Orando-com-os-Salmos - Dietrich Bonhoeffer
Orando-com-os-Salmos - Dietrich Bonhoeffer
Orando-com-os-Salmos - Dietrich Bonhoeffer
O S
Coordenaçã o editorial: Claudio Beckert Jr.
Traduçã o: Martin Weingaertner e Doris Kö rber
Revisã o: Josiane Zanon Moreschi
Ediçã o: Sandro Bier
Editoraçã o eletrô nica: Josiane Zanon Moreschi
Capa: Sandro Bier
© Brunnen Verlag GmbH
Dietrich Bonhoe er, Die Psalmen. Das Gebetbuch der Bibel
Dados Internacionais de Catalogaçã o na Publicaçã o (CIP)
Bonhoeffer, Dietrich
Orando com os salmos : inclui uma breve biogra ia / Dietrich Bonhoeffer; Traduçã o de Martin Weingaertner e
Doris Kö rber. - Curitiba, PR : Editora Esperança, 2017.
Tı́tulo original: Die psalmen: das gebetbuch der bibel
ISBN 978-85-7839-183-6
1. Oração - Ensino bíblico 2. Oração pessoal - Experiência cristã 3. Bíblia - Salmos - Orações I. Título II. Bonhoeffer,
Dietrich
O texto bı́blico utilizado neste livro é o da versã o Almeida Revista e Atualizada, 1988, 1993 da
Sociedade Bı́blica do Brasil exceto quando outra versã o for indicada.
Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução total e parcial sem permissão escrita dos editores.
Sobre o livro
Prefá cio
Prefá cio para a ediçã o brasileira
Salmo 1
“Senhor; ensina-nos a orar!”
Orar em nome de Jesus
Quem ora os Salmos?
Nome, mú sica, poesia
O culto e os Salmos
Temas
Salmo 8
A criaçã o
A Lei
A histó ria da salvaçã o
Salmo 22
O Messias
A Igreja
A vida
O sofrimento
Salmo 51
A Culpa
Salmo 73
Os inimigos
O im
Oraçã o pelo Espı́rito da vida
Salmo 103
A bê nçã o da oraçã o matinal
A vida e a obra de Dietrich Bonhoeffer
A famı́lia
Na universidade
Na Igreja Confessante
Entre conspiradores
Na prisã o
O im
Sobre o livro
1 Informação da época em que foi escrito este prefácio. Hoje o livro já está na 19ª edição na Alemanha. (N. de Revisão)
2 Em exegese, “Alta crítica” é o nome dado aos estudos críticos da Bíblia. Sua abordagem trata a Bíblia como literatura,
utilizando-se do aparato crítico normalmente aplicado a textos literários semelhantes. (N. de Revisão)
Prefácio
para a edição brasileira
1 Bem-aventurado o homem
que não anda no conselho dos ímpios,
não se detém no caminho dos pecadores,
nem se assenta na roda dos escarnecedores.
2 Pelo contrário, o seu prazer está na lei do S ,
e na sua lei medita de dia e de noite.
3 Ele é como árvore plantada junto a uma corrente de águas,
que, no devido tempo, dá o seu fruto,
e cuja folhagem não murcha;
e tudo quanto ele faz será bem-sucedido.
4 Os ímpios não são assim;
são, porém, como a palha que o vento dispersa.
5 Por isso, os ímpios não prevalecerão no juízo,
nem os pecadores, na congregação dos justos.
6 Pois o S conhece o caminho dos justos,
mas o caminho dos ímpios perecerá.
Dos 150 Salmos, 73 sã o atribuı́dos ao rei Davi, 12 a Asafe, mú sico
contratado por Davi; 12 à famı́lia Coré , cantores levitas da é poca de
Davi. Dois Salmos sã o atribuı́dos a Salomã o e um aos maestros Henã e
Etã . Assim, é compreensı́vel que o nome de Davi esteja relacionado de
modo especial com o Salté rio.
Sobre Davi nos é relatado que, apó s ser ungido em secreto, ele foi
chamado ao rei Saul, que fora rejeitado por Deus e atormentado por um
demô nio, para tocar harpa na sua presença. E sucedia que, quando o
espírito maligno, da parte de Deus, vinha sobre Saul, Davi tomava a
harpa e a dedilhava; então, Saul sentia alívio e se achava melhor, e o
espírito maligno se retirava dele (1Sm 16.23). Esse pode ter sido o inı́cio
do salmodiar de Davi. Na força do Espı́rito de Deus, que havia se
apoderado dele ao ser ungido para ser rei, ele afugentava o espı́rito
maligno por meio de seu canto. Nã o nos foi preservado nenhum salmo
anterior à unçã o. Somente depois de convocado para ser rei messiâ nico,
Davi – pai do prometido rei Jesus Cristo – oraria as cançõ es que seriam
acolhidas posteriormente nas Sagradas Escrituras.
Segundo o testemunho da Bı́blia, Davi, o rei ungido do povo eleito de
Deus, pre igura Jesus Cristo. O que lhe sucedeu foi por causa daquele
que estava nele e que descenderia dele, Jesus Cristo. Isso nã o lhe era
segredo. Sendo, pois, profeta e sabendo que Deus lhe havia jurado que um
dos seus descendentes se assentaria no seu trono, prevendo isto, referiu-se
à ressurreição de Cristo... (At 2.30s.). Davi foi uma testemunha de Cristo
em seu ministé rio, em sua vida, em suas palavras. O Novo Testamento
diz ainda mais. Atravé s dos Salmos, Davi já fala do Cristo prometido (Hb
2.12; 10.5) ou, como també m é dito, o Espı́rito Santo (Hb 3.7). Portanto,
as mesmas palavras de Davi sã o palavras do Messias vindouro. As
oraçõ es de Davi foram oradas com Cristo ou, melhor, Cristo mesmo as
orou atravé s daquele que o precedeu.
Esta breve observaçã o do Novo Testamento ilumina todo o Salté rio de
maneira especial. Ela o relaciona a Jesus Cristo. Veremos
posteriormente, em detalhes, como isso deve ser compreendido. O que
importa aqui é percebermos que Davi nã o orava apenas a partir da
abundâ ncia de seu coraçã o, mas a partir do Cristo que habitava nele. O
autor dos Salmos nã o perde sua identidade, mas nele e com ele
permanece Cristo.
As palavras derradeiras do idoso Davi o pronunciam de maneira
enigmá tica: “Palavras de Davi, ilho de Jessé; palavras do homem que foi
exaltado, do ungido pelo Deus de Jacó, do cantor dos cânticos de Israel: O
Espírito do SENHOR falou por meu intermédio; sua palavra esteve em
minha língua.” Depois Davi faz sua ú ltima profecia referente ao
vindouro rei da justiça (2 Samuel 23.1ss).
Assim somos reconduzidos à descoberta que já havı́amos feito
anteriormente. Com certeza nem todos os Salmos sã o de Davi; e nã o
encontramos no Novo Testamento passagem alguma que interprete
todo o Salté rio como sendo Palavra de Cristo. Ainda assim, devemos
considerar a importâ ncia das alusõ es mencionadas para todo o Salté rio,
que está decisivamente vinculado ao nome de Davi. E, quanto aos
Salmos como um todo, o pró prio Jesus diz que eles proclamam sua
morte, sua ressurreiçã o e a pregaçã o do Evangelho (Lc 24.44-47).
Como é possı́vel que uma pessoa e Jesus Cristo orem o Salté rio
simultaneamente? O Filho de Deus se tornou homem e suportou na sua
pró pria carne toda a fragilidade humana. Aqui ele derrama o coraçã o de
toda a humanidade diante de Deus.
Ele assumiu o nosso lugar e intercede por nó s. Jesus conheceu os
tormentos e a dor, a culpa e a morte em maior profundidade do que
nó s. Por isso, ele eleva a Deus a oraçã o da natureza humana que
assumiu. E realmente nossa oraçã o. Mas, como Jesus nos conhece
melhor do que nó s mesmos (já que ele mesmo foi verdadeiro homem
em nosso favor), a oraçã o també m é realmente sua, e só pode tornar-se
nossa porque foi sua.
Quem ora o Salté rio? Davi (Salomã o, Asafe, etc.) ora, Cristo ora, nó s
oramos. Nó s somos, em primeiro lugar, toda a comunidade. Apenas nela
poderá ser orada toda a riqueza do Salté rio. Em segundo, també m cada
indivı́duo ora os Salmos, já que é participante de Cristo e de sua
comunidade e ora com ela. Davi, Cristo, a comunidade e eu mesmo,
quando ponderamos isso em conjunto, reconhecemos o maravilhoso
caminho que Deus trilha para nos ensinar a orar.
O tı́tulo hebraico do Salté rio signi ica “câ nticos”. No Salmo 72.20, todos
os precedentes sã o denominados “oraçõ es de Davi”. Ambos sã o
surpreendentes, mas compreensı́veis. A primeira vista, o Salté rio nã o
conté m exclusivamente câ nticos, nem exclusivamente oraçõ es. Apesar
disso, també m as poesias didá ticas e as lamentaçõ es sã o, a rigor,
câ nticos, pois louvam a majestade de Deus. Mesmo os Salmos que nã o
contê m uma invocaçã o a Deus (p. ex. 1, 2, 78) podem ser chamados de
oraçõ es, pois se prestam à meditaçã o dos pensamentos e da vontade de
Deus. “Salté rio”, originalmente, era um instrumento musical, só depois
passou a designar a coletâ nea de oraçõ es que foram ofertadas a Deus
como câ nticos.
Tal como nos sã o transmitidos hoje, os Salmos, em grande parte,
destinavam-se ao uso no culto. Vozes humanas e instrumentos de todos
os tipos cooperavam em sua apresentaçã o musical. Novamente a
mú sica litú rgica propriamente dita remonta a Davi. Como outrora o
tanger da harpa afastara o espı́rito maligno, assim a mú sica santa e
cú ltica tem poder real. Vez ou outra ela é designada com a mesma
palavra usada para descrever a proclamaçã o profé tica (1Cr 25.1).
Muitos dos complicados subtı́tulos dos Salmos sã o instruçõ es para os
mú sicos. Da mesma maneira, o frequente “selá ”6 no meio de um salmo
parece indicar uma intercalaçã o musical. “O selá indica que devemos
parar quietos e meditar aplicadamente nas palavras do Salmo. Elas
requerem uma alma serena e aquietada, que compreenda e abrace o
que o Espı́rito Santo manifesta e coloca diante dela” (Lutero).
Certamente os Salmos eram cantados em responsó rio. A forma da sua
poesia era apropriada para isso, uma vez que ela expressa, a cada dois
versos, essencialmente o mesmo pensamento, com palavras diversas.
Este paralelismo nã o é casual, mas convoca-nos a nã o interrompermos
a oraçã o, a orarmos em conjunto. Estamos acostumados a orar
apressados. Assim, o que nos parece repetiçã o desnecessá ria é , na
verdade, real aprofundamento e concentraçã o na oraçã o. Alé m disso,
ela sinaliza que muitos, aliá s, que todos os cristã os oram a mesma coisa
com palavras diferentes. Assim a forma poé tica nos convoca
especialmente a orarmos os Salmos em conjunto.
O culto e os Salmos
Temas
6 Nas traduções bíblicas em português esse termo aparece apenas na versão Almeida Revista e Corrigida (Selá). Na versão NVI
foi substituído por [Pausa]. Nas demais, foi suprimido. (N. de Revisão)
Salmo 8
A criação
A Lei
Os trê s Salmos (1, 19 e 119) que dedicam sua gratidã o, seu louvor e
seus pedidos especialmente à lei de Deus, nos lembram da bê nçã o que a
lei representa. O salmista entende por “lei” toda a obra da salvaçã o
divina, bem como a orientaçã o para uma vida nova em obediê ncia. A
alegria na lei e nos mandamentos de Deus toma conta de nó s, depois de
Deus ter transformado nossa vida por meio de Jesus Cristo. O temor
mais profundo da nova vida é que Deus venha a ocultar de mim o seu
mandamento (Sl 119.17-19), de modo que, um dia, ele nã o me permita
mais conhecer sua vontade.
Conhecer as ordens de Deus é graça. Por meio delas nó s nos
libertamos dos planos e con litos que nó s mesmos forjamos. Elas nos
dã o a certeza da direçã o na qual seguir e nos fazem caminhar em
alegria. Deus nos dá seus mandamentos para que nó s os cumpramos. E
os seus mandamentos não são di íceis de guardar (1Jo 5.3) para aquele
que encontrou toda a salvaçã o em Jesus Cristo. O pró prio Jesus
submeteu-se à lei e a cumpriu em obediê ncia plena diante do Pai. A
vontade de Deus tornou-se sua alegria, seu alimento. Jesus agradece em
nó s pela graça da lei e nos presenteia com a alegria, porque ele cumpriu
a lei. Desse modo, testemunhamos o nosso amor à lei, certi icando-nos
de que a cumprimos com alegria e pedindo que nela sejamos mantidos
irrepreensı́veis. Nã o fazemos isso por nossa pró pria força, mas pedimos
em nome de Jesus Cristo, que é por nó s e está em nó s.
Talvez tenhamos especial di iculdade com o Salmo 119, em virtude de
sua extensã o e sua aparente monotonia. O que vai ajudar aqui será
somente um progredir lento, silencioso e paciente de palavra a palavra,
de frase a frase. Se assim procedermos, reconheceremos que as
aparentes repetiçõ es desvendam sempre novas facetas do mesmo amor
à Palavra de Deus. Como este amor jamais inda, també m nã o poderã o
indar as palavras que o confessam. Elas querem nos acompanhar por
toda a nossa vida e, em sua simplicidade, tornam-se a oraçã o da
criança, do adulto e do anciã o.
A história da salvação
Os Salmos 78, 105 e 106 narram a histó ria do povo de Deus na terra.
Descrevem a eleiçã o graciosa, bem como a idelidade de Deus e a
in idelidade e ingratidã o do povo. O Salmo 78 nã o conté m nenhuma
invocaçã o. Como devemos orar estes Salmos? Em vista da salvaçã o
experimentada no passado, o Salmo 106 nos convoca à gratidã o e à
adoraçã o, ao compromisso e à invocaçã o, à con issã o de culpa e ao grito
por socorro.
O Messias
A Igreja
Os Salmos 27, 42, 46, 48, 63, 81, 84 e 87, entre outros, tematizam
Jerusalé m, a cidade de Deus, as grandes festas do povo de Deus, o
templo e os belos cultos. Neles agradecemos pela presença de Deus
redentor em sua comunidade. Alegramo-nos sobre ela e ansiamos por
ela. O que, para os israelitas, sã o o monte Siã o e o templo, para nó s é a
Igreja de Deus em todo o mundo, onde quer que Deus habite atravé s de
sua Palavra e sacramento junto à sua comunidade. Essa igreja
permanecerá , a despeito de todos os inimigos (Sl 46). Seu cativeiro
engendrado pelos poderes deste mundo sem Deus indará (Sl 126,
137). O Deus gracioso está presente em sua comunidade por meio de
Cristo. Ele é a plenitude de toda gratidã o, alegria e esperança dos
Salmos. Deus mesmo habitou em Jesus. Ainda assim ele ansiava por
comunhã o com Deus, porque foi humano como nó s (Lc 2.49). Por isso
ele ora conosco pela proximidade e presença plena de Deus com os que
lhe pertencem.
Deus prometeu estar presente nos cultos de sua comunidade. Assim, a
comunidade celebra seu culto segundo a ordem divina. O culto perfeito,
no entanto, o pró prio Jesus Cristo celebrou, ao consumar todos os
sacrifı́cios ordenados atravé s do seu, voluntá rio e sem pecado. Cristo
ofereceu o sacrifı́cio de Deus por nó s como sendo os nossos sacrifı́cios a
Deus, em sua pró pria pessoa. Resta-nos apenas o sacrifı́cio de louvor e
gratidã o, manifesto em oraçõ es e câ nticos e em uma vida orientada
pelos mandamentos de Deus (Sl 15 e 50). Assim, toda a nossa vida
torna-se oferta de gratidã o. Deus aceita tais sacrifı́cios, revelando sua
salvaçã o aos que lhe agradecem (Sl 50.23). Desse modo os Salmos nos
ensinam a ser gratos a Deus por causa de Cristo e a lhe render louvores
com o coraçã o, a boca e as mã os, em meio à sua comunidade.
A vida
O sofrimento
7 Hino Justiça e sangue de Jesus, de autoria de Nikolaus Ludwig von Zinzendorf (Hino 175 – HPD – Hinos do Povo de Deus). (N.
de Revisão)
Salmo 73
Os inimigos
Hoje nenhuma parte do Salté rio nos causa mais di iculdades do que os
Salmos de vingança. Seus pensamentos perpassam todo o Salté rio com
uma frequê ncia assustadora (p. ex., 5, 7, 9, 10, 13, 16, 21, 23, 28, 31, 35,
36, 40, 41, 44, 52, 54, 55, 58, 59, 68, 69, 70, 71, 137). Aqui qualquer
tentativa de orá -los parece previamente condenada ao fracasso. Eles
parecem estar em um patamar inferior ao Novo Testamento. Na cruz
Cristo orou por seus inimigos e ensinou-nos a orar de modo
semelhante. Como poderı́amos invocar, com os Salmos, a vingança de
Deus? Entã o a pergunta é : E possı́vel compreender os Salmos de
vingança como Palavra de Deus para nó s e como oraçã o de Jesus Cristo?
Como cristã os, podemos orar estes Salmos?
Lembre-se que estamos perguntando pelo conteúdo dessas oraçõ es, e
nã o pela possı́vel motivaçã o com a qual algué m venha a orá -las. Isso
nó s jamais poderemos sondar.
Os inimigos mencionados nesses Salmos sã o inimigos de Deus, que
nos atacam por causa da obra dele. Jamais se trata de alguma briga
pessoal. Em parte alguma o salmista exerce vingança com as pró prias
mã os, mas a con ia unicamente a Deus (cf. Rm 12.19). Assim, ele precisa
abrir mã o de todos os pensamentos de vingança pessoal. Precisa estar
livre de toda sede de vingança, pois, do contrá rio, nã o estaria con iando
a vingança com sinceridade a Deus. Somente quem é inocente diante do
inimigo pode con iar a vingança a Deus. A oraçã o pela vingança de Deus
é pelo cumprimento de sua justiça no juı́zo sobre o pecado. Se Deus
mantiver sua palavra, esse juı́zo acontecerá , atingindo quem quer que
seja. Com o meu pecado, eu mesmo me encontro sob esse juı́zo. Nã o
tenho o direito de querer impedi-lo. Ele se cumprirá por causa do
pró prio Deus; aliá s, já se cumpriu, ainda que de maneira maravilhosa e
estranha.
A vingança divina nã o atingiu o pecador, mas o ú nico que nã o teve
pecado algum, que entrou no lugar do pecador: Jesus Cristo. Ele
suportou a vingança de Deus por cuja execuçã o o Salmo ora. Aplacou a
ira de Deus sobre o pecado e orou na hora em que o juı́zo de Deus se
cumpria: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23.34).
Ningué m, senã o aquele que suportou, ele mesmo, a ira de Deus,
poderia orar assim. Isso aniquila todas as falsas ideias acerca do amor
de Deus, que ignoram a seriedade do pecado. Deus odeia e julga seus
inimigos atravé s do ú nico justo, e este intercede pelo perdã o dos
inimigos de Deus. Somente pela cruz de Cristo podemos encontrar o
amor de Deus.
Assim, o Salmo de vingança nos conduz à cruz e ao amor de Deus, que
perdoa o inimigo. Eu nã o posso perdoar os inimigos de Deus. Somente o
Cristo cruci icado pode fazê -lo. E só por seu intermé dio eu també m sou
capaz de perdoar. Em Jesus Cristo o cumprimento da vingança
transforma-se, agracia toda a humanidade.
Sem dú vida alguma, faz diferença signi icativa se me encontro com
este Salmo no tempo da promessa ou no tempo do cumprimento. Mas
essa diferença vale para todos os Salmos. Oro os Salmos de vingança na
certeza de que Deus os cumpre maravilhosamente. Entrego a vingança
a Deus e peço pelo cumprimento de sua justiça em todos os seus
inimigos, sabendo que Deus permanecerá iel a si mesmo. Ele fez justiça
por meio do seu juı́zo irado na cruz, e essa ira tornou-se, para nó s, graça
e alegria. O pró prio Jesus Cristo pede pelo cumprimento da vingança
divina em si mesmo, reconduzindo-me diariamente à seriedade e
graciosidade de sua cruz, em relaçã o a mim e a todos os inimigos de
Deus.
Hoje eu també m só posso crer no amor de Deus e no perdã o aos
inimigos atravé s da cruz de Cristo e do cumprimento da ira divina. A
cruz de Cristo abrange a todos. Quem quer que se oponha à cruz de
Cristo, distorcendo a palavra da cruz, sofrerá a vingança de Deus,
haverá de tomar sobre si a maldiçã o de Deus, agora ou na eternidade. O
Novo Testamento fala com clareza inequı́voca dessa maldiçã o que
atinge aqueles que odeiam Jesus Cristo, e nisso ele nã o se distingue do
Antigo Testamento. Por outro lado, fala també m da alegria da
comunidade no dia em que Deus realizar seu juı́zo inal (Gl 1.8s.; 1Co
16.22; Ap 18; 19; 20.11). Assim Jesus, o cruci icado, nos ensina a orar
corretamente os Salmos de vingança.
O fim
Fizemos um breve passeio pelo Salté rio para, talvez, aprender a orar
melhor alguns Salmos. Nã o seria difı́cil relacionar todos os Salmos
mencionados com o Pai Nosso. Apenas precisarı́amos fazer pequenas
alteraçõ es na sequê ncia dos assuntos aqui tratados. O que importa,
poré m, é que recomecemos a orar os Salmos no nome de nosso Senhor
Jesus Cristo com idelidade e amor.
O nosso amado Senhor, que nos ensinou a orar o Saltério e o Pai Nosso e nos presenteou
com eles, conceda-nos, também, o Espírito da oração e da graça para que oremos sem
cessar, com disposição e seriedade de fé. Nós precisamos disso. Ele o ordenou, portanto, o
requer de nós. A ele sejam dados louvor, honra e gratidão. Amém. (Lutero)
Salmo 103
A família
Assim ele relembrou sua infâ ncia na é poca em que estava preso.
Em um romance que começou a escrever, Bonhoeffer narra a inserçã o
de duas famı́lias burguesas em mú ltiplas responsabilidades pú blicas.
Ele sempre retornava a esse passado rico. Com atençã o e sem
constrangimento, participava de tudo o que izesse parte da vida
humana. Essa é a herança que Bonhoeffer assimilou com gratidã o. Na
decadê ncia dos relacionamentos causada pelo regime nazista, ele
vivenciou como a famı́lia ampla e amada cresceu em irmeza e uniã o,
apesar da diversidade de pro issõ es e metas de cada um. Durante as
provaçõ es mais intensas, nenhuma sombra caiu sobre o
comprometimento mú tuo dessa famı́lia. Cada um conhecia as reaçõ es
do outro tanto quanto as do seu pró prio coraçã o, estivessem os irmã os
no lar paterno ou no longı́nquo e doloroso exı́lio.
Na universidade
12
Na Igreja Confessante
Entã o veio o ano de 1933. Já em fevereiro ele fez pela rá dio uma
palestra na qual criticou o anseio por um “Fü hrer” e declarou que, se a
funçã o deste nã o fosse limitada, acabaria necessariamente por se
tornar um sedutor. Tal “Fü hrer” seria idolatrado, endeusado e nã o
prestaria serviço algum. Sua autoridade nã o se caracterizaria pela
legı́tima autoridade de um pai, de um professor e de um juiz. A
transmissã o foi interrompida antes que ele pudesse concluir a
exposiçã o. Quando icou evidente que o ı́dolo endeusado era vitorioso,
Bonhoeffer aceitou o chamado de duas igrejas de fala alemã em
Londres. Nã o queria ser inserido na edi icaçã o do cristianismo
germâ nico. “Daqui em diante, importa suportar no silê ncio e deitar fogo
em todos os cantos deste edifı́cio, para que ele, um dia, caia em ruı́na”,
foram as palavras com as quais despediu-se dos seus alunos.
No exterior, passou a ser um dos principais inté rpretes do que estava
acontecendo nas igrejas alemã s. Naquela é poca nasceu a profunda
amizade com o bispo anglicano de Chichester. Este, ao visitar a Berlim
destruı́da em 1945, antes de mais nada, procurou os pais de Bonhoeffer.
Na dramá tica conferê ncia em Fano (1934), Bonhoeffer dirigiu a
delegaçã o jovem alemã . Lá aconteceu um confronto com os delegados
enviados pelas hierarquias eclesiá sticas nazistas. O bispo dinamarquê s
Ammundsen interveio em defesa da Igreja Confessante, que resistia à
dominaçã o nazista. Para Bonhoeffer, o movimento ecumê nico
ingressou, em Fano, em uma nova é poca. Encontrava-se diante da
bifurcaçã o que caminhava, ou para uma associaçã o descomprometida,
ou rumo a decisõ es a favor ou contra a igreja de Jesus Cristo.
Enquanto Bonhoeffer preparava, junto com C. F. Andrews, uma
viagem para encontrar Gandhi na India (o convı́vio na Inglaterra havia
despertado seu interesse pelos movimentos paci istas), a Igreja
Confessante na Alemanha o convocou para assumir a formaçã o
clandestina de pastores em um seminá rio na Pomerâ nia. Ele aceitou.
Assim, em abril de 1935, mudou-se com 25 estagiá rios para Zingst e
depois para Finkenwald, onde conviveu com os irmã os em casas
precariamente instaladas. Compartilhou suas posses materiais e
intelectuais, seu tempo e seus sonhos. Era generoso. Diante dele a
mesquinhez derretia como a neve ao sol. O rigor e a força de sua
capacidade de re lexã o eram surpreendentes; mas logo todos
perceberam que ningué m jamais lhes tinha dado ouvidos com tamanha
atençã o. Por isso també m sabia aconselhar e exigir com sucesso, o que
ningué m conseguira antes.
Naquele seminá rio tudo tinha sabor de novidade, tanto o trabalho
teoló gico e a convivê ncia humana quanto os posicionamentos na
polı́tica eclesiá stica. Bonhoeffer acabou percebendo o quã o marcante
era a sua in luê ncia, e isso se tornou sua mais profunda provaçã o de fé .
Ele chegava a ter aversã o ao fato de que sua saú de e vitalidade, sua
superioridade e sua opiniã o se impunham. Chegava a odiar a
dependê ncia e, por isso, empenhava-se em fazer qualquer pessoa
caminhar sobre seus pró prios pé s.
Neste perı́odo surgiram seus escritos polê micos contra todo e
qualquer afrouxamento da doutrina: “Nã o podemos abrir mã o (das
con issõ es) de Barmen e Dahlem, porque nã o podemos abrir mã o da
Palavra de Deus”.
Com isso, uma tempestade se levantou, porque Bonhoeffer ousou
identi icar as questõ es levantadas pela Igreja Confessante com a busca
de salvaçã o. Nessa é poca, també m surgiram os livros Discipulado
(1937), que conclamava contra a “graça barata”, e Vida em Comunhão13
(1938), que re letia biblicamente as experiê ncias de Finkenwald. Estes
foram os dois livros que o tornaram conhecido enquanto era vivo, bem
como sua pregaçã o acerca do que signi ica estar com Cristo. Suscitou
em muitos, renovado amor pela Escritura. Logo apó s este livro sobre os
Salmos ser publicado, em setembro de 1937 o seminá rio de pregadores
foi fechado pela polı́cia e a censura proibiu qualquer publicaçã o sua.
Entre conspiradores
Na prisão
O fim
8 Publicado como livro em alemão em 1956 pela Christian Kaiser Verlag (Munique), e em inglês em 1961 com o título Act and
Being pela William Collins Sons & Co (Londres) e Harper & Brothers (Nova Iorque). (N. de Revisão)
9 Spiritual (também chamado de Negro Spiritual) é um gênero musical surgido nos Estados Unidos e inicialmente interpretado
por escravos negros. Apesar da entonação religiosa o Spiritual dos afro-americanos tinha, principalmente, uma função
política, objetivando o m da escravidão. (N. de Revisão)
10 Canção Spiritual que pode ter sido escrita por Wallace Willis, índio Choctaw, em algum momento depois de 1865. (N. de
Revisão)
11 Schöpfung und Fall. Brunnen, 2016. Não há edição em português. (N. de Revisão)
12 Movimento cristão minoritário de resistência ao Partido Nazista na Alemanha.
13 Sinodal, 1983. (N. de Revisão)
14 Sinodal, 2009, 9ª edição.
15 Skyhorse Publishing, 2016.
16 A Arte da Fuga é uma peça inacabada do compositor alemão Johann Sebastian Bach. (N. de Revisão)