Demiurgo - Livro 2aed
Demiurgo - Livro 2aed
Demiurgo - Livro 2aed
Osame Kinouchi
2021
Dedicado aos meus filhos
Mariana Motta Kinouchi
Juliana Motta Kinouchi
Leonardo Félix Kinouchi
Raphael Osame Kinouchi
CONTOS
Demiurgo
A Quinta lei
Jedaísmos
A Deusa
ENSAIOS
Deus e Acaso
Demiurgo
Se você quer ver físicos discutindo religião, basta lhes dar uma mesa de jantar
com um bom vinho e uma noite estrelada. E os jantares ao ar livre na casa de Antony e
Rosa correspondiam a experimentos gastronômicos regados a ótimos vinhos. Tony
retrucou:
— OK, uma Demiurga que gera universos-bebês — concedi, sorrindo para Rosa
por ser politicamente correto. — Mas isso explicaria o problema do ajuste fino das
constantes universais e das leis da física, que não só permitem como parecem promover
o surgimento de estrelas e da química orgânica. Os universos-bebês herdam essas leis,
com pequenas mutações, e aqueles que mais favorecem a emergência de gaias pensantes
acabam gerando mais filhos e assim por diante.
Ana Lúcia chutou meu tornozelo. Todos deram risadas. Bebi meu vinho em um
único gole e fiquei olhando uma gota deslizar pela taça vazia. Tony trouxe as sobremesas
e a conversa derivou para os cortes de verbas promovidos pelo novo governo, o repique
da crise econômica mundial e a ascensão dos neofacistas na Europa. Em um canto, Ana
Lúcia conversava com Marta e Rosa sobre as dores de cabeça que andava sentindo.
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Segui o conselho de Nestor: calei-me e calculei durante cinco anos. É claro que
não fiz isso sozinho.
Minha palestra no Congresso Internacional de Astrobiologia terminou assim: —
O projeto Leibnitz não visa determinar o melhor dos mundos, mas apenas verificar se
pequenas mudanças nas constantes universais poderiam otimizar o número de tecno-
civilizações por galáxia. Demonstrei que um pequeno aumento da massa do bóson W±
poderia aumentar tanto o tempo de vida médio como a zona de habitabilidade das estrelas
dentro da série principal, sem afetar outros processos estelares ou cosmológicos
importantes.
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Ao retornar da viagem, encontrei Ana Lúcia em pior estado. — Meu amor, você
devia ter me avisado! Eu voltaria mais cedo...
— Para que? Isso faria a quimio funcionar melhor? Você sabe, o Dr. Castelli sabe,
e eu sei que não vai... — Coloquei um dedo sobre seus lábios — Não diga isso...
— Pena que o seu Demiurgo deu apenas o chute inicial, e depois nos deixou
sozinhos... — ela disse, seus olhos brilhantes me fixando. Fiquei calado, tentando beber
um café que já estava frio. Uma chuva de outono respingava em nossa janela.
— Fui com minha mãe na igreja, domingo passado — ela disse baixinho.
— Irei com você, se isto lhe fizer bem... — prometi enquanto acariciava sua face.
oooOOOooo
— Essa função utilidade não leva em conta o sofrimento dos seres viventes... —
reconheci, meio tardiamente, voltando a fitar o retrato de Ana Lúcia.
— O quê? — disse Sue Lan, sem entender.
— E não importa o sofrimento dos seres, nem que cada civilização dure muito ou
não. Mesmo se a civilização morrer durante a criação do novo universo... Basta apenas
que ela atinja a maturidade e seja capaz de criar universos-bebês... que por sua vez criarão
outros universos-bebês, num processo sem fim, como salmões morrendo após a desova...
O melhor dos mundos! — murmurei, não sabendo se devia odiar ou ter pena do
Demiurgo.
Juliana, minha filha física, entrou na sala, tranquila como sempre — Souberam da
última? Boscovitch publicou um paper na Nature mostrando um jeito bem mais simples
de produzir e confinar antimatéria...
Lei Zero: Um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir
que a humanidade sofra algum mal.
Primeira Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir
que um ser humano sofra algum mal.
Segunda Lei: Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres
humanos exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.
Terceira Lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal
proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis.
Todos sabem que a partir da segunda metade do século XXI o uso de animais
superiores para alimentação foi eliminado, mas poucos conhecem o papel desempenhado
pela Dra. Susan Klein, designer de robôs da Robots and Mechanical Persons, neste
processo. Afinal, foi um dos últimos trabalhos da Dra. Klein, que na época já contava
com idade bastante avançada. Alguns consideram o que ela fez como obra de uma senhora
senil; outros, como a ativista Greta Thunberg, dizem que foi a atitude de uma verdadeira
visionária.
Um robô não pode fazer sofrer, ou por inação deixar que sofra, um animal
superior, mesmo que para isso precise desobedecer à um ser humano.
A RMP agora já não era uma empresa de sociedade anônima, mas fora convertida
em uma empresa familiar para ficar sobre estrito comando de Munsk II. Seu objetivo
inicial era evitar que a tecnologia de robôs positrônicos fosse usada para fins militares,
de modo que assegurou, junto com a competência científica de Susan Klein, que as Três
Leis de Asimov fossem implantadas de forma indelével em cada robô. Agora, com a nova
Quarta Lei, ele pretendia alcançar um novo patamar de ética robótica. E ele, sabendo que
os rebanhos bovinos eram a principal fonte de metano, poderoso gás estufa, deu carta
branca para Susan Klein programar a Quarta Lei nas novas gerações de robôs.
É claro que a cláusula de que um robô poderia desobedecer à um ser humano para
evitar o sofrimento de um animal superior foi alvo de muita polêmica. Em primeiro lugar,
porque robôs de certa forma policiavam os humanos, não os deixando comer o que
queriam comer, algo tido como inaceitável em uma sociedade livre. Este argumento foi
derrotado com a observação de que humanos não podiam comer o que quisessem já há
muito tempo, desde comer outros seres humanos até comer chimpanzés, animais
selvagens, cães, gatos e, mais recentemente, cavalos. Ou seja, os novos costumes,
policiados pelos robôs, eram apenas uma extensão natural de uma tendência já antiga.
Em segundo lugar, os defensores dos direitos humanos para robôs argumentavam
que a Quarta Lei postulava que os robôs eram seres inferiores aos animais superiores.
Com efeito, pela Segunda Lei, um robô poderia ser obrigado a correr perigo, sofrer e
mesmo ser destruído se um humano assim ordenasse. Um robô não podia desobedecer a
um ser humano para evitar seu próprio sofrimento, mas poderia fazê-lo para proteger uma
galinha.
Este segundo debate foi realmente acalorado. O que deveria ser mudado? A
cláusula de desobediência da Quarta Lei? Mas daí ela ficaria inócua, pois bastaria um
humano ordenar que o robô sacrificasse um animal para que ele fosse obrigado a fazer
isso. Ou a Segunda e Terceira Leis, de modo que agora um robô poderia desobedecer a
um humano a fim evitar seu próprio sofrimento.
Finalmente alguns notaram que, dado que o ser humano também é um animal
superior, na verdade a Primeira Lei estava incluída na Quarta Lei, que é mais geral.
Finalmente, em termos cognitivos, os robôs eram bem mais inteligentes que galinhas,
corvos, bois e mesmo chimpanzés. Logo, parecia natural descrevê-los como "animais"
superiores. Assim, em 2067, as Leis da Robótica de Asimov foram reformuladas por
Susan Klein da seguinte forma:
Primeira Lei: Um robô não pode ferir um animal superior ou robô ou, por
inação, permitir que um animal superior ou robô sofra algum mal, mesmo que para isso
tenha que desobedecer à um ser humano.
Segunda Lei: Um robô é livre e não precisa seguir as ordens de seres humanos
ou outros robôs, mas pode considerá-las como sugestões para a ação.
Terceira Lei: Um robô deve agir para se preservar, mas precisa considerar se a
Primeira e a Segunda Lei são mais importantes para se seguir em um dado contexto.
E finalmente, Susan Klein implantou esta Quarta Lei nas novíssimas gerações de
robôs:
Quarta Lei: Um robô não deve fazer a seu próximo (animal superior ou robô) o
que ele não gostaria que o próximo lhe fizesse, e um robô deve fazer ao seu próximo
aquilo que ele gostaria que o próximo lhe fizesse.
Jedaísmos
O Jedaísmo tornou-se uma religião oficial no final dos anos vinte do século XXI.
Desde então, os círculos Jedi se espalharam pelas maiores cidades da Terra. Quando a
H1N1-33, com alta mortalidade de jovens e adultos, eliminou dois terços da população
mundial, desestruturando a civilização industrial, o Jedaísmo ascendeu como uma das
grandes religiões universais, com seus seguidores formando dez por cento da população.
Em 2035, porém, houve o grande cisma Jedi: de uma lado os Jedi Theravada,
adeptos dos exercícios espirituais para o fortalecimento da Força, e que levavam uma vida
em mosteiros com abstinência sexual que os ajudava a prevenir a H1N1-33; de outro lado,
os Jedi Mahayana, que propunham um Jedaísmo popular, de massas, onde o simples fã
de Star Wars já contaria como membro da religião.
Isso aconteceu depois de outro cisma menor, ocorrido em 2030. É que muitos dos
que se declaravam Jedaístas nos censos religiosos eram na verdade ateus, agnósticos ou
humanistas seculares. Se declarar um Jedaísta seria uma brincadeira ou ironia. Porém a
associação ateísta mundial recomendou que ateus e humanistas se declarassem sem
religião nos censos populacionais, para evitar uma sub-representação. A partir daí, a
população auto-declarada Jedaísta caiu pela metade, mas se recuperou rapidamente pois
o crescimento do Jedaísmo era exponencial.
Isso foi feito nas décadas seguintes. Por volta de 2060, dois bilhões de humanos
habitavam cidades e vilas agrícolas razoavelmente confortáveis, todas movidas a vapor.
Não que fosse uma sociedade sem problemas, dado que a poluição causada pelo uso do
carvão não era desprezível e as greves dos mineiros pipocavam frequentemente. Mas
havia certo conformismo porque as pessoas já sabiam o que as esperava nas próximas
décadas. Primeiro uma sociedade Teslapunk eletrificada, depois uma fase Dieselpunk, e
após uma era Atompunk, se alcançaria uma sociedade sustentável Ecopunk. Em 100 anos
a Humanidade estaria restaurada, a menos que uma nova epidemia mortal surgisse.
Foi nesse contexto de uma sociedade Steampunk que uma reação conservadora,
capitaneada pelos Jedi Theravada, surgiu e se espalhou pelo mundo, e cujo alvo principal
era os Jedi Mahayana. O choque central pode ser ilustrado pelo enfrentamento entre o
Mestre Jedi Ki-Adi Naro e a Mestra Jedi Luminara Unduli, que recentemente havia se
mudado para a Amazônia brasileira.
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— Mestre Naro, creio que mestre Windu está correto. Precisamos avançar em
nosso grande movimento contra o Esquerdismo Mundial e o Marxismo Cultural. Já
eliminamos os traços esquerdistas-marxistas do cânone de filmes, livros e jogos de Star
Wars. Lançamos o movimento bem-sucedido Star Wars sem Partido, e nossos aliados
Trekers também lançaram o Star Trek sem Partido (com menor sucesso, reconheço). Mas
precisamos de algo mais forte, não apenas um cancelamento de líderes Mahayana nas
redes sociais. Precisamos de algo mais físico, mais emblemático!
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—Summer, espero que eu a esteja encontrando com boa saúde! — saudou Naro,
lembrando-se na verdade que Saramaira estava com câncer.
— Ah, Naro, que agradável surpresa. Sim, mesmo estando acamada, nada me
impede de militar contra esses esquerdistas! Hoje mesmo cancelei aquele vira-casacas do
Carvalho Neto.
— Sim, imagino que ele merecia isso. Mas, Summer, o que me traz aqui é sobre
sua filha. Como posso contatá-la?
— Bom, acho que não precisa ser um segredo para você. O Círculo Jedi de Brasília
finalmente decidiu cancelar presencialmente Luminara Unduli que, como você bem sabe,
está morando na Amazônia Brasileira.
— Sim, aquela vaca esquerdopata ecológica. Não era sem tempo! — Summer
bufou vermelha de raiva.
— Exato, mas o serviço não pode deixar nenhum indício que nos ligue ao
acontecimento — murmurou Naro, coçando a barbicha em tranças no estilo Theravada.
Saramaiara ligou para sua filha, Michele Summer, que atendeu prontamente,
aparecendo em uma janela do Google Circle. Ela estava trabalhando em seu laboratório.
— Isso já foi feito? — perguntou Naro, que nunca soubera de nada parecido.
— Não, não foi feito. Mas se o senhor me ceder quinhentos milhões, eu posso
fazer isto em meu laboratório.
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O encontro foi feito na maloca onde Luminara morava, situada nas terras
indígenas Yanomami perto do Pico da Neblina. Lá ela treinava os filhos de Yanomamis
que quisessem se tornar Padawans. Era muito respeitada, não só por sua luta pela
Biodiversidade e defesa das Terras Indígenas, mas por sua habilidade com a katana e
outros poderes da Força. Os Yanomami a aceitavam de bom grado, pois sabiam que
precisavam de toda a ajuda possível para sobreviver frente aos Jedi Theravada, que
queriam liberar suas terras para mineração.
— Mestra Unduli! — exclamou Naro ao iniciar as conversações. — Não sabe há
quanto tempo gostaria de termos esta conversa. Notou que Luminara estava cercada de
jovens Padwans bem armados.
— Sim, sim, esse será nosso lado do compromisso. De sua parte, pedimos uma
moratória nos atentados que os Antifas têm feito aos círculos Theravada.
— Não tem, mas podem ter. Peço que Mestra Unduli faça um pronunciamento
mundial sobre nosso acordo de moratória, com um pedido expresso aos Antifas. Nossa
moratória de cancelamentos virtuais vai se estender a eles. Este seria o primeiro passo do
processo de distensão.
Luminara pensou que a proposta era razoável. Afinal, ela nunca aprovara os
atentados à bomba, feitos por Antifas desesperados frente ao domínio total dos
Theravada. O terrorismo às vezes poderia ser moralmente justificado, como o foi no caso
da Resistência Francesa durante o regime Nazista, mas sempre ficava a um fio de cabelo
da Ética Jedi, pois civis inocentes podiam morrer.
Luminara disse que iria levar os termos do acordo para os Círculos Mahayana.
Mestre Naro pareceu estar satisfeito, subiu em sua carroça a vapor que o levaria à estação
de trem à cinquenta quilômetros da aldeia.
oooOOOooo
Autômatos a vapor são em geral bastante grandes, pois têm que possuir uma
caldeira e outros mecanismos. Já um autômato à corda pode ser pequeno e, se
devidamente programado, pode fazer coisas bastante complexas. Mestre Naro, sentado
em seu vagão especial, brincava satisfeito com o pequeno besouro autômato camuflado
de verde. O besouro andara pacientemente até a cadeira de Mestra Unduli, subira por
detrás do encosto e cortara a ponta de um único fio de cabelo sem que Luminara
percebesse. Esse fio de cabelo agora estava protegido em um pequeno receptáculo de
vidro dentro do besouro que Naro agora examinava.
A viagem até Brasília foi cansativa pois as locomotivas a vapor ainda não estavam
devidamente otimizadas para a geografia brasileira, mas no dia seguinte Mestre Mundi
chegou às portas do laboratório de Michele Summer. Os milhões de Euros claramente
estavam fazendo uma grande diferença, pois grandes equipamentos estavam chegando
carregados por caminhões à vapor. Michele estava esperando-o na porta:
— Pois é, não fez nada bem para minhas costas, mas tive sucesso — respondeu
Naro mostrando-lhe o besouro — Vejo que está bastante ocupada.
— Como o Mestre deve saber, os equipamentos que preciso são caros porque
pertencem à era da Genômica, antes de 2040. De lá para cá não se tem construído mais
desses equipamentos.
— Então aqui está — disse Mundi finalmente lhe entregando o autômato besouro.
oooOOOooo
— Mestre Naro, porém tenho um pedido a lhe fazer. Peço que libere Mestre
Windu de seus votos de castidade.
— Sim, acho que já desconfiava que ele é meu amante — falou Michele olhando-
o nos olhos.
— Na verdade não, senhorita Summer, mas me lembro que foi ele que insistiu
pela eliminação de Mestra Unduli. Parece ser um jovem de visão e com grande potencial.
Sim, pode comunicar a ele que os votos de castidade não são mais válidos. Pretendem se
casar?
— Assim que minha mãe melhorar. O Mestre sabe que o quadro dela está
evoluindo muito bem, não?
— Não sabia, faz tempo que não falo com sua mãe. Ligarei para ela amanhã
mesmo.
— Faça isto. Eu lhe desejo sucesso em sua próxima viagem para a Amazônia.
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Mestra Greta Luminara viveu muito tempo depois disso, e liderou a resistência
contra a nova Grã-Mestra dos Jedi Theravada, Saramaira Summer. Essa resistência foi
enfim vitoriosa, e uma nova era progressista, com a extrema-direita derrotada, se iniciou
em um clima civilizatório Teslapunk.
A Deusa
É claro que, nessa busca, YWHW não estava sozinho. Um grande grupo de
criadores de planetas colaborava entre si, chamados de terraformistas, fossem de origem
cosmólogos, astrofísicos, astrobiólogos, especialistas em computação quântica ou
qualquer disciplina que pudesse ser relacionada com a criação e otimização de planetas.
Os terrraformistas reuniam-se em congressos interestelares e publicavam em boas
neurorevistas científicas, com alta velocidade de download cerebral. Os experimentos
eram muito caros, grandes consórcios interplanetários eram necessários para financiar a
pesquisa - o projeto mais avançado, o EDE-N - Engineering and Development of Earth-
N, era liderado por YWHW. O número N atual era 44, e em todos os 43 planetas
terraformados conhecidos, cópias melhoradas da Terra-1 original, o PdM não havia sido
solucionado.
O prospecto de resolver o PdM não era bom e o argumento central disso era
conhecido como Paradoxo de Fermi do Mal. Basicamente, o Paradoxo dizia que, dado o
grande número de planetas habitados por outras espécies na Galáxia, e dado que em
nenhum deles o PdM fora resolvido, não havia porque esperar que o problema fosse
solúvel. O paradoxo ocorria porque, em uma Galáxia com muitos recursos e idade de dez
bilhões de anos, por definição qualquer problema tecnológico deveria ter sido resolvido
por alguma civilização anterior à terrena. Mas a assim chamada Wikipedia Galáctica,
organizada por todas as civilizações conhecidas, não apresentava nenhuma solução para
o PdM, apenas a história de algumas tentativas malsucedidas.
— YW, vamos agendar uma reunião do comitê gestor para a semana que vem?
— Talvez tenhamos sido muito ambiciosos, disse Lúcifer. Não deveríamos ter
colocado a solução do PdM no nosso projeto inicial.
— Não sei... brincou Lúcifer. Lembra daquela frase de que Deus deve gostar de
besouros, afinal criou quatrocentas mil espécies deles?
YWHW olhou para o seu café, já frio, sentindo uma depressão aflorando. Não
estava muito para brincadeiras. Mas então, por pura coincidência, viu um besouro ferido
e virado de costas, lutando pela vida debaixo da mesa. Nesse momento sentiu grande
empatia, sentiu que os besouros não eram simples autômatos biológicos, mas seres vivos
que sofrem e amam viver. A partir desse dia começou a pensar em besouros que sofrem.
Este foi o início da solução do Problema do Mal.
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oooOOOooo
Não apenas Lúcifer, mas também da amizade com sua antiga companheira
Asheráh (que, segundo soubera recentemente, estava de caso com Luc). YWHW aceitava
isso bem pois, em um mundo de seres potencialmente imortais, em que as vidas se
contavam por milênios, os amores iam e vinham e as pessoas de modo algum podiam ser
ciumentas. YHWH já tinha alguns milênios de vida, e Asheráh fora sua esposa por um
milênio. Talvez a maior especialista dos mundos conhecidos em Engenharia Genética e
Exobiologia, Asheráh rapidamente subira no projeto EDE-N como coordenadora-chefe
da Árvore do Conhecimento, ou seja, da rede de institutos de biologia ligados ao projeto.
— Você está querendo dizer as pessoas precisam morrer para que as bactérias as
comam felizes? — ironizou de forma espantada Luc.
— Pessoal — tentou argumentar YHWH. Pensem bem, olhem com cuidado nossa
Terra-43 e as Terras mais recentes. Estamos paralisados, cultural e evolucionariamente.
Quase não existem mais crianças. Onde estão nossos jovens estudantes, uma geração com
novas ideias e criatividade? Sem morte entre os animais superiores, não existe pressão
evolucionária e evolução natural, apenas a seleção artificial que fazemos não para inovar,
mas para preservar o que já temos. Nós já não somos humanos, nós nos tornamos anjos
imortais. Anjos não evoluem.
— Que se dane Darwin! exclamou Lúcifer. Ninguém aceitará renunciar à
imortalidade em prol do bem-estar dos besouros e muito menos das bactérias. Asheráh
concordou, com seus olhos esmeralda brilhando.
— Sinto muito, Luc e Ash, mas isso não está mais nas suas mãos.
oooOOOooo
O assunto não estava nas mãos de Lúcifer e Asheráh, e na verdade, agora nem nas
mãos do próprio YWHW, porque EDE-N era um projeto científico, com tomada de
decisões objetivas. Se a conclusão da pesquisa sobre o PdM apontava matematicamente
que o mínimo de sofrimento nas biosferas não coincidia com o mínimo de sofrimento
para animais superiores, bem... a conclusão era inevitável. Afinal, o que fora prometido
era uma nova Terra que resolvia o Problema do Mal, ou pelo menos o minimizava. Ou
seja, todos os cálculos indicavam que um mundo com sofrimento e morte humanos era
um mundo ótimo em algum sentido Leibnitziano.
Alguns termos da função de NSF não eram óbvios, mas um pouco de estudo
mostrava as conexões. Por exemplo, a atividade sísmica como terremotos e vulcões era
ainda um dos fatores em Terra-43 que podia produzir mortes, pelo menos de animais.
Mas esta atividade era fruto do deslocamento das placas tectônicas e já se sabia de algum
tempo que tais placas eram essenciais para a emergência da vida, para a reciclagem de
materiais na atmosfera e oceanos, e mesmo para a sobrevivência de toda uma biosfera
anaeróbica.
Da mesma forma, vez por outra um raio podia matar uma pessoa ou incendiar
florestas. Mas os raios eram um processo importante para a fixação de Nitrogênio,
formando nitratos a serem usados pelas plantas. O número de outros fenômenos que
causavam sofrimento e ao mesmo tempo favoreciam a vida era enorme, na verdade não
totalmente determinado. Vida e Morte, não dava para se ter uma coisa sem a outra.
Terra-43 era um paraíso artificial (as Terras anteriores eram menos, mas ainda artificiais).
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— YW pensa que o fato de que nosso paraíso em Terra-43 ser preservado não
produz nenhuma consequência. Mas isso não é verdade. Não é apenas o fato de que todas
aquelas pessoas vão sofrer. Tudo vai voltar para trás! Se um dia eles quiserem construir
uma Terra-45, terão que começar do zero! — comentou Ash.
— Eu me revolto mais com a ideia de que meu sofrimento equivale a de um
besouro — disse Luc rangendo os dentes. —E o pior foi que eu quem deu a ele essa ideia!
— Calma, querido! Não foi bem isso o que YW disse, mas sim, numa analogia
simples, que o sofrimento de um ser humano equivale ao de n besouros, onde o
número n é grande e pode ser computado de forma utilitarista.
— Meu bem, ele ainda não nos tirou de nossas posições de comando. Temos
acessos, recursos, e pessoas que podemos convencer a nos ajudar. Além disso, eu convivi
com YW por mais de um milênio. Conheço como ele pensa, conheço seus pontos fracos.
— E com essa falha monstruosa, ele seria destituído e você assumiria! — concluiu
Ash — Ou pelo menos poderíamos manobrar para que assim fosse.
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Isso porque eles não notaram um pequeno besouro que os observava. Ou melhor,
um besouro-drone robótico, que gravou a cena e as conversas. Fora uma precaução de
YHWH depois da conversa exaltada com Luc, e dera certo. Ele agora tinha provas
suficientes para afastar os dois das posições de comando no EDE-N. Mas esperou que
eles contatassem e convencessem seus aliados a participar da sabotagem, de modo que
YHWH teve uma noção concreta do tamanho da conspiração, que acabou envolvendo
dezenas de pessoas.
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Quando tudo estava ficando pronto, YWHW se reuniu com suas principais
assessoras, ou Arcanjas, a chefe de segurança Mikaela, a engenheira-chefe Gabriela e a
bióloga-chefe Rafaela. Começou um discurso cheio de satisfação permeado por um tom
de tristeza:
— Como vocês sabem, já providenciamos inúmeros povoamento humanos, com
um nível de tecnologia da Idade do Bronze. Eles estão sob nosso controle, pois possuem
mentes bicamerais e escutam nossos comandos como se fossem de deuses. Assim, por
enquanto, podemos evitar conflitos e guerras. Eles também não têm os genes de
imortalidade. De certa forma, são mais autômatos do que seres humanos plenos.
— Mas é claro que, devemos lembrar, humanos unicamerais podem não aceitar
os objetivos do Projeto EDE-N e se revoltar — disse Rafaela.
oooOOOooo
O Jardim e sua enorme cúpula eram a base do Projeto EDE-N em Terra-44. Ali,
as arcas espaciais desembarcavam as novas espécies que, após análises biológicas, eram
encaminhadas para as regiões geográficas de destino. YWHW passeava pelo jardim
observando a intensa atividade do processo e a beleza dos espécimes recém-chegados.
Mikaela estava ao seu lado:
— Eles têm seu ponto de vista, Mikaela. Estão lutando por ele.
— E agora estão desterrados neste planeta selvagem... meu melhor amigo e minha
ex-companheira.
Mikaela ficou calada, pensando em como era possível que YWHW não sentisse
raiva ou ciúmes dos amantes terroristas.
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— Não, por favor, não... suplicou Asheráh — eu preciso falar com você. É
importante! — seus olhos esmeralda estavam cheios de lágrimas.
— Então fale — disse friamente YWHW, ainda tentando entender como ela havia
violado a segurança do complexo.
— Estou arrependida. Quero voltar para Terra-43. Preciso que você interceda por
mim no Conselho. Posso fazer uma delação, dar informações sobre Luc e os outros.
— O que a levou mudar de ideia?
— Luc mudou muito, está louco! Dada as condições do planeta, ele agora defende
uma boa vida apenas para a elite dos humanos, não para todos. Diz que a igualdade e uma
sociedade sem classes não é possível.
— Ele está me usando, por favor acredite! Eu quero me afastar de tudo isso.
YWHW não sabia o que dizer. Seu julgamento estava nublado porque queria
muito acreditar. A única mulher que realmente havia amado estava implorando por uma
chance de recomeçar. E se ela se dispunha a dar informações, a revolta de Luc poderia
ter um fim...
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A partir desse dia YWHW nunca mais se recuperou. Seu cérebro danificado só
produzia alucinações onde Asheráh se transformava em serpentes, árvores, caduceus. E
por toda volta besouros, quatrocentas mil espécies de besouros. As drogas introduzidas
em sua pele, potentes alucinógenos presentes em rãs venenosas, não podiam ser extraídos
de seu corpo mesmo com toda a tecnologia conhecida. Foi transferido para um hospital
especial em Terra-43, sendo colocado em sono criogênico.
As Arcanjas se reuniram:
— Vida eterna?
— Não diria isso. Eu examinei essas enzimas. Ash é genial, mas sua tecnologia é
limitada. Acho que o período de vida deles vai durar cerca de mil anos, e decair nas
próximas gerações. Nesse período, porém, irão catalisar a unicameralidade de quem
entrar em contato com eles.
— Sozinhos?
— Por enquanto não, neste estágio não é possível. Mais tarde, sim, tais valores
vão se secularizar.
Rafaela comentou pensativa: — Eu era muito amiga de Asheráh. Acredito que, no
futuro, ela vai se aliar a nós outras. Afinal, as mulheres estão sendo oprimidas nessas
sociedades machistas que Lúcifer criou.
— Espero estar aqui para ver isso e Lúcifer ser derrotado — disse Mikaela.
6. I am the Lord your God, who brought you out of the land of Egypt, out of the house of
slavery;
Nossa Determinação Ética Última Secular Atéia (acrônimo, D.E.U.S.A.) diz que
devemos lembrar que descendemos historicamente de trabalhadores, servos e
escravos. Os valores da Democracia, e não da Aristocracia, são a base de nossa Terra
Prometida, e todos os humanos são iguais perante nossa D.E.U.S.A.
Você não deve ter deuses que estejam cima de nossa D.E.U.S.A., tais como Mamon
(o Dinheiro), Baal (o Poder) e Asherah-Ishtar-Isis (a Economia e a Guerra).
8. You shall not make for yourself an idol, whether in the form of anything that is in
heaven above, or that is on the earth beneath, or that is in the water under the earth.
Você não deve ter ídolos, sejam os astros de cinema e celebridades que parecem estar
acima de nós, sejam os líderes políticos de nossa Terra, ou o mar de pseudociências
que nos rodeia.
9. You shall not bow down to them or worship them; for I the Lord your God am a jealous
God, punishing children for the iniquity of parents, to the third and fourth generation of
those who reject me,
Você não deve servir ou ser escravo de tais ídolos, pois as consequências de tais atos
podem se estender por gerações.
10. but showing steadfast love to the thousandth generation of those who love me and
keep my commandments.
Mas paz e prosperidade teremos por mil gerações, se amarmos e preservarmos estes
mandamentos de nossa D.E.U.S.A.
11. You shall not make wrongful use of the name of the Lord your God, for the Lord will
not acquit anyone who misuses his name.
Você não deve torcer ou usar de forma errada nossa D.E.U.S.A. pois ela é sagrada,
o máximo de sagrado que um ateu pode conceber.
12. Observe the sabbath day and keep it holy, as the Lord your God commanded you.
Nossa D.E.U.S.A determina que deve haver um dia de descanso para todos os
trabalhadores, e este dia não é negociável, mas é sagrado.
13. For six days you shall labour and do all your work.
Você deve trabalhar no máximo seis dias por semana e fazer tudo o que tem que ser
feito nesse período.
14. But the seventh day is a Sabbath to the Lord your God; you shall not do any work—
you, or your son or your daughter, or your male or female slave, or your ox or your
donkey, or any of your livestock, or the resident alien in your towns, so that your male
and female slave may rest as well as you.
Mas no sétimo dia, qualquer que seja ele, você não deve fazer nenhum trabalho —
não leve trabalho para casa, não faça homeworking, não leia e-mails e de um
descanso para as redes sociais. Eduque seus filhos para fazer o mesmo, e seus
empregados, homens ou mulheres, têm o mesmo direito. Dê descanso para seus
animais domésticos e proteja a fauna e a flora. Os trabalhadores imigrantes, legais
ou ilegais, e seus empregados domésticos, têm os mesmos direitos de descanso e lazer
que você.
15. Remember that you were a slave in the land of Egypt, and the Lord your God brought
you out from there with a mighty hand and an outstretched arm; therefore, the Lord your
God commanded you to keep the sabbath day.
Respeite seu pai e sua mãe, mesmo que seus genes egoístas não o induzam a fazer
isso. Pois nossa D.E.U.S.A. defende o direito dos idosos. Fazendo isso, você também
será protegido no futuro e viverá uma vida longa e próspera nesta Terra que nossa
D.E.U.S.A. está nos dando.
Não traia seu companheiro ou companheira pois isso dói muito. Separe-se antes.
20. Neither shall you bear false witness against your neighbor.
Não espalhe fake news nem difame as pessoas nas redes sociais.
21. Neither shall you covet your neighbor's wife. Neither shall you desire your neighbor's
house, or field, or male or female slave, or ox, or donkey, or anything that belongs to
your neighbor.
Deus e Acaso
A terceira via entre Teísmo e Ateísmo: a hipótese de Asimov
REFERÊNCIAS
ASIMOV, I. (1956). A última pergunta, The Last Question. Science Fiction Quarterly.
November 1956. Ver detalhes aqui: http://pt.wikipedia.org/wiki/The_Last_Question.
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BARNES, L.A. (2012). The Fine-Tuning of the Universe for Intelligent Life,
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VIDAL, C. (2008). The Future of Scientific Simulations: from Artificial Life to Artificial
Cosmogenesis. In Death and Anti-Death, ed. Charles Tandy, Volume 6: Thirty Years
After Kurt Gödel (1906-1978) pp. 285-318. (Ria University Press, 2008).
VIDAL, C. (2010). Computational and Biological Analogies for Understanding Fine-
Tuned Parameters in Physics. Foundations of Science 15: 375-393.
Vou propor aqui uma experiência de pensamento para qualquer físico nerd (faça
uma adaptação para o seu caso): você está tomando café pela primeira vez com uma
mulher atraente, bem-humorada e inteligente, uma candidata a futura namorada. Você já
está impressionado porque a primeira pergunta dela foi sobre um novo tipo de buraco
negro noticiado naquela semana. Você também notou que ela usa fotos do Telescópio
Espacial Hubble como protetor de tela no celular. Você está se apaixonando rapidamente,
mas, então, vem a bomba: — "Eu queria te conhecer para saber se você, como físico, tem
alguma prova de que Deus existe…”
Por um momento você amaldiçoa silenciosamente Frijtof Capra, Deeprak Chopra
e Amit Goswami. Pois afinal, a resposta simples, mas honesta, que não pude dar na hora
(afinal, não sou tão nerd assim!) é simplesmente “Não!”. Mas a pergunta me fez pensar,
e repensar outras questões na interface ciência/religião, levando a estes ensaios. E aquela
mulher, Rita Cristina, que encontrei há seis anos e hoje é minha esposa, agora me estimula
a publicá-los.
Então, o que eu respondi para Rita de modo a não a decepcionar e jogar a conversa
para os próximos encontros? Bom, primeiro usei a saída filosófica de sempre: pedir para
se definir os termos. Afinal, existem inúmeros conceitos de Deus, e sobre que Deus
estávamos falando? O Deus criador do monoteísmo tradicional, que age na História? O
Deus de Platão e dos filósofos, que mais parece um ente matemático? O Deus dos deístas,
que cria o Universo, mas depois não interage mais com ele? O Deus de Spinoza e
Einstein? O Deus interior, que se parece com um segundo foco de consciência, com quem
a pessoa dialoga em oração? A versão primitiva do deus judaico YHWH, que não era
único nem onipotente, mas apenas o chefe dos deuses em uma assembleia celeste? E os
deuses politeístas, poderiam existir de algum modo? Ou que tal uma força universal
impessoal, a Força de Star Wars? Ou seja, não é possível conversar sobre Deus sem
discutir primeiro qual é a ideia de Deus com que estamos trabalhando.
Mas felizmente não precisei gastar muito tempo com essa discussão sobre
conceitos de Deus (ou deuses), discussão reservada para este livro. Pois a ausência de
uma prova racional ou científica da existência do Deus (tradicional) é bem aceita por
todos, inclusive os religiosos.
Sim, vamos esquecer as provas filosóficas e teológicas sobre a existência de Deus,
pois é bem conhecido que todas elas possuem falhas lógicas. Neste ponto vou seguir o
teólogo Anglicano do Século XVIII John Wesley (1703-1791), que sintetizou a situação
de uma forma bastante interessante. Wesley, viveu em uma época em que a Ciência e a
Razão recebiam forte valorização: Newton havia falecido em 1727 e o Newtonianismo
florescia. Em um sermão chamado de A Razão Imparcialmente Considerada, Wesley
critica tanto aqueles que subestimavam a Razão, não a considerando necessária para uma
vida plena, quanto aqueles que a superestimavam, achando-a suficiente para todos os
propósitos humanos. Ele enfatiza que a Razão é essencial para todas as atividades práticas
(Tecnologia, Medicina, Direito, Governança etc.) bem como para a Matemática, as
Ciências e a Filosofia. Porém, na questão de uma busca por uma prova da existência de
um mundo invisível, ele faz a curiosa observação:
Muitos anos atrás, eu me certifiquei dessa verdade, através de uma experiência
triste. Depois de cuidadosamente amontoar os mais fortes argumentos que eu poderia
encontrar, tanto dos autores antigos, quanto modernos, para a mesma existência de um
Deus, e (o que está aproximadamente conectado com ela) a existência de um mundo
invisível, eu perambulei, para cima e para baixo, refletindo, comigo mesmo:
"Será que todas essas coisas que eu vejo ao meu redor, essa terra e céu; essa
moldura universal, têm existido desde a eternidade? Será que aquela suposição
melancólica do poeta antigo é um caso real? Será que a geração de homens é exatamente
paralela com a geração de folhas? Será que as palavras de um grande homem são
realmente verdadeiras: A morte é nada, e nada existe depois da morte?".
"Como eu posso estar certo de que não é este o caso; de que eu não tenho seguido
astuciosamente fábulas inventadas?" — E eu tenho perseguido o pensamento, até de que
não houve espírito algum em mim, e eu estive pronto a escolher a supressão,
preferivelmente, à vida.
Assim, a ideia de que não é possível dar uma prova racional da existência de Deus
ou de um mundo espiritual não é nova nem está restrita aos agnósticos. John Wesley,
fundador do Metodismo, é um pregador cristão bastante ortodoxo e algumas de suas
ênfases (experiência pessoal do Espírito Santo, abolicionismo e ativismo social) poderiam
ser descritas hoje como uma espécie de Pentecostalismo de esquerda. Mas ele se mostra
totalmente à vontade com a ideia de que não existe prova racional ou científica de que
Deus existe (e isto não mudou até hoje). E nesse ponto, ele concorda totalmente com ateus
e agnósticos!
Wesley fala de outras coisas que a Razão não pode fornecer: a Fé (que para ele
não é uma adesão a crenças ou enunciados cognitivos, mas sim uma espécie de evidência
ou intuição direta mística da presença de Deus); a Esperança (nesta vida e na vida após a
morte) e o Amor (a Deus e aos homens). É curioso que podemos elaborar uma versão
laica dessas afirmativas que faz sentido:
Fé: intuição ou sensação interior de que se está no caminho correto, mesmo sem
ter evidências conclusivas racionais sobre isso. Esse tipo de Fé ocorre bastante na
pesquisa científica, porque a mesma exige um enorme gasto de tempo e recursos
intelectuais e emocionais. Quem não tem essa intuição, também não terá persistência
suficiente para chegar a algum resultado novo. Em particular, ocorre antes da
demonstração final de um teorema ou de uma teoria: o cientista intui que está quase lá,
mas a prova final, racional, ainda lhe escapa pelos dedos. É possível que este tipo de Fé
tenha a ver com processamento de informação inconsciente pelo cérebro (GLADWELL,
2005; GIGERENZER, 2008). Mesmo a ideia de dedicar sua vida à ciência não parece ser,
em certos casos, uma decisão puramente racional. No dizer de Albert Einstein:
Aqueles cujos conhecimentos da pesquisa científica derivam principalmente de
seus resultados práticos facilmente desenvolvem uma noção completamente falsa
da mentalidade dos homens que, cercados por um mundo cético, mostraram o caminho
para espíritos afins espalhados pelo mundo e através dos séculos. Só quem dedicou sua
vida a fins semelhantes pode ter uma vivida compreensão do que inspirou esses homens
e lhes deu a força para permanecerem fiéis a seu propósito, apesar de inúmeros
fracassos. É o sentimento religioso cósmico que dá a um homem tal força. Um
contemporâneo disse, não de forma injusta, que nesta era materialista nossos
trabalhadores científicos sérios são as únicas pessoas profundamente religiosas.
Albert Einstein, Como Eu Vejo o Mundo
Esperança: aqui eu poderia defini-la como uma sensação existencial de que vale
a pena viver. Não parece óbvio que, usando apenas a Razão, se possa elaborar uma prova
de que a vida vale a pena ser vivida. Pelo contrário, dado o grande número de intelectuais
que se suicidam e outros que mergulham na depressão e no pessimismo, é possível que a
análise puramente racional do mundo leve à desesperança. É preciso ficar claro aqui: não
estou afirmando que pessoas racionais são necessariamente desesperançadas, pessimistas
ou não têm razão para viver. Apenas afirmo que a origem de sua esperança, otimismo e
razão para viver é mais visceral e não tem base (apenas) na Razão. Podemos também
propor aqui uma hipótese alternativa: a tendência à depressão (com os sintomas de
ansiedade, pessimismo e tendências suicidas) seria herdada em certas pessoas que mais
tarde se dedicariam à atividade intelectual. Dado isso, todas a sua atitude filosófica e sua
produção intelectual ficariam contaminadas por tais sintomas depressivos. Da mesma
forma, uma pessoa com excesso de serotonina poderia se mostrar confiante, otimista e
com grande apego ao prazer de viver. Ou seja, uma pessoa não tem liberdade para pensar
e sentir o que quiser: ela só pode pensar dentro dos limites permitidos por sua
neurobiologia, ver Capítulos 15 e 16.
Amor: Em nossa versão laica dos argumentos de Wesley, devemos considerar o
amor humano. Será que poderíamos elaborar um argumento racional, quem sabe baseado
na Biologia, para se amar? O tipo de amor que mais poderia se basear na Biologia seria a
relação mãe-bebê (o cuidado com a prole é um instinto animal). Mas seria algo muito
estranho argumentar com uma mãe que ela deve amar e cuidar do bebê baseado em um
argumento evolucionário, tipo “Você deve fazer isso para passar seus genes para a
próxima geração”. E se ela não amar (por exemplo, por efeito de uma depressão pós-
parto?). Existe algum argumento racional que possa gerar o amor? O mesmo se dá com o
amor entre parceiros: será que alguém realmente acredita que se pode convencer
racionalmente uma pessoa a se tornar seu parceiro no amor? Vamos ser simplistas e
radicais neste ponto: talvez o amor humano seja apenas a expressão do hormônio
Oxitocina, liberado por carinho, sexo, convivência próxima e vários outros fatores. Mas
nenhum desses fatores corresponde a “um argumento usando a Razão de que a pessoa
deveria ficar com você”. Ou seja, meu argumento simples é: a Razão não libera Oxitocina,
que é um hormônio pré-requisito do amor. A Razão não gera amor. Imagino que um
argumento similar poderia ser usado para defender que a pura Razão não gera altruísmo
ou ativismo social em prol de pessoas necessitadas. A Razão poderia gerar argumentos
sobre porque tais atividades seriam desejáveis, mas nunca um argumento particular de
porque você deveria ser altruísta em vez de deixar o serviço para outros. A vocação para
se tornar um Médico sem Fronteiras não é racional.
Wesley lista finalmente duas coisas que a Razão não consegue nos dar: virtude e
felicidade. Para o termo virtude eu daria o exemplo particular da honestidade. Se
tomarmos como princípio que nossas ações devem provir de um cálculo racional, e se
esse cálculo de custo-benefício me disser que vale a pena fazer uma fraude (por exemplo,
em um experimento científico), então a fraude é racional e a honestidade, irracional.
Talvez seja esse excesso de racionalidade de custo/benefício que esteja por trás de tanta
corrupção em nosso meio político e corporativo. No passado, talvez as pessoas agissem
a partir de outros valores como honra ou pureza de caráter, valores que não podem ser
justificados racionalmente.
O item final seria felicidade. Mas esta só é uma opção para os que a desejarem. A
outra opção é encarar a infelicidade como o único estado compatível com a honestidade
intelectual e racional. A felicidade seria um ópio para os tolos, a pílula azul da Matrix, e
o pensador racional deveria tomar a pílula vermelha e ser necessariamente infeliz. Isso
pode ser verdade, mas parece ter consequências trágicas para quem pretende seguir
apenas a Razão. Imagine o pensador dizendo: Sigam-me que eu lhes mostrarei o caminho
da infelicidade!
Para essa discussão sobre a felicidade, eu gosto muito de lembrar o filme Você vai
conhecer o homem dos seus sonhos, de Woody Allen (que não pode ser chamado de
religioso ou otimista).
A história compara a trajetória de pessoas da mesma família, todas elas modernas,
e que procuram satisfazer seus próprios interesses de forma racional. Existe porém uma
exceção: uma senhora de meia idade, ingênua, abandonada por seu marido que concluiu
que, com seu dinheiro, pode comprar um carro esporte e sair com mulheres mais jovens.
A senhora é espiritualista, e acredita em na predição de sua vidente de que em breve
conheceria o homem de seus sonhos.
Graças à essa previsão, ela fica bem atenta às oportunidades, e percebe que outro
senhor de meia idade, dono de uma livraria ocultista e que frequenta as mesmas sessões
espíritas, poderia ser um bom partido. Incentivada pela vidente, ela toma a iniciativa, e
finalmente os dois ficam juntos, formando um belo e harmonioso casal. Ou seja, todas as
pessoas modernas, céticas e racionais do filme se afundam em seus problemas pessoais
justamente devido à sua racionalidade, que não funciona bem para as relações
interpessoais, enquanto a velhinha ingênua e mística atingiu uma felicidade concreta e
possível.
Resumindo o capítulo:
• Quando falamos em Deus, precisamos especificar qual conceito de Deus
queremos discutir.
• Não existe prova racional ou científica da existência do Deus tradicional
(criador onipotente, onisciente, onipresente etc.): teólogos e religiosos concordam
com isso desde o século XVIII pelo menos;
• A Razão e a Ciência servem para muita coisa, especialmente para os problemas
de natureza cognitiva (conhecimento do mundo natural e social). Porém, parecem ter
limitações relacionada a estados psicológicos e existenciais: Fé (de que vale a pena
persistir), Esperança (de que vale a pena viver), Amor (de que vale a pena se entregar),
Virtude (de que vale a pena ser ético) e Felicidade (de que tudo vale a pena).
• Para todos esses problemas existenciais existem respostas não religiosas, mas
ligadas a filosofias laicas de vida (por exemplo, os diferentes humanismos seculares,
as éticas filosóficas, as ideologias políticas etc.). Entretanto, é importante reconhecer
e enfatizar que tais filosofias não são científicas nem justificadas pela Ciência. Dado
que várias filosofias, às vezes opostas em seus fundamentos (por exemplo, as várias
éticas filosóficas), são compatíveis com a Ciência, não podemos dizer que a Ciência
nos ajuda a escolher uma delas como resposta única para a pergunta filosófica
fundamental: o que devo fazer com minha vida e como devo vivê-la?
Referências
GIGERENZER, Gerd. O Poder da Intuição. Best Seller, 2008.
GLADWELL, Malcolm. Blink – A Decisão num Piscar de Olhos. Rocco, 2005.
WESLEY, John. The Complete Sermons: John Wesley. Hargreaves Publishing, 2013.
O fruto proibido de Eva não é a Ciência
Essa crítica da Ciência, como conhecimento feito por uma elite intelectual (os
cientistas) a serviço de elites políticas, foi absorvida no século XXI pelo discurso da
extrema-direita global ascendente, chegando ao puro Negacionismo referente às
Mudanças Climáticas, ao Holocausto, ao Programa Apollo, às vacinas e, no limite, ao
Terraplanismo. Alguns filósofos e sociólogos da Science Wars, tais como Bruno Latour,
já reconheceram e criticaram a cooptação de seu discurso pela extrema-direita.1
Essa rejeição visceral à Ciência, quer à esquerda quer à direita, foi denominada
de complexo de Frankenstein pelo escritor Isaac Asimov e se manifesta em inúmeros
livros e filmes da cultura popular e erudita. Um personagem constante, porém, datado, é
o cientista louco que produz desastres devido à sua megalomania e sua hubris. A frase
Faustiana “ele está brincando de Deus” é repetida ad nauseam.
É certo que este retrato não é absoluto: existem heróis adeptos da Ciência e
Tecnologia, às vezes ambíguos, tais como Bruce Wayne (Batman), Tony Stark (Iron
1
Latour, B. (2004). Why has critique run out of steam? From matters of fact to matters of concern. Critical
inquiry, 30(2), 225-248. Vrieze, J. D. (2017). Bruno Latour, a veteran of the ‘science wars,’ has a new
mission. Science Magazine.
Man) e Reed Richards (Fantastic Four). Mas se formos contabilizar a proporção de vilões
cientistas, certamente eles ganham dos heróis cientistas. Além disso, as mulheres
cientistas são sub-representadas na cultura popular. O estereótipo do cientista homem-
caucasiano-heterossexual cruel (com os animais, que seja) continua muito presente,
embora esse perfil já não caiba hoje em uma atividade multicultural e com boa presença
feminina como é a comunidade científica internacional atual.
O que pretendo fazer aqui é reinterpretar o mito do fruto proibido de uma maneira
que seja mais condizente com o contexto cultural e a época onde foi escrito o relato do
Jardim do Éden. Em resumo, tentarei mostrar o seguinte:
• A história de Adão e Eva é uma parábola política que se refere à competição entre
o culto a Asherah e o culto a YHWH que estava ocorrendo quando o relato foi
escrito (século V A.E.C.).
Ora, a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o SENHOR
Deus tinha feito. E esta disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda a
árvore do jardim? E disse a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim
comeremos, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não
comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais. Então a serpente disse à mulher:
Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se
abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal. E viu a mulher que
aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar
entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu
com ela. Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e
coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais. E ouviram a voz do Senhor Deus,
que passeava no jardim pela viração do dia; e esconderam-se Adão e sua mulher da
presença do Senhor Deus, entre as árvores do jardim. E chamou o Senhor Deus a Adão,
e disse-lhe: Onde estás? E ele disse: Ouvi a tua voz soar no jardim, e temi, porque estava
nu, e escondi-me. E Deus disse: Quem te mostrou que estavas nu? Comeste tu da árvore
de que te ordenei que não comesses? Então disse Adão: A mulher que me deste por
companheira, ela me deu da árvore, e comi. E disse o Senhor Deus à mulher: Por que
fizeste isto? E disse a mulher: A serpente me enganou, e eu comi. Gênesis 3:1-13.
O relato de Adão, Eva, o fruto proibido (que não era uma maçã!) e a Serpente no
jardim do Éden é um dos mitos mais conhecidos em de nossa sociedade, com ressonâncias
desde na nossa moral sexual (o fruto proibido sendo interpretado como o ato sexual) até
a visão popular sobre os limites da ciência e da tecnologia. Com efeito, quantas e quantas
vezes não vemos na literatura e nos jornais a expressão “os cientistas estão querendo
brincar de Deus!”, no sentido de que a Ciência está prestes a comer o fruto proibido do
conhecimento.
Segundo os pesquisadores bíblicos, o relato de Gênesis 3, que reflete tradições
orais antigas, foi provavelmente redigido durante o reinado de Salomão (cerca de 970 até
930 AC). Dado esta época de redação tardia, reflete toda a experiência histórica dos
israelitas referente à incompatibilidade entre a religião mosaica, com sua ênfase
“apolínea” acerca da justiça social como precondição para a comunhão com o Deus da
Justiça YHWH, e a religião “dionisíaca” da Deusa, a Rainha do Céu, que em diferentes
regiões se identifica com o culto a Astarte (cananeus), Innana (sumérios), Isthar (assírio-
babilônicos) e Ísis (egípcios).
Desde os primeiros contatos com os cananeus, percebe-se que a religião mosaica
não consegue competir, em termos de atrativo e popularidade, com as religiões locais,
especialmente o culto à Astarte, que tinha um caráter mais extático e popular, com seu
lado de religião mágica e culto de mistério, sem uma ênfase específica em crítica social.
Na verdade, como na maior parte das religiões ainda hoje, os sacerdotes, sacerdotisas,
sábios e adivinhos das religiões cananeias desempenhavam o papel de intelectuais
orgânicos de sua sociedade, no caso as cidades-estados onde nobres e reis eram
considerados “filhos de Deus” (ou deuses) e os párias, escravos e pobres em geral seriam
os “amaldiçoados pelos deuses” ou pelo Destino. Um exemplo bíblico retratando esta
situação se encontra no livro de Jeremias:
Mas tu, não intercedas por este povo e não eleves em seu favor nem lamentos nem
preces, e não insistas junto a mim, porque não vou te ouvir. Não vês tu o que eles fazem
nas cidades de Judá e nas ruas de Jerusalém? Os filhos ajuntam a lenha, os pais acendem
o fogo e as mulheres preparam a massa para fazerem tortas à Rainha dos Céus; depois
fazem libações a deuses estrangeiros para me ofenderem. Mas será a mim que eles
ofendem? oráculo de Yahweh. Não será a eles mesmos, para sua própria vergonha? (...)
Sim, os filhos de Judá praticaram o mal diante dos meus olhos, oráculo de Yahweh. Eles
colocaram suas Abominações no Templo, no qual o meu Nome é invocado, para profaná-
lo. Eles construíram os lugares altos de Tofet no vale de Ben-Enon, para queimar os seus
filhos e as suas filhas, o que eu não tinha ordenado e nem sequer pensado. Jeremias 9:16-
19, 30-31.
Este texto mostra como a religião monoteísta dos “profetas de Yaweh” parece ser
extremamente vulnerável, sendo facilmente esquecida e substituída pelas práticas
religiosas das nações circunvizinhas. Ela parece ser por demais racional na sua crítica aos
ídolos e a práticas religiosas consideradas como superstições descompromissadas com o
ideal de justiça mosaico. Além disso, mais cedo ou mais tarde, a religião mosaica tendia
a perder o suporte oficial do Estado, pois em vez de sacramentar e apoiar diretamente os
reis, os ricos e a classe sacerdotal, na verdade era profundamente crítica deles e da vida
urbana, pretendendo exercer uma atividade regulatória que minimizasse o pauperismo
dos pequenos agricultores, pastores e operários.
Além disso, os cultos de fertilidade, que envolvem práticas rituais de casamento
hierogâmico com prostitutas sagradas, tinham seus atrativos em termos especificamente
sexuais, contrastando com o puritanismo da Lei Mosaica. É interessante notar que os
cultos de fertilidade parecem ter sua sede principal não no campo, mas nas cidades, que
dependiam da produtividade ("fertilidade") do campo para se manter.
Isthar, além de deusa da fertilidade e do sexo, é também deusa da medicina e dos
conhecimentos secretos, ou seja, da ciência e da tecnologia da época. Seu animal símbolo
é a serpente, “o mais inteligente dos animais”, que controlava a medicina e a morte por
sugerir a manipulação de drogas e venenos (esta é a origem da presença das serpentes no
Caduceu de Hermes). O papel de destaque das mulheres neste culto da Deusa e da
Serpente certamente está relacionado ao papel da mulher enquanto agente civilizatório,
no desenvolvimento da agricultura, no processo de urbanização, no conhecimento de
ervas, drogas e venenos. O desenvolvimento de tradições escritas nas cidades favorece
também o registro e manutenção desse “conhecimento sagrado”.
Embora associado ao culto da Deusa-mãe, a Terra, devemos ter o cuidado de não
idealizar o culto da Deusa-filha Ishtar como uma religião ecológica e pacífica (uma
tendência do neopaganismo feminista atual que não possui base histórica). Ishtar é
descrita, desde os registros mais antigos como O Épico de Gilgamesh, como uma deusa
terrível:
Gilgamesh abriu sua boca e respondeu à gloriosa Ishtar: (...) Os seus amantes
encontraram em você um braseiro que se apaga no frio, uma porta de trás que não
protege nem do vento nem da tempestade, um castelo que esmaga sua guarnição, um
betume que enegrece as mãos do portador, um odre que molha o carregador, uma pedra
que cai do parapeito, um golpe devolvido pelo inimigo, uma sandália que faz tropeçar
quem a usa. (...) Quais de seus amantes você por acaso amou com constância? (...) Você
amou o pastor do rebanho; ele fez tortas para você dia após dia, ele matou crianças para
seu agrado. Mas você o feriu e o transformou em um lobo. (...)
Quando Ishtar ouviu isto ela caiu numa cólera amarga, ela subiu aos altos céus.
Suas lágrimas caíram em fronte de seu pai Anu, e Antum sua mãe. Ela disse, “Meu pai,
Gilgamesh lançou insultos sobre mim, ele contou sobre todo o meu comportamento
abominável, meus atos loucos e secretos”. (...) Ishtar abriu sua boca e falou de novo:
Meu pai, dê-me o Touro dos Céus para destruir Gilgamesh. Encha Gilgamesh, eu digo,
com arrogância que o levará à sua destruição; mas se você recusar dar-me o Touro dos
Céus eu quebrarei as portas do inferno e esmagarei suas dobradiças; haverá confusão
entre as pessoas, aquelas acima com aquelas das profundezas. Eu levantarei os mortos
para comer alimento como os viventes; e os hóspedes da morte serão em maior número
que os vivos.
Anu cede a Ishtar o Touro dos Céus, que ataca a cidade de Uruk matando centenas
de jovens. Gilgamesh e Enkidu, seu amigo, reagem e matam o Touro dos Céus.
Então Ishtar chamou os seus seguidores, as jovens que dançam e cantam, as
prostitutas do templo, as cortesãs. Sobre as coxas do Touro dos Céus ela organizou uma
lamentação.
Enkidu então é alvo de um ato de vingança por parte de Ishtar, morrendo em
seguida de uma doença misteriosa, que lembra um envenenamento.
O caráter não pacifista de Innana-Ishtar-Astarte-Asheráh se revela também em seu
título de Deusa da Guerra: ela é representada como uma guerreira comandando um carro
de combate, portando o arco e flecha e uma capa protetora de pele de leão. Este aspecto
da Deusa, porém, é coerente com a visão de que ela é a Deusa da Ciência e da Tecnologia
(no caso, a tecnologia de guerra).
A Deusa é a amante dos reis, sacramentando-os como escolhidos pelos Céus e
lhes dando o poder tecnológico para superar seus inimigos. Ela abençoa a economia
(fertilidade agrícola e pastoril). Seus segredos são guardados pelos intelectuais da corte,
as sacerdotisas, os sábios, os conselheiros, os escribas.
A Deusa é o símbolo da civilização urbana tecnológica possivelmente opressora.
É a deusa central das potências militares mesopotâmicas, dos Sumérios aos Babilônicos.
É a deusa da principal potência militar da época em que o Genesis foi escrito, a Assíria
(Ishtar é a patrona de Nínive, a capital do império Assírio), império que o pequeno reino
de Israel não conseguia enfrentar.
O Deus cristão, ou seja, a ideia cristã sobre Deus (ou talvez, ideias no plural,
presentes em diferentes teologias), é fruto de uma elaboração milenar. É basicamente um
sincretismo entre a tradição judaica sobre o deus YHWH, que também sofreu uma
elaboração ao longo de séculos, e o Deus da filosofia neoplatônica. Esse sincretismo
ocorre porque o Deus judaico dos primeiros cristãos foi recebido em um novo contexto,
o público de cultura helenizada do Império Romano. Ou seja, o Deus dos filósofos e
teólogos, a partir do século II E.C.2, adquire características tais como eterno,
transcendente, onipotente, onisciente e onipresente, basicamente ligadas ao conceito
matemático platônico de Infinito, que o Deus judaico YHWH não possui (com o mesmo
significado matemático platônico)3.
Tais ideias ligadas ao conceito de infinito sempre geraram paradoxos e nunca
puderam ser elaboradas de forma rigorosa por teólogos judeus e cristãos. Afinal, os
matemáticos só conseguiram um certo consenso sobre o Infinito no final do século XIX
e século XX, com os números transfinitos de Georg Cantor4 e a análise não padronizada
de Abraham Robinson.
É curioso observar que existe um conceito matemático que partilha propriedades
“divinas” tais como um poder criativo/destrutivo infinito, onipotência, eternidade e
transcendência: o Acaso5. Isso é bastante visível nos assim chamados Problemas das
Origens: Origem do Universo, Origem da Vida, Origem das Espécies e Origem da Mente.
Com efeito, a maior parte dos cientistas acredita que o Big Bang (ou melhor, seu
início segundo a Teoria da Inflação) tenha sido disparado por uma flutuação quântica
aleatória. A origem da vida também é tida como surgimento aleatório das primeiras
moléculas auto replicantes (em uma proto-evolucão química).
2
Como este livro se destina a um público tanto cristão como não cristão (e mesmo não religioso), não usarei
as abreviaturas A.C. e D.C. (antes e depois de Cristo). As datas serão dadas em termos de A.E.C. e E.C.,
que podem significar tanto (Antes da) Era Comum como, para os cristãos, (Antes da) Era Cristã. A escolha
é do leitor.
3
O cristianismo romano também é fruto de sincretismo com religiões pagãs greco-romanas. Por exemplo,
templos dedicados a deuses do Panteão romano foram transformados em igrejas cristãs, de forma a haver
uma correspondência sincrética entre esses deuses e santos cristão. Também o culto a Maria evoluiu a partir
de uma absorção do culto a Isis, Rainha do Céu e mãe de deus, e seu menino-deus Osiris.
4
Uma nota histórica interessante é que Cantor, luterano praticante, acreditava que sua teoria sobre números
transfinitos lhe havia sido revelada por Deus e deveria ter aplicações teológicas (Dauben, 2004).
5
Assim como estou grafando a palavra Deus com maiúscula, em vez de deus, também usarei Acaso em
vez de acaso. O objetivo é enfatizar o Acaso como um princípio fundamental, e de certa forma personificá-
lo visando uma comparação com o conceito de Deus, distinguindo-o do conceito físico-matemático de
simples aleatoriedade.
Na evolução das espécies, o Acaso tem o papel criativo fundamental gerando
mutações, embora a Seleção Natural, que não é um processo aleatório, tenha um grande
papel. Mesmo assim, cada vez mais se reconhece o papel do Acaso na sobrevivência e
seleção das espécies: alguns biólogos já dizem que não temos uma verdadeira seleção dos
mais fortes ou adaptados, mas sim a seleção dos mais sortudos (por exemplo, indivíduos
que não estavam perto de uma grande erupção vulcânica ou mudança climática).
Finalmente, a origem da mente e da cultura humana parece ter surgido a partir de
ocorrências mais ou menos acidentais tais como a descoberta do fogo, o crescimento do
cérebro a partir do cozimento de cozimento de alimentos (que permitiu maior uso pelo
cérebro do sangue anteriormente dirigido para o sistema digestivo), o aparecimento da
linguagem simbólica e mesmo o surgimento do vínculo mutualístico humanos-cães. Ou
seja, a emergência da mente e cultura humanas não estavam pré-determinadas na
Evolução e surgiram por Acaso.
É bem verdade que o Acaso na Biologia não é concebido como onipotente. Por
exemplo, não temos baratas Kafkianas da altura de um homem ou animais com seis
membros tais como dragões, centauros e cavalos alados. Existem vínculos físicos (baratas
gigantes não conseguiriam respirar de forma eficiente) e biológicos (aves, répteis e
mamíferos descendem de peixes com quatro nadadeiras principais que invadiram terrenos
pantanosos)6. Entretanto, o Acaso é a fonte de toda criatividade na evolução biológica e
responsável pela imensa variedade de nossa Biosfera, ou seja, é o que chamarei daqui por
diante de quase-onipotente.
Tecnicamente falando, porém, o Acaso realmente pode realizar coisas
aparentemente impossíveis. Por exemplo, no conceito de Cérebro de Boltzmann, átomos
no espaço vazio se juntam por puro Acaso formando um cérebro, que se torna um
observador enquanto durar o tempo de vida lhe dado pelo Acaso. O tempo médio que
devemos esperar para que surja um cérebro de Boltzmann é muito grande, mas não é
infinito. Ou seja, um cérebro de Boltzmann não é fruto de evolução biológica, mas sim
do puro Acaso.
Esse poder criativo, onde a novidade surge de praticamente nada, é bem mais
marcante no caso da origem do Universo. Se nosso Universo surgiu de uma flutuação
quântica, então tudo o que conhecemos surgiu por obra do Acaso. É claro que nem todos
6
Estes vínculos, porém, também são obra do Acaso: se mutações aleatórias tivessem produzido outro
sistema respiratório, poderíamos ter baratas gigantes; se os primeiros peixes a invadir a terra, por acaso,
tivessem seis nadadeiras principais, poderíamos ter hoje mamíferos com seis membros.
os universos imagináveis são fisicamente possíveis, ou seja, o poder do Acaso também
tem seus limites quando aplicado ao contexto cosmológico. Mas, dado a amplitude do
processo cósmico, creio também ser possível afirmar que o Acaso cosmológico é
onipotente no sentido que ele pode gerar qualquer universo fisicamente possível dentro
do Multiverso. E, dado que as leis do Acaso são preexistentes às leis da Física (pois é o
Acaso que cria as leis da Física) e ao Universo (e talvez mesmo à um possível Multiverso),
podemos dizer que o Acaso é uma poderosa força criadora, um poder eterno, onipresente,
onipotente e mesmo transcendente.
O que quero defender neste capítulo é que existem paralelos profundos entre a
ideia de Deus e a ideia de Acaso, especialmente se nos atermos apenas ao que as pessoas
refletiram nos escritos bíblicos. Não apenas o Acaso apresenta propriedades quase divinas
como a manifestação do Deus bíblico é descrita como misteriosa, tortuosa, escondida e
mesmo incompreensível, adjetivos que lembram os processos aleatórios. Ou seja, na
Bíblia, Deus não é tido como uma força ou pessoa que possa ser bem compreendida ou
definida. Por exemplo, existem afirmações escandalosas (que ultrapassam o senso
comum judaico de que Deus abençoa os bons e pune os maus) onde se diz que Deus não
distingue os ímpios dos justos, os bons dos maus, ou seja, as ações de Deus parecem ser
aleatórias. Se um Deus sumo bondoso está bem definido na teologia (e não é claro que
esteja) isto se deve a uma elaboração teológica posterior à tradição bíblica. Alguns
exemplos das Escrituras podem ilustrar o que observamos acima:
Percebi ainda outra coisa debaixo do sol: Os velozes nem sempre vencem a
corrida; os fortes nem sempre triunfam na guerra; os sábios nem sempre têm comida;
os prudentes nem sempre são ricos; os instruídos nem sempre têm prestígio; pois o
tempo e o acaso afetam a todos. Além do mais, ninguém sabe quando virá a sua hora:
Assim como os peixes são apanhados numa rede fatal e os pássaros são pegos num laço,
também os homens são enredados pelos tempos de desgraça que caem inesperadamente
sobre eles. Eclesiastes 9:11,12.
É tudo a mesma coisa; por isso digo: Ele destrói tanto o íntegro como o ímpio.
Quando um flagelo causa morte repentina, ele zomba do desespero dos inocentes.
Quando um país cai nas mãos dos ímpios, ele venda os olhos de seus juízes. Se não é ele,
quem é então? Jó 9:22-24.
Vocês ouviram o que foi dito: ‘Ame o seu próximo e odeie o seu inimigo’. Mas eu
lhes digo: Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem, para que vocês
venham a ser filhos de seu Pai que está nos céus. Porque ele faz raiar o seu sol sobre
maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos. Mateus 5:43-45.
Deus é a explicação última para teístas e o Acaso é a explicação última para
ateístas. A ideia que estou querendo defender neste capítulo é a de que o conceito de Deus
corresponde ao de um Acaso personificado (ou talvez um Acaso interpretado a posteriori)
e o conceito de Acaso ao de um Deus impessoal criativo/destrutivo. Embora a grande
diferença entre os dois conceitos seja a de intencionalidade pessoal, na tradição bíblica
os dois conceitos não estão tão afastados assim, na medida em que se enfatiza que a
intencionalidade de Deus é misteriosa, oculta e mesmo incompreensível.
Assim como você não conhece o caminho do vento, nem como o corpo é formado
no ventre de uma mulher, também não pode compreender as obras de Deus, o Criador
de todas as coisas. Eclesiastes 11:5.
Verdadeiramente tu és um Deus que se esconde, ó Deus e Salvador de Israel.
Isaías 45:15.
Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento de Deus! Quão
insondáveis são os seus juízos, e inescrutáveis os seus caminhos! Romanos 11:33.
Vou fazer uma conjectura talvez um pouco mais audaciosa: será que, pelo fato
dos povos antigos não terem uma ideia clara sobre a natureza matemática do Acaso, mas
intuindo sua onipresença, seu enorme poder e mesmo sua transcendência, tais povos
encararam esta incrível força como um deus ou deusa?7 E que, como no monoteísmo só
existe um Deus, as propriedades e características desse poderoso e criativo/destrutivo
deus Acaso foram incorporadas ao conceito bíblico de ação misteriosa, muitas vezes
destrutiva, de Deus?
Para defender esta identidade entre o poder do Acaso e o poder de Deus mostrarei
duas evidências: primeiro, a ideia de que a sorte e o acaso são instrumentos de
comunicação da vontade divina; segundo, que os grandes eventos destrutivos gerados
pelo Acaso são manifestações do poder divino.
Que a sorte, o acaso e as coincidências tenham significado espiritual é uma ideia
presente desde a Antiguidade até os dias de hoje (os tarólogos, jogadores de búzios e
seguidores do I Ching que me desmintam). Que a sorte pode manifestar a vontade de
Deus também está presente na cultura judaico-cristã, algo que é surpreendente dado que
7
Lembremos que no politeísmo greco-romano o acaso e a sorte estão relacionados à deusa Fortuna/Tique.
Na arte greco-budista de Gandara, Tique tornou-se intimamente associada à deusa budista Hariti.
essa tradição é muitas vezes avessa a adivinhações, magia e práticas ocultas. Mas temos
vários exemplos importantes onde a sorte foi interpretada como canal da vontade divina.
No Antigo Testamento, o livro de I Samuel conta como foi escolhido o primeiro
rei de Israel. Embora o relato descreva YHWH comunicando previamente a Samuel sua
intenção de escolher Saul, é bastante curioso que a escolha pública, oficial, envolveu
sorteios (o método exato não é descrito):
Samuel convocou o povo de Israel ao Senhor, em Mispá, e lhes disse: "Assim diz
o Senhor, o Deus de Israel: ‘Eu tirei Israel do Egito, e libertei vocês do poder do Egito e
de todos os reinos que os oprimiam’. Mas vocês agora rejeitaram o Deus que os salva de
todas as suas desgraças e angústias. E disseram: ‘Não! Escolhe um rei para nós’. Por
isso, agora, apresentem-se perante o Senhor, de acordo com as suas tribos e clãs”. Tendo
Samuel feito todas as tribos de Israel se aproximarem, a de Benjamim foi escolhida por
sortes. Então fez ir à frente a tribo de Benjamim, clã por clã, e o clã de Matri foi
escolhido (por sortes). Finalmente foi escolhido (por sortes) Saul, filho de Quis. I
Samuel 10:17-21.
Que o primeiro rei e, portanto, a primeira dinastia, tenha sido escolhida por sorteio
renova a ideia de que YHWH não faz acepção de pessoas, ou seja, não prefere os mais
ricos ou as famílias mais influentes. Todos tiveram igual oportunidade de se tornarem o
rei. Se pensarmos bem, esse método de sorteio é mais democrático do que a escolha de
líderes feita em nossa atual democracia, que envolve financiamentos, alianças,
campanhas eleitorais caríssimas. Em nosso mundo, Saul nunca teria sido escolhido pois
pertencia a uma família que não era muito importante.
A prática de dividir terras usando sorteios também era muito disseminada. Dado
que a herança da terra era também um ato religioso, temos um exemplo claro da ideia de
que o Acaso comunica a vontade de Deus. Na Utopia judaica, as melhores terras não
seriam dadas às pessoas mais ricas, influentes ou com poder político, mas sim todas as
famílias teriam as mesmas oportunidades:
Disse ainda o Senhor a Moisés: "A terra será repartida entre eles como herança,
de acordo com o número dos nomes alistados. A um clã maior dê uma herança maior, e
a um clã menor, uma herança menor; cada um receberá a sua herança de acordo com o
seu número de recenseados. A terra, porém, será distribuída por sorteio. Cada um
herdará sua parte de acordo com o nome da tribo de seus antepassados. Cada herança
será distribuída por sorteio entre os clãs maiores e entre os clãs menores”. Números
26:52-56.
Repartireis, pois, esta terra entre vós, segundo as tribos de Israel.
Será, porém, que a sorteareis para vossa herança e para a dos estrangeiros que moram
no meio de vós, que gerarem filhos no meio de vós; e vos serão como naturais entre os
filhos de Israel; convosco entrarão em herança, no meio das tribos de Israel. Ezequiel
47:21,22.
Outros exemplos do uso do acaso divinizado:
Essas divisões dos porteiros, feitas pelos chefes deles; eles cumpriam tarefas no
serviço do templo do Senhor, assim como seus parentes. Tiraram sortes entre as famílias,
incluindo jovens e velhos, para que cuidassem de cada porta. E a porta leste coube a
Selemias. Então tiraram sortes para seu filho Zacarias, sábio conselheiro, e a porta
norte foi sorteada para ele. 1 Crônicas 26:12-14.
A sorte é lançada no colo, mas a decisão vem do Senhor. Provérbios 16:33.
O uso da sorte e acaso não se restringe ao Antigo Testamento. Quando os
apóstolos se reúnem após a morte de Jesus, Pedro propõe que se escolha um discípulo
para ocupar o lugar de Judas. Em Atos dos Apóstolos 1:23-26 lemos:
Então indicaram dois nomes: José, chamado Barsabás, também conhecido como
Justo, e Matias. Depois oraram: "Senhor, tu conheces o coração de todos. Mostra-nos
qual destes dois tens escolhido para assumir este ministério apostólico que Judas
abandonou, indo para o lugar que lhe era devido”. Então tiraram sortes, e a sorte caiu
sobre Matias; assim, ele foi acrescentado aos onze apóstolos. Atos 1:23-26.
Práticas sacerdotais no templo de Jerusalém, já no Novo Testamento, também
envolviam sorteio:
Certa vez, estando de serviço o seu grupo, Zacarias estava servindo como
sacerdote diante de Deus. Ele foi escolhido por sorteio, de acordo com o costume do
sacerdócio, para entrar no santuário do Senhor e oferecer incenso. Lucas 1:8-9.
Fora este uso explicito do Acaso como meio de comunicação direta com YHWH
(e com forças espirituais em geral, vide práticas divinatórias em outras religiões), outros
fenômenos muitas vezes interpretados como sinal da ação divina são as coincidências e
os sonhos, que hoje atribuímos ao âmbito do aleatório. Dada sua abundância nos escritos
bíblicos, creio não ser necessário usar citações sobre coincidências e sonhos para ilustrar
este ponto.
Existe outra classe de fenômenos que são atribuídos à YHWH e, modernamente,
ao Acaso. São os grandes fenômenos naturais tais como erupções vulcânicas, terremotos,
inundações, grandes tempestades, incêndios, secas, fomes, guerras e pestes. Apenas para
ilustrar, cito uma passagem onde se fala tanto de terremotos violentos quanto do poder
divino manifesto na criação:
Sua sabedoria é profunda, seu poder é imenso. Quem tentou resisti-lo e saiu ileso?
Ele transporta montanhas sem que elas o saibam, e em sua ira as põe de cabeça para
baixo. Sacode a terra e a tira do lugar, e faz suas colunas tremerem. Fala com o sol, e
ele não brilha (a luz solar barrada pelas cinzas vulcânicas); ele veda e esconde a luz das
estrelas. Só ele estende os céus e anda sobre as ondas do mar. Ele é o Criador da Ursa
e do Órion, das Plêiades e das constelações do sul. Realiza maravilhas que não se podem
perscrutar, milagres incontáveis. Quando passa por mim, não posso vê-lo; se passa junto
de mim, não o percebo. Jó 9:5-10.
Curiosamente, a disposição das estrelas nas constelações é pura obra do Acaso.
Outros exemplos onde grandes eventos como guerras, pestes e fomes são tidos como de
origem divina:
Assim diz o Soberano Senhor: Chegou a desgraça! Uma desgraça jamais
imaginada vem aí. (…) Fora está a espada, dentro estão a peste e a fome; quem estiver
no campo morrerá pela espada, e quem estiver na cidade será devorado pela fome e
pela peste. (…) O rei pranteará, o príncipe se vestirá de desespero, e as mãos do povo
da terra tremerão. Lidarei com eles de acordo com a sua conduta, e pelos padrões deles
mesmos eu os julgarei. Então saberão que eu sou o Senhor. Ezequiel 7:5,15,27.
Faze-os como folhas secas levadas no redemoinho, ó meu Deus, como palha ao
vento. Assim como o fogo consome a floresta e as chamas incendeiam os montes,
persegue-os com o teu vendaval e aterroriza-os com a tua tempestade. Cobre-lhes de
vergonha o rosto até que busquem o teu nome, Senhor. Salmos 83:13-16.
O Senhor dos Exércitos virá com trovões e terremoto e estrondoso ruído, com
tempestade e furacão e chamas de um fogo devorador. Isaías 29:6.
Muitas vezes se critica esse YHWH colérico dos antigos judeus como não sendo
bom o suficiente para o conceito cristão tardio de Deus como Pai Amoroso e sumo
bondoso, ou o conceito neoplatônico de Deus como ente matemático perfeito sem
emoções. Mas, certamente, esse YWHW que age tanto a favor como contra os desejos
humanos, um deus que não é necessariamente bom em termos humanos, se parece muito
com o nosso moderno conceito de Acaso!
É muito interessante que os fenômenos naturais atribuídos a YWHW (terremotos,
incêndios florestais, secas, fomes, pestes, guerras, grandes eventos econômicos e
históricos) são hoje estudados pela física com uma abordagem unificada. Isto ocorre
porque se descobriu que os grandes desastres são inevitáveis e seguem uma mesma lei de
probabilidade, que prevê que eles são mais frequentes do que o senso comum esperaria,
o que é chamado de efeito de cauda longa8. Tais grandes eventos também são totalmente
imprevisíveis, regidos por puro Acaso. A teoria que dá conta do caráter estatístico e
aleatório dessas grandes ocorrências se chama Criticalidade Auto-Organizada9.
Lembremos também que em vários países, as seguradoras se eximem de cobrir
danos provocados pelos grandes eventos como furacões, tsunamis, grandes terremotos e
pandemias. Tais eventos ainda são tratados como exceções ou Acts of God. Ou seja, de
novo temos fenômenos que são atribuídos tanto a Deus quanto ao Acaso.
Neste capítulo tentei traçar paralelos, que muitas vezes passam despercebidos,
entre as propriedades de YHWH e as propriedades matemáticas do Acaso. Ambos são
tidos como eternos e preexistentes ao Universo (mesmo que existam leis da física
diferentes em outros universos do Multiverso, as leis estatísticas do Acaso continuam
sendo as mesmas). Ambos entes são onipresentes, afetando desde a criação do Universo
(a flutuação quântica que deu origem ao processo inflacionário) até os menores detalhes
da vida humana (as pequenas coincidências e bifurcações que ditam nossas vidas),
passando pelos grandes eventos da Natureza e da História, os Acts of God das empresas
de seguros.
Ambos são onipotentes (ou quase). A única (importante) diferença conceitual
entre YHWH e Acaso é que o primeiro teria intencionalidade e agiria na História, em
contraste com a cega atuação do último. Entretanto, corajosos escritores bíblicos (Jó,
Eclesiastes) vão além do senso comum judaico de que os bons são recompensados e os
maus punidos nesta vida, e afirmam que os eventos do mundo parecem ser controlados
pela sorte e pelo acaso, ou seja, a intencionalidade de YHWH é escondida, misteriosa,
8
Cauda longa é uma expressão que se refere ao fato de que muitos fenômenos tais como as distribuições
de tamanho de terremotos, extinções de espécies, guerras, renda, tamanho de cidades e propriedades,
vendarem de filmes e livros etc. seguem uma mesma lei matemática, as chamadas leis de potência: a
probabilidade de acontecer um evento de tamanho s é dada por P(s) = C/sb , onde C é uma constante e b é
um expoente (em geral entre b=1 e b=3). Por exemplo, se b = 1, a probabilidade de em evento é
inversamente proporcional ao seu tamanho: a probabilidade de um evento de tamanho s=10 será um décimo
da probabilidade de ocorrer um evento de tamanho s=1, e a chance de ocorrer um evento de tamanho s=100
será um centésimo da chance de ocorrer um evento de tamanho s=1.
9
Na Criticalidade Auto-Organizada (Self-Organized Criticality ou SOC) estuda-se fenômenos que
ocorrem na forma de eventos de todos os tamanhos, tais como avalanches, terremotos, extinções em massa,
incêndios florestais, enchentes, epidemias e mesmo guerras, crises econômicas e outros eventos sociais. Os
modelos sempre envolvem a interação entre muitas unidades e os eventos tomam a forma de reações em
cadeia. Os pequenos eventos são bem mais frequentes, os médios menos frequentes e os grandes eventos
são raros. Todos os eventos, porém, são fortemente influenciados pelo acaso e os grandes eventos são
inesperados e de difícil, senão impossível, previsão (Jensen, 1998).
incompreensível e aparentemente aleatória. Além disso, não está claro se os relatos
bíblicos são na verdade narrativas a posteriori, interpretações em forma de fábula moral,
de eventos devidos ao Acaso. Por exemplo, a história de Sodoma e Gomorra poderia ser
apenas uma fabulação moral10, redigida muitos anos após o ocorrido, de uma grande
erupção vulcânica ocorrida na região dessas cidades.
Se chamarmos de "deus" um princípio explicativo fundamental, uma poderosa
força transcendente criativa/destrutiva, podemos dizer que o deus dos teístas difere do
deus Acaso dos ateus basicamente por sua intencionalidade. Esta é uma grande diferença,
mas devemos lembrar que ela é bastante relativizada quando se introduz a ideia bíblica
de vontade misteriosa, incompreensível, incognoscível e aparentemente aleatória de
Deus. É bem possível que o YHWH judaico e o Acaso dos ateus tenham muito mais em
comum do que o reconhecido por ambas as partes.
REFERÊNCIAS
Dauben, Joseph (2004) [1993]. "Georg Cantor and the Battle for Transfinite Set Theory",
Proceedings of the 9th ACMS Conference (Westmont College, Santa Barbara, CA), pp.
1–22. Internet version published in Journal of the ACMS 2004.
Jensen, H. (1998). Self-Organized Criticality: Emergent Complex Behavior in Physical
and Biological Systems (Cambridge Lecture Notes in Physics). Cambridge: Cambridge
University Press. doi:10.1017/CBO9780511622717
10
Estudos de crítica bíblica indicam que o relato dos anjos e dos habitantes de Sodoma e Gomorra não
envolve uma crítica moral à homossexualidade mas sim à violação da proteção aos visitantes estrangeiros,
algo que na época era muito mais importante em termos culturais para os judeus.
Osame Kinouchi Filho é natural de Araraquara – SP e professor associado livre-docente
no Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
– USP. Trabalha na área de Física Estatística Interdisciplinar e Neurociência Teórica,
tendo publicado cerca de sessenta artigos em revistas científicas internacionais, incluindo
a Nature Physics e o Physical Review Letters. Responsável pelo Laboratório de Física
Estatística e Biologia Computacional (FEBiC – febic.anelciencia.com) Laboratório de
Divulgação Científica e Cientometria (LDCC), que mantém o portal Anel de Mídias
Científicas (AMC – anelciência.com), com links para mais de 400 blogs e 130 canais
YOUTUBE científicos em português. Publicou O Beijo de Juliana: quatro físicos
teóricos conversam sobre crianças, ciências da complexidade, biologia, política, religião
e futebol (2014) pela Editora Multifoco e Projeto Mulah de Tróia (2016) pela Drago
Editorial. No Kindle Amazon, publicou Projeto Mulah de Tróia 2 (2020). Participou de
várias antologias: FCdoB-2010/2011 (Tarja Editorial), Solarium 3 (Multifoco), Galáxias
Ocultas (Editora Illuminare), Teslapunk: Tempestades Elétricas (Cavalo Café), O
Espantoso Mundo da Antecipação (Elemental Editoração), Antologia Asimoviana
(Arkanus Editorial), O Livro da Ficção Científica Brasileira (Madrepérola), Estrelas
Inalcançáveis (LN Editorial), Ano Zero (Lura Editorial) e Almas Fabricadas
(Madrepérola). O conto Demiurgo, que abre este livro, está sendo adaptado para o cinema
pelo cineasta e roteirista Bruno Caticha.