Epica Latina
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Epica Latina
Homero e Camões
Se o poeta grego é o cerne da civilização helênica, também o seria para
os romanos e, por consequência, para nós, ocidentais. Contudo, a poesia
grega homérica possuía uma característica importante e diferenciada se
comparada, por exemplo, ao Camões épico: a oralidade. Isto é, aquela
poesia foi composta entre os séculos IX e VIII a.C. e transmitida oralmente
por cantores (os aedos) antes de ser consignada pela escrita a partir do
século VII a.C. Tal propriedade é importantíssima, pois determina caracte-
rísticas formais no poema, a saber: as repetições sistemáticas, a presença
de epítetos (aspectos exemplares das personagens), as formulações lapi-
dares que percorrem os milhares de versos das obras. Assim, se por um
lado Homero é semelhante a Camões, por outro ele se distancia grave-
mente do mesmo, uma vez que o meio pelo qual seus poemas são trans-
mitidos era diverso: o primeiro pela voz; o segundo, pela escrita.
Literatura Latina
Virgílio e o Ocidente
Bem, se Homero, em certa medida, está distante de Camões, a pergunta mais
óbvia seria: quem é o êmulo do poeta português na Antiguidade Clássica? E a
resposta é imediata e direta: Virgílio. Tal afirmação seria até certo ponto irres-
ponsável se não existisse um argumento de autoridade que a respaldasse. Todos
sabem que Dante Alighieri (1265-1321), o autor da Divina Comédia, no século
XIV, é um dos responsáveis pela grande síntese da história literária ocidental,
ao associar a cultura medieval católico-cristã ao mundo clássico greco-latino,
afinal, a ideia de paraíso, purgatório e inferno é, em um só tempo, cristã e pagã.
Sem falarmos da presença de uma personagem fundamental no texto de Dante
que é seu acompanhante ao mundo dos mortos: Virgílio. Observe-se que não é
Homero que o acompanha! Ainda hoje, também, nesse nosso mundo pós-mo-
derno, “pós-tudo”, ainda ecoa a voz de um poeta e crítico norte-americano radi-
cado na Inglaterra nos anos 1920, T. S. Eliot (1888-1965). Ele nos informa sobre a
importância de Virgílio para a cultura ocidental ao propor:
[...] Virgílio adquire a centralidade do único clássico; ele está, no centro da civilização europeia,
numa situação que nenhum outro poeta pode usurpar-lhe ou dividir com ele. O império
Romano e a língua latina não constituíram um império qualquer nem uma língua qualquer,
mas um império e uma língua com o destino único em relação a nós mesmos; e o poeta em cuja
consciência e expressão esse império e essa língua vieram à tona é um poeta de destino único.
Se Virgílio é, pois, a consciência de Roma e a suprema voz de sua língua, deve ter uma
significação para nós que não pode ser expressa inteiramente em termos de apreciação
literária e de crítica. (ELIOT, 1991, p. 95-96)
Outras indagações poderiam surgir a partir dessa conclusão de Eliot que as-
sumimos como nossa: O que fez Virgílio então para receber tamanha dignidade?
O que produziu? Como e quando escreveu?
Domínio público.
Mecenas Apresenta as Artes Liberais a Augusto. Giambattista Tie-
polo. Rússia, Hermitage de São Peterburgo. Óleo sobre tela: 69,5
x 89cm.
Eneida
A Eneida, a despeito do fato de ser uma poesia encomendada com a finalidade
de exaltar o poder de Augusto, inaugura uma nova possibilidade de constituição
da épica, tendo como meio a escrita e, ainda, tendo por trás de si uma tradição
literária que inclui Homero além dos poetas da época helenística. Constituída
por 12 cantos, a épica virgiliana trata, como argumento, da fundação de Roma
e tem como personagem principal Eneias, guerreiro troiano que foi incumbido
pelos deuses a fundar a nova Troia – Roma. Em sua saga, Eneias percorre um
longo caminho até sua chegada à região do Lácio, percurso que, do ponto de
vista da estrutura do poema, dura exatamente os seis primeiros cantos. E, assim,
ao chegar ao local que lhe fora determinado, age, seguindo sua sina, empreen-
dendo guerras de conquista, afinal é um herói e como tal está predestinado a
combater. E essa ação heroica percorre os seis cantos finais da epopeia.
Enredo
Se observarmos mais atentamente o enredo, notaremos que ele está plena-
mente de acordo com a proposição do poema, afinal diz Virgílio logo no primei-
ro verso “Arma uirumque cano” (“As armas e o homem canto”) e isto significa que
o poema tratará, de um lado, das desventuras de Eneias (homem) e, de outro
lado, das campanhas bélicas empreendidas por ele (armas). Vale lembrar que,
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Literatura Latina
Na verdade, não há, na literatura dita ocidental, nenhum poema épico que não
se apoie na estrutura da Eneida e, segundo Curtius (1957, p. 19), “Para todo o fim da
Antiguidade, para a Idade Média, como para Dante, é Virgílio ‘o altíssimo poeta’”.
1
Companheiro inseparável de Eneias.
2
Soldado grego incumbido de enganar os troianos a fim de fazer com que o cavalo de madeira fosse levado para dentro da cidadela.
3
Sacerdote troiano que foi morto junto com seus dois filhos por um enorme monstro (serpente) vindo do mar.
4
Principal herói troiano, filho de Príamo.
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Épica
Canto Ação
Eneias conta acerca de suas viagens: o prodígio de Polidoro5 o afasta da Trácia; o
oráculo de Apolo em Delfos lhe ordena buscar sua antiga morada, a qual Anqui-
ses, seu pai, interpreta erroneamente como sendo Creta. O herói é expulso de lá
pela peste e durante o sono, os Penates6 o encaminham à Itália. Uma tempestade
III
o conduz às ilhas Estrófades7. Em Ácio8, celebram-se jogos em honra de Apolo. No
Epiro9, recebe a revelação de Heleno10. Na costa ocidental da Sicília, socorre um
companheiro de Ulisses. Em Drépano11, morre Anquises12; Eneias é desviado da
rota que seguia e chega a Cartago.
Dido conta a sua irmã Ana que está apaixonada pelo troiano, a qual lhe aconselha
a unir-se a Eneias. Para provocar esse matrimônio, Juno se assegura da adesão de
Vênus; durante uma caçada, os dois enamorados são impelidos a se protegerem
IV de um temporal numa gruta. Sua felicidade não dura muito tempo. Júpiter, en-
tretanto, ordena, por intermédio de Mercúrio, a Eneias, “escravo de uma mulher”,
que se prepare para partir. Por conselho de Mercúrio os troianos partem durante
a noite e a rainha, abandonada, se mata.
No caminho até a Itália, Eneias é acolhido amistosamente na Sicília por Acestes13
e no aniversário de morte de Anquises celebra jogos em sua honra. A regata é
vencida por Cloanto, a corrida por Euríalo14 – graças à astúcia de seu amigo Niso
–, no pugilato, vence o velho Entelo15; no tiro com arco, o melhor é Euritião16, mas
V Acestes, cuja flecha se inflama durante o voo, recebe o primeiro prêmio. Ascânio17
organiza um torneio equestre com seus coetâneos. Um incêndio das naves, pro-
vocado por muitas mulheres troianas instigadas por Juno, é extinto por Júpiter
com uma chuva. Durante o sono. Anquises ordena seu filho a deixar as mulheres
e os velhos na cidade recém-fundada por Acestes.
5
Filho de Príamo, irmão de Heitor e de Páris (Alexandre).
6
Divindades romanas protetoras da casa e do Estado.
7
Ilhas do mar Jônio.
8
Cidade e promontório da Acarnânia.
9
Província ocidental da Grécia, atual Albânia.
10
Filho de Príamo e célebre adivinho.
11
Cidade na Sicília, ao pé do monte Érix, atual Trapani.
12
Pai de Eneias.
13
Rei de Segesta na Sicília.
14
Jovem troiano, amigo de Niso.
15
Troiano, fundador de Entela, na Sicília.
16
Um dos companheiros de Eneias.
17
Filho de Eneias, também conhecido por Iulo ou Julo.
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Literatura Latina
Canto Ação
Na gruta da Sibila de Cumas18, Eneias consulta o oráculo de Apolo. Seu compa-
nheiro Miseno19 é sepultado por ele no cabo que receberá o nome do defunto.
Algumas pombas indicam a Eneias o caminho para alcançar o ramo de ouro, que
lhe permite, depois dos sacrifícios apropriados, descer ao mundo dos mortos sob
a guia da Sibila através da entrada do Averno20. Lá ele primeiro encontra insepulto,
VI
Palinuro21; depois, Dido; e finalmente o troiano Deífobo22. É informado pela boca
da Sibila dos destinos dos condenados do Tártaro. Na sede dos bem-aventurados,
Museu23 lhe conduz para perto de Anquises, que lhe mostra os heróis do futuro,
desde os reis de Alba até Augusto e o prematuramente desaparecido Marcelo24.
Eneias deixa o reino das sombras através da porta de marfim.
Uma vez sepultada sua ama Caieta, Eneias chega à desembocadura do Tibre De-
pois de ter passado por diante da morada de Circe, desembarca em Ager Lau-
rens. O prodígio observado por Ascânio lhe faz compreender que encontrara a
terra prometida. Uma embaixada pede ao rei Latino25 uma terra para que possa
se instalar e movido por profecias o rei oferece sua filha Lavínia26 em matrimônio.
VII
Entretanto, por ordem de Juno, a fúria Alecto27 incita a resistência da esposa de
Latino, Amata28, assim como a do esposo prometido de Lavínia, Turno29. Ascânio
fere um cervo domesticado e por isso nasce uma contenda. Uma vez que Latino
se recusa a iniciar a guerra de vingança, a própria Juno a inicia. Turno encontra
muitos aliados, entre eles Mezêncio e Camila30.
Turno envia Vênulo31 a Diomedes32 para tê-lo como aliado. Eneias, seguindo o
conselho do deus fluvial, Tiberino33, segue o rio para chegar até o rei Evandro34,
no lugar da futura Roma, ali participa de uma celebração a Hércules. O filho de
VIII Evandro, Palante, se une aos troianos com sua esquadra. Depois em Agila, Eneias
pede apoio dos etruscos que são hostis a Mezêncio. Como consequência de uma
súplica de Vênus, Vulcano fabrica armas para o filho da deusa, Eneias. Nele está
representado o destino, o futuro dos romanos.
18
Sacerdotisa de Apolo que se tornou um oráculo nacional.
19
Filho de Éolo e tocador de trombeta da comitiva de Eneias. Seu nome tornou-se nome de um cabo na região da Campânia.
20
Lago na Campânia que dizem ser a entrada do mundo infernal.
21
Piloto de Eneias.
22
Filho de Príamo, entregue a Menelau e Ulisses por Helena depois da guerra de Troia.
23
Poeta grego contemporâneo de Orfeu.
24
Jovem sobrinho de Augusto.
25
Rei do Lácio.
26
Filha de Latino e de Amata.
27
A mais terrível das Fúrias: era o espírito de vingança.
28
Mãe de Lavínia e esposa de Latino.
29
Rei dos rútulos, filho de Dauno, noivo de Lavínia.
30
Rainha dos volscos e aliada de Turno.
31
Guerreiro rútulo.
32
Rei da Etólia, um dos grandes heróis gregos na guerra de Troia.
33
Tiberino também é o nome de um rei de Alba, que deu seu nome ao rio.
34
Rei da Arcádia, filho de Mercúrio e uma ninfa.
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Épica
Canto Ação
Durante a ausência de Eneias, Turno, incitado por Juno por meio de Íris35, ataca
os troianos; entretanto, seu intento de incendiar as naves é frustrado por Júpiter
a pedido da Grande Mãe do Monte Ida, Vênus. Ele, Júpiter, transforma as naves
em ninfas. Durante a noite, Euríalo e Niso se oferecem para informar Eneias sobre
IX
o perigo; eles provocam uma matança no campo inimigo, mas o brilho de um
elmo tomado como espólio trai Euríalo. Os dois amigos caem. No dia seguinte,
Turno irrompe no acampamento troiano; depois de um esforçado combate, se
salva jogando-se ao rio.
Numa assembleia divina, Vênus e Juno discutem; Júpiter deixa a decisão ao des-
tino. Os rútulos continuam o assédio, entretanto Eneias volta da Etrúria com uma
frota muito fortalecida. Durante a viagem vão ao seu encontro as ninfas que antes
eram suas naves e lhe informam sobre o perigo que os seus correm. Diante de
X sua aparição, os rútulos abandonam o assédio. Na batalha que segue, Turno mata
Palante; Eneias, em honra do morto, mata muitos inimigos. Dado que Juno desvia
Turno da aglomeração, então é Mezêncio que suporta o peso principal do com-
bate, até que seja ferido por Eneias. Depois que seu filho Lauso é morto por esse,
Mezêncio se lança novamente à batalha e é morto pelo troiano.
Eneias consagra a Marte as armas de Mezêncio e envia a Evandro o cadáver de Pa-
lante com uma escolta de honra. Ambas as partes sepultam seus mortos. Vênulo
traz uma negativa de Diomedes; enquanto o conselho de guerra de Latino se dis-
XI cute com palavras, Eneias ataca a cidade. Turno deixa a cavalaria sob o comando
de Mesapo e Camila e coloca-se em marcha com seus soldados de infantaria para
preparar uma emboscada. Apenas diante da notícia da morte de Camila ele corre
em ajuda aos seus. O início da noite põe fim à matança.
Turno se decide pelo combate singular com Eneias que, de pronto, aceita a pro-
posta. O pacto fracassa, apesar de concluído solenemente, pois Juno intervém
com a ajuda de Juturna, irmã de Turno. Um falso prodígio leva o adivinho Tolum-
nio a arremessar uma lança. Uma flecha acerta Eneias que quer separar os con-
tendores. Começa assim uma série de êxitos para Turno, até o retorno de Eneias,
XII
curado por sua mãe, Vênus. Então, Juturna trata de salvar seu irmão, tomando o
aspecto de um auriga. Somente quando Eneias põe fogo na cidade e Amata de-
sesperada se suicida, Turno enfrenta seu adversário, porém sem a menor chance.
Eneias está disposto a deixar com vida o ferido, quando vê que leva consigo as
armas de Palante e daí cumpre a vingança devida.
35
Filha de Taumas e Electra, mensageira de Juno.
Tempo
O tempo da Eneida não é cronológico, isto é, os acontecimentos não seguem
uma ordem crescente temporal, do evento mais longínquo ao mais próximo no
tempo. Ao contrário, há uma calculada desorganização do tempo narrativo a que
os antigos chamavam de narrativa in medias res (em meio aos acontecimentos).
Assim, o que se observa logo após a proposição do poema no primeiro canto é
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Literatura Latina
Na Eneida, canto primeiro, versos 34-35, uma primeira indicação temporal não
pode ser notada imediatamente, pois se trata de um pressuposto temporal
que indica anterioridade ao que está sendo narrado: “Mal a Sicília perderam de
vista e contentes rumavam / para alto mar, apartando com as quilhas as ondas
salobres [...]” (VIRGÍLIO, 1981, p. 19), porém há que se observar que nada foi
falado dos fatos antecedentes à partida da Sicília.
Ordem cronológica
Canto II Canto III Canto I Canto IV Canto V
In medias res
Forma
Métrica
O longo poema épico de Virgílio foi composto por versos hexâmetros datíli-
cos seguindo, pois, este esquema métrico:
— |— |— |— |— |—
Hexâmetro datílico.
Deve-se observar que tal esquema não pode ser tão rígido, pois que a mo-
notonia poderia tomar conta da composição. A variação rítmica, portanto, de-
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Épica
Dimensão
A Eneida é composta por doze cantos, cada um deles com o seguinte número
de versos:
Canto Versos
I 756
II 804
III 718
IV 705
V 871
VI 901
VII 817
VIII 731
IX 818
X 908
XI 915
XII 952
Total 9 896
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Literatura Latina
Textos complementares
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Épica
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Literatura Latina
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Épica
A lenda de Eneias
(CONTE, 1994)
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Literatura Latina
Dicas de estudo
Ler a Poética de Aristóteles e observar atentamente a relação existente en-
tre epopeia e tragédia, verificando que as partes qualitativas da poesia
épica estão contidas nas da tragédia.
Tendo sido começado quando a Gestapo invadia a Áustria em 1938, esse ro-
mance moderno de Broch narra as últimas horas (18) de Virgílio, antes de morrer,
começando com a sua chegada ao porto de Brundísio na Apúlia, sudeste da Itália,
e vai até o seu falecimento, na tarde do dia seguinte, no palácio de Augusto.
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