Antropologia Colonialismo

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ANTROPOLOGIA

E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique,
Quênia, Sudão e Brasil
ANTROPOLOGIA
E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique,
Quênia, Sudão e Brasil

Alfredo Wagner Berno de Almeida (org.)


Itala Tuanny Rodrigues Nepomuceno
Riccardo Rella
Vinicius Cosmos Benvegnú
Rosa Elizabeth Acevedo Marin
Suellen Precinotto

São Luis, 2021


© Copyright dos autores
Capa: pintura de Eva Bochkor
Criação: Maia Sprandel
Projeto Gráfico: Philipe Teixeira
Apoio Técnico na revisão : Joelma Gonçalves da Silva
Yasmin Martins Gomes

Ficha Catalográfica

A36 Antropologia e Colonialismo: etnografias periféricas em Moçambique, Quênia,


Sudão e Brasil / Riccardo Rella, Ítala Tuanny Rodrigues Nepomuceno,
Vinícius Cosmos Benvegnú, Rosa Elizabeth Acevedo Marin, Suellen
Precinotto; Organizado por Alfredo Wagner Berno de Almeida. – São
Luís: UEMA Edições / PNCSA, 2021.

216 p.

Formato: Livro Digital


Veiculação: Digital

ISBN: 978-65-89821-26-7

1. Etnografia. 2. Libertação nacional. 3. Etnia. I. Almeida, Alfredo Wagner


Berno de. II. Rella, Riccardo. III. Nepomuceno, Ítala Tuanny Rodrigues. IV.
Benvegnú, Vinicíus Cosmos. V. Marin, Rosa Elizabeth Acevedo. VI. Precinotto,
Suellen. VII. Título.

Ficha Catalográfica e ajustamento de originais:Yasmin Martins Gomes

Endereços
UEA-Edifício Professor E-mails UEMA-Endereço: Cidade
Samuel Benchimol, Rua [email protected] Universitária Paulo Largo
Leonardo Malcher, 1728, [email protected] VI. 3801 - Tirircal, São
Centro-Manaus, AM Luís-MA, 65055-000
CEP: 69010-170 (98) 3244-0915
Fone: (92 ) 32328423

www.novacartografiasocial.com
CONSELHO EDITORIAL DO PNCSA

Otávio Velho – PPGAS-MN/UFRJ, Brasil

Dina Picotti – Universidade Nacional de General Sarmiento, Argentina

Henri Acserald – IPPUR –UFRJ, Brasil

Charles Hale – University of Texas at Austin, Estados Unidos

João Pacheco de Oliveira – PPGAS-MN/UFRJ, Brasil

Ana Pizarro. Instituto de Studios Avanzados, Santiago do Chile

José Sérgio Leite Lopes – PPGA-MNU/UFRJ, Brasil

Zulay Poggi - CED, Universidad Central de Venezuela

Aurélio Vianna – PPGCSPA/UEMA, Brasil

Roberto Malighetti -Universitá degli Studi i Milano-Bicocca, Italia

Maria Backhouse- Institut für Soziologie. Universität Jena, Alemanha


SUMÁRIO

NOTA DO ORGANIZADOR DO LIVRO À GUISA DE APRESENTAÇÃO.......... 9


ANTROPOLOGIA EM CINCO ATOS E APPROACHeS:
Anthropologues Governementaux, Practical Anthropology, Applied Anthropology,
Anthropology at work e Action Anthropology - contraposições e contrastes.
Alfredo Wagner Berno de Almeida...................................................................................... 15

TRABALHO DE CAMPO E “ESTUDOS DE COMUNIDADES”: DEBATES


ANTROPOLÓGICOS PÓS- II GUERRA MUNDIAL.
Itala Tuanny Rodrigues Nepomuceno.................................................................................... 37

HARRIS E WAGLEY NA ÁFRICA PORTUGUESA E O FIM DO


LUSOTROPICALISMO.
Riccardo Rella...................................................................................................................... 69

O FAZER ETNOGRÁFICO DE JOSEPH B. CASAGRANDE EM In the


Company of Man.
Vinicius Cosmos Benevegnú................................................................................................. 93

“FACING MOUNTAIN KENYA”: JOMO KENYATTA FRENTE À


ACADEMIA E ÀS POLÍTICAS DO SISTEMA COLONIAL BRITÂNICO.
Rosa Elizabeth Acevedo Marin........................................................................................... 115

ANTROPOLOGIA DO SUDÃO: RAÍZES HISTÓRICAS DE UMA DISCIPLINA


EM SUAS RELAÇÕES COM O MISSIONARISMO E COM O COLONIALISMO
DO CONDOMÍNIO ANGLO EGÍPCIO .
Suellen Precinotto................................................................................................................. 141
CURSOS...................................................................................................................... 183

UMA DISCUSSÃO SOBRE AS PRÁTICAS DE TRABALHO DE CAMPO:


FIELDNOTES.............................................................................................................. 183

ANTROPOLOGIA POLÍTICA – DESCOLONIZAÇÃO, POLÍTICA E


IDENTIDADE: DISCUSSÃO DE FILMES E LIVROS................................................. 199
NOTA DO ORGANIZADOR DO LIVRO À GUISA DE
APRESENTAÇÃO

A elaboração deste livro ora apresentado decorre tanto de


cursos ministrados para mestrandos e doutorandos de diferentes
programas de pós-graduação em ciências sociais, notadamente de
antropologia, focalizando leituras críticas e temas relacionados ao
colonialismo; quanto de experimentação de pesquisas na Amazônia e no
continente africano, produto de colaboração científica entre instituições
acadêmicas e movimentos sociais do Brasil e do Quênia. No decorrer
das atividades letivas de 2014 a 2021 trabalhei em cursos referidos
ao processo de descolonização, desencadeado logo após a II Guerra
Mundial, abordando principalmente as relações entre etnia e nação e
as lutas dos movimentos de libertação nacional no continente africano.
Tais atividades de ensino coadunavam-se com o projeto de pesquisa
“Cartografia Social e Capacitação Técnica de Pesquisadores e Movimentos
Sociais no Quênia e no Brasil”, do qual fui coordenador. Este projeto
foi realizado de 2014 a 2019, a partir de cooperação técnico-cientifica
entre o PPGCSPA-UEMA, o PNCSA/UEA/UFAM, a Universidade
de Nairobi, faculdades de direito e geografia, e a Kenya Land Alliance
(KLA), associação voluntária da sociedade civil voltada para as questões
fundiárias, em particular as “terras comunitárias”. Foi financiado
pela Fundação Ford, cujos escritórios em Nairobi e Rio de Janeiro
acompanharam a execução das atividades. No âmbito desta pesquisa
ocorreram três visitas de membros da Universidade de Nairobi e da KLA
à Amazônia, mais exatamente ao Amazonas, ao Pará e ao Maranhão
totalizando nas três viagens 11 quenianos, sendo seis com vínculos
formais com a universidade, dois representantes do povo Endorois e
três integrantes do KLA. Ocorreram também duas visitas da equipe do
PNCSA ao Quênia, perfazendo cinco pesquisadores e um representante
de comunidade quilombola, a qual foi também posteriormente visitada
pelos quenianos. Os resultados consistiram de 02 fascículos elaborados
no próprio no Quênia pela equipe da KLA e dois livros publicados
no Brasil além de 10 (dez) Reports. A periodicidade destes relatórios,
tinha como objetivo registrar a permanência dos quenianos em
comunidades indígenas, localizadas na região metropolitana da capital

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Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
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amazonense, e em comunidades quilombolas do Maranhão - Alcântara,
Penalva, Camaputiua - e do Pará, Ilha de Marajó. Registrava também as
atividades dos pesquisadores do PNCSA na Universidade de Nairobi,
no laboratório de geoprocessamento, do departamento de geografia; na
sede da KLA, em Nakuru; na sede departamental e administrativa em
Isiolo e principalmente em tres comunidades no Kenya, quais sejam a
comunidade Loboi, no território dos Endorois junto ao Lago Bogoria,
em Baringo, e as comunidades Kguluku e Kibwaga, na região de Kwale,
entre Mombaça e a fronteira com a Tanzânia, pressionadas pela expansão
de grandes plantações canavieiras e por projetos de extração mineral.
Nesta comunidade observamos uma oficina de apresentação dos
resultados de mapeamento social realizado sob a supervisão do KLA.
Em 2015 havíamos feito também uma viagem a Isiolo, com o intuito de
averiguar as possibilidades de mapeamento social em comunidades desta
região a ser impactada pelo corredor LAPSSET porém constatamos
que tal não seria possível, principalmente em decorrência da alta
conflituosidade entre os grupos sociais. Nestes dois anos após o final
do projeto, continuamos mantendo contatos com os Endorois e com
a KLA, que agora atua no Lago Turkana também, discutindo questões
relativas a mapeamento social e à produção de novos fascículos. O
intercambio mais recente de informações ocorreu em janeiro de 2021
em evento realizado, de maneira virtual, na Universidade de Insburg,
Áustria. Hillary k’Odieny, integrante do KLA, foi indicado pelo PNCSA
aos organizadores para participar do evento em torno do projeto “Micro
Land Grabbing”. Da equipe do PNCSA/PPGCSPA-UEMA participaram
deste evento as antropólogas e professoras Patrícia Portela Nunes e
Cynthia de Carvalho Martins, coordenadoras do PPGCSPA.
Estas relações de pesquisa no Quenia facultaram contatos com
documentação histórica sobre os Endorois e sua ação judicial contra o
governo do Quênia, e com trabalhos de Jomo Kenyata, que frequentou
a London Scholl of Economics (LSE), em Londres, foi orientado
de B. Malinowski e, depois de proclamada a independência, tornou-
se o primeiro presidente do Quênia. Levantamos ainda referências
cartográficas e econômicas sobre corredores logísticos e megaprojetos
minerais no Quênia, na Etiópia e no Sudão e obtivemos informações
esparsas sobre os “campos de refugiados” em torno de DAdaab, onde
há uma base da ACNUR, no nordeste do Quenia. Os três campos

10
de refugiados aí localizados: Hagadera, Ifo e Dagahaley, abrigavam
populações deslocadas em decorrência de conflitos armados no Sul a
Somália. Em 2012 chegaram a comportar 350 mil refugiados.
Em outros termos a pesquisa facultou uma aproximação nossa
com pessoas e instituições de diferentes etnias e países africanos. Cabe
registrar o fato de um dos antropólogos do PNCSA, que participou
ativamente da discussão e do intercambio com os quenianos e que
elaborou a orelha do presente livro, o professor Emmanuel de
Almeida Farias Jr, ter seu projeto aprovado sobre os efeitos da política
agromineral sobre as comunidades tradicionais face à implantação do
corredor logístico de Nacala, em Moçambique, onde já realizou trabalho
de campo em 2019. Outra menção necessária diz respeito à pesquisa na
área da ciência jurídica efetivada pela doutora em direito e professora da
Universidade Federal de Uberlândia, Sheilla Borges Dourado, também
pesquisadora do PNCSA, que estuda a ação judicial dos Endorois. Ela,
inclusive, elaborou um box que acompanha os artigos que compõem o
livro.
Os cursos realizados sob minha responsabilidade foram dois,
sendo ministrados em duas versões cada um. Estampei suas ementas ao
final deste livro, porquanto enfatizam as experiencias etnográficas e os
problemas no decorrer dos trabalhos de campo, contendo referencias
bibliográficas ou de filmes e vídeos.
i)O primeiro curso intitulado “Antropologia Política –
Descolonização, política e identidade. Uma discussão de filmes e livros”
foi ministrado em cursos de doutorado do PPGSCA e PPGAS da UFAM,
no primeiro semestre de 2016 e no segundo de 2019. Privilegiou análises
fílmicas de lutas de libertação nacional na India, na Argélia, no Quenia, na
África do Sul e no Congo, mostrando o processo de produção de filmes
e de vídeos como uma prática etnográfica. Destacaram-se na primeira
versão deste curso Aniceto Cantanhede e Emmanuel de Almeida
Farias Jr., que atuaram como professores assistentes e contribuíram de
maneira permanente nas discussões, assinalando outros temas e filmes
que poderiam ser incluídos.
ii) O outro curso, ministrado em 2017 e 2019, referente às
práticas de campo, recupera experiencias de pesquisa desde os trabalhos

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
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de H. Maine na Índia, na segunda metade do século XIX, contemplando
os trabalhos de F. H. Cushing, F. Boas, W. Rivers, Malinowski, Sol Tax,
G. Foster, C. Wagley e M. Harris, dentre outros.
Nestes cursos, frequentados por doutorandos e mestrandos de
pelo menos seis diferentes programas de pós-graduação (PPGSCA-
UFAM, PPGAS-UFAM, PPGAS-UFRN, PPGA-UFPA, PPG em
Desenvolvimento Social-UNIMONTES, PPGICH-UEA), destacaram-
se inúmeros participantes, cuja intervenção nas discussões contribuiu
para muitos dos argumentos reproduzidos nos textos ora publicados.
Permito-me mencionar aqui alguns destes colegas que participaram
ativamente das discussões: Eriki Aleixo de Melo, Fernanda Oliveira
Silva, Marcos Alan Farias, Paula Stolerman, Adinei Almeida Crisostomo,
Juliene Pereira dos Santos, Roberta Brangiono Fontes, Bruna Beatriz de
Oliveira Cruz, Nelma Catulino de Oliveira e Daniel Brandão, .
Assim, três dos textos que compõem este livro são frutos dos
exercícios de curso que foram selecionados para integrá-lo. Sim, foram
selecionados três exercícios de autoria de: - Ricardo Rella, analisando
as viagens de Marvin Harris e Charles Wagley a Moçambique; - Itala
Tuanny Rodrigues Nepomuceno, examinando a gênese social do
conceito de comunidade e suas redefinições; e - Vinicius Cosmo
Benevegnu, discutindo as práticas etnográficas selecionadas por Joseph
B. Casagrande no seu livro In The Company of the Man, que contém
20 entrevistados-chaves. O quarto artigo é de autoria de minha colega
de PNCSA, professora Rosa Acevedo Marin, focalizando a trajetória
de Jomo Kenyatta, primeiro presidente do Quênia, e os pareceres
dos especialistas ingleses sobre a posse e o uso da terra, objetivando
instituir uma legislação consoante seus interesses. Sublinha os efeitos
de uma “elite dirigente nativa” pelos colonizadores ingleses. O quinto
artigo é de uma convidada indicada pela própria professora Rosa
Acevedo, que privilegia uma análise dos antropólogos colaboradores
no periódico Sudan Notes and Records, criado em 1918 e menciona
os antropólogos em suas tarefas oficiais, inclusive como conselheiros
militares.
Objetivando aproximar os diferentes textos selecionados elaborei
um artigo introdutório, cujo propósito consistiu numa reconstituição
crítica dos debates no campo da antropologia, elencando as diferentes

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posições e respectivas abordagens, as práticas e os discursos, os atos
e as falas dos antropólogos mediante as redefinições das formas de
colonialismo desde a Revolta dos Sipaios, em 1857-59, na Índia, até o
processo de descolonização do pós-II Guerra Mundial. Tal processo
foi desencadeado a partir de 1945, passando pela crítica dos resultados
da Conferência de Berlim, de 1884-85 – da qual participa Portugal - e
pelo Massacre de Jallianwala Bagh, no Punjab, em 1919. Enfatizei as
sucessivas transformações no trabalho de pesquisa dos antropólogos e
conferi atenção às designações que eles mesmos atribuíram a elas.
Ao final do livro estampei as ementas dos dois cursos, agrupando
indistintamente as duas versões e os respectivos acréscimos.
A iniciativa deste livro ocorreu concomitantemente com os
trabalhos de edição do volume 2 da revista Guarimã, publicação
periódica do Programa de Pós-Graduação em Cartografia Social e
Política da Amazônia, da Universidade Estadual do Maranhão. No
tópico relativo aos debates acadêmicos no campo da antropologia foi
contemplado um texto inédito em português de autoria do antropólogo
Marvin Harris, datado de 1958, sobre sua pesquisa em Moçambique,
intitulado Portugal’s African “Wards”, que contempla críticas relativas aos
autores que defendem existir no Brasil, antiga colônia portuguesa, uma
“democracia étnica avançada” e uma “democracia racial” que poderiam
servir de inspiração e modelo para as então colônias portuguesas na
África. Há um projeto teórico nesta ordem de recolocar como objeto
de reflexão a contemporaneidade dos efeitos do colonialismo sobre a
organização social das antigas colônias.
Os agradecimentos vão para todos os participantes dos cursos
mencionados e do projeto de pesquisa de cooperação científica com os
quenianos. As relações sociais na ação pedagógica e nos trabalhos de
pesquisa inspiraram argumentos e interpretações que marcam este livro
ora apresentado.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
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ANTROPOLOGIA EM CINCO ATOS E APPROACHeS:
Anthropologues Governementaux, Practical Anthropology, Applied
Anthropology, Anthropology at work e Action Anthropology -
contraposições e contrastes.

Alfredo Wagner Berno de Almeida1

1- Introdução

Para fins de discussão procedi a uma reconstituição crítica dos


debates no campo da antropologia, elencando as diferentes posições
e respectivas abordagens, as práticas e os discursos, os atos e as falas
dos antropólogos mediante as redefinições das formas de colonialismo
desde a Revolta dos Sipaios, em 1857-59, na Índia, até o processo
de descolonização do pós-II Guerra Mundial desencadeado a partir
de 1945, passando pela Conferência de Berlim, de 1884-85 – da qual
participa Portugal -, pelo massacre dos Zulus, em 1879, e pelo Massacre
de Jallianwala Bagh, no Punjab, em 1919. Neste sentido o artigo, de
certo modo, se inscreve com destaque num capítulo da história do
conhecimento antropológico, que relaciona a antropologia, em diversos
períodos históricos, com os diferentes modi operandi do colonialismo.

No sentido de apresentar com acuro as rupturas consecutivas


nas práticas de pesquisa dos antropólogos recorri às próprias expressões
cunhadas por eles próprios para designá-las, em diferentes períodos
históricos. Busquei contrapo-las umas às outras, objetivando delinear os
contrastes e as distinções teóricas. Elas por si só deixam entrever uma
certa autoevidencia, que merece ser detidamente explicada, uma vez que
não se restringem às escolas de pensamento nem tão pouco a critérios
usuais de periodização adotados pelas histórias da ciência e em especial
da antropologia.

1. Antropólogo. Professor do PPGCSPA da UEMA e do PPGSCA da UFAM. Pesquisador CNPq.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
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2- A ANTROPOLOGIA E UM NOVO MODUS OPERANDI DO
COLONIALISMO

Com o propósito de propiciar uma compreensão mais acurada


dos debates que marcaram a pluralidade de abordagens teóricas, que
marcaram o campo da produção antropológica nas duas décadas que
sucederam ao fim da II Guerra Mundial procedi a uma gênese social das
posições dos antropólogos e do trabalho teórico com os conceitos, numa
retrospectiva crítica das interpretações usuais sobre o processo de
descolonização. Privilegiei a análise de dispositivos datados de antes, durante
e do pós-II Guerra. De acordo com esta clivagem, cujas fragmentações
foram baseadas nas próprias designações estabelecidas pelos
antropólogos e suas sociedades científicas, importa asseverar que, após
a I Guerra Mundial, quando se registrou a derrocada de quatro impérios
(russo, otomano, austro-húngaro e alemão), ocorreram rearranjos
institucionais, na ação colonial do Estado, concernentes à antropologia
como instrumento de poder. Tais deslocamentos institucionais emanados
do principal império vitorioso na guerra, o império britânico, tiveram
efeitos penetrantes nos diferentes esquemas explicativos adstritos ao
evolucionismo, às escolas de pensamento referidas ao funcionalismo e ao
difusionismo, bem como na relação de seus respectivos adeptos com
os procedimentos adotados nos seus respectivos trabalhos de pesquisa.
A ocorrência destes deslocamentos se dá num momento em que se
encontram fragilizadas em demasia a capacidade demonstrativa e a força
analítica, seja de uma visão linear do tempo, própria do evolucionismo,
seja da noção de espaço dos difusionistas, fundada em esquemas
interpretativos desenvolvidos em diferentes regiões das quais eles seriam
propagados por movimentos migratórios. Vale sublinhar, inclusive, que
F. Boas, que possuía formação em geografia e acionava com rigor a
noção de espaço, delineando territórios na realização dos trabalhos
de campo, renuncia em 1924 ao difusionismo (Brelet,1995:35). Essas
rupturas concomitantes facultaram condições de possibilidade para uma
preponderância do funcionalismo, cujos procedimentos metodológicos,
trabalhados por Malinowski, enfatizavam uma organização social

16
caracterizada por interseções entre as partes, compondo uma totalidade.
Pode-se afirmar que tal formulação se trata de um lugar-comum das
histórias da antropologia, o que evidencia as dificuldades usuais em se
estabelecer rupturas e clivagens que não sejam estas ditadas por critérios
tributários das escolas de pensamento. Busquei, pois, empreender uma
interlocução crítica com a autoevidencia desses marcos, relativizando-
os e refletindo sobre a pertinácia de critérios relacionais. Nesta ordem
o esforço analítico do presente trabalho consiste em refletir sobre a
relação entre os atos de Estado, tomados como lugares de indagação
etnográfica, e a lógica dos debates que levaram os antropólogos a
diferentes posições e abordagens num mundo abalado por sucessivas
guerras e transformações políticas.

2.1- “ANTHROPOLOGUES GOUVERNEMENTAUX”:


ANTROPÓLOGOS COMO ADMINISTRADORES COLONIAIS

Assim, após a I Guerra Mundial, a partir das experiências exitosas


em expedições científicas2 e no trabalho de campo dos antropólogos
com povos primitivos de regiões remotas, localizadas em possessões do
império britânico, ganha força uma proposição do governo imperial de
formar sistematicamente os seus administradores coloniais, com
critérios de competência e saber da antropologia. Em decorrência
da adoção desta medida, em 1921, são designados os primeiros “antropólogos
governamentais” ou, como sublinha Brelet “anthropologues gouvernementaux”
(Brelet,1995:39), para exercerem oficialmente suas atividades funcionais
nas colônias, assumindo suas obrigações de “administradores
territoriais” inicialmente baseados na Nova Guiné. O conceito de
colônia3, que é tributário da biologia, concerne, no presente caso, ao
2. Refiro-me dentre outras expedições às seguintes: i) àquela de 1898 ao Estreito de Torres, faixa de mar
que separa a Nova Guiné da Austrália, realizada pela Universidade de Cambridge, focalizando docu-
mentalmente os povos desta região e suas culturas consideradas como “ameaçadas de extinção” e ii) à
Expedição Etnográfica Cooke Daniels à Nova Guiné britânica, em 1904, financiada pelo comerciante
que deu nome a ela. A. Haddon, W. Rivers e o também antropólogo e médico C. G. Seligman, que par-
ticipou de ambas expedições, publicou o livro The Melanesians of British New Guinea, em 1910, e foi
o orientador de B. Malinowski.
3. De acordo com Hughes, as ciências sociais tomariam à ecologia o significado de “colônia”, que se refere

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
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processo histórico de expansão europeia com a submissão econômica
e política de unidades sociais específicas (povos, comunidades, tribos,
grupos) ou regiões (designadas como “possessões”, “províncias de
ultramar” ou “departamentos”) a um determinado domínio imperial.
Na interpretação de Brelet esta finalidade administrativa e utilitária do
conhecimento antropológico4, institucionalizada em 1921, consiste
num instrumento de gestão de populações, considerado propício
pelas autoridades imperiais britânicas à “pacificação das tribos” e a
uma utilização mais eficaz da força de trabalho indígena (“nativa”) na
extração mineral (Brelet, 1995:38, 39). Esta medida de “pacificação”
visava ajustar temperamentos belicosos ou potencialmente insurgentes,
isto é, objetivava identificar, com recursos teóricos, tomados sobretudo à
etnografia, os conflitos sociais latentes, evitando que os administradores
coloniais perdessem o controle sobre eles.

O império britânico historicamente recorria a juristas, militares


e missionários para dirimir estas contendas em torno de posse e uso
de terras e para implementar as “missões civilizatórias” e as chamadas
“pacificações”5. Episódios então recentes como o massacre de Jallianwala
a conceitos-chaves concernentes a agregações de organismos simbióticas ou competitivas e à maneira
como elas se desenvolvem, como se destroem e como se sucedem umas às outras. Nos anos 1950-60,
com os movimentos de libertação nacional, o termo teria sido explicitamente politizado emergindo num
vocabulário anti-colonialista atrelado aos processos reais referidos às mobilizações pela autodetermi-
nação e composto de termos tais como: colonialismo, neocolonialismo e decolonização. Vide Hughes,
Everett C. – “Colonies, Colonization and Colonialism”. In Bennett J. W. (ed) – The New Ethnicity. Pers-
pectives from Ethnology. (1973- Proceedings of The American Ethnological Society). St. Paul/San
Francisco. West Publishing CO. 1975 pp 13-22
4. Vide Brelet, C. – Anthropologie de L’ONU. Utopie et Fondation. Paris. Editions L’ Harmattan. 1995
5. Em episódios de sublevações ocorridos em período históricos anteriores o império britânico, após re-
primir os revoltosos, havia recorrido a juristas para elaborarem dispositivos legais capazes de “pacificar”
as colônias. Uma ilustração mais conhecida diz respeito à chamada “Revolta dos Sipaios” ocorrida na
Índia, em 1857-58, compreendendo uma série de levantes e incêndios contra a ocupação britânica, ma-
tando vários oficiais britânicos e, na tomada de Delhi, muitos europeus. Isto levou o império britânico
a desencadear uma truculenta repressão até 1859 e a solicitar os recursos intelectuais de juristas, como
Henry Maine, que desenvolveu uma noção operacional de tribo, consoante elementos do direito con-
suetudinário dos “nativos”, para delimitar as circunscrições administrativas naquela colônia, envolvendo
instituições e saberes dos povos subordinados. Maine foi designado para o Conselho administrativo
da Índia onde permaneceu de 1862 a 1869. O livro de Maine intitulado Ancient Law (1861), tornou-
-se leitura obrigatória para todos os administradores coloniais de diferentes regiões de Ásia e África,
contribuindo significativamente, ao proceder ao reconhecimento de normas locais religiosas e laicas,
para o que hoje se designa de “antropologia jurídica”. Consulte-se para maiores informações: Mandani,
Mahmood - “What’s a tribe?” London Review of Books, vol.34 n.17. September. 2012.
Além deste episódio de repressão sanguinolenta na Ásia, mais exatamente na Índia, e também de atos
repressivos no Afeganistão (1878-1880), faz-se necessário mencionar as ações truculentas do império

18
Bagh6, ocorrido na Índia, no Estado do Punjab, em 1919, demonstraram
um grave desgaste de uma determinada forma de colonialismo apoiada
em atos repressivos sangrentos e em punições com tropas militares
sob comandos com relativa autonomia para abrir fogo contra supostos
amotinados ou rebeldes.

Em termos de uma cronologia das formas de colonialismo


da administração imperial britânica, Mandani (2012) registra que, a
partir de 1858, a Coroa britânica passa a assumir esta gestão, que entre
1757 e 1858, tinha ficado a cargo de um empreendimento privado, a
East India Company ou Companhia Britânica das Índias Orientais.
Esta Companhia possuía, inclusive, força militar própria ou uma
polícia indígena composta de sipais ou soldados indianos – hindus e
muçulmanos- sob as ordens de oficiais britânicos. A Coroa decreta o
fim do governo da referida Companhia e chama a si a plenitude da
governação. Passa a operar com noções baseadas nas formulações de
Maine que por assim dizer reinventam o “nativo”, cuja personalidade
jurídica passa doravante a ser considerada a “tribo”. Mandani descreve
Maine como um precursor do trabalho etnográfico ao deixar entrever
que o tribalismo consiste numa etnicidade reificada. Na Índia as tradições
“nativas”, do ponto de vista de Maine, na reformulação e justificativa do
governo colonial, levaram ao reconhecimento de diferenças culturais ao
se assemelharem a um museu vivo de costumes em que as relações de
parentesco se mostravam essenciais. Em suma, a lógica das instituições
“nativas” para Maine deveria ser encontrada nos costumes e tradições
britânico na África, utilizando armas de fogo (artilharia/com canhões, infantaria/com Martini-Hen-
ry rifles e revolveres/450 Adams e 442 Webley Royal) contra velhos mosquetões, escudos e lanças dos
povos indígenas. Tais massacres são classificados pelos historiadores como “guerras”, a saber: contra
os Ashanti, em 1863/64 e 1873/74, localizados no que hoje corresponde a Gana, e contra o Reino dos
Zulu, no que hoje corresponde à África do Sul, em 1879. Para maiores informações sobre o massacre
dos Zulus consulte-se: Hoare, James (ed)- The Anglo-Zulu War of 1879. The Causes, the Conflicts,
the Consequences. Key Publishing Ltd. Lincolnshire/England. 2019. Para um aprofundamento sobre a
ação colonial militar britânica no Afeganistão leia-se o texto de F. Engels, publicado em 1858 pela The
New American Cyclopaedia e divulgado no Brasil pela primeira vez, em tradução de Clara Alain, pela
Folha de São Paulo. São Paulo, 15 de outubro de 2001, sob o título “A derrota britânica no Afeganistão”.
6. Também conhecido como “Massacre de Amritsar”, em que que militares britânicos, em abril de 1919,
no Punjab, dispararam suas armas de fogo contra civis desarmados, assassinando mais de 370 pessoas e
ferindo outras 1.200, quando comemoravam o festival Hindu e Sikh de Baisakhi. Mediante a repercussão
desta chacina a Câmara dos Comuns instituiu uma Comissão de investigação, em julho de 1920, e cen-
surou o oficial militar que comandava as tropas Brigadeiro-General Reginald Dyer.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
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locais. O resultado final consistiria num ideal de transformação dos
“indianos em ingleses”.

A força ideológica deste projeto colonial, executada segundo


mediações de uma transição nas formas de colonialismo, levou os
colonizadores a dividirem, sobretudo a partir da Conferencia de
Berlim de 1884-85, as populações dominadas em dois grandes grupos
consoante duas categorias básicas: “raça” e “tribo”. O critério de
“raça” homogeneizava os povos colonizados e era regido por “leis
civis”, enquanto aquele referente a “tribo” dividia as populações em
dois grandes subgrupos: “pessoas nativas” e “pessoas não-nativas”
e era regido pelos direitos consuetudinários. Haveria tantos direitos
baseados nos costumes, quanto a quantidade de tribos? Tal subdivisão
preconizava, portanto, uma relação de poder entre o Estado e os
critérios de “origem”. Estes foram estabelecidos na Índia articulando
um significado de tribo apoiado em três identidades políticas entre os
povos colonizados: “casta”, “religião” e a própria circunscrição relativa à
“tribo”. A noção de tribo consistia, deste modo, num produto de leis elaboradas
por um Estado colonial que impõe identidades coletivas em assuntos
de cidadãos ou que seriam individuais e, portanto, institucionaliza a vida
em grupo tal como explicitado pelos recenseamentos.

Esta arquitetura do poder colonial foi consolidada e expandida


para as colônias das 14 metrópoles europeias, que participaram da
chamada “partição da África”, efetuada pela Conferência de Berlim, de
1884-85. O continente africano foi redesenhado7 nos moldes de um
“zoneamento tribal” com toda a complexidade e a incongruência de
seu significado. Com o expansionismo europeu no continente africano,
intensificam-se os esforços diplomáticos para discutir soberania sobre
territórios indígenas e as chamadas “expedições científicas”, que
7. O “mapa rosa” ou “mapa cor-de-rosa”, referido no texto de Marvin Harris, intitulado ”Portugal’s Afri-
can “Wards”, trata-se do mapa que apresenta a pretensão de Portugal, à Conferencia de Berlim, de tornar
colônias sob seu controle efetivo todos os territórios tribais localizados entre Angola e Moçambique,
onde atualmente se situam Zambia, Zimbawe e Malawi, numa vasta extensão que ligava o Oceano Atlân-
tico ao Indico. Esta proposta dos colonialistas portugueses de exercerem soberania sobre esta imensa
faixa de terra entre os oceanos foi prontamente recusada. Em janeiro de 1890, o império britânico deu
um Ultimato a Portugal, exigindo a imediata retirada das forças militares portuguesas estacionadas em
áreas correspondentes hoje ao Zimbabwe e ao Malawi. O recuo português tornou-se evidente.

20
propiciavam aos estrategistas metropolitanos dados empíricos sobre
realidades localizadas. Tais artifícios competitivos dos poderes coloniais
parecem só ter adiado as grandes transformações que se intensificaram
com o fim da I Guerra Mundial. Assim, em 1920, novas e profundas
modificações administrativas são feitas nas gestões coloniais. Mediante
a repercussão internacional do massacre de Jallianwala Bagh e as
críticas à violência da administração britânica uma outra modalidade de
confrontar as revoltas ou administrar conflitos, acionando intensamente
mecanismos de dominação simbólica, passou a ganhar força. As punições
sanguinolentas dos códigos penais, que regiam as colônias, foram
aparentemente suavizadas com iniciativas que adquiriram jurisprudência
tendo como suporte as interpretações de Maine. No próprio significado
de “pacificação” adquirem proeminência componentes imateriais8
dissociados das missões religiosas e mais vinculados a economistas-
estrategistas, que visavam conquistar os vários circuitos de mercado de
produtos industrializados e das matérias-primas imprescindíveis à sua
produção.

Historicamente os juristas legalizavam a colonização de


unidades sociais e de recursos naturais, naturalizando-as através dos
rituais de instituição de dispositivos legais. Códigos, leis, resoluções e
“protocolos” de caráter administrativo, bem como cadastros, censos,
zoneamentos e regulamentos, legitimavam uma forma de dominação
externa às unidades sociais, ainda que, eventualmente, utilizando
componentes do direito consuetudinário ou dos “costumes” de uma
tribo, comunidade ou povo indígena. Aos militares cabia assegurar o
cumprimento efetivo destas disposições jurídicas com intervenções
emergenciais. Esta passagem institucional assinalada em 1921, de uma
dominação “por fora”, perpetrada por juristas e militares, para uma
dominação “por dentro”, executada por antropólogos ou a partir do
conhecimento antropológico, chama a atenção para um novo modus
operandi do colonialismo. A repressão armada, executora fiel dos

8. Para outras referências teóricas, quanto a abrangência do significado de “pacificação”, consulte-se:


Pacheco de Oliveira, João - “Pacificação e Tutela Militar na Gestão de Populações e Territórios”. Mana
20 (1). 2014. Pp 125-161

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
21
dispositivos jurídicos, é substituída ou passa a complementar uma
forma de executá-la com base em elementos intrínsecos a cada uma das
tribos ou comunidades subordinadas. Modelos de família, sistemas de
parentesco, regras de extração e cultivo, que disciplinam a relação com
os recursos naturais; normas de aliança e calendários de festividades
religiosas consistem em elementos descritivos que irão ser incorporados
pela estrutura operativa da ação colonial. Os antropólogos, são
acionados como capazes de aprimorar as proposições de Maine. Eles
relativizam as “leis civis”, e se tornam protagonistas ou os principais
agentes articuladores dos mecanismos subordinação de povos e etnias
à política colonial do império britânico, num momento histórico em
que a repressão armada ou a guerra é substituída pelo recurso ao
conhecimento científico e por fatores simbólicos ou imateriais, que não
correspondem mais e principalmente à ação de missões religiosas. As formas
de subordinação, incentivando “assimilações” e maior incorporação de
“nativos”, parecem orientar os mecanismos de poder local. Elas se dão
“por dentro” do universo moral e das categorias de pensamento dos
que compõem as unidades sociais colonizadas (povos, comunidades,
tribos ou grupos) a despeito de não acabarem definitivamente com as
medidas punitivas e com os instrumentos de suplício, que tem os corpos
como alvo de repressão9.

Em outras palavras está-se diante de artifícios de submissão


efetiva e formal de antropólogos e seus recursos teóricos à brutalidade
da ação colonial. Os riscos desta incorporação subordinada levaram
Malinowski a alertar os antropólogos e recomendar com toda
prudência crítica a relevância de uma certa simpatia pelos indígenas e
uma administração colonial menos brutal e rígida e capaz de relativizar
9. No Hoa Lo Prison Historical Relic, museu localizado no centro de Hanói (Vietnam), encontram-se
em exposição troncos com buracos em que eram presos os pés dos prisioneiros, uma imensa guilhotina,
ferros que comprimiam corpos, minúsculas solitárias e inúmeros outros instrumentos de tortura, que
foram deixados pelos colonialistas franceses após sua derrota e rendição incondicional na batalha de
Diên Biên Phu, em 1954. Visitei este museu em 2018 e fiquei aterrorizado com as condições lúgubres
das solitárias e com as ferramentas cortantes - a molde de turqueses e alicates - utilizadas para tortu-
rar os prisioneiros. A guilhotina me surpreendeu em demasia, pois, ingenuamente a imaginei abolida
do sistema penal francês após o fim do século XVIII e da instituição dos direitos dos cidadãos. Para
maiores informações a respeito consulte-se: Administration Board of Hoa Lo Prison Historical Relic.
Hanói.2013 pp.10-15.

22
algumas medidas absolutamente autoritárias. Afinal, o desempenho
de tais funções “pacificadoras” diferia bastante daquelas atividades
de obtenção de itens de coleções etnológicas para museus imperiais,
predominantes desde meados do século XIX, que nomearam um capítulo
das histórias da antropologia, classificado como “colecionismo”, ou das
análises e inventários de léxicos designativos de relações de parentesco
ou ainda das descrições etnográficas, que consolidaram o trabalho de
campo como componente teórico imprescindível, empreendidas de
1878 a 1918, notadamente por F. H. Cushing, F. Boas, W. Rivers e B.
Malinowski.

2.2- PRACTICAL ANTHROPOLOGY

Em 1929, quando já ocupava há cinco anos o posto de


diretor da London School of Economics and Political Science, mais conhecida
como London School of Economics (LSE), Malinowski elabora
uma recomendação de “controle científico da cooperação colonial”
(“scientific control of colonial co-operation”), ou seja, um controle exercido
pela compreensão da cultura dos denominados “nativos” e pelas suas
próprias organizações. Como desdobramento, tem-se que mediante os
rituais de instituição da profissão de antropólogo e de reconhecimento
da eficácia do uso de seus métodos, Malinowski estimula seus estudantes
a ocuparem a maior parte dos postos disponíveis na Grã-Bretanha e
no Commonwealth distribuindo-os por todas as partes do vasto império
britânico, vale dizer, pelos quatro cantos do mundo. Para Malinowski10
um dos primeiros passos da pesquisa antropológica consistiria no
conhecimento detido da organização política das tribos indígenas e da
dinâmica de seu funcionamento. Esta abordagem possibilita observar o papel
dos líderes e estabelecer uma distinção entre funções administrativas
racionais-legais e a autoridade conferida a eles pelo poder local religioso
e moral. Assevera que os indígenas têm suas próprias leis criminais,
suas “línguas primitivas” com respectivas gramáticas e um sistema de
10. Vide Malinowski, Bronislaw – Practical Anthropology. Journal of the International African
Institute. Vol.2 No.1, January, 1929. pp. 22-38. Published by Cambridge University Press.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
23
princípios concernente aos direitos individuais ou comunais à terra.
Chama a atenção para a educação dos indígenas e para outros problemas
da população como aqueles de higiene. O conhecimento cientifico
destes problemas pode ser assegurado com base no treinamento de
pessoas nos métodos antropológicos de verificação in loco, que permitiriam
aplicações práticas em problemas da vida cotidiana.

O significado deste conjunto de argumentos e atos, que privilegiam


o que é intrínseco aos “nativos” e suas próprias especificidades organizativas,
designado como antropologia prática (practical anthropology), representa,
de certo modo, uma postura de afirmação da teoria antropológica por
Malinowski face à ofensiva de uma ação colonial absolutamente utilitarista,
que delineava um uso absoluto do conhecimento antropológico para controlar
potenciais conflitos. Semelhante premissa, que orientaria a aplicação prática
do conhecimento científico, levou a LSE, dirigida por Malinowski de 1924
a 1942, a se empenhar na formação de líderes recrutados nas “elites nativas”
das colônias. Desde sua fundação, em 1895, a LSE valorizava a diversidade
do corpo discente e Malinowski acompanhou com acuro as modificações do
papel da instituição face às novas iniciativas colonialistas, sem comprometer
critérios de excelência e a perspectiva crítica. A LSE se torna o principal
centro de formação de lideranças “nativas”, que passam de uma retórica de
críticas ao próprio colonialismo britânico, nos anos de 1930 a 1945, para uma
ação política direta de mobilizações pela independência, no pós-guerra, isto
é, de 1945 a 1975, através, inclusive, de movimentos armados de libertação
nacional. Antes e durante a II Guerra Mundial encontravam-se em Londres
muitos líderes africanos. Alguns deles, como o queniano Jomo Kenyatta11

11. Em 1929 Kenyatta viaja para Londres para tratar de interesses ligados à posse de terras dos Kikuyu,
em 1930 retorna ao Quênia e em 1932/33 vai para Moscou, onde estudou economia. Volta a Londres
e estuda com Malinowski além de vincular-se a um grupo de intelectuais militantes como C. R James,
Eric Williams, Paul Robenson e Ralph Bunche. Kenyatta é orientado por Malinowski, que escreve a
introdução de sua tese, defendida em 1938 e tornada livro Intitulado: Facing Mount Kenya. The Tribal
Life of the Gikuyu. Vintage Books Edition. Oct. 1965. Este livro teve várias edições. Além de relativizar
a ação política de lideranças como Kenyatta, recuperando a relevância da ação independentista daqueles
que as autoridades coloniais classificavam como “agitators”, no seu Prefácio, Malinowski demonstra
em sua correspondência ativa como Kenyatta estava voltado para o trabalho de campo e a pesquisa
antropológica. Para tanto consulte-se: Stocking, Jr., G.W. – “Maclay, Kubary, Malinowski. Archetypes
from the Dreamtime of Anthropology” in Stocking Jr., G. W. (ed) - Colonial Situations. Essays on
the Contextualization of Ethnographic Knowledge. The University of Wisconsin Press. 1991 pp. 9-74

24
e Sylvanus Olympio12, do Togo, frequentaram formalmente a London
School of Anthropology e aí defenderam suas teses. Outros interagiram com
lideranças africanas anglofonicas13, que também se encontravam estudando
em Londres, como o ganense Kwame Nkrumah, ou caribenhas como C.
R. James14 e Eric Williams15, de Trindade e Tobago. Kenyatta e Nkrumah se
mobilizaram em conjunto com os demais para organizar, em 1945, no final
da guerra, o quinto Congresso Pan-Africano16, em Manchester (Inglaterra),
e iniciaram uma participação militante nas mobilizações pela libertação
nacional no Quênia, em Gana17, no Sudão18 e demais colônias africanas, bem
12. Sylvanus Olympio foi primeiro ministro do Togo, entre 16 de maio de 1958 a 12 de abril de 1960,
e logo depois presidente do País, entre abril de 1960 e 13 de janeiro de 1963, quando foi assassinado
durante um golpe de Estado. Se formou na LSE e seu mandato presidencial. Sylvanus era descendente
de Francisco Olympio da Silva, afro-brasileiro que retornou do Brasil à África Ocidental no século
XIX e constituiu uma das famílias mais poderosas do Togo, politicamente. Consulte-se: Mazrui, Ali-
“Thoughts on Assassination in Africa”. Political Science Quaterly 83 (1).1968 pp 40-58. Se formou na
LSE o que o habilitou para seu mandato presidencial.”
13. Não incorporei neste artigo os produtores intelectuais africanos e caribenhos, “francofonicos”,
que estudaram em universidades francesas, instituíram o conceito de “negritude”, tornando-o um
componente do pan-africanismo, e lutaram nos movimentos de libertação nacional, tais como: Aimé
Césaire, Léopold Sédar Senghor (Senegal) e Sékou Touré (República da Guiné).
14. Vale atentar que a primeira edição do conhecido livro de C. R. James, The Black Jacobins data de
1938.
15. E.Williams graduou-se em história pela Universidade de Oxford e transformou sua tese em livro
intitulado Capitalism & Slavery, publicado em 1944. Foi primeiro-ministro de Trindade e Tobago, que
se tornou independente em 1962.
16. Com a realização deste congresso lideranças africanas, como Kenyatta e Nkrumah, assumem a
direção do movimento de integração política e econômica da África, que até então era dominado por
norte-americanos e que nos primeiros congressos teve como principal formulador teórico William
E. Burg Hardt du Bois, que defendia uma África unida, evitando uma fragmentação, e em estreita
“cooperação dos descendentes negros de todas as partes do mundo”. A partir deste quinto congresso
realizado em Manchester os líderes africanos transcendem as reivindicações anti-racistas, reforçando
as lutas de libertação nacional. Realizam inúmeros eventos neste sentido nas décadas seguintes até que,
em 1974, após vitórias consecutivas de independência, se reúnem no primeiro congresso realizado no
continente, o sexto Congresso Pan-Africano, instalado em Dar Es Salam (Tanzânia). Tal mobilização
política apregoava então a “luta contra o imperialismo” e todas as suas ações espoliadoras na África,
bem como apoiava ativamente as lutas dos negros nos Estados Unidos e na Europa e a independência
econômica das nações emergentes através da ênfase no conceito de autodeterminação. Havia dissenções
e polêmicas internas no movimento pan-africanista às quais não iremos nos referir no presente texto..
17. Em 1957, com a independência de Gana, Nkrumah tornou-se o primeiro-ministro e governou até
1966, deposto por um golpe militar, enquanto estava em Hanoi (Vietnam). Jomo Kenyatta, por sua vez,
foi primeiro-ministro do Quênia de 1963, ano da independência, até 1964, e o primeiro presidente
do país de 1964 até 1978. Julius Nyerere tornou-se o primeiro presidente da Tanzânia, em 1961. Eric
Williams foi primeiro ministro e presidente de Trindade e Tobago. Sylvanus e Lumumba tornaram-se
primeiro ministro do Congo e do Togo respectivamente. Sylvanus tornou-se também presidente. Ambos
foram assassinados em 1961 e 1963, em cruentos golpes de estado O Sudão conseguiu sua independência
em 1956, a Nigéria e a Argélia em 1962.
18. Em 1930 os Nuer, povo nilota localizado no Sul do Sudão, foram estudados por Evans-Pritchard,
que também frequentava os seminários de antropologia da LSE, tendo como professores Seligman e

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
25
como no Caribe. Mais tarde se uniu a eles o tanzaniano e pan-africanista
Julius Nyerere, que estudou na Universidade de Edimburgo e foi presidente
da Tanzânia após a libertação. Não foi simples esta passagem de estudante na LSE
a militante em organizações armadas e clandestinas. Kenyatta permaneceu preso
muitos anos sob a acusação nunca comprovada de atuar no movimento Mau
Mau contra a ocupação inglesa, que foi duramente reprimido entre 1952 e
1957 pelas tropas britânicas19.

2.3- APPLIED ANTHROPOLOGY

Esta noção de antropologia prática (practical anthropology),


incorporando “antropólogos indígenas”20 foi trabalhada conceitualmente
por Malinowski, desde 1929, numa certa contraposição aos denominados
“antropólogos do governo”, que integravam as administrações coloniais
britânicas. Seus efeitos nos Estados Unidos se fizeram sentir, quando
Malinowski para lá se deslocou no início da II Guerra. Suas formulações foram
inspiradoras, mas os orientados de Boas implementaram uma modalidade
organizativa peculiar. Apesar de aparentes semelhanças, tem-se a emergência
Malinowski. Seu orientador de tese, Seligman, é classificado como um dos “pioneiros” no trabalho de
campo junto aos povos indígenas do Sudão onde pesquisa desde 1909.Como já foi sublinhado o Sudão
emancipou-se janeiro de 1956 e foi governado por um conselho de soberania até novembro de 1958,
quando um oficial militar Ibrahim Abboud assume o poder e governa até novembro de 1964. Em 2012 após
conflitos sociais em Darfur o Sudão do Sul separou-se do Sudão. Após o referendo de autodeterminação
de janeiro de 2011 o Sul realizou a secessão e foi escolhido, sem eleição, o presidente do novo Estado,
M. Kiir, dinka. Seu vice-presidente foi o nuer M. Machar. Seis anos depois foram intensificadas as
lutas políticas, que a simplificação midiática apresenta como sendo uma disputa étnica entre os Nuer
e os Dinka e em decorrência entre os soldados destas duas etnias. As razões econômicas desta “guerra
civil” acham-se, entretanto, atreladas às tentativas de empresas petroleiras tentarem monopolizar a
extração e a circulação de petróleo. Para maiores esclarecimentos consulte-se: Prunier, Gerard – “Frères
enemis du Soudan du Sud- de la partition a la famine”. Le Monde Diplomatique. Juillet. 2017 p.8. Na
interpretação deste conflito por R.Keucheyan ele critica os que descrevem o conflito como uma disputa
entre “árabes” ou muçulmanos e “africanos” ou “nativos do Sudão” e explica historicamente. Ele cita
o sociólogo Harald Welzer que classifica o conflito como tendo “causas ecológicas” percebidas como
étnicas, menciona fenômenos climáticos extremos que conduziram a uma cristalização incrementada
das identidades étnicas. Vide: Keucheyan, Razmig – La naturaleza es un campo de batalla. Finanzas,
crisis ecológica y nuevas guerras verdes. Buenos Aires. Capital Intelectual. 2016.
19. Para maiores informações sobre este movimento consulte-se: Barnett, Donald L. & Karari Njama
– Mau Mau from Within. An analysis of Kenya’s Peasant Revolt. N.York/London. Monthly Review
Press. 1966.
20. Esta questão vem sendo amplamente debatida no momento atual no continente sul-americano sobre
a formação de intelectuais indígenas, notadamente no campo da antropologia. A propósito leia-se:
Zapata Silva, Claudia – Intelectuais indígenas en Ecuador, Bolivia y Chile. Diferencia, colonialismo e
anti--colonialismo. Quito. Ediciones Abya Yala. 2013

26
da chamada antropologia aplicada (applied anthropology), que passa a prevalecer
nos Estados Unidos a partir de 1941 com a participação direta do país na II
Guerra Mundial. Sim, em 1941, com a criação da The Society for Applied
Anthropology predomina entre os antropólogos, de diferentes correntes de
pensamento, um vasto para serviços de inteligência, seja para análises pontuais
de “caracteres nacionais” e de fatores étnicos e linguísticos requeridos por
diferentes agencias governamentais voltadas agora para o estudo cultural de
países beligerantes inimigos. As aplicações práticas da antropologia ocorreram
na esfera militar, sobretudo nas agências de inteligência e informação21. O
recrutamento de antropólogos reforçava também o objetivo de supremacia
do conhecimento científico das forças aliadas, em várias dimensões sobre as
premissas pré-concebidas e arianistas do nazismo.

Durante a guerra antropólogos de diferentes orientações e


escolas de pensamento se agruparam sob uma ação comum, não
obstante terem mantido suas diferenças em termos de abordagens
téoricas. “Culturalistas”, “funcionalistas”, “evolucionistas” e
“materialistas culturais” se mobilizaram a serviço das forças aliadas
no esforço de guerra, utilizando a ciência como uma arma contra o
nazismo. As dissenções, todavia, mantiveram-se latentes e no pós-guerra
se tornaram manifestas. Margareth Mead22 irá alfinetar a preponderância
de Malinowski, que falecera em 1942, sobre a produção antropológica

21. Clyde Kluckhon, Ruth Benedict e Margareth Mead, que estudaram sob orientação de Boas, e outros
antropólogos referidos às práticas da antropologia aplicada foram recrutados para a War Relocation
Authority, órgão encarregado da reintegração de grupos sociais deslocados compulsoriamente durante
a II Guerra, como os japoneses nos Estados Unidos. R. Benedict deixa explícito os agradecimentos que
abrem o seu livro O crisântemo e a espada: padrões da cultura japonesa, que o Serviço de Informação
de Guerra incumbiu-a de produzir em que argumenta favoravelmente à manutenção da figura da
instituição imperial no pós-guerra, mantendo, portanto, o imperador.
Alfred Métraux foi mobilizado como membro do “pessoal etnológico” da armada norte-americana,
tendo sido nomeado, em 1943, diretor-adjunto do Instituto de Antropologia Social do Smithsonian
Institution, em Washington. Elaborava métodos, destinados ao Office of Naval Research, objetivando
estudar à distância culturas de potencias inimigas e aquelas de países amigos ocupados. Depois de 1945
Métraux trabalhou para o Departamento de Guerra no setor de bombardeamentos estratégicos.
22. Quando Margareth Mead começa a estudar antropologia na universidade de Columbia em 1924,
Franz Boas, nesta data renunciava ao difusionismo. Boas formou-se em geografia na Alemanha
e o difusionismo desenvolveu-se sob inspiração de Ratzel apoiado na hipótese de que o grau de
desenvolvimento de uma cultura depende do “meio-ambiente natural” (environnement naturel)
(Brelet,1995:35) e as migrações seriam a causa das semelhanças entre as culturas de diferentes regiões.
Estes pressupostos da antropogeografia, de final do século XIX, haviam perdido sua força explicativa
para Boas nos anos 1920-30.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
27
na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Segundo Brelet, Margaret Mead
relata em Sociétés, traditions et technologie que Malinowski “exerça
une véritable dictature sur l’anthropologie de langue anglaise”23 (Mead,1953:7 apud
Brelet, 1995:34). Certamente uma alusão ao fato do “funcionalismo” de
Malinowski ter suplantado o “evolucionismo” e o “difusionismo”, que
haviam dominado a antropologia no primeiro quartel do século XX,
e galgado uma posição hegemônica com efeitos pertinentes sobre o
campo da antropologia internacionalmente organizado.

3 - ANTHROPOLOGY AT WORK E A ANTROPOLOGIA DO


DESENVOLVIMENTO

No pós II Guerra Mundial, como verificado e exposto no


número anterior de Guarimã se agravaram, portanto, as divergências
entre as diferentes modalidades de abordagem antropológica. A applied
anthropology, se desdobra na denominada anthropology at work
explicitamente manifesta nos trabalhos de Clyde Kluckhon e George
Foster24. Enquanto na applied anthropology os antropólogos estiveram
a serviço do governo com cargos nas forças armadas, no pós-guerra
passaram a ter suas atividades vinculadas principalmente às agências de
desenvolvimento e designaram seu trabalho como anthropology at work.
Empenharam-se nos trabalhos relativos às políticas de infraestrutura
(transporte, energia), às políticas de saúde e de educação, às políticas de
urbanização, às políticas econômicas e às políticas agrárias, buscando
fortalecer o que designavam como “comunidades camponesas”.

Ainda com Brelet, que palmilha uma proposição de


consenso no dissenso, pode-se afirmar que os efeitos da utilização
prática da antropologia por Malinowski, “ao modo anglo-saxão”, e sua
abordagem dinâmica e global dos fenômenos sociais, articulados com
23. Cf. Mead, M. – Sociétés, traditions et technologie. Compte-rendu d’enquêts dirigées par Margaret
Mead sous les áuspices de la Fédération mondiale pour la santé mentale. Introduction de Margaret
Mead. UNESCO. Paris,1953. p.7
24. Para um aprofundamento leia-se Almeida, Alfredo Wagner B. de – “Cowboy anthropology” :
nos limites da autoridade etnográfica”. Revista ENTRERIOS n.1. Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal do Piauí. 2018 pp.8-35

28
a antropologia aplicada norte-americana, praticada durante e a partir
do fim da II Guerra, se fizeram sentir nas diretrizes políticas e nos modi
operandi adotados por diferentes agencias da ONU. Segundo Brelet os
dois últimos livros de Malinowski (Uma teoria científica da cultura e
Liberdade e Civilização) propiciaram condições para se compreender
inclusive a criação das ONU (Nações Unidas) e o que ela designa
como as bases de uma “nova civilização”, que contemple Ásia, África e
Américas Central e do Sul.

Para Malinowski sem a participação das comunidades atingidas,


nenhum projeto de desenvolvimento será viável a longo prazo. Este
princípio caracteriza as políticas modernizadoras preconizadas pela ONU
após sua criação, segundo a interpretação de Claudine Brelet (1995:40).
Nos termos de sua formulação a premissa de “participação comunitária”
objetivaria afetar o mínimo possível o sistema de valores tradicionais das
comunidades atingidas. Isto implica em renunciar a querer instaurar a
todo custo o “progresso” num tempo que a categoria desenvolvimento
reinava absoluta e consistia numa ponta de lança das ações oficiais.

4 - ACTION ANTHROPOLOGY

Sol Tax, por seu turno, questiona a intervenção desenvolvimentista


de antropólogos que buscam impor, em nome do progresso, iniciativas
de modernização às comunidades indígenas. As críticas incidem no
programa norte-americano para os países subdesenvolvidos denominado
de “Aliança para o Progresso”, que fortalecia mediadores políticos
em detrimento de um projeto autonomista. As longas experiencias
de campo de Tax na Guatemala, em Panajachel, no Lago Atitlán, e
com os indígenas Meskwaki, no Projeto Fox, facultaram condições de
possibilidades para que ele pudesse repensar a modalidade de descrição
etnográfica e de que lugar social os antropólogos poderiam trabalhar em
colaboração efetiva com os movimentos indígenas para executá-la de
maneira mais coadunada com realidades localizadas e com a consciência
da necessidade pelos próprios indígenas. Deste modo, Tax vê com

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
29
ceticismo a consolidação de uma profissão de “antropólogos práticos”,
não obstante constatar que tanto o governo como instituições privadas
façam uso de conhecimentos antropológicos. Chama a atenção para
outras possibilidades de pesquisa preconizando tal posição:

“Este nuevo método de investigación, que Paul Broca no


pudo predecir, recibe com frecuencia el nombre de “antropologia
de la acción”. Aqui no cabe la distinción hecha de ordinário entre la
investigación pura y la investigación aplicada. La antropologia de la
acción requiere la independência intelectual y politica característica
de la investigación pura; depende para su mantenimiento y funciones,
del apoyo econômico y social que suministram las universidades y la
fundaciones más bien que los suscriptores y los gobiernos. Pero requiere
por igual que los antropólogos abandonem sus torres de marfil y, sin
perder su objetividade, penetrem em la vida pública de um sector social
que haga para ellos las veces de laboratório. (...)Al igual que um médico
respecto de sus pacientes, el antropólogo assume los problemas de
uma comunidade por entero como si fueran los suyos próprios. Puesto
que jamás conseguirá el êxito absoluto, deberá estar preparado para la
desilusión y el fracasso y ni siquiera podrá aligerar su pena compartiendo
la culpa con otros.” (Tax, 1964: 303,304)

Os críticos de Tax pontuam que haveria um “déficit de


reflexividade” (Cardoso:2004) na “antropologia da ação”, entretanto,
quando nos deparamos com Tax enunciando as dificuldades e
procedendo a um retorno autocritico sobre sua própria prática de
pesquisa somos impelidos a relativizar esta assertiva.

Em resumo, enquanto Malinowski preconizava produzir um


conhecimento antropológico do ponto de vista dos “nativos” e os
partidários da “antropologia aplicada” buscavam demonstrar a utilidade
da antropologia para os governos implementarem suas políticas, os
antropólogos referidos à action anthropology, notadamente Sol
Tax25 viam os indígenas como protagonistas e se autoproclamavam
25. Vide Sol Tax – “Los Servicios de la Antropologia” in S. Tax (ed) – Antropologia uma nueva
visión. Cali- Colombia. Editorial Norma. s/d pp 293-304 (1ª.ed em inglês 1964- Horizons on

30
como independentes e a serviço dos povos indígenas, empenhados em
combater práticas genocidas e as desumanidades do colonialismo.

5- ESQUEMAS EXPLICATIVOS DE SITUAÇÃO COLONIAL

O trabalho com os conceitos que imprimiu uma dinâmica


interpretativa mais pertinente no pós II Guerra concerne ao já mencionado
processo de descolonização, que implicou na fabricação de noções
operacionais sobre a ação colonial face à complexa passagem de etnia para
nação no novo mapa produzido pelos estrategistas das grandes potencias,
que redesenharam a partição dos continentes africano e asiático ou
foram levados a fazê-lo a partir da intensificação das lutas desencadeadas
pelos movimentos de libertação nacional. Concomitantemente verifica-
se a emergência e a imposição de categorias como “desenvolvimento”,
“progresso” e “mudança social” pelo discurso de planejadores e pelos atos
de Estado das grandes potencias, facultando meios para a persistência de
uma condição de subalternidade. O uso destas categorias que, combatem
radicalmente tudo o que for considerado “tradicional”, “primitivo”, “tribal”
e “atrasado” pelas políticas sanitárias, de infraestrutura, de fortalecimento
comunitário e de educação, possibilitou o estabelecimento de uma nova
divisão, apoiada na economia política, não mais entre colonizadores
e colonizados, mas entre “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”. A
redefinição de categorias como “desenvolvimento”, atrelada à satisfação
de necessidades essenciais; “progresso”, vinculada a inovações tecnológicas
e sociais; e “mudança social”, explicando o advento de novas nações
soberanas em detrimento das autoridades tribais; delineia um repertório de
novas demandas aos antropólogos. Consolida-se uma expectativa oficiosa
do papel dos antropólogos como eficazes agentes de desenvolvimento,
teorizada pelos partidários da antropologia aplicada. George Foster é um
dos principais formuladores desta assertiva, repensando as necessidades
sanitárias, educacionais, de transporte e econômicas como indicadores para
a implementação de políticas governamentais. Foster utiliza comumente a
expressão “antropólogos do governo”.
Anthropology)

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
31
A conjuntura do pós- II Guerra, classificada usualmente
como período de “Guerra Fria”, incentiva um uso antropologia
como conhecimento útil e como uma relevante orientação prática
para consolidação de projetos, programas e planos governamentais
de “desenvolvimento”. Persiste, portanto, o pressuposto de utilizar o
conhecimento antropológico para fins eminentemente práticos, mas
vinculado a políticas governamentais específicas e publicizadas como
modernizadoras.

Seis anos após o fim da II Guerra mundial e quatro anos depois


da independência da Índia e do assassinato de Ghandi e em plena guerra
de libertação nacional na Indochina, em 1951, quando G. Balandier
fazia a crítica das abordagens teóricas sobre o colonialismo, a UNESCO
apoiava um elenco de pesquisas e ensaios sobre as relações raciais26.
A este tempo G. Balandier trabalhou o conceito de situação colonial.
Para tanto ele parte da noção de ação colonial, falando em 1951, em
pleno processo de descolonização, os mapas dos continentes africano e
asiático sendo redesenhados mediante uma nova Partição da África e da
Ásia, se considerarmos a anterior, a Conferencia de Berlim em 1884-85,
a primeira grande partição.

Balandier27 abre seu artigo “A Situação Colonial: uma abordagem


teórica.” assim:
“Um dos eventos mais marcantes da história recente da
humanidade é a expansão, pelo globo, da maioria dos povos
europeus. Isto provocou a perseguição – quando não
o desaparecimento- de quase todos os povos ditos
atrasados, arcaicos ou primitivos. A ação colonial, ao longo
do século XIX, é a forma mais importante, a mais repleta

26. Eis alguns exemplares desta coleção da UNESCO, publicados entre 1950 e 1952: Leiris, Michel –
Race and Culture; Rose, Arnold M. – The Roots of Prejudice; Comas, Juan – Racial Miths; Klineberg,
Otto – Race and Psychology; Dunn, L.C. - Race and Biology; Levi-Strauss, Claude – Race et Histoire,
1952. Além destes títulos pode-se mencionar a pesquisa coordenada por Charles Wagley e Thales de
Azevedo sobre as relações raciais na área rural da Bahia.
27. Este artigo de G. Balandier publicado originalmente em 1951 nos Cahiers Internationaux de
Sociologie. Vol XI. Paris. Pp 44-78. 1951 foi publicado 63 anos depois, em dezembro de 2014, pelos
Cadernos CERU v.25 n.1. 02 (tradução de Bruno Anselmi Matangrano).

32
de consequências, tomadas por esta expansão europeia. Ela
perturbou brutalmente a história dos povos a ela submetidos,
impondo-lhes, ao se estabilizar, uma situação de um tipo bem
particular. Não se pode ignorar este fato, que condiciona não
somente as reações dos povos “dependentes”, mas explica,
ainda, certas reações de povos recentemente emancipados. A
situação colonial traz problemas ao povo subjugado – que lhes
responde na medida em que certo “jogo” lhe é concedido -, à
administração que representa a suposta nação tutora (e defende
seus interesses locais), ao Estado recentemente criado sobre
o qual pesa toda uma inércia colonial. Atual, ou em fase de
liquidação, esta situação gera problemas específicos que devem
provocar a atenção do sociólogo.” (Balandier, 2014 [1951])

Estes povos dominados, cuja culturas são consideradas primitivas


ou atrasadas integram o campo de pesquisa da antropologia. Enfatizada
pelo pós-guerra a emergência deste problema ganha destaque em sua
plenitude e abrange, em todo seu alcance, as lutas de libertação nacional
seja na Indochina, na Índia ou na África.

Balandier procede a uma síntese das duas principais abordagens


sobre a ação colonial e abre possibilidades para que possamos interpretar
os autores e os temas referidos aos debates em torno do processo de
descolonização e a compreender o que propõe como situação colonial.

“De um lado pesquisadores obcecados em perseguir o


etnologicamente puro, o fato inalterado e conservado
miraculosamente em seu primitivismo ou pesquisadores
exclusivamente ávidos pela especulação teórica meditando
sobre o destino das civilizações ou sobre as origens da
sociedade; de outro lado pesquisadores engajados em múltiplas
investigações práticas, e de alcance restrito, contentando-se com
um empirismo cômodo quase sem ultrapassar o nível de uma
técnica.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
33
Entre estes dois extremos, a distância é longa – ela conduz dos
confins da antropologia dita “cultural” aos da antropologia
dita “aplicada”. De um lado a situação colonial é rejeitada,
posto que perturbadora ou só é encarada como uma das causas
das mudanças culturais; de outro, só é considerada sob alguns
de seus aspectos – aqueles que dizem respeito de maneira
evidente ao problema tratado – e não aparece atuando enquanto
totalidade. Entretanto todo estudo atual sobre as sociedades
colonizadas, que visa a um conhecimento da realidade presente
e não a uma reconstituição de caráter histórico, que não sacrifica
a especificidade em prol da comodidade de uma esquematização
dogmática, só pode ser feito pela referência a este complexo que
nomeamos de situação colonial.” (Balandier, 2014 [1951].

Ao analisar criticamente, nesta ordem, pelo menos dois dos


principais esquemas explicativos – antropologia cultural e antropologia
aplicada - sobre as práticas e os significados de situação colonial, Balandier
busca enfraquecer as posições extremas e preponderantes no campo
da antropologia, visando propiciar um entendimento mais acurado
e plural do repertório de atos e falas em jogo desde 1921 e abrindo
possibilidades de aprofundamento das discussões sobre os diferentes
planos de debates intrínsecos ao campo da produção antropológica.

6- REDEFINIÇÕES DE PRÁTICAS DE PESQUISA E DE


ABORDAGENS

Numa perspectiva de síntese, que pode servir de conclusão para


este artigo, pode-se então mapear, de maneira resumida, as proposições
em debate no campo da produção antropológica a partir de 1921 e até
a década 1960-70. Correspondem a pelo menos cinco principais modi
operandi referidos à dinâmica da relação entre o exercício do trabalho
antropológico e a ação colonialista. Eles se entrelaçam de maneiras
diversas em polêmicas peculiares e atinentes a determinadas situações
históricas. Embora tenha escolhido apresentá-los numa sequência

34
temporal percebo que se atém a contextos que não necessariamente
se sucedem linearmente, porquanto coexistem ou são coetâneos. De
maneira breve e pouco detida passo a apresentá-los, a saber:

i)antropólogos como compondo o corpo de administradores a


serviço da ação colonial;

ii) antropólogos que, segundo Malinowski, em 1929, deveriam


conhecer antropologicamente as formas de organização social e política
dos “nativos”, relativizar seus interesses e proceder a interpretações a
partir do ponto de vista dos próprios indígenas, inclusive se empenhando
na formação de antropólogos indígenas.

iii) Antropólogos que, a partir de 1941, no contexto dos


esforços de guerra, passaram a trabalhar na esfera militar, a serviço
dos governos aliados contra os seus inimigos nazistas. Esta vertente
perpassa as guerras e se atém também às denominadas “insurgências”,
evidenciando sua atualidade.

iv) Antropólogos que dispondo dos conhecimentos obtidos em


trabalho de campo com povos e comunidades indígenas e camponesas
desdobraram suas atividades no pós-guerra em ações coadunadas com
as “políticas de desenvolvimento”, objetivando a modernização de
áreas rurais e a chamada “mudança social” com uso difuso de inovações
tecnológicas.

v) E, finalmente, antropólogos, que através de pesquisas


etnográficas, passaram a se posicionar como a serviço de povos indígenas
e camponeses, fortalecendo efetivamente as suas formas político-
organizativas intrínsecas, assim como as lutas autonomistas, além de
denunciarem sistematicamente genocídios e violências praticadas contra
tais povos. Esta perspectiva, em seus desdobramentos, abre caminho
para uma ruptura radical com os pressupostos colonialistas, uma vez
que incorpore a reflexividade a seus vetores de ação. A via de acesso
à cesura com o colonialismo encontra-se, portanto, aberta, de maneira
dinâmica e em construção.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
35
Uma das aproximações que estabelece uma interlocução tensa
com esta vertente teórica corresponde ao chamado “materialismo
cultural”, delineado por Marvin Harris, que ganha força no fim dos anos
1950-60, sobretudo a partir do trabalho de campo em Moçambique,
explicando fenômenos culturais com fundamento em realidades
econômicas das diferentes sociedades. Propõe que as narrativas míticas
seriam resultantes de necessidades do processo produtivo em cada uma
das unidades sociais pesquisadas. Neste sentido para Harris a pesquisa
antropológica deveria se basear no estudo das condições materiais
das unidades sociais referidas, pois, elas é que condicionariam modos
de pensar e costumes. Esta ênfase analítica, a despeito de ser uma
interlocutora constante de diferentes abordagens, não resultou numa
expansão significativa nem tão pouco conseguiu se consolidar enquanto
um esquema interpretativo, capaz de delimitar um determinado estado
do campo da produção antropológica. Em virtude disto não chega a se
constituir num pensamento de escola, com “breviário” e seguidores,
embora delineando com certa precisão as modalidades de construção
social de territórios específicos.

Nem bem são concluídas as lutas pela libertaçāo nacional em


1964, à exceçāo das colônias portuguesas que sào tardias, e ocorrem
em 1974 -75, iniciam-se as mobilizaçōes universitárias contra a guerra
do Vietnam e as polemicas em torno da responsabilidade científica
e social dos antropologos, descortinando novo capítulo da história
da antropologia. A Assembleia Geral da ONU em 1960 adotou a
“Declaração sobre a concessão de Independencia dos Paises e Povos
Coloniais”.

Em 1990 a mesma Assembleia proclamou a “Década


Internacional pela Erradicação do Colonialismo” e em 2001 proclamou
em continuidade a Segunda Década Internacional pela Erradicação
do Colonialismo. Como a ONU considera que ainda há 17 territórios
colonizados para a década que começa em 2011 a ONU declarou a
Terceira Década para Erradicação do Colonialismo. Uma luta constante,
conforme se pode verificar, que traz dúvidas e incertezas.

36
TRABALHO DE CAMPO E “ESTUDOS DE
COMUNIDADES”: DEBATES ANTROPOLÓGICOS PÓS- II
GUERRA MUNDIAL

Itala Tuanny Rodrigues Nepomuceno28

Introdução

No pós-segunda guerra mundial, com o processo de


descolonização na Ásia e na África e com o advento de programas de
cooperação internacional, antropólogos, sobretudo norte-americanos,
dirigiram-se às “novas nações” e a países então classificados como em
“desenvolvimento”, que haviam se tornado independentes em outros
momentos históricos, tais como paises das Américas Central e do Sul e o
México (ALMEIDA, 2018). Joseph R. Gusfield, no livro “Community:
a critical response” (1975), descreve bem esse movimento, ao mesmo
tempo em que analisa, nesse contexto sociológico, a emergência de
um uso social específico do conceito de “comunidade”. Se no século
XIX, teorias sociológicas consideradas clássicas, como a teoria da
comunidade de Ferdinand Tönnies, discutida na seção 1 deste artigo,
valoravam positivamente a comunidade29, onde a vida era considerada
“mais forte e mais viva entre os homens” (TÖNNIES, 1973, p. 98);
no pós-2ª Guerra esse conceito passa a compor esquemas explicativos
de caráter evolucionista, no âmbito de teorias da modernização (ou
do desenvolvimento) que opunham o “tradicional” (associado ao
comunitário) ao “moderno” (societário) (GUSFIELD, 1975, p. 18),
como discutido na seção 2.

28. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do


Amazonas (PPGAS/UFAM). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas
(FAPEAM).
29. Gusfield (1975), ao elaborar uma história social do conceito de comunidade, chama atenção para a
valoração, por vezes positiva, por vezes negativa, da “vida em comunidade” pelos cientistas sociais. No
século XIX, por exemplo, a valoração positiva atribuída por autores como Tonnies contrastava com a
valoração relativamente negativa atribuída por intelectuais como Karl Marx (NISBET, 1998).

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
37
No Brasil, antropólogos vindos dos EUA, especialmente
nas décadas de 1940 e 1950, como Charles Wagley, autor de Uma
comunidade amazônica: estudo do homem nos trópicos
(WAGLEY, 1977),cuja primeira edição em ingles data de 1953, que
viria a ser considerada uma referência imprescindível para os estudos
amazônicos; Donald Pierson, autor de Cruz das Almas, a Brazilian
Village (1951) e Emilio Willems, autor de Cunha, Tradição e
Transição em uma cultura rural do Brasil (1947), produziram -
a partir de suas inserções na academia e em diferentes programas
governamentais30 - monografias em que descreveram povoados rurais
com distintas formações históricas, econômicas e geográficas, com o
propósito de investigar problemas como “mudança social”, mas também
de prescrever intervenções que promovessem “desenvolvimento”
em áreas como saúde, educação e economia (GUIDI, 1962). Inclue-
se nesta lista T.J. Kalervo Oberg, canadense que adotou a cidadania
norte-americana e que tal como Pierson fez doutorado na Universidade
de Chicago e também como Pierson e Willems31 lecionou na Escola
Livre de Sociologia e Política, autor de Toledo: a Municipio on the
western frontier of the State of Parana (1957). Kalervo Oberg por
dois diferentes períodos na década de 1930-40 esteve na London School
of Economics (LSE) então dirigida por B.Malinowski e voltada para a
educação de lideranças africanas..Náo é incluida nesta listagem a tese
de Marvin Harris, realizada em comunidade na Bahia, defendida em
30. Como nota Jackson (2009), a realização dos “estudos de comunidades” no Brasil associou-se a dois
contextos acadêmicos específicos: “o primeiro, centralizado na Escola Livre de Sociologia e Política
(ELSP), teve Emílio Willems e Donald Pierson como mentores e Kalervo Oberg como professor. O
segundo resultou do acordo firmado entre o estado da Bahia e a Columbia University e foi coordenado
por Charles Wagley e Thales de Azevedo”. Na equipe montada por Wagley havia vários antropólogos
norte-americanos dentre os quais vale destacar Marvin Harris. Os pesquisadores que produziam esses
estudos possuiam vasta experiencia de pesquisa como é o caso de Wagley, que coordenou a missão téc-
nica norte-americana, que fazia parte dos esforços de guerra dos EUA, constituída após acordo assinado
em 1942, e que previa o fornecimento, pelo Brasil, de matéria-prima (como látex–emulsão de borracha
e resina, castanha e amêndoa de coco babaçu). Precisamente, trabalhou no Serviço Especial de Saúde
Pública (SESP), encarregado de contribuir com o bom estado físico da força de trabalho da região, so-
bretudo dos extrativistas (ALMEIDA, 2018).
31. Nas aulas do Prof. A. Wagner, quando discutimos os denominados “estudos de comunidade” foi
constatada na trajetória acadêmica de Willems, que também foi da Cadeira de Antropologia da Univer-
sidade de São Paulo e realizou pesquisas, publicando em colaboração com Gioconda Mussolini - que se
transferiu, em 1944, da Escola Livre de Sociologia e Politica para a USP - o livro Buzios Island: a Caiçara
Community in Southern Brazil, publicado nos Estados Unidos (Washington D.C.), em 1952, que foi
traduzido posteriormente, em 2003, para o português.

38
1953, na Universidade de Columbia, e tornada livro, em 1956, intitulado
Town and Country in Brazil. O período correspondente a estas
pesquisas trata-se de um momento em que antropólogos eram definidos
e podiam perceber-se como “agentes do desenvolvimento”, posição
identificada com a denominada “antropologia aplicada” (ALMEIDA,
2018). Como será visto na seção 3, em seu conjunto, esses e inúmeros
outros autores adotaram o modelo de investigação denominado
“estudo de comunidade”, que emergiu na segunda década do século
XX, nos EUA, desenvolvido em boa medida pela Escola de Chicago,
e que era apresentada, por alguns autores, como uma ruptura com a
concepção etnográfica “culturalista” de Franz Boas. Esta concepção era
criticada por antropólogos como Robert Redfield, o qual defendia que
a abordagem etnográfica boasiana seria incapaz de apreender mudanças
que rompessem “o tradicional modo de vida das ‘tribos’ investigadas”,
e estaria impelida a um conhecimento limitado destas unidades sociais
(tribos, povos, comunidades, grupos) investigadas. Esse momento
marca a distinção de domínios e problemas próprios de investigação
das “sociedades primitivas”, à parte dos estudos dedicados a outras
unidades sociais, como as sociedades camponesas, objetos frequentes
dos “estudos de comunidade” e sobre as quais a antropologia vinha
aumentando gradativamente seu interesse em diferentes continentes.

Os “estudos de comunidade”, como abordados em vasta


bibliografia acadêmica, foram amplamente realizados no Brasil entre as
décadas de 1940 e 1960 e se tornaram objeto de críticas que suscitaram
intenso debate, em um momento em que as ciências sociais estavam se
consolidando e em que havia grande preocupação com a interpretação
das transformações sociais em curso no país. O que queremos enfocar,
ainda que não de maneira exaustiva, na seção 4 desse artigo, são as
discussões teórico-metodológicas sobre o trabalho de campo que
ocuparam um lugar proeminente nesse debate, desenvolvidas, como
observa Almeida (2018), numa quadra desenvolvimentista em que os
trabalhos dos antropólogos refletiam abordagens diversas que gravitavam
em torno de uma ideia de “progresso”. Como arriscaremos dizer, a

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
39
crítica brasileira aos “estudos de comunidade” não se dissocia da crítica
à própria noção de comunidade operada nesse modelo de investigação,
que remetia a uma unidade social como a little community de Robert
Redfield, com seus atributos de ser “pequena” (o lugar das relações face-
a-face), “distinta” e relativamente “autossuficiente” (REDFIELD, 1989,
p. 4), constituindo-se um locus de investigação privilegiado. Além disso,
chama-se a atenção para a dimensão política deste debate, no que diz
respeito à descrição etnográfica dessas comunidades, frequentemente
correspondentes a “comunidades rurais”, seja na América Central,
incluindo o México, ou na América do Sul, seja na Africa ou na Ásia,
em suas relações com a sociedade nacional envolvente que estaria em
“desenvolvimento”. Na situação brasileira este debate remete-nos a
críticos, com vasta experiência de pesquisa, como Florestan Fernandes,
Gioconda Mussolini e Octavio Ianni.

1- O conceito de comunidade nas teorias sociológicas


consideradas clássicas

Se assumirmos, como Gusfield (1975), que conceitos podem


ser considerados produtos da imaginação humana para ajudar a “pensar
e a falar” sobre um determinado assunto, “comunidade” é um termo
analítico que - junto a seu par dicotômico, “sociedade” - tem sido usado,
ao longo de mais de um século, como instrumento para pensar “tipos”
de associações e relações sociais (GUSFIELD, 1975, p. 11). Ao examinar
o conceito de comunidade em sua história social32 e em seus usos em
diferentes contextos sociológicos, o autor observa que sua emergência
se deu em um campo científico estruturado em meio a transformações
sociais profundas ocorridas no século XIX, em decorrência da revolução
industrial e das revoluções americana e francesa, com suas novas doutrinas
de cidadania, igualdade e direitos individuais. O fundamento desse
conceito, segundo o autor, foi sendo produzido por pensadores oriundos
32. Segundo o autor, na introdução de Community: a critical response, sobre o objetivo do livro: “This
is what I am trying to do with the word ‘community’ in this essay: to explore and examine its use in
sociological contexts, in the light of its historical development” (GUSFIELD, 1975, p. xv).

40
de diferentes países europeus, ainda sob efeito da derrocada de uma
velha ordem social, feudal e agrária, que estaria dando lugar à sociedade
“moderna”, urbana e industrial. Em comum, essas interpretações
apontavam para “transições”, em que aspectos dessa sociedade moderna
nascente dissolveriam um conjunto de visões de mundo e modos de
relações sociais, fosse na Europa, por força das revoluções industriais e
democráticas, fosse em outras sociedades:
“Karl Marx, escrevendo em O Manifesto Comunista (1848), viu
que o mundo do feudalismo deu lugar à sociedade mercantil do
capitalismo industrial”. Sir Henry Maine, em Ancient Law, e
depois em Village Communities of the East and West (1871),
visualizou a transição de uma forma de status vinculada à
tradição para uma de contrato individual. Em sua lei dos três
estágios, August Comte (1830-92) descreveu a humanidade
como tendo passado pelos estágios religiosos e metafísicos
chegando, finalmente, ao estágio positivo (científico). Em
vários trabalhos, Herbert Spencer (1857) apresenta a sua lei da
evolução social: a sociedade estava mudando de uma estrutura
homogênea para outra de estrutura heterogênea em que a troca
era a tônica das relações humanas. Émile Durkheim (1887)
expressou a transição como de uma solidariedade mecânica
para uma orgânica. Escrevendo no início do século vinte, Max
Weber usou os conceitos de autoridade tradicional e autoridade
legal-racional para expressar as grandes mudanças que ele via no
período moderno (GUSFIELD, 1975, p. 4, tradução da autora).

Como se pode observar pelo excerto acima, esse conjunto


de autores contribuiu para a estruturação de um campo de múltiplas
oposições33, tais como entre tradicional/autoridade racional; dom/troca;
mágico/científico; solidariedade mecânica/solidariedade orgânica, dentre
outras. Ferdinand Tönnies (1855-1936), em seu livro clássico intitulado

33. Como observa Gusfield (1975), essas oposições não são de natureza puramente lógica, podendo ser
mais bem compreendidas como a projeção de conflitos imaginados entre seus pólos sobre o mundo
real.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
41
“Gemeinschaft und Gesellschaft”, publicado em 1887, é reconhecido como o
teórico que teria dado “às gerações vindouras os termos mais amplamente
utilizados para definir e discutir a perspectiva comum desses pensadores”:
Gemeinschaft (comunidade) e Gesellschaft (sociedade) (Ibid. p. 4)34. O
conteúdo conferido por Tönnies a esses dois termos aglutinou, em cada
um deles, boa parte dos pólos dessas oposições; mais do que isso, esses
dois termos passaram a designar - segundo um modelo interpretativo
dicotômico, em que um termo não pode ser compreendido na ausência
do outro - dois “tipos” distintos de associações, sobre as bases de uma
filosofia da história que parte das “comunidades” para as associações
modernas (societárias) (MOCELLIM, 2011).

Importadestacarqueoconceitodecomunidadeeseupardicotômico,
sociedade, não foram elaborados e usados apenas como instrumentos
para descrever e analisar associações comunitárias/societárias. Prestaram-
se, também, a usos sociais por intelectuais interessados na avaliação de
seu próprio presente, “sua direção e significado” (GUSFIELD, 1975, p.
2). Assim, Tönnies e seus contemporâneos compuseram um acirrado
campo de debates que envolvia não só análises científicas, mas também
defesas e ataques apaixonados ao “tradicional” (comunitário) e ao
“moderno” (societário), exprimindo juízos sobre o que seriam os vícios
e as virtudes de cada um. Em um dos lados desse campo de debates,
Tönnies, comumente identificado com o romantismo alemão, valorava
positivamente a comunidade, que identificava com a “vida no campo”,
onde “ela é mais forte e mais viva entre os homens”. Em suas palavras,
“a comunidade é a vida comum, verdadeira e durável”, “um organismo
vivo”, enquanto “a sociedade é somente passageira e aparente”, um
“agregado mecânico e artificial” (TÖNNIES, 1973, p. 98). Intelectuais
como Karl Marx, por outro lado, divergiram das implicações valorativas
que esse contraste envolve (NISBET, 1982 [1973]).

34. O texto de Tönnies citado neste artigo intitula-se “Comunidade e sociedade como entidades típico-
ideais” (TÖNNIES, 1973; In: FERNANDES, 1973) e foi traduzido para o português por Carlos Rizzi, para
publicação no livro Comunidade e Sociedade: leituras sobre problemas conceituais, metodológicos
e de aplicação, primeiro entre quatro volumes de uma coletânea organizada por Florestan Fernandes
visando oferecer um “quadro de referência teórica integrativo” para o ensino da sociologia no Brasil.

42
1.1- A “teoria da comunidade (Gemeinschaft)” segundo
Tönnies

A presença de Tönnies nos livros de autores clássicos, como


George Simmel e Max Weber, tem levado a esforços recentes de releitura
de sua obra, que se encontra nos fundamentos da sociologia alemã (cf.
ARENARI, 2007). Dado o peso, a originalidade e a preponderância
de seu trabalho sobre seus sucessores, decidimos expor de forma um
pouco mais extensa em comparação a outros autores, o conceito de
“comunidade” como tipo ideal formulado por Tönnies, abordando,
ainda, conceitos correlatos como “vontade comum”, “compreensão”
e “concórdia”.

Para o pensador alemão, a Gemeinschaft representa um tipo de


associação formada por relações reciprocamente positivas; um grupo
integrado, locus da “vida real e orgânica” e de tudo o que é “confiante,
íntimo, que vive exclusivamente junto” (TÖNNIES, 1973, p. 97). Um
ponto central que importa destacar da teoria tonniesiana é o de que a
comunidade pressupõe uma “unidade completa das vontades humanas”
(TÖNNIES, 1973, p. 98), unidade cuja possibilidade se apresenta, “em
primeiro lugar e de maneira mais imediata, nos laços do sangue; em
segundo lugar, na aproximação espacial e, finalmente, para os homens,
na aproximação espiritual” (Ibid, p. 104).

O “arquétipo” da comunidade de Tönnies “historicamente e


simbolicamente, é a família” (NISBET, 1967, p. 48 apud MOCELLIM,
2011, p. 107). A maneira mais vigorosa pela qual essa modalidade de
associação, considerada como “afirmação imediata e recíproca”, se
manifestaria, seria através de três tipos de relações: 1. a relação entre
uma mãe e seu filho; a relação entre um homem e uma mulher, enquanto
esposos e 3. relação entre irmãos e irmãs (TÖNNIES, 1973, p. 98).

É certo que Tönnies deduz sua teoria da comunidade a partir de


uma certa naturalização das relações, concebendo a “Gemeinschaft como
forma natural de sociabilidade”, a partir de seus conceitos de vontade,

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
43
Kürwille (vontade arbitrária) e Wesenwille (vontade essencial)35, denotando
a “tentativa de achar na vida interior (psicológica) do indivíduo
os pressupostos do desenvolvimento das formas de socialização”
(ARENARI, 2007, p. 39). Em suas próprias palavras:

“A teoria da comunidade se deduz, segundo as determinações da unidade


completa das vontades humanas, de um estado primitivo e natural que, apesar de uma
separação empírica e que se conserva através desta, caracteriza-se diversamente segundo
a natureza das relações necessárias e determinadas entre os diferentes indivíduos que
dependem uns dos outros. A fonte comum dessas relações é a vida vegetativa, que
começa com o nascimento. É um fato que as vontades humanas são e permanecem
unidas, ou assim se tornam necessariamente, na medida em que cada um corresponde
a uma disposição corporal que resulta de sua origem ou do sexo” (TÖNNIES,
1973, p. 98).

As metáforas biológicas e as analogias com um “ciclo de vida”,


usadas pelo autor para referir-se à comunidade como associação viva e
orgânica “dos seres”, sugerem um sentido diferente daquele operado nas
analogias entre sociedade/comunidade e a ideia mecânica de organismo.
Apesar de alinhar-se com o procedimento de naturalização, tornado tão
comum no século XIX para legitimar as ciências sociais, sua noção de
“organicidade” pode ser entendida como uma harmonia do homem
com a sua natureza, tendo a vontade essencial (Wesenwille) “uma forte
influência do corpo na motivação das vontades” (ARENARI, 2007,
p. 46). Difere-se, portanto, da noção de orgânico em Durkheim em
sua definição de “solidariedade orgânica”, que enfatiza a organização
35. Conforme Arenari (2007, p. 46): “A Vontade Essencial (Wesenwille) será caracterizada por todas as
atitudes espontâneas da vida humana, atitudes que ocorrem sem que haja uma premeditação sofisticada,
onde a objetivação de fins não esteja muito clara. A motivação é dada em função de uma organicidade,
entendendo aí organicidade como a harmonia da natureza, e não os desejos particulares. Há na Vontade
Essencial (Wesenwille) uma forte influência do corpo na motivação das vontades. Inversamente ao
pensamento estabelecido na Europa ocidental, o instinto não representa apenas algo negativo, mas
positivo na sociabilidade humana, na medida que este (instinto) é depositário da memória da espécie,
conferindo unidade a mesma. Esta vontade pautada no instinto que se manifesta no prazer, é a primeira
instância das três “subvontades” que formam a unidade da Vontade Essencial. Tönnies chama-a de
Vontade Vegetativa”.

44
externa advinda da divisão do trabalho e da diferenciação funcional,
sem referências ao mundo interior das “vontades humanas”, como faz
a teoria tonniesiana.

Apesar de a família ser o “modelo arquetípico” na teoria em


discussão, a noção de comunidade de Tönnies estende-se a relações
como as de amizade e vizinhança. Se a família ganha proeminência é
na medida em que, por sua natureza, ela seria o locus mais bem acabado
do equilíbrio entre a “vontade comum” e a “vontade essencial”36
(Wesenwille). Assim, “vontade comum, educadora e diretriz” - “enquanto
fator importante e fora das forças e das tendências congênitas” capaz
de formar “qualquer hábito individual” ou “qualquer maneira de
sentir” - poderia emanar não só do “espírito de família”, mas também
de “qualquer espírito semelhante ao espírito de família ou que age
à sua maneira” (TÖNNIES, 1973, p. 102). Essa ideia importa para
entendermos dois conceitos correlatos ao de comunidade em Tönnies,
que podem se projetar além dos domínios do parentesco: os conceitos
de “compreensão” e “concórdia”.

A compreensão (consensus)37, entendida como “sentimentos


recíprocos comuns” enquanto “vontade própria de uma comunidade”,
baseia-se em um conhecimento íntimo uns dos outros e resulta da
participação direta de um ser na vida do outro, tornando-se tão mais
verdadeira quanto mais se assemelham as experiências, ou “quanto mais
o natural, o caráter e as maneiras de pensar forem da mesma natureza,
ou de natureza homogênea” (Idem, p. 103). A língua – não inventada e
que, para Tönnies, é harmonia viva, uma “mediação da alma” originada
da “confiança, da profundidade do sentimento, do amor [...]” – seria o
“órgão da compreensão” (Idem, p. 103). (Idem, p. 104). A compreensão,

36. Para Tönnies, a “comunidade de vontade existe também nos maiores grupamentos como expressão
psicológica da ligação do sangue, embora mais dissimulada e aparecendo entre os indivíduos apenas sob
a forma orgânica” (TÖNNIES, 1973, p. 105).
37. A compreensão é um elemento constitutivo das “três leis principais da comunidade” de Tönnies,
que são: “1) pais e esposos se amam reciprocamente ou se habituam facilmente uns aos outros, falam
e pensam juntos de bom grado e frequentemente; da mesma forma os vizinhos e outros amigos; 2)
Entre aqueles que se amam (etc.), existe a compreensão; 3) Aqueles que se amam e se compreendem
permanecem e moram juntos, regulam sua vida comum” (TÖNNIES, 1973, p. 104. Grifos nossos).

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
45
agindo nas “relações e ações particulares”, e a concórdia, em sua “força
e natureza gerais”, seriam duas faces da mesma coisa, sendo a concórdia
“a forma geral da vontade comum”, tornada tão natural como a própria
língua (Idem, p. 104). Em outras palavras: compreensão e concórdia
seriam fundamentais na regulação da vida social comunitária, gerando
a fixação de regras de maneira tão espontânea que elas simplesmente
“crescem e florescem” (Ibid. p. 105). Elas seriam o contrário das formas
de regulação “societárias” fundadas no “pacto” ou na “convenção”,
unidades fabricadas e decididas, promessas recíprocas entre pessoas
com vontades ou opiniões essencialmente conflitantes.

Tönnies alcançou o século XX. A clássica distinção de Max


Weber entre “relações comunitárias” e “relações associativas”, como
tipos ideais, atesta isso. Enquanto as primeiras ocorreriam quando a
ação social repousa no sentimento subjetivo de pertença a um mesmo
grupo; as segundas, por sua vez, ocorrem quando a atitude na ação social
se pauta em interesses e acordos racionais, livremente pactuados:

Uma relação social denomina-se “relação comunitária” quando e na


medida em que a atitude na ação social - no caso particular ou em média ou no
tipo puro - repousa no sentimento subjetivo dos participantes de pertencer (afetiva ou
tradicionalmente) ao mesmo grupo.

Uma relação denomina-se “relação associativa” quando e na medida


em que a atitude na ação social repousa num ajuste ou numa união de interesses
racionalmente motivados (com referência a valores ou fins). A relação associativa,
como no caso típico, pode repousar, especialmente, (mas não unicamente) num acordo
racional, por declaração recíproca. Então a ação correspondente, quando é racional,
está orientada: a) de maneira racional referente a valores, pela crença do compromisso
próprio; b) de maneira racional referente a fins pela expectativa da lealdade da outra
parte (WEBER, 2004[1922], p. 25).

46
Apesar de a terminologia usada por Weber lembrar a distinção
entre comunidade e sociedade estabelecida por Tönnies, o conteúdo dessa
distinção entre os dois autores não é necessariamente o mesmo, como
assevera Weber (2004[1922], p. 25). Neste último autor, a relação comunitária
existe quando as pessoas passam a orientar seu comportamento pelo das
outras, ao mesmo tempo em que se manifesta um sentimento de pertença
a um mesmo grupo, quer existam, ou não, vínculos como os sanguíneos
(comunidade de sangue) ou “hereditários” (Ibid. p. 26).

Os usos sociais, as preocupações teóricas e as valorações em torno


do conceito de comunidade mudaram ao longo da história das ciências
sociais, mas importa reter o quanto permaneceram referidos a um esquema
analítico dicotômico, como mostrado na breve revisão de Weber e Tönnies,
segundo o qual o conceito de comunidade não pode ser pensado sem o
contraste com o seu tipo oposto, “sociedade”. Os contrastes entre unidades
sociais percebidas como sob o domínio do parentesco, da subjetividade
e da não reflexibilidade, em contraste com a “sociedade urbanizada
moderna”, pode ser observado em autores como Redfield (1947), e usados
em esquemas explicativos evolucionistas segundo os quais o “tradicional”
tende a transformar-se no “moderno”, no pós-segunda guerra mundial, no
contexto de emergência da ideologia da modernização e da situação pós-
colonial que colheu os frutos das lutas por independência nacionais, sendo
central no domínio de novas áreas de interesse constituídas por sociólogos
e antropólogos, como nos mostra Guslfield (1975).

2- Gusfield e o exame dos usos sociais da noção de


comunidade no pós- II Guerra Mundial

Como dissemos, a dicotomia entre os conceitos de “sociedade”


e “comunidade” estrutura-se explicitamente nas teorias sociológicas
do século XIX, mas continuou a ser operada ao longo do século XX.
Escrevendo na década de 1970, Gusfield (1975) identificou duas áreas
principais de interesse, em evidência no pós II Guerra, em que a noção

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
47
de comunidade foi fortemente acionada: a primeira dedicou-se a abordar
o problema da “mudança social” em “novas nações” e em “países em
desenvolvimento”; a segunda manteve-se como uma continuação mais
direta do problema da “modernidade” no chamado “Ocidente”, onde,
“novamente, a avaliação e direção do mundo ocidental permaneceu
como questão central” (GUSFIELD, 1975, p. 17). Da maneira como
Gusfield descreve a separação entre essas duas áreas de interesse, nos
parece patente que os teóricos que nelas investiram operaram uma
singularização dos países euroamericanos frente aos países do resto do
mundo, perpetuando a noção de “Ocidente” como entidade singular,
invenção possível graças a um conjunto de generalizações históricas e
culturais que paralelamente inventaram o “Oriente” (SAID, 1990).

No pós II Guerra, contudo, emerge do campo político outra


fórmula de construção da alteridade, além da que repousa no contraste
Ocidente/não-ocidente. Coube aos EUA, ao firmar a sua posição de
hegemonia no novo cenário político e econômico mundial, a invenção
da categorização entre países “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”,
subsumindo a diversidade de bilhões de pessoas de diferentes nações
“pobres” do mundo em uma classificação homogeneizante (ESTEVA,
2000, p. 60). A partir de então, em função de iniciativas institucionalizadas,
toda uma geração de antropólogos colocou em prática um uso social da
noção de comunidade envolto em preocupações com a “modernização”
de países “subdesenvolvidos”, tentando prescrever e especificar
mudanças necessárias, institucionais e culturais, para alcançar seu
“desenvolvimento” (GUSFIELD, 1975).

Ao realizar avaliação de um conjunto de estudos produzidos nas


áreas de interesse mencionadas, em especial realizados na Índia e nos
EUA, Gusfield apontou que a dicotomia comunidade/sociedade esteve
incorporada, no mais das vezes, em teorias da mudança social com
perspectivas “evolucionárias”. Nessas perspectivas, mantinha-se a ideia
de que as formas de associação “comunitárias” seriam incompatíveis com
as “societárias”, ou seja, essas formas não apresentariam possibilidades
de cruzamentos, apenas exclusão mútua (Ibid. p. 83s). As noções de

48
“tradicional” (associado à comunidade) e “moderno” (associado à
sociedade), tomadas como contrastantes, também compuseram o
campo semântico desses teóricos. Essas teorias apontavam a priori para
um progressivo desaparecimento de instituições e de tudo o que fosse
“tradicional”, quando na presença do “moderno”, cuja expansão pelo
mundo se daria por meio do crescimento de organizações políticas em
grande escala, dos mercados e relações racionais de troca econômica, da
especialização intensiva e das comunicações extensas (ibid.).

Parte dos estudos analisados por Gusfield, referentes a um


momento antes de a categoria “desenvolvimento” (e seu pressuposto da
transformação entre “tradicional” e “moderno”) ganhar força, foi produzido
por sociólogos, na década de 1920, sobre os padrões de vida institucional
dos imigrantes que chegaram aos EUA no início do século XX. Ao invés
de desaparecem em meio à sociedade norte-americana, estudos mostraram,
frustrando certas teorias da mudança social, que diferenças étnicas e raciais
foram perpetuadas e até mesmo acentuadas nas grandes cidades desse país:
não só grupos ‘tradicionais’ como judeus, poloneses, eslavos e italianos
mantiveram laços de solidariedade e coesão social identificadas pelo autor
como laços característicos de “relações comunitárias”, como novos grupos
étnicos, a exemplo dos “Puerto Ricans”, “Mexican-Americans” e os
“Negroes”, emergiram (Ibid. p. 48). Na Índia, por sua vez, outros estudos
mostraram dados que apontaram que “laços primordiais”, como os de casta,
não só não deixaram de existir com os processos de independência e com
o ideal do igualitarismo pregado por instituições políticas novas naquele
país, como aumentaram e expandiram seu escopo, o tamanho e o peso
dos grupos comunais na vida política indiana, dentro dos espaços políticos
como os estatais (ibid. p. 50). Em outras palavras, empiricamente, ao invés
de serem dissolvidas no mundo “moderno”, relações qualificadas como
“tradicionais” e “comunitárias” foram por vezes fortalecidas, “proliferando-
se” em grupos extensos e funcionando em escalas e arenas mais amplas
(Idem, p. 48), articulando indivíduos que nunca se viram ou vivenciaram
relações nos moldes “face-a-face”, mas que guardam sentimentos de
pertença a um mesmo grupo étnico.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
49
O pouco poder de explicação do que se observava empiricamente
no estudo da “vida comunitária” em meio à “moderna” sociedade
“urbana-industrial”, fosse entre imigrantes nos EUA, fosse na Índia,
a partir de pressupostos teóricos fundamentados em dicotomias como
comunidade/sociedade e tradicional/moderno, não impediu que eles
continuassem a ser reproduzidos na análise de “mudanças sociais”
observadas nas “novas nações” em “desenvolvimento”. Gusfield tece
críticas ao uso dessas dicotomias. Nessa crítica, o autor dissocia a
noção de comunidade de ideias às quais ela é classicamente associada.
Destacamos duas rupturas do autor nesse sentido: primeiramente,
ele rompe com a busca pela fonte da filiação comunal em “relações
primordiais”38 “dadas” a priori, comumente identificadas de antemão
pelo cientista social com relações com as de parentesco, de casta ou
religiosas. Ele assume que o que é “dado”, na constituição de vínculos
comunais, é aquilo considerado como tal pelos próprios membros do
grupo em questão. Assim, a comunidade é, antes, vista como construção
social do que como produto de algum tipo pré-determinado de relação
(Idem, p. 30). Em segundo lugar, rompe com a ideia de condições pré-
determinadas necessárias ao desenvolvimento desse tipo de associação
humana, como “homogeneidade cultural” ou “território comum” (Ibid.
p. 31).

3- A emergência dos “estudos de comunidade”


nos Estados Unidos e os problemas da descrição entre
“comunidades” e “sociedades primitivas”

Foi no início do século XX, nos EUA, que surgiu o modelo de


investigação denominado “estudo de comunidade”, desenvolvido em
38. Gusfield (1975) toma o termo “relações primordiais” emprestado de Geertz, mais especificamente
de seu livro “The Integrative Revolution: Primordial Sentiments and Civil Politics in the New States”
(Gusfield, 1975, p. 27). Contudo, se assume como Geertz, que o caráter comunal de um agregado é
“dado”, enfatiza que o que é dado é aquilo que se torna percebido e experimentado como tal pelas
pessoas. Sua perspectiva enfatiza o caráter situacional e problemático da “experiência social”, que os
indivíduos experimentam e transformam suas condições ativamente (Idem, p. 30).

50
boa medida pela Escola de Chicago e, que, como se sabe, viria a ser
amplamente adotado nas ciências sociais brasileiras entre as décadas de
1940 e 1960. Naquele país, esse tipo de estudo nasceu como resposta
a preocupações com a compreensão dos efeitos das transformações
socioeconômicas radicais pelas quais passavam os norte-americanos
em função de acelerados processos de industrialização e urbanização.
Essas novas preocupações vieram acompanhadas por outras, de ordem
metodológica, que se mostavam dislruptivas face aos procedimentos
até então adotados no trabalho de campo, configurados na living culture,
implementada pelas pesquisas realizadas por Franz Boas.

A ruptura com a modalidade de descrição etnográfica inspirada


em Boas, que passava a ser criticada por Robert Redfield e outros
antropólogos de sua geração, foi justificada com o argumento de que tal
abordagem era deliberadamente insuficiente e incapaz analiticamente
de apreender transformações que provocavam descontinuidades e eram
disruptivas face aos modos de vida classificados como “tradicionais”
concernentes às unidades sociais estudadas.. Paralelamente, esses
mesmos críticos preocuparam-se em distinguir domínios e problemas
próprios de investigação das “sociedades primitivas”, à parte dos
dedicados a outras modalidades de unidades sociais, como as sociedades
camponesas, objetos frequentes dos “estudos de comunidade” e sobre
as quais a antropologia vinha aumentando seu interesse. Curioso notar
como a formulação de Redfield, reproduzida abaixo, embora se apoie
nessas dicotomias, contradiz a sua formulação de comunidade como
“entidade isolada”:
A sociedade camponesa difere da sociedade primitiva por
depender de uma sociedade maior, além da comunidade
imediata. A sociedade mais ampla domina a comunidade
camponesa, coloca-a em um status social inferior, fornece-lhe
um mercado e fornece uma rede de relações sociais externas.
Os valores camponeses derivam da combinação da tradição
intelectual da grande sociedade com crenças locais. Como um
grupo mundial, os camponeses podem ser provisoriamente

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
51
identificados por seu apego ao solo, reverência pelo habitat e
tradição, preferência pela família ou comunidade em vez de
realização individual, apreciação qualificada da cidade e ética
sóbria (REDFIELD, 1956). (Tradução da autora).

Há autores que consideram que esse interesse além das


“sociedades primitivas” teria levado à emergência da própria
antropologia social, como resultante de uma conjunção peculiar dos
procedimentos generalizantes, usualmente atribuidos à sociologia, com
os procedimentos descritivos da pesquisa antropológica (WILCOX,
2004). Não é nosso objetivo um aprofundamento da discussão sobre
as fronteiras entre antropologia e sociologia em jogo, ou sobre em que
momento se constitui a antropologia social. Nos basta observar que,
assim como na antropologia das “sociedades complexas” - que, para
Peirano (1992), se definiu inicialmente como uma “microssociologia
cuja variedade de temas parecia obedecer apenas a um requisito”: “a
exclusão das sociedades ‘tribais’, ou ‘simples’” (PEIRANO, 1992) - os
“estudos de comunidade”, nos parece, buscaram elaborar descrições
etnográficas específicas das comunidades camponesas e sociedades
indígenas em processo de “aculturação”39, a partir de abordagens
diferentes das que antes eram reservadas às sociedades indígenas ditas
“primitivas”.

O trabalho considerado o primeiro com a forma mais bem


acabada, segundo os moldes de um “estudo de comunidade”, foi
publicado em 1929 com o título “Middletown – a study in contemporary
american culture”. De autoria de Robert Lynd e Helen Lynd, o estudo
investigou tendências de comportamento em uma “típica” pequena
cidade americana face a processos de “modernização”.

O método prescrito para tais estudos combinou (ou acabou


sendo confundido) com a noção de que o locus privilegiado de
39. O conceito de “aculturação”, cuja abordagem evolucionista projetava a completa absorção dos
indígenas pela “sociedade nacional”, marcou o trabalho de antropólogos como Charles Wagley, na
década de 1950, e dos pesquisadores ligados a ele (ALMEIDA, 2018).

52
observação seria a pequena, isolada, distinta e homogênea little community
de Redfield (REDFIELD, 1989, p. 4), concebida em um continuum “folk
urban” e em contraste com a densa, heterogênea e grande cidade40.
A este autor, no qual se pode observar a ênfase na atribuição de um
conteúdo fortemente territorial à noção de comunidade, são atribuídas
formulações que foram compartilhadas por outros antropólogos norte-
americanos que partiram para os países “subdesenvolvidos” no pós II
Guerra, que enfocavam a análise de mudanças sociais nesses “pequenos
agrupamentos” a partir de um forte apelo aos conceitos “tradicional”
e “moderno”. As sociedades camponesas foram um foco de atenção
desse conjunto de pesquisadores em países como México e Brasil, e
frequentemente foram concebidas a partir da noção de “little community”.

No Brasil, antropólogos vindos dos EUA ou de universidades


norte-americanas, nas décadas de 1940 e 1950, tais como: Charles Wagley,
cujos trabalhos de pesquisa viriam a se tornar referências obrigatórias para
os estudos amazônicos; Donald Pierson, que desenvolveu a interpretação de
“democracia racial” no Brasil em contraste coom os EUA ; Emilio Willems
e Oberg Kalervo produziram - a partir de suas inserções na academia e
em diferentes programas governamentais41 - “estudos de comunidade” sob
a forma de monografias que descreveram povoados rurais com distintas
formações históricas, econômicas e geográficas. Ao mesmo tempo em que
se orientavam por interesses sociológicos, preocupavam-se em apresentar
soluções para os “problemas do desenvolvimento” no país (GUIDI, 1962).
40. Um dos livros de Robert Redfield muito citado nos estudos de comunidade realizados no Brasil
intitula-se “The Folk Culture of Yucatan”, publicado em 1941. Nele, Redfield apresenta o estudo de quatro
agrupamentos humanos no estado mexicano de Yucatan: uma cidade, uma vila, uma aldeia “camponesa”
e uma aldeia “tribal”, apontando para um aumento crescente de “desorganização cultural”, secularização
e individualização conforme houvesse deslocamento do nível territorial da “tribo” ao nível territorial da
cidade (GUSFIELD, 1975, p. 17).
41. Como nota Jackson (2009), a realização dos “estudos de comunidades” no Brasil associou-se a dois
contextos acadêmicos específicos: “o primeiro, centralizado na Escola Livre de Sociologia e Política
(ELSP), teve Emílio Willems e Donald Pierson como mentores e Oberg Kalervo como professor. O
segundo resultou do acordo firmado entre o estado da Bahia e a Columbia University e foi coordenado
por Charles Wagley e Thales de Azevedo”. Contudo, esses antropólogos também tinham outros vínculos
institucionais, nos quais desenvolveram suas pesquisas: é o caso de Wagley, que coordenou missão
norte-americana que fazia parte dos esforços de guerra dos EUA, constituída após acordo assinado
em 1942, que previa o fornecimento, pelo Brasil, de matéria-prima (como látex–emulsão de borracha
e resina e amêndoa de coco babaçu). Precisamente, trabalhou no Serviço Especial de Saúde Pública
(SESP), encarregado de contribuir com o bom estado físico da força de trabalho da região, sobretudo
dos extrativistas (ALMEIDA, 2018).

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
53
Esse modelo de investigação, contudo, acabou sendo confrontado no Brasil
não pelos seus métodos em si, mas pela fusão (ou confusão) de soluções
metodológicas com modelos teóricos de compreensão da realidade
(IANNI, 1961), levando a discussões sobre trabalho de campo, o papel do
antropólogo e sobre a própria noção de comunidade.

4- Os estudos de comunidade no Brasil: debates sobre


trabalho de campo

Antes de tratar dos debates sobre o significado do trabalho de


campo, o papel do antropólogo e a própria noção de comunidade nos
“estudos de comunidade”, produzidos no Brasil, entre 1940 e 1960, vale
destacar que há uma concordância entre diversos autores de que, num
primeiro momento, o entusiasmo com esse modelo de investigação
em nosso país teve a ver com as tentativas de superação de “ensaios”
histórico-sociais produzidos até então sobre a vida social brasileira
que careciam de informações rigorosas. Para Ianni (1961), no lugar
desses “ensaios”, os “estudos de comunidade” apareceram como uma
alternativa, se bem que com certa dose de obsessão pela coleta de “fatos
precisos”, prometendo ganhos em “objetividade” e “precisão e rigor na
observação e tratamento descritivo dos eventos” que se traduziam, para
o autor, como um “rigorismo” de “explanações positivistas” [...].

Duas questões centrais, das tantas debatidas no campo das


críticas e reflexões produzidas sobre os estudos de comunidade,
giravam em torno do que seria esse tipo de estudo e qual seria o seu
objeto. Klass Wortmann (1972) formulou perguntas nesse sentido nos
seguintes termos: “trata-se de estudar comunidades, ou trata-se de
um método para alcançar a inteligência de um problema, ou de um
processo? Em ambos os casos, o que se entende por comunidade?”;
ao falar dessa modalidade de investigação, trataríamos “de um método,
de uma concepção teórica, ou da análise de uma unidade concreta?”
(WORTMANN, 1972, p. 104).

54
Como observa Wortmann, o critério definidor da “comunidade”
na modalidade de investigação em questão mostrava-se, embora não
exclusivamente, predominantemente ecológico42, com fortes referências
a fatores como extensão total e a distância entre membros da unidade
social estudada. Em seu texto “A Antropologia brasileira e os estudos de
comunidade” (WORTMANN, 1972), o autor faz uma longa digressão
argumentando que tais estudos tomariam “unidades ecológicas”43 por
“comunidades sociológicas”, tomando as primeiras como locus suficiente
de observação e as estudando com o aparelhamento teórico conceitual
desenvolvido em função de um tipo sociológico. Essa confusão se
deveria, em parte, a seu ver, em função da falta de reflexão na “projeção
do trabalho tradicional do antropólogo com populações primitivas sobre
populações nacionais”; pois, “se no primeiro caso, a comunidade, como
tipo sociológico, coincide com a comunidade como agregado ecológico,
o mesmo não se observa no segundo caso” (Idem, 1972, p. 108). Não se
trataria de negar a contribuição do trabalho de campo do antropólogo
ao conhecimento de sociedades nacionais, mas de refletir sobre os
seus limites. Assim, o autor alinha-se a outros críticos dos estudos de
comunidade, como Maria Sylvia de Carvalho Franco (1963). Ambos
defenderam a necessidade de esse tipo de investigação desprender-se do
objeto espacialmente delimitado (JACKSON, 2009).

Com efeito, o critério ecológico – entendido aqui como carregado


com alguma referência a características espaciais ou demográficas do

42. Para sustentar sua afirmação, Wortmann cita trabalhos como o artigo “Os estudos de comunidade no
Brasil” (1955), de Oracy Nogueira, que assim define os estudos de comunidade e a sua unidade de análise:
“por ‘estudos de comunidades’ temos em vista aqueles levantamentos de dados sobre a vida social em
seu conjunto, relativos a uma área cujo âmbito é determinado pela distância a que se situam nas várias
direções, os moradores mais afastados do centro local de maior densidade demográfica, havendo entre
os moradores do núcleo central e os da zona circunjacente, assim delimitada, uma interdependência
direta para a satisfação de, pelo menos, parte de suas necessidades fundamentais” (NOGUEIRA, 1955,
p. 95).
43. Nessa discussão, Wortmann faz uma ressalva, apoiando-se em Redfield (1955): a de que
“comunidades”, além de sistemas sociais, seriam, também, sistemas ecológicos (sistemas particulares,
com princípios organizatórios próprios). O autor entende que o conceito ecológico de comunidade é
válido, desde que restrito a estudos ecológicos, que se valem de um conjunto de conceitos próprios. Para
Redfield (1955, apud WORTMANN, 1972, p. 109), o sistema ecológico de uma comunidade pode ser
entendido como: as “interrelações entre o homem e a natureza, e as regularidades concorrentes, naturais
e artificiais. Este sistema parte do ponto de vista homem-natureza, e é muito mais do que o sistema de
subsistência”.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
55
grupo estudado – pesou na definição de comunidade pelos próprios
“estudos de comunidade”. Guidi (1962, p. 48), por exemplo, que realizou
levantamento bibliográfico e análise dos “estudos de comunidade”
realizados no Brasil, entre 1948 e 1960, entende a comunidade como uma
“entidade integral” constituída pelos seguintes “elementos essenciais”:
1. uma definida área ecológica; 2. um grupo de pessoas interagindo
socialmente e 3. certos interesses e valores comuns. Em certos aspectos,
tal definição assemelha-se àquela de Charles Wagley, em sua monografia
que viria a ser considerada clássica, Uma comunidade amazônica:
estudo do homem nos trópicos (WAGLEY, 1977[1953]), que foi um
marco para os estudos amazônicos:
Por toda parte as pessoas vivem em comunidades - em bandos,
em aldeias, em núcleos agrícolas, nas pequenas e nas grandes
cidades. Nas comunidades existem relações humanas de
indivíduo para indivíduo, e nelas, todos os dias, as pessoas estão
sujeitas aos preceitos de sua cultura. É nas suas comunidades que
os habitantes de uma região ganham a vida, educam os filhos,
levam uma vida familiar, agrupam-se em associações, adoram
seus deuses, têm suas superstições e seus tabus e são movidos
pelos valores e incentivos de suas determinadas culturas. Na
comunidade a economia, a religião, a política e outros aspectos
de uma cultura parecem interligados e formam parte de um
sistema geral de cultura, tais como o são na realidade. Todas as
comunidades de uma área compartilham a herança cultural da
região e cada uma delas é uma manifestação local das possíveis
interpretações de padrões e instituições regionais (WAGLEY
1977[1953], p.40).

O próprio trabalho do antropólogo, para Wagley (1977), “quase”


poderia ser definido pela pesquisa de pequenos grupos demográficos,
aqueles nos quais pudesse ser observada a interação indivíduo-indivíduo
em um espaço delimitado e, a antropologia, como a “ciência da pequena
comunidade”:

56
Uma das grandes forças da antropologia social como disciplina
científica reside no conhecimento profundo e detalhado que
adquire o investigador sobre o pequeno grupo demográfico
que estuda. Como seus métodos de trabalho de campo incluem
observações pessoais da vida diária, as participações na
sociedade em estudo, além de longas e repetidas entrevistam
com uma ampla seleção de indivíduos, seu trabalho de pesquisa
tem sido geralmente pouco extenso. Com raras exceções, os
antropólogos têm realizado suas pesquisas de campo entre
grupos de mil a duas mil pessoas. Têm estudado de forma
clássica grupos e povoados primitivos. [...] A antropologia
social quase poderia ser descrita como a “ciência da pequena
comunidade” (WAGLEY 1977[1956], p.252).

As duas definições acima, seja a de Guidi (1962), como


comentadora, ou a de Wagley (1977 [1956]), deixam entrever uma
aproximação com a interpretação, já mencionada, de Redfield e de
sua definição de comunidade, compreendida, enquanto modelo ideal,
como sendo “distinta de outros agrupamentos sociais (é visível ‘onde
a comunidade começa e onde ela termina’), pequena (a ponto de estar à
vista de todos seus membros) e auto-suficiente” (REDFIELD, 1989, p. 4),
oferecendo “todas as atividades” e atendendo “a todas as necessidades
das pessoas que fazem parte dela”. A pequena comunidade seria
interpretada doravante, segundo variações desta premissa fixada por
Redfield. Atente-se para a formulação de Bauman nesses termos, ao
apresentá-la como “um arranjo do berço ao túmulo” (BAUMAN,
2003, p. 17s apud Redfield, 1989). Vê-se, assim, que nesses autores a
própria definição de comunidade pressupõe que ela seja uma unidade
de observação privilegiada para o antropólogo, apoiando-se em
dicotomias que opunham tipos ideais como a “sociedade urbanizada
moderna” versus a “pequena comunidade”, classificada por vezes por
Redfield, também, como “mundo primitivo”. Aliás é de 1953 a primeira
edição do livro de Redfield intitulado The Primitive World and its
transformations.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
57
A compreensão da sociedade pode ser obtida por meio da
construção de um tipo ideal de sociedade primitiva ou popular
em contraste com o “processo de civilização” ou a sociedade
urbanizada moderna. Essa sociedade é pequena, isolada, não
letrada e homogênea, com um forte senso de solidariedade de
grupo. Os modos de vida são convencionalizados naquele sistema
coerente que chamamos de “uma cultura”. O comportamento
é tradicional, espontâneo, acrítico e pessoal; não há legislação
ou hábito de experimentação e reflexão para fins intelectuais. O
parentesco, seus relacionamentos e instituições são as categorias-
tipo de experiência e o grupo familiar é a unidade de ação. O
sagrado prevalece sobre o secular; a economia é mais de status
do que de mercado. Essas e outras caracterizações relacionadas
podem ser declaradas em termos de “mentalidade popular”.
Ao estudar as sociedades comparativamente, ou uma sociedade
em curso de mudança, com a ajuda dessas concepções, surgem
problemas e são, em parte, resolvidos conforme as inter-relações
necessárias ou prováveis ​​de alguns dos elementos da sociedade
popular ideal com outras. Uma dessas relações é aquela entre
a desorganização da cultura e a secularização. (REDFIELD,
1947) (Tradução da autora).

A concepção da comunidade como grupo “isolado” e


relativamente “autossuficiente”, uma totalidade, refletia-se, por sua vez,
em modos de descrever, em fórmulas - por vezes elevadas a um caráter
quase normativo44 - de reconstruções descritivas “completas” da vida
social produzidas pelas investigações em questão. A descrição repetia-
se, em boa parte das monografias, de modo a apresentar estudos de caso
superpostos e divididos em temas a priori considerados significativos
e hierarquicamente similares, como “habitat”, “população”, “técnicas

44. Guidi (1962) estabeleceu um índice para analisar o quanto os estudos de comunidade, publicados
no Brasil entre 1948 e 1960, contemplavam os “principais temas de interesse sociocultural”. O índice era
formado por dez temas, a saber: metodologia, base econômica, vida econômica, estrutura demográfica,
estratificação social, família e parentesco, o ciclo de vida – socialização, organização e desorganização
social, tradição e inovação e o equipamento de educação formal e filosófica educacional (GUIDI, 1962,
p. 52).

58
de subsistência”, “isolamento”, “família”, “compadrio”, “ritos”,
“cerimônias”, “solidariedade” (IANNI, 1961). Ao aspecto quase
normativo desse modelo de descrição, Nogueira (1955), baseado em
formulação de Durkheim, faz séria objeção ao “método monográfico”,
chamando atenção para os limites aos quais está sujeita a visão de
conjunto da vida social de qualquer agrupamento humano, de modo
que se evite o colhimento de dados a esmo sem “preocupação com um
quadro teórico ou com hipóteses mais ou menos definidas” (p. 99).

Se alguns autores, como Wortmann, criticaram os limites do


trabalho do antropólogo nos “estudos de comunidade”, quando este toma
uma unidade ecológica como se fosse unidade sociológica, outros, como
Ianni (1961), enfatizaram a crítica à pretensão de objetividade do método
utilizado, como se a observação direta de pequenos agrupamentos,
com relações face-a-face, propiciasse necessariamente uma coleta de
dados “objetivos”. Como bem observou Ianni (1961, p. 117), alguns
fenômenos continuamente examinados nesses estudos etnosociológicos,
tais como “isolamento” e “contato sociocultural”, “desorganização”,
“individualização”, “mudanças sociais e culturais”, dentre outros, eram
continuamente concebidos pela mesma perspectiva, sem que se buscasse
questionar as focalizações clássicas do assunto e renovar a compreensão
convencional desses processos. Haveria aí, para o autor, uma “fixação de
certas abordagens no desenvolvimento da etnologia e da sociologia”, em
que “uma solução metodológica se transformou numa alternativa teórica”
(idem, p. 116). Avanços teóricos e questionamentos a essa “monotonia”
analítica, no entanto, puderam ser observados em trabalhos como o
de Marvin Harris (1956)45 em Minas Velhas, em que o autor discute
criticamente a dicotomia rural-urbano, apontando heterogeneidade,
individualização e secularização apesar do relativo “isolamento” da cidade,
situada em região antiga de mineração (GUIDI, 1962).

45. Sobre a trajetória intelectual de Marvin Harris consultar, neste livro, o capítulo intitulado “Harris e
Wagley na África Portuguesa e o fim do lusotropicalismo”, de autoria de Ricardo Rella. Marvin Harris
produziu sua tese, intitulada Town and Country in Brazil (1956), no âmbito de projeto de pesquisa
elaborado pelos sociólogos brasileiros Thales de Azevedo e Luís Aguiar Costa Pinto e pelo antropólogo
norte-americano Charles Wagley, executado mediante convênio entre o Departamento de Antropologia
da Universidade de Columbia e a Secretaria de Educação e Saúde do Estado da Bahia (cf. GUIDI, 1962).

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
59
A crítica de Ianni (1961), portanto, era de que a pretensão de
objetividade na coleta de fatos se sobrepôs à reflexão sobre a constituição
dos próprios objetos de investigação nos estudos de comunidade, nos
quais parecia que a “comunidade é[era] transformada num objeto em
si”.

Um problema que frequentemente preocupou os antropólogos


que realizaram “estudos de comunidades” rurais do Brasil foi a necessidade
de explicações das razões subjacentes ao “subdesenvolvimento” nos
grupos estudados. Como observa Almeida (2018, p. 16), as categorias
“desenvolvimento” e “subdesenvolvimento” haviam sido alçadas à
ordem do dia do planejamento governamental americano no pós 2ª
guerra, “desfazendo aparentemente a relação metrópole-colônias” e
“reclassificando os países em ‘desenvolvidos’ e ‘subdesenvolvidos’”,
enquanto disseminava “narrativas míticas [...] que buscavam romper
com a noção de ‘tradicional’, que passa a ser interpretada negativamente
como oposto a moderno, à inovação tecnológica e ao progresso’”.

Charles Wagley, por exemplo, dedica boa parte do primeiro


capítulo do livro Uma Comunidade Amazônica (WAGLEY
1977[1953]) a refutar argumentos do que ele chamava de escola
“pessimista”, que atribuía o “subdesenvolvimento” das regiões tropicais
a fatores de ordem ambiental e racial46. Ao refutar essas teses baseadas em
razões “naturais”, ele argumentou que as principais razões que faziam do
“Vale Amazônico uma área atrasada e subdesenvolvida tem[teriam] que
ser buscadas na cultura e na sociedade amazônica e nas relações dessa
região com os centros do poder econômico e político e com as origens
da difusão cultural” (idem, p. 36). Vendo na cultura das regiões tropicais
uma das explicações (de peso) para o seu subdesenvolvimento, tornava-
se, na sua perspectiva, importante o estudo de suas comunidades,
uma vez que estas eram concebidas por ele como portadoras de uma
“cultura” que faria parte de um “sistema geral de cultura” mais amplo:
46. Nesse debate sobre as razões do “subdesenvolvimento”, Wagley refuta teorias dos que ele chamava
de “racistas tropicais”, que alegavam que os “climas tropicais só podem ser habitados pelas raças de
pigmentação escura” [...] “inferiores aos brancos europeus”, razão pela qual as regiões tropicais estariam
condenadas a um “nível mais baixo de desenvolvimento cultural” (WAGLEY 1977[1956], p. 26).

60
Na comunidade a economia, a religião, a política e outros
aspectos de uma cultura parecem interligados e formam parte
de um sistema geral de cultura, tal como o são na realidade.
Todas as comunidades de uma área compartilham a herança
cultural da região e cada uma delas é a manifestação local das
possíveis interpretações de padrões e instituições regionais
(WAGLEY 1977[1953], p. 40).

Wagley acreditava que o trabalho de campo do antropólogo


poderia contribuir com as metas de desenvolvimento. Para ele, “a
transformação social [...] implica fundamentalmente em alterações na
sociedade e na cultura da comunidade. E é neste plano, dentro da estrutura
da pequena comunidade”, que o antropólogo estaria mais apto a auxiliar
o planejador social e o administrador, “encarregados da execução de
programas de saúde, de reformas agrícolas, de campanhas educativas”,
ajudando, assim, no melhoramento das condições econômicas e sociais
(WAGLEY 1977[1956], p. 78). Assim, a partir do conhecimento
antropológico seria preciso induzir mudanças na cultura e instituições
locais. Almeida (2018) registra que, na Amazônia, Wagley coordenou
missão técnica norte-americana que fazia parte dos esforços de guerra
dos EUA, constituída após os Acordos de Washington assinados em
1942, que previam o fornecimento, pelo Brasil, de matéria-prima (como
látex–emulsão de borracha e resina, castanha e amêndoa de coco
babaçu). Precisamente, coordenou atividades do Serviço Especial de
Saúde Pública (SESP), encarregado de contribuir para o bom estado
físico da força de trabalho da região, sobretudo dos extrativistas.

Gusfield (1975) sustenta que boa parte da geração de


antropólogos norte-americanos que, assim como Wagley, partiu para
países em “desenvolvimento” no pós-II Guerra, abordou a dicotomia
comunidade/sociedade, já presente na teoria sociológica, a partir de
uma perspectiva evolucionista, tentando não só identificar, mas também
prescrever mudanças necessárias, institucionais e culturais, para alcançar
seu desenvolvimento econômico (p. 18). No Brasil, como observa

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
61
Almeida (2018, p. 16), “os antropólogos vinculados a Wagley ficaram
marcados pela abordagem evolucionista e pelo conceito de aculturação,
projetando o ‘desaparecimento’ e a completa absorção dos indígenas
pela ‘sociedade nacional’”. Apesar disso, como nota o autor, esses
pesquisadores não poderiam ser reduzidos ao âmbito puro e simples
de uma “antropologia aplicada”47, uma vez que Wagley e antropólogos
como Eduardo Galvão abriram um debate profundo, que envolveu
uma descrição etnográfica e um conhecimento específico que os levou
à autocrítica sobre suas conclusões de inspiração evolucionista, em um
momento em que o que estava em jogo era uma discussão de “processos
de aculturação, numa quadra desenvolvimentista” nos quais os trabalhos
dos antropólogos refletem abordagens diversas (Ibid., p. 16). Ao mesmo
tempo, seria uma injustiça não reconhecer que Wagley, apesar de sua
orientação teórica que levava a explicações do “subdesenvolvimento”
baseadas na cultura, não ignorava que as condições econômicas e sociais
nas “comunidades” eram produto de sua relação com centros de poder
político e econômico, como ele aponta no artigo “O desenvolvimento
comunitário como dilema nacional” (WAGLEY, 1975).

Para Jackson (2009), as críticas teórico-metodológicas elaboradas


aos “estudos de comunidade” no Brasil se deram a partir de uma
profunda imbricação entre ciência e política, na qual haveria, inclusive,
uma dimensão institucional envolvida, em que críticas elaboradas
na USP enfocavam as pesquisas desenvolvidas na Escola Livre de
Sociologia e Política (ELSP), marcando diferenças nas concepções de
ensino e pesquisa que marcavam as duas instituições, mas também de
leituras sobre os processos sociais em curso à época no Brasil.

Uma das críticas de Florestan Fernandes aos “estudos de


comunidade” era a ênfase nas diferenças culturais e o empirismo, o
que ele defendia que desviaria “o observador do processo decisivo
ao desenvolvimento brasileiro – a formação da sociedade de classes”
(JACKSON, 2009, p. 274). A noção de “comunidade” e a de “sociedade”
47. Grosso modo, compreendida como aquela em que o antropólogo produz um conhecimento que
servirá para algum tipo de intervenção, cuja necessidade e utilidade é definida por alguma instituição
externa ao grupo, como o Estado.//

62
eram consideradas as unidades mais complexas do ensino de sociologia
para Florestan, tanto que ele publica, de fins da década de 1960 ao inicio
dos anos 70, uma coletânea de quatro volumes em que esses conceitos
são centrais. Florestan busca oferecer um “quadro de referência teórica
integrativo” para o ensino da sociologia no Brasil (FERNANDES,
1972; Nota Prévia, p. XIII). Ele marca, contudo, grandes diferenças
em relação aos “estudos de comunidade”, que considerava insuficientes
para análises propriamente sociológicas. Buscaremos enfocar suas
divergências de caráter metodológico, descritivo, em relação a esses
estudos. Uma primeira diferença seria a recusa da ênfase na interação,
que, embora esteja presente em todos os níveis da vida social organizada,
não deveria ser considerada uma “variável independente” ou “agente
fundamental” e base para a explicação sociológica (Idem, Nota Prévia,
p. XI). Lembremos que a própria noção de comunidade, adotada por
autores como Tönnies, Redfield, Guidi e Wagley, continha a ideia de
que essa “unidade social” seria o locus das interações “face-a-face”, que
produziriam tipos de relações especiais oferecidas à descrição. Uma
segunda diferença foi a importância dada à observação, descrição e
análise das comunidades “em função da ordem social inerente ao padrão
de integração da sociedade nacional” (idem, p. 7). Essa ênfase fica
evidente na introdução do livro Comunidade e sociedade no Brasil
- leituras básicas de introdução ao estudo macro-sociológico do
Brasil (1972), em que Fernandes apresenta os capítulos que descreviam
comunidades brasileiras como “exemplos concretos”, “tomados
do mundo histórico-social brasileiro”, de “estruturas ou formações
comunitárias típicas – a aldeia tribal, a pequena comunidade, as vilas, a
cidade tradicional, a cidade moderna” (Ibid, p. 4).

A crítica de Fernandes, sem desvalorizar o trabalho de campo


(observação direta e a posterior descrição) feito nas comunidades, o
desprende da noção de comunidade como um objeto espacialmente
delimitado e permite leituras além das interações sociais observáveis
em si. Arriscamos dizer, sua crítica não tratava apenas da crítica ao
“culturalismo” que ele via como presente nas análises dos “estudos

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
63
de comunidade” (JACKSON, 2009) e de questionamentos teóricos e
metodológicos, mas também da preocupação de que a “comunidade”
fosse uma unidade social, e locus de observação, a partir do qual se
pudesse levar em conta e interpretar criticamente relações concretas
entre as comunidades e unidades mais ou menos inclusivas (como
uma cidade, uma microrregião, uma região etc). A dimensão política
envolvida nessa discussão levou alguns críticos mais radicais dos
“estudos de comunidade”, como Caio Prado Jr., em resenha ao livro
Cunha, de Emílio Willems, acusarem explicitamente tais estudos de
serem “reacionários” e produtores de interpretações conservadoras
(ibid.)

O reforço da necessidade de análise histórica nos estudos sobre


comunidades rurais que em boa medida se baseiam em observações
diretas, que encontramos em Fernandes, também podemos encontrar
em outros autores brasileiros de sua época. Segundo Jackson (2009, p.
277s), Gioconda Mussolini, por exemplo, enfatizava a relevância das
análises históricas e refutou a ideia de que haveria um único sentido
para a transformação das sociedades (referindo-se às sociedades folk)
como suposto por Redfield, sugerindo que, a partir de descrições, seria
possível “apreender extensa gama de possibilidades de estruturação das
formas de organização social e das relações entre sociedade e cultura”48.
Ao rebater Redfield, G.Mussolini contribuiu para abrir a possibilidade
de descrições que coloquem em bases concretas as relações entre as
comunidades estudadas e a sociedade envolvente, fora dos modelos
ideais defendidos pelo autor, baseados em tipos ideais como “sociedade
primitiva ou popular” em contraste com a “sociedade urbanizada
moderna” e que, frequentemente, levou a interpretações evolucionista
baseadas.

Ao longo deste artigo, abordamos a noção de “comunidade”


nas teorias sociológicas consideradas clássicas e enfocamos as
discussões teórico-metodológicas sobre as descrições etnográficas

48. O autor cita o texto de Gioconda Mussolini intitulado “Persistência e mudança em sociedades de
‘folk’ no Brasil” (MUSSOLINI, 1955).

64
em jogo presentes nos “estudos de comunidade” realizados no Brasil
no pós-segunda guerra mundial. Longe de analisar tais discussões de
maneira exaustiva, buscamos mostrar que elas se debruçaram, dentro
desse contexto sociológico específico, sobre questões fundamentais
para a antropologia, que busca especificidade como disciplina definida
pelo trabalho de campo, mas que precisa continuamente problematizar
a maneira como são construídos os dados nas etnografias, sem
cair no empirismo que pressupõe que “as coisas só são reais”
quando “confirmadas pelos dados sensoriais”, acessados quando
os antropólogos dizem estar realizando seus trabalhos no “nível do
terreno” com “pessoas reais” (ASAD, 1993).

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68
HARRIS E WAGLEY NA ÁFRICA PORTUGUESA E O FIM
DO LUSOTROPICALISMO

Riccardo Rella49

Introdução

Em 1940 Charles Wagley (1913-1991) começou sua longa


carreira na Universidade de Columbia, onde concluiu sua graduação e
pós-graduação em Antropologia. Franz Boas, Ruth Benedict e Ralph
Linton estavam entre seus professores. Por mais de vinte e cinco
anos ele trabalhou nesta universidade e, em 1965, assumiu a Cadeira
Franz Boas em Antropologia. De 1961 a 1969, quando ainda estava
na Universidade de Columbia, fundou e dirigiu o Instituto de Estudos
Latino-Americanos. Em 1971, mudou-se para a Universidade da
Flórida, aposentando-se depois de doze anos em 1983. Suas primeiras
experiências etnográficas ocorreram na Guatemala, mas a maior parte
de suas pesquisas foi realizada no Brasil. Em 1945, o jovem Charles
Wagley recebeu a distinção do Cruzeiro do Sul do governo brasileiro
– a maior honraria que um estrangeiro poderia receber na época – em
reconhecimento ao seu trabalho em saúde pública durante a Segunda
Guerra Mundial. Seu primeiro trabalho de campo no Brasil foi realizado
entre 1939 e 1940, entre os Tapirapé. Naquela época, em virtude dos
laços entre Heloisa Alberto Torres (Museu Nacional, Rio de Janeiro) e
Franz Boas, vários antropólogos de Columbia viajaram ao Brasil para
fazer trabalho de campo. William Lipkind, Ruth Landes, Buell Quain e
Charles Wagley foram os primeiros deste grupo. Algum tempo depois,
no final da II Guerra Mundial, com seu aluno e amigo Eduardo Galvão,
Charles Wagley concluiu a pesquisa sobre os Tenetehara, no Vale do
49. Possui graduação em Filosofia e mestrado em Antropologia Médica pela Universidade de Bolonha,
Itália. Trabalhou na pesquisa sobre o sistema público de saúde da Ilha de Pemba, Tanzania, e nas
hibridações entre sistemas médicos na população local entre setembro de 2011 e fevereiro de 2012.
Doutorando em Antropologia pelo PPGAS da UFAM, focalizando sua pesquisa nas formas de um
cuidado da saúde das populações indígenas da cidade de Manaus. Membro da equipe editorial da
revista dos estudantes do PPGAS-UFAM desde 2019 e integrnte do núcleo de pesquisa do Pojeto Nova
Cartografia Social da Amazonia sob a orientação do professor Alfredo Wagner.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
69
Pindaré, Maranhão. Em 1948, iniciou pesquisas entre os moradores de
Itá, no Baixo Amazonas, que resultaram no livro Uma comunidade
amazônica: um Estudo do Homem nos Trópicos, publicado pela
primeira vez nos Estados Unidos pela The Macmillan Company em
1953. De 1951 a 1952, coordenou um projeto sobre “Raças e Classes no
Brasil Rural” com Thales de Azevedo e Costa Pinto, sob os auspícios de
um acordo entre o Estado da Bahia e a Universidade de Columbia, mas
com suporte da UNESCO. Para tanto compõe uma equipe integrada
também por antropólogos norte-americanos, quais sejam: Marvin Harris,
Ben Zimmerman e Harry W. Hutchinson50. As enormes contribuições
de Wagley para os estudos brasileiros lhe renderam o título de Doutor
Honoris Causa, em 1962, da Universidade Federal da Bahia. Entre
outras posições, foi presidente da Associação Antropológica Americana
entre 1970 e 1971. Mesmo sendo apaixonado pelo Brasil, Charles
Wagley nunca deixou de destacar os paradoxos da sociedade brasileira,
às vezes com ironia e senso de humor, como fez em seu memorável
ensaio de 1963 intitulado “Se eu fosse brasileiro” (WAGLEY, 1963).
Com certeza, uma parte menos conhecida do trabalho de campo do
autor é sem dúvida representada pela viagem a Moçambique em 1960.

Antes de analisar o que aconteceu nessa viagem, e para


poder enquadrá-la no contexto histórico, faz-se necessário falar dos
antecedentes que remontam a 1956. Naquele ano, Marvin Harris,
professor da Universidade de Columbia e amigo de Charles Wagley, cuja
equipe de pesquisa integrara anteriormente, estava em Moçambique
para conduzir uma investigação sobre a exploração do trabalho
das populações indígenas naquela província ultramarina da Africa
portuguesa, onde a população local encontrava-se sujeita ao recém-
aprovado Estatuto dos Povos Indígenas. Como veremos adiante, as
investigações levadas a cabo por Harris colocaram-no numa situação
extremamente difícil com a administração colonial. De tal maneira que,
posteriormente, foi declarado persona non grata pelas autoridades coloniais
e expulso das possessões portuguesas na África. Essa viagem e as graves
50. Para informações mais detalhadas consultar: Almeida, Alfredo Wagner B. de – Antropologia da
Amazonia: dissonância e desafios à institucionalização. Manaus. UEA Eds./PNCSA. 2019 pp.18,19.

70
consequências que deixou na administração colonial foram uma das
principais causas da viagem empreendida por Wagley a Moçambique
dois anos depois.

Em julho de 1960, na tentativa de desfazer a impressão negativa


que Harris havia deixado nas autoridades coloniais, o antropólogo
português António Jorge Dias, convidou Charles Wagley para viajar a
Moçambique, Angola e Guiné-Bissau. É certamente não um acaso que o
convite para tal expedição tenha acontecido logo em seguida ao terrível
massacre de Mueda, acontecido em 16 de junho do mesmo ano, quando
ocorreu o assassinado de um número indeterminado de moçambicanos
por mão das forças coloniais. Estava em jogo a imagem internacional da
ação colonial portuguesa em terras africanas.

A viagem contou com o apoio de Adriano Moreira, futuro


Ministro do Ultramar e, naquele período, diretor do Centro de Estudos
Políticos e Sociais (CEPS), vinculado à Junta de Investigações do
Ultramar (JIU). Durante essa viagem, Jorge Dias pretendia mostrar a
Charles Wagley o cotidiano de uma suposta “convivência racial” não
conflituosa nas províncias do exterior. Seguindo na esteira do pensamento
lusotropicalista, Jorge Dias esperava que Charles Wagley fosse favorável
à presença portuguesa na África. A viagem, portanto, teve o objetivo
de estabelecer as bases para futuros intercâmbios acadêmicos entre o
Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (ISEU), chefiado também
por Moreira, e a Columbia University. Ao mesmo tempo ela se mostrava
entrelaçada com os efeitos e a tensão social gerada pelo trabalho de
pesquisa antes realizado por Harris. Os acontecimentos desta viagem
foram registrados pela ampla divulgação de texto elaborado e publicado
por Harris, deixando uma marca profunda na imagem internacional da
administração colonial portuguesa.

Para se ter um quadro mais completo da situação que Wagley


enfrentou em sua viagem, é oportuno analisar mais em detalhe a viagem
de Harris, e as personagens que o autor encontrou ao longo da sua
intensa jornada.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
71
A situação colonial

Adriano Moreira foi um representante ideal da política colonial


portuguesa tardia. Nascido em 1922 na província de Trás-os-Montes,
foi advogado especializado em Direito Internacional, professor de
Administração Ultramarina na Escola Superior Colonial e, entre 1961 e
1963, Ministro dos Territórios Ultramarinos. Em 1956, após assumir a
direção do CEPS do JIU, convidou Jorge Dias para integrar a equipe de
pesquisadores do centro. Ele era, de qualquer forma, uma figura política
e intelectual eminente associada à fase final do período salazarista. Com
Adriano Moreira, o chamado “assimilacionismo” português atingiu seu
auge.

Adriano Moreira deixou uma marca indelével da história da


política colonial quando, em 1961, durante seu mandato no comando
do Ministério dos Territórios Ultramarinos, aboliu o Estatuto dos
Indígenas que havia estabelecido distinções legais entre indivíduos que
eram “indígenas”, “assimilados” e cidadãos. Com essa medida, todos
os habitantes de Moçambique, Angola e Guiné-Bissau passaram a ser
considerados cidadãos portugueses, pelo menos no papel. No entanto,
as reformas legais não foram suficientes para mudar a estrutura colonial.
O decreto que revogou o Estatuto dos Indígenas continha uma série
de considerações, elaboradas pelo próprio Adriano Moreira, sobre as
peculiares noções de cidadania e nacionalidade no pensamento colonial
português. Primeiro, o ex-ministro indicou:

[...] a tradição portuguesa de respeito aos direitos privados das populações


incorporadas ao Estado através do movimento das Descobertas e a quem concedemos
um quadro nacional e estadual que não conheciam e foi o elemento decisivo em sua
evolução e no aprimoramento geral da humanidade. (MACAGNO, 2018)

72
No documento, Moreira defende o assimilacionismo português
da crítica ao seu aparato jurídico mais visível: o Regime de Indigenato.
“A oportunidade foi dada aos nossos oponentes”, diz ele, “... para sustentar [...]
que o povo português foi submetido a duas leis políticas, e por essa razão dividida
em duas classes praticamente não comunicantes” Esta acusação, segundo ele,
deriva da noção de cidadania no raciocínio do direito público do século
XIX, que introduziu um conceito “puramente técnico” de cidadania,
noção relacionada apenas ao conceito de direitos políticos.

Em 1960, a Organização das Nações Unidas (ONU) aumentou


a pressão diplomática sobre Portugal para reconhecer o direito à
autodeterminação e à independência de suas colônias. Isso foi uma
afronta à política colonial de Salazar que ainda previa um futuro
português para a África. Não foi por acaso que, naquela época, Adriano
Moreira tornou-se um apologista zeloso do “modo português de
estar no mundo” e, como tal, um proponente do mito de um “paraíso
multirracial” no ultramar. Foi precisamente nessa fase colonial tardia que
o discurso lusotropical de Gilberto Freyre foi recuperado pelos porta-
vozes da presença portuguesa na África. Freyre, ao longo de toda sua
obra, remarca a miscigenação como elemento positivo e fortalecedor
de uma sociedade, e ressalta essa peculiaridade como elemento e pós-
produto positivo da colonização do Brasil. Se ao primeiro olhar as
ideias do autor brasileiro parecem ir na contramão do pensamento
contemporâneo na sociologia e também em parte da antropologia,
que eram largamente etnocêntricas e ressaltavam a superioridade da
raça branca, suas ideias foram utilizadas em oposição aos movimentos
antirracistas e de libertação nacional. O mito construído pelo autor
de uma ‘democracia social e étnica’ no Brasil (Freyre, 1971:65) foi
introduzido aos poucos pelos administradores coloniais portugueses
para fundar o projeto cultural do lusotropicalismo, que enfatizava a
mistura e um ideal de “democracia racial” nas colônias portuguesas.

Ressalta-se que, como mostra o trabalho detalhado de Cláudia


Castelo (CASTELO 1998), foi somente após a década de 1950 que
a política colonial portuguesa passou a assumir uma gramática mais

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
73
explicitamente lusotropicalista, inspirada no pensamento de Gilberto
Freyre. Antes daquela década, segundo a mencionada autora, no campo
político português “... O pensamento de Freyre não foi bem recebido ou foi
puramente e simplesmente ignorado”, exatamente pelas suas visões positivas da
miscigenação, ainda extremamente contrastantes com a administração
colonial portuguesa na África naquela década. Como muitos estudiosos
demonstraram – entre eles, Marvin Harris e Charles Wagley –, tais
intenções lusotropicalistas foram eclipsadas por evidências do número
reduzido de pessoas “genuinamente” assimiladas, expressas nas próprias
estatísticas da administração colonial. Essa tentativa de revitalizar e
renovar a imagem do colonialismo português na Africa por meio de
um assimilacionismo bem mais de fachada do que real, que deixava
larga parte da população indígena africana fora de qualquer direito da
cidadania portuguesa e, se possível, tornando ainda mais subalternas
as populações do interior, foi uma última e como se verá desesperada
tentativa do regime salazarista para se vender como uma humanização
do colonialismo. A subdivisão entre indígenas, assimilados e cidadãos
visava quebrar a proposição de unidade da população africana colonizada,
alardeada pelos movimentos, usando uma nova forma de discriminação
baseada não na raça, mas no grau de assimilação do indivíduo na cultura
dominante. O regime racista foi substituído por um regime culturalista,
onde quanto mais o subalterno se conformasse à cultura dominante,
mais esperança teria de poder acessar à categoria máxima estabelecida
pelo estatuto, aquela de cidadão (ESTATUDO DOS INDÍGENAS,
1957). As consequências das viagens de Harris e Wagley, já críticos do
regime colonial português, se revelarão fatais para a credibilidade do
inteiro aparado administrativo colonial.

Outra figura importantíssima na viagem de Wagley será Jorge


Dias. Formado na Alemanha em 1944, Dias retornou definitivamente
ao Portugal em 1947, após três anos na Espanha. Em 1948, foi
publicada sua primeira etnografia “Vilarinho da Furna”, fruto de seu
trabalho de campo na vila de Vilarinho da Furna, no norte de Portugal.
Ele também realizou pesquisas na aldeia de Rio de Onor,em Bragança,

74
uma comunidade localizada na fronteira com a Espanha. Essas duas
referências seriam anedóticas, mas ter estudado pequenas comunidades
ofereceu, segundo Dias, elementos fundamentais não apenas para a
compreensão da “cultura” portuguesa em geral ou do caráter nacional
português em particular, mas, sobretudo, para compreender a relação
dos portugueses com outros povos durante a expansão colonial. Dias
fez sua primeira viagem ao Brasil em 1951, para participar da Primeira
Conferência sobre Folclore Brasileiro. Ele voltaria ao Brasil em duas
outras ocasiões, em 1953 e 1954. Infelizmente, o período brasileiro de
Dias não é bem conhecido e não foram detectados muitos documentos
ou relatos dessa época. Em 1953, a convite de José Loureiro Fernandes,
fundador do Departamento de Antropologia da Universidade Federal
do Paraná, em Curitiba, Jorge Dias fez trabalhos de campo na região
de Guarapuava. Finalmente, em 1956, convidado por Adriano Moreira,
mudou-se para Lisboa para integrar a equipe do ISEU e a equipe de
pesquisa do JIU. Um ano depois, em 1957 ele começou seu trabalho de
campo entre os Makonde, na região do planalto no norte de Moçambique.
Em Lisboa, de 1957 a 1960, foi responsável pelo MEMEUP (Missão de
Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português). A viagem que
fez com Charles Wagley em 1960 foi, nesse sentido, constituindo parte
de uma das missões desenvolvidas dentro do MEMEUP.

A obra de Dias e do MEMEUP foi altamente instrumental à


propaganda colonial portuguesa, assim como os dados produzidos
pelas missões do grupo foram utilizados rotineiramente pela Junta
de Investigações do Ultramar e pelo Ministério do Ultramar. Esse
uso instrumental da antropologia se insere no projeto de ‘ocupação
cientifica’ das colônias, incentivado ativamente pelo Estado Novo
salazarista, jogará uma sombra de colaboracionismo sobre o legado do
autor português, mesmo que ele tenha tido um olhar crítico contra o
racismo dos colonos portugueses no Moçambique (PEREIRA, 1989).

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
75
A viagem a Moçambique de Marvin Harris

Cerca de um ano antes do início das campanhas do MEMEUP


lideradas por Jorge Dias, Marvin Harris visitou Moçambique,
desencadeando a série de eventos que levarão à viagem bem mais
institucionalizada de Wagley. O contexto em que essa primeira viagem
se desenvolveu era bem diferente e se encaixava na época de passagem
entre a velha visão colonial que recusava o pensamento de Freyre e via
os colonos europeus como incontestavelmente separados e superiores
com respeito aos indígenas africanos de Moçambique e Angola e o novo
jeito de pensar a ação colonial do Estatuto dos Indígenas, onde a visão
‘positivista’ da miscigenação de Freyre era usada propagandisticamente
para dar uma nova aparência ao regime colonialista português.
Quando Harris chegou a Moçambique, em junho de 1956, a Polícia
Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), já havia sido criada no
país há 11 (onze) anos. O ambiente político em Portugal também era de
agitação, e a ditadura de Salazar estava de olho em possíveis adversários.
A aura de paranoia que naquela época estava permeando os territórios
portugueses, seja na Europa, seja nas colônias era tangível. É possível
que a PIDE tenha observado os movimentos de Marvin Harris desde
sua chegada a Moçambique.

O jovem Marvin Harris chegou a Moçambique com uma bolsa


da Fundação Ford. Sob as circunstâncias políticas da época, não era
fácil para um antropólogo estrangeiro obter permissão para realizar
trabalhos de campo nas províncias portuguesas no exterior. No início,
para não despertar as suspeitas das autoridades, Harris prometeu que
se dedicaria apenas à pesquisa da literatura portuguesa sobre a África.
A autorização foi concedida e ele se estabeleceu em Lourenço Marques
(hoje Maputo) com sua esposa e filha.

Uma das primeiras discussões antropológicas que Marvin


Harris teve na capital de Moçambique foi com António Rita-Ferreira.
Nascido no interior de Portugal, António Rita-Ferreira era um oficial
colonial desde os dezenove anos. Com o tempo, tornou-se um dos

76
mais proeminentes “antropólogos” portugueses do período, ou um
“estudioso autodidata”, pois preferia assim se apresentar. Por causa de
suas funções administrativas, ele sabia todos os detalhes do “trabalho
migrante” dos indígenas de Moçambique nas minas sul-africanas e tinha
também publicado um trabalho sobre o assunto, com o aval de Jorge
Dias e Adriano Moreira (RITA-FERREIRA 1963). Ele deu acesso a
Harris a uma coleção de materiais legislativos que foi fundamental para
o trabalho do autor. Mas logo depois dessas leituras, Marvin Harris teria
cometido do ponto de vista salazarista, um erro fatal: entrou em contato
com figuras de oposição ao regime ditatorial.

Contradizendo as promessas feitas ao ingressar em Moçambique


às autoridades coloniais, e com a cumplicidade dos opositores, que
exerceram clandestinamente uma oposição fervorosa ao regime,
Marvin Harris se interessou pelas condições de exploração dos
africanos governados pelo Estatuto dos Indígenas. Harris afirmou
que, a fim de escapar do “cavalheirismo” (trabalho forçado) ainda
presente em Moçambique, os nativos estavam se inscrevendo como
“trabalhadores migrantes” nas minas sul-africanas. Assim, diretamente
ou indiretamente, o trabalho forçado estava enfraquecendo a agricultura
nativa devido à emigração da força de trabalho indígena. Em resposta
a esse argumento, Rita-Ferreira tentou minimizar as consequências
negativas desse processo, afirmando que o trabalho migrante permitiu
uma integração positiva na economia moderna e, a longo prazo, um
melhor padrão de vida para os nativos.

Logo no início de sua estadia em Moçambique, Marvin Harris já


tinha encontrado António de Figueiredo, um opositor do regime. Esse
encontro de Figueiredo com Harris representou uma oportunidade
única para os movimentos anticolonialistas fazerem contato com
intelectuais de fora da bolha salazarista e poder ter uma ressonância no
mundo exterior. O mesmo Figueiredo sucessivamente falará assim do
encontro com Marvin Harris:

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
77
O encontro com Marvin Harris representou uma oportunidade única para
fazer a voz do protesto chegar ao mundo exterior. Um dos homens mais inteligentes
que tive o privilégio de conhecer, o jovem professor logo percebeu a situação e a extensão
do meu apelo de que ele não perdesse tempo durante sua estadia no trabalho de mera
erudição acadêmica (FIGUEIREDO, 1978).

Com a cumplicidade de António de Figueiredo, Marvin Harris se


interessou pelas condições de exploração dos africanos governados pelo
Estatuto dos Indígenas. O ponto de quebra das cada vez mais complicadas
relações entre Harris e as autoridades coloniais foi quando o antropólogo
americano viajou para as instalações de uma empresa de açúcar no Vale do
Limpopo, e começou a questionar os trabalhadores a fim de determinar
se seus contratos de trabalho eram “voluntários” ou “forçados”. Até
aquele momento, o relacionamento entre Harris e Rita-Ferreira, mesmo
tendo se deteriorado rapidamente depois de um começo amigável, nunca
tinha chegado em conflito aberto; mas depois dessa etapa de campo do
antropólogo americano e as evidências de forte presença de trabalho
forçado e semiescravo entre os trabalhadores locais, a crise virou irreversível.
A reação das autoridades foi imediata. Após retornar a Lourenço Marques,
Marvin Harris foi convocado e interrogado pelo Governador-Geral.
Acusado de fazer investigações inadequadas e trair a confiança do governo
português, ele foi “convidado” a deixar o país em março de 1957.

Em 1958, logo após seu retorno aos Estados Unidos, Harris


publicou um ensaio intitulado Portugal’s African ‘Wards’ (HARRIS 1958),
que, ao lado das obras do historiador James Duffy, é uma das primeiras
denúncias da ação colonial do regime português feita por um estudioso
internacional. Enquanto isso, António de Figueiredo, como colaborador
e assistente de Marvin Harris, passou a ser perseguido pela PIDE. Ele
acabou sendo preso. Mantido em confinamento solitário, foi deportado
para Portugal e finalmente exiliado em Londres.

Mas os acontecimentos que se desencadearam na viagem de


Harris tiveram consequências de longo prazo. De Londres, António
de Figueiredo manteve uma intensa troca de cartas com intelectuais

78
do exterior empenhados nas lutas anticoloniais, entre eles, seu amigo
Marvin Harris. Foi no âmbito dessa correspondência que Harris
enviou pra Figueiredo uma carta aconselhando maior proximidade e
solidariedade com a causa da Frente de Libertação de Moçambique
(FRELIMO) e seu presidente, Eduardo Mondlane51, que se preparava
para visitar Londres com o propósito de ganhar apoio para a causa da
independência.

Marvin Harris já estava em contato, desde o início da luta contra


o colonialismo português, com alguns dos líderes da FRELIMO e
especialmente com Eduardo Mondlane. Devemos lembrar que antes de
se tornar presidente da FRELIMO, Eduardo Mondlane havia obtido seu
doutorado em Sociologia e Antropologia pela Northwestern University
e foi professor na Universidade de Syracuse, nos Estados Unidos. É
provável, portanto, que os contatos entre Harris e Mondlane datem
desse período, mas não há documentos disponíveis que permitam aferir
com rigor essa hipótese.

A viagem de Harris produziu, sem dúvida alguma, danos


gravíssimos pela imagem já fortemente descreditada do colonialismo
português. Não só foram divulgadas as práticas diárias de controle
semiescravo da população indígena moçambicana e as formas de
controle colonial português, mas como efeito secundário dessa viagem,
Harris fez ligação entre opositores do regime colonial colocando em
contato Mondlane e Figueiredo, assim fortalecendo o movimento de
libertação nacional nascente em Moçambique.

Na tentativa de limitar os danos, em julho de 1960, com o objetivo


de desfazer a impressão negativa da política colonial portuguesa deixada
na comunidade internacional por Marvin Harris, Jorge Dias convidou
Charles Wagley para fazer uma viagem a Moçambique, Angola e Guiné-
Bissau. A iniciativa, como já dito, contou com o apoio de Adriano
51. Eduardo Mondlane era um pan-africanista, fez seu doutoramento em universidade norte-ameriana,
e foi o primeiro dirigente e co-fundador da FRELIMO, em 1962. Considerado um estrategista da unida-
de nacional de Moçambique, superando o chamado “Tribalismo”. Foi assassinado em fevereiro de 1969
em Dar es Salam, Tanzânia, vítima de uma encomenda-bomba. Seis anos depois, em 1975, a FRELIMO
assumiu o poder em Moçambique.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
79
Moreira e foi uma tentativa de fomentar o intercâmbio acadêmico entre
o ISEU, em Lisboa, e a Universidade de Columbia. Apesar das tentativas
de intercambio acadêmico entre universidades, a real motivação de
‘reconstruir o que estava quebrado’ era mais que evidente.

A viagem de Charles Wagley

O uso instrumental da viagem de Wagley para Dias e o


governador-geral do Moçambique ficou evidente desde o início.
“Um ato político de longo alcance” (MACAGNO 2018): assim Jorge
Dias descreveu a visita de Charles Wagley às províncias estrangeiras
de Portugal em seu relatório confidencial. O objetivo do relatório
foi informar Adriano Moreira, sobre os resultados das campanhas
antropológicas (MEMEUP) e, especificamente das partes relativas
a Wagley, a viagem em Moçambique, Angola e Guiné Bissau. Esse
relatório, que não foi publicado, foi analisado em detalhe no trabalho de
Macagno e representa a única fonte de informações sobre o itinerário
que os dois antropólogos seguiram e os acontecimentos ao longo da
jornada. Assim, temos somente a versão de Dias, e como será possível
ver, fica difícil discernir as informações acreditáveis das manipuladas
pelo autor. Deve-se lembrar que esse relatório era um documento
confidencial, construído para uso do ministro Moreira e se destacam
com facilidade os exageros retóricos e a vontade de impressionar a
administração colonial sobre os resultados positivos da viagem.

Wagley e Dias já eram velhos conhecidos e o antropólogo


português utilizou essa ligação como elemento de convencimento para
o Wagley aceitar a oferta da viagem e uma possível colaboração posterior
entre a Universidade de Columbia e o ISEU. Eles compartilhavam
afinidades intelectuais, mas, ao mesmo tempo, tinham diferenças
políticas. O antropólogo português sabia muito bem que a tarefa de
convencer Wagley dos benefícios da ação colonialista portuguesa na
África era muito desafiadora.

80
No relatório da viagem, a figura de Marvin Harris aparece em
inúmeras ocasiões, como evidencia Macagno, a sublinhar o fracasso da
máquina policial da PIDE e as consequências gravíssimas para a imagem
do Portugal no mundo. O “fantasma” de Marvin Harris apareceu várias
vezes nas conversas que Jorge Dias e Charles Wagley tiveram durante
sua estadia em Moçambique (MACAGNO 2018).

Ao longo de suas viagens, Dias teve que apresentar oficialmente


seu convidado às autoridades locais, entre elas, o governador-geral de
Moçambique, Gabriel Teixeira. Durante essas reuniões, o Governador, ao
saber que Wagley era da Universidade de Columbia, aproveitou para expressar
sua discordância com as críticas que Marvin Harris havia feito ao regime
português. O encontro, entretanto, pareceu frutífero para os propósitos de
Jorge Dias. O Governador, “com extrema habilidade e elegância, destacou a
falta de base” para alguns dos pontos de vista de Marvin Harris. Ao deixar o
palácio do governador, ambos os colegas, Dias e Wagley, comentaram sobre
a reunião. Evocando os comentários do governador, Jorge Dias aproveitou
para reforçar suas críticas a Marvin Harris:

“É evidente que os portugueses não são americanos e não podemos julgá-los


como se fossem. A tese de Marvin poderia estar correta se o que aconteceu aqui com o
recrutamento de trabalhadores para a mina de Rand fosse obra dos americanos, ingleses
ou alemães, mas com os portugueses é uma história diferente”. (MACAGNO 2018)

Com diplomacia e prudência, Charles Wagley preferiu, naquele


momento, não contradizer o entusiasmo lusotropicalista de seu anfitrião –
um entusiasmo que, paradoxalmente, parecia ser diretamente proporcional à
consolidação das organizações anticolonialistas dos moçambicanos no exílio.
Na época, estava se construindo rapidamente um ambiente internacional em
favor da descolonização, mas o Portugal persistia, no âmbito da ONU, numa
posição intransigente de manter seus territórios ultramarinos recusando
qualquer tipo de mediação ou concessão. Na mesma época que Dias e o
Governador-geral estavam tentando convencer Wagley dos benefícios do
projeto colonialista do Estado Novo salazarista e do Estatuto dos Indígenas,
em Londres Mondlane e Figueiredo estavam fazendo os primeiros contatos e
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
81
fortalecendo a oposição à dominação colonial, só esperando a oportunidade
de voltar em solo africano e começar a luta armada.

Nos primeiros dias da visita, Jorge Dias mostrou ao seu


convidado os bairros africanos de Lourenço Marques, e as primeiras
impressões do antropólogo americano não foram boas. Parece que
Wagley se mostrou altamente cético acerca das condições de vida e de
integração da população indígena na sociedade colonial moçambicana.

Dias não desistiu da tarefa e construiu um itinerário complexo,


que teria levado os viajantes de Lourenço Marques para o interior do
país, primeiro para João Belo (a moderna Xai Xai) e sucessivamente para
Zavala, onde foram preparadas apresentações dos famosos músicos e
dançarinos de xilofone Chope.

Depois disso, foram para Inhambane. Na estrada, eles


encontraram alguns agentes locais recrutando trabalhadores
moçambicanos para as minas sul-africanas. Dias comentou com Wagley
que essas práticas estavam causando forte indignação na comunidade
internacional e entre seus colegas do MEMEUP (MACAGNO 2018).

Perto de Inhambane, em Maxixe, Wagley pediu para visitar o


missionário Greenberg, que já havia vivido antes em Lourenço Marques.
Durante sua estadia em Moçambique, Marvin Harris tinha passado um
tempo hospedado na casa do missionário. A figura do Harris reaparece
então na cena do relatório confidencial de Dias, assim como as críticas
do autor português. Sobre este encontro com o missionário, Dias relatou:

... ao contrário do que o Prof. Wagley esperava, o missionário estava bastante


chateado com Marvin Harris e o acusou de se deixar ser atraído por maus informantes e
de não saber como se comportar em um país estrangeiro. (MACAGNO 2018)

Não dá para saber qual foi o teor da conversa entre o missionário e


Wagley, mas pela escolha de palavras de Dias, pode-se imaginar que Wagley
esperava que o padre fosse um apoiador das formulações de Harris.

82
De Inhambane eles voltaram para Xai Xai. Nos dias que se
seguiram, visitaram Inhamiça e as cooperativas de Zavala e Chibuto.
Em seguida, eles se mudaram para Caniçado (perto de Chókwè) e para
um pequeno lugar, chamado Vila Alferes Chamusca na província de
Gaza. Por fim, retornaram a Lourenço Marques:

A cidade já não era tão desagradável aos olhos dos meus companheiros como
tinha sido nos dias seguintes à sua chegada. Eles agora viram com uma compreensão
diferente nossos problemas, mesmo que sua atitude ainda fosse abertamente crítica e negativa.
(MACAGNO 2018)

Voltando à capital de Moçambique, os antropólogos se


prepararam para a segunda parte da viagem, que teria levado os casais
para Angola e, sucessivamente para Guiné Bissau. Cruzando a fronteira
em Ressano Garcia, os viajantes entraram na Africa do Sul e passando
pela atual Namibia, entraram no sul da Angola.

De passagem por Joanesburgo, eles visitaram vários colegas da


universidade, entre eles M. G. Marwick. Jorge Dias era professor visitante
no país vizinho, por isso os visitantes foram bem recebidos. No entanto,
cruzar a Namíbia em direção a Angola tornou-se complicado, à medida
que os órgãos oficiais colocavam obstáculos no caminho de suas viagens
pela grande reserva indígena de Ovamboland. Tendo conseguido passar
pela burocracia, eles finalmente receberam autorização para continuar
em Windhoek. Rumo a Sá da Bandeira (hoje Lubango), passaram pela
Vila Pereira de Eça, hoje cidade de Ondjiva, na região de Cunene. Em
Cahama, em conformidade com o relato de Dias, eles visitaram várias
aldeias africanas, incluindo Humbes e Dimbas:

À tarde fomos visitar o Chefe de Posto de Cahama. Dois dias antes, a


esposa do Prof. Wagley me perguntou, um pouco maliciosamente, se havia algum
administrador negro. (MACAGNO 2018)

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
83
Essa pergunta é emblemática no que concerne ao descolamento
entre a teórica “democracia racial” de Gilberto Freyre, que o Estado
Novo estaria tentando implementar nas colônias através do Estatuto
dos Indígenas e a realidade de uma administração colonial que não
tinha nenhum nativo em cargos de responsabilidade e de administração.
A pergunta colocou em crise Jorge Dias, que não respondeu
imediatamente e fez um esforço para lembrar. Por absurdo que seja,
o único administrador negro com quem cruzaram estava em Portugal:

Eu disse que sim, e que a tinha apresentado a um no aeroporto de Lisboa


antes de dessa despedida... Mas no meu coração eu estava preocupado, pensando
que talvez pudéssemos cruzar Angola de sul para norte sem encontrar nenhum. Eu
sabia que havia administradores negros cabo-verdanos, mas eu não conhecia negros
Angolanos, e nos anos que passei em Moçambique, era algo que eu nunca tinha visto.
No entanto, tive a sorte de que o chefe do Escritório Distrital de Cahama fosse um
Negro de Malange, Bernardo André, na verdade muito correto, inteligente e forte, que
falava conosco sem qualquer insegurança ou complexo. (MACAGNO 2018)

A preocupação de Dias fica evidente nas suas próprias


palavras. O ceticismo de Wagley era grande e o cenário colonial
português totalmente controlado para administradores portugueses
foi um obstáculo ao trabalho de convencimento desde o começo da
viagem, e Dias mostra-se totalmente ciente de não ter memória de
nenhum administrador colonial de origem angolana ou moçambicana.
O encontro com Bernardo André é então usado instrumentalmente
para tentar virar o jogo e dar uma imagem falsamente multirracial à
administração colonial. Ficando tão claros os pensamentos e os medos
de Dias, se pode imaginar que essas páginas do relatório não acabaram
nas mãos de Adriano Moreira, mas ficaram como um registro pessoal
dos desafios da tarefa.

Outro registro refere-se ao comentário que Dias faz quando os


dois casais chegaram à cidade de Sá da Bandeira:

84
A cidade é encantadora e acolhedora. Negros e brancos vivem em harmonia
e nas ruas vimos crianças de cores diferentes brincando juntas. O Prof. Wagley tirou
uma foto de dois pequeninhos sentados em um canto do jardim público, um loiro e
um preto. Esses exemplos confirmando nossa política proclamada também estão se
tornando uma fonte de satisfação para o Prof. Wagley, que está sendo cada vez mais
convertido à nossa causa. (MACAGNO 2018)

Se o parágrafo precedente mostra todas as dificuldades de


convencimento, nessa parte do relatório Dias parece convencido de ter
virado o jogo e já ter obtido o apoio de Wagley. Mas, sem ter a voz de
Wagley registrada em alguma forma, é difícil acreditar numa ‘conversão’
à causa colonialista portuguesa tão subitânea depois de tantas evidências
de um ceticismo e de uma crítica do sistema. É possível, no entanto, que
no relatório em questão, Dias estivesse tentando convencer e assegurar
ao seu mentor, Adriano Moreira, que os imensos esforços materiais e
organizacionais da viagem não tinham sido em vão.

Os casais Dias e Wagley encerraram a viagem em Luanda. Lá,


a esposa e a filha de Wagley embarcaram em um voo para Lisboa, para
retornar finalmente a Nova York. Charles Wagley continuou sua jornada
sozinho, indo em direção à Guiné-Bissau. Dias considerou acompanhá-
lo, mas no último minuto teve que cancelar. Devido à situação política
no Congo52, pela qual eles teriam que retornar, a viagem não era
aconselhável para um cidadão português: “Infelizmente não foi possível
acompanhar o Prof. Wagley à Guiné, como esperávamos. A Agência
Cook nos convenceu de que, embora fosse fácil chegar a Bissau, era
muito difícil voltar para Luanda. Na viagem de volta, teríamos que
52. Em aula do prof. Alfredo Wagner foi ministrada a seguinte informação: os conflitos políticos no
Congo revelavam interesses de grandes empresas mineradoras em Katanga, que levaram ao assassinato
do primeiro ministro Patrice Lumumba, que fora eleito em julho de 1960 e ocupou o cargo por menos
de três meses, quando um golpe de Estado apoiado pela Belgica, França e Estados Unidos o destituiu
do cargo em janeiro de 1961. A seguir ele foi sequestrado por militares e assassinado barbaramente e
seu corpo jamais foi localizado. Em setembro de 2020 a justiça belga respondeu favoravelmente a uma
ação de solicitação da família de Lumumba para que fosse restituído a ela o único vestígio restante de
Lumumba: um dente, o qual foi apreendido da família de um policial belga que contribuiu no desapa-
recimento de seu corpo e guardou o dente como relíquia.Este resto mortal, de um corpo jamais locali-
zado, foi conservado por um dos militares que o esquartejou e que teria dissolvido seu corpo em ácido,
conforme dados divulgados agora face a esta ação judicial. Conjur.com.br/2020/-set.12/be consultado
em 13/09/2020.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
85
ficar em Leopoldville por cinco dias, algo que não era aconselhável na
época.” Sabemos pouco sobre a estadia de Charles Wagley na Guiné-
Bissau. Aparentemente, Wagley estava fascinado com as formas que o
Islã tinha tomado nesta região. Parece que tivesse até um projeto futuro
de pesquisa mais detalhada e aprofundada sobre Guiné Bissau pelo
autor, mas esse projeto nunca se concretizou na prática.

Em relação aos projetos africanistas de Wagley, pouco se sabe.


Tem alguma esparsa notícia de um diário de campo da sua viagem
africana, como afirma Macagno no seu trabalho, relatando uma menção
do antropologo americano Harry G. West, que disse de ter recebido
uma cópia desse documento da filha de Wagley. Mas até o momento
todas as tentativas de recuperar esse relato de viagem não deram
frutos. Não temos acesso a versão de Wagley dessa viagem, e seria
extremamente importante poder acessar à registro e pensamento do
autor sobre sua jornada africana, para poder balançar as afirmações de
Dias com um contraponto menos ligado à necessidade propagandística.
Mas na ausência disso, o conspícuo silencio oficial de Wagley sobre essa
experiência talvez seja mais ‘loquaz’ de o que parece ao primeiro olhar.
Não publicar nada sobre a sua experiencia africana pode ter sido um
ato de amizade por Dias, travado num papel oficial difícil e exposto a
possíveis retaliações da PIDE e do poder colonial português.

Conclusões

Até 1961, apesar da pressão internacional sobre Portugal


cada dia mais poderosa, a ideologia lusotropicalista, de aculturação
dos indígenas africanos à cultura portuguesa, ainda conseguia manter
um certo grau de aceitação. Naquele momento, alguns porta-vozes e
intelectuais coloniais ainda imaginavam um “futuro português” para os
territórios ultramarinos. Pensava-se que com a política de reformas –
da qual Adriano Moreira era o protagonista central – e com uma política
de independência política gradual e negociada seria possível criar

86
“outros” Brasis na África, baseados na ‘democracia racial’ descrita por
Freyre53, também mencionada explicitamente por ele, numa referencia a
Cassiano Ricardo, como “democracia social e étnica” (Freyre,1971:65).
Mas rapidamente esses desejos lusotropicalistas começaram a mostrar
seu lado anacronístico. Como vemos, o próprio Charles Wagley estava
ciente desta quimera ideológica.

Em fóruns internacionais, a língua lusotropicalista da diplomacia


portuguesa não teve mais qualquer efeito. Talvez o sintoma mais
paradigmático dessa fragilidade esteja condensado na famosa frase de
Salazar, pronunciada em 1965: “lutamos sem alianças, orgulhosamente
sozinhos”, sombriamente reminiscente do ditado fascista “molti nemici
molto onore”. O lusotropicalismo foi paulatinamente perdendo sua
força de convencimento, seja no campo intelectual, seja na cena política
da ação colonial, sobretudo entre as forças armadas portuguesas. O
fracasso final da aventura colonial portuguesa foi, sem dúvida uma
das principais causas da Revolução dos Cravos do 1974, que liberou o
Portugal dos últimos vestígios da ditadura salazarista, já mortalmente
enfraquecida pela renúncia do ditador por motivos de saúde.

Em 1º de maio de 1961, o jovem e recém-nomeado Ministro dos


Territórios Ultramarinos, Adriano Moreira, encontrou-se em Luanda,
acompanhado pelo secretário estadual de Aeronáutica, com Kaúlza de
Arriaga. A luta contra a presença portuguesa tinha acabado de explodir
em Angola naquele ano. No dia seguinte, Adriano Moreira participou de
um desfile das primeiras tropas expedicionárias portuguesas que haviam
chegado pelo mar e agora estavam prontas para lutar contra as forças
anticolonialistas e de libertação nacional. Em dezembro daquele ano,
53. Vide aula ministrada pelo Prof. A. Wagner, no curso de 2019, que recuperou as interpretações de
Freyre em Novo Mundo dos Trópicos, cuja primeira edição em inglês data de 1963 e a portuguesa data
de 1971, abordando o sistema de plantação e do bandeirantismo de Cassiano Ricardo. Segundo Freyre
o referido autor “observa, com muita razão, que as bandeiras mais do que qualquer oura instituição, é
que promoveram a democracia social e étnica tão característica do Brasil. (Freyre,1971:65). Freyre neste
esforço de reiterar uma idealização das grandes plantações, afirma que o faz em consonância com estu-
diosos da história social do Brasil, isto é: “que, visto em conjunto, o regime de escravidão nos engenhos
e nas fazendas brasileiras no século XIX parece ter sido bem menos despótico do que a escravidão
em outras regiões da América; e menos cruel - se se pode admitir grau na crueldade – do que o re-
gime de trabalho na Europa industrial, durante os terríveis cinquenta primeiros anos do laisser faire
econômico...” (Freyre,197168) (g.n.).

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
87
o governo da União Indígena ocupou os territórios “portugueses” de
Goa, Daman e Diu. 1961 marcou o início do fim do Império: em abril, a
Assembleia Geral da ONU instou o governo português a realizar reformas
urgentes para cumprir a chamada “Declaração Anticolonialista”. A
revogação do Estatuto dos Indígenas, realizado por Adriano Moreira,
além de algumas outras pequenas reformas, não foi suficiente para
baixar a pressão internacional que estava progressivamente aumentando
contra o regime salazarista. No ano seguinte, em 1962, nacionalistas
exilados de inspiração marxista fundaram a FRELIMO, em Tanganica
que tinha acabado de se libertar da dominação colonial inglesa e cujo
presidente Julius Nyerere abençoou e apoiou desde o começo a iniciativa
de libertação de Moçambique. O desgaste do regime colonial português
prosseguiu lento e constante ao longo de toda a década dos ’60, seja
militarmente através das ações da FRELIMO, seja na cena internacional
com o isolamento do regime falangista de Salazar por meio de sanções
de organismos transnacionais.

Em 1964, a FRELIMO iniciou a luta armada no norte de


Moçambique contra a presença portuguesa. Quando estavam conduzindo
suas pesquisas nesta região, nem Jorge Dias nem Margot Dias estavam
cientes das simpatias que seus interlocutores Makonde expressavam
pela causa anticolonial. É claro que, na época, essas simpatias nunca
poderiam ter sido expressas abertamente, e provavelmente, mesmo que
Dias possa ter percebido simpatias independentistas nas populações
contatadas essas nunca ficaram evidentes nos seus relatórios.

Em 1968, por motivos de saúde, Salazar não pôde continuar e


Marcelo Caetano foi indicado pelo governo para assumir suas funções.
Isso acelerou a crise do regime colonial, e o Portugal logo começou a
sofrer sérias derrotas políticas e militares nas províncias estrangeiras,
enquanto na metrópole se difundia o descontentamento e a oposição.
A “guerra na África” tornou-se um empreendimento inútil e fatal.
Nessa época, Adriano Moreira já havia abandonado o cargo de Ministro
dos Territórios Ultramarinos, retornando às suas atividades como
professor universitário. O afastamento de Salazar marcou o inevitável

88
fim do Estado Novo, logrado nas colônias e na metrópole. Depois de
uma longa e inútil guerra, o exército tinha se tornado adversário do
regime fascista e, finalmente, depois de mais seis anos do afastamento
de Salazar, tomou o poder através da Revolução dos Cravos, que põs
fim seja ao regime do Estado Novo, seja à aventura colonial portuguesa.

As viagens à África de Harris e Wagley, mesmo tendo deixado


poucos documentos que descrevam em detalhe o que aconteceu e
sobretudo quais foram as impressões diretas dos autores, representa
um evento que parece um resumo do tardio colonialismo europeu na
África. Nessas duas viagens se opuseram dois jeitos de fazer trabalho
de campo e antropologia radicalmente diferentes: de um lado Marvin
Harris que para desmascarar a propaganda lusotropicalista fez contato
logo no começo da sua viagem com membros da oposição ao regime
colonial e por suas formulações foi expulso das colônias portuguesas na
África; de outro lado Jorge Dias, que apesar de uma crítica do racismo
dos colonos portugueses em Moçambique e Angola, foi um defensor da
presença colonial e do projeto lusotropicalista de miscigenação positiva
e foi envolvido diretamente em projetos propagandísticos do Estado
Novo. Do lado de Dias, uma visão colonialista da antropologia e de
um mundo cada vez mais datado e insustentável, um mundo que estava
escapando à descrição freyrana do lusotropicalismo e abrindo espaços
para os movimentos anticolonialistas de libertação nacionais africanos.
Da perspectiva de Harris, um jeito muito mais envolvido e ativista de
fazer antropologia, agindo fora dos controles oficiais e contra o poder
colonial, coletando informações através de contatos com membros
da oposição anticolonialista e até fazendo de tramite entre diferentes
grupos da resistência, como quando colocou em contato Figueiredo e
Mondlane. Mediante esses dois extremos, tem-se a posição de Wagley,
que evitará de tomar posição oficial, mas que podemos imaginar ser
bem mais simpático às ideias de Harris do àquelas de Dias.

No curso da década de ’60 as mudanças rápidas no cenário


africano, com sucessivas vitórias dos movimentos de libertação nacional,
e em escala global arquivarão definitivamente não simplesmente a

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
89
presença colonial europeia, mas com ela também a velha antropologia
colonialista, que Dias encarnava, facultando assim condições objetivas
para uma discussão sobre a emergência e os rumos de uma antropologia
pós-colonial, compreendendo uma leitura crítica das práticas
colonialistas.

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ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
91
92
O FAZER ETNOGRÁFICO DE JOSEPH B. CASAGRANDE
EM In the Company of Man.

Vinicius Cosmos Benvegnú 54

Esse artigo consiste numa análise crítica, com propósito


reflexivo, do significado de descrições etnográficas selecionadas,
levando em conta o olhar dos principais informantes de diferentes
experimentações de pesquisa a partir de um livro que corresponde, em
termos de genero textual, a um catálogo, contendo fotos e narrativas
destes agentes sociais imprescindiveis à produção antropológica da
década de 1950-60. Trata-se de um exercício reflexivo em que confluem
discussões acerca do fazer etnográfico e do trabalho de campo,
com discussões sobre a relação entre ações colonialistas e trabalho
antropológico. As reflexões aqui contidas foram inicialmente discutidas
em dois cursos que frequentei, no âmbito do programa de doutorado em
antropologia social da Universidade Federal do Amazonas, ministrados
pelo professor Alfredo Wagner, organizador da presente publicação.
Os dados concretos referidos ao meu objeto de reflexão decorrem
da análise crítica dos critérios de seleção dos principais informantes
concernentes a trabalhos etnográficos clássicos, que integram o livro
intitulado In the Company of Man organizado pelo antropólogo
estadunidense Joseph Bartholomew Casagrande. Focalizo notadamente
o Prefácio e o capítulo, John Mink, Ojibwa Informant, ambos escritos pelo
organizador do livro,. O livro publicado em 1960, consiste em uma
coletânea de vinte artigos elaborados por antropólogos e antropólogas
empenhados em apresentar seus principais interlocutores durante suas
pesquisas de campo. As experiências selecionadas estão datadas de 1928
a 1956, sendo 5 delas de antes da II Guerra Mundial e 15 de 1945 a
1956. Durante estas quatro décadas as orientações de procedimentos de
pesquisa antropológica eram feitas, notadamente a partir da figura dos
denominados key informants (informantes-chave), quais sejam agentes
54. Cientista Social, doutorando em Antropologia Social do Programa de Pós Graduação em
Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas, UFAM.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
93
sociais que funcionavam como principais fornecedores de informações
das unidades sociais (tribos, comunidades, povos, grupos) estudadas e
que apoiavam efetivamente as atividades de campo dos antropólogos
seja como guias, mateiros, entrevistados, tradutores, auxiliares de
pesquisa ou hospedando os antropólogos em suas residencias ou em
lugares por eles indicados. Nos parágrafos abaixo procuro refletir sobre
o antropólogo, seus escritos e como eles refletem num savoir-faire de
uma antropologia estadunidense do pós-II Guerra Mundial.

1. Relações estabelecidas na seleção dos artigos

A coletânea organizada por Casagrande pode ser lida como um


conjunto de relatos cicunstanciando a relação entre o antropólogo e
seu respectivo “informante-chave”. Ao debruçar sobre os meandros de
uma análise reflexiva, verifiquei os componentes de um certo padrão de
descrição etnográfica em que o antropólogo ao afirmar a sua atividade
profissional pela utilidade, nos termos de uma antropologia aplicada,
projeta-a na seleção e na classificação de pesquisas construidas com
propósitos outros, agrupando autores segundo critérios contingenciais,
como aqueles que emergem num contexto de guerra. Gostaria de
iniciar, portanto, assinalando a arbitrariedade das classificações e da
escolha dos critérios adotados pelo organizador para compor o livro.
Escapando à própria ordem de exposição do livro, temos o critério
das experiências pessoais de Casagrande e de seu trabalho de campo,
relatadas no artigo dedicado ao sábio Objiwa John Mink, que foi seu
“informante-chave” durante sua estada na Reserva Indígena Lac Courte
Oreilles, no noroeste do estado do Wisconsin em 1940-41. Casagrande
adotou como procedimento elementar no trabalho de campo uma
perspectiva antropológica que se valia da figura do “informante-chave”
(key informant), objetivando acessar os mundos de outrem, descritos e
discutidos como cultura.

94
O chamado “informante-chave” consistiu num elemento
central no âmbito de uma abordagem inspirada nas premissas de uma
antropologia aplicada que era praticada por Casagrande e seus pares.
Tal informante reunia predicados importantes para que o antropólogo
pudesse exercer seu trabalho de maneira sistemática. Era pessoa com
preponderância e influência em sua referida comunidade, desfrutando
de atributos que proporciavam respaldo e legitimidade ao antropólogo
perante as demais unidades familiares. As relações sociais privilegiadas,
mantidas regularmente com tal informante, asseguravam um
reconhecimento do trabalho de pesquisa pela unidade social estudada
(grupo, tribo, comunidade, povo). Os chamados “informantes-chave”,
ocupavam um lugar de destaque na mediação, transitando entre seu
mundo e as agencias da sociedade nacional. Para tanto dominavam o
idioma do antropólogo e tinham conhecimento detido do seu itinerário
e de suas atividades rotineiras tornando-se uma espécie de “tradutores”
desse “entre-mundos”. Disso decorrem o uso e o significado da palavra
“chave” no seu mais completo sentido metafórico. O “informante-
chave” corresponderia idealmente àquele que iria “abrir” as portas dos
conhecimentos e dos saberes, dos ritos e das narrativas míticas de sua
comunidade para o antropólogo. Contudo, como comenta Bachelard
(1996, p. 97), as metáforas seduzem a razão e convertem imagens
particulares em esquemas gerais. Assim, as “descobertas” a partir dos
relatos e das experiências concretas, próprias dos “informantes-chaves”,
tornavam-se, nas mãos dos antropólogos, princípios para interpretações
e análises gerais a respeito dos fundamentos da organização social das
unidades estudadas.

No Prefácio, Casagrande apresenta a concepção do projeto


do livro, seus objetivos, os autores, cuja formação acadêmica é em
antropologia, e seus respectivos artigos enfatizando o papel dos
“informantes-chave” e as relações que tais autores mantinham com eles.
Estas relações, que exprimem elevado grau de confiabilidade mútua,
construidas pelos antropólogos durante o trabalho de campo tornam-
se um dos fatores que teriam orientado as escolhas. Nos meandros da

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
95
descrição do organizador nos deparamos com outros critérios para a
composição do livro, que também decorrem de relações sociais que
caracterizam a trajetória pessoal do referido organizador. Assim, tem-
se um total de 20 (vinte) autores, todos antropólogos e antropólogas
anglófilos, destacando-se a prevalência de 15 (quinze) antropólogos
estadunidenses. Dentre os autores elencados no livro a maioria absoluta
integra uma rede de relações de afinidade e de solidariedade profissional
muitissimo próxima à Joseph Casagrande, senão vejamos: alguns foram
seus professores, como por exemplo Clyde Kluckhohn e Charles
Wagley, outros o inspiraram diretamente com suas teorias e outros ainda
foram seus colegas durante sua formação cadêmica na Universidade de
Columbia, Nova York.

Outro critério que pode passar desapercebido aos olhos menos


atentos é a temporalidade dos encontros entre o antropólogo e seu
“informante-chave”. As relações de pesquisa datam de um período de
vinte anos aproximadamente, tendo a Segunda Guerra mundial como
interstício. Assim 04 (quatro) artigos, que compõem o livro, datam de
anos que precedem ao conflito bélico. Dois (02) artigos, escritos por
autores estadunidenses, datam de 1941, durante o transcurso da segunda
guerra, mas anteriormente à entrada dos Estados Unidos diretamente
no conflito55. Um desses artigos é justamente o de Casagrande que
esteve entre os Ojibwa antes de ser enviado para a guerra na Europa,
em 1942. Ao todo são 12 (doze) antropólogos e antropólogas que
serviram durante a guerra, como soldados de baixa patente ou como
oficiais em serviços de inteligencia. E pelo menos 02 (dois) fora desta
lista foram encarregados, pelo Gabinete de Informação de Guerra, de
elaborar relatórios de pesquisas com dados sobre alemães e sobre povos
asiáticos. Treze (13) artigos datam de pesquisas realizadas a partir do
armistício, sendo o ano de 1956 o último ano de pesquisa datada e o
mais próximo do ano da publicação em 1960. A única exceção é o artigo
de Robert H. Lowie cuja a relação de pesquisa entre o povo Crow data

55. Os Estados Unidos entram formalmente na II Guerra Mundial após 7 de dezembro de 1941, data
do ataque militar japonês, de surpresa, sem declaração formal de guerra, às instalações e equipamentos
navais e aéreos norte americanos em Pearl Harbour, Honolulu, Território do Havai.

96
de 1910. Na tabela que segue essas informações podem ser vistas de
forma mais esquemática e com maior discernimento.

A participação direta na guerra consistiu portanto numa outra


condição solidária de aproximação entre os autores. As informações
na tabela demonstrativa registram nominalmente aqueles que, de
diferentes maneiras, fizeram parte das forças militares.Embora não
assinalada constata-se que Margareth Mead igualmente contribuiu para
o Gabinete militar mencionado. Deste modo, tem-se que antropólogos
e antropólogas foram requisitados pelo Exército dos Estados Unidos
para realizar trabalhos diversos durante a Segunda Guerra, tal como
foram também utilizados indígenas, cujos troncos linguisticos serviram
para a elaboração de códigos nas comunicações. Dos 20 (vinte) autores
do livro, 14 (catorze), se considerarmos Lowie e Mead, serviram nas
ou às forças armadas56.

Muitos trabalhos antropológicos elaborados a partir de e para


uso em conflitos bélicos, tornaram-se referências para as discussões de
pesquisa e ensino da antropologia. Um caso muito conhecido é o estudo
feito por Ruth Benedict, sob encomenda do Gabinete de Informação
de Guerra a respeito dos japoneses e sua devoção ao imperador.
Robert Lowie, autor de um dos artigos do livro de Casagrande, foi
encarregado, também pelo Gabinete de Informação de Guerra, para
escrever um artigo sobre os alemães, que resultou no livro O povo
alemão (1945). Clyde Kluckhohn atuou no Serviço de Informação
de Guerra (BENEDICT, 1972, p. 8) e posteriormente escreveu sobre
as importantes contribuições da antropologia nos esforços de guerra.
Esses dados nos são muito caros pois mostram como uma forma de
antropologia aplicada, praticada nos Estados Unidos, ganhou força e foi
implementada consoante interesses e políticas nitidamente colonialistas,
como no caso da aliança com os franceses na antiga Indochina (Vietnam)
na guerra contra movimentos de libertação nacional de 1948 até a batalha
56. Durante o curso o professor Alfredo Wagner mencionou a respeito desta participação passagens
das formulações de David H. Price no seu livro – Anthropological Intelligence. The deployment and
neglect of American Anthropology in the Second World War. Durham and London. Duke University
Press. 2008

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
97
de Diên Biên Phú, em 1954. Este tipo de ação antropológica perpassa
as lutas anticoloniais e aquelas referidas às novas nacionalidades seja na
Indochina ou na África, no Vietnã ou no Congo, e se mostra transhistórica
facultando aproximações com procedimentos de campo e fatos do
presente57. Práticas de antropólogos, que marcaram as etnografias nas
sociedade coloniais, tem sido resgatadas no âmbito de intervenções
ou pesquisas antropológicas contemporâneas, demonstrando que tais
procedimentos de pesquisa perpassam o colonialismo, ao superarem
fronteiras que usualmente são mencionadas como marcos de clivagem
para estabelecerem as respectivas distinções face à lógica de ação do
imperialismo (Almeida,1918).

57. O exemplo maior seria o projeto governamental estadunidense chamado Human Terrain System
(HTS). Terreno Humano consiste numa expressão utilizada comumente no jargão militar para se
referir às populações de zonas onde há conflitos armados. Os primórdios do projeto dizem respeito
à solução para enfrentar o “fosso cultural” enfrentado pelo exército norte-americano na invasão do
Iraque e do Afeganistão. Na superação do denominado “fosso” as autoridades militares decidiram
recrutar antropólogos nestas suas ações bélicas incorporando-os nas tropas de combate pra produzirem
conhecimentos sobre realidades localizadas concernentes a comunidades rurais e a cidades com revoltas
populares. Foram incorporados às tropas mais de 120 antropólogos, elaborando relatórios sobre povos
e comunidades nas linhas de frente e procedendo inclusive a trabalho de campo através de observações
in locco e entrevistas com escolta armada. Este programa foi implementado em 2007 com um orçamento
anual de 10 milhões de dólares. Em 2011 o HTS chegou a receber 150 milhões para sua manutenção.
Este programa militar foi encerrado em junho de 2015 pelo governo Obama. Leia-se a propósito, para
fins de aprofundamento: Almeida, Alfredo W.B. de – “Cowboy Anthropology: nos limites da autoridade
etnográfica”. Teresina. Entrerios. Revista do PPGANT-Universidade Federal do Piaui. 2018. pp 8-35.

98
Quadro 1: Apresentação dos autores, artigos, “informantes” e
seu povo, e data do encontro entre antropólogo e “informante”
AUTOR - TÍTULO DO NOME DO POVO DO DATA
NACIONALIDADE ARTIGO “INFORMANTE” “INFORMANTE”
– PAÍS
Raymond Firth (Nova A Polynesian Pa Fenuatara Povo Tikopia 1928
Zelândia)* Aristocrat (Tikopia)
Thomas Gladwin Petrus Mailo, Chief Petros Mailo Povo Truk (do 1948
(EUA) of Moen (Truk) arquipélago da
Micronésia no
Pacífico Ocidental)
E. W. H. Stanner Durmugam, Durmugam Povo Nangiomeri 1932
(Austrália)* A Nangiomeri (aborígenes da
(Australia) Austrália)
Harold C. Coklin Maling, A Hanunoo Maling Povo Hanunoo 1953
(EUA)* Girl from the (Filipinas)
Philippines

A Day in Parina
James B. Watson A New Guinea Bantao Povo Agarabi 1954
(EUA) “Opening Man” (Terras Altas da
Nova Guiné)
Margaret Mead (EUA) Weaver of the Sra. Phebe Clotilda Samoanos (Ilhas 1929
Border (New Coe Parkinson Samoa)
Britain)
Cora Du Bois (EUA)* The Form Ali ben Usmus Javanês (Ilha de Java) 1937
and Substance
of Status: A
Javanese-American
Relationship
John T. Hitchcock Surat Singh, Head Surat Singh Indiano 1953
(EUA)* Judge (India)
David G. Mandelbaum A Reformer of Sulli Povo Kota (Índia) 1949
(EUA)* His People (South
India)
Ian Cunnison The Omda Hurgas Merida Omda (Sudão) 1952
(Escócia)* (Baggara Arabs,
Sudan)
Victor W. Turner Muchona the Muchona Povo Ndembu Década
(Escócia)* Hornet, Interpreter (Rodésia do Norte, 1950
of Religion atual Zâmbia)
(Northern
Rhodesia)
Ethel M. Albert My “Boy,” Muntu Muntu Povo Mututsi 1956
(EUA) (Ruanda-Urundi) (Ruanda-Urundi,
antiga colonia belga)
Laura Bohannan The Frightened Shingir Povo Tiv (Nigéria) 1949
(EUA) Witch (Nigeria)

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
99
Charles Wagley (EUA) Champukwi of Champuki Povo Tenetehara 1941
the Village of the (Brasil)
Tapirs (Brazil)
Edmund Carpenter Ohnainewk, Ohnainewk Povo Inuit (Ártico) 1950
(EUA)* Eskimo Hunter
Robert H. Lowie My Crow Jim Carpenter Povo Crow (Estados 1910
(Áustria-EUA)** Interpreter Unidos)
Clyde Kluckhohn A Navaho Politician Bill Begay Navajo 1948
(EUA)*
Joseph B. Casagrande John Mink, Ojibwa John Mink Ojibwa 1941
(EUA)* Informant
John Adair (EUA)* A Pueblo G.I. Marcus Tafoya Pueblo Pós-
1945
William C. Sturtevant A Seminole Josie Billie Seminole 1950
(EUA) Medicine Maker

* antropólogos e antropólogas que serviram durante a Segunda


Guerra Mundial, como soldados de baixa patente ou como oficiais em
serviços de inteligência.

** Robert Lowie foi encarregado de um estudo sobre o povo


alemão, inimigo de guerra pelo Gabinete de Informação de Guerra, da
mesma forma que fora encarregada Ruth Benedict sobre os japoneses.

100
1. Propriedade Intrínseca: a produção etnográfica de
Casagrande

No que concerne às contribuições acadêmicas de Casagrande,


elas estão relacionadas ao ensino de métodos de campo, à linguística e à
etno-linguística, à aculturação e a padrões de cultura e posteriormente a
estudos comparativos de sociedades camponesas, a partir de seu trabalho
de campo nos Andes Equatorianos. Segundo Thompson (1985) ele
foi um antropólogo sensível e de escuta atenta, estando junto a povos
indígenas norte-americanos, destacando-se os Ojibwa do Wisconsin na
fronteira com o Canadá. A partir do esboço de sua trajetória acadêmica
e dos escritos que compõem o livro In the Company of Man destaco
alguns pontos de necessária reflexão.

Casagrande seguiu a orientação antropológica norte-americana


e aplicada na qual se formou. Na elaboração do livro dois elementos
se mostraram centrais para a seleção de antropólogos isto é: o trabalho
de campo (fieldwork) e os “informantes-chaves” (key-informants). Como
discutirei na sequencia, essa orientação tem relação direta com o trabalho
e as orientações feitas por Franz Boas ainda no início do século XX. A
importância do trabalho de campo é ressaltada por Casagrande logo
no prefácio do livro: “For the anthropologist the field is thus the fountainhead
of knowledge, serving him as both laboratory and library. His research is
necessarily done in the company of man58;59” (p. X, grifos meus). Os
grifos do excerto acima falam de como essa antropologia estava sendo
pensada. Por um lado, In the company of man nos remete à intrínseca
necessidade de que a pesquisa antropológica só poderia ser concretizada
na convivência, na companhia de outrem. Por outro a expressão
“laboratory and library” revela a permanência do biologismo das ciências
58. O livro não possui tradução para a língua portuguesa, dessa forma optei por apresentar no corpo
do texto os excertos no seu original, pois as nuances do idioma trazem pontos importantes para as
discussões aqui propostas. Contudo, trago em notas de rodapé uma tradução livre realizada por mim
mesmo no decorrer das interpretações aqui apresentadas, a qual pode conter eventuais inexatidões, uma
vez que não detenho tal competência técnica específica.
59. “Para o antropólogo o campo é assim a fonte do conhecimento, servindo-o simultaneamente como
laboratório e biblioteca. A sua pesquisa é necessariamente feita na companhia do homem”

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
101
naturais, na episteme das ciências sociais (CASTRO FARIA, 2006, p.
24) e seus consequentes obstáculos para análise crítica das ciências
sociais (ALMEIDA, 2008, p. 63). Nesse sentido, Bachelard nos alerta
sobre os perigos de tratarmos o trabalho de campo como laboratório
e biblioteca do conhecimento antropológico: “um gabinete de história
natural e um laboratório são montados como uma biblioteca, pouco
a pouco; todos confiam: esperam que o acaso estabeleça as ligações
entre os achados individuais” (BACHELARD, 1996, p. 40). Ademais
disso, Pacheco de Oliveira (2016, p. 32; 218-219) ressalta que os dados
etnográficos do antropólogo não devem ser analisados igualmente aos
dados de uma pesquisa de laboratório em que as variáveis estão sob um
controle relativo do cientista, os dados etnográficos não resultam de
condições ideais.

O outro elemento da antropologia praticada por Casagrande


é a centralidade dos “informantes-chaves”. Em uma primeira leitura
mais espontânea podemos afirmar que o livro In the company of man
é dedicado a essa figura. O autor no prefácio afirma: “The relationship
between the anthropologist and a key informant has many of the attributes […] The
relationship between the anthropologist and an informant usually
bridges two cultures […] In final analysis it is unique among the various
forms of human association”60 (p. XI, grifos meus). É importante apontar
porque o “informante-chave” era elemento central dessa antropologia
praticada por Casagrande. Conforme grifado no excerto acima vemos
que o “informante-chave” era aquele que servia de ponte (bridge) entre
duas culturas, entre outras palavras uma posição de mediador.

O historiador da antropologia Roger Sanjek (1990, p. 197) aponta


que a centralidade dos informantes-chave na antropologia iniciou no
século XIX onde: “a gravação de textos com a ajuda de informantes-
chave bilíngues foi um procedimento etnográfico comum no final do
século XIX”, sendo “uma prática aceitável de trabalho de campo nos
anos 1950” (SANJEK, 1990 p.228).
60. “a relação entre o antropólogo e um informante-chave tem muitos dos atributos [...] a relação entre
antropólogo e informante é geralmente uma ponte entre duas culturas [...] Em última análise, é única
entre as várias formas de associação humana”

102
O final do século XIX e o principio do XX é um período em
que a antropologia buscava legitimar-se enquanto ciência. Para tanto
era necessário criar uma linguagem própria (CASTRO FARIA, 2006,
p. 24) e assentar métodos de coleta de dados para sua validação. Nessa
aurora antropológica alguns trabalhos romperam com descrições
classificatórias, colecionistas, missionárias, administrativas, militares,
naturalistas que eram produto do colonialismo. São exemplos dessas
rupturas descritivas os trabalhos de Lewis H. Morgan, Henry Maine e,
um pouco mais tarde, Frank H. Cushing. Além dessas rupturas, estes
autores contribuíram para as bases do que viria a ser o trabalho de
campo (fieldwork) da antropologia a partir de experiências próprias e
genuínas.

Boas foi um outro pesquisador, que realizou trabalho de campo


a partir de 1883 e talvez um dos mais reconhecidos. A partir de seu
trabalho com povos Inuits do Ártico, consolidou o procedimento de
trabalho de campo como um elemento central da antropologia. Tendo
sido professor em Columbia (NY) Boas formou e sua ação teve efeitos
dobre mais de uma geração de antropólogos e antropólogas. Dentre
os autores de In the company of man pelo menos metade deles (dez)
foram marcados direta ou indiretamente por Boas, tendo sido seus
orientados ou alunos de seus orientados.

Casagrande é um desses autores. Durante sua formação foi


aluno de alguns dos principais orientandos de Boas. Uma delas foi Ruth
Benedict que marcou presença em seus trabalhos a partir das proposições
teóricas de cultura e personalidade. Benedict lançou mão do conceito
de personalidade, buscando analisar a personalidade das culturas na
sua plenitude: “Desde este punto de vista, las culturas son psicología
individual proyectada en pantalla grande, psicología individual a la que
se dota de proporciones gigantescas y de larga duración temporal”
(BENEDICT, 1932, p. 24, apud HARRIS, 1979, p. 344). Cada cultura
então, teria uma “personalidade base” ou também o muito difundido
“padrão de cultura” (culture pattern). Essa foi uma proposta teórica
que relacionava antropologia, psicologia e linguística. Nesse sentido,

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
103
no artigo sobre o indígena Obijwa John Mink, Casagrande explicita a
preocupação e a busca por esses padrões de cultura:

“he [John Mink] quickly came to understand our interest in


the general culture pattern rather than the particular instance and our
concern with what must at times have seemed to him to be irrelevant
details of behavior”61 (p. 472).

Esta antropologia de Boas e Benedict entre tantos outros, teve


destaque e proeminência no ensino e nas discussões nas décadas que
se seguiram ao pós-guerra, mas também foi objeto de críticas quanto
a seus procedimentos e escolhas teóricas. Marvin Harris62 fez uma
contundente crítica aos estudos de cultura e personalidade. O autor
afirma que esses estudos apresentam problemas de método e rigor
científico. Para ele, a: “continuidad entre Boas, Benedict, Mead y los
otros antropólogos configuracionistas y de orientación psicológica
la que nos lleva al problema central que tenemos que plantearnos.
Es el problema del método, de los criterios científicos, así como de
la significación funcional de la reforma del particularismo histórico”
(HARRIS, 1979, p. 351).

Ademais dos problemas de método e critérios científicos, Harris


afirma que os estudos de cultura e personalidade eram “cientificamente
irresponsáveis” como podemos ver no trecho que segue: “No es

61. “ele rapidamente chegou a compreender o nosso interesse no padrão geral de cultura e não no caso
particular e a nossa preocupação com o que por vezes lhe deve ter parecido ser detalhes irrelevantes de
comportamento”.
62. Marvin Harris foi um antropólogo que ficou marcado pelas suas argumentações sagazes e polemicas,
buscando sempre o debate e confronto com seus pares. Contudo, poucos sabem, da sua ligação com a
antropologia brasileira e lusófona. Sua tese de doutorado decorreu de seu trabalho em uma comunidade
na Bahia, que resultou no livro Town and Country in Brazil de 1956. Um trabalho dentro dos estudos
de comunidade amplamente realizados nas décadas de 1950 e 1960 e que nesse livro são abordados no
artigo elaborado por Ítala Nepomuceno, que traz uma discussão a cerca dos estudos de comunidade.
Os estudos lusófonos de Harris são abordados neste livro no artigo elaborado por Riccardo Rella que faz
uma discussão relacionando os estudos feitos por Marvin Harris e Charles Wagley nas colônias portu-
guesas africanas e seus efeitos. Estes trabalhos, encomendados pela administração colonial portuguesa,
deveriam ter dado um destaque e uma coonestação internacional ao projeto colonial português, mas na
realidade os dois, em particular o de Harris, tornaram-se extremamente críticos das ações do colonialis-
mo salazarista, a partir de situações concretas registradas no decorrer do tabalho de campo.

104
cuestión de venganza, sino de principio: simplemente, no es posible
conciliar la imagen que los boasianos se hacían de si mismos como el
summum del rigor metodológico con los procedimientos impresionistas,
cientificamente irresponsables, que caracterizan a las primeras fases del
movimiento de cultura y personalidade” (HARRIS, 1979, p. 351).

2. Entre a propriedade intrínseca e a propriedade de


posição: as relações profissionais de Joseph Casagrande e a sua
antropologia.

Casagrande, no entanto, não teve apenas uma carreira acadêmica.


A antropologia na qual se formou possuia uma estreita ligação com
interesses estatais e com formas de reconhecimento que passavam pela
ocupação de cargos e funções.. Era uma antropologia na qual a aplicação
dos métodos e teorias eram direcionados para a solução de problemas
práticos, uma antropologia aplicada ou assim denominada explicitamente
desde pelo menos 1941. Designada como applied anthropology,
“antropologia aplicada” ou “antropologia em ação”, consistiu numa
orientação antropológica, de antes, durante e, principalmente no pós-
guerra, ou seja, de 1945 em diante, os antropólogos que dela se valiam
produziram pesquisas que visavam mudanças em sistemas culturais
específicos em consonância com demandas governamentais63.

É importante destacar que foi Clyde Kluckhohn, um dos


autores do livro In the Company of Man, quem recuperou o
conceito de antropologia aplicada, uma antropologia como mediadora
de ações governamentais (ALMEIDA, 2018, p. 13). Muitos dos
trabalhos antropológicos feitos a partir da orientação e das premissas
da antropologia aplicada foram encomendados e financiados por
agências de desenvolvimento ou forças militares. Casagrande, ex-aluno
63. Para aprofundar as discussões sobre a antropologia aplicada, e sua diferença com a antropologia
da ação conferir, ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. “Antropologia da ação” (action anthropology)
versus “antropologia em ação” (anthropology at work/ applied anthropology). Guarimã – Revista de
Antropologia & Política, 2020.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
105
de Kluckhohn, atuou em instituições que promoviam trabalhos de
antropologia aplicada como instrumentos de transformação social.

Casagrande iniciou seus estudos em antropologia no início da


década de 1940 e tornou-se doutor na University of Columbia (NY) ao
final da mesma década, após o hiato da II Guerra Mundial, quando
trabalhou em posto de Inteligência Militar em Londres. Além de ter
tido aulas com proeminentes professores em Columbia, trabalhou com
Charles Wagley, Julian Stewart e Oscar Lewis. Essas relações marcaram
as relações profissionais e a antropologia praticada por Casagrande. Em
1947 após retornar à Columbia, Casagrande trabalhou com Charles
Wagley como seu professor assistente. Sua dedicação e talento para a
organização lhe renderam a indicação, por parte de Wagley, para que
fosse o organizador do 29º Congresso Internacional de Americanistas
realizado em Nova York em 1949. Em 1950, após reconhecimento pela
organização do Congresso de Americanistas, foi novamente indicado
para trabalhar na administração do Programa de Bolsas do “Conselho
de Pesquisa em Ciências Sociais”64, função na qual permaneceu durante
uma década. Em 1960 retorna para o mundo acadêmico quando
foi convidado para implementar o recém-criado Departamento de
Antropologia da University of Illinois, aonde trabalhou com Oscar Lewis
e Julian Steward.

Como vemos a carreira de Casagrande dentro da antropologia


transita entre algumas experiências no ensino e cargos ou funções
intrínsecas ao meio burocrático e administrativo, incluindo aqui gestão
de atividades vinculadas ao campo da produção científica. Desta
maneira, além das funções elencadas anteriormente, Casagrande foi
secretário da Sociedade Etnológica de Washington (1954-57), bem
como presidente da Sociedade Etnológica Americana (1963-64) e
da Associação Americana de Antropologia (1972-73). Também foi
membro da Sociedade de Antropologia Aplicada dos Estados Unidos,
cuja fundação data de 1941, e se dedicou à gestão de inúmeros
congressos. Como vemos Casagrande foi um articulador de eventos,
64. Social Science Research Council

106
um gestor de associações voluntárias, que convocava antropólogos, seja
nos corredores universitários, seja nos salões das grandes reuniões e
congressos de antropologia, seja em agencias oficiais. Esta capacidade
de mobilização e trânsito entre diferentes acontecimentos foi um fator
destacado em sua trajetória intelectual e de gestor.

Um esforço de análise reflexiva

Discorrido um pouco sobre as relações entre as propriedades


intrínsecas e propriedades de posição de Joseph Casagrande, outros
pontos de interesse para a reflexão aqui proposta podem ser feitos
retomando-se o Prefácio e o artigo sobre John Mink.

Comecemos pela arbitrariedade da categorização e organização


dos textos no livro In the Company of Man, cujo critério utilizado pelo
autor é o geográfico. Casagrande diz:

The various chapters are arranged in roughly geographical order,


beginning with the Pacific Islands and Australia, and running through India, Africa,
South and North America. Within these areas they are further ordered, albeit rather
impressionistically, to provide contrasts of style, tone, and subject, and in a few
instances, to juxtapose sketches of comparable persons65 (p. XIII, grifos meus).

O autor opta por organizar os capítulos obedecendo a um


geografismo e dentro de cada uma dessas áreas ainda busca traçar contrastes
ou comparações entre estilos narrativos ou até mesmo contrastes entre
os “informantes-chaves” descritos. Verifica-se que 05 (cinco) dentre
as etnografias mencionadas referem-se à Oceania (Polinésia/Nova
Zelandia, Micronésia, Austrália, Nova Guiné,Ilhas Samoa); 04 (quatro) à

65. “Os vários capítulos estão organizados por ordem aproximadamente geográfica, começando pelas
ilhas do Pacífico e Austrália, e passando pela Índia, África, América do Sul e do Norte. Dentro destas
áreas estão ainda ordenados, embora de forma bastante impressionista, para fornecer contrastes de esti-
lo, tom e sujeito, e em alguns casos, a esboços justapostos de pessoas comparáveis”.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
107
Ásia (Filipinas, Ilha de Java, India); 04 (quatro) à África ( Omda/Sudão,
Rodésia atual Zambia, Ruana-Urundi, Nigéria), uma (01) ao Ártico (povo
Inuit), uma (01) ao Brasil e finalmente 05 (cinco) aos Estados Unidos. A
noção de região periférica aqui não é exatamente geográfica. Quando se
pensa nos Estados Unidos, transparece uma dimensão metropolitana e de
centralidade,em termos do propalado propósito de “desenvolvimento”,
todavia 04 (quatro) dos povos mencionados (Navajo, Ojibwa, Seminole,
“Pueblo”) estão localizados em regiões de fronteira e 01 (hum) no
Missouri (Crow), na região centro oeste dos EUA, todos numa posição
à margem da organização social dita “desenvolvida” e mais próximos de
uma situação periférica alvo de colonialismo interno.

Na sequencia do parágrafo Casagrande ressalva que os capítulos


podem ser lidos de forma aleatória: “However, little will be lost if the
reader does not choose to read them in the sequence given66” (CASAGRANDE,
p. XIII). Entretanto, a arbitrariedade já está estabelecida e conforme
Almeida afirma, categorias e esquemas interpretativos ancorados no
geografismo, no dualismo ne o biologismo, consistem em noções
deterministas que fundamentam “modelos” explicativos que “produzem
obstáculos epistemológicos” para uma leitura crítica das realidades
sociais observadas empiricamente (ALMEIDA 2008, p. 63). Isso se
deve ao fato de gerarem para o leitor uma síntese axiomática dada como
irretorquível e racional (ALMEIDA, 2008, p. 11).

Um ponto importante de reflexão refere-se à forma como o


autor se refere às narrativas de cada antropólogo sobre seus respectivos
interlocutores. No subtítulo do livro Casagrande faz uso da palavra
“retrato”, “Twenty Protraits by Anthropologists” (Vinte retratos por
antropólogos). Essa palavra, contudo, é usada apenas no subtítulo. Ao
longo de todo o Prefácio o autor usa a palavra “sketches” para se referir
às descrições feitas pelos antropólogos. A tradução mais apropriada,
no contexto do livro, da palavra “sketches” é “esboço”. Ainda que possa
parecer uma escolha arbitrária a escolha e o uso da palavra “sketch” nos
mostram uma diferença conceitual e teórica importante.
66. “No entanto, pouco se perderá se o leitor não optar por lê-los na sequência dada”.

108
Conceitualmente o retrato nos remete a uma ideia de algo
definido, determinado. O retrato é uma imagem fidedigna, que retrata
uma cena ou realidade “como ela é” no momento de seu registro.
A fotografia pode ser prova irretorquível e corresponde aqui a uma
metáfora que transmite autoevidencia.O conceito de esboço por sua
vez remete à descrição aproximada, com os elementos mais importantes
ou significativos de quem o faz, mas sem ter a intenção de uma cópia
fiel. O uso do conceito de esboço (sketch), por Casagrande, sinaliza
também as suas orientações antropológicas. Uma orientação, como
discuti anteriormente, baseada nos estudos de cultura e personalidade.
O esboço possibilita o diálogo com o conceito de “perfil”, usado nas
chamadas discussões comportamentais. Há um excerto do Prefácio que
ilustra essa relação: “In these sketches one sees vividly the subtle interplay
between personality and the cultural forms within which it must work,
each bearing the imprint of the other67” (p. XV, grifos meus). O autor está
justamente afirmando que os esboços dos interlocutores possibilitam
relacionar suas personalidades às formas culturais às quais pertencem.
Sendo assim, o que seria apenas a escolha de um conceito por outro, se
revela em um uso deliberadamente pensado e orientado.

Um ponto dúbio dos textos apresentados diz respeito à reflexão


do autor sobre como as relações de pesquisa refletem nas pesquisas de
campo e nos próprios textos biográficos dos seus autores. São dúbias
porque se de um lado ele faz reflexões sobre a importância de trazer
a figura dos informantes para os textos, de outro deixa de refletir
sobre como as próprias experiências de campo constituem a pesquisa
etnográfica, além de não explicitar como os procedimentos de pesquisa
de campo foram realizados.

No Prefácio, Casagrande faz um convite aos seus pares, aos


estudantes de antropologia e aos seus leitores para refletirem sobre suas
pesquisas:

67. “Nestes esboços, vê-se vividamente a sutil interação entre a personalidade e as formas culturais den-
tro das quais deve trabalhar, cada uma com a marca da outra”

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
109
We hope that all who enter here will come away with a broader conception
of man and the human situation; that the student will gain from this book
acquaintance with a side of the discipline seldom touched upon in more technical
anthropological writings. We trust, too, that our colleagues will find this book
worthy of their professional attention, and that it will awaken in them echoes of their
own experiences in the field68 (p. XIII, grifos meus).

Nesse excerto Casagrande está propondo trazer os informantes


para os textos antropológicos, que de certa forma se concentravam em
exegeses teóricas, sumiam com os sujeitos das ações, ou eram, como
destacado na citação, produções com objetivos técnicos e aplicados
conforme apontado anteriormente.

Se focarmos, entretanto, nossa interpretação, em uma


reflexividade nos termos que Bourdieu nos propõe, cujo esforço está
em “fazer um uso reflexivo dos conhecimentos adquiridos da ciência
social para controlar os efeitos da própria pesquisa” (BOURDIEU
2008, p. 694), o intento de Casagrande acaba ficando diminuto. O mais
próximo de uma “reflexividade reflexa” (BOURDIEU 2008, p. 694) é
quando no Prefácio o autor comenta:

“While the native subjects are the central figures, we have written as well
about our relationships with those we have sought to portray, about our personal
reactions to people and circumstances, and about the way we have gone about our
work69” (p. XIII).

Esse trecho do Prefácio, ainda que aponte para uma tímida


reflexão, nos diz mais sobre como, a partir das relações e memórias
dos interlocutores, há também uma projeção da uma autobiografia
68. Esperamos que todos os que aqui entram, saiam com uma concepção mais ampla do homem e
da situação humana; que o estudante ganhe com este livro o conhecimento de um lado da disciplina
raramente abordado em escritos antropológicos mais técnicos. Também confiamos que os nossos cole-
gas acharão este livro digno da sua atenção profissional, e que despertará neles ecos das suas próprias
experiências no campo (p. XIII).
69. “Embora os sujeitos nativos sejam as figuras centrais, também escrevemos sobre as nossas relações
com aqueles que procurámos retratar, sobre as nossas reações pessoais às pessoas e às circunstâncias, e
sobre a forma como temos desenvolvido o nosso trabalho”.

110
intelectual dos próprios antropólogos. Este tema será melhor discutido
a seguir.

Uma proposta (auto) biográfica

Como adiantado anteriormente gostaria de destacar que de


certa forma a discussão acerca da reflexividade se refere à proposta
(auto)biográfica do livro. Por excelência In the Company of Man é
um livro que busca precipuamente recuperar a memória dos principais
interlocutores dos antropólogos, conforme o autor pontua no Prefácio:
“It is first of all a collection of personal memoirs written by anthropologists about
individuals they have come to know well during the course of their work”70 (p. XII).

Para Maurice Halbwachs (1990), as “memórias pessoais”


ou memórias individuais estão para além do indivíduo. A memória
individual é um processo de construção coletiva da memória dos fatos,
pois, as pessoas convivem socialmente, compartilhando referências e
lembranças. Estar atento ao detalhe da memória individual enquanto
processo da memória coletiva nos leva a pensar com Bourdieu a
respeito da ilusão biográfica, cujo postulado leva o biógrafo a aceitar
uma “criação artificial de sentido” (BOURDIEU, 2006, p. 185). A
proposição de Bourdieu (2006, p. 184) é que o relato biográfico e/
ou autobiográfico, quando narrado seguindo uma ordem cronológica,
organizada sequencial e linearmente, torna-se uma ilusão retórica
ordenada em sequências de relações inteligíveis da vida narrada. Há de
se levar em conta, no entanto, que o livro é muito anterior às reflexões de
Bourdieu e pertence a uma época em que os antropólogos, idealmente,
teriam maior control sobre os escritos antropológicos.

Nesse sentido, o livro se lido de forma “dura” pode nos levar à


ideia de um livro que preconiza também uma biografia dos seus autores,
como bem afirma Casagrande: “I believe my co-authors will agree that these

70. “é em primeiro lugar uma coleção de memórias pessoais escritas por antropólogos sobre indivíduos
que vieram a conhecer bem durante o decurso do seu trabalho”

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
111
chapters are thus also in some measure autobiographical accounts71 (p. XIII).
Isso se deve ao fato de que a autobiografia se projeta pela memória de
outrem.

Logo em seguida à citação anterior, Casagrande procura ser


cuidadoso ao afirmar que as descrições dos interlocutores apresentados
no livro não são descrições biográficas completas ou crônicas de uma
vida inteira, mas sim perfis que buscam revelar “the unique personality,
to delineate the individual as a credible human being seen against the background
of his own locale and culture, and to show him in the context of his social roles”72
(p. XIII). Novamente notamos a orientação antropológica na qual
Casagrande está inserido, dialogando com os conceitos de uma “teoria
comportamental” (behavioral theory) e com os chamados “padrões de
cultura” (culture pattern).

Como foi discutido até o momento, os elementos como o


“informante-chave”, a antropologia aplicada preocupada em pavimentar
as práticas estatais, a ausência de reflexividade das práticas de campo e a
ilusão (auto)biográfica dos antropólogos e de seu informante, refletem
o que a antropologia – e principalmente o ensino da antropologia –
vinha convencionando como “método”. Um “método” que, no limite
de sua prática, irá ser expresso na literatura antropológica através de
manuais e guias de trabalho de campo contribuindo para reforçar
a construção arbitrária das categorias. Contudo, se retomarmos
Bourdieu (2008), veremos que o autor nos aponta que são as relações
de pesquisa que levam a procedimentos dinâmicos próprios de um
método, são as relações sociais construídas na pesquisa social que irão
exercer efeitos pertinentes sobre os resultados. Esta assertiva contribui
para a compreensão de que a ausencia de reflexividade mediante a
intensificação de processo de manualização da pesquisa antropológica
consiste numa “herança maldita” do colonialismo (Almeida, 2018). Daí
resulta a proposição da reflexividade do antropólogo em campo, ou
71. “creio que meus coautores concordarão que estes capítulos são também, em certa medida, relatos
autobiográficos”
72. “a personalidade única, delinear o indivíduo como um ser humano credível visto no contexto do seu
próprio local e cultura, e mostrá-lo no contexto dos seus papéis sociais”

112
seja, a disposição constante de criticar os procedimentos metodológicos
concebidos de forma manualesca e de refletir criticamente sobre suas
próprias práticas, de modo que dêem conta não apenas de dificuldades
no uso de técnicas de observação direta e de realização de entrevistas,
mas também quanto à compreensão antropológica das categorias e de
noções elementares de entendimento do pensamento e das ações das
agentes sociais estudados nas suas contingências específicas.

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CASTRO FARIA, Luiz de. 2006 - Antropologia duas ciências.


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histórica”. In: A Memória coletiva. Vértice, São Paulo.

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História de las teorias de la cultura. México D.F.: Siglo Veintiuno.
690p.

PACHECO DE OLIVEIRA, João. 2016 - O nascimento do Brasil


e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de
alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa 384 p

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Cornell University Press: Ithaca/London

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(1915–1982). American Anthropologist. pp. 883–888.

114
“FACING MOUNTAIN KENYA”: JOMO KENYATTA
FRENTE À ACADEMIA E ÀS POLÍTICAS DO SISTEMA
COLONIAL BRITÂNICO

Rosa Elizabeth Acevedo Marin 73

APRESENTAÇÃO

Publicada em 1938, a tese defendida por Jomo Kenyatta,


intitulada “Facing Mountain Kenya: The Tribal live of the Gikuyu”,
não podia passar despercebida na produção antropológica britânica.
A tese em questão havia sido orientada por Bronislaw Malinowski, que
fez a carta de recomendação para o seu ingresso na London School of
Economic, foi seu orientador e elaborou a introdução do livro, ainda
foi leitor de primeira mão o também antropólogo Raymond Firth
desse modo se conferem os efeitos de reconhecimento simbólico do
antropólogo queniano dentro da academia da sociedade colonizadora.
Todavia, as críticas às políticas colonialistas e, especialmente, a
defesa por parte de Kenyatta da questão das terras dos Gikuyu74e da
clitorectomia mobilizaram posições de seguidores, de apoiadores e de
adversários. No seu Prefácio Kenyatta interpela as visões e di-visões,
a autoridade, as hierarquias, os comportamentos no interior do campo
científico no qual seria realizada a leitura e crítica do livro, a par dos
questionamentos de suas posições políticas e social:

73. Graduada em Sociologia pela Universidad Central de Venezuela. Doutorado em História pela
École dês Hautes Études em Sciences Sociales. Professora da Universidade Federal do Pará vinculada
ao Núcleo de Altos Estudos Amazônicos e Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Professora
colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia da
Universidade Estadual do Maranhão. Pesquisadora do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia.
74. Kenyatta, na primeira nota de rodapé destaca como um erro a grafia Kikuyu, que os europeus
divulgaram, em oposição àquela que afirma como própria do seu povo: “A forma europeia usual de
soletrar esta palavra Kikuyu é incorreta; deve ser Gikuyu, ou em ortografia fonética estrita Gekoyo,
referida ao próprio país. A Gikuyu pessoa é Mu-Gikuyu, plural, A-Gikuyu. Mas para não confundir
nossos leitores, usamos Gikuyu para todos os fins”. (Kenyatta, 1938, XV). A expressão Kikuyu segue
os textos escritos pelos britânicos e seguidores desta grafia. Neste texto opta-se por seguir a orientação
de Kenyatta.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
115
Eu sei que existem muitos cientistas e leitores em geral que irão ser
desinteressadamente felizes com a oportunidade de ouvir o ponto de vista dos africanos,
e para todos estou feliz por prestar serviço. Ao mesmo tempo, estou bem ciente de que
poderia não fazer justiça ao assunto sem ofender aqueles “amigos profissionais do
africano” que estão preparados para manter sua amizade pela eternidade como um
dever sagrado, desde que o africano continue a jogar a parte de um selvagem ignorante
para que eles possam monopolizar a função de interpretar sua mente e falar por ele.
Para tais pessoas, um africano que escreve um estudo deste tipo está se intrometendo
em suas reservas. Ele é um coelho que virou caçador furtivo.

Mas o africano não é cego. (KENYATTA, 1938, xviii)

Dentro da London School of Economics (LSE) havia espaço


para debate aberto de posições anticolonialistas, especialmente, se
elas partissem de um acadêmico nativo? Por ocasião dos 50 anos da
Independência do Quênia aquela renomada instituição publicou os
artigos de Grátis (2017) e Menil (2018) com observações sugestivas
sobre a passagem de Kenyatta na LSE. O primeiro argumenta que
o prestígio de ter estudado na LSE proporcionou a Kenyatta “maior
seriedade entre as pessoas na Grã-Bretanha e no Quênia”. Na época
a Escola “era amplamente considerada como “rosa’ e progressista”
(Berman e Lonsdale 1998: 30). Grátis (2017)75segue a Berman e Lonsdale
(1998) que atribuem ter essa trajetória escolar aumentado o “seu status
entre seus colegas estudantes, bem como no Quênia, capacitá-lo a tratar
como um igual com as autoridades coloniais, não mais um ‘nativo sem
educação’; e mostrar o racismo generalizado da época...”. Menil (2018)76
interpreta afirmações a propósito de Kenyatta; ele teria escrito uma
tese “supostamente despolitizada” e indagava sob o papel da LSE na
formação de líderes:

75. GRÁTIS, Alex. Jomo Kenyatta, LSE e a independência do Quênia. https://blogs.lse.ac.uk/lsehis-


tory/2017/10/03/jomo-kenyatta-lse-and-the-independence-of-kenya/
76. MENIL, Victoria de. Era uma vez ... quando Jomo Kenyatta era estudante da LSE.
https://blogs.lse.ac.uk/lsehistory/2018/08/15/once-upon-a-time-when-jomo-kenyatta-was-a-student-a-
t-lse/. O arquivo foi feito a partir de levantamento nos arquivos da LSE sobre o antropólogo.

116
De Nkrumah a Limann, de Kibaki a Atta Mills, a LSE teve resultados
mistos na formação de líderes africanos. Como uma comunidade de alunos e professores,
incluindo africanos em ambas as posições, devemos nos perguntar quem é o LSE
moldando agora. E é papel do professor despolitizar seus alunos? Ou deveríamos
estar procurando alimentar as mentes políticas com fatos e éticas para moldar seu
raciocínio? Que o elefante de bronze que decora nossos passos não se torne um símbolo
do elefante que uma vez deixou um homem na chuva (MENIL, 2018).

Kenyatta na dedicatória do livro escreve em nome da sociedade


colonizada da qual participa e deseja reconstruir: Para Moigoi e Wamboi
e todos os jovens despossuídos de África: para a perpetuação da comunhão com
os ancestrais espíritos através da luta pela liberdade africana, e na fé firme de
que os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram unam-se para reconstruir os
santuários destruídos. O conjunto das relações existentes entre sociedade
colonizada e sociedade colonial exterioriza a dialética do colonizado e
o colonizador (BALANDIER, 2014).

Neste artigo realiza-se a leitura do livro de Jomo Kenyatta e busca-


se pontuar alguns embates dentro da academia, o que também é parte do
“complexo qualificado da situação colonial” (BALANDIER, 2014). O
antropólogo nativo estuda o seu povo, o Gikuyu, entretanto a identidade
e o pertencimento étnico parecem ter sido mantidos sob controle e
Malinowski elabora observaçoes elogiosas sobre as capacidades do seu
orientado. O antropólogo distingue o termo “Anthropolo gybe ginsat home”
ao escrever sobre o autor que forma parte da “elite dirigente nativa” e
recebeu formação em escolas da metrópole inglesa.

O sistema colonial europeu na Africa Oriental, a questão da


terra dos Gikuyu, o campo da antropologia e a trajetória do antropólogo
africano estão apresentados sumariamente à medida em que se priorizaram
alguns capítulos do Facing Mount Kenya e se produzem algumas conexões
com o Report of the Kenya Land Commission – RKLC (1934) ademais de fontes
e círculos outros de formação dos debates e de posições políticas coloniais
do governo britânico que se encontram nos Arquivos da Hansard.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
117
Sumariamente este modesto exercício de leitura indaga sobre as conexões
entre antropologia e colonialismos; expõe sobre os conflitos sociais,
as resistências e as lutas pela reconquista dos territórios e da autonomia
empreendidas pelos colonizados, gestos que são inimagináveis e sempre
histórias compartilhadas de indignação e expressões de resistência .

1. O SISTEMA COLONIAL EUROPEU NA AFRICA


ORIENTAL E OS PRINCÍPIOS DO DUAL MANDATE

Nas sociedades colonizadas pela Grã Bretanha na África


implantou-se o sistema de governo que Sir Fredrick Lugard denominou
de “Dual Mandate”, as ideias que estão contidas no livro “The Dual
Mandate in British Tropical Africain,” publicado em 1922, exerceu
profunda influência nos negócios coloniais no período entre as duas
guerras; este serviu à formação de jovens da administração colonial
(VIANNI, 2016, apud DOTY, 1996).

Lord Lugard serviu como administrador colonial entre 1888 e


1945 no Leste da África, África Ocidental e Hong Kong. Foi comissionado
na Nigéria e governador geral entre 1914 e 1919.Entre setembro de 1912
e janeiro de 1914 governara os Protetorados do Sul e do Norte da Nigéria.
Antecede sua carreira de administrador colonial a de ter organizado a
Companhia Imperial Britânica da África Oriental, que foi administradora
da África Oriental Britânica e precursora do Protetorado da África Oriental,
posteriormente Quênia; a companhia foi criada após o Tratado de Berlim
de 1885. (Wesseling, 1998:232). A trajetória de Lugard foi construída em
meio às campanhas militares, às habilidades como pacificador, unificador
e negociador de acordos, o que valeu a Lugard prestígio político notável77.
O reconhecimento como autoridade líder no governo colonial foi
ultrapassado com o livro Dual Mandate in British Tropical África.

77. Ver PERHAM, Margery. Frederick Lugard. Administrador Colonial Britânico. https://www.
britannica.com/biography/Frederick-Lugard. A escrita por Frederick John Dealtry Lugard, Barão
Lugard de Abinger do livro “The Dual Mandate in British Tropical Africa” (1922) o fez receber a me-
dalha de ouro da Royal Geographical Society e a menção de “pai do governo indireto”

118
Na condição de administrador colonial Lugard dominava o
princípio do governo indireto78 que ele considerava inaplicáveis em
sociedades pouco organizadas do Igbo e outras tribos do sudeste da
Nigéria. Na sua concepção o império britânico precisava produzir a
justificativa teórica da ocupação colonial da África e das formas de
controle político efetivo, e Lugard no “ Dual Mandate” estabeleceu
os argumentos que justificaram as conquistas e o estilo administrativo.
Grã-Bretanha tinha uma responsabilidade dupla na África: realizar a
administração e obter benefícios econômicos para a metrópole, bem
como a elevação dos “nativos”. Fundamentava essa ação de governança
em três princípios: descentralização, continuidade e cooperação. Todos
os níveis de governo seriam descentralizados, todavia, com uma forte
autoridade de coordenação. Lugard interpretava que a continuidade era
fundamental, porque os africanos desconfiavam dos estrangeiros, por
isto recomendava a permanência sem interrupções dos oficiais britânicos.
Com base neste princípio havia exigências sobre substituição e formação
da equipe provincial e, ao mesmo tempo, sobre as cooperações entre os
funcionários provinciais e os governantes locais. Estabelecia a Regra
indireta, administração por chefes locais, subordinados aos oficiais
coloniais britânicos79. Lugard declamava o panegírico do governo
britânico que elevaria os “povos primitivos a civilizados” e no mesmo
grau o seu bem-estar.

78. Os britânicos introduziram o governo indireto como sistema de governo para controlar as suas
colônias, feita por meio de estruturas de poder nativas pré-existentes. Esse sistema era mais barato para
os impérios e suas bases teóricas foram elaboradas nas universidades. Henry James Summer Maine
escreveu o livro Ancien Law (1861) cujas proposições teóricas acerca do direito e as instituições jurídicas
se desenvolvem passando do “status ao contrato”. A teoria dos três estágios do desenvolvimento do
direito: uma fonte divina do direito; identificação do direito com o costume; identificação de uma
lei posta por uma autoridade. Esta teoria é verificada nos quadros do evolucionismo e deu suporte
ao “governo indireto”; ainda, e é vista como pilar da antropologia evolucionista do século XIX, e as
imbricações do saber dos antropólogos com a dominação colonial. (VILLAS BÓAS, 2011/2012). Os
debates sobre o “governo indireto” têm continuidade com acadêmicos entre eles Mahmood Mamdani
(1999) que interrogam de que forma o governo direto e indireto foram tentativas com objetivos idênticos
de implementar a dominação. No governo indireto surgiram tensões étnicas dentro das sociedades
colonizadas que manifestaram hostilidade e elaboraram “estratégias disfuncionais de governo”, o que o
autor descreveu como “despotismo descentralizado”. (MAMDANI; 1996, 37).
79. Ogechukwu EzekwemThe Dual Mandate in British Tropical África, de Frederick John Dealtry Lugard
(1965). https://notevenpast.org/the-dual-mandate-in-british-tropical-africa-by-frederick-john-deal-
try-lugard-1965/

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
119
No livro de Lugard é exposta uma ontologia essencialista, que
“busca desumanizar o subalterno e elevar o status dos colonialistas
na África”(Bello, 2017). Significava “O duplo mandato do Império
Britânico” abrir a África para o mundo civilizado e, ao mesmo
tempo, abrir a mente africana para a civilização; trata-se de papéis
sociais binários envolvendo “um civilizador e outro a ser civilizado”.
O colonizado – subalterno é naturalizado e funda-se em natureza e
cultura. “Lugard vê a natureza física dos negros e seus tons e matizes
de cor em correlação direta com seu avanço intelectual e organizacional.
A mistura dos negros com os hamitas conota “poluição” e diluição que
possivelmente afeta sua natureza e cultura” (Bello, 2017, p. 82).

No Report Kenya Land Comission encontram-se citações


de Lord Lugard. Uma delas instrui sobre os Gikuyos, Lord Lugard
desaprovava o boma80 porque este lugar “estava situado no verdadeiro
coração dos povoados e dos campos dos Kikuyu”. (RKLC, 1934,p.
62). As conexões intrincadas entre os princípios do Dual Mandate e o
documento redigido pela Comissão de Terras do Kenya mostram as
rédeas de dominação dos povos nativos.

Malinowski na Introdução do livro de Kenyatta, refere-se ao


Dual Mandate, à Liga das Nações e à Abissínia. Lord Lugard foi
representante na Comissão de Mandatos Permanentes da Liga das
Nações (1922-1936) e vinculou-se à Comissão Temporária da
Escravidão (1926). O renomado antropólogo conecta os eventos e os
discursos com a razão que mobilizava a África (a maioria dos bantu
e negros) e os unia; o “mundo dos povos de cor contra a influência
ocidental”, que foi sacralizada pelo colonialismo,

É espantoso como, por exemplo, a aventura Abissínia organizou


a opinião pública em locais e entre nativos que nunca se suspeitaria que
tivessem qualquer visão complicada sobre a Liga das Nações, sobre a Dual
Mandate, sobre a Dignity of Labour, e sobre a Brotherhood of Man. Mas

80. A palavra “Boma” vem da África e está nas línguas faladas nos Grandes Lagos Africanos. Boma era
um recinto circular para a comunidade e seus anciãos se reunirem. Era um espaço sagrado para reuniões
comunitárias e discussões significativas, um espaço para tomar decisões e definir ações.

120
sobre a Abissínia, a maioria dos bantu e negros têm os seus pontos de
vista. Eles foram organizados num clima de ódio da invasão europeia e de
desprezo pela debilidade desses poderes e movimentos que os colocavam
ora do lado da África e, logo depois, através da fraqueza e da incompetência,
abandonavam a causa da África e deixavam tudo de lado. Mais uma vez, a
má gestão do “incidente chinês” está unindo o mundo dos povos de cor
(“coloured peoples”) contra a influência ocidental e, principalmente, contra
a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, mesmo para aquela pessoa que é
preta, morena ou amarela, “noblesse oblige” (MALINOWSKI, 1938, p. x).

De forma mais incisiva Jomo Kenyatta escreveu sobre


possibilidades de rupturas com a condição colonial: “Mas o africano
não é cego. Ele pode reconhecer estes pretendentes à filantropia, e
em várias partes do continente, ele está acordando para a percepção
de uma corrida no rio que não pode ser represado para sempre sem
quebrar seus limites. Seu poder de expressão foi prejudicado, mas está
rompendo, e muito em breve varrerá o clientelismo e a repressão que o
cercam”.

2. TERRAS DOS NATIVOS NOS ATOS DA COMISSÃO


DE TERRAS NO KENYA

Desde ângulos diversos, a situação colonial resulta da


processualidade das ações coloniais forjadas em torno dos domínios
territoriais nas quais se estabeleceu a relação territórios sobrepostos e histórias
entrelaçadas como escreve Said, e os Impérios constroem a história e a
geografia; elas são “reordenadas e reescritas nas Metrópoles”, o que ocorre
também com a música, a poesia, a prosa e as ciências nos momentos de
recriação do espaço conquistado e a constituição do “duplo Colônia/
Colonizado portador de características justificadoras da dominação (Said,
2011). Os territórios físicos dos povos colonizados na África depois
da “Partilha” entram em disputas aceleradas e ininterruptas. Na África
Oriental, em Quênia o protetorado britânico de 1895 é demarcado na

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
121
realidade concreta como a situação colonial advinda do “consenso político
do imperialismo europeu” (WESSELING, 1998).

A forma jurídica da colonização considera que os sistemas


jurídicos dos povos nativos eram obsoletos; dentro deles, os direitos de
propriedade sobre suas terras e manteriam os direitos de ocupar e usar
as terras com restrições. Shilaro (2002) indica que nas décadas de 1920
a 1930, a terra foi o centro da política elaborada para o Quênia. Nesse
intervalo se ampliaram as queixas e reações contra a alienação das
terras pelos colonos europeus, notadamente em 1931, o que obrigou
ao governo britânico a designar a Kenya Land Commission, em 1932.
Celeremente foi elaborado o Report of the Kenya Land Comission
(setembro, 1933) apresentado pelo Secretário de Estado para as
Colônias ao Parlamento pelo Comando de sua Majestade (maio 1934).
Este Report apoiou-se em três legislações: - Crow Land Ordinance81,
Native Lands Trust Ordinance82 (1930) e White Paper de 192383. O
RKLC foi dirigido a Sir P. Cunliffe-Lister. Secretário de Estado para as
Colônias.
81. O Regulamento de Terras da Coroa de 1902 autorizou o Comissário a vender propriedades livres em
terras da coroa de até 1.000 acres a qualquer pessoa ou conceder arrendamentos de 99 anos. O processo
de alienação dos africanos de suas terras os forçou a entrar nas reservas que logo ficaram superlotadas e
impróprias para o assentamento humano.
82. Nos debates sobre o Native Lands Trust Ordinance foram tratados os direitos da superfície. Sir
P. Cunliffe-Lister Conde de Winston, conservador britânico proeminente político dos anos 1920 até
1950 - argumentou: “O projeto de lei de alteração a que ele se refere foi apresentado com minha
aprovação como uma medida provisória para lidar com dificuldades práticas imediatas que poderiam
retardar o desenvolvimento de minerais valiosos, propriedade dos quais pertence à Coroa. As alterações
propostas à Portaria principal são duas. O primeiro estabelece que a terra pode ser temporariamente
excluída de uma Reserva para arrendamentos de mineração e que a compensação por tais exclusões
temporárias pode ser paga em dinheiro em vez de na forma de um acréscimo de terra. De acordo com
a segunda alteração, não será necessário que o Central Lands Trust Board apresente uma proposta de
exclusão temporária ao conhecimento do Conselho Local de nativos ou dos nativos em questão; mas
cada exclusão particular terá de ser considerada pelo Conselho Local, no qual os nativos da localidade
ou seção em questão devem ser representados. Além disso, o comissário-chefe nativo já distribuiu aos
nativos da província um memorando explicando em linguagem clara e simples o processo de licenças
de prospecção e arrendamentos de mineração e como os interesses dos nativos serão salvaguardados; e
o próprio governador encontrou os nativos e explicou o assunto a eles”. Arquivos da Hansard. (20 de
dezembro de 1932. https://api.parliament.uk/historic-hansard/commons/1932/dec/20/kenya-native-
land-trust-ordinance
No Norte de Kenya na área de Kakamenga foi aberta a mineração e embora houvesse um regulamento
que exigia fosse aberta uma notificação no Diário isto não ocorreu.
83. O denominado Livro Branco de 1923 (White Paper of 1923) estabeleceu a política do Governo
Conservador daquele ano (Governo do Sr. Baldwin) o qual rejeitou a ideia de conceder qualquer forma
de autogoverno ao Quênia dentro de qualquer período que precise ser levado em consideração.

122
Neste documento, os primeiros parágrafos nomeiam e
classificam as situações, os “direitos” e os sujeitos de direito nele
contemplados no Report. Em vários itens aponta a preocupação com
a “população nativa presente e prospectiva”. As situações das terras
correspondiam: a. as terras já alienadas e b. terras a alienar no
futuro; definia a terra tribal e a propriedade individual. As terras
são classificadas em A, B, C e D. Sobre os sujeitos distingue: i. As
comunidades, órgãos ou nativos de pessoas reconhecidas nas tribos
e, ii. Nativos destribalizados, ou seja, nativos que não pertenciam a
nenhuma tribo ou que cortaram conexão.

Os membros da Comissão tinham uma trajetória no sistema


educacional inglês interessada em formar administradores coloniais e
esta exigência não se restringia às altas posições. Ranger (1984, p.
224) explica que o Comissário Distrital “precisava ser um homem bem
dotado para candidatar-se ao setor administrativo colonial”; “tinha de ser
bacharel em humanidades, graduado com distinção numa universidade
reconhecida... Melhor ainda se, além de boas notas, ele tivesse algum
recorde em atletismo. Ainda havia necessidade de acreditar que os
colonos brancos eram herdeiros reais ou potenciais das neotradições
do domínio’, pois “era o excedente do capital neotradicional que
estava sendo investido na África, juntamente como o envolvimento de
membros da alta sociedade na busca de um enriquecimento”.

Ranger (1984, p. 221) situa as transformações que ocorriam


entre 1880 e 1990 na vida dos africanos do Leste, Centro e Sul da África
que estavam tornando-se “lavradores’, os excedentes de sua produção
expropriado e explorado através de comércio, impostos, o arrendamento
e sua posição subordinada pelo cristianismo missionário”. Os
agricultores europeus não se viam como camponeses e se pensavam
como formando parte de uma aristocracia.

A Kenya Land Commission, também conhecida como Comissão


Morris Carter teve como “chairman” Sir William Morris Carter (1873–
1960) um advogado britânico, formado na Universidade de Oxford

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
123
que ingressou na administração colonial britânica. Foi nomeado para
ser registrador e juiz no Quênia, Uganda e Tanganica entre 1902 e
1924. Como juiz sentenciou contra as reivindicações de terra dos
Massai em 1913. Ocupou o cargo de Secretário de Estado para as
Colônias. Presidiu a Comissão de Terras de Rodésia do Sul, de 192584
e a Comissão de Terras do Quênia de 1932-1933. Entre 1936-1937
integrou a Comissão Real sobre a Palestina. O segundo membro era Sir
Frank O’Brien Wilson (1876 -1962) oficial da Royal Navy, aposentado
estabeleceu-se como colono no Quênia. Foi voluntário na Campanha
da África Oriental da Primeira Guerra Mundial, Wilson tinha uma
grande propriedade (23.000 acres (93 km2) em Ulu, perto de Machakos
(Uganda), onde inicialmente criou avestruzes e depois criou gado.
Wilson foi um renomado jogador de críquete. Rupert Willian Hemsted
foi o terceiro membro da Comissão: “um distinto funcionário público
ex-colonial”.

A raiz da nomeação dessa Comissão pelo Conde Lorde Stanhope,


os debates no Parlamento frisavam que a investigação devia ser muito
conscienciosa e hábil, pois lidariam “com os difíceis problemas que
virão diante deles”. O parlamentar Sanderson85 pronunciou-se dizendo
que Morris Carter, ex-presidente do Tribunal de Justiça do Território de
Tanganica, fez trabalho na Rodésia muito semelhante ao tipo de trabalho
que terá de fazer em relação à terra do Quênia. Contudo, desconfia se
eles assumiriam apenas o ponto de vista dos colonos brancos, “o capitão
F. O’B. Wilson está em uma categoria bem diferente. Ele é um colono
branco e proprietário de terras. Pode ser, pelo que eu sei, que ele esteja
realmente ocupando terras que a população africana, com ou sem razão,

84. De acordo com a Ordem do Conselho de Rodésia do Sul, de 1898, no artigo 83: O nativo podia
adquirir, manter, onerar e dispor de terras nas mesmas condições que uma pessoa que não é nativo.Vinte
e três anos depois, a resolução do Conselho Legislativo da Rodésia do Sul considerava indesejável: que
os nativos adquirissem terras indiscriminadamente devido ao atrito inevitável que surgirá com seus vizi-
nhos europeus. O juiz William Morris Carter foi nomeado para a Comissão de Terras com incumbência
de decidir como lidar com os africanos que viviam em terras da coroa não alienadas, em fazendas e mi-
nas e em cidades pertencentes a colonos brancos. A comissão tinha a missão de investigar e informar
sobre a definição de áreas onde somente os nativos poderiam possuir terras e áreas de terras destinadas
com exclusividade aos europeus.
85. COMISSÃO DE TERRAS DO QUÊNIA. HL Deb 04 de maio de 1932 vol 84 cc305-2.
https://api.parliament.uk/historic-hansard/lords/1932/may/04/kenya-land-commission

124
considera como roubadas e alienadas pela Coroa. O parlamentar fez
as estatísticas primárias sobre a minoria branca e os africanos que não
seriam nomeados. O Capitão Wilson será considerado pela população branca
e negra como representante das opiniões dos 20.000 brancos no Quênia. Nessas
circunstâncias, como o capitão Wilson está nessa posição, acho que seria considerado
um ato de simples justiça que alguém fosse nomeado para representar o ponto de vista
dos 2.500.000 africanos.

Opinou Sanderson que o Governo de Sua Majestade devia


nomear homens que não tivessem nenhuma ligação com a posse de
terra no Quênia, sem interesses financeiros nesse Protetorado, ainda
fez a proposta de inserir na Comissão dois africanos, de modo a
aumentar a confiança e remover as suspeitas. Ainda porque os nativos
que comparecessem perante a comissão teriam menos dificuldade de
se expressar, afirmava. Tenho certeza de que, com alguns nativos na
Comissão, você obteria muitas evidências que não obteria de outra
forma, e que pode ser muito essencial para uma solução adequada desta
questão. Todavia duvidava de colocar “nativos” na Comissão.

A Comissão colidiu com os documentos, falas de testemunhas


que foram organizados e classificados de maneira a distinguir as situações
que evidenciavam os conflitos por territórios e, aparentemente, os
povos e os seus argumentos sobre a terra. As autoridades ignoraram
as tradições, vistas como obstáculos ao projeto de colonização, que
priorizou atribuir as terras dos povos nativos aos colonos britânicos.
A Comissão procedeu a visitar as províncias da Costa, no Planalto
Leroki e “várias partes dos Kikuyo”86.

No Report é frisado que os nativos Kikuyu haviam oficializado


mais de 400 cartas e outros documentos lidando com reivindicações
privadas por famílias ou grupos (RKLC, 1934, p. 8). Essa documentação
mostra a insistência dos Gikuyu pelo direito costumeiro. A Comissão
86. Os funcionários da Comissão com auxílio de Comissários locais, missionários procediam a
sistematizar memorandos, documentos e comentam brevemente. A excepção foi feita em relação
aos Kikuyu que por serem muito volumosas procederam a resumir. O Report contém arquivos
governamentais, mapas, dados demográficos. Na Introdução os relatores afirmam que a preocupação é
apresentar os méritos dos conflitos estabelecidos e as reivindicações.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
125
descrevia a prática de reunir as “evidence natives” em “barazas”
ou assembleias na qual os funcionários britânicos solicitavam a
concordância dos “nativos com as declarações feitas e entediam que
estas expressavam e representavam o sentimento geral da tribo”.

Na divisão do Report consta a parte referente à questão da


terra na “Province Kikuyu”; logo revisa as outras províncias87 e por
último situa os problemas da terra nativa como um todo, incluindo o
Highlands. O objetivo da Comissão foi definir os limites das Terras
Altas Brancas e das Reservas. Os Gikuyo são descritos como tendo
“um grau excepcional de individualismo”, que a “tribo tem nas suas
tradicionais concepções de posse da terra” e reconhecem que a resolução dos
problemas de terra dos Gikuyu é especialmente intrincada, o que
exigiria um exame detalhado.

Jomo Kenyatta dominava o conteúdo do RKLC e cita os de


1929 e 1934 que somado aos contatos pessoais com anciãos, chefes
das famílias lhes permitiram insistir sobre os mecanismos utilizados
pelos administradores colonias para retirarem as terras dos Gikuyu,
por esses motivos fez a jocosa apresentação da Comissão88. O “país
do Gikuyu” escreveu ocupa o centro de Quênia e estava dividido em
distritos administrativos Kiambu89, Fort Hall (Murang’a), Nyeri, Embu
e Meru onde viviam aproximadamente um milhão de pessoas, que
devido à alienação das terras agrícolas e pastoris viviam - cerca de
110.000 Gikuyu como invasores em fazenda, em terras tomadas pelos
europeus em vários distritos de Quênia. A posse da terra é questão
87. O Report relata o longo enfrentamento com o povo Massai tal como foi descrito pelo administrador
colonial Sir Charles Eliot, que tem sua trajetória vinculada à Somália; De pelo menos 1850 até o início
dos anos oitenta, os Massai foram uma potência formidável na África Oriental. Eles afirmaram com
sucesso contra os traficantes de escravos árabes, recebiam tributo de todos que passaram por seu país, e
trataram outras raças, seja africano ou não, com a maior arrogância. « (Report, 1934, p. 199).
88. The elephant, obeying the command of his master, got busy with other ministers to appoint the com-
mission of Enquiry. The following elders of the jungle were appointed to sit in the Commission: (I) Mr.
Rhinoceros; (2) Mr. Buffalo; (3) Mr. Alligator; (4) The Rt. Hon. Mr. Fox to act as chairman; and (5) Mr.
Leopard to act as Secretary to the Commission. On seeing the personnel, the man protested and asked if
it was not necessary to include in this Commission a member from his side. But he was told that it was
impossible, since no one from his side was well enough educated to understand the intricacy of jungle
law.(KENYATTA, 1938, p.49)
89. Ver a propósito CORAY, Michael S. The Kenya Land Comission and the Kikuyus of Kiambu. In.
História da Agricultura. Vol. 52, Nº 1. Janeiro, 1978, pp.179-193.

126
importante, vital para os Gikuyu e Kenyatta foi elevado à condição de
porta-voz das reclamações:

... perante mais de uma Comissão Real em matéria de terra. Uma foi a
Hilton Young Commission de 1928-29, e um segundo foi o Comitê Conjunto sobre a
União Mais Próxima de África Oriental, em 1931-32. Antes deste Comitê eu era
delegado para apresentar um memorando em nome da Associação Central de Gikuyu.
Em 1932. Dei depoimento em Londres perante a Comissão de Terras do Quênia
Morris Carter, que apresentou seu Relatório em 1934.

Mas, além disso, tenho sido um testemunha de muitas transações e disputas


de terras, tanto públicas e privadas, em várias partes de Gikuyu; por exemplo, eu
atuo como intérprete particular para o chefe Kioi em sua grande terra caso que, após
várias audiências perante o Kiama, foi levado ao Supremo Tribunal de Nairobi em
1921, eleito porta-voz da Associação Central de Gikuyu quando apresentamos
nosso caso perante a Hilton Young Commission em 1928; depois, quando o relatório
veio para discussão no Parlamento, fui delegado para apresentar o ponto de vista de
Gikuyu em relação à terra e outros assuntos ao Secretário de Estado das Colônias
em 1929, e continuou a fazê-lo quando surgiu a ocasião. Porque dessas experiências,
meu conhecimento da posse da terra Gikuyu não é apenas devido ao fato de eu ser
um Gikuyu, mas é o resultado de grande interesse e estudo especializado, ambos de
precedentes registrados e daquelas evidências tribais que são passados ​​de geração em
geração.

Kenyatta90 está se referindo às tensões entre administradores


coloniais e nativos que estavam crescendo face às decisões das
autoridades locais, insistentemente contrárias aos desejos dos nativos,
especialmente pela retirada das terras, o estabelecimento das reservas
e a definição da “propriedade tribal”. A cada “tribo” corresponderia
uma reserva. Todavia como escreve Parsons os problemas surgiram
90. Kenyatta refez no capítulo II algumas descrições do país dos Gikuyu. Da leitura do Blue Book
África, de 1893 transcreve o discurso público dos oficiais ingleses. Um deles escreveu que nesse país de
abundância, onde se podiam extrair milhares de livras não se podia comprar deles uma saca de grão e
foi preciso usar as armas para obter lenha e água (KENYATTA, 1938, p. 47). O anteriormente citado
Lord Lugard replicava que no “pais Gikuyu havia comida e era extraordinariamente abundante e barata”.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
127
quando os grupos étnicos mais populosos ultrapassaram suas reservas,
inclusive ultrapassando as reservas atribuídas e cobiçaram os territórios
dos colonos agricultores europeus nas “terras altas brancas” e os de
tribo menos populosas. Parsons (2011) mostra os esforços coloniais
em Quênia para determinar as fronteiras tribais físicas e imaginárias,
o que no final da era colonial mostraria que as identidades eram “mais
flexíveis, adaptáveis e informais do que as etnografias coloniais com
foco tribal ou a literatura acadêmica sobre a formação da identidade
sugeria”, assim, as contestações à “geografia étnica oficial do regime
imperial era quebrada por uma criativa e específica da comunidade”.
(PARSONS, 2011, p. 491).

No capítulo I. “Observações preliminares sobre os princípios e


fatores reguladores da matéria Reivindicações dos Kikuyu”

(1) Se uma tribo sofreu perda por alienação de parte do seu território, - tem
o direito a ser indenizada por patrimônio. Mas a compensação pode ser devidamente
avaliada de acordo com a extensão da verdadeira perda sofrida, isto é, de acordo com
o grau de uso que foi feito da terra e a finalidade a que serviu, seja no momento da
alienação ou como uma reserva razoável para expansão futura. Nós não podemosa
ceitar o princípio de que, porque uma tribo perdeu terras, é necessariamente e de
direito receber igual ou equivalente terra em outro lugar, independentemente dessas
considerações (RKLC, p. 18).

A terra é o mais importante fator no âmbito social, político,


religioso e na vida econômica do Gikuyu escreveu Kenyatta, e
interpretava que esses significados estavam registrados nas suas
memórias familiares, nos conhecimentos sobre a terra recebidos dos
avós, dos pais, dos membros da tribo, somados às experiências de
acompanhar as transações de terras e as disputas que ocorriam com os
povos nativos de Kenya. Malinowski alude que Kenyatta mostrou suas
credenciais de etnógrafo da mesma forma que conhecia as questões
administrativas e econômicas da política na África Oriental. A

128
etnografia descreve os Gikuyu - povo de agricultores que dependiam
inteiramente da terra para suas necessidades materiais, espirituais e
mentais. Essa importância da terra e do sistema de posse mostrava-se
cuidadosa e ceremonialmente estabelecida nos casamentos, nos rituais
de iniciação, que eram regidos pela lei costumeira sobre a posse da
terra. Cada unidade familiar tinha direito à terra e cada tribo defendia
coletivamente as fronteiras dos seus territórios. As melhores terras
foram retiradas dos Gikuyu; a administração decretou a obrigação de
pagar impostos, negou suas capacidades de cultivar a terra e foram
acusados de destruir as florestas.

O Borori wa Gi ou territorio dos Gikuyu representava a unidade


política de todas as terras e foi interpretada pelos administradores
como “propriedade tribal ou terras comunais”. Insistia Kenyatta
que o termo “propriedade comunal ou tribal da terra” é mal usado
para descrever a terra, como se toda ela pertencesse, coletivamente, a
todos os membros da comunidade”. Entre os Gikuyu havia indivíduos
(Mohoi, Mothoni) que trabalhavam em terras cedidas sem nenhum
pagamento, estes gozavam do direito de cultivo (KENYATTA, 1938, p.
22, 25). A descrição apresenta o sistema de fundação e de posse da terra
que os Gikuyu receberam de Mogai (o senhor da Natureza); a terra e a
formação de grupos familiares define os primeiros direitos de cultivo ou
o direito do trabalho sobre a posse. Explica-se a expansão dos Gikuyu
como necessidade diante a “terra densamente povoada” ; foi quando
sairam à procura de terras na direção do Sul e as compras dos Ndboro.
Esta primeira forma de adquirir terra por compra, o que dava o direito
de caça e de desmatamento das florestas originais. À medida que
realiza a descrição Kenttaya distingue duas regiões fora do movimento
de transação de terra - Nyeri e Fort Hall (Murang’a). Ressalta que
as transações eram intensas em Kiambu. Estas se realizavam entre
os Gikuyu e Ndorobo (coletores e caçadores). A leitura reitera a
explicação de que o sistema de posse nunca foi de posse tribal e não
houve lei consuetudinária que desse ao chefe particular qualquer poder
sobre outras terras além das que tinha seu próprio grupo familiar

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
129
(KENYATTA, 1938, p. 32). As relações familiares são ressaltadas a
partir dos atos de compartilhamento das terras ; a venda não podia
ser feita sem consulta e levava em mente as necessidades da famíia.
A passagem que ocorre na terra é de um homem para os seus filhos
que são investidos no nome do clá. “Portanto, não existe propriedade
tribal. Não se estabeleceu uma chefia particular e não contempla que
grupos de chefes tenham poder sobre outras terras, além das terras
dos seus próprios grupos familiares”. (KENYATTA, 1938, p. 34).
Nas disputas de terra a decisão não corresponde ao chefe, mas a um
conselho (Kiama) formado por anciãos que conduzem as transações,
em consonância com os princípios e decoro da ética Gikuyu.

Os estudiosos dos Gikuyu elaboram interpretações


convergentes com Kenyatta (LONSDALE, 1990; 1996; KERSHAW
(1997). A instalação de novos colonos e as secas ocorreram na década
de 1920. Araújo, (2007, p. 7) escreve sobre a presença da Missão
Consolata entre os Gikuyu no período do movimento guerrilheiro dos
Mau Mau91 e observa as transformações agrárias que limitaram aos
pequenos proprietários e aos sem-terra as possibilidades de recuperar a
posse das terras e de poder alcançar o status de Muramati ou o homem
que cultivou um pedaço de terra, teve um dos filhos circuncidado, teve
participação nos rituais e respeitou os anciãos e os interditos tradicionais.

3. OUTROS DEBATES DA ANTROPOLOGIA BRITÂNICA


NO FIM DA “ERA COLONIAL

Os antropólogos britânicos e um público difuso estavam


estarrecidos e comovidos com a prática da excisão clitoridiana nas
tradições africanas, entre elas, a prática entre os Gikuyu. Possivelmente
as questões da retirada das terras do povo Gikuyu eram irrelevantes,

91. Para um aprofundamento sobre a questão das lutas travadas por este movimento, classificado como
uma revolta camponesa, consulte-se: Barnett, Donald L. and Njama, Karari – Mau Mau from Within-
-Autobiography and Analysis of Kenya’s Peasantd Revolt. New York and London. Modern Reader
Paperbacks Edition/Monthly Review Press. 1970

130
pois admitia-se que as terras da Coroa no Protetorado de Kenya, o
regime de reservas e a ação missionária eram legítimas. O tema da
excisão clitoridiana, por sua vez, situava-se no campo minado da
cultura, da civilização e do primitivismo. Pensando nos problemas
abordados pela sociedade colonial é preciso citar Bourdieu (1989, p. 35)
que afirma que “cada sociedade, em cada momento, elabora um corpo
de problemas sociais tidos como legítimos, dignos de serem discutidos,
públicos, por vezes oficializados e, de certo modo, garantidos pelo
Estado”. O antropólogo africano e Gikuyu é conduzido para essa
discussão acadêmica, assim como necessitou produzir esclarecimentos
diante do público europeu e da igreja.

Em 1966, Ann Beck realizou o levantamento da vida pregressa


de Kenyatta antes do seu período doutoral, e escreveu o artigo ‘Some
Observations on Jomo Kenyatta in Britain. 1929-1930”. Na visita que
realizou Kenyatta92, com a idade de 32 anos, no intervalo de fevereiro
a setembro de 1929, manteve reuniões em Edimburgo com os
bispos da Igreja católica que manifestavam preocupação a respeito de
conflitos em torno da questão da circuncisão feminina e que teriam
levado à deterioração das relações entre os cristãos Gikuyu e a igreja.
Em anos anteriores as autoridades da igreja escocesa realizaram uma
campanha contra a circuncisão feminina, pois essa prática era contrária
ao cristianismo e em vários documentos recomendavam a abolição.
No entanto, a visita de Kenyatta estava movida por outros objetivos:
aspirava manter relações diretas com a Secretaria das Colônias, com
isto quebrando a regra da autoridade dos oficiais residentes em
Nairóbi. O jovem Kenyatta apresenta uma Petição com as reclamações
e reivindicações: segurança para os povoados; reconhecimento da
agricultura e garantia das terras que não podiam ser alienadas por ordem

92. Então Kenyatta era o Secretario da Associação Central dos Kikuyu que havia sido criada em 1925.
Beck referiu sobre o giro colonial discreto, o que tinha ilação com a presença de Kenyatta em Inglaterra.
Esse giro foi dado com a promulgação da doutrina da “ Supremacia do Nativo”, declarada pelo governo
britânico em 1923.
“It contained the famous statement that Primarily Keynesian African territory and His Government
think it necessary definitely to record their considered opinion that the interests of the African natives
must be paramount and that if and when those interests and the interest soft he immigrant races should
conflict the former should prevail. See Indians in Kenya Parliamentary Papers 1923) xvii

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
131
do governo, representação dos Gikuyu nos municípios, nos conselhos,
na administração Kikuyu. O assunto da circuncisão estava na pauta da
Associação Central dos Gikuyu, pois tinha implicações nas relações
com a igreja escocesa. O argumento trazido por Kenyatta aos membros
da igreja escocesa sobre a insistente questão de abolir o costume da
circuncisão feminina e fazer isto de uma vez, foi respondida por ele com
o argumento de que uma educação gradual podia parar com o costume
e não desejava romper as relações entre a Associação e as Missões. Aos
olhos da autoridade da igreja93 (Mr. Barlow) Kenyatta representou
uma surpresa pois foi muito “flexível” e se ajustou ao ambiente urbano
moderno, sem aparentar tensão e desconforto e ainda sua “fala era
suave, quase totalmente sem o sotaque africano”. (BECK, 1966, p.317).
Muito difícil entender que são os povos diretamente envolvidos que
podiam tomar posições e decisões sobre esse ponto espinhoso, ou
ainda sobre a poligamia. Os temas e problemas tinham enunciados
diferentes e os problemas da antropologia são políticos e polêmicos.
Kenyatta sobre esse campo de relação com os colonizadores teria dito:

Quando os missionários chegaram, os africanos tinham a terra e os


missionários tinham a Bíblia. Eles nos ensinaram a rezar de olhos fechados. Quando
nós os abrimos, eles tinham a terra e nós tínhamos a Bíblia.

Os temas clássicos abordados por Malinowski da antropologia


cultural que são o forte domínio de Malinoswki (1938, p. xi) são
objetos de comentário entusiasmado: “O capítulo sobre magia é
especialmente importante e valioso por causa da abundância de
textos, dos detalhes quanto ao ritual e os ingredientes empregados, e
as informações privilegiadas. Alguns antropólogos podem questionar
aqui a reinterpretação dos processos reais que fundamentam a magia”.
Malinowski oblitera o tema da circuncisão feminina. Kenyatta escreve
no capítulo VII sobre a Vida Sexual e descreve a iniciação feminina
e masculina. Classificar os autores é uma prática primária no campo
das ciências. Celarert (2010) frisa que o trabalho de Kenyatta segue o
93. Aqui se constata que Jomo Kenyatta (1894? – 1978) foi educado em uma missão da Igreja de Escócia.

132
modelo funcionalista do seu mestre. Celarent sinaliza que o livro de
Kenyatta é “na superfície um exercício operante no funcionalismo
de Malinowski, existem capítulos sobre parentesco, posse da terra,
economia, educação, iniciação, sexo, casamento, governo, religião,
nova religião e magia’.

No capítulo sobre iniciação, as ironias se multiplicam. Kenyatta


defendeu a prática de clitoridectomia de Gikuyu, realizada em meninas
e nas adolescentes com a sua iniciação completa (irua) na tribo, o
que os prepara para suas futuras responsabilidades como esposas,
mães e agricultores. Isso se tornou uma grande questão política para
o Gikuyu em 1930. Os colonizadores se opuseram uniformemente
à prática: os missionários o criticaram. Enquanto a administração
britânica estava discretamente tentando negociar sua redefinição para
um ritual mais limitado. Isso fez da clitoridectomia um ideal e questão
da política anticolonialista. A GCA começou a insistir. Os africanos,
no entanto, circuncidam suas filhas, particularmente incluindo, aqueles
chefes cristãos que se abstiveram de ter suas filhas circuncidadas. Os
líderes missionários responderam com um forte apelo público. A
GCA aproveitou a ocasião para tirar as Gikuyu da órbita temporária,
iniciando um sistema escolar inteiro independente de missão. Mas
outras evidências sugerem que o GCA pode ter visto que isso era uma
forma de retirar os africanos da tutela missionária e ficar livres.

Em 1930 esta prática tornou-se uma grande questão política. O


autor discute os detalhes práticos e sua justificação tribal. De acordo
com Menil (2018) Kenyatta defendeu a “prática em nome de apoiar o
princípio da ‘classificação por idade’ (a organização da sociedade em
torno das faixas etárias) e como uma ferramenta para a educação, em
particular o ensino de resistência. O contexto mais amplo em que essa
questão surgiu, no entanto, foi em torno dos direitos dos africanos
nativos de praticar suas tradições”. Sua posição sobre a circuncisão foi,
portanto, informada por uma lealdade política e uma posição contra o
domínio da Igreja e da Coroa.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
133
Os missionários da Consolata no Quênia ascenderam conflitos
entre os Gikuyu. Araújo (2007) examina que nos textos escritos
pelos Missioni Consolata não evidenciam os conflitos e ao analisar
o período da guerrilha Mau Mau destaca que as missões deixaram de
ser frequentadas pelos Kikuyu e, após seu esmaecimento, houve uma
explosão do número de fiéis. (idem, p. 2).

A propósito da participação, ou não, de Jomo Kenyatta no


movimento Mau Mau apresentam-se duas vertentes. Araújo indica
trabalhos que argumentam o afastamento dos Mau-Mau: Kershaw
(1997) e Lonsdale (1987, 1990 e 1996) afirmam que Kenyatta jamais
chefiou o movimento Mau Mau, e salientam que se opôs aos seus
líderes94. As autoridades britânicas e boa parte da literatura que tratou
do assunto no calor da guerrilha divulgam o contrário. Apoiado em
Kershaw (1997) Araújo esclarece que a União Africana do Quênia
(KAU) presidida por Kenyatta na sua plataforma não incluía os
interesses dos Kikuyu empobrecida, mas ressaltava os interesses da elite
nativa, geralmente letrada.

Parte da elite letrada da África Oriental fez sua formação na


metrópole. Em Londres Kenyatta fez amizade com George Padmore e
esteve em Moscou em 1932 e 1933. Regressou a Londres e aprofundou
amizade com Banda (futuro presidente do Malawi) e Nkrumah (egresso
da LSE e futuro presidente de Gana). Eles foram os organizadores do
5º Congresso Pan-Africano em Manchester. O Pan-Africanismo, as
lutas pela descolonização se desenvolviam no coração dos Impérios,
com aprendizagens que se realizavam fora e dentro da academia.
Durante este periodo ele se aproximou de um grupo militante de
intelectuais africanos, caribenhos e norte-americanos (C.L.R. James,
Eric Williams, Paul Robeson, Ralph Bunche e W.A. Wallace Johnson)

94 A acusação de envolvimento de Kenyatta com o movimento Mau Mau


provocou o seu encarceramento de 1952 a 1959, obrigado a trabalho forçado.
Depois ficou exilado em Lodwa. A acusação foi de “comandar e integrar” a
Sociedade Mau Mau, junto com mais seis pessoas. A opinião geral da época o
ligava aos Mau Mau, porém investigações posteriores demonstraram o contrá-
rio.

134
que produziu relevantes interpretações críticas sobre o colonialismo e
a escravidão. Grátis (2017) o elevou a “campeão do anticolonialismo,
do nacionalismo africano, do pan-africanismo e da unidade de todos
os povos afrodescendentes ao redor do mundo. Junto com outros
líderes como Kwame Nkrumah (Gana), Patrice Lumumba (República
Democrática do Congo) e Julius Nyerere (Tanzânia).

Jomo Kenyatta fala em nome do povo Gikuyu, que viu na


“missão da Grã-Bretanha” o fato de não terem avançado a “um nível
intelectual, moral e econômico superior”. Pelo contrário identifica que
o “africano foi reduzido a um estado de servidão, sua iniciativa na área
social, econômica e política foi negada e foi submetido à posição mais
inferior de uma sociedade humana doente. Se ele se atreve a expressar
sua opinião sobre ponto diferente do que lhe é determinado, ele entra
na lista negra como “agitador” (KENYATA, 1938, p. 197). De diversas
maneiras as trajetórias e ações dos jovens intelectuais foram controladas
pelas autoridades e instituições da sociedade colonial.

Malinowski sabia dessa acusação de “agitador” do seu ex-


orientado e entra na sua defesa. Também realiza apontamentos críticos
do seu trabalho, as suas expressões que estavam fora do padrão de
reflexividade e criticou do livro: Talvez haja um pouco demais de
viés europeu em algumas passagens. Eu poderia ter sido tentado a
aconselhar que o escritor seja mais cuidadoso ao usar antíteses como
coletivo versus individual, ... Em muitos pontos desnecessários são
introduzidas comparações e expressões europeias como Igreja, Estado,
“sistema legal”, “economia”, etc. são usados com implicações um tanto
supérfluas! (MALINOWSKI, 1938, p. X).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As rupturas dentro do sistema colonial fizeram emergir as


novas nações com seus mitos e heróis, com seus significados
simbólicos, políticos avassaladores que Anderson denominou

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
135
de comunidade imaginada (ANDERSON, 2008). Kenyatta é o
símbolo, mito e herói da nova nação chamada Kenya. Em Facing
Mount Kenya recusa o domínio colonial e critica ferrenhamente a
interpretação dos europeus que estabeleceram o regime comunal ou
propriedade tribal nas reservas. Nesta tese e em outros livros ataca
“Essa nova terminologia da posse da terra que os britânicos impuseram
e afastou os proprietários originais da terra. Os Gikuyu perderam a
maior parte de suas terras através desse mandato”. Diferente de
outros povos, afirma Kenyatta, o “país Gikuyu nunca foi totalmente
conquistado pela força das armas, mas as pessoas foram colocadas sob
o domínio implacável da Europa imperialista através da malandragem
insidiosa da hipocrisia dos tratados.(KENYATTA, 1938, p. 47). Após
a independência a ordem politica, social e econômica dentro da nova
nação passou a ser controlada pela etnia Gikuyu. As relaçoes de
poder foram organizadas, de tal maneira que mostraram negligência
para reconhecer as terras reivindicadas pelos Mau Mau e de trabalhar
sistematicamente para promover o apagamento do referido grupo.
Políticas de reforma agrária não resolveram e no pós-descolonização as
políticas de distribuição de terras (e águas) foram limitadas. O ditado
popular citado por Kenyatta (1938, p. 46) que expressava o desejo dos
Gikuyu “Gotire ondo wandereri, nagowo Coomba no olainoka”, que significa
“que não existe coisa mortal ou ato que vive para a eternidade”, os
europeus, irão sem dúvida, eventualmente voltar ao seu próprio
país” não se cumpriu, pois a neocolonização assentou novas bases.
Nguguiwa Tiongo escreve em Gikuyu o livro
El Diablo en La Cruz no qual penetra na urdidura da colonização,
descolonização e neocolonização.

Esa humanidad es el fruto de muchas manos trabajando juntas, porque,


según el refrán gikuyu, un sólo dedo no puede matar un piojo; un simple tronco no
puede hacer un fuego que arda toda la noche; un hombre solo, aunque fuerte, no
puede construir un puente sobre un río; y muchas manos pueden levantar un fardo,
cualquiera que sea su peso. La unión de nuestros sudores es la que nos hace capaces

136
de cambiar las leyes de la naturaleza, lo que la doblega a las necesidades de nuestras
vidas, en lugar de permanecer esclavos de ellas. Es por esto por lo que en Gikuyu
también se sentencia: cambia, porque las semillas de una sola calabaza no son siempre
iguales. (pág.64)

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ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
139
Povo Endorois e Luta pelo Território.

Sheilla Borges Dourado, professora da faculdade de direito da


Universidade Federal de Uberlândia

Para os povos indígenas, o território tem papel central em suas


culturas e modos de vida. As violações a direitos territoriais de povos e
comunidades tradicionais são práticas do colonialismo, mantidas pelos
estados nacionais.

No Quênia, entre os anos 1973 e 1986, o povo Endorois, que vive nas
proximidades do Lago Bogoria, na região centro oeste do país, havia
sido forçado a se deslocar do seu território em razão da criação de uma
reserva ambiental pelo governo. Diante das restrições administrativas,
a falta de acesso a lugares e a recursos antes utilizados impactou
negativamente a sobrevivência física e cultural do povo Endorois, cujos
membros foram privados de ritos religiosos e práticas culturais e de
áreas propícias ao pastoreio e ao plantio. A inércia do estado queniano
em reconhecer e assumir tais efeitos levou a Comissão Africana de
Direitos Humanos e dos Povos (em inglês ACHPR) a analisar o caso.

Em 2010, a decisão da ACHPR sobre o caso Endorois vs Quênia


tornou-se um marco na interpretação de direitos humanos coletivos.
Ela evidenciou a dimensão da diversidade étnica no Quênia, a partir
da especificidade do povo Endorois, e dos direitos que lhes são
correspondentes, bem como atualizou o próprio significado do termo
“indígena” no continente africano .

O texto da Constituição da República do Quênia, promulgada também


no ano de 2010, se aproxima da interpretação da ACHPR. O artigo
63 define a terra comunitária (Community land) como aquela mantida
por comunidades identificadas com base na etnia, cultura ou interesse
semelhante, a exemplo do território Endorois. O passo seguinte, além
do reconhecimento normativo, é promover a titulação efetiva das terras
comunitárias no Quênia.

140
ANTROPOLOGIA DO SUDÃO: RAÍZES HISTÓRICAS
DE UMA DISCIPLINA EM SUAS RELAÇÕES COM O
MISSIONARISMO E COM O COLONIALISMO DO
CONDOMÍNIO ANGLO EGÍPCIO

Suellen Precinotto95

A relação entre antropólogos e missionários é historicamente


ambivalente e repleta de contradições. Ambas as partes carregam
imagens estereotipadas dos ofícios que são representados por essas
figuras (dos antropólogos e missionários), colocando-se como opostos
entre si, reconhecendo no outro o exemplo perfeito daquilo que não se
deve ser. Os antropólogos personificam o etnocentrismo nos missionários,
afirmando que estes sejam destruidores de culturas autóctones.96
Enquanto isso, os missionários garantem que representam o oposto
polar da antropologia, reafirmando o valor do trabalho missionário como
grandioso e espiritualmente superior às etnografias dos antropólogos.
Hipérboles à parte, essas contradições não são de todo incorretas, e
através de uma análise mais demorada dos processos relacionais entre
antropologia, missionarismo e colonialismo pode-se formular algumas
considerações a este respeito.

Em sua introdução aos Argonautas do Pacífico Ocidental (1922),


Malinowski comemora o advento da etnografia profissional e científica:
“O tempo em que tolerávamos descrições apresentando-nos o nativo
como uma caricatura infantil e distorcida do ser humano passou. Essa
imagem é falsa, e como a maioria das falsidades, foi morta pela Ciência”.97
95. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, sob
orientação do professor Hector Guerra Hernandez e coorientação de Patricia Teixeira Santos. No Mes-
trado, pesquisou a etnografia de Edward Evans-Pritchard para o periódico Sudan Notes and Records em
suas relações com o aparelho colonial anglo egípcio (1928-1956). No Doutorado, a pesquisa diz respeito
ao projeto do “Novo Sudão” proposto por John Garang e o Sudan People’s Liberation Army/Movement
(SPLA/M), no período que vai de 1983 a 2011. Contato: [email protected]. Endereço para o cur-
rículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4195315464350017.
96. VAN DER GEEST. S. Anthropologists and missionaries: brothers under the skin. In: Man, New
Series, v. 25, n. 4, 1990, p. 588-589.
97. MALINOWSKI, B. apud PRATT, M. L. Fieldwork in common places. In: CLIFFORD, J.; MARCUS,

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
141
Esse apontamento do autor é sintomático de um hábito estabelecido
entre os etnógrafos, de defender a escrita etnográfica diante de gêneros
de escrita anteriores e menos especializados, como os diários de viagem,
memórias pessoais, matérias jornalísticas e descrições de missionários,
colonizadores, oficiais coloniais entre outros.98 A palavra “Ciência”
grafada em seu texto com inicial maiúscula não é uma simples convenção
de escrita adotada por Malinowski, mas aparece como uma escolha,
que coloca a antropologia/etnografia no mesmo patamar das ciências
exatas, naturais e biológicas, conferindo-lhe o crivo da autenticidade
científica passível de comprovação através de realidades empiricamente
observadas. Embora não suplantasse os outros gêneros de escrita, a
“etnografia profissional” surge para usurpar sua autoridade e “consertar
seus erros”.99 Ainda pode-se apontar o uso da palavra “laboratório”
como metáfora para o campo etnográfico, no qual se defendia a
utilização de uma metodologia distintiva, empregada para comprovar
generalizações comparativas, conferindo considerável sucesso aos
novos métodos das ciências sociais, que garantiu atenção até mesmo do
público intelectual e literato em geral, para além da sociologia.100 Exemplo
disso são as menções aos trabalhos de missionários e viajantes feitas
pelos antropólogos-etnógrafos. apenas para evidenciar uma suposta
superficialidade ou para apontar seus equívocos. Mary Louise Pratt trata
deste assunto com deliciosa ironia ao apresentar o ego do antropólogo,
que se coloca como autoridade última, como um “sério cientista”, único
passível de credulidade a respeito de povos “exóticos”.101

G. Writing culture: The poetics and politics of ethnography. Los Angeles: University of California
Press, 1986, p. 27. Do original: “The time when we could tolerate accounts presenting us the native
as a distorted, childish caricature of a human being are gone. This picture is false, and like many other
falsehoods, it has been killed by Science.” (tradução minha).
98. Ibid, p. 28.
99. No decorrer deste capítulo, a palavra etnografia será utilizada para se referir apenas ao gênero de
escrita dos antropólogos ditos profissionais, enquanto que os trabalhos advindos de outras áreas do
conhecimento – como aqueles produzidos por missionários ou funcionários da administração colonial
– serão tratados com outras nomenclaturas, para melhor diferenciar a que tipo de obra estamos nos
referindo.
100.STOCKING JR, G. The ethnographic sensibility of the 1920s and the dualism of the anthropological
tradition. In: STOCKING JR, G (Ed.). Romantic Motives: essays on anthropological sensibility. United
States: The University of Wisconsin Press, 1989, p. 210.
101.PRATT, op. cit, p. 28.

142
Diversos autores têm se dedicado nas últimas décadas a discutir
as relações entre antropologia e missionarismo em contextos coloniais,102
e levantam alguns pontos que nos são essenciais para apresentar o
cenário dessa relação. Em primeiro lugar, é importante apontar que no
decorrer dos vários séculos de expansão capitalista europeia, e o rápido
crescimento econômico desse continente – através do comércio, das
guerras, do trabalho missionário, do colonialismo e da pesquisa, ou seja,
da exploração de sociedades outras, - diferentes diálogos intelectuais
se tornaram possíveis. Ao mesmo tempo, os “Outros” (aqueles
sujeitos subalternos, diminuídos pela cultura eurocêntrica) tornaram-se
visíveis,103 ainda que representando um papel secundário, sujeitos da
intervenção da tutela europeia, do “dever de civilizar” que os impérios
acreditavam ter. Nesse processo, o papel do antropólogo surge e se
torna central na discussão e análise deste Outro; no entanto, seu método
de trabalho variou muito no decorrer de cerca de meio século, no qual
a disciplina se consolidou.

Entre os anos de 1840 e 1880, era ainda incomum que os


antropólogos fizessem trabalhos de campo. A grande maioria dos
antropólogos reunia seus dados através da correspondência com
administradores coloniais, colonizadores, oficiais, missionários e
outros “brancos” que viviam nesses lugares “exóticos”.104 São estes
os “antropólogos de gabinete” (especialmente aquele grupo formado
pelos antropólogos britânicos de fins do século XIX) que Fredrik
Barth nos apresenta, a exemplo de Edward Tylor e outros de sua
geração105. O próprio Tylor celebra a criação de uma publicação do
Royal Anthropological Institute, cujo nome já nos indica os seus objetivos:
Notes and Queries on Anthropology, for the Use of Travellers and Residents in
102. A título de curiosidade, em seu estudo sobre a relação entre antropologia e missionarismo, George
Stocking Jr afirma que a oposição intelectual entre as figuras do antropólogo profissional e o missioná-
rio teria surgido nos gabinetes de Malinowski, na Europa, e de Boas, nos Estados Unidos. STOCKING
JR, G. After Tylor: British social anthropology (1888-1951). United States: The University of Wisconsin
Press, 1994, p. 20.
103. ERIKSEN, T.; NIELSEN, F. A history of anthropology. London: Pluto Press, 2001, p. 06.
104. Ibid, p. 24.
105. BARTH, F. et. al. One discipline, four ways: british, german, french and american anthropology.
United States: The University of Chicago Press, 2005, p. 10.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
143
Uncivilized Lands, criada em 1874. Enquanto influente membro de seu
comitê editorial, Tylor esperava que o acesso ao periódico pudesse
melhorar a qualidade do material que era reportado por exploradores,
missionários e administradores interessados nas questões do império
britânico.106 Eriksen e Nielsen também indicam que, apesar da extensão
e embasamento empírico e teórico dos trabalhos coletados por
membros do corpo colonial (administradores, militares e missionários),
a variedade na qualidade e a ampla gama de objetivos de seus autores
(ao que Radcliffe-Brown chamaria mais tarde “história conjectural”),
tornavam seus textos repletos de especulações e levantava inúmeras
dúvidas ao leitor mais crítico.107

Susan Stewart aponta que existe uma espécie de fantasma


das conexões entre antropologia e missionarismo, que projeta a
retórica da transformação em uma retórica da escrita – convertendo a
“experiência”/“espetáculo” em detalhe, a “cena” em uma forma e, por
último, do “outro” em “eu” e vice versa.108 Essas conversões se dariam
no sentido de diferenciar a escrita etnográfica dos escritos missionários,
de colocar-se em um lugar de autoridade inquestionável. Ainda pode-
se lembrar da confiança dos poucos antropólogos treinados para o
trabalho de campo, formados no início do século XX, de que estariam
fazendo uma etnografia diferente, mais eficiente, mais confiável e mais
“científica” do que a dos viajantes, missionários e oficiais do governo, que
começaram a ser paulatinamente colocados às margens da disciplina.109

Apesar das diferenças expressas nas ocupações de antropólogos


e missionários, as similaridades em seus objetivos práticos são inegáveis.
Além disso, é também indiscutível o bom uso que ambos podem fazer
do trabalho do outro: os missionários podem servir como informantes-
chave para o trabalho de campo dos antropólogos, enquanto que por

106. Idem.
107. ERIKSEN e NIELSEN, op. cit, p. 24.
108. STEWART, S. Antipodal expectations: notes on the formosan “ethnography”of George Psalmanazar.
In: STOCKING JR, G. (Ed.). Romantic Motives: essays on anthropological sensibility. United States: The
University of Wisconsin Press, 1989, p. 67.
109.STOCKING JR, op. cit, 1989, p. 210.

144
outro lado podem ainda se beneficiar do conhecimento antropológico
para as atribuições de seu ofício.110 Isso em vista, este capítulo discutirá as
imbricações entre antropologia e missionarismo em contextos coloniais,
no sentido de entender as complexas tramas envolvidas no fazer da
situação colonial, além de compreender o surgimento da antropologia
como disciplina independente no corpo de estudos das ciências
sociais europeias. Para tanto, utilizaremos o caso do condomínio anglo
egípcio como representativo desse momento, uma vez que se entende
a consolidação da antropologia britânica como um dos produtos do
imperialismo em África. Para além disso, o constante diálogo – seja ele
amigável ou hostil – entre antropólogos e missionários pode ajudar a
desenhar um pano de fundo que dê sentido ao poderoso artifício criado
pelo escritório colonial britânico no Sudão, que fez uso de variadas
formas de conhecimento e contato com os povos tradicionais sudaneses
para aumentar suas esferas de influência e efetivar o controle sobre
essas populações. Para observar tais questões, o periódico Sudan Notes
and Records (que será explanado adiante) aparece como um importante
instrumento de disseminação ideológica, de disputas, de consensos
políticos, entre outros aspectos fundamentais para a manutenção e
reprodução do aparato colonial.

FRATURAS HISTÓRICAS DE UMA REGIÃO: A


DISSOCIAÇÃO ENTRE NORTE E SUL DO SUDÃO
DURANTE O CONDOMÍNIO ANGLO EGÍPCIO

A conquista dos britânicos sobre o Sudão aconteceu após a


cruel batalha de Omdurman, em 1898, com a derrota dos exércitos do
mahdi.111 O condomínio anglo egípcio, como foi chamado o momento
110. VAN DER GEEST, op. cit, p. 589-590.
111. Muhammad Ahmad, conhecido popularmente como al-Mahdi, foi o líder da revolução mahdista e
futuro líder da Mahdiyya (1881-1898) no Sudão, ao proclamar a necessidade de uma reforma islâmica
do Sudão nas últimas décadas do século XIX. Somente com a derrota para os britânicos é que seu poder
foi sublimado; no entanto, os ideais de uma sociedade islâmica permaneceram em voga na sociedade
sudanesa, especialmente no norte. Para mais a respeito desse contexto, ver o livro de Patricia Teixeira

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
145
dessa incursão colonial, que duraria até a emancipação do Sudão,
em 1956, incorporou sob sua administração uma diversa gama de
territórios, criando o mais extenso estado da África. Reconhecendo a
diversidade populacional do vasto território, as autoridades britânicas
criaram distintas formas de administração, com base na ideia de que
um maior domínio colonial apenas se efetivaria através de um controle
estrito. As diferentes identidades sudanesas, atuantes em sua pluralidade,
começaram a emergir enquanto um problema para as autoridades
coloniais, que estabeleceram a organização das muitas etnias sudanesas em
categorias binárias e estanques, como “nortenhos”/“sulistas”, africanos
/árabes, nilóticos/equatoriais, independentemente da complexidade
local de cada grupo étnico.112 Tais categorias foram reproduzidas
sistematicamente por organizações de auxílio internacional, jornalistas,
sociedades missionárias e, sem dúvida, por antropólogos, – quem ao
passo que buscavam o reconhecimento das minorias sudanesas e de suas
distintas identidades étnicas, acabaram por auxiliar (conscientemente ou
não) para a efetivação do controle político através dessas categorias e,
como consequência, contribuindo para o sofrimento gerado por tais
divisões.113

Já em 1902, o escritório colonial britânico no Sudão decidiu


tratar as províncias do sul114 como um problema específico e destacado
do restante do país. Mais notavelmente, os missionários cristãos
foram encorajados na região, e o inglês foi introduzido como língua
oficial na educação. Enquanto isso, no restante do país, o árabe foi
utilizado como linguagem tanto da administração como da educação,
e a preconização do islã foi permitida, vagarosa e sucessivamente.115
Santos, Fé, guerra e escravidão: uma história da conquista colonial do Sudão (1881-1898).
112. JAMES, W. War and survival in Sudan’s frontierlands. Voices from the Blue Nile. United States:
Oxford University Press Inc., 2007, p. 02.
113. Idem.
114. A reprodução das categorias geográficas de norte e sul no capítulo tem em vista as denominações
utilizadas pelo colonialismo britânico no Sudão, a fim de localizar o leitor no mesmo sentido daquilo
que foi pensado pelas práticas administrativas coloniais. A problematização da elaboração e aplicação
dessas categorias, apesar de fundamental, foge à proposta do capítulo, sendo necessário deixá-la para
outra ocasião.
115. CHRISTOPHER, A. Secession and South Sudan: an African precedent for the future? In: South
African Geographical Journal, v. 93, n. 2, 2011, p. 127.

146
Nos anos que seguiram, a “política do sul” foi inaugurada. O medo de
que a ideologia revolucionária do mahdi, ainda ressonante no Sudão,
se espalhasse por todo o país (e dificultasse o efetivo controle), fez
com que os britânicos – que eram governantes virtuais tanto do Egito
como do Sudão – passassem a atuar pela exclusão da influência árabe-
muçulmana das províncias do sul. Desencorajavam o ensino e o uso do
árabe, e proibiram o uso de sua indumentária típica, a que chamavam
“vestido árabe”.116 Para impedir o espalhamento do islã pelo sul, retirou-
se gradativamente da região as tropas e os traficantes de escravos (os
jellaba) do norte, passando a se recrutar localmente a partir de 1907.117

A tendência à separação entre norte e sul em seus termos


político-administrativos, como veremos, teve sempre como base o medo
da impregnação do islã por todo o país enquanto ameaça ao controle do
governo, tal como havia representado a Mahdiyya. A partir de 1914, o
governo do Sudão passou a considerar o norte como “pacificado”, depois
das agitações subsequentes à queda da Mahdiyya, cujos remanescentes
foram facilmente suplantados pelo exército egípcio e pelas guarnições
britânicas.118 No norte, o regime colonial conciliou líderes muçulmanos
ortodoxos e shaykhs sufi, deixando o governo tradicional em áreas
rurais remotas. Códigos legais criados para a Índia e para o Egito foram
adaptados e aplicados no contexto sudanês, mas a shari’a (lei islâmica)
dos qadis muçulmanos financiados pelo governo ainda regulavam as
questões pessoais e familiares.119 Para organizar e firmar seu controle
sobre a enorme sociedade colonial que estava criando, o governo
tomou algumas medidas específicas. Temendo a fúria da população
e a “vagabundagem”, o governo passou a desencorajar o tráfico de
escravos, enquanto que em aspectos gerais ignorava a escravidão: os
donos de escravos foram renomeados como “mestres”, e os escravos
como “servos”; serviços básicos foram instalados, incluindo educação
116. MOHAMEDALI, M. Independent Africa and ethno-regional conflicts: The case of the Sudan. In:
Ufahamu – A Journal of African Studies, 22 (1-2), 1994, p. 110.
117. Idem.
118. DALY, M. W. Darfur’s sorrow. The forgotten history of a humanitarian disaster. New York: Cam-
bridge University Press, 2007, p. 115.
119. Idem.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
147
primária e saúde básica.120 Nesse ínterim, o sul recebeu muito pouco:
o estabelecimento de suas fronteiras internacionais e a permissão do
assentamento de comunidades missionárias, enquanto que ao mesmo
tempo servia como espécie de jardim zoológico para turistas europeus
e americanos.121

Os colonialistas britânicos enxergavam a si mesmos como


missionários seculares cujo objetivo era civilizar o sul. As políticas
britânicas para o norte seguiram um paradigma diferente. Esses
paradigmas seriam, de acordo com Ali Mazrui, o da modernização e o
da ocidentalização.122 Para o norte, foram tomadas medidas para chegar
àquilo que os britânicos entendiam como “modernização”, de acordo
com programas de desenvolvimento econômico e político, recebendo
esforços para a construção do estado aos moldes europeus. Enquanto
isso, o sul sofria um processo autoproclamado “ocidentalização”,
especialmente através do proselitismo cristão e da educação.123
Como reflexo dessas escolhas, diferentes grupos do sul apresentaram
resistência às estratégias de controle, o que por sua vez gerou ainda
mais marginalização por parte do escritório colonial, ao taxá-los
como “rebeldes”. Em meados da década de 1910, o secretário-civil
do condomínio, Harold MacMichael,124 em certa ocasião comenta os
problemas de segurança no sul, utilizando-se de uma linguagem que
Francis Deng reconheceu como precursora dos efeitos sensibilizantes
da antropologia: “Os problemas experienciados pelo governo nas áreas
pantanosas de Upper Nilo, seja na borda abissínia ou mais adiante a
120. Ibid, p. 115-116.
121. Idem.
122. MAZRUI, A. apud BABYESIZA, A. University Governance in (post-) conflict Southern Sudan (2005-
2011). Germany: University of Kassel, 2013, p. 45-46.
123. Idem. O uso dos termos “modernização” e “ocidentalização” entre aspas indica que se está repro-
duzindo as categorias defendidas pelo colonialismo britânico no Sudão, e nunca uma concordância com
esses conceitos. O que os colonialistas entendiam por “modernização” dizia respeito ao atrelamento
da economia da região em uma hierarquia centro-periferia, com foco em Khartum. Por outro lado, a
“ocidentalização” do sul era vista como a necessidade de aproximar as regiões do sul de um estilo de vida
próximo ao europeu, a fim de firmar as bases do controle social através do controle ideológico, especial-
mente através da educação cristã, como já indicado.
124. MacMichael foi um administrador colonial britânico que atuou no Sudão durante quase duas dé-
cadas, sendo primeiro governador de Khartum (1915-1925), e posteriormente nomeado inspetor sênior
do condomínio (1926-1933).

148
oeste, são atribuídos a uma mistura de desconfiança natural, baseada
na amarga experiência de dias passados, sentida por esses selvagens a
respeito de qualquer governo”.125 A complacência de MacMichael para
com os efeitos do colonialismo britânico e de suas políticas no sul é
impressionantemente cínica, o que leva Deng a compará-la às narrativas
antropológicas, as quais serão discutidas em breve.

A política oficial para o sul entraria em vigor somente em janeiro


de 1930, apesar de seus elementos centrais terem surgido já durante o
início da década de 1920. Esses elementos foram principalmente o uso
dos “líderes tribais” nas cortes e na manutenção da segurança (o que
funcionou como os princípios do governo indireto), e o papel das escolas
missionárias no provimento da educação na região.126 Havia ainda outros
fatores cardeais para a segregação do sul: a instrução de oito línguas
do sul (dinka, nuer, bari, moru, ndogo, shilluk, madi e zande) para uso
nas escolas primárias, a ampla exclusão de egípcios ou “nortenhos
arabizados” de funções administrativas ou comerciais no sul, e o uso do
inglês como língua oficial.127 Essas políticas, implementadas com vigor
durante os anos 1930, espalharam a ideia de que as “tribos rebeldes”
do sul eram pouco conhecidas pela administração colonial, o que
incentivou trabalhos antropológicos (amadores e profissionais), muitas
vezes financiadas pelo próprio aparelho colonial, como são os casos
de Edward Evans-Pritchard entre os nuer e o de Fred Nadel a respeito
dos nuba, entre outros. Além disso, foi tornado mister o emprego dos
padres da Italian Catholic Verona Fathers como professores missionários,
os quais elaboraram dicionários e gramáticas das línguas do sul do Sudão,
aumentando o senso de distinção entre as administrações do norte e do
sul.128 A política oficial para o sul teria fim apenas em 1946, quando os
125. DENG, F. War of visions: conflict of identities in the Sudan. Washington: The Brookings Institution,
1995, p. 25. Do original: “The troubles experienced by the government in the swampy areas of the Upper
Nile, whether on the Abyssinian border or farther west [are] attributable to a mixture of the natural mis-
trust, based on bitter experience of the old days, which was felt by theses savages for any government.”
(tradução minha).
126. DALY, M. W.; DENG, F. Bonds of Silk: the human factor in the British administration of the Sudan.
United States: Michigan State University Press, 1989, p. 06.
127. Idem.
128. Ibid. p. XII. Ainda de acordo com Daly e Deng, essas políticas também inseriram muitas contra-

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
149
britânicos decidiram reunir artificialmente norte e sul e pressioná-los
pela independência, a fim de minar a influência egípcia na região.129

Essa divisão entre norte e sul também aconteceu, e de maneira


bastante acentuada, no setor educacional. A educação primária no sul
foi entregue aos missionários, assim como em outras colônias britânicas,
com foco nos filhos homens de camponeses – especialmente os filhos
dos chefes – enquanto que a instituição precursora da educação no Sudão
– o Gordon Memorial College, estabelecida em 1902 em Khartum (norte),
começou a oferecer cursos correspondentes ao nível superior em 1939,
passando a atuar de forma conjunta com a Universidade de Londres a
partir de 1945.130 Segundo Sommers, na mentalidade dos colonialistas
britânicos era desnecessário prover educação para os sulistas, salvo
exceções, uma vez que limitar o acesso à educação limitaria também as
ameaças aos costumes locais, tão caros ao método do governo indireto.131

Tornou-se então prática corrente encorajar o trabalho


missionário cristão no sul. O governador-geral do Sudão (1899-1916)
Reginald Wingate encorajou as sociedades missionárias a atuarem no sul,
não porque fosse um cristão exemplar, mas porque enviar missionários
cristãos ao “sul pagão”, facilitaria o processo de mantê-los afastados do
norte muçulmano, sendo que a consolidação do cristianismo na região
também impediria o espalhamento do islã ao sul do Nilo.132 Entre os
dições: a prática do governo indireto, concedido às autoridades locais, raramente era compatível com as
propostas de desenvolvimento do paradigma de modernização; a ejeção do pessoal treinado do norte era
pouco efetiva sem a existência de sulistas considerados aptos (principalmente no que diz respeito ao co-
nhecimento do inglês formal) para assumir as funções que eram confiadas aos nortenhos; a falta de uma
infraestrutura econômica, de escolas seculares do governo (especialmente de nível secundário), entre
outros. Tais contradições tornaram a política oficial para o sul insustentável em seus próprios termos, daí
o uso do conhecimento produzido a respeito dos grupos étnicos do sul como instrumento de manobra
do governo. Para Mohamedali, essas contradições tiveram muitos efeitos no desenvolvimento de um
estado-nação moderno aos moldes europeus no Sudão, sendo esses efeitos ainda piores no sul. Para ele,
a perigosa combinação do sistema de distrito fechado, governo indireto e da política de educação enco-
rajaram e aumentaram a diferenciação do norte em relação ao sul. Em 1928, era possível perceber que o
processo de criar um sul separado e distinto do norte havia progredido bastante em diferentes aspectos.
MOHAMEDALI, op. cit, p. 156.
129. BABYESIZA, op. cit, p. 45-46.
130. Ibid, p. 46.
131. SOMMERS apud BABYESIZA, p. 46
132. COLLINS, R. Introduction. In: COLLINS, R.; DENG, F. The British in the Sudan (1898-1956). The
sweetness and the sorrow. London: The MacMillan Press, 1984, p. 23-24.

150
missionários, existia um forte sentimento moral e religioso de que era
errado deixar o sul vulnerável à influência islâmica do norte. Apesar
de muitos oficiais britânicos que serviam no sul serem contrários à
expansão da autoridade missionária, sua maioria era também cristã, e
para eles a ideia de um sul tornado cristão era um pouco mais simpática
do que a de um sul muçulmano.133 Assim sendo, as políticas britânicas
para o sul foram marcadas fortemente pela influência da política religiosa
(o que ocasionou inclusive conflitos entre missionários católicos e
protestantes).134

O proselitismo era o objetivo máximo dos missionários no sul,


enquanto que a educação secular a eles consagrada era vista como um
objetivo secundário. Apesar disso, o avanço das relações transculturais
entre grupos do sul muito se deve aos missionários, cuja maioria não era
de compatriotas britânicos, mas italianos, estadunidenses, australianos e
neozelandeses.135 Até sua expulsão, em 1964, os missionários cristãos,
particularmente dos Fathers of Verona e da Anglican Church Missionary
Society, entre outros, foram responsáveis pela maior parte da educação
aos moldes ocidental no sul do Sudão. Apesar de sua longa e influente
estadia, os missionários não conseguiram, nem mesmo em suas ações
conjuntas com o governo, formar uma classe de elite intelectual no
sul, o que teria um importante reflexo no decorrer do processo de
emancipação do Sudão. O próximo item deste capítulo será dedicado a
discutir mais amplamente as questões referentes ao missionarismo no
Sudão.

Em 1955, um ano antes do início do processo de independência


do Sudão, iniciou-se a chamada guerra civil entre norte e sul, que
teve um saldo assustadoramente alto em números de mortos, feridos
e deslocados. Àquela altura, o sul tinha consolidado uma herança de
resistência a inúmeros fatores com efeitos pertinentes: a escravidão, a
arabização e a islamização. Além disso, as políticas coloniais separatistas

133. BELL apud DALY e DENG, op. cit, p. 97.


134. DALY e DENG, op. cit, p. 125-126.
135. Ibid, p. 169.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
151
e a influência do cristianismo e da cultura ocidental haviam reforçado
a identidade distinta para o sul, apesar de a sociedade sulista oferecer
também resistência a esses processos.136 À época da independência, em
1956, estava evidente a falha do condomínio anglo egípcio em garantir
um estado unitário a seus sucessores. Como se não bastasse a guerra civil
em plena atividade, a entrega do governo aos sudaneses se deu em meio
a um verdadeiro caos jurídico. Os nacionalistas sudaneses culpavam os
britânicos pelo atraso do sul no auxílio ao desenvolvimento do estado
moderno sudanês, culpando também as sociedades missionárias pelo
encorajamento da oposição criada pelo aparato do governo.137

O “FARDO DO HOMEM BRANCO” PARA ALÉM DO


GOVERNO: O PROSELITISMO MISSIONÁRIO COMO
INSTRUMENTO DE CONTROLE

A relação entre antropologia e missionarismo é antiga e tem sido


foco de debate há décadas na história da antropologia. Especialmente
depois daquilo que ficou conhecido como “revolução malinowskiana”, tal
relação passou a ser marcada por tensões vindas de diferentes lados.138 A
partir das transformações a respeito do método etnográfico, designadas
a Malinowski, passou-se gradativamente a rejeitar a possibilidade de
uma etnografia outra, fosse aquela feita pelos administradores coloniais,
fosse pelos missionários ou qualquer outro colonizador. Como visto,
os novos “antropólogos profissionais” defendiam o valor da etnografia
que fosse em primeiro lugar baseada no trabalho de campo e num
trabalho conceitual intensivo, e assim “verdadeiramente científica”.139
136. BUBENZER, F.; STERN, O. Hope, pain & patience. The lives of women in South Sudan. South Af-
rica: Fanele, 2011, p. XVI.
137. JAMES, op. cit, p. 25.
138. MACAGNO, L. Missionaries and the ethnographic imagination. Reflections on the legacy of
Henri-Alexandre Junod (1863-1934). In: Social Sciences and Missions, 22, 2009, p. 56.
139. KUKLICK, H. Tribal exemplars: images of political authority in british anthropology (1885-1945)
In: STOCKING JR, G. Functionalism historicized. United States: The University of Wisconsin Press,
1984, p. 05

152
Tomando o cuidado necessário de evitar marcar essas categorias
com definições rígidas, é importante ressaltar que uma história do
pensamento antropológico séria deve considerar os efeitos da sensibilidade
missionária para o desenvolvimento de sua disciplina, afinal os relatos
missionários tornaram-se gradativamente mais volumosos a partir da
segunda metade do século XIX.140 Para Achille Mbembe, a ideologia da
“missão civilizadora” do cristianismo em África não consistia em pensar
o ser humano de forma global, mas legitimar a missão de imposição e
reconhecimento do dito ocidente como centro universal do sentido,
único capaz de formular discursos sobre qualquer assunto, religioso ou
secular.141 Assim sendo, a introdução do cristianismo nas sociedades
negras africanas se insere na lógica da conquista, capaz de alcançar os
sujeitos (aqui não se permite a categoria indivíduo aos africanos), através
da religião e da submissão destes às tecnologias coloniais de poder.142
Procura-se pensar, então, o caso específico do Sudão a partir do papel
da religião enquanto transformadora da realidade colonial, seja através
da alfabetização, do catecismo ou do jugo ao trabalho, entre outras
formas de controle religioso. No Sudão, os missionários – especialmente
italianos, organizaram-se em torno de um tripé formado pelo apoio dos
britânicos, pela associação aos grupos de resistência antiescravista e pelo
combate ao mahdismo, garantindo a sobrevivência da igreja durante
todo o processo colonial anglo egípcio.143

Ainda durante o mahdi, o apoio dos líderes religiosos


catecúmenos ao governo islâmico – principalmente através da oferta de
terras e vantagens político-econômicas, além da alçada a um status social
superior – fez com que os missionários cristãos passassem a perseguir
tais líderes, reforçando a necessidade de que os jovens e as famílias
sudanesas se mantivessem longe do “infecto ambiente islâmico”, já que
ele “corrompia e esmorecia a força da perseverança obtida com ferrenha
140. Idem.
141. MBEMBE, A. África insubmissa. Cristianismo, poder e Estado na sociedade pós-colonial. Angola:
Edições Mulemba, 2013, p. 37.
142. Ibid, p. 38.
143. SANTOS, P. T. Fé, guerra e escravidão: uma história da conquista colonial do Sudão (1881-1898).
São Paulo: FAP-UNIFESP, 2013, p. 255.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
153
disciplina”.144 Na escrita da história do mahdi e de seus ansares, a igreja
católica fez questão de manter um “saber descritivo e contextualizador”
dos povos sudaneses, que foi reforçado pelo periódico missionário
Nigrizia.145 O olhar dos missionários, embasado nas diferenciações que
a Mahdiyya operava na vida cotidiana, e em um olhar racialista próprio
dos europeus, deu destaque a nomeclaturas tais como “bárbaro,
ansar, negro, árabe, branco”, criando categorias que serão apropriadas
pelo racismo das políticas de normatização da administração anglo
egípcia.146 No contexto do condomínio, o missionarismo cumpriu um
papel estratégico no processo de mediação, responsável pela condução
de uma narrativa sobre o que teria sido a Mahdiyya, pois afinal fora a
única instituição “confiável” a testemunhar o mahdi. Isso possibilitou
hierarquizar a inserção de diferentes populações na ordem colonial. A
educação missionária atuou nesse sentido, de preparar as populações
“negras e não árabes” do sul para os trabalhos agrícolas e manuais,
enquanto que a educação no norte dedicava-se a formar futuros
membros da administração colonial “conjunta”.147

Para Patricia Teixeira Santos, o discurso histórico embasado


no “conflito de raças”, que culmina no racismo é dotado, segundo
Foucault, de um grande poder de circulação, de uma grande capacidade
de metamorfose, de uma espécie de polivalência. Foi essa polivalência
que permitiu aos missionários ordenar um mundo com uma grande
diversidade cultural e social como era o Sudão após a Mahdiyya e a partir
daí estabelecer a “administração daqueles povos” e o “governo daqueles
mundos”.148

Cabe notar que foi através dos que trabalhavam diretamente


com as sociedades sudanesas – educadores, agentes, administradores,
missionários, e aqui incluímos os próprios antropólogos – que o racismo
institucionalizado contribuiu para a afirmação da soberania do estado
144. Ibid, p. 266.
145. Ibid, p. 288.
146. Ibid, p. 301-303.
147. Ibid, p. 304.
148. Ibid, p. 290.

154
colonial anglo egípcio. Santos atesta ainda que:

se durante a Mahdiyya as colônias antiescravistas de Gezirah,


Helouan e Leão XIII foram importantíssimas para a constituição de
espaços de contraponto e de instituição de disciplina que rivalizassem
com o estado mahdista, na administração anglo egípcia tornaram-se por
sua vez possibilidades ímpares de estabelecimento de ações normativas
que, baseadas no controle e no ordenamento de raças, aprofundaram os
sentidos e distinções existentes do ser “negro”, “árabe” e posteriormente
a categoria genérica e pouco precisa, pelo menos até a independência, nos
anos 1950, de “sudanês”.149

Com base no exposto, a sequência dedica-se a entender a incursão


da atividade missionária no sul do Sudão, para a partir disso estabelecer
as origens dos vínculos conflituosos entre missionários e antropólogos.
O missionarismo cristão liderado pelos padres católicos da ordem
Verona Fathers começou a atuar nas províncias do sul do Sudão já em
meados do século XIX.150 Durante esse período, os padres missionários
permaneciam durante décadas imersos na cultura e língua das áreas
em que eram alocados, e em alguns casos ofereceram valiosos estudos
etnográficos, dos quais os antropólogos posteriores puderam fazer bom
proveito. Os grupos do sul, fortemente orientados pelo gado, pelas
migrações sazonais, pela patrilinearidade, etc, encontravam-se providos
de uma hierarquia moral bastante estabelecida, atuante na explicação
da sua vida social, com a presença de espíritos na materialidade, além
de estórias de eventos milagrosos e proféticos de seus antepassados.151

A maneira com que os primeiros missionários apresentaram


esse mundo foi de certa maneira respeitosa. Em 1982, Godfrey

149. Ibid, p. 292.


150. JAMES, W. Translating God’s words. In: BODDY, J.; LAMBEK, M. A companion to the anthropolo-
gy of religion. United Kingdom: John Wiley and Sons, 2013, p. 339.
151. Idem.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
155
Lienhardt levantou algumas questões pertinentes ao desafio da tradução
dos termos em que viviam as populações relatadas, fundamental para a
representação verossímil de realidades distintas às dos leitores:

Havia alguns paralelos entre a doutrina social Católica e a mensagem


Cristã que não pareciam totalmente novos, mas […] se o povo Dinka
aceitasse os milagres Cristãos, por que rejeitaria milagres similares atribuídos
aos grandes líderes religiosos de sua própria tradição? Por que abandonar
seus próprios líderes religiosos já estabelecidos, que convocavam seu povo
a se reconciliar com Deus e com o outro, que faziam sacrifícios de sangue
para limpá-los dos pecados, que muitas vezes clamavam por paz, para seguir
outros com uma mensagem similar?”.152 O reverendo bispo Llewellyn
Gwynne chegou em Khartum em 1899, como missionário da Church
Missionary Society. Apesar de ter exercido diferentes funções para a igreja
no decorrer de sua estadia no Sudão, permaneceu dedicado ao propósito
missionário. Além de ser considerado símbolo da igreja britânica no Sudão,
representava também uma liderança à comunidade de europeus na região.153
Era chamado abuna (nosso pai), marcando o que deveria ser considerado
exemplo ético e moral da administração britânica. Seu momento de entrada
no Sudão foi tão logo o missionarismo foi permitido no sul do país. Embora
quisesse catequizar em Khartum, foi impedido pelos administradores,
pois havia se espalhado o boato, no norte, de que os britânicos haviam
dominado o Sudão para impor o cristianismo aos sudaneses muçulmanos.154
Além disso, autoridades do governo consideravam saturada a relação do
colonialismo britânico com os missionários, especialmente por conta da
experiência no Egito.

A fim de controlar os ânimos de Gwynne, Wingate nomeou-o


capelão das tropas britânicas em Khartum, onde obteve o respeito e

152. Idem. Do original: “Thus there were just enough parallels between Catholic and social doctrine for
the Christian message not to appear entirely new, but...If Dinka accepted the Christian miracles, why
should they reject similar miracles attributed to great religious leaders in their own tradition? Why leave
their own established religious leaders who called upon their people to become reconciled with God and
each other, who made blood sacrifices to cleanse them from sin, who often called for peace, in order to
follow others with a similar message?” (tradução minha).
153. BERMINGHAM, J.; COLLINS, R. The thin white line. In: COLLINS e DENG, op. cit, p. 172.
154.Ibid, p. 174.

156
a popularidade entre seus conterrâneos com grande sucesso. Passou
então a organizar o evangelismo cristão, de forma que pudesse
conquistar também os administradores, pondo fim ao preconceito
contra missionários em um universo de populações fundamentalmente
muçulmanas.155 Gwynne jogava futebol com as tropas e golfe com o
Sirdar. Aliou-se aos grupos britânicos durante suas primeiras décadas
no Sudão, conseguindo assim garantir o apoio de Wingate. Em um livro
de anotações de Gwynne, datado provavelmente do início dos anos de
1950, o reverendo aponta

“Passei aproximadamente meio século na África e testemunhei,


através de uma corrida administrativa esplêndida em grande parte pelos
britânicos no Sudão, e do sacrifício do trabalho dos missionários de
diferentes Igrejas e denominações, o desenvolvimento espiritual, moral
e físico dos africanos, os quais estão no caminho de transformar-se em
partes iguais no desenvolvimento de sua raça e país”.156

As considerações de Gwynne a respeito do povo sudanês e do


papel do missionário são bastante típicas das mentalidades missionária e
viajante. Por outro lado, a maior parte dos escritos de membros da Sudan
Political Service (agência responsável pelo provimento de oficiais para
a administração britânica no Sudão), reflete a ideia de poder sobre os
sudaneses. Quando de sua aposentadoria em 1932, Robin Baily escreve a
seu amigo MacMichael, revelando sua crença fundamental no governo:

Sou um desses “simplórios” (e pelas lembranças de conversas passadas


acredito que você também o é) que acredita que as melhores obras de arte do Todo-
Poderoso são os homens e mulheres britânicos de primeira classe; que estão na posição
de raça dominante, que devem demonstrar somente nosso melhor diante dos nativos; e
se tornarmos isso nosso padrão, todas as classes, não somente os Sheikhs, continuarão

155.Ibid, p. 175.
156. SCHOETTLER, G. The genial barons. In: COLLINS e DENG, op. cit, p. 129. Do original: “I have
spent nearly half a century in Africa and [have] witnessed, through a splendid administration run for
the most part by British in the Sudan and by the sacrificial lives and work of missionaries of different
Churches and denominations, the development spiritually morally and physically of the African which
is well on the way to make him an equal partner in the development of their race and country.” (tradução
minha).

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
157
respondendo à nossa liderança. Mas que se nós, por fraqueza, pelo desejo de evitar ferir
os sentimentos das pessoas, reforçarmos a podridão, perderemos nossa posição até que
finalmente seu escritório com seus funcionários Ingleses e arquivos perfeitos não terá
nada mais a fazer a não ser registrar concisa e corretamente sob os títulos apropriados
(cópias para todos os governadores e chefes de departamentos) o fim dessa boa vontade
dos governados para com os governantes.”.157

A constante contradição entre os objetivos das autoridades


seculares e religiosas começou tão logo da incursão dos missionários no
Sudão. Mas em nenhum lugar do Sudão o desafio foi maior do que em
Omdurman. Fosse no Sudão muçulmano, no norte ou no sul não-cristão,
a meta dos missionários britânicos era inequívoca. Exposta de forma
simplificada por Mrs E. K. Maxwell, o objetivo central era “assentar as
fundações nas quais se construirá uma Igreja de Cristo forte no Sudão”
ou, de acordo com Mrs H. A. Norton, “cobiçamos o melhor do Sudão
para o reino de Jesus Cristo”.158 Os propósitos eram bastante claros; no
entanto, os meios para chegar até eles foram sempre objeto de exame
minucioso, de elaboração e reelaboração, de debate e desentendimento,
refletindo não somente nas experiências dos missionários no Sudão,
mas também nas opiniões dos próprios membros da Church Missionary
Society na Inglaterra. Esses últimos passaram a defender a disseminação
dos ensinamentos cristãos no Sudão a qualquer custo, mas tinham
pouca noção da realidade dos missionários no país.159

A despeito dos propósitos missionários, o programa religioso de


Wingate tinha também uma contraparte secular. Em 1910, o governador-
geral do Sudão ordenou a criação do Equatorial Corps of Southerners,
157. Ibid, p. 129-130. Do original: “I am one those ‘simpleminds’ (& from memories of past conver-
sations so I think are you) who believe that the finest pieces of work of the Almighty are the first rate
Englishmen and Englishwomen; tha are in the position of a dominant race, should try to display only
our best to the natives; that, if we make this our standard all classes, not only the Sheikhs, will continue
to respond to our lead. But that, if we, out of weakness, out of a desire to avoid hurting people’s feelings,
bolster up rottenness, we shall lose our position until finally your office with its English clerks & perfect
files, will have nothing left to do but to record concisely & correctly under the appropriate headings
(copies to all Governors & Heads of Departments) the end of that goodwill of the ruled to the rulers.”
(tradução minha).
158. BERMINGHAM e COLLINS, op. cit, p. 182-183.
159. Idem.

158
comandado por oficiais britânicos falantes de inglês e praticantes do
cristianismo. O grupo substituiria as guarnições do norte alocadas nas
províncias do sul que, de acordo com as autoridades britânicas, teriam
sido responsáveis pela penetração do árabe e do islã no sul. Com isso,
Wingate não só preveniria o sul da influência islâmica, mas também
criava uma reserva militar que poderia ser usada contra o norte em
caso de necessidade.160 À altura de 1918, a maioria das tropas do norte
haviam deixado o sul; além disso, o domingo substituiu a sexta-feira
como dia de adoração oficial. Mais de uma década depois, a política para
o sul do sucessor de Wingate, Harold MacMichael, ampliou o sistema de
separação entre norte e sul, principalmente ao adicionar comerciantes,
professores e técnicos administrativos do norte na lista daqueles que
não eram considerados bem-vindos no sul.161

No decorrer do período do condomínio anglo egípcio, os


missionários britânicos pareciam concordar que o melhor caminho
para a consolidação da igreja cristã no Sudão era através da cura dos
doentes e do tratamento da mente. Saúde e educação foram então
os dois principais veículos para a conversão. Embora considerassem
esses dois eixos como meios para atingir um fim (a conversão), os
missionários obtiveram apoio do governo. Nesse cenário, hospitais da
Church Missionary Society foram criados em Omdurman (norte) e em Lui
(sul).162 Nesse sentido, as escolas foram consideradas mais pervasivas,
já que, por definição, o missionário era também educador. A educação
passa, então, a funcionar como o principal meio de proselitismo
religioso.163 No entanto, eram poucos os médicos no Sudão, havendo
ainda menos médicos missionários. Determinados a priorizar o início
das atividades entre os sudaneses muçulmanos, e convencidos de que o
governo relaxaria seu banimento a respeito da evangelização cristã no
norte, os missionários da Church Missionary Society tiveram como primeira
medida a abertura de uma clínica em Omdurman, em 1900. Enquanto
160. COLLINS, op. cit, p. 23-24.
161. Ibid, p. 24.
162. BERMINGHAM e COLLINS, op. cit, p. 184.
163. Ibid, p. 186-187.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
159
isso, a Austrian Catholics e a American Presbyterians abriam escolas em
Khartum, essa última apelando às crianças de expatriados cristãos
britânicos, e a primeira a crianças que haviam sido retiradas da condição
de escravidão.164 Em 1902, sentindo perder espaço para esses outros
grupos, a Church Missionary Society decidiu entrar na corrida educacional.
A estratégia dos missionários dependia da conversão e da formação de
cada vez mais cristãos, pois uma vez que se multiplicassem, a mensagem
cristã viajaria aos cantos mais remotos do Sudão. O meio através do
qual esse objetivo foi colocado em prática foi a Escola Missionária.165
Para tanto, priorizam a educação de meninas, uma vez que as outras
entidades missionárias haviam se encarregado da educação de meninos.

A questão da educação de mulheres merece ser destacada, pois


representou um desafio à parte para os missionários, e foi tarefa para a
qual dedicaram bastantes esforços. Acreditava-se que o preconceito com
a educação feminina decorria do lugar social das mulheres enquanto
“cidadãs de segunda classe”. No norte essa hipótese era corroborada
com mais facilidade. No sul, onde os missionários estavam alocados,
havia maior mobilidade na posição social das mulheres, ainda que
inextrincavelmente relacionada a uma cultura moral de predomínio
masculino.166 Nesse caso, a incumbência missionária atingiu uma outra
dimensão: a educação feminina tornou-se não somente o instrumento
para a conscientização das mulheres a respeito de seu papel social, mas
transformou-se em elemento essencial para garantir “esposas cristãs
para maridos cristãos”.167 Em relatórios produzidos para a Church
Missionary Society, estão expressas as metas do corpo missionário no que
diz respeito à educação das mulheres: “é nosso objetivo preparar as
mulheres do Sudão para assumirem seus lugares e cumprirem as tarefas
a elas designadas no Sudão Cristão do futuro”, ou então “sinto que
nosso dever deve ser prepará-las para as vidas que sabemos que terão

164. SHARKEY, H. Christians among Muslims: the Church Missionary Society in the Northern Sudan.
In: The Journal of African History, v. 43, n. 1, 2002, p. 58.
165. BERMINGHAM e COLLINS, op. cit, p. 187.
166. Ibid, p. 188.
167. Idem.

160
no futuro, e não dimensionar o valor da escola a partir do número de
garotas que mandamos à Central School para o ensino superior”.168

De tal modo, no sul, à esposa missionária foi confiada a missão


de prover a educação de mulheres, através do gerenciamento de espécies
de internatos, que foram criados em Yambio – que sob comando de
Mrs Gore, tinha um currículo dedicado ao artesanato, à tecelagem e à
cerâmica. Em Akot, Mrs Price geria uma escola com quatro garotas, e
Mrs MacDonald outra com três.169 Em contraste, as escolas masculinas
apresentavam números muito mais robustos. A educação de garotas
manteve-se restritamente limitada, e aquelas que aprendiam a educação
estrangeira e tornavam-se “boas cristãs”, nem sempre eram consideradas
“boas esposas” caso não encontrassem um “homem cristão” para o
casamento, sendo condicionadas de volta à sociedade tradicional, onde
também haviam se tornado uma espécie de outsider.

Como discutido anteriormente, assim como em outras


colônias britânicas, no Sudão os missionários foram considerados
parceiros práticos do império. Em um primeiro momento, ajudaram
na racionalização da conquista, ao oferecer um conteúdo ético cristão
à “missão civilizadora”, que foi a razão de ser do colonialismo.170 A
partir de reservas privadas das sociedades missionárias, estabeleceram a
fundação de escolas, clínicas e hospitais, auxiliando no desenvolvimento
de um sistema de serviço social. Como “pagamento”, foi-lhes concedido
o acesso a regiões de potencial conversão, além do apoio do estado
colonial. Os oficiais britânicos consideravam a atuação missionária
como uma forma de promover a estabilidade política das áreas para
além do controle central.171 Sem embargo, nas regiões muçulmanas onde
fortes tradições islâmicas e de um estado militar tornaram possível a

168. Ibid, p. 189. Dos originais: “It is then our aim to prepare the women of the Sudan to take their
places and fulfil their appointed task in the Christian Sudan of the future” e “I fell our aim ought to
be fit them for the lives we know they will have to live in the future, and not to count the value of the
school from the number of girls it sends on to the Central School for higher education.” (tradução
minha).
169. Ibid, p. 189-190.
170. SHARKEY, op. cit, p. 56.
171.Idem.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
161
coordenação de uma resistência anticolonial e antibritânica, foi mantido
o afastamento dos missionários dessas localidades.

Considerados vanguarda do império, além de seus ativos agentes


ideológicos, os missionários provinham de uma espécie de limbo social
no cenário britânico. Eram considerados “uma fração dominada da
classe dominante”,172 fato este que foi exacerbado por se considerarem
(e serem considerados) como “amigos e protetores dos nativos”.173 Essa
posição colocava-os com frequência em conflito com outros membros
na divisão colonial do trabalho, particularmente aqueles de níveis mais
altos na hierarquia interna da classe dominante. Consequentemente,
a visão da situação colonial pela perspectiva missionária oferece uma
amostra especialmente única a respeito dos processos de consolidação
do controle do poder, farto de contradições e inconsistências internas.174
A atividade missionária do período na África rendeu frutos ressonantes
no campo político, como a criação do International Institute of African
Languages and Cultures, em 1926, uma organização voltada à pesquisa
direcionada aos fins administrativos. Entre seus idealizadores, estavam
Joseph Oldham (preocupado com a prática da “tutela” dos africanos),
Edwin Smith, (pensando a tolerância e respeito aos costumes e valores
africanos), e Lord Lugard (com amplo conhecimento a respeito
das instituições políticas e direitos legais dos quais o governo indireto
dependia).175 Outro importante exemplo da utilização do conhecimento
missionário para fins político-administrativos e ainda para a expansão
do conhecimento a respeito do Sudão foi o periódico Sudan Notes and
Records, que será discutido adiante.

172. BOURDIEU apud COMAROFF, John; COMAROFF, Jean. Images of Empire, contests of con-
science. In: ______. Ethnography and the historical imagination. United States: Westview Press, 1992,
p. 184.
173. COMAROFF e COMAROFF, op. cit, p. 184.
174. Idem.
175. MAIR, L. Malinowski and the study of social change. In: FIRTH, R. (org.) Man and culture. An
evaluation of the work of Bronislaw Malinowski. London: Routledge & Kegan Paul, 1957, p. 230.

162
“CONHECIMENTO É PODER, NA ÁFRICA E EM TODO
LUGAR”: A ETNOGRAFIA ENQUANTO FONTE DE
CONHECIMENTO COLONIAL

Em 1929, a Sudan Political Service lançou a ideia da contratação


de um antropólogo oficial para o governo, sob o argumento de
que a antropologia seria uma “ciência de vital importância para o
administrador europeu”.176 A investigação etnográfica era considerada
útil não somente para a implantação do governo indireto, mas também
para conter o espalhamento do islã, do árabe e da cultura do para além
do norte do Sudão.177 Além dos outros funcionários empregados a
esse fim já discutidos – oficiais políticos, missionários, colonizadores
– agora os antropólogos eram inseridos no rol. Diferentemente
desses outros ofícios, a posição da antropologia prevê que o nativo é
autêntico, intocado e autóctone, combatendo o fato central de que o
povo que estuda é constituído de uma situação colonial historicamente
significativa.178 Bernard Cohn aponta que tal atemporalidade reflete o
modelo básico de mudança da antropologia, ao que chama de modelo
do “missionário no bote a remo”, no qual:

o missionário, o comerciante, o recrutador de mão de obra ou o oficial


do governo chega com a Bíblia, mumu, tabaco, machados de aço ou outros itens da
dominação Ocidental, em uma ilha cuja sociedade e cultura estão flutuando na terra-
do-nunca do funcionalismo estrutural, e com o impacto do novo, os valores e modos de
vida dos nativos “felizes” desmoronam. O antropólogo segue na esteira dos impactos
causados pelos agentes de mudança Ocidentais, e então tenta recuperar o que poderia
ter sido. O antropólogo busca os mais velhos com as memórias mais ricas de tempos
passados, registra assiduamente seus textos etnográficos, e a seguir reúne sob as capas
de suas monografias um retrato da vida dos nativos na Antropologilândia. 179

176. BODDY, J. Anthropology and the civilizing mission in colonial Sudan. In: Association of Social
Anthropology, 2008, p. 08.
177. Ibid, p. 10.
178. COHN, B. History and Anthropology: The state of play. In: An Anthropologist among the Historians
and other essays. Delhi: Oxford University Press, 1987, p. 19-20.
179. Idem. Do original: “...the missionary, the trader, the labour recruiter or the government official

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
163
No caso do condomínio anglo egípcio, os antropólogos não
foram designados apenas ao dos sistemas políticos e “leis tribais”. As
políticas a respeito da religião, educação e família eram geralmente
delegadas pelos governantes da África colonial às sociedades
missionárias. Em resposta, os antropólogos fizeram estudos aplicados
a respeito da influência cristã, sobre as economias do dote de noiva, e
sobre os impactos do trabalho migratório na vida familiar.180 Também
protagonizaram “estudos teóricos” sobre os complexos institucionais,
como as cerimônias de iniciação, bruxaria, tabus dos clãs e sistemas
de linhagem. Os missionários não apareceram nesses textos, exceto
como “espantalhos” que tinham uma visão moralizante das práticas
africanas.181 No final da década de 1920, a antropologia social britânica
foi inteiramente reconstruída, devido às trocas sociais e intelectuais de
diferentes acadêmicos da antropologia e de outras áreas, missionários e
funcionários do governo colonial. Houve ainda um segundo momento
circunstancial, qual seja a “revolução malinowskiana” ocorrida na década
de 1930, na qual a defesa do trabalho de campo fez por colocar seus
estudantes em contato direto com agentes da administração britânica
em diferentes colônias na África.182

O contato dos “antropólogos profissionais” com o governo anglo


egípcio começou após a formação do International Institute of African Languages
and Cultures, em 1926. Inicialmente sob domínio das sociedades missionárias,
o instituto preocupava-se com questões linguísticas, cruciais para a tradução
da Bíblia e para o desenvolvimento de métodos educativos. Não obstante,
as circunstâncias mudaram de acordo com novas necessidades: o instituto

arrives with the bible, the mumu, tobacco, steel axes or other items of Western domination on an island
whose society and culture are rocking along in the never never land of structural-functionalism, and
with the onslaught of the new, the social structure, values and lifeways of the ‘happy’ natives crumble.
The anthropologist follows in the wake of the impacts caused by the Western agents of change, and
then tries to recover what might have been. The anthropologist searches for the elders with the richest
memories of days gone by, assiduously records their ethnographic texts, and then puts together between
the covers of their monographs a picture of the lives of the natives of Anthropologyland.” (tradução
minha).
180. KUPER, A. Alternative histories of British social anthropology. In: Social Anthropology, v. 13, n. 1,
2005, p. 55.
181. Idem.
182. DE L’ESTOILE apud KUPER, op. cit, p. 52.

164
se tornou, a partir da década de 1930, interlocutor do escritório colonial,
cuja maior preocupação era a manutenção do controle da colônia.183
Nesse caminho, os governantes que estavam em busca de cientistas
sociais capazes de auxiliá-los no processo de instauração do governo indireto,
encontraram-se com as ambições do referido instituto e de Malinowski,
que se aproveitaram da oportunidade. Nesse período, nomes conhecidos da
antropologia britânica passam a exercer funções administrativas no governo
anglo egípcio, tais como Marjory Perham, Sally Chilver, Lucy Mair e Audrey
Richards,184 e aproveito para incluir também Edward Evans-Pritchard, que
terá espaço dedicado no tópico seguinte deste capítulo.

Dentre os objetivos com a criação de institutos, estavam coordenar


a pesquisa e a organização de estudos regionais comparativos e de
interesse prático aos governos e negócios; a experimentação de técnicas
de pesquisa adaptadas às condições locais e o suprimento de dados úteis às
universidades.185 Outros antropólogos canônicos da antropologia britânica
dedicaram-se aos estudos de regiões consideradas “exóticas” e “remotas” da
África, como Raymond Firth, Isaac Schapera e Bill Stanner. Outros institutos,
como o Rhodes-Livingstone Institute e o East African Institute atuavam no mesmo
sentido de contribuir para o que Lucy Mair chamou “mapeamento” dos
povos africanos, o qual considerou indispensável para o direcionamento
de questões relativas à administração e ao desenvolvimento econômico.186
Ainda, o sucesso do círculo de intelectuais de etnógrafos formados ao redor
de Malinowski na London School of Economics, permitiu com que o aumento
de sua autoridade e relevância culminasse na formação de uma organização
profissional de treinamento para a pesquisa antropológica, a Association of
Social Anthropologists, fundada em 1946.

Embora Malinowski não fosse ele mesmo um pesquisador


africanista, sua reputação nos assuntos do trabalho de campo garantiu
a atração de fundos de pesquisa de corpos filantrópicos, especialmente
183. KUPER, op. cit, p. 52.
184. Idem.
185. MAIR, L. The social sciences in Africa South of the Sahara: The British contribution. In: Human
Organization, v. 19, n. 3, 1960, p. 101-102.
186. Ibid, p. 98-99.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
165
dos Estados Unidos, como o Laura Spelman Rockefeller Memorial.187
A organização filantrópica contribuiu em grande parte para o
estabelecimento das ciências sociais britânicas, selecionando a London
School of Economics para financiamento em 1924. A escola nesse momento
já era central no desenvolvimento institucional da antropologia social
britânica.188 Vinte anos antes, em 1904, já havia ofertado um curso de
“etnologia”, o qual de acordo com seu ministrante, A. C. Haddon, era
esperado que interessasse “funcionários civis destinados às porções
tropicais do império, junto com os missionários”.189

Foi com o surgimento dessa geração de antropólogos


treinados para o trabalho de campo que a oposição entre missionários
e etnógrafos foi estabelecida. A maioria dos primeiros antropólogos
britânicos manteve um relacionamento casual de troca etnográfica com
os missionários. Mas com com o estabelecimento dos estudantes de
Malinowski, passou a se defender o estabelecimento de um método
etnográfico, visto como caracteristicamente antropológico, e a
experiência missionária passou a ser desqualificada, independentemente
de sua suposta qualidade.190 Insistiu-se na especialização do antropólogo-
etnógrafo enquanto instrumento de conhecimento colonial, uma vez
que oficiais do governo e missionários seriam pouco aptos à realização
de pesquisa, além de lhes faltar o treinamento adequado à prática
etnográfica.191

Dentre os papéis do missionário e do etnógrafo, estava consolidar


um entendimento de culturas locais que pudesse ajudá-los a transformá-
las sem “violar” suas formas de sustentação da vida. Mas em oposição
ao antropólogo, o missionário não podia ser um mero observador.192
187. GOODY, J. The expansive moment. Anthropology in Britain and Africa (1918-1970). New York:
Cambridge University Press, 1995, p. 02.
188. Ibid, p. 13-14.
189. Idem.
190. STOCKING JR, G. The ethnographer’s magic: fieldwork in British anthropology from Tylor to
Malinowski. In: ______. Observers observed. Essays on ethnographic fieldwork. United States: The
University of Wisconsin Press, 1983, p. 74.
191. Idem.
192. RABINOW, P. Facts are a word of God. An essay review of James Clifford’s person and myth: Mau-
rice Leenhardt in the Melanesian world. In: STOCKING JR, op. cit, 1983, p. 201.

166
Por outro lado, e muito no sentido contrário da experiência missionária,
boa parte dos antropólogos do cenário do condomínio anglo egípcio
tinha um histórico pessoal que de certo modo os alineou em sua relação
com a sociedade que estudavam: pouquíssimos passaram muitos anos
em campo, como o caso de filhos de diplomatas, oficiais do governo ou
missionários.193 Além disso, a respeito da formação do oficial padrão
da Sudan Political Service, cerca de 11% possuía formação em ciências
sociais.194 Porém, essa formação dos aspirantes à carreira da administração
colonial era bastante breve, nada próxima de uma especialização formal
ou carreira acadêmica (os cursos de Marjory Perham em Londres são
o maior exemplo dessa formação). Afirma-se por isso, que o Sudão fez
os antropólogos e não o contrário, até porque muitos dos membros da
Sudan Political Service foram indicados ao cargo independentemente de
sua formação (ou ausência dela).195

A SUDAN NOTES AND RECORDS E O RETRATO


INTELECTUAL DO CONDOMÍNIO ANGLO EGÍPCIO

Os colonialistas foram os primeiros a escrever sobre o Sudão,


enquanto ainda era escasso o material a respeito dos diferentes povos
sudaneses. Escreveram sobre os costumes, as línguas e os artefatos
arqueológicos, entre outros temas.196 O general Wingate, primeiro
governador-geral do Sudão, foi responsável pela elaboração de um
modelo de relatório de inteligência, que os administradores e militares
deviam formular a fim de apresentá-los ao escritório colonial.197 Tais
relatórios, publicados sob o título de Sudan Intelligence Report, cumpriram

193. ERIKSEN, T. What is Anthropology? London: Pluto Press, 2004, p. 16.


194. KIRK-GREENE, A. The Sudan Political Service: a profile in the Sociology of Imperialism. In: The
International Journal of African Historical Studies, v. 15, n. 1, 1982, p. 248.
195. Idem.
196. DALY e DENG, op. cit, p. 156.
197. JOHNSON, D. Evans-Pritchard, the nuer and the Sudan Political Service. In: African Affairs,
81/323, 1982, p. 309.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
167
um importante papel durante os anos iniciais do condomínio. A maior
parte desse material era puramente administrativo (diários de patrulha,
relatórios sobre revoltas e motins, descrições de turnos de inspeção,
etc),198 mas colaborou para a disseminação de informações de cunho
etnográfico, uma vez que era o único material em circulação na colônia.
Dentre os corpos administrativos da Sudan Political Service, o primeiro a
produzir material de conteúdo etnográfico teria sido o Departamento
de Educação que, sob os comandos de John Crowfoot, teria apoiado o
Wellcome Tropical Research Laboratories, além de fornecerem treinamento
antropológico para membros da administração colonial na Inglaterra.199

Com a criação da Sudan Notes and Records (SNR), em 1918,


administradores, educadores e missionários – além, é claro, de
antropólogos – ganharam um veículo semioficial no qual podiam
registrar seus dados etnográficos, que à altura possuíam diferentes
formatos. A relevância da SNR no contexto colonial britânico em
África foi tamanha, que acabou por inspirar e servir de modelo para a
criação de outras publicações, como Uganda Journal e Tanganyika Notes
and Records.200 Além disso, o comitê editorial das primeiras edições da
SNR era dominado pelo referido Departamento de Educação, como
pelo próprio Crowfoot e Sigmar Hillelson.201 Durante algum tempo
alguns materiais foram publicados tanto pela SNR quanto pelo Sudan
Intelligence Report, o que ilustra como textos de caráter político podiam
ser transformados em textos etnográficos de acordo com a sua via de
veiculação.202 Um exemplo representativo dessa hipótese é o artigo The
cult of the deng, escrito por C. A. Willis, então governador da província de
Upper Nile. Originalmente, o material era um relatório político-militar

198. Ibid, p. 316.


199. Ibid, p. 312.
200. Ibid, p. 310-311.
201. Crowfoot (arqueólogo) e Hillelson (linguista) atuaram durante muitos anos à frente do Depar-
tamento de Educação do condomínio anglo egípcio, contribuindo em muito para a formação de um
aparato educacional que pudesse favorecer a administração colonial. Figurando entre os idealizadores
da formação da Sudan Notes and Records, em 1918, Crowfoot atuou como presidente do comitê editorial
até 1931, enquanto que Hillelson foi membro do corpo editorial até 1933, contribuindo então por mais
de uma década com a elaboração do material.
202. JOHNSON, op. cit, p. 321.

168
que objetivava a obtenção de poderes que foram considerados pela
administração como “extraexecutivos” mas, ao ter seu pedido negado,
Willis enviou o relatório para a SNR, que foi aceito como um artigo de
descrição etnográfica.203

A Sudan Notes and Records projetou em suas páginas a inter-relação


entre antropólogos, missionários e administradores, gerando uma espécie
de efeito educativo, fosse na tentativa de “humanização” da política, fosse
na simples exposição dos membros do corpo administrativo à escrita
antropológica. Edward Evans-Pritchard (E-P) teve um papel central nessa
relação, direta ou indiretamente. Após a publicação das três partes de sua
tese a respeito dos nuer na SNR, entre 1933 e 1935, houve uma mudança
geral no conteúdo dos materiais etnográficos publicados pelo periódico.
Antes de The Nuer, não havia um tipo de texto considerado modelo a ser
seguido, mas a partir desse momento o trabalho de E-P torna-se base para
a escrita etnográfica. Administradores e oficiais, além de missionários e
professores de diversas áreas, passaram a escrever como antropólogos,
sobre religião e parentesco, por exemplo.204 Começaram ainda a estudar
antropologia, como o exemplo de Paul Howell e Bazett Lewis, que de
administradores do império, acabaram colando grau no Instituto de
Antropologia Social de Oxford, sob a supervisão do próprio E-P. Apesar
disso, o interesse pela formação profissional representa exceções dentre
os membros da Sudan Political Service, já que dos 350 civis recrutados para
o cumprimento de funções administrativas no Sudão entre 1899 e 1952,
somente cinco tornaram-se antropólogos profissionais.205 Ainda nesse
caminho, vale ressaltar que as transformações na escrita e no ensino da
antropologia na Inglaterra impactaram na forma como os administradores
coloniais escreviam a respeito dos povos sudaneses.

Outro indício do intelectualismo nas fileiras da Sudan Political


Service é encontrado na contribuição literária da própria SNR como um
todo. A partir de sua criação, por mais de vinte anos é praticamente

203. Idem.
204. Ibid, p. 324.
205. Idem.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
169
inexistente um exemplar no qual não haja contribuições de membros
da Service.206 Inicialmente, as contribuições científicas para o periódico
foram fartas, já que o comitê editorial tinha facilidade em identificar
potenciais contribuidores para a SNR. O primeiro número, lançado em
janeiro de 1918, continha um prefácio (escrito pelo então governador-
geral do Sudão, general Wingate207) e cinco artigos. Esses artigos foram
contribuições de autores do corpo militar e de membros da Service
(como os casos de Wingate, do major C. H. Stigand, W. Nicholls e H.
MacMichael), e de dois autores considerados especialistas (o professor
de arqueologia G. A. Reisner e o supracitado Hillelson, também
arqueólogo). Os números subsequentes do periódico têm por sua
vez o acréscimo cada vez maior de antropólogos especializados sem
nunca, apesar disso, abandonar os textos de autores não-especializados
(missionários, militares, administradores, etc).

A recorrência de artigos históricos e etnográficos desses


“etnógrafos coloniais não-profissionais” aponta que, para além de seus
deveres oficiais, os membros do corpo político estavam interessados
nos povos sudaneses, em sua língua, cultura e costumes. Falta atestar,
em uma análise mais demorada, se esse interesse respondia a anseios
puramente pessoais (o que é muito pouco provável), ou tinha ligações
com os deveres mesmos desses oficiais para com a tarefa da administração
colonial – o que é mais plausível, pensando que dificilmente a vida
cotidiana desses sujeitos estava isenta de influenciar e ser influenciada
pela relação entre suas funções de ofício e os povos entre os quais
estavam alocados.

O estudo de caso realizado através da Sudan Notes and Records


indica alguns números e caminhos interessantes de serem notados. Em
primeiro lugar, cabe ressaltar que de 1918 – momento de sua criação
– até 1953, com o surgimento do periódico arqueológico Kush, a SNR
206. KIRK-GREENE, op. cit, p. 43.
207. O prefácio, bastante claro em relação aos objetivos da criação da Sudan Notes and Records, aponta
a relação entre o conhecimento intelectual e o conhecimento administrativo. Foi dele que se retirou
citação “Conhecimento é poder, na África e em qualquer lugar”, usado como subtítulo da seção aqui
dedicada à discussão do uso da antropologia para fins administrativos pelo colonialismo britânico no
Sudão. Ver: WINGATE, R. Foreword. In: Sudan Notes and Records, n. 1, 1918, p. 01-02.

170
foi o único material dedicado ao estudo acadêmico do Sudão,208 o que
por si só denota a importância que o periódico adquiriu no contexto do
condomínio anglo egípcio. Isso em vista, e a partir da crescente utilidade
do material de cunho intelectual às atividades político-administrativas,
em 1922 a SNR passou a ser publicada semestralmente, e no ano seguinte,
devido a questões logísticas, passou a ser impressa pela Hadarat al-Sudan
Press (Sudan Civilization’s Press).209 A partir da ideia da contratação de
um antropólogo oficial para o governo do condomínio (no final da
década de 1920), citada anteriormente, o número de artigos voltados
à antropologia e à etnografia aumentou consideravelmente, ganhando
maior destaque no corpo material do periódico. Tal dado é indicado no
levantamento estatístico feito por George Sanderson, o qual indica que
durante suas quatro primeiras décadas, a SNR se voltou a estudar os
grupos da região compreendida com o sul do Sudão, aquelas partes do
território “intocadas pela cultura islâmica”, como indica Wingate ainda
em seu prefácio.210

A Sudan Notes and Records foi estruturada, durante a maior parte de


sua existência correspondente ao período do condomínio anglo egípcio
(1918-1956), em quatro seções principais: artigos, notas, resenhas e
correspondências. O número de entradas que constam em cada uma
das seções nesses 38 anos, são: 452, 292, 152 e 135, respectivamente.
No entanto, foi dado enfoque na seção de artigos, já que são os
materiais mais substanciais, devido a não somente seu volume, mas
também ao conteúdo específico, que é mais plural e mais denso. No
que diz respeito às temáticas dos artigos, foram constatados 24 temas
principais, os quais foram subdivididos em grupos por frequência de
ocorrência: os temas de alta frequência são antropologia/etnografia
(com 251 entradas), história (133 entradas) e zoologia (54 entradas).
Desses números, a ocorrência de autores especializados em cada uma
208. SANDERSON, G. Sudan Notes and Records as a vehicle of research on the Sudan. In: Sudan Notes
and Records, v. 45, 1964, p. 164.
209. HAMAD, B. Sudan Notes and Records and sudanese nationalism, 1918-1956. In: History in Africa,
v. 22, 2014, p. 248.
210. SANDERSON apud ROSA, F. Un point de rencontre: les Sudan Notes and Records entre anthropo-
logie et colonialisme. In: Bérose, Paris, IIAC-LAHIC, UMR 8177, 2017, p. 01.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
171
das três áreas foram 77, 36 e 21, respectivamente. Isso indica que a
porcentagem de autores especializados em relação ao total de artigos
de cada tema foi de aproximadamente 35% no caso da antropologia/
etnografia, 27% em história e 38% em zoologia. Já dos temas de média
ocorrência (arqueologia, geografia, linguística, agricultura, medicina,
história natural e religião), nos interessa observar o tema da religião.
Constam apenas dez artigos dedicados especificamente ao tema da
religião, dentre os quais apenas cinco foram escritos por membros
do corpo missionário. No que diz respeito às temáticas da política e
história militar (que foram considerados temas de baixa ocorrência),
somam cinco o total de artigos. No entanto, é interessante destacar
os 65% indicados de autores não-especializados escrevendo sob as
temáticas da antropologia e etnografia. Dos 174 artigos (de autores não-
especializados) dedicados a estes temas, 22% provêm de membros do
corpo administrativo e da Sudan Political Service, 15% de missionários,
12% de militares, 7,5% de autores de outras áreas do conhecimento
(medicina, arqueologia, agronomia, história, etc), e do restante, não foi
possível identificar a origem profissional de seus autores. A presença
de administradores coloniais interessados na antropologia é bastante
expressiva, tornando impossível desassociar o papel intelectual da SNR
do próprio fazer colonial.

Durante todo o período compreendido entre 1918 e 1956, é


muito comum a aparição de artigos escritos por membros das sociedades
missionárias. Já no segundo volume, publicado em 1919, tem-se duas
contribuições, da reverenda O. S. Oyler (The Shilluk’s belief in the evil eye –
The evil medicine man) e do reverendo Archibald Shaw (Dinka animal stories
(bor dialect). No número seguinte, em 1920, Oyler publica novamente,
um artigo de continuidade de seu primeiro: The Shilluk’s belief in the
Good Medicine Man. Os principais nomes missionários, recorrentes no
periódico, são o reverendo padre Sant’Andrea, membro da Verona
Fathers Mission to Central Africa –, que entre 1933 e 1950 contribui com
a publicação de quatro artigos, e o reverendo G. O. Whitehead quem,
além de lecionar no Dover College, fez parte da Church Missionary Society

172
e da Memorial Sudan Mission (de 1927 a 1931), quem de 1926 a 1940
publicou sete artigos na Sudan Notes and Records.211

A retirada das tropas egípcias do Sudão e a formação da Sudan


Defence Force, em 1924, e o ideal de separatismo sudanês do Egito, tiveram
por consequência a adoção de uma política de não-interferência nas
estruturas político-sociais autóctones, especialmente a partir de fins da
década de 1920.212 Durante os anos de 1930, o governo evitou os líderes
tradicionais, procurando uma aproximação com a intelligentsia sudanesa
(cabe ressaltar que esse grupo intelectual era aquele do norte, pois
como visto, o sul não teve uma formação intelectual importante para o
governo do condomínio). Essa transformação foi visível na Sudan Notes
and Records, pois enquanto os líderes a que o governo chamava tribais
contribuíram para o periódico antes de 1925, nenhum dos membros da
elite intelectual do norte o fez antes de 1938.213 A discussão a respeito
das formas de governo no Sudão tornaram-se mais relevantes na área da
antropologia a partir de 1940, essencialmente a partir da publicação de
Os Nuer, de Evans-Pritchard, que como discutido havia sido publicado
anteriormente pela SNR. Essa antropologia africanista da qual E-P
fazia parte teve seu escopo ampliado justamente devido ao advento da
antropologia política, incluindo agora também como objeto de análise
os sistemas políticos por eles considerados “exóticos”.214 A contradição
aparente face às novas formas de organização política tornou concreta a
necessidade de se dissociar a teoria política da teoria do estado, no caso
da discussão antropológica.215

211. Os artigos em questão são: reverendo padre Sant’Andrea (The Belanda, Ndogo, etc (v. 16); Minor
Shilluk sections in the Bahr el Ghazal (v. 21); Little-known tribes of the Bahr el Ghazal (v. 29); Gleanings
in the Western Bahr el Ghazal (v. 31)) e da autoria de G. O. Whitehead (Meroitic remains (v. 9); Nagaa
and Masawwarat (v. 9); Some authors of the Southern Sudan (v. 11); Social change among the Bari (v. 12);
Italian travelers in Berta country (v. 17); André Melly’s visit to Khartoum (v. 21) e Mansfield parkyns (v.
23). Para acessá-los, basta seguir o endereço virtual para a Section française de la direction des antiquités
du Soudan, disponível em: http://sfdas.com. Último acesso em 20 de maio de 2021.
212. HAMAD, op. cit, p. 266.
213. Idem.
214. BALANDIER, G. Antropología Política. Barcelona: Ediciones 62, 1969, p. 05.
215. Ibid, p. 06.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
173
ANTROPOLOGIA DO SUDÃO E MISSIONARISMO
CRISTÃO: ENTRE A PROFISSÃO E O COLONIALISMO

Os missionários, administradores e antropólogos viam a


necessidade de “conhecer seu povo”, e a partir disso, fizeram importantes
contribuições à etnografia e à antropologia social do Sudão, especialmente
no que tange os grupos do sul.216 Foi apenas com o condomínio anglo
egípcio que houve o estabelecimento de uma necessidade expressa de
“pacificação” do sul, através da intervenção colonial, das missões cristãs
e da contínua exploração comercial.217 Os relatos dos missionários,
assim como os dados etnográficos dos antropólogos, que viam os
nativos ora como “belicosos e não confiáveis”, ora como “atrevidos
e guerreiros”,218 apontam para a ideia de que a empresa colonial não
tinha certeza dos rumos para os quais seguia, assim como para a noção
de que o domínio colonial não era inexorável. A importância destes
grupos locais nos processos de resistência e de luta se mostrava ainda
em outros casos, como por exemplo o papel dos nuer nas reações contra
as razias otomano-egípcias, a proximidade maior dos povos dinkas com
os missionários católicos, as redes de solidariedade que se estabelecia
entre esses últimos contra outros povos, entre outras.219

Muitos missionários se tornaram antropólogos, e têm trabalhos


considerados importantes para a história da antropologia, como os
casos de Codrington e Leenhardt.220 Os antropólogos, no entanto,
desacreditavam do trabalho etnográfico missionário, acreditando em
uma incapacidade dos missionários de impedir a penetração de seus
pressupostos religiosos no estudo e pesquisa etnográfica,221 o que
216. SANDERSON, op. cit, p. 164.
217. MANGER, L. Conflicts on the move: looking at the complexity of the so-called “resource based
conflicts” in Western Sudan. In: Past, present and future. Fifty years of anthropology in Sudan. Norway:
Chr. Michelsen Institute, 2015, p. 143.
218. SANTOS, op. cit, p. 77.
219. Ibid, p. 82-99.
220. VAN DER GEEST, op. cit, p. 590.
221. Evans-Pritchard, por exemplo, afirma que para a maioria dos antropólogos, em oposição à menta-
lidade missionária, a religião seria meramente uma superstição a ser explicada, e não algo em que um

174
fundamentalmente incorreria na produção de imagens enviesadas das
culturas autóctones.222 Apontam também o papel do missionarismo na
empresa colonial, mas por muito tempo esqueceram de apontar seu
próprio papel nessa empreitada. Foi somente a partir de meados da
década de 1940 que a antropologia política e social passou a questionar
a atuação da figura do antropólogo enquanto agente colonial. Em 1946
Max Gluckman frisava:

o grave perigo de que as demandas dos governos coloniais por pesquisadores


possam levar a uma concentração excessiva em problemas práticos, em detrimento da
pesquisa básica, e ao rebaixamento padrões e status profissionais, que colocariam a
perder os ganhos dos últimos 20 anos.”.223

Apesar disso, seria somente a partir dos anos 1960, com a crítica
antropológica pós-colonial, com autores como Talal Asad, Adam Kuper,
George Stocking Jr, Henrika Kuklick, Johannes Fabian, Fredrik Barth,
James Clifford, Jean e John Comaroff, Clifford Geertz, Jack Goody, entre
outros, que a problematização da antropologia enquanto instrumento
de conhecimento colonial foi levada a cabo a fim de desconstruir a visão
daquele “Outro”, enraizada na antropologia a partir do início do século
XX, e que teve por base muito da experiência da situação colonial.

Já no que diz respeito à atuação missionária, particularmente


na questão da educação, é importante reforçar que o espalhamento
das escolas e a difusão da educação pelo sul fez com o governo do
condomínio decidisse controlar estritamente a educação primária, a fim
de prevenir a difusão de práticas culturais caracteristicamente ocidentais
(como nomes de batismo, vestimentas e casamentos cristãos), devido
ao fato de que poderiam impedir a “pureza” dos costumes locais, o
antropólogo – ou qualquer pessoa racional – pudesse acreditar. Ibid, p. 591.
222. Idem.
223. GLUCKMAN apud MILLS, D. British anthropology at the end of empire: the rise and fall of the Co-
lonial Social Science Research Council, 1944-1962. In: Èditions Sciences Humaines, n. 6, 2002, p. 176. Do
original: “the grave danger that the demands of colonial governments for research workers may lead to
an excessive concentration on practical problems, to the detriment of basic research, and to the lowering
of professional standards and status which would lose the gains of the last 20 years.” (tradução minha).

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
175
que acabaria por entrar no caminho da administração colonial no
que diz respeito às estratégias de controle das populações sudanesas,
além de arriscar a manutenção da dissociação das fronteiras norte-
sul.224 As identidades étnicas e as relações de poder e de ocupação da
terra no Sudão ganharam diversas significações diante dos processos
de interação, acomodação, sujeição e dos enquadramentos que foram
realizados para a sobrevivência em contextos de grande interferência
política como no caso do condomínio anglo egípcio.225 As categorias
reforçadas pelo governo colonial britânico no Sudão podem ter como
uma de suas primeiras manifestações as zeribas,226 que estabeleceram
ou fortaleceram fronteiras entre diferentes povos do sul do Sudão,
concorrendo amplamente com as missões cristãs que buscavam agrupar
os grupos étnicos, principalmente os dinka, em torno do projeto
civilizatório católico, que acabou por se desfazer devido à maior adesão
desses povos à Mahdiyya, por conta do forte caráter da pregação que o
mahdi conseguiu estabelecer entre povos não muçulmanos.227

De tal maneira, inicia-se um processo de consolidação de uma


oposição reforçada pelo missionarismo em sua prática cotidiana e em
seus relatos: a de “povos negros” versus “povos islamizados”, levada
adiante pelo condomínio anglo egípcio e estendida até os dias atuais.
Com o acesso às fontes missionárias, no final do século XIX, destaca-
se o uso de categorias como “bárbaro”, “ansar”, “negro”, “árabe”,
“branco”, criando novas e singulares enunciações que marcaram o
processo genealógico do racismo que as práticas normatizadoras
da administração anglo egípcia incorporaram e reforçaram, a fim de
construir uma nova ordem, através da gestão de uma hierarquia de
distinções raciais baseadas em pressupostos biológicos, religiosos e

224. DE SIMONE, S. State-building South Sudan: discourses, practices and actors of a negotiated project
(1999-2013) (tese). Political Science. Paris: Université Paris 1 Pantheón-Sorbonne, 2016, p. 91.
225. SANTOS, op. cit, p. 87-88.
226. Idem. As zeribas foram fortificações utilizadas inicialmente para o estoque do marfim sudanês que
seria levado para o Egito. Porém, como aumento do tráfico de escravos, passaram a servir de local de
pouso para os escravos, e com o rendimento do negócio, os traficantes passaram a submeter as popula-
ções próximas a impostos e ao trabalho nas zeribas.
227. Ibid, p. 88.

176
“civilizacionais”.228 Cumprindo seu papel como mediadora desses
processos, a igreja criou, dentro do espaço da educação, a possibilidade
de hierarquizar as diferentes populações do Sudão nas categorias
supracitadas: às populações negras “não árabes” foram delegados os
trabalhos manuais e agrícolas, e aos muçulmanos e cristãos do norte a
integração na administração, inserindo essa forma de controle na lógica
do domínio colonial.229

Nessa conjuntura, a Sudan Notes and Records funcionou como um


ponto de encontro privilegiado entre agentes coloniais, antropólogos
e missionários, visto que todos podiam contribuir sem discriminação.
Os residentes no sul do Sudão eram incitados a fazê-lo: “O comissário
de distrito e o missionário têm oportunidades ilimitadas de pesquisa.
Aqueles que nunca a experimentaram, verificarão que a antropologia
lhes providenciará não apenas um fascinante passatempo, mas uma
fértil fonte de conversa, em viagem ou nas salas de convívio”.230 Através
de suas páginas, não só a SNR, mas também os membros do escritório
colonial – pois, como visto, houve muitos casos de interseção entre a
atividade no periódico e na administração – puderam transpor suas
políticas práticas do controle colonialista sobre as sociedades sudanesas
para um aporte intelectual, que contribuía para conferir às decisões
administrativas o patamar da legitimidade.

228. Ibid, p. 303.


229. Ibid, passim.
230. ROSA, F. A obsessão nuer e o resgate das etnografias marginais (comunicação). In: 4º Congresso da
Associação Portuguesa de Antropologia, 2009, p. 19.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
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182
CURSOS

CURSo: UMA DISCUSSÃO SOBRE AS PRÁTICAS DE


TRABALHO DE CAMPO: FIELDNOTES

Prof. Alfredo Wagner Berno de Almeida

Programa de Pós-Graduação em Cartografia Social e Politica da


Amazônia – UEMA

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social-UFAM

Carga Horária: 60 horas

Primeiro semestre de 2020

OBJETIVOS

Tendo como ponto de partida uma discussão teórica sobre a


construção do objeto de pesquisa e sobre as implicações das escolhas
metodológicas, o curso objetiva instrumentalizar os participantes
nas técnicas elementares de coleta de dados, focalizando diferentes
experiências de pesquisa, sobretudo no domínio da antropologia.
Serão revistos tanto os autores-fonte, classificados acriticamente pelo
senso –comum savant como “pioneiros” e “clássicos” nas histórias da
antropologia, tais como : F.H. Cushing, F.Boas, B. Malinowski, W.
Rivers e M. Mead, bem como etnografias subsequentes de autores
como: R. Redfield, R. Firth, E. Pritchard, E. Leach, M. Gluckman e
Sol Tax, O.Lewis, S. Mintz, E. Wolf e ainda F. Barth e M. Godelier.
Também serão revistos “trabalhos monográficos” (C. Wagley e E.
Galvão), os denominados “estudos de comunidade” e os conjuntos de
anotações que compõem cadernos e diários de campo (B. Malinowski,

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
183
Lévi-Strauss, Castro Faria, Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro) que tem
como referencia empírica a Amazônia. Experiências de pesquisa de R.
Cardoso, R. de Barros Laraia, R. Da Matta, J.C. Melatti, O. Velho, M.
Palmeira, L. Sygaud, José Sérgio Leite Lopes, João Pacheco de Oliveira,
Neide Esterci, Eliane O’Dwyer e Afrânio Garcia também poderão ser
referidas.

Considerando que a instituição de “guias para o trabalho de campo”


(Notes and Queries on Anthropology231- Royal Anthropological
Institute of Great Britain and Ireland, M. Mauss, M. Maget), cristalizando
procedimentos e atos de pesquisa, corre o risco permanente de uma
manualização em tudo inapropriada, o curso propõe uma leitura crítica
destes procedimentos. A persistência de formas de naturalização do
conhecimento antropológico e a recorrência das modalidades de
“representatividade envergonhada”, com técnicas questionáveis de
estatística primária, podem ser entendidos como obstáculos a serem
superados. Processos de elaboração de categorias censitárias, estatísticas
primárias e procedimentos de cartografar, cadastrar, recensear, mapear
e realizar os denominados “zoneamentos ecológicos-econômicos” serão
lidos criticamente, segundo redefinições impostas pelos pesquisadores
num esforço constante de ruptura com os instrumentos usuais de
dominação, inspirados em dispositivos colonialistas.

Intérpretes das práticas de campo, que focalizaram a “história


do trabalho de campo” e suas implicações, relativizando procedimentos
e redefinindo-os em suas próprias pesquisas (G.D. Berreman) também
serão examinados, de igual modo que os diversos comentadores
daquelas práticas (J. Clifford, G.E. Marcus, R. Sanjeck, J. Middleton).
Nesta parte do curso as referencias bibliográficas serão ampliadas,
incorporando tanto reflexões avulsas e artigos, quanto uma diversidade
de experiências etnográficas e das chamadas “intervenções”( M.
Palmeira, L. Sigaud, J.S. Leite Lopes, M. Peirano), abrangendo teses,
laudos, perícias, pareceres, trabalhos de assessoria a movimentos sociais

231. Traduzido e publicado no Brasil sob o título Guia Prático de Antropologia, em 1971 pela Editora
Cultrix (SP)

184
e “relatórios” denominados de “identificação étnica” (J.Pacheco de
Oliveira, E.C. O’dwyer, T. Valle de Aquino, H. Barreto). As chamadas
“exposições” (L. Sigaud232, J. Pacheco de Oliveira233, H.B. Domingues,
A. Wagner234), que agrupam resultados fotográficos e videográficos das
práticas de trabalho de campo, também serão consideradas.

Os processos de produção cartográfica apensos aos trabalhos


etnográficos, que passaram a ganhar uma maior precisão com os trabalhos
de Marcel Griaule no continente africano serão discutidos e confrontados
com as formulações acerca dos “novos cartógrafos” de Foucault e Deleuze.
De igual modo serão consultadas as interpretações de B. Anderson, em
Comunidades Imaginadas- reflexões sobre a origem e a difusão
do nacionalismo, sobre a relação entre o censo, o mapa e o museu na
complexa construção de identidades regionais e nacionais.

Serão discutidas em sequência as iniciativas, no âmbito da


chamada “antropologia cultural” de tornar mais rigorosos os critérios
de descrição e de análise etnográficas que, como sublinha Marvin Harris
foram classificados nos estudos de história da antropologia como uma
“nova etnografia” e tiveram como fonte de inspiração as técnicas da
linguística. Numa leitura crítica desta classificação Harris235 nos convida
a pensar se não se estaria diante de uma “nova velha etnografia”
(Harris,1979: 517).

Serão mencionados também os trabalhos de pesquisa que


pretendem uma “nova descrição” realizados nas últimas décadas, no
âmbito da chamada “nova cartografia social”. Tal descrição de pretensão
plural compreende práticas de trabalho de campo e relações em planos
sociais diversos, que envolvem múltiplos agentes, os quais contribuiriam
à descrição com suas narrativas míticas, suas sequencias cerimoniais,

232. Sigaud, Lygia (curadora)- Lonas e Bandeiras em terras pernambucanas. Rio de Janeiro.
2002/2003
233. Pacheco de Oliveira, João (curador)- Indios. Os primeiros brasileiros. São Paulo. SESC.2007
234. Almeida, Alfredo Wagner B. de Oliveira, Murana A. (orgs)- Museus Indígenas e Quilombolas:
Centro de Ciências e Saberes. Manaus. UEA/PNCSA. 2017.
235. Harris, Marvin – El desarrollo de la teoria antropologica- una história de las teorias de la cultu-
ra. México. Siglo Veintiuno Editores.1979 (1ª. Edição em inglês, 1968).

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
185
suas modalidades próprias de uso de recursos naturais e seus atos e
modos intrínsecos de percepção de categorias (tempo, espaço, lugar) e
objetos, assim como suas formas político-organizativas de mobilização
social face aos seus antagonistas históricos e ao Estado236. Semelhante
construção descritiva, que nada tem de uma interpretação dos atos
como texto, ocorre na “confrontação contínua das experiencias e das
reflexões dos participantes” (Bourdieu, 2003:694), desfazendo a ilusão
ilusão empirista das “autoevidencias”.

A finalidade precípua destes esforços descritivos significa reiterar


a autoridade da antropologia, que confronta uma crise de legitimidade
e rigor (Clifford, J.) mediante as pressões oficiais face a um processo
de autonomização deste campo de conhecimento, que se dissocia do
utilitarismo e das premissas da sociedade colonial.

Consoante as posturas dinâmicas de re-atualização e de crítica,


tem-se que entrevistas não-diretivas, questionários, histórias de vida
e diferentes procedimentos de investigação inerentes ao trabalho de
campo (“fieldnotes”, mapas, croquis, diagramas, calendários) serão
discutidos e aprofundados tendo como referência os próprios interesses
de pesquisa dos participantes do curso.

APRESENTAÇÃO

“Muitas dezenas de anos de práticas de pesquisa sob todas as


suas formas, da etnologia à sociologia, do questionário dito fechado à
entrevista mais aberta, convenceram-me que esta prática não encontra
sua expressão adequada nem nas prescrições de uma metodologia
frequentemente mais cientista que científica, nem nas precauções
anticientíficas das místicas da fusão afetiva. Por estas razões me
parece indispensável tentar explicar as intenções e os princípios dos
procedimentos que nós temos colocado em prática na pesquisa cujos
236. Consultar www.novacartografiasocial.com.

186
resultados apresentamos aqui.” (Bourdieu,2003: 693), assevera Pierre
Bourdieu em “Compreender” ao término de A Miséria do Mundo.

O curso convida a uma reflexão sobre a escolha dos métodos


e sobre as decisões acerca da maneira de manipular enunciados
científicos, como diria L. De Castro Faria, consoante a proposição de
que uma sociologia crítica é uma sociologia que reflete as condições
de saber. Ao procurar “conhecer o conhecimento” ou as condições de
possibilidade deste conhecimento a proposta do curso se inscreve numa
polêmica, perfilando-se em oposição aos positivistas que desaprovam
a idéia de que possam existir problemas significativos fora do campo
da ciência empírica “positiva”. Em outras palavras os positivistas não
aprovam a idéia de uma epistemologia ou uma teoria genuína do estado
de conhecimento.

Ao insistir neste tipo de crítica o curso responde, sobretudo,


a questões “práticas”, convidando os participantes a aprenderem a
observar e a classificar os fenômenos sociais, nos termos de que nos
fala M.Mauss em Manuel d’ethnographie (publicação que reúne as
anotações das “Instruções de etnografia descritiva” dadas pelo autor a
cada ano no Institut d’Etnologie de l’Université de Paris, de 1926, data
da fundação do Instituto, a 1939).

Ao indagar sobre as vicissitudes do trabalho de campo o


curso pretende se deter no método e tomar por objeto a lógica
mesma da pesquisa e não a única lógica do objeto da pesquisa. Ao
fazê-lo privilegia inicialmente autores-fonte, de fins do século XIX e
décadas imediatamente posteriores, que produziram reflexões sobre os
procedimentos adotados na coleta de dados e a respeito da lógica da
pesquisa científica, privilegiando o campo da produção antropológica e
suas especificidades.

PRIMEIRA PARTE

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
187
O curso pretende nesta parte ressaltar o aspecto dinâmico
dos recursos metodológicos. Chama a atenção para a redefinição dos
instrumentos analíticos, dos conceitos e das noções operacionais, bem
como dos procedimentos investigativos. Consoante G. Bachelard:

“o conhecimento adquirido pelo esforço científico pode declinar.


A pergunta abstrata e franca se desgasta: a resposta concreta fica. A
partir daí, a atividade espiritual se inverte e se bloqueia. Um obstáculo
epistemológico se incrusta no conhecimento não questionado. Hábitos
intelectuais que foram úteis e sadios podem, com o tempo, entravar a
pesquisa.” (Bachelard, 1996:ibid).

As dificuldades de investigação avolumam-se posto que é


impossível anular de um só golpe e a uma só vez todos os conhecimentos
e práticas habituais, que foram inclusive cristalizados pelos manuais de
pesquisa. Como superar este obstáculo inicial? Como ler etnografias
relativizando procedimentos usualmente apresentados como os mais
rigorosos? A tentativa de resposta inscreve-se no esforço de repensar
cada ato de pesquisa sobre o qual o curso pretende refletir, recorrendo a
autores que direta ou indiretamente recusam tratar a teoria ou o método
como “uma forma abstrata” suscetível de ser aplicada a um “conteúdo”.

Trabalhar os conceitos, como nos alerta G. Canguilhem, consiste


numa das etapas iniciais do trabalho de campo que não pode prescindir
de teoria de acordo com os autores consagrados.

1ª SESSÃO: A des-naturalização das ciências sociais.


Quantificação e cientificidade. A pesquisa como discurso singular,
limitado, que afirma conhecimento.

a) O objeto da pesquisa como construção. Problematização.


Projeto: escolhas, dimensionamento, instrumentalização.

b) Vias de acesso a um objeto dado: práticas e critérios de


competência e saber. Instituições sistemas e normas pedagógicas que

188
dão direito à prática profissional.

2ª SESSÃO: Uma reflexão sobre autores que refletiam sobre o


trabalho de campo a partir de como foram produzidas as monografias
clássicas. As tentativas de definir “trabalho de campo”, “notas”,
“cadernos” e “diários”, procedimentos adotados para coligir os dados e
as técnicas de observação direta com respectivas práticas de campo face
as sequencias cerimoniais, os rituais e as narrativas míticas.

As “notas” e os “diários de campo” para além dos


impressionismos funcionam como símbolo de uma identidade
profissional, requerendo critérios de competência e saber específicos.
Uma distinção necessária: os antropólogos por treinamento e titulação
formal e os “autodidatas, definidos por critérios práticos adstritos a
cargos e ocupações institucionais.

SANJEK, Roger (ed) – Fieldnotes. The makings of


Anthropology. Ithaca. Cornell Univ. Press. 1990. pp. 187-242.

STOCKING, Jr, George W. (ed.) - Observers observed.


Essays on ethnographic fieldwork. - History of Anthropology vol.1
The University of Wisconsin Press. 1983.

NB – Escolha de etnografia para discussão. Cada participante


escolherá um trabalho de pesquisa. Consultar listagem ao final das
sessões aqui apresentadas.

3ª SESSÃO: Leitura crítica dos guias de campo. A instituição


de procedimentos a partir de agências empenhadas em consolidar o

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
189
conhecimento antropológico como um domínio científico.

a) As trajetórias profissionais de F.H. Cushing, a partir de 1879,


de F. Boas, a partir de 1883-8, de W.H. Rivers, a partir de 1895 e de
B. Malinowski, a partir de 1914, contribuiram diferentemente para que
fossem estabelecidos procedimentos de pesquisa de campo. Como
foram produzidas suas contribuições e como tem sido interpretadas?

b) A tentativa de produzir manuais como parte do esforço


profissionalizante da antropologia? Vulgarização e risco de fazer da
ciência uma técnica.

- Os manuais de antropologia física desde o final do século XIX:


de C. Canestrini a Juan Comas.

- Comentários sobre o Guia Prático de Antropologia,


preparado por uma Comissão do Real Instituto de Antropologia da
Grã-Bretanha e da Irlanda. (traduzido para o português em 1971 por
Octavio Mendes Cajado- ed. Cultrix).

- A discussão e produção dos manuais na França com Marcel


Mauss, Marcel Griaule e Marcel Maget. Anos 1940-1957.

O trabalho de campo e as expedições cientificas. Limitações e


vantagens.

- Para consulta: Balandier, Georges – “A situação colonial:


abordagem teórica” (publicado originalmente nos Cahiers
Internationaux de Sociologie. Vol XI. Paris. Pp.44-78. 1951) trad. de
Bruno Anselmi Matangrano.

c) O “diário de campo” e os croquis, os calendários agrícolas e


extrativos, os diagramas e os mapas.

d) As cartas (Boas, Mead, Wagley e Galvão), os croquis, as fotos


e os mapas como anotações de campo.

BOURDIEU, P. – Esboço de auto-análise. São Paulo. Companhia das


Letras. 2005

190
BOURDIEU, P. – “Fieldwork in philosophy”. In Choses dites. Paris.
Les éditions de Minuit. 1987.

BOURDIEU, P. – “Colonialism and ethnography”- Foreword to Pierre


Bourdieu’s Travail et Travailleurs en Algérie. Anthropology Today. Vol
19. N.2 april 2003 pp. 13-18

e) Técnicas de observação direta: um debate e o aprofundamento


de um dissenso. “Anthropology at work” (G. Foster, C. Kluckhon),
“Antropologia em Ação” (Sol Tax). A “descrição arqueológica”
(Foucault) e trabalho de campo em bibliotecas e arquivos.

MALINOVSKI, B.- On the method of fieldwork Vol I. London.George


Allen and Urwin. Coral Gardens and their magic. Vol.I . 1939

(Tb. Tradução em espanhol. Confesiones de ignorancia y fracaso.


In Antropologia como Ciencia. Compilados y prologados por Jose
R.Llobera. Editorial Anagrama.Barcelona.1975. pp.129-139).

Consulta:

BOAS, Franz – “The limitation of the comparative method of


Anthropology” in Race, Language and Culture. N. York, Mecmillan,
1940. pp. 270 – 280.

RIVERS, W.H.R. - The Genealogical Method of Anthropological


Inquiry. The Sociological Rewiew. VoI. II, 1910

(Há traduções em português em espanhol).

SLOBODIN, Richard – Rivers

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Columbia University Press. 1978 as “Part I: Life in W.H.R. Rivers”.

( 2ed. Ed. 1997)

LEACH, E.R. – The comparative method. I.E.S.S. vol. I 1969

(há tradução em espanhol)

f) Técnicas e tecnologias: uma reinterpretação

HAUDRICOURT, André-Georges- La technologie science


humaine. Recherches d’Histoire et d’ethnologie des techniques.
Paris. Editions de la Maison des sciences de l’homme.1987

4ª SESSÃO: A força dos manuais e a narrativa das dificuldades


no trabalho de campo.

As práticas de manualização da pesquisa antropológica


desde final do século XIX e suas implicações. Um procedimento da
antropologia física (Juan Comas) transmitido para a antropologia social?

MAUSS, Marcel - Manual d’ ethnographie. Paris, Éditions Payot.


2002.

E.E. EVANS PRITCHARD- “Algumas reminiscências e reflexões sobre


o trabalho de campo (Apêndice IV) in Bruxaria, oráculos e magia
entre os Azande. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Eds. 2005 pp.243 – 255

LEWIS, Oscar- “Controles and experiments in field work”. Em


Kroeber, A. (ed) Anthropology today. Chicago.The University of
Chicago Press. 1953

GLUCKMAN, M. – “Ethnographic data in British Social Anthropology”.


The Sociological Review. 1961

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(Trad. em espanhol).

5ª SESSÃO: O trabalho de campo. A relação observador-


observado.

BERREMAN, G. - “Behind many masks” Ithaca, 1962.

Também em Guimarães, A. Zaluar. (org.) Desvendando máscaras


sociais. Rio de Janeiro. Francisco Alves. ed. 1975 pp. 13-174.

Consulta:

Observers Observed – Essays on Ethnographic Fieldwork. Edited


by Jorge N. Stocking, JR. The University of Wisconsin Press – 1983.

6ª SESSÃO: O trabalho de campo. A noção de comunidade


rediscutida.

a) Uma discussão do conceito

GUSFIELD, Joseph R.- Community. A critical response. N. York.


Harper & Row Pub. 1975 pp. 23-50.

NISBET, Robert – Os Filósofos Sociais. Brasília, Ed. Universidade de


Brasilia. 1982 (trad. De Yvette Vieira Pinto de Almeida).

b) A tentativa de uma apresentação “didática” do problema.

FERNANDES, Florestan – Comunidade e sociedade no Brasil. São


Paulo. Ed. Nacional. 1975 (2ª ed.).

c)As novas interpretações relativas a comunidade:

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
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GODELIER, Maurice – Communauté, Societé, Culture. Trois clefs
pour comprendre les identités en conflits. Paris. CNRS Editions.
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Consulta:

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Press. 1960 pp. 1-116.

VIDICH, A.; BENSMAN, J. and STEIN, M. (org.) - Reflections on


community studies. N. York. John Wiley. 1964.

7ª SESSÃO: Os chamados “estudos de comunidade” e suas


variações.

GUIDI, Maria Laís Mousinho - “Elementos de análise dos “estudos


de comunidade” realizados no Brasil e publicados de 1948 a 1960”.
Educação e Ciências Socais. Ano VII. Vol. 10 nº 19 Rio de Janeiro.
Janeiro-abril de 1962.

a) WAGLEY, Charles – Amazon Town – a study of man in


the tropics. N. York. Macmillan Company, 1953. (versão em português:
Uma Comunidade Amazônica)

GALVÃO, Eduardo – Santos e visagens. Sã Paulo. Cia. Ed. Nacional.


1976 (1ª ed. 1954).

b) EDUARDO, Octavio da Costa – The negro in Northern


Brazil. A study in Acculturation. Monographs of the American
Ethnological Society. Seattlle and London. University of Washington
Press. 1948. (2ª ed. 1966).

WAGLEY, C. GALVÃO, E. – Os Tenetehara (uma cultura em

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transição). Rio de Janeiro. MEC-SD/DIN. 1961.

8ª SESSÃO: A noção de tribo em discussão. Gênese social a


partir da formulação de Maine no século XIX

GODELIER, Maurice – Les tribus dans l’ Histoire et face aux


États. Paris. CNRS Édition. 2010

MANDANI, Mahamood – What’s a tribe? London Review of Books.


Vol.34 n.17-13 September 2002

9ª. SESSÃO: Discutir as diferentes modalidades de anotações


de campo produzidas por etnógrafos: relatos, impressões e técnicas de
observação direta.

a) LÉVI-STRAUSS, C. - Tristes Trópicos. Lisboa, Portugália.


Ed. Martins Fontes s/d (1ª ed. 1955) Paris. Librairie Plon.

b) CASTRO FARIA, L. - Um outro olhar. Diário da expedição


à Serra do Norte. Rio de Janeiro. Ouro sobre Azul. 2001.

c) GALVÃO, E. – Diários de Campo entre os Tenetehara,


Kaioá e índios do Xingú. Rio de Janeiro. Ed.UFRJ/Museu do Índio/
FUNAI. 1996 (Ed. e org. Marco Antonio Gonçalves).

d) RIBEIRO, Darcy – Diários índios. Os urubus-kaapor. São


Paulo. Companhia das Letras. 1996.

e) OLIVEIRA, Roberto Cardoso de Oliveira – Os diários e

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
195
suas margens. Viagem aos territórios Terêna e Tukuna. Brasília.
Editora UNB 2002.

Consulta:

MALINOWSKI, Bronislaw – Um diário no sentido estrito do termo.


Rio de Janeiro. Ed. 1997.

CLIFFORD, James – A experiência etnográfica: Antropologia e


Literatura no século XX. (Org.) José reinaldo Santos Gonçalves. Rio
de Janeiro. Ed. UFRJ, 2002.

10ª SESSÃO: As entrevistas e o processo de obtenção de dados.

BOURDIEU, P. (Org.). A miséria do mundo. Rio de Janeiro


Ed. Vozes, 2002.

Consulta:

ELIAS, Norbert & SCOTSON, John L. – Os Estabelecidos e os


outsiders. Rio de Janeiro. Zahar ed. 2000.

11ª SESSÃO: Possibilidades de uso das técnicas de história de


vida

a) Etnografia e técnicas de história de vida: as pesquisas de


Oscar Lewis.

MINTZ, Sidney W. - Worker in cane: A Puerto Rico life history.


N. York./ London W. W. Norton & Company. 1974 (1ª ed. 1961)

196
b) A teoria da biografia rediscutida: Os riscos do biografismo,
da “ilusão biográfica” e de confundir “reflexividade” com
“autobiografia” ou “autobiografia intelectual” (Karl Popper), com
“memorial” ou com “biografia comentada”. A definição do gênero
textual “história de vida” com acurácia e discernimento.

LANGNESS, L. K. - The life history in Anthropological Science.


N. York. H.R. and Winston. 1965.

12ª SESSÃO: Entrevistados, “informantes” e “informantes-


chaves”. Diferentes formas de conhecimento e saber em jogo. A
noção de “relação de entrevista” e sua distinção face a “relação de
pesquisa”, segundo P. Bourdieu in “Compreender”. A Miséria do
Mundo. Editora Vozes. 2003 pp. 693-731.

a) Confiabilidade mútua e confidencialidade. O primado das


relações afetivas: de “informante” a “amigo”.

b) A troca de cartas com “informantes” como recurso de


continuação do trabalho de campo. As experiências de Wagley e
Galvão após o término formal do trabalho de campo em Gurupá. As
relações sociais transcendem os limites que predefinem a permanência
em campo?

c)Discutir as metáforas a partir das quais os agentes sociais são


descritos ou apresentados nos compêndios de antropologia: “retratos”
e “perfis”.

CASAGRANDE, Joseph B. (ed.) - In the company of man. Twenty


portraits of anthropological informants. Harper Torbooks. The
University Library. 1964 (1ª ed. 1960).
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
197
d)Reinterpretações atuais do trabalho de campo?

ALMEIDA, Alfredo W.B. de - 2018 - “Cowboy Anthropology”:


nos limites da autoridade etnográfica.” EntreRios – Revista do
PPGANT-UFPI. Teresina. UFPI. pp 8-35.

Consulta:

Frances Henry and Satish Saberwal (eds.) - Stress and Responses in


Fieldwork- New York. Holt, Rinehart and Winston, Inc. 1969

13ª SESSÃO: A apresentação de propostas de exercícios e


os respectivos comentários. A sugestão é que se privilegie situações
sociais distantes daquelas que fazem parte dos projetos de pesquisa
dos participantes.

198
ANTROPOLOGIA POLITICA – Processo de
descolonização, política e identidade:
discussão de filmes e livros.

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social- UFAM

Período: Segundo Semestre 2019.

Professor: Alfredo Wagner Berno de Almeida.

Carga horária: 45 h.

Número máximo de alunos: 10 (capacidade da sala de exibição).

EMENTA:

O curso pretender abordar, a partir de análises fílmicas, os


processos históricos de colonização/descolonização em países do
continente africano. A única exceção é o filme Queimada, que se
refere ao Caribe. Todos eles apoiados na literatura antropológica sobre
o colonialismo, especificamente, os seguintes textos:

George Balandier, o livro Sociologie Actuelle de l’Afrique


Noire. Dinamique Sociale em Afrique Centrale (1955) e o texto
“A Situação Colonial: Abordagem Teórica”, publicado originalmente
nos Cahiers Internationaux de Sociologie, vol. XI (1951), que
analisam como o colonialismo produz efeitos sociais desagregadores e
agregadores em distintos grupos étnicos.

De igual modo serão consultados os livros de:

I - Stocking Jr. – Colonial Situations (1991) e

- Thomas, Nicholas – Colonialism’s Culture. Anthropology,


Travel and Government. New Jersey. Princeton University Press. 1994

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
199
II - C. L. R. James – Os Jacobinos Negros- Toussaint
l’Ouverture e a Revolução do Haiti (2000) (1ª. ed. 1938)

III - Leer a Fanon: medio siglo despues. Buenos Aires,


Clacso. (2017)

IV - Barnett, Donald L. & Njama, Karari – Mau Mau from


Within. An Analysis of Kenya’s Peasant Revolt. New York. Modern
Reader Paperbacks. 1970.

V - O processo de produção de filmes e de vídeos como uma


prática etnográfica:
- Cine, Antropologia y Colonialismo. Adolfo
Colombre (2005)

VI - African Anthropologies. MwendaNtarangwi, David Mills,


Mustafa Babikereds. (2006)

FILMES EM DISCUSSÃO E RESPECTIVAS SESSÕES

1ª. SESSÃO - Utopia e Barbárie, Direção: Silvio Tendler;


Brasil, 2009, 120min.

Sinopse: Retrata e interpreta o mundo pós-segunda guerra


mundial e suas transformações; as utopias que nele foram criadas e
as barbáries que o pontuaram. Descreve o desmonte das utopias da
geração sonhadora de 1968 e analisa a criação de novas utopias neste
mundo globalizado.

2ª. SESSÃO - Lumumba. Direção: Raoul Peck; Bélgica, 2000,


120 min.

Sinopse: A história da ascensão ao poder e brutal assassinato


do líder pela independência do Congo, Patrice Lumumba.

200
Complemento: Seduto alla sua destra. Direção: Valerio
Zurlini; Itália, 1968, 90 min.

Sinopse: Livre adaptação cinematográfica da biografia do


político africano Patrice Lumumba (1925 - 1961), líder nacionalista que
se tornou primeiro-ministro do Congo entre junho e setembro de 1960.
No filme, Lumumba recebe o nome de Lalubi. Com a aparência de um
Cristo negro, ele vai lutar contra os regimes ditatoriais impostos pelos
colonizadores belgas a seu país, mas acabará preso e assassinado.

3ª. SESSÃO - Sometimes in April (Abril Sangrento). Direção:


Raoul Peck; EUA/Franca, Ruanda, 2005, 140 min.

Sinopse: O diretor haitiano Raoul Peck foca sua câmera para a


história recente da África, narrando os acontecimentos que marcaram
o genocídio em Ruanda, no ano de 1994. O drama acontece durante o
massacre da milícia Hutu contra os Tutsis, iniciada em 7 de abril daquele
ano, depois que o avião do presidente Hutu foi derrubado. As ruas de
Ruanda são tomadas pela milícia e começa uma verdadeira matança.
Nesse cenário, o oficial militar Augustin Muganza (Idris Elba) e seu
companheiro Xavier (Fraser James) desafiam as ordens superiores para
salvar a família. Augustin é preso e perde contato com a mulher e os
filhos, sem saber se estão vivos ou mortos. Dez anos depois, agora
solto, tenta reconstruir sua vida. Mas os fantasmas do passado ainda
estão presentes.

O genocídio em Ruanda foi objeto de imúmeros filmes.

Poderão ser consultados e eventualmente discutidos outros


filmes que registram os efeitos genocidas das ações colonialistas em
Ruanda, em 1994, senão vejamos:

I)“Hotel Ruanda”, Direção de Terry George. 2004

II)Shooting Dogs, Direção de Michael Caton Jones. 2005

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
201
III)Tensão em Ruanda. Direção de Robert Favreau. 2006

IV)História de um massacre. Direção de Peter Raymont.2005

4ª. SESSÃO - Uma Lição de Vida. Direção: Justin Chadwick;


EUA/Inglaterra/Irlanda do Norte, 103 min.

Sinopse: Numa pequena escola fundamental no topo de uma


remota montanha no Quênia, centenas de crianças se acotovelam por
uma chance de ter a educação gratuita recém-prometida pelo governo
do país. Um novo candidato causa rebuliço quando bate na porta da
escola. Ele é Maruge (Oliver Litondo), um antigo veterano Mau Mau
em seus oitenta e poucos anos, que está desesperado para aprender a
ler nesse estágio avançado de sua vida. Ele lutou pela libertação de seu
país e agora sente que tem o direito de obter a educação que lhe foi
negada por tanto tempo -- mesmo que isso signifique sentar-se numa
sala de aula ao lado de crianças de seis anos de idade. Comovida com
seu pedido apaixonado, a diretora Jane Obinchu (Naomie Harris) apóia
sua luta para se matricular e juntos eles enfrentam a violenta oposição
de pais e autoridades que não querem desperdiçar uma vaga de escola
preciosa com um homem tão velho.

Obs.Sobre a ação colonial em fazendas no Quênia pode-se


assistir os filmes:

- Entre Dois Amores. Direção de Sidney Pollac.1985. 160


min. Filme baseado no livro de memórias Out of Africa de autoria de
Karen Blixen, cuja fazenda no Quênia, ficava em terras dos KiKuyo
(Gykuio) no sopé das montanhas Ngongo. A tradução em portugues,
intitulada “África Minha”, foi editada e impressa em 1987.

- Lugar nenhum na África. Direção de Caroline Link. 2001.


140 min. “Em 1938, pouco antes de estourar a II Guerra Mundial a
familia Redlich foge da Alemanha e se instala no Quenia. Lá o advogado
Walter Redlich vai a “trabalhar numa fazenda” onde passa a morar com

202
sua familia, voltando à Alemanha no pós-guerra para atuar como juiz
em Frankfurt.

5a. SESSÃO - Gandhi – Direção: Richard Attenbourg; EUA/


Inglaterra/Irlanda do Norte, 191 min.

Sinopse: África do Sul, início do século XX. Após ser expulso


da 1ª classe de um trem, o jovem e idealista advogado indiano (Ben
Kingsley) inicia um processo de auto-avaliação da condição da Índia,
que na época era uma colônia britânica, e seus súditos ao redor do
planeta. Já na Índia, através de manifestações enérgicas, mas não-
violentas, Gandhi atraiu para si a atenção do mundo ao se colocar como
líder espiritual de hindus e muçulmanos.

Este filme começa relatando a experiência de Gandhi, enquanto


advogado e militante de direitos de cidadania, na África do Sul.

6a. SESSÃO - Mandella. O caminho para a liberdade.


Direção: Justin Chadwick; EUA, 2013, 139.

Sinopse: Baseado no roteiro de Bill Nicholson, o longa-


metragem é uma homenagem ao presidente sul-africano Nelson
Mandela e o acompanhará desde a sua infância até a sua eleição. O filme
também abordará outros lados mais desconhecidos de Mandela, como
suas preferências por carros velozes e o boxe.

7ª. SESSÃO - Zulu. Direção: Cy Endfield; EUA/Inglaterra/


Irlanda do Norte, 1964, 138 min.

Sinopse: África, 1879. História baseada em fatos verídicos da


ação militar do colonialismo britânico. Um grupo de soldados britânicos
armados com fuzis tenta defender sua posição em Rorke’s Drift contra
centenas de guerreiros zulus que dispunham apenas de lanças. O registro
edulcorado de um massacre.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
203
8ª. SESSÃO - La Battaglia di Algeri (A Batalha de Argel).
Direção: Gillo Pontecorvo; Argélia/Itália, 1966, 121 min.

Sinopse: Os eventos decisivos da guerra pela independência


da Argélia, marco simbólico do processo de libertação das colônias
européias na África. Entre 1954 e 1957 são mostradas as formas de
mobilização da Frente de Libertação Nacional e a ação repressora do
exército francês. Enquanto que o exército usava técnicas de tortura e
eliminava o maior número possível de rebeldes, a FLN desenvolvia
técnicas não-convencionais de recrutamento e combate, baseadas em
rituais de passagem, como casamento e luta de boxe, e na guerrilha
urbana. Pontecorvo teve como inspirador do roteiro um dirigente da
FLN. Este filme foi proibido na França até 1970. A ditadura militar no
Brasil também proibiu a exibição deste filme, sobretudo porque oficiais
militares retratados na película estavam em contato com o governo
ditatorial e viriam a ser professores de técnicas de tortura para as forças
de repressão no Brasil, como foi o conhecido caso do general Paul
Aussaresses, veterano das guerras da Indochina e da Argélia. Aussaresses,
que antes ministrara cursos para militares norte-americanos no Fort
Bragg, na Carolina do Norte, entre 1961 e 1963, durante a Guerra do
Vietnã, também lecionou para militares no Brasil até o final da ditadura
sob o governo do General Figueiredo.

A Guerra da Argélia foi objeto de inúmeros filmes, senão


vejamos:

I) Le Petit Soldat. Direção: Jean-Luc Godard. 1960

Em 1960, Godard abordou a Guerra da Argélia ( que não era


reconhecida como “guerra” pela França) focalizando a deserção de
um jovem frances. O Ministro da Informação interditou o filme até
janeiro de 1963, pois ele denunciava a utilização de torturas pelas forças
colonialistas. Torturas que foram objeto da reflexão dos trabalhos
médicos hospitalares de Frantz Fanon durante o conflito. (Vide

204
Entrevista de Paul Aussaresses a Leneide Duarte-Plon – “ A tortura
se justifica quando pode evitar a morte de inocentes”. Folha de São
Paulo, domingo 4 de maio de 2008)

II) Les Parapluies de Cherbourg. Direção de Jacques Demi.


1965

Um dos primeiros filmes franceses a evocar a Guerra da Argélia


como contexto social. Muitas canções do filme fazem menção explícita
ao conflito.

III) Avoir 20 ans dans les Aurès. Direção de René Vautier.


1971

O filme desmonta os mecanismos que transformam os


convocados em máquinas de guerra.

IV) Chronique des années de braise. Direção de Mohamed


Lakhdar-Hamina, 1975

Este filme, que ganhou a Palma de Cannes em 1975, é dirigido


por um argelino que mostra o processo politico, desde 1939, que levou
à intensificação da insurreição argelina em primeiro de novembro de
1954.

V) Hors la Loi. Direção de Rachid Bouchareb. 2010

Um filme ficcional, não obstante ter pretensões documentais.


Tres irmãos argelinos vivem trajetórias diferentes, lutando na Guerra
da Indochina e na II Guerra. Após estas guerras encontram-se em
Paris e se mobilizam pela independencia da Argélia. Forças políticas
conservadoras e nostálgica do colonialismo se manifestaram contra
seleção do filme pelos organizadores do Festival, alegando que “as
atrocidades da FLN nunca são mostradas”. A colonização da Argélia,
entretanto, pela violencia extrema das forças francesas não se consolidou
sobre nenhuma legitimidade.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
205
9ª. SESSÃO - Queimada. Direção: Gillo Pontecorvo; Itália,
1969, 112 min.

Sinopse: Um representante inglês é enviado a uma ilha do


Caribe, na intenção de incentivar uma revolta que derrube o governo
português e favoreça os interesses economicos da Coroa britânica.

10ª. SESSÃO - Discussão geral dos temas abordados nas


películas e suas implicações sociológicas. Cada participante deverá
definir sua proposta de exercício de curso e expor o esboço desta
proposta na respectiva sessão, propiciando condições para que todos
os participantes possam ter conhecimento e proceder a observações,
se porventura lhes aprouver. A exposição de um esboço é obrigatória,
pois, com todas suas características de inacabado e de incompletude,
consiste num recurso pedagógico elementar para um debate capaz de
possibilitar um aprofundamento teórico das questões abordadas.

OUTRAS REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS PARA


FUNDAMENTAR AS DISCUSSÕES

Balandier, Georges. A noção de situação colonial. Caderno de


Campo, Nº 3, 1993.

Balandier, Georges. Antropologia política. São Paulo: Editora


Universidade de São Paulo, 1969.

Bhabba, Homi- “Interrogando a identidade. Frantz Fannon e


a Prerrogativa Pós-Colonial”. In: O local da cultura. Belo Horizonte.
Editora UFMG. 2010

- “O Eu, a Psique e a Condição Colonial. Ubu Editora. 2020

Cherki, Alice- Frantz Fanon-Portrait. Paris. Seuil.2000

206
Colombres, Adolfo (ed.) – Cine, Antropologia y Colonialismo
(edición ampliada). Buenos Aires. Ed del Sol S.R. 2005.

Diên Biên Phû – Pictures and events. Vietnam (2004)

Fanon, Frantz - Carta ao Ministro Residente (1956)

Fanon, Frantz - Condenados da terra. Rio de Janeiro. Editora


Civilização Brasileira, 1968. (pref. de Jean-Paul Sartre).

Hogsbjerg, C. and Fordsdick, C. – The Black Jacobins.


Reader. Duke University Press. 2017

Mbembe, Acchilles – Crítica da Razão Negra. Lisboa.


Antígona Eds. 2017

Roberts, Dick – Revolution in the Congo. New York.


Pathfinder. 1965. (18ª. ed. 2018)

Said, Edward - Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia


das Letras, 2011.

Said, Edward. Orientalismo: o oriente como invenção do


Ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 2007.

Sankara, Thomas – Discursos de la revolución de Burkina


Faso, 1983-1987. N. York. Pathfinder. 2004

Vō Nguyen Giap – Memories of War, Diên Biên Phû. The


Giou Publishers. Vietnam, 2004.

CINEMA ETNOGRÁFICO DE REFERENCIA PARA A


DENOMINADA “ANTROPOLOGIA VISUAL”

Na coletânea Cine, Antropologia y Colonialismo (2005), de


Adolfo Colombre, devem ser consultados os textos de Robert Flaherty

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
207
(“La función del “documental”) e Jean Rouch (“El cine del futuro?”),
abrindo possibilidades para que seus próprios filmes sejam também
assistidos. Emerge um genero cinematográfico classificado usualmente
como “documentário” que corresponderia a uma descrição etnográfica
de cineastas focalizando em regiões remotas povos, cuja classificação
oscilaria entre “primitivos” e “indigenas”.

• Nanook of the North (Nanook, o Esquimó). Dir: R.


Flaherty; EUA; 1922, 79 min., classificado por J. Rouch
como o primeiro filme etnográfico do mundo.

• Kino-Pravda. Dir: Dziga Vertov; Rússia, 1922, 10 min.,


considerado por J. Rouch um dos fundadores do cinema
etnográfico.

• Moi, um noir. Direção de Jean Rouch. 1958. 70 min. Rouch


iniciou seus trabalhos etnográficos, enquanto cineasta,
na África sob a direção de Marcel Griaule, do Museu do
Homem. Ele inicia Rouch na cosmogonia Dogon, povo
conhecido por seu Sigui, cerimonia tradicional que sintetiza
a invenção da palavra e da morte. Este povo vive na falésia
de Bandiagara, no Mali.Trabalhando de maneira intensiva
em torno deste ritual, notadamente entre 1967 e 1973,
com a colaboração de Germaine Dieterlen, dirige o longa
metragem Les Fêtes du Sigui.

“Moi, un noir”, trata-se de um filme que aborda a


situação de jovens imigrantes da Nigeria, que se deslocam em
busca de trabalho em Abidjan, na Costa do Marfim, que recebeu
o prêmio Louis Delluc em 1958. Pelo filme La chasse au lion
à l’arc recebeu o prêmio Leão de Ouro, em 1965, no festival de
Veneza Em 1961 por Chronique d’un été, co-realizado com
Edgar Morin, Rouch recebeu, em 1961, o Prêmio da Crítica no
Festival de Cannes.

208
MATERIAL DIGITAL DE REFERÊNCIA

Sobre colonial situation consultar: www. buala.org/pt/


mucanda.

Site remete à discussão do chamado neo-colonialismo e envolve


Nkrumah (Gana), L. Senghor (Senegal), Amilcar Cabral (Cabo Verde) e
Aimé Cesaire (Martinica),

Obs. Aimé Césaire, autor de Discurso sobre o Colonialismo, é


explicitamente citado por Achille Mbembe in Critica da Razão Negra
em nota epigráfica na abertura do livro.

ANOTAÇÕES DAS TEORIAS A RESPEITO DO CINEMA


PARA DEBATE NA APRESENTAÇÃO DO CURSO

1-Segundo Alain Badiou (apud Martins, 2019) numa consonância


com a interpretação de que o cinema seria uma espécie de síntese das demais
artes, tem-se que:

“o cinema teria conservado da pintura o enquadramento, a


incidentalidade do som como acompanhamento da vida; do romance, não a
psicologia dos personagens, mas o relato; do teatro, a aura das atrizes e atores,
o estrelato...” (Martins, Dalila – “Como a filosofia pensa o cinema”. CULT,
n.247, ano 22. Julho de 2019 pag.23) revistacult.com.br

1.1-Jakobson, em texto de 1933, afirma, na mesma direção:

“Assistimos à gênese de uma nova arte. Ela cresce a olhos vistos. Desvincula-
se da influência das artes precedentes; começa já a influenciá-las. Cria suas
normas, suas leis e em seguida, com determinação, as subverte. Torna-se um
poderoso instrumento de propaganda e de educação, um fato social cotidiano,
de massa; ultrapassa neste sentido todas as outras artes.” (Jakobson, p.153).

Jakobson não pretende generalizar precipitadamente as leis do cinema de

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
209
então, na passagem do cinema mudo para o cinema falado, e diz que “é muito
provável que exatamente a liberdade em relação à tradição facilite as pesquisas
experimentais”. (Ibid.p.161).

Vide: Jakobson, Roman – “Decadência do cinema?” in: Linguística. Poética.


Cinema. São Paulo. Ed Perspectiva. 1970

2- “O significado político da fotografia e do cinema não está na


capacidade de captar um objeto, mas na capacidade de torná-lo estranho.”
(Vedda, Miguel:2019)

Cf. Vedda, Miguel – “O Esboço de Marselha”. CULT, n.247, ibid. pag.26.


Comentários sobre “Esboço para uma teoria do cinema”, livro de Siegfried
Kracauer, que começou a ser redigido em Marselha entre junho de 1940 e
fevereiro de 1941, durante a II Guerra Mundial. Kracauer mostra o cinema
como: “o fascínio pela feiura, o horror e o monstruoso é inato ao cinema
– uma forma nascida na expansão da sociedade de massas e, portanto, na
decomposição das tradições, que amenizavam os efeitos do choque”. (Vedda,
ibid. p.26)

Haveria uma dubiedade nesta interpretação, que nos deixa a meio caminho
entre pontos extremos. Descontinuidade na continuidade ou continuidade
na descontinuidade? O cinema age contra os automatismos de linguagem:
desautomatiza a percepção e o pensamento convencionais? Cinema e ruptura
com as modalidades de percepção de objetos, pessoas e coisas?

3- Como Adorno interpretou este movimento?

Araujo, Mateus – “Como Adorno encarou o cinema. Da crítica severa


à poética vislumbrada” CULT, ibid p.27.

Adorno critica o cinema industrial hegemônico, sobretudo o hollywoodiano


(“cultura de massas” que ele denomina de “indústria cultural”). Em discussão
aberta com W. Benjamin sobre A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica, de 1935-36, aprofunda suas críticas à “indústria cultural” a partir de
pesquisas empíricas realizadas entre 1938 e 1949, quando já estava no exílio nos
EUA. (vide cap. da indústria cultural em Dialética do Esclarecimento, escrito

210
por Adorno e Horkheimer em 1940-44, e também seus estudos dos anos 1950
sobre “televisão”). Vide para contraste os estudos de Bourdieu sobre televisão.

Adorno, em carta de 1936, critica no ensaio de Benjamin “o excesso de


confiança no potencial revolucionário do cinema”. Adorno relativiza este
potencial assim como recusa ao cinema o estatuto de arte autônoma (isto
em seus textos de 1940). Ao contrário, para Adorno o cinema aparece como
carro-chefe da “indústria cultural” seu meio principal. Domesticação de
qualquer rebeldia? Adorno analisa estas formulações em dois livros: Dialética
do esclarecimento (1944) e Mínima Moralia (1951).

3.1-Adorno critica o cinema em geral, enquanto instituição social monolítica,


sem a preocupação de examinar filmes particulares ou situações específicas.
Abordagem generalizante. Classifica todos os filmes “como simples produtos
de uma dinâmica inescapável da indústria cultural.” Adorno escreve isto
exilado nos EUA e tende a generalizar o cinema como um todo. Focaliza a
versão hollywoodiana do cinema. Enfatiza-a em demasia e com isto ignora
“outras tradições do cinema”. A partir da versão hollywoodiana desenvolve
um olhar depreciativo sobre o cinema (exemplificaria “estragos da indústria
cultural”). A televisão seria a versão doméstica.

Obs. Interpretação diferente ou que se contrapõe, por exemplo, ao


“neorealismo italiano”? R. Rosselini “Roma cidade aberta”. Vide o filme de
Martin Scorsese sobre as histórias do cinema italiano e do cinema norte-
americano, com elementos comparativos. (cf.O Cinema por Scorsese. “Uma
viagem pessoal pelo Cinema Americano” e “Minha viagem à Itália”, 2017)

3.2-Adorno tem também uma visão positiva do cinema (“construtiva”


no dizer de M. Araújo), enfatizando a poética do cinema, a emergência dos
“cinemas novos” na Alemanha e no mundo e a constituição de um público
restrito e determinado em escala internacional.

Obs. O “cinema novo” no caso brasileiro e o papel dos cine-clubes na


formação de um público restrito e “especializado”.

Vide Cahier du Cinema. Numéro special. N.176.mars.1966 pp. 42-55: M.


Bellocchio- “La révolution au cinema” (Ibid,p.43).

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
211
Louis Marcorelles – “Rencontre avec le Cinéma Novo”. (ibid.Pp.47-54).

Glauber Rocha em entrevista p/ L. Marcorelles – “L’origine du Cinema Novo


se situe lá, dans cette découverte générale de la réalité brésilienne. Marco
Bellocchio a remarqué que c’est l’unité politique qui nous mène á l’unité
professionelle. Nous pensons que le cinéma peut être um grand instrument
de connaissance de la réalité brésilienne, de mise en question de cette réalité
et même de bouleversement. Il peut être un instrument actif d’agitation
politique.” (ibid 1966; p.48).

Glauber Rocha – “Uma estética da fome”. Revista Civilização Brasileira n.03

O processo de descolonização na África e a reafirmação do Estado-


Nação no Brasil a partir de termos e expressões como: “emancipação”, “libertação
nacional”, “luta contra o subdesenvolvimento” (“o subdesenvolvimento
limita a cultura brasileira” (G. Dahl)), “realidade brasileira”, “urbanização” e
um repertório de temas assemelhados. A construção da noção de “terceiro
mundo” e a noção chinesa de “quarto mundo”.

O chamado “cinema-verdade” e o trabalho de Jean Rouch.

A relação entre o documental e o ficcional: i)Nelson Pereira dos Santos,


“Vidas Secas”,1963. Ii) Geraldo Sarno, “Viramundo”, 1964 (...) Não haveria
separação entre o documento e a ficção, sendo a ficção uma inspiração para o
documental e/ou o documental como fundamento da ficção. Documentaristas
e memória. Posicionamento do cineasta-documentarista entre a “memória”, o
“olhar e a “ação”. A popularização do “fazer cinema” e as teorias do simples:
“câmera na mão, ideia na cabeça”.

Documentarismo e redes midiáticas (correio eletrônico, vídeos,


fotos, curtas). O caso de Chiapas e a divulgação da luta como uma forma de
proteção do próprio ato de resistir. Uma variante desta interpretação: “não
fazer registros da luta, senão na própria luta”.

Vide as miniséries de: a) Patrick Rotman & Patrick Barbéris – “Uma


história do comunismo. A fé do século XX”. 2014. E b)Andrei Nekrasov – “Adeus,
camaradas! – O império soviético 1975-1991. Do Apogeu ao Colapso.”2014.

212
No caso chileno vide o filme: Patricio Guzman – ‘La Bataille du Chili
– Devant mês yeux a éclaté une révolution”. 1975

No caso brasileiro discutir e distinguir os trabalhos de: Eduardo


Coutinho, Orlando Senna, Eduardo Escorel, Silvio Tendler, Murilo Santos,
Betse de Paula e Eliane Café dentre outros.

Uma interpretação de ruptura? Não ter um “câmera-man” para


registrar as manifestações e mobilizações politicas, mas contar com um próprio
manifestante com uma câmera na mão. Seria a experiência do chamado “mídia-
ninja”?

3.3-Adorno inicia sua interpretação do cinema como “arte autônoma”


(ou a possibilidade de...). Este pressuposto reforça as experiências recentes de
documentaristas? Vide Adorno: Composição para os filmes, livro escrito junto
com Eisler, reed. em 1969.

4- Entre o clichê e o simulacro. Fabrini, Ricardo Nascimento – “O


cinema e o clichê em Gilles Deleuze”. CULT n.247. ano 22, julho de 2019. “A
narrativa cinematográfica moderna seria um prolongamento do pensamento
da diferença”.

pag.30 - Não vivemos uma “civilização da imagem”, mas uma “civilização do


clichê” (Deleuze).

Para Jean Baudrillard “na sociedade hiper-real a imagem hegemônica é o


simulacro”.Distinguir: “clichê” não é semelhante a “simulacro”:

“clichê” = a imagem que tem alguma coisa oculta porque “todos os poderes
teriam interesse em nos encobrir as imagens” ou em “encobrir alguma coisa
na imagem” (Deleuze).

“simulacro”= “a imagem em que nada é encoberto, pelo simples motivo de


que nela não haveria coisa alguma a ser ocultada”. (Baudrillard)

Estaríamos vivendo na era digital o “momento decisivo” (agón) no


qual está sendo decidido o sentido ou o destino das imagens. Qual seria o
estatuto da imagem nesta chamada “sociedade do espetáculo”?

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
213
Para Deleuze a “imagem-movimento” é o “cinema autoreflexivo”
como o de Jean-Luc Godard e não o “cinema reflexivo” como o de Ingmar
Bergman. Godard para além do “cinema de denúncia política” empenhou-se
na sua forma mais elevada de reflexão (cf os filmes “Adeus à linguagem”,
2014, e “Imagem e palavra”, 2018).

4.1- Uma definição de neorrealismo, que não seria definido por seu
“conteúdo social”, mas por critérios formais estéticos (Bazin), que levavam
a uma “nova forma de realidade”. “... o neorrealismo visava um real, sempre
ambíguo, a ser decifrado; por isso o plano-sequência tendia a substituir a
montagem das representações. O neo-realismo inventava, pois, um novo tipo
de imagem, que Bazin propunha chamar de “imagem-fato”. Deleuze, G. – A
imagem-tempo.Cinema 2. S.P. Brasiliense. 2007. 1ª ed. Éditions de Minuit,
1985.

5 - Temas e problemas de um campo cultural. Fenômenos como:


“migração”, a literatura de Zola e a pintura dos impressionistas sob a crítica
do surrealismo (futurismo, dadaísmo). O “muralismo” no México (Rivera,
Siqueros, Orozco) e o expressionismo alemão.

No caso dos EUA vide o filme de W. Griffit – “O nascimento de uma nação”


e a interpretação de M. Scorcese (2017).

6 - Os documentários como os de R. Flaherty e os registros dos


trabalhos de campo de Boas e antropólogos, que registraram ou registram
cinematograficamente suas pesquisas.

7- As práticas de campo de Jean Rouch, que incorporou o filme (ou a


câmara de filmar) aos rituais dos povos estudados. A câmera e o cineasta que
dançam...

8 - A experiência de pesquisa mais recente do cineasta Vincent Carelli


com o projeto “vídeo nas aldeias”. Um novo capítulo da história da relação
entre antropologia e cinema? Os próprios indígenas sejam como cineastas,
como narradores das películas sobre seus próprios povos, como autores dos
scripts ou ainda como autores/atores e os efeitos desta transformação da
propriedade de posição.

214
9- O “novíssimo cinema” – brasileiro, colombiano -, conjugando
sociedade de massas com crítica social, com atores dos próprios povos e
comunidades focalizados, mas com temas relacionados a toda a sociedade.

-No caso brasileiro: filmes como Cidade de Deus, Amarelo Manga, Aquarius,
Bacurau...

Consultar: “La rentrée Cinéma. Le Brésil de Bolsonaro”. - Schweitzer,


Ariel – “Le cinema brésilien à l’ère Bolsonaro”; Schwarzman, Sheila – “Um
cinema nouveau riche”. Cahiers de Cinema n.758. septembre. 2019. No caso
colombiano consultar filmes como: El Pajaro del Verano e O Abraço da
Serpente.

Vide a classificação de O último vôo do flamingo, de João Ribeiro, referido


a Moçambique, inspirado num romance de Mia Couto, recuperando uma
narrativa mítica, em Tizangara, que contrapõe a tradição ao “novo” ou à
intervenção dos estrangeiros após a “libertação nacional”.

A relação entre literatura nacional e cinema. Analogias e metáforas.


Vide: “Vidas Secas”, “São Bernardo”, “Crônica da Casa Assassinada”,
“Grande Sertão: Veredas”, “Menino de Engenho”.

9.1 - A briga com as metáforas e as analogias na ciência e no cinema.


As dificuldades de utilizar as noções de “modernidade cinematográfica” e/ou
de “modernidade literária”. E a constante insuficiência teórica que envolve o
termo “novo”.

Derrida considera a poesia, “primeira forma da literatura, é de


essência metafórica.” (De la Gramatologie. Les Éditions de Minuit. Paris,
1967) Ed. Perspectiva. 2ª. ed.- 6ª. reimpressão, 2017 pp.327-343).Tradução de
M. Chnaiderman e R. Janine Ribeiro.

“Tudo o que se poderia denominar a modernidade literária faz


empenho, ao contrário, em marcar a especificidade literária contra a sujeição
ao poético, isto é, ao metafórico, o que Rousseau mesmo analisa como a
linguagem espontânea. Se há uma originalidade literária, o que sem dúvida não
é certo, sem mais, ela deve emancipar-se, senão da metáfora, que a tradição

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
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também julgou redutível, pelo menos da espontaneidade selvagem da figura
tal como ela aparece na linguagem não literária.” (Derrida, 1967; pp.330-33

10 – A relação entre cinema e processos sociais. Como foram inter-


pretadas cinematograficamente as mobilizações étnicas pela “libertação nacio-
nal” pós-II Guerra Mundial?

Tentativas de descolonizar e desmistificar a antropologia. O esforço


der Sol Tax com a denominada “antropologia da ação” (action anthropology)
e o debate com a antropologia aplicada e com a “anthropology at work” (G.
Foster, C. Kluckhon).

Numa inversão cronológica, ou seja, do presente em direção ao pas-


sado, importa debater de “Utopia e Barbárie”, de Silvio Tendler (2010), a “Ba-
talha de Argel”, de Gillo Pontecorvo (1965). Da visão panorâmica dos acon-
tecimentos históricos à descrição cinematográfica mais detida, de pretensão
etnográfica.

Discutir a relação do cinema com o processo de descolonização do


pós-II Guerra Mundial, examinando seus desdobramentos ou as condições
que propiciaram a emergência de uma “nova descrição” fundada em pelo me-
nos duas perspectivas, segundo a American Ethnological Society : i) “The new
ethnicity” (1973) e ii) “Plural societies” (1982).

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