Deus Da Carnificina - Yasmina Reza

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O Deus da carnificina

Yasmina Rezza

Tradução: Eloisa Araújo RIbeiro


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Verônica Hortiz
Michel Hortiz
Annette Reis
Alain Reis

(entre 40 e 50 anos)

Uma sala.
Nada de realismo.
Nada de elementos inúteis.
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Os Hortiz e os Reis, sentados frente a frente.


Deve-se sentir de cara que se está na casa dos Hortiz e que os dois casais
acabam de se conhecer.

Ao centro, uma mesinha, coberta de livros de arte.


Dois grandes buquês de tulipas em vasos.

Reina uma atmosfera séria, cordial e tolerante.

VERÔNICA Então, nossa declaração… Vocês farão a de vocês


também, claro… «No dia 3 de novembro, às 17h
30, na praça Das Flores, depois de uma altercação
verbal, Ferdinando Reis, de 11 anos, armado com
um pedaço de pau, bateu no rosto de nosso filho,
Bruno Hortiz. As consequências desse ato são,
além do inchaço do lábio superior, a fratura dos
dois incisivos, com lesão do nervo do incisivo
direito».

ALAIN Armado?

VERÔNICA Armado? Não gosta de armado, o que colocamos,


Michel, munido, dotado, munido de um pedaço de
pau, fica bom?

ALAIN Munido, é.

MICHEL Munido de um pedaço de pau.


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VERÔNICA Munido. A ironia é que sempre consideramos a


Praça Das Flores como um lugar seguro, ao
contrário do Parque Monte Verde.

MICHEL É verdade. Sempre dissemos: o Parque Monte


Verde, não, a Praça Das Flores, sim!

VERÔNICA Para você ver. (corrigindo)Munido. Em todo o


caso, somos gratos por terem vindo. Não adianta
nada ficarmos num impasse emocional.

ANNETTE Somos nós que agradecemos. Nós que


agradecemos.

VERÔNICA Não acho que seja necessário agradecer. Por sorte,


ainda existe uma arte de viver em sociedade, não
é mesmo?

ALAIN Que nossos filhos parecem não ter assimilado.


Enfim, pelo menos o nosso!

ANNETTE É, o nosso!... E como vai ficar o dente com o


nervo atingido?

VERÔNICA Ainda não sabemos. Estão cautelosos quanto ao


prognóstico. Aparentemente o nervo não está
completamente exposto.

MICHEL Só um ponto ficou exposto.

VERÔNICA É. Uma parte está exposta e a outra ainda está


protegida. Por isso, por enquanto, não vão matar o
nervo.

MICHEL Vão tentar dar uma chance ao dente.

VERÔNICA Seria melhor mesmo evitar a obturação do canal.

ANNETTE Claro…

VERÔNICA Por enquanto ele vai ficar em observação, para


que o nervo tenha uma chance de se recuperar.
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MICHEL Por ora, vão colocar coroas em cerâmica.

VERÔNICA De qualquer maneira, não se pode fazer implantes


antes dos dezoito anos.

MICHEL De jeito nenhum.

VERÔNICA Implantes definitivos não podem ser feitos antes


do fim da fase de crescimento.

ANNETTE Claro. Espero que… Espero que dê tudo certo.

VERÔNICA Nós também..

Leve hesitação.

ANNETTE Lindas, estas tulipas.

VERÔNICA São daquela floricultura do Mercado Municipal.


Sabe, aquela pequenininha, bem lá no fundo.

ANNETTE Ah, sei.

VERÔNICA Elas chegam todas as manhãs direto do produtor,


e o preço é ótimo!

ANNETTE É mesmo?

VERÔNICA Sabe, aquela bem lá no fundo.

ANNETTE Sei, sei.

VERÔNICA Sabem que o Bruno não queria denunciar o


Ferdinando.

MICHEL Não, ele não queria.

VERÔNICA Foi impressionante ver aquela criança com o rosto


desfigurado, sem dentes e ainda assim se
recusando a falar.

ANNETTE Imagino.
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MICHEL Ele não queria denunciar também por medo de ser


chamado de dedo-duro pelos colegas, vamos ser
francos, Verônica, não foi só por bravura.

VERÔNICA Está bem, mas pensar nos colegas nessa situação,


também é um ato de bravura.

ANNETTE Com certeza… E como…? Enfim, quero dizer,


como vocês souberam que foi o Ferdinando?…

VERÔNICA Explicamos ao Bruno que ele não estava ajudando


a tal criança, protegendo-a.

MICHEL Dissemos para ele: se essa criança pensa que pode


continuar batendo impunemente, por que você
acha que ela vai parar?

VERÔNICA Dissemos para ele que se fôssemos os pais do tal


garoto, íamos querer ficar sabendo de qualquer
jeito.

ANNETTE Claro.

ALAIN Sim… (seu celular vibra) Me desculpem… (ele se


afasta do grupo; enquanto fala, tira um jornal de
seu bolso.)… Sim Maurício, obrigado por me
lembrar. Bom, no jornal de hoje, vou ler para
você…: «Segundo um estudo publicado na revista
britânica Lancet e retomado ontem no Financial
Times, dois pesquisadores australianos
divulgaram os efeitos colaterais neurológicos do
Antril, anti-hipertensivo dos laboratórios Verenz-
Pharma, que vão da diminuição da audição à
ataxia»…
Mas quem é que faz o clipping aí?... Sim, é muito
chato... Não, mas o que me incomoda mais é a
Assembléia ordinária, vocês têm uma Assembleia
Geral dentro de quinze dias. Fizeram uma
provisão para esse litígio?... Ok… E, Maurício,
Maurício, pergunte ao Depto de Comunicação se
foi publicado em outros lugares … Até daqui a
pouco.
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(ele desliga)… Me desculpem.

MICHEL Você é…

ALAIN Advogado.

ANNETTE E você?

MICHEL Eu sou atacadista de utensílios domésticos,


Verônica é escritora e trabalha meio período numa
livraria de arte e de história.

ANNETTE Escritora?

VERÔNICA Participei de uma obra coletiva sobre a civilização


dos sabeanos, a partir das escavações retomadas
ao fim do conflito entre a Etiópia e a Eritreia.
E agora, em janeiro, vou publicar um livro sobre a
tragédia do Darfur.

ANNETTE Você é especialista em África.

VERÔNICA Eu me interesso por essa parte do mundo.

ANNETTE Vocês têm outros filhos?

VERÔNICA O Bruno tem uma irmã de nove anos, a Camila.


Que está zangada com o pai dela porque ele se
livrou do hamster ontem à noite

ANNETTE Se livrou do hamster?

MICHEL Me livrei. Hamsters fazem um barulho medonho à


noite. São seres que dormem de dia. O Bruno não
aguentava mais, estava ficando maluco com o
barulho que o hamster fazia. Para dizer a verdade,
há muito tempo que eu tinha vontade de me livrar
dele, aí eu pensei: não, agora chega, então eu o
peguei e coloquei na rua. Eu achava que esses
animais gostavam das sarjetas, dos esgotos, nada
disso, ele ficou petrificado na calçada. Na
verdade, não são nem animais domésticos, nem
animais selvagens, não sei qual é o meio natural
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deles. Se forem largados numa clareira, eles


também ficam tristes. Não sei onde podem ser
colocados.

ANNETTE Deixou o pobrezinho lá fora?

VERÔNICA Deixou e disse para a Camila que ele tinha fugido.


Mas ela não acreditou.

ALAIN E de manhã o hamster tinha desaparecido?

MICHEL Desapareceu.

VERÔNICA E você, é de que área?

ANNETTE Sou conselheira em gestão de patrimônio.

VERÔNICA Seria pedir demais… me desculpem por ser tão


direta, que o Ferdinando se desculpasse com o
Bruno?

ALAIN Seria bom que eles se falassem.

ANNETTE Ele tem que se desculpar, Alain. Tem que dizer


para ele que sente muito.

ALAIN Sim, sim, Com certeza.

VERÔNICA Mas ele sente muito?

ALAIN Ele se dá conta do que fez. Não tinha noção do


tamanho do estrago. Ele só tem onze anos.

VERÔNICA Com onze anos, ele já não é nenhum bebê.

MICHEL Também não é um adulto! Não ofereceram nada a


vocês, café, chá, ainda tem cuca, Verô? Vocês
gostam de Cuca? Tem uma cuca excepcional!

ALAIN Eu aceito um café..., forte!

ANNETTE Um copo d'água.


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MICHEL (para Verônica que está saindo) Expresso para


mim também, querida, e traga a cuca.
(depois de hesitar) Eu sempre digo que somos um
monte de argila e cabe a nós moldarmos essa
massa. Talvez só ganhe forma no fim. Vai saber?

ANNETTE Mmm.

MICHEL Vocês têm que provar a cuca. Não é todo dia que
se pode provar uma boa cuca!

ANNETTE É verdade.

ALAIN Você vende o quê?

MICHEL Quinquilharias de mobiliário. Fechaduras,


maçanetas, e artigos domésticos, panelas,
frigideiras…

ALAIN E funciona?

MICHEL Olhe, nunca tivemos anos de euforia, quando


começamos já era difícil. Mas se eu sair todas as
manhãs com minha pasta e meu catálogo,
funciona bem.

ALAIN Sei…

ANNETTE Quando viu que o hamster estava petrificado, por


que não o trouxe de volta para casa?

MICHEL Porque eu não consigo encostar as mãos nele.

ANNETTE Mas o levou para a calçada.

MICHEL Levei dentro de uma caixa e virei. Não consigo


tocar nesses bichos.

Verônica volta com uma bandeja. Bebidas e a cuca.

VERÔNICA Não sei quem pôs a cuca na geladeira.


Mônica coloca tudo na geladeira, não adianta.
O que o Ferdinando disse? Açúcar?
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ALAIN Não, não. É de que a cuca?

VERÔNICA De maçãs e peras.

ANNETTE De maçãs e peras?

VERÔNICA Receita minha. (ela corta a cuca e serve os


pedaços) Está muito gelada, uma pena.

ANNETTE De maçãs e peras, é a primeira vez.

VERÔNICA Maçãs e peras é especial, mas tem mais um


truque.

ANNETTE Ah é?

VERÔNICA A pera tem de ficar mais grossa do que a maçã,


porque a pera cozinha mais rápido que a maçã.

ANNETTE Ah, é isso.

MICHEL Mas ela não contou o verdadeiro segredo.

VERÔNICA Deixe que eles provem.

ALAIN Muito bom. Muito bom.

ANNETTE Suculento.

VERÔNICA ... farofa de castanhas!

ANNETTE Meus parabéns.

VERÔNICA É uma das variações de cuca. Para ser franca, foi


a mãe dele quem me deu a receita.

ALAIN farofa de castanhas, delicioso… Ao menos


pudemos aprender uma receita.

VERÔNICA Eu teria preferido que isso não tivesse custado os


dois dentes do meu filho
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ALAIN Claro, foi o que eu quis dizer!

ANNETTE Maneira curiosa de dizer.

ALAIN De jeito nenhum, eu… (o celular vibra, ele olha a


tela)… Sou obrigado a atender. … Alô
Maurício… Ah não, nada de direito de resposta,
você vai alimentar a polêmica… Foi feita uma
provisão?... Mm, mm… Que perturbações são
essas, o que é ataxia?... E com dosagem normal?...
A quanto tempo sabem disso?... Esse tempo todo
e você não retirou do mercado?... Qual o volume
do negócio?...
Tá, entendo…. Tá certo. (Ele desliga e liga
imediatamente para outro número, enquanto
devora o cuca).

ANNETTE Alain, fique um pouco conosco, por favor.

ALAIN Tá, tá, já vou… (celular) Sérgio?… Eles sabem


dos riscos há dois anos… Um relatório interno,
mas nenhum efeito indesejável foi formalmente
identificado… Não, nenhuma medida de
precaução, não fizeram provisão, nenhuma
palavra no relatório anual.… Andar cabaleante,
problemas de equilíbrio, em suma, parece que
você está bebum o tempo todo.... (ele ri com seu
colaborador)… Volume do negócio, 150 milhões
de dólares… Negar em bloco… Ele queria que
pedíssemos um direito de resposta, aquela anta.
Claro que não pediremos um direito de resposta,
em compensação, se a notícia se espalhar,
podemos fazer um comunicado do tipo é
propaganda difamatória a quinze dias da
Assembléia… Ele vai me ligar de novo… Ok. (ele
desliga)… Na verdade, mal tive tempo de
almoçar.

MICHEL Sirva-se, sirva-se.

ALAIN Obrigado. Estou exagerando. Do que estávamos


falando?
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VERÔNICA Que teria sido mais agradável se tivéssemos nos


encontrado em outras circunstâncias.

ALAIN Ah sim, claro.


Então, essa cuca é de sua mãe?

MICHEL É uma receita de minha mãe, mas foi a Verô quem


fez.

VERÔNICA A mãe dele não mistura peras e maçãs!

MICHEL Não.

VERÔNICA Ela vai ser operada, coitada.

ANNETTE É mesmo? Vai ser operada do quê?

VERÔNICA Do joelho.

MICHEL Vão por uma prótese rotatória de metal e


polietileno. Ela fica se perguntando o que vai
sobrar dela quando for cremada.

VERÔNICA Que maldade!

MICHEL Ela não quer ser enterrada com meu pai. Quer ser
cremada e colocada ao lado de sua mãe, que está
sozinha no litoral. Duas urnas conversando em
frente ao mar. Ha, ha!...

Hesitação sorridente.

ANNETTE Estamos tocados com a generosidade de vocês,


ficamos sensibilizados por vocês tentarem
amenizar a situação em vez de envenená-la.

VERÔNICA Francamente, é o mínimo.

MICHEL É!

ANNETTE Não, não. Quantos pais defendem os filhos com


unhas e dentes, de maneira igualmente infantil. Se
o Bruno tivesse quebrado dois dentes do
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Ferdinando, será que Alain e eu não teríamos uma


reação mais epidérmica? Não sei se seríamos tão
generosos.

MICHEL Claro que seriam!

ALAIN Ela tem razão. Não temos tanta certeza assim,


não.

MICHEL Claro que têm, pois sabemos muito bem que o


contrário poderia ter acontecido.
Hesitação.

VERÔNICA E o Ferdinando, o que ele diz? Como é que ele vê


a situação?

ANNETTE Ele não fala muito. Acho que ele está


desconcertado.

VERÔNICA Ele se dá conta que desfigurou seu colega?

ALAIN Não, não, ele não se dá conta de que desfigurou


seu colega.

ANNETTE Mas por que está dizendo isso? O Ferdinando se


dá conta, sim, claro!

ALAIN Ele se dá conta que teve um comportamento


brutal, não se dá conta de que desfigurou o
colega.

VERÔNICA Você não gosta da palavra, mas infelizmente a


palavra é essa.

ALAIN Meu filho não desfigurou o filho de vocês.

VERÔNICA Seu filho desfigurou nosso filho. Volte aqui às


cinco horas, e dê uma olhada na boca e nos dentes
dele.

MICHEL Momentaneamente desfigurado.


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ALAIN A boca vai desinchar, quanto aos dentes, se for


preciso levá-lo ao melhor dentista, estou pronto
para colaborar…

MICHEL Seguros existem para isso. Nós gostaríamos


mesmo é que os garotos se reconciliassem e que
esse tipo de coisa não se repetisse.

ANNETTE Vamos organizar um encontro.

MICHEL Sim. É isso.

VERÔNICA Em nossa presença?

ALAIN Eles não precisam de escolta. Eles já são


homenzinhos.

ANNETTE “homenzinhos”, Alain, isso é ridículo. Mas não


precisamos estar presentes. Seria melhor que não
estivéssemos, não é mesmo?

VERÔNICA A questão não é se vamos estar ou não estar


presentes. A questão é: eles querem se falar,
querem se explicar?

MICHEL O Bruno quer.

VERÔNICA Mas e o Ferdinando?

ANNETTE A opinião dele não interessa.

VERÔNICA Tem de partir dele.

ANNETTE Ferdinando se comporta como um moleque, não


estamos interessados em seu estado de espírito.

VERÔNICA Se o Ferdinando se encontrar com o Bruno num


ambiente de punição, não vejo o que pode resultar
de positivo daí.

ALAIN Minha senhora, nosso filho é um selvagem. É


difícil dele esperar uma contrição espontânea.
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Bom, sinto muito, tenho de voltar para o


escritório. Annette, você fica, depois me conta o
que decidiram, de todo o modo, não sirvo para
nada. A mulher pensa que a presença do homem é
importante, que a presença do pai é importante,
como se isso servisse para alguma coisa. Homens
são um peso morto, são atrapalhados e
desajeitados... ah, vocês vêem o viaduto daqui ...
Que divertido!

ANNETTE Estou confusa, mas também não posso me


demorar… Meu marido nunca foi um pai de
empurrar carrinho!...

VERÔNICA Que pena. É maravilhoso passear com uma


criança. Passa tão rápido. Você Michel, você
gostava de tomar conta das crianças, e empurrava
o carrinho feliz da vida.

MICHEL Empurrava, empurrava...

VERÔNICA Então, o que decidimos?

ANNETTE Será que vocês podem passar lá em casa por volta


das dezenove e trinta com o Bruno?

VERÔNICA Dezenove e trinta?... O que você acha, Michel?

MICHEL Eu… Se me permitem…

ANNETTE Fale.

MICHEL Acho que é o Fernando quem deveria vir.

VERÔNICA É, eu concordo.

MICHEL Não cabe à vítima se deslocar.

VERÔNICA Isso é verdade.

ALAIN Às dezenove e trinta não posso estar em lugar


nenhum.
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ANNETTE Não precisamos de você, já que não serve para


nada.

VERÔNICA Mas seria bom o pai estar presente.

ALAIN (celular vibra) Está certo, mas hoje à noite, não...


alô?
...O balanço não cita nada. Mas o risco não foi
formalmente estabelecido. Não há prova… (ele
desliga).

VERÔNICA Amanhã?

ALAIN Amanhã estarei viajando.

VERÔNICA A trabalho?

ALAIN Sim, tenho uma audiência fora.

ANNETTE O essencial é que as crianças se falem. Vou levar


o Ferdinando na casa de vocês às dezenove e
trinta e vamos deixar que eles se expliquem. Não?
Não parecem convencidos.

VERÔNICA Se o Fernando não for responsabilizado, eles vão


ficar de cara amarrada um para o outro, e vai ser
um horror.

ALAIN O que quer dizer, minha senhora? O que significa


responsabilizado?

VERÔNICA Seu filho certamente não é um selvagem.

ANNETTE O Ferdinando não é de jeito nenhum um


selvagem.

ALAIN É sim.

ANNETTE Alain, que bobagem, para que dizer uma coisa


dessas?

ALAIN É um selvagem.
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MICHEL Como ele explica seu gesto?

ANNETTE Ele não quer falar sobre isso.

VERÔNICA Ele deveria falar.

ALAIN Minha senhora, ele deveria muitas coisas. Deveria


vir, deveria falar disso, deveria se arrepender...
visivelmente, vocês têm qualidades que nós não
temos, mas nós vamos melhorar, por enquanto,
seja indulgente.

MICHEL Ei, ei! Não vamos descambar na hora da


despedida!

VERÔNICA Estou falando por ele, pelo Ferdinando.

ALAIN Eu entendi muito bem.

ANNETTE Vamos ficar mais dois minutinhos.

MICHEL Mais um cafezinho?

ALAIN Um café, eu aceito.

ANNETTE Para mim também, então. Obrigada.

MICHEL Deixe que eu pego, Verô.

Hesitação.
Annette desloca delicadamente alguns dos muitos livros de arte dispostos
sobre a mesinha.

ANNETTE Estou vendo que você gosta muito de pintura.

VERÔNICA De pintura. De fotos. Tem um pouco a ver com


minha profissão.

ANNETTE Eu também adoro o Francis Bacon.

VERÔNICA Ah, sim, o Bacon.

ANNETTE (virando as páginas)… Crueldade e esplendor.


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VERÔNICA Caos. Equilíbrio.

ANNETTE É…

VERÔNICA O Ferdinando se interessa por arte?

ANNETTE Não tanto quanto deveria… E os seus filhos, se


interessam?

VERÔNICA A gente tenta. Tentamos suprir o que a escola não


oferece.

ANNETTE Sei...
`
VERÔNICA Tentamos fazer com que leiam. Levamos a
concertos, a exposições. Temos a fraqueza de
acreditar no poder pacificador da cultura!

ANNETTE Vocês têm razão…

Volta de Michel com os cafés.

MICHEL A cuca é um bolo ou uma torta? Questão


importante. Fiquei pensando lá na cozinha.
Comam, comam, não vamos deixar esse
pedacinho.

VERÔNICA A cuca é um bolo. A massa não é sovada e sim


misturada com as frutas.

ALAIN Você é uma cozinheira de mão cheia.

VERÔNICA Eu gosto. De cozinha, a gente tem de gostar. Eu


acho que só a torta clássica, a massa aberta, é que
merece ser chamada de torta.

MICHEL E vocês têm outros filhos?

ALAIN Tenho um filho do meu primeiro casamento.


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MICHEL Eu estava me perguntando, embora não tenha


importância, qual foi o motivo da briga. O Bruno
não deu um pio sobre esse ponto.

ANNETTE O Bruno se recusou a deixar o Ferdinando entrar


na sua turma.

VERÔNICA O Bruno tem uma turma?

ALAIN E chamou o Ferdinando de caguete.

VERÔNICA Você sabia que o Bruno tinha uma turma?

MICHEL Não, estou felicíssimo.

VERÔNICA Está felicíssimo por quê?

MICHEL Porque eu fui chefe de turma.

ALAIN Eu também.

VERÔNICA E isso quer dizer o quê?

MICHEL Uns cinco ou seis caras gostam de você e estão


prontos a se sacrificar por você. Como em
Ivanhoé.

ALAIN Como em Ivanhoé, exatamente!

VERÔNICA E quem conhece Ivanhoé hoje em dia?

ALAIN Eles pegam outro cara. Um Homem-Aranha.

VERÔNICA Enfim, estou vendo que vocês sabem mais do que


nós. O Ferdinando não ficou tão quieto quanto
disseram. E por que ele chamou o Ferdinando de
"caguete"? Não, é uma pergunta idiota, uma
pergunta idiota. Aliás, eu não dou a mínima, e não
vem ao caso.

ANNETTE Não podemos nos meter nessas brigas de criança.

VERÔNICA Não é da nossa conta.


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ANNETTE Não.

VERÔNICA Em compensação, o que é da nossa conta é o que


infelizmente aconteceu. A violência é da nossa
conta.

MICHEL Quando eu era chefe de turma, no ginásio, eu bati,


numa briga de homem a homem, no Pedro
Câmara, que era mais forte do que eu.

VERÔNICA Está querendo dizer o que com isso, Michel? Não


tem nada a ver.

MICHEL Não, não, não tem nada a ver.

VERÔNICA Não estamos falando de uma simples briga. As


crianças não brigaram.

MICHEL Com certeza, com certeza. Eu estava só me


lembrando.

ALAIN Não tem muita diferença.

VERÔNICA Ah, tem sim. Se me permite, meu senhor, tem


uma diferença.

MICHEL Tem uma diferença.

ALAIN Qual?

MICHEL Com Pedro Câmara, nós combinamos de brigar.

ALAIN Você quebrou a cara dele?

MICHEL De certa forma.

VERÔNICA Bom, vamos esquecer Pedro Câmara. Vocês me


autorizariam a falar com o Ferdinando?

ANNETTE Mas é claro!


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VERÔNICA Eu não queria fazer isso sem a autorização de


vocês.

ANNETTE Fale com ele. Nada mais normal, não?

ALAIN Boa sorte.

ANNETTE Pare, Alain. Não estou entendendo.

ALAIN A senhora está animada.

VERÔNICA Verônica. Vai ser melhor deixarmos de lado o


senhor e a senhora.

ALAIN Verônica, você está sendo movida por um


impulso pedagógico, que é simpático...

VERÔNICA Se não quiserem que eu fale com ele, eu não falo..

ALAIN Fale sim, dê um sermão nele, faça o que quiser.

VERÔNICA Não entendo como você não liga para isso.

ALAIN Minha senhora…

MICHEL Verônica.

ALAIN Verônica, claro que ligo, e muito. Meu filho


machuca outra criança…

VERÔNICA Voluntariamente.

ALAIN Está vendo, é esse tipo de observação que me tira


do sério. Voluntariamente, é óbvio.

VERÔNICA Mas é aí que está a diferença.

ALAIN A diferença entre o que e o quê? Não estamos


falando de outra coisa. Nosso filho pegou um
pedaço de pau e bateu no seu. Estamos aqui por
isso, não é?

ANNETTE Isso não leva a nada.


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MICHEL É, ela tem razão, esse tipo de discussão não leva a


nada.

ALAIN Que vontade é essa de inserir "voluntariamente"?


Está querendo me dar uma lição?

ANNETTE Escutem aqui, a coisa está degringolando, é


ridículo, meu marido está aflito com outros
negócios, eu volto hoje à noite com o Ferdinando
e vamos deixar as coisas se acertarem
naturalmente.

ALAIN Não estou nem um pouco aflito.

ANNETTE Mas eu estou.

MICHEL Não temos motivos para ficarmos aflitos..

ANNETTE Temos sim.

ALAIN (celular vibra) … Não responda … Sem


comentários … Não, não, não vai retirá-lo! Se o
retirar do mercado, será o responsável. … Retirar
o Antril do mercado é reconhecer sua
responsabilidade! Não há nada nas contas anuais.
Se quiser ser processado por falso balanço e ir
para a rua em quinze dias, retire-o de venda …

VERÔNICA Na festa do colégio, no ano passado, foi o


Ferdinando quem fez o papel do Senhor de…?

ANNETTE Senhor de Pourceaugnac.

VERÔNICA Senhor de Pourceaugnac.

ALAIN Pensaremos nas vítimas depois da Assembleia,


Maurício… Veremos depois da Assembléia em
função do rumo….

VERÔNICA Ele estava formidável.

ANNETTE Sim…
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ALAIN Não vamos retirar o medicamento do mercado


porque três caras andam por aí cambaleando! …
Não responda a nada por enquanto... Sim. Até
daqui a pouco… (desliga e liga para seu
colaborador)

VERÔNICA A gente se lembra bem dele como o Senhor de


Pourceaugnac. Você se lembra, Michel?

MICHEL Claro, me lembro, sim…

VERÔNICA Ele estava engraçado vestido de mulher.

ANNETTE Estava…

ALAIN (ao colaborador)… Estão enlouquecidos, as


rádios estão na cola deles, mande preparar um
comunicado que não seja de jeito nenhum
defensivo, muito pelo contrário, parta para cima
deles, insista no fato que Verenz-Pharma é vítima
de uma tentativa de desestabilização a quinze dias
de sua Assembleia Geral. De onde vem esse
estudo? Por que ele caiu do céu agora?, etc.. Nem
uma palavra sobre o problema de saúde, uma
única pergunta: quem está por trás do estudo?...
Muito bem. (desliga)

Breve hesitação.

MICHEL Eles são terríveis, esses laboratórios. Só lucro,


lucro.

ALAIN Você não devia se meter na minha conversa.

MICHEL Você não é obrigado a conversar na minha frente.

ALAIN Sou sim. Sou obrigado a ter essa conversa aqui.


Contra minha vontade, pode acreditar.

MICHEL Eles empurram a porcaria deles sem a menor


consciência.
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ALAIN No campo terapêutico, todo avanço tem seus


riscos e benefícios.

MICHEL Tá, eu entendo. Mas mesmo assim.


Profissão esquisita, essa sua.

ALAIN Como assim?

VERÔNICA Michel, isso não é da nossa conta.

MICHEL Profissão esquisita.

ALAIN E você, você faz o quê?

MICHEL Eu tenho uma profissão comum.

ALAIN E o que é uma profissão comum?

MICHEL Vendo panelas, já disse.

ALAIN E maçanetas.

MICHEL E descargas de banheiro. E mais um monte de


outras coisas.

ALAIN Ah, descargas de banheiro. Legal. Isso me


interessa.

ANNETTE Alain.

ALAIN Isso me interessa. Descargas de banheiro me


interessam.

MICHEL Por que não?

ALAIN Quantos tipos você tem?

MICHEL Há dois sistemas. O de pressionar e o de puxar.

ALAIN Ah, sim.

MICHEL Depende da alimentação.


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ALAIN É mesmo?

MICHEL Ou a água chega por cima ou chega por baixo.

ALAIN Sei.

MICHEL Posso lhe apresentar um de meus lojistas, um


especialista, se quiser. Mas você terá de ir até o
subúrbio.

ALAIN Você me parece bem competente.

VERÔNICA Vocês pensam em punir o Fernando de algum


modo? Vocês podem continuar o papo de
bombeiro num ambiente mais adequado.

ANNETTE Não estou me sentindo bem.

VERÔNICA O que você tem?

ALAIN Ah, você está pálida, querida.

MICHEL Está um pouco pálida mesmo.

ANNETTE Estou com enjoo.

VERÔNICA Enjoo?... Eu tenho Engov…

ANNETTE Não, não… Vai melhorar…

VERÔNICA O que é que a gente pode…? Coca-cola. Coca é


muito bom. (ela sai para pegar a coca)

ANNETTE Vai melhorar…

MICHEL Ande um pouco. Se movimente.

Ela dá alguns passos.


Verônica volta com a Coca-Cola.

ANNETTE Você acha bom mesmo?...


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VERÔNICA Sim, sim. Dê uns golinhos.

ANNETTE Obrigada…

ALAIN (ele ligou discretamente para seu escritório)… Oi


Marta, é o Alain, me chama o Sérgio, por favor…
Ah é?… Diga para ele me ligar, para me ligar
imediatamente.… (desliga) Coca é bom? É
melhor para a diarréia, não?

VERÔNICA Não só. (para Annette) Tudo bem?

ANNETTE Tudo bem… Minha senhora, se quisermos


repreender nosso filho, faremos isso do nosso
jeito e sem ter de dar satisfação a quem quer que
seja.

MICHEL Com certeza.

VERÔNICA Com certeza o quê, Michel?

MICHEL Eles fazem o que quiserem com o filho deles, eles


são livres.

VERÔNICA Eu não acho.

MICHEL Você não acha o quê, Verô?

VERÔNICA Que eles sejam livres.

ALAIN Olha só! Desenvolva. (celular vibra) Ah, me


desculpem…(ao colaborador) Perfeito… Mas
não esqueça, nada ficou provado, não há nenhuma
certeza … Não se iluda, se a gente se der mal,
Maurício vai em cana em quinze dias e nós com
ele.

ANNETTE Já chega, Alain! Chega de celular agora!


Fique aqui conosco, que merda!

ALAIN Isso, tá bom… Me ligue para ler para mim.


(desliga)
27

O que deu em você, ficou maluca de gritar assim!


O Sérgio ouviu tudo!

ANNETTE Que ótimo! É um saco esse celular o tempo todo!

ALAIN Escute aqui, Annette, já estou sendo bem legal


estando aqui…

VERÔNICA É impressionante.

ANNETTE Vou vomitar.

ALAIN Não, não vai vomitar.

ANNETTE Vou sim…

MICHEL Quer ir ao banheiro?

ANNETTE (para Alain) Ninguém está obrigando você a


ficar…

VERÔNICA Não, você não é obrigado a ficar.

ANNETTE Estou tonta…

ALAIN Olhe para um ponto fixo. Olhe para um ponto


fixo, Totó.

ANNETTE Saia daqui, me deixe em paz.

VERÔNICA Não é melhor ela ir para o banheiro?

ALAIN Vá para o banheiro. Vá para o banheiro, se for


vomitar.

MICHEL Dê um Engov para ela.

ALAIN Será que não foi a cuca?

VERÔNICA Ela é de ontem!

ANNETTE (para Alain) Não encoste em mim!...


28

ALAIN Calma, Totó.

MICHEL Por favor, não fique nervosa à toa?

ANNETTE Para meu marido, tudo o que é casa, escola,


jardim, é função minha.

ALAIN Não é verdade!

ANNETTE É sim. E eu entendo você. É mortal tudo isso. É


mortal.

VERÔNICA Se é tão mortal, por que por filhos no mundo?

MICHEL Talvez o Ferdinando ressinta esse desinteresse.

ANNETTE Que desinteresse?!

MICHEL Foi a senhora quem disse…

Annette vomita violentamente.


Uma golfada brutal e catastrófica que cai, em parte, em Alain.
Respinga também nos livros de arte sobre a mesinha.

MICHEL Vá pegar uma bacia, vá pegar uma bacia!

Verônica corre para pegar uma bacia, enquanto Michel lhe passa a
bandeja dos cafés, na dúvida.
Annette tem um novo espasmo, mas nada sai.

ALAIN Você devia ter ido para o banheiro, Totó, que


absurdo!

MICHEL Acertou em cheio no terno!

Rapidamente, Verônica volta com uma bacia e um pano de chão.


Dão a bacia para Annette.

VERÔNICA Não pode ter sido a cuca, com certeza não foi, a
cuca.

MICHEL Não foi a cuca, é nervoso. Isso é nervoso.


29

VERÔNICA (para Alain) Quer se limpar no banheiro? O


Kokoschka! Ai, meu Deus!

Annette vomita bílis na bacia.

MICHEL Dê um Engov para ela.

VERÔNICA Agora não, ela não pode engolir nada.

ALAIN Onde fica o banheiro?

VERÔNICA Eu mostro para você.

Verônica e Alain saem.

MICHEL É nervoso. É uma crise nervosa. Você é mãe,


Annette. Quer queira quer não. Entendo que fique
angustiada.

ANNETTE Mmm.

MICHEL É o que eu digo, não se pode dominar o que nos


domina.

ANNETTE Mmm…

MICHEL Em mim, aparece na cervical. A cervical fica


travada.

ANNETTE Mmm… (mais um pouco de bílis)

VERÔNICA (voltando com outra bacia dentro da qual há uma


esponja) O que vamos fazer com o Kokoschka?

MICHEL Eu vou limpar com detergente… O problema é


secar… Ou então você limpa com água e coloca
um pouco de perfume.

VERÔNICA Perfume?

MICHEL Ponha meu perfume, eu não uso nunca.


30

VERÔNICA Ele vai entortar.

MICHEL Podemos secar com o secador e esticar com


outros livros por cima. Ou passar, como se faz
com as notas.

VERÔNICA Ai meu Deus!!!

ANNETTE Vou comprar outro para você …

VERÔNICA Não se encontra mais! Está esgotado há muito


tempo!

ANNETTE Estou arrasada…

MICHEL Vamos recuperá-lo. Deixe que eu faço isso, Verô.

Ela passa para ele a bacia de água e a esponja, com nojo.


Michel começa a limpar o livro.

VERÔNICA É uma reedição do catálogo da exposição de


cinquenta e três, em Londres... Tem mais de vinte
anos!

MICHEL Vá pegar o secador. E o perfume. No armário das


toalhas.

VERÔNICA O marido dela está no banheiro.

MICHEL Ele não está pelado! (Ela sai enquanto ele


continua limpando)… Tirei o grosso. Um
pouquinho sobre os Dolgans… Já volto.

Ele sai com a bacia suja.

Verônica e Michel voltam quase juntos.


Ela com o frasco de perfume, ele com uma bacia com água limpa.

Michel termina sua limpeza.


31

VERÔNICA (para Annette) Está melhor?

ANNETTE Estou..

VERÔNICA Posso perfumar?

MICHEL Onde está o secador?

VERÔNICA Ele vai trazer assim que terminar.

MICHEL Vamos esperar. O perfume fica por último.

ANNETTE Eu também posso usar o banheiro?

VERÔNICA Claro. Pode sim, claro.

ANNETTE Não sei como me desculpar…

Ela a acompanha e volta logo.

VERÔNICA Que pesadelo atroz!

MICHEL Ele que não venha se meter demais comigo.

VERÔNICA Ela também é um horror.

MICHEL Menos.

VERÔNICA Ela é falsa.

MICHEL Ela me incomoda menos.

VERÔNICA Todos os dois são um horror. Por que você fica do


lado deles? (ela perfuma as tulipas)

MICHEL Eu não fico do lado deles, ora essa?

VERÔNICA Você contemporiza, fica em cima do muro.

MICHEL De jeito nenhum!


32

VERÔNICA Fica sim. Fica contanto suas façanhas de chefe de


bando, diz que eles são livres para fazer o que
quiserem com o filho deles, quando o garoto é
uma ameaça, quando um garoto é uma ameaça à
sociedade, isso diz respeito a todo o mundo. Não
acredito que ela vomitou em cima de meus livros!
(ela perfuma o Kokoschka)

MICHEL (indicando) Os Dolgans…

VERÔNICA Quando a gente sente que vai botar pra fora, a


gente vai para o banheiro.

MICHEL … O Picasso.

VERÔNICA (ela perfuma tudo) Que nojo.

MICHEL Eu já estava por aqui com as descargas de


banheiro

VERÔNICA Você foi perfeito.

MICHEL Respondi bem, não foi?

VERÔNICA Perfeito. O especialista foi perfeito.

MICHEL Que pentelho. Como ele chama ela?!...

VERÔNICA Totó.

MICHEL Ah é, Totó!

VERÔNICA Totó! (Ambos riem)

ALAIN (voltando com o secador na mão) Pois é, eu a


chamo de Totó.

VERÔNICA Oh… Me desculpe, não fiz por mal… É fácil rir


dos apelidos dos outros! E o nosso, como é
mesmo o nosso, Michel? Com certeza é bem pior

ALAIN Queria o secador?


33

VERÔNICA Obrigada.

MICHEL Obrigado. (se apoderando do secador) A gente se


chama de darjeeling, como o chá. É bem mais
ridículo, né!

Michel liga o secador e começa a secar os livros.


Verônica estica as folhas molhadas.

MICHEL Alise bem, alise bem.

VERÔNICA (por cima do barulho e enquanto ela alisa) Como


ela está, coitada, melhor?

ALAIN Está melhor.

VERÔNICA Reagi muito mal, estou envergonhada.

ALAIN Não, não.

VERÔNICA Eu fui péssima com a história do meu catálogo,


não me perdoo.

MICHEL Vire a página. Estique, estique bem.

ALAIN Assim vai rasgar.

VERÔNICA É verdade… Chega, Michel, está seco.


A gente se apega de um modo absurdo às coisas, e
no fundo nem sabemos por quê.

Michel fecha o catálogo e ambos o cobrem com um montinho de livros


grossos.
Michel seca o Foujita, os Dolgans etc…

MICHEL Pronto! Impecável.


E de onde vem, Tutu?

ALAIN De uma canção de Paolo Conte que faz wa, wa,


wa.
34

MICHEL Eu conheço! Eu conheço! (cantarola) Wa, wa,


wa!... Totó! Ha! ha! ... E o nosso, é uma variação
de darling, depois de uma viagem de Lua de mel
na Índia. Uma bobagem!

VERÔNICA Será que eu não deveria ir vê-la?

MICHEL Vá darjeeling.

VERÔNICA Vou lá?... (volta de Annette)… Oh Annette! Eu


estava preocupada… Está melhor?

ANNETTE Acho que sim.

ALAIN Se não tem certeza, fique longe da mesa.

ANNETTE Deixei a toalha na banheira, não sabia onde


colocar.

VERÔNICA Ótimo.

ANNETTE Conseguiram limpar. Eu sinto muito.

MICHEL Está tudo perfeito. Tudo em ordem.

VERÔNICA Annette, me desculpe, eu quase não cuidei de


você. Estava focada no meu Kokoschka…

ANNETTE Não se preocupe.

VERÔNICA Tive uma péssima reação.

ANNETTE Não, não… (após uma hesitação constrangida)…


Eu pensei numa coisa lá no banheiro…

VERÔNICA No quê?

ANNETTE Acho que passamos rápido demais para… Enfim,


quero dizer….

MICHEL Diga, Annette, diga.

ANNETTE O insulto é também uma agressão.


35

MICHEL Claro.

VERÔNICA Depende, Michel.

MICHEL É, depende.

ANNETTE O Ferdinando nunca foi violento. Ele não pode ter


ficado violento sem um motivo.

ALAIN Ele foi tratado de caguete!... (celular vibra)…


Com licença!... (se afasta com sinais de desculpas
exagerados para Annette)… Sim... Com a
condição que nenhuma vítima fale. Nada de
vítimas. Não quero que fique do lado das
vítimas!... Negamos tudo e se for preciso
atacamos o jornal… Vamos enviar o comunicado
para você por fax, Maurício. (desliga)… Se
alguém me chamar de caguete, eu viro bicho.

MICHEL A não ser que seja verdade.

ALAIN O quê?

MICHEL Quer dizer, se for justificado.

ANNETTE Meu filho é um caguete?

MICHEL Não, não, eu estava brincando.

ANNETTE O de vocês também, se levarmos por esse lado.

MICHEL Como assim, o nosso também?

ANNETTE Ele denunciou o Fernando, não foi?

MICHEL Com a nossa insistência!

VERÔNICA Michel, a questão não é essa.

ANNETTE Não importa. Com a insistência de vocês ou não,


ele o denunciou.
36

ALAIN Annette.

ANNETTE O que, Annette? (para Michel)Você acha que meu


filho é um caguete?

MICHEL Eu não acho nada.

ANNETTE Então, se não acha nada, não diga nada. Não faça
insinuações.

VERÔNICA Annette, vamos ficar calmos. Michel e eu, nós


estamos nos esforçando para sermos
conciliadores, e moderados…

ANNETTE Moderados nem tanto.

VERÔNICA Ah não? Por quê?

ANNETTE Aparentemente moderados.

ALAIN Totó, eu tenho mesmo de ir…

ANNETTE Vá mesmo, seu covarde.

ALAIN Annette, no momento corro o risco de perder meu


maior cliente, então, essas picuinhas de pais
responsáveis…

VERÔNICA Meu filho perdeu dois dentes, dois incisivos.

ALAIN Tá, tá, já deu para entender.

VERÔNICA Sendo que um deles, definitivamente.

ALAIN Ele vai ganhar outros, vão colocar outros nele! E


bem melhores! Não estouraram o tímpano dele!

ANNETTE Estamos errados em não levar em conta a origem


do problema.

VERÔNICA Não tem origem. Só uma criança de onze anos


que bateu em outra. Com um pedaço de pau.
37

ALAIN Armado com um pedaço de pau.

MICHEL Nós retiramos essa palavra.

ALAIN Só retiraram porque fizemos uma objeção.

MICHEL Retiramos sem discutir.

ALAIN Uma palavra que exclui, deliberadamente, o erro,


o mal jeito, que exclui a infância.

VERÔNICA Acho que não vou conseguir suportar esse tom.

ALAIN A gente não se entendeu desde o início.

VERÔNICA Meu senhor, a coisa que eu mais odeio é ser


criticada quando eu estou certa. A palavra armado
não convinha, nós a trocamos. No entanto, se nos
restringirmos à estrita definição da palavra, seu
uso não é abusivo.

ANNETTE O Ferdinando foi insultado e reagiu. Se me


atacam, eu me defendo, sobretudo se estou
sozinha diante de uma turma.

MICHEL Botar os bofes pra fora deixou você bem


animadinha, hein?

ANNETTE O senhor se dá conta da grosseria dessa frase.

MICHEL Somos pessoas civilizadas. Nós quatro, eu tenho


certeza disso. Não vamos ficar irritados, amolados
à toa.

VERÔNICA Oh, Michel, chega! Vamos parar de


contemporizar. Já que somos aparentemente
moderados, não vamos ser mais!

MICHEL Não, não, eu me recuso a descer a ladeira.

ALAIN Que ladeira?


38

MICHEL A ladeira lamentável onde esses babaquinhas nos


puseram! É isso!

ALAIN Receio que a Verô não vá aderir a essa visão das


coisas.

VERÔNICA Verônica!

ALAIN Perdão.

VERÔNICA E o Bruno agora é um babaquinha, coitado.


É o cúmulo!

ALAIN Bom, agora eu tenho que ir mesmo.

ANNETTE Eu também.

VERÔNICA Podem ir, podem ir, eu desisto.

O telefone dos Hortiz toca.

MICHEL Alô?... Ah, mamãe… Não, não, estamos com


amigos, mas me diga uma coisa… Sim, suprima,
faça o que eles disseram… Está tomando Antril?!
Espere um pouco, espere, mamãe, não desligue….
(para Alain) É Antril, sua porcaria? Minha mãe
está tomando!...

ALAIN Milhares de pessoas tomam.

MICHEL Com esse você para imediatamente. Está ouvindo,


mamãe? Agora mesmo… Não discuta. Depois eu
explico… Diga para o doutor Perolo que fui eu
quem proibiu… Por que vermelhas? … Para que
vejam você? … Mas que bobagem… Bom, nos
falamos daqui a pouco. Um beijo, mamãe. Eu ligo
para você. (ele desliga)… Ela alugou bengalas
vermelhas para não ser atropelada por caminhões,
como se ela fosse, no estado em que está, passear
à noite por uma estrada. Receitaram Antril para
sua hipertensão!
39

ALAIN Se ela toma Antril e parece normal, vou citá-la


como testemunha.
Eu não estava com uma echarpe? Ah, está aqui.

MICHEL Não estou gostando nem um pouco desse seu


cinismo. Se minha mãe apresentar o menor
sintoma, vai me ver a frente de uma ação coletiva.

ALAIN Já vamos ter uma, de todo o modo.

MICHEL É o que eu espero.

ANNETTE Até logo, minha senhora…

VERÔNICA Não adianta a gente se comportar bem. A


honestidade é uma idiotice, que nos deixa fracos e
desarmados…

ALAIN Bom, vamos Annette, já chega de pregações e


sermões por hoje.

MICHEL Podem ir, Podem ir. Mas antes quero dizer só uma
coisa: desde que conheci vocês, me parece que o,
como ele se chama mesmo, Ferdinando, me
parece que ele tem circunstâncias bem atenuantes.

ANNETTE Quando você matou o hamster…

MICHEL Matou?!

ANNETTE É.

MICHEL Eu matei o hamster?!

ANNETTE Matou. Está tentando nos culpar, fica bancando o


virtuoso, mas você mesmo é um assassino.

MICHEL Mas eu não matei o hamster, absolutamente!

ANNETTE Pior. Deixou o pobrezinho tremendo de medo


num meio hostil. O coitadinho deve ter sido
comido por um cachorro ou por um rato.
40

VERÔNICA Isso é verdade! Isso é verdade!

MICHEL Como assim, isso é verdade!

VERÔNICA Isso é verdade. O que você quer! Não gosto nem


de pensar no que deve ter acontecido com esse
bicho.

MICHEL Pensei que o hamster fosse ficar feliz em


liberdade, para mim, ele ia ficar feliz da vida
correndo na sarjeta!

VERÔNICA Não foi isso o que ele fez.

ANNETTE E você o abandonou.

MICHEL Não consigo pegar nesses bichos! Não consigo


encostar nessa espécie, mas que merda, você sabe
muito bem disso, Verô!

VERÔNICA Ele tem medo dos roedores.

MICHEL É, tenho pavor dos roedores, os répteis me deixam


apavorado, não tenho a menor afinidade com nada
que fique perto do chão! É isso!

ALAIN (para Verônica) E você, por que não desceu para


buscá-lo?

VERÔNICA Mas eu não sabia de nada, ora! Michel só disse


para as crianças e pra mim que o hamster tinha
fugido, no dia seguinte. Eu desci imediatamente,
imediatamente, dei a volta no quarteirão, fui até à
garagem.

MICHEL Verônica, é o cúmulo ficar de repente na berlinda


por causa dessa história de hamster que você
achou bacana contar. É um assunto pessoal que só
interessa a nós e não tem nada a ver com a
situação presente! E acho inconcebível ser
chamado de assassino! E dentro de minha própria
casa.
41

MICHEL Uma casa cujas portas eu abro, cujas portas eu


escancaro, num espírito de conciliação, a pessoas
que deveriam me agradecer!

ALAIN Vocês continuam se jogando confetes, que


maravilha.

ANNETTE Não sente remorso?

MICHEL Não sinto o menor remorso. Esse bicho sempre


me repugnou. Estou contentíssimo que ele tenha
sumido

VERÔNICA Michel, que ridículo.

MICHEL O que é que é ridículo? Ficou maluca, você


também? O filho deles dá umas porradas no
Bruno e ficam me enchendo o saco por causa de
um hamster?

VERÔNICA Você agiu muito mal com o hamster, não pode


negar.

MICHEL Estou cagando para esse hamster!

VERÔNICA Não vai poder fazer isso hoje à noite pra sua filha.

MICHEL Deixe ela vir, aquela lá! Não vou deixar que
minha conduta seja ditada por uma fedelha de
nove anos!

ALAIN Nisso eu concordo com ele, cem por cento.

VERÔNICA É lastimável.

MICHEL Cuidado Verônica, cuidado, até agora eu me


segurei, mas falta pouco para eu explodir.

ANNETTE E o Bruno?

MICHEL O que é que tem, o Bruno?


42

ANNETTE Ele não está triste?

MICHEL O Bruno tem outras preocupações, na minha


opinião.

VERÔNICA O Bruno era menos ligado a Rói-rói.

MICHEL Que nome mais grotesco, esse também!

ANNETTE Se não sente remorso, por que quer que nosso


filho sinta?

MICHEL Vou dizer uma coisa, já estou por aqui com essas
deliberações babacas. Quisemos ser simpáticos,
compramos tulipas, minha mulher me fantasiou
como um cara certinho, mas na verdade não tenho
o menor autocontrole e sou totalmente
temperamental.

ALAIN Nós todos somos.

VERÔNICA Não, não. Sinto muito, nós todos uma vírgula.

ALAIN Você, não? Então tá.

VERÔNICA Eu não, graças a Deus.

MICHEL Você não darji, você não, você é uma mulher


evoluída, nunca sai da linha.

VERÔNICA Por que está me agredindo?


`
MICHEL Não estou agredindo você. Muito pelo contrário.

VERÔNICA Está sim, está me agredindo, sabe disso.

MICHEL Você organizou esse Happy Hour e eu fui


arrebanhado…

VERÔNICA Você foi arrebanhado?...

MICHEL Fui.
43

VERÔNICA É abominável.

MICHEL De jeito nenhum. Você está militando pela


civilização, a honra é toda sua.

VERÔNICA Eu milito pela civilização, perfeitamente! E


felizmente tem gente que faz isso! (Quase
chorando) Você acha melhor ser um
temperamental?

ALAIN Ora, ora...

VERÔNICA (idem) É normal criticar alguém por não ser


temperamental?...

ANNETTE Ninguém disse isso. Ninguém criticou você por


isso.

VERÔNICA Criticou sim!... ( ela chora)

ALAIN Não, não!

VERÔNICA O que devíamos fazer? Dar queixa? Não nos


falarmos e nos matarmos uns aos outros por
intermédio do seguro?

MICHEL Pare, Verô…

VERÔNICA Parar com o quê?!...

MICHEL É desproporcional….

VERÔNICA Não estou nem aí! A gente se esforça para não ser
mesquinho… e acaba humilhado e completamente
sozinho…

ALAIN (tendo o celular vibrado)… Sim… «Que eles


provem!»…. «Provem».... Mas acho melhor não
responder…

MICHEL Estamos o tempo todo sozinhos! Por toda parte!


Quem quer um golinho de congnac?
44

ALAIN …Maurício, estou numa reunião, eu ligo para o


escritório… (corta)

VERÔNICA É isso. Eu vivo com um ser completamente


negativo.

ALAIN Quem é negativo?

MICHEL Eu.

VERÔNICA Foi a pior idéia do mundo! Nunca deveríamos ter


feito essa reunião!

MICHEL Eu disse para você.

VERÔNICA Você me disse?

MICHEL Disse.

VERÔNICA Você me disse que não queria fazer essa reunião?!

MICHEL Eu não achava que era uma boa ideia.

ANNETTE Era uma boa ideia…

MICHEL Por favor!... (levantando a garrafa de rum)


Alguém vai querer?...

VERÔNICA Você me disse que não era uma boa ideia,


Michel?!

MICHEL Me parece que sim.

VERÔNICA Parece que sim!

ALAIN Só um dedinho.

ANNETTE Você não tem que ir embora?

ALAIN Posso beber um copinho, já que chegamos a esse


ponto.
(Michel serve Alain).
45

VERÔNICA Olhe nos meus olhos e repita que não estávamos


de acordo sobre essa questão!

ANNETTE Calma, Verônica, calma, isso não tem sentido…

VERÔNICA Quem me impediu de comer a cuca hoje de


manhã? Quem disse, vamos guardar o resto da
cuca para as visitas?! Quem disse isso?!

ALAIN Que simpático.

MICHEL Qual a relação?

VERÔNICA Como assim, qual a relação?!

MICHEL Quando recebemos pessoas, recebemos pessoas.

VERÔNICA Está mentindo, está mentindo! Ele está mentindo!

ALAIN Sabem de uma coisa, minha mulher teve de me


arrastar. Quando somos criados numa ideia
JohnWayniana da virilidade, não temos vontade
de acertar esse tipo de situação com conversa.

MICHEL Ha, ha!

ANNETTE Pensei que o modelo fosse Ivanhoé.

ALAIN É da mesma linhagem.

MICHEL É complementar.

VERÔNICA Complementar! Até onde você vai se humilhar,


Michel!

ANNETTE Arrastei você para nada, obviamente.

ALAIN Estava esperando o quê, Totó? –Esse apelido é


ridículo mesmo - Uma revelação da harmonia
universal?
Muito bom esse congnac.
46

MICHEL Ah! Não é! Remy Martin, quinze anos, direto da


França.

VERÔNICA E as tulipas, quem foi? Eu disse que era uma pena


não termos mais tulipas, mas não pedi que você
despencasse para o mercado de manhãzinha.

ANNETTE Não fique nesse estado Verônica, é bobagem.

VERÔNICA Ele trouxe as tulipas! Só ele!


E nós duas, não temos o direito de beber?

ANNETTE Nós também queremos, Verônica e eu.


É engraçado, um parêntesis, alguém se valer de
Ivanhoé e de John Wayne e não ser capaz de
segurar um ratinho nas mãos.

MICHEL Parou com esse hamster! Parou!... (Ele serve um


copo de congnac para Annette)

VERÔNICA Ha, ha! É verdade, é engraçado!

ANNETTE E ela?

MICHEL Não acho que seja necessário.

VERÔNICA Me sirva, Michel.

MICHEL Não.

VERÔNICA Michel!

MICHEL Não.

Verônica tenta arrancar a garrafa das mãos dele.


Michel resiste.

ANNETTE Mas o que é que está acontecendo, Michel?!

MICHEL Está bem, tome! Beba, beba, não estou nem aí.

ANNETTE O álcool faz mal para você?


47

VERÔNICA É excelente. De todo o modo, o que pode ser


ruim?... (ela desmorona)

ALAIN Bom… Então, não sei…

VERÔNICA (para Alain)… Meu senhor, enfim…

ANNETTE Alain.

VERÔNICA Alain, nosso santo não bate, mas olhe só, eu vivo
com um homem que decidiu que a vida é
medíocre e ponto final, é muito difícil viver com
um homem que se acomodou nessa decisão, que
não quer mudar nada, não se entusiasma com
nada…

MICHEL Ele não está nem aí, não está nem aí mesmo.

VERÔNICA A gente precisa acreditar… acreditar numa


possível melhora, não?

MICHEL É a última pessoa a quem você pode contar tudo


isso.

VERÔNICA Eu falo com quem eu quiser, que merda!

MICHEL (o telefone toca) Quem é que vai encher o saco


agora?… Sim, mamãe… Ele está bem. Enfim, ele
está bem, desdentado, mas está bem… Está sim,
está sentindo dor. Está com dor, mas vai passar.
Mamãe, estou ocupado agora, depois ligo para
você.

ANNETTE Ele ainda sente dor?

VERÔNICA Não.

ANNETTE Por que ele deixa a mãe preocupada?

VERÔNICA Ele não consegue fazer de outro jeito. Tem


sempre que deixar a coitada da mãe preocupada.
48

MICHEL Agora já chega Verônica! Que psicodrama é esse?

ALAIN Verônica, será que a gente se interessa por outra


coisa que não por nós mesmos? Nós todos
gostaríamos de acreditar numa melhora possível,
da qual seríamos o artesão sem sermos
beneficiados com ela. Será que isso existe?
Alguns homens se arrastam, é a maneira deles,
outros recusam ver o tempo passar, dão duro, que
diferença faz? Os homens lutam até morrer. A
educação, as desgraças do mundo… Você escreve
um livro sobre o Darfur, bom, entendo que
alguém possa se dizer, olhe, vou pegar um
massacre e vou escrever sobre isso. A gente se
salva como pode.

VERÔNICA Não escrevo esse livro para me salvar. Você não o


leu, não sabe sobre o que é.

ALAIN Não importa.

Hesitação.

VERÔNICA Esse perfume tem um cheiro horrível!...

MICHEL Insuportável.

ALAIN Você pesou a mão.

ANNETTE Como assim?

VERÔNICA Não é com você. Fui eu quem perfumou


neuroticamente.… E por que não podemos ser
leves, por que as coisas têm de ser sempre
extenuantes?...

ALAIN Você pensa demais. As mulheres pensam demais.

ANNETTE Resposta original, aposto que ficou atordoada com


essa.
49

VERÔNICA Não sei o que significa pensar demais. E não sei


para que a existência serviria sem uma concepção
moral do mundo.

MICHEL Olhem só minha vida!

VERÔNICA Cale a boca! Cale a boca! Eu detesto essa


conivência infame! Você me dá nojo

MICHEL Um pouco de humor, por favor.

VERÔNICA Não tenho o menor humor. E não pretendo ter.

MICHEL É o que eu digo, o casal, a prova mais terrível que


Deus pode nos infligir.

ANNETTE Perfeito.

MICHEL O casal e a vida familiar.

ANNETTE Você não tem de partilhar seus pontos de vista


conosco. Acho até mesmo um pouco indecente.

VERÔNICA Ele não se incomoda com isso.

MICHEL Você não concorda?

ANNETTE Essas considerações estão fora de propósito.


Alain, diga alguma coisa.

ALAIN Ele tem o direito de pensar o que quiser.

ANNETTE Sim, mas não é obrigado a fazer propaganda.

ALAIN Está bem, bom, talvez…

ANNETTE Estamos nos lixando para a vida conjugal deles.


Estamos aqui para resolver um problema das
crianças, estamos nos lixando para a vida conjugal
deles.

ALAIN Está bem, enfim…


50

ANNETTE Enfim o quê? O que você quer dizer?

ALAIN Está ligado.

MICHEL Está ligado! Claro que está ligado!

VERÔNICA Que quebrem os dois dentes do Bruno está ligado


com nossa vida conjugal?!

MICHEL É óbvio.

ANNETTE Não estamos acompanhando o raciocínio.

MICHEL Invertam a frase. E vejam a situação em que


estamos. Os filhos absorvem nossa vida, e a
desagregam. Os filhos nos levam ao desastre, é
inevitável. Quando a gente vê casais embarcando
no casamento rindo, a gente se diz, eles não
sabem de nada, coitados, estão contentes.
Ninguém nos diz nada no início. Eu tenho um
amigo do exército que vai ter um filho com uma
moça. Eu disse para ele, um filho na nossa idade,
que loucura! Os dez, quinze anos que nos restam
de bons antes do câncer ou do AVC, você vai se
encher o saco com um pirralho?

ANNETTE Você não pensa assim.

VERÔNICA Pensa, sim.

MICHEL Claro que penso. Penso até pior.

VERÔNICA Sim.

ANNETTE Você está cada vez mais sórdido, Michel.

MICHEL Ah é? Ha, ha!

ANNETTE Pare de chorar, Verônica, não está vendo que ele


está adorando isso.

MICHEL (para Alain que enche seu copo vazio) Encha,


encha, excepcional, não?
51

ALAIN Excepcional.

MICHEL Posso lhe oferecer um charuto?...

VERÔNICA Não, nada de charuto aqui!

ALAIN Que pena.

ANNETTE Você não ia fumar um charuto, Alain!

ALAIN Eu faço o que eu quiser, Annette, se quiser aceitar


um charuto, aceito um charuto. Só não vou fumar
para não irritar a Verônica que já está com os
nervos à flor da pele. Ela tem razão, pare de
choramingar, quando uma mulher chora, um
homem é logo levado à loucura. Embora esse
ponto de vista do Michel, sinto dizer, seja
perfeitamente fundado. (vibração do celular) …
Oi, Sérgio… Pode ler… Ponha o local, o dia…, e
uma hora precisa …

ANNETTE Que inferno!

ALAIN (afastando-se e com a voz abafada para escapar


da raiva dela)… A hora em que for enviar.
Tem que ser quente, saindo do forno.… Não, ‘se
espanta, não’. ‘Denuncia’. 'Se espanta' é fraco.…

ANNETTE É isso de manhã à noite, de manhã à noite,


agarrado a esse celular! Esse celular se enfia na
nossa vida o tempo todo!

ALAIN É… Um momentinho… (cobrindo o telefone)…


Annette, é importante! ….

ANNETTE É sempre muito importante. O que acontece fora é


sempre mais importante.

ALAIN (retomando)…Continue… Sim… ‘Procedimento’,


não, ‘Manobra’. Uma manobra, que surge a
quinze dias do balanço anual, etc.…
52

ANNETTE Na rua, à mesa, em qualquer lugar…

ALAIN …Um estudo entre aspas! Ponha o estudo entre


aspas.…

ANNETTE Não vou dizer mais nada. Capitulação total. Estou


com vontade de vomitar de novo.

MICHEL Onde está a bacia?

VERÔNICA Não sei.

ALAIN …É só me citar: «Trata-se de uma lamentável


tentativa de manipulação da cotação…»

VERÔNICA Está aqui. Por favor, ponha pra fora.

MICHEL Verô.

VERÔNICA Está tudo bem. Estamos equipados agora.

ALAIN «… da cotação e de desestabilização de meu


cliente», afirma o doutor Reis, advogado da
Companhia Verenz-Pharma… A.F.P, Reuter,
imprensa generalista, imprensa especializada, cor
de rosa.… (desliga)

MICHEL Ela quer vomitar de novo.

ALAIN Mas o que é que você tem?

ANNETTE Seu carinho é tocante.

ALAIN Estou preocupado!

ANNETTE Me desculpe. Não tinha entendido.

ALAIN Oh, Annette, por favor! Nós não vamos começar


também! Eles estão brigando, o casamento deles
está desabando, não somos obrigados a competir
com eles!
53

VERÔNICA Quem lhe deu o direito de dizer que o nosso


casamento está desabando! Quem lhe deu o
direito?

ALAIN (celular vibra)… Acabaram de ler para mim.


Vamos enviar para você, Maurício…
Manipulação, manipulação da cotação. Até logo.
(desliga)… Não fui eu quem disse, foi o Rangel.

VERÔNICA Michel.

ALAIN Michel, desculpe.

VERÔNICA Eu o proíbo de fazer o menor juízo de nossa


família.

ALAIN Então não julgue meu filho também.

VERÔNICA Mas não tem nada a ver! O filho de vocês


maltratou o nosso!

ALAIN Eles são jovens, são garotos, garotos sempre se


esmurraram na hora do recreio. É uma lei da vida.

VERÔNICA Não, não é não!...

ALAIN É sim. É preciso passar por um aprendizado para


substituir o direito à violência. Originalmente,
lembre-se, o direito é a força.

VERÔNICA Para os homens pré-históricos, talvez. Não para


nós.

ALAIN "Para nós"! Me explique esse "para nós".

VERÔNICA Você me cansa, estou cansada dessa conversa.

ALAIN Verônica, veja bem, eu acredito no deus da


carnificina. É o único que governa, sozinho, desde
os tempos mais remotos. Você se interessa pela
África, não é… (para Annette que tem um
espasmo)…Você não está bem?...
54

ANNETTE Não se preocupe comigo.

ALAIN Me preocupo, sim.

ANNETTE Está tudo bem.

ALAIN Acontece que acabo de chegar do Congo, veja


bem.
Lá, crianças são levadas a matar aos oito anos de
idade. Durante a infância delas, elas podem matar
centenas de pessoas, com machados, AK 47,
Ponto 9, AR15, então, compreenda que quando
meu filho quebra um dente, ou até mesmo dois, de
um colega com um pedaço de bambu, na praça, eu
estou menos inclinado do que você a sentir pavor
ou indignação.

VERÔNICA Você está errado.

ANNETTE (Zombando) AR15!

ALAIN Eu falo como eu quiser?

Annette cospe na bacia.

MICHEL Tudo bem?

ANNETTE … Perfeitamente.

ALAIN Mas o que você tem? O que ela tem?

ANNETTE É bílis! Não é nada!

VERÔNICA Não venha me falar da África. Estou bem a par do


martírio africano, estou mergulhada nisso há
meses…

ALAIN Não tenho a menor dúvida. Aliás, o Procurador da


Corte Penal Internacional abriu uma investigação
sobre o Darfur…

VERÔNICA Está querendo ensinar a missa ao vigário?


55

MICHEL Não a provoque com isso! Tadinha!

Verônica se joga sobre seu marido e bate nele várias vezes, com um
desespero desordenado e irracional.
Alain a puxa.

ALAIN Estou começando a simpatizar com vc, sabia!

VERÔNICA Comigo não!

MICHEL Ela batalha pela paz e pela estabilidade no mundo.

VERÔNICA Cale a boca!

VERÔNICA Escuta aqui Alain...Nós não vivemos na Africa!


Vivemos segundo os códigos da sociedade
ocidental. O que acontece na Praça das Flores
reflete os valores da sociedade ocidental! À qual,
lhe agrade ou não, fico feliz de pertencer!

MICHEL Bater no marido deve fazer parte dos códigos…

VERÔNICA Michel, isso vai acabar mal.

Ela pega seu copo de rum e o leva à boca.

MICHEL Tem certeza?

ANNETTE Tenho, tenho, vai me fazer bem.

ALAIN Annette, é um absurdo você beber nesse estado…

ANNETTE AK 49! Ha, ha!...

VERÔNICA ( idem ) AK49, é mesmo!

ALAIN É, AK49.

ANNETTE Por que não diz metralhadora?

ALAIN Porque as pessoas dizem AK49, ora.


56

ANNETTE Que pessoas?

ALAIN Dá um tempo, Annette. Chega.

ANNETTE Guerreiros, como meu marido, têm dificuldade, de


se interessar por acontecimentos de bairro, temos
de compreendê-los.

ALAIN É isso mesmo.

VERÔNICA Não sei por quê. Não sei por quê. Somos cidadãos
do mundo. Não sei por que deveríamos deixar de
lado o que está próximo.

MICHEL Oh, Verô! Nos poupe dessas fórmulas de araque!

VERÔNICA Eu vou matar esse aí.

ALAIN (celular vibrou) … Sim, sim, tire ‘lamentável …


‘Grosseira. Trata-se de uma grosseira tentativa
de… É isso…

VERÔNICA Ela tem razão, está começando a ficar


insuportável!

ALAIN …Mas ele aprova o resto? … Bom, bom. Ótimo.


(desliga)… O que estávamos dizendo?

VERÔNICA Eu estava dizendo, quer meu marido goste quer


não, que um lugar não é melhor do que outro para
exercermos nossa vigilância.

ALAIN Vigilância… Noção interessante essa.…


(celular)… Sim, não, nada de entrevista antes da
divulgação do comunicado…

VERÔNICA Meu senhor,! quer fazer o favor de parar com essa


conversa maçante.

ALAIN …De jeito nenhum… Os acionários vão se lixar…


Lembre a ele a soberania dos acionários…
57

Annette anda em direção de Alain, arranca o celular dele e… depois de


procurar brevemente onde colocá-lo… o mergulha no vaso de tulipas.

ALAIN Annette, o que…!!

ANNETTE Pronto.

VERÔNICA Ha, ha! Muito bem!

MICHEL (horrorizado) Caramba!

ALAIN Você ficou louca?! Que merda!!!

Ele se precipita para o vaso, mas Michel que o precedeu, tira o aparelho
encharcado.

MICHEL O secador! Onde está o secador?! (Ele o acha e


liga imediatamente apontando para o celular)

ALAIN Você tem de ser internada, coitada! É incrível!…


Tudo meu está aí dentro!... Ele é novo, passei
horas para configurar esse celular!

MICHEL (para Annette; por cima do barulho infernal do


secador) Realmente essa eu não entendi. Que
irresponsabilidade!

ALAIN Tudo meu, minha vida inteira…

ANNETTE Sua vida inteira!...

MICHEL (o barulho continua) Espere, acho que vamos


recuperá-lo…

ALAIN Não vamos não! Fodeu!...

MICHEL Vamos tirar a bateria e o chip. Consegue abrir?

ALAIN (tentando abrir o celular sem acreditar muito)


Não entendo nada disso, acabei de comprar…

MICHEL Deixe eu ver.


58

ALAIN Fodeu… E elas ficam rindo, ficam rindo!...

MICHEL (abre o celular sem dificuldade) Pronto.


(ligando de novo o secador depois de ter tirado as
peças) Verônica, você podia pelo menos ser
educada e não achar graça!

VERÔNICA (rindo com gosto) Meu marido vai passar a tarde


secando coisas!

ANNETTE Ha, ha, ha!

Annette não hesita em se servir de novo de rum


Michel, inatingível por qualquer humor, se obstina.
Durante um tempo, só se ouve o barulho do secador.
Alain desmoronou.

ALAIN Deixe para lá, meu amigo. Deixe para lá. Não dá
para fazer nada…

Michel acaba desligando o secador.

MICHEL Temos de esperar… (depois de uma hesitação)


Quer usar o telefone?...

Alain faz sinal que não e que pouco lhe importa.

MICHEL Devo dizer…

ANNETTE O que você quer dizer, Michel?

MICHEL Não… Nem sei o que dizer.

ANNETTE Acho que estamos nos sentindo bem. Estamos nos


sentindo bem, eu acho. (hesitação)… Estamos
tranquilos, não?... Os homens são tão ligados a
seus acessórios… Isso os diminui… Tira toda a
autoridade deles… Um homem deve ter as mãos
livres… Eu acho.
Até mesmo uma pastinha, me incomoda. Um dia
gostei de um homem e depois eu o vi com uma
59

bolsa retangular atravessada, uma bolsa de


homem atravessada não dá, é o fim.
Não tem nada pior do que uma bolsa atravessada.
Mas também não tem nada pior que o celular ao
alcance da mão. Um homem deve dar a impressão
de estar sozinho… Eu acho. Quero dizer, de poder
estar sozinho… Eu também tenho uma ideia
Johnwayniana da virilidade. O que ele tinha? Uma
pistola. Algo que cria um vazio… Um homem que
não dá impressão de ser um solitário não tem
consistência… Então, Michel, está contente. Está
se desagregando um pouco nossa… Como você
disse mesmo?… Esqueci a palavra... Mas
finalmente… a gente se sente quase bem… Eu
acho.

MICHEL Estou avisando, o rum deixa as pessoas piradas.

ANNETTE Eu estou mais normal do que nunca.

MICHEL Claro.

ANNETTE Começo a ver as coisas com uma serenidade bem


agradável.

VERÔNICA Ha, ha! Essa é boa!... Uma serenidade bem


agradável!

MICHEL Quanto a você, darjeeling, não precisava ficar


desarvorada na frente de todo mundo.

VERÔNICA Cale a boca.

Michel vai buscar a caixa de charutos.

MICHEL Escolha, Alain. Relaxe.

VERÔNICA Não fumamos charuto em casa!

MICHEL Hoyo ou Cohiba…

VERÔNICA Não se fuma em uma casa onde há uma criança


asmática!
60

ANNETTE Quem é asmático?

VERÔNICA Nosso filho.

MICHEL Mas a gente tinha aquela porcaria de hamster.

ANNETTE É verdade que não é recomendável ter um animal


quando se tem asma.

MICHEL Nem um pouco recomendável!

ANNETTE Até mesmo um peixe vermelho pode ser contra-


indicado.

VERÔNICA Eu sou obrigada a escutar esses disparates? (ela


arranca das mãos de Michel a caixa de charutos e
a fecha brutalmente). Sinto muito, talvez eu seja a
única a não ver as coisas com uma serenidade
agradável! Aliás, nunca me senti tão infeliz. Acho
que é o dia em que me senti mais infeliz na minha
vida.

MICHEL Beber deixa você infeliz.

VERÔNICA Michel, cada palavra que você pronuncia me


deixa prostrada. Eu não bebo. Estou bebendo uma
gota desse seu rum de merda, que você fica
exibindo como um troféu, eu não bebo, e me
arrependo amargamente, ficaria aliviada em poder
afogar minhas mágoas na bebida.

ANNETTE Meu marido também está infeliz. Olhem só para


ele. Todo encolhido. Parece que foi abandonado
na sargeta. Acho que é o dia mais infeliz de sua
vida também.

ALAIN É.

ANNETTE Sinto muito, Tutu.

Michel passa de novo o secador sobre as peças do celular.


61

VERÔNICA Desligue esse secador! Essa coisa já era.

MICHEL (telefone toca) Sim!... Mamãe, já disse que


estávamos ocupados… Porque é um remédio que
pode matar! É um veneno!... Alguém vai explicar
para você… (passando o aparelho para Alain)…
Diga para ela.

ALAIN Dizer o que para ela?...

MICHEL O que você sabe sobre essa sua porcaria.

ALAIN … Como vai, minha senhora?...

ANNETTE O que ele pode dizer para ela? Ele não sabe nada!

ALAIN ...Sim… E a senhora está se sentindo mal?...


Claro. Mas a operação vai salvá-la… A outra
perna também, é. Não, não, não sou ortopedista…
(cochichando)… Ela está achando que eu sou
médico...

ANNETTE Médico, que grotesco, desligue isso!

ALAIN Mas a senhora… quer dizer, a senhora tem algum


problema de equilíbrio?… Não, não. De jeito
nenhum. De jeito nenhum. Não ouça o que lhe
dizem. Mas é bom a senhora parar de tomá-lo por
um tempo. O tempo… o tempo de ser operada
com tranquilidade… Sim, dá para sentir que a
senhora está em forma… (Michel arranca o
aparelho dele)

MICHEL Bom mamãe, você entendeu, pare de tomar esse


remédio, por que você tem de discutir o tempo
todo, pare de tomar, faça o que estão lhe dizendo,
eu ligo mais tarde. Um beijo, de todos nós.
(desliga) Ela me deixa exausto. Como a gente se
chateia na vida!

ANNETTE E então, afinal? Eu volto hoje à noite com o


Fernando?
62

VERÔNICA Agora sou eu quem vai passar mal. Onde está a


bacia?

ANNETTE Temos que decidir. Parece que ninguém está


ligando. Estamos aqui para isso, não é mesmo?

MICHEL (retirando a garrafa de rum do alcance de


Annette). Já chega.

ANNETTE A meu ver, os dois lados estão errados.


É isso. Os dois lados estão errados.

VERÔNICA Tá falando sério?

ANNETTE Como assim?

VERÔNICA Você tem noção do que disse?

ANNETTE Tenho sim. Tenho.

VERÔNICA Nosso filho Bruno, a quem tive de dar dois


Efferalgan com codeína (ou Cod-Eferalgan) essa
noite, está errado?!

ANNETTE Ele não é necessariamente inocente.

VERÔNICA Sumam daqui! Já estou de saco cheio de vocês.


(ela pega a bolsa de Annette e a joga em direção
da porta) Sumam daqui!

ANNETTE Minha bolsa!... (como uma garotinha) Alain!...

MICHEL Mas o que está acontecendo? Elas piraram.

ANNETTE (catando o que pode estar espalhado) Alain,


socorro!...

VERÔNICA Alain, socorro!


63

ANNETTE Cale a boca!... Ela quebrou meu estojo de pó de


arroz! E meu vaporizador! (para Alain) Me
defenda, por que não me defende?...

ALAIN Vamos embora. (ele se prepara para pegar as


peças de seu celular)

VERÔNICA Não a estou enforcando!

ANNETTE O que foi que eu lhe fiz?!

VERÔNICA Os dois lados não estão errados! Não se confunde


vítimas e carrascos!

ANNETTE Carrascos!

MICHEL Oh, você é um saco, Verônica, estamos de saco


cheio dessa ladainha simplista!

VERÔNICA Que eu reivindico.

MICHEL Sim, sim, reivindica, sim, reivindica, sua


admiração pelos negros do Sudão está estampada
em tudo agora.

VERÔNICA Eu estou chocada! Por que está querendo parecer


tão horrível?

MICHEL Porque estou com vontade. Estou com vontade de


parecer bem horrível.

VERÔNICA Um dia vai entender a extrema gravidade do que


se passa nessa parte do mundo e vai ter vergonha
de sua inércia e desse niilismo infecto.

MICHEL Mas você é formidável darjeeling, a melhor de


nós todos!

VERÔNICA Sou sim, sou sim.

ANNETTE Vam’bora, Alain, Que monstros!


(ela termina de beber e vai pegar de novo a
garrafa)
64

ALAIN (a impedindo) … Pare, Annette.

ANNETTE Não, quero beber mais, quero encher a cara, essa


imbecil joga longe minhas coisas e ninguém
reage, quero me embriagar!

ALAIN Você já está pra lá de embriagada.

ANNETTE Por que você deixa que tratem seu filho de


carrasco? Viemos na casa deles para consertar as
coisas e somos insultados, maltratados, e ainda
nos dão aulas de cidadania, nosso filho fez bem
em espancar o seu, e eu não dou a mínima para os
seus direitos do homem!

MICHEL Um golinho de pinga e opa a verdadeira face


aparece. O que aconteceu com a mulher graciosa e
reservada, de traços meigos…

VERÔNICA Eu disse pra você! Eu disse pra você!

ALAIN O que foi que você disse?

VERÔNICA Que ela era falsa. Ela é falsa, essa mulher. Sinto
muito.

ANNETTE (Aflita) Ha, ha, ha!...

ALAIN Quando disse isso?

VERÔNICA Quando vocês estavam no banheiro.

ALAIN Você a conhecia há quinze minutos, mas já sabia


que ela era falsa.

VERÔNICA Eu sinto isso imediatamente nas pessoas.

MICHEL É verdade.

VERÔNICA Tenho um feeling para esse tipo de coisa.

ALAIN Como assim, falsa?


65

ANNETTE Não quero ouvir! Por que está me obrigando a


suportar isso, Alain!

ALAIN Calma, Totó.

VERÔNICA É uma aparadora de arestas. Ponto. Apesar de


suas maneiras, ela está tão pouco envolvida com
essa estória quanto você.

MICHEL É verdade.

ALAIN É verdade.

VERÔNICA É verdade! Está dizendo que é verdade?

MICHEL Estão se lixando! Estão se lixando desde o início,


é óbvio! Ela também, você tem razão!

ALAIN Ah, e você não? (para Annette) Deixe ele falar,


meu amor. Pode me explicar o quanto você está
envolvido com essa estória. Em primeiro lugar, o
que essa palavra quer dizer?
Você é mais digno de confiança quando quer
parecer horrível. Na verdade, ninguém aqui está
envolvido com essa estória, a não ser à Verônica,
em quem devemos, é verdade, reconhecer essa
integridade.

VERÔNICA Não reconheça nada em mim! Não reconheça


nada em mim!

ANNETTE Mas eu estou totalmente envolvida com essa estó


ria.

ALAIN Nós estamos envolvidos de uma maneira histérica,


Annette, e não como heróis da vida social. (para
Verônica) Eu vi sua amiga Jane Fonda noutro dia
na TV, e quase fiquei com vontade de comprar
um pôster do ku klux klan…

VERÔNICA Por que minha amiga? Como é que Jane Fonda foi
aparecer aqui!
66

ALAIN Porque vocês são da mesma espécie. Fazem parte


da mesma categoria de mulheres, as mulheres
engajadas, que resolvem, mas não é disso que
gostamos nas mulheres. O que gostamos nas
mulheres é da sensualidade, da loucura, dos
hormônios. As mulheres que agem com
clarividência, as guardiãs do mundo nos
deprimem. Até mesmo ele, o coitado do Michel,
seu marido, está deprimido…

MICHEL Não fale por mim!

VERÔNICA A gente está se lixando completamente para o que


você gosta nas mulheres! De onde sacou essa
tirada? A gente está se lixando para a opinião de
homens do seu tipo!

ALAIN Ela está aos berros.

VERÔNICA E ela, ela não berra?! Quando diz que o babaca do


seu filho fez bem em espancar o nosso?

ANNETTE Ele fez bem, sim! Pelo menos não temos um


viadinho todo arrebentado!

VERÔNICA Vocês têm um caguete, acha melhor?

ANNETTE Vamos, Alain! O que é que a gente ainda está


fazendo nesse barraco? (ela faz de conta que vai
embora, volta e anda em direção das tulipas, que
ela esbofeteia com violência. As flores voam, se
desfazem e caem por toda a parte) E olha só, olha
só o que eu faça com suas flores ridículas, suas
tulipas horrendas!...Ha, ha, ha! … (ela cai em
prantos)… É o pior dia de minha vida também.
Silêncio.
Um longo tempo de estupor. Michel apanha algo no chão.

MICHEL (para Annette) É seu?...

ANNETTE (ela pega o estojo, o abre e tira os óculos)


Obrigada…
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MICHEL Não quebrou?...

ANNETTE Não…
Hesitação.

MICHEL O que digo…

Alain começa a recolher os ramos e as pétalas

MICHEL Pode deixar.

ALAIN Não, não…


O telefone toca.
Depois de hesitar, Verônica atende.

VERÔNICA Oi, querida… É mesmo?… Mas você pode fazer


os deveres na casa de Annabela?... Não, não,
minha querida, não o encontramos… Fui, fui até o
supermercado. Mas sabe de uma coisa, Rói-roi se
vira muito bem, meu amor, acho que temos de
confiar nela. Acha que ela gostava de ficar numa
gaiola?… Papai está triste, ele não queria fazer
você sofrer… Vai sim, claro que vai falar com ele.
Escute, meu amor, já nos chateamos muito com
seu irmão… Ela vai comer… ela vai comer folhas
… sementes, castanhas… ela vai achar, ela sabe o
que deve comer… vermes, caracóis, o que cair
das lixeiras, ela é onívora como nós… Até daqui a
pouco, meu tesouro.
Hesitação.

MICHEL É bem capaz desse bicho estar fazendo a festa, a


uma hora dessas.

VERÔNICA Não.

Silêncio

MICHEL Quem sabe?

FIM

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