Como o Demo As Arma, Conto de Aluísio Azevedo - Ler Online
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Vivia de cara alegre; tocava o seu bocado de piano; sabia arranjar desenhos para os seus bordados; tinha
repentes de muita graça; e nunca nenhuma das companheiras lhe apanhara a ponta de um desses
escândalos, que são a riqueza das palestras nos lugares em que há muitas raparigas juntas.
Além disso, era de uma economia limpa e natural; nas suas mãozinhas cor-de-rosa e picadas de agulha o
escasso ordenado de costureira parecia transformar-se em moeda forte. Vestido seu nunca ficava
fatalmente velho: era já mudar-lhe o feitio; era já trocar-lhe os enfeites, e aí estava Teresinha metendo as
outras no chinelo.
Mas Teresinha, pelo jeito, não queria casar. Por mais de uma vez apareceram-lhe partidos bem
aceitáveis, e ela torcera o narizinho a todos, dizendo que ainda era muito cedo para pensar nisso. Um
seu vizinho, o Lucas com armarinho de modas e rapaz estimado no comércio, chegou a oferecer-lhe um
dote de dez contos de réis; outro, o Cruz também com armarinho e não menos estimado que o primeiro,
jurou-lhe numa carta, que faria saltar os miolos, se ela não o tomasse por marido. Teresinha, não quis
nenhum dos dois e continuou, muito escorreita no seu vestidinho justo ao corpo, uma flor ao peito, a
bolsa de couro na mão, a passar-lhes todos os dias pela porta, no sonoro tique-taque dos seus passos
miúdos, indo pela manhã para a fábrica e voltando à tarde para casa, sempre ligeira e saltitante como
um pássaro arisco.
Mas, quando lhe morreu a tia com que ela habitava, e a pequena ficou só no mundo, disseram logo:
– Não! não será tão tola que se sujeite a isso, podendo dispor de um marido logo que o queira!…
– De um ou de mais!
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Teresinha, todavia, não se casou nem foi abrigar-se à sombra de ninguém; ficou morando na mesma
casa em que lhe morrera a tia conservando uma criada velha que as acompanhava havia muitos anos.
Na fábrica a mesma pontualidade, a mesma linha de conduta, a mesma limpeza e diligência no serviço,
na rua – aquele mesmo passinho curto e apressado, que mal deixava aos seus vários pretendentes
lobrigar a ponta das suas honestas botinas pretas de salto baixo.
Não obstante, meses depois, principiaram de aparecer-lhe transformações. Notavam todos, lá na fábrica,
que a Teresinha já não era aquela rapariga alegre e caprichosa dos primeiros tempos; agora tinha
esquisitices de gênio e caía em fundas abstrações, quedando-se horas perdidas a olhar para o espaço, de
boca aberta, o trabalho esquecido sobre os joelhos.
E observavam, com pontinhas de riso brejeiro, que a exemplar Teresinha, – a diligência em pessoa – já
não era a primeira a pegar na costura e a última a deixar o serviço.
Descobriram logo que Teresinha ao sair do trabalho, em vez de ir para casa, metia-se na Biblioteca
Nacional ou nos gabinetes de leitura ou então nas lojas dos livreiros.
E viam-na passar um tempo esquecido a escolher brochuras, a consultar revistas e alfarrábios, fariscando
nelas com o nariz enterrado entre as páginas, alguma cousa, que ninguém atinava com o que fosse.
– Querem ver que ela deu para filósofa?. comentaram as outras raparigas.
Uma das mais velhacas da roda afiançou que não seria a primeira Teresa que desse para isso.
E o grande fato é que todo o dinheirinho das economias de Teresinha era lambido pelos vendedores de
livros. Já lhe notavam até certa negligência no traje e no penteado.
Por outro lado, o gerente principiava a resmungar: Pois ele queria lá doutoras no estabelecimento!… A
senhora dona Teresinha parecia já não ligar a mínima importância ao serviço! O tempo era-lhe pouco
para os romances que ela trazia escondidos no bolso! Não! assim, que tivesse paciência! mas não havia
remédio senão mandá-la passear! Ia-se ali para desunhar na costura e não para contar-se tábuas do teto.
E, por isso, que diabo! pagava-se a todas pontualmente em bom dinheiro! Não se tinha ali ninguém de
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Uma ocasião apresentou-se mais tarde, muito pálida, com grandes olheiras. Percebia-se facilmente que
passara a noite em claro.
Nesse dia trabalhou bastante, com febre. Mal, porém, terminou a obrigação, correu à casa e fechou-se
na. sala, defronte do candeeiro de querosene.
Releu inda uma vez a singularíssima novela. Aquela extravagante fantasia do rei dos boêmios, a alma
doente e sonhadora do eleito da decadência romântica, a imaginação desvairada daquele fumador de
ópio, embriagaram-na com uma delícia de vinho traiçoeiro.
Que haveria verdade nessa lágrima e o que vinha a ser ao certo, esse diabo, de que lhe falavam os
poetas, os padres, os professores, as crianças e as velhas?… Já em outros livros encontrara o mesmo que
afirmara Gautier: o tal gênio do mal, disfarçado em rapaz bonito, a correr o mundo, para tentar as
pobres raparigas. Um alfarrábio religioso de sua tia ensinara-lhe que o maldito andava solto, aí por essas
ruas da cidade, janota, barbeado e cheiroso, e que as moças inexperientes precisavam ter todo o
cuidado, porque o patife, além de tudo, escondia os cornos e o rabo, e não havia por onde reconhecê-lo.
Definitivamente era muito perigoso para ela arriscar-se sozinha, todos os dias, a cair em semelhante
perigo!
E se o encontrasse?…
E começou a chegar-se muito para os velhos, a afeiçoar-se por eles. Com os moços é que não queria
graças; temia-os a todos, principalmente os simpáticos e esmerados na roupa.
– Nada! nada de imprudências! Pode muito bem ser que eu caia nas mãos do tal!.
Isso, porém, não impediu que a cautelosa Teresinha, um belo dia, ao dobrar uma esquina, desse cara a
cara com um belo rapagão louro, de bigodes retorcidos, nariz arrebitado e monóculo.
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– Estou perdida! balbuciou ela trêmula, estacando defronte do rapaz, sem ânimo de erguer a vista,
porque tinha antemão certeza de que o olhar dele havia de cegá-la.
– Não há dúvida! É ele mesmo! gaguejou a medrosa, quase a chorar. Valha-me Nossa Senhora!
Ela obedeceu logo e até chegou-se mais para o diabo, atraída, presa, vencida, como se aquelas duas
palavras fossem as pontas de um tenaz que a segurasse pelas carnes.
– Tenho tanta coisa a dizer-te, minha flor! Se quisesse ouvir-me… Oh! eu seria o ente mais feliz do
mundo! Olha! a tarde está magnífica, vamos nós dar um passeio juntos?
– Mas Deus! meu Deus! lamentava-se ela pelo caminho segurando-se ao braço do demônio. Estou aqui,
estou no inferno!
O demônio levou-a para casa dele e mal entraram, atirou-se-lhe aos pés, cobrindo-a de beijos ardentes.
Ela soluçava.
Seu hálito queimava. Teresinha via saírem-lhe faíscas dos olhos. E, sempre a tremer, e sem ânimo de
recusar nada pedia-lhe compaixão, convencida de que era aquele o último momento da sua vida.
– Ah! não! não! bem o vejo!… respondeu ela, receosa de contrariá-lo. Mas, por quem é, não me faça mal!
– Fazer-te mal? Que loucura! Fazer-te mal, eu, que te amo; eu, que há tanto tempo passo horas e horas à
espera que saias do serviço para acompanhar-te de longe, sem te perder de vista; o que, sabes? é difícil,
porque nunca vi andar tão depressa! Mas esqueçamos tudo! agora és só minha, não é verdade?… Não é
verdade
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– Não imaginas como seremos felizes! Meu ordenado chega perfeitamente para os dois e…
– Sou, filhinha! Estou a dizer-te! Sou empregado no tesouro; apanhei o lugar por concurso; ganho
trezentos mil réis por mês, afora os achegos que aparecem.
– O senhor está gracejando! Diga-me uma cousa, mas não me engane… O senhor não é o diabo?
– Ora esta!… murmurou Teresinha, se eu desconfiasse!… Agora… paciência! já não há remédio… Caso-me
com o Lucas.
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