História Da Psicanálise Com Crianças

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Revista Ágora - Estudos em Teoria Psicanalítica A RTIGO

AGATLHY JUNG E HILDA ABRAHAM: PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS


DE PSICANÁLISE COM CRIANÇAS 1
ADELA STOPPEL DE G UELLER ; ANA COSTA

Adela Stoppel de
Gueller
Universidade do RESUMO: Além de ser uma das cinco grandes psicanálises de Freud, o pequeno
Estado do Rio de Hans é o primeiro paciente da psicanálise com crianças. Outras experiências
Janeiro (UERJ), Pós-
semelhantes estão em série com esse caso; foram feitas na sequência, mas
Doutora pelo
Programa de Pós- ficaram esquecidas pela história. Discutimos aqui duas delas: o caso
Graduação em Ana/Agathly (Jung, 1910) e o caso Hilda (Abraham, 1913). Como Hans, elas
Psicanálise, Rio de
estiveram em tratamento psicanalítico conduzido por seus respectivos pais. Os
Janeiro/RJ, Brasil.
casos dão subsídios importantes para pensar as teorias sexuais infantis
Ana Costa elaboradas por meninas.
Universidade do
Estado do Rio de Palavaras-chave: psicanálise com crianças; escritas da clínica; história da
Janeiro (UERJ), psicanálise; Abraham e Jung; teorias sexuais infantis.
Professora do
Programa de Pós-
Graduação em
Psicanálise, Rio de ABSTRACT: Agatlhy Jung and Hilda Abraham: first experiences in child
Janeiro/RJ, Brasil. psychoanalysis. Besides being one of the Freud’s big five psychoanalysis clinical
case studies, Little Hans is the first child psychoanalysis patient. In series with
this case, following similar experiences were made but lay forgotten by history.
In this paper we discussed two of this experiences: the Ana/Agatlhy (Jung, 1910)
and the Hilda (Abraham, 1913) clinical case studies. As Hans, they have been in
psychoanalytical treatments conducted by their respective fathers. The cases
imply substantial contributions to thinking about the sexual theories of children
elaborated by little girls.
Keywords: child psychoanalysis; clinical writings; history of Psychoanalysis;
Abraham and Jung; sexual theories of children.

DOI - http://dx.doi.org/10.1590/1809-44142017003006

Ágora (Rio de Janeiro) v. XX n. 3 set/dez 2017 676-685 676


Adela Stoppel de Gueller; Ana Costa

ESCRITAS DO CASO CLÍNICO


A escrita de caso é um lugar importante na transmissão da psicanálise. Ela tem tido a função de nomear a “outra
cena” como algo que resta do fantasma construído em transferência. A psicanálise não se pauta pela naturalização
de um desenvolvimento, mas lida com construções que operam o sítio do corpo no espaço, nas relações amorosas e
nos circuitos pulsionais. O recorte da “outra cena”, que sustenta a relação do sujeito ao Outro, é constituído por
alguns significantes e movimentos pulsionais que se decantam na transferência. É do que resta de enigmático nesse
movimento que se constrói a escrita do caso, naquilo que desse enigma estimula a produção do analista.
Desde Freud, testemunhamos que essa escrita não transmite um modelo de como fazer no acompanhamento
das análises, mas busca passar elementos que restam sem resolução. Trabalhando com os casos escritos por Freud,
Lacan se perguntava tanto sobre o desejo do autor quanto sobre um engajamento fantasmático. Ou seja, colocava
sua pergunta na direção do desejo do analista. De qualquer forma, pode-se reconhecer quando uma escrita se engaja
numa questão fantasmática ou quando se pauta pelo desejo do analista. Encontramos essa diferença não somente
na escrita do caso. Importa situar essa questão no tema que nos leva a produzir este texto. Assim, ao pensar na
transmissão da psicanálise, nos indagamos quais efeitos se dão quando determinadas produções são recalcadas na
história do movimento psicanalítico. Esta pergunta diz respeito às escritas de caso, operadas pelos analistas/pais,
anteriores ao reconhecimento de uma clínica com crianças.

EM TORNO DO BERÇO
Vinte anos depois da publicação do caso Hans, nasceu oficialmente a psicanálise com crianças, em 1926/27. Nesse
momento, Anna Freud e Melanie Klein instauram-se como suas duas grandes mães e se enfrentam numa longa
querela litigiosa; como na proverbial história do Rei Salomão, disputam a propriedade da criança.
A psicanálise com crianças tem então um nascimento em dois tempos. Hans, Agathly, Hilda, Arpad e vários
outros casos ficaram situados como a pré-história da psicanalise com crianças. Só Hans sobreviveu como vestígio
dessa época. Os outros casos ficaram sepultados e só começaram a ser desenterrados a partir dos anos 1970.
O caso Hans foi publicado em 1909. 1 O pai do menino, Max Graf, era um dos psicanalistas mais próximos de
Freud e começou a descrever os diálogos que tinha com seu filho, atendendo a um pedido do próprio Freud 2, que
pretendia confirmar in status nascendi as hipóteses do artigo Três ensaios sobre uma teoria sexual (1905). Mas, no
decorrer dessa observação, o menino manifestou um sintoma fóbico – o medo de cavalos –, e Max pediu a Freud
orientações para tratá-lo psicanaliticamente.
Em seguida, foram escritos outros dois casos dessa série inicial, que ficaram esquecidos. Tratam-se de duas
meninas, e ambos os percursos são semelhantes ao de Hans: as observações se converteram em tratamento quando
surgiram sintomas. Assim como aconteceu com Hans, o tratamento foi conduzido por seu pai. No caso Agatlhy, essa
relação está dissimulada, como o fez Melanie Klein ao descrever o tratamento de seu filho Erich/Fritz em The
development of a child, apresentado em 1919 e publicado em 1921 (KLEIN, 1921/1964, p. 19).
Foi só em 1920, no Congresso Internacional da Haia, que Hermine Hug-Hellmuth criticou esse procedimento.
Contestou a afirmação de Freud de que seria bom que o pai e o analista fossem a mesma pessoa, com o argumento
de que os filhos jamais revelam seus desejos e pensamentos mais íntimos a seus pais. Nesse quesito, Hermine
questionou explicitamente o que Freud tinha afirmado no caso Hans, sobre a junção da autoridade e da confiança
que o pai teria sobre a criança, condição da transferência na infância, e também a análise que sua filha Anna Freud
tinha acabado de fazer com ele.

O CASO DE AGATHLY
Em 1910, Jung publicou o caso Agathly, a quem denominou Aninha 3. Esta, segundo suas palavras, mostrou “tão
notáveis analogias com as [observações] de Freud e as completava tão admiravelmente, que não pude resistir ao

1
Embora Freud tenha escrito outros dois textos que falam dele: O esclarecimento sexual da criança (carta aberta ao Dr. M.
Fürst) e As teorias sexuais infantis, respectivamente em 1907 e em 1908.
2
Na introdução a O pequeno Hans, Freud escreve: “Por muitos anos, tenho insistido com meus pupilos e com meus amigos a
coletar observações sobre a vida sexual das crianças – cuja existência, via de regra, tem sido ignorada ou deliberadamente
desmentida” (FREUD, 1909, p. 8).
3
Optamos aqui por chamá-la Agatlhy, para levantar o véu que recaiu sobre o laço entre pai e filha, recoberto pelo
nome fictício Aninha.

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Agatlhy Jung e Hilda Abraham: primeiras experiências de psicanálise com crianças

desejo de dá-las a conhecer” (JUNG, 1913/1964). Foi apresentado como uma conferência em 1909, na Clark
University, por ocasião da comemoração de seus 20 anos, com a presença de Freud. 4 Ele ministrou as Cinco
conferências sobre psicanálise, e Jung fez três palestras; na terceira, falou sobre essa análise. Freud mencionou o
caso uma única vez, na quarta conferência, de 1909: “Devo lembrar-lhes que meu amigo Dr. C. G. Jung, há poucas
horas, nesta mesma sala, lhes expôs a observação de uma menina ainda mais nova, que, pelo mesmo motivo do meu
paciente (o nascimento de um irmãozinho),5 evidenciava quase os mesmos impulsos sensuais e idêntica formação
de desejos e complexos” (FREUD, 1910/1996, p. 39).
Jung expõe o caso seguindo o mesmo método clínico que Freud no caso Hans: inicialmente, conta cenas isoladas,
depois se detém no surgimento da fobia e em sua resolução, e então encerra com considerações.
Aos 4 anos, Agathly estava em plena elaboração das teorias sexuais infantis. Ela também fez uma fobia, mas
tratava-se do medo de terremotos. Sabemos hoje que, nesse momento, o casal estava abalado, em função do
relacionamento de Jung com Sabina Spielrein, e é possível pensar, como afirmou Renata Cronberg,6 que, com seu
sintoma, Agathly tenha sido uma analisadora da sexualidade dos pais.
Às vésperas do nascimento do seu irmãozinho Fritz, Agathly se perguntava como se faria lugar para mais um,
como se criaria um lugar novo. Isso é possível ou é necessário liberar um que já existe e está ocupado? Então,
perguntou à avó se ela iria morrer e se no lugar dela viria o irmão. Agathly estava construindo uma teoria sobre a
reencarnação que seguia o lema “nada se perde, tudo se transforma” e, assim, pretendia resolver o enigma da criação
(nascimento) e da desaparição (morte).
Quando Fritz nasceu, Agathly perguntou à mãe: “Vou ser uma mulher diferente de você?”. E, referindo-se à
cegonha, perguntou ainda: “É verdade que você não mente?”. Nesse momento, ela também começou a brincar de
ser como a ama que amamentava o irmão. Até aí, tudo ia bem com Agathly, mas, pouco depois, a angústia eclode, e
ela começa a acordar à noite chorando. Coincidentemente, ouve falar de um terremoto em Messina que causara
muitas mortes,7 e suas perguntas passam a se fixar nos terremotos. Agathly muda repentinamente quando suspeita
que sua mãe mente, questão fundamental, o que faz com que a menina perca estabilidade e segurança.
Inicialmente, Agathly pede à avó que lhe conte mais: “Como tinha tremido a terra? Como tinham caído as casas?
Como milhares de pessoas tinham morrido soterradas?”. E ela começa a ter medo de ficar sozinha. Se a mãe não
ficava ao lado de sua cama, à noite, dizia que “o terremoto virá e a casa cairá, matando-a” (JUNG, 1913/1964, p. 21).
Quando saía de casa, perguntava: “A casa vai estar inteira quando voltarmos? Papai ainda vai estar vivo? Tem certeza
de que lá em casa não tem terremoto?”. Agathly acordava gritando: “O terremoto está chegando! Ouço o rugido
dele!”. Esse curioso substantivo dá uma pista para pensar que o terremoto é como um leão, logo, ele poderia ser um
substituto da figura paterna, se supusermos uma operação semelhante à que Freud inferiu sobre o cavalo de Hans.
Assim como o cavalo, o terremoto é uma figura ameaçadora, temida. Mas o traço que Agathly extrai dessa figura é
o rugido, que remete à voz do pai. Não é uma boca que morde e pode arrancar uma parte preciosa do corpo, mas
um rugido que a faz perder o chão. Jung não faz essa inferência, e foi por isso criticado por Freud.
Em sua correspondência com Jung, após a publicação, Freud elogia o caso Agathly, mas indica a falta de uma
análise comparativa com o caso Hans: “Reli com prazer a fascinante história das crianças (Agathly e Sofia),
lamentando, entretanto, que o pesquisador não dominasse o pai por completo; ela é de fato um relevo frágil, quando
poderia ter sido vigorosa estátua, e, devido a tal sutileza, a lição se perde para a maioria dos leitores. [...] Pena que
as analogias com o pequeno Hans não sejam devidamente trabalhadas, senão aqui e ali, pois o leitor é, por definição,
um simplório, e é preciso que lhe esfreguemos as coisas no nariz” (FREUD, 2012, p. 362, grifo nosso). 8 Ali, Freud
mostrou claramente o quanto a questão do pai estava no centro de suas preocupações, questão que seria retomada
na releitura que ele mesmo fez de Hans em Tótem y Tabu (1913/1996). Mostrou ainda o quanto o irritava que seus

Freud e Jung foram convidados por Stanley Hall – então reitor – para celebrar os 20 anos da Clark University,
4

em Massachusetts. Por insistência de Jung, Hall chamou Freud para substituir Wundt, que declinara do convite. A
conferência foi publicada inicialmente em Jarbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen II
(Anuário de Pesquisas Psicanalíticas e Psicopatológicas II, Viena e Leipzig, 1910, p. 33-58).
5
O verdadeiro nome de seu irmãozinho – Franzli, no texto – era Fritz.
6
No Colóquio 100 anos de Psicanálise com Crianças, realizado nos dias 28 e 29 de agosto de 2009 no Instituto
Sedes Sapientiae, em São Paulo.
7
Em 28 de dezembro de 1908, houve na Itália um terremoto que destruiu a cidade de Messina, deixando 75 mil
mortos.
8 Em carta de 18 de agosto de 1910.

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Adela Stoppel de Gueller; Ana Costa

discípulos e amigos não o acompanhassem nesse ponto que, para ele, constituía o complexo nuclear das neuroses.9
No entanto, não podemos deixar de considerar que o terremoto surgiu quando Agatlhy perdeu a confiança na palavra
materna, que garantia “a estabilidade da terra e do mundo em geral” (WINNICOTT, 1947/1965). É a mãe que cai do
lugar Ideal e torna-se real, ao perder o lugar de fiadora da palavra, deixando a criança no mais absoluto desamparo.
Eis mais um ponto de convergência com o caso Hans.
Sem a garantia do Outro, tudo treme, e Agathly subitamente acorda do mundo dos sonhos. De que despertar
se trata? As fobias, diz Freud, são as neuroses típicas da infância porque permitem encontrar uma solução em
momentos de passagem, de incerteza, em momentos de crise subjetiva; e o Édipo constitui o modelo e o protótipo
dessas situações. Elas surgem frente ao que é incerto, ambíguo, como a própria infância – por isso, estrutura
indecidida. A fobia permite reestruturar o espaço ali onde se havia formado um beco sem saída, delimitando ao
menos um lugar onde não se deve entrar ou do qual é melhor ficar longe. Em tempos do Édipo, isto é, quando a
criança ainda não decidiu se prefere ficar do lado do pai ou da mãe e se interroga sobre a diferença entre eles, quando
não sabe que lugar lhe vai restar porque vem um irmão, uma fobia não chega a ser uma luz no fim do túnel, mas é
ao menos uma placa que indica que ali é melhor não transitar e, disso, o sujeito tem certeza.
Os pais de Agathly não entendiam o que se passava com ela. Por que esse temor repentino? Só tiveram uma
pista quando ela começou a perguntar por que a irmã, Sofia, era mais nova que ela. Onde estava Fritz antes de nascer;
no céu? O que fazia ali, por que descera agora e não antes? O pai decide então que é uma boa hora para
esclarecimentos, e pede que a mãe lhe explique a verdade sobre a origem do irmãozinho. Na primeira oportunidade
que teve, a mãe lhe explicou que a história da cegonha não era verdade, que o irmão tinha se formado no corpo dela,
do mesmo modo que as flores nascem na terra. Agathly indicou o peito da mãe e perguntou: “Será que aí existe
algum buraco ou será que ele saiu pela boca? E a ama, o que saiu dela?” Nesse mesmo momento, começou a gritar:
“Sei muito bem que a cegonha trouxe meu irmão do céu”. E, em seguida, sem mais explicações, pediu para ver um
atlas com desenhos e gravuras da biblioteca do pai, com imagens de vulcões e terremotos, que a mãe lhe havia dado
(JUNG, 1913/1964, p. 22).
Jung comentou que Agathly já tinha sido proibida de se masturbar e que era esse o motivo pelo qual ela
perguntava sobre os buracos superiores (seio e boca) e ignorou os inferiores (vagina e ânus), deduzindo disso um
primeiro efeito da operação de recalque. Vemos a curiosidade sexual em plena erupção e a busca pelo conhecimento
como um bálsamo que poderia acalmá-la. As perguntas de Agathly giram em torno do que está dentro do corpo
materno e das portas de saída desse interior, mas lhe interessa particularmente entender o que fica no lugar disso
que sai. É por aí que suas perguntas a conduzem ao não-ser, à não-existência. E a mera possibilidade de se aproximar
disso lhe causa horror, ao confrontá-la com a ideia de vazio. Onde estavam os bebês antes de nascer? Se algo sai pela
boca, pelo buraco do peito ou da barriga, o que fica nesse lugar?
O comentário de Jung sobre a proibição da atividade masturbatória de Agathly induz a pensar que, além do
corpo materno, o terremoto articula também, numa única representação, lei e gozo (o rugido/voz do pai e a lava
quente que vem do corpo, as pulsões). Mas de que dimensão do pai se trata? Não é o pai que porta a palavra
articulada, mas um barulho que atemoriza e que se apresenta clinicamente como supereu. Eis a dimensão que Lacan
situou como além do Édipo.10 Trata-se de um pai que se apresenta como excessivo e que não pode ser recoberto
pelo campo do amor. Não é então o pai edipiano, o pai amado/odiado, mas justamente aquilo que não entra no
registro amoroso que unifica, mas permanece como traço (LACAN, 1992, p. 10-11).

RESOLUÇÃO DA FOBIA DE TERREMOTOS


Agathly encontrou uma solução para a fobia muito mais depressa que Hans. No lugar do encanador, ela e sua
irmã inventaram um irmão imaginário mais velho, que sabia tudo e podia tudo, dono de animais. Esse irmão, diz
Jung, é o pai, que é como se fosse um irmão da mãe, ou seja, um tio, do que nós inferimos: uma versão masculina da
mãe onipotente ou, nos termos de Lacan, o pai imaginário que protege. Agathly faz a ele um apelo para aplacar sua
angústia: “Meu irmão está na Itália. Ele tem uma casa de vidro e de estufa que não vai tombar”. Se mamãe disse que
as crianças crescem como as plantas, podemos pensar que uma estufa – ou seja, um lugar onde se fazem crescer

9 Vale lembrar também que, no primeiro texto em que fala da Urphantasien (1915/1996), Freud destacou o barulho que aciona
a fantasia da criança que está com o ouvido à espreita e que forma parte do complexo parental. É o barulho que acorda a
criança, mas também o barulho que ela teme fazer, que trairia sua presença na cena primitiva.
10 Aí, além não remete ao que vem depois, mas tem o mesmo sentido que Freud lhe deu em Além do princípio do prazer, de

1920.

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Agatlhy Jung e Hilda Abraham: primeiras experiências de psicanálise com crianças

plantas – bem pode representar a barriga da mamãe. Aliás, em português, as grávidas dizem que se sentem
estufadas, infladas.11 Lembremos também quão frequentemente as crianças colocam almofadas na barriga para
simular que estão grávidas. Curiosamente, étoffe também significa liga de estanho com ferro, material estrutural
com que se fazem canos. Assim, podemos imaginar uma estufa feita de canos e vidro, resultando numa estrutura
forte e ao mesmo tempo transparente, que permite ver o que se passa no interior do corpo materno, especialmente
na barriga.12 A Itália é o país do terremoto, o lugar onde as casas desabaram. Mas a construção que as irmãs
imaginam como solução (a estufa) é uma casa de cano e vidro que possibilita ver e está protegida.
O grande irmão imaginário, poderoso e possuidor de animais (as pulsões), faz desaparecerem o medo de
terremotos e o interesse por eles. Curiosamente, Agatlhy transforma o pequeno intruso num irmão grande que a
protege, e isso faz com que a angústia diminua. Se o irmão é mais velho, ela não precisa ceder seu lugar. Ela passa
então a demonstrar ternura pelo pai, indicando que o terremoto poderia ser um substituto do pai imaginário
terrorífico e pergunta se o pai tinha nascido da avó e se ela e a irmã também tinham estado na barriga da mãe. No
dia seguinte, Jung fica de cama. Entre espantada e tímida, Agathly indagou: “Por que você está na cama? Você
também tem uma planta na barriga?”. O pai riu e tranquilizou-a; disse que nenhuma criança podia se formar no seu
corpo, que os homens jamais tinham filhos, só as mulheres. Agathly saiu do quarto alegre e despreocupada. É
interessante notar que o temor reside em que possa não haver diferença sexual entre o pai e a mãe. Ela está
buscando o que marca a diferença dos sexos, tentando diferenciar o pai da mãe, e suspeita que seu pai tem algum
papel na procriação. O irmão imaginário aparece então como um representante fálico, permitindo que se esboce a
diferença sexual. Mas insiste na pergunta: o pai também guarda coisas na barriga? Será que o pai não guarda nada
ali?
Dias depois, Agathly contou para a avó que tinha sonhado com a arca de Noé e que dentro dela havia muitos
animaizinhos.13 Um pouco mais tarde, recontou o sonho assim: “Sonhei com a arca de Noé; havia muitos
animaizinhos lá dentro e, embaixo, havia uma tampa que se abria e todos os animaizinhos caíam”. 14 O sonho parece
levantar o recalque, permitindo que apareçam os buracos inferiores. Mas também mostra a junção dos animais, a
excitação que a masturbação causa e a questão sobre a origem dos bebês. Ou seja, no sonho, ela se interroga sobre
o interior de seu corpo: dele também podem sair bebês? Os animais habitam seu corpo, saem pelo buracos inferiores,
caem. O irmão imaginário os dominava – ela não tinha esse poder.

DO VER AO FAZER
Alguns dias depois, a angústia retorna. Agathly acorda com um pesadelo: “O terremoto vem vindo. A casa está
se mexendo!”. A mãe acode para tranquilizá-la, e ela diz: “Gostaria tanto de ver a primavera e como crescem as
florzinhas! Gostaria de ver o prado todo florido e também Fritz, que tem uma cara tão bonitinha! E papai, o que ele
está dizendo, o que está fazendo?”. Mãe: “Nada. Está dormindo”. Agathly, zombeteira: “Acho que amanhã vai cair
de cama de novo”.
Na manhã seguinte, Agathly não se lembrava do pesadelo, mas disse que tinha tido um sonho: “Sonhei que eu
podia fazer o verão, depois alguém jogou um polichinelo na privada”. Ela agora podia fazer o verão, ou seja, ela
também podia fazer um bebê. Essa teoria parece bem semelhante à do excremento de Hans: a criança é tida como
um equivalente do cocô e sai do mesmo jeito. Mudaram as estações, como diz Renato Russo, mas nada mudou? A
elaboração onírica parece ter possibilitado que Agathly avançasse na sua pesquisa teórica: na primavera, ela queria
ver e saber, mas surge a incerteza e o pai terremoto retorna. No verão, sua posição é outra: ela pode fazer e ter um
bebê. A nova equivalência simbólica é entre o bebê e o cocô. Mas também mudou sua posição subjetiva – agora, ela
é ativa e produtiva.
Um dia, ela vai correndo à cama dos pais, deita-se de bruços, dá uns coices e diz: “Não é verdade que o papai
faz assim?”. Os pais riem, mas não respondem. Jung lembra-se do cavalo de Hans. Agathly supõe que o pai faz algo

11 De verre e d’étoffé, lemos na vesão francesa. A tradução ao português diz “de vidro e pano”, o que nos levara a pensar que se
tratava de uma cabana/vitrine frágil. Mas parece-nos que outro dos sentidos da palavra étoffe (estufa) é muito mais próximo do
raciocínio de Agathly. O importante aqui é que se trata de materiais que dão estrutura, suporte, como a estrutura de um chapéu
ou o recheio de uma almofada.
12 A palavra estupa, da mesma origem, provém do sânscrito e originariamente fazia referência aos túmulos funerários que se

construíam na Índia antiga sobre as relíquias de importantes personagens religiosos como o Buda.
13
Lembremos que o irmão mais velho era dono de muitos animais.
14 A menina tinha uma arca de Noé de brinquedo cuja tampa se abria na parte superior.

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Adela Stoppel de Gueller; Ana Costa

com as pernas, mas ainda não sabe exatamente o quê. Ou seja, começa a pensar que o homem tem um papel
diferente na reprodução.
Cinco meses depois, surge um novo temor. Nas férias, Agathly está com medo de mergulhar. O pai a provoca e
a afunda na água. Ela então diz: “Não é verdade que papai quis me afogar?”. Nesse episódio, Freud viu um
mascaramento do parto15 (FREUD, 2012, p. 362) 16 e, seguindo essa interpretação, ela estaria identificada com o
bebê.
Uns dias depois, Agathly provoca o jardineiro, que acaba jogando-a numa valeta. Ela grita, desesperada, e diz
que o jardineiro quis soterrá-la, ou seja, teme ficar como as pessoas que morreram no terremoto. (Lembremos que,
na metáfora dada pela mãe, o bebê se forma como as flores que nascem na terra.) Novamente, nascimento e morte
se sobrepõem: ela também poderia ser uma semente/bebê. Se a teoria da reencarnação continua vigente e ela ainda
pensa que ninguém pode passar a existir se alguém não desaparece, qual seria a consequência de Fritz estar ali? Será
que é ela – e não a avó – que pode morrer? A disjuntiva parece ser “ou ele, ou eu”, o que explica por que o nascimento
do irmão provocou tamanha comoção na menina e também por que a substituição de um bebê por um irmão mais
velho a acalmou.
Em seguida, Agathly e Sofia inventaram uma brincadeira que irritou a mãe: transformaram um canto do jardim
em casa de brinquedo e começaram a fazer ali suas necessidades. A mãe interveio proibindo-as, e Agathly: “Quando
a mamãe morrer, poderemos fazer todos os dias ali e pôr nossos vestidos de domingo”. A identificação com a mãe
parece já ter-se constituído. Agathly não precisa mais da mãe, pode se livrar dela, que não a deixa fazer à vontade.
Pode também salvar a própria pele: basta se livrar da mãe.
Outro dia, ela brincou com o jardineiro de arar a terra e, quinze dias depois, viu a grama nascendo e perguntou
à mãe: “Os olhos foram plantados na cabeça?”. A mãe respondeu: “Não sei”. Agathly: “E Deus sabe? E papai? Por
que Deus e papai sabem tudo?”. A mãe aconselhou a filha a levar a pergunta ao pai, e Agathly seguiu a indicação:
“Como é que os olhos foram para dentro da cabeça?”. Jung respondeu “Não, eles estavam ali desde o início”. Agathly:
“Não foram plantados dentro?”. Pai: “Não, eles só cresceram e fazem parte da cabeça, como o nariz também”.
Agathly: “E a boca e as orelhas e os cabelos também?”. Pai: “Sim”. Agathly: “E os cabelos também? Mas os ratos não
nascem sem pelos? Onde ficam os pelos antes que a gente os veja? Não tem que pôr sementinhas antes?”. Pai: “Não,
os pelos saem de grãozinhos que já estão antes na pele, e ninguém os semeou”. As respostas de Jung não lhe
permitem avançar na teorização. O corpo a que ela se refere é o do desejo, não o da biologia. As perguntas de Agathly
parecem ser pelas partes do corpo, principalmente pelos objetos parciais: os olhos, as orelhas, os pelos. Essas
perguntas parecem percorrer caminhos não transitados por Hans e talvez indiquem caminhos para pensar na
constituição do corpo pulsional da menina.
Decepcionada, Agathly perguntou: “E como Fritz entrou na mamãe? Quem o plantou no corpo dela? Quem
plantou você na sua mãe? E Fritz, por onde saiu?”. Jung devolveu a pergunta: “Por onde você acha que ele saiu?”.
Ela então mostrou os genitais, e ele confirmou. Agathly: “E como entrou na mamãe? Foi plantado em seu corpo, foi
posta uma semente?”. O pai explicou então que a mãe era como a terra e o pai, como o jardineiro. O pai colocava a
semente na mãe, e ela crescia. Algumas semanas depois, ela teve um novo sonho: “Estava no jardim, e vários
jardineiros se apoiavam nas árvores e faziam xixi”; entre eles, estava o papai. A questão da diferença sexual já estava
posta, e pela primeira vez aparece o faz-xixi indicando o papel do pai na reprodução. Agathly continua interessada
em como algo entra no corpo e como sai dele. O corpo é a sede das transformações, mas precisa ser regado, precisa
de algo externo a ele, uma semente, um jardineiro, um pai, um faz-xixi.
Por aqueles dias, havia na casa um marceneiro aplainando uma gaveta emperrada, e ela sonhou que “o
marceneiro estava aplainando os órgãos genitais dela”. A pergunta agora era “o que o homem faz na mulher?” (JUNG,
1913/1964, p. 35). E, vale sublinhar, que ela está identificada com o lugar da mãe. Esboça-se assim a introdução de
uma questão sobre o lugar do prazer no ato sexual. Nesses dias, o pai, que voltaria à cidade para trabalhar, perguntou
a Agathly se queria ir com ele. Agathly: “Sim. Vou poder dormir com você?” (disse imitando um gesto da mãe). Pai:
“Não, você vai dormir em outro quarto”. Agathly estava com 5 anos e já tinha transitado um longo caminho de
construção de um saber sobre a sexualidade (JUNG, 1913/1964, p. 36-37).

HILDA E A FALTA DE ATENÇÃO

15 Vale lembrar que, na lenda da cegonha, ela pega as crianças do lago.


16 Em carta de 18 de agosto de 1910.

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Agatlhy Jung e Hilda Abraham: primeiras experiências de psicanálise com crianças

Em 1913, Abraham escreveu Pequena Hilda: fantasias e sintoma em uma menina de sete anos de idade, mas
não o publicou. O texto tem a forma de um diário e só apareceu em 1974, na International Review of Psycho-Analysis,
com notas de Dinora Pines, psicanalista da British Society, amiga de Hilda Abraham. Ficamos então sabendo que
Hilda, assim como Agathly, a filha de Jung, foi uma das primeiras pacientes da psicanalise com crianças.
Mas antes disso, em 1909, ele fez a primeira menção a Freud sobre sua filha. Contou que foi preciso aplicar
supositório de glicerina duas vezes em Hilda, que tinha dois anos e quatro meses, porque ela se recusava a fazer cocô.
Surpreendeu-o que a menina o procurasse dizendo que “não queria outra injeção”, sem mostrar afeto e com um leve
sorriso. Ele concluiu, então, que Hilda desejava ser injetada, mas disse que não tinha observado outras manifestações
de tendências de erotismo anal.
Abraham (1913/1959) aludiu a ela novamente numa breve menção, quando ela tinha três anos de idade. Disse
que, por um período curto, Hilda sofreu de uma fobia de moscas e lagartas. Chamou atenção para as fobias de
animais pequenos como moscas, vespas, borboletas e lagartas, que aparecem nas crianças e nos neuróticos. Nesse
momento, ele se perguntou por que a fobia frequentemente toma por objeto animais pequenos, muitas vezes
inofensivos, e considerou que isso se devia ao fato de eles aparecerem subitamente, roçarem o corpo
inesperadamente e desaparecerem. Sustentou que o pequeno animal também representava o pai, mas destacou o
fator surpresa. É o pai que entra de repente e surpreende a criança, advertindo-a com voz ameaçadora. A vantagem
dos animais pequenos – e não grandes e de quatro patas – é que indicam o perigoso poder do pai, mas também
permitem que a criança fantasie poder livrar-se dele, diz Abraham.
Ele volta a falar de Hilda quando ela tem quatro anos, dessa vez usando o nome de Helen (ABRAHAM,
1917/1955). Uma noite, enquanto jantava com ele, ela perguntou “Não é bom que mamãe não está em casa hoje?”.
O pai lhe perguntou por quê, e e ela disse: “Assim, não se intromete quando conversamos”. Semanas mais tarde, ela
expressou explicitamente seu desejo de morte ao perguntar à mãe: “Quando você vai morrer?”. E, alguns dias depois,
insistiu: “Daqui a dez anos, você ainda estará viva?”. Abraham diz que as perguntas sempre se referiam à mãe e
nunca ao pai. Certa vez, a mãe lhe respondeu: “Se eu morrer, você não terá uma mamãe!”. E ela: “Mas eu ainda terei
um papai”. Outro dia, durante um jantar, também disse: “Papai, eu poderia vê-lo nu uma hora dessas?”. Semanas
mais tarde, fazendo compras com a mãe, lhe perguntava: “De qual chapéu você gosta mais? Que vestido você
gostaria de ter?”. Depois de a mãe apontar, ela dizia: “Quando eu for adulta, vou comprar isso para você”. Abraham
fala em formação reativa, mas assinala uma inversão da posição da menina, semelhante à solução edípica que
podemos ler em Hans. Se a mãe vira filha, não precisa ser eliminada, e ela pode ficar com o pai. Até aí, tratam-se de
pequenas alusões esparsas sobre Hilda, mas o tratamento psicanalítico só aconteceu quando ela estava com sete
anos.

O DIÁRIO
O sintoma de Hilda naquele momento era a falta de atenção. Mesmo antes de entrar na escola, ao trocar de
sapatos ou de roupa, parava no meio e ficava sentada, sem se mexer, e o mesmo foi apontado pela professora
quando Hilda entrou na escola. Abraham complementou dizendo que Hilda era inteligente e que a desatenção
desaparecia quando se interessava por algo, como uma história que lhe contassem. Ela fazia perguntas e mostrava
que era esperta. Também disse que ela havia confessado que se masturbava na cama e que um dia, ao perceber esse
fato, o pai disse que isso lhe tiraria o sono.
Em função da queixa escolar, Abraham decidiu fazer uma tentativa de análise com a filha, seguindo o exemplo
do relato do Pequeno Hans. Certo dia, saíram para andar, e ele lhe explicou que, como médico, realmente gostaria
de saber o que estava havendo com ela, por que ela nunca prestava atenção na escola, sempre tinha sonhos diurnos
em casa e ficava tanto tempo acordada quando se deitava, à noite. Ela disse que se esforçava para ter pensamentos
agradáveis na escola, mas então vinham pensamentos feios e proibidos que se misturavam. Disse que tinha três
fantasias recorrentes, mas, falando delas, só nomeou duas. A primeira era relativa a macacos: como se houvesse um
alçapão no chão de seu quarto e, embaixo dele, houvesse macacos que lhe pudessem fazer alguma coisa. A segunda
se referia a uma chama fogosa que poderia sair do chão. “Você está um pouco amedrontada?”, perguntou Abraham.
E a menina respondeu: “Amedrontada – não exatamente... Mas não sou tão valente quando penso naquela chama”.
De repente, ela se lembrou de que também pensava em gigantes... No entanto, ela sabia que eles só existiam nos
contos de fadas. Então, apelando para sua autoridade de médico, o pai disse: “Frequentemente, ouço falar em
sonhos de crianças em que um cachorro despertou ansiedade, mas o cachorro, na verdade, representava um

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humano”. 17 Ela imediatamente entendeu que, na verdade, estava com medo de homens, os quais, em suas fantasias,
havia transformado em gigantes. Dois dias depois, ela deixou escapar a palavra “gigantes”, que logo substituiu por
“homens maus”, e voltou ao assunto dos macacos e das chamas. Ela disse que um ladrão poderia entrar em casa e
lhe fazer alguma coisa: levá-la com ele para ver sua esposa, “querer ter uma criança” ou deixá-la morrer de fome. Se
o ladrão a levasse embora, não seria possível voltar para casa novamente. Aí, falou do macaco que poderia devorá-
la. Enquanto ia contando a história do ladrão, seu comportamento mudou de um jeito estranho, comentou Abraham.
“Ela pegou meu braço, beijou a manga do meu casaco, enroscou a cabeça perto de mim e foi tão amorosa e terna,
em palavras e olhares, que eu tive a impressão de que havia aspectos positivos em sua ansiedade a respeito do
homem mordaz e assumi que eu mesmo devo ser um deles. Ela então quis falar da chama e disse que também poderia
levá-la embora. Depois, veio me perguntar se eu já havia escutado de outras pessoas algo da mesma natureza e o
que eu lhes havia oferecido. Eu disse que as pessoas se sentiam melhor quando falavam de seus pensamentos para
o doutor, e, à noite, podiam se deitar em paz na cama. Depois disso, ela quis saber se eu era com meus pacientes da
mesma forma que com ela e perguntou: “Eles te consultam com mais frequência, não é?”.
Pouco tempo depois, assim como Hans, Hilda passou por uma amidalectomia e sofreu bastante com isso. Nesse
momento, ela contou outra fantasia: “Um duende” – disse, indicando a altura de seu pequeno irmão – vem e a leva
embora para os macacos. Os macacos podem mordê-la. Quando o pai lhe perguntou como, ela desenhou uma linha
para baixo, no meio de seu corpo, do peito ao abdome. Lembrei-lhe de seus medos de que outros animais pudessem
vir também, e ela imediatamente respondeu: “Um rato”. O rato poderia pular da cabeceira para sua cama, rastejar
por baixo dos lençóis e mordiscá-la. “Onde?”, perguntou Abraham. Novamente, fazendo o mesmo gesto, ela apontou
o abdome e voltou ao assunto do homem mau que poderia vir e pegá-la. Um homem mordaz a faria morrer de fome
ou a morderia, ou a levaria a um policial e contaria a ele que ela tinha feito algo mau, e assim ele a colocaria na
prisão. Abraham então falou a Hilda sobre a autocensura das crianças e lhe explicou sua conexão com a masturbação,
que ela voltou a confessar. Então, ela disse: “Bem, na verdade, eu me senti um pouco culpada a respeito disso”. “Por
quê?”, perguntou Abraham. “Porque é mau”, disse ela. Hilda lhe explicou que, anteriormente, havia pensado nas
fantasias com prazer, mas não o fazia mais. Perguntei se agora havia se tornado metade prazeroso e metade
amedrontador, e ela respondeu: “Sim, é isso”. Ela enfatizou que os pensamentos lhe ocorriam mesmo quando ela
tentava pensar em outra coisa; eles vinham por si mesmos.

AS CRIANÇAS TAMBÉM FALAM


É interessante notar que, como esses casos são anteriores às mudanças técnicas introduzidas pela psicanálise
com crianças, o tratamento ensaiado se fez de modo semelhante ao trabalho com adultos, ou seja, através de
associação livre. Hilda compreendeu rapidamente o método, aceitou as interpretações do pai e as complementou.
Ela estava com sete anos e já falava da divisão subjetiva e de sua experiência do inconsciente com uma clareza que
muitos adultos não têm.
Embora menos invasivos que Max Graf, Jung e Abraham foram pais/analistas muito curiosos, o que fez com que
seu lugar se aproximasse do de pesquisadores. Essa posição os enfraqueceu de algum modo como representantes
da autoridade, o que teve consequências clínicas. A posição de pesquisador não é inócua. Por isso, é possível pensar
que as fobias tenham surgido como anteparo ao desejo de saber dos pais. Na introdução de O pequeno Hans, Freud
fala da junção da autoridade médica e da conjunção do interesse terno com o científico. Mas, parafraseando Ferenczi,
podemos perguntar: tratava-se da linguagem da ternura ou daquela da paixão?
Quando Hilda estava com sete anos, a fobia já havia passado, e ela estava em pleno processo de construção de
uma pergunta que poderia ser situada do lado da histeria – interrogava-se sobre o desejo: “Os macacos, os ladrões,
os gigantes, os ratos, o que querem de mim? O que querem de meu corpo que pulsa? Querem me morder, me deixar
morrer de fome? Querem me roubar? Querem me fazer um filho?”. Nesse momento da constituição subjetiva, no
cerne de suas elaborações, não parece estar só o pai, mas o homem que a levará para longe dele. Se essa hipótese
procede, a interpretação de Abraham não seria completamente correta. Se Hilda se agarra a ele e lhe beija o braço,
é porque sente culpa por fantasiar com outros além de seu pai. Algo semelhante aconteceu com Agatlhy e o
marceneiro. Hermine teria razão em dizer que disso os pais não iam querer saber, preferindo as interpretações
edípicas. O recalque já havia operado, daí a produção de ricas fantasias. O animais não estavam mais no espaço
fóbico, mas a habitavam em seu corpo/psique. O supereu, por seu lado, tinha mudado experiências que outrora
foram de prazer em desprazer e culpa. Não se tratava mais de medo, mas de estranheza e angústia frente a suas

17 Provável alusão ao artigo Beiträege zur infantilen Sexualitätde (WULFF, 1912).

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Agatlhy Jung e Hilda Abraham: primeiras experiências de psicanálise com crianças

fantasias e suas sensações corporais. Abraham, no entanto, não receita ritalina, mas assinala que falar disso pode
ajudar.

AS TEORIAS SEXUAIS DE AGATHLY E HILDA


Ambas as meninas expressam com clareza fantasias sexuais em pleno processo de elaboração e também falam
de erotismo e sedução; lembremos da chama ardente, de Hilda, e do marceneiro aplainando as gavetas, de Agathly.
Assim, falam do quanto as ocupa querer saber sobre esse estranho gozo que sentem no corpo. O lugar do saber e da
autoridade fica do lado paterno, enquanto com a mãe passa da identificação à rivalidade. Um traço do pai também
aparece em destaque como voz do supereu. Trata-se de um rugido que faz o corpo tremer ou de um zumbido que
penetra pelo ouvido ou pela pele. Não é uma figura unificada, mas um traço que enlaça temor e excitação; é o pai
que cavalga entre o real e o imaginário.
A curiosidade aparece intimamente ligada à pulsão escópica: ver para saber. Enlaçando a pulsão epistemofílica,
o olhar tem, nos dois casos, proeminência sobre outras pulsões. Ambas as meninas desejam ter um bebê, e a pulsão
anal se enlaça ao papel ativo e produtivo – o filho é equivalente do cocô. A oralidade também tem um lugar de
destaque: a boca está enlaçada a outros orifícios do corpo. Agathly coloca em série com ela o seio, por onde jorra o
leite, e Hilda fala em passar fome como uma forma de castigo pelas suas fantasias de desejo proibido. As duas
meninas parecem reconhecer o lugar da vagina, por onde nascem os bebês: a porta de saída dos animais da Arca de
Noé, de Agathly, e o alçapão do piso do quarto, de Hilda. Ambas, desde muito cedo, se perguntam como é ser uma
mulher (lembremos da ama e da mãe de Agathly) e qual é o prazer do ato sexual. Os objetos parciais e sua inserção
no corpo são um enigma: como foram plantados os olhos, as orelhas, os cabelos? As pulsões que emergem com a
força de um vulcão ou de uma chama ardente estilhaçam o corpo em pedaços.
As belas falas dessas meninas sonhadoras falam por si. Vale a pena escutá-las, depois de de terem ficado
adormecidas tantos anos.

Recebido em: 4 de fevereiro de 2015. Aprovado em: 24 de julho de 2015.

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Adela Stoppel de Gueller


[email protected]

Ana Costa
[email protected]

1O artigo é resultado da pesquisa de pós-doutorado desenvolvida por Adela Stoppel de Gueller na UERJ, na área de Psicanálise,
sob a supervisão da profa dra Ana Costa e com financiamento da Capes.

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