Antropologia Colonialismo
Antropologia Colonialismo
Antropologia Colonialismo
E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique,
Quênia, Sudão e Brasil
ANTROPOLOGIA
E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique,
Quênia, Sudão e Brasil
Ficha Catalográfica
216 p.
ISBN: 978-65-89821-26-7
Endereços
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CONSELHO EDITORIAL DO PNCSA
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amazonense, e em comunidades quilombolas do Maranhão - Alcântara,
Penalva, Camaputiua - e do Pará, Ilha de Marajó. Registrava também as
atividades dos pesquisadores do PNCSA na Universidade de Nairobi,
no laboratório de geoprocessamento, do departamento de geografia; na
sede da KLA, em Nakuru; na sede departamental e administrativa em
Isiolo e principalmente em tres comunidades no Kenya, quais sejam a
comunidade Loboi, no território dos Endorois junto ao Lago Bogoria,
em Baringo, e as comunidades Kguluku e Kibwaga, na região de Kwale,
entre Mombaça e a fronteira com a Tanzânia, pressionadas pela expansão
de grandes plantações canavieiras e por projetos de extração mineral.
Nesta comunidade observamos uma oficina de apresentação dos
resultados de mapeamento social realizado sob a supervisão do KLA.
Em 2015 havíamos feito também uma viagem a Isiolo, com o intuito de
averiguar as possibilidades de mapeamento social em comunidades desta
região a ser impactada pelo corredor LAPSSET porém constatamos
que tal não seria possível, principalmente em decorrência da alta
conflituosidade entre os grupos sociais. Nestes dois anos após o final
do projeto, continuamos mantendo contatos com os Endorois e com
a KLA, que agora atua no Lago Turkana também, discutindo questões
relativas a mapeamento social e à produção de novos fascículos. O
intercambio mais recente de informações ocorreu em janeiro de 2021
em evento realizado, de maneira virtual, na Universidade de Insburg,
Áustria. Hillary k’Odieny, integrante do KLA, foi indicado pelo PNCSA
aos organizadores para participar do evento em torno do projeto “Micro
Land Grabbing”. Da equipe do PNCSA/PPGCSPA-UEMA participaram
deste evento as antropólogas e professoras Patrícia Portela Nunes e
Cynthia de Carvalho Martins, coordenadoras do PPGCSPA.
Estas relações de pesquisa no Quenia facultaram contatos com
documentação histórica sobre os Endorois e sua ação judicial contra o
governo do Quênia, e com trabalhos de Jomo Kenyata, que frequentou
a London Scholl of Economics (LSE), em Londres, foi orientado
de B. Malinowski e, depois de proclamada a independência, tornou-
se o primeiro presidente do Quênia. Levantamos ainda referências
cartográficas e econômicas sobre corredores logísticos e megaprojetos
minerais no Quênia, na Etiópia e no Sudão e obtivemos informações
esparsas sobre os “campos de refugiados” em torno de DAdaab, onde
há uma base da ACNUR, no nordeste do Quenia. Os três campos
10
de refugiados aí localizados: Hagadera, Ifo e Dagahaley, abrigavam
populações deslocadas em decorrência de conflitos armados no Sul a
Somália. Em 2012 chegaram a comportar 350 mil refugiados.
Em outros termos a pesquisa facultou uma aproximação nossa
com pessoas e instituições de diferentes etnias e países africanos. Cabe
registrar o fato de um dos antropólogos do PNCSA, que participou
ativamente da discussão e do intercambio com os quenianos e que
elaborou a orelha do presente livro, o professor Emmanuel de
Almeida Farias Jr, ter seu projeto aprovado sobre os efeitos da política
agromineral sobre as comunidades tradicionais face à implantação do
corredor logístico de Nacala, em Moçambique, onde já realizou trabalho
de campo em 2019. Outra menção necessária diz respeito à pesquisa na
área da ciência jurídica efetivada pela doutora em direito e professora da
Universidade Federal de Uberlândia, Sheilla Borges Dourado, também
pesquisadora do PNCSA, que estuda a ação judicial dos Endorois. Ela,
inclusive, elaborou um box que acompanha os artigos que compõem o
livro.
Os cursos realizados sob minha responsabilidade foram dois,
sendo ministrados em duas versões cada um. Estampei suas ementas ao
final deste livro, porquanto enfatizam as experiencias etnográficas e os
problemas no decorrer dos trabalhos de campo, contendo referencias
bibliográficas ou de filmes e vídeos.
i)O primeiro curso intitulado “Antropologia Política –
Descolonização, política e identidade. Uma discussão de filmes e livros”
foi ministrado em cursos de doutorado do PPGSCA e PPGAS da UFAM,
no primeiro semestre de 2016 e no segundo de 2019. Privilegiou análises
fílmicas de lutas de libertação nacional na India, na Argélia, no Quenia, na
África do Sul e no Congo, mostrando o processo de produção de filmes
e de vídeos como uma prática etnográfica. Destacaram-se na primeira
versão deste curso Aniceto Cantanhede e Emmanuel de Almeida
Farias Jr., que atuaram como professores assistentes e contribuíram de
maneira permanente nas discussões, assinalando outros temas e filmes
que poderiam ser incluídos.
ii) O outro curso, ministrado em 2017 e 2019, referente às
práticas de campo, recupera experiencias de pesquisa desde os trabalhos
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Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
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de H. Maine na Índia, na segunda metade do século XIX, contemplando
os trabalhos de F. H. Cushing, F. Boas, W. Rivers, Malinowski, Sol Tax,
G. Foster, C. Wagley e M. Harris, dentre outros.
Nestes cursos, frequentados por doutorandos e mestrandos de
pelo menos seis diferentes programas de pós-graduação (PPGSCA-
UFAM, PPGAS-UFAM, PPGAS-UFRN, PPGA-UFPA, PPG em
Desenvolvimento Social-UNIMONTES, PPGICH-UEA), destacaram-
se inúmeros participantes, cuja intervenção nas discussões contribuiu
para muitos dos argumentos reproduzidos nos textos ora publicados.
Permito-me mencionar aqui alguns destes colegas que participaram
ativamente das discussões: Eriki Aleixo de Melo, Fernanda Oliveira
Silva, Marcos Alan Farias, Paula Stolerman, Adinei Almeida Crisostomo,
Juliene Pereira dos Santos, Roberta Brangiono Fontes, Bruna Beatriz de
Oliveira Cruz, Nelma Catulino de Oliveira e Daniel Brandão, .
Assim, três dos textos que compõem este livro são frutos dos
exercícios de curso que foram selecionados para integrá-lo. Sim, foram
selecionados três exercícios de autoria de: - Ricardo Rella, analisando
as viagens de Marvin Harris e Charles Wagley a Moçambique; - Itala
Tuanny Rodrigues Nepomuceno, examinando a gênese social do
conceito de comunidade e suas redefinições; e - Vinicius Cosmo
Benevegnu, discutindo as práticas etnográficas selecionadas por Joseph
B. Casagrande no seu livro In The Company of the Man, que contém
20 entrevistados-chaves. O quarto artigo é de autoria de minha colega
de PNCSA, professora Rosa Acevedo Marin, focalizando a trajetória
de Jomo Kenyatta, primeiro presidente do Quênia, e os pareceres
dos especialistas ingleses sobre a posse e o uso da terra, objetivando
instituir uma legislação consoante seus interesses. Sublinha os efeitos
de uma “elite dirigente nativa” pelos colonizadores ingleses. O quinto
artigo é de uma convidada indicada pela própria professora Rosa
Acevedo, que privilegia uma análise dos antropólogos colaboradores
no periódico Sudan Notes and Records, criado em 1918 e menciona
os antropólogos em suas tarefas oficiais, inclusive como conselheiros
militares.
Objetivando aproximar os diferentes textos selecionados elaborei
um artigo introdutório, cujo propósito consistiu numa reconstituição
crítica dos debates no campo da antropologia, elencando as diferentes
12
posições e respectivas abordagens, as práticas e os discursos, os atos
e as falas dos antropólogos mediante as redefinições das formas de
colonialismo desde a Revolta dos Sipaios, em 1857-59, na Índia, até o
processo de descolonização do pós-II Guerra Mundial. Tal processo
foi desencadeado a partir de 1945, passando pela crítica dos resultados
da Conferência de Berlim, de 1884-85 – da qual participa Portugal - e
pelo Massacre de Jallianwala Bagh, no Punjab, em 1919. Enfatizei as
sucessivas transformações no trabalho de pesquisa dos antropólogos e
conferi atenção às designações que eles mesmos atribuíram a elas.
Ao final do livro estampei as ementas dos dois cursos, agrupando
indistintamente as duas versões e os respectivos acréscimos.
A iniciativa deste livro ocorreu concomitantemente com os
trabalhos de edição do volume 2 da revista Guarimã, publicação
periódica do Programa de Pós-Graduação em Cartografia Social e
Política da Amazônia, da Universidade Estadual do Maranhão. No
tópico relativo aos debates acadêmicos no campo da antropologia foi
contemplado um texto inédito em português de autoria do antropólogo
Marvin Harris, datado de 1958, sobre sua pesquisa em Moçambique,
intitulado Portugal’s African “Wards”, que contempla críticas relativas aos
autores que defendem existir no Brasil, antiga colônia portuguesa, uma
“democracia étnica avançada” e uma “democracia racial” que poderiam
servir de inspiração e modelo para as então colônias portuguesas na
África. Há um projeto teórico nesta ordem de recolocar como objeto
de reflexão a contemporaneidade dos efeitos do colonialismo sobre a
organização social das antigas colônias.
Os agradecimentos vão para todos os participantes dos cursos
mencionados e do projeto de pesquisa de cooperação científica com os
quenianos. As relações sociais na ação pedagógica e nos trabalhos de
pesquisa inspiraram argumentos e interpretações que marcam este livro
ora apresentado.
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14
ANTROPOLOGIA EM CINCO ATOS E APPROACHeS:
Anthropologues Governementaux, Practical Anthropology, Applied
Anthropology, Anthropology at work e Action Anthropology -
contraposições e contrastes.
1- Introdução
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
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2- A ANTROPOLOGIA E UM NOVO MODUS OPERANDI DO
COLONIALISMO
16
caracterizada por interseções entre as partes, compondo uma totalidade.
Pode-se afirmar que tal formulação se trata de um lugar-comum das
histórias da antropologia, o que evidencia as dificuldades usuais em se
estabelecer rupturas e clivagens que não sejam estas ditadas por critérios
tributários das escolas de pensamento. Busquei, pois, empreender uma
interlocução crítica com a autoevidencia desses marcos, relativizando-
os e refletindo sobre a pertinácia de critérios relacionais. Nesta ordem
o esforço analítico do presente trabalho consiste em refletir sobre a
relação entre os atos de Estado, tomados como lugares de indagação
etnográfica, e a lógica dos debates que levaram os antropólogos a
diferentes posições e abordagens num mundo abalado por sucessivas
guerras e transformações políticas.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
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processo histórico de expansão europeia com a submissão econômica
e política de unidades sociais específicas (povos, comunidades, tribos,
grupos) ou regiões (designadas como “possessões”, “províncias de
ultramar” ou “departamentos”) a um determinado domínio imperial.
Na interpretação de Brelet esta finalidade administrativa e utilitária do
conhecimento antropológico4, institucionalizada em 1921, consiste
num instrumento de gestão de populações, considerado propício
pelas autoridades imperiais britânicas à “pacificação das tribos” e a
uma utilização mais eficaz da força de trabalho indígena (“nativa”) na
extração mineral (Brelet, 1995:38, 39). Esta medida de “pacificação”
visava ajustar temperamentos belicosos ou potencialmente insurgentes,
isto é, objetivava identificar, com recursos teóricos, tomados sobretudo à
etnografia, os conflitos sociais latentes, evitando que os administradores
coloniais perdessem o controle sobre eles.
18
Bagh6, ocorrido na Índia, no Estado do Punjab, em 1919, demonstraram
um grave desgaste de uma determinada forma de colonialismo apoiada
em atos repressivos sangrentos e em punições com tropas militares
sob comandos com relativa autonomia para abrir fogo contra supostos
amotinados ou rebeldes.
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Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
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locais. O resultado final consistiria num ideal de transformação dos
“indianos em ingleses”.
20
propiciavam aos estrategistas metropolitanos dados empíricos sobre
realidades localizadas. Tais artifícios competitivos dos poderes coloniais
parecem só ter adiado as grandes transformações que se intensificaram
com o fim da I Guerra Mundial. Assim, em 1920, novas e profundas
modificações administrativas são feitas nas gestões coloniais. Mediante
a repercussão internacional do massacre de Jallianwala Bagh e as
críticas à violência da administração britânica uma outra modalidade de
confrontar as revoltas ou administrar conflitos, acionando intensamente
mecanismos de dominação simbólica, passou a ganhar força. As punições
sanguinolentas dos códigos penais, que regiam as colônias, foram
aparentemente suavizadas com iniciativas que adquiriram jurisprudência
tendo como suporte as interpretações de Maine. No próprio significado
de “pacificação” adquirem proeminência componentes imateriais8
dissociados das missões religiosas e mais vinculados a economistas-
estrategistas, que visavam conquistar os vários circuitos de mercado de
produtos industrializados e das matérias-primas imprescindíveis à sua
produção.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
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dispositivos jurídicos, é substituída ou passa a complementar uma
forma de executá-la com base em elementos intrínsecos a cada uma das
tribos ou comunidades subordinadas. Modelos de família, sistemas de
parentesco, regras de extração e cultivo, que disciplinam a relação com
os recursos naturais; normas de aliança e calendários de festividades
religiosas consistem em elementos descritivos que irão ser incorporados
pela estrutura operativa da ação colonial. Os antropólogos, são
acionados como capazes de aprimorar as proposições de Maine. Eles
relativizam as “leis civis”, e se tornam protagonistas ou os principais
agentes articuladores dos mecanismos subordinação de povos e etnias
à política colonial do império britânico, num momento histórico em
que a repressão armada ou a guerra é substituída pelo recurso ao
conhecimento científico e por fatores simbólicos ou imateriais, que não
correspondem mais e principalmente à ação de missões religiosas. As formas
de subordinação, incentivando “assimilações” e maior incorporação de
“nativos”, parecem orientar os mecanismos de poder local. Elas se dão
“por dentro” do universo moral e das categorias de pensamento dos
que compõem as unidades sociais colonizadas (povos, comunidades,
tribos ou grupos) a despeito de não acabarem definitivamente com as
medidas punitivas e com os instrumentos de suplício, que tem os corpos
como alvo de repressão9.
22
algumas medidas absolutamente autoritárias. Afinal, o desempenho
de tais funções “pacificadoras” diferia bastante daquelas atividades
de obtenção de itens de coleções etnológicas para museus imperiais,
predominantes desde meados do século XIX, que nomearam um capítulo
das histórias da antropologia, classificado como “colecionismo”, ou das
análises e inventários de léxicos designativos de relações de parentesco
ou ainda das descrições etnográficas, que consolidaram o trabalho de
campo como componente teórico imprescindível, empreendidas de
1878 a 1918, notadamente por F. H. Cushing, F. Boas, W. Rivers e B.
Malinowski.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
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princípios concernente aos direitos individuais ou comunais à terra.
Chama a atenção para a educação dos indígenas e para outros problemas
da população como aqueles de higiene. O conhecimento cientifico
destes problemas pode ser assegurado com base no treinamento de
pessoas nos métodos antropológicos de verificação in loco, que permitiriam
aplicações práticas em problemas da vida cotidiana.
11. Em 1929 Kenyatta viaja para Londres para tratar de interesses ligados à posse de terras dos Kikuyu,
em 1930 retorna ao Quênia e em 1932/33 vai para Moscou, onde estudou economia. Volta a Londres
e estuda com Malinowski além de vincular-se a um grupo de intelectuais militantes como C. R James,
Eric Williams, Paul Robenson e Ralph Bunche. Kenyatta é orientado por Malinowski, que escreve a
introdução de sua tese, defendida em 1938 e tornada livro Intitulado: Facing Mount Kenya. The Tribal
Life of the Gikuyu. Vintage Books Edition. Oct. 1965. Este livro teve várias edições. Além de relativizar
a ação política de lideranças como Kenyatta, recuperando a relevância da ação independentista daqueles
que as autoridades coloniais classificavam como “agitators”, no seu Prefácio, Malinowski demonstra
em sua correspondência ativa como Kenyatta estava voltado para o trabalho de campo e a pesquisa
antropológica. Para tanto consulte-se: Stocking, Jr., G.W. – “Maclay, Kubary, Malinowski. Archetypes
from the Dreamtime of Anthropology” in Stocking Jr., G. W. (ed) - Colonial Situations. Essays on
the Contextualization of Ethnographic Knowledge. The University of Wisconsin Press. 1991 pp. 9-74
24
e Sylvanus Olympio12, do Togo, frequentaram formalmente a London
School of Anthropology e aí defenderam suas teses. Outros interagiram com
lideranças africanas anglofonicas13, que também se encontravam estudando
em Londres, como o ganense Kwame Nkrumah, ou caribenhas como C.
R. James14 e Eric Williams15, de Trindade e Tobago. Kenyatta e Nkrumah se
mobilizaram em conjunto com os demais para organizar, em 1945, no final
da guerra, o quinto Congresso Pan-Africano16, em Manchester (Inglaterra),
e iniciaram uma participação militante nas mobilizações pela libertação
nacional no Quênia, em Gana17, no Sudão18 e demais colônias africanas, bem
12. Sylvanus Olympio foi primeiro ministro do Togo, entre 16 de maio de 1958 a 12 de abril de 1960,
e logo depois presidente do País, entre abril de 1960 e 13 de janeiro de 1963, quando foi assassinado
durante um golpe de Estado. Se formou na LSE e seu mandato presidencial. Sylvanus era descendente
de Francisco Olympio da Silva, afro-brasileiro que retornou do Brasil à África Ocidental no século
XIX e constituiu uma das famílias mais poderosas do Togo, politicamente. Consulte-se: Mazrui, Ali-
“Thoughts on Assassination in Africa”. Political Science Quaterly 83 (1).1968 pp 40-58. Se formou na
LSE o que o habilitou para seu mandato presidencial.”
13. Não incorporei neste artigo os produtores intelectuais africanos e caribenhos, “francofonicos”,
que estudaram em universidades francesas, instituíram o conceito de “negritude”, tornando-o um
componente do pan-africanismo, e lutaram nos movimentos de libertação nacional, tais como: Aimé
Césaire, Léopold Sédar Senghor (Senegal) e Sékou Touré (República da Guiné).
14. Vale atentar que a primeira edição do conhecido livro de C. R. James, The Black Jacobins data de
1938.
15. E.Williams graduou-se em história pela Universidade de Oxford e transformou sua tese em livro
intitulado Capitalism & Slavery, publicado em 1944. Foi primeiro-ministro de Trindade e Tobago, que
se tornou independente em 1962.
16. Com a realização deste congresso lideranças africanas, como Kenyatta e Nkrumah, assumem a
direção do movimento de integração política e econômica da África, que até então era dominado por
norte-americanos e que nos primeiros congressos teve como principal formulador teórico William
E. Burg Hardt du Bois, que defendia uma África unida, evitando uma fragmentação, e em estreita
“cooperação dos descendentes negros de todas as partes do mundo”. A partir deste quinto congresso
realizado em Manchester os líderes africanos transcendem as reivindicações anti-racistas, reforçando
as lutas de libertação nacional. Realizam inúmeros eventos neste sentido nas décadas seguintes até que,
em 1974, após vitórias consecutivas de independência, se reúnem no primeiro congresso realizado no
continente, o sexto Congresso Pan-Africano, instalado em Dar Es Salam (Tanzânia). Tal mobilização
política apregoava então a “luta contra o imperialismo” e todas as suas ações espoliadoras na África,
bem como apoiava ativamente as lutas dos negros nos Estados Unidos e na Europa e a independência
econômica das nações emergentes através da ênfase no conceito de autodeterminação. Havia dissenções
e polêmicas internas no movimento pan-africanista às quais não iremos nos referir no presente texto..
17. Em 1957, com a independência de Gana, Nkrumah tornou-se o primeiro-ministro e governou até
1966, deposto por um golpe militar, enquanto estava em Hanoi (Vietnam). Jomo Kenyatta, por sua vez,
foi primeiro-ministro do Quênia de 1963, ano da independência, até 1964, e o primeiro presidente
do país de 1964 até 1978. Julius Nyerere tornou-se o primeiro presidente da Tanzânia, em 1961. Eric
Williams foi primeiro ministro e presidente de Trindade e Tobago. Sylvanus e Lumumba tornaram-se
primeiro ministro do Congo e do Togo respectivamente. Sylvanus tornou-se também presidente. Ambos
foram assassinados em 1961 e 1963, em cruentos golpes de estado O Sudão conseguiu sua independência
em 1956, a Nigéria e a Argélia em 1962.
18. Em 1930 os Nuer, povo nilota localizado no Sul do Sudão, foram estudados por Evans-Pritchard,
que também frequentava os seminários de antropologia da LSE, tendo como professores Seligman e
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como no Caribe. Mais tarde se uniu a eles o tanzaniano e pan-africanista
Julius Nyerere, que estudou na Universidade de Edimburgo e foi presidente
da Tanzânia após a libertação. Não foi simples esta passagem de estudante na LSE
a militante em organizações armadas e clandestinas. Kenyatta permaneceu preso
muitos anos sob a acusação nunca comprovada de atuar no movimento Mau
Mau contra a ocupação inglesa, que foi duramente reprimido entre 1952 e
1957 pelas tropas britânicas19.
26
da chamada antropologia aplicada (applied anthropology), que passa a prevalecer
nos Estados Unidos a partir de 1941 com a participação direta do país na II
Guerra Mundial. Sim, em 1941, com a criação da The Society for Applied
Anthropology predomina entre os antropólogos, de diferentes correntes de
pensamento, um vasto para serviços de inteligência, seja para análises pontuais
de “caracteres nacionais” e de fatores étnicos e linguísticos requeridos por
diferentes agencias governamentais voltadas agora para o estudo cultural de
países beligerantes inimigos. As aplicações práticas da antropologia ocorreram
na esfera militar, sobretudo nas agências de inteligência e informação21. O
recrutamento de antropólogos reforçava também o objetivo de supremacia
do conhecimento científico das forças aliadas, em várias dimensões sobre as
premissas pré-concebidas e arianistas do nazismo.
21. Clyde Kluckhon, Ruth Benedict e Margareth Mead, que estudaram sob orientação de Boas, e outros
antropólogos referidos às práticas da antropologia aplicada foram recrutados para a War Relocation
Authority, órgão encarregado da reintegração de grupos sociais deslocados compulsoriamente durante
a II Guerra, como os japoneses nos Estados Unidos. R. Benedict deixa explícito os agradecimentos que
abrem o seu livro O crisântemo e a espada: padrões da cultura japonesa, que o Serviço de Informação
de Guerra incumbiu-a de produzir em que argumenta favoravelmente à manutenção da figura da
instituição imperial no pós-guerra, mantendo, portanto, o imperador.
Alfred Métraux foi mobilizado como membro do “pessoal etnológico” da armada norte-americana,
tendo sido nomeado, em 1943, diretor-adjunto do Instituto de Antropologia Social do Smithsonian
Institution, em Washington. Elaborava métodos, destinados ao Office of Naval Research, objetivando
estudar à distância culturas de potencias inimigas e aquelas de países amigos ocupados. Depois de 1945
Métraux trabalhou para o Departamento de Guerra no setor de bombardeamentos estratégicos.
22. Quando Margareth Mead começa a estudar antropologia na universidade de Columbia em 1924,
Franz Boas, nesta data renunciava ao difusionismo. Boas formou-se em geografia na Alemanha
e o difusionismo desenvolveu-se sob inspiração de Ratzel apoiado na hipótese de que o grau de
desenvolvimento de uma cultura depende do “meio-ambiente natural” (environnement naturel)
(Brelet,1995:35) e as migrações seriam a causa das semelhanças entre as culturas de diferentes regiões.
Estes pressupostos da antropogeografia, de final do século XIX, haviam perdido sua força explicativa
para Boas nos anos 1920-30.
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Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
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na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Segundo Brelet, Margaret Mead
relata em Sociétés, traditions et technologie que Malinowski “exerça
une véritable dictature sur l’anthropologie de langue anglaise”23 (Mead,1953:7 apud
Brelet, 1995:34). Certamente uma alusão ao fato do “funcionalismo” de
Malinowski ter suplantado o “evolucionismo” e o “difusionismo”, que
haviam dominado a antropologia no primeiro quartel do século XX,
e galgado uma posição hegemônica com efeitos pertinentes sobre o
campo da antropologia internacionalmente organizado.
28
a antropologia aplicada norte-americana, praticada durante e a partir
do fim da II Guerra, se fizeram sentir nas diretrizes políticas e nos modi
operandi adotados por diferentes agencias da ONU. Segundo Brelet os
dois últimos livros de Malinowski (Uma teoria científica da cultura e
Liberdade e Civilização) propiciaram condições para se compreender
inclusive a criação das ONU (Nações Unidas) e o que ela designa
como as bases de uma “nova civilização”, que contemple Ásia, África e
Américas Central e do Sul.
4 - ACTION ANTHROPOLOGY
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
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ceticismo a consolidação de uma profissão de “antropólogos práticos”,
não obstante constatar que tanto o governo como instituições privadas
façam uso de conhecimentos antropológicos. Chama a atenção para
outras possibilidades de pesquisa preconizando tal posição:
30
como independentes e a serviço dos povos indígenas, empenhados em
combater práticas genocidas e as desumanidades do colonialismo.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
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A conjuntura do pós- II Guerra, classificada usualmente
como período de “Guerra Fria”, incentiva um uso antropologia
como conhecimento útil e como uma relevante orientação prática
para consolidação de projetos, programas e planos governamentais
de “desenvolvimento”. Persiste, portanto, o pressuposto de utilizar o
conhecimento antropológico para fins eminentemente práticos, mas
vinculado a políticas governamentais específicas e publicizadas como
modernizadoras.
26. Eis alguns exemplares desta coleção da UNESCO, publicados entre 1950 e 1952: Leiris, Michel –
Race and Culture; Rose, Arnold M. – The Roots of Prejudice; Comas, Juan – Racial Miths; Klineberg,
Otto – Race and Psychology; Dunn, L.C. - Race and Biology; Levi-Strauss, Claude – Race et Histoire,
1952. Além destes títulos pode-se mencionar a pesquisa coordenada por Charles Wagley e Thales de
Azevedo sobre as relações raciais na área rural da Bahia.
27. Este artigo de G. Balandier publicado originalmente em 1951 nos Cahiers Internationaux de
Sociologie. Vol XI. Paris. Pp 44-78. 1951 foi publicado 63 anos depois, em dezembro de 2014, pelos
Cadernos CERU v.25 n.1. 02 (tradução de Bruno Anselmi Matangrano).
32
de consequências, tomadas por esta expansão europeia. Ela
perturbou brutalmente a história dos povos a ela submetidos,
impondo-lhes, ao se estabilizar, uma situação de um tipo bem
particular. Não se pode ignorar este fato, que condiciona não
somente as reações dos povos “dependentes”, mas explica,
ainda, certas reações de povos recentemente emancipados. A
situação colonial traz problemas ao povo subjugado – que lhes
responde na medida em que certo “jogo” lhe é concedido -, à
administração que representa a suposta nação tutora (e defende
seus interesses locais), ao Estado recentemente criado sobre
o qual pesa toda uma inércia colonial. Atual, ou em fase de
liquidação, esta situação gera problemas específicos que devem
provocar a atenção do sociólogo.” (Balandier, 2014 [1951])
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
33
Entre estes dois extremos, a distância é longa – ela conduz dos
confins da antropologia dita “cultural” aos da antropologia
dita “aplicada”. De um lado a situação colonial é rejeitada,
posto que perturbadora ou só é encarada como uma das causas
das mudanças culturais; de outro, só é considerada sob alguns
de seus aspectos – aqueles que dizem respeito de maneira
evidente ao problema tratado – e não aparece atuando enquanto
totalidade. Entretanto todo estudo atual sobre as sociedades
colonizadas, que visa a um conhecimento da realidade presente
e não a uma reconstituição de caráter histórico, que não sacrifica
a especificidade em prol da comodidade de uma esquematização
dogmática, só pode ser feito pela referência a este complexo que
nomeamos de situação colonial.” (Balandier, 2014 [1951].
34
temporal percebo que se atém a contextos que não necessariamente
se sucedem linearmente, porquanto coexistem ou são coetâneos. De
maneira breve e pouco detida passo a apresentá-los, a saber:
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
35
Uma das aproximações que estabelece uma interlocução tensa
com esta vertente teórica corresponde ao chamado “materialismo
cultural”, delineado por Marvin Harris, que ganha força no fim dos anos
1950-60, sobretudo a partir do trabalho de campo em Moçambique,
explicando fenômenos culturais com fundamento em realidades
econômicas das diferentes sociedades. Propõe que as narrativas míticas
seriam resultantes de necessidades do processo produtivo em cada uma
das unidades sociais pesquisadas. Neste sentido para Harris a pesquisa
antropológica deveria se basear no estudo das condições materiais
das unidades sociais referidas, pois, elas é que condicionariam modos
de pensar e costumes. Esta ênfase analítica, a despeito de ser uma
interlocutora constante de diferentes abordagens, não resultou numa
expansão significativa nem tão pouco conseguiu se consolidar enquanto
um esquema interpretativo, capaz de delimitar um determinado estado
do campo da produção antropológica. Em virtude disto não chega a se
constituir num pensamento de escola, com “breviário” e seguidores,
embora delineando com certa precisão as modalidades de construção
social de territórios específicos.
36
TRABALHO DE CAMPO E “ESTUDOS DE
COMUNIDADES”: DEBATES ANTROPOLÓGICOS PÓS- II
GUERRA MUNDIAL
Introdução
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
37
No Brasil, antropólogos vindos dos EUA, especialmente
nas décadas de 1940 e 1950, como Charles Wagley, autor de Uma
comunidade amazônica: estudo do homem nos trópicos
(WAGLEY, 1977),cuja primeira edição em ingles data de 1953, que
viria a ser considerada uma referência imprescindível para os estudos
amazônicos; Donald Pierson, autor de Cruz das Almas, a Brazilian
Village (1951) e Emilio Willems, autor de Cunha, Tradição e
Transição em uma cultura rural do Brasil (1947), produziram -
a partir de suas inserções na academia e em diferentes programas
governamentais30 - monografias em que descreveram povoados rurais
com distintas formações históricas, econômicas e geográficas, com o
propósito de investigar problemas como “mudança social”, mas também
de prescrever intervenções que promovessem “desenvolvimento”
em áreas como saúde, educação e economia (GUIDI, 1962). Inclue-
se nesta lista T.J. Kalervo Oberg, canadense que adotou a cidadania
norte-americana e que tal como Pierson fez doutorado na Universidade
de Chicago e também como Pierson e Willems31 lecionou na Escola
Livre de Sociologia e Política, autor de Toledo: a Municipio on the
western frontier of the State of Parana (1957). Kalervo Oberg por
dois diferentes períodos na década de 1930-40 esteve na London School
of Economics (LSE) então dirigida por B.Malinowski e voltada para a
educação de lideranças africanas..Náo é incluida nesta listagem a tese
de Marvin Harris, realizada em comunidade na Bahia, defendida em
30. Como nota Jackson (2009), a realização dos “estudos de comunidades” no Brasil associou-se a dois
contextos acadêmicos específicos: “o primeiro, centralizado na Escola Livre de Sociologia e Política
(ELSP), teve Emílio Willems e Donald Pierson como mentores e Kalervo Oberg como professor. O
segundo resultou do acordo firmado entre o estado da Bahia e a Columbia University e foi coordenado
por Charles Wagley e Thales de Azevedo”. Na equipe montada por Wagley havia vários antropólogos
norte-americanos dentre os quais vale destacar Marvin Harris. Os pesquisadores que produziam esses
estudos possuiam vasta experiencia de pesquisa como é o caso de Wagley, que coordenou a missão téc-
nica norte-americana, que fazia parte dos esforços de guerra dos EUA, constituída após acordo assinado
em 1942, e que previa o fornecimento, pelo Brasil, de matéria-prima (como látex–emulsão de borracha
e resina, castanha e amêndoa de coco babaçu). Precisamente, trabalhou no Serviço Especial de Saúde
Pública (SESP), encarregado de contribuir com o bom estado físico da força de trabalho da região, so-
bretudo dos extrativistas (ALMEIDA, 2018).
31. Nas aulas do Prof. A. Wagner, quando discutimos os denominados “estudos de comunidade” foi
constatada na trajetória acadêmica de Willems, que também foi da Cadeira de Antropologia da Univer-
sidade de São Paulo e realizou pesquisas, publicando em colaboração com Gioconda Mussolini - que se
transferiu, em 1944, da Escola Livre de Sociologia e Politica para a USP - o livro Buzios Island: a Caiçara
Community in Southern Brazil, publicado nos Estados Unidos (Washington D.C.), em 1952, que foi
traduzido posteriormente, em 2003, para o português.
38
1953, na Universidade de Columbia, e tornada livro, em 1956, intitulado
Town and Country in Brazil. O período correspondente a estas
pesquisas trata-se de um momento em que antropólogos eram definidos
e podiam perceber-se como “agentes do desenvolvimento”, posição
identificada com a denominada “antropologia aplicada” (ALMEIDA,
2018). Como será visto na seção 3, em seu conjunto, esses e inúmeros
outros autores adotaram o modelo de investigação denominado
“estudo de comunidade”, que emergiu na segunda década do século
XX, nos EUA, desenvolvido em boa medida pela Escola de Chicago,
e que era apresentada, por alguns autores, como uma ruptura com a
concepção etnográfica “culturalista” de Franz Boas. Esta concepção era
criticada por antropólogos como Robert Redfield, o qual defendia que
a abordagem etnográfica boasiana seria incapaz de apreender mudanças
que rompessem “o tradicional modo de vida das ‘tribos’ investigadas”,
e estaria impelida a um conhecimento limitado destas unidades sociais
(tribos, povos, comunidades, grupos) investigadas. Esse momento
marca a distinção de domínios e problemas próprios de investigação
das “sociedades primitivas”, à parte dos estudos dedicados a outras
unidades sociais, como as sociedades camponesas, objetos frequentes
dos “estudos de comunidade” e sobre as quais a antropologia vinha
aumentando gradativamente seu interesse em diferentes continentes.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
39
crítica brasileira aos “estudos de comunidade” não se dissocia da crítica
à própria noção de comunidade operada nesse modelo de investigação,
que remetia a uma unidade social como a little community de Robert
Redfield, com seus atributos de ser “pequena” (o lugar das relações face-
a-face), “distinta” e relativamente “autossuficiente” (REDFIELD, 1989,
p. 4), constituindo-se um locus de investigação privilegiado. Além disso,
chama-se a atenção para a dimensão política deste debate, no que diz
respeito à descrição etnográfica dessas comunidades, frequentemente
correspondentes a “comunidades rurais”, seja na América Central,
incluindo o México, ou na América do Sul, seja na Africa ou na Ásia,
em suas relações com a sociedade nacional envolvente que estaria em
“desenvolvimento”. Na situação brasileira este debate remete-nos a
críticos, com vasta experiência de pesquisa, como Florestan Fernandes,
Gioconda Mussolini e Octavio Ianni.
40
de diferentes países europeus, ainda sob efeito da derrocada de uma
velha ordem social, feudal e agrária, que estaria dando lugar à sociedade
“moderna”, urbana e industrial. Em comum, essas interpretações
apontavam para “transições”, em que aspectos dessa sociedade moderna
nascente dissolveriam um conjunto de visões de mundo e modos de
relações sociais, fosse na Europa, por força das revoluções industriais e
democráticas, fosse em outras sociedades:
“Karl Marx, escrevendo em O Manifesto Comunista (1848), viu
que o mundo do feudalismo deu lugar à sociedade mercantil do
capitalismo industrial”. Sir Henry Maine, em Ancient Law, e
depois em Village Communities of the East and West (1871),
visualizou a transição de uma forma de status vinculada à
tradição para uma de contrato individual. Em sua lei dos três
estágios, August Comte (1830-92) descreveu a humanidade
como tendo passado pelos estágios religiosos e metafísicos
chegando, finalmente, ao estágio positivo (científico). Em
vários trabalhos, Herbert Spencer (1857) apresenta a sua lei da
evolução social: a sociedade estava mudando de uma estrutura
homogênea para outra de estrutura heterogênea em que a troca
era a tônica das relações humanas. Émile Durkheim (1887)
expressou a transição como de uma solidariedade mecânica
para uma orgânica. Escrevendo no início do século vinte, Max
Weber usou os conceitos de autoridade tradicional e autoridade
legal-racional para expressar as grandes mudanças que ele via no
período moderno (GUSFIELD, 1975, p. 4, tradução da autora).
33. Como observa Gusfield (1975), essas oposições não são de natureza puramente lógica, podendo ser
mais bem compreendidas como a projeção de conflitos imaginados entre seus pólos sobre o mundo
real.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
41
“Gemeinschaft und Gesellschaft”, publicado em 1887, é reconhecido como o
teórico que teria dado “às gerações vindouras os termos mais amplamente
utilizados para definir e discutir a perspectiva comum desses pensadores”:
Gemeinschaft (comunidade) e Gesellschaft (sociedade) (Ibid. p. 4)34. O
conteúdo conferido por Tönnies a esses dois termos aglutinou, em cada
um deles, boa parte dos pólos dessas oposições; mais do que isso, esses
dois termos passaram a designar - segundo um modelo interpretativo
dicotômico, em que um termo não pode ser compreendido na ausência
do outro - dois “tipos” distintos de associações, sobre as bases de uma
filosofia da história que parte das “comunidades” para as associações
modernas (societárias) (MOCELLIM, 2011).
Importadestacarqueoconceitodecomunidadeeseupardicotômico,
sociedade, não foram elaborados e usados apenas como instrumentos
para descrever e analisar associações comunitárias/societárias. Prestaram-
se, também, a usos sociais por intelectuais interessados na avaliação de
seu próprio presente, “sua direção e significado” (GUSFIELD, 1975, p.
2). Assim, Tönnies e seus contemporâneos compuseram um acirrado
campo de debates que envolvia não só análises científicas, mas também
defesas e ataques apaixonados ao “tradicional” (comunitário) e ao
“moderno” (societário), exprimindo juízos sobre o que seriam os vícios
e as virtudes de cada um. Em um dos lados desse campo de debates,
Tönnies, comumente identificado com o romantismo alemão, valorava
positivamente a comunidade, que identificava com a “vida no campo”,
onde “ela é mais forte e mais viva entre os homens”. Em suas palavras,
“a comunidade é a vida comum, verdadeira e durável”, “um organismo
vivo”, enquanto “a sociedade é somente passageira e aparente”, um
“agregado mecânico e artificial” (TÖNNIES, 1973, p. 98). Intelectuais
como Karl Marx, por outro lado, divergiram das implicações valorativas
que esse contraste envolve (NISBET, 1982 [1973]).
34. O texto de Tönnies citado neste artigo intitula-se “Comunidade e sociedade como entidades típico-
ideais” (TÖNNIES, 1973; In: FERNANDES, 1973) e foi traduzido para o português por Carlos Rizzi, para
publicação no livro Comunidade e Sociedade: leituras sobre problemas conceituais, metodológicos
e de aplicação, primeiro entre quatro volumes de uma coletânea organizada por Florestan Fernandes
visando oferecer um “quadro de referência teórica integrativo” para o ensino da sociologia no Brasil.
42
1.1- A “teoria da comunidade (Gemeinschaft)” segundo
Tönnies
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
43
Kürwille (vontade arbitrária) e Wesenwille (vontade essencial)35, denotando
a “tentativa de achar na vida interior (psicológica) do indivíduo
os pressupostos do desenvolvimento das formas de socialização”
(ARENARI, 2007, p. 39). Em suas próprias palavras:
44
externa advinda da divisão do trabalho e da diferenciação funcional,
sem referências ao mundo interior das “vontades humanas”, como faz
a teoria tonniesiana.
36. Para Tönnies, a “comunidade de vontade existe também nos maiores grupamentos como expressão
psicológica da ligação do sangue, embora mais dissimulada e aparecendo entre os indivíduos apenas sob
a forma orgânica” (TÖNNIES, 1973, p. 105).
37. A compreensão é um elemento constitutivo das “três leis principais da comunidade” de Tönnies,
que são: “1) pais e esposos se amam reciprocamente ou se habituam facilmente uns aos outros, falam
e pensam juntos de bom grado e frequentemente; da mesma forma os vizinhos e outros amigos; 2)
Entre aqueles que se amam (etc.), existe a compreensão; 3) Aqueles que se amam e se compreendem
permanecem e moram juntos, regulam sua vida comum” (TÖNNIES, 1973, p. 104. Grifos nossos).
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
45
agindo nas “relações e ações particulares”, e a concórdia, em sua “força
e natureza gerais”, seriam duas faces da mesma coisa, sendo a concórdia
“a forma geral da vontade comum”, tornada tão natural como a própria
língua (Idem, p. 104). Em outras palavras: compreensão e concórdia
seriam fundamentais na regulação da vida social comunitária, gerando
a fixação de regras de maneira tão espontânea que elas simplesmente
“crescem e florescem” (Ibid. p. 105). Elas seriam o contrário das formas
de regulação “societárias” fundadas no “pacto” ou na “convenção”,
unidades fabricadas e decididas, promessas recíprocas entre pessoas
com vontades ou opiniões essencialmente conflitantes.
46
Apesar de a terminologia usada por Weber lembrar a distinção
entre comunidade e sociedade estabelecida por Tönnies, o conteúdo dessa
distinção entre os dois autores não é necessariamente o mesmo, como
assevera Weber (2004[1922], p. 25). Neste último autor, a relação comunitária
existe quando as pessoas passam a orientar seu comportamento pelo das
outras, ao mesmo tempo em que se manifesta um sentimento de pertença
a um mesmo grupo, quer existam, ou não, vínculos como os sanguíneos
(comunidade de sangue) ou “hereditários” (Ibid. p. 26).
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
47
de comunidade foi fortemente acionada: a primeira dedicou-se a abordar
o problema da “mudança social” em “novas nações” e em “países em
desenvolvimento”; a segunda manteve-se como uma continuação mais
direta do problema da “modernidade” no chamado “Ocidente”, onde,
“novamente, a avaliação e direção do mundo ocidental permaneceu
como questão central” (GUSFIELD, 1975, p. 17). Da maneira como
Gusfield descreve a separação entre essas duas áreas de interesse, nos
parece patente que os teóricos que nelas investiram operaram uma
singularização dos países euroamericanos frente aos países do resto do
mundo, perpetuando a noção de “Ocidente” como entidade singular,
invenção possível graças a um conjunto de generalizações históricas e
culturais que paralelamente inventaram o “Oriente” (SAID, 1990).
48
“tradicional” (associado à comunidade) e “moderno” (associado à
sociedade), tomadas como contrastantes, também compuseram o
campo semântico desses teóricos. Essas teorias apontavam a priori para
um progressivo desaparecimento de instituições e de tudo o que fosse
“tradicional”, quando na presença do “moderno”, cuja expansão pelo
mundo se daria por meio do crescimento de organizações políticas em
grande escala, dos mercados e relações racionais de troca econômica, da
especialização intensiva e das comunicações extensas (ibid.).
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
49
O pouco poder de explicação do que se observava empiricamente
no estudo da “vida comunitária” em meio à “moderna” sociedade
“urbana-industrial”, fosse entre imigrantes nos EUA, fosse na Índia,
a partir de pressupostos teóricos fundamentados em dicotomias como
comunidade/sociedade e tradicional/moderno, não impediu que eles
continuassem a ser reproduzidos na análise de “mudanças sociais”
observadas nas “novas nações” em “desenvolvimento”. Gusfield tece
críticas ao uso dessas dicotomias. Nessa crítica, o autor dissocia a
noção de comunidade de ideias às quais ela é classicamente associada.
Destacamos duas rupturas do autor nesse sentido: primeiramente,
ele rompe com a busca pela fonte da filiação comunal em “relações
primordiais”38 “dadas” a priori, comumente identificadas de antemão
pelo cientista social com relações com as de parentesco, de casta ou
religiosas. Ele assume que o que é “dado”, na constituição de vínculos
comunais, é aquilo considerado como tal pelos próprios membros do
grupo em questão. Assim, a comunidade é, antes, vista como construção
social do que como produto de algum tipo pré-determinado de relação
(Idem, p. 30). Em segundo lugar, rompe com a ideia de condições pré-
determinadas necessárias ao desenvolvimento desse tipo de associação
humana, como “homogeneidade cultural” ou “território comum” (Ibid.
p. 31).
50
boa medida pela Escola de Chicago e, que, como se sabe, viria a ser
amplamente adotado nas ciências sociais brasileiras entre as décadas de
1940 e 1960. Naquele país, esse tipo de estudo nasceu como resposta
a preocupações com a compreensão dos efeitos das transformações
socioeconômicas radicais pelas quais passavam os norte-americanos
em função de acelerados processos de industrialização e urbanização.
Essas novas preocupações vieram acompanhadas por outras, de ordem
metodológica, que se mostavam dislruptivas face aos procedimentos
até então adotados no trabalho de campo, configurados na living culture,
implementada pelas pesquisas realizadas por Franz Boas.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
51
identificados por seu apego ao solo, reverência pelo habitat e
tradição, preferência pela família ou comunidade em vez de
realização individual, apreciação qualificada da cidade e ética
sóbria (REDFIELD, 1956). (Tradução da autora).
52
observação seria a pequena, isolada, distinta e homogênea little community
de Redfield (REDFIELD, 1989, p. 4), concebida em um continuum “folk
urban” e em contraste com a densa, heterogênea e grande cidade40.
A este autor, no qual se pode observar a ênfase na atribuição de um
conteúdo fortemente territorial à noção de comunidade, são atribuídas
formulações que foram compartilhadas por outros antropólogos norte-
americanos que partiram para os países “subdesenvolvidos” no pós II
Guerra, que enfocavam a análise de mudanças sociais nesses “pequenos
agrupamentos” a partir de um forte apelo aos conceitos “tradicional”
e “moderno”. As sociedades camponesas foram um foco de atenção
desse conjunto de pesquisadores em países como México e Brasil, e
frequentemente foram concebidas a partir da noção de “little community”.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
53
Esse modelo de investigação, contudo, acabou sendo confrontado no Brasil
não pelos seus métodos em si, mas pela fusão (ou confusão) de soluções
metodológicas com modelos teóricos de compreensão da realidade
(IANNI, 1961), levando a discussões sobre trabalho de campo, o papel do
antropólogo e sobre a própria noção de comunidade.
54
Como observa Wortmann, o critério definidor da “comunidade”
na modalidade de investigação em questão mostrava-se, embora não
exclusivamente, predominantemente ecológico42, com fortes referências
a fatores como extensão total e a distância entre membros da unidade
social estudada. Em seu texto “A Antropologia brasileira e os estudos de
comunidade” (WORTMANN, 1972), o autor faz uma longa digressão
argumentando que tais estudos tomariam “unidades ecológicas”43 por
“comunidades sociológicas”, tomando as primeiras como locus suficiente
de observação e as estudando com o aparelhamento teórico conceitual
desenvolvido em função de um tipo sociológico. Essa confusão se
deveria, em parte, a seu ver, em função da falta de reflexão na “projeção
do trabalho tradicional do antropólogo com populações primitivas sobre
populações nacionais”; pois, “se no primeiro caso, a comunidade, como
tipo sociológico, coincide com a comunidade como agregado ecológico,
o mesmo não se observa no segundo caso” (Idem, 1972, p. 108). Não se
trataria de negar a contribuição do trabalho de campo do antropólogo
ao conhecimento de sociedades nacionais, mas de refletir sobre os
seus limites. Assim, o autor alinha-se a outros críticos dos estudos de
comunidade, como Maria Sylvia de Carvalho Franco (1963). Ambos
defenderam a necessidade de esse tipo de investigação desprender-se do
objeto espacialmente delimitado (JACKSON, 2009).
42. Para sustentar sua afirmação, Wortmann cita trabalhos como o artigo “Os estudos de comunidade no
Brasil” (1955), de Oracy Nogueira, que assim define os estudos de comunidade e a sua unidade de análise:
“por ‘estudos de comunidades’ temos em vista aqueles levantamentos de dados sobre a vida social em
seu conjunto, relativos a uma área cujo âmbito é determinado pela distância a que se situam nas várias
direções, os moradores mais afastados do centro local de maior densidade demográfica, havendo entre
os moradores do núcleo central e os da zona circunjacente, assim delimitada, uma interdependência
direta para a satisfação de, pelo menos, parte de suas necessidades fundamentais” (NOGUEIRA, 1955,
p. 95).
43. Nessa discussão, Wortmann faz uma ressalva, apoiando-se em Redfield (1955): a de que
“comunidades”, além de sistemas sociais, seriam, também, sistemas ecológicos (sistemas particulares,
com princípios organizatórios próprios). O autor entende que o conceito ecológico de comunidade é
válido, desde que restrito a estudos ecológicos, que se valem de um conjunto de conceitos próprios. Para
Redfield (1955, apud WORTMANN, 1972, p. 109), o sistema ecológico de uma comunidade pode ser
entendido como: as “interrelações entre o homem e a natureza, e as regularidades concorrentes, naturais
e artificiais. Este sistema parte do ponto de vista homem-natureza, e é muito mais do que o sistema de
subsistência”.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
55
grupo estudado – pesou na definição de comunidade pelos próprios
“estudos de comunidade”. Guidi (1962, p. 48), por exemplo, que realizou
levantamento bibliográfico e análise dos “estudos de comunidade”
realizados no Brasil, entre 1948 e 1960, entende a comunidade como uma
“entidade integral” constituída pelos seguintes “elementos essenciais”:
1. uma definida área ecológica; 2. um grupo de pessoas interagindo
socialmente e 3. certos interesses e valores comuns. Em certos aspectos,
tal definição assemelha-se àquela de Charles Wagley, em sua monografia
que viria a ser considerada clássica, Uma comunidade amazônica:
estudo do homem nos trópicos (WAGLEY, 1977[1953]), que foi um
marco para os estudos amazônicos:
Por toda parte as pessoas vivem em comunidades - em bandos,
em aldeias, em núcleos agrícolas, nas pequenas e nas grandes
cidades. Nas comunidades existem relações humanas de
indivíduo para indivíduo, e nelas, todos os dias, as pessoas estão
sujeitas aos preceitos de sua cultura. É nas suas comunidades que
os habitantes de uma região ganham a vida, educam os filhos,
levam uma vida familiar, agrupam-se em associações, adoram
seus deuses, têm suas superstições e seus tabus e são movidos
pelos valores e incentivos de suas determinadas culturas. Na
comunidade a economia, a religião, a política e outros aspectos
de uma cultura parecem interligados e formam parte de um
sistema geral de cultura, tais como o são na realidade. Todas as
comunidades de uma área compartilham a herança cultural da
região e cada uma delas é uma manifestação local das possíveis
interpretações de padrões e instituições regionais (WAGLEY
1977[1953], p.40).
56
Uma das grandes forças da antropologia social como disciplina
científica reside no conhecimento profundo e detalhado que
adquire o investigador sobre o pequeno grupo demográfico
que estuda. Como seus métodos de trabalho de campo incluem
observações pessoais da vida diária, as participações na
sociedade em estudo, além de longas e repetidas entrevistam
com uma ampla seleção de indivíduos, seu trabalho de pesquisa
tem sido geralmente pouco extenso. Com raras exceções, os
antropólogos têm realizado suas pesquisas de campo entre
grupos de mil a duas mil pessoas. Têm estudado de forma
clássica grupos e povoados primitivos. [...] A antropologia
social quase poderia ser descrita como a “ciência da pequena
comunidade” (WAGLEY 1977[1956], p.252).
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
57
A compreensão da sociedade pode ser obtida por meio da
construção de um tipo ideal de sociedade primitiva ou popular
em contraste com o “processo de civilização” ou a sociedade
urbanizada moderna. Essa sociedade é pequena, isolada, não
letrada e homogênea, com um forte senso de solidariedade de
grupo. Os modos de vida são convencionalizados naquele sistema
coerente que chamamos de “uma cultura”. O comportamento
é tradicional, espontâneo, acrítico e pessoal; não há legislação
ou hábito de experimentação e reflexão para fins intelectuais. O
parentesco, seus relacionamentos e instituições são as categorias-
tipo de experiência e o grupo familiar é a unidade de ação. O
sagrado prevalece sobre o secular; a economia é mais de status
do que de mercado. Essas e outras caracterizações relacionadas
podem ser declaradas em termos de “mentalidade popular”.
Ao estudar as sociedades comparativamente, ou uma sociedade
em curso de mudança, com a ajuda dessas concepções, surgem
problemas e são, em parte, resolvidos conforme as inter-relações
necessárias ou prováveis de alguns dos elementos da sociedade
popular ideal com outras. Uma dessas relações é aquela entre
a desorganização da cultura e a secularização. (REDFIELD,
1947) (Tradução da autora).
44. Guidi (1962) estabeleceu um índice para analisar o quanto os estudos de comunidade, publicados
no Brasil entre 1948 e 1960, contemplavam os “principais temas de interesse sociocultural”. O índice era
formado por dez temas, a saber: metodologia, base econômica, vida econômica, estrutura demográfica,
estratificação social, família e parentesco, o ciclo de vida – socialização, organização e desorganização
social, tradição e inovação e o equipamento de educação formal e filosófica educacional (GUIDI, 1962,
p. 52).
58
de subsistência”, “isolamento”, “família”, “compadrio”, “ritos”,
“cerimônias”, “solidariedade” (IANNI, 1961). Ao aspecto quase
normativo desse modelo de descrição, Nogueira (1955), baseado em
formulação de Durkheim, faz séria objeção ao “método monográfico”,
chamando atenção para os limites aos quais está sujeita a visão de
conjunto da vida social de qualquer agrupamento humano, de modo
que se evite o colhimento de dados a esmo sem “preocupação com um
quadro teórico ou com hipóteses mais ou menos definidas” (p. 99).
45. Sobre a trajetória intelectual de Marvin Harris consultar, neste livro, o capítulo intitulado “Harris e
Wagley na África Portuguesa e o fim do lusotropicalismo”, de autoria de Ricardo Rella. Marvin Harris
produziu sua tese, intitulada Town and Country in Brazil (1956), no âmbito de projeto de pesquisa
elaborado pelos sociólogos brasileiros Thales de Azevedo e Luís Aguiar Costa Pinto e pelo antropólogo
norte-americano Charles Wagley, executado mediante convênio entre o Departamento de Antropologia
da Universidade de Columbia e a Secretaria de Educação e Saúde do Estado da Bahia (cf. GUIDI, 1962).
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
59
A crítica de Ianni (1961), portanto, era de que a pretensão de
objetividade na coleta de fatos se sobrepôs à reflexão sobre a constituição
dos próprios objetos de investigação nos estudos de comunidade, nos
quais parecia que a “comunidade é[era] transformada num objeto em
si”.
60
Na comunidade a economia, a religião, a política e outros
aspectos de uma cultura parecem interligados e formam parte
de um sistema geral de cultura, tal como o são na realidade.
Todas as comunidades de uma área compartilham a herança
cultural da região e cada uma delas é a manifestação local das
possíveis interpretações de padrões e instituições regionais
(WAGLEY 1977[1953], p. 40).
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
61
Almeida (2018, p. 16), “os antropólogos vinculados a Wagley ficaram
marcados pela abordagem evolucionista e pelo conceito de aculturação,
projetando o ‘desaparecimento’ e a completa absorção dos indígenas
pela ‘sociedade nacional’”. Apesar disso, como nota o autor, esses
pesquisadores não poderiam ser reduzidos ao âmbito puro e simples
de uma “antropologia aplicada”47, uma vez que Wagley e antropólogos
como Eduardo Galvão abriram um debate profundo, que envolveu
uma descrição etnográfica e um conhecimento específico que os levou
à autocrítica sobre suas conclusões de inspiração evolucionista, em um
momento em que o que estava em jogo era uma discussão de “processos
de aculturação, numa quadra desenvolvimentista” nos quais os trabalhos
dos antropólogos refletem abordagens diversas (Ibid., p. 16). Ao mesmo
tempo, seria uma injustiça não reconhecer que Wagley, apesar de sua
orientação teórica que levava a explicações do “subdesenvolvimento”
baseadas na cultura, não ignorava que as condições econômicas e sociais
nas “comunidades” eram produto de sua relação com centros de poder
político e econômico, como ele aponta no artigo “O desenvolvimento
comunitário como dilema nacional” (WAGLEY, 1975).
62
eram consideradas as unidades mais complexas do ensino de sociologia
para Florestan, tanto que ele publica, de fins da década de 1960 ao inicio
dos anos 70, uma coletânea de quatro volumes em que esses conceitos
são centrais. Florestan busca oferecer um “quadro de referência teórica
integrativo” para o ensino da sociologia no Brasil (FERNANDES,
1972; Nota Prévia, p. XIII). Ele marca, contudo, grandes diferenças
em relação aos “estudos de comunidade”, que considerava insuficientes
para análises propriamente sociológicas. Buscaremos enfocar suas
divergências de caráter metodológico, descritivo, em relação a esses
estudos. Uma primeira diferença seria a recusa da ênfase na interação,
que, embora esteja presente em todos os níveis da vida social organizada,
não deveria ser considerada uma “variável independente” ou “agente
fundamental” e base para a explicação sociológica (Idem, Nota Prévia,
p. XI). Lembremos que a própria noção de comunidade, adotada por
autores como Tönnies, Redfield, Guidi e Wagley, continha a ideia de
que essa “unidade social” seria o locus das interações “face-a-face”, que
produziriam tipos de relações especiais oferecidas à descrição. Uma
segunda diferença foi a importância dada à observação, descrição e
análise das comunidades “em função da ordem social inerente ao padrão
de integração da sociedade nacional” (idem, p. 7). Essa ênfase fica
evidente na introdução do livro Comunidade e sociedade no Brasil
- leituras básicas de introdução ao estudo macro-sociológico do
Brasil (1972), em que Fernandes apresenta os capítulos que descreviam
comunidades brasileiras como “exemplos concretos”, “tomados
do mundo histórico-social brasileiro”, de “estruturas ou formações
comunitárias típicas – a aldeia tribal, a pequena comunidade, as vilas, a
cidade tradicional, a cidade moderna” (Ibid, p. 4).
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
63
de comunidade” (JACKSON, 2009) e de questionamentos teóricos e
metodológicos, mas também da preocupação de que a “comunidade”
fosse uma unidade social, e locus de observação, a partir do qual se
pudesse levar em conta e interpretar criticamente relações concretas
entre as comunidades e unidades mais ou menos inclusivas (como
uma cidade, uma microrregião, uma região etc). A dimensão política
envolvida nessa discussão levou alguns críticos mais radicais dos
“estudos de comunidade”, como Caio Prado Jr., em resenha ao livro
Cunha, de Emílio Willems, acusarem explicitamente tais estudos de
serem “reacionários” e produtores de interpretações conservadoras
(ibid.)
48. O autor cita o texto de Gioconda Mussolini intitulado “Persistência e mudança em sociedades de
‘folk’ no Brasil” (MUSSOLINI, 1955).
64
em jogo presentes nos “estudos de comunidade” realizados no Brasil
no pós-segunda guerra mundial. Longe de analisar tais discussões de
maneira exaustiva, buscamos mostrar que elas se debruçaram, dentro
desse contexto sociológico específico, sobre questões fundamentais
para a antropologia, que busca especificidade como disciplina definida
pelo trabalho de campo, mas que precisa continuamente problematizar
a maneira como são construídos os dados nas etnografias, sem
cair no empirismo que pressupõe que “as coisas só são reais”
quando “confirmadas pelos dados sensoriais”, acessados quando
os antropólogos dizem estar realizando seus trabalhos no “nível do
terreno” com “pessoas reais” (ASAD, 1993).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
65
FERNANDES, Florestan.1972 - Comunidade e sociedade no Brasil:
leituras básicas de introdução ao estudo macro-sociológico do
Brasil. São Paulo: Ed. Nacional.
66
___. 1967 - The sociological tradition. 1. ed. London: Heinemann, 1967.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
67
WEBER, Max. 2004 - Conceitos Sociológicos Fundamentais. In:
Economia e Sociedade. Vol. 1. Brasília. UnB. p. 25.
68
HARRIS E WAGLEY NA ÁFRICA PORTUGUESA E O FIM
DO LUSOTROPICALISMO
Riccardo Rella49
Introdução
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
69
Pindaré, Maranhão. Em 1948, iniciou pesquisas entre os moradores de
Itá, no Baixo Amazonas, que resultaram no livro Uma comunidade
amazônica: um Estudo do Homem nos Trópicos, publicado pela
primeira vez nos Estados Unidos pela The Macmillan Company em
1953. De 1951 a 1952, coordenou um projeto sobre “Raças e Classes no
Brasil Rural” com Thales de Azevedo e Costa Pinto, sob os auspícios de
um acordo entre o Estado da Bahia e a Universidade de Columbia, mas
com suporte da UNESCO. Para tanto compõe uma equipe integrada
também por antropólogos norte-americanos, quais sejam: Marvin Harris,
Ben Zimmerman e Harry W. Hutchinson50. As enormes contribuições
de Wagley para os estudos brasileiros lhe renderam o título de Doutor
Honoris Causa, em 1962, da Universidade Federal da Bahia. Entre
outras posições, foi presidente da Associação Antropológica Americana
entre 1970 e 1971. Mesmo sendo apaixonado pelo Brasil, Charles
Wagley nunca deixou de destacar os paradoxos da sociedade brasileira,
às vezes com ironia e senso de humor, como fez em seu memorável
ensaio de 1963 intitulado “Se eu fosse brasileiro” (WAGLEY, 1963).
Com certeza, uma parte menos conhecida do trabalho de campo do
autor é sem dúvida representada pela viagem a Moçambique em 1960.
70
consequências que deixou na administração colonial foram uma das
principais causas da viagem empreendida por Wagley a Moçambique
dois anos depois.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
71
A situação colonial
72
No documento, Moreira defende o assimilacionismo português
da crítica ao seu aparato jurídico mais visível: o Regime de Indigenato.
“A oportunidade foi dada aos nossos oponentes”, diz ele, “... para sustentar [...]
que o povo português foi submetido a duas leis políticas, e por essa razão dividida
em duas classes praticamente não comunicantes” Esta acusação, segundo ele,
deriva da noção de cidadania no raciocínio do direito público do século
XIX, que introduziu um conceito “puramente técnico” de cidadania,
noção relacionada apenas ao conceito de direitos políticos.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
73
explicitamente lusotropicalista, inspirada no pensamento de Gilberto
Freyre. Antes daquela década, segundo a mencionada autora, no campo
político português “... O pensamento de Freyre não foi bem recebido ou foi
puramente e simplesmente ignorado”, exatamente pelas suas visões positivas da
miscigenação, ainda extremamente contrastantes com a administração
colonial portuguesa na África naquela década. Como muitos estudiosos
demonstraram – entre eles, Marvin Harris e Charles Wagley –, tais
intenções lusotropicalistas foram eclipsadas por evidências do número
reduzido de pessoas “genuinamente” assimiladas, expressas nas próprias
estatísticas da administração colonial. Essa tentativa de revitalizar e
renovar a imagem do colonialismo português na Africa por meio de
um assimilacionismo bem mais de fachada do que real, que deixava
larga parte da população indígena africana fora de qualquer direito da
cidadania portuguesa e, se possível, tornando ainda mais subalternas
as populações do interior, foi uma última e como se verá desesperada
tentativa do regime salazarista para se vender como uma humanização
do colonialismo. A subdivisão entre indígenas, assimilados e cidadãos
visava quebrar a proposição de unidade da população africana colonizada,
alardeada pelos movimentos, usando uma nova forma de discriminação
baseada não na raça, mas no grau de assimilação do indivíduo na cultura
dominante. O regime racista foi substituído por um regime culturalista,
onde quanto mais o subalterno se conformasse à cultura dominante,
mais esperança teria de poder acessar à categoria máxima estabelecida
pelo estatuto, aquela de cidadão (ESTATUDO DOS INDÍGENAS,
1957). As consequências das viagens de Harris e Wagley, já críticos do
regime colonial português, se revelarão fatais para a credibilidade do
inteiro aparado administrativo colonial.
74
uma comunidade localizada na fronteira com a Espanha. Essas duas
referências seriam anedóticas, mas ter estudado pequenas comunidades
ofereceu, segundo Dias, elementos fundamentais não apenas para a
compreensão da “cultura” portuguesa em geral ou do caráter nacional
português em particular, mas, sobretudo, para compreender a relação
dos portugueses com outros povos durante a expansão colonial. Dias
fez sua primeira viagem ao Brasil em 1951, para participar da Primeira
Conferência sobre Folclore Brasileiro. Ele voltaria ao Brasil em duas
outras ocasiões, em 1953 e 1954. Infelizmente, o período brasileiro de
Dias não é bem conhecido e não foram detectados muitos documentos
ou relatos dessa época. Em 1953, a convite de José Loureiro Fernandes,
fundador do Departamento de Antropologia da Universidade Federal
do Paraná, em Curitiba, Jorge Dias fez trabalhos de campo na região
de Guarapuava. Finalmente, em 1956, convidado por Adriano Moreira,
mudou-se para Lisboa para integrar a equipe do ISEU e a equipe de
pesquisa do JIU. Um ano depois, em 1957 ele começou seu trabalho de
campo entre os Makonde, na região do planalto no norte de Moçambique.
Em Lisboa, de 1957 a 1960, foi responsável pelo MEMEUP (Missão de
Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português). A viagem que
fez com Charles Wagley em 1960 foi, nesse sentido, constituindo parte
de uma das missões desenvolvidas dentro do MEMEUP.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
75
A viagem a Moçambique de Marvin Harris
76
mais proeminentes “antropólogos” portugueses do período, ou um
“estudioso autodidata”, pois preferia assim se apresentar. Por causa de
suas funções administrativas, ele sabia todos os detalhes do “trabalho
migrante” dos indígenas de Moçambique nas minas sul-africanas e tinha
também publicado um trabalho sobre o assunto, com o aval de Jorge
Dias e Adriano Moreira (RITA-FERREIRA 1963). Ele deu acesso a
Harris a uma coleção de materiais legislativos que foi fundamental para
o trabalho do autor. Mas logo depois dessas leituras, Marvin Harris teria
cometido do ponto de vista salazarista, um erro fatal: entrou em contato
com figuras de oposição ao regime ditatorial.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
77
O encontro com Marvin Harris representou uma oportunidade única para
fazer a voz do protesto chegar ao mundo exterior. Um dos homens mais inteligentes
que tive o privilégio de conhecer, o jovem professor logo percebeu a situação e a extensão
do meu apelo de que ele não perdesse tempo durante sua estadia no trabalho de mera
erudição acadêmica (FIGUEIREDO, 1978).
78
do exterior empenhados nas lutas anticoloniais, entre eles, seu amigo
Marvin Harris. Foi no âmbito dessa correspondência que Harris
enviou pra Figueiredo uma carta aconselhando maior proximidade e
solidariedade com a causa da Frente de Libertação de Moçambique
(FRELIMO) e seu presidente, Eduardo Mondlane51, que se preparava
para visitar Londres com o propósito de ganhar apoio para a causa da
independência.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
79
Moreira e foi uma tentativa de fomentar o intercâmbio acadêmico entre
o ISEU, em Lisboa, e a Universidade de Columbia. Apesar das tentativas
de intercambio acadêmico entre universidades, a real motivação de
‘reconstruir o que estava quebrado’ era mais que evidente.
80
No relatório da viagem, a figura de Marvin Harris aparece em
inúmeras ocasiões, como evidencia Macagno, a sublinhar o fracasso da
máquina policial da PIDE e as consequências gravíssimas para a imagem
do Portugal no mundo. O “fantasma” de Marvin Harris apareceu várias
vezes nas conversas que Jorge Dias e Charles Wagley tiveram durante
sua estadia em Moçambique (MACAGNO 2018).
82
De Inhambane eles voltaram para Xai Xai. Nos dias que se
seguiram, visitaram Inhamiça e as cooperativas de Zavala e Chibuto.
Em seguida, eles se mudaram para Caniçado (perto de Chókwè) e para
um pequeno lugar, chamado Vila Alferes Chamusca na província de
Gaza. Por fim, retornaram a Lourenço Marques:
A cidade já não era tão desagradável aos olhos dos meus companheiros como
tinha sido nos dias seguintes à sua chegada. Eles agora viram com uma compreensão
diferente nossos problemas, mesmo que sua atitude ainda fosse abertamente crítica e negativa.
(MACAGNO 2018)
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
83
Essa pergunta é emblemática no que concerne ao descolamento
entre a teórica “democracia racial” de Gilberto Freyre, que o Estado
Novo estaria tentando implementar nas colônias através do Estatuto
dos Indígenas e a realidade de uma administração colonial que não
tinha nenhum nativo em cargos de responsabilidade e de administração.
A pergunta colocou em crise Jorge Dias, que não respondeu
imediatamente e fez um esforço para lembrar. Por absurdo que seja,
o único administrador negro com quem cruzaram estava em Portugal:
84
A cidade é encantadora e acolhedora. Negros e brancos vivem em harmonia
e nas ruas vimos crianças de cores diferentes brincando juntas. O Prof. Wagley tirou
uma foto de dois pequeninhos sentados em um canto do jardim público, um loiro e
um preto. Esses exemplos confirmando nossa política proclamada também estão se
tornando uma fonte de satisfação para o Prof. Wagley, que está sendo cada vez mais
convertido à nossa causa. (MACAGNO 2018)
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
85
ficar em Leopoldville por cinco dias, algo que não era aconselhável na
época.” Sabemos pouco sobre a estadia de Charles Wagley na Guiné-
Bissau. Aparentemente, Wagley estava fascinado com as formas que o
Islã tinha tomado nesta região. Parece que tivesse até um projeto futuro
de pesquisa mais detalhada e aprofundada sobre Guiné Bissau pelo
autor, mas esse projeto nunca se concretizou na prática.
Conclusões
86
“outros” Brasis na África, baseados na ‘democracia racial’ descrita por
Freyre53, também mencionada explicitamente por ele, numa referencia a
Cassiano Ricardo, como “democracia social e étnica” (Freyre,1971:65).
Mas rapidamente esses desejos lusotropicalistas começaram a mostrar
seu lado anacronístico. Como vemos, o próprio Charles Wagley estava
ciente desta quimera ideológica.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
87
o governo da União Indígena ocupou os territórios “portugueses” de
Goa, Daman e Diu. 1961 marcou o início do fim do Império: em abril, a
Assembleia Geral da ONU instou o governo português a realizar reformas
urgentes para cumprir a chamada “Declaração Anticolonialista”. A
revogação do Estatuto dos Indígenas, realizado por Adriano Moreira,
além de algumas outras pequenas reformas, não foi suficiente para
baixar a pressão internacional que estava progressivamente aumentando
contra o regime salazarista. No ano seguinte, em 1962, nacionalistas
exilados de inspiração marxista fundaram a FRELIMO, em Tanganica
que tinha acabado de se libertar da dominação colonial inglesa e cujo
presidente Julius Nyerere abençoou e apoiou desde o começo a iniciativa
de libertação de Moçambique. O desgaste do regime colonial português
prosseguiu lento e constante ao longo de toda a década dos ’60, seja
militarmente através das ações da FRELIMO, seja na cena internacional
com o isolamento do regime falangista de Salazar por meio de sanções
de organismos transnacionais.
88
fim do Estado Novo, logrado nas colônias e na metrópole. Depois de
uma longa e inútil guerra, o exército tinha se tornado adversário do
regime fascista e, finalmente, depois de mais seis anos do afastamento
de Salazar, tomou o poder através da Revolução dos Cravos, que põs
fim seja ao regime do Estado Novo, seja à aventura colonial portuguesa.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
89
presença colonial europeia, mas com ela também a velha antropologia
colonialista, que Dias encarnava, facultando assim condições objetivas
para uma discussão sobre a emergência e os rumos de uma antropologia
pós-colonial, compreendendo uma leitura crítica das práticas
colonialistas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
90
Second printing, Summer, July 1960).
WEST, Harry. 2004. Inverting the Camel’s Hump: Jorge Dias, His Wife,
Their Interpreter, and I in Richard Handler, ed., Significant Others.
Interpersonal and Professional Commitments in Anthropology.
Madison: The University of Wisconsin Press. pp 51-90.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
91
92
O FAZER ETNOGRÁFICO DE JOSEPH B. CASAGRANDE
EM In the Company of Man.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
93
sociais que funcionavam como principais fornecedores de informações
das unidades sociais (tribos, comunidades, povos, grupos) estudadas e
que apoiavam efetivamente as atividades de campo dos antropólogos
seja como guias, mateiros, entrevistados, tradutores, auxiliares de
pesquisa ou hospedando os antropólogos em suas residencias ou em
lugares por eles indicados. Nos parágrafos abaixo procuro refletir sobre
o antropólogo, seus escritos e como eles refletem num savoir-faire de
uma antropologia estadunidense do pós-II Guerra Mundial.
94
O chamado “informante-chave” consistiu num elemento
central no âmbito de uma abordagem inspirada nas premissas de uma
antropologia aplicada que era praticada por Casagrande e seus pares.
Tal informante reunia predicados importantes para que o antropólogo
pudesse exercer seu trabalho de maneira sistemática. Era pessoa com
preponderância e influência em sua referida comunidade, desfrutando
de atributos que proporciavam respaldo e legitimidade ao antropólogo
perante as demais unidades familiares. As relações sociais privilegiadas,
mantidas regularmente com tal informante, asseguravam um
reconhecimento do trabalho de pesquisa pela unidade social estudada
(grupo, tribo, comunidade, povo). Os chamados “informantes-chave”,
ocupavam um lugar de destaque na mediação, transitando entre seu
mundo e as agencias da sociedade nacional. Para tanto dominavam o
idioma do antropólogo e tinham conhecimento detido do seu itinerário
e de suas atividades rotineiras tornando-se uma espécie de “tradutores”
desse “entre-mundos”. Disso decorrem o uso e o significado da palavra
“chave” no seu mais completo sentido metafórico. O “informante-
chave” corresponderia idealmente àquele que iria “abrir” as portas dos
conhecimentos e dos saberes, dos ritos e das narrativas míticas de sua
comunidade para o antropólogo. Contudo, como comenta Bachelard
(1996, p. 97), as metáforas seduzem a razão e convertem imagens
particulares em esquemas gerais. Assim, as “descobertas” a partir dos
relatos e das experiências concretas, próprias dos “informantes-chaves”,
tornavam-se, nas mãos dos antropólogos, princípios para interpretações
e análises gerais a respeito dos fundamentos da organização social das
unidades estudadas.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
95
descrição do organizador nos deparamos com outros critérios para a
composição do livro, que também decorrem de relações sociais que
caracterizam a trajetória pessoal do referido organizador. Assim, tem-
se um total de 20 (vinte) autores, todos antropólogos e antropólogas
anglófilos, destacando-se a prevalência de 15 (quinze) antropólogos
estadunidenses. Dentre os autores elencados no livro a maioria absoluta
integra uma rede de relações de afinidade e de solidariedade profissional
muitissimo próxima à Joseph Casagrande, senão vejamos: alguns foram
seus professores, como por exemplo Clyde Kluckhohn e Charles
Wagley, outros o inspiraram diretamente com suas teorias e outros ainda
foram seus colegas durante sua formação cadêmica na Universidade de
Columbia, Nova York.
55. Os Estados Unidos entram formalmente na II Guerra Mundial após 7 de dezembro de 1941, data
do ataque militar japonês, de surpresa, sem declaração formal de guerra, às instalações e equipamentos
navais e aéreos norte americanos em Pearl Harbour, Honolulu, Território do Havai.
96
de 1910. Na tabela que segue essas informações podem ser vistas de
forma mais esquemática e com maior discernimento.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
97
de Diên Biên Phú, em 1954. Este tipo de ação antropológica perpassa
as lutas anticoloniais e aquelas referidas às novas nacionalidades seja na
Indochina ou na África, no Vietnã ou no Congo, e se mostra transhistórica
facultando aproximações com procedimentos de campo e fatos do
presente57. Práticas de antropólogos, que marcaram as etnografias nas
sociedade coloniais, tem sido resgatadas no âmbito de intervenções
ou pesquisas antropológicas contemporâneas, demonstrando que tais
procedimentos de pesquisa perpassam o colonialismo, ao superarem
fronteiras que usualmente são mencionadas como marcos de clivagem
para estabelecerem as respectivas distinções face à lógica de ação do
imperialismo (Almeida,1918).
57. O exemplo maior seria o projeto governamental estadunidense chamado Human Terrain System
(HTS). Terreno Humano consiste numa expressão utilizada comumente no jargão militar para se
referir às populações de zonas onde há conflitos armados. Os primórdios do projeto dizem respeito
à solução para enfrentar o “fosso cultural” enfrentado pelo exército norte-americano na invasão do
Iraque e do Afeganistão. Na superação do denominado “fosso” as autoridades militares decidiram
recrutar antropólogos nestas suas ações bélicas incorporando-os nas tropas de combate pra produzirem
conhecimentos sobre realidades localizadas concernentes a comunidades rurais e a cidades com revoltas
populares. Foram incorporados às tropas mais de 120 antropólogos, elaborando relatórios sobre povos
e comunidades nas linhas de frente e procedendo inclusive a trabalho de campo através de observações
in locco e entrevistas com escolta armada. Este programa foi implementado em 2007 com um orçamento
anual de 10 milhões de dólares. Em 2011 o HTS chegou a receber 150 milhões para sua manutenção.
Este programa militar foi encerrado em junho de 2015 pelo governo Obama. Leia-se a propósito, para
fins de aprofundamento: Almeida, Alfredo W.B. de – “Cowboy Anthropology: nos limites da autoridade
etnográfica”. Teresina. Entrerios. Revista do PPGANT-Universidade Federal do Piaui. 2018. pp 8-35.
98
Quadro 1: Apresentação dos autores, artigos, “informantes” e
seu povo, e data do encontro entre antropólogo e “informante”
AUTOR - TÍTULO DO NOME DO POVO DO DATA
NACIONALIDADE ARTIGO “INFORMANTE” “INFORMANTE”
– PAÍS
Raymond Firth (Nova A Polynesian Pa Fenuatara Povo Tikopia 1928
Zelândia)* Aristocrat (Tikopia)
Thomas Gladwin Petrus Mailo, Chief Petros Mailo Povo Truk (do 1948
(EUA) of Moen (Truk) arquipélago da
Micronésia no
Pacífico Ocidental)
E. W. H. Stanner Durmugam, Durmugam Povo Nangiomeri 1932
(Austrália)* A Nangiomeri (aborígenes da
(Australia) Austrália)
Harold C. Coklin Maling, A Hanunoo Maling Povo Hanunoo 1953
(EUA)* Girl from the (Filipinas)
Philippines
A Day in Parina
James B. Watson A New Guinea Bantao Povo Agarabi 1954
(EUA) “Opening Man” (Terras Altas da
Nova Guiné)
Margaret Mead (EUA) Weaver of the Sra. Phebe Clotilda Samoanos (Ilhas 1929
Border (New Coe Parkinson Samoa)
Britain)
Cora Du Bois (EUA)* The Form Ali ben Usmus Javanês (Ilha de Java) 1937
and Substance
of Status: A
Javanese-American
Relationship
John T. Hitchcock Surat Singh, Head Surat Singh Indiano 1953
(EUA)* Judge (India)
David G. Mandelbaum A Reformer of Sulli Povo Kota (Índia) 1949
(EUA)* His People (South
India)
Ian Cunnison The Omda Hurgas Merida Omda (Sudão) 1952
(Escócia)* (Baggara Arabs,
Sudan)
Victor W. Turner Muchona the Muchona Povo Ndembu Década
(Escócia)* Hornet, Interpreter (Rodésia do Norte, 1950
of Religion atual Zâmbia)
(Northern
Rhodesia)
Ethel M. Albert My “Boy,” Muntu Muntu Povo Mututsi 1956
(EUA) (Ruanda-Urundi) (Ruanda-Urundi,
antiga colonia belga)
Laura Bohannan The Frightened Shingir Povo Tiv (Nigéria) 1949
(EUA) Witch (Nigeria)
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
99
Charles Wagley (EUA) Champukwi of Champuki Povo Tenetehara 1941
the Village of the (Brasil)
Tapirs (Brazil)
Edmund Carpenter Ohnainewk, Ohnainewk Povo Inuit (Ártico) 1950
(EUA)* Eskimo Hunter
Robert H. Lowie My Crow Jim Carpenter Povo Crow (Estados 1910
(Áustria-EUA)** Interpreter Unidos)
Clyde Kluckhohn A Navaho Politician Bill Begay Navajo 1948
(EUA)*
Joseph B. Casagrande John Mink, Ojibwa John Mink Ojibwa 1941
(EUA)* Informant
John Adair (EUA)* A Pueblo G.I. Marcus Tafoya Pueblo Pós-
1945
William C. Sturtevant A Seminole Josie Billie Seminole 1950
(EUA) Medicine Maker
100
1. Propriedade Intrínseca: a produção etnográfica de
Casagrande
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
101
naturais, na episteme das ciências sociais (CASTRO FARIA, 2006, p.
24) e seus consequentes obstáculos para análise crítica das ciências
sociais (ALMEIDA, 2008, p. 63). Nesse sentido, Bachelard nos alerta
sobre os perigos de tratarmos o trabalho de campo como laboratório
e biblioteca do conhecimento antropológico: “um gabinete de história
natural e um laboratório são montados como uma biblioteca, pouco
a pouco; todos confiam: esperam que o acaso estabeleça as ligações
entre os achados individuais” (BACHELARD, 1996, p. 40). Ademais
disso, Pacheco de Oliveira (2016, p. 32; 218-219) ressalta que os dados
etnográficos do antropólogo não devem ser analisados igualmente aos
dados de uma pesquisa de laboratório em que as variáveis estão sob um
controle relativo do cientista, os dados etnográficos não resultam de
condições ideais.
102
O final do século XIX e o principio do XX é um período em
que a antropologia buscava legitimar-se enquanto ciência. Para tanto
era necessário criar uma linguagem própria (CASTRO FARIA, 2006,
p. 24) e assentar métodos de coleta de dados para sua validação. Nessa
aurora antropológica alguns trabalhos romperam com descrições
classificatórias, colecionistas, missionárias, administrativas, militares,
naturalistas que eram produto do colonialismo. São exemplos dessas
rupturas descritivas os trabalhos de Lewis H. Morgan, Henry Maine e,
um pouco mais tarde, Frank H. Cushing. Além dessas rupturas, estes
autores contribuíram para as bases do que viria a ser o trabalho de
campo (fieldwork) da antropologia a partir de experiências próprias e
genuínas.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
103
no artigo sobre o indígena Obijwa John Mink, Casagrande explicita a
preocupação e a busca por esses padrões de cultura:
61. “ele rapidamente chegou a compreender o nosso interesse no padrão geral de cultura e não no caso
particular e a nossa preocupação com o que por vezes lhe deve ter parecido ser detalhes irrelevantes de
comportamento”.
62. Marvin Harris foi um antropólogo que ficou marcado pelas suas argumentações sagazes e polemicas,
buscando sempre o debate e confronto com seus pares. Contudo, poucos sabem, da sua ligação com a
antropologia brasileira e lusófona. Sua tese de doutorado decorreu de seu trabalho em uma comunidade
na Bahia, que resultou no livro Town and Country in Brazil de 1956. Um trabalho dentro dos estudos
de comunidade amplamente realizados nas décadas de 1950 e 1960 e que nesse livro são abordados no
artigo elaborado por Ítala Nepomuceno, que traz uma discussão a cerca dos estudos de comunidade.
Os estudos lusófonos de Harris são abordados neste livro no artigo elaborado por Riccardo Rella que faz
uma discussão relacionando os estudos feitos por Marvin Harris e Charles Wagley nas colônias portu-
guesas africanas e seus efeitos. Estes trabalhos, encomendados pela administração colonial portuguesa,
deveriam ter dado um destaque e uma coonestação internacional ao projeto colonial português, mas na
realidade os dois, em particular o de Harris, tornaram-se extremamente críticos das ações do colonialis-
mo salazarista, a partir de situações concretas registradas no decorrer do tabalho de campo.
104
cuestión de venganza, sino de principio: simplemente, no es posible
conciliar la imagen que los boasianos se hacían de si mismos como el
summum del rigor metodológico con los procedimientos impresionistas,
cientificamente irresponsables, que caracterizan a las primeras fases del
movimiento de cultura y personalidade” (HARRIS, 1979, p. 351).
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
105
de Kluckhohn, atuou em instituições que promoviam trabalhos de
antropologia aplicada como instrumentos de transformação social.
106
um gestor de associações voluntárias, que convocava antropólogos, seja
nos corredores universitários, seja nos salões das grandes reuniões e
congressos de antropologia, seja em agencias oficiais. Esta capacidade
de mobilização e trânsito entre diferentes acontecimentos foi um fator
destacado em sua trajetória intelectual e de gestor.
65. “Os vários capítulos estão organizados por ordem aproximadamente geográfica, começando pelas
ilhas do Pacífico e Austrália, e passando pela Índia, África, América do Sul e do Norte. Dentro destas
áreas estão ainda ordenados, embora de forma bastante impressionista, para fornecer contrastes de esti-
lo, tom e sujeito, e em alguns casos, a esboços justapostos de pessoas comparáveis”.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
107
Ásia (Filipinas, Ilha de Java, India); 04 (quatro) à África ( Omda/Sudão,
Rodésia atual Zambia, Ruana-Urundi, Nigéria), uma (01) ao Ártico (povo
Inuit), uma (01) ao Brasil e finalmente 05 (cinco) aos Estados Unidos. A
noção de região periférica aqui não é exatamente geográfica. Quando se
pensa nos Estados Unidos, transparece uma dimensão metropolitana e de
centralidade,em termos do propalado propósito de “desenvolvimento”,
todavia 04 (quatro) dos povos mencionados (Navajo, Ojibwa, Seminole,
“Pueblo”) estão localizados em regiões de fronteira e 01 (hum) no
Missouri (Crow), na região centro oeste dos EUA, todos numa posição
à margem da organização social dita “desenvolvida” e mais próximos de
uma situação periférica alvo de colonialismo interno.
108
Conceitualmente o retrato nos remete a uma ideia de algo
definido, determinado. O retrato é uma imagem fidedigna, que retrata
uma cena ou realidade “como ela é” no momento de seu registro.
A fotografia pode ser prova irretorquível e corresponde aqui a uma
metáfora que transmite autoevidencia.O conceito de esboço por sua
vez remete à descrição aproximada, com os elementos mais importantes
ou significativos de quem o faz, mas sem ter a intenção de uma cópia
fiel. O uso do conceito de esboço (sketch), por Casagrande, sinaliza
também as suas orientações antropológicas. Uma orientação, como
discuti anteriormente, baseada nos estudos de cultura e personalidade.
O esboço possibilita o diálogo com o conceito de “perfil”, usado nas
chamadas discussões comportamentais. Há um excerto do Prefácio que
ilustra essa relação: “In these sketches one sees vividly the subtle interplay
between personality and the cultural forms within which it must work,
each bearing the imprint of the other67” (p. XV, grifos meus). O autor está
justamente afirmando que os esboços dos interlocutores possibilitam
relacionar suas personalidades às formas culturais às quais pertencem.
Sendo assim, o que seria apenas a escolha de um conceito por outro, se
revela em um uso deliberadamente pensado e orientado.
67. “Nestes esboços, vê-se vividamente a sutil interação entre a personalidade e as formas culturais den-
tro das quais deve trabalhar, cada uma com a marca da outra”
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
109
We hope that all who enter here will come away with a broader conception
of man and the human situation; that the student will gain from this book
acquaintance with a side of the discipline seldom touched upon in more technical
anthropological writings. We trust, too, that our colleagues will find this book
worthy of their professional attention, and that it will awaken in them echoes of their
own experiences in the field68 (p. XIII, grifos meus).
“While the native subjects are the central figures, we have written as well
about our relationships with those we have sought to portray, about our personal
reactions to people and circumstances, and about the way we have gone about our
work69” (p. XIII).
110
intelectual dos próprios antropólogos. Este tema será melhor discutido
a seguir.
70. “é em primeiro lugar uma coleção de memórias pessoais escritas por antropólogos sobre indivíduos
que vieram a conhecer bem durante o decurso do seu trabalho”
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
111
chapters are thus also in some measure autobiographical accounts71 (p. XIII).
Isso se deve ao fato de que a autobiografia se projeta pela memória de
outrem.
112
seja, a disposição constante de criticar os procedimentos metodológicos
concebidos de forma manualesca e de refletir criticamente sobre suas
próprias práticas, de modo que dêem conta não apenas de dificuldades
no uso de técnicas de observação direta e de realização de entrevistas,
mas também quanto à compreensão antropológica das categorias e de
noções elementares de entendimento do pensamento e das ações das
agentes sociais estudados nas suas contingências específicas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
113
__________. John Mink, Ojibwa Informant. 1960 – in; In the Company
of the Man -Twenty Portraits of Antropological Informants.
Joseph Casagrande (Org.). Haper & Brothers Publishers, New York,
pp. 467-488.
114
“FACING MOUNTAIN KENYA”: JOMO KENYATTA
FRENTE À ACADEMIA E ÀS POLÍTICAS DO SISTEMA
COLONIAL BRITÂNICO
APRESENTAÇÃO
73. Graduada em Sociologia pela Universidad Central de Venezuela. Doutorado em História pela
École dês Hautes Études em Sciences Sociales. Professora da Universidade Federal do Pará vinculada
ao Núcleo de Altos Estudos Amazônicos e Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Professora
colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia da
Universidade Estadual do Maranhão. Pesquisadora do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia.
74. Kenyatta, na primeira nota de rodapé destaca como um erro a grafia Kikuyu, que os europeus
divulgaram, em oposição àquela que afirma como própria do seu povo: “A forma europeia usual de
soletrar esta palavra Kikuyu é incorreta; deve ser Gikuyu, ou em ortografia fonética estrita Gekoyo,
referida ao próprio país. A Gikuyu pessoa é Mu-Gikuyu, plural, A-Gikuyu. Mas para não confundir
nossos leitores, usamos Gikuyu para todos os fins”. (Kenyatta, 1938, XV). A expressão Kikuyu segue
os textos escritos pelos britânicos e seguidores desta grafia. Neste texto opta-se por seguir a orientação
de Kenyatta.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
115
Eu sei que existem muitos cientistas e leitores em geral que irão ser
desinteressadamente felizes com a oportunidade de ouvir o ponto de vista dos africanos,
e para todos estou feliz por prestar serviço. Ao mesmo tempo, estou bem ciente de que
poderia não fazer justiça ao assunto sem ofender aqueles “amigos profissionais do
africano” que estão preparados para manter sua amizade pela eternidade como um
dever sagrado, desde que o africano continue a jogar a parte de um selvagem ignorante
para que eles possam monopolizar a função de interpretar sua mente e falar por ele.
Para tais pessoas, um africano que escreve um estudo deste tipo está se intrometendo
em suas reservas. Ele é um coelho que virou caçador furtivo.
116
De Nkrumah a Limann, de Kibaki a Atta Mills, a LSE teve resultados
mistos na formação de líderes africanos. Como uma comunidade de alunos e professores,
incluindo africanos em ambas as posições, devemos nos perguntar quem é o LSE
moldando agora. E é papel do professor despolitizar seus alunos? Ou deveríamos
estar procurando alimentar as mentes políticas com fatos e éticas para moldar seu
raciocínio? Que o elefante de bronze que decora nossos passos não se torne um símbolo
do elefante que uma vez deixou um homem na chuva (MENIL, 2018).
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
117
Sumariamente este modesto exercício de leitura indaga sobre as conexões
entre antropologia e colonialismos; expõe sobre os conflitos sociais,
as resistências e as lutas pela reconquista dos territórios e da autonomia
empreendidas pelos colonizados, gestos que são inimagináveis e sempre
histórias compartilhadas de indignação e expressões de resistência .
77. Ver PERHAM, Margery. Frederick Lugard. Administrador Colonial Britânico. https://www.
britannica.com/biography/Frederick-Lugard. A escrita por Frederick John Dealtry Lugard, Barão
Lugard de Abinger do livro “The Dual Mandate in British Tropical Africa” (1922) o fez receber a me-
dalha de ouro da Royal Geographical Society e a menção de “pai do governo indireto”
118
Na condição de administrador colonial Lugard dominava o
princípio do governo indireto78 que ele considerava inaplicáveis em
sociedades pouco organizadas do Igbo e outras tribos do sudeste da
Nigéria. Na sua concepção o império britânico precisava produzir a
justificativa teórica da ocupação colonial da África e das formas de
controle político efetivo, e Lugard no “ Dual Mandate” estabeleceu
os argumentos que justificaram as conquistas e o estilo administrativo.
Grã-Bretanha tinha uma responsabilidade dupla na África: realizar a
administração e obter benefícios econômicos para a metrópole, bem
como a elevação dos “nativos”. Fundamentava essa ação de governança
em três princípios: descentralização, continuidade e cooperação. Todos
os níveis de governo seriam descentralizados, todavia, com uma forte
autoridade de coordenação. Lugard interpretava que a continuidade era
fundamental, porque os africanos desconfiavam dos estrangeiros, por
isto recomendava a permanência sem interrupções dos oficiais britânicos.
Com base neste princípio havia exigências sobre substituição e formação
da equipe provincial e, ao mesmo tempo, sobre as cooperações entre os
funcionários provinciais e os governantes locais. Estabelecia a Regra
indireta, administração por chefes locais, subordinados aos oficiais
coloniais britânicos79. Lugard declamava o panegírico do governo
britânico que elevaria os “povos primitivos a civilizados” e no mesmo
grau o seu bem-estar.
78. Os britânicos introduziram o governo indireto como sistema de governo para controlar as suas
colônias, feita por meio de estruturas de poder nativas pré-existentes. Esse sistema era mais barato para
os impérios e suas bases teóricas foram elaboradas nas universidades. Henry James Summer Maine
escreveu o livro Ancien Law (1861) cujas proposições teóricas acerca do direito e as instituições jurídicas
se desenvolvem passando do “status ao contrato”. A teoria dos três estágios do desenvolvimento do
direito: uma fonte divina do direito; identificação do direito com o costume; identificação de uma
lei posta por uma autoridade. Esta teoria é verificada nos quadros do evolucionismo e deu suporte
ao “governo indireto”; ainda, e é vista como pilar da antropologia evolucionista do século XIX, e as
imbricações do saber dos antropólogos com a dominação colonial. (VILLAS BÓAS, 2011/2012). Os
debates sobre o “governo indireto” têm continuidade com acadêmicos entre eles Mahmood Mamdani
(1999) que interrogam de que forma o governo direto e indireto foram tentativas com objetivos idênticos
de implementar a dominação. No governo indireto surgiram tensões étnicas dentro das sociedades
colonizadas que manifestaram hostilidade e elaboraram “estratégias disfuncionais de governo”, o que o
autor descreveu como “despotismo descentralizado”. (MAMDANI; 1996, 37).
79. Ogechukwu EzekwemThe Dual Mandate in British Tropical África, de Frederick John Dealtry Lugard
(1965). https://notevenpast.org/the-dual-mandate-in-british-tropical-africa-by-frederick-john-deal-
try-lugard-1965/
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
119
No livro de Lugard é exposta uma ontologia essencialista, que
“busca desumanizar o subalterno e elevar o status dos colonialistas
na África”(Bello, 2017). Significava “O duplo mandato do Império
Britânico” abrir a África para o mundo civilizado e, ao mesmo
tempo, abrir a mente africana para a civilização; trata-se de papéis
sociais binários envolvendo “um civilizador e outro a ser civilizado”.
O colonizado – subalterno é naturalizado e funda-se em natureza e
cultura. “Lugard vê a natureza física dos negros e seus tons e matizes
de cor em correlação direta com seu avanço intelectual e organizacional.
A mistura dos negros com os hamitas conota “poluição” e diluição que
possivelmente afeta sua natureza e cultura” (Bello, 2017, p. 82).
80. A palavra “Boma” vem da África e está nas línguas faladas nos Grandes Lagos Africanos. Boma era
um recinto circular para a comunidade e seus anciãos se reunirem. Era um espaço sagrado para reuniões
comunitárias e discussões significativas, um espaço para tomar decisões e definir ações.
120
sobre a Abissínia, a maioria dos bantu e negros têm os seus pontos de
vista. Eles foram organizados num clima de ódio da invasão europeia e de
desprezo pela debilidade desses poderes e movimentos que os colocavam
ora do lado da África e, logo depois, através da fraqueza e da incompetência,
abandonavam a causa da África e deixavam tudo de lado. Mais uma vez, a
má gestão do “incidente chinês” está unindo o mundo dos povos de cor
(“coloured peoples”) contra a influência ocidental e, principalmente, contra
a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, mesmo para aquela pessoa que é
preta, morena ou amarela, “noblesse oblige” (MALINOWSKI, 1938, p. x).
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
121
realidade concreta como a situação colonial advinda do “consenso político
do imperialismo europeu” (WESSELING, 1998).
122
Neste documento, os primeiros parágrafos nomeiam e
classificam as situações, os “direitos” e os sujeitos de direito nele
contemplados no Report. Em vários itens aponta a preocupação com
a “população nativa presente e prospectiva”. As situações das terras
correspondiam: a. as terras já alienadas e b. terras a alienar no
futuro; definia a terra tribal e a propriedade individual. As terras
são classificadas em A, B, C e D. Sobre os sujeitos distingue: i. As
comunidades, órgãos ou nativos de pessoas reconhecidas nas tribos
e, ii. Nativos destribalizados, ou seja, nativos que não pertenciam a
nenhuma tribo ou que cortaram conexão.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
123
que ingressou na administração colonial britânica. Foi nomeado para
ser registrador e juiz no Quênia, Uganda e Tanganica entre 1902 e
1924. Como juiz sentenciou contra as reivindicações de terra dos
Massai em 1913. Ocupou o cargo de Secretário de Estado para as
Colônias. Presidiu a Comissão de Terras de Rodésia do Sul, de 192584
e a Comissão de Terras do Quênia de 1932-1933. Entre 1936-1937
integrou a Comissão Real sobre a Palestina. O segundo membro era Sir
Frank O’Brien Wilson (1876 -1962) oficial da Royal Navy, aposentado
estabeleceu-se como colono no Quênia. Foi voluntário na Campanha
da África Oriental da Primeira Guerra Mundial, Wilson tinha uma
grande propriedade (23.000 acres (93 km2) em Ulu, perto de Machakos
(Uganda), onde inicialmente criou avestruzes e depois criou gado.
Wilson foi um renomado jogador de críquete. Rupert Willian Hemsted
foi o terceiro membro da Comissão: “um distinto funcionário público
ex-colonial”.
84. De acordo com a Ordem do Conselho de Rodésia do Sul, de 1898, no artigo 83: O nativo podia
adquirir, manter, onerar e dispor de terras nas mesmas condições que uma pessoa que não é nativo.Vinte
e três anos depois, a resolução do Conselho Legislativo da Rodésia do Sul considerava indesejável: que
os nativos adquirissem terras indiscriminadamente devido ao atrito inevitável que surgirá com seus vizi-
nhos europeus. O juiz William Morris Carter foi nomeado para a Comissão de Terras com incumbência
de decidir como lidar com os africanos que viviam em terras da coroa não alienadas, em fazendas e mi-
nas e em cidades pertencentes a colonos brancos. A comissão tinha a missão de investigar e informar
sobre a definição de áreas onde somente os nativos poderiam possuir terras e áreas de terras destinadas
com exclusividade aos europeus.
85. COMISSÃO DE TERRAS DO QUÊNIA. HL Deb 04 de maio de 1932 vol 84 cc305-2.
https://api.parliament.uk/historic-hansard/lords/1932/may/04/kenya-land-commission
124
considera como roubadas e alienadas pela Coroa. O parlamentar fez
as estatísticas primárias sobre a minoria branca e os africanos que não
seriam nomeados. O Capitão Wilson será considerado pela população branca
e negra como representante das opiniões dos 20.000 brancos no Quênia. Nessas
circunstâncias, como o capitão Wilson está nessa posição, acho que seria considerado
um ato de simples justiça que alguém fosse nomeado para representar o ponto de vista
dos 2.500.000 africanos.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
125
descrevia a prática de reunir as “evidence natives” em “barazas”
ou assembleias na qual os funcionários britânicos solicitavam a
concordância dos “nativos com as declarações feitas e entediam que
estas expressavam e representavam o sentimento geral da tribo”.
126
importante, vital para os Gikuyu e Kenyatta foi elevado à condição de
porta-voz das reclamações:
... perante mais de uma Comissão Real em matéria de terra. Uma foi a
Hilton Young Commission de 1928-29, e um segundo foi o Comitê Conjunto sobre a
União Mais Próxima de África Oriental, em 1931-32. Antes deste Comitê eu era
delegado para apresentar um memorando em nome da Associação Central de Gikuyu.
Em 1932. Dei depoimento em Londres perante a Comissão de Terras do Quênia
Morris Carter, que apresentou seu Relatório em 1934.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
127
quando os grupos étnicos mais populosos ultrapassaram suas reservas,
inclusive ultrapassando as reservas atribuídas e cobiçaram os territórios
dos colonos agricultores europeus nas “terras altas brancas” e os de
tribo menos populosas. Parsons (2011) mostra os esforços coloniais
em Quênia para determinar as fronteiras tribais físicas e imaginárias,
o que no final da era colonial mostraria que as identidades eram “mais
flexíveis, adaptáveis e informais do que as etnografias coloniais com
foco tribal ou a literatura acadêmica sobre a formação da identidade
sugeria”, assim, as contestações à “geografia étnica oficial do regime
imperial era quebrada por uma criativa e específica da comunidade”.
(PARSONS, 2011, p. 491).
(1) Se uma tribo sofreu perda por alienação de parte do seu território, - tem
o direito a ser indenizada por patrimônio. Mas a compensação pode ser devidamente
avaliada de acordo com a extensão da verdadeira perda sofrida, isto é, de acordo com
o grau de uso que foi feito da terra e a finalidade a que serviu, seja no momento da
alienação ou como uma reserva razoável para expansão futura. Nós não podemosa
ceitar o princípio de que, porque uma tribo perdeu terras, é necessariamente e de
direito receber igual ou equivalente terra em outro lugar, independentemente dessas
considerações (RKLC, p. 18).
128
etnografia descreve os Gikuyu - povo de agricultores que dependiam
inteiramente da terra para suas necessidades materiais, espirituais e
mentais. Essa importância da terra e do sistema de posse mostrava-se
cuidadosa e ceremonialmente estabelecida nos casamentos, nos rituais
de iniciação, que eram regidos pela lei costumeira sobre a posse da
terra. Cada unidade familiar tinha direito à terra e cada tribo defendia
coletivamente as fronteiras dos seus territórios. As melhores terras
foram retiradas dos Gikuyu; a administração decretou a obrigação de
pagar impostos, negou suas capacidades de cultivar a terra e foram
acusados de destruir as florestas.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
129
(KENYATTA, 1938, p. 32). As relações familiares são ressaltadas a
partir dos atos de compartilhamento das terras ; a venda não podia
ser feita sem consulta e levava em mente as necessidades da famíia.
A passagem que ocorre na terra é de um homem para os seus filhos
que são investidos no nome do clá. “Portanto, não existe propriedade
tribal. Não se estabeleceu uma chefia particular e não contempla que
grupos de chefes tenham poder sobre outras terras, além das terras
dos seus próprios grupos familiares”. (KENYATTA, 1938, p. 34).
Nas disputas de terra a decisão não corresponde ao chefe, mas a um
conselho (Kiama) formado por anciãos que conduzem as transações,
em consonância com os princípios e decoro da ética Gikuyu.
91. Para um aprofundamento sobre a questão das lutas travadas por este movimento, classificado como
uma revolta camponesa, consulte-se: Barnett, Donald L. and Njama, Karari – Mau Mau from Within-
-Autobiography and Analysis of Kenya’s Peasantd Revolt. New York and London. Modern Reader
Paperbacks Edition/Monthly Review Press. 1970
130
pois admitia-se que as terras da Coroa no Protetorado de Kenya, o
regime de reservas e a ação missionária eram legítimas. O tema da
excisão clitoridiana, por sua vez, situava-se no campo minado da
cultura, da civilização e do primitivismo. Pensando nos problemas
abordados pela sociedade colonial é preciso citar Bourdieu (1989, p. 35)
que afirma que “cada sociedade, em cada momento, elabora um corpo
de problemas sociais tidos como legítimos, dignos de serem discutidos,
públicos, por vezes oficializados e, de certo modo, garantidos pelo
Estado”. O antropólogo africano e Gikuyu é conduzido para essa
discussão acadêmica, assim como necessitou produzir esclarecimentos
diante do público europeu e da igreja.
92. Então Kenyatta era o Secretario da Associação Central dos Kikuyu que havia sido criada em 1925.
Beck referiu sobre o giro colonial discreto, o que tinha ilação com a presença de Kenyatta em Inglaterra.
Esse giro foi dado com a promulgação da doutrina da “ Supremacia do Nativo”, declarada pelo governo
britânico em 1923.
“It contained the famous statement that Primarily Keynesian African territory and His Government
think it necessary definitely to record their considered opinion that the interests of the African natives
must be paramount and that if and when those interests and the interest soft he immigrant races should
conflict the former should prevail. See Indians in Kenya Parliamentary Papers 1923) xvii
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
131
do governo, representação dos Gikuyu nos municípios, nos conselhos,
na administração Kikuyu. O assunto da circuncisão estava na pauta da
Associação Central dos Gikuyu, pois tinha implicações nas relações
com a igreja escocesa. O argumento trazido por Kenyatta aos membros
da igreja escocesa sobre a insistente questão de abolir o costume da
circuncisão feminina e fazer isto de uma vez, foi respondida por ele com
o argumento de que uma educação gradual podia parar com o costume
e não desejava romper as relações entre a Associação e as Missões. Aos
olhos da autoridade da igreja93 (Mr. Barlow) Kenyatta representou
uma surpresa pois foi muito “flexível” e se ajustou ao ambiente urbano
moderno, sem aparentar tensão e desconforto e ainda sua “fala era
suave, quase totalmente sem o sotaque africano”. (BECK, 1966, p.317).
Muito difícil entender que são os povos diretamente envolvidos que
podiam tomar posições e decisões sobre esse ponto espinhoso, ou
ainda sobre a poligamia. Os temas e problemas tinham enunciados
diferentes e os problemas da antropologia são políticos e polêmicos.
Kenyatta sobre esse campo de relação com os colonizadores teria dito:
132
modelo funcionalista do seu mestre. Celarent sinaliza que o livro de
Kenyatta é “na superfície um exercício operante no funcionalismo
de Malinowski, existem capítulos sobre parentesco, posse da terra,
economia, educação, iniciação, sexo, casamento, governo, religião,
nova religião e magia’.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
133
Os missionários da Consolata no Quênia ascenderam conflitos
entre os Gikuyu. Araújo (2007) examina que nos textos escritos
pelos Missioni Consolata não evidenciam os conflitos e ao analisar
o período da guerrilha Mau Mau destaca que as missões deixaram de
ser frequentadas pelos Kikuyu e, após seu esmaecimento, houve uma
explosão do número de fiéis. (idem, p. 2).
134
que produziu relevantes interpretações críticas sobre o colonialismo e
a escravidão. Grátis (2017) o elevou a “campeão do anticolonialismo,
do nacionalismo africano, do pan-africanismo e da unidade de todos
os povos afrodescendentes ao redor do mundo. Junto com outros
líderes como Kwame Nkrumah (Gana), Patrice Lumumba (República
Democrática do Congo) e Julius Nyerere (Tanzânia).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
135
de comunidade imaginada (ANDERSON, 2008). Kenyatta é o
símbolo, mito e herói da nova nação chamada Kenya. Em Facing
Mount Kenya recusa o domínio colonial e critica ferrenhamente a
interpretação dos europeus que estabeleceram o regime comunal ou
propriedade tribal nas reservas. Nesta tese e em outros livros ataca
“Essa nova terminologia da posse da terra que os britânicos impuseram
e afastou os proprietários originais da terra. Os Gikuyu perderam a
maior parte de suas terras através desse mandato”. Diferente de
outros povos, afirma Kenyatta, o “país Gikuyu nunca foi totalmente
conquistado pela força das armas, mas as pessoas foram colocadas sob
o domínio implacável da Europa imperialista através da malandragem
insidiosa da hipocrisia dos tratados.(KENYATTA, 1938, p. 47). Após
a independência a ordem politica, social e econômica dentro da nova
nação passou a ser controlada pela etnia Gikuyu. As relaçoes de
poder foram organizadas, de tal maneira que mostraram negligência
para reconhecer as terras reivindicadas pelos Mau Mau e de trabalhar
sistematicamente para promover o apagamento do referido grupo.
Políticas de reforma agrária não resolveram e no pós-descolonização as
políticas de distribuição de terras (e águas) foram limitadas. O ditado
popular citado por Kenyatta (1938, p. 46) que expressava o desejo dos
Gikuyu “Gotire ondo wandereri, nagowo Coomba no olainoka”, que significa
“que não existe coisa mortal ou ato que vive para a eternidade”, os
europeus, irão sem dúvida, eventualmente voltar ao seu próprio
país” não se cumpriu, pois a neocolonização assentou novas bases.
Nguguiwa Tiongo escreve em Gikuyu o livro
El Diablo en La Cruz no qual penetra na urdidura da colonização,
descolonização e neocolonização.
136
de cambiar las leyes de la naturaleza, lo que la doblega a las necesidades de nuestras
vidas, en lugar de permanecer esclavos de ellas. Es por esto por lo que en Gikuyu
también se sentencia: cambia, porque las semillas de una sola calabaza no son siempre
iguales. (pág.64)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
http://home.uchicago.edu/~aabbott/barbpapers/barbkenya.pdf
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
137
HANSARD. UK.
https://hansard.parliament.uk/Commons/1933-03-08/
debates/8bcdb7e8-6a25-4a98-a652-d7afcfa14e44/Roads(Expenditure)
138
REPORT of The Kenya Land Comission. (Sept. 1933). London/
Kenya. Published by his Majestis Stationery Ofice, 1934. (639 p.).
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
139
Povo Endorois e Luta pelo Território.
No Quênia, entre os anos 1973 e 1986, o povo Endorois, que vive nas
proximidades do Lago Bogoria, na região centro oeste do país, havia
sido forçado a se deslocar do seu território em razão da criação de uma
reserva ambiental pelo governo. Diante das restrições administrativas,
a falta de acesso a lugares e a recursos antes utilizados impactou
negativamente a sobrevivência física e cultural do povo Endorois, cujos
membros foram privados de ritos religiosos e práticas culturais e de
áreas propícias ao pastoreio e ao plantio. A inércia do estado queniano
em reconhecer e assumir tais efeitos levou a Comissão Africana de
Direitos Humanos e dos Povos (em inglês ACHPR) a analisar o caso.
140
ANTROPOLOGIA DO SUDÃO: RAÍZES HISTÓRICAS
DE UMA DISCIPLINA EM SUAS RELAÇÕES COM O
MISSIONARISMO E COM O COLONIALISMO DO
CONDOMÍNIO ANGLO EGÍPCIO
Suellen Precinotto95
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
141
Esse apontamento do autor é sintomático de um hábito estabelecido
entre os etnógrafos, de defender a escrita etnográfica diante de gêneros
de escrita anteriores e menos especializados, como os diários de viagem,
memórias pessoais, matérias jornalísticas e descrições de missionários,
colonizadores, oficiais coloniais entre outros.98 A palavra “Ciência”
grafada em seu texto com inicial maiúscula não é uma simples convenção
de escrita adotada por Malinowski, mas aparece como uma escolha,
que coloca a antropologia/etnografia no mesmo patamar das ciências
exatas, naturais e biológicas, conferindo-lhe o crivo da autenticidade
científica passível de comprovação através de realidades empiricamente
observadas. Embora não suplantasse os outros gêneros de escrita, a
“etnografia profissional” surge para usurpar sua autoridade e “consertar
seus erros”.99 Ainda pode-se apontar o uso da palavra “laboratório”
como metáfora para o campo etnográfico, no qual se defendia a
utilização de uma metodologia distintiva, empregada para comprovar
generalizações comparativas, conferindo considerável sucesso aos
novos métodos das ciências sociais, que garantiu atenção até mesmo do
público intelectual e literato em geral, para além da sociologia.100 Exemplo
disso são as menções aos trabalhos de missionários e viajantes feitas
pelos antropólogos-etnógrafos. apenas para evidenciar uma suposta
superficialidade ou para apontar seus equívocos. Mary Louise Pratt trata
deste assunto com deliciosa ironia ao apresentar o ego do antropólogo,
que se coloca como autoridade última, como um “sério cientista”, único
passível de credulidade a respeito de povos “exóticos”.101
G. Writing culture: The poetics and politics of ethnography. Los Angeles: University of California
Press, 1986, p. 27. Do original: “The time when we could tolerate accounts presenting us the native
as a distorted, childish caricature of a human being are gone. This picture is false, and like many other
falsehoods, it has been killed by Science.” (tradução minha).
98. Ibid, p. 28.
99. No decorrer deste capítulo, a palavra etnografia será utilizada para se referir apenas ao gênero de
escrita dos antropólogos ditos profissionais, enquanto que os trabalhos advindos de outras áreas do
conhecimento – como aqueles produzidos por missionários ou funcionários da administração colonial
– serão tratados com outras nomenclaturas, para melhor diferenciar a que tipo de obra estamos nos
referindo.
100.STOCKING JR, G. The ethnographic sensibility of the 1920s and the dualism of the anthropological
tradition. In: STOCKING JR, G (Ed.). Romantic Motives: essays on anthropological sensibility. United
States: The University of Wisconsin Press, 1989, p. 210.
101.PRATT, op. cit, p. 28.
142
Diversos autores têm se dedicado nas últimas décadas a discutir
as relações entre antropologia e missionarismo em contextos coloniais,102
e levantam alguns pontos que nos são essenciais para apresentar o
cenário dessa relação. Em primeiro lugar, é importante apontar que no
decorrer dos vários séculos de expansão capitalista europeia, e o rápido
crescimento econômico desse continente – através do comércio, das
guerras, do trabalho missionário, do colonialismo e da pesquisa, ou seja,
da exploração de sociedades outras, - diferentes diálogos intelectuais
se tornaram possíveis. Ao mesmo tempo, os “Outros” (aqueles
sujeitos subalternos, diminuídos pela cultura eurocêntrica) tornaram-se
visíveis,103 ainda que representando um papel secundário, sujeitos da
intervenção da tutela europeia, do “dever de civilizar” que os impérios
acreditavam ter. Nesse processo, o papel do antropólogo surge e se
torna central na discussão e análise deste Outro; no entanto, seu método
de trabalho variou muito no decorrer de cerca de meio século, no qual
a disciplina se consolidou.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
143
Uncivilized Lands, criada em 1874. Enquanto influente membro de seu
comitê editorial, Tylor esperava que o acesso ao periódico pudesse
melhorar a qualidade do material que era reportado por exploradores,
missionários e administradores interessados nas questões do império
britânico.106 Eriksen e Nielsen também indicam que, apesar da extensão
e embasamento empírico e teórico dos trabalhos coletados por
membros do corpo colonial (administradores, militares e missionários),
a variedade na qualidade e a ampla gama de objetivos de seus autores
(ao que Radcliffe-Brown chamaria mais tarde “história conjectural”),
tornavam seus textos repletos de especulações e levantava inúmeras
dúvidas ao leitor mais crítico.107
106. Idem.
107. ERIKSEN e NIELSEN, op. cit, p. 24.
108. STEWART, S. Antipodal expectations: notes on the formosan “ethnography”of George Psalmanazar.
In: STOCKING JR, G. (Ed.). Romantic Motives: essays on anthropological sensibility. United States: The
University of Wisconsin Press, 1989, p. 67.
109.STOCKING JR, op. cit, 1989, p. 210.
144
outro lado podem ainda se beneficiar do conhecimento antropológico
para as atribuições de seu ofício.110 Isso em vista, este capítulo discutirá as
imbricações entre antropologia e missionarismo em contextos coloniais,
no sentido de entender as complexas tramas envolvidas no fazer da
situação colonial, além de compreender o surgimento da antropologia
como disciplina independente no corpo de estudos das ciências
sociais europeias. Para tanto, utilizaremos o caso do condomínio anglo
egípcio como representativo desse momento, uma vez que se entende
a consolidação da antropologia britânica como um dos produtos do
imperialismo em África. Para além disso, o constante diálogo – seja ele
amigável ou hostil – entre antropólogos e missionários pode ajudar a
desenhar um pano de fundo que dê sentido ao poderoso artifício criado
pelo escritório colonial britânico no Sudão, que fez uso de variadas
formas de conhecimento e contato com os povos tradicionais sudaneses
para aumentar suas esferas de influência e efetivar o controle sobre
essas populações. Para observar tais questões, o periódico Sudan Notes
and Records (que será explanado adiante) aparece como um importante
instrumento de disseminação ideológica, de disputas, de consensos
políticos, entre outros aspectos fundamentais para a manutenção e
reprodução do aparato colonial.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
145
dessa incursão colonial, que duraria até a emancipação do Sudão,
em 1956, incorporou sob sua administração uma diversa gama de
territórios, criando o mais extenso estado da África. Reconhecendo a
diversidade populacional do vasto território, as autoridades britânicas
criaram distintas formas de administração, com base na ideia de que
um maior domínio colonial apenas se efetivaria através de um controle
estrito. As diferentes identidades sudanesas, atuantes em sua pluralidade,
começaram a emergir enquanto um problema para as autoridades
coloniais, que estabeleceram a organização das muitas etnias sudanesas em
categorias binárias e estanques, como “nortenhos”/“sulistas”, africanos
/árabes, nilóticos/equatoriais, independentemente da complexidade
local de cada grupo étnico.112 Tais categorias foram reproduzidas
sistematicamente por organizações de auxílio internacional, jornalistas,
sociedades missionárias e, sem dúvida, por antropólogos, – quem ao
passo que buscavam o reconhecimento das minorias sudanesas e de suas
distintas identidades étnicas, acabaram por auxiliar (conscientemente ou
não) para a efetivação do controle político através dessas categorias e,
como consequência, contribuindo para o sofrimento gerado por tais
divisões.113
146
Nos anos que seguiram, a “política do sul” foi inaugurada. O medo de
que a ideologia revolucionária do mahdi, ainda ressonante no Sudão,
se espalhasse por todo o país (e dificultasse o efetivo controle), fez
com que os britânicos – que eram governantes virtuais tanto do Egito
como do Sudão – passassem a atuar pela exclusão da influência árabe-
muçulmana das províncias do sul. Desencorajavam o ensino e o uso do
árabe, e proibiram o uso de sua indumentária típica, a que chamavam
“vestido árabe”.116 Para impedir o espalhamento do islã pelo sul, retirou-
se gradativamente da região as tropas e os traficantes de escravos (os
jellaba) do norte, passando a se recrutar localmente a partir de 1907.117
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
147
primária e saúde básica.120 Nesse ínterim, o sul recebeu muito pouco:
o estabelecimento de suas fronteiras internacionais e a permissão do
assentamento de comunidades missionárias, enquanto que ao mesmo
tempo servia como espécie de jardim zoológico para turistas europeus
e americanos.121
148
oeste, são atribuídos a uma mistura de desconfiança natural, baseada
na amarga experiência de dias passados, sentida por esses selvagens a
respeito de qualquer governo”.125 A complacência de MacMichael para
com os efeitos do colonialismo britânico e de suas políticas no sul é
impressionantemente cínica, o que leva Deng a compará-la às narrativas
antropológicas, as quais serão discutidas em breve.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
149
britânicos decidiram reunir artificialmente norte e sul e pressioná-los
pela independência, a fim de minar a influência egípcia na região.129
150
missionários, existia um forte sentimento moral e religioso de que era
errado deixar o sul vulnerável à influência islâmica do norte. Apesar
de muitos oficiais britânicos que serviam no sul serem contrários à
expansão da autoridade missionária, sua maioria era também cristã, e
para eles a ideia de um sul tornado cristão era um pouco mais simpática
do que a de um sul muçulmano.133 Assim sendo, as políticas britânicas
para o sul foram marcadas fortemente pela influência da política religiosa
(o que ocasionou inclusive conflitos entre missionários católicos e
protestantes).134
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
151
e a influência do cristianismo e da cultura ocidental haviam reforçado
a identidade distinta para o sul, apesar de a sociedade sulista oferecer
também resistência a esses processos.136 À época da independência, em
1956, estava evidente a falha do condomínio anglo egípcio em garantir
um estado unitário a seus sucessores. Como se não bastasse a guerra civil
em plena atividade, a entrega do governo aos sudaneses se deu em meio
a um verdadeiro caos jurídico. Os nacionalistas sudaneses culpavam os
britânicos pelo atraso do sul no auxílio ao desenvolvimento do estado
moderno sudanês, culpando também as sociedades missionárias pelo
encorajamento da oposição criada pelo aparato do governo.137
152
Tomando o cuidado necessário de evitar marcar essas categorias
com definições rígidas, é importante ressaltar que uma história do
pensamento antropológico séria deve considerar os efeitos da sensibilidade
missionária para o desenvolvimento de sua disciplina, afinal os relatos
missionários tornaram-se gradativamente mais volumosos a partir da
segunda metade do século XIX.140 Para Achille Mbembe, a ideologia da
“missão civilizadora” do cristianismo em África não consistia em pensar
o ser humano de forma global, mas legitimar a missão de imposição e
reconhecimento do dito ocidente como centro universal do sentido,
único capaz de formular discursos sobre qualquer assunto, religioso ou
secular.141 Assim sendo, a introdução do cristianismo nas sociedades
negras africanas se insere na lógica da conquista, capaz de alcançar os
sujeitos (aqui não se permite a categoria indivíduo aos africanos), através
da religião e da submissão destes às tecnologias coloniais de poder.142
Procura-se pensar, então, o caso específico do Sudão a partir do papel
da religião enquanto transformadora da realidade colonial, seja através
da alfabetização, do catecismo ou do jugo ao trabalho, entre outras
formas de controle religioso. No Sudão, os missionários – especialmente
italianos, organizaram-se em torno de um tripé formado pelo apoio dos
britânicos, pela associação aos grupos de resistência antiescravista e pelo
combate ao mahdismo, garantindo a sobrevivência da igreja durante
todo o processo colonial anglo egípcio.143
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
153
disciplina”.144 Na escrita da história do mahdi e de seus ansares, a igreja
católica fez questão de manter um “saber descritivo e contextualizador”
dos povos sudaneses, que foi reforçado pelo periódico missionário
Nigrizia.145 O olhar dos missionários, embasado nas diferenciações que
a Mahdiyya operava na vida cotidiana, e em um olhar racialista próprio
dos europeus, deu destaque a nomeclaturas tais como “bárbaro,
ansar, negro, árabe, branco”, criando categorias que serão apropriadas
pelo racismo das políticas de normatização da administração anglo
egípcia.146 No contexto do condomínio, o missionarismo cumpriu um
papel estratégico no processo de mediação, responsável pela condução
de uma narrativa sobre o que teria sido a Mahdiyya, pois afinal fora a
única instituição “confiável” a testemunhar o mahdi. Isso possibilitou
hierarquizar a inserção de diferentes populações na ordem colonial. A
educação missionária atuou nesse sentido, de preparar as populações
“negras e não árabes” do sul para os trabalhos agrícolas e manuais,
enquanto que a educação no norte dedicava-se a formar futuros
membros da administração colonial “conjunta”.147
154
colonial anglo egípcio. Santos atesta ainda que:
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
155
Lienhardt levantou algumas questões pertinentes ao desafio da tradução
dos termos em que viviam as populações relatadas, fundamental para a
representação verossímil de realidades distintas às dos leitores:
152. Idem. Do original: “Thus there were just enough parallels between Catholic and social doctrine for
the Christian message not to appear entirely new, but...If Dinka accepted the Christian miracles, why
should they reject similar miracles attributed to great religious leaders in their own tradition? Why leave
their own established religious leaders who called upon their people to become reconciled with God and
each other, who made blood sacrifices to cleanse them from sin, who often called for peace, in order to
follow others with a similar message?” (tradução minha).
153. BERMINGHAM, J.; COLLINS, R. The thin white line. In: COLLINS e DENG, op. cit, p. 172.
154.Ibid, p. 174.
156
a popularidade entre seus conterrâneos com grande sucesso. Passou
então a organizar o evangelismo cristão, de forma que pudesse
conquistar também os administradores, pondo fim ao preconceito
contra missionários em um universo de populações fundamentalmente
muçulmanas.155 Gwynne jogava futebol com as tropas e golfe com o
Sirdar. Aliou-se aos grupos britânicos durante suas primeiras décadas
no Sudão, conseguindo assim garantir o apoio de Wingate. Em um livro
de anotações de Gwynne, datado provavelmente do início dos anos de
1950, o reverendo aponta
155.Ibid, p. 175.
156. SCHOETTLER, G. The genial barons. In: COLLINS e DENG, op. cit, p. 129. Do original: “I have
spent nearly half a century in Africa and [have] witnessed, through a splendid administration run for
the most part by British in the Sudan and by the sacrificial lives and work of missionaries of different
Churches and denominations, the development spiritually morally and physically of the African which
is well on the way to make him an equal partner in the development of their race and country.” (tradução
minha).
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
157
respondendo à nossa liderança. Mas que se nós, por fraqueza, pelo desejo de evitar ferir
os sentimentos das pessoas, reforçarmos a podridão, perderemos nossa posição até que
finalmente seu escritório com seus funcionários Ingleses e arquivos perfeitos não terá
nada mais a fazer a não ser registrar concisa e corretamente sob os títulos apropriados
(cópias para todos os governadores e chefes de departamentos) o fim dessa boa vontade
dos governados para com os governantes.”.157
158
comandado por oficiais britânicos falantes de inglês e praticantes do
cristianismo. O grupo substituiria as guarnições do norte alocadas nas
províncias do sul que, de acordo com as autoridades britânicas, teriam
sido responsáveis pela penetração do árabe e do islã no sul. Com isso,
Wingate não só preveniria o sul da influência islâmica, mas também
criava uma reserva militar que poderia ser usada contra o norte em
caso de necessidade.160 À altura de 1918, a maioria das tropas do norte
haviam deixado o sul; além disso, o domingo substituiu a sexta-feira
como dia de adoração oficial. Mais de uma década depois, a política para
o sul do sucessor de Wingate, Harold MacMichael, ampliou o sistema de
separação entre norte e sul, principalmente ao adicionar comerciantes,
professores e técnicos administrativos do norte na lista daqueles que
não eram considerados bem-vindos no sul.161
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
159
isso, a Austrian Catholics e a American Presbyterians abriam escolas em
Khartum, essa última apelando às crianças de expatriados cristãos
britânicos, e a primeira a crianças que haviam sido retiradas da condição
de escravidão.164 Em 1902, sentindo perder espaço para esses outros
grupos, a Church Missionary Society decidiu entrar na corrida educacional.
A estratégia dos missionários dependia da conversão e da formação de
cada vez mais cristãos, pois uma vez que se multiplicassem, a mensagem
cristã viajaria aos cantos mais remotos do Sudão. O meio através do
qual esse objetivo foi colocado em prática foi a Escola Missionária.165
Para tanto, priorizam a educação de meninas, uma vez que as outras
entidades missionárias haviam se encarregado da educação de meninos.
164. SHARKEY, H. Christians among Muslims: the Church Missionary Society in the Northern Sudan.
In: The Journal of African History, v. 43, n. 1, 2002, p. 58.
165. BERMINGHAM e COLLINS, op. cit, p. 187.
166. Ibid, p. 188.
167. Idem.
160
no futuro, e não dimensionar o valor da escola a partir do número de
garotas que mandamos à Central School para o ensino superior”.168
168. Ibid, p. 189. Dos originais: “It is then our aim to prepare the women of the Sudan to take their
places and fulfil their appointed task in the Christian Sudan of the future” e “I fell our aim ought to
be fit them for the lives we know they will have to live in the future, and not to count the value of the
school from the number of girls it sends on to the Central School for higher education.” (tradução
minha).
169. Ibid, p. 189-190.
170. SHARKEY, op. cit, p. 56.
171.Idem.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
161
coordenação de uma resistência anticolonial e antibritânica, foi mantido
o afastamento dos missionários dessas localidades.
172. BOURDIEU apud COMAROFF, John; COMAROFF, Jean. Images of Empire, contests of con-
science. In: ______. Ethnography and the historical imagination. United States: Westview Press, 1992,
p. 184.
173. COMAROFF e COMAROFF, op. cit, p. 184.
174. Idem.
175. MAIR, L. Malinowski and the study of social change. In: FIRTH, R. (org.) Man and culture. An
evaluation of the work of Bronislaw Malinowski. London: Routledge & Kegan Paul, 1957, p. 230.
162
“CONHECIMENTO É PODER, NA ÁFRICA E EM TODO
LUGAR”: A ETNOGRAFIA ENQUANTO FONTE DE
CONHECIMENTO COLONIAL
176. BODDY, J. Anthropology and the civilizing mission in colonial Sudan. In: Association of Social
Anthropology, 2008, p. 08.
177. Ibid, p. 10.
178. COHN, B. History and Anthropology: The state of play. In: An Anthropologist among the Historians
and other essays. Delhi: Oxford University Press, 1987, p. 19-20.
179. Idem. Do original: “...the missionary, the trader, the labour recruiter or the government official
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
163
No caso do condomínio anglo egípcio, os antropólogos não
foram designados apenas ao dos sistemas políticos e “leis tribais”. As
políticas a respeito da religião, educação e família eram geralmente
delegadas pelos governantes da África colonial às sociedades
missionárias. Em resposta, os antropólogos fizeram estudos aplicados
a respeito da influência cristã, sobre as economias do dote de noiva, e
sobre os impactos do trabalho migratório na vida familiar.180 Também
protagonizaram “estudos teóricos” sobre os complexos institucionais,
como as cerimônias de iniciação, bruxaria, tabus dos clãs e sistemas
de linhagem. Os missionários não apareceram nesses textos, exceto
como “espantalhos” que tinham uma visão moralizante das práticas
africanas.181 No final da década de 1920, a antropologia social britânica
foi inteiramente reconstruída, devido às trocas sociais e intelectuais de
diferentes acadêmicos da antropologia e de outras áreas, missionários e
funcionários do governo colonial. Houve ainda um segundo momento
circunstancial, qual seja a “revolução malinowskiana” ocorrida na década
de 1930, na qual a defesa do trabalho de campo fez por colocar seus
estudantes em contato direto com agentes da administração britânica
em diferentes colônias na África.182
arrives with the bible, the mumu, tobacco, steel axes or other items of Western domination on an island
whose society and culture are rocking along in the never never land of structural-functionalism, and
with the onslaught of the new, the social structure, values and lifeways of the ‘happy’ natives crumble.
The anthropologist follows in the wake of the impacts caused by the Western agents of change, and
then tries to recover what might have been. The anthropologist searches for the elders with the richest
memories of days gone by, assiduously records their ethnographic texts, and then puts together between
the covers of their monographs a picture of the lives of the natives of Anthropologyland.” (tradução
minha).
180. KUPER, A. Alternative histories of British social anthropology. In: Social Anthropology, v. 13, n. 1,
2005, p. 55.
181. Idem.
182. DE L’ESTOILE apud KUPER, op. cit, p. 52.
164
se tornou, a partir da década de 1930, interlocutor do escritório colonial,
cuja maior preocupação era a manutenção do controle da colônia.183
Nesse caminho, os governantes que estavam em busca de cientistas
sociais capazes de auxiliá-los no processo de instauração do governo indireto,
encontraram-se com as ambições do referido instituto e de Malinowski,
que se aproveitaram da oportunidade. Nesse período, nomes conhecidos da
antropologia britânica passam a exercer funções administrativas no governo
anglo egípcio, tais como Marjory Perham, Sally Chilver, Lucy Mair e Audrey
Richards,184 e aproveito para incluir também Edward Evans-Pritchard, que
terá espaço dedicado no tópico seguinte deste capítulo.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
165
dos Estados Unidos, como o Laura Spelman Rockefeller Memorial.187
A organização filantrópica contribuiu em grande parte para o
estabelecimento das ciências sociais britânicas, selecionando a London
School of Economics para financiamento em 1924. A escola nesse momento
já era central no desenvolvimento institucional da antropologia social
britânica.188 Vinte anos antes, em 1904, já havia ofertado um curso de
“etnologia”, o qual de acordo com seu ministrante, A. C. Haddon, era
esperado que interessasse “funcionários civis destinados às porções
tropicais do império, junto com os missionários”.189
166
Por outro lado, e muito no sentido contrário da experiência missionária,
boa parte dos antropólogos do cenário do condomínio anglo egípcio
tinha um histórico pessoal que de certo modo os alineou em sua relação
com a sociedade que estudavam: pouquíssimos passaram muitos anos
em campo, como o caso de filhos de diplomatas, oficiais do governo ou
missionários.193 Além disso, a respeito da formação do oficial padrão
da Sudan Political Service, cerca de 11% possuía formação em ciências
sociais.194 Porém, essa formação dos aspirantes à carreira da administração
colonial era bastante breve, nada próxima de uma especialização formal
ou carreira acadêmica (os cursos de Marjory Perham em Londres são
o maior exemplo dessa formação). Afirma-se por isso, que o Sudão fez
os antropólogos e não o contrário, até porque muitos dos membros da
Sudan Political Service foram indicados ao cargo independentemente de
sua formação (ou ausência dela).195
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
167
um importante papel durante os anos iniciais do condomínio. A maior
parte desse material era puramente administrativo (diários de patrulha,
relatórios sobre revoltas e motins, descrições de turnos de inspeção,
etc),198 mas colaborou para a disseminação de informações de cunho
etnográfico, uma vez que era o único material em circulação na colônia.
Dentre os corpos administrativos da Sudan Political Service, o primeiro a
produzir material de conteúdo etnográfico teria sido o Departamento
de Educação que, sob os comandos de John Crowfoot, teria apoiado o
Wellcome Tropical Research Laboratories, além de fornecerem treinamento
antropológico para membros da administração colonial na Inglaterra.199
168
que objetivava a obtenção de poderes que foram considerados pela
administração como “extraexecutivos” mas, ao ter seu pedido negado,
Willis enviou o relatório para a SNR, que foi aceito como um artigo de
descrição etnográfica.203
203. Idem.
204. Ibid, p. 324.
205. Idem.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
169
inexistente um exemplar no qual não haja contribuições de membros
da Service.206 Inicialmente, as contribuições científicas para o periódico
foram fartas, já que o comitê editorial tinha facilidade em identificar
potenciais contribuidores para a SNR. O primeiro número, lançado em
janeiro de 1918, continha um prefácio (escrito pelo então governador-
geral do Sudão, general Wingate207) e cinco artigos. Esses artigos foram
contribuições de autores do corpo militar e de membros da Service
(como os casos de Wingate, do major C. H. Stigand, W. Nicholls e H.
MacMichael), e de dois autores considerados especialistas (o professor
de arqueologia G. A. Reisner e o supracitado Hillelson, também
arqueólogo). Os números subsequentes do periódico têm por sua
vez o acréscimo cada vez maior de antropólogos especializados sem
nunca, apesar disso, abandonar os textos de autores não-especializados
(missionários, militares, administradores, etc).
170
foi o único material dedicado ao estudo acadêmico do Sudão,208 o que
por si só denota a importância que o periódico adquiriu no contexto do
condomínio anglo egípcio. Isso em vista, e a partir da crescente utilidade
do material de cunho intelectual às atividades político-administrativas,
em 1922 a SNR passou a ser publicada semestralmente, e no ano seguinte,
devido a questões logísticas, passou a ser impressa pela Hadarat al-Sudan
Press (Sudan Civilization’s Press).209 A partir da ideia da contratação de
um antropólogo oficial para o governo do condomínio (no final da
década de 1920), citada anteriormente, o número de artigos voltados
à antropologia e à etnografia aumentou consideravelmente, ganhando
maior destaque no corpo material do periódico. Tal dado é indicado no
levantamento estatístico feito por George Sanderson, o qual indica que
durante suas quatro primeiras décadas, a SNR se voltou a estudar os
grupos da região compreendida com o sul do Sudão, aquelas partes do
território “intocadas pela cultura islâmica”, como indica Wingate ainda
em seu prefácio.210
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
171
das três áreas foram 77, 36 e 21, respectivamente. Isso indica que a
porcentagem de autores especializados em relação ao total de artigos
de cada tema foi de aproximadamente 35% no caso da antropologia/
etnografia, 27% em história e 38% em zoologia. Já dos temas de média
ocorrência (arqueologia, geografia, linguística, agricultura, medicina,
história natural e religião), nos interessa observar o tema da religião.
Constam apenas dez artigos dedicados especificamente ao tema da
religião, dentre os quais apenas cinco foram escritos por membros
do corpo missionário. No que diz respeito às temáticas da política e
história militar (que foram considerados temas de baixa ocorrência),
somam cinco o total de artigos. No entanto, é interessante destacar
os 65% indicados de autores não-especializados escrevendo sob as
temáticas da antropologia e etnografia. Dos 174 artigos (de autores não-
especializados) dedicados a estes temas, 22% provêm de membros do
corpo administrativo e da Sudan Political Service, 15% de missionários,
12% de militares, 7,5% de autores de outras áreas do conhecimento
(medicina, arqueologia, agronomia, história, etc), e do restante, não foi
possível identificar a origem profissional de seus autores. A presença
de administradores coloniais interessados na antropologia é bastante
expressiva, tornando impossível desassociar o papel intelectual da SNR
do próprio fazer colonial.
172
e da Memorial Sudan Mission (de 1927 a 1931), quem de 1926 a 1940
publicou sete artigos na Sudan Notes and Records.211
211. Os artigos em questão são: reverendo padre Sant’Andrea (The Belanda, Ndogo, etc (v. 16); Minor
Shilluk sections in the Bahr el Ghazal (v. 21); Little-known tribes of the Bahr el Ghazal (v. 29); Gleanings
in the Western Bahr el Ghazal (v. 31)) e da autoria de G. O. Whitehead (Meroitic remains (v. 9); Nagaa
and Masawwarat (v. 9); Some authors of the Southern Sudan (v. 11); Social change among the Bari (v. 12);
Italian travelers in Berta country (v. 17); André Melly’s visit to Khartoum (v. 21) e Mansfield parkyns (v.
23). Para acessá-los, basta seguir o endereço virtual para a Section française de la direction des antiquités
du Soudan, disponível em: http://sfdas.com. Último acesso em 20 de maio de 2021.
212. HAMAD, op. cit, p. 266.
213. Idem.
214. BALANDIER, G. Antropología Política. Barcelona: Ediciones 62, 1969, p. 05.
215. Ibid, p. 06.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
173
ANTROPOLOGIA DO SUDÃO E MISSIONARISMO
CRISTÃO: ENTRE A PROFISSÃO E O COLONIALISMO
174
fundamentalmente incorreria na produção de imagens enviesadas das
culturas autóctones.222 Apontam também o papel do missionarismo na
empresa colonial, mas por muito tempo esqueceram de apontar seu
próprio papel nessa empreitada. Foi somente a partir de meados da
década de 1940 que a antropologia política e social passou a questionar
a atuação da figura do antropólogo enquanto agente colonial. Em 1946
Max Gluckman frisava:
Apesar disso, seria somente a partir dos anos 1960, com a crítica
antropológica pós-colonial, com autores como Talal Asad, Adam Kuper,
George Stocking Jr, Henrika Kuklick, Johannes Fabian, Fredrik Barth,
James Clifford, Jean e John Comaroff, Clifford Geertz, Jack Goody, entre
outros, que a problematização da antropologia enquanto instrumento
de conhecimento colonial foi levada a cabo a fim de desconstruir a visão
daquele “Outro”, enraizada na antropologia a partir do início do século
XX, e que teve por base muito da experiência da situação colonial.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
175
que acabaria por entrar no caminho da administração colonial no
que diz respeito às estratégias de controle das populações sudanesas,
além de arriscar a manutenção da dissociação das fronteiras norte-
sul.224 As identidades étnicas e as relações de poder e de ocupação da
terra no Sudão ganharam diversas significações diante dos processos
de interação, acomodação, sujeição e dos enquadramentos que foram
realizados para a sobrevivência em contextos de grande interferência
política como no caso do condomínio anglo egípcio.225 As categorias
reforçadas pelo governo colonial britânico no Sudão podem ter como
uma de suas primeiras manifestações as zeribas,226 que estabeleceram
ou fortaleceram fronteiras entre diferentes povos do sul do Sudão,
concorrendo amplamente com as missões cristãs que buscavam agrupar
os grupos étnicos, principalmente os dinka, em torno do projeto
civilizatório católico, que acabou por se desfazer devido à maior adesão
desses povos à Mahdiyya, por conta do forte caráter da pregação que o
mahdi conseguiu estabelecer entre povos não muçulmanos.227
224. DE SIMONE, S. State-building South Sudan: discourses, practices and actors of a negotiated project
(1999-2013) (tese). Political Science. Paris: Université Paris 1 Pantheón-Sorbonne, 2016, p. 91.
225. SANTOS, op. cit, p. 87-88.
226. Idem. As zeribas foram fortificações utilizadas inicialmente para o estoque do marfim sudanês que
seria levado para o Egito. Porém, como aumento do tráfico de escravos, passaram a servir de local de
pouso para os escravos, e com o rendimento do negócio, os traficantes passaram a submeter as popula-
ções próximas a impostos e ao trabalho nas zeribas.
227. Ibid, p. 88.
176
“civilizacionais”.228 Cumprindo seu papel como mediadora desses
processos, a igreja criou, dentro do espaço da educação, a possibilidade
de hierarquizar as diferentes populações do Sudão nas categorias
supracitadas: às populações negras “não árabes” foram delegados os
trabalhos manuais e agrícolas, e aos muçulmanos e cristãos do norte a
integração na administração, inserindo essa forma de controle na lógica
do domínio colonial.229
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
177
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Chicago Press.
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women in South Sudan. South Africa: Fanele.
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humanitarian disaster. New York: Cambridge University Press.
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Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
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british anthropology (1885-1945) In: STOCKING JR, G. Functionalism
historicized. United States: The University of Wisconsin Press.
MAIR, L. 1957 - Malinowski and the study of social change. In: FIRTH,
R. (org.) Man and culture. An evaluation of the work of Bronislaw
Malinowski. London: Routledge & Kegan Paul.
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British contribution. In: Human Organization, v. 19, n. 3.
180
RABINOW, P. 1983 - Facts are a word of God. An essay review of James
Clifford’s person and myth: Maurice Leenhardt in the Melanesian world.
In: STOCKING JR. Observers observed. Essays on ethnographic
fieldwork. United States: The University of Wisconsin Press.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
181
States: The University of Wisconsin Press.
182
CURSOS
OBJETIVOS
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183
Lévi-Strauss, Castro Faria, Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro) que tem
como referencia empírica a Amazônia. Experiências de pesquisa de R.
Cardoso, R. de Barros Laraia, R. Da Matta, J.C. Melatti, O. Velho, M.
Palmeira, L. Sygaud, José Sérgio Leite Lopes, João Pacheco de Oliveira,
Neide Esterci, Eliane O’Dwyer e Afrânio Garcia também poderão ser
referidas.
231. Traduzido e publicado no Brasil sob o título Guia Prático de Antropologia, em 1971 pela Editora
Cultrix (SP)
184
e “relatórios” denominados de “identificação étnica” (J.Pacheco de
Oliveira, E.C. O’dwyer, T. Valle de Aquino, H. Barreto). As chamadas
“exposições” (L. Sigaud232, J. Pacheco de Oliveira233, H.B. Domingues,
A. Wagner234), que agrupam resultados fotográficos e videográficos das
práticas de trabalho de campo, também serão consideradas.
232. Sigaud, Lygia (curadora)- Lonas e Bandeiras em terras pernambucanas. Rio de Janeiro.
2002/2003
233. Pacheco de Oliveira, João (curador)- Indios. Os primeiros brasileiros. São Paulo. SESC.2007
234. Almeida, Alfredo Wagner B. de Oliveira, Murana A. (orgs)- Museus Indígenas e Quilombolas:
Centro de Ciências e Saberes. Manaus. UEA/PNCSA. 2017.
235. Harris, Marvin – El desarrollo de la teoria antropologica- una história de las teorias de la cultu-
ra. México. Siglo Veintiuno Editores.1979 (1ª. Edição em inglês, 1968).
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
185
suas modalidades próprias de uso de recursos naturais e seus atos e
modos intrínsecos de percepção de categorias (tempo, espaço, lugar) e
objetos, assim como suas formas político-organizativas de mobilização
social face aos seus antagonistas históricos e ao Estado236. Semelhante
construção descritiva, que nada tem de uma interpretação dos atos
como texto, ocorre na “confrontação contínua das experiencias e das
reflexões dos participantes” (Bourdieu, 2003:694), desfazendo a ilusão
ilusão empirista das “autoevidencias”.
APRESENTAÇÃO
186
resultados apresentamos aqui.” (Bourdieu,2003: 693), assevera Pierre
Bourdieu em “Compreender” ao término de A Miséria do Mundo.
PRIMEIRA PARTE
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
187
O curso pretende nesta parte ressaltar o aspecto dinâmico
dos recursos metodológicos. Chama a atenção para a redefinição dos
instrumentos analíticos, dos conceitos e das noções operacionais, bem
como dos procedimentos investigativos. Consoante G. Bachelard:
188
dão direito à prática profissional.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
189
conhecimento antropológico como um domínio científico.
190
BOURDIEU, P. – “Fieldwork in philosophy”. In Choses dites. Paris.
Les éditions de Minuit. 1987.
Consulta:
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
191
Columbia University Press. 1978 as “Part I: Life in W.H.R. Rivers”.
192
(Trad. em espanhol).
Consulta:
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
193
GODELIER, Maurice – Communauté, Societé, Culture. Trois clefs
pour comprendre les identités en conflits. Paris. CNRS Editions.
2009
Consulta:
194
transição). Rio de Janeiro. MEC-SD/DIN. 1961.
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
195
suas margens. Viagem aos territórios Terêna e Tukuna. Brasília.
Editora UNB 2002.
Consulta:
Consulta:
196
b) A teoria da biografia rediscutida: Os riscos do biografismo,
da “ilusão biográfica” e de confundir “reflexividade” com
“autobiografia” ou “autobiografia intelectual” (Karl Popper), com
“memorial” ou com “biografia comentada”. A definição do gênero
textual “história de vida” com acurácia e discernimento.
Consulta:
198
ANTROPOLOGIA POLITICA – Processo de
descolonização, política e identidade:
discussão de filmes e livros.
Carga horária: 45 h.
EMENTA:
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199
II - C. L. R. James – Os Jacobinos Negros- Toussaint
l’Ouverture e a Revolução do Haiti (2000) (1ª. ed. 1938)
200
Complemento: Seduto alla sua destra. Direção: Valerio
Zurlini; Itália, 1968, 90 min.
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Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
201
III)Tensão em Ruanda. Direção de Robert Favreau. 2006
202
sua familia, voltando à Alemanha no pós-guerra para atuar como juiz
em Frankfurt.
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203
8ª. SESSÃO - La Battaglia di Algeri (A Batalha de Argel).
Direção: Gillo Pontecorvo; Argélia/Itália, 1966, 121 min.
204
Entrevista de Paul Aussaresses a Leneide Duarte-Plon – “ A tortura
se justifica quando pode evitar a morte de inocentes”. Folha de São
Paulo, domingo 4 de maio de 2008)
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205
9ª. SESSÃO - Queimada. Direção: Gillo Pontecorvo; Itália,
1969, 112 min.
206
Colombres, Adolfo (ed.) – Cine, Antropologia y Colonialismo
(edición ampliada). Buenos Aires. Ed del Sol S.R. 2005.
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Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
207
(“La función del “documental”) e Jean Rouch (“El cine del futuro?”),
abrindo possibilidades para que seus próprios filmes sejam também
assistidos. Emerge um genero cinematográfico classificado usualmente
como “documentário” que corresponderia a uma descrição etnográfica
de cineastas focalizando em regiões remotas povos, cuja classificação
oscilaria entre “primitivos” e “indigenas”.
208
MATERIAL DIGITAL DE REFERÊNCIA
“Assistimos à gênese de uma nova arte. Ela cresce a olhos vistos. Desvincula-
se da influência das artes precedentes; começa já a influenciá-las. Cria suas
normas, suas leis e em seguida, com determinação, as subverte. Torna-se um
poderoso instrumento de propaganda e de educação, um fato social cotidiano,
de massa; ultrapassa neste sentido todas as outras artes.” (Jakobson, p.153).
ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
209
então, na passagem do cinema mudo para o cinema falado, e diz que “é muito
provável que exatamente a liberdade em relação à tradição facilite as pesquisas
experimentais”. (Ibid.p.161).
Haveria uma dubiedade nesta interpretação, que nos deixa a meio caminho
entre pontos extremos. Descontinuidade na continuidade ou continuidade
na descontinuidade? O cinema age contra os automatismos de linguagem:
desautomatiza a percepção e o pensamento convencionais? Cinema e ruptura
com as modalidades de percepção de objetos, pessoas e coisas?
210
por Adorno e Horkheimer em 1940-44, e também seus estudos dos anos 1950
sobre “televisão”). Vide para contraste os estudos de Bourdieu sobre televisão.
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211
Louis Marcorelles – “Rencontre avec le Cinéma Novo”. (ibid.Pp.47-54).
212
No caso chileno vide o filme: Patricio Guzman – ‘La Bataille du Chili
– Devant mês yeux a éclaté une révolution”. 1975
“clichê” = a imagem que tem alguma coisa oculta porque “todos os poderes
teriam interesse em nos encobrir as imagens” ou em “encobrir alguma coisa
na imagem” (Deleuze).
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Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
213
Para Deleuze a “imagem-movimento” é o “cinema autoreflexivo”
como o de Jean-Luc Godard e não o “cinema reflexivo” como o de Ingmar
Bergman. Godard para além do “cinema de denúncia política” empenhou-se
na sua forma mais elevada de reflexão (cf os filmes “Adeus à linguagem”,
2014, e “Imagem e palavra”, 2018).
4.1- Uma definição de neorrealismo, que não seria definido por seu
“conteúdo social”, mas por critérios formais estéticos (Bazin), que levavam
a uma “nova forma de realidade”. “... o neorrealismo visava um real, sempre
ambíguo, a ser decifrado; por isso o plano-sequência tendia a substituir a
montagem das representações. O neo-realismo inventava, pois, um novo tipo
de imagem, que Bazin propunha chamar de “imagem-fato”. Deleuze, G. – A
imagem-tempo.Cinema 2. S.P. Brasiliense. 2007. 1ª ed. Éditions de Minuit,
1985.
214
9- O “novíssimo cinema” – brasileiro, colombiano -, conjugando
sociedade de massas com crítica social, com atores dos próprios povos e
comunidades focalizados, mas com temas relacionados a toda a sociedade.
-No caso brasileiro: filmes como Cidade de Deus, Amarelo Manga, Aquarius,
Bacurau...
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Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
215
também julgou redutível, pelo menos da espontaneidade selvagem da figura
tal como ela aparece na linguagem não literária.” (Derrida, 1967; pp.330-33
216