Artigo Cifefil 29-11
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Artigo Cifefil 29-11
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UEMS- Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.
1. Introdução
Este trabalho visa observar personagens negros em duas obras
ícones da literatura nacional: Memórias Póstumas de Brás Cubas e A
Paixão segundo G.H. Ainda que distantes historicamente, não podemos
dizer que estas obras não compartilhem um tom insólito e realista, assim
como o fato de refletirem uma visão da sociedade brasileira pelo viés da
classe dominante a que assumidamente pertencem seus narradores –
narradores também díspares e semelhantes ao mesmo tempo: há em
ambos a ironia apurada, o descrever focalizando coisas e objetos para
falar sobre dinâmicas profundas da sociedade, a forma como descrevem
as personagens e as situações que lhes circundam; a maneira como
criticam “apenas” apontando tal objeto ou maneirismo social e tecendo
comentário aparentemente desconexo com o assunto.
Os anos que as separam torna a comparação mais interessante ao
trabalho por possibilitar a reflexão sobre a mudança na representação da
figura negra dentro das obras com o consolidar da abolição. Interessante
dizer que a primeira é publicada em 1881 focalizando período anterior ao
ano de 1869 (data de morte do defunto-autor), tendo sido escrita,
publicada e lida enquanto o trabalho escravo ainda era uma realidade.
Havia nesse tempo algumas possibilidades de liberdade para as pessoas
negras, contudo sempre ligadas a questões pessoais e não ao direito
inalienável à liberdade; se ainda hoje discutimos a questão da segurança
dos corpos negros, naquela época a possibilidade de todo tipo de
aviltamento era uma realidade próxima. Já a segunda é publicada em
1964 e em seu enredo não importa medir o tempo, uma vez que se passa
completamente em poucas horas; tal disparidade no gênero, no tempo e
na própria forma das obras gera um panorama interessante das mudanças
nas relações materiais, das práticas e da caracterização das personagens
negras em nossa literatura. Contudo, embora a princípio pareçam tão
diferentes, foram encontrados saborosas semelhanças nas prosas
analisadas. Parece óbvio dizer que Clarice lia Machado de Assis. Por isso
dizemos que há uma experimentação formal do narrador e da construção
do espaço em A paixão segundo G.H. que encontra semelhanças nas
produzidas séculos antes pelo Bruxo do Cosme Velho. Alguns deles
tentaremos aqui demonstrar.
Interessa ao artigo delimitar e esmiuçar o quanto possível as
relações de trabalho e poder em que as personagens interagem, uma vez
que ambas as histórias trazem a figura negra no lugar de empregado
doméstico e a branca como senhor/patrão. Para tanto, utiliza-se autores
que já se debruçaram sobre a questão na obra de Machado de Assis,
como Sidney Chalhoub e Roberto Schwarz. De ambos retira-se o
conceito de classe senhorial a que pertence Brás e G.H., bem como se
desenham as relações de servilidade a que respondem Prudêncio e Janair.
Alguns aspectos serão focalizados para além da questão acima
exposta, em parte por serem recorrentes em ambas as diegeses, e em
parte por indicarem algo recorrente também na realidade externa à obra –
contudo todos esses aspectos se ligam à problemática em diferentes
níveis. São eles: o silêncio e o silenciamento das personagens negras, o
tratamento que o(a) narrador(a) dispende a elas, os espaços reservados às
classes analisadas, a autoimagem da classe senhorial – desfaçatez e
ironia.
Desta maneira, o artigo busca propiciar por um lado um retrato
das mudanças históricas na condição negra; e por outro a reflexão acerca
da real abrangência destas mudanças, ou o questionamento da
superficialidade dos direitos e avanços neste sentido. Contudo, mais que
um exercício de literatura comparada, este trabalho obstina pensar a
prática para ser implementada em sala de aula do ensino médio, em uma
tentativa de aproximar teoria literária e ensino de literatura explorando
possibilidades metodológicas críticas no tocante ao racismo estrutural e a
perpetuação da violência contra a população negra. Para tanto, utiliza-se
a tecnologia mais avançada que a linguagem humana já produziu: o texto
literário.
2. Antes de mim já havia vozes percorrendo o caminho dos sentidos
possíveis
Muitos são os esforços no sentido de aproximar os estudo críticos
da literatura do jovem leitor no espaço da escola. Amplos investimentos
são feitos ano a ano na compra de livros teóricos e literários para
abastecer as bibliotecas das escolas públicas, o Programa Nacional do
Livro Didático, ou PNLD, e o PNLD Literário são índices desses
esforços. Através destes programas, livros como Um mestre na periferia
do capitalismo pode chegar ao recôndito das Moreninhas 32, e deve
chegar a outros tantos lugares longínquos. Contudo, se o livro chegar,
mas a formação do professor de literatura dessa escola não for ao
2
Bairro periférico construído fora do perímetro urbano da cidade de
Campo Grande-MS. Neste bairro, diferente de todos os outros da cidade,
há uma maternidade e um cemitério, sendo comum história de moradores
que nasceram e morreram ali sem nunca terem ido ao centro da cidade.
encontro da discussão proposta por Schwarz, fará efeito sua presença?
Tal obra é realmente eficaz em uma escola que só atende fundamental 1 e
2? Qual foi a estratégia pensada e o impacto esperado que fez com que
esta escola recebesse sozinha mais de cinco exemplares do referido livro
enquanto não recebeu nenhum livro literário – nem mesmo de Machado
de Assis – em número suficiente para que uma turma de 35 alunos lesse
ao mesmo tempo a mesma obra, e assim possibilitasse ao professor
conduzir um trabalho com o texto literário mais eficaz?
O fato e as questões acima mencionadas fizeram com que se
tornasse urgente criar um método capaz de transpor toda a bibliografia
trabalhada no mestrado para uma rotina didática centralizada no texto
literário e na análise dos aspectos ligados à condição negra presentes nas
obras. Perseguindo tal objetivo, reuniu-se textos em que a naturalidade
das relações de opressão é criticada – a nosso ver, estes autores teóricos
são tão subversivos quanto os autores literários aqui analisados.
Passemos agora a uma breve exposição dos conceitos utilizados.
Sem as reflexões propostas por Roberto Schwarz em Um mestre
na periferia do capitalismo este artigo não teria sentido. As análises aqui
contidas são desdobramentos críticos da leitura desta obra que se detém
sobre o romance Memórias póstumas e sua forma, desenhando-lhe as
classes e oposições presentes em cada detalhe. O capítulo sobre as
feições sociais do narrador Brás Cubas é uma reflexão acerca da forma
utilizada pelo narrador para construir a si mesmo e toda a narrativa: tudo
que o rodeia é indício da posição afortunada que ocupa. Aqui se encontra
uma descrição a respeito do personagem principal (tal descrição,
acreditamos, também serve para descrever G.H., com pequenas
adequações temporais ou de gênero – quando muito.)
Embora muito solta, a forma do romance é biográfica, entremeada de
digressões e episódios cariocas. Passam diante de nós a estações da vida
de um brasileiro rico e desocupado: nascimento, o ambiente da primeira
infância, estudos de Direito em Coimbra, amores de diferentes tipos,
veleidades literárias, políticas, filosóficas, científicas, e por fim a morte.
Estão ausentes do percurso o trabalho e qualquer forma de projeto
consistente. A passagem de uma estação a outra se faz pelo fastio,
imprimindo ao movimento a marca do privilégio de classe. As relações
são incivis em sentido próprio, isto é, não se pautam pela igualdade
moderna, que no entanto está postulada. A volubilidade de Brás aparece,
noutras palavras, como reverso da exclusão de trabalho ou empenho
autêntico, e como extensão da iniquidade tá de social. (SCHWARZ, 2000,
p.63)
2.1 A incivilidade
O autor sugere ainda que Brás traga uma afetação demonstrado
pelo vazio que abrange os sublimes na perspectiva de Brás: se quer algo
da filosofia, este algo é a casca e a pilheria. Entra na política pensando
única e exclusivamente na glória egoísta. Tal afetação também pode ser
usada para descrever a réplica artística esvaída de sentido crítico que
fosse tão adorada por G.H., indicando também aí o privilégio de classe
da personagem e o olhar atento da autora que, assim como Assis, não
tece comentários à toa – mesmo que o jogo proposto com seus narradores
possa dar ares de ingenuidade e relato descuidado.
Há também as ideias fora do lugar na equação do pensamento que
se quer moderno e liberal mas patina assentado na violência do trabalho
escravo. Do mesmo pensador Schwarz, mas agora em outra obra Ao
vencedor as batatas, se recolhe as imbricações dessa condição
contraditória de nosso recém-nascido mercado de trabalho na diegese de
Machado. Contudo, tal leitura acabou por afetar também o ato de ler a
literatura brasileira como um todo, refletindo mesmo na interpretação
Clarice: uma vez que se passa a pensar tais relações, torna-se gritante a
relação de trabalho existente na novela, pois ela é o desdobramento
último da condição analisada e descrita pelo teórico nas linhas de um
bruxo muito sábio. A própria maneira brasileira de vestir ideias europeias
esvaindo-lhes do conteúdo virulento combina como uma luva com a
paixão por réplicas ironicamente elegantes, vazias de responsabilidades e
vagamente artísticas que G.H. cultiva em seu apartamento. Uma vez
conhecidas, as ideias fora do lugar gritam em cada oposição apresentada
na novela.
Além de leituras críticas acerca dos personagens e acontecimentos
e sua relação com questões históricas e sociais da época de Machado,
Sidney Chalhoub contribuiu com uma nova chave de leitura de
Memórias póstumas. Contudo, tal chave foi assaz profunda, fazendo
mudar o panorama sobre todos os autores lidos a partir de então; foi uma
chave que também ajudou a compreender que não podia ser por sobra de
dinheiro que Clarice escrevera tanto e sempre. Demorou muito tempo até
que percebesse que tanto Machado quanto Clarice eram em diferentes
níveis agregados e, ainda que se acredite piamente que dados biográficos
não sejam aspecto central numa análise literária, essa condição confere
acidez à visão de mundo contida em suas obras. Se não fosse o
conhecimento do calvário de Machado acompanhando a implementação
das leis do sexagenário e do ventre livre, bem como a infinidade de
“saídas” encontradas pelos senhores para manter a normalidade
escravocrata, enquanto homem negro, filho de escravo liberto no
seguinte contexto:
Além disso, continuam a faltar pesquisas sistemáticas sobre a ameaça e a
ocorrência concreta de escravização ilegal. A tranquilidade escandalosa
com que centenas de milhares de africanos introduzidos no país após a lei
antitráfico de 1831 permaneciam ilegalmente escravizados - assim como
os seus descendentes - salta aos olhos e sugere a magnitude desse
costume senhorial e o tamanho do perigo que rondava a população livre
de cor em geral. Também é necessário observar com desconfiança a
prática comum, na corte e alhures, de deter para averiguação indivíduos
“suspeitos de serem escravos”. Numa sociedade em que havia escravidão,
e logo a vigência de uma lógica de dominação assentada na privatização
do controle social, um dependente, especialmente se pobre e de cor,
arriscava bastante ao se afastar da vizinhança em que podia ser
imediatamente referido a determinado universo de relações pessoais. A
rede que perseguia e capturava escravos fugidos tinha entrelaçamento
preciso regular ou lançava a ameaça e a suspeição sobre amplos setores da
população “livre” de cor? Dito isso, e apesar desse tanto que há em
comum na política do domínio vigente para escravos e dependentes, é
claro que a condição de escravo era muito diferente daquela do livre
dependente. Sabemos isso porque os escravos não estavam intensamente
pela liberdade, e via de regra organizavam suas vidas em função da
expectativa de alcançar esse objetivo. As características mais essenciais
do tipo de dependência a que estavam submetidos os escravos eram
castigo físico e a condição de propriedade - esta os deixava sempre sobre
a ameaça das transações de compra e venda e, por conseguinte, diante da
possível ruptura de seus laços de família e comunidade. (CHALHOUB,
2012, p. 56)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo:
Editora Ática, 2008.
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis Historiador. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco,
2009.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo
social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Ed.
34, 2000.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado
de Assis. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
SÁ, Olga de. Clarice Lispector: a travessia do oposto. São Paulo:
Annablume, 1993.