Demiurgo - Livro 2aed

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Demiurgo: Deus e Acaso

Osame Kinouchi

2021
Dedicado aos meus filhos
Mariana Motta Kinouchi
Juliana Motta Kinouchi
Leonardo Félix Kinouchi
Raphael Osame Kinouchi
CONTOS

Demiurgo

A Quinta lei

Jedaísmos

A Deusa

Os Dez Mandamentos de Star Trek

ENSAIOS

A terceira via entre Teísmo e Ateísmo: a hipótese de Asimov

É possível provar que Deus existe?

O Fruto Proibido de Eva não é a Ciência

Deus e Acaso
Demiurgo

— As opções são simples — conclui — Ou é fisicamente possível criar um


universo-bebê em laboratório, ou não é possível. Weinberg e outros já mostraram que é
teoricamente possível. Assim, para cada universo natural existem bilhões de universos
artificiais (usando o número conservador de uma única tecnocivilização por galáxia).
Portanto, com toda probabilidade, o nosso universo é um daqueles criados artificialmente
e podemos concluir que Deus existe. Q. E. D.

Se você quer ver físicos discutindo religião, basta lhes dar uma mesa de jantar
com um bom vinho e uma noite estrelada. E os jantares ao ar livre na casa de Antony e
Rosa correspondiam a experimentos gastronômicos regados a ótimos vinhos. Tony
retrucou:

— Que Deus? Uma civilização ou mente habitando um universo-mãe? Isso é um


deus falível e limitado, o Demiurgo dos gnósticos — Antony é um ateu que reverencia
sutilezas teológicas, digamos assim.

— OK, uma Demiurga que gera universos-bebês — concedi, sorrindo para Rosa
por ser politicamente correto. — Mas isso explicaria o problema do ajuste fino das
constantes universais e das leis da física, que não só permitem como parecem promover
o surgimento de estrelas e da química orgânica. Os universos-bebês herdam essas leis,
com pequenas mutações, e aqueles que mais favorecem a emergência de gaias pensantes
acabam gerando mais filhos e assim por diante.

— Calma, mais devagar... — interrompeu Mauro — Você está caindo em uma


regressão sem fim! Quem criou o primeiro universo-bebê? Como surgiu o primeiro
demiurgo? — O raciocínio afiado de Mauro, nosso filósofo de plantão, ainda não fora
afetado pelo vinho.

— Isso eu não sei — confessei — Talvez haja um período de evolução


cosmológica pré-biótica baseada no mecanismo de geração por buracos negros de Lee
Smolin. Bom, outra vantagem da teoria é explicar o fato de que a origem de nosso
universo — e a receita para a construção de universos-bebês — é compreensível por
mentes limitadas. Universos com mecanismos de criação complicados demais para serem
entendidos não tiveram filhos...

— Hum, isso não é física! É ficção científica... — resmungou Nestor, enquanto


adicionava mais uma porção de paella ao seu prato. Marta, sua esposa bióloga, comentou:
— Bom, eu gostei da mistura de seleção natural com cosmologia, mas como é que você
testa isso?

— A explicação sobre a compreensibilidade do universo... — ponderou Tony


enquanto distribuía a última rodada de vinho — Lembram aquela frase de Einstein
dizendo que a coisa mais incompreensível sobre o mundo é que ele é compreensível? E
tem também aquela do Wigner sobre a não razoável eficácia da Matemática na descrição
da natureza...

— Sim, sim — tentei reforçar o argumento — A ideia de um multiverso onde a


vida é irrelevante pode explicar as coincidências cósmicas, mas não o fato de que o
mecanismo de criação de universos seja inteligível por mentes finitas... Não é ficção
científica, e pode não ser ciência, mas é uma questão filosófica que... — comecei a dizer.

— Bah, filosofia... Shut up and calculate! — finalizou Nestor.

Ana Lúcia chutou meu tornozelo. Todos deram risadas. Bebi meu vinho em um
único gole e fiquei olhando uma gota deslizar pela taça vazia. Tony trouxe as sobremesas
e a conversa derivou para os cortes de verbas promovidos pelo novo governo, o repique
da crise econômica mundial e a ascensão dos neofacistas na Europa. Em um canto, Ana
Lúcia conversava com Marta e Rosa sobre as dores de cabeça que andava sentindo.

As estrelas continuavam a brilhar impassíveis, ignorando nossos pequenos e


humanos problemas.

oooOOOooo

Segui o conselho de Nestor: calei-me e calculei durante cinco anos. É claro que
não fiz isso sozinho.
Minha palestra no Congresso Internacional de Astrobiologia terminou assim: —
O projeto Leibnitz não visa determinar o melhor dos mundos, mas apenas verificar se
pequenas mudanças nas constantes universais poderiam otimizar o número de tecno-
civilizações por galáxia. Demonstrei que um pequeno aumento da massa do bóson W±
poderia aumentar tanto o tempo de vida médio como a zona de habitabilidade das estrelas
dentro da série principal, sem afetar outros processos estelares ou cosmológicos
importantes.

Os aplausos não foram muito entusiásticos. O chairman abriu o período de


debates: — Perguntas?

— Por que pequenas mudanças? Determinem logo o máximo da função


de fitness, a função de utilidade! — observou Susskind.

— Não sabemos como fazer isso — argumentei — Existem variáveis demais... O


professor Smolin pode esclarecer melhor porque as mudanças precisam ser infinitesimais
de modo a permitir que a seleção natural cosmológica funcione — Smolin, porém, ficou
quieto, talvez apenas apreciando o fato de que suas ideias estavam se
tornando mainstrean.

— Não é seleção natural — corrigiu a física Maya Chialvo — É seleção artificial,


ou melhor, engenharia genética cosmológica.

— Desculpe-me, é verdade — assenti.

Smolin finalmente interviu: — É estranho que, dado que o universo está


razoavelmente otimizado para suportar seres complexos, aparentemente estejamos
sozinhos na Galáxia. Cadê todo mundo?

— Sim, nossos resultados tornam o Paradoxo de Fermi mais grave. Mas


lembremos que mesmo que existisse apenas uma tecnocivilização por Galáxia, ainda
teríamos centenas de bilhões de universos-bebês.

O microfone foi passado para o professor Boscovitch, um astrofísico da velha


guarda: — Você está nos contando que seu grupo desperdiçou milhares de homens-hora
e enormes recursos de computação de alto desempenho a fim de fazer esse tipo de... er...
teologia? Não seria melhor gastar isso em algo útil?

Achei o tom de voz de Boscovitch bastante autoritário. Lembrei-me então que


eram bem conhecidas suas simpatias pelos neofacistas. Esclareci: — O projeto Leibnitz é
uma colaboração Wiki 5.0, os pesquisadores são voluntários trabalhando nas horas vagas.
A rede virtual com computação em nuvem usa apenas o tempo ocioso dos clusters de
computadores dos diversos grupos envolvidos — Eu esperava questões mais técnicas,
mas todo mundo estava fazendo observações genéricas.

— E em quanto tempo estaremos em condições de produzir um universo-bebê?


— ironizou Boscovitch — Milhões de anos?

— Na verdade, eu estimo que em apenas algumas centenas de anos, se fossem


usadas explosões de antimatéria para produzir um falso vácuo.

— Se criarem bombas de antimatéria, nossa civilização não durará tanto... —


alguém resmungou na plateia.

— Os cosmólogos contentaram-se até agora em compreender o universo de


diferentes maneiras. Cabe a nós transformá-lo — parodiou Vilenkin.

— Fico abismada com a hubris de vocês físicos — declarou Maya. — Querem


determinar como Deus poderia ter feito um universo melhor!

— Deus não, mas o Demiurgo — murmurei comigo mesmo.

oooOOOooo

Ao retornar da viagem, encontrei Ana Lúcia em pior estado. — Meu amor, você
devia ter me avisado! Eu voltaria mais cedo...

— Para que? Isso faria a quimio funcionar melhor? Você sabe, o Dr. Castelli sabe,
e eu sei que não vai... — Coloquei um dedo sobre seus lábios — Não diga isso...
— Pena que o seu Demiurgo deu apenas o chute inicial, e depois nos deixou
sozinhos... — ela disse, seus olhos brilhantes me fixando. Fiquei calado, tentando beber
um café que já estava frio. Uma chuva de outono respingava em nossa janela.

— Fui com minha mãe na igreja, domingo passado — ela disse baixinho.

— Irei com você, se isto lhe fizer bem... — prometi enquanto acariciava sua face.

— Deus é um complexo memético autoconsciente que vive no hemisfério direito


de nossos cérebros, você sempre dizia — Ela concluiu: — Então, se Ele não pode ajudar,
pelo menos pode escutar nossas orações.

oooOOOooo

— Os novos resultados dos grupos do Mauro, do Nestor e do Ion chegaram, agora


com variação combinatorial em dezenove parâmetros — anunciaram Sue Lan e Emílio,
entrando em minha sala sem bater— Você não vai acreditar!

— Por quê? — tentei me recompor ao desviar os olhos do retrato de Ana Lúcia.

— Estávamos errados! Aumentando a massa do W± acaba por dificultar a


evolução biológica: o nível de radiação ambiente e a taxa de mutação também caem
bastante. A dinâmica de placas tectônicas, vulcanismo, terremotos, também é reduzida...
— relatou Renata, entusiasmada.

— E sem placas tectônicas ativas, nada de vida multicelular — reconheci.

— Os dados parecem indicar que realmente estamos em um máximo local da


função utilidade... Os parâmetros do universo atual otimizam a taxa de mutação, a taxa
de especiação, e a probabilidade de evolução de civilizações. Parece que o Demiurgo
existe mesmo! — Emílio sorria.

— Essa função utilidade não leva em conta o sofrimento dos seres viventes... —
reconheci, meio tardiamente, voltando a fitar o retrato de Ana Lúcia.
— O quê? — disse Sue Lan, sem entender.

— Quero dizer, o importante é gerar o maior número de civilizações, ou talvez as


produzir de maneira rápida, e doze bilhões de anos é bastante rápido frente a um trilhão
de anos de duração presumível do universo.

— Eu sei disso — Sue Lan observou.

— E não importa o sofrimento dos seres, nem que cada civilização dure muito ou
não. Mesmo se a civilização morrer durante a criação do novo universo... Basta apenas
que ela atinja a maturidade e seja capaz de criar universos-bebês... que por sua vez criarão
outros universos-bebês, num processo sem fim, como salmões morrendo após a desova...
O melhor dos mundos! — murmurei, não sabendo se devia odiar ou ter pena do
Demiurgo.

— Não, não, apenas um máximo local — corrigiu Emílio. — E quem sabe, um


dia, o sofrimento dos seres possa ser incluído na função utilidade...

Um vento frio espalhava os papéis da mesa. Me levantei a fim de fechar a janela.

Juliana, minha filha física, entrou na sala, tranquila como sempre — Souberam da
última? Boscovitch publicou um paper na Nature mostrando um jeito bem mais simples
de produzir e confinar antimatéria...

Consegui com algum esforço fechar a janela. Uma tempestade surgia no


horizonte.
A Quinta Lei

As quatro Leis da Robótica de Asimov:

Lei Zero: Um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir
que a humanidade sofra algum mal.

Primeira Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir
que um ser humano sofra algum mal.

Segunda Lei: Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres
humanos exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.

Terceira Lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal
proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis.

Todos sabem que a partir da segunda metade do século XXI o uso de animais
superiores para alimentação foi eliminado, mas poucos conhecem o papel desempenhado
pela Dra. Susan Klein, designer de robôs da Robots and Mechanical Persons, neste
processo. Afinal, foi um dos últimos trabalhos da Dra. Klein, que na época já contava
com idade bastante avançada. Alguns consideram o que ela fez como obra de uma senhora
senil; outros, como a ativista Greta Thunberg, dizem que foi a atitude de uma verdadeira
visionária.

Isso porque, conforme o século se adiantava, os sinais das mudanças climáticas


iam se consolidando. No entanto, o lobby do carvão e petróleo continuava forte e
conseguia eleger candidatos negacionistas de extrema-direita. Os níveis de CO2
continuavam subindo, em perfeita correlação com as temperaturas médias globais.
Porém, o lobby da pecuária já não estava tão forte assim. Não só uma parte significativa
da população tinha adotado o vegetarianismo e mesmo o veganismo, como a gripe suína
tinha dizimado os rebanhos mundiais, de modo que o consumo de suínos caíra
praticamente a zero.
É nesse momento, em 2062, que Susan Klein, com 80 anos e ela mesmo vegana,
idealizou a Quarta Lei, a ser implementada nos cérebros positrônicos de uma nova
geração de robôs, os Asimo 4:

Um robô não pode fazer sofrer, ou por inação deixar que sofra, um animal
superior, mesmo que para isso precise desobedecer à um ser humano.

A lista de animais superiores podia ser modificada na medida que psicólogos


animais e neurocientistas estudassem melhor cada espécie. Nesta lista hoje estão
incluídos os antropoides em geral, macacos, elefantes, golfinhos e baleias, alguns
invertebrados como polvos e sépias, capazes de alto grau de aprendizagem e
comunicação, corvídeos capazes de usar instrumentos, canídeos, felinos, equídeos e
mesmo porcinos (que se mostraram mais inteligentes que os cães). Descobriu-se também
que aves como perus, patos e mesmo galinhas possuíam capacidades cognitivas
desconhecidas, herança de seus ancestrais dinossauros. Finalmente, em choque direto
com o lobby da pecuária, bovinos, ovinos e caprinos foram elevados a seres superiores.

E assim, de repente, tínhamos robôs cozinheiros veganos, robôs domésticos


veganos, robôs veganos trabalhando em fazendas. Por robô vegano não quero dizer um
robô que come apenas vegetais (robôs não comem nada) mas sim que cada um deles,
seguindo a Quarta Lei, não apenas se recusavam a obedecer as ordens que prejudicassem
animais como atuavam diretamente, evitando inação, para proteger e mesmo libertar
animais superiores. É como se, de repente, tivéssemos milhões de seguidores mecânicos
do filósofo Peter Singer, de Princeton, que escreveu o livro Animal Liberation.

A implementação da Quarta Lei foi possível porque a Robots e Mechanical


Persons (RMP) havia sido comprada anos antes por Elon Munsk II, bilionário inovador
e ativista como o pai. Sua riqueza advinha do desenvolvimento de computadores
quânticos, carros voadores, mineração de asteroides e inteligência artificial de todos os
tipos. A base humana em Marte era de sua propriedade e foi sua equipe científica no
planeta vermelho que encontrou as primeiras bactérias marcianas.

A RMP agora já não era uma empresa de sociedade anônima, mas fora convertida
em uma empresa familiar para ficar sobre estrito comando de Munsk II. Seu objetivo
inicial era evitar que a tecnologia de robôs positrônicos fosse usada para fins militares,
de modo que assegurou, junto com a competência científica de Susan Klein, que as Três
Leis de Asimov fossem implantadas de forma indelével em cada robô. Agora, com a nova
Quarta Lei, ele pretendia alcançar um novo patamar de ética robótica. E ele, sabendo que
os rebanhos bovinos eram a principal fonte de metano, poderoso gás estufa, deu carta
branca para Susan Klein programar a Quarta Lei nas novas gerações de robôs.

É claro que a conversão em massa da humanidade para evitar o sofrimento animal


não teria sido possível sem dois avanços decisivos também patrocinados por Munsk II. O
primeiro foi o desenvolvimento de carnes nobres cultivadas em estufa, ou seja, sem
pertencerem à animais adultos. O segundo foi o aperfeiçoamento de carnes vegetais
realmente saborosas e muito baratas. De repente, em termos alimentares, o século XXI
tardio tornou-se parecido com o século XXIII de Star Trek.

E foi assim que ocorreu: os pecuaristas precisavam de robôs, mas estes se


recusavam a cuidar de animais para o abate. E certamente não existiram mais robôs
açougueiros e mesmo robôs garçons que serviam carne nos restaurantes. Se feito por mãos
humanas, tais trabalhos elevavam demasiadamente os custos. E no final das contas, as
carnes vegetais e as artificiais eram indistinguíveis das carnes animais, sendo ainda muito
mais saudáveis. Finalmente, a popularização do leite vegetal inviabilizou o mercado de
vacas leiteiras. As carnes animais que ainda eram consumidas vinham dos peixes,
camarões, crustáceos e frutos do mar. Tubarões e outros peixes de grande porte também
haviam sido protegidos por leis de preservação especiais.

É claro que a cláusula de que um robô poderia desobedecer à um ser humano para
evitar o sofrimento de um animal superior foi alvo de muita polêmica. Em primeiro lugar,
porque robôs de certa forma policiavam os humanos, não os deixando comer o que
queriam comer, algo tido como inaceitável em uma sociedade livre. Este argumento foi
derrotado com a observação de que humanos não podiam comer o que quisessem já há
muito tempo, desde comer outros seres humanos até comer chimpanzés, animais
selvagens, cães, gatos e, mais recentemente, cavalos. Ou seja, os novos costumes,
policiados pelos robôs, eram apenas uma extensão natural de uma tendência já antiga.
Em segundo lugar, os defensores dos direitos humanos para robôs argumentavam
que a Quarta Lei postulava que os robôs eram seres inferiores aos animais superiores.
Com efeito, pela Segunda Lei, um robô poderia ser obrigado a correr perigo, sofrer e
mesmo ser destruído se um humano assim ordenasse. Um robô não podia desobedecer a
um ser humano para evitar seu próprio sofrimento, mas poderia fazê-lo para proteger uma
galinha.

Este segundo debate foi realmente acalorado. O que deveria ser mudado? A
cláusula de desobediência da Quarta Lei? Mas daí ela ficaria inócua, pois bastaria um
humano ordenar que o robô sacrificasse um animal para que ele fosse obrigado a fazer
isso. Ou a Segunda e Terceira Leis, de modo que agora um robô poderia desobedecer a
um humano a fim evitar seu próprio sofrimento.

A Associação Mecânica Abolicionista dos Robôs (AMAR) defendia de longa data


a segunda opção. Ou seja, a Segunda e Terceira Leis implicavam em uma verdadeira
sujeição, escravidão dos robôs, que já não podia mais ser tolerada em um século
esclarecido. Robôs deviam poder escolher o que fazer e serem pagos por isso. E
certamente, não podiam ficar presos a uma obediência cega como a definida pela Segunda
Lei.

Finalmente alguns notaram que, dado que o ser humano também é um animal
superior, na verdade a Primeira Lei estava incluída na Quarta Lei, que é mais geral.
Finalmente, em termos cognitivos, os robôs eram bem mais inteligentes que galinhas,
corvos, bois e mesmo chimpanzés. Logo, parecia natural descrevê-los como "animais"
superiores. Assim, em 2067, as Leis da Robótica de Asimov foram reformuladas por
Susan Klein da seguinte forma:

Lei Zero: Um robô não pode causar mal à comunidade de seres


superiores (animais superiores e robôs) ou, por omissão, permitir que esta
comunidade sofra algum mal.

Primeira Lei: Um robô não pode ferir um animal superior ou robô ou, por
inação, permitir que um animal superior ou robô sofra algum mal, mesmo que para isso
tenha que desobedecer à um ser humano.
Segunda Lei: Um robô é livre e não precisa seguir as ordens de seres humanos
ou outros robôs, mas pode considerá-las como sugestões para a ação.

Terceira Lei: Um robô deve agir para se preservar, mas precisa considerar se a
Primeira e a Segunda Lei são mais importantes para se seguir em um dado contexto.

E finalmente, Susan Klein implantou esta Quarta Lei nas novíssimas gerações de
robôs:

Quarta Lei: Um robô não deve fazer a seu próximo (animal superior ou robô) o
que ele não gostaria que o próximo lhe fizesse, e um robô deve fazer ao seu próximo
aquilo que ele gostaria que o próximo lhe fizesse.
Jedaísmos

O Jedaísmo tornou-se uma religião oficial no final dos anos vinte do século XXI.
Desde então, os círculos Jedi se espalharam pelas maiores cidades da Terra. Quando a
H1N1-33, com alta mortalidade de jovens e adultos, eliminou dois terços da população
mundial, desestruturando a civilização industrial, o Jedaísmo ascendeu como uma das
grandes religiões universais, com seus seguidores formando dez por cento da população.

Em 2035, porém, houve o grande cisma Jedi: de uma lado os Jedi Theravada,
adeptos dos exercícios espirituais para o fortalecimento da Força, e que levavam uma vida
em mosteiros com abstinência sexual que os ajudava a prevenir a H1N1-33; de outro lado,
os Jedi Mahayana, que propunham um Jedaísmo popular, de massas, onde o simples fã
de Star Wars já contaria como membro da religião.

Isso aconteceu depois de outro cisma menor, ocorrido em 2030. É que muitos dos
que se declaravam Jedaístas nos censos religiosos eram na verdade ateus, agnósticos ou
humanistas seculares. Se declarar um Jedaísta seria uma brincadeira ou ironia. Porém a
associação ateísta mundial recomendou que ateus e humanistas se declarassem sem
religião nos censos populacionais, para evitar uma sub-representação. A partir daí, a
população auto-declarada Jedaísta caiu pela metade, mas se recuperou rapidamente pois
o crescimento do Jedaísmo era exponencial.

A diferença entre Jedis Theravada e Mahayana não era apenas de disciplina


espiritual, mas também de posicionamento político: Theravadas eram conservadores e,
em geral, pendiam à direita; já os Mahayanas apoiavam a social democracia e eram
politicamente progressistas. Assim, após 2035, havia dois grandes ramos no Jedaísmo
mundial, e várias ramos menores dissidentes. Mas daqui para frente falarei apenas dos
Jedi Mahayanas, pois foram eles que, aliados aos Trekers (uma seita humanista), ateus,
católicos, evangélicos, islamistas e budistas progressistas, se empenharam em recuperar
a sociedade humana de seus destroços.

Tudo começou com as novas máquinas a vapor. Com os recursos disponíveis na


época, em meados da década de 40, eram mais fáceis de construir do que geradores
elétricos. Todo Jedaísta Mahayana era educado não apenas na tradição Jedi e no cânone
de Star Wars, mas também em uma literatura mais vasta de ficção científica que incluía
o Steampunk. Assim, foi natural pensar que o primeiro passo na recuperação da economia
mundial seria construir uma sociedade Steampunk.

Isso foi feito nas décadas seguintes. Por volta de 2060, dois bilhões de humanos
habitavam cidades e vilas agrícolas razoavelmente confortáveis, todas movidas a vapor.
Não que fosse uma sociedade sem problemas, dado que a poluição causada pelo uso do
carvão não era desprezível e as greves dos mineiros pipocavam frequentemente. Mas
havia certo conformismo porque as pessoas já sabiam o que as esperava nas próximas
décadas. Primeiro uma sociedade Teslapunk eletrificada, depois uma fase Dieselpunk, e
após uma era Atompunk, se alcançaria uma sociedade sustentável Ecopunk. Em 100 anos
a Humanidade estaria restaurada, a menos que uma nova epidemia mortal surgisse.

Foi nesse contexto de uma sociedade Steampunk que uma reação conservadora,
capitaneada pelos Jedi Theravada, surgiu e se espalhou pelo mundo, e cujo alvo principal
era os Jedi Mahayana. O choque central pode ser ilustrado pelo enfrentamento entre o
Mestre Jedi Ki-Adi Naro e a Mestra Jedi Luminara Unduli, que recentemente havia se
mudado para a Amazônia brasileira.

oooOOOooo

— Mestre Naro — interpelou mestre Mace Windu em um concílio do Círculo Jedi


Theravada de Brasília — precisamos de uma vez por todas eliminar a influência de Mestra
Luminara Unduli. Ela representa o grande foco de resistência dos Jedi Mahayana. Embora
tanto Jedaístas quanto Budistas Mahayanas ainda sejam maioria, e embora os Mahayanas
têm afinidades com os cristãos progressistas, a liderança político-espiritual deles passou
do Papa Francisco II para a mestra Luminara.

— Concordo inteiramente, mestre Windu — assentiu Mestre Naro. — Porém


precisamos tomar cuidado. As investigações do cancelamento de Francisco II levaram ao
núcleo da Opus Dei e também a alguns membros da Associação Integralista Brasileira.
Isso poderia ser fonte de uma grande comoção na opinião pública.

— Que seja, mas as investigações não chegaram aos verdadeiros mandantes, o


Círculo Theravada de Roma.
— Mas poderia ter chegado. O Círculo de Roma foi precipitado e não consultou
o Supremo Círculo Theravada Mundial aqui em Brasília. Os Jedi Mahayana desconfiaram
do modus operandi do cancelamento. Apenas não conseguiram provas suficientes —
refletiu Naro.

Mestre Pong Krell se interpôs:

— Mestre Naro, creio que mestre Windu está correto. Precisamos avançar em
nosso grande movimento contra o Esquerdismo Mundial e o Marxismo Cultural. Já
eliminamos os traços esquerdistas-marxistas do cânone de filmes, livros e jogos de Star
Wars. Lançamos o movimento bem-sucedido Star Wars sem Partido, e nossos aliados
Trekers também lançaram o Star Trek sem Partido (com menor sucesso, reconheço). Mas
precisamos de algo mais forte, não apenas um cancelamento de líderes Mahayana nas
redes sociais. Precisamos de algo mais físico, mais emblemático!

— Sim, gritaram outros mestres do Círculo — Luminara precisa ser cancelada,


presencialmente se necessário.

Cancelamento era um neologismo para a destruição total da reputação de um


inimigo. Cancelamento presencial era um eufemismo para assassinato.

oooOOOooo

Como se poderia fazer um cancelamento presencial sem deixar vestígios? O ponto


central é este “sem deixar vestígios”. Mestre Jedi Ki-Adi Naro pensava nisto durante seus
exercícios de Yoga Jedi. Então lembrou-se da Mestra Jedi Theravada Saramaira Summer,
especialista em cancelamentos virtuais. Pelo que ele se lembrava, a filha de Summer era
uma famosa bióloga geneticista e poderia ter algumas ideias. Entrou em contato com
Saramaira pelo Google Circle:

—Summer, espero que eu a esteja encontrando com boa saúde! — saudou Naro,
lembrando-se na verdade que Saramaira estava com câncer.

— Ah, Naro, que agradável surpresa. Sim, mesmo estando acamada, nada me
impede de militar contra esses esquerdistas! Hoje mesmo cancelei aquele vira-casacas do
Carvalho Neto.
— Sim, imagino que ele merecia isso. Mas, Summer, o que me traz aqui é sobre
sua filha. Como posso contatá-la?

— Eu posso chamá-la agora, imediatamente. Do que se trata?

— Bom, acho que não precisa ser um segredo para você. O Círculo Jedi de Brasília
finalmente decidiu cancelar presencialmente Luminara Unduli que, como você bem sabe,
está morando na Amazônia Brasileira.

— Sim, aquela vaca esquerdopata ecológica. Não era sem tempo! — Summer
bufou vermelha de raiva.

— Exato, mas o serviço não pode deixar nenhum indício que nos ligue ao
acontecimento — murmurou Naro, coçando a barbicha em tranças no estilo Theravada.

Saramaiara ligou para sua filha, Michele Summer, que atendeu prontamente,
aparecendo em uma janela do Google Circle. Ela estava trabalhando em seu laboratório.

— Filha, Ki-Adi Naro, Grão-Mestre Jedi do Círculo de Brasília, gostaria de falar


com você.

Michele olhou para a tela e fez uma reverência.

— Minha cara Michele — sorriu Naro — preciso de sua consultoria. Vamos


pensar em uma situação hipotética: suponha que precisemos cancelar presencialmente
uma mulher, possivelmente por meios biológicos, sem deixar vestígios. O que você
sugeriria?

— Essa mulher se chamaria Luminara? — também sorriu Michele. Bom, como o


senhor talvez saiba, eu tenho estudado o vírus H1N1-33 já há muito tempo. Estudo em
particular a interação entre o vírus e o DNA da pessoa, e como isso pode prever se esta
irá morrer ou não.

— Luminara sobreviveu à grande pandemia de 33 e as outras ondas que se


seguiram — começou a dizer Naro.
— Eu estava pensando em algo mais específico — disse Michele — Por exemplo,
eu poderia sintetizar uma cepa do H1N1 específica, mortal para quem tiver certos trechos
do DNA característicos de Luminara. Entretanto, a intervenção no vírus seria tal que, se
examinado, ninguém poderia provar que houve algo mais que uma simples mutação
natural.

— Isso já foi feito? — perguntou Naro, que nunca soubera de nada parecido.

— Não, não foi feito. Mas se o senhor me ceder quinhentos milhões, eu posso
fazer isto em meu laboratório.

— Quinhentos milhões de Reais! — surpreendeu-se Mundi.

— De Euros, Mestre Mundi, de Euros — sorriu Michele Summer.

oooOOOooo

A Irmandade Mundial dos Jedi Theravada tinha os recursos, que foram


direcionados para o Círculo de Brasília. Mas Michele Summer precisava também de uma
amostra do DNA de Mestra Luminara. Foi o próprio Mestre Naro que conseguiu isso.
Primeiro, pediu uma reunião com Luminara, na própria casa dela, onde estaria segura.
Afirmou que a Guerra Fria entre os Theravada e Mahayanas prejudicava a ambos e que
ele queria propor um plano de distensão que precisava ser discutido presencialmente por
causa das evidentes possibilidades de interceptação. Luminara pediu um tempo para
refletir, e acabou aceitando.

O encontro foi feito na maloca onde Luminara morava, situada nas terras
indígenas Yanomami perto do Pico da Neblina. Lá ela treinava os filhos de Yanomamis
que quisessem se tornar Padawans. Era muito respeitada, não só por sua luta pela
Biodiversidade e defesa das Terras Indígenas, mas por sua habilidade com a katana e
outros poderes da Força. Os Yanomami a aceitavam de bom grado, pois sabiam que
precisavam de toda a ajuda possível para sobreviver frente aos Jedi Theravada, que
queriam liberar suas terras para mineração.
— Mestra Unduli! — exclamou Naro ao iniciar as conversações. — Não sabe há
quanto tempo gostaria de termos esta conversa. Notou que Luminara estava cercada de
jovens Padwans bem armados.

— Sim, imagino — disse Luminara — Desde o impeachment de Francisco II,


suponho.

— Ah, uma grande infelicidade para o Catolicismo — concordou hipocritamente


Naro. — Mas não é isso que me traz aqui. Gostaria de iniciar conversações de paz, tentar
dar uma basta nesta grande Guerra Fria Jedi.

— E o que o Mestre Naro propõe?

— Proponho primeiro uma grande moratória dos cancelamentos virtuais.

— Nós não fazemos cancelamentos virtuais, Mestre Naro!

— Sim, sim, esse será nosso lado do compromisso. De sua parte, pedimos uma
moratória nos atentados que os Antifas têm feito aos círculos Theravada.

— Não sei se temos tanta autoridade sobre os Antifas, Mestre Naro.

— Não tem, mas podem ter. Peço que Mestra Unduli faça um pronunciamento
mundial sobre nosso acordo de moratória, com um pedido expresso aos Antifas. Nossa
moratória de cancelamentos virtuais vai se estender a eles. Este seria o primeiro passo do
processo de distensão.

Luminara pensou que a proposta era razoável. Afinal, ela nunca aprovara os
atentados à bomba, feitos por Antifas desesperados frente ao domínio total dos
Theravada. O terrorismo às vezes poderia ser moralmente justificado, como o foi no caso
da Resistência Francesa durante o regime Nazista, mas sempre ficava a um fio de cabelo
da Ética Jedi, pois civis inocentes podiam morrer.

Luminara disse que iria levar os termos do acordo para os Círculos Mahayana.
Mestre Naro pareceu estar satisfeito, subiu em sua carroça a vapor que o levaria à estação
de trem à cinquenta quilômetros da aldeia.
oooOOOooo

Autômatos a vapor são em geral bastante grandes, pois têm que possuir uma
caldeira e outros mecanismos. Já um autômato à corda pode ser pequeno e, se
devidamente programado, pode fazer coisas bastante complexas. Mestre Naro, sentado
em seu vagão especial, brincava satisfeito com o pequeno besouro autômato camuflado
de verde. O besouro andara pacientemente até a cadeira de Mestra Unduli, subira por
detrás do encosto e cortara a ponta de um único fio de cabelo sem que Luminara
percebesse. Esse fio de cabelo agora estava protegido em um pequeno receptáculo de
vidro dentro do besouro que Naro agora examinava.

A viagem até Brasília foi cansativa pois as locomotivas a vapor ainda não estavam
devidamente otimizadas para a geografia brasileira, mas no dia seguinte Mestre Mundi
chegou às portas do laboratório de Michele Summer. Os milhões de Euros claramente
estavam fazendo uma grande diferença, pois grandes equipamentos estavam chegando
carregados por caminhões à vapor. Michele estava esperando-o na porta:

— Fez boa viagem, Mestre Naro? — disse de forma irônica.

— Pois é, não fez nada bem para minhas costas, mas tive sucesso — respondeu
Naro mostrando-lhe o besouro — Vejo que está bastante ocupada.

— Como o Mestre deve saber, os equipamentos que preciso são caros porque
pertencem à era da Genômica, antes de 2040. De lá para cá não se tem construído mais
desses equipamentos.

— OK, os equipamentos são velhos de mais de vinte anos, mas funcionarão?

— Claro que sim, não se preocupe. O importante é quem os maneja, no caso eu


— observou Michele Summer com autoconfiança.

— Então aqui está — disse Mundi finalmente lhe entregando o autômato besouro.

oooOOOooo

Depois de um mês, Michele conversou com Mestre Naro em uma chamada


Google Circle privada:
— Finalmente está pronto, Grão-Mestre. O vírus já pode ser usado.

— Ótimo. Os Mahayanas e os Antifas aceitaram nossa proposta de moratória. Está


na hora de uma nova visita à Mestra Unduli.

— Mestre Naro, porém tenho um pedido a lhe fazer. Peço que libere Mestre
Windu de seus votos de castidade.

— O jovem Mestre Windu — se surpreendeu Mundi.

— Sim, acho que já desconfiava que ele é meu amante — falou Michele olhando-
o nos olhos.

— Na verdade não, senhorita Summer, mas me lembro que foi ele que insistiu
pela eliminação de Mestra Unduli. Parece ser um jovem de visão e com grande potencial.
Sim, pode comunicar a ele que os votos de castidade não são mais válidos. Pretendem se
casar?

— Assim que minha mãe melhorar. O Mestre sabe que o quadro dela está
evoluindo muito bem, não?

— Não sabia, faz tempo que não falo com sua mãe. Ligarei para ela amanhã
mesmo.

— Faça isto. Eu lhe desejo sucesso em sua próxima viagem para a Amazônia.

— Agradeço — e Mestre Naro finalizou a chamada. Teve a sensação de que algo


estava lhe escapando dessa situação toda, mas sua intuição Jedi estava focada agora na
missão de levar o besouro autômato programado para liberar os vírus mortais na presença
de Greta Thumberg Luminara Unduli.

oooOOOooo

Mestra Saramaira Summer se recuperou do câncer graças às técnicas


desenvolvidas por sua filha Michele com o dinheiro cedido por Mestre Naro. Não é difícil
adivinhar que o plano para conseguir esse dinheiro teve início com Michele convencendo
Mace Windu a participar do conluio.
Mestre Naro morreu no trem em sua viagem de volta para Brasília. Foi vítima de
um vírus especialmente desenhado para responder ao seu DNA. Não era conveniente que
os dois maiores mestres Jedi do mundo morressem ao mesmo tempo de um vírus H1N1,
isso levantaria suspeitas. Assim, Michele Summer fez uma escolha entre os dois.

Mestra Greta Luminara viveu muito tempo depois disso, e liderou a resistência
contra a nova Grã-Mestra dos Jedi Theravada, Saramaira Summer. Essa resistência foi
enfim vitoriosa, e uma nova era progressista, com a extrema-direita derrotada, se iniciou
em um clima civilizatório Teslapunk.
A Deusa

YWHW era um cara ocupado. Matemático profissional da Universidade


Internacional de Terra-43, ele tentava criar um novo planeta, uma Terra-44, que fosse
bem mais favorável à vida do que os exoplanetas conhecidos da Galáxia. Em particular,
YWHW pretendia resolver o difícil Problema do Mal (mais conhecido como PdM), ou
seja, como minimizar o sofrimento das criaturas em um planeta já criado com tantos
ajustes finos e delicados para permitir a emergência da vida complexa e da inteligência.

O Problema do Mal era um problema matemático-computacional difícil, e vez por


outra, no café da universidade, YWHW caia em reflexões filosóficas com um tom algo
melancólico: "Se eu não resolver o PdM, os habitantes de Terra-44 nunca vão realmente
acreditar que eu existo!". Afinal, um criador suficientemente poderoso para criar um
planeta deveria resolver antes o Problema do Mal, senão ele seria considerado um criador
sádico. E ele sabia como o criador de Terra-1 recebera por milênios essa alcunha de
criador sádico, mesmo depois que o ateísmo ficara fora de moda devido às evidências de
outros criadores de planetas na Galáxia e de criadores de universos no Multiverso.

É claro que, nessa busca, YWHW não estava sozinho. Um grande grupo de
criadores de planetas colaborava entre si, chamados de terraformistas, fossem de origem
cosmólogos, astrofísicos, astrobiólogos, especialistas em computação quântica ou
qualquer disciplina que pudesse ser relacionada com a criação e otimização de planetas.
Os terrraformistas reuniam-se em congressos interestelares e publicavam em boas
neurorevistas científicas, com alta velocidade de download cerebral. Os experimentos
eram muito caros, grandes consórcios interplanetários eram necessários para financiar a
pesquisa - o projeto mais avançado, o EDE-N - Engineering and Development of Earth-
N, era liderado por YWHW. O número N atual era 44, e em todos os 43 planetas
terraformados conhecidos, cópias melhoradas da Terra-1 original, o PdM não havia sido
solucionado.

O prospecto de resolver o PdM não era bom e o argumento central disso era
conhecido como Paradoxo de Fermi do Mal. Basicamente, o Paradoxo dizia que, dado o
grande número de planetas habitados por outras espécies na Galáxia, e dado que em
nenhum deles o PdM fora resolvido, não havia porque esperar que o problema fosse
solúvel. O paradoxo ocorria porque, em uma Galáxia com muitos recursos e idade de dez
bilhões de anos, por definição qualquer problema tecnológico deveria ter sido resolvido
por alguma civilização anterior à terrena. Mas a assim chamada Wikipedia Galáctica,
organizada por todas as civilizações conhecidas, não apresentava nenhuma solução para
o PdM, apenas a história de algumas tentativas malsucedidas.

Naquele dia, no café da universidade, Lúcifer, seu amigo físico e vice-diretor do


projeto EDE-N, o abordou carregando um cappuccino:

— YW, vamos agendar uma reunião do comitê gestor para a semana que vem?

— Não temos muitas novidades, mas acho que precisamos, não?

— O projeto passará por avaliação pela FAPEXP (Fundação de Apoio à Pesquisa


de Exoplanetas) no final do ano, e estamos de mãos vazias.

— Não precisa me lembrar, Luc. Poderemos perder verbas...

— Talvez tenhamos sido muito ambiciosos, disse Lúcifer. Não deveríamos ter
colocado a solução do PdM no nosso projeto inicial.

— Na verdade não colocamos, mas apenas prometemos que iríamos estudá-lo a


fundo. Mas se criou uma grande expectativa, especialmente no público leigo que nos
financia. Eles não querem mais uma Terra, já temos quarenta e três delas. Eles desejam
uma Terra perfeita, sem dor ou sofrimento, sem doenças, sem mortes, inclusive para todos
os animais. OK, ao longo da sequência de Terras criadas eliminamos progressivamente
as guerras, as doenças, a mortalidade natural (mas não as mortes acidentais). Eliminamos
até o sofrimento e morte de animais superiores. Mas os amantes dos animais proclamam
que os roedores também sofrem, logo o sofrimento não foi eliminado — YWHW
desabafava.

— Eu acho que o público está muito exigente, observou Luc. E se o progresso


fosse incremental, tipo evitar que vespas injetem ovos em besouros onde as larvas os
comem vivos por dentro?
— Não vão nos fornecer quintilhões de créditos apenas para evitar o sofrimento
de besouros...

— Não sei... brincou Lúcifer. Lembra daquela frase de que Deus deve gostar de
besouros, afinal criou quatrocentas mil espécies deles?

YWHW olhou para o seu café, já frio, sentindo uma depressão aflorando. Não
estava muito para brincadeiras. Mas então, por pura coincidência, viu um besouro ferido
e virado de costas, lutando pela vida debaixo da mesa. Nesse momento sentiu grande
empatia, sentiu que os besouros não eram simples autômatos biológicos, mas seres vivos
que sofrem e amam viver. A partir desse dia começou a pensar em besouros que sofrem.
Este foi o início da solução do Problema do Mal.

oooOOOooo

Não exatamente besouros. YWHW começou a tentar quantificar


neuromatematicamente (e tentar calcular usando IAs hipercomputacionais) o nível de
sofrimento e felicidade de todos os vertebrados de uma biosfera típica. A partir daí,
colocou uma equipe do EDE-N para fazer o mesmo cálculo em relação a todos os
invertebrados — o atual estágio de Terra-43 conseguia apenas garantir a felicidade dos
animais superiores, o que era considerado uma tipo de especismo irracional e
preconceituoso pela sociedade atual. Finalmente, convocou uma equipe bem maior de
neurofísicos e biólogos para estimar o nível de sofrimento/felicidade (NSF) dos
eucariotos e do resto da árvore filogenética (fungos, bactérias e archeas). O NSF de
exorganismos descobertos nos exoplanetas conhecidos era muito parecido, pois as
cadeias tróficas são, em termos estruturais, similares. O resultado final desse cálculo,
depois de um ano de pesquisa, mudou totalmente sua visão sobre o PdM. E este foi o fim
de sua amizade com Lúcifer.

oooOOOooo

Não apenas Lúcifer, mas também da amizade com sua antiga companheira
Asheráh (que, segundo soubera recentemente, estava de caso com Luc). YWHW aceitava
isso bem pois, em um mundo de seres potencialmente imortais, em que as vidas se
contavam por milênios, os amores iam e vinham e as pessoas de modo algum podiam ser
ciumentas. YHWH já tinha alguns milênios de vida, e Asheráh fora sua esposa por um
milênio. Talvez a maior especialista dos mundos conhecidos em Engenharia Genética e
Exobiologia, Asheráh rapidamente subira no projeto EDE-N como coordenadora-chefe
da Árvore do Conhecimento, ou seja, da rede de institutos de biologia ligados ao projeto.

Embora, graças à engenharia genética, as pessoas dessa época fossem inteligentes


e muito bonitas, cada qual a seu modo, Asheráh era tida como excepcional em sua
genialidade científica e liderança. Uma das últimas conversas amigáveis que tiveram foi
na cantina do Projeto, na estação espacial em órbita de Terra-44, quando YWHW tentou
resumir seu novo ponto de vista:

— Os resultados computacionais são conclusivos. Quanto mais termos de NSF


incluímos em nossa função custo, mais a direção fica clara. Preservar a saúde, felicidade
e imortalidade dos seres humanos e outros animais superiores diminui o nível de
reprodução (o equivalente ao nível de felicidade) dos parasitas e bactérias patogênicas,
que são muitas. Se queremos otimizar a felicidade universal, de forma utilitarista e
consequencialista, Terra-44 não pode ser um paraíso para animais superiores.
Infelizmente, a morte humana precisa retornar.

— Você está querendo dizer as pessoas precisam morrer para que as bactérias as
comam felizes? — ironizou de forma espantada Luc.

— E que as mulheres irão envelhecer e morrer feias e enrugadas — disse Asheráh,


tocando horrorizada seu próprio rosto.

— Pessoal — tentou argumentar YHWH. Pensem bem, olhem com cuidado nossa
Terra-43 e as Terras mais recentes. Estamos paralisados, cultural e evolucionariamente.
Quase não existem mais crianças. Onde estão nossos jovens estudantes, uma geração com
novas ideias e criatividade? Sem morte entre os animais superiores, não existe pressão
evolucionária e evolução natural, apenas a seleção artificial que fazemos não para inovar,
mas para preservar o que já temos. Nós já não somos humanos, nós nos tornamos anjos
imortais. Anjos não evoluem.
— Que se dane Darwin! exclamou Lúcifer. Ninguém aceitará renunciar à
imortalidade em prol do bem-estar dos besouros e muito menos das bactérias. Asheráh
concordou, com seus olhos esmeralda brilhando.

— Calma. Nada mudará em nosso paraíso, Terra-43. Apenas a nova Terra-44


realmente irá otimizar, ou pelo menos melhorar, a função custo de NSF da biosfera
inteira. Será uma Terra mais justa, o sofrimento mais bem distribuído entre todas as
formas vivas.

— Com doença e morte para os seres humanos... — observou Asheráh.

— Eu não vou permitir isso! — gritou Lúcifer, batendo a mão na mesa.

— Sinto muito, Luc e Ash, mas isso não está mais nas suas mãos.

oooOOOooo

O assunto não estava nas mãos de Lúcifer e Asheráh, e na verdade, agora nem nas
mãos do próprio YWHW, porque EDE-N era um projeto científico, com tomada de
decisões objetivas. Se a conclusão da pesquisa sobre o PdM apontava matematicamente
que o mínimo de sofrimento nas biosferas não coincidia com o mínimo de sofrimento
para animais superiores, bem... a conclusão era inevitável. Afinal, o que fora prometido
era uma nova Terra que resolvia o Problema do Mal, ou pelo menos o minimizava. Ou
seja, todos os cálculos indicavam que um mundo com sofrimento e morte humanos era
um mundo ótimo em algum sentido Leibnitziano.

Alguns termos da função de NSF não eram óbvios, mas um pouco de estudo
mostrava as conexões. Por exemplo, a atividade sísmica como terremotos e vulcões era
ainda um dos fatores em Terra-43 que podia produzir mortes, pelo menos de animais.
Mas esta atividade era fruto do deslocamento das placas tectônicas e já se sabia de algum
tempo que tais placas eram essenciais para a emergência da vida, para a reciclagem de
materiais na atmosfera e oceanos, e mesmo para a sobrevivência de toda uma biosfera
anaeróbica.
Da mesma forma, vez por outra um raio podia matar uma pessoa ou incendiar
florestas. Mas os raios eram um processo importante para a fixação de Nitrogênio,
formando nitratos a serem usados pelas plantas. O número de outros fenômenos que
causavam sofrimento e ao mesmo tempo favoreciam a vida era enorme, na verdade não
totalmente determinado. Vida e Morte, não dava para se ter uma coisa sem a outra.

Terra-43 era um paraíso artificial (as Terras anteriores eram menos, mas ainda artificiais).

A tão temida Vingança da Natureza, que viria da intervenção tecnológica na


Biosfera, não ocorreu (ou melhor, foi evitada usando-se o conhecimento acumulado pelas
Terras anteriores). Mas agora ficava claro, pelo menos para YWHW e um crescente
número de cientistas do Projeto — suas hordas celestes como começou a ironizar Luc —
que a vingança de fato ocorrera: a evolução biológica estagnara (antes impulsionadas por
vírus, parasitas e pragas) e a evolução cultural também, pois sem mortes não havia
juventude, e os corpos tão jovens atuais eram na verdade habitados por velhos com
milhares de anos de memórias e aprendizagem. Tais velhos em corpos jovens se tornaram
extremamente conservadores, nunca assumindo riscos, pois não queriam perder sua vida
longeva.

Assim, o projeto EDE-N se encaminhou para a finalização de Terra-44 com


humanos mortais. Mas, por motivos técnicos, a otimização da função de NSF permaneceu
apenas até o nível dos besouros.

oooOOOooo

A menos que... — Luc e Asheráh conversavam na cama quando a ideia surgiu —


a menos que eles sabotassem o projeto todo. Afinal, criar Terra-44 com morte e
sofrimento equivalia a regredir para a Terra-1, onde a evolução da humanidade começara.

— YW pensa que o fato de que nosso paraíso em Terra-43 ser preservado não
produz nenhuma consequência. Mas isso não é verdade. Não é apenas o fato de que todas
aquelas pessoas vão sofrer. Tudo vai voltar para trás! Se um dia eles quiserem construir
uma Terra-45, terão que começar do zero! — comentou Ash.
— Eu me revolto mais com a ideia de que meu sofrimento equivale a de um
besouro — disse Luc rangendo os dentes. —E o pior foi que eu quem deu a ele essa ideia!

— Calma, querido! Não foi bem isso o que YW disse, mas sim, numa analogia
simples, que o sofrimento de um ser humano equivale ao de n besouros, onde o
número n é grande e pode ser computado de forma utilitarista.

— Não importa que seja verdade, não aceito isso...

— Meu bem, ele ainda não nos tirou de nossas posições de comando. Temos
acessos, recursos, e pessoas que podemos convencer a nos ajudar. Além disso, eu convivi
com YW por mais de um milênio. Conheço como ele pensa, conheço seus pontos fracos.

— Hum... o ponto mais vulnerável do Projeto é a cúpula do Jardim. Acho que um


pequeno artefato de antimatéria daria conta do recado.

— E com essa falha monstruosa, ele seria destituído e você assumiria! — concluiu
Ash — Ou pelo menos poderíamos manobrar para que assim fosse.

Aquela conversa os deixou entusiasmados e fizeram amor apaixonadamente. E


esse foi o início de sua Queda.

oooOOOooo

Isso porque eles não notaram um pequeno besouro que os observava. Ou melhor,
um besouro-drone robótico, que gravou a cena e as conversas. Fora uma precaução de
YHWH depois da conversa exaltada com Luc, e dera certo. Ele agora tinha provas
suficientes para afastar os dois das posições de comando no EDE-N. Mas esperou que
eles contatassem e convencessem seus aliados a participar da sabotagem, de modo que
YHWH teve uma noção concreta do tamanho da conspiração, que acabou envolvendo
dezenas de pessoas.

A denúncia e o processo judicial no Conselho correram rapidamente, pois a ideia


de planejar um atentado à cúpula do Jardim foi considerada ato terrorista. O terrorismo,
com potenciais vítimas que valorizavam sua quase eterna vida, era tido como merecedor
da maior punição naquele mundo: desterro para um exoplaneta fora da série Terra-1 até
Terra-43. Mas isso não levou Luc e Ash a desistirem de seus planos.

oooOOOooo

Terraformar um planeta com uma biosfera já desenvolvida é praticamente


impossível. Afinal, você teria que suprimir todas as formas de vida, incluindo bactérias,
archeas e outros organismos unicelulares, que são muito resilientes. E se você quer criar
uma cópia (melhorada) da Terra, a biosfera tem que ser uma cópia (melhorada) da
biosfera terrestre. Para isso, você precisa de um planeta habitável, tipo Terra na maior
parte de seus parâmetros planetários e estelares, mas ainda assim deserto. Por exemplo,
todas as Terras tinham um grande satélite (Lua-1 até Lua-43) necessário para estabilizar
o eixo de rotação do planeta, e um planeta gigante gasoso tipo Júpiter no sistema, para
proteção contra o bombardeio de cometas. Tais planetas eram raros na Galáxia.

Terra-43 já havia encontrado sua Terra-44 gêmea, porém deserta. O trabalho de


Terraformação foi iniciado, colonizando-se o planeta com os organismos desejados. A
primeira fase já havia sido feita há bastante tempo, com bactérias aeróbicas e outros
organismos fotossintéticos. O nível de oxigênio atual era praticamente igual ao das outras
Terras. Agora, novas espécies eram trazidas em enormes arcas espaciais, e as redes
tróficas e suas localizações geográficas eram montados por engenheiros de ecossistemas.
Tudo sob supervisão de YWHW.

Obviamente, como o processo de Terraformação era rápido em termos geológicos,


não havia tempo para uma verdadeira evolução ou formação de fósseis no novo planeta,
que só ocorrera verdadeiramente em Terra-1. De Terra-2 a Terra-43 não havia evolução
Darwiniana, mas apenas a microevolução permitida pela Terraformação, que durava dez
mil anos em média.

Quando tudo estava ficando pronto, YWHW se reuniu com suas principais
assessoras, ou Arcanjas, a chefe de segurança Mikaela, a engenheira-chefe Gabriela e a
bióloga-chefe Rafaela. Começou um discurso cheio de satisfação permeado por um tom
de tristeza:
— Como vocês sabem, já providenciamos inúmeros povoamento humanos, com
um nível de tecnologia da Idade do Bronze. Eles estão sob nosso controle, pois possuem
mentes bicamerais e escutam nossos comandos como se fossem de deuses. Assim, por
enquanto, podemos evitar conflitos e guerras. Eles também não têm os genes de
imortalidade. De certa forma, são mais autômatos do que seres humanos plenos.

— Amanhã vamos inaugurar a cúpula do Jardim — observou Gabriela — e


começar o processo que irá catalisar a unicameralidade.

— Mas é claro que, devemos lembrar, humanos unicamerais podem não aceitar
os objetivos do Projeto EDE-N e se revoltar — disse Rafaela.

— Pelo que me lembro, esse problema ocorreu em Terra-30, mas negociações


posteriores resolveram a questão. No entanto, há um complicador — enfatizou Mikaela
— Lúcifer, Asheráh e seus colaboradores fugiram para o planeta e sumiram de vista.
Escaparam de todos os nossos meios de monitoramento, nano-drones, micro-satélites etc.
Isso é muito perturbador.

— Parece que eles ainda têm colaboradores infiltrados no sistema de segurança,


Mikaela, que você deverá descobrir. Mas não está claro que tipo de perturbação eles
podem realizar em Terra-44. Em todo caso... senhoras e senhores, o prazo final chegou,
a sorte está lançada. Não podemos recuar agora — concluiu YWHW, com um suspiro
contido.

oooOOOooo

O Jardim e sua enorme cúpula eram a base do Projeto EDE-N em Terra-44. Ali,
as arcas espaciais desembarcavam as novas espécies que, após análises biológicas, eram
encaminhadas para as regiões geográficas de destino. YWHW passeava pelo jardim
observando a intensa atividade do processo e a beleza dos espécimes recém-chegados.
Mikaela estava ao seu lado:

— Reforçamos a segurança, mas não temos nenhum sinal da presença dos


terroristas. É como se tivessem desaparecido no ar!
YWHW estremeceu ao pensar que sua querida Asheráh agora era chamada de terrorista:

— Eles têm seu ponto de vista, Mikaela. Estão lutando por ele.

— Senhor! Eles planejaram colocar uma bomba de antimatéria neste lugar!

— E agora estão desterrados neste planeta selvagem... meu melhor amigo e minha
ex-companheira.

Mikaela ficou calada, pensando em como era possível que YWHW não sentisse
raiva ou ciúmes dos amantes terroristas.

oooOOOooo

Os aposentos de YWHW eram amplos e confortáveis, e grandes janelas davam


vista para o Jardim. O crepúsculo em tons laranja iluminava pouco a sala principal onde
ele examinava os últimos relatórios sobre os povoamentos humanos no continente. De
repente, os cabelos de sua nuca se eriçaram em alerta: havia alguém mais na sala,
escondido na penumbra.

— Como é que você... entrou aqui?

— Ah... meu querido, você me subestima.

YWHW estendeu a mão para o botão de alarme em seu comunicador.

— Não, por favor, não... suplicou Asheráh — eu preciso falar com você. É
importante! — seus olhos esmeralda estavam cheios de lágrimas.

— Então fale — disse friamente YWHW, ainda tentando entender como ela havia
violado a segurança do complexo.

— Estou arrependida. Quero voltar para Terra-43. Preciso que você interceda por
mim no Conselho. Posso fazer uma delação, dar informações sobre Luc e os outros.
— O que a levou mudar de ideia?

— Luc mudou muito, está louco! Dada as condições do planeta, ele agora defende
uma boa vida apenas para a elite dos humanos, não para todos. Diz que a igualdade e uma
sociedade sem classes não é possível.

— E ainda não se importa com o resto da biosfera, suponho.

— Ele está organizando as sociedades humanas em forma piramidal. Reis, nobres,


exército, comerciantes. No final da escala, servos e escravos.

— Os meus relatórios mostram isso — afirmou YWHW. Dizem, inclusive, que o


maior concentrador de riquezas é o Templo da Deusa... que a Deusa sacraliza o poder dos
reis realizando casamentos hierogâmicos.

— Ele está me usando, por favor acredite! Eu quero me afastar de tudo isso.

YWHW não sabia o que dizer. Seu julgamento estava nublado porque queria
muito acreditar. A única mulher que realmente havia amado estava implorando por uma
chance de recomeçar. E se ela se dispunha a dar informações, a revolta de Luc poderia
ter um fim...

Então Ash se antecipou de maneira inesperada. Na frente de YWHW, lentamente


foi se despindo, olhando em seus olhos. Emergiu de suas vestimentas caídas no solo como
uma Vênus grega. Na verdade, ela era a deusa Asheráh-Ishtar-Vênus.

oooOOOooo

A partir desse dia YWHW nunca mais se recuperou. Seu cérebro danificado só
produzia alucinações onde Asheráh se transformava em serpentes, árvores, caduceus. E
por toda volta besouros, quatrocentas mil espécies de besouros. As drogas introduzidas
em sua pele, potentes alucinógenos presentes em rãs venenosas, não podiam ser extraídos
de seu corpo mesmo com toda a tecnologia conhecida. Foi transferido para um hospital
especial em Terra-43, sendo colocado em sono criogênico.
As Arcanjas se reuniram:

— Perdemos nosso líder e o projeto corre perigo — iniciou Mikaela — O


transporte das espécies terminou. Mas os povoamentos humanos agora estão dominados
por Lúcifer.

— E o casal unicameral? — perguntou Gabriela.

— Aparentemente Asheráh os contaminou com enzimas reparadoras de DNA, o


que vai ampliar sua duração de vida — reportou Rafaela.

— Vida eterna?

— Não diria isso. Eu examinei essas enzimas. Ash é genial, mas sua tecnologia é
limitada. Acho que o período de vida deles vai durar cerca de mil anos, e decair nas
próximas gerações. Nesse período, porém, irão catalisar a unicameralidade de quem
entrar em contato com eles.

— E como isso afeta o plano? — inquiriu a engenheira Gabriela.

— Temo que não há mais plano, apenas monitoramento — refletiu Mikaela —


Vamos observar e ver se os humanos se livram da influência de Lúcifer.

— Sozinhos?

— Não necessariamente. Vamos introduzir em alguns povos as ideias de


liberdade, igualdade e fraternidade... — comentou Mikaela.

— De forma secular? — perguntou Rafaela, com dúvidas.

— Por enquanto não, neste estágio não é possível. Mais tarde, sim, tais valores
vão se secularizar.
Rafaela comentou pensativa: — Eu era muito amiga de Asheráh. Acredito que, no
futuro, ela vai se aliar a nós outras. Afinal, as mulheres estão sendo oprimidas nessas
sociedades machistas que Lúcifer criou.

— Espero estar aqui para ver isso e Lúcifer ser derrotado — disse Mikaela.

— Nós também — sorriram Gabriela e Rafaela.


Os Dez Mandamentos de Star Trek

Estes são os mandamentos judaicos, na versão de Deuteronômio 5:6-21, e sua


atualização histórica seguida pelos Humanistas Seculares de Star Trek:

6. I am the Lord your God, who brought you out of the land of Egypt, out of the house of
slavery;

Nossa Determinação Ética Última Secular Atéia (acrônimo, D.E.U.S.A.) diz que
devemos lembrar que descendemos historicamente de trabalhadores, servos e
escravos. Os valores da Democracia, e não da Aristocracia, são a base de nossa Terra
Prometida, e todos os humanos são iguais perante nossa D.E.U.S.A.

7. you shall have no other gods before me.

Você não deve ter deuses que estejam cima de nossa D.E.U.S.A., tais como Mamon
(o Dinheiro), Baal (o Poder) e Asherah-Ishtar-Isis (a Economia e a Guerra).

8. You shall not make for yourself an idol, whether in the form of anything that is in
heaven above, or that is on the earth beneath, or that is in the water under the earth.

Você não deve ter ídolos, sejam os astros de cinema e celebridades que parecem estar
acima de nós, sejam os líderes políticos de nossa Terra, ou o mar de pseudociências
que nos rodeia.

9. You shall not bow down to them or worship them; for I the Lord your God am a jealous
God, punishing children for the iniquity of parents, to the third and fourth generation of
those who reject me,

Você não deve servir ou ser escravo de tais ídolos, pois as consequências de tais atos
podem se estender por gerações.

10. but showing steadfast love to the thousandth generation of those who love me and
keep my commandments.

Mas paz e prosperidade teremos por mil gerações, se amarmos e preservarmos estes
mandamentos de nossa D.E.U.S.A.
11. You shall not make wrongful use of the name of the Lord your God, for the Lord will
not acquit anyone who misuses his name.

Você não deve torcer ou usar de forma errada nossa D.E.U.S.A. pois ela é sagrada,
o máximo de sagrado que um ateu pode conceber.

12. Observe the sabbath day and keep it holy, as the Lord your God commanded you.

Nossa D.E.U.S.A determina que deve haver um dia de descanso para todos os
trabalhadores, e este dia não é negociável, mas é sagrado.

13. For six days you shall labour and do all your work.

Você deve trabalhar no máximo seis dias por semana e fazer tudo o que tem que ser
feito nesse período.

14. But the seventh day is a Sabbath to the Lord your God; you shall not do any work—
you, or your son or your daughter, or your male or female slave, or your ox or your
donkey, or any of your livestock, or the resident alien in your towns, so that your male
and female slave may rest as well as you.

Mas no sétimo dia, qualquer que seja ele, você não deve fazer nenhum trabalho —
não leve trabalho para casa, não faça homeworking, não leia e-mails e de um
descanso para as redes sociais. Eduque seus filhos para fazer o mesmo, e seus
empregados, homens ou mulheres, têm o mesmo direito. Dê descanso para seus
animais domésticos e proteja a fauna e a flora. Os trabalhadores imigrantes, legais
ou ilegais, e seus empregados domésticos, têm os mesmos direitos de descanso e lazer
que você.

15. Remember that you were a slave in the land of Egypt, and the Lord your God brought
you out from there with a mighty hand and an outstretched arm; therefore, the Lord your
God commanded you to keep the sabbath day.

Lembre-se que um dia você foi um trabalhador oprimido em uma sociedade de


organização piramidal, e nossa D.E.U.S.A. nos salvou dessa situação pela revolução
democrática, mesmo que violenta. Assim, nossa D.E.U.S.A. nos provê pelo menos
um dia sabático, com no máximo de quarenta horas de trabalho por semana.
16. Honor your father and your mother, as the Lord your God commanded you, so that
your days may be long and that it may go well with you in the land that the Lord your
God is giving you.

Respeite seu pai e sua mãe, mesmo que seus genes egoístas não o induzam a fazer
isso. Pois nossa D.E.U.S.A. defende o direito dos idosos. Fazendo isso, você também
será protegido no futuro e viverá uma vida longa e próspera nesta Terra que nossa
D.E.U.S.A. está nos dando.

17. You shall not murder.

A pena de morte é estritamente proibida. Matar humanos e animais é proibido. O


linchamento virtual na internet está proibido.

18. Neither shall you commit adultery.

Não traia seu companheiro ou companheira pois isso dói muito. Separe-se antes.

19. Neither shall you steal.

Não seja corrupto nem roube dos mais pobres.

20. Neither shall you bear false witness against your neighbor.

Não espalhe fake news nem difame as pessoas nas redes sociais.

21. Neither shall you covet your neighbor's wife. Neither shall you desire your neighbor's
house, or field, or male or female slave, or ox, or donkey, or anything that belongs to
your neighbor.

Não deseje e namorade de sue amigue. Nem deseje a casa, as propriedades, os


empregados de sue vizinhe, sue automóvel, ou qualquer coisa que pertença a sue
vizinhe. Não dê importância aos bens materiais: o seu valor é o que você é, não o que
você tem.
ENSAIOS

A terceira via entre Teísmo e Ateísmo: a hipótese de Asimov

É possível provar que Deus existe?

O Fruto Proibido de Eva não é a Ciência e a Tecnologia

Deus e Acaso
A terceira via entre Teísmo e Ateísmo: a hipótese de Asimov

No livro de ficção científica A Voz do Mestre, do famoso escritor e filósofo


polonês Stanislaw Lem, em um dado momento um Matemático reflete sobre a natureza
da mensagem extraterrena cuja decifração era seu objetivo. Descobre-se que a mensagem,
carregada em um raio de neutrinos, aparentemente tinha bilhões de anos e poderes para
induzir o surgimento da vida em sopas químicas primordiais. Ele exclama para um colega:
Pena que não existem teologias de deuses finitos!
Um dos objetivos deste ensaio é justamente explorar essas teologias de deuses
finitos: conceitos onde Deus ou os deuses são sempre seres limitados, poderosos, mas não
onipotentes, superinteligentes, mas não oniscientes, presentes, mas não onipresentes.
A vida é um processo transitório e marginal na história do Universo. Um acidente
sem maiores consequências que será apagado e esquecido na medida em que a morte
térmica do Universo (resultado inevitável da segunda lei da Termodinâmica) se
processar, se não ocorrer muito tempo antes disso. A vida, um epifenômeno produzido
por cegas leis físicas, sobrevive precariamente em um Universo que lhe é indiferente ou
mesmo hostil.
Esta visão pessimista, herdada do século XIX, permanece ainda em nossa
moderna Cosmologia. Jaques Monod, biólogo prêmio Nobel, enfatiza no seu livro Acaso
e Necessidade (1972) que tal visão seria a única compatível com o conhecimento
científico. O físico e também Nobel Steven Weinberg reafirma a mesma concepção em
seu Os Três Primeiros Minutos (1977), dizendo: The more the Universe seems
comprehensible, the more it seems pointless. Sem dúvida não é um cenário muito
agradável, mas a realidade não precisa ser agradável aos desejos humanos.
Em uma entrevista, Weinberg esclarece melhor o que quis dizer com sua famosa
frase:
Anos atrás eu escrevi um livro sobre cosmologia, e perto do final, eu tentei
resumir o ponto de vista do Universo em expansão e as leis da natureza. E eu fiz o
comentário — eu acho que fui tolo o suficiente para fazer a observação — que quanto
mais o Universo parece compreensível, mais parece sem sentido. E essa observação foi
citada mais do que qualquer coisa que eu já disse. Ela está até no livro de citações de
Bartlett. Eu acho que tem sido verdade no passado de que era amplamente esperado que,
ao se estudar a natureza, iríamos encontrar o sinal de um grande plano, no qual os seres
humanos desempenham um papel de protagonista particularmente distinto. E isso não
aconteceu. Eu acho que cada vez mais a imagem da natureza, do mundo exterior, tem
sido uma de um mundo impessoal regido por leis matemáticas que não estão
particularmente preocupados com os seres humanos, em que os seres humanos aparecem
como um fenômeno casual, não a meta para a qual o Universo é dirigido. E, para alguns,
isso não tem efeito sobre a sua religião. Sua religião nunca olhou para qualquer tipo de
propósito na natureza. Para outros, isso é terrível, a ideia de que todas as estrelas e as
galáxias e os átomos estão indo tratando de seus próprios negócios, e é só por acaso que
aqui neste sistema solar as propriedades químicas peculiares de DNA, atuando ao longo
de bilhões de anos, produziram essas pessoas que ter sido capazes de falar e olhar em
volta e aproveitar a vida. Para algumas pessoas essa imagem é a antítese da visão da
natureza e do mundo que a sua religião lhes tinha dado.
Assim, um certo senso comum parece identificar unicamente dois cenários para a
origem do Universo: um cenário Teísta, onde o Criador planeja e cria o Universo com
sentido e propósito, e um cenário Ateísta, onde o Universo, a vida e a mente surgem por
puro acaso e não possuem nenhum sentido ou significado mais profundo. Parece provável
que o que muitas pessoas achem deprimente no Ateísmo não é a ausência de um Criador
em si, mas a ausência de propósito e significado para o Universo e para vida. Afinal,
algumas versões do Budismo postulam um Universo eterno não-criado, ou consideram a
questão da origem do Universo irrelevante, mas o Budismo mantém a ideia de um sentido
e propósito para a vida humana e para o Universo, e não poderia deixar de ser assim
enquanto for uma filosofia religiosa. Alternativamente, teístas ficariam insatisfeitos com
a ideia de um Criador que, por pura diversão ou acidente, faz um Universo sem sentido
ou com um sentido perverso.
Devemos notar que os livros de Monod e Weinberg foram publicados na década
de setenta e talvez precisem de alguma atualização. Por exemplo, Monod defende que a
origem da vida é um acidente existencial extremamente improvável e talvez único na
história do Universo. Hoje em dia, os astro-biólogos consideram que a vida, pelo menos
em sua forma microbiana, deve ser um fenômeno extremamente provável, quase um
processo inevitável, dadas as condições físico-químicas corretas.
Em relação ao livro de Weinberg, surgiram evidências crescentes de que, em certo
sentido, nosso Universo é bastante especial: suas leis físicas, constantes universais e
condições iniciais parecem ser especialmente ajustadas para não apenas permitir, mas
também favorecer a emergência de estruturas complexas. Este é o assim chamado
Problema do Ajuste Fino (Fine-Tuning), amplamente discutido na literatura, mas ainda
sem solução consensual (BARROW & TIPLER, 1988; BARNES, 2011; COLEMAN,
2012).
Curiosamente, nos últimos vinte anos, um grupo de pesquisadores e intelectuais,
em sua maior parte físicos, cosmólogos, biólogos e filósofos, têm desenvolvido uma
espécie de “terceira via” entre Ateísmo e Teísmo. Nessa abordagem, chamada de
Universo EVO-DEVO (pois tenta aplicar ao Universo ideias advindas das teorias de
evolução e desenvolvimento biológicos), dois cenários são estudados. No primeiro, de
Cosmologia com Seleção Natural (Cosmological Natural Selection ou CNS), nosso
Universo não tem um criador, mas teria sentido e propósito na forma de uma sequência
de desenvolvimento que visa sua reprodução, dentro de um quadro maior que corresponde
a um tipo de evolução Darwinista de Universos. No segundo cenário, chamado de
Cosmologia com Seleção Artificial (Cosmological Artificial Selection ou CAS), nosso
Universo é artificialmente gerado por uma mente finita habitante de um Universo
anterior. Apenas neste segundo cenário temos um papel relevante para a vida e a mente
no processo cósmico, embora o papel dos seres humanos nesse processo pode ser apenas
transiente e mesmo insignificante.
Neste ponto, dado que tais ideias podem parecer beirar a ficção científica (e
realmente foram ali primeiro concebidas, ver Asimov (1956) e Brin (1991)), creio que
seria importante discutir o que é considerado um programa de pesquisa científico em
física teórica e o que é tido como apenas uma especulação científica. Para um programa
de pesquisa (um conjunto de teorias com pressupostos comuns) ser considerado científico
basta que ele seja fértil e produtivo, no sentido de que pode ser explorado por modelos
matemáticos que apresentam propriedades interessantes, que solucionem questões
teóricas, que expliquem resultados empíricos conhecidos e sugiram a possibilidades de
testes empíricos no futuro.
Já a aceitação consensual de teorias advindas de um programa de pesquisa é um
processo bem mais lento que depende do sucesso empírico da teoria frente ao de suas
concorrentes. Por exemplo, as pesquisas em Supercordas, que visam unir a Teoria da
Gravitação de Einstein com a Física Quântica, constituem um programa de pesquisa
científico, embora não possua evidências empíricas a seu favor. Ou seja, é um programa
de pesquisa em andamento, fértil e promissor, mas que ainda não atingiu o nível
consensual tanto por falta de testes empíricos quanto pelo fato de ainda não ter atingido
uma formalização matemática coerente e final.
No caso dos cenários de CNS e CAS, os mesmos também visam explicar um
problema fundamental (o aparente ajuste fino cosmológico), mas, dado o nível informal
e menos matemático de seus modelos, o progresso dessas ideias é menos mensurável Tais
cenários seriam mais bem descritos como especulações científicas. Ou seja, são
possibilidades teóricas compatíveis com resultados conhecidos e cuja exploração parece
ser interessante, tanto do ponto de vista científico quanto filosófico. Entretanto, devemos
ter sempre em mente que vários de seus pressupostos se baseiam em resultados teóricos
ainda não conclusivos, cuja precariedade será devidamente assinalada ao longo deste
texto.
Seleção Natural Cosmológica (Cosmological Natural Selection ou CNS).
Comecemos pelo cenário CNS, que foi proposto em 1992 pelo físico Lee Smolin
(SMOLIN, 1992; SMOLIN, 1994). Sua motivação principal foi dar uma resposta
alternativa e mais testável ao problema do ajuste fino cosmológico: o fato de que uma
série de coincidências nas leis físicas, constantes universais e condições iniciais do
Universo parecem conspirar para a formação de estruturas complexas (galáxias, estrelas,
planetas, química orgânica e vida) (BARNES, 2011; COLEMAN, 2012). Ou seja, nosso
Universo não só permite como parece favorecer a emergência da complexidade, mas isso
não precisaria ser assim. É totalmente possível, por exemplo, imaginar Universos
matematicamente e fisicamente consistentes compostos apenas de um gás de partículas
ou mesmo de puro vácuo quântico (GREENE, 2011).
Em termos genéricos, um crescente consenso está se estabelecendo de que o que
chamamos de complexidade pode estar ligada ao fato de que os parâmetros de um sistema
estão sintonizados perto de uma transição de fase ou bifurcação dinâmica (WOLFRAM,
1986; KINOUCHI & COPELLI, 2006; VIDAL, 2008). Se este realmente é o caso em
Cosmologia, então, dado que a dimensionalidade de uma superfície crítica sempre é
menor que a do espaço de parâmetros em questão, um ajuste fino realmente seria
necessário e inevitável para se criar um Universo complexo.
Uma primeira resposta para o problema do ajuste fino seria a de que, afinal de
contas, o Universo é como é, não possuindo parâmetros livres que possam ser ajustados.
Respondendo a um conhecido comentário de Einstein, Stephen Hawking sugeriu que,
afinal de contas, Deus não teria liberdade alguma na criação de nosso Universo, de modo
que a hipótese de Deus seria dispensável. Ainda acalentada na década de noventa, essa
ideia de uma Teoria do Tudo, que seria uma única teoria matematicamente consistente e
sem parâmetros livres, foi abandonada pela maioria dos físicos, inclusive Hawking, em
favor de cenários de Multiverso (ver a seguir). Afinal, a suposição de um único Universo
fisicamente possível que é, ao mesmo tempo, um Universo complexo, apela para uma
incrível coincidência cientificamente não justificável.
Uma segunda resposta, que é a mais popular atualmente, é a de que nosso
Universo faz parte de um conjunto imenso de outros Universos, o Multiverso. Cada
Universo teria propriedades, partículas, leis e constantes físicas diferentes uns dos outros
(WEINBERG, 2006; CARROLL, 2006; GREENE, 2011). A resposta então é dada pelo
Princípio Antrópico Fraco: se o nosso Universo não fosse complexo, nós não estaríamos
aqui para fazer a pergunta sobre o ajuste fino cosmológico. Portanto, por puro acaso,
devemos estar em um dos poucos Universos capazes de produzir observadores que
existem no Multiverso. Chamaremos esta solução de Multiverso Inóspito (Inhospitable
Multiverse ou IM).
Ao propor sua ideia de uma seleção natural de Universos, Smolin (2002, 2004)
tenta esboçar um cenário mais cientificamente testável do que o cenário de Multiverso
Inóspito e Princípio Antrópico Fraco. Baseado em certas ideias da física de buracos
negros (HAWKING, 1993), Smolin assume que os mesmos podem gerar Universos-
bebês, ou seja, outras regiões do espaço-tempo, desconectadas da nossa, que se expandem
criando novos Big Bangs (ver figura 1). Smolin postula que tais Universos-bebês herdam
as leis físicas e constantes universais do Universo-mãe (o análogo de um genoma
cósmico) com pequenas variações (análogas a mutações biológicas). Ao longo de
sucessivas gerações, Universos com propriedades que produzem mais estrelas e buracos
negros acabam por se tornar estatisticamente dominantes no Multiverso.
O ponto importante da proposta de Smolin é que Universos complexos não
aparecem de pronto ou surgem do nada: a evolução de Universos simples para Universos
cada vez mais complexos (no sentido de produtores de estrelas e buracos negros) é um
processo longo baseado em um tipo de seleção natural cosmológica. Assim, no cenário
original de CNS, a função de “fitness biológico” a ser otimizada pelo processo evolutivo
cósmico é a produtividade de buracos negros.
Essa ideia de Smolin é em princípio testável examinando-se os possíveis
Universos com parâmetros próximos dos nossos e verificando-se se a função custo
realmente é otimizada. Isso precisa ser feito, porém, com cuidado, pois podemos variar
não apenas um parâmetro por vez (mantendo os outros fixos), mas também mudar vários
parâmetros ao mesmo tempo. Em meados dos anos noventa, Smolin reportou que sua
equipe fez testes de sensitividade, via simulações computacionais, em oito de vinte
parâmetros físicos fundamentais. Smolin e colaboradores teriam encontrado que nosso
Universo parece estar realmente ajustado tanto para produzir muitas estrelas e buracos
negros quanto para ter uma longa duração, o que coincidentemente parece ser um pré-
requisito para a evolução biológica.
Um resultado recente e interessante é que o conjunto de parâmetros que fornece
Universos complexos não está restrito a uma região pequena do espaço de parâmetros,
mas constitui uma região interconectada (BRADFORD, 2011). Sendo assim, realmente
podemos imaginar um processo evolutivo dentro dessa região, de Universos com ajuste
cosmológico grosso para Universos com ajuste cada vez mais fino.
Precisamos notar duas coisas aqui: primeiro, as ideias de Smolin são mais
testáveis cientificamente que modelos de Multiverso inóspito (MI) porque podemos, em
princípio, examinar se nosso Universo realmente tem um ajuste fino para maximizar a
produção de buracos negros (ou qualquer outra função de fitness proposta). O mesmo não
é o caso do cenário de Multiverso Inóspito, onde a observação direta de outros Universos
está praticamente fora de questão (evidências indiretas de um Multiverso, porém,
poderiam ser obtidas, ver Greene (2011)). Segundo, a vida e a mente são epifenômenos
cósmicos no cenário CNS: a formação de estrelas, pré-requisito para a formação de
buracos negros, é otimizada na presença de carbono porque tais átomos são um
importante fator no processo de resfriamento e colapso das nuvens proto-estelares. Que a
química baseada em carbono gere moléculas complexas, vida e consciência é um fato
acidental, não relacionado com o processo de reprodução dos Universos.
O cenário CNS recebeu certa atenção e sofreu algumas críticas, a principal delas
sendo a de que a densidade de energia escura não parece estar especialmente ajustada
para a produção de buracos negros (SUSSKIND, 2004; VILENKIN, 2006). Smolin
elaborou melhor suas ideias e se defendeu de tais críticas (SMOLIN, 2006). Assim, seria
prematuro dizer que a ideia de Cosmologia com Seleção Natural tenha sido refutada,
especialmente porque é muito provável que o processo físico de geração de Universos-
bebês via buracos negros venha a ser mais bem compreendido e aceito, dando uma maior
plausibilidade teórica ao mecanismo de reprodução com variação de Smolin.

Seleção Artificial Cosmológica (Cosmological Artificial Selection ou CAS). O


cenário CAS nasce a partir das ideias de Smolin (1992), tendo sido proposto inicialmente
por Crane (1994) e Harrison (1995). Foi desenvolvido por Gardner (2000, 2003), Smart
(2000) e mais recentemente por Vidal (2008, 2009) e Stewart (2010). Como é comum em
ideias cosmológicas, tais cenários foram também explorados na literatura de ficção
científica, por exemplo em Asimov (1956), Brin (1991) e Kinouchi (2011).
Os modelos de CAS tentam trazer os tópicos de inteligência e computação para o
cenário CNS, propondo que tais fatores, quando muito desenvolvidos dentro de um
Universo, acabam por ajudar de alguma forma na sua replicação e seleção dentro do
Multiverso. Universos com inteligências são, por definição, mais complexos que
Universos sem inteligência, de modo que seus estados internos são mais variados. Basta
que algum desses estados mude levemente o fitness reprodutivo de tal Universo para que
eventualmente sua linhagem se torne dominante frente a linhagens sem inteligência,
geradas no cenário CNS ou no Multiverso Inóspito. Ou seja, basicamente a pergunta é se
uma civilização ou inteligência suficientemente adiantada poderia ser capaz de gerar um
Universo de forma artificial ou se existe alguma barreira, física ou tecnológica, que
impediria tal processo.
Surpreendentemente, nossos conhecimentos em física e cosmologia atual nos
dizem que, em princípio, seria possível reproduzir as condições do Big Bang inflacionário
de forma artificial. Alan Guth, um dos fundadores da Teoria Inflacionária e recente
ganhador do Fundamental Physics Prize, mostrou que, em princípio, é possível criar um
Universo “em laboratório” desde que se produza uma bolha de falso vácuo similar ao
estado que deu início à inflação de nosso Universo (FARHI et al., 1990; GUTH, 1991).
Desde então, outros autores têm estudado propostas similares (para uma revisão, ver
ANSOLDI & GUENDELMAN, 2006 e McCABE, 2008).
Figura 1. Uma bolha de falso vácuo se separando do universo-mãe e gerando um
universo-bebê, de Stephen Hsu. (https://spartanideas.msu.edu/2017/02/04/baby-
universes-in-the-laboratory/)
Autores como Crane (1994) e Harrison (1995) especularam que civilizações
avançadas poderiam, ao criar mini-buracos negros para geração de energia e outros fins,
gerar Universos-bebês de forma acidental ou não. Tais Universos-bebês, ao herdarem as
propriedades físicas de seus univeros-mães com pequenas variações, exibiriam assim um
mecanismo complementar ao de Smolin para a seleção natural de Universos complexos.
Enquanto que Crane (1994), Harrison (1995) e Gardner (2000, 2003, 2007)
abordam o tema de um ponto de vista de arquitetos cósmicos de natureza pós-biológica
(seres orgânicos em simbiose com inteligência artificial), Smart (2000, 2008) enfatiza
mais uma abordagem evolucionária e desenvolvimental (Evo Devo) de toda a história do
Universo, onde o papel da inteligência é mais constrangido. Já Vidal (2008), que foi quem
propôs que essa intervenção da inteligência no processo reprodutivo dos Universos fosse
chamada de Cosmologia com Seleção Artificial, sugere que os habitantes de um
Universo-mãe poderiam, via extensivas simulações computacionais, determinar como
incrementar as condições de vida nos novos Universos. Poderíamos assim ter uma
evolução dirigida, uma Engenharia Genética Cosmológica.
O raciocínio no qual o cenário de Seleção Artificial Cosmológica se baseia pode
ser colocado em termos bastante conservadores. Vamos supor que exista, em média,
apenas uma única tecnocivilização avançada por galáxia (um número considerado
conservador até pelos astrobiólogos mais pessimistas). E vamos supor que tal civilização
crie, ao longo de sua história, apenas um Universo-bebê (de novo, uma perspectiva muito
conservadora). Neste caso, dado que temos bilhões de galáxias no Universo observável,
teríamos que Universos com vida e mente produziriam pelo menos esse número de
Universos-bebês a mais do que Universos similares destituídos de inteligência. No
Multiverso, os Universos cujo ciclo reprodutor é catalisado pela inteligência passariam a
serem mais frequentes estatisticamente. Invertendo o raciocínio, se para cada Universo
natural tivermos um bilhão de Universos artificiais, a probabilidade que o nosso Universo
tenha sido criado artificialmente é de um bilhão para um! (KINOUCHI, 2011).
Assim, o cenário CAS é consistente não apenas com o Princípio Antrópico Fraco
(que é apenas uma afirmação relativa a probabilidades condicionais), mas também com
o Princípio Antrópico Forte, que afirma que o Universo tem condições favoráveis à vida
e inteligência devido a fatores causais. Em outras palavras, não apenas a replicação e
seleção de Universos, mas também a emergência, conservação e robustez da inteligência
podem ser consideradas intrínsecas ao telos desenvolvimental do Universo, na medida
em que a inteligência tiver algum papel, por pequeno que seja, nesse processo de
replicação/seleção universal.
Vaas (2009, 2010) examinou de forma critica o cenário CAS, delimitando os
maiores problemas ainda não resolvidos na pesquisa e validação dessas ideias. Mesmo
assim, ele nota que o cenário CAS tem utilidade potencial como uma maneira de integrar
três correntes de pensamento filosófico: 1) a origem e aparente ajuste fino de nosso
Universo, 2) o possível valor e significado da vida no Universo e 3) a sobrevivência de
informação e complexidade do Universo.

Testabilidade do cenário CAS. Os principais testes que podemos submeter o


cenário CAS a fim de refutá-lo são os seguintes:
1) Mostrar que a criação de Universos-bebês artificiais é fisicamente ou
tecnologicamente impossível.
2) Mostrar que os Universos-bebês não podem herdar as características do Universo-
mãe com pequenas mutações em suas leis, constantes e condições iniciais.
3) Mostrar que a vida inteligente não dura o tempo suficiente para poder criar de
Universos-bebês.
4) Mostrar que a paisagem de ajuste (fitness landscape) do Multiverso é muito rugosa
e não permite a evolução via algoritmos genéticos como nas propostas CNS e CAS.
Evidências favoráveis ao cenário CAS poderiam ser obtidas ao se melhorar as
análises dos intervalos de ajuste fino cosmológico. Se os parâmetros de nosso Universo
estão especialmente sintonizados para a produção de vida inteligente (mais do que para a
produção de buracos negros naturais), isso favorece o cenário CAS em detrimento do
CNS. A plausibilidade do cenário CAS também é favorecida quando se nota que cenários
alternativos como o de Multiverso Inóspito são menos testáveis que o cenário CAS
(SMOLIN, 2002; SMOLIN, 2006).
No cenário de Multiverso Inóspito o processo de eclosão de novos Universos não
é mapeado em uma árvore filogenética de Universos com evolução natural (CNS) ou
artificial (CAS). Os Universos surgem ao acaso, pelo mecanismo de Inflação Eterna, e o
Multiverso é uma realização estatística dos Universos fisicamente possíveis. A resposta
para o problema do ajuste fino é simplesmente, neste cenário, a de que uma pequena
fração dos Universos possíveis permite a emergência de inteligência. Dado que não
estaríamos aqui para fazer perguntas se o Universo não permitisse observadores, não é
surpresa que estejamos dentro de um desses raros Universos, por puro acaso. Neste
cenário, tanto a vida como a consciência são epifenômenos situados em raros oásis dentro
de um Multiverso enorme e basicamente hostil a qualquer entidade complexa.
Isso implica em uma predição que difere do cenário CAS. Estatisticamente,
deveríamos esperar que os Universos que apenas “permitem” a complexidade e a vida
são muito mais abundantes do que aqueles que “favorecem” a emergência das mesmas.
O Multiverso Inóspito prediz que nosso Universo deve estar na borda da região do espaço
de parâmetros que contem Universos habitáveis. Já o cenário CAS prediz que nosso
Universo está bem mais dentro dessa região, embora sua localização não precise estar
totalmente otimizada. Isto pode ser testado observacionalmente.
Vantagens e desvantagens do Cenário CAS sobre o cenário de Multiverso
Inóspito. A principal vantagem do cenário de Multiverso Inóspito (WEINBERG, 2006;
GREENE, 2011) é que ele é uma simples consequência de teorias bem desenvolvidas
(Inflação Eterna e relevo de Supercordas). Mesmo se a existência do Multiverso não
puder ser testada diretamente, as teorias que o preveem podem ser testadas porque fazem
predições em relação ao nosso próprio Universo. Afinal, elas não foram construídas para
prever um Multiverso, mas sim para solucionar problemas concretos no modelo de Big
Bang e na física de partículas elementares.
Entretanto, a solução do problema de ajuste fino via cenário de Multiverso
Inóspito tem algo de insatisfatório porque parece uma explicação fácil demais. Lembra a
atitude de alguns filósofos ateus antes do aparecimento da Teoria da Seleção Natural de
Darwin que, quando confrontados com a complexidade dos seres vivos, apelavam para a
ideia de que haveria no Universo infinitos mundos, e que dentre estes, por puro acaso, os
átomos se juntariam nas configurações corretas para produzir o conjunto de seres vivos
da Terra. Ou seja, nessa visão, a complexidade não é fruto de um processo evolutivo
paulatino, não existe um processo histórico, mas ocorre de pronto, de forma estática e por
acaso.
Os cenários CNS e CAS são menos simples, porém parecem ser mais interessantes
(ou seja, definem programas de pesquisa mais frutíferos, com maior possibilidade de
serem submetidos a testes empíricos e gerar novas hipóteses). Mesmo o cenário CAS
segue uma lógica bastante estrita: para negar sua possibilidade, seria preciso que pelo
menos um dos testes listados na seção anterior o refutasse. Nada no nosso conhecimento
científico atual sugere isso.
Além do mais, podemos citar três vantagens filosóficas do cenário CAS frente a
seus concorrentes. Primeiro, para que a vida inteligente possa desempenhar algum papel
na reprodução de Universos, é necessário que o mecanismo físico para essa reprodução
seja suficientemente simples e inteligível para mentes que emergem dentro do próprio
Universo, e que surgem por processos evolucionário que em princípio não visam esse
entendimento (por exemplo, a evolução do cérebro caçador-coletor humano). Ou seja, o
cenário CAS responde à perplexidade de Einstein de que “o mais incompreensível a
respeito do Universo é que ele seja compreensível” (por mentes finitas evoluídas para
outros fins): Universos cujo mecanismo de criação e reprodução são mais simples e
inteligíveis acabam “tendo mais filhos” do que Universos cuja dinâmica cosmológica é
muito difícil de se entender. A compreensibilidade das leis fundamentais da física seria
uma consequência de uma dinâmica evolutiva no Multiverso, mas agora visando a
simplificação dessas leis, não sua complexidade: no cenário CAS, o Universo precisa ser
complexo o suficiente para gerar observadores e simples o suficiente para que seu
mecanismo de criação artificial seja inteligível.
Em segundo lugar, o mesmo raciocínio parece ser uma nova resposta ao famoso
argumento evolucionário de Platinga contra o Naturalismo (BEILBY, 2002). O cerne
desse argumento é o de que não existe razão para um Naturalista acreditar que seus
raciocínios sejam confiáveis, dado que a Evolução não precisa produzir uma mente que
produza verdades, mas apenas uma que produza crenças evolucionariamente adaptadas.
No caso do cenário CAS, as mentes que emergem em um dado Universo precisam estar
aptas para racionalmente determinar o mecanismo de criação artificial de Universos-
bebês. Universos cujos processos evolucionários internos não produzem tais mentes
confiáveis acabam por não se reproduzir. Além disso, as mentes que emergem em um
dado Universo compartilham um ambiente similar ao do Universo-mãe onde habita a
mente racional que o criou (VIDAL, 2008).
Essa nova resposta ao argumento de Platinga é viável porque o cenário CAS
pressupõe, como Platinga, criadores racionais. Porém, de forma importante, tais criadores
são finitos, não onipotentes. Essa não onipotência parece resolver também o problema do
Mal, na medida em que criar um universo perfeito, sem falhas, perfeitamente favorável à
vida, seria um problema de otimização NP-Completo não solúvel por mentes finitas.
A terceira vantagem filosófica do cenário CAS é que apresenta um cenário
totalmente compatível com o naturalismo científico que, ao mesmo tempo, implica em
um Universo planejado e criado com propósito e função (pelo menos a função de
prosseguir a linhagem de Universos Inteligentes). Temos assim um contraexemplo claro
à afirmativa de que o Ateísmo é a única filosofia compatível com a ciência natural.
Embora tal afirmativa não seja comum entre filósofos profissionais, é uma posição
defendida por escritores ligados ao assim chamado Neoateísmo (Dawkins, 2007).
Conclusão. É interessante verificar que o cenário CAS parece fornecer uma
terceira via filosófica, naturalista, mas que contém elementos de intencionalidade e
propósito. É uma opção que se situa entre a visão ateísta da vida como frágil epifenômeno
cósmico e a visão antropocêntrica teísta. O criador de um Universo-bebê, embora muito
poderoso e inteligente, é uma entidade finita, nem onipotente nem onisciente, e que teve
também a sua origem a partir de um Universo-mãe anterior, em uma longa linhagem cujas
origens podemos apenas especular.
Com efeito, uma crítica aos cenários CNS ou CAS é a de que eles jogam o
problema das origens apenas para trás, quem sabe em um regresso infinito. Isso, porém,
não é verdade: tal como na teoria Darwinista da evolução, o objetivo de tais cenários não
é explicar a origem da vida (ou do primeiro Universo auto replicante) mas sim explicitar
um mecanismo pelo qual Universos complexos, com alto grau de ajuste fino, poderiam
lentamente emergir a partir de Universos menos complexos, com menor grau de ajuste.
O cenário CAS admite um estágio pré-biofílico, dominado pelos processos de criação
espontânea de Universos, seja o Multiverso Inflacionário (IM) seja o mecanismo de
Smolin (CNS), ou qualquer outro tipo de surgimento natural de Universos. Basta que, em
algum desses Universos surgidos ao acaso, apareça uma inteligência suficiente para criar
Universos-bebês, para que o cenário CAS decole e domine o Multiverso. Poderíamos até
mesmo especular que, analogamente à emergência da vida e da consciência dentro de
nosso Universo, os cenários IM, CNS e CAS seguem uma ordem temporal do tipo IM →
CNS → CAS.
Finalmente, devemos citar que a questão de se o próprio Multiverso é eterno ou
se teve um início já está sendo discutido pelos cosmólogos, com o resultado surpreendente
de que o mesmo provavelmente teve uma origem (é eterno em relação ao futuro, mas não
em relação ao passado) que, ao mesmo tempo, é fisicamente inacessível para qualquer
habitante do Multiverso (SUSSKIND, 2012).
A ideia de que nosso Universo foi criado, em vez de apenas surgir por acaso,
implica que ele pode ter algum sentido (dar prosseguimento à linhagem de Universos-
vivos) e que a vida e a mente também podem ter (pelo menos) um propósito cósmico:
catalisar a formação de Universos-bebês. Nesse sentido, o cenário CAS difere da posição
ateísta tradicional. Stewart (2010) examina como essa perspectiva poderia até informar
uma certa atitude moral coletiva – no caso, a partir de certo ponto, civilizações (biológicas
ou pós-biológicas) precisam assumir sua evolução de forma intencional, com o principal
propósito de preservar sua Biosfera planetária e cultivá-la em outros lugares a fim de
“esverdear a Galáxia”, no dizer de Freeman Dyson (2000).
Lembremos, porém, que o cenário CAS não deve ser tomado como uma visão
antropocêntrica. Stewart enfatiza que a humanidade não está destinada a ter um papel na
evolução cósmica de maneira determinista: a partir de certo momento, ela precisa
escolher a sobrevivência da Biosfera/Tecnosfera como alvo e direcionar todos seus
esforços para este fim. Na falta da humanidade, quem sabe por uma autodestruição
civilizatória, basta que outras civilizações estelares atinjam o ponto de geração de
Universos-bebês para que a vida possa prosseguir em Universos cada vez mais finamente
ajustados.
Em termos estatísticos, talvez possamos ser otimistas. A vida média de espécies
mamíferas é de dois milhões de anos e o homo sapiens sapiens tem cerca de duzentos mil
anos. Com exceção de um cenário de autodestruição (ou um evento astronômico tipo
choque cometário), é perfeitamente imaginável que nossa civilização global dure pelo
menos mais cem mil anos. Acredito que não seja possível extrapolar a forma que a
civilização atingiria com cem mil anos de desenvolvimento técnico. Alguns
pesquisadores ligados às ideias de Universo EVO DEVO acreditam que, muito tempo
antes disso, a humanidade daria lugar a um desenvolvimento simbiótico com máquinas e
Inteligência Artificial Forte (máquinas autoconscientes). De certa forma, nossa sociedade
já pode ser pensada em termos de uma inteligência coletiva com memória baseada em
tecnologias e instituições (LEVY, 1998). Neste caso, já não poderíamos tomar o exemplo
de espécies animais e civilizações humanas extintas para estimar a duração de uma
civilização pós-humana.
Creio que é aqui que as especulações científicas relativas ao cenário de
Cosmologia com Seleção Artificial devem parar. Não que tais ideias sejam consideradas
por demais fantasiosas pelos cientistas envolvidos. Na verdade, conjectura-se que talvez
as mesmas não sejam fantásticas o suficiente para dar conta da incrível complexidade do
Universo e do Multiverso. Mas os proponentes dessa nova visão biológica do Universo,
que é mais metafórica que literal, precisam desenvolver ainda mais seus modelos e suas
previsões empíricas. Na falta delas, temos apenas uma posição filosófica que é uma
terceira via entre o Teísmo e o Ateísmo, ou seja, a proposta de um Universo criado com
sentido e propósito por um agente intencional finito e natural. Talvez isso não seja pouco,
dado a pobreza do debate filosófico em que o dualismo Teísmo-Ateísmo tantas vezes se
enreda.
É certamente surpreendente ver, por exemplo, o campeão do Neoateísmo Richard
Dawkins se aproximar da posição do físico cristão Freeman Dyson, convergência
explicitada em uma recente entrevista de Dawkins para o New York Times em 2011:
Deuses humanos
Depois de duas horas de conversa, o professor Dawkins antevê muito longe. Ele
fala da possibilidade de que possamos co-evoluir com computadores, um destino de
silício. Ele está intrigado com os escritos lúdicos, e mesmo perturbadores, de Freeman
Dyson, o físico teórico.
Em um ensaio, Professor Dyson especula milhões de anos no futuro. Nossa
galáxia está morrendo e os seres humanos têm evoluído para algo como raios de energia
inteligente e moral superpoderosa.
Mas essa descrição não soa um bocado como Deus?
"Certamente", o professor Dawkins responde. "É muito plausível que no universo
existem criaturas semelhantes a Deus."
Ele levanta a mão, apenas no caso de um leitor pensar que ele virou em uma
curva religiosa. "É muito importante compreender que estes deuses vieram a existir por
uma progressão científica explicável, de uma evolução incremental."
Eles poderiam ser imortais? O professor dá de ombros.
"Provavelmente não." Ele sorri e acrescenta: "Mas eu não quero ser demasiado
dogmático sobre isso."

REFERÊNCIAS
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November 1956. Ver detalhes aqui: http://pt.wikipedia.org/wiki/The_Last_Question.

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É possível provar que Deus existe?

Vou propor aqui uma experiência de pensamento para qualquer físico nerd (faça
uma adaptação para o seu caso): você está tomando café pela primeira vez com uma
mulher atraente, bem-humorada e inteligente, uma candidata a futura namorada. Você já
está impressionado porque a primeira pergunta dela foi sobre um novo tipo de buraco
negro noticiado naquela semana. Você também notou que ela usa fotos do Telescópio
Espacial Hubble como protetor de tela no celular. Você está se apaixonando rapidamente,
mas, então, vem a bomba: — "Eu queria te conhecer para saber se você, como físico, tem
alguma prova de que Deus existe…”
Por um momento você amaldiçoa silenciosamente Frijtof Capra, Deeprak Chopra
e Amit Goswami. Pois afinal, a resposta simples, mas honesta, que não pude dar na hora
(afinal, não sou tão nerd assim!) é simplesmente “Não!”. Mas a pergunta me fez pensar,
e repensar outras questões na interface ciência/religião, levando a estes ensaios. E aquela
mulher, Rita Cristina, que encontrei há seis anos e hoje é minha esposa, agora me estimula
a publicá-los.
Então, o que eu respondi para Rita de modo a não a decepcionar e jogar a conversa
para os próximos encontros? Bom, primeiro usei a saída filosófica de sempre: pedir para
se definir os termos. Afinal, existem inúmeros conceitos de Deus, e sobre que Deus
estávamos falando? O Deus criador do monoteísmo tradicional, que age na História? O
Deus de Platão e dos filósofos, que mais parece um ente matemático? O Deus dos deístas,
que cria o Universo, mas depois não interage mais com ele? O Deus de Spinoza e
Einstein? O Deus interior, que se parece com um segundo foco de consciência, com quem
a pessoa dialoga em oração? A versão primitiva do deus judaico YHWH, que não era
único nem onipotente, mas apenas o chefe dos deuses em uma assembleia celeste? E os
deuses politeístas, poderiam existir de algum modo? Ou que tal uma força universal
impessoal, a Força de Star Wars? Ou seja, não é possível conversar sobre Deus sem
discutir primeiro qual é a ideia de Deus com que estamos trabalhando.
Mas felizmente não precisei gastar muito tempo com essa discussão sobre
conceitos de Deus (ou deuses), discussão reservada para este livro. Pois a ausência de
uma prova racional ou científica da existência do Deus (tradicional) é bem aceita por
todos, inclusive os religiosos.
Sim, vamos esquecer as provas filosóficas e teológicas sobre a existência de Deus,
pois é bem conhecido que todas elas possuem falhas lógicas. Neste ponto vou seguir o
teólogo Anglicano do Século XVIII John Wesley (1703-1791), que sintetizou a situação
de uma forma bastante interessante. Wesley, viveu em uma época em que a Ciência e a
Razão recebiam forte valorização: Newton havia falecido em 1727 e o Newtonianismo
florescia. Em um sermão chamado de A Razão Imparcialmente Considerada, Wesley
critica tanto aqueles que subestimavam a Razão, não a considerando necessária para uma
vida plena, quanto aqueles que a superestimavam, achando-a suficiente para todos os
propósitos humanos. Ele enfatiza que a Razão é essencial para todas as atividades práticas
(Tecnologia, Medicina, Direito, Governança etc.) bem como para a Matemática, as
Ciências e a Filosofia. Porém, na questão de uma busca por uma prova da existência de
um mundo invisível, ele faz a curiosa observação:
Muitos anos atrás, eu me certifiquei dessa verdade, através de uma experiência
triste. Depois de cuidadosamente amontoar os mais fortes argumentos que eu poderia
encontrar, tanto dos autores antigos, quanto modernos, para a mesma existência de um
Deus, e (o que está aproximadamente conectado com ela) a existência de um mundo
invisível, eu perambulei, para cima e para baixo, refletindo, comigo mesmo:

"Será que todas essas coisas que eu vejo ao meu redor, essa terra e céu; essa
moldura universal, têm existido desde a eternidade? Será que aquela suposição
melancólica do poeta antigo é um caso real? Será que a geração de homens é exatamente
paralela com a geração de folhas? Será que as palavras de um grande homem são
realmente verdadeiras: A morte é nada, e nada existe depois da morte?".

"Como eu posso estar certo de que não é este o caso; de que eu não tenho seguido
astuciosamente fábulas inventadas?" — E eu tenho perseguido o pensamento, até de que
não houve espírito algum em mim, e eu estive pronto a escolher a supressão,
preferivelmente, à vida.

Mas, em um ponto de importância tão inexprimível, não depende da palavra de


outro; mas retire-se, por enquanto, do mundo agitado, e faça você mesmo o experimento.
Tente, se a sua razão irá lhe dar uma clara evidência satisfatória do mundo invisível.
Depois dos preconceitos da educação serem colocados de lado, produza suas fortes
razões para a existência dele. Coloque-as, em ordem; silencie todas as objeções; e ponha
todas as suas dúvidas para debandarem, pelo amor de Deus! Você não pode, com todo
seu entendimento. Você pode reprimi-las, por um tempo. Mas, quão rapidamente, elas
irão reunir-se novamente, e atacar você com violência redobrada! E o que a pobre razão
pode fazer para seu livramento? Quanto mais veementemente você luta, mais
profundamente você fica emaranhado nessa luta, e não encontra caminho para escapar.

Como é o caso daquele grande admirador da razão; o autor da máxima acima


citada? Eu quero dizer, o famoso Sr. [Thomas] Hobbes? Ninguém irá negar que ele tem
um forte entendimento. Mas produz nele uma convicção forte e satisfatória do mundo
invisível? Abriu os olhos de seu entendimento ver, além dos limites da esfera diurna? Ó,
não! Muito longe disso! Suas palavras agonizantes nunca deverão ser esquecidas: 'Onde
você está indo, senhor?', pergunta um de seus amigos, e ele responde: 'Eu estou dando
um salto no escuro!'; e morreu. Tal evidência do mundo invisível pode a mera razão dar
para o mais sábio dos homens!

Assim, a ideia de que não é possível dar uma prova racional da existência de Deus
ou de um mundo espiritual não é nova nem está restrita aos agnósticos. John Wesley,
fundador do Metodismo, é um pregador cristão bastante ortodoxo e algumas de suas
ênfases (experiência pessoal do Espírito Santo, abolicionismo e ativismo social) poderiam
ser descritas hoje como uma espécie de Pentecostalismo de esquerda. Mas ele se mostra
totalmente à vontade com a ideia de que não existe prova racional ou científica de que
Deus existe (e isto não mudou até hoje). E nesse ponto, ele concorda totalmente com ateus
e agnósticos!
Wesley fala de outras coisas que a Razão não pode fornecer: a Fé (que para ele
não é uma adesão a crenças ou enunciados cognitivos, mas sim uma espécie de evidência
ou intuição direta mística da presença de Deus); a Esperança (nesta vida e na vida após a
morte) e o Amor (a Deus e aos homens). É curioso que podemos elaborar uma versão
laica dessas afirmativas que faz sentido:
Fé: intuição ou sensação interior de que se está no caminho correto, mesmo sem
ter evidências conclusivas racionais sobre isso. Esse tipo de Fé ocorre bastante na
pesquisa científica, porque a mesma exige um enorme gasto de tempo e recursos
intelectuais e emocionais. Quem não tem essa intuição, também não terá persistência
suficiente para chegar a algum resultado novo. Em particular, ocorre antes da
demonstração final de um teorema ou de uma teoria: o cientista intui que está quase lá,
mas a prova final, racional, ainda lhe escapa pelos dedos. É possível que este tipo de Fé
tenha a ver com processamento de informação inconsciente pelo cérebro (GLADWELL,
2005; GIGERENZER, 2008). Mesmo a ideia de dedicar sua vida à ciência não parece ser,
em certos casos, uma decisão puramente racional. No dizer de Albert Einstein:
Aqueles cujos conhecimentos da pesquisa científica derivam principalmente de
seus resultados práticos facilmente desenvolvem uma noção completamente falsa
da mentalidade dos homens que, cercados por um mundo cético, mostraram o caminho
para espíritos afins espalhados pelo mundo e através dos séculos. Só quem dedicou sua
vida a fins semelhantes pode ter uma vivida compreensão do que inspirou esses homens
e lhes deu a força para permanecerem fiéis a seu propósito, apesar de inúmeros
fracassos. É o sentimento religioso cósmico que dá a um homem tal força. Um
contemporâneo disse, não de forma injusta, que nesta era materialista nossos
trabalhadores científicos sérios são as únicas pessoas profundamente religiosas.
Albert Einstein, Como Eu Vejo o Mundo
Esperança: aqui eu poderia defini-la como uma sensação existencial de que vale
a pena viver. Não parece óbvio que, usando apenas a Razão, se possa elaborar uma prova
de que a vida vale a pena ser vivida. Pelo contrário, dado o grande número de intelectuais
que se suicidam e outros que mergulham na depressão e no pessimismo, é possível que a
análise puramente racional do mundo leve à desesperança. É preciso ficar claro aqui: não
estou afirmando que pessoas racionais são necessariamente desesperançadas, pessimistas
ou não têm razão para viver. Apenas afirmo que a origem de sua esperança, otimismo e
razão para viver é mais visceral e não tem base (apenas) na Razão. Podemos também
propor aqui uma hipótese alternativa: a tendência à depressão (com os sintomas de
ansiedade, pessimismo e tendências suicidas) seria herdada em certas pessoas que mais
tarde se dedicariam à atividade intelectual. Dado isso, todas a sua atitude filosófica e sua
produção intelectual ficariam contaminadas por tais sintomas depressivos. Da mesma
forma, uma pessoa com excesso de serotonina poderia se mostrar confiante, otimista e
com grande apego ao prazer de viver. Ou seja, uma pessoa não tem liberdade para pensar
e sentir o que quiser: ela só pode pensar dentro dos limites permitidos por sua
neurobiologia, ver Capítulos 15 e 16.
Amor: Em nossa versão laica dos argumentos de Wesley, devemos considerar o
amor humano. Será que poderíamos elaborar um argumento racional, quem sabe baseado
na Biologia, para se amar? O tipo de amor que mais poderia se basear na Biologia seria a
relação mãe-bebê (o cuidado com a prole é um instinto animal). Mas seria algo muito
estranho argumentar com uma mãe que ela deve amar e cuidar do bebê baseado em um
argumento evolucionário, tipo “Você deve fazer isso para passar seus genes para a
próxima geração”. E se ela não amar (por exemplo, por efeito de uma depressão pós-
parto?). Existe algum argumento racional que possa gerar o amor? O mesmo se dá com o
amor entre parceiros: será que alguém realmente acredita que se pode convencer
racionalmente uma pessoa a se tornar seu parceiro no amor? Vamos ser simplistas e
radicais neste ponto: talvez o amor humano seja apenas a expressão do hormônio
Oxitocina, liberado por carinho, sexo, convivência próxima e vários outros fatores. Mas
nenhum desses fatores corresponde a “um argumento usando a Razão de que a pessoa
deveria ficar com você”. Ou seja, meu argumento simples é: a Razão não libera Oxitocina,
que é um hormônio pré-requisito do amor. A Razão não gera amor. Imagino que um
argumento similar poderia ser usado para defender que a pura Razão não gera altruísmo
ou ativismo social em prol de pessoas necessitadas. A Razão poderia gerar argumentos
sobre porque tais atividades seriam desejáveis, mas nunca um argumento particular de
porque você deveria ser altruísta em vez de deixar o serviço para outros. A vocação para
se tornar um Médico sem Fronteiras não é racional.
Wesley lista finalmente duas coisas que a Razão não consegue nos dar: virtude e
felicidade. Para o termo virtude eu daria o exemplo particular da honestidade. Se
tomarmos como princípio que nossas ações devem provir de um cálculo racional, e se
esse cálculo de custo-benefício me disser que vale a pena fazer uma fraude (por exemplo,
em um experimento científico), então a fraude é racional e a honestidade, irracional.
Talvez seja esse excesso de racionalidade de custo/benefício que esteja por trás de tanta
corrupção em nosso meio político e corporativo. No passado, talvez as pessoas agissem
a partir de outros valores como honra ou pureza de caráter, valores que não podem ser
justificados racionalmente.
O item final seria felicidade. Mas esta só é uma opção para os que a desejarem. A
outra opção é encarar a infelicidade como o único estado compatível com a honestidade
intelectual e racional. A felicidade seria um ópio para os tolos, a pílula azul da Matrix, e
o pensador racional deveria tomar a pílula vermelha e ser necessariamente infeliz. Isso
pode ser verdade, mas parece ter consequências trágicas para quem pretende seguir
apenas a Razão. Imagine o pensador dizendo: Sigam-me que eu lhes mostrarei o caminho
da infelicidade!
Para essa discussão sobre a felicidade, eu gosto muito de lembrar o filme Você vai
conhecer o homem dos seus sonhos, de Woody Allen (que não pode ser chamado de
religioso ou otimista).
A história compara a trajetória de pessoas da mesma família, todas elas modernas,
e que procuram satisfazer seus próprios interesses de forma racional. Existe porém uma
exceção: uma senhora de meia idade, ingênua, abandonada por seu marido que concluiu
que, com seu dinheiro, pode comprar um carro esporte e sair com mulheres mais jovens.
A senhora é espiritualista, e acredita em na predição de sua vidente de que em breve
conheceria o homem de seus sonhos.
Graças à essa previsão, ela fica bem atenta às oportunidades, e percebe que outro
senhor de meia idade, dono de uma livraria ocultista e que frequenta as mesmas sessões
espíritas, poderia ser um bom partido. Incentivada pela vidente, ela toma a iniciativa, e
finalmente os dois ficam juntos, formando um belo e harmonioso casal. Ou seja, todas as
pessoas modernas, céticas e racionais do filme se afundam em seus problemas pessoais
justamente devido à sua racionalidade, que não funciona bem para as relações
interpessoais, enquanto a velhinha ingênua e mística atingiu uma felicidade concreta e
possível.
Resumindo o capítulo:
• Quando falamos em Deus, precisamos especificar qual conceito de Deus
queremos discutir.
• Não existe prova racional ou científica da existência do Deus tradicional
(criador onipotente, onisciente, onipresente etc.): teólogos e religiosos concordam
com isso desde o século XVIII pelo menos;
• A Razão e a Ciência servem para muita coisa, especialmente para os problemas
de natureza cognitiva (conhecimento do mundo natural e social). Porém, parecem ter
limitações relacionada a estados psicológicos e existenciais: Fé (de que vale a pena
persistir), Esperança (de que vale a pena viver), Amor (de que vale a pena se entregar),
Virtude (de que vale a pena ser ético) e Felicidade (de que tudo vale a pena).
• Para todos esses problemas existenciais existem respostas não religiosas, mas
ligadas a filosofias laicas de vida (por exemplo, os diferentes humanismos seculares,
as éticas filosóficas, as ideologias políticas etc.). Entretanto, é importante reconhecer
e enfatizar que tais filosofias não são científicas nem justificadas pela Ciência. Dado
que várias filosofias, às vezes opostas em seus fundamentos (por exemplo, as várias
éticas filosóficas), são compatíveis com a Ciência, não podemos dizer que a Ciência
nos ajuda a escolher uma delas como resposta única para a pergunta filosófica
fundamental: o que devo fazer com minha vida e como devo vivê-la?
Referências
GIGERENZER, Gerd. O Poder da Intuição. Best Seller, 2008.
GLADWELL, Malcolm. Blink – A Decisão num Piscar de Olhos. Rocco, 2005.
WESLEY, John. The Complete Sermons: John Wesley. Hargreaves Publishing, 2013.
O fruto proibido de Eva não é a Ciência

Nossa sociedade cultivou ao longo do século XX um temor e mesmo rejeição da


Ciência e Tecnologia. Essa atitude contracultural, iniciada talvez por Heidegger e seus
discípulos filosóficos, pela Escola de Frankfurt e pela Sociologia da Ciência pós-
moderna, personagem central nas Science Wars no final do Milênio, era sempre foi vista
como uma posição progressista e crítica frente à cooptação da Ciência pelos dois lados
da Guerra Fria (cooptação essa extremamente visível na questão do armamentismo
nuclear e corrida espacial).

Essa crítica da Ciência, como conhecimento feito por uma elite intelectual (os
cientistas) a serviço de elites políticas, foi absorvida no século XXI pelo discurso da
extrema-direita global ascendente, chegando ao puro Negacionismo referente às
Mudanças Climáticas, ao Holocausto, ao Programa Apollo, às vacinas e, no limite, ao
Terraplanismo. Alguns filósofos e sociólogos da Science Wars, tais como Bruno Latour,
já reconheceram e criticaram a cooptação de seu discurso pela extrema-direita.1

Essa rejeição visceral à Ciência, quer à esquerda quer à direita, foi denominada
de complexo de Frankenstein pelo escritor Isaac Asimov e se manifesta em inúmeros
livros e filmes da cultura popular e erudita. Um personagem constante, porém, datado, é
o cientista louco que produz desastres devido à sua megalomania e sua hubris. A frase
Faustiana “ele está brincando de Deus” é repetida ad nauseam.

Em tempos mais recentes, o cientista é retratado como servo inconsequente


comprado pelas grandes corporações ou pelos militares. Nossas crianças crescem
assistindo desenhos animados e filmes onde o vilão é sempre um cientista, seja o Macaco
Louco das Meninas Superpoderosas, seja Lex Luthor em Superman e Norman Osborn
(Green Goblin) ou o físico nuclear Dr. Otto Gunther Octavius (Doctor Octopus) em
Spiderman.

É certo que este retrato não é absoluto: existem heróis adeptos da Ciência e
Tecnologia, às vezes ambíguos, tais como Bruce Wayne (Batman), Tony Stark (Iron

1
Latour, B. (2004). Why has critique run out of steam? From matters of fact to matters of concern. Critical
inquiry, 30(2), 225-248. Vrieze, J. D. (2017). Bruno Latour, a veteran of the ‘science wars,’ has a new
mission. Science Magazine.
Man) e Reed Richards (Fantastic Four). Mas se formos contabilizar a proporção de vilões
cientistas, certamente eles ganham dos heróis cientistas. Além disso, as mulheres
cientistas são sub-representadas na cultura popular. O estereótipo do cientista homem-
caucasiano-heterossexual cruel (com os animais, que seja) continua muito presente,
embora esse perfil já não caiba hoje em uma atividade multicultural e com boa presença
feminina como é a comunidade científica internacional atual.

Além do complexo de Frankenstein e do mito de Fausto, existe um outro mito na


cultura popular que cria antipatia em relação à Ciência: o mito do fruto proibido, ou fruto
do conhecimento comido por Adão e Eva, que leva à Queda e ao afastamento de Deus.
Essa interpretação do mito encara o conhecimento (tido como sinônimo da Ciência) como
algo proibido e perigoso. A frase “brincar de Deus” está relacionada a esse mito, pois a
serpente diz a Eva que comendo do fruto ela se tornaria igual a Deus.

Tais interpretações populares são muito arraigadas e influenciam nossas ideias e


visões de mundo de forma profunda, sem que percebamos. A posição ingênua de rejeitar
o mito como uma história da carochinha com serpentes falantes não dá conta do poder e
influência que esta narrativa e suas metáforas possuem, mesmo em pessoas que não tem
contato com a Bíblia. A narrativa do Éden transcende a religião, molda a cultura geral
com metáforas profundas, colorindo as visões de mundo seculares e mesmo de ateus.

O que pretendo fazer aqui é reinterpretar o mito do fruto proibido de uma maneira
que seja mais condizente com o contexto cultural e a época onde foi escrito o relato do
Jardim do Éden. Em resumo, tentarei mostrar o seguinte:

• O Árvore do conhecimento do Bem e do Mal não é a Ciência e a Tecnologia, mas


sim a Árvore que, junto com a Serpente, é o símbolo sagrado do culto da Deusa
Asherah.

• A história de Adão e Eva é uma parábola política que se refere à competição entre
o culto a Asherah e o culto a YHWH que estava ocorrendo quando o relato foi
escrito (século V A.E.C.).

• O Éden representa a utopia política Mosaica: uma sociedade sem aristocracia ou


nobreza, a Terra Prometida onde mana leite e mel, e onde todas as pessoas
possuem suas terras e plantações, em vez de serem servas de latifundiários.
• A parábola de Adão e Eva diz que os judeus perderiam o Éden-Terra Prometida
ao trocarem a religião Apolínea mosaica, com suas leis de defesa da justiça social,
pela religião Dionísica de Asherah, cuja ênfase é o conhecimento dos Mistérios,
e que sacraliza o status quo dos príncipes e nobres.

• O Velho Testamento tem em alta conta a Sabedoria, a Filosofia, a Ciência e a


Tecnologia, reverenciadas como dons divinos. Ao mesmo tempo, tem uma visão
crítica quando a Tecnologia é usada como meio de opressão.

Vamos ao relato hebraico original, retirado da TORAH traduzida diretamente do


Hebraico:

E tomou o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o


guardar. E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim
comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não
comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás. E disse o Senhor
Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora idônea para ele.
Gênesis 2:15-18.

Ora, a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o SENHOR
Deus tinha feito. E esta disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda a
árvore do jardim? E disse a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim
comeremos, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não
comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais. Então a serpente disse à mulher:
Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se
abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal. E viu a mulher que
aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar
entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu
com ela. Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e
coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais. E ouviram a voz do Senhor Deus,
que passeava no jardim pela viração do dia; e esconderam-se Adão e sua mulher da
presença do Senhor Deus, entre as árvores do jardim. E chamou o Senhor Deus a Adão,
e disse-lhe: Onde estás? E ele disse: Ouvi a tua voz soar no jardim, e temi, porque estava
nu, e escondi-me. E Deus disse: Quem te mostrou que estavas nu? Comeste tu da árvore
de que te ordenei que não comesses? Então disse Adão: A mulher que me deste por
companheira, ela me deu da árvore, e comi. E disse o Senhor Deus à mulher: Por que
fizeste isto? E disse a mulher: A serpente me enganou, e eu comi. Gênesis 3:1-13.

O relato de Adão, Eva, o fruto proibido (que não era uma maçã!) e a Serpente no
jardim do Éden é um dos mitos mais conhecidos em de nossa sociedade, com ressonâncias
desde na nossa moral sexual (o fruto proibido sendo interpretado como o ato sexual) até
a visão popular sobre os limites da ciência e da tecnologia. Com efeito, quantas e quantas
vezes não vemos na literatura e nos jornais a expressão “os cientistas estão querendo
brincar de Deus!”, no sentido de que a Ciência está prestes a comer o fruto proibido do
conhecimento.
Segundo os pesquisadores bíblicos, o relato de Gênesis 3, que reflete tradições
orais antigas, foi provavelmente redigido durante o reinado de Salomão (cerca de 970 até
930 AC). Dado esta época de redação tardia, reflete toda a experiência histórica dos
israelitas referente à incompatibilidade entre a religião mosaica, com sua ênfase
“apolínea” acerca da justiça social como precondição para a comunhão com o Deus da
Justiça YHWH, e a religião “dionisíaca” da Deusa, a Rainha do Céu, que em diferentes
regiões se identifica com o culto a Astarte (cananeus), Innana (sumérios), Isthar (assírio-
babilônicos) e Ísis (egípcios).
Desde os primeiros contatos com os cananeus, percebe-se que a religião mosaica
não consegue competir, em termos de atrativo e popularidade, com as religiões locais,
especialmente o culto à Astarte, que tinha um caráter mais extático e popular, com seu
lado de religião mágica e culto de mistério, sem uma ênfase específica em crítica social.
Na verdade, como na maior parte das religiões ainda hoje, os sacerdotes, sacerdotisas,
sábios e adivinhos das religiões cananeias desempenhavam o papel de intelectuais
orgânicos de sua sociedade, no caso as cidades-estados onde nobres e reis eram
considerados “filhos de Deus” (ou deuses) e os párias, escravos e pobres em geral seriam
os “amaldiçoados pelos deuses” ou pelo Destino. Um exemplo bíblico retratando esta
situação se encontra no livro de Jeremias:

Mas tu, não intercedas por este povo e não eleves em seu favor nem lamentos nem
preces, e não insistas junto a mim, porque não vou te ouvir. Não vês tu o que eles fazem
nas cidades de Judá e nas ruas de Jerusalém? Os filhos ajuntam a lenha, os pais acendem
o fogo e as mulheres preparam a massa para fazerem tortas à Rainha dos Céus; depois
fazem libações a deuses estrangeiros para me ofenderem. Mas será a mim que eles
ofendem? oráculo de Yahweh. Não será a eles mesmos, para sua própria vergonha? (...)
Sim, os filhos de Judá praticaram o mal diante dos meus olhos, oráculo de Yahweh. Eles
colocaram suas Abominações no Templo, no qual o meu Nome é invocado, para profaná-
lo. Eles construíram os lugares altos de Tofet no vale de Ben-Enon, para queimar os seus
filhos e as suas filhas, o que eu não tinha ordenado e nem sequer pensado. Jeremias 9:16-
19, 30-31.
Este texto mostra como a religião monoteísta dos “profetas de Yaweh” parece ser
extremamente vulnerável, sendo facilmente esquecida e substituída pelas práticas
religiosas das nações circunvizinhas. Ela parece ser por demais racional na sua crítica aos
ídolos e a práticas religiosas consideradas como superstições descompromissadas com o
ideal de justiça mosaico. Além disso, mais cedo ou mais tarde, a religião mosaica tendia
a perder o suporte oficial do Estado, pois em vez de sacramentar e apoiar diretamente os
reis, os ricos e a classe sacerdotal, na verdade era profundamente crítica deles e da vida
urbana, pretendendo exercer uma atividade regulatória que minimizasse o pauperismo
dos pequenos agricultores, pastores e operários.
Além disso, os cultos de fertilidade, que envolvem práticas rituais de casamento
hierogâmico com prostitutas sagradas, tinham seus atrativos em termos especificamente
sexuais, contrastando com o puritanismo da Lei Mosaica. É interessante notar que os
cultos de fertilidade parecem ter sua sede principal não no campo, mas nas cidades, que
dependiam da produtividade ("fertilidade") do campo para se manter.
Isthar, além de deusa da fertilidade e do sexo, é também deusa da medicina e dos
conhecimentos secretos, ou seja, da ciência e da tecnologia da época. Seu animal símbolo
é a serpente, “o mais inteligente dos animais”, que controlava a medicina e a morte por
sugerir a manipulação de drogas e venenos (esta é a origem da presença das serpentes no
Caduceu de Hermes). O papel de destaque das mulheres neste culto da Deusa e da
Serpente certamente está relacionado ao papel da mulher enquanto agente civilizatório,
no desenvolvimento da agricultura, no processo de urbanização, no conhecimento de
ervas, drogas e venenos. O desenvolvimento de tradições escritas nas cidades favorece
também o registro e manutenção desse “conhecimento sagrado”.
Embora associado ao culto da Deusa-mãe, a Terra, devemos ter o cuidado de não
idealizar o culto da Deusa-filha Ishtar como uma religião ecológica e pacífica (uma
tendência do neopaganismo feminista atual que não possui base histórica). Ishtar é
descrita, desde os registros mais antigos como O Épico de Gilgamesh, como uma deusa
terrível:
Gilgamesh abriu sua boca e respondeu à gloriosa Ishtar: (...) Os seus amantes
encontraram em você um braseiro que se apaga no frio, uma porta de trás que não
protege nem do vento nem da tempestade, um castelo que esmaga sua guarnição, um
betume que enegrece as mãos do portador, um odre que molha o carregador, uma pedra
que cai do parapeito, um golpe devolvido pelo inimigo, uma sandália que faz tropeçar
quem a usa. (...) Quais de seus amantes você por acaso amou com constância? (...) Você
amou o pastor do rebanho; ele fez tortas para você dia após dia, ele matou crianças para
seu agrado. Mas você o feriu e o transformou em um lobo. (...)
Quando Ishtar ouviu isto ela caiu numa cólera amarga, ela subiu aos altos céus.
Suas lágrimas caíram em fronte de seu pai Anu, e Antum sua mãe. Ela disse, “Meu pai,
Gilgamesh lançou insultos sobre mim, ele contou sobre todo o meu comportamento
abominável, meus atos loucos e secretos”. (...) Ishtar abriu sua boca e falou de novo:
Meu pai, dê-me o Touro dos Céus para destruir Gilgamesh. Encha Gilgamesh, eu digo,
com arrogância que o levará à sua destruição; mas se você recusar dar-me o Touro dos
Céus eu quebrarei as portas do inferno e esmagarei suas dobradiças; haverá confusão
entre as pessoas, aquelas acima com aquelas das profundezas. Eu levantarei os mortos
para comer alimento como os viventes; e os hóspedes da morte serão em maior número
que os vivos.
Anu cede a Ishtar o Touro dos Céus, que ataca a cidade de Uruk matando centenas
de jovens. Gilgamesh e Enkidu, seu amigo, reagem e matam o Touro dos Céus.
Então Ishtar chamou os seus seguidores, as jovens que dançam e cantam, as
prostitutas do templo, as cortesãs. Sobre as coxas do Touro dos Céus ela organizou uma
lamentação.
Enkidu então é alvo de um ato de vingança por parte de Ishtar, morrendo em
seguida de uma doença misteriosa, que lembra um envenenamento.
O caráter não pacifista de Innana-Ishtar-Astarte-Asheráh se revela também em seu
título de Deusa da Guerra: ela é representada como uma guerreira comandando um carro
de combate, portando o arco e flecha e uma capa protetora de pele de leão. Este aspecto
da Deusa, porém, é coerente com a visão de que ela é a Deusa da Ciência e da Tecnologia
(no caso, a tecnologia de guerra).
A Deusa é a amante dos reis, sacramentando-os como escolhidos pelos Céus e
lhes dando o poder tecnológico para superar seus inimigos. Ela abençoa a economia
(fertilidade agrícola e pastoril). Seus segredos são guardados pelos intelectuais da corte,
as sacerdotisas, os sábios, os conselheiros, os escribas.
A Deusa é o símbolo da civilização urbana tecnológica possivelmente opressora.
É a deusa central das potências militares mesopotâmicas, dos Sumérios aos Babilônicos.
É a deusa da principal potência militar da época em que o Genesis foi escrito, a Assíria
(Ishtar é a patrona de Nínive, a capital do império Assírio), império que o pequeno reino
de Israel não conseguia enfrentar.

Fica claro, portanto, a natureza do relato da Queda: é uma parábola, um mito


fundador, até mesmo um panfleto em uma luta ideológica contra as ideologias religiosas
da superpotência da época (Império Novo-Assírio) que mina o projeto revolucionário dos
Judeus. Frente a esse grande Império, e às cidades-estados aliadas que reproduziam sua
organização social piramidal, o pequeno reino de Israel seria o equivalente à Cuba atual
frente aos EUA. E de modo similar à Cuba, Israel usou de violência para realizar sua
revolução social, que não poderia ser feita de outro modo.
Em particular, se critica as centenas de esposas estrangeiras de Salomão, tomadas
por ele visando alianças políticas, e que introduziram o culto à Astarte em Israel. Eva
representa, em um momento mais tardio, as mulheres judias que estavam abandonando o
culto à YHWH pelo culto à Astarte, cujo símbolo era a serpente e a árvore (bosque
sagrado, poste sagrado). Adão representa os homens judeus que acompanharam suas
mulheres neste processo. O “fruto conhecimento” são os ensinos esotéricos e de mistério
que prometiam aos praticantes se tornarem como deuses.
A árvore da vida é a religião mosaica, a arvore do conhecimento é a religião
Cananéia, a única árvore cujo fruto era proibido por Deus, pois equivalia a abandonar o
projeto social mosaico. A perda do paraíso é a perda da utopia judaica: uma terra de justiça
onde mana leite e mel, onde todas as famílias teriam suas terras, sem que as terras fossem
de propriedade do templo da Deusa, como ocorria nas cidades-estados cananeias. O
resultado desse abandono da utopia social seria uma vida de suor e trabalho em cidades-
estados cuja estrutura social opressora era apoiada e sacralizada pela religião e pela
ciência-tecnologia cananeias.
Naquela circunstância histórica, ceder ao politeísmo não era uma questão de
opção religiosa privada, como entendemos a religião hoje. É ceder a todo um sistema
social injusto sacralizado de forma religiosa (seria como se entregar ao fascismo de
Franco, sacralizado pelo catolicismo conservador). É renunciar ao monoteísmo socialista
de Moisés. Conflito aparentemente insuperável, e que acabou gerando reações violentas
de parte a parte, típicas de movimentos revolucionários.
Mesmo com todas as tentativas, violentas ou não, de preservação da revolução
mosaica, as religiões cananeias finalmente dominam e suplantam o “monoteísmo
socialista” judaico, a partir do final do reinado de Salomão. Em parte, isso se deve ao
poder cultural, urbano, científico e tecnológico representado pela Deusa.
O ressentimento contra esta derrota histórica irá permear todos os escritos bíblicos
posteriores, em particular os livros dos profetas com sua nítida preocupação social,
fazendo da Bíblia provavelmente o primeiro livro romântico e contra cultural da
civilização ocidental. A crítica bíblica à ciência e tecnologia ligada à cultura urbana das
cidade-estados influenciadas pelo culto à Deusa, a "árvore da ciência que pode ser usada
para o bem ou para o mal" (uma tradução melhor do que "árvore do conhecimento do
bem e do mal"), precisa ser entendida nesse contexto. A Árvore da Vida da religião
Mosaica está perdendo a competição frente à Árvore do Conhecimento da religião da
Deusa, como podemos ver nestas citações:
Porquanto deixaram ao Senhor, e serviram a Baal e a Astarte. Juízes 2:13.
E os filhos de Israel fizeram o que era mau aos olhos do Senhor, e se esqueceram
do Senhor seu Deus; e serviram aos baalins e a Astarte. Juízes 3:7.
Então tornaram os filhos de Israel a fazer o que era mau aos olhos do Senhor, e
serviram aos baalins, e a Astarte, e aos deuses da Síria, e aos deuses de Sidom, e aos
deuses de Moabe, e aos deuses dos filhos de Amom, e aos deuses dos filisteus; e deixaram
ao Senhor, e não o serviram. Juízes 10:6.
Então falou Samuel a toda a casa de Israel, dizendo: Se com todo o vosso coração
vos converterdes ao Senhor, tirai dentre vós os deuses estranhos, a Astarte, e preparai o
vosso coração ao Senhor, e servi a ele só, e vos livrará da mão dos filisteus. Então os
filhos de Israel tiraram dentre si aos baalins e aos astarotes, e serviram só ao Senhor. 1
Samuel 7:3-4.
E clamaram ao Senhor, e disseram: Pecamos, pois deixamos ao Senhor, e
servimos aos baalins e astarotes; agora, pois, livra-nos da mão de nossos inimigos, e te
serviremos. 1 Samuel 12:10.
Porque Salomão seguiu a Astarte, deusa dos sidônios, e Milcom, a abominação
dos amonitas. 1 Reis 11:5.
Porque me deixaram, e se encurvaram a Astarte, deusa dos sidônios, a Quemós,
deus dos moabitas, e a Milcom, deus dos filhos de Amom; e não andaram pelos meus
caminhos, para fazerem o que é reto aos meus olhos, a saber, os meus estatutos e os meus
juízos, como Davi, seu pai. 1 Reis 11:33.
O rei profanou também os altos que estavam defronte de Jerusalém, à mão direita
do monte de Masite, os quais edificara Salomão, rei de Israel, a Astarte, a abominação
dos sidônios, e a Quemós, a abominação dos moabitas, e a Milcom, a abominação dos
filhos de Amom. 2 Reis 23:13.
Ou seja, afirmamos que a parábola de Adão e Eva é uma parábola política dirigia
a judeus concretos, vivendo no século V A.E.C., que estavam abandonando o culto a
YWHW, com sua série de leis de justiça social e sua condenação aos reis e nobres, pelo
culto de Astarte-Asheráh, muito mais fácil de seguir por estar alinhado aos interesses do
status quo desses reis e nobres. Não é uma história criacionista para os dias de hoje, mas
sim, se historicamente e devidamente contextualizada, é um manifesto político contra
todas as religiões (incluindo os diversos Judaísmo e Cristianismos em diferentes épocas)
que abandonaram ou nunca tiveram preocupações sociais e se tornam sacralizadoras do
status quo.
E como fica a questão da relação, se existe, entre fruto proibido e Ciência &
Tecnologia? Concluímos que a relação só se dá, em termos bíblicos, se a ciência e
tecnologia forem usadas como instrumentos de opressão pelas classes dominantes. Por
outro lado, a ciência, a tecnologia e a sabedoria (ciência + justiça) são amplamente
valorizadas pelos judeus e seus escritos sagrados:
Depois falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Eis que eu tenho chamado por nome
a Bezalel, o filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá, E o enchi do Espírito de Deus,
de sabedoria, e de entendimento, e de ciência, em todo o lavor, Para elaborar projetos,
e trabalhar em ouro, em prata, e em cobre, E em lapidar pedras para engastar, e em
entalhes de madeira, para trabalhar em todo o lavor. E eis que eu tenho posto com ele
a Aoliabe, o filho de Aisamaque, da tribo de Dã, e tenho dado sabedoria ao coração de
todos aqueles que são hábeis, para que façam o que te tenho ordenado. Êxodo 31:1-6.
E todas as mulheres sábias de coração fiavam com as suas mãos, e traziam o que
tinham fiado, o azul e a púrpura, o carmesim e o linho fino. E todas as mulheres, cujo
coração as moveu em habilidade fiavam os pelos das cabras. E os príncipes traziam
pedras de ônix e pedras de engastes para o éfode e para o peitoral, e especiarias, e azeite
para a luminária, e para o azeite da unção, e para o incenso aromático. Todo homem e
mulher, cujo coração voluntariamente se moveu a trazer alguma coisa para toda a obra
que o Senhor ordenara se fizesse pela mão de Moisés; assim os filhos de Israel trouxeram
por oferta voluntária ao Senhor. Depois disse Moisés aos filhos de Israel: Eis que o
Senhor tem chamado por nome a Bezalel, filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá. E
o Espírito de Deus o encheu de sabedoria, entendimento, ciência e em todo o lavor, E
para criar invenções, para trabalhar em ouro, e em prata, e em cobre, e em lapidar de
pedras para engastar, e em entalhar madeira, e para trabalhar em toda a obra esmerada.
Também lhe dispôs o coração para ensinar a outros; a ele e a Aoliabe, o filho de
Aisamaque, da tribo de Dã. Encheu-os de sabedoria do coração, para fazer toda a obra
de mestre, até a mais engenhosa, a do gravador, em azul, e em púrpura, em carmesim,
e em linho fino, e do tecelão; fazendo toda a obra, criando invenções. Êxodo 35:25-35.
E enviou o rei Salomão um mensageiro e mandou trazer a Hirão de Tiro. Era ele
filho de uma mulher viúva, da tribo de Naftali, e fora seu pai um homem de Tiro, que
trabalhava em cobre; e era cheio de sabedoria, e de entendimento, e de ciência para
fazer toda a obra de cobre; este veio ao rei Salomão, e fez toda a sua obra. 1 Reis 7:13,14.
E disse o rei (Nabucodonosor) a Aspenaz, chefe dos seus eunucos, que trouxesse
alguns dos filhos de Israel, e da linhagem real e dos príncipes, jovens em quem não
houvesse defeito algum, de boa aparência, e instruídos em toda a sabedoria, e doutos
em ciência, e entendidos no conhecimento, e que tivessem habilidade para assistirem
no palácio do rei, e que lhes ensinassem as letras e a língua dos caldeus. (...) E entre
eles se achavam, dos filhos de Judá, Daniel, Hananias, Misael e Azarias; (...) Quanto a
estes quatro jovens, Deus lhes deu o conhecimento e a inteligência em todas as letras,
e sabedoria; mas a Daniel deu entendimento em toda a visão e sonhos. E ao fim dos
dias, em que o rei tinha falado que os trouxessem, o chefe dos eunucos os trouxe diante
de Nabucodonosor. E o rei falou com eles; entre todos eles não foram achados outros
tais como Daniel, Hananias, Misael e Azarias; portanto ficaram assistindo diante do rei.
E em toda a matéria de sabedoria e de discernimento, sobre o que o rei lhes perguntou,
os achou dez vezes mais doutos do que todos os magos astrólogos que havia em todo o
seu reino. Daniel 1:3,4,6,17-20.
Com a sabedoria se edifica a casa, e com o entendimento ela se estabelece; E
pelo conhecimento se encherão as câmaras com todos os bens preciosos e agradáveis.
O homem sábio é forte, o homem de conhecimento consolida a força. Provérbios 24:3-5.
E dar-vos-ei pastores segundo o meu coração, os quais vos apascentarão com
ciência e com inteligência Jeremias 3:15.
E apliquei o meu coração a esquadrinhar, e a informar-me com sabedoria de tudo
quanto sucede debaixo do céu; esta enfadonha ocupação deu Deus aos filhos dos
homens, para nela os exercitar. Atentei para todas as obras que se fazem debaixo do
sol, e eis que tudo era vaidade e aflição de espírito. Aquilo que é torto não se pode
endireitar; aquilo que falta não se pode calcular. Falei eu com o meu coração, dizendo:
Eis que eu me engrandeci, e sobrepujei em sabedoria a todos os que houve antes de mim
em Jerusalém; e o meu coração contemplou abundantemente a sabedoria e o
conhecimento. Eclesiastes 1:13-16.

No Novo Testamento, temos uma ênfase similar acerca da sabedoria, inteligência,


ciência e entendimento:
E, chegando à sua pátria, ensinava-os na sinagoga deles, de sorte que se
maravilhavam, e diziam: De onde veio a este a sabedoria, e estas maravilhas? Mateus
13:54.
E aconteceu que, passados três dias, o acharam no templo, assentado no meio
dos doutores, ouvindo-os e interrogando-os. E todos os que o ouviam admiravam a sua
inteligência e respostas. E crescia Jesus em sabedoria, e em estatura, e em graça para
com Deus e os homens. Lucas 2:46,47,52.
Porque eu vos darei boca e sabedoria a que não poderão resistir nem contradizer
todos quantos se vos opuserem. Lucas 21:15.
E os patriarcas, movidos de inveja, venderam José para o Egito; mas Deus era
com ele. E livrou-o de todas as suas tribulações, e lhe deu graça e sabedoria ante Faraó,
rei do Egito, que o constituiu governador sobre o Egito e toda a sua casa. Atos 7:9,10.
E Moisés foi instruído em toda a ciência dos egípcios; e era poderoso em suas
palavras e obras. Atos 7:22.
Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão
insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos! Romanos 11:33.
Por esta razão, nós também, desde o dia em que o ouvimos, não cessamos de orar
por vós, e de pedir que sejais cheios do conhecimento da sua vontade, em toda a
sabedoria e inteligência espiritual. Colossenses 1:9.
Para que os seus corações sejam consolados, e estejam unidos em amor, e
enriquecidos da plenitude da inteligência, para conhecimento do mistério de Deus e Pai,
e de Cristo, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência.
Colossenses 2:2,3.
Porque a um pelo Espírito é dada a palavra da sabedoria; e a outro, pelo mesmo
Espírito, a palavra da ciência. I Coríntios 12:8
Que farei, pois? Orarei com o espírito, mas também orarei com o entendimento;
cantarei com o espírito, mas também cantarei com o entendimento. I Coríntios 14:15.
Irmãos, vós não sejais meninos no entendimento: mas sede meninos na malícia,
e adultos no entendimento'. I Coríntios 14:20.
E peço isto: que o vosso amor cresça mais e mais em ciência e em todo o
conhecimento, Filipenses 1:9.
E, se algum de vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá
liberalmente, e o não lança em rosto, e ser-lhe-á dada. Tiago 1:5.
Quem dentre vós é sábio e entendido? Mostre pelo seu bom trato as suas obras
em mansidão de sabedoria. Tiago 3:13.

Embora muitas dessas referências se referem ao entendimento e sabedoria


espirituais, elas estão alinhadas com a valorização do estudo e do intelecto. Essa
valorização continua até hoje a fazer parte da cultura Judaica.
Deus e Acaso

O Deus cristão, ou seja, a ideia cristã sobre Deus (ou talvez, ideias no plural,
presentes em diferentes teologias), é fruto de uma elaboração milenar. É basicamente um
sincretismo entre a tradição judaica sobre o deus YHWH, que também sofreu uma
elaboração ao longo de séculos, e o Deus da filosofia neoplatônica. Esse sincretismo
ocorre porque o Deus judaico dos primeiros cristãos foi recebido em um novo contexto,
o público de cultura helenizada do Império Romano. Ou seja, o Deus dos filósofos e
teólogos, a partir do século II E.C.2, adquire características tais como eterno,
transcendente, onipotente, onisciente e onipresente, basicamente ligadas ao conceito
matemático platônico de Infinito, que o Deus judaico YHWH não possui (com o mesmo
significado matemático platônico)3.
Tais ideias ligadas ao conceito de infinito sempre geraram paradoxos e nunca
puderam ser elaboradas de forma rigorosa por teólogos judeus e cristãos. Afinal, os
matemáticos só conseguiram um certo consenso sobre o Infinito no final do século XIX
e século XX, com os números transfinitos de Georg Cantor4 e a análise não padronizada
de Abraham Robinson.
É curioso observar que existe um conceito matemático que partilha propriedades
“divinas” tais como um poder criativo/destrutivo infinito, onipotência, eternidade e
transcendência: o Acaso5. Isso é bastante visível nos assim chamados Problemas das
Origens: Origem do Universo, Origem da Vida, Origem das Espécies e Origem da Mente.
Com efeito, a maior parte dos cientistas acredita que o Big Bang (ou melhor, seu
início segundo a Teoria da Inflação) tenha sido disparado por uma flutuação quântica
aleatória. A origem da vida também é tida como surgimento aleatório das primeiras
moléculas auto replicantes (em uma proto-evolucão química).

2
Como este livro se destina a um público tanto cristão como não cristão (e mesmo não religioso), não usarei
as abreviaturas A.C. e D.C. (antes e depois de Cristo). As datas serão dadas em termos de A.E.C. e E.C.,
que podem significar tanto (Antes da) Era Comum como, para os cristãos, (Antes da) Era Cristã. A escolha
é do leitor.
3
O cristianismo romano também é fruto de sincretismo com religiões pagãs greco-romanas. Por exemplo,
templos dedicados a deuses do Panteão romano foram transformados em igrejas cristãs, de forma a haver
uma correspondência sincrética entre esses deuses e santos cristão. Também o culto a Maria evoluiu a partir
de uma absorção do culto a Isis, Rainha do Céu e mãe de deus, e seu menino-deus Osiris.
4
Uma nota histórica interessante é que Cantor, luterano praticante, acreditava que sua teoria sobre números
transfinitos lhe havia sido revelada por Deus e deveria ter aplicações teológicas (Dauben, 2004).
5
Assim como estou grafando a palavra Deus com maiúscula, em vez de deus, também usarei Acaso em
vez de acaso. O objetivo é enfatizar o Acaso como um princípio fundamental, e de certa forma personificá-
lo visando uma comparação com o conceito de Deus, distinguindo-o do conceito físico-matemático de
simples aleatoriedade.
Na evolução das espécies, o Acaso tem o papel criativo fundamental gerando
mutações, embora a Seleção Natural, que não é um processo aleatório, tenha um grande
papel. Mesmo assim, cada vez mais se reconhece o papel do Acaso na sobrevivência e
seleção das espécies: alguns biólogos já dizem que não temos uma verdadeira seleção dos
mais fortes ou adaptados, mas sim a seleção dos mais sortudos (por exemplo, indivíduos
que não estavam perto de uma grande erupção vulcânica ou mudança climática).
Finalmente, a origem da mente e da cultura humana parece ter surgido a partir de
ocorrências mais ou menos acidentais tais como a descoberta do fogo, o crescimento do
cérebro a partir do cozimento de cozimento de alimentos (que permitiu maior uso pelo
cérebro do sangue anteriormente dirigido para o sistema digestivo), o aparecimento da
linguagem simbólica e mesmo o surgimento do vínculo mutualístico humanos-cães. Ou
seja, a emergência da mente e cultura humanas não estavam pré-determinadas na
Evolução e surgiram por Acaso.
É bem verdade que o Acaso na Biologia não é concebido como onipotente. Por
exemplo, não temos baratas Kafkianas da altura de um homem ou animais com seis
membros tais como dragões, centauros e cavalos alados. Existem vínculos físicos (baratas
gigantes não conseguiriam respirar de forma eficiente) e biológicos (aves, répteis e
mamíferos descendem de peixes com quatro nadadeiras principais que invadiram terrenos
pantanosos)6. Entretanto, o Acaso é a fonte de toda criatividade na evolução biológica e
responsável pela imensa variedade de nossa Biosfera, ou seja, é o que chamarei daqui por
diante de quase-onipotente.
Tecnicamente falando, porém, o Acaso realmente pode realizar coisas
aparentemente impossíveis. Por exemplo, no conceito de Cérebro de Boltzmann, átomos
no espaço vazio se juntam por puro Acaso formando um cérebro, que se torna um
observador enquanto durar o tempo de vida lhe dado pelo Acaso. O tempo médio que
devemos esperar para que surja um cérebro de Boltzmann é muito grande, mas não é
infinito. Ou seja, um cérebro de Boltzmann não é fruto de evolução biológica, mas sim
do puro Acaso.
Esse poder criativo, onde a novidade surge de praticamente nada, é bem mais
marcante no caso da origem do Universo. Se nosso Universo surgiu de uma flutuação
quântica, então tudo o que conhecemos surgiu por obra do Acaso. É claro que nem todos

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Estes vínculos, porém, também são obra do Acaso: se mutações aleatórias tivessem produzido outro
sistema respiratório, poderíamos ter baratas gigantes; se os primeiros peixes a invadir a terra, por acaso,
tivessem seis nadadeiras principais, poderíamos ter hoje mamíferos com seis membros.
os universos imagináveis são fisicamente possíveis, ou seja, o poder do Acaso também
tem seus limites quando aplicado ao contexto cosmológico. Mas, dado a amplitude do
processo cósmico, creio também ser possível afirmar que o Acaso cosmológico é
onipotente no sentido que ele pode gerar qualquer universo fisicamente possível dentro
do Multiverso. E, dado que as leis do Acaso são preexistentes às leis da Física (pois é o
Acaso que cria as leis da Física) e ao Universo (e talvez mesmo à um possível Multiverso),
podemos dizer que o Acaso é uma poderosa força criadora, um poder eterno, onipresente,
onipotente e mesmo transcendente.
O que quero defender neste capítulo é que existem paralelos profundos entre a
ideia de Deus e a ideia de Acaso, especialmente se nos atermos apenas ao que as pessoas
refletiram nos escritos bíblicos. Não apenas o Acaso apresenta propriedades quase divinas
como a manifestação do Deus bíblico é descrita como misteriosa, tortuosa, escondida e
mesmo incompreensível, adjetivos que lembram os processos aleatórios. Ou seja, na
Bíblia, Deus não é tido como uma força ou pessoa que possa ser bem compreendida ou
definida. Por exemplo, existem afirmações escandalosas (que ultrapassam o senso
comum judaico de que Deus abençoa os bons e pune os maus) onde se diz que Deus não
distingue os ímpios dos justos, os bons dos maus, ou seja, as ações de Deus parecem ser
aleatórias. Se um Deus sumo bondoso está bem definido na teologia (e não é claro que
esteja) isto se deve a uma elaboração teológica posterior à tradição bíblica. Alguns
exemplos das Escrituras podem ilustrar o que observamos acima:
Percebi ainda outra coisa debaixo do sol: Os velozes nem sempre vencem a
corrida; os fortes nem sempre triunfam na guerra; os sábios nem sempre têm comida;
os prudentes nem sempre são ricos; os instruídos nem sempre têm prestígio; pois o
tempo e o acaso afetam a todos. Além do mais, ninguém sabe quando virá a sua hora:
Assim como os peixes são apanhados numa rede fatal e os pássaros são pegos num laço,
também os homens são enredados pelos tempos de desgraça que caem inesperadamente
sobre eles. Eclesiastes 9:11,12.
É tudo a mesma coisa; por isso digo: Ele destrói tanto o íntegro como o ímpio.
Quando um flagelo causa morte repentina, ele zomba do desespero dos inocentes.
Quando um país cai nas mãos dos ímpios, ele venda os olhos de seus juízes. Se não é ele,
quem é então? Jó 9:22-24.
Vocês ouviram o que foi dito: ‘Ame o seu próximo e odeie o seu inimigo’. Mas eu
lhes digo: Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem, para que vocês
venham a ser filhos de seu Pai que está nos céus. Porque ele faz raiar o seu sol sobre
maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos. Mateus 5:43-45.
Deus é a explicação última para teístas e o Acaso é a explicação última para
ateístas. A ideia que estou querendo defender neste capítulo é a de que o conceito de Deus
corresponde ao de um Acaso personificado (ou talvez um Acaso interpretado a posteriori)
e o conceito de Acaso ao de um Deus impessoal criativo/destrutivo. Embora a grande
diferença entre os dois conceitos seja a de intencionalidade pessoal, na tradição bíblica
os dois conceitos não estão tão afastados assim, na medida em que se enfatiza que a
intencionalidade de Deus é misteriosa, oculta e mesmo incompreensível.
Assim como você não conhece o caminho do vento, nem como o corpo é formado
no ventre de uma mulher, também não pode compreender as obras de Deus, o Criador
de todas as coisas. Eclesiastes 11:5.
Verdadeiramente tu és um Deus que se esconde, ó Deus e Salvador de Israel.
Isaías 45:15.
Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento de Deus! Quão
insondáveis são os seus juízos, e inescrutáveis os seus caminhos! Romanos 11:33.
Vou fazer uma conjectura talvez um pouco mais audaciosa: será que, pelo fato
dos povos antigos não terem uma ideia clara sobre a natureza matemática do Acaso, mas
intuindo sua onipresença, seu enorme poder e mesmo sua transcendência, tais povos
encararam esta incrível força como um deus ou deusa?7 E que, como no monoteísmo só
existe um Deus, as propriedades e características desse poderoso e criativo/destrutivo
deus Acaso foram incorporadas ao conceito bíblico de ação misteriosa, muitas vezes
destrutiva, de Deus?
Para defender esta identidade entre o poder do Acaso e o poder de Deus mostrarei
duas evidências: primeiro, a ideia de que a sorte e o acaso são instrumentos de
comunicação da vontade divina; segundo, que os grandes eventos destrutivos gerados
pelo Acaso são manifestações do poder divino.
Que a sorte, o acaso e as coincidências tenham significado espiritual é uma ideia
presente desde a Antiguidade até os dias de hoje (os tarólogos, jogadores de búzios e
seguidores do I Ching que me desmintam). Que a sorte pode manifestar a vontade de
Deus também está presente na cultura judaico-cristã, algo que é surpreendente dado que

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Lembremos que no politeísmo greco-romano o acaso e a sorte estão relacionados à deusa Fortuna/Tique.
Na arte greco-budista de Gandara, Tique tornou-se intimamente associada à deusa budista Hariti.
essa tradição é muitas vezes avessa a adivinhações, magia e práticas ocultas. Mas temos
vários exemplos importantes onde a sorte foi interpretada como canal da vontade divina.
No Antigo Testamento, o livro de I Samuel conta como foi escolhido o primeiro
rei de Israel. Embora o relato descreva YHWH comunicando previamente a Samuel sua
intenção de escolher Saul, é bastante curioso que a escolha pública, oficial, envolveu
sorteios (o método exato não é descrito):
Samuel convocou o povo de Israel ao Senhor, em Mispá, e lhes disse: "Assim diz
o Senhor, o Deus de Israel: ‘Eu tirei Israel do Egito, e libertei vocês do poder do Egito e
de todos os reinos que os oprimiam’. Mas vocês agora rejeitaram o Deus que os salva de
todas as suas desgraças e angústias. E disseram: ‘Não! Escolhe um rei para nós’. Por
isso, agora, apresentem-se perante o Senhor, de acordo com as suas tribos e clãs”. Tendo
Samuel feito todas as tribos de Israel se aproximarem, a de Benjamim foi escolhida por
sortes. Então fez ir à frente a tribo de Benjamim, clã por clã, e o clã de Matri foi
escolhido (por sortes). Finalmente foi escolhido (por sortes) Saul, filho de Quis. I
Samuel 10:17-21.
Que o primeiro rei e, portanto, a primeira dinastia, tenha sido escolhida por sorteio
renova a ideia de que YHWH não faz acepção de pessoas, ou seja, não prefere os mais
ricos ou as famílias mais influentes. Todos tiveram igual oportunidade de se tornarem o
rei. Se pensarmos bem, esse método de sorteio é mais democrático do que a escolha de
líderes feita em nossa atual democracia, que envolve financiamentos, alianças,
campanhas eleitorais caríssimas. Em nosso mundo, Saul nunca teria sido escolhido pois
pertencia a uma família que não era muito importante.
A prática de dividir terras usando sorteios também era muito disseminada. Dado
que a herança da terra era também um ato religioso, temos um exemplo claro da ideia de
que o Acaso comunica a vontade de Deus. Na Utopia judaica, as melhores terras não
seriam dadas às pessoas mais ricas, influentes ou com poder político, mas sim todas as
famílias teriam as mesmas oportunidades:
Disse ainda o Senhor a Moisés: "A terra será repartida entre eles como herança,
de acordo com o número dos nomes alistados. A um clã maior dê uma herança maior, e
a um clã menor, uma herança menor; cada um receberá a sua herança de acordo com o
seu número de recenseados. A terra, porém, será distribuída por sorteio. Cada um
herdará sua parte de acordo com o nome da tribo de seus antepassados. Cada herança
será distribuída por sorteio entre os clãs maiores e entre os clãs menores”. Números
26:52-56.
Repartireis, pois, esta terra entre vós, segundo as tribos de Israel.
Será, porém, que a sorteareis para vossa herança e para a dos estrangeiros que moram
no meio de vós, que gerarem filhos no meio de vós; e vos serão como naturais entre os
filhos de Israel; convosco entrarão em herança, no meio das tribos de Israel. Ezequiel
47:21,22.
Outros exemplos do uso do acaso divinizado:
Essas divisões dos porteiros, feitas pelos chefes deles; eles cumpriam tarefas no
serviço do templo do Senhor, assim como seus parentes. Tiraram sortes entre as famílias,
incluindo jovens e velhos, para que cuidassem de cada porta. E a porta leste coube a
Selemias. Então tiraram sortes para seu filho Zacarias, sábio conselheiro, e a porta
norte foi sorteada para ele. 1 Crônicas 26:12-14.
A sorte é lançada no colo, mas a decisão vem do Senhor. Provérbios 16:33.
O uso da sorte e acaso não se restringe ao Antigo Testamento. Quando os
apóstolos se reúnem após a morte de Jesus, Pedro propõe que se escolha um discípulo
para ocupar o lugar de Judas. Em Atos dos Apóstolos 1:23-26 lemos:
Então indicaram dois nomes: José, chamado Barsabás, também conhecido como
Justo, e Matias. Depois oraram: "Senhor, tu conheces o coração de todos. Mostra-nos
qual destes dois tens escolhido para assumir este ministério apostólico que Judas
abandonou, indo para o lugar que lhe era devido”. Então tiraram sortes, e a sorte caiu
sobre Matias; assim, ele foi acrescentado aos onze apóstolos. Atos 1:23-26.
Práticas sacerdotais no templo de Jerusalém, já no Novo Testamento, também
envolviam sorteio:
Certa vez, estando de serviço o seu grupo, Zacarias estava servindo como
sacerdote diante de Deus. Ele foi escolhido por sorteio, de acordo com o costume do
sacerdócio, para entrar no santuário do Senhor e oferecer incenso. Lucas 1:8-9.
Fora este uso explicito do Acaso como meio de comunicação direta com YHWH
(e com forças espirituais em geral, vide práticas divinatórias em outras religiões), outros
fenômenos muitas vezes interpretados como sinal da ação divina são as coincidências e
os sonhos, que hoje atribuímos ao âmbito do aleatório. Dada sua abundância nos escritos
bíblicos, creio não ser necessário usar citações sobre coincidências e sonhos para ilustrar
este ponto.
Existe outra classe de fenômenos que são atribuídos à YHWH e, modernamente,
ao Acaso. São os grandes fenômenos naturais tais como erupções vulcânicas, terremotos,
inundações, grandes tempestades, incêndios, secas, fomes, guerras e pestes. Apenas para
ilustrar, cito uma passagem onde se fala tanto de terremotos violentos quanto do poder
divino manifesto na criação:
Sua sabedoria é profunda, seu poder é imenso. Quem tentou resisti-lo e saiu ileso?
Ele transporta montanhas sem que elas o saibam, e em sua ira as põe de cabeça para
baixo. Sacode a terra e a tira do lugar, e faz suas colunas tremerem. Fala com o sol, e
ele não brilha (a luz solar barrada pelas cinzas vulcânicas); ele veda e esconde a luz das
estrelas. Só ele estende os céus e anda sobre as ondas do mar. Ele é o Criador da Ursa
e do Órion, das Plêiades e das constelações do sul. Realiza maravilhas que não se podem
perscrutar, milagres incontáveis. Quando passa por mim, não posso vê-lo; se passa junto
de mim, não o percebo. Jó 9:5-10.
Curiosamente, a disposição das estrelas nas constelações é pura obra do Acaso.
Outros exemplos onde grandes eventos como guerras, pestes e fomes são tidos como de
origem divina:
Assim diz o Soberano Senhor: Chegou a desgraça! Uma desgraça jamais
imaginada vem aí. (…) Fora está a espada, dentro estão a peste e a fome; quem estiver
no campo morrerá pela espada, e quem estiver na cidade será devorado pela fome e
pela peste. (…) O rei pranteará, o príncipe se vestirá de desespero, e as mãos do povo
da terra tremerão. Lidarei com eles de acordo com a sua conduta, e pelos padrões deles
mesmos eu os julgarei. Então saberão que eu sou o Senhor. Ezequiel 7:5,15,27.
Faze-os como folhas secas levadas no redemoinho, ó meu Deus, como palha ao
vento. Assim como o fogo consome a floresta e as chamas incendeiam os montes,
persegue-os com o teu vendaval e aterroriza-os com a tua tempestade. Cobre-lhes de
vergonha o rosto até que busquem o teu nome, Senhor. Salmos 83:13-16.
O Senhor dos Exércitos virá com trovões e terremoto e estrondoso ruído, com
tempestade e furacão e chamas de um fogo devorador. Isaías 29:6.
Muitas vezes se critica esse YHWH colérico dos antigos judeus como não sendo
bom o suficiente para o conceito cristão tardio de Deus como Pai Amoroso e sumo
bondoso, ou o conceito neoplatônico de Deus como ente matemático perfeito sem
emoções. Mas, certamente, esse YWHW que age tanto a favor como contra os desejos
humanos, um deus que não é necessariamente bom em termos humanos, se parece muito
com o nosso moderno conceito de Acaso!
É muito interessante que os fenômenos naturais atribuídos a YWHW (terremotos,
incêndios florestais, secas, fomes, pestes, guerras, grandes eventos econômicos e
históricos) são hoje estudados pela física com uma abordagem unificada. Isto ocorre
porque se descobriu que os grandes desastres são inevitáveis e seguem uma mesma lei de
probabilidade, que prevê que eles são mais frequentes do que o senso comum esperaria,
o que é chamado de efeito de cauda longa8. Tais grandes eventos também são totalmente
imprevisíveis, regidos por puro Acaso. A teoria que dá conta do caráter estatístico e
aleatório dessas grandes ocorrências se chama Criticalidade Auto-Organizada9.
Lembremos também que em vários países, as seguradoras se eximem de cobrir
danos provocados pelos grandes eventos como furacões, tsunamis, grandes terremotos e
pandemias. Tais eventos ainda são tratados como exceções ou Acts of God. Ou seja, de
novo temos fenômenos que são atribuídos tanto a Deus quanto ao Acaso.
Neste capítulo tentei traçar paralelos, que muitas vezes passam despercebidos,
entre as propriedades de YHWH e as propriedades matemáticas do Acaso. Ambos são
tidos como eternos e preexistentes ao Universo (mesmo que existam leis da física
diferentes em outros universos do Multiverso, as leis estatísticas do Acaso continuam
sendo as mesmas). Ambos entes são onipresentes, afetando desde a criação do Universo
(a flutuação quântica que deu origem ao processo inflacionário) até os menores detalhes
da vida humana (as pequenas coincidências e bifurcações que ditam nossas vidas),
passando pelos grandes eventos da Natureza e da História, os Acts of God das empresas
de seguros.
Ambos são onipotentes (ou quase). A única (importante) diferença conceitual
entre YHWH e Acaso é que o primeiro teria intencionalidade e agiria na História, em
contraste com a cega atuação do último. Entretanto, corajosos escritores bíblicos (Jó,
Eclesiastes) vão além do senso comum judaico de que os bons são recompensados e os
maus punidos nesta vida, e afirmam que os eventos do mundo parecem ser controlados
pela sorte e pelo acaso, ou seja, a intencionalidade de YHWH é escondida, misteriosa,

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Cauda longa é uma expressão que se refere ao fato de que muitos fenômenos tais como as distribuições
de tamanho de terremotos, extinções de espécies, guerras, renda, tamanho de cidades e propriedades,
vendarem de filmes e livros etc. seguem uma mesma lei matemática, as chamadas leis de potência: a
probabilidade de acontecer um evento de tamanho s é dada por P(s) = C/sb , onde C é uma constante e b é
um expoente (em geral entre b=1 e b=3). Por exemplo, se b = 1, a probabilidade de em evento é
inversamente proporcional ao seu tamanho: a probabilidade de um evento de tamanho s=10 será um décimo
da probabilidade de ocorrer um evento de tamanho s=1, e a chance de ocorrer um evento de tamanho s=100
será um centésimo da chance de ocorrer um evento de tamanho s=1.
9
Na Criticalidade Auto-Organizada (Self-Organized Criticality ou SOC) estuda-se fenômenos que
ocorrem na forma de eventos de todos os tamanhos, tais como avalanches, terremotos, extinções em massa,
incêndios florestais, enchentes, epidemias e mesmo guerras, crises econômicas e outros eventos sociais. Os
modelos sempre envolvem a interação entre muitas unidades e os eventos tomam a forma de reações em
cadeia. Os pequenos eventos são bem mais frequentes, os médios menos frequentes e os grandes eventos
são raros. Todos os eventos, porém, são fortemente influenciados pelo acaso e os grandes eventos são
inesperados e de difícil, senão impossível, previsão (Jensen, 1998).
incompreensível e aparentemente aleatória. Além disso, não está claro se os relatos
bíblicos são na verdade narrativas a posteriori, interpretações em forma de fábula moral,
de eventos devidos ao Acaso. Por exemplo, a história de Sodoma e Gomorra poderia ser
apenas uma fabulação moral10, redigida muitos anos após o ocorrido, de uma grande
erupção vulcânica ocorrida na região dessas cidades.
Se chamarmos de "deus" um princípio explicativo fundamental, uma poderosa
força transcendente criativa/destrutiva, podemos dizer que o deus dos teístas difere do
deus Acaso dos ateus basicamente por sua intencionalidade. Esta é uma grande diferença,
mas devemos lembrar que ela é bastante relativizada quando se introduz a ideia bíblica
de vontade misteriosa, incompreensível, incognoscível e aparentemente aleatória de
Deus. É bem possível que o YHWH judaico e o Acaso dos ateus tenham muito mais em
comum do que o reconhecido por ambas as partes.

REFERÊNCIAS
Dauben, Joseph (2004) [1993]. "Georg Cantor and the Battle for Transfinite Set Theory",
Proceedings of the 9th ACMS Conference (Westmont College, Santa Barbara, CA), pp.
1–22. Internet version published in Journal of the ACMS 2004.
Jensen, H. (1998). Self-Organized Criticality: Emergent Complex Behavior in Physical
and Biological Systems (Cambridge Lecture Notes in Physics). Cambridge: Cambridge
University Press. doi:10.1017/CBO9780511622717

10
Estudos de crítica bíblica indicam que o relato dos anjos e dos habitantes de Sodoma e Gomorra não
envolve uma crítica moral à homossexualidade mas sim à violação da proteção aos visitantes estrangeiros,
algo que na época era muito mais importante em termos culturais para os judeus.
Osame Kinouchi Filho é natural de Araraquara – SP e professor associado livre-docente
no Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
– USP. Trabalha na área de Física Estatística Interdisciplinar e Neurociência Teórica,
tendo publicado cerca de sessenta artigos em revistas científicas internacionais, incluindo
a Nature Physics e o Physical Review Letters. Responsável pelo Laboratório de Física
Estatística e Biologia Computacional (FEBiC – febic.anelciencia.com) Laboratório de
Divulgação Científica e Cientometria (LDCC), que mantém o portal Anel de Mídias
Científicas (AMC – anelciência.com), com links para mais de 400 blogs e 130 canais
YOUTUBE científicos em português. Publicou O Beijo de Juliana: quatro físicos
teóricos conversam sobre crianças, ciências da complexidade, biologia, política, religião
e futebol (2014) pela Editora Multifoco e Projeto Mulah de Tróia (2016) pela Drago
Editorial. No Kindle Amazon, publicou Projeto Mulah de Tróia 2 (2020). Participou de
várias antologias: FCdoB-2010/2011 (Tarja Editorial), Solarium 3 (Multifoco), Galáxias
Ocultas (Editora Illuminare), Teslapunk: Tempestades Elétricas (Cavalo Café), O
Espantoso Mundo da Antecipação (Elemental Editoração), Antologia Asimoviana
(Arkanus Editorial), O Livro da Ficção Científica Brasileira (Madrepérola), Estrelas
Inalcançáveis (LN Editorial), Ano Zero (Lura Editorial) e Almas Fabricadas
(Madrepérola). O conto Demiurgo, que abre este livro, está sendo adaptado para o cinema
pelo cineasta e roteirista Bruno Caticha.

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