Afetos Políticos - Um Estudo Sobre o Debate NM

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

CURSO DE PSICOLOGIA

Marcelo Bechara Tebexreni

AFETOS POLÍTICOS:
UM ESTUDO SOBRE O DEBATE POLÍTICO DA NÃO-MONOGAMIA NO BRASIL

São Paulo
2022
Marcelo Bechara Tebexreni

AFETOS POLÍTICOS:
UM ESTUDO SOBRE O DEBATE POLÍTICO DA NÃO-MONOGAMIA NO BRASIL

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao curso de Psicologia, da faculdade de
Ciências Humanas e da Saúde, sob orientação
da Profª Drª Andréia De Conto Garbin.

São Paulo
2022

3
AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço aos meus interlocutores por terem compartilhado suas


histórias e me mostrado outras formas de perceber o mundo.

À Helena Vieira, por todos esses anos de orientação, pela disponibilidade,


generosidade e amizade.

À Luisa Daud, por ser força e por acreditar em mim.

À Giulia Nogueira, pelas trocas constantes e contribuições imensuráveis para o


trabalho.

À Hellen Nicolau, pelo cuidado e aporte indispensável à pesquisa.

À Ângela Moreto, pelo afeto e pela revisão cuidadosa.

À Andréia Garbin, pelo acolhimento imediato, pela confiança e, principalmente, pela


paciência no decorrer desse processo.

A todas as pessoas que aparecem nessas páginas e criam, no cotidiano, novas


possibilidades para a vivência dos afetos.

4
RESUMO

Não-monogamia é uma expressão guarda-chuva que descreve diferentes arranjos,


filosofias e práticas relacionais desviantes, em alguma medida, da norma
monogâmica. Nas últimas duas décadas, a temática da não-monogamia foi posta em
debate no Brasil, com o surgimento dos primeiros grupos e páginas virtuais voltados
à discussão do assunto e, posteriormente, dos ativismos não-mono. Esta pesquisa -
qualitativa descritiva e exploratória - teve como objetivos investigar o debate político
da não-monogamia no Brasil e analisar os sentidos atribuídos à não-monogamia por
ativistas que vivenciam relacionamentos não-monogâmicos. Foram realizadas
entrevistas semiestruturadas com três participantes que declaram viver relações não-
monogâmicas e estão diretamente ligados à construção do debate político sobre a
não-monogamia nas redes sociais. O método utilizado foi a Análise do Discurso, sob
a perspectiva da Psicologia Social. Os temas semelhantes foram agrupados nas
seguintes categorias: a monogamia; a ausência de referências; o casal versus a rede;
as hierarquias relacionais; entre acordos e contratos; a “liberalização” da não-
monogamia; interfaces com a Psicologia; amor romântico e preterimento afetivo; “a
saída é coletiva, de tudo”. Foi possível constatar a ausência de um repertório afetivo-
emocional que ampare a vivência de relacionamentos não-monogâmicos como uma
dificuldade experienciada por pessoas não-mono. O estudo demonstrou o caráter
plural do debate e evidenciou outras possibilidades de agenciamento das relações
afetivo-sexuais.

Palavras-chave: não-monogamia; debate político; Psicologia Social.

5
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 7
1.1 O mito do amor romântico ............................................................................................ 9
1.2 O sistema monogâmico............................................................................................... 15
1.3 O debate político da não-monogamia no Brasil ........................................................ 20
2. MÉTODO ...................................................................................................................... 29
3. RESULTADOS ............................................................................................................. 31
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................... 43
5. REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 45
Anexo 1 - ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA .......................................... 51
Anexo 2 - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO................................ 52

6
1. INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é analisar os sentidos atribuídos à não-monogamia


por ativistas que participam da construção do debate político sobre o tema no Brasil.
Além disso, pretende-se investigar esse debate à luz dos discursos de seus
interlocutores. Serão analisadas, portanto, expressões de não-monogamia e de sua
vivência a partir do olhar de pessoas que produzem pensamento sobre o assunto.
O termo “não-monogamia” se qualifica pela negação: firma-se a partir daquilo
que não é. Nesse sentido, se faz necessário conceituar a monogamia no intuito de
traçar uma primeira compreensão sobre a expressão. No senso comum, a monogamia
é percebida como uma prática estabelecida a partir de um contrato de exclusividade
afetivo-sexual entre duas pessoas. Neste trabalho, contudo, a monogamia será
entendida como sistema. A pesquisadora espanhola Brigitte Vasallo, em seu livro “O
Desafio Poliamoroso: por uma nova política dos afetos” (2022), propõe uma visão
sistêmica da monogamia:

A monogamia não é uma prática: é um sistema, uma forma de pensamento.


É uma superestrutura que determina aquilo que chamamos de “vida privada”,
as práticas sexo-afetivas, as relações amorosas. O sistema monogâmico dita
como, quando, para quem e de que maneira amar e desejar, assim como
quais circunstâncias são motivo para sentir tristeza, em quais deveríamos
sentir raiva, o que nos machuca e o que não machuca. O sistema
monogâmico é uma engrenagem que distribui privilégios a partir dos vínculos
afetivos e um sistema de organização desses vínculos (VASALLO, 2022, p.
38).

Se a monogamia se refere a um sistema – e, como veremos a seguir, trata-se


também de uma imposição social e jurídica – sua negação surge como uma
possibilidade de contestá-lo ou, ao menos, tensioná-lo em sua rigidez. De maneira
sucinta, “não-monogamia” é um termo guarda-chuva que descreve diferentes tipos de
arranjos relacionais desviantes da norma monogâmica. Isto é, práticas ou formas de
se relacionar afetiva e sexualmente que rompem, de algum modo, com a cláusula de
exclusividade afetivo-sexual.
Inicialmente, o estudo pretendia uma investigação sobre a saúde mental de
pessoas não-monogâmicas no Brasil. A mudança no curso da pesquisa se deu por

7
dois motivos: o primeiro foi a constatação de que o grupo a ser pesquisado é muito
amplo e heterogêneo. Não seria possível falar em “pessoas não-monogâmicas” de
maneira homogênea, ainda que muitas pessoas se declarem “não-mono”;
metodologicamente, seria um equívoco reunir experiências tão distintas no mesmo
campo de análise. O segundo motivo foi o interesse em uma investigação das não-
monogamias em defrontação com o debate político, que compreendesse o acúmulo
teórico dos anos de discussões sobre possibilidades não-monogâmicas de se
relacionar. A escolha por entrevistar ativistas se justifica pela relevância de uma
análise que considerasse este debate.
Em um primeiro momento, o trabalho se ocupará de traçar uma visão histórica
sobre o amor romântico no ocidente, compreendido enquanto dispositivo ideológico
do sistema monogâmico. Depois, a análise se centrará na edificação deste sistema e
suas características, a partir das contribuições de Lessa (2012) e Vasallo (2022). Por
fim, será apresentado um panorama da insurgência de diferentes tipos de grupos
voltados à discussão das não-monogamias no Brasil do século XX.
Acredito que essa pesquisa poderá contribuir para a reflexão acerca da
organização da vivência dos afetos no ocidente, a partir de uma visão crítica sobre
alguns de seus dispositivos – tais como a monogamia compulsória e o amor
romântico. A experiência das não-monogamias – ao menos daquelas que contestam
frontalmente a monogamia – indica caminhos para a construção e vivência de
relacionamentos orientadas por novos horizontes éticos. Novas formas de se pensar
o cuidado e a autonomia nas relações que culminam, em última instância, em novos
projetos de sociedade.

8
1.1 O mito do amor romântico

Os seres humanos têm a capacidade de criar laços, demonstrar afeto, de


amar. Mas o que chamamos de amor não existiu desde sempre, tampouco
está presente em todos os contextos. Por ser histórico, o amor é uma
construção social, e varia de forma, de significado e de valor. Assim como
todas as culturas elegem suas formas de viver, de sofrer, de gozar, de morrer,
também elegem suas formas de amar. (RODRIGUES; SANTOS, 2009, p.1)

Comumente entendido como um sentimento natural e universal, o amor é uma


construção histórica e social. O olhar para seus diferentes sentidos e configurações
ao longo da história dissolve qualquer tentativa de naturalizá-lo. Nesta parte, será
realizado um breve histórico do amor no Ocidente, a fim de compreender o amor
romântico enquanto construção social, suas implicações e significados na
contemporaneidade.
Perez e Palma (2018, p. 2) sintetizam que, “historicamente, o amor transitou da
idealização para a vigilância, para a ridicularização, e retornou à idealização”. Pretto
et al. (2009) referem-se à obra “O Banquete”, de Platão, como o primeiro tratado
filosófico sobre o amor1. O texto narra uma festa em que os sete convidados presentes
discursam a respeito do amor, compreendido aqui como uma forma de aproximação
ao mundo das ideias2. Tal concepção, essencialmente idealista, compreende a paixão
amorosa como transcendental, no sentido de transportar o homem para além do
mundo até que este enxergue a beleza ideal. O amor surge associado à ideia de
desejo - que, por sua vez, não pode ser pensado sem a falta - e adquire um caráter
sagrado, extramundano e inato, associado a categorias como o bem, a beleza e a
sabedoria. O amor aparece como uma “fusão”, uma união de duas almas que se
buscam incessantemente3. (BARRENECHEA, 2015; PRETTO ET AL., 2009).
Moraes (2019) sustenta que o platonismo ofereceu elementos cruciais à
interpretação teológica cristã sobre o amor. Com o cristianismo, o amor continua

1
Lima Vaz (2011) propõe que toda a tradição filosófica ocidental tem por base, seja em termos de
acolhimento ou de contestação, o pensamento de Platão.
2
Barrenechea (2015, p. 130) rememora que Platão apresenta uma concepção da bipartição da
realidade em mundo inteligível e mundo sensível: “Por um lado, temos a enganosa existência do mundo
sensível, mera aparência ou sombra da genuína realidade. Por outro, existe o mundo inteligível que
permanece eterno, imutável, além dos sentidos, num topos ideal, num além-mundo”.
3
Moraes (2019, p. 93 e 94) afirma que “[...] a adequada interpretação da impossibilidade da plena
realização do ‘amor platônico’ seria a de que, sendo marcado por uma falta, o amante, por sua própria
natureza, nunca pode ser aquele que possui o amado por completo.”
9
idealizado como fim em si mesmo e torna-se possível, apenas, em sua pureza, ao
próprio Deus. Pretto et al. (2009) destacam que o amor cristão se faz incondicional
por assegurar a salvação e o paraíso aos sujeitos, significando sacrifício, abdicação e
dedicação:

[...] o casamento vai se configurando como o espaço mais apropriado para a


realização do amor que tem como fim a propagação dos filhos de Deus pela
constituição da família, e não como um meio para os homens adquirirem certa
realização existencial. É um aprisionamento que vem com a paixão, a qual se
confunde com o amor, que, ao mesmo tempo em que é irresistível, é um
dever: todos devem amar e estabelecer uma conjugalidade em que os
cônjuges, antes de tudo, devem ser companheiros – a boa esposa e o bom
marido. A paixão, por sua vez, deve ser superada e bem dirigida,
constrangida através de normas e costumes (PRETTO ET AL., 2009, p. 396).

Na Idade Média, o amor cortês surge exaltando os sentimentos diante das


normas e padrões estabelecidos pela Igreja e pela sociedade (BARROS, 2011). Perez
e Palma (2018) o definem como a primeira manifestação do amor como relação
pessoal. É um amor idealizado e inatingível, expresso nas cantigas dos trovadores,
os poetas-cantores que percorriam as cortes feudais da Europa Medieval. Nesse
sentido, o amor é salientado enquanto sofrimento e desejo insatisfeito, ao passo que
o objeto de amor inalcançável se torna a mulher - a “Dama”4.
Del Priore (2006) discute que o amor, de uma representação ideal e inatingível
na Idade Média, passou por uma tentativa tímida de associação entre espírito e
matéria no Renascimento, período de fortalecimento da vigilância moral e do
casamento como negociação. Houve uma popularização do ritual do casamento
religioso, cuja oficialização era estimulada pelo Estado5. O matrimônio, sob a égide do
cristianismo, converteu-se em sacramento.
Perez e Palma (2018) assinalam que, na Idade Moderna, Igreja e Medicina
procuraram separar amizade, que seria direcionada ao casamento, e paixão, próxima

4
Barros (2011, p. 197-198) exemplifica tal idealização a partir da vida do trovador Jaufre Rudel,
conhecido por cantar o amor distante: “A Dama, aqui, é conduzida ao máximo da idealização. O poeta
a ama sem nunca tê-la contemplado. Apaixona-se apenas pelo que dela ouvira dizer, e é esta paixão
que o conduz à aventura da Cruzada e da Morte.”
5
Del Priore (2007, p. 126) aponta, como exemplos da interferência do Estado na vida privada, “[...] a
perseguição aos celibatários; o reforço à autoridade dos maridos que passaram a exercer uma espécie
de monarquia doméstica; a incapacidade jurídica das esposas a quem não era consentido realizar
nenhum ato sem autorização de seus maridos.”
10
à loucura e ao adoecimento. Para Lins (2012), o advento do Iluminismo conferiu ao
amor uma associação ao ridículo. Na Idade da Razão, o amor idealizado, ainda
vinculado ao sofrimento, foi deixado de lado.
Com o Romantismo, o amor retornou à idealização. O amor romântico emerge
da literatura como possibilidade de libertação da racionalização excessiva iluminista.
O acontecimento da Revolução Francesa produziu na Europa inteira, bem como no
continente americano, “[...] uma profunda emoção, exprimindo-se em uma literatura
de tipo emocional, que se deu a si mesma o nome de ‘romantismo.’” (CARPEAUX,
2008, p. 1365). O Romantismo, enquanto movimento artístico e cultural, defendeu-se
do objetivismo racionalista da burguesia, pregando como única fonte de inspiração o
subjetivismo emocional. Nesse sentido, criou-se uma literatura que se situa
conscientemente fora da realidade social: ou evadindo-se dela, ou atacando-a
(CARPEAUX, 2008; PEREZ E PALMA, 2018).
Perez e Palma (2018) sugerem uma mudança na concepção de amor, que no
século XIX transforma-se em uma finalidade nobre da vida: “Os romances literários
propõem novos sentimentos, em que a escolha conjugal é condição para a felicidade”
(p. 2). É nesse momento que o ideal amoroso se constitui enquanto possibilidade nos
casamentos, anteriormente orientados por interesses econômicos e políticos. O amor
é associado, então, à liberdade:

Não foi à toa, lembram especialistas, que o nascimento do amor romântico


coincide com a aparição do romance: ambos têm em comum nova forma de
narrativa. Nela, duas pessoas são a alma da história, sem referência a
processos sociais que existam a seu redor. Na base da ideia de amor
romântico, associava-se pela primeira vez amor e liberdade, como coisas
desejáveis. [...] as ideias contidas no amor romântico [...] apontam os laços
entre a liberdade e a realização pessoal. (DEL PRIORE, 2005, p. 339)

O amor romântico reúne vários elementos dos tipos de amor descritos até aqui.
Pretto et al. (2009) enfatizam que este amor justifica a existência do sujeito, sendo
vivido como sofrimento que recompensa a vida. Sua função seria libertá-lo “[...] da
moral e das convenções sociais, uma vez que salienta a cisão entre o indivíduo e a
cultura quando pretende a absorção de um parceiro no outro, exigindo exclusividade
e, com isso, priorizando a esfera do casal” (PRETTO ET AL., 2009, p. 396).

11
É necessário ressaltar que, no século XIX, a sexualidade instituiu-se como um
dispositivo de saber e poder (FOUCAULT, 1988). Cassal, Gonzalez e Bicalho (2012)
discutem que a difusão de regimes de verdade e olhares para o sujeito tornaram a
sexualidade um dispositivo de controle de corpos, modos de existência e de
populações. Michel Foucault nomeou de dispositivo da sexualidade o conjunto de
“práticas discursivas e não discursivas, saberes e poderes que visam normatizar,
controlar e estabelecer verdades a respeito do corpo e seus prazeres” (MADLENER
E DINIS, 2007, p. 50). Em outras palavras, houve uma proliferação de discursos,
prescrições e outras formas de controle sobre o corpo que produziram uma verdade
sobre a sexualidade.
Araújo (2002) discorre que, ainda no século XIX, instituiu-se um discurso
disciplinador para suprimir as formas de sexualidade não relacionadas com a
reprodução e com o casamento como lugar legítimo para as práticas sexuais. Com o
desenvolvimento das ciências médicas, aumentaram as instâncias de controle e
vigilância do corpo e das práticas sexuais. Houve a imposição da ideia de uma
sexualidade natural, heterossexual e para procriação. Nesse sentido, o amor
romântico – patriarcal, heteronormativo e de monogamia compulsória – foi postulado
como destino anatômico e biológico, ganhando explicação científica.
Como destacam Perez e Palma (2018), a libertação romântica é insatisfatória,
uma vez que é calcada na idealização e oferece ao sujeito um modelo de conduta
amorosa. Pretto et al. (2009) assinalam que o amor romântico só frutificou onde a
cultura burguesa impôs as regras da satisfação emocional individualista. É um amor
moldado no ideal da família burguesa6 e que reitera os papéis de gênero, conferindo
às mulheres novas normas de vigilância moral. Enquanto os homens passam a ter o
direito de escolher sua noiva, a virgindade da mulher se torna um objeto de valor
político e econômico. É imposta à mulher a monogamia compulsória e, assim, a família
monogâmica garante a transmissão da herança gerada pela acumulação de bens do
sistema capitalista (PEREZ E PALMA, 2018).
No século XX, o amor toma grande importância. Em suas primeiras décadas,
toda ameaça ao casamento era alvo de críticas. O tema do divórcio era considerado

6
Rodrigues e Abeche (2010, p. 378) assinalam que “esta estrutura familiar é definida como uma
unidade conjugal limitada a poucos filhos, não se pautando na manutenção das tradições e na
continuação da linhagem, mas sim, na acumulação de capital e no valor da escolha individual, no amor
romântico”.
12
“imoral”, sendo restrito a casos excepcionais, e a família nuclear monogâmica é
reputada como símbolo da felicidade amorosa. Estima-se que, a partir da década de
40, a maioria das pessoas já se casava por amor. Concebendo-se como fenômeno de
massa com os filmes de Hollywood, o amor se estabelece como ideal a ser alcançado
- uma busca eterna pelo “felizes para sempre”. (DEL PRIORE, 2006; LINS, 2017;
PEREZ E PALMA, 2018).
A chamada “revolução sexual” dos anos 1960 e 1970 questionou os padrões
de liberdade sexual vigentes e algumas normas do amor. O feminismo e os
movimentos de liberação sexual colaboraram para uma desarticulação das ideias de
casamento e experiência sexual e amorosa. O advento da pílula anticoncepcional, a
institucionalização do divórcio e a inserção das mulheres no mercado de trabalho são
exemplos de transformações sociais ocorridas neste período, e que teriam contribuído
para uma maior equidade nas relações entre homens e mulheres (PEREZ E PALMA,
2018; PILÃO, 2019).
Além disso, o surgimento de um movimento homossexual no Brasil dos anos
70 também questionou a norma do casamento indissolúvel e heterossexual. Conde
(2004) reconhece que o movimento homossexual questiona os mecanismos
repressivos utilizados pela ótica dominante heteronormativa e fragiliza a legitimidade
desses argumentos, não admtindo que “o desrespeito ao direito humano fundamental
de exercer livremente a orientação sexual seja tratado pelo Estado como assunto
limitado à esfera privada” (p. 183).
Apesar de ainda almejado, ao final do século XX, o amor romântico mostrou
sua face fugaz, podendo ser vivido de maneira provisória. A tecnologia e a
globalização aumentaram, ainda mais, a velocidade das mudanças sociais no século
XXI (PEREZ E PALMA, 2018). Lins (2012) propõe que a busca pela individualidade
caracteriza a época em que vivemos. Na era do individualismo radical da
contemporaneidade, o amor romântico começou a sair de cena, levando consigo a
ideia de exclusividade e possibilitando a expressão de novos arranjos afetivo-sexuais.
Ainda assim, o amor romântico resiste. Lins (2017, p. 26) refere-se a ele como “a
propaganda mais difundida, poderosa e eficaz do mundo ocidental”:

É insólita essa persistência porque, na própria definição de amor romântico,


está implícita uma união conjugal duradoura e exclusiva, que implica um
sentimento de completude amorosa e sexual. O objeto escolhido deve ser

13
único e insubstituível, pois para o sujeito do amor romântico seu objeto é
permanente e exclusivo, fazendo com que ele não tenha de sentir desejo por
outro objeto, o que o torna fiel sem necessidade de imposições externas. É
mantendo-se como o único que poderá verdadeiramente produzir uma
satisfação sexual plena. A fidelidade faz parte dessa idealização amorosa e
é causa recorrente das dores de amor (CROMBERG, 2018, p. 234).

Pretto et al. (2009) observam que as teorias de Jean-Paul Sartre e Simone de


Beauvoir possibilitam uma reflexão sobre as consequências do amor romântico e do
idealismo na experiência amorosa contemporânea, que culminaria num projeto de
sofrimento para os sujeitos. De acordo com os autores, relacionamentos
fundamentados sobre estes ideais pressupõem a renúncia de duas singularidades em
prol de uma unificação irrestrita, abstrata e sagrada entre os parceiros.
Yela (2003) considera que os mitos românticos são o conjunto de crenças
socialmente compartilhadas sobre a suposta “verdadeira natureza” do amor. Em
diversos trabalhos (BARRÓN ET AL., 1999; YELA, 2000; YELA, 2003), o autor elabora
uma revisão dos principais mitos românticos e suas origens, a partir da perspectiva da
Psicologia Social. Seriam eles:

- Mito da metade da laranja: crença na predestinação do parceiro como a única


ou melhor possibilidade ou ideia da união entre duas almas gêmeas, baseada
no ideal de complementaridade;
- Mito do casal: crença de que o casal heterossexual é natural, universal e que a
monogamia está presente em todos os tempos e culturas;
- Mito da exclusividade: crença de que só é possível amar uma pessoa por vez;
- Mito da fidelidade: crença de que todos os desejos passionais, românticos e
eróticos devem ser satisfeitos exclusivamente com uma única pessoa;
- Mito do ciúme: crença de que o ciúme é um sinal de amor e até mesmo um
requisito indispensável do amor verdadeiro;
- Mito da equivalência: crença de que amor e paixão são equivalentes e,
portanto, se uma pessoa deixa de estar apaixonada, não ama mais o seu
parceiro e deve deixar o relacionamento;
- Mito do casamento: crença de que o amor romântico deve levar à união estável
do casal e tornar-se a única base para a convivência;

14
- Mito da paixão eterna: crença de que o amor romântico e apaixonado dos
primeiros meses de um relacionamento pode e deve durar depois de anos de
convivência;
- Mito da onipotência: crença de que "o amor tudo pode" e, portanto, se existe
amor verdadeiro, quaisquer obstáculos que surjam não devem influenciar o
casal, uma vez que o amor é suficiente para resolver todos os problemas e
justificar qualquer comportamento;
- Mito do livre arbítrio: crença de que o amor é um sentimento absolutamente
íntimo, individual e não influenciado por fatores sociais, biológicos e culturais
alheios à nossa vontade e consciência.

Nesse sentido, é possível definir por “mito do amor romântico” uma construção
social e histórica normativa, fundamentada sobre uma série de diferentes concepções
idealistas e socialmente concebidas a respeito do amor. O amor romântico pode ser
apreendido, então, como uma imposição ideológica heteronormativa, patriarcal7 e que
compreende a monogamia compulsória (PEREZ E PALMA, 2018). A ideia do amor
romântico vincula-se ao ideal de felicidade, só sendo feliz quem o atinge. Não
obstante, “as exigências do ideal romântico são tão duras quanto a maioria dos ideais
de autoperfeição que o Ocidente inventou” (COSTA, 1998, p. 74).
Contrariando as normativas do amor romântico e da monogamia, outras formas
de arranjos afetivo-sexuais surgem procurando despir o amor e os afetos das regras
que o imobilizam, atribuindo-lhes novos significados. Nessa direção, Vasallo (2022)
sugere que “arrancar o amor das garras do amor romântico não é tirar a emoção das
coisas. É nos salvar definitivamente das violências criadas em nome do amor” (p. 171).

1.2 O sistema monogâmico

[...] a monogamia é muito mais do que mero preceito moral da vida cotidiana
– ela é, na verdade, um aspecto decisivo da organização da sociedade de
classes. (LESSA, 2012, p. 10)

7
Os estudos de Coronado (2019) e Ferriani et al. (2019) são algumas das pesquisas que associam o
mito do amor romântico à violência de gênero. Silva (2017) apresenta algumas críticas feministas ao
amor romântico.
15
No intuito de conceituar o sistema monogâmico e as críticas à monogamia, faz-
se necessário compreender sua origem histórica. Para tanto, recorreremos ao livro
“Abaixo a família monogâmica!”, do cientista social Sergio Lessa, que se propõe a
recuperar as teses de Friedrich Engels e Karl Marx sobre a origem da família e da
propriedade privada.
Lessa (2012) situa a origem da família monogâmica na transição para a
sociedade de classes. O autor argumenta que a destruição dos laços primitivos
comunitários - que faziam da sobrevivência de cada indivíduo a condição necessária
para a sobrevivência de toda a comunidade -, seguida pelo desenvolvimento da
concorrência inerente à propriedade privada, teriam resultado no destaque da família
em relação à sociedade. As atividades comuns foram convertidas em atividades
privadas, realizadas para cada proprietário. Assim, a família se desassociou do
coletivo e se constituiu em núcleo privado.
A família monogâmica ou nuclear é, essencialmente, patriarcal. Enquanto os
homens das classes dominantes cuidavam da propriedade privada, foram impostas
às mulheres as tarefas que não geram riqueza, imprescindíveis para a reprodução
biológica. O horizonte feminino deixa de ser a totalidade da vida social para se reduzir
ao âmbito privado, cabendo aos homens “prover” suas mulheres (LESSA, 2012).

As relações primitivas entre os homens e as mulheres, entre os adultos e as


crianças, as formas de parentesco, etc., por mais distintas ao longo do tempo
e entre diferentes civilizações, não exibem traço algum das relações de poder
que são a essência do casamento monogâmico. A entrada na história da
família monogâmica representou a gênese de uma nova relação social, de
um novo complexo social – que é fundado pela passagem do trabalho de
coleta ao trabalho alienado (explorado). Em todos os casos, sem exceção
(LESSA, 2012, p. 28).

Ainda de acordo com Lessa (2012), sendo a família monogâmica uma


organização familiar peculiar às sociedades de classe, seria também a expressão da
propriedade privada nas relações familiares. A divisão sexual do trabalho retirou a
mulher da vida coletiva e a isolou no interior do lar8. As relações sexuais passam a

8
Lessa (2012, p. 75), pontua: “[...] é verdade que, entre as classes trabalhadoras, era uma situação
normal as mulheres trabalharem fora de casa, coisa que não acontecia entre as famílias burguesas.
16
ocorrer entre maridos e esposas ou entre senhores e prostitutas 9: “no primeiro caso,
a finalidade é um herdeiro que possa perpetuar a acumulação de riqueza da família.
Esta, por sua vez, tem seu status na sociedade a partir da propriedade que possui”
(LESSA, 2012, p. 31). Nesse sentido, a virgindade da esposa torna-se a garantia do
destino da herança: o filho primogênito.
Tal modelo é transmitido às crianças, que desde muito cedo são educadas para
o papel feminino e o papel masculino - “[...] para o papel de membros da classe
dominante ou dos trabalhadores” (LESSA, 2012, p. 34). Dessa forma, a família
monogâmica se constitui por um homem e uma ou várias mulheres em uma relação
de opressão.
Nesse sentido, apreende-se que a regra monogâmica foi historicamente
aplicada, apenas, às mulheres. Amorim e Reis (2020) relembram que, de acordo com
Engels, o primeiro tipo de opressão na história ocidental seria a opressão das
mulheres pelos homens, a fim de garantir o acúmulo de bens dentro de uma linhagem
patrilinear. A monogamia teria surgido como um dispositivo associado à gestão da
propriedade privada10.
Costa e Belmino (2015) reconhecem que a indissolubilidade da união conjugal
se inseriu no cenário das sociedades ocidentais apenas a partir do século XIII. Nesse
contexto, se a mulher não procriasse, poderia ser devolvida à família ou colocada em
um convento. O casamento, de uma instituição com vistas à estabilidade de uma
sociedade e que desempenhava apenas uma função reprodutiva e de união de
riquezas, foi convertido em sacramento. Moreira (2018) admite que o Concílio de
Trento do século XVI reforçou os princípios da monogamia e da indissolubilidade do
matrimônio sacramentado.

Ainda assim, esse fato, por si só, não significa que as tarefas domésticas e de criação dos filhos
deixaram de ser serviço privado a ser prestado pelas mulheres aos seus maridos: a dupla jornada de
trabalho”.
9
A prostituição é descrita por Lessa (2012) como consequência necessária do casamento
monogâmico: “Apenas assinalaremos que a prostituição é uma decorrência tão necessária do
casamento monogâmico quanto a esposa: são apenas mediações diferentes para a afirmação do
mesmo poder patriarcal que brota da propriedade privada” (p. 39).
10
Lessa (2012) compreende que tanto a monogamia como a poligamia expressam o mesmo
patriarcalismo: “Se, no harém e entre os mórmons, a monogamia é expressamente apenas feminina,
ao homem sendo legítimo várias esposas, na família tradicional cristã, ocidental, o casamento é
complementado pela prostituição. A regra monogâmica aplica-se apenas às mulheres: a monogamia é
a expressão, por todos os lugares, do patriarcalismo” (p. 42).
17
A indissolubilidade do matrimônio é consequência, em parte, das condições
econômicas que engendraram a monogamia e, em parte, uma tradição da
época em que, mal compreendida ainda, a vinculação dessas condições
econômicas com a monogamia foi exagerada pela religião (ENGELS, 2010,
p. 107).

Como discutido anteriormente, a monogamia, enquanto norma, surgiu sob a


forma de resguardo às propriedades e à herança. Tratou, também, de uma imposição
religiosa que pactuava a exclusividade matrimonial e desencorajava a troca de
parceiros. Com a introdução do conceito de amor romântico, a monogamia “[...] produz
um sistema que impõe um modelo de relações através de um cerne de práticas
formais e informais, produzindo um determinado conjunto de sentimentos, como o
ciúme, a possessividade, a desconfiança e várias formas de angústias” (COSTA E
BELMINO, 2015, p. 419).
No território brasileiro, a monogamia foi uma imposição jesuíta. Moreira (2018)
discute que a intervenção teve início com a chegada dos primeiros jesuítas, em 1549.
A monogamia e a indissolubilidade matrimonial exigida pelos missionários quebravam
alguns dos principais elos de colaboração existentes na sociedade multicomunitária
tupinambá. Além disso, tais intervenções na organização familiar indígena
converteram-se em uma política de longa duração no Brasil, pois perdurou nos
séculos seguintes em razão da prevalência da Igreja e dos valores católicos na
sociedade colonial e pós-colonial brasileira (MOREIRA, 2018).
Assim sendo, como conceituar a monogamia nos dias de hoje? A estrutura
monogâmica, como nos recorda a socióloga Marília Moschkovich, não diz respeito à
quantidade de pessoas com quem cada um se relaciona, mas às normas que regulam
os afetos e a sexualidade (MOSCHKOVICH, 2019, online). De acordo com a autora,
a monogamia consiste no conjunto de normas sociais e práticas que regulam e
determinam como podemos ou não ter relações afetivas, a partir da premissa de
cláusulas de exclusividade sexual ou afetiva. Nessa direção, Vasallo (2022) discute
que a monogamia inclui a multiplicidade de afetos:

[...] o que define a monogamia não é a exclusividade, mas a importância do


casal frente às amantes ou aos outros amores. A hierarquia de uns afetos
sobre os outros. A exclusividade sexual serve como marca hierárquica. Pode
haver outras relações sexuais, mas apenas uma recebe apoio social, apenas

18
uma está certificada como correta, apropriada. A exclusividade sexual é um
compromisso simbólico, é o pagamento que se faz para adquirir essa
legitimidade: não vou dormir com mais ninguém, mas, em troca, nosso
relacionamento será superior aos demais. Você e eu teremos um
relacionamento favorecido, com privilégios que se estendem a uma infinidade
de níveis e com ampla tolerância, também social, às violências associadas a
esses privilégios (VASALLO, 2022, p. 36).

Desse modo, compreende-se que a monogamia é um sistema que hierarquiza


as relações interpessoais. Para Vasallo (2022), a exclusividade afetivo-sexual trata de
um compromisso simbólico que confere legitimidade ao casal-núcleo diante da
sociedade. Nessa estrutura hierárquica, os laços reprodutivos constituem o eixo
afetivo mais valorizado, seguido pelos laços afetivos consanguíneos e, em terceiro
lugar, os laços afetivos não-consanguíneos. Isto é, o núcleo central é o casal
reprodutivo - heterossexual - e sua prole, o secundário é o resto da família (pelo
sangue) e o terciário, as amizades.
Vasallo (2022) propõe, ainda, que no intuito de privilegiar alguns vínculos em
detrimento de outros, o sistema monogâmico põe em movimento uma série de
mecanismos que estabelecem a superioridade de formas relacionais específicas, para
que sejam consideradas melhores em termos absolutos. A autora cita três principais:
a afirmação da exclusividade do casal-núcleo, a unificação das identidades11 e o
aumento da competitividade12 e da confrontação13.
Em seu livro, Brigitte Vasallo conceitua a monogamia como “um sistema de
controle de afetos marcado pelo neoliberalismo, que gera um modo de pensar
constitutivo e necessário para a construção nacional europeia e para seu projeto
colonial” (VASALLO, 2022, p. 18-19). Nesse sentido, é possível compreender o
sistema monogâmico como uma imposição colonial, patriarcal e peculiar às
sociedades de classe.

11
De acordo com Vasallo (2022), o vínculo monogâmico possui um caráter identitário: não se fala
“estamos em um par”, mas “somos um par”. A autora destaca que o sistema monogâmico não organiza
uma forma de sobrevivência coletiva, mas objetiva uma reprodução identitária e exclusiva, com nomes
e sobrenomes, com linhagem: “as crianças paridas pelo sistema monogâmico não são filhas de uma
comunidade, são filhas de um pai com nome e sobrenome e de uma mãe com nome e sobrenome. E
não ter sobrenomes é tão grave quanto tê-los e não querer transmiti-los (VASALLO, 2022, p. 40).
12
A competitividade é descrita por Vasallo (2022) como o mecanismo básico de todos os processos e
estruturas que existem no mundo capitalista. Neste caso, refere-se à competição para alcançar o núcleo
hierárquico, o casal.
13
A confronto, segundo Vasallo (2022), seria necessário para alcançar o núcleo hierárquico e mantê-
lo.
19
Porto (2018) estudou a interferência da mononormatividade14, enquanto
modelo impositivo e normativo de monogamia, na liberdade de construção dos
relacionamentos íntimos e no exercício amplo dos direitos decorrentes dessas
escolhas na esfera pública. Concluiu-se que, na medida em que a mononormatividade
permanecer em nosso ordenamento sociojurídico, o espaço para o exercício pleno da
cidadania sexual na esfera pública pelos indivíduos que não se enquadram no padrão
monogâmico será limitado. Sendo assim, a monogamia também pode ser
compreendida enquanto imposição jurídica no Brasil15.
Por fim, é pertinente ressaltar que o construto da monogamia passou por
modificações ao longo da história. A partir da institucionalização do divórcio e de
outras transformações sociais ocorridas no século XX, a monogamia indissolúvel
transforma-se em monogamia em série, que implica na possibilidade - legítima - de
amar a mais de uma pessoa ao longo da vida. Existindo a possibilidade de separação,
ainda assim, conserva-se a estrutura monogâmica: não se trata mais de “uma pessoa
para o resto da vida”, mas de “uma pessoa por vez”. O amor romântico funciona como
base ideológica para sustentação deste modelo, hoje hegemônico no Ocidente
(PILÃO, 2017).

1.3 O debate político da não-monogamia no Brasil

Se a monogamia é um sistema opressivo, em algum momento a resistência


terá de ser criada. (VASALLO, 2022, p. 206)

A expressão “não-monogamia” pode ser compreendida como um termo


utilizado para descrever diferentes modelos16, filosofias e práticas relacionais

14
O conceito de mononormatividade traduz o paradigma da monogamia enquanto imposição normativa
compulsória.
15
“Na hipótese do Código Penal, dentre os crimes contra a família e o casamento e que têm pertinência
direta com a (violação da) monogamia, podem ser citados o adultério e a bigamia. Até 2005, o adultério
ainda era criminalizado nos termos do artigo 240 com a cominação de pena de detenção de 15 dias a
seis meses para o cônjuge adúltero; por sua vez, a bigamia permanece tipificada como crime pelo artigo
235, que prevê a pena de reclusão entre dois a seis anos para a pessoa casada que contrair novo
matrimônio, penalidade aplicada inclusive a quem, não sendo casado (a), casar com pessoa casada
tendo conhecimento dessa circunstância” (PORTO, 2018, p. 663).
16 A ideia de “modelo relacional” não é um consenso nos debates não-mono. É comum a referência à

não-monogamia como um “não-modelo” ou uma ausência de modelos. Nesse sentido, “arranjos


relacionais” pode ser uma opção de termo mais adequada.
20
desviantes, em alguma medida, da norma monogâmica. Entre estes, no Brasil, é
possível destacar o swing, o relacionamento/casamento aberto, o poliamor, a anarquia
relacional (AR) e as relações livres (RLi). O presente trabalho não se ocupou de
conceituar minuciosamente tais definições e diferenciá-las, mas é necessário
assinalar que os termos se referem a experiências distintas, ainda que aglutinadas
sob o manto da expressão “não-monogamia”.
Nesta seção, será realizado um breve percurso histórico sobre a emergência
de diferentes tipos de grupos não-monogâmicos no Brasil. Em seguida, será discutida
a construção do debate político nesses espaços. É necessário, aqui, salientar que
grande parte das pesquisas científicas que abordam a temática da não-monogamia
são centralizadas no poliamor, que se apresenta como uma de suas modalidades.
Entretanto, os dois termos não são sinônimos.
A Internet, desde seu surgimento, ocupou um papel central na interação entre
pessoas que vivem relacionamentos não-monogâmicos. Foi por meio dela que os
primeiros grupos virtuais, comunidades, páginas e fóruns voltados à discussão do
assunto e ao compartilhamento de experiências pessoais foram criados. Ainda hoje,
a Internet é o principal veículo de comunicação e organização entre os adeptos das
não-monogamias.
O termo poliamor surgiu nos anos 1990, nos Estados Unidos, “para se referir à
possibilidade de estabelecer relações afetivo-sexuais com mais de uma pessoa de
forma concomitante e consensual” (PILÃO, 2020, p. 1). De maneira geral, há uma
centralidade na ideia de “amor” como um valor crucial para o estabelecimento das
relações, ainda que muitos discursos poliamoristas sejam críticos ao amor romântico
(BORNIA JUNIOR, 2018).
Pilão (2020) localiza o início da difusão do poliamor no Brasil na virada do
século XX. Em 2004, foi criada a comunidade “Poliamor Brasil”, na extinta rede social
Orkut. Tratou este do primeiro grupo que se tem registro voltado à discussão do tema
no território brasileiro, a partir do qual emergiram outros. De acordo com Pilão (2017),
havia nesses espaços uma preocupação em definir o poliamor e discorrer sobre as
consequências nefastas da imposição da monogamia. Nos anos seguintes ao
surgimento dos primeiros grupos virtuais, encontros presenciais de poliamoristas
foram promovidos nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
Pilão (2020) também destaca a importância da atuação midiática da
psicanalista e escritora Regina Navarro Lins para a instauração de um debate público
21
sobre o poliamor no Brasil, em 2007. Neste ano, a autora do best-seller “A Cama na
Varanda”, lançado originalmente em março de 1997, incluiu na nova edição uma parte
intitulada “O futuro que se anuncia”, na qual o poliamor foi abordado. Segundo Pilão
(2020), muitos poliamoristas afirmaram terem conhecido o poliamor a partir da
escritora.
Em 2011, lideranças poliamoristas criaram a Rede Pratique Poliamor Brasil,
com o objetivo de unificação e transformação do poliamor em um movimento social.
Autodefinida como uma “rede de apoio, conhecimento e militância”, partiu da
compreensão de que a prática do poliamor não deve ser restrita ao âmbito privado,
atuando no sentido de aumentar sua visibilidade e romper com os estereótipos
associados a ela (PILÃO, 2017). O autor, ao entrevistar integrantes da Rede, observou
divergências internas expressivas que dificultavam o objetivo de unificação: “[...] a
construção de um grupo poliamorista coeso torna-se um grande desafio já que a
centralidade no valor da ‘singularidade’ dificulta a convivência com aquilo que os
diferencia” (PILÃO, 2012, p. 66).
De acordo com Pilão (2015), os principais temas debatidos nesses sites eram
o fracasso da monogamia e a afirmação da superioridade do poliamor, as
diferenciações e hierarquias relacionadas a outras formas de conjugalidade e os
desafios enfrentados para a vivência do poliamor. Outros grupos e páginas foram
criados na rede social Facebook, muitas vezes sem o objetivo de debater questões
relativas à conjugalidade poliamorista. Alguns desses espaços serviam – e servem
até hoje – apenas como pontes para conectar adeptos do poliamor.
A Rede Relações Livres (RLi) foi formada entre 2006 e 2009. Relações livres é
uma expressão que se refere a uma forma de não-monogamia militante nascida no
Brasil, no início dos anos 2000. Diferentemente do poliamor, que defende a pluralidade
de amores, a ênfase proposta pelas relações livres está na liberdade e autonomia dos
sujeitos em suas relações (BORNIA JUNIOR, 2018).
De acordo com Bornia Junior (2018), o termo foi usado pela primeira vez no
manifesto “Sexo, prazer e afetividade”, escrito em 2003 pelo grupo Família e
Feminismo. O grupo surgiu em 2002, na cidade de Porto Alegre, a partir de oficinas
do Fórum Social Mundial. Nele, discutia-se criticamente a monogamia e novas formas
de relacionamento e sexualidade. A união com o grupo Frente Única de Libertação
Sexual, em 2006, fez surgir o RLi PoA, “constituído por militantes que se reuniam para
leitura de textos e discussão de questões sobre família, sexualidade e feminismo, sob
22
uma ótica de crítica ao patriarcado e à normatividade monogâmica” (BORNIA
JUNIOR, 2018, p. 50).
Pilão (2017) salienta que a origem e o desenvolvimento das relações livres se
deram a partir de uma prática inspirada na organização político-partidária. Parte dos
membros do grupo eram militantes do Movimento Esquerda Socialista (MES) que, em
2004, saíram do Partido dos Trabalhadores (PT) para participar da fundação do
Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). De 2006 a 2009, as reuniões do RLi PoA
foram presenciais e centradas no debate teórico sobre a monogamia, a definição de
RLi e de outras formas de não-monogamia. Os fundadores do grupo possuíam relação
com a tradição marxista e recusavam a ideia da monogamia como um pacto individual,
tomando-a como uma estrutura social conectada à formação da propriedade privada
e à distribuição da herança.
Em 2009, a Rede RLi começou a divulgar materiais e eventos em uma página
virtual, além de promover reuniões abertas, a fim de discutir questões gerais sobre
não-monogamia e atrair adeptos: “A ideia é que, como “rede”, passaria a descrever
também uma forma de relacionamento, de modo a não ser mais necessário fazer parte
de um grupo coeso para se afirmar RLi” (PILÃO, 2017, p. 59). Em 2015, passou por
crises internas que enfraqueceram o ativismo e o trabalho de criação de outras redes
pelo país. A crise foi marcada por disputas entre lideranças e divergências ideológicas
quanto às tensões com os crescentes debates feministas. Em 2017, a Rede Rli lançou
o livro “Relações Livres: uma introdução”, com o objetivo de retomar a divulgação
nacional de suas ideias (BORNIA JUNIOR, 2018).
A anarquia relacional (AR) é uma forma de não-monogamia que nasce da
crítica ao poliamor. A invenção desse conceito é atribuída à Andie Nordgren, uma
jovem queer sueca que manteve uma página na Internet sobre suas ideias acerca de
relações afetivo-sexuais entre 2004 e 2008. Em 2006, Nordgren publicou o “Breve
Manifesto Instrucional para a Anarquia Relacional”, traduzido na íntegra em português
pelo Grupo Mulheres Livres (SILVÉRIO, 2018).
A anarquia relacional, como o próprio nome sugere, possui relação com a
filosofia anarquista – e isso não significa que todos os seus adeptos sejam
anarquistas. Compreende-se, entre os anarquistas relacionais, um esforço pela
horizontalidade na construção dos vínculos afetivos, partindo da crítica às hierarquias
relacionais. Nessa direção, a AR reconhece o caráter único de cada relação e a
autonomia do sujeito como um de seus princípios básicos.
23
Para a anarquia relacional, a fronteira entre o amor e a amizade é tão imprecisa
que não pode ser delimitada (SILVÉRIO, 2018). Assim, termos (ou “rótulos”) que
escondem uma visão hierárquica e normas, instituições e regras para a vivência dos
afetos são questionadas. A crítica ao poliamor dominante – ou mais difundido – diz
respeito à conservação de valores monogâmicos:

A anarquia relacional, por sua vez, pode ser vista como um modelo dissidente
do poliamor por considerar que sua versão predominante é uma espécie de
“monogamia expandida” que ainda sustenta vários valores conservadores e
hierárquicos acerca de gênero, sexualidade, amor e poder, com a diferença
apenas de ter um número maior de relações. As relações livres (RLis) de um
modo geral também fazem críticas semelhantes ao poliamor e procuram resgatar
a ênfase na liberdade presente na noção de amor livre, sem no entanto focar
somente nesse sentimento, mas na qualificação das próprias relações
(SILVÉRIO, 2018, p. 2).

Silvério (2018) reconhece que entre poliamoristas, RLis e anarquistas


relacionais, “há um elevado nível de reflexividade, contestação e ativismo que busca
transformar a vida privada e íntima em um processo político” (p. 4). Nesse sentido, as
diferenças e semelhanças entre anarquia relacional e relações livres são alvo de um
debate que não foi abordado por esta pesquisa. Além disso, discorrer sobre a história
da anarquia relacional no Brasil ainda não é possível devido à aparente inexistência
de pesquisas acadêmicas em qualquer área sobre o assunto. Em uma busca rápida
pelo Facebook, foi possível localizar apenas um grupo, com mais de mil membros,
dedicado à discussão do tema: “Anarquia Relacional - Fórum”17.
Além do poliamor, das relações livres e da anarquia relacional, outras formas
de não-monogamia são expressivas no Brasil, devido à quantidade de adeptos. A
prática do swing – que consiste na troca de casais – e o relacionamento/casamento
aberto caracterizam-se por uma menor exposição pública e pela ausência do caráter
militante. Grande parte dos grupos virtuais dedicados a esses assuntos têm como
objetivo, apenas, conectar pessoas interessadas em se relacionar. Por mais que tais
modalidades sejam assunto de debate no meio não-mono, não há organização política
expressiva entre seus adeptos. Isso se dá, possivelmente, porque essas formas ou

17 A página do grupo no Facebook foi visitada em 08/06/2022 às 21h20.


24
práticas de não-monogamia conservam modelos e valores monogâmicos de
relacionamento.
Nesse sentido, o swing e o relacionamento/casamento aberto não foram alvo
de investigação nesta pesquisa. No geral, ambos permitem uma abertura para
relações sexuais, mas se mantêm fechados à monogamia no plano da afetividade. No
caso do swing, o envolvimento é estritamente sexual. Nos
relacionamentos/casamentos abertos, ainda que as fronteiras entre “permitido” e
“proibido” variem, há uma centralidade na figura do casal. É o casal que decide os
acordos que irão operar, uma vez que existe uma relação “principal” e privilegiada em
detrimento das demais.
As discussões teóricas, disputas conceituais e interrelações entre diferentes
grupos não-monogâmicos produziram, ao longo dos anos, um acúmulo de debates.
Esse acúmulo possibilitou, nos últimos anos, a eclosão de novos coletivos, grupos e
páginas virtuais voltadas à difusão e discussão das não-monogamias. Além disso, é
necessário ressaltar a contribuição decisiva dos movimentos sociais feministas,
negros e LGBTQIA+ para os debates não-mono, que forneceram um arcabouço
teórico indispensável à formulação de novas ideias.
Nessa direção, a rede social Instagram tornou-se um importante veículo de
comunicação e exposição de ideias, permitindo a criação de perfis que debatem a
temática das não-monogamias a partir de diferentes perspectivas. No presente, são
muitas as páginas virtuais brasileiras dedicadas a essas discussões, que variam entre
perfis pessoais ou representantes de grupos, coletivos e projetos. Algumas dessas
páginas no Instagram reúnem milhares de seguidores, que consomem diariamente o
conteúdo produzido por elas, compartilham-no com sua rede de contatos e interagem,
comentando suas publicações.
Em uma busca rápida no Instagram por páginas nacionais, foram localizados
vinte e um perfis que tematizam a não-monogamia em seus posts: “Não-Mono Em
Foco”, “Afetos Insurgentes”, “Genipapos”, “Reflexões e Conexões Não-Mono”,
“Amores Plurais”, “Casa Não Mono”, “Marxismo e Não Monogamia”, “Pessoas Não
Mono”, “Não Monogamia LGBT”, “Amar e Permanecer Livre”, “Não-Mono Memes”,
“Resenhas Não Mono”, “Soluções Não-Monogâmicas”, “Trans Não Mono”,
Monogâmicofóbico”, “Amorzinho Não Mono”, “Não Monogamia”, “Monogamia.Não”,
“Poliamor Cuiabá”, “Amor Livre & Poliamor Amazonas” e “Memes Amor Livre”. A partir
dos critérios de influência nas redes sociais (número de seguidores e participação nos
25
debates políticos), produção de conteúdo autoral e frequência de publicações, serão
apresentados brevemente quatro desses perfis.
A psicóloga e ativista indígena Geni Núñez é a administradora da página
“Genipapos”, que discute a não-monogamia a partir de uma perspectiva anticolonial.
Em seus textos, a monogamia é abordada como elemento de um sistema de
monoculturas imposto pela colonialidade18. Esse sistema de pensamento seria
organizado por alguns eixos, como a monocultura da fé (monoteísmo cristão), a
monocultura dos afetos (monogamia), a monocultura da sexualidade (monossexismo)
e a monocultura da terra. Em todos estes casos, o pressuposto é o da não
concomitância; em nome de ser um, nega-se a existência de outros (NÚÑEZ, 2021).
Núñez aborda a temática da não-monogamia há mais de dez anos e produz
sobre práticas de cuidado, relação e vínculo para além da matriz europeia, cristã e
colonial. Suas ideias partem da cosmogonia anticolonial guarani e, nesse sentido, a
psicóloga traça paralelos com a floresta para discutir a forma como as pessoas se
relacionam entre si e com a natureza; a floresta, aqui, aparece como símbolo da
diversidade e da multiplicidade, antagônica à exclusividade da monocultura. Núñez
propõe, de forma poética, uma construção artesanal dos afetos.
A página “Não-Mono em Foco” pertence ao projeto de mesmo nome, criado em
2020, que reuniu ativistas com o objetivo de discutir a não-monogamia fundamentada
em um pensamento político. A equipe do projeto, composta por pessoas não hétero e
não brancas, promove a realização de cursos, debates, lives temáticas e outras
atividades, além de produzir textos teóricos em seu site oficial. Em 2021, o projeto
publicou um manifesto intitulado “Manifesto por uma Não-Monogamia Política”, que
sintetiza princípios para uma não-monogamia orientada por uma ética anticapitalista,
anticolonial, antirracista e antiLGBTfobia.
O termo “não-monogamia política”19 foi cunhado por um dos autores do projeto
“Não-Mono em Foco”, Newton Jr., com o objetivo de nomear um pensamento político,
coletivo e emancipatório de não-monogamia. A expressão parte do conceito de

18 A colonialidade é entendida como o processo de atualização das violências coloniais (QUIJANO,


2005).
19 No meio não-mono, o termo obteve certa popularidade. Hoje, algumas são as páginas do Instagram

voltadas à discussão das não-monogamias que utilizam a expressão “não-monogamia política” em suas
publicações. O grupo “Problemas de Não-Mono”, o maior do Facebook dedicado a esse debate no
Brasil, possui mais de 6 mil membros até o momento desta pesquisa. Em sua descrição, a não-
monogamia política aparece como “eixo norteador e inegociável” do espaço virtual.
26
“identidade política”20, formulado pelo psicólogo e pesquisador Antônio da Costa
Ciampa, que sinaliza a importância da consciência de projetos de vida para
emancipação dos sujeitos. Nesse sentido, o exercício da identidade política
desembocaria em um rompimento com as homogeneizações sociais (DANTAS,
2017). A não-monogamia política se apresenta como um orientador de vida ou, ainda,
como um direcionamento ético e político para a construção das relações (LIMA
JÚNIOR E MIRANDA, 2022).
A página “Reflexões e Conexões Não-Mono” foi fundada em 2018, inicialmente
no Facebook, e idealizada por duas psicólogas e terapeutas de casais. O objetivo era
criar uma comunidade de pessoas não-monogâmicas a partir de um espaço de troca,
visibilidade e acolhimento. O projeto publica textos autorais no Instagram, além de
organizar cursos, palestras, workshops, grupos de apoio e diversos eventos. A página
possui um manifesto em seu site oficial, o qual discorre sobre a proposta do projeto e
estabelece valores para uma “não-monogamia ética”, termo amplamente utilizado em
seus posts.
Conforme o manifesto da página, a “não-monogamia ética” diz respeito ao
desenvolvimento e cultivo da autonomia afetiva, pautada pela ideia de
interdependência e não pelo individualismo. O cuidado aparece como uma noção
central dessa proposta, assim como a necessidade de se estabelecer acordos
consensuais e não restritivos entre as pessoas envolvidas numa relação. Além disso,
a definição de limites pessoais no processo de construção dos relacionamentos é
apresentada como fundamental para se viver relações saudáveis.
A página “Afetos Insurgentes” foi criada pela professora e ativista Anita Bertelli
em 2020, com o objetivo de discutir a não-monogamia sob a ótica da anarquia
relacional. Atualmente, o projeto conta com a participação de outros colaboradores e,
além do perfil no Instagram, possui uma revista na plataforma Medium, onde são
publicados artigos autorais e traduções de textos estrangeiros. Autodefinida como um
espaço para a reflexão sobre o papel social e político das relações interpessoais de
afeto e as estruturas de poder e normatividade que operam nessas relações, a “Afetos

20Dantas (2017) sintetiza o conceito de “identidade política” como “[...] aquela que conjuga a igualdade
e a diferença. Requer que o indivíduo em seu processo de socialização busque associação a grupos,
ideias, causas que lhe deem sustentação, que o ajudem a desenvolver alguma forma de identificação
política, sem aprisioná-lo a eventuais políticas de identidade impostas ao/pelo grupo. Dessa forma, o
indivíduo encontra espaço para o exercício de sua autonomia, por meio do seu processo de
individuação” (p. 6).
27
Insurgentes” se caracteriza pelo pensamento anarquista e anticapitalista. Os textos
abordam criticamente temas como o amor romântico, as hierarquias relacionais,
relações de poder e amizade.
Atualmente, são diversos os agentes que constroem o debate político da não-
monogamia no Brasil, a partir de diferentes perspectivas. Ao mesmo tempo, são
observados esforços comuns a alguns deles, no sentido de aumentar a visibilidade de
tais práticas e formas de se relacionar e, também, de politizar as discussões sobre o
tema. Desta maneira, o presente estudo se faz relevante para ampliar os
conhecimentos acerca de outras possibilidades para a vivência dos afetos. Os
ativismos não-mono indicam a possibilidade de reinventar as maneiras de se
relacionar, destituindo antigos dispositivos normativos. Sendo assim, o presente
estudo buscou investigar o debate político da não-monogamia no Brasil e analisar os
sentidos atribuídos à não-monogamia por ativistas que vivenciam relacionamentos
não-monogâmicos e produzem sobre o tema.

28
2. MÉTODO

Essa pesquisa parte dos princípios epistemológicos da Psicologia Sócio-


Histórica, que adota o materialismo histórico-dialético como filosofia, teoria e
método. Concebe o homem como ser ativo, social e histórico. A relação indivíduo–
sociedade é vista como uma relação dialética, na qual um constitui o outro. A
sociedade é tida como produção histórica dos homens que, por meio do trabalho,
produzem sua vida material (BOCK, 2007).
Foi realizada uma pesquisa qualitativa descritiva e exploratória. Freitas
(2002) aponta que, na pesquisa qualitativa com enfoque sócio-histórico, as questões
investigadas se orientam para a compreensão dos fenômenos em toda a sua
complexidade e em seu acontecer histórico. Sendo assim, não se investiga em
razão de resultados, mas do entendimento dos comportamentos a partir da
perspectiva dos sujeitos investigados. Na perspectiva descritiva, a pesquisa tem por
objetivo descrever um fenômeno. Já na exploratória, procura promover uma maior
familiaridade com o problema por meio do aprimoramento das ideias (GIL, 2002).
Foi escolhido o método qualitativo descritivo e exploratório por permitir a descrição
e o aprimoramento do conhecimento acerca das não-monogamias a partir do olhar
de pessoas não-monogâmicas.
Foram feitas entrevistas semiabertas com três participantes a partir de um
roteiro norteador (Anexo 1), com ou sem filhos. Todos declararam viver relações não-
monogâmicas e estão diretamente ligados ao debate político, que ocorre em espaços
virtuais (sites, blogs, páginas no Instagram, grupos no Facebook e em outras redes
sociais), sobre a não-monogamia. Os participantes foram identificados a partir da rede
de contatos do pesquisador e as entrevistas foram realizadas individualmente, de
maneira virtual.
Foi realizada uma Análise do Discurso, sendo este último compreendido
enquanto Práticas Discursivas. Elas referem-se às maneiras pelas quais as pessoas,
por meio da linguagem, produzem sentidos e posicionam-se em relações sociais
cotidianas. Ao trabalhar com Práticas Discursivas, não se procura estruturas ou
formas usuais de associar conteúdos. Parte-se do pressuposto que esses conteúdos
se associam de uma forma em determinados contextos, e de outras formas em outros
contextos. Os sentidos são fluídos e contextuais (SPINK, 2004).

29
A pesquisa apresentou riscos mínimos e não foi necessário interromper as
entrevistas. Os dados de identificação dos participantes foram preservados, conforme
o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo 2). O projeto de pesquisa foi
aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-SP sob o número
CAAE: 54087821.9.0000.5482. Foram utilizados nomes fictícios para referir-se aos
participantes.

30
3. RESULTADOS

Nesta pesquisa, foi possível identificar o caráter plural do debate político sobre
a não-monogamia no Brasil. Atualmente, são diversos os agentes que constroem
discussões nas redes sociais, a partir de diferentes epistemes e perspectivas teóricas.
A análise buscou evidenciar, nos discursos dos entrevistados, aproximações e
distanciamentos a partir de trechos que tratam de temas semelhantes.
No intuito de situar o leitor, será feita uma breve apresentação dos
participantes: Letícia é uma mulher cis, possui 34 anos, é branca, trabalha como
professora de línguas e mora no estado de São Paulo; Pedro é um homem cis, possui
27 anos, é negro, cearense e professor; Sofia é uma mulher cis, possui 41 anos, é
branca, também é professora e mora no estado de São Paulo. Todos são ativistas e
produzem sobre a temática da não-monogamia nas redes sociais.

A monogamia

Entre os pesquisados, a monogamia é associada à violência. As falas de Letícia


e Pedro indicam uma percepção sistêmica acerca da monogamia, tal como proposta
por Vasallo (2022):

Enxergo a monogamia como um braço do patriarcado, do capitalismo. É


um sistema de opressão e de organização de afetos e cuidado, de
organização de propriedade privada, de normalização das pessoas, de
despotencialização política, de enfraquecimento de comunidade, de
violência e isolamento das vítimas que estejam dentro da família
nuclear... E isso vai incluir crianças, filhos e mulheres. [...] Vejo como um
sistema que tem muita ligação com a propriedade privada e com o
Estado, particularmente opressor às mulheres e pessoas LGBT. (Letícia)

É um sistema de organização dos afetos e uma estrutura que serve de


manutenção da coesão de diversas estruturas de opressão. Ela é
indispensável para o capitalismo no sentido de manutenção da coesão
dentro da família monogâmica nuclear – cada vez mais individualista –,

31
no sentido da divisão sexual do trabalho (trabalho doméstico e trabalho
reprodutivo), na transformação da dimensão do cuidado num trabalho
naturalizado feminino, que sobrecarrega determinados indivíduos em prol
de outros, e que serve à manutenção do capital. Entendo como parte do
processo contínuo da colonização nesse território, [...] trazida como única
forma possível de se relacionar e sendo centrada não na quantidade de
relações afetivas ou sexuais, mas numa série de acordos, hierarquias e
organizações que, no fim, servem para servir nos isolando para
potencializar nossa exploração. (Pedro)

A associação entre monogamia e capitalismo é atravessada pela noção de


família nuclear, apontada por Lessa (2012) como uma organização peculiar às
sociedades de classe. Sendo assim, as críticas à monogamia partem de um
posicionamento anticapitalista e atento às violências de gênero. Sofia enfatiza a crítica
observada na fala de Pedro sobre o caráter nocivo da monogamia para as mulheres:

Tem um dano social na monogamia compulsória, sobretudo para a


mulher. Não dá pra falar que não. Acho que muito do que aprendemos
como sendo “monogâmico” é violento. A mulher sofre violência e tem uma
violência instituída contra a criança também, que eu acho que é da
corrente desse modelo patriarcal e da família nuclear obrigatória. (Sofia)

A família nuclear, transmissora dos ideais monogâmicos, é apontada como um


terreno fértil para a reprodução de violências estruturais. A educação monogâmica,
nessa lógica, naturaliza a violência intrínseca ao sistema. Os dados21 do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública mostram que, em 2020, mais de 81% dos feminicídios
foram cometidos por companheiros ou ex-companheiros das vítimas. Nesse sentido,
compreender este fenômeno somente sob a ótica do machismo parece ser
insuficiente, uma vez que não são quaisquer homens os autores da maioria desses
crimes. São homens que possuem – ou já possuíram – vínculos afetivo-sexuais com
as suas vítimas.

21A análise foi produzida a partir dos microdados dos registros policiais e das Secretarias estaduais de
Segurança Pública e/ou Defesa Social.
32
A ausência de referências

Contestar a monogamia tendo a subjetividade forjada pela estrutura


monogâmica aparece como um desafio, principalmente em razão da falta de
referências. Para Sofia, “[...] o mais problemático é lidar com questões emocionais
porque nós somos educados monogâmicos, então é muito difícil. Sempre converso
com um amigo (que também não é monogâmico) que estamos construindo uma coisa
que não existe, a partir do nada quase, então você não tem referências de como fazer,
de como lidar, de como conversar, nem de como construir as relações. Você não tem
um modelo que nem a monogamia tem.” (Sofia)
A ausência de um repertório afetivo-emocional que sirva para orientar a
construção das relações e a lidar com os conflitos é apresentada como uma
dificuldade enfrentada por pessoas não-mono. A fala de Sofia vai ao encontro da de
Pedro, que sinaliza a importância da troca de experiências entre pessoas que vivem
relacionamentos não-monogâmicos:

Quando você tem um entendimento estrutural da monogamia e quer


construir relações fora dessa lógica, acredito que precisamos entrar num
processo constante de desconstrução e reconstrução. De muita coisa.
Desconstrução do que está construído no nosso imaginário enquanto
repertório afetivo e emocional. [...] São processos constantes que,
querendo ou não, caem muito num mergulho em si. Num mergulho de
autoconhecimento, pra poder conseguir lidar com as coisas. É importante
nomear pra saber lidar, mas só conseguimos nomear aquilo que temos
repertório sobre... E nosso repertório é todo pautado na monogamia. [...]
Por isso que é tão importante ouvir outras pessoas nessas vivências,
nessas partilhas. Dá pistas de como lidar com essas questões. [...] Vai
fazer parte a frustração, o sentimento de ser um impostor, de não estar
certo naquilo. Daí a importância da consciência política, do porquê se
está querendo aquilo. Serve de embasamento para você continuar.
(Pedro)

Na fala de Pedro, a escolha pela não-monogamia é orientada por uma


consciência política. O sistema monogâmico, como nos lembra Vasallo (2022), aciona
uma série de mecanismos que estabelecem a superioridade de algumas formas

33
relacionais específicas para que sejam consideradas melhores em termos absolutos.
Nesse sentido, a frustração surge como efeito da contestação da norma: “É uma
percepção real de que, se as pessoas não tiverem num casal monogâmico, elas não
têm garantia de cuidado e de afeto. [...] E eu entendo, porque quando você olha para
o lado, é difícil ver alternativas. Se você escolhe não estar em um casal e você vê todo
mundo em casal e em família, você se vê sozinha. É uma percepção real, esse é o
sistema.” (Letícia)

O casal versus a rede

A figura do casal, central para a monogamia, é comumente associada à


estabilidade e à segurança. Vasallo (2022) discute o caráter identitário do casal, uma
vez que sua lógica não é “fazemos parte de um casal”, mas “somos um casal”. Esse
núcleo hierárquico é, também, a promessa de um núcleo familiar, estando fortemente
vinculado à ideia de reprodução cisheterossexual. O sistema monogâmico produz
uma estrutura de hierarquização dos afetos que coloca no topo da escala os laços
reprodutivos (o casal), seguidos pelos laços familiares consanguíneos, e por último,
os não consanguíneos.
O casal se constitui enquanto unidade, integrando um núcleo isolado e
privilegiado na esfera dos afetos. Os mitos do amor romântico corroboram para tal
construção, uma vez que preconizam a união irrestrita entre “duas almas gêmeas
complementares” (YELA, 2003). A recusa do casal, cuja lógica opõe-se à perspectiva
da rede, se manifesta no discurso de Letícia:

Passei a não querer mais formar casal. Passei a dar muito mais ênfase à
rede de afetos, a ponto de eu não querer e ativamente tentar não ter
namoros. E estar sempre pensando na perspectiva da rede, da minha
autonomia e do meu autocuidado. Não colocar pessoas nesse lugar para
não gerar dependência, mas tentar estar sempre com a rede. Desde
então, tem sido assim. Tem sido bem interessante, não que muitas
pessoas achem legal... Acho que algumas começam a se relacionar
comigo, veem que não vai rolar o casalzinho e depois dão um passo para
trás. E tudo bem, direito delas. Outras vezes, eu que entro numa pira
romântica de ficar apaixonadinha pela pessoa e não entender que eu
mesma estou buscando aquilo que não queria. É constante: ‘ok, vamos
34
focar em construir redes sem desvalorizar as pessoas e sem abrir mão
do que eu quero’. Tem sido esse jogo.” (Letícia)

Nesse sentido, a dependência emocional é facilitada pelas dinâmicas de casal.


Recusá-lo é contrariar as expectativas sociais daquilo que é considerado um
relacionamento legítimo e, ao mesmo tempo, contestar as hierarquias relacionais. É
possível observar, na fala de Letícia, um exercício ativo orientar suas práticas afetivas
por um pensamento contra-hegemônico e não-monogâmico. Mesmo que, por vezes,
ela se perceba “cooptada” por comportamentos de repertório monogâmico.
A importância da rede está vinculada à descentralização do afeto e do cuidado
em uma pessoa. É importante ressaltar que a ideia de rede não se restringe às
relações afetivo-sexuais, mas se estende à todas as relações – inclusive aquelas em
que não há sexo. Pedro também compreende a necessidade de um exercício ativo de
contestação das hierarquias relacionais: “As hierarquias são reforçadas na
dependência emocional. Se você não tem uma rede de apoio grande com a qual você
possa contar, você é jogado numa dinâmica de dependência. É um constante sair
daquilo. Mas entendo que elas [as hierarquias] estão ligadas a relações de poder e eu
busco construir as minhas relações – afetivas, afetivo-sexuais, familiares – negando
as relações de poder, tirando dessas pessoas o poder que elas acham que teriam
sobre outras relações. [...] Não basta dizer que não tem hierarquia, você tem que fazer
na prática. Isso é muito sobre descentralizar atitudes de cuidado; não no sentido de
você não cuidar, mas de que outras pessoas possam cuidar também. Descentralizar
a expectativa de prioridade, no sentido de que a prioridade surja a partir da dinâmica,
a partir do momento, mas não a partir daquela pessoa.” (Pedro)

As hierarquias relacionais

A crítica às hierarquias relacionais é um aspecto comum a alguns ativismos


não-mono. Letícia identifica-se como anarquista e é adepta da anarquia relacional.
Dessa forma, se posiciona contrariamente a todo e qualquer tipo de hierarquia. De
acordo com Silvério (2018), a anarquia relacional é dissidente do poliamor e busca
superar aqueles que são considerados seus principais erros e paradoxos, tais como
a necessidade de hierarquização e categorização das pessoas, relações e
sexualidades; o prevalecimento de normas, pressupostos, obrigações e direitos

35
relacionais; a restrição da liberdade e autonomia; a falta de igualdade e
espontaneidade.
Nessa direção, a fala de Letícia sintetiza sua visão sobre as hierarquias
relacionais: “Eu acho que a gente precisa construir algo horizontal, mesmo. Sem
hierarquia. [...] A anarquia relacional é o anarquismo aplicado às relações
interpessoais. Vão ser os mesmos princípios que serão aplicados: princípio da
autogestão, da horizontalidade, de você não ter papéis fixos... [...] se eu passo mais
tempo com uma pessoa, significa que estou passando menos tempo com outras. Se
isso se sustentar, constantemente, por muito tempo, a gente vai criar uma hierarquia.
Se eu dou muito cuidado para uma pessoa e ela me dá muito cuidado – e isso é um
recurso limitado – significa que não estou podendo dar para outras pessoas. Mas isso
não pode significar que a gente não está dando cuidado para ninguém” (Letícia). A
ênfase, aqui, está na rede de afetos e no manejo coletivo dos cuidados.
A crítica às hierarquias relacionais, entretanto, não é um consenso entre os
entrevistados. Em seu ativismo, Sofia discute as interfaces da maternidade com a não-
monogamia e demonstra discordar desta perspectiva: “Eu acho que toda relação é
uma relação de poder. Qualquer relação... [...] não tem como não ter hierarquia se
você mora com um ou com outro. Por mais que possam ser coisas ruins de rotina que
estou resolvendo, vou ficar muito mais tempo aqui, resolvendo coisas de casa, de
filho... Vai hierarquizar, aqui vai ser minha relação principal, de algum jeito. [...] Eu não
sei se é possível quebrar tudo que a gente chama de hierarquia. [...] A forma do vínculo
é diferente com algumas pessoas do que com outras. [...] Tem pessoas que a gente
tem mais afinidade, tem pessoas que a gente tem menos... Tem pessoas com quem
eu consigo passar mais tempo, que dá certo morar junto, e com outras pessoas não”
(Sofia).

Entre acordos e contratos

A possibilidade de estabelecer acordos nos relacionamentos interpessoais


também é um ponto de divergência entre os participantes. Para Sofia, instituir acordos
é um imperativo na experiência do relacionar-se: “Essa questão do acordo é uma treta
no meio não-monogâmico. Tem um pessoal, que até é bem conhecido, que diz que
acordo já não é não-monogamia. Pela minha vivência, não tem como se relacionar
sem ter acordo. Se você não tem acordo, não é uma relação. Pode funcionar bem
36
para quem eventualmente se relaciona com algumas pessoas de forma mais
esporádica, mas é impossível pensar, por exemplo, na educação de filhos sem
acordos. Tá, vou sair hoje, e quem vai olhar essa criança? [...] Para mim, só funciona
bem quando consigo dialogar muito bem com outras pessoas. E meus acordos
sempre foram mudando” (Sofia).
Já na perspectiva de Pedro, acordos servem de subterfúgio para justificar
controle e são criados para produzir uma sensação falsa de segurança – análoga
àquela existente na monogamia, supostamente garantida pelo pacto de exclusividade
afetivo-sexual: “Tenho muitos problemas com acordos. Não preciso de acordos como
as pessoas acham que precisam, porque elas vêm com uma lógica muito positivista e
contratualista. A lógica que permeia todas as nossas relações, basta ver como se
organiza o ordenamento jurídico, como se organizam nossas relações na sala de aula,
na universidade. Muitos contratos... [...] sou bem desapegado a esses acordos. A
gente conversa as coisas na hora e organiza na hora, porque mudamos muito (Pedro).
Dessa forma, compreende-se uma escolha por outras maneiras de conduzir os
conflitos e manejar a dinâmica das relações. Pedro exemplifica sua visão a partir de
uma situação comum: “as pessoas dizem: ‘ah, o único acordo é usar camisinha’. Por
que eu faria de um acordo uma questão de saúde pessoal e coletiva? Deveria ser
consciência. Para tudo precisamos de um acordo?”. (Pedro)
Letícia traça um paralelo com a ideia de amizade para falar sobre acordos. Em
sua concepção, acordos são uma tentativa de impedir o sofrimento no processo de
construção e manejo das relações sem, efetivamente, mexer nesse processo: “É
muito interessante pensar no porquê fazemos algumas coisas em relações ditas
românticas ou em amizades. Por que não precisamos dos acordos nas amizades? Eu
acho que tem dois lados. Um, porque a amizade é pensada numa perspectiva muito
mais livre e autônoma. Por outro lado, a amizade está super desvalorizada, então
estamos acostumados a não trabalhar e nem discutir essas relações. Nem se
responsabilizar, nem demandar uma responsabilidade maior das outras pessoas.
Talvez, por isso, essa discussão não aconteça. Mas também, porque tem uma
perspectiva muito grande de liberdade” (Letícia).
A amizade é associada a uma maior autonomia dos sujeitos em relação,
construída de forma mais gradativa e atenta à questão da afinidade. Para Letícia, o
estabelecimento paulatino de vínculos, tal como normalmente ocorre nas amizades,
torna os acordos desnecessários. “Tem uma expectativa de construir uma coisa
37
central na nossa vida, e muito rápido. A gente não quer ter esse tempo de ir
entendendo a afinidade... E aí vem a questão do amor romântico: em muito pouco
tempo você tá idealizando aquela pessoa, com sentimentos muito intensos, e acho
que os acordos vêm como uma tentativa de não se machucar nesse processo”
(Letícia).

A “liberalização” da não-monogamia

As disputas conceituais e teóricas sobre os projetos de não-monogamia


parecem estar relacionadas, também, ao processo de cooptação de algumas ideias e
práticas pelo neoliberalismo. Vasallo (2022) atenta-se para o que chama de
“monogamia disfarçada de poliamor”, um discurso neoliberal que vende laços livres,
divertidos, modernos e sem dor que, na prática, herdaram formas monogâmicas e
pouco se comprometem com o cuidado nas relações. Nestes casos, o foco está no
número de pessoas com quem cada um se relaciona, não na qualidade dos vínculos
formados. Na perspectiva da autora, a contestação da monogamia não poderia se
resumir, portanto, ao mero estabelecimento de relações múltiplas calcadas, ainda, em
moldes monogâmicos – o equivalente a uma “monogamia simultânea”.
No imaginário social, relações não-monogâmicas estariam associadas ao
descuidado, à promiscuidade ou, inclusive, à grupos privilegiados que disporiam de
tempo para estabelecer relações múltiplas. Nesse sentido, alguns ativismos não-mono
buscam romper com tais acepções, a partir da politização do debate. Sofia reconhece
a existência de discursos dissociados da realidade material das pessoas e aponta
para a necessidade de se fazer recortes quanto aos atravessamentos sociais que
permeiam os corpos: “Comecei a não acreditar mais nessa discussão que vem de
grupos muito privilegiados. Acho que para falar sobre não-monogamia precisamos ter
um recorte de classe, gênero e situação social. Foi por isso que eu e outras meninas
começamos a fazer páginas” (Sofia).
Para Pedro, o ativismo também se originou do incômodo com a maneira pela
qual o assunto vinha sendo discutido: “veio do incômodo sobre o quanto o discurso
de gente branca rapidamente se torna visível em relação a esse tema. E do quanto as
vivências de pessoas negras, indígenas, trans, travestis, de pessoas com deficiência,
e sobretudo de quem é atravessado por tudo isso de uma vez, são negligenciadas.
[...] Decidimos trazer reflexões que levassem um debate que fosse possível para
38
pessoas dissidentes, para convidá-las ao debate” (Pedro). Na fala de Pedro, fica
evidenciada a escolha política por um ativismo atento às opressões estruturais, com
enfoque nas vivências de pessoas dissidentes.
Em sua perspectiva, a discussão sobre a não-monogamia deve ser
acompanhada de uma reflexão política, com menos enfoque nas vivências individuais:
“Hoje em dia eu entendo que qualquer coisa é cooptada pela lógica hiperindividualista
e é inflacionada pela lógica capitalista. [...] vejo muitas não-monogamias de mercado:
a venda de ‘10 dicas pra abrir a relação’, ‘11 passos para ter uma relação aberta
saudável’, ‘5 dicas para criar um trisal’...” (Pedro). A “liberalização” da não-monogamia
aparece como um fenômeno associado a um olhar centrado nas experiências
individuais e desatento à violência intrínseca ao sistema monogâmico. A ausência de
um posicionamento declaradamente anticapitalista – e antimonogamia – é vista como
um sintoma da despolitização, alimentada pelas narrativas midiáticas e predominantes
sobre o assunto.

Interfaces com a Psicologia

Nesse caminho, a Psicologia também está sujeita a críticas. O aumento da


visibilidade do tema, nos últimos anos, fez crescer o número de profissionais
psicólogos que vendem discursos prontos e resoluções simples para questões
complexas. Letícia aponta para a necessidade de uma disputa, inclusive, acadêmica:
“Vi relatos de pessoas não-mono que sofreram uma série de micro violências de
terapeutas. Por um lado, você tem terapeutas executando micro violências e
oprimindo pacientes não-monogâmicos e, por outro lado, tem terapeutas e coachs
tentando ganhar dinheiro com a não-monogamia, fazendo dela um produto que você
pode oferecer” (Letícia). O perigo da mercantilização da não-monogamia também é
ressaltado por Pedro: “Vejo muitos psicólogos interessados no tema para se tornar
mais uma área de atuação, estritamente no sentido de lucrar. [...] Qualquer discurso
que é assumidamente radical tende a ser tratado como uma ameaça” (Pedro). Os
entrevistados levantam questões relevantes a serem investigadas em pesquisas
futuras.
Sofia é psicanalista e invoca a importância em considerar a dimensão do desejo
no manejo clínico de pacientes não-monogâmicos: “Pode ser o desejo daquela
pessoa. Isso é muito coisa de analista: às vezes o que eu quero não é o que eu desejo.
39
Vejo um pessoal sofrendo para ser não-monogâmico, porque no fundo foram
educados monogâmicos, desejam sim se casar, mas não vão admitir. [...] Estou mais
flexível, acho que porque atendo o pessoal não-mono na clínica e às vezes vejo que
é um sofrimento. Às vezes a pessoa nem quer aquilo de verdade” (Sofia). A
psicanálise, nessa direção, compreende o aspecto conflituoso do desejo, que pode
ser inconsciente. Nesse sentido, um dos papéis da análise é fazer com que o sujeito
escute o próprio desejo inconsciente através de suas manifestações na livre
associação e nas relações transferenciais, a partir do estado de atenção flutuante do
analista (FREUD, 1912).
Sofia continua e aponta para o risco da culpabilização individual: “não é para
lutar contra o casal ou quem vive o amor romântico, e têm todo o direito de viver. É
mais brigar socialmente contra essa compulsoriedade, que é violenta” (Sofia).
Paralelamente, a entrevistada ressalta o caráter danoso da educação monogâmica –
profundamente vinculada aos ideais do amor romântico –, que produziria violência:
“Me preocupa, principalmente a educação das meninas. Enquanto a gente educar
meninas para casar, é muito complicado sair do cenário de violência. [...] eu não
consigo não atrelar isso com a monogamia, com a educação, com o capitalismo, com
a forma como a família é construída. Eu não consigo” (Sofia).

Amor romântico e preterimento afetivo

Os entrevistados reconhecem o caráter nocivo do amor romântico, que se


fundamenta sobre a idealização e reitera papéis de gênero machistas. Pedro
compreende o amor romântico, também, como excludente, e compartilha sua
experiência enquanto homem negro e gordo ao discutir que alguns corpos, a depender
dos atravessamentos sociais, são mais “dignos” desse amor do que outros: “Entender
o mercado afetivo do amor romântico foi essencial para entender as violências que
ele produz. [...] as dinâmicas de preterimento, de secundarização. [...] o lugar que eu
sou colocado costuma ser esse lugar secundarizado. Não deixa de ser um lugar
doloroso de se estar. Mas eu escolho estar na construção de relações coletivas que
possam me proteger desse lugar. Mesmo que, nesse sentido, eu nem sempre esteja
em relações afetivo-sexuais, ou mesmo sexuais casuais. Busco não centralizar
minhas experiências nessas relações justamente para vivenciar outras possibilidades

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relacionais e afetivas, e não cair na espiral – que sobretudo pessoas dissidentes caem
– da solidão” (Pedro).
A rede de relações interpessoais surge como uma possibilidade de contornar a
solidão. Uma solidão, neste caso, relativa ao preterimento afetivo-sexual vivenciado
por corpos dissidentes da norma, tanto na monogamia quanto na não-monogamia.
Esse conceito foi abordado por algumas pesquisas: a dissertação de mestrado de
Souza (2008) aborda o preterimento da mulher negra pelo homem negro na cidade
de São Paulo; Ferreira e Caminha (2017) discutem o preterimento na experiência das
homossexualidades negras; Cordeiro, Sierra e Dias (2021) constatam que a vida
afetiva das bixas-pretas se configura em um processo de preterimento.
A experiência do preterimento afetivo-sexual revela que muitos corpos têm
pouco ou nenhum acesso à vivência do amor romântico. Este amor é fundado em
moldes eurocêntricos e, sendo assim, é branco e cisheterossexual. Corpos
dissidentes, fora dos ideais dos contos de fadas, são secundarizados no mercado
afetivo. Nesse sentido, os atravessamentos sociais possuem relação com o
preterimento afetivo-sexual.

“A saída é coletiva, de tudo”

Os discursos de Pedro e Letícia se aproximam quanto às discussões em torno


das quais seus ativismos se organizam no presente. Para eles, as discussões sobre
coletividade e comunidade são centrais ao debate. Letícia reconhece a importância
em ter um papel ativo na edificação desse projeto de vida: “Se eu quero ter uma não-
monogamia em que a coletividade é importante, em que o cuidado coletivo é
importante, que prioriza construir comunidade e que não deixa nas mãos do casal, da
família e questiona a família, eu tenho que ser parte disso” (Letícia).
Pensar a coletividade, nessa lógica, é valorizar a perspectiva da rede e discutir
maneiras de fortalecer os laços comunitários, assim como formas de coletivizar o
cuidado. Pedro afirma: “Estou na não-monogamia política para criar futuros em que
nenhuma pessoa seja sobrecarregada como minha mãe foi durante minha vida toda.
[...] Penso que a saída é coletiva, de tudo. E faz parte dessa saída coletiva questionar
a monogamia, porque a monogamia é o oposto da coletividade – ela se constitui na
exclusão” (Pedro).
41
As falas de Letícia e Pedro ilustram projetos de vida e atribuem à não-
monogamia um sentido político e emancipatório. Ciampa (2002), em sua obra, discute
a importância da consciência de um projeto de vida, assim como da construção de
uma identidade política, para a emancipação dos sujeitos. Para os três entrevistados,
a não-monogamia pode ser compreendida, também, enquanto uma identidade
política.

42
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O termo não-monogamia é utilizado para descrever diferentes tipos de arranjos


relacionais que, de algum modo, rompem com a lógica monogâmica. Se a monogamia
também pode ser compreendida enquanto um modelo, com bases e princípios pré-
estabelecidos, sua negação se apresenta como um não-modelo ou, ainda, uma
ausência de modelos. É nesse sentido que Núñez (2021) discute a artesania afetiva,
a partir da necessidade de construções singulares.
O objetivo dessa pesquisa foi compreender os sentidos atribuídos à não-
monogamia por ativistas que vivem relacionamentos não-mono e produzem sobre a
temática nas redes sociais. Dessa forma, buscou-se investigar o debate político da
não-monogamia no Brasil a partir dos discursos de seus interlocutores. Sendo assim,
não se pretendia chegar a consensos ou, muito menos, propor verdades absolutas. O
presente estudo apresenta como limitação um olhar para alguns aspectos do debate,
que não representam a sua totalidade.
A pesquisa cumpriu seus objetivos e se faz relevante para uma maior
compreensão acerca das não-monogamias, que constituem um tema ainda pouco
abordado na academia e, especialmente, no campo da Psicologia. A contestação da
norma monogâmica destitui antigos dispositivos de organização da vivência dos
afetos – tais como o amor romântico e a monogamia compulsória – e, assim,
possibilita a construção de relações calcadas em outros valores e critérios éticos, para
além da dominação, da posse e do controle.
De maneira geral, foi possível verificar que o debate político sobre a não-
monogamia ainda é um campo de disputas teóricas e conceituais. No Brasil, o tema
foi posto em discussão na virada do século XX e o acúmulo de debates, ao longo dos
anos, possibilitou a eclosão de novos agentes e interlocutores. Hoje, diferentes
perspectivas e epistemes alimentam as discussões coletivas, friccionando-se
constantemente.
Para além disso, foi possível constatar que a ausência de um repertório afetivo-
emocional que sirva para amparar a vivência de relacionamentos não-monogâmicos
apresenta-se como uma dificuldade experienciada por pessoas não-mono. Essa
dificuldade existe porque a monogamia não se trata de uma escolha, mas de uma
imposição social, jurídica e colonial. Compreende-se, também, que o sistema
monogâmico é apontado como uma estrutura que resulta do capitalismo e serve
43
diretamente à sua manutenção, legitimando e constituindo cenários de violência
diversos. Portanto, a discussão e nomeação da monogamia como uma estrutura a ser
questionada pelos seus efeitos para com a saúde integral dos sujeitos se mostram
essenciais.
A pesquisa em Psicologia Social também pode ser uma práxis. A articulação
entre teoria e prática surgiu, de acordo com Silvia Lane, para analisar criticamente e
repensar o saber psicossocial “procurando desenvolver pesquisas que, ao mesmo
tempo, permitissem avanços teóricos e sistematizações que também contribuíssem
para modificar situações e práticas sociais" (LIMA, CIAMPA E ALMEIDA, 2009, p.
227). Diante disso, o olhar para as não-monogamias pode contribuir tanto para a
nomeação de outras possibilidades para o agenciamento das relações humanas
quanto para a desnaturalização da monogamia, inclusive, enquanto única
possibilidade.

44
5. REFERÊNCIAS

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45
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ANEXOS

Anexo 1 - ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA

Informações preliminares
- Nome; Idade; Ocupação; Formação; Onde e com quem mora; Raça; Gênero;
Orientação sexual; posição política.

I) Trajetória
1. Fale sobre como conheceu formas de se relacionar não-monogâmicas.
2. Fale sobre relações não-monogâmicas vividas, desafios e estigma.
3. Fale sobre o que sente/pensa a respeito da monogamia.
4. Fale sobre desejo, amor, ciúme e acordos nas relações não-monogâmicas.

II) Política/ativismo
1. Fale sobre o momento da decisão pelo ativismo (motivações, trajetória, como
foi o início, atuações/práticas).
2. Fale sobre as pautas e/ou discussões em torno das quais o seu ativismo se
organiza.
3. Fale sobre perspectivas em relação aos ativismos não-mono no Brasil. Quais
os principais desafios?
4. Fale sobre tensões e aproximações com outros ativismos, disputas conceituais,
divergências políticas/teóricas.

III) Aspectos específicos e posicionamentos


1. Fale sobre como os marcadores sociais atravessam o relacionar-se.
2. Fale sobre a ideia da não-monogamia enquanto identidade. Qual o sentido
político de se afirmar “não-mono”?
3. Fale sobre as hierarquias relacionais.
4. Fale sobre o amor romântico.

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Anexo 2 - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Prezada(o) participante,

Sou estudante do curso de graduação de Psicologia da Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo. Estou realizando uma pesquisa intitulada “Um estudo sobre o debate
político da não-monogamia no Brasil”, orientada pela professora Andréia de Conto Garbin.

Este estudo tem por objetivo geral compreender os sentidos atribuídos à não-
monogamia por pessoas que vivenciam relacionamentos não-monogâmicos e produzem
pensamento sobre o tema. Sua contribuição consistirá na realização de uma entrevista, com
cerca de 1 hora de duração, sobre suas próprias vivências. Por se tratar de impressões
íntimas que abarcam experiências singulares, não há uma resposta certa. A conversa será
gravada para que as falas possam ser analisadas com mais atenção, mantendo assim a
fidedignidade das mesmas.

A participação é voluntária e se você decidir não participar ou quiser desistir de


continuar em qualquer momento, tem absoluta liberdade de fazê-lo. Na publicação dos
resultados, sua identidade será mantida no mais rigoroso sigilo. Serão omitidas todas as
informações que permitam identificá-lo.

Você não terá nenhuma despesa e não receberá nenhuma remuneração. Mesmo a
princípio não tendo benefícios diretos em participar, indiretamente você estará contribuindo
imensamente para a compreensão do fenômeno estudado e para a produção de
conhecimento científico.

Quaisquer dúvidas relativas à pesquisa poderão ser esclarecidas pelo pesquisador


Marcelo Bechara Tebexreni – (11) 99422-1369 – e pela orientadora responsável Andréia de
Conto Garbin – (11) 99814-1719 ou na Secretaria do CEP-PUC/SP Monte Alegre, que está
localizada no térreo do Edifício Reitor Bandeira de Mello (Prédio Novo), na sala 63-C, na Rua
Ministro Godói, 969 - Perdizes - São Paulo - SP - CEP: 05015-001 Tel./FAX: (11) 3670-8466
| e-mail: [email protected]. Horário de atendimento do CEP ao Público: Das 11h00 às
13h00 de 2ª a 4ª feira e das 15h30 às 17h00 de 5ª e 6ª feira

Assinatura do pesquisador:

Assinatura da orientadora responsável:

Eu, _______________________________________, declaro que entendi o objetivo da


pesquisa e concordo em participar da entrevista. Estou ciente de que dados que permitam
minha identificação serão omitidos a fim de garantir meu anonimato. Tenho ciência também
de que posso encerrar minha participação na pesquisa a qualquer momento. Por fim, sei que
este documento é emitido em duas vias que serão ambas assinadas por mim e pela
pesquisadora, ficando uma via com cada uma de nós.

Assinatura do participante:

São Paulo, ____ de _________ de 2022.

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