o mate se o rei Jerusalém.
considerá-lo culpado (v. 32). David continua a subir pelo monte das Oliveiras,
No encontro de Absalão com o pai, não há chorando e descalço. As cabeças de todos estão co­
nenhuma palavra de boas-vindas ou perdão, so­ bertas como sinal de profunda tristeza Quando o rei
mente um beijo. Seria o beijo de alguém que vai vem a saber que seu conselheiro juntou-se a Absalão,
traí-lo (compare Lc 22,48)? David pela primeira vez reza publicamente para que
15,1-6 O político Absalão. Absalão agora adota os conselhos de Ahitôfel sejam frustrados (v. 31).
uma vida de exibição, com carros, cavalos e ho­ 15,32-37 Hushai é enviado em missão. Ago­
mens que correm adiante dele. Assumindo o papel ra David e o povo alcançam o cume do monte das
de juiz para litigantes que vêm a Jerusalém e adu­ Oliveiras onde, nos é informado de maneira signi­
lando os provenientes das tribos do norte, Absalão ficativa, o povo costumava adorar a Deus (v. 32).
esforça-se para ampliar a brecha entre o norte e o Nessa quarta parada a ajuda vem a David na pessoa
sul em Israel. A imagem é a de uma pessoa de de seu amigo e confidente, Hushai (cf ICr 27,33).
grande vaidade e perfídia. Como aconteceu com a Arca, David não o mantém
15,7-12 David enganado pela terceira vez. a seu lado, mas envia Hushai para desfazer os con­
Assim como foi ludibriado para permitir que Tamar selhos de Ahitôfel a Absalão.
fosse até Amnon (13,5-7) e Amnon até Absalão 16,1-4 Sibá traz presentes. A onda da adversi­
(13,26-27), mais uma vez David deixa a espada dade começa a se voltar a favor de David quando
ameaçar sua casa, permitindo que Absalão vá a ele desce a montanha. Na quinta parada de David,
Hebron. E difícil para o rei contestar a razão dada p>or Sibá, criado de Mefibôshet (9,2-4.9-10), vem a seu
Absalão para ir, o cumprimento de um voto feito em encontro com três tipos de provisões: transporte,
Gueshur (v. 8). David não alega que Absalão podia alimento e bebida. Sem demonstrar gratidão, David
cultuar em Jerusalém, possivelmente porque Hebron pergunta e é informado de que Mefibôshet está em
era o lugar de nascimento de Absalão (3,2-3) e onde Jerusalém, esperando ser coroado rei. Sem investigar
David foi ungido rei de Israel (5,3). Essas considera­ mais a fundo essa acusação de traição, impulsiva­
ções fazem de Hebron um lugar tanto lógico como mente David dá a Sibá todos os bens de Mefibôshet.
irônico para Absalão arregimentar seus seguidores. Mais tarde, Mefibôshet tentará se desculpar (19,25­
Quando Ahitôfel, conselheiro de David, passa para o 31), mas o ressentimento de David pelo que pode
lado de Absalão, está iniciada a conspiração. ser um ressurgimento da casa de Saul realça a ameaça
15,13-18a A lealdade dos servidores de persistente de secessão pelo norte.
David. A gravidade da ameaça de Absalão reflete­ 16,5-14 Shimeí amaldiçoa e apedreja David.
-se na decisão imediata de David de fugir de Jeru­ A sexta parada na fuga de David de Jerusalém põe
salém, assim que fica sabendo da traição. Todos os o rei em confronto com outro membro da casa de
seus servidores preparam-se para partir. Ao mencio­ Saul, também traiçoeiro, mas mais hostil. Shimeí de
nar que o rei deixa dez concubinas para cuidar da Bahurim inflige a David a maior humilhação pública
casa, o narrador antecipa outro cumprimento da pro­ que este já sofrerá, mas, para David, as maldições e
fecia de Natan (12,11). Durante a triste caminhada as pedradas não se comparam à dor da rebelião de
de David para fora de Jerusalém, o grupo pára pri­ Absalão (v. 11). Shimeí alegra-se que a história san­
meiro em frente à subida do monte das Oliveiras grenta de David (talvez se referindo aos aconteci­
(cenário da via dolorosa de Jesus, cf. Lc 22,39). E mentos de 21,1-14) lhe tenha trazido o castigo do
a primeira de sete paradas. S enhor ( v. 8), enquanto David, recusando a oferta
15,18b-23 A lealdade de um estrangeiro. En­ de Abishai para cortar a cabeça de Shimeí, aceita
quanto seu povo passa adiante dele antes de diri­ com paciência o que o Senhor permitiu, esperando
gir-se para o leste, saindo de Jerusalém, David pára que seu sofrimento seja compensado mais tarde (v.
e insiste com Itai de Gat para que volte ao rei, re­ 12). Luto, humilhação, dúvida e traição atormentam
ferindo-se não a si, mas a Absalão em Jerusalém. a caminhada de David, desde a saída de Jerusalém.
A fiel determinação de Itai de ficar, para a morte O apoio do povo, a lealdade de Itai e a promessa de
ou para a vida (v. 21), contrabalança a traição de ajuda de Hushai e dos filhos dos sacerdotes (15,36)
Absalão. Depois dessa segunda parada, David atra­ são suas únicas alegrias. Exaustos, rei e povo chegam
vessa o Cedron (compare Jo 18,1). ao Jordão, a sétima parada.
15,24-31 A chegada da Arca. A triste procissão 16,15-23 Absalão e seus conselheiros. De volta
pára uma terceira vez quando surgem os sacerdotes a Jerusalém, Absalão reúne um conselho de guerra.
Sadoq e Ebiatar com a Arca. Talvez pensando em Hushai chega ao acampamento inimigo com excla­
Shilô (ISm 4,4-11), David manda de volta a Arca mações de “Viva o rei!” A vaidade de Absalão le­
na esperança de que o Senhor deixe-o revê-la em va-o a presumir que “o rei” significa ele próprio,
Jerusalém (v. 25). Embora resignado com o que mas mesmo assim ele questiona a transferência da
quer que lhe esteja reservado, David não deixa lealdade de Hushai, (Para um jogo semelhante com
de usar os sacerdotes e seus filhos como fonte de palavras malcompreendidas, c f ISm 28,1-2.) 267
2 SAMUEL 17

Absalão também entende que a dedicação que 17,23-29 A juda a David. Ahitôfel sabe que o
Hushai agora oferece àquele “que o Senhor escolheu plano de Hushai trará a derrota para Absalão e os
e todo este povo e todos os homens de Israel” (v. 18) rebeldes. Não é o desapontamento da rejeição pessoal
refere-se a ele. Com essas duas certezas aparentes, que o leva ao suicídio. Ahitôfel é um realista que
basta a promessa de Hushai de servi-lo como serviu jogou alto e perdeu. Sua morte não é vergonhosa, pois
a seu pai para convencer Absalão da sinceridade ele foi enterrado no túmulo da família. Os crimino­
de Hushai. sos ganhavam como túmulo um monte de pedras
Antes de buscar o conselho de Hushai, Absalão (cf. Js 7,25-26; 2Sm 18,17).
obedece às instruções de Ahitôfel de tomar as con­ Bem à frente de Absalão, David chega a Maha-
cubinas de David. Este astuto ardil político para rei­ náim (veja Gn 32,1-3.11). O príncipe amonita Shobi,
vindicar a realeza dará um golpe mortal em qualquer Makir, que abrigara Mefibôshet antes de David
esperança de reconciliação entre pai e filho (compare levá-lo a Jerusalém (9,4), e Barzilai, rico partidário
3,6-11). A tenda sobre o terraço lembra o passeio de Saul, trazem provisões necessárias e bem-vindas
auspicioso de David no terraço de seu palácio (11,2) para os exaustos homens de David. Esse inesperado
e a profecia que um outro de sua casa se deitaria apoio de não-judaítas ajuda a restaurar a força e a
com suas mulheres à luz do sol (12,11). Com ironia, coragem dos fugitivos.
0 narrador comenta a grande consideração que tanto 18,1-5 David implora por Absalão. Os prepara­
David como Absalão tinham pelos conselhos de tivos de David para o combate incluem a divisão do
Ahitôfel (v. 23). exército em três comandos: loab, Abishai e o recém­
17,1-14 Ahitôfel e Hushai aconsèlham Absalão. -chegado Itai, o guidita, com seus homens (15,18­
Analisando com discernimento a situação de David, 22). O apoio de Itai foi decisivo, por causa do grande
Ahitôfel aconselha Absalão a avançar rápida e silencio­ número de soldados perdidos para Absalão.
samente contra o rei exausto. O desânimo dos segui­ A oferta de David para conduzir os soldados
dores de David provocará pânico e fuga, deixando o no combate é polidamente recusada, ou porque sa­
rei sozinho e exposto. Com David fora do caminho, biam que o rei era alvo de captura ou porque que­
0 povo passará para o lado de Absalão em paz. A ale­ riam poupá-lo de um confronto com Absalão. A
goria apropriada de Ahitôfel paia isso, a volta de uma David, outrora elogiado por matar dezenas de milha­
esposa ao marido (conforme o grego; c f TEB, v. 3, res (ISm 18,7; 29,5), dizem, de modo comovente,
nota), é a única lisonja para o ego inchado de Absalão, que ele vale dez mil — por trás das linhas. Antes
mas leva a um acordo inicial para seu plano. de partir, os soldados e seus comandantes ouvem
Como se para exibir seu novo conselheiro, a ordem de David para que tratem Absalão com
Absalão pede que Hushai também fale. Aproveitan­ brandura.
do ao máximo a oportunidade, Hushai sugere com 18,6-18 Absalão é derrotado. A breve notíeia
diplomacia que, embora Ahitôfel costume dar bons da batalha na qual os homens de David são vito­
conselhos, dessa vez seu conselho não é bom. Hushai riosos (vv. 6-8) fala de pesadas baixas causadas
descreve com ardor a valentia de David na guerra, mais pela floresta traiçoeira do que pela luta em si.
sua habilidade tática, a coragem de seus homens, Em muitos combates bíblicos, com freqüência, as
prevenindo que a derrota no primeiro ataque trará o forças naturais — lama. insetos ou doença — põem
desânimo aos homens de Absalão. Todo Israel deve, fim às hostilidades. Mais que dos combatentes, a
portanto, ser convocado e o próprio Absalão conduzir vitória é do S enhor, que move os acontecimentos
o exército. Como o plano de Ahitôfel não dera ao segundo sua vontade.
príncipe um papel na perseguição, Absalão deve ter As conseqüências são muito mais dramáticas
achado essa alternativa muito atraente. do que o combate em sí. A cabeça de Absalão pren­
O quadro minucioso pintado por Hushai, de de-se em uma árvore, enquanto o soldado fiel e o
uma vitória na qual todó Israel cai sobre David e desobediente loab, discutem quem o matará (w. 11­
arrasta a uma torrente toda a cidade que o acolhe, 14). O soldado lembra a ordem de David, mas isso
cega Absalão e seus seguidores à irrealidade do plano. não detém loab que, como um matador, crava seus
O narrador comenta que o eficiente plano de Ahitôfel chuços no coração de Absalão e deixa seus picadores
foi rejeitado porque o Senhor planejou a ruina de acabarem com ele. Como Abner (3,22-27), loab não
Absalão (v. 14). tolera ameaças ao trono. É homem de ação, agindo
17,15-22 David atravessa o Jordão. Hushai segundo conselhos humanos; David, mais sensível à
deve ter temido que o plano de Ahitôfel ainda pu­ vontade de Deus em sua vida, ama o filho acima do
desse ser adotado, pois insta com David para não poder real. Aqui, ele fica cada vez mais consciente
se demorar daquele lado do Jordão. Com a ajuda de da espada punitiva que, conforme a profecia de
uma mulher inteligente que lembra Rahab (cf. Js 2), Natan, nunca se afastaria de sua casa (12,10).
os dois filhos dos sacerdotes conseguem entregar a Ao soar da trompa (v. 16), termina a batalha
mensagem a tempo. David e seu povo passam a noite pelo trono. Os israelitas fogem e Absalão é coberto
atravessando o Jordão, movimento que significa se- por um monte de pedras, o sepultamento de um
268 paração e também segurança. criminoso (cf. Js 7,26). A esteia que Absalão cons-
2 SAMUEL 20

truiu para si lembra o monumento memorial de Saul diçoara e apedrejara David, apressa-se a ser o pri­
(ISm 15,12). A notícia de que Absalão não tinha meiro a fazer o rei atravessar o Jordão. Ao repetir
descendentes é contradição direta de 14,27, que lhe o verbo “atravessar”, a narrativa transmite a urgên­
atribui três filhos. cia da travessia do rei.
18,19-32 A notícia é dada a David. Ao impe­ Sibá acompanha Shimeí (v. 18), demonstrando
dir Ahimáas de ir correndo contar a David que que sua lealdade estava o tempo todo com a casa
Absalão está morto, loab deve ter-se lembrado que de Saul. Quando Shimeí pede perdão, Abishai mais
David mandou executar o amalequita que lhe deu a uma vez oferece-se para matá-lp, mas David não
noticia da morte de Saul (1,13-15). Embora Ahimáas quer vingança em seu dia de vitória (cf. 16,9; ISm
ultrapasse o kushita, ao chegar a David, não tem 11,13). David refere-se a Abishai como Satanás,
coragem de lhe dizer a amaiga verdade (v. 29). Com ou um adversário, da mesma forma que Jesus fará
distrações sobre corredores avistados e saudações com Pedro (Mt 16,21-23).
formais (vv. 24-28), a narrativa demora-se de forma 19,25-31 M efibôshet explica sua ausência.
torturante, por cerca de 13 w., antes que o golpe da Pondo a culpa de seu atraso na traição de Sibá, o
morte de Absalão deixe o rei arrasado. coxo Mefibôshet mostra sua lealdade, aparecendo de
19,1-5 loab censura a aflição de David. A luto. Embora alegue que Sibá o caluniara e elogie
simples repetição das palavras: “Meu filho, Absa­ David chamando-o de anjo de Deus (v. 28), David
lão, meu filho, meu filho!” transmite a profunda lhe responde bruscamente e lhe devolve metade dos
aflição de David, mais que qualquer descrição. bens que antes dera a Sibá (16,1-4). Esse encontro
Como antes chorara e cobrira a cabeça enquanto não prova a lealdade de Mefibôshet, mas mostra que
subia o monte das Oliveiras (15,30), por causa da está disposto a deixar Sibá ficar com toda a proprie­
revolta de Absalão, aqui David chora com a cabeça dade, porquanto David está salvo (v. 31).
coberta (v. 5) porque Absalão está morto. Em vez 1932-41a David tenta recompensar Barzilai.
de cântieos e alegria pela vitória, o povo entra furti­ Embora seja benjaminita, Barzilai demonstrou fide­
vamente na cidade, como um exército derrotado lidade a David com seu presente de suprimentos em
(v. 4). O uso de “furtivamente” lembra que Absalão Mahanáim (17,27-29). Apesar de ser homem de
furtivamente ganhara para si os corações dos habi­ posses, como Nabal (ISm 25,2), o sábio e generoso
tantes de Israel, na tentativa de tomar o trono de Barzilai é um agradável oposto do tolo e avarento
seu pai (15,1-6). Nabal. Pelo protesto de Barzilai de que era velho
A voz de loab é a voz da razão e do Estado, demais para apreciar a vida na corte, ficamos saben­
em contraste com a preocupação de David com a do como os reis antigos passavam os dias.
morte que tinha tanta esperança de evitar. Menos­ 19,41b-44 A divisão latente. A essa altura, todo
prezando a aflição do rei, loab lembra a David que Judá e metade de Israel estão com David. Qs israe­
ele está insultando o próprio povo que salvou sua litas, que haviam reconsiderado sua posição, acu­
vida. David reage à ameaça de perda de apoio, sam os judaítas de se terem apossado de David,
fazendo força para saudar o povo. Aqui os efeitos talvez na tentativa de encobrir a própria indecisão.
dos pecados de David ultrapassam sua família para Qs judaítas se defendem com vigor, apesar dos
tocar no trono. Ele é um homem abatido, não mais protestos israelitas de que têm mais direito sobre o
o monarca enfatuado dos capítulos 9 e 10, que rei (v. 44). A volta de David a Jerusalém encobre
gostava de praticar boas ações. Agora, é forçado a uma divisão mais profunda entre as duas partes da
praticá-las. terra, que explodirá com violência sob Roboão,
19,10-15 A volta das tribos do norte. Da cena neto de David (IRs 12).
em Mahanáim com sua desanimada procissão de 20,1-3 Israel segue Sheba. Um novo líder para
vitória diante de David, a narrativa passa ao que os israelitas insatisfeitos que recentemente haviam feito
resta do exército de Absalão em fuga. Sem chefe e David atravessar o Jordão surge em um benjamini­
divididos em suas lealdades, pouco a pouco perce­ ta chamado Sheba, que o narrador classifica como
bem que David não era o fracasso como rei que indivíduo rebelde (literalmente “filho de Belial”),
outrora eles julgavam que fosse. Quando David como em ISm 1,16; 10,27; 25,17; 30,22. Com o
ouve dizer que querem que ele volte (palavra ffe- grito de Sheba, “Cada qual para as suas tendas”, os
qüente nos vv. 11-15), transforma-se em um políti­ homens de Israel mais uma vez abandonam David
co persuasivo, lembrando-lhes seu parentesco e pro­ (compare IRs 12,16). Ao chegar em Jerusalém, o rei
metendo tirar o comando de loab e dá-lo ao antigo toma as dez concubinas desonradas que haviam sido
general de Absalão, Amasá (17,25). Esse rebaixa­ deixadas para guardar o palácio (15,16; 16,21-22) e
mento exaspera o impetuoso loab, até ele promover as mantém em uma dependência sob guarda, pelo
a própria volta (cap. 20). resto de suas vidas.
19,16-24 A apologia de Shimeí. Este será o pri­ 20,4-13 A perseguição de Sheba. Ao tratar da
meiro de três encontros que correspondem aos nova ameaça por parte de Sheba, David designa Amasá
acontecidos quando David desceu o monte das Oli­ para formar o exército judaíta. Quando Amasá fra­
veiras (16,1-14). O benjaminita Shimeí, que amal­ cassa, David, ignorando loab, manda Abishai em 269
2 SAMUEL 21

perseguição a Sheba. De repente (v. 7), vemos loab Com uma dedicação semelhante à de Antígona
e seus homens marchando em perseguição a Abishai. pelo irmão morto, Rispá guarda os corpos dos mor­
Apesar da relutância de David para lidar com ele, tos, dois dos quais são seus filhos (v. 8). A morte
loab parece poderoso demais para ser contido. que envolvia exposição às aves do céu e aos ani­
No caminho, em Guibeon, loab interrompe a mais selvagens era considerada um horror em Israel.
perseguição para, com sua desumanidade caracterís­ O relato dessa bondade para com os mortos desperta
tica, eliminar seu rival Amasá. Ao matar Amasá, loab a simpatia de David e ele faz com que todos os sete
livra David de mais um problema político; dessa vez e também os ossos de Saul e Jônatan (ISm 31,11-13)
não ouvimos dizer que David chorou. O povo perto sejam sepultados no túmulo de Qish, pai de Saul
do soldado morto chafurdando no próprio sangue (V. 14).
fica consternado. A perseguição só continua depois O relato de suas mortes inclui dois prenún-
que o corpo é coberto e removido do meio da estrada. cios do fim da fome; tem início a colheita da cevada
20,14-22 A mulher sagaz de Abel-Bet-Maaká. (v. 9) e a chuva começa a cair (v. 10). Os corpos são
Antes, quando loab chamou uma mulher sagaz no sacrifícios para rogar ao Senhor uma boa colheita
capitulo 14, ela recebeu instruções quanto ao que por meio da expiação de pecados passados dos quais
devia fazer e dizer. Aqui, uma mulher sagaz diz a não houve arrependimento. O incidente é exemplo da
loab o que fazer (v. 16). Sua conversa é sobre a idéia israelita de culpa coletiva pela qual o povo sofre
destruição, planejada por ele, de uma cidade que é juntamente com o rei quando este ofende a Deus.
cidade-mãe em Israel, isto é, um lugar ao qual os 21,15-22 David e seus valentes. Seguem-se
israelitas em dificuldades podem recorrer para pedir quatro breves relatos de combates com gigantes
conselhos. A fim de evitar isso, a mulher está dis­ filisteus equipados como Goliat (ISm 17,4-7). A
posta a sacrificar apenas uma vida por seu povo. história da ajuda que lhe é dada por Abishai (v. 17)
Como acabou de assassinar Amasá, é muito irônico mostra como os “duros” filhos de Seruiá (3,39)
da parte de loab negar com tanta veemência que de­ são necessários a David. A referência a David como
seja arruinar ou destruir alguma coisa (v. 20). Quan­ a lâmpada de Israel indica a consideração afetuosa
do a mulher entrega a cabeça decepada de Sheba, dos soldados (cf. 18,3-4). A confusão entre o v. 19,
loab faz soar a trompa para a retirada. que atribui a morte de Goliat a Elhanan, e ISm
20,23-26 Chefes de governo. Com o governo 17,48-51, onde David é o herói, é solucionada em
de volta a Jerusalém, loab está a salvo no comando, ICr 20,5, que afirma ter Elhanan matado o irmão
mas é estranha a falta de Abishai. Uma lista de fun­ de Goliat, dando assim um gigante a David e outro
cionários encerra o longo segmento narrativo con­ a Elhanan.
tido nos capítulos 9-20. 22,1-51 A rocha de libertação de David. Em
poema majestoso, duplicata do Salmo 18, David
louva o S enhor com humildade e gratidão por tê­
VII. APEHDICES
-lo salvo de seus inimigos. Os vv. iniciais apresen­
2Sm 21-24 tam sete sinônimos para o S enhor como salvador:
Estes capítulos dão informações sobre David rocha, fortaleza, libertador, escudo, arma, cidadela
que não se encaixam na narrativa contínua de 2Sm e refúgio. O Senhor salva David da violência (v. 3)
9-20. Aqui é realçada a dedicação de David ao e 0 liberta dos homens violentos (v. 49). O S enhor
S enhor, de modo que sua fidelidade à aliança divi­ ouve a voz do salmista (v. 7), mas estrangeiros ou­
na lembra o tema deuteronomista de obediência ao vem a mesma voz, agora revestida de poder para
Senhor e as bênçãos que a acompanham. A história subjugar outras nações (v. 45).
da vida de David termina em IRs 1—2 com a ascen­ A ação do Senhor na vida de David é compa­
são de Salomão ao trono e a morte de David. rada à ação da natureza: ondas sobem, torrentes
21,1-14 David alivia a fome. Talvez estes acon­ surpreendem (v. 5); a terra treme e se abala (v. 8);
tecimentos tenham precedido a decisão de David fogo, nuvem, vento, escuridão, relâmpago e águas
de levar Mefibôshet para sua casa (cap. 9). Aqui, aparecem em ação tumultuada para retratar a rea­
depois de consultar o S enhor, como era seu costu­ ção do S enhor ao grito daquele que é perseguido
me (cf ISm 23,2.4.9-12; 30,7-8; 2Sm 2,1), David (vv. 5-17). A libertação pelo Senhor é descrita em
ouve que a vingança de sangue à qual Saul ficou termos mitológicos: o Altíssimo monta no carro do
sujeito em um ataque de outro modo desconhecido querubim e voa, surgindo sobre as asas do vento
precisa ser cumprida. Aparentemente, Saul transgre­ (V. 11; c f ISm 4,4; 2Sm 6,2; Ex 25,10-22). As ra­
diu com um massacre total a aliança que os guibeo- zões para a libertação são o amor do S enhor (v. 20)
nitas tinham induzido os israelitas a fazer (Js 9,3-27). e porque David foi considerado sem culpa (v. 21),
Não são os guibeonitas sobreviventes, mas o S enhor fiel (v. 22) e puro (v. 25).
quem exige reparação. Entretanto, os guibeonitas No centro do salmo, o poeta dirige-se direta­
decidem os meios da expiação, para a qual David mente ao S enhor. “Com o fiel, tu és fiel... és ínte­
escolhe dois filhos e cinco netos de Saul que serão gro... puro... tortuoso... atiras teu olhar... minha lâm­
270 executados. pada és tu... o S enhor ilumina minhas trevas” (vv.
2 SAMUEL 24

26-29). O Senhor lida com as pessoas segundo a te o reinado de David. O reino se limita com o mar
integridade de suas vidas. Note os contrastes: o Mediterrâneo a oeste, Guilead a leste, Dan ao norte
puro versus o perverso (v. 27), o humilhado versus e Beer-Sheba ao sul. Contando mulheres, crianças e
o que se exalta (v. 28), as trevas versus a luz (v. 29). anciãos, o total da população podia ser até cinco
Voltando à terceira pessoa. Deus é apresentado vezes os 1 milhão e 300 mil relacionados (v. 9).
de novo como rochedo (v. 32), o caminho do poeta 24,10-17 David se arrepende. Mais uma vez
é seguro e seus pés são velozes (v. 34). Em prepa­ David lamenta um ato impulsivo (compare ISm
ração à guerra, Deus treina David para usar o arco 24,6). O profeta Gad oferece a escolha de três expia-
e 0 cinge de vigor para o combate (vv. 33.35.40). ções, cada uma das quais contém três unidades de
Com essa força dada por Deus, o poeta supera seus tempo. David escolhe os três dias de peste, a mais
inimigos, que fogem e são exterminados (v. 41), curta, porém mais intensa.
esquecidos (v. 42), esmagados e pisoteados (v. 43), Assim como a fome de 21,9 terminou no início
escravizados (v. 44), obedientes (v. 45), desmorona­ da colheita da cevada, aqui a peste começa no tem­
dos e cercados (v. 46). O poema termina dando po da colheita do trigo, ambas sinais de mitigação
graças pelo que o Senhor concede ao rei ungido, divina. Estas, com a misericórdia do S enhor reti­
“a David e a sua dinastia, para sempre” (v. 51; cf. rando a mão do anjo destruidor da direção de Jeru­
ISm 2,10). salém (v. 16), são lições do amor de Deus em meio
23.1- 7 David louva a Deus. Estas “últimas pa­ao sofrimento. David toca uma nota progressiva na
lavras” de David começam no estilo dos oráculos teologia antiga quando, em vez da expiação cole­
de Bileâm (Nm 24,3-4.15-16; Gn 49; Dt 33). De­ tiva aceita, pede ao S enhor para castigar apenas a
pois de se descrever como criado, ungido e favore­ ele e a sua família.
cido pelo Deus todo-poderoso de Israel, o poeta 24,18-25 A eira de Aravna. A ordem para er­
atribui suas palavras âo espírito do S enhor (v. 2). guer um altar em Jerusalém, com as promessas de
Um governante justo e temente a Deus é compara­ fazer uma casa duradoura para David (7,8-16) é a
do à ação da luz da manhã brincando na relva base para a teologia de Sião de Israel que celebra
molhada (cf. Os 6,3). O governo de David foi esta­ Jerusalém, a montanha sagrada de Deus, como o
belecido em uma aliança eterna (2Sm 7), pois ele lugar central de culto para toda a humanidade (cf
viu a salvação e a satisfação de todos os desejos Is 2-4; SI 46; 47; 76; 84; 87; 122).
(vv. 5-6). Em contraste, os vadios são perigosos ao A necessidade que David sente de comprar a
toque e, como espinhos, destinam-se ao fogo (cf eira de Aravna significa que ele não possuía toda a
SI 118,12). terra de sua capital e que os canaanitas partilhavam
23,8-39 Os valentes de David. David ligou a si a terra com Israel. Assim como Abraão tomou legal
um grupo fiel de guerreiros excepcionais. Eles se sua propriedade da sepultura de Sara em Makpelá,
destacam pela força e a bravura (vv. 8-12). Juntos comprando em vez de aceitar o lugar como presente
arriscam a vida para retirar para David água de uma (Gn 23,10-16), David também recusa a oferta de
cisterna guardada pelo inimigo (v. 16). O ato de David Aravna e insiste em pagar um alto preço pela terra
despejar a água diante do Senhor liga a ele a dedica­ que mais tarde será o terreno para o Templo.
ção dos valentes com um ato de adoração. Dos guer­
reiros restantes citados, apenas Abishai e Benaiáhu
têm papéis significativos na história de David. Epílogo
24.1- 9 A tentação de David. Os antigos israe­ O Senhor satisfez duas importantes necessida­
litas viam a ira do Senhor em toda calamidade. des do povo: um profeta para transmitir a palavra
Aqui, a peste em Israel começa devido à curiosida­ divina e um rei para govemá-lo. Esses são os líde­
de de David para saber o tamanho de seu povo, res pelos quais o S enhor guia a história desse povo,
conhecimento evidentemente reservado ao Senhor. castigando-o ou libertando-o conforme é preciso.
loab tenta dissuadir David de fazer o recenseamen- Deus exige obediência, fidelidade e gratidão, mas
to, mas fracassa (vv. 3-4). Sua viagem subseqüente não abandona o pecador. As vidas de todos estão
pela terra dá uma idéia da extensão de Israel duran­ mergulhadas na bondade e no amor de Deus.

271
1 E 2 REIS
A l i c e L. Laffey, R .S .M

INTRODUÇÃO
s dois Livros dos Reis são os últimos do Senhor e a subsequente degeneração de Salomão
capítulos de uma seção maior do An­ em infidelidade. Os pecados de Salomão e a estu­
tigo Testamento conhecida como His­ pidez de seu filho levam à divisão do reino em
tória Deuteronomista. Essa história reinos do norte e do sul — Israel e Judá. Grande
também inclui os livros do Deuteronô- parte do restante do primeiro livro trata do reino
mio, de Josué, dos Juizes e 1 e 2 Samuel. do norte, em especial de seus líderes idólatras; para
No Deuteronômio, é apresentada a Lei. A fide­ eles não pode haver dinastia duradoura.
lidade à Lei deve ser a resposta de Israel a sua O Segundo Livro dos Reis continua a julgar as
aliança com o S enhor, seu Deus. O livro especifica monarquias de Israel e Judá. Judá elabora um pa­
as responsabilidades do povo depois de entrar na drão complexo entre seus reis mais ou menos bons
terra prometida a seus ancestrais. e maus, em contraste com o padrão consistente de
O Livro de Josué descreve a triunfante conquista maldade encontrado no reino do norte. Por fim, o
da terra de Canaâ por Israel sob a eficiente lideran­ perverso reino do norte recebe um castigo definiti­
ça de Josué, conquista realizada com facilidade e vo; o Senhor envia a Assíria para conquistá-lo e os
rapidez por causa da fidelidade do povo ao S enhor. israelitas são conduzidos ao exílio. Posteriormente,
O Livro dos Juizes faz um relato mais realista O reino do sul segue caminho semelhante. Por causa
da entrada dos israelitas em Canaâ. O avanço foi da infidelidade — mais explicitamente, por causa
lento e nem sempre coroado de êxito. O S enhor dei­ dos pecados do perverso rei Manassés — , os babi­
xou OS canaanitas habitar a terra ao lado dos israe­ lônios destroem o Templo e conduzem o povo de
litas, porque estes não foram fiéis a Deus e adora­ Judá ao exílio. Assim terminam o Segundo Livro
ram ídolos. Durante esse período de cerca de 240 dos Reis e a História Deuteronomista, exceto pela
anos de história israelita, o comando da terra assu­ nota promissora sobre a contínua fidelidade do Se­
miu a forma de juizes — chefes militares ou con­ nhor nos três últimos vv. de 2 Reis. Ali está registra­
selheiros prudentes, cujas atribuições não eram do que 0 rei exilado de Judá, loiakin, é libertado da
hereditárias. prisão e recebe tratamento amistoso do novo rei da
O Primeiro Livro de Samuel ^resenta Samuel, o Babilônia.
último dos juizes de Israel, o profeta que ungirá o pri­
meiro rei de Israel. Apesar de alguma oposição, Saul O redator deuteronom ista
é designado primeiro monarca de Israel. Entretanto, Em sua maioria, os estudiosos concordam que
a infidelidade ao S enhor leva à sua queda e ele é estes sete livros do Antigo Testamento — Deutero­
substituído por David, o servo do S enhor, em quem nômio, Josué, Juizes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis —
repousa o Espírito de Deus. O Segundo Livro de existiam originalmente em fragmentos escritos em
Samuel continua a narrativa da ascensão de David épocas diferentes, por pessoas diferentes em luga­
ao poder e relata sua aliança com o Senhor, na qual res diferentes. Essas fontes foram agrupadas por
lhe é prometida uma dinastia. um ou mais reedatores em uma única unidade lite­
Os dois livros dos Reis narram a história da rária e teológica. Parte do material deve ser tão an­
dinastia de David. Salomão, filho de David, suce­ tiga quanto o século X a.C., remontando ao reinado
de ao pai como rei e a dinastia se inicia: a promessa do rei Salomão; outros materiais, tais como o rela­
do S enhor é cumprida. Além disso, Salomão cons­ to da destruição de Judá, não podem ser datados
trói um templo para o S enhor, também de acordo de um período anterior ao século VI a.C. Um últi­
com a promessa do S enhor a David. mo autor, em geral chamado de redator deutero­
O Primeiro Livro dos Reis relata em pormeno­ nomista ou historiador deuteronomista e citado co­
res 0 reinado de Salomão, a construção do templo mo “Dtr” pelos estudiosos, organizou as fontes à 273
1 REIS

sua disposição em um relato unificado e explicado é filho de seu pai, isto é, descendente direto de
do passado de Israel. David. De fato, o S enhor abranda o castigo que
seu povo merece e adia o fim do reino “por causa
A teologia deuteronom ista de David, seu servo”.
Toda a História Deuteronomista é relatada da pers­ 2. A dinastia davídica. Em conseqüência da
pectiva de um encadeamento teológico consistente, que aliança do Senhor com ele, David, ao contrário de
descreve as atitudes fundamentais entre Deus e o povo. Saul, terá uma dinastia; seus filhos governarão de­
O Senhor inicia o bem para o povo, mas este se afasta pois dele. Este tema inspira grande parte dos Livros
de Deus e adora ídolos. Este mal provoca a ira do dos Reis. A promessa é cumprida quando Salomão
Senhor e a resposta de Deus é castigar o povo, por sucede a David. Mais uma vez, segundo a teologia
exemplo, entregando-o nas mãos dos inimigos. A opres­ do redator deuteronomista, a fidelidade traz bênçãos,
são que 0 povo sofre leva-o a se voltar de novo para riquezas e prosperidade para o rei e para o povo,
seu Deus e pedir perdão e libertação. O Senhor ouve enquanto a infidelidade traz a adversidade. A fide­
a súplica do povo e o salva, mas logo depois o povo lidade de Salomão leva à sabedoria, à riqueza, à
se afasta de Deus outra vez. O padrão — bem de honra e ao templo, mas sua infidelidade leva à divi­
Deus, pecado de Israel, ira e castigo divinos, aflição e são do reino. Contudo, a dinastia de David perma­
súplica de Israel, perdão de Deus -— repete-se nece intacta. Uma única tribo, Judá, permanece fiel
freqüentemente em toda a História aos descendentes de David. Durante cerca de 400
Nos Livros dos Reis, essa teologia emerge em anos e até o último capítulo de 2 Reis, há um filho
forma de bênçãos pela fidelidade dos reis (por exem­ de David no trono de Judá.
plo, a riqueza e a honra de Salomão porque buscou 3. O Templo do Senhor. David está disposto
sabedoria para governar o povo do S enhor) e casti­ a construir um Templo para o S enhor, mas o S enhor
go pelos pecados dos reis (por exemplo, a recusa a prefere que o filho de David, Salomão, o construa.
Jeroboão de uma dinastia, por ter induzido Israel ao A construção é descrita nos primeiros capítulos de
pecado). De maneira consistente, a fidelidade resul­ 1Reis. Se o Senhor é importante, então a morada
ta em bem-estar, enquanto a infidelidade leva inevi­ de sua presença precisa ser grandiosa. Três capítu­
tavelmente à ruína. los são dedicados a descrições minuciosas da cons­
Quando passamos um olhar pela História e re­ trução do Templo e, finalmente, em IRs 8, Salomão
conhecemos esse padrão repetido com ffeqüência, o dedica.
perguntamo-nos se eles (nós) algum dia aprenderão O Templo figura com proeminência no restante
(aprenderemos) a lição. da História. O pecado mais grave de Jeroboão foi
construir santuários em Betei e Dan para impedir o
Temas povo de ir para Jerusalém, no sul, para cultuar. Os
1. A aliança davídica. 2Sm 7 apresenta um re­reis de Judá que o redator deuteronomista julga terem
lacionamento especial entre o S enhor e o rei David. feito “o que é reto aos olhos do S enhor” são aqueles
Chamado de “aliança davídica”, esse relacionamen­ que adornam primorosamente o Templo, levam ofe­
to especial, é uma explicação adicional da aliança rendas até ele, ordenam sua restauração e removem
do Sbshor com Israel. David é o “servo do Senhor”, os ídolos que seus maus predecessores nele puseram.
um homem “segundo o coração do S enhor”. Como Quando reis judaicos formam alianças com nações
o S enhor está com David, este é vitorioso contra os estrangeiras, o templo é pilhado e seus tesouros são
filisteus; o S enhor lhe concede descanso e lhe per­ roubados. Inevitavelmente, a destruição do reino de
mite construir para si um palácio de cedro. David Judá e 0 desaparecimento do Templo do S enhor an­
peca, mas reconhece e se arrepende de seu pecado; dam de mãos dadas.
embora seja castigado, é perdoado e o Senhor não 4. Profecia e concretização. Do princípio ao
0 rejeita, nem revoga a aliança. Assim, David se fim dos Livros dos Reis, encontramos muitos exem­
toma um modelo — aquele que andou nos cami­ plos da convicção do redator de que Deus é fiel. A
nhos do S enhor. palavra de Deus, expressa por meio de representan­
E s t e t e m a d o a m o r e s p e c i a l d o S enhor p o r tes escolhidos, é eficiente; sempre se concretiza.
D a v id e d a r e s p o s ta fie l d e D a v id c o n tin u a a a p a r e ­ Os profetas prometem, exortam e ameaçam porque
c e r e m to d a s a s p a rte s d o s L iv ro s d o s R e is. A fid e ­ 0 redator deuteronomista via a história de Israel
l i d a d e d o S enhor a S a l o m ã o e a o s r e i s d e J u d á é como a expressão viva da fidelidade ou infidelidade
e x p lic a d a c o m o c o n s e q ü ê n c ia d o ín tim o re la c io n a ­ dos israelitas à aliança com o S enhor. O s profetas
m e n t o d e D a v i d c o m o S enhor; a f i d e l i d a d e d e revelam as conseqüências futuras dos atos e atitudes
D a v id e r a c o m p r o v a d a e to d o s s e b e n e f ic ia v a m d e la . presentes. Não pronunciam a palavra do S enhor
N o ta m o s , e n tã o , q u e o s b o n s re is d e J u d á s ã o “ c o m o em vão. O poder de Deus fará essa palavra ser
D a v id ” e o s m a u s r e is “ n ã o s ã o c o m o D a v id ” . S a ­ cumprida e a História registra explicitamente que
lo m ã o e o s re is d e J u d á s ã o s e p u lta d o s “ c o m se u s isso acontece.
p a is , n a C id a d e d e D a v id ” . E fe ito u m e s f o r ç o e s - 5. A Lei. A fidelidade ao S enhor ou a falta dela
274 p e c ia l p a ra m o s tra r q u e c a d a re i s u c e s s iv o d e J u d á por parte dos governantes é manifestada em toda a
1 REIS 1

História Deuteronomista, inclusive nos Livros dos Eliseu, possibilitou a cura do marido. O presente
Reis, em termos da obediência de Israel à Lei do comentário fará um esforço especial para salientar
S enhor. A Lei de Moisés e a resposta dos descen­ as contribuições das mulheres.
dentes de David são as medidas para avaliar a mo­ Diante disso, pode-se perguntar se o redator
narquia. O redator deuteronomista interpreta os acon­ deuteronomista— como, aliás, o Cronista— neces­
tecimentos da história israelita conforme os reis e o sariamente deve ter sido um homem. Entretanto,
povo obedecem ou desobedecem a essa Lei. considerando o período no qual os textos foram pro­
Estes cinco temas — aliança, dinastia. Templo, duzidos, bem como seu conteúdo e estilo, inclino-me
profecia e Lei — são interdependentes e permeiam a a atribuir-lhes autoria masculina.
História. São instrumentos essenciais na exposição
que o redator deuteronomista faz de sua teologia e Naquele tempo e asora
fundamentais para a unidade dos Livros dos Reis. Embora a organização definitiva dos Livros dos
Reis não tenha acontecido depois do fim do século
A s mulheres e o Livro dos Reis VI a.C., nós, como comunidade de fiéis, considera­
Muitos comentaristas não percebem o papel mos sua palavra sagrada e significativa. E importante
significativo desempenhado pelas mulheres duran­ entendermos o contexto no qual estes livros foram
te 0 período das monarquias de Israel e como essas escritos — por quem e para quem — e procurarmos
figuras foram incorporadas aos Livros dos Reis. E entender o que significavam para o povo ao qual se
importante não só reconhecer a má liderança de destinavam originalmente. Todavia, precisamos ir
uma Izébel, que até excedeu o marido em idolatria, mais longe. Para que estes textos façam sentido para
malevolência e trapaça, mas também notar outras judeus e cristãos do século XX, precisamos dialogar
personagens femininas que influenciaram de forma com os textos no contexto das situações sociopolíti-
significativa o curso da história de Israel; Bat-She- cas e culturais em que nos encontramos. Juntos, pre­
ba, a rainha de Shebá, a mulher de Jeroboão, a viúva cisamos procurar entender o que constitui a fideli­
para quem Eliseu multiplicou o óleo, a escrava dade à aliança no século XX e, inversamente, qual
israelita e a mulher de Naaman, que, junto com forma assume nossa idolatria.

COMENTÁRIOi 1 REIS
PARTE I: O REINADO DE SALOAAAO Por isso 0 historiador deuteronomista exorta contra
o matrimônio misto (por exemplo, Js 23,12) e, no
1Rs 1,1-11^ 3 texto, 0 casamento com mulheres estrangeiras é,
Para melhor entender muitas das alusões con­ quase sempre, prenúncio de destruição.
tidas nos capítulos introdutórios do Primeiro Livro Precisamos ter em mente, também, que o texto
dos Reis, poderá ser útil adquirir certo conhecimen­ que temos como Escritura é história de caráter teoló­
to sobre a vida dos israelitas em sua terra no primei­ gico; aqui a história foi moldada por uma perspec­
ro milênio a.C. Primeiro, consideremos o problema tiva teológica. O intérprete da história do século XX
do sincretismo (fusão de práticas religiosas diferen­ espera que os documentos expressem o que realmen­
tes) e das mulheres estrangeiras. Os israelitas adora­ te aconteceu e pode, por descuido, rotular como falsa
vam o Senhor, o Deus que, com atos maravilhosos a adaptação dos eventos (por exemplo, por delibe­
na história em beneficio deles, tirara-os do Egito e radas omissões, ênfases, comentários editoriais, até
os trouxera a uma terra que se tornara deles. Mas, mesmo construções literárias). Contudo, somos real­
quando já estavam nessa terra, eram ffeqüentemente mente tão diferentes quando distinguimos entre his­
tentados a incorporar ao culto do S enhor os cultos tória econômica e história política (ambas com ên­
de fertilidade de seus vizinhos canaanitas. Em parte fases e omissões apropriadas); ou quando reconhe­
isso se explica por sua nova dependência da agricul­ cemos que a interpretação paraguaia da Guerra do
tura e sua necessidade de garantir uma terra fértil Paraguai pode ser muito diferente daquela dos ma­
e uma colheita próspera. O Senhor fizera coisas nuais brasileiros?
maravilhosas no deserto, mas será que podia fazer A o a p lic a r e s s e p rin c íp io a o s L iv ro s d o s R e is ,
as plantações crescerem? s ó p o d e m o s s u p o r q u e ta lv e z a s c o is a s n ã o a c o n ­
A infiltração de práticas pagãs de fertilidade te c e ra m p re c is a m e n te c o m o aqui d e s c rita s . Em
na religião israelita foi muitas vezes ocasionada h a rm o n ia c o m a in te n ç ã o d o re d a to r fin a l d e m o s ­
pelo casamento de israelitas com mulheres canaani­ tra r c o m o a fid e lid a d e a o S enhor c o n d u z i u ao su­
tas e outras “estrangeiras”. Depois do casamento, c e s s o e o o p o s to , a v e rd a d e ira h is tó ria d a s p e rs o n a ­
essas mulheres conservaram sua crença nos deuses g e n s — o q u e re a lm e n te a c o n te c e u a e la s e a Is ra e l
e deusas da fertilidade e, consequentemente, foram d u ra n te s e u s r e in a d o s — p re c is a s e r in te rp re ta d a
muitas vezes acusadas de levar Israel à idolatria. c o m o c o n se q u ê n c ia d e s u a fid e lid a d e o u in fid e li- 275
1 REIS 1

dade ao S enhor. O presente comentário examinará -voz do Senhor, o profeta Natan, o que, com cer­
com atenção como o texto retrata as personagens teza, é mau presságio.
e pretende sugerir, quando houver uma óbvia incon­ 1,11-53 Salomão é proclamado rei. Natan
sistência, o que provavelmente estava acontecendo apóia Salomão como futuro rei de Israel e age para
na história de Israel. que isso aconteça. Natan serviu de porta-voz do
Os primeiros capítulos de 1 Reis ligam os dois S enhor a David pelo menos duas vezes antes. Foi
livros veterotestamentários anteriores, 1 e 2 Samuel, ele quem comunicou a David a promessa divina de
ao que segue. O “herói” de 2 Samuel, o rei David, uma dinastia (2Sm 7) e quem comunicou o julga­
morre e confere a majestade a Salomão, filho de mento divino do pecado de David com Bat-Sheba
Bat-Sheba, sua esposa favorita, embora um filho (2Sm 12). David tem toda razão para levar a sério a
mais velho, Adonias, seja um ativo pretendente ao palavra de Natan. Agora, para convencer David de
trono. Os capítulos seguintes salientam que o rei­ que Salomão deve reinar depois dele, Natan arran­
nado de Salomão se caracteriza pela devoção ao ja um encontro entre David e Bat-Sheba. Ela deve
Senhor, explicando, desse modo, seu sucesso polí­ lembrar a David a promessa feita por ele de que o
tico e econômico. Salomão começa reconhecendo filho dela sucedería ao pai no trono. Natan asse­
sua fidelidade à aliança, sua reverência pelo S e­ gura a Bat-Sheba que ele também tentará persuadir
nhor. É para o S enhor e por causa do dom do David de que Salomão deve ser rei.
Senhor que terá êxito como rei. Os últimos capí­ Bat-Sheba e Natan executam o plano com su­
tulos (11-12), entretanto, mostram um desvio na cesso. David nomeia Salomão seu sucessor e lhe
fidelidade de Salomão. Ele, que tinha “amado o ordena que monte sua mula para ser ungido rei e
S enhor”, agora ama “mulheres estrangeiras” (11,1), sentar-se em seu trono. O pretendente Adonias ago­
que tiram seu coração do bom caminho. Esse jul­ ra não tem qualquer possibilidade. Sua única espe­
gamento é responsável pelo fato de Salomão per­ rança é que Salomão lhe poupe a vida, o que ele faz,
der 0 apoio de seu povo porque o oprimiu (por pelo menos por enquanto.
exemplo, pela cobrança de impostos e pelo traba­ Foi esse texto escrito durante o reinado de Sa­
lomão, em sua corte? Legaliza, de fato, uma cons­
lho forçado) — tanto que o reino é dividido depois
piração? Na perspectiva histórica, talvez a resposta
de sua morte.
deva ser afirmativa; contudo, na perspectiva teoló­
1,1-4 David em seu leito de morte. Em sua
gica, 0 porta-voz do S enhor, apoiado pela mulher
maioria, os biblistas acreditam que esse incidente —
de David, revelou, verdadeiramente, a vontade do
David agora velho e “frio”, isto é, incapaz de man­
S enhor.
ter relações sexuais — funcione como uma inclu­
2,1-11 Ultimas instruções e morte de David.
são. (Inclusão é a técnica de adaptar uma unidade
Os últimos conselhos de David a seu filho têm a
literária usando a mesma palavra, a mesma frase ou
ver, antes de mais nada, com a fidelidade à aliança.
o mesmo episódio no início e no fim dela) O pri­ Como David, Salomão deve venerar o S enhor; só
meiro pecado de David foi seu encontro sexual com assim terá a garantia de sucesso em seus empreen­
Bat-Sheba (2Sm 11). Ali ele tomou para si uma dimentos; só assim ficará garantida a permanência
mulher que já pertencia a outro. Aqui, por ironia, de um descendente de David no trono. E a primeira
Abishag, “jovem extremamente bela”, sua por direito, vez que são expressas condições a respeito da di­
é incapaz de aquecê-lo e excitá-lo. Para essa socie­ nastia; sua continuação depende da resposta fiel à
dade patriarcal, a mulher é propriedade, primeiro aliança.
do pai, depois do marido; contudo, essas mulheres Os outros conselhos de David referem-se a
— Abishag e Bat-Sheba — afetam de maneira signi­ determinadas pessoas: loab, os filhos de Barzilai e
ficativa a vida do rei, o bem-estar do reino e até Shimeí. Como loab, general de David, sem o conhe­
mesmo as circunstâncias que cercam a morte do rei. cimento nem a anuência de David, trespassara
Estes vv. também indicam que David, que ficara em Abner (veja 2Sm 3) e Amasá (veja 2Sm 20), David
casa “na primavera, na época em que os reis costu­ quer que Salomão castigue loab. (Aqui poderiamos
mam partir para a guerra”, não morrerá em combate perguntar se Salomão quer loab fora do caminho
como seu antecessor, Saul. O reino, na época da porque ele apoiara Adonias, se esse pedido de David
morte de David, está bem estabelecido e em paz. legaliza a decisão de Salomão de matar um inimigo
1,5-10 Ambição de Adonias. Seria de esperar político.)
que 0 filho mais velho de Salomão, Adonias, suce­ Barzilai. em contraste, representa a lealdade. Ele
desse ao pai como rei. Mesmo antes da morte do pai ajudou David a fugir de Absalão e essa fidelidade
e, aparentemente, com a tácita aprovação paterna, merece recompensa. Em outras duas passagens da
Adonias prepara-se para assumir. Adquire uma História Deuteronomista (2Sm 9,10; 2Rs 25,29), co­
carruagem, cavalos e capangas, bens adequados a mer à mesa com o rei é sinal explícito de privilégio.
alguém que em breve “sairá à frente e combaterá Finalmente, Shimeí deve ser castigado. David
os combates [do povo]” (cf. ISm 8,20). Consegue manteve sua promessa e não o passou à espada co­
276 partidários, mas falta-lhe o apoio essencial do porta- mo sua traição merecia (cf. 2Sm 19,24). Por outro
1 REIS 4

lado, tal infidelidade não pode ser ignorada. Cons­ Salomão está agora seguro no trono. A perspectiva
piradores em potencial não devem atrapalhar o teológica do redator do texto confirma que foi cum­
reinado de Salomão. prida a vontade do Senhor, expressa por intermédio
Depois de pronunciar suas últimas palavras, do profeta Natan e de David. Se interpretado histori­
David morre. Reinara sete anos em Hebron e 33 em camente o V.39, foram precisos três anos para tomar
Jerusalém, isto é, um total de 40 anos. Não se sabe 0 reino completamente seguro.
ao certo se esses números denotam exatidão histó­ 3.1- 15 Sabedoria de Salomão. Afastadas as
rica ou foram usados simbolicamente. (Em muitos ameaças políticas, são oportunas as alianças políti­
textos bíblicos, inclusive na História Deuterono- cas. Salomão não perde tempo para assegurar a
mista, como ficará evidente, os números 3, 4, 7 e “amizade” do Egito, casando-se com a filha de Faraó,
12 [30, 300 e assim por diante] expressam totalidade o que elimina a possibilidade de invasão a partir do
ou conclusão.) David adormeceu junto a seus pais e sul e cria o clima de paz para Salomão constmir seu
foi sepultado na Cidade de David. Esta asserção é a palácio, o Templo do S enhor e a muralha de Jeru­
primeira de muitas expressões semelhantes que ocor­ salém. Embora tenha realizado um casamento misto,
rem em toda a História Deuteronomista com referên­ não é feita menção à idolatria. Explica-se o fato de
cia aos reis davídicos. O redator deuteronomista re­ cultuar nos lugares altos — atividade mais tarde as­
fere-se explicitamente ao lugar do sepultamento para sociada à infidelidade ao S enhor — porque o Templo
enfatizar a estreita ligação entre David e todos os reis ainda não fora construído (v. 2).
de Judá. A primeira parte do reinado de Salomão carac­
2,12-46 O reino se tom a seguro. David legiti­ teriza-se pela fidelidade à aliança com o S enhor,
mou a eliminação por Salomão de loab e Shimeí pelo amor e pela obediência. Ele cultua no melhor
como adversários políticos. Agora Salomão deve le­ santuário e faz generosos sacrifícios ao S enhor, tira­
gitimar a supressão de Adonias, seu meio-irmão, pois, dos da abundância de prosperidade com que o Se­
enquanto viver, Adonias será uma ameaça em poten­ nhor o abençoou. Muitas vezes, como aqui, os so­
cial ao trono. Adonias pede para si Abishag, a mulher nhos ocasionam um encontro com o S enhor (obser­
que “aquecera” o David moribundo (1,3). Reconhe­ ve-se, por exemplo, o sonho de Natan em 2Sm 7). No
cendo a influência de Bat-Sheba sobre Salomão, diálogo que se segue, Salomão se reconhece servo
Adonias pede-lhe que interceda para que ele possa do Senhor e lhe pede um coração atento para gover­
ter Abishag por mulher. A resposta de Salomão é nar o povo e discernir entre o bem e o mal.
uma recusa veemente, pois ele percebe que esse pe­ O Senhor responde com generosidade. O pedi­
dido é uma clara pretensão ao trono (observe mais do de Salomão será concedido e, além disso, ele
uma vez a importância indireta, mas muito real, de receberá as bênçãos normais da fidelidade à aliança
Abishag; cf. 2Sm 16,22). Salomão está agora absol­ — riquezas, glória e vida longa. (Quando estes tex­
vido por ordenar a morte de seu irmão. tos estavam sendo escritos, os israelitas não acredi­
Em seguida, Salomão afasta Ebiatar de sua tavam na vida após a morte. Assim, para o historia­
posição de prestígio (v. 27). Afinal de contas, ele dor deuteronomista, a recompensa pela fidelidade à
apoiara Adonias. O texto legitima essa decisão com aliança assumia a forma de prosperidade material,
uma referência à denúncia profética da casa de Eli vida longa e prole para continuar a vida da pessoa.)
(cf. ISm 2,30-36). Assim, cumpre-se a palavra do A veneração de Salomão pelo S enhor, comprovada
S enhor. por seu pedido altruísta, fazia com que merecesse
Outra ameaça ao trono de Salomão é o general sabedoria além das bênçãos usuais da aliança. Salo­
de David, loab. loab merece a morte por matar mão desperta de seu sonho e mais uma vez oferece
dois homens sem o conhecimento de David e o sacrifícios ao Senhor (inclusão).
próprio David assim o quis, ou é isso que devemos 3,16-28 Julgam ento de Salomão. Salomão
entender. Por coincidência, acontece que loab tam­ começa imediatamente a fazer julgamentos com o
bém fora um dos que apoiaram Adonias! Quando coração sábio que o Senhor lhe dera. Com perspi­
Ebiatar está fora do caminho, Salomão o substitui cácia, estabelece a condição que lhe permitirá deter­
por Sadoq; quando loab está fora do caminho, minar a verdadeira mãe da criança viva, e sua deci­
Salomão o substitui por Benaiáhu (v. 35). Como é são cheia de sabedoria deixa o povo admirado, isto
óbvio, Sadoq e Benaiáhu tinham apoiado firme­ é, a glória que o Senhor prometera.
mente Salomão (cf IRs 1,8). 4.1- 6 Os principais funcionários do reino. O
Por fim, alguma desculpa deve ser encontrada conselho de ministros de Salomão, se é que pode­
para justificar a morte de Shimeí. David queria que mos chamá-lo assim, compunha-se de Josafat, que
Shimeí fosse castigado por sua deslealdade e Sa­ apoiara David (cf. 2Sm 8,16; 20,24); Ebiatar (seria
lomão só precisa descobrir um jeito de eliminá-lo. o mesmo Ebiatar rejeitado em IRs 2,27?); Benaiáhu
Depois de criar circunstâncias para que Shimeí e Sadoq, que haviam apoiado Salomão em sua pre­
quebre um juramento, Salomão aguarda. Sua paciên­ tensão ao trono (veja IRs 1,8); os filhos dos que
cia é recompensada e, conseqüentemente, Shimeí é apoiaram Salomão (Azariáhu, filho de Sadoq, e
morto (v. 46). Depois de eliminar toda a oposição. dois filhos de Natan) e, finalmente, alguns desco- 277
1 REIS 4

nhecidos não mencionados em outras passagens da desse elemento conservador explicaria por que David
Bíblia. não construiu um templo. Também explicaria certa
4,7-5,14 O reino de Salomão. Assim como exis­ resi.stência à construção do Templo durante o reinado
tiram 12 filhos de Jacó e 12 tribos de Israel, agora a de Salomão. Além disso, a resistência teria sido au­
terra é dividida em 12 partes. Dessa vez, cada prefei­ mentada pelo tratamento desumano dos trabalhado­
to deverá prover às necessidades do rei e de sua casa res do Templo.
durante um mês por ano. É a primeira evidência tex­ 6.1- 38 Construção do Templo. A datação es­
tual de que Salomão usava o povo em beneficio pró­ pecífica que encontramos aqui relaciona esse novo
prio. Aqui é admitido o que Samuel advertira — que e importante evento a dois outros grandes aconte­
0 rei encarregaria o povo de lavrar sua lavoura e de cimentos da história de Israel; o Êxodo e a ascen­
colher a sua colheita, que cobraria dízimos de searas são de Salomão ao trono. Esse feitio de datação é
e vinhas e rebanhos (cf ISm 8,12.15.17). comum no Antigo Testamento, inclusive nos Livros
Cada divisão de suprimentos tem um chefe, dos Reis. A data nunca é dada pelo ano (por exem­
mas a identidade desse chefe parece não interessar. plo, 964 a.C.), mas pelo relacionamento de um
São citados sete homens, como se para distingui- evento a outros acontecimentos importantes.
-los de outras pessoas com o mesmo nome. Cinco Segue-se minuciosa descrição do Templo. A
são identificados apenas como filho de alguém. Ne­ santidade do Templo é atestada pela afirmação de
nhum é descrito mais pormenorizadamente em outra que o máximo de trabalho possível é feito longe
passagem da História. Contudo, podemos concluir do local da construção (v. 7). Sua magnificência é
com segurança que esses homens têm em comum afirmada pelas freqüentes referências a madeiras
a lealdade a Salomão. nobres (oliveira, cipreste e cedro importado), pedras
A astuta organização do império de Salomão finamente trabalhadas e uma profusão de revesti­
assegura paz e prosperidade na terra. Por essa razão, mento de ouro e outros tipos de decoração. O lugar
Salomão continua a distinguir-se pelos dons divi­ santíssimo, que abrigaria a Arca da Aliança, desta­
nos de sabedoria, excepcional inteligência e conhe­ ca-se pela riqueza de sua ornamentação.
cimento. Além disso, sua sensatez política comple­ Inserida no relato da construção do Templo está
ta-se com seus talentos literários e musicais e tam­ uma palavra profética que estabelece condições para
bém seus conhecimentos de biologia. Não admira 0 cumprimento pelo S enhor de sua promessa a
que receba aclamação internacional! David (a dinastia duradoura?) e também para o
5,15-32 Preparativos para a construção do S enhor permanecer no meio de Israel e não aban­
templo. Salomão faz alianças onde quer que seja donar seu povo: Salomão deve obedecer às leis, às
possível (cf 1Rs 3,1), e a que mantém com os fení- normas e aos mandamentos do S enhor ( vv. 11-13).
cios originou-se no tempo de David (cf. 2Sm 5,11). Esse texto é um forte eco de teologia deuteronomis-
Apelando à história passada de boas relações de seu ta: a obediência produzirá o bem, mas as bênçãos
pai com Hirâm, Salomão obtém cedros do Líbano e dependem da fidelidade. O capítulo termina afir­
trabalhadores para a construção do Templo. A reale­ mando que o Templo foi construído em sete anos.
za de Salomão vem do Senhor e a construção do 7.1- 12 Construção do palácio. Imediatamen­
Templo cumprirá a profecia de Natan (cf 2Sm 7,13). te depois de afirmar que a Casa do S enhor levou
Dessa maneira, o texto justifica a consolidação da sete anos para ser construída, o texto nos diz que
realeza e da religião em Jerusalém. foram precisos treze anos para construir a casa do
As primeiras etapas da construção do Templo rei. Devemos concluir que “sete” tem o propósito de
são marcadas pela cooperação entre os dois países. simbolizar o término do templo, enquanto “treze”
Os termos do contrato ou “aliança” são cumpridos é uma estimativa precisa de tempo necessário para
pelas duas partes. Mas existe cooperação interna? construir o palácio de Salomão? Ou devemos con­
Ou, em outras palavras, sob que condições e obri­ cluir que o rei se importou mais com o esplendor
gações os israelitas participam do projeto de cons­ de sua casa do que com a Casa do S enhor? En­
trução? Os 30 mil trabalhadores, em turmas de 10 quanto o templo do S enhor mede 60 por 20 por 25
mil (notem-se os números!), representam trabalho côvados, 0 palácio é maior: 100 por 50 por 30 cô-
forçado? Seu ressentimento provoca jtarte da hostili­ vados (um côvado variava de 38 a 56 centímetros).
dade contra a dinastia, no fim do reinado de Salo­ Samuel também constrói um tribunal e alojamen­
mão (cf IRs 11-12)? tos separados para si e para a filha de Faraó. Tudo
O s b ib lis ta s s u g e r e m a e x is tê n c ia d e u m a fa c ç ã o é feito com capricho; ele constrói um pórtico e um
c o n tr á r ia a o T e m p lo e m Is ra e l, d a m e s m a f o r m a q u e átrio para seu palácio, semelhantes aos construídos
h o u v e u m a fa c ç ã o c o n tr á r ia à m o n a rq u ia ( c f IS m para o Templo. .
8 ). D e s s e p o n to d e v is ta , u m g ru p o c o n s e r v a d o r — ^ 7,13-51 Objetos do Templo. Estes w . formam
n ã o s a b e m o s d e q u e ta m a n h o — re s is tiu à c o n s tm - uma inclusão — Templo, palácio. Templo. Embora
ç â o d e u m a m o ra d a p e rm a n e n te p a ra o Senhor em o próprio Templo, inclusive o altar, a mesa sobre a
s e u m e io . C o m b in a r te m p lo e re i f a ria c o m q u e fo s - qual se apresentava o pão da oferenda e os cande­
278 s e m a in d a m a is “ c o m o a s o u tra s n a ç õ e s ” . A p re s e n ç a labros, seja pesadamente revestido de ouro, muitos
1 REIS 9

dos objetos fabricados para o uso dentro do recinto truiu é 0 lugar exato onde o S enhor q uer ser cultua­
do templo — as colunas, o “Mar”, os suportes, as do (vv. 27-30).
tigelas, os recipientes, as pás e as bacias de aspersão Muitos biblistas acreditam que os vv. 33-34 e
— são feitos de bronze. Hirâm, rei de Tiro, fora 46-51 sejam adições mais tardias à oração original,
contratado para fornecer cedro para o templo; agora porque sugerem uma condição de exílio. Isso é bem
Hirâm, habilidoso metalurgista e israelita cujo pai possível, pois a oração original entende o Templo
era de Tiro, é contratado para ajudar nos trabalhos como lugar apropriado para suplicar o perdão do
em bronze. pecado, pecado que resulta em vários castigos —
A dedicação das oferendas ao Senhor feita derrota, seca, fome, peste, ferrugem etc. O Templo
por David torna-se precedente para Salomão e os também é entendido como o lugar do justo julga­
reis futuros (v. 51). Esses presentes para Deus são mento e o lugar para onde Israel deve se voltar pa­
salvaguardados nos tesouros do Templo. Não se ra suplicar a vitória em combate (a Arca não será
sabe ao certo se esses tesouros eram também os do mais levada na guerra).
palácio, mas saquear os objetos de valor da Casa Os vv. 41-43.60 sugerem uma abertura a estran­
do S enhor seria, com certeza, considerado ofensa geiros que pode se originar ou na política imperia­
grave. Quando tudo está concluído, o Templo é lista de Salomão ou simplesmente em sua diploma­
dedicado. cia exterior. Estes vv. podem até ser uma adição exí-
8,1-21 Dedicação do Templo. Os vv. 1-4 reú­ lica de uma época na qual o nacionalismo não era
nem 0 antigo e o novo: os anciãos, os chefes tribais, mais uma possibilidade.
os chefes das famílias, a Arca e a tenda da reunião, A eleição de Israel como povo escolhido é ex­
os levitas e os sacerdotes, a Cidade de David. É plícita e repetidamente dada como a razão pela qual
incerto se o texto reflete uma combinação de tex­ o Senhor deve ouvir a oração de Israel.
tos ou um esforço mais tardio para atribuir tudo a O discurso de Salomão ao povo (vv. 56-61)
Salomão e ao Templo. De qualquer modo, o pas­ repete a forma do início de sua oração ao S enhor:
sado — a liderança anterior de Israel e a antiga ele louva o S enhor por cumprir as promessas divi­
morada do S enhor — vem agora ao Templo de nas e depois suplica bênçãos contínuas para o futu­
Jerusalém. Afirma-se que toda a comunidade de ro. Mais uma vez, o texto liga a obediência de Israel
Israel, inclusive Salomão, sacrificou ovelhas e bois ao Senhor ao não-abandono do povo pelo S enhor.
ao S enhor e assistiu à procissão dos sacerdotes A dedicação termina da mesma maneira como co­
com a Arca, levando-a a para seu lugar santíssimo meçou, com Salomão e o povo oferecendo sacrifí­
no Templo. O leitor é explicitamente lembrado de cios ao Senhor. A festa só acaba depois de sete dias.
que a Arca contém as duas tábuas de pedra, que O povo volta para casa, contente com o rei e com o
simbolizam a aliança do S enhor com Israel (v. 9). Templo.
Que melhor maneira de ligar o rei e o S enhor, de 9,1-9 Promessa e admoestação a Salomão.
mostrar a fidelidade de Salomão ao S enhor (com­ O diálogo continua. Salomão falou em uma oração
pare IRs 3,4.15) e expressar a aprovação do povo ao S enhor; agora o S enhor fala mais uma vez a
pelo que Salomão construiu? A nuvem que encheu Salomão (cf. IRs 3,10-14). Enquanto antes o S e­
o Templo é clara indicação da aprovação do Senhor nhor exigira obediência para que a presença divina
(cf. Ex 16,10; 40,38; Nm 9,18 e muitos textos se­ continuasse no Templo e no meio de Israel, agora
melhantes). Mais uma vez, é dada a confirmação ele estabelece condições para a continuação da di­
para o rei e o Templo. Agora as promessas profé­ nastia de David (cf IRs 6,12-13). Mais adiante, o
ticas feitas em 2Sm 7 de que o filho de David se texto cita especificamente o pecado de idolatria
sentaria no trono e construiría um Templo para o (v. 6). O castigo para a infidelidade de Salomão e
S enhor estão cumpridas. seus descendentes incluirá a destruição do templo,
8,22-66 O ração de Salomão. O resto desse a perda da nacionalidade e o exílio. Aqui, o texto
longo capítulo é construído como oração de Salo­ prenuncia o que acontecerá.
mão ao S enhor por ocasião da dedicação do Tem­ 9,10-18 O utras atividades do rei. Esse texto
plo. Os vv. 22-26 são semelhantes na forma à ora­ sugere outras imperfeições do rei, que impôs a cor-
ção de David em 2Sm 7,22-29: primeiro, é exalta­ véia a seu povo para construir o Templo (cf IRs
da a singularidade do Senhor; depois, o Senhor 5,27-31) e, mais tarde, tratou Hirâm injustamente.
recebe agradecimentos pelas bênçãos já concedi­ As vinte cidades galiléias que Salomão deu a Hirâm
das e pela promessa divina futura; por fim, é feito significavam um pagamento menos que adequado
0 pedido para que o S enhor cumpra o resto da pro­ pelos materiais que ele forneceu para o Templo e
messa. Aqui, 0 pedido específico é pelos filhos de o palácio. Além disso, Salomão forçou os não-is-
Salomão e a continuação da dinastia. Então, Salo­ raelitas que viviam em seus domínios a ajudar não
mão reúne engenhosamente sentimentos pró-Tem- só na construção do Templo e do palácio, mas tam­
plo e contrários a ele. Afirma que nenhum lugar, bém na da muralha de Jerusalém, de várias cidades
nem mesmo o céu dos céus, pode conter o Senhor, e de uma frota. Contudo, a essa altura de seu rei­
contudo também afirma que o Templo que cons­ nado, Salomão ainda é fiel ao S enhor, como de- 279
1 REIS 10

monstram sua preocupação com o Templo e suas décima segunda? Em sua maioria, os biblistas de­
oferendas. duzem que a referência aqui é simbólica (os núme­
10.1- 13 Visita da rainha de Shebá. Uma ricaros dez e um podem cada um representar o todo) em
mulher submete-se à sabedoria superior de Salomão vez de histórica. A esse tempo, certas tribos haviam
e fica impressionada com seu estilo grandioso e sido incorporadas a outras; por exemplo, Simeão e
sua fidelidade a Deus. Os dois trocam muitos pre­ Levi a Judá e talvez também parte da tribo de Ben-
sentes valiosos. Os vv. 11 e 12 parecem deslocados, jamin (cf IRs 12,21).
combinando mais com IRs 9,26-28. De qualquer O redator deuteronomista, cujas palavras são
modo, atestam a estreita colaboração entre as frotas postas na boca de Ahiá, apressa-se a impor condições
de Hirâm e Salomão, em proveito de Salomão. O para o futuro reinado e o potencial dinástico de Jero­
ouro de Ofir é agora suplementado por madeira e boão; dependerão da fidelidade aos mandamentos
pedras preciosas. do S enhor. David tomou-se o modelo por excelên­
10,14-29 Riqueza de Salomão. Salomão gosta cia. Por causa dele, seus descendentes continuarão
de ostentar sua riqueza; usa ouro em toda a parte. a ser uma dinastia; somente se for fiel ao S enhor
Suas taças e utensilios são de ouro e ele expõe como David, Jeroboão pode esperar uma dinastia
escudos de ouro em seu palácio. A cada três anos duradoura. Os descendentes de David serão, na ver­
seus navios trazem nova carga de metais precio­ dade, castigados, mas o redator deuteronomista vê
sos. Parece que Salomão tem tudo: a sabedoria do um fim até para esse castigo.
S enhor, paz em sua terra, riquezas abundantes, o O relato da morte de Salomão (vv. 41-43) asse­
reconhecimento de todos. Talvez sua fama traga melha-se ao da maioria dos reis judaicos. É feita re­
inveja e ressentimento, pois parte de sua riqueza ferência a uma fonte, que se perdeu, em que podem
vem de tributos anuais. Devemos também pergun­ ser encontradas mais informações a resjteito do
tar se 0 texto que descreve os carros de Salomão reinado de Salomão. É também feita referência à
é alusão sutil à condenação da monarquia em ISm duração de seu reinado — neste caso, 40 anos (uma
8 , 11- 12. geração), o mesmo número de anos do reinado de
11.1- 43 Os pecados de Salomão. Salomãoseu pai. Além disso, Salomão é sepultado com seus
casou-se com a filha de Faraó e amou o Senhor (cf ancestrais, inclusive David, na cidade de seu pai.
IRs 3,1-3). Agora ama mulheres estrangeiras e em Finalmente, o texto observa que seu filho Roboão
abundância simbólica (700 e 300!). Como, na opi­ reinou em seu lugar, à maneira dinástica.
nião do redator deuteronomista, o casamento com
mulheres estrangeiras levava inevitavelmente ao culto
de seus deuses, Salomão merece a condenação este­ PARTE II: JUDA E ISRAEL ATE A EPOCA DE ACAB
reotipada desse autor, por idolatria. Portanto, o cora­ 1Rs 12,1-16,34
ção de Salomão não é mais como o de seu pai, Essa seção relata a história do reino dividido,
David, completamente fiel ao Senhor. Sua desobe­ entre cerca de 930 a.C. e 870 a.C. Durante esse
diência é explícita. O Senhor prometeu a continua­ tempo, três dos descendentes de David reinaram
ção da sua dinastia sob a condição que o povo ado­ no reino meridional de Judá: Roboão, filho de
rasse o S enhor e só o Senhor. A resposta do S enhor Salomão; Abiâm, filho de Roboão, e Asá, filho de
ao pecado de Salomão só pode ser a ira e o castigo. Abiâm. O reino setentrional não conseguiu susten­
E, assim, o S enhor mais uma vez fala a Salomão tar uma dinastia. A casa de Jeroboão resistiu só até
(vv. 11-13). Notamos aqui a ausência de mediação 0 filho de Jeroboão, Nadab, ser assassinado. A casa
profética; o S enhor especifica, ele mesmo, o casti­ de Baeshá resistiu só até o filho de Baeshá, Elá,
go. O reino não ficará para o filho de Salomão, mas ser assassinado. Zimri ficou no trono apenas sete
para seu servo; contudo, “por causa de David”, isso dias, até também ser assassinado. A casa de Omri
não acontecerá durante a vida de Salomão, nem toda conseguiu manter uma dinastia de quatro gerações.
a realeza lhe será arrebatada. Como o texto bíblico considera Acab o rei mais per­
Durante a última parte do reinado de Salomão verso do norte — a mulher de Acab, Izébel, matou
não lhe faltam adversários: Hadad e os edomitas, os profetas e levou Acab à ruína — , o historiador
no sudeste; Rezon da Síria, no nordeste, e até seu deuteronomista acrescenta a sua História toda uma
servo Jeroboão, no norte de Israel. E o rei do Egito seção sobre o reinado de Acab e seu confronto com
acolhe Jeroboão! O texto justifica a revolta de os profetas Elias, Miquéias e Eliseu.
Jeroboão com uma palavra profética (vv. 31-39). 12,1-25 Cisma de Israel. Cumpre-se a profe­
Ahiá transmite a Jeroboão basicamente a mesma cia de Ahiá a Jeroboão (11,31-39). Se Roboão ti­
mensagem que o S enhor deu a Salomão: o reino vesse astúcia política, poderia ter evitado a divisão.
será dividido e parte dele será dada ao servo de Aconteceu que a presunção arrogante levou-o ao
Salomão. Por causa de David, isso só acontecerá autoritarismo e, em última análise, à derrota. O rei­
depois da morte de Salomão. nado de Salomão originou um rival, mas um líder
Se dez tribos foram dadas a Jeroboão e uma com poucos seguidores. O de Roboão produz os
280 Única ao descendente de David, o que aconteceu à seguidores e a revolta. O S enhor preveniu Salomão
1 REIS 14

sobre a divisão que estava para vir; Ahiá profeti­ deles, mas devem ser obedientes à palavra de Deus
zou a Jeroboão; agora Shemaiá diz a mesma coisa que eles mesmos ouviram. Quando a pessoa ouviu
a Roboâo e seu povo. A divisão do reino é explicada Deus, não deve confiar em um ser humano —
três vezes p>ela infidelidade dos reis davídicos. mesmo que este seja mensageiro de Deus. O profeta
Como não tem um centro geográfico como o mais novo enfrenta agora a condenação divina de
que David e Salomão estabeleceram em Jerusa­ sua desobediência por intermédio de outro profeta:
lém, Jeroboão, durante os primeiros anos de seu não será sepultado com seus pais. Mais uma vez, o
reinado, muda-se com ffeqüência. A partir de agora, texto registra que a palavra profética se cumpre. O
no Livro dos Reis, a palavra “Israel” refere-se ape­ profeta de Deus morre e é sepultado, mas não junto
nas ao segmento setentrional do que fora o reino a seus pais. Contudo, era um verdadeiro profeta; a
unido de David e Salomão. “Judá” refere-se ao palavra que pronunciou contra Betei se cumprirá.
reino do sul, a parte da terra governada por um des­ (No V. 32, “Samaria” é usada como sinônimo de
cendente de David. “Israel”.)
12,26-32 Rebelião religiosa. Poderia haver 14,1-20 M orte de Abiá. Quando estiver em
uma solução religiosa para o dilema politico de dificuldades, consulte Deus; quando tudo estiver
Jeroboão? A instituição de um novo rei exige uma bem, faça como quiser — essa parece ser a filosofia
nova capital e, seria de supor, um novo templo. De de Jeroboão. A doença de seu filho Abiá leva-o ao
que outra maneira pode a unidade politica, social mesmo profeta que lhe fizera a promessa cumprida
e religiosa do povo ser mantida? Sua própria iden­ de realeza (cf. IRs 11,30-39). Agora Jeroboão pro­
tidade como povo e nação está estreitamente ligada cura Ahiá para saber a sorte de seu filho. Por que
à crença no S enhor e a seu culto, mesmo que às o próprio Jeroboão não vai ver Ahiá? Por que a mu­
vezes a idolatria e o sincretismo sejam praticados. lher de Jeroboão precisa se disfarçar? Seria porque
É Jeroboão realmente culpado, ou é culpado apenas o rei não quer que o povo saiba que ele precisa da
aos olhos do historiador deuteronomista, para quem ajuda de um profeta? Assim como na seção anterior
todos os reis do norte, sem exceção, fazem o mal não foram citados os nomes dos profetas, não é dado
aos olhos do S enhor? 0 nome da mulher de Jeroboão. O nome de Abiá
Qualquer que seja a verdadeira resposta a essa é citado uma vez. O texto deliberadamente destaca
dúvida histórica, na perspectiva do redator do tex­ Jeroboão como a personagem central — Jeroboão,
to bíblico, Jeroboão faz justamente as coisas que o rei infiel.
só merecem condenação: bezerros de ouro para o O filho de Jeroboão morrerá — como seria de
povo adorar (v. 28; compare Ex 32); constrói tem­ esperar, tal é a palavra do Senhor (compare 2Sm
plos nos lugares altos (v. 31); ordena sacerdotes 12,14). Além disso, o mesmo profeta por intermé­
não-levitas (compare Ex 28ss.); e arbitrariamente dio de quem Deus deu condicionalmente uma dinas­
estabelece uma festa de peregrinação (v. 32). tia a Jeroboão agora retira-a. Dos filhos de Jero­
12,33-13,34 Mensagem do profeta de Judá. boão, só Abiá não sofrerá morte violenta. Jeroboão
Não nos surpreende que o que segue seja uma con­ é tão mau que até o sepultamento de Abiá precisa
denação profética. Ao oferecer sacrifícios sobre o ser justificado; há nele alguma coisa que agrada ao
altar em Betei, Jeroboão é admoestado por um pro­ S enhor (v. 13)1
feta judaico, que condena não só o altar mas tam­ Assim como se perderam os Anais de Salomão
bém os sacerdotes que Jeroboão ordenou. Mais tar­ (cf IRs 11,41), o mesmo aconteceu com os Anais
de, durante o reinado de Josias, em Judá, os sacer­ dos reis de Israel (v. 19) e, aliás, também com os
dotes ilegítimos dos lugares altos serão sacrificados. Anais dos reis de Judá (v. 29). A duração do reina­
(Telia 0 texto sido escrito durante o reinado de Josias do de Jeroboão, seu sepultamento e a elevação de
para legitimar o expurgo?) seu filho ao trono associam-no ao reino israelita
A verdade dessa palavra profética confirma-se subseqüente.
pelo cumprimento de outra das palavras do profeta 14,21-31 Reinado de Roboão. O texto alterna
— a destruição do altar (cf. IRs 13,5). O profeta de os relatos dos reinados dos reis de Judá com os dos reis
Deus está em contato com o poder de Deus. Quan­ de Israel. Junto com a notícia estereotipada da idade
do Jeroboão lhe suplica que interceda para que sua de Roboão quando ele começou a reinar e da duração
mão estendida e seca seja restabelecida, ele o faz de seu reinado, é dado o nome de sua mãe, Naamá
e o rei se recupera (13,6). Contudo, apesar de suas Esse padrão é comum para a maioria dos reis de Judá.
experiências do poder de Deus, Jeroboão não se Como os reis tinham muitas mulheres, era importan­
arrepende. te registrar em que familia um novo rei fora criado.
O poder de Deus opera pelo representante divino Para Roboão, o detalhe de que sua mãe era amonita
mesmo quando esse agente não é obediente a Deus. (v. 21) lembra IRs 11,1-6, em que ficamos sabendo
Os estudiosos questionam com fteqüência por que o do casamento de Salomão com muitas mulheres es­
velho profeta iludiu (tapeou!) o enviado de Deus. trangeiras e sua consequente prática da idolatria.
Os profetas merecem o crédito e a obediência dos Os vv. 22-24 narram como, sob o rei Roboão,
que ouvem a palavra de Deus por seu intermédio. Judá sucumbe à idolatria. Isso explica a guerra de 281
1 REIS 15

Judá contra o Egito e também o reino setentrional 0 V. 16. Em geral, os biblistas explicam tais repe­
de Israel. Sob o governo de Roboão, Judá fica igual tições como fruto de diversas fontes. Muitas vezes,
a Israel. Aqui, os Livros dos Reis começam a des­ a ênfase dada por tais repetições é deliberada.
crever um relacionamento proporcional entre a Se a realidade histórica era a guerra constante
qualidade do rei e a condição do Templo, um en- entre os reinos do norte e do sul, então é preciso
cadeamento elaborado em todo o resto da História reconhecer a verdade, apesar do julgamento teoló­
Deuteronomista. gico de que Baeshá era mau e Asá bom. A história
Apesar de sua maldade, Roboão é descendente só pode ser moldada pela teologia deuteronomista
de David; portanto é sepultado com seus ancestrais até certo ponto.
e seu filho Abiâm sobe ao trono em seu lugar. 15,33-16,14 Reinado de Baeshá. A capital do
15,1-8 Reinado de Abiâm. A descrição dada reino do norte ainda não é Samaria, mas Tirsá, a
aqui do filho de Roboão é completamente estereo­ cidade onde Jeroboão posteriormente se instalou
tipada: em que ano do reinado de quem no norte (cf. IRs 12,25 e, em especial, IRs 14,12.17).
fulano começou a reinar no sul? Quanto tempo rei­ Por intermédio de seu profeta lehu, o S enhor
nou? Quem era sua mãe? Como seu reinado deve condena Baeshá. Como a de Jeroboão, a maldade
ser avaliado na perspectiva da aliança e em compa­ de Baeshá fará com que mereça o mesmo fim: sua
ração com o de David? Se o julgamento é que de­ casa será destruída; só um filho reinará e terá morte
terminado rei de Judá foi infiel ao S enhor, então o violenta. Na perspectiva histórica que permeia dis­
fato de ter permanecido no trono explica-se por uma cretamente o texto, podemos concluir que o reina­
referência à fidelidade do S enhor a seu servo David. do de Baeshá foi relativamente estável. Ele sobrevi­
Se durante o governo de determinado rei não veu por 24 anos no trono e seu filho se tomou rei
ocorreu nada de muito importante, em uma pers­ em seu lugar. Contudo, na perspectiva teológica, sua
pectiva teológica, então é feita uma referência à infidelidade à aliança fez com que o castigo final
morte e ao sepultamento do rei com seus ances­ fosse inevitável.
trais. E dado o nome do sucessor. Se quiser mais 16,8-14 Reinado de Elá. O historiador deutero­
informações a respeito do rei, o leitor deve consul­ nomista registra apenas uma coisa sobre o reinado
tar os Anais dos reis. de Elá: cumpre-se a profecia de lehu. Elá é assas­
15,9-24 Reinado de Asá. Asá reverte o reinado sinado e a casa de Baeshá, destruída. Seu sucessor
de seu pai. Abiâm reinou apenas três anos, Asá rei­ é seu servo e assassino, Zimri.
na 41. Ao contrário de David, seu pai não estava Não podemos deixar de notar a instabilidade
inteiramente com o S enhor. Asá, como David, agra­ do reino do norte. A casa de Jeroboão reinou du­
da ao Senhor. Roboão permitiu a presença de hieró- rante 24 anos antes de Nadab ser assassinado; a
dulos (cf. IRs 14,24), Asá os expulsa. Abiâm fez casa de Baeshá reina durante 26 anos, antes de Elá
ídolos, Asá suprime-os. Maaká, rainha-mãe do rei­ ser assassinado. Em ambos os casos, o assassino
nado de Abiâm, venerava uma deusa canaanita, Asá se toma rei. Nenhuma das casas reinou durante
a expulsa. Além disso, Asá trouxe para o Templo uma geração completa.
oferendas valiosas, presentes apropriados de si mes­ 16,15-22 Reinado de Zim ri. O assassino de
mo e até de seu pai. O reinado de Asá perdura Elá fica apenas sete anos no trono antes de se
durante os reinados de pelo menos cinco reis do suicidar (compare ISm 31,4) e ser substituído por
norte; ele tem muitos dons e constrói muitas cida­ Omri, chefe da tropa. Aparentemente, Omri tem
des, bênçãos do Senhor por sua fidelidade. mais apoio popular do que Tibni, outro pretendente
O único defeito de que Asá parece culpado é ao trono, e também Zimri. O historiador-teólogo
deixar os lugares altos permanecerem (v. 14). Isso deuteronomista culpa o pecado de Zimri por seu
significa que ele tolera a idolatria de outros dentro breve reinado e seu fim. Nenhum pecado é atribuí­
de seu reino? E essa a causa da guerra contínua do a Tibni e, assim, não é dada nenhuma explica­
entre o sul e o norte? Por outro lado, a irresistível ção para sua morte. De conformidade com a violên­
fidelidade de Asá e sua semelhança com David cia do período, uma explicação histórica plausí­
seriam a explicação dada pelo historiador deutero­ vel é que os partidários de Omri eliminaram sua
nomista para o fato de Asá chamar a Síria em sua oposição.
defesa contra Israel (compare 2Sm 10,19 e IRs 16,23-28 Reinado de Omri. Omri muda a ca­
10,29)? Mais adiante, o texto condena alianças es­ pital de Tirsá para Samaria — façanha importante
trangeiras porque elas evidenciam a falta de con­ na história política de Israel. Tem morte natural e
fiança no S enhor. é sepultado com os ancestrais. Seu filho Acab toma­
15,25-32 Reinado de Nadab. Em uma pers­ -se rei em seu lugar. Contudo, o castigo por sua
pectiva teológica, o reinado do filho de Jeroboão, idolatria e outros pecados será inevitável.
simultâneo aos primeiros anos do reinado de Asá 16,29-34 Reinado de Acab. Enquanto outros
no sul, é semelhante ao de seu pai. Nele e em toda reis do norte são comparados a Jeroboão e muitos
a família de Jeroboão, cumpre-se a palavra profé- podem até ter feito “mais mal” que seus anteces­
282 tica de Ahiá (cf. IRs 14,10-16). O v. 32 reproduz sores, Acab é citado claramente como culpado de
, 1 REIS 19

maldade mais que qualquer um dos outros. Seus pe­ como é fiel ao Senhor, Obadiáhu obedece a Elias e
cados específicos são casar-se com Izébel e adorar proporciona o encontro, depois de três anos, entre
Báal; chega até a construir um templo para Báal na Acab e Elias. Ambos acham que o outro é o “agou­
capital. rento de Israel”. Quem, em última análise, provocou
Além disso, a reconstrução de Jerico por Hiel a seca — o profeta Elias ou o mau rei Acab?
durante o reinado de Acab faz jus ao cumprimento O lugar de confronto é o monte Carmelo: Elias,
da maldição em Js 6,26. Perde o primogênito quan­ profeta do S enhor, contra 850 falsos profetas. Em
do lança os alicerces e o filho mais moço quando um texto semelhante a Dt 30,15-20 e Js 23,14-16,
assenta as portas. Qualquer que seja a datação Elias exorta o povo a escolher o Senhor (v. 21). Segue­
relativa desses textos (se Hiel reconstruiu Jericó e -se uma demonstração do poder do Senhor. Um pro­
sacrificou seus filhos — acontecimentos históricos feta contra 850, dois novilhos preparados para o sa­
condenados no texto mais tardio de Josué — ou se crifício, extensa intercessão (três derramamentos de
a passagem em Josué representa uma tradição mais quatro talhas de água sobre o altar de 12 pedras) e
primitiva inserida em 1 Reis para documentar me­ um único pedido. O altar do Senhor pega fogo. Depois
lhor a maldade de Acab), não há dúvida de que que a supremacia do Senhor é firmemente restaura­
IRs 16,34 serve de indicação adicional do pecado da, a seca dá lugar à chuva (v. 45). O incidente tem
de Acab. 0 propósito de ensinar a Acab a maldade de seus
meios e ensinar ao leitor o poder do Senhor.
Os estudiosos comentam com freqüência o fato
PARTE III: HISTÓRIAS DOS PROFETAS
de Elias matar os profetas de Báal. O texto não é
IR s 17,1-22,54 sobre o homicídio de pessoas; é sobre o poder do
O restante de 1 Reis compõe-se de lendas pri­ Senhor. Dentro desse contexto, o mal precisa ser
mitivas sobre profetas e seus discípulos. O conteúdo afastado do meio de Israel.
é episódico, inserido no reinado de Acab em Israel 19,1-18 Fuga p ara o Horeb. O encontro de
e, indiretamente, no reinado de Josafat em Judá. A Elias com Deus no monte Horeb tem sido assunto
natureza dos profetas descrita até aqui é enfatizada de muito estudo e reflexão. Horeb é outro nome
em toda a narrativa. Será cumprida a palavra que do Sinai, a montanha de Deus onde o Senhor falou
Deus proclama por intermédio de um profeta; o a Moisés no meio de uma sarça ardente (cf Ex 3) ,
profeta é mais poderoso que o rei. e onde mais tarde deu a Moisés o Decálogo (cf. Dt
17.1- 6 A seca profetizada por Elias. A palavra4-5). O episódio é artisticamente construído. Antes
de Elias a Acab é um aviso de seca e uma asserção do encontro com o S enhor, Elias está desanimado
de que Elias controlará sua duração. A palavra do e quase desesperado. A terra é má, o rei é mau, os
S enhor a Elias é uma promessa de proteção: comida profetas estão mortos e a vida de Elias foi ameaçada
e bebida, e um lugar seguro. Na palavra do S enhor por Izébel. Ele gostaria de morrer.
ao profeta está implícito o poder do Senhor; na Mas, assim como foi alimentado durante a seca
palavra do profeta está implícito o castigo do S enhor e a fome, também agora Elias é protegido. Um anjo
pelo pecado de Acab. acorda-o duas vezes para comer e, na segunda vez,
17,7-24 Elias e a viúva. Os milagres da mul­ sugere a viagem que deve fazer (v. 7). Exatamente
tiplicação do óleo e da farinha e a ressurreição do como os israelitas caminharam 40 anos no deserto,
único filho de uma viúva são o segundo e o terceiro agora Elias faz uma viagem de 40 dias e 40 noites
relatos de atos do poder divino por intermédio de no deserto. A queixa de Elias a Deus (v. 10) evoca
Elias; ele já provocou a seca. O pecado de Acab o convite do Senhor para um encontro que acon­
trouxe sofrimento ao povo de Israel; a fidelidade tece não onde mais se espera estar o poder de Deus
de Elias traz alimento, o mesmo acontecendo com — em um vento forte e violento, um terremoto, no
a fé da mulher. Aqui são demonstrados o poder do fogo — mas no sussurrar de um sopro tênue.
Senhor de tirar a vida e de devolvê-la e a confiança Agora não há tempo para amuos. Elias expõe
de Elias no S enhor. ao S enhor sua situação difícil, mas pelo visto Deus
18.1- 46 Elias e os profetas de Báal. O leitorignora seu problema e imediatamente aborda outro
não deve se surpreender com outro milagre, com cer­ assunto. Elias é profeta e como profeta é encarre­
teza não quando um episódio tem o propósito de gado de sair do deserto e ungir três pessoas: Hazael,
contrastar o poder de Deus com o poder do não-deus. como rei de Arâm, lehu, como rei de Israel, e Eliseu,
O S enhor trará chuva depois de três anos de seca como seu sucessor. Juntos, esses homens efetiva­
e fome. mente eliminarão todos os que têm sido infiéis ao
Elias surge como o representante do Senhor, en­ S enhor. Entretanto, um resto fiel (sete mil homens)
quanto Acab e Izébel são devotos dos Baalim. Oba- será poupado.
diáhu atua como intermediário deles. Embora seja 19,19-21 Vocação de Eliseu. Primeiro Elias
temente ao S enhor, a ponto de arriscar seu bem-estar chama seu sucessor. A função do manto talvez seja
para esconder os profetas perseguidos, Obadiáhu tra­ simbólica (cf IRs 11,30-31), ou pelo menos uma
balha para o rei mau e tem medo dele. Entretanto, alusão ao encontro de Elias com o Senhor (v. 13). 283
1 REIS 20

Eliseu reconhece o chamado sutil e o segue, pondo, colabora tacitamente com Izébel e colhe os bene­
simbolicamente, um ponto final ao anterior modo fícios. Ou assim parece, até que Elias mais uma
de vida. vez enfrenta Acab! A condenação profética é opor­
20.1- 43 Vitórias de Acab sobre Ben-Hadad. É tuna; homicídio e roubo não ficarão impunes. Elias
indiscutível que o reino setentrional de Israel esteve agora pronuncia uma condenação semelhante às
em guerra com Arâm durante grande parte do reina­ que Jeroboão e Baeshá tinham ouvido — o fim
do de Acab. Desde a época de Baeshá, havia hosti­ violento da dinastia de Omri. O corpo de Acab
lidade e luta intermitente entre os dois países. Mas ficará no mesmo lugar de seu pecado. E a perversa
o fato histórico é que Israel foi vitorioso contra Arâm Izébel será igualmente destruída.
durante o reinado de Acab. Como o teólogo deutero- Como Acab ouve a palavra do profeta pelo
nomista explica isso? Como a maldade de Acab pôde que ela é — a palavra de poder do S enhor — , ele
merecer a vitória? Lembra-se do poder da palavra se arrepende. Podemos esperar que se cumpra a
profética do Senhor, em especial quando um profeta palavra profética, mas aqui como alhures (cf 2Sm
é ouvido e obedecido? O primeiro combate resulta 12,13-14) ela é suavizada; o castigo que lhe é de­
em uma vitória israelita porque Acab procura a pa­ vido é retardado até o reinado de seu filho.
lavra do profeta e age de acordo com ela. O segundo 22,1-40 Campanha contra Ramot-de-Guilead.
combate também resulta em uma vitória israelita, É provável que em alguma etapa anterior da compi­
desta vez porque os arameus estupidamente acredi­ lação do texto tenha sido relatado a sucessão de Asá
tam que o Deus de Israel pode ser conquistado na no trono de Judápor Josafat (cf IRs 22,41-45), antes
planície. A desproporção entre os dois exércitos tem do presente relato de uma aliança de Israel e de Judá
o propósito de mostrar o poder do Senhor. A vitória contra Arâm. Aqui Josafat reconhece a unidade an­
é do S enhor. terior de Israel e de Judá e o potencial de tal unida­
Segundo as regras da teologia da “guerra santa” de. Assim, procura ajudar o rei do norte a reconquis­
de Israel, o S enhor é o guerreiro que luta por Israel tar território. Embora jamais seja citado no capitulo,
e, conseqüentemente, todos os despojos lhe perten­ esse rei é Acab. Talvez fique em segundo plano
cem. O Senhor foi vitorioso contra Arâm; foi a quando comparado a Josafat! O que aconteceu ao
palavra do profeta que dirigiu a estratégia de Acab tratado de Asá com Arâm? Teria Arâm se tomado
no primeiro combate; a palavra do profeta também ambicioso e começado a se infiltrar para o sul? Teria
avisou de um segundo ataque. O Senhor mostrou Josafat considerado uma aliança com Israel estrate­
grande poder ao conseguir a vitória de Israel sobre gicamente mais importante do que uma aliança com
as forças muito maiores de Arâm. Portanto, Ben- Arâm? Afinal de contas, Israel era um vizinho seten­
-Hadad pertence ao S enhor e Acab não tem o direito trional mais próximo do que Arâm.
de libertá-lo (v. 34). (O crescente poder da Assíria De qualquer modo, Josafat quer que os profetas
no antigo Oriente Próximo pode ser a explicação sejam consultados (v. 6). O rei do norte manda buscar
histórica por trás da paz provisória entre Arâm e os profetas comprometidos, aqueles que mantêm o
Israel. Os Anais assírios de Salmanasar referem-se apoio, dizendo precisamente o que o rei quer ouvir.
a uma aliança entre Arâm e Israel quase no fim do Simulam, mas não ousam arriscar a verdade, temen­
reinado de Acab [cf IRs 22,1].) do que a palavra do Senhor seja adversa. Josafat
Na perspectiva teológica, a referência ao com­ pressiona por um profeta mais digno de confiança,
panheiro de um profeta que se recusa a obedecer um que diga “o que o Senhor lhe disser” (v. 14).
o profeta e por isso é morto (v. 36) é introdução Acab considera falsa a primeira palavra sarcás­
apropriada à condenação profética de Acab. Acab se tica de Miquéias (v. 16). O verdadeiro profeta só
condena em seu encontro com o profeta (c f 2Sm podia condenar o perverso Acab. A resposta real
12). Assim como o soldado tem de sofrer o castigo de Miquéias é uma profecia da morte de Acab em
por negligenciar sua responsabilidade, o fato de Acab combate: as ovelhas ficarão sem pastor. O mal de
poupar o rei Ben-Hadad (cf ISm 15,8-9) acaba Acab é tão grande que o julgamento do S enhor é
levando a sua morte. final. Para garantir que Acab não ouça a profecia
21.1- 29 Confisco da vinha de Nabot. Para de sua morte e se liberte, Miquéias diz que o Senhor
entender por que Nabot não queria vender nem até permitiu um espírito de mentira na boca dos
trocar sua propriedade ancestral, precisamos con­ profetas. Quer Acab busque consolo na certeza en­
sultar textos como Lv 25 e Js 13. A interação de ganosa dos falsos profetas, quer leve a sério a pala­
personagens mostra Acab aceitando os valores tra­ vra de Miquéias, seu fim não mudará. O S enhor de­
dicionais e a decisão de Nabot, embora relutante. cretou sua perda (v. 23).
Por outro lado, Izébel, que até agora a]iareceu O aprisionamento de Miquéias não é a primeira
pouquíssimo no texto — ela matara os profetas e referência nos Livros dos Reis à perseguição de um
ameaçara Elias — , não respeita a decisão de Nabot profeta. Izébel matou muitos e Elias fugiu dela para
e ridiculariza o marido por fazê-lo. Por esse moti­ salvar a vida.
vo, usurpa o poder de Acab, isto é, seu nome e seu Com a morte de Acab (v. 35) cumprem-se várias
284 selo, e trama com sucesso a morte de Nabot. Acab profecias, inclusive a de Miquéias. Além disso, Arâm
2 REIS 3

ajudou a exterminar o mal de Israel (compare 1Rs lugares de culto (cf. IRs 15,14). A referência a
19,17). Acab é sepultado e seu filho Acazias (cf. IRs Edom e a uma frota (vv. 49.50) indica relativo poder
21,29) toma-se rei em seu lugar. e prosperidade.
22,41-51 Reinado de Jo sa fa t Na perspectiva 22,52-54 Reinado de Acazias. Como os outros
do historiador deuteronomista, o reinado de 25 anos reis que terminam dinastias no norte, Acazias reina
de Josafat é relativamente tranquilo. Como seu pai, somente dois anos. Seu mal é comparado não só ao
Asá, ele faz o que é reto aos olhos do Senhor. Con­ de Jeroboão e ao de seu pai Acab, como poderiamos
tinua a boa prática paterna de eliminar os hieródulos esperar, mas também ao de sua mãe. Concluímos que
(cf. IRs 15,12). Contudo, como seu pai, também sua mãe era a perversa Izébel, principalmente porque
permite que os lugares altos continuem ativos como sua idolatria é especificada como culto a Báal.

COMENTÁRIO: 2 REIS
PARTE IV: Muitos biblistas histórico-críticos sugeriram a
OS REINOS DE ISRAEL E JUDÁ existência de confusão histórica e literária entre os
dois homens. Em parte isso acontece porque Deus
2Rs 1,1-17/41 dissera a Elias para ungir Hazael e lehu (IRs 19,15­
1.1- 8 Acazias consulta Báal-Zebub. Novo 16), mas os textos mais tardios relatam que Eliseu
início e novo rei de Israel. O leitor percebe imedia­ realiza a unção (cf. 2Rs 8,13; 9,6). Às vezes, con-
tamente que tipo de rei o teólogo deuteronomista jetura-se que os milagres agora atribuídos a Elias
julga que Acazias é — ele consulta um ídolo! O eram originalmente atribuídos a Eliseu e foram
que se segue é um julgamento e uma condenação alterados, repetidos e reagrupados a fim de realçar
proféticos. 0 contraste literário entre Acab e Elias.
1.9- 12 M orte de dois oficiais. Para o teólogo 2,19-22 C ura da água. A prova da eficiência
deuteronomista, o poder do profeta ultrapassa de da palavra profética de Eliseu é registrada imediata­
longe 0 do rei. Nenhum mero soldado pode sobre­ mente. A terra com potencial de fertilidade precisa
pujar 0 poder de Deus. Em vez disso, Elias decreta de água pura para que a colheita e o povo sejam
a condenação dos soldados enviados para captu­ saudáveis. Portanto, a pedido do povo, Eliseu lança
rá-lo, os dois grupos de 50 e seus chefes (cf IRs sal na água e a partir de então ela é considerada
18,13). A palavra de Deus por meio de Elias não fonte de bem-estar. O poder do profeta opera o bem.
pode ser silenciada; é eficiente. 2,23-25 A maldição do profeta. O poder do
1,13-18 M orte do rei. O terceiro oficial envia­ profeta também pode prejudicar, em especial os
do por Acazias reconhece o poder de Elias e suplica que não levam o profeta a sério. Essa é a interpreta­
por sua segurança. Sabe o que o rei não entendeu; ção comum desse episódio: a maldição de meninos
o S enhor, Deus de poder, está com Elias. Quando que leva à morte deles. O autor não pretende descre­
Elias encontra o rei em pessoa, repete a sina de ver a crueldade do profeta, mas a gravidade de não
Acazias: a consequência da idolatria é a morte. se levar um profeta a sério.
2.1- 8 Elias e Eliseu. A partida de Elias é desen­ 3,1-27 Expedição de lo râm contra Moab.
volvida com detalhes literários e leva a um clímax. lorâm, filho de Acab, outro do tipo “tal pai, tal
Elias sabe da iminente separação e quer estar com filho”, sucede a seu irmão no trono. Embora, na
Eliseu 0 maior tempo possível. Eliseu segue o pro­ opinião do redator deuteronomista, não seja tão mau
feta para o sul, de Guilgal a Betei, a Jericó e até o quanto sua mãe (Izébel) e seu pai, mesmo assim
Jordão. O papel simbólico do manto de Elias como lorâm é mau, como todos os reis do norte.
instrumento de poder vem mais uma vez à tona A paz contínua entre Judá e Israel durante o rei­
quando é usado para dividir as águas. nado de Josafat ocasionou sua aliança, dessa vez junto
2.9- 18 Eliseu sucede a Elias. O outro lado docom os edomitas, contra Moab (cf IRs 22). Tendo
Jordão é o lugar da intervenção divina. Elias é de enfrentar uma escassez de água, os reis, a pedido
arrebatado em um carro de fogo conduzido por do rei de Judá, consultam um profeta sobre seu dilema.
cavalos de fogo. Quando Eliseu vê isso, sabe que, Procuram Eliseu, que rejeita lorâm, por achá-lo pare­
segundo a palavra de Elias, o poder profético ser- cido demais com o pai para seu gosto. Todavia, em
-Ihe-á, em grande parte, conferido. Rasga seu manto consideração ao rei do sul, Eliseu consulta o Senhor;
em dois; pega o manto de Elias e o usa para voltar terão água suficiente e até serão vitoriosos contra os
a atravessar o Jordão, onde encontra os que, a partir moabitas (w. 17-18). O Senhor opera a vitória. A pro­
de agora, serão seus seguidores. Elias não pode ser messa do profeta cumpre-se por meio da milagrosa
encontrado; de agora em diante, o poder de Deus percepção errada dos moabitas.
que estivera sobre ele deve ser procurado em seu A derrota em combate faz o rei moabita buscar
sucessor, Eliseu. a ajuda síria e, quando esse recurso falha, sacrifica 285
2 REIS 4

o próprio filho na esperança de ganhar o favor de profeta. Naaman faz o que Eliseu ordenou e é
seu deus contra Israel. Horrorizados, os israelitas curado (v. 14).
voltam para Israel. Talvez até eles temam o poder A cura física de Naaman passa a ser a base da
do deus moabita em Moab! fé no Deus de Israel. Ele deseja recompensar o
4.1- 7 O óleo da viúva. A multiplicação do óleoprofeta, ou ao menos comprar uma quantidade de
de uma viúva — milagre de Elias (cf. IRs 17,14-16) terra de Israel, sobre a qual possa, no fíituro, cultuar
— é realizada também por Eliseu. O marido dela o S enhor em Arâm. Eliseu recusa os presentes,
também fora profeta e ela crê no poder de Eliseu. mas louva a conversão de Naaman.
Sua queixa trouxe-lhe a libertação. Guehazi, porém, é outra história. O poder do
4,8-37 Eliseu e a shunamita. O profeta do S enhor operara por meio de Eliseu para realizar a
S enhor tem poder sobre a vida e a morte. Eliseu cura de Naaman, mas por que não colher benefício
promete um filho à shunamita estéril e, mais tarde, pessoal do poder do S enhor? Essa parece ser a
ressuscita essa criança (cf IRs 17,21-23). A mulher motivação de Guehazi ao pedir a Naaman os talen­
reconhecera Eliseu como profeta e se oferecera para tos de prata e as mudas de veste — motivação
prover às suas necessidades; ele recompensou-a forte o bastante para fazer Guehazi mentir, primeiro
com um filho. Agora, ela procura o profeta depois para Naaman, depois para Eliseu. Mas o conheci­
da morte da criança, mais uma vez demonstrando mento e o poder de Deus estão presentes no profe­
confiança no representante de Deus; mais uma vez ta de Deus, que censura a trapaça de Guehazi e o
é recompensada Aqui é apresentado Guehazi, servo condena à lepra de Naaman. A infidelidade só pode
de Eliseu, que não conseguiu ressuscitar o menino produzir maldição!
(V. 31).
6,1-7 Recuperação do m achado perdido.
4,38-41 A sopa envenenada. Uma fome (com­ Eliseu realiza outro milagre, este para os profetas.
pare IRs 18,3) é a razão do milagre seguinte de
O profeta de Deus tem o poder e o conhecimento
Eliseu. Assim como o sal purificara a água conta­
de Deus (cf. 2Rs 5,26-27) para fazer o bem aos que
minada (2Rs 3,19-22), agora a farinha purifica uma
são fiéis a Deus.
sopa envenenada. Epi ambos os casos, o profeta in­
6,8-13 Emboscada araméia. Aqui, Eliseu é des­
tervém e realiza um milagre em benefício da saúde
crito como um profeta de Deus com conhecimento
de sua gente.
extraordinário, que ele usa para o bem de Israel e con­
4,42-44 Multiplicação dos pães. Este milagre
tra os arameus. O desejo dos arameus de prendê-lo
complementa os vv. 1-7 e juntos são paralelos a IRs
é prova do poder de Eliseu.
17,14-16. Vinte pães de cevada e de trigo novo —
alimento para o profeta, sim, mas insuficiente para 6,14-23 Soldados arameus afetados de ceguei­
alimentar cem pessoas famintas. Isto é, insuficiente ra. Com 0 poder de Deus, o profeta de Deus supera
se o poder do Senhor nãò estiver presente. qualquer obstáculo. Inspira confiança em seu aju­
Não podemos desconsiderar a estreita ligação dante amedrontado; sozinho contra uma tropa
literária entre os milagres realizados por Elias e araméia, suplica para que os soldados fiquem ce­
Eliseu, em especial a multiplicação de comida e as gos; conduz ele mesmo uma tropa cega à capital do
ressurreições, e milagres semelhantes de Jesus re­ inimigo deles; persuade um rei israelita a alimentar
latados nos evangelhos sinóticos. Parece que os au­ e libertar arameus. Além disso, amedronta de tal
tores neotestamentários selecionaram determinados forma os arameus que faz os ataques cessarem —
atos de Jesus para assegurar, principalmente aos ataques que, em primeiro lugar, estão tendo sua
judeus convertidos, que o poder de Deus atuava eficiência impedida pelo eonhecimento de Deus.
por intermédio dele. Eliseu está no controle — pelo menos, a teologia
5.1- 27 C ura de Naaman. Cinco pessoas sãodeuteronomista da profecia quer que acreditemos.
apresentadas neste episódio: a mulher de Naaman; a 6,24-7,2 Cerco de Sam aria. A guerra contra
jovenzinha israelita, escrava da mulher de Naaman; Arâm e a fome em Israel descrevem um pais sob
o próprio Naaman; o rei de Arám, senhor de Naaman; e, maldição, uma terra longe da fidelidade a seu Deus.
por último, 0 rei de Israel. Quatro são identificadas Às vezes a idolatria instigava o sacrifício de crian­
por sua relação com o leproso e todas apoiam o pe­ ças; agora a iminência da morte pela fome estimu­
dido para que o rei de Israel o cure. O rei de Israel, la até o canibalismo de crianças. O rei israelita
porém, é impotente, como ele próprio admite. Em culpa Eliseu pela fome e tenta matá-lo. A resposta
contraste, Eliseu, o profeta de Deus, cura com o poder de Eliseu é reafirmar o poder de Deus: a fome
de Deus. terminará no dia seguinte, mas o escudeiro do rei
Eliseu ordena a Naaman que se lave sete vezes que duvidou da palavra do profeta morrerá.
no Jordão, mas, como já se lavara em outros rios 7,3-13 Os leprosos às portas da cidade. Que
antes, o leproso se recusa a fazê-lo. Ainda não per­ grande escolha existe entre morrer de fome e morrer
cebe que a palavra do profeta contém o poder de pela espada? Esse é o raciocínio dos leprosos ao
Deus. Ignora sua palavra, mas mais tarde é persua- fugirem para o acampamento arameu. Sua coragem
286 dido por seus servos, que repetem as palavras do é recompensada. Pois sugerindo a chegada de um
2 REIS 10

grande exército e fazendo o inimigo fugir, o poder 9.1- 15 Unção de lehu. O curso da história é
de Deus opera em benefício de seu povo. interrompido para legitimar lehu como sucessor de
7,14-20 Fim do cerco. A fiiga dos arameus marca lorâm. A mensagem profética, que desta vez Eliseu
o fím do cativeiro de Israel em Samaria e, em con- manda um dos filhos dos profetas entregar, coloca
seqüência, o fim da fome. Os suprimentos dos lehu, servo de lorâm, no trono de Israel. A profe­
arameus passam a ser espólio de guerra. Além disso, cia contra a casa de Acab (IR s 21,21-22) e Izébel
cumpre-se a palavra de Eliseu ao escudeiro do rei (cf (IRs 21,23) agora será cumprida. Os outros chefes
2Rs 7,2); ele é esmagado na porta da cidade. do exército confirmam a unção e formam uma
8,1-6 Profecia de fome. A mulher que fora conspiração com lehu contra lorâm.
boa para Eliseu, a quem ele dera um filho e para 9,16-26 Assassinato de lorâm . O assassinato
quem ele ressuscitara o filho, mais uma vez acre­ de lorâm é patético. Enquanto está sendo confor­
dita no profeta. Eliseu avisa sobre uma fome e ela tado por Acazias, rei de Judá, seu chefe do exército
foge da terra. A fome dura sete anos, depois dos o trai. Mas a traição é fácil, como demonstra a
quais ela volta para reclamar sua propriedade em maneira como lehu persuade os cavaleiros de lorâm.
Israel. O encontro com o rei revela um rei fiel. Ao O encontro de lehu e lorâm é descrito como o en­
ouvir 0 testemunho de Guehazi e o relato da mu­ contro do bem e do mal. Como foi ungido por
lher, o rei devolve os bens da shunamita. Embora Eliseu, lehu justifica o S enhor pelo mal que a casa
seu nome nunca seja citado, ela é um modelo de de Acab fez. Além disso, o sangue de lorâm é der­
alguém que leva Deus e a palavra divina a sério. ramado em um lugar simbólico da culpa de Acab,
8,7-15 A m orte de Ben-Hadad é profetiza­ a vinha de Nebat (cf. IRs 21,21).
da. Arâm já devia ter tomado conhecimento do 9,27-29 M orte de Acazias. Acazias, filho de
poder dos profetas do S enhor. Eliseu frustrara as Ataliá, a irmã malvada de Acab, também precisa ser
incursões de Arâm em Israel (cf. 2Rs 6,12) e con­ eliminado. lehu ordena sua morte e é obedecido.
duzira o exército arameu a Samaria (cf. 2Rs 6,19). Contudo, como pertencia à linhagem de David, o
Agora o rei de Arâm consulta o profeta de Israel corpo de Acazias é transportado para Jerusalém e
sobre sua saúde (cf. a consulta de Acazias aos ídolos sepultado com seus ancestrais na Cidade de David.
em 2Rs 1,2). Eliseu aproveita a ocasião para pro­ 930-37 M orte de Izébel. Finalmente, é hora
fetizar para Hazael que ele substituirá Ben-Hadad do castigo para a malvada Izébel. Assim como
como rei. persuadiu os cavaleiros de lorâm, agora lehu per­
É fato histórico que Ben-Hadad foi assassina­ suade dois ou três eunucos, que jogam Izébel pela
do por seu servo Hazael, que usurpou o trono de janela, provocando sua morte. A maneira como mor­
Arâm. Também é fato histórico que Hazael comba­ reu e a decomposição de seu corpo são adequados
teu Israel (cf. IRs 18,17). Entretanto, o teólogo deu- julgamentos teológicos para sua maldade. A palavra
teronomista não acusa Eliseu de precipitar o assas­ do profeta — o poder do S enhor — é cumprida
sinato. Eliseu apenas menciona o resultado final e (cf. IRs 21,23).
Hazael escolhe os meios. Izébel chamou lehu de Zimri. Zimri foi o che­
8,16-24 Reinado de lorâm de Judá. Embora fe da metade dos carros de Elá, rei de Israel que
seja rei de Judá, lorâm é como Acab. É casado matou seu senhor, dessa forma eliminando a casa
com a irmã de Acab (está subentendido que ela é de Baeshá (cf. IRs 16). Agora lehu eliminou a
do tipo “tal pai, tal filho”, exatamente como eram casa de Acab. Contudo, aqui lehu é entendido como
Acazias e lorâm, os filhos de Acab). Julgado em instrumento do S enhor ao purificar Israel e tam­
seus próprios termos, em uma perspectiva teológica, bém Judá da má liderança.
o reinado de lorâm merece acabar, mas Deus pre­ 10.1- 11 Assassinato dos descendentes de Acab.
serva a dinastia por causa do fiel ancestral de lorâm, lehu não se contenta em ter matado lorâm, Acazias
David. Entretanto, há tempos difíceis, como a guer­ e Izébel; precisa livrar Israel de toda a casa de Acab,
ra com os edomitas e a perda de Libná, dificuldades 70 descendentes. Assim como os outros chefes do
políticas interpretadas como condenação religiosa. exército juntaram-se à conspiração de lehu (2Rs 9,3­
Apesar de seu pecado, lorâm é sepultado com seus 4), os cavaleiros juntaram-se a ele (2Rs 9,18-20) e
ancestrais na Cidade de David, e seu filho Acazias os eunucos o apoiaram (2Rs 9,33), agora os chefes
se toma rei em seu lugar. de Samaria cumprem suas ordens, matando todos os
8,25-29 Elevação de Acazias. A mãe de parentes vivos de Acab. lehu considera sua morte
Acazias era irmã de Acab. Basta saber disso para — e o extermínio de todos os que apoiavam Acab
prever qual será o julgamento do redator deutero- — 0 cumprimento da profecia de Elias contra a
nomista a respeito de seu reinado! Ele faz o mal e casa de Acab (IRs 21,21).
é como Acab. A aliança entre Judá e Israel contra 10,12-14 Os irmãos de Acazias. A eliminação
Arâm resulta no ferimento de lorâm em combate da casa de Acab e do mau rei de Judá, Acazias,
(IRs 18,17 previu que Hazael mataria muitos israe­ ainda não é o bastante. Acazias era filho de Ataliá
litas), 0 que leva a uma visita de Acazias a lorâm e havia outros filhos; e Ataliá era irmã de Acab.
em Jezreel. Ainda estão vivos. Os parentes que estão viajando 287
2 REIS 10

para visitar a família de Acazias também devem tam o Templo. Durante 23 anos os sacerdotes fi­
ser todos exterminados. cam com 0 dinheiro — e ponto final! Chamados a
10,15-17 lehu em Sam aria. Estes w . realçam prestar contas, escusam-se de responsabilidade; não
a reunião de partidários de lehu (cf. 2Rs 9,18-19.32; aceitarão mais os fundos, mas também não serão
10,5), o assassinato dos que apoiavam a casa de responsáveis pela restauração do Templo. Os sa­
Acab (veja v. 11) e o entendimento que o redator cerdotes chefiados por lehoiadá assumem um com­
tem de que essas mortes foram o cumprimento da promisso: lehoiadá auxilia na coleta do dinheiro e
profecia de Elias (veja v. 10). Quer em Jezreel, em seu uso para a restauração do Templo.
quer em Samaria ou em outra parte de Israel, todos Todavia, o reinado de Joás tem uma falha —
os que apoiaram as más intrigas da casa de Acab os lugares altos continuam a existir. Em geral, os
são destruídos. lugares altos condenados pelo historiador deutero­
10,18-36 O templo de Báal é destruído. Essa nomista estão ligados a Israel. Mas Ataliá era irmã
não é a primeira vez que uma personagem usa de de Acab... Na verdade, podemos pressupor a con­
trapaça para realizar o propósito divino. Lembramo- tínua existência do sincretismo em Judá, bem como
-nos do profeta que mentiu (IRs 13)? lehu deve traços restantes da idolatria que existira sob Acazias.
cumprir sua missão de livrar Israel do mal que a Além disso, no campo, mesmo entre partidários do
casa de Acab perpetrou ali, e é isso que ele faz (cf Senhor, ainda pode ter havido resistência à centra­
IRs 19,17). Sua recompensa é que seus fdhos ocu­ lização do culto em Jerusalém. O leitor não deve
parão o trono de Israel até a quarta geração. se surpreender, então, ao descobrir um castigo li­
Mas lehu também é culpado de cometer o mitado para Judá: Arâm representa uma ameaça a
pecado de Jeroboão, tolerando os santuários em seu bem-estar.
Betei e Dan. O texto julga esse pecado com refe­ Talvez o fato de Judá subornar Arâm com tri­
rência à perda para Arâm do segmento oriental da butos seja histórico, como o é a morte violenta de
terra de Israel. Joás. Entretanto, sugerimos que, na perspectiva do
11.1- 20 Governo de Ataliá. Até mesmo os quehistoriador deuteronomista, a justaposição das de­
conhecem os Livros dos Reis não prestam muita clarações tem 0 propósito de afirmar uma relação
atenção a Ataliá. Em um período patriarcal como implícita de causa e efeito. Sejam quais forem seus
esse, nenhuma mulher governaria legitimamente. pecados, Joás é descendente de David; é sepultado
Izébel pode ter sido mais forte que Acab (cf IRs com seus ancestrais na Cidade de David e seu fi­
21) e Ataliá, irmã de Acab, pode, de fato, ter gover­ lho Amasias se toma rei em seu lugar.
nado Judá durante sete anos, mas a casa do homem, 13,1-9 Reinado de Joacaz em Israel. Poderiamos
seja ele Acab ou David, sempre recebe o crédito. pensar que este texto foi tirado do livro dos Juizes. O
Assim como a coragem de algumas mulheres pecado de Joacaz leva à ira do S enhor e à opressão
salvou Moisés (Ex 2), agora lehosheba, irmã de de Samaria. Entretanto, Joacaz aplaca o Senhor, que
Acazias, salva Joás (da dinastia davídica) da mão manda um libertador, e os israelitas ficam livres de
assassina de Ataliá. O lugar de proteção é a Casa do Arâm. Porém, o padrão logo se repete (cf Jz 2,11­
Senhor e o protetor é o sacerdote lehoiadá, que unge 19). De volta a sua terra, com relativa segurança, o
Joás rei de Judá. Quando Ataliá percebe o que acon­ povo continua a pecar; sua sina é a falta de prosperi­
teceu — que um descendente homem de David foi dade. Quando Joacaz morre, o descendente de lehu
ungido rei — ela e os que a apóiam ficam impo­ continua a linhagem (cf 2Rs 10,30).
tentes. A morte que ela infligiu aos outros filhos de 13,10-25 Reinado de Joás em Israel. Para
Acazias agora se toma seu destino. fazer uma leitura lógica dessa passagem, deveria­
A restauração da linhagem davídica exige re­ mos colocar os w . 22-23 depois do v. 7, os vv, 24­
novação da aliança, um novo compromisso do rei 25 depois do v. 19 e os w. 12-13 depois do v. 21.
e do povo com o Senhor e um novo compromisso Assim, os israelitas que fizeram o mal durante o
do povo com 0 rei. Depois que o templo de Báal reinado de Joacaz mereceríam a contínua opressão
é demolido (compare 2Rs 10,18-28), o rei, tendo de Arâm; contudo, o fato de Arâm não destruir
restabelecido a aliança apropriada, dirige-se da Casa completamente Israel também teria uma explicação
do Senhor para sua casa e seu trono. teológica.
12.1- 22 Reinado de Joás. Joás tinha 7 anos O encontro de Joás com Eliseu demonstra mais
quando começou a reinar e reinou durante 40 anos. uma vez o poder do profeta. O fato de Joás levar
O redator deuteronomista atribui o bem de seu rei­ o profeta a sério é um bom sinal (embora ele esteja
nado à orientação de lehoiadá. desesperado) e faz com que ele mereça os sucessos
O relato da restauração do Templo durante o militares contra Arâm; por outro lado, o fato de não
reinado de Joás descreve sacerdotes que não são executar a palavra do profeta com obediência total
administradores. Aparentemente, a harmonia de — assim Eliseu interpreta as três flechas — é res­
Joás com os sacerdotes leva ao que ele considera ponsável pela vitória restrita. O texto também insi­
um acordo conveniente: os sacerdotes ficam com nua conflitos entre Israel e Judá (cf 2Rs 14,8-14)
288 todo 0 dinheiro que recebem, mas também susten­ e também com Moab.
2 REIS 16

Apesar de seu encontro com Eliseu, ou talvez na Cidade de David e seu filho lotâm reina em seu
por causa de seu sucesso incompleto, Joás recebe lugar.
o tradicional tratamento deuteronomista para um 15,8-12 Zacarias de Israel. O filho de Jero­
rei do norte: fez o mal, como Jeroboão. Joás é boão contrasta com seu pai enérgico; permanece
sepultado em Samaria e seu filho senta-se em seu no trono apenas seis meses antes de cair vítima de
trono (cf. 2Rs 10,30). uma conspiração. O historiador deuteronomista
Há certa confusão a respeito do nome deste rei considera tanto seu reinado como seu término a
— o texto hebraico varia entre loash e lehoash. Os realização da palavra do S enhor a lehu (cf. 2Rs
relatos sobre o rei aqui registrados originam-se, 10,30).
com toda a probabilidade, no mínimo de duas fontes 15,13-16 Shaium de Israel. Não há muito o
(observe-se, por exemplo, a duplicação dos vv. 12­ que dizer sobre o reinado de um mês de Shaium.
13, em 2Rs 14,15-16). A instabilidade do trono é óbvia. Outra conspira­
Ao contrário de Elias, Eliseu morre e não deixa ção e outro rei. Antes mesmo que o teólogo deutero­
nenhum sucessor específico. Contudo, como Elias, nomista possa avaliar Menahêm, assassino e suces­
uma aura de milagres acompanha sua trajetória. sor de Shaium, o leitor prevê qual será o julgamento
Como o poder do profeta está em sua pessoa — de um rei que se vinga cruelmente nos inocentes e
em sua vida e em seus ossos — não nos surpreende nos que foram fiéis a seu rei.
que, para o historiador deuteronomista, até o con­ 15,17-22 Menahêm de Israel. Como seria de
tato com os ossos de Eliseu restaure a vida. Até o esperar, Menahêm recebe a condenação do redator
fim, Eliseu age como mediador do poder de Deus. deuteronomista. Ele é mau, como Jeroboão. Adia a
14.1- 22 Amasias de Judá. A mãe de Amasias,possível ameaça assíria e assegura o trono, pagando
lehoadin, era de Jerusalém. Como a mãe de Joás tributo ao rei assírio — com o imposto cobrado de
(Sibiá, de Beer-Sheba), era originária do sul, o que seu povo.
sugere que o reinado de Amasias pode ser mais 15,23-26 PeqaMá de Israel. Peqahiá não é
positivo. Ele vence os edomitas, mas, como seu poupado do julgamento deuteronomista atribuído a
pai, deixa que os lugares altos permaneçam. Trava todos os reis do norte. O filho de Menahêm fica no
um combate fracassado contra Israel, que esvazia trono durante dois anos e, então, é assassinado por
os tesouros do templo e também do palácio. O seu escudeiro, Péqah.
conselho de Joás a Amasias — não lute comigo, 15,27-31 Péqah de Israel. Péqah também é
porque perderá — , dado como alegoria, lembra a mau e é comparado a Jeroboão. Durante seu reina­
parábola de lotâm (Jz 9,7-15). do, Israel continua perturbado pela Assíria. O tribu­
Apesar de sua morte violenta, fora de Jerusa­ to já não é suficiente; a Assíria toma parte das terras
lém, Amasias era da linhagem de David e foi sepul­ israelitas. Péqah não é forte o bastante para resistir
tado na Cidade de David com seus ancestrais. Seu à conspiração de Oséias.
filho. Azarias, foi proclamado rei em seu lugar. 15,32-38 lotâm de Judá. A primeira coisa a
14,23-29 Jeroboão II de Israel. Como seu ho­ notar é outra confusão de nomes — Azarias e Ozias,
mônimo, Jeroboão II é um mau rei do norte. Con­ como designações para o pai de lotâm — , provavel­
tudo, seu remado é longo e próspero (sabemos isso mente causada aqui, também, pela presença de duas
por 2Reis e pelos profetas Amós e Oséias). Essa fontes. Como seu pai, lotâm faz o que é reto aos
combinação de mal e um longo reinado próspero é olhos do Senhor; reina durante 16 anos e constrói
inconsistente com a teologia deuteronomista tradi­ uma das portas da Casa do Senhor. Contudo, os
cional, na qual a prosperidade costuma ser conse- lugares altos não desaparecem; Arâm e Israel opri­
qüência do bem e o sofrimento, do mal. O longo mem Judá. Quando lotâm morre, é sepultado com
remado próspero de um mau rei, porém, pode ser seus ancestrais na Cidade de David. Seu filho Acaz
explicado se ele realiza uma promessa profética; o se toma rei em seu lugar.
poder da palavra do profeta sempre se realizará. En­ 16,1-20 Acaz de Judá. Acaz merece a conde­
tretanto, uma coisa interessante sobre o v. 25 é que nação do historiador deuteronomista por sua idola­
ele registra a realização de uma profecia não citada tria e seu sacrifício de crianças (compare Gn 22). Na
em nenhum texto anterior. É a primeira vez na his­ época, Judá está bastante enfraquecido. Os edomitas
tória deuteronomista que Jonas, filho de Amitai, é recuperam territórios e a coalizão Arâm-Israel ata­
mencionado. ca Judá, com a intenção de destronar Acaz. Embo­
15.1- 7 Azarias de Judá. Como o do reinadora esse plano fracasse, força uma aliança entre Judá
de seu pai, o julgamento que o redator deuterono­ e a Assíria, o que, na prática, faz de Judá um vassalo
mista faz do reinado de Azarias é confuso. Sua mãe, da Assíria. O profeta Isaías preveniu contra tal
leqoliáhu, é de Jerusalém. Azarias faz o bem aos aliança (Is 7,1-16). O aumento da influência assíria
olhos do S enhor ; seu reinado é longo (atravessa os significa não só a presença contínua do sincretis-
reinados de cinco reis do norte). Mas os lugares mo, dos lugares altos e da idolatria, e o saque da
altos permanecem e ele fica leproso. Azarias, da Casa do S enhor, como também a substituição do
linhagem de David, é sepultado com seus ancestrais altar do S enhor por um altar assírio. Na perspec- 289
2 REIS 17

tiva do teólogo deuteronomista, que maior insulto 19.1- 19 Ezequias e Isaías. Depois de ouvir a
poderia ser feito ao Senhor? mensagem do rei assírio, Ezequias vai à Casa do
Apesar de tudo, Acaz é descendente de David. S enhor e consulta Isaías, profeta do S enhor. Antes
Por isso, é sepultado com seus ancestrais na Cida­ mesmo de ouvir as palavras consoladorast do pro­
de de David e seu filho Ezequias se toma rei em feta, Ezequias imagina um final feliz: o S enhor,
seu lugar. irado com o poder dos assírios, castiga-os por isso.
17.1- 41 Oséías de Israel. A Assíria destruiu defi­Isaías confirma que não há razão para Ezequias
nitivamente o reino setentrional de Israel em 721 a.C. temer o rei assírio. Quando o rei da Assíria repete
(cf. 2Rs 18,9-12). Era a política assíria costumeira suas ameaças, Ezequias novamente procura o Senhor
levar para o exílio muitos dos principais cidadãos de (cf Is 37,1-20).
uma nação conquistada (por exemplo, os sacerdotes) 19,20-37 Castigo de Senaquerib. Mais uma
e transferir povos estrangeiros para o território subju­ vez Isaías consola Ezequias. “Em consideração a
gado. O objetivo era impedir o desenvolvimento de David”, o historiador deuteronomista lembra ao lei­
oposição capaz de formar uma conspiração. tor: a Assíria não destruirá Jerusalém.
O texto menciona três etapas no desenvolvimen­ O poder da palavra do profeta é logo demonstra­
to do sincretismo pós-exílico em Israel. Como o do. O S enhor, guerreiro de Israel, destrói muitas tro­
Senhor é o Deus da terra, é necessário prestar o culto pas assírias e os sobreviventes fogem. Nem o rei assírio
adequado apenas a ele. Entretanto, como a população escapa ao castigo; seus próprios filhos o matam. En­
dominante, pelo menos em influência, agora não é quanto a Casa do S enhor é fonte de libertação para
israelita, o S enhor é ignorado. Chega-se a um acor­ Ezequias e Judá, a casa de Nisrok é o lugar do assas­
do quando a devoção a ele é combinada com as prá­ sinato de Senaquerib (compare Is 37,21-38).
ticas idólatras de outros povos. 20.1- 21 Enfermidade de Ezequias. O relacio­
O teólogo deuteronomista interpreta o desapa­ namento de Ezequias com o S enhor amplia-se com
recimento de Israel como castigo apropriado por sua cura. Embora Isaías tivesse profetizado que
todo o mal cometido contra o S enhor. Constante e Ezequias morreria de sua doença, Ezequias suplica
consistentemente, tanto Israel como Judá fizeram­ ao Senhor, que ouve sua oração e acrescenta quinze
-se de surdos às admoestações proféticas. Agora, anos à sua vida. O sinal de que a nova palavra do
nas mãos da Assíria, Israel paga sua infidelidade. profeta será cumprida é o movimento milagroso de
Além disso, o futuro parece ameaçador para Judá. uma sombra (cf Is 38,1-8), indicação imediata do
A dinastia de David permanece, mas se tiver mais poder eficiente do S enhor (compare IRs 13,3-5).
reis como Acaz (cf. 2Rs 16) deveremos perguntar: Com 0 surgimento da Babilônia como poder
“Por quanto tempo?” mundial, a Assíria deixou de ser uma grande amea­
ça às nações do antigo Oriente Próximo. Essa era a
realidade política. A História Deuteronomista, entre­
PARTE V: tanto, aproveita a oportunidade para prenunciar a
O REINO DE JUDÁ DEPOIS DE 721 A.C. vitória final da Babilônia sobre Judá com uma pro­
clamação profética a Ezequias. A amizade com a
2Rs 18,1-25,30 Babilônia, quer agora da parte de Ezequias, quer
18.1- 12 Ezequias. Ezequias é muito diferentemais tarde da parte de Josias, não impedirá que seja
do pai; chega a ser comparado a David! Não só por ela destruída Judá em suas mãos. Contudo, o
cabe-lhe a glória de destruir os restos da idolatria próprio Ezequias continuará a ser recompensado por
de Acaz como até mesmo esfacela a serpente que sua fidelidade; a desgraça virá somente depois de sua
Moisés fabricara (cf. Nm 21,9). Sua fidelidade é morte (cf Is 39). Ezequias, da linhagem de David,
recompensada com um reinado de 29 anos, prospe­ é sepultado com seus ancestrais, e seu filho Manassés
ridade, vitória sobre cidades filistéias e a seguran­ se toma rei em seu lugar.
ça da independência da Assíria nas primeiras etapas 21.1- 18 Reinado de Manassés. A profanação
de seu reinado, na mesma época da conquista de de Jerusalém com sangue inocente e da Casa do
Israel. S enhor, com toda expressão possível de idolatria,
18,13-37 Invasão de Senaquerib. Contudo, a por Manassés é imperdoável. A promessa feita a
Assíria continua sendo séria ameaça. O diálogo rela­ Salomão da presença contínua do S enhor em seu
tado aqui concentra-se em quem confiar: em Ezequias Templo e de um descendente davídico no trono de
e seu Deus ou no poderoso rei da Assíria (compare Israel (c f IRs 9,3-5) estava condicionada à fideli­
Is 36 com IRs 18). Ezequias parece ftaco, enquanto dade dos reis à aliança. Agora o teólogo deuterono­
são relatadas vitórias assírias passadas. Agora o leitor mista invoca a palavra de Deus por intermédio dos
é capaz de prever o julgamento do redator deuterono­ profetas, para condenar o pecado de Manassés e
mista. A fidelidade ao S enhor e à aliança trarão o prever as terríveis consequências desse pecado para
sucesso, sejam quais forem as circunstâncias. A con­ Judá. O fim está próximo.
fiança em um poder estrangeiro e um povo idólatra, O historiador deuteronomista reconhece o fato
290 entretanto, só pode trazer destruição. de que Manassés sobreviveu no trono de Judá du-
2 REIS 24

rante 55 anos, o reinado mais longo registrado entre te da nação para a Babilônia? Ele repete a conde­
todos os reis davídicos, contudo ele também foi nação profética de Manassés (cf 2Rs 21,10-15),
julgado teologicamente como o pior deles. Talvez lembrando o leitor das maldições que Judá sofreria
a nota sutil de que Manassés foi sepultado “no por negligenciar a aliança (2Rs 22,16). E Josias
jardim de sua casa, o jardim de Uzá” (v. 18), em morre antes da queda da nação.
vez de uma declaração explícita de que foi sepul­ Josias morre na batalha de Meguido (609 a.C.).
tado com seus ancestrais na Cidade de David, seja Judá se alinha com a Babilônia contra uma coalizão
seu jeito mais severo de julgar Manassés. Antes de entre o Egito e a Assíria; assim, o rei morre nas
mais nada, ser sepultado, e com os ancestrais, era mãos do Egito. Esta verdade histórica não pode ser
muito importante para os israelitas. Apesar do mal negada, apesar do julgamento deuteronomista do
de Manassés, seu filho se tomou rei em seu lugar; reinado de Josias. Entretanto, Josias é levado de
um rei davídico permaneceu no trono enquanto volta a Jerusalém para ser sepultado por seu filho
existiu a nação de Judá. Joacaz, que reinou em seu lugar.
21,19-26 Reinado de Amon. Do tipo “tal pai, Muitos biblistas questionam se o livro da Lei foi
tal filho”, Amon é condenado por fazer mal seme­ encontrado no Templo ou compilado pela primeira
lhante ao que fizera seu pai. Entretanto, Amon cai vez naquela época, a partir de antigas leis. Também
mais facilmente nas maldições que esse pecado questionam se Josias estabeleceu — novamente pela
merece: seu reinado dura apenas dois anos; ele é primeira vez — ou restabeleceu a Páscoa. Para os
assassinado e sepultado, como seu pai, no jardim propósitos do presente comentário, basta saber que
de Uzá. A instabilidade do povo pode ser vista pelo há bons argumentos para apoiar ambas as posições.
assassinato dos que assassinam. De qualquer modo 23,31-35 Reinado de Joacaz. O julgamento
o filho de Amon, Josias, reina em seu lugar. deuteronomista sobre Joacaz é muito simples: ele
22,1-7 Reinado de Josias. Como Ezequias, faz o mal e por isso é castigado. O castigo é um rei­
Josias merece comparação com David. Além dis­ nado de três meses, exílio no Egito e morte no exílio.
so, assim como Joás restaurou o Templo depois do Seu sucessor, embora descendente de David, não é
reinado da malvada Ataliá, também Josias dispõe­ seu filho e sim um dos filhos de Josias, seu meio
-se a fazer o mesmo (c f 2Rs 11-12). irmão. O poder do Egito sobre o rei de Judá é sim­
22,8-2330 O livro da Lei. Josias está cuidando bolizado pela mudança de nome — de Eliaqim
da restauração do Templo, quando é encontrado o para Joaquim; ele não deve ser considerado servo
livro da Lei. Quando ouve as palavTas ali contidas, da aliança davídica e do S enhor, mas do Egito. Faz
Josias julga seus pais pelos padrões do livro e teme o que um vassalo deve fazer: recolhe tributo do povo
pelo futuro de Judá: a nação merece as maldições do para aplacar o faraó Nekô.
Senhor. Para melhor avaliar o possível impacto do 23,36-24,7 Reinado de Joaquim. Com a de­
livro sobre Judá, ele o envia à profetisa Huldá, que cisiva vitória da Babilônia sobre o Egito na batalha
transmitirá o julgamento do Senhor. Ela pronuncia de Karkemish (605 a.C.), o inimigo de Judá trocou
uma palavra dupla: sim, Judá será castigado por sua de nome. A ameaça que se chamava Egito-Assíria
história de pecado; entretanto, por causa da angústia era agora, decisivamente, a Babilônia. De fato, Judá
de Josias com a palavra do Senhor, a nação não será tomou-se vassalo da Babilônia.
destruída antes da morte do rei (compare 1Rs 21,29). A inútil tentativa de Joaquim de derrubar o
A leitura do livro da Lei na presença de todo poder da Babilônia só podia terminar em desastre.
o povo lembra a ordem de Moisés para que tal lei­ O historiador deuteronomista aproveita a oportuni­
tura fosse feita (Dt 31,9-13). A cerimônia de reno­ dade para explicar a queda de Judá como realiza­
vação da aliança lembra Js 24,25-27 e 2Rs 11,17-20. ção profética. O S enhor trocou de lado; agora, por
A cerimônia da aliança e a proclamação da Lei sim­ causa dos pecados de Manassés, Deus apóia todas
bolizam a renovação do compromisso de Israel com as nações que são contra Judá (c f 2Rs 21,10-15).
o S enhor. Contudo, apesar do mal de Joaquim, ele é da li­
A purificação do Templo por Josias é tão ampla nhagem de David; repousa com seus ancestrais e
quanto sua profanação por Manassés. Também é seu filho loiakin reina em seu lugar.
feito um comentário específico quanto à remoção 24,8-17 Reinado de loiakin. A mãe de loiakin,
de todos os restos idolátricos deixados pelos reina­ Nehushtá, é de Jerusalém. Ele faz o mal aos olhos
dos de Salomão, Acaz e Manassés em Judá e até do S enhor. Seu reinado dura apenas três meses.
por Jeroboão em Israel. De fato, Josias cumpre a Isaías profetizara o exílio de loiakin na Babilônia,
palavra que o profeta pronunciou a seu respeito em junto com o exílio de outros e o confisco dos tesou­
IRs 13,2. Além disso, a celebração da Páscoa — ros do templo e do palácio (cf 2Rs 20,17-18). Mais
uma volta às raízes da nação — é aqui restabele­ uma vez, a palavra do Senhor é eficiente. Quando
cida (cf Ex 12; Nm 9; Dt 16; Js 5). Nabucodonosor coloca o tio de loiakin no trono de
Como o teólogo deuteronomista concilia o bem Judá como rei fantoche, muda seu nome, a mesma
realizado por Josias em Judá com a queda iminen­ coisa que o faraó Nekô fizera a Eliaqim e por ra- 291
2 REIS 24

zões semelhantes. Mataniá (Sedecias) está sob total 25,27-30 Libertação de loiakin. A concessão
controle babilônico. de anistia por ocasião da investidura de um novo rei
24,18-25,21 Reinado de Sedecias. Como fize­ era prática relativamente comum no antigo Oriente
ra seu predecessor, Sedecias faz o mal aos olhos do Próximo e Médio. Por essa razão muita gente pensa
Senhor. De fato, durante algum tempo, age como que a nota sobre a soltura de loiakin é historicamente
fantoche de Nabucodonosor, apesar do tratamento exata. Mas, mesmo assim, por que deveríam esses w.,
severo de Judá pela Babilônia, mas depois se rebela. dos quais há uma duplicação no fim do livro de Jere­
Entretanto, Sedecias não é bastante forte para se mias, terminar a História Deuteronomista? Alguns
rebelar, nem militarmente (em uma perspectiva his­ biblistas acreditam que a História foi escrita para
tórica), nem por meio da fidelidade ao S enhor (em explicar por que Judá caiu. Outros afirmam que a
uma perspectiva teológica). A conseqüência é, como História é um chamado à fidelidade futura: aprender
seria de esperar, o desastre. Sedecias é capturado e com 0 passado para o futuro. Os que preferem a se­
tem os olhos vazados, seus filhos são degolados. gunda interpretação consideram esses vv. finais
Além disso, Jerusalém é completamente devastada: abertos a um novo futuro. Sim, Judá fora destruído;
o Templo é demolido e incendiado, o mesmo acon­ sim, o Templo fora incendiado; sim, a dinastia daví-
tecendo com 0 palácio e outras grandes residências. dica, como fora conhecida, estava no fim. Mas... o
A muralha da cidade é destruída e outra onda de rei não fora assassinado; a promessa davídica não
pessoas é levada ao exílio. Além disso, os exilados estava totalmente extinta. De fato, loiakin ganha um
próximos ao rei são mortos. assento mais elevado que os dos outros reis e come
25,22-26 Governo de Godolias. Segundo esse todos os dias à mesa do rei babilônio. Uma referência
testemunho, o representante de Nabucodonosor quer semelhante na História Deuteronomista deixa claro
paz em Judá e está disposto a tolerar os antigos que essa afirmação tem significado simbólico — seja
chefes das tropas e os cidadãos que permaneçam na ou não historicamente verdadeira (veja 2Sm 9,7).
terra. Entre eles, está certo lishmael, que chefia uma Acompanhando o registro inspirado da história
revolta; mas uma conquista é impossível. Como re­ de Judá, veremos que a esperança existe sim, bem
sultado, os judaítas são forçados a fugir para o Egito, depois do exílio, em um sucessor davídico. O evan­
porque mataram o governador babilônico e temem gelho de Mateus, por exemplo, apressa-se a chamar
a retaliação babilônica (compare Jr 40-44). Jesus de “filho de David” (Mt 1,1).

292
QUADRO GERAL DO
NASCIMENTO DA BÍBLIA

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