Justiça Restaurativa No BR Limites Desafios e Possibilidades
Justiça Restaurativa No BR Limites Desafios e Possibilidades
Justiça Restaurativa No BR Limites Desafios e Possibilidades
São Leopoldo, RS
2020
DANIELA ZINI DA SILVEIRA
São Leopoldo, RS
2020
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1 INTRODUÇÃO
2018, a União disponibilizou aos Estados mais de 4,7 bilhões de reais do Fundo Penitenciário
Nacional (FUNPEN) para investimento nos respectivos sistemas prisionais; média anual de 593
milhões de reais. Mas, auditoria realizada em 2019 pelo Tribunal de Contas da União (TCU), acórdão
1542/2019, constatou que “o sistema penitenciário nacional demandaria valor estimado de R$ 97,84
bilhões para, no prazo de dezoito anos (R$ 5,44 bilhões anuais), extinguir o déficit de vagas
prisionais, reformar unidades prisionais precárias e viabilizar seu pleno funcionamento” (FBSP, 2019,
p. 204).
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2 Sobre revisão sistemática, Atallah e Castro (1998) assim a define: A revisão sistemática da literatura
é um estudo secundário, que tem por objetivo reunir estudos semelhantes, publicados ou não,
avaliando-os criticamente em sua metodologia e reunindo-os numa análise estatística, a metanálise,
quando isto é possível. Por sintetizar estudos primários semelhantes e de boa qualidade é
considerada o melhor nível de evidência para tomadas de decisões em questões sobre terapêutica.
3 Sobre os antecedentes históricos da justiça restaurativa conferir Zehr (2008; 2012), Braithwaite
(2002), Johnstone e Van Ness (2007), Walgrave (2008), Jaccoud (2005), Rolim (2006), Sica (2007),
Pallamolla (2009), Achutti (2016), entre outros.
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5 Posteriormente, Walgrave (2008, p. 21) propôs uma adaptação desse conceito para considerar a
justiça restaurativa "uma opção para fazer justiça após a ocorrência de uma ofensa que está
principalmente orientada à reparação dos danos individuais, relacionais e sociais causados por essa
infração". De acordo com o autor (2013, p. 21), essa adaptação desloca o foco da “ação” para
“opção”, pois “a justiça restaurativa não é um conjunto limitado de ações ou programas, mas, ao
contrário, uma opção que pode inspirar em diferentes graus uma variedade de iniciativas, programas
e sistemas”.
6 A síntese comparativa proposta por Walgrave – frequentemente utilizada para fins de definir a
justiça restaurativa – situa o paradigma restaurativo em relação aos outros dois modelos
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(1) cria-se o risco de que práticas que não respeitam os princípios da justiça
restaurativa sirvam para avaliações negativas do modelo e (2) dificulta-se a
avaliação dos programas, já que não se sabe exatamente o que se
pretende alcançar com eles.
7 Na virada do século XX para o XXI, a ONU adotou iniciativas de recomendações aos Estados-
membros para o desenvolvimento de sistemas alternativos de resolução de conflitos e implementação
de políticas de mediação e justiça restaurativa no âmbito da justiça criminal. Cf. Resolução n. 26, de
28 de julho de 1999, do Conselho Econômico e Social, denominada “Desenvolvimento e
implementação de medidas de mediação e justiça restaurativa na justiça criminal”.
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9 De acordo com Rolim (2006, p. 254): “pelo menos um autor importante entre os defensores da
justiça restaurativa – na verdade, um de seus precursores –, o norueguês Niels Christie, sustenta que
os processos restaurativos não devem depender da participação voluntária. Para ele, os infratores
deveriam ser obrigados a participar do processo”.
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11 Os autores destacam que o processo de busca para a revisão foi baseado em um protocolo de
busca de literatura aprovado pela Colaboração Internacional Campbell para a revisão registrada dos
efeitos da justiça restaurativa “face-to-face” – conferências presenciais entre vítima e ofensor – sobre
as vítimas de crimes pessoais. A busca, no entanto, foi ampliada para abranger outras práticas
restaurativas e outros tipos de crimes. As buscas foram realizadas em âmbito internacional, mas
limitavam-se a estudos escritos em inglês. A seleção dos estudos foi realizada a partir dos métodos
utilizados pelo National Institute of Health and Clinical Excellence (NICE) e após aplicadas as normas
do Home Office (2004), baseadas em parte na escala dos métodos científicos de Maryland
(SHERMAN; STRANG, 2007, p. 8-9).
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12 A Resolução 2002/12 da ONU contém uma cláusula de ressalva, segundo a qual “nada que conste
desses princípios básicos deverá afetar quaisquer direitos de um ofensor ou uma vítima que tenham
sido estabelecidos no Direito Nacional e Internacional” (ONU, 2002, art. 23).
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13 No original: “(...) face-to-face Restorative Justice Conference (RJC) ‘that brings together offenders,
their victims, and their respective kin and communities, in order to decide what the offender should do
to repair the harm that a crime has caused’”.
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14Morris (2005, p. 446) destaca que na Nova Zelândia, os processos restaurativos “são direcionados,
no juizado de menores, aos mais graves e persistentes infratores e, na justiça criminal comum, aos
adultos que praticaram crimes relativamente sérios”. A autora cita exemplos: “um garoto que invadiu
uma casa e estuprou uma jovem; um grupo de crianças que colocou fogo e destruiu um bloco inteiro
de uma escola; um garoto cuja vítima foi atingida na cabeça durante um roubo; um garoto cuja vítima
quase não sobreviveu ao assalto e foi deixada com um dano cerebral permanente”.
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brando, que não comporta ônus ao infrator, por isso o envio de casos de pouca ou
nenhuma gravidade para ela; essa ideia desconsidera a complexidade dos
processos restaurativos, que nem sempre são céleres, pois mais trabalhosos e
exigem grandes esforços por parte dos envolvidos.
Morris (2005) refere que há uma preocupação sobre o risco de net-widening
com práticas restaurativas que operam como parte de alternativas policiais e refere
que estudos realizados na Nova Zelândia provam não ter ocorrido esse efeito.
Dentro desse contexto, destaca-se o estudo Net-Widening and the diversion of
young people from court: a longitudinal analysis with implications for restorative
justice, realizado por Jeremy Prichard e publicado em 2010.
Prichard (2010, p. 112) realizou uma pesquisa empírica sobre o sistema de
justiça juvenil da Tasmânia, a partir da análise de mais de 50 mil registros policiais
referentes ao período de 1991 a 2002. Os objetivos do autor eram dois: i) verificar a
porcentagem de jovens infratores “desviados” dos tribunais para os cuidados
policiais e para as conferências de justiça restaurativa no referido período, como
parte do novo sistema diversivo implementado no país; e ii) se esse novo sistema
ocasionou a ampliação da rede de controle penal, ou seja, aumentou o número de
jovens em contato formal ou informal com o sistema de justiça criminal.
De acordo com os resultados apurados pelo pesquisador, em 1991, 96% dos
casos de jovens infratores foram submetidos aos tribunais, enquanto apenas 4%
foram desviados para outras abordagens. Em 2001, 81% dos casos foram desviados
e 19% foram levados aos tribunais. Para o autor, os dados sugerem que o sistema
de justiça juvenil da Tasmânia desviou um número significativo de jovens dos
tribunais através de diferentes práticas, incluindo advertências policiais e
conferências restaurativas. Como o número total de casos de jovens infratores
permaneceu estável, o autor concluiu que durante o período analisado (1991 a
2002) a expansão da rede não ocorreu – o que significa, segundo o autor, que essa
não é uma característica axiomática dos sistemas de desvio (diversion systems)
(PRICHARD, 2010, p. 125).
Por outro lado, o autor refere que, apesar de não ter ocorrido ampliação da
rede de controle, a pesquisa revelou um aumento significativo no número de ordens
de prisão/detenção emitidas pelos tribunais no período analisado (1991 a 2001). O
que indicaria a necessidade de uma nova pesquisa empírica sobre essa questão,
para descobrir o que influenciou esse aumento (PRICHARD, 2010, p. 125-126).
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15Segundo Pedro Scuro (2008, p. 164), “A saga restaurativa começou no Brasil em 1998, de início
não no Judiciário, mas em escolas públicas, como programa de pesquisa sobre prevenção de
desordem, violência e criminalidade”.
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16 Há o Projeto de Lei nº 7006 de 2006, em tramitação, o qual propõe alterações nos Códigos Penal e
Processual Penal e na Lei dos Juizados Especiais, para a regulamentação do uso da justiça
restaurativa no sistema de justiça criminal brasileiro. Pallamolla (2009) analisou criticamente o
referido projeto ressaltando a “necessidade de maiores discussões a respeito da institucionalização
da justiça restaurativa no Brasil”.
17 Pesquisas, como a realizada por Miers (2003, p. 59) sobre os programas de justiça restaurativa na
Europa, demonstram “que jurisdições que têm uma estratégia nacional a partir da qual se estrutura a
implementação a nível local são normalmente mais seguras, bem geridas e bem-sucedidas na sua
intervenção”. Em referência à pesquisa de Miers, Sica (2007, p. 81) conclui que “o êxito dos
programas depende muito da existência de linhas de orientação nacionais, visando uma uniformidade
mínima de práticas adotadas, não com a finalidade de inibir a natural flexibilidade da mediação, mas
com o objetivo de [...] diminuir ou evitar a potencial discrepância de tratamento em situações
semelhantes”. Além disso, o autor (2007, p. 82) refere que é papel do Estado como administrador da
justiça penal, o estabelecimento de critérios para o envio do caso ao programa e de regras para
recepcionar o resultado no ordenamento jurídico.
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18O CNJ contratou, por meio de Edital de Convocação Pública e de Seleção, a produção da pesquisa
“Pilotando a Justiça Restaurativa: o papel do Poder Judiciário”, como parte da 2ª edição da série
“Justiça Pesquisa”. A pesquisa foi realizada pela Fundação José Arthur Boiteux da Universidade
Federal de Santa Catarina, sob coordenação da Professora Doutora Vera Regina Pereira de Andrade
(CNJ, 2018).
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diplomas normativos, ancorado na racionalidade iluminista que já não mais atende os desafios atuais
da conflitualidade penal, verifica-se uma abordagem muito mais voltada a privilegiar os direitos e
garantias do réu. Esse posicionamento, no entanto, parece ser de cunho muito mais retórico do que
propositivo e efetivo para a limitação do poder punitivo, conforme analisado por Sica (2007) e também
por Achutti (2016).
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21 O artigo 98, inciso I, da Constituição Federal de 1988, que dispõe sobre a criação dos juizados
especiais, foi regulamentado pela Lei n. 9.099/1995, chamada de Lei dos Juizados Especiais Cíveis e
Criminais, e, posteriormente, pela Lei n. 10.259/2001, que dispôs sobre a instituição dos referidos
Juizados no âmbito da justiça federal
22 São muitas as críticas sobre o modelo “consensual” de justiça penal que as Leis dos Juizados
Especiais Criminais tentaram instituir no país, cujos institutos – da transação penal e da conciliação –
não são contemplados pelo conceito de justiça restaurativa, pelo contrário, pois foram concebidos
com objetivos utilitários de celeridade processual e desobstrução do judiciário. Esses institutos têm
sido operados “mais como formas mitigadas de punição do que de ampliação dos espaços de
consenso e de participação do jurisdicionado na administração da justiça” (SICA, 2007, p. 227-228). A
transação penal, em particular, contraria a índole consensual, pois “é apenas uma forma abreviada de
aplicar pena sem a necessária verificação de culpabilidade e sem qualquer contrapartida de
integração social e participação da vítima” (SICA, 2007, p. 227).
23 Dessa forma é possível usar a justiça restaurativa para a resolução de crimes como “homicídio
culposo, aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, lesão corporal grave, extorsão
indireta, apropriação indébita, estelionato, receptação simples, furto simples, falsidade ideológica,
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etc.”, salvo qualificadoras – previsão que contempla um universo mais abrangente de possibilidades
para a justiça restaurativa (SICA, 2007, p. 229).
24 A Justiça da Infância e Juventude, ou apenas Justiça Juvenil, trata-se de uma justiça especializada,
cujos órgãos do Poder Judiciário que a compõe possuem competência exclusiva para o julgamento
da matéria referente ao Direito da Criança e do Adolescente, tanto no campo protetivo quanto no
campo infracional (COSTA, 2014). Essa especialização do Poder Judiciário quanto à matéria em
questão, além de constituir regra de competência e garantia constitucional ao Juiz Natural,
“corresponde à responsabilidade constitucional do Estado e de suas instituições em atender a essa
parcela da população, de acordo com sua especificidade, ou sua condição peculiar” (COSTA, 2014,
p. 148).
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Referências
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Disponível em:
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21 out. 2020.
Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/128/criadolec_1997_v6.pdf.
Acesso em: 21 out. 2020.
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PRICHARD, Jeremy. Net-Widening and the diversion of young people from court: a
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