O Guerreiro Mandu Ladino
O Guerreiro Mandu Ladino
O Guerreiro Mandu Ladino
br
Artigo escrito pelo escritor e poeta Pedro Laurentino Reis Pereira publicado pelo Jornal A Verdade
Corria a segunda metade do século 17. O estado do Piauí iniciava o seu povoamento
a partir da penetração do gado oriundo da Bahia, de Pernambuco e um pouco do Ceará. O
boi ia em busca de pasto; atrás do boi vinha o homem, abrindo picadas, erguendo currais,
construindo palhoças, fazendo filhos… e invariavelmente matando os nativos que viviam
na região.
Nas sociedades constituídas a partir da pecuária, a moeda corrente é o boi e a vida
de uma rês, no mais das vezes, tem mais valor que vida de um homem.
Por essa época habitava o Piauí o maior assassino de índios e negros que o Brasil já
conheceu: Domingos Jorge Velho. A coroa portuguesa lhe concedeu dezenas de léguas de
www.averdade.org.br
terra às margens do rio Poti como reconhecimento pelos serviços prestados aos senhores
de escravos e de terras. Foi do Piauí, já em idade avançada, que Domingos Jorge Velho
partiu, atendendo à convocação do governo de Pernambuco, para aniquilar os negros
insurretos do Quilombo dos Palmares.
Jorge Velho não se cansava de afirmar: “Índio bom é índio morto, pois mais
traiçoeiro impossível. Já as índias servem pros afazeres domésticos e pras necessidades
sexuais”.
Bernardo Aguiar, oriundo do Maranhão, aprendeu fielmente a lição do coronel
Jorge Velho. Atravessou o Rio Parnaíba – que os índios chamavam de punaré – estabeleceu-
se na bacia do Rio Longá, mais ao nascente, e foi ampliando os seus domínios. Ao tempo
em que reproduzia bois, aniquilava aldeias que ficassem até trinta léguas de distância de
sua propriedade, chamada Bitorocara.
Foi o que se deu com a aldeia dos índios abelhas, assim chamados porque conviviam
harmonicamente com as abelhas teúbas na região. Os homens de Bernardo chegaram pela
madrugada na aldeia cuspindo fogo covardemente sobre os índios ainda sonolentos. Como
prova do feito levaram ao chefe os dois filhos pequenos do cacique, únicos sobreviventes
do massacre.
A mais velha, Aluhy, não se conformou e em poucos dias fugiu da fazenda e voltou
à aldeia, onde se deparou com a horrível cena dos cadáveres de todos os seus entes
queridos. Enterrou-os um a um em uma mesma cova, foi recapturada e não mais ofereceu
resistência. Seu mundo tinha desabado. Acabou afeiçoando-se ao filho mais novo do
fazendeiro, Miguel, que também se afeiçoou a ela e com ela casou-se e teve uma filha.
O índio bom
O irmão mais novo de Aluhy tinha o nome de Mandu. Foi entregue a um padre
capuchinho de nome Lucé, que dirigia uma missão na aldeia Boqueirão do Cariri, no sertão
da Paraíba, e encontrava-se em desobriga pelo alto Longá na oportunidade.
www.averdade.org.br
Foi na condição de vaqueiro escravo da fazenda Alegrete que Mandu Ladino passou
os primeiros anos de retorno ao Piauí. Incontáveis vezes o amarraram a um tronco de
árvore para açoitá-lo com relho de couro cru até que a pele virasse carne viva. Para evitar
gangrena, davam-lhe um banho de sal grosso que ele suportava silenciosamente.
Mandu Ladino logo percebeu que a quantidade de bois aumentava na mesma
proporção em que se reduzia o número de aldeias indígenas. A conclusão era lógica: ou
havia reação dos índios ou todos seriam dizimados, reduzidos a pó. Isoladamente era
impossível vencer o poderio militar e logístico do branco, daí a necessidade de unir toda a
nação indígena.
www.averdade.org.br
Foi pensando assim que estabeleceu contato, imitando o canto dos sabiás para não
ser delatado, com a tribo dos aranis, cujo cacique, Xerém, teve uma filha assassinada pelo
capataz da fazenda Alegrete. Tudo combinado por código, em uma noite sem lua os aranis
chegaram à fazenda, mataram silenciosamente os cachorros, lançaram flechas
incandescentes sobre as casas de palha e, já com o auxílio de Mandu, justiçaram um a um
os moradores, exceto as mulheres, as crianças e o capataz, algoz de Mandu e assassino da
filha do cacique Xerém, que foi levado vivo para que fosse servido em um solene banquete
antropofágico.
A lenda de Mandu e a ação dos aranis se espalharam. Mandu em vão tentou
convencer os aranis a abandonar a aldeia. Logo, logo, os brancos vieram com sede de
vingança. Em inferioridade numérica e militar, Mandu demonstrou o porquê da sua
alcunha. Ora orientava os índios a matarem os cavalos enquanto os brancos dormiam; ora
mandava as índias tirarem caixas de marimbondos para lançá-las sobre os brancos; ora
armava ciladas em desfiladeiros sem saída.
A aldeia aranis enfim foi vencida, com a morte do cacique Xerém e da maioria dos
guerreiros, mas Mandu conseguiu resistir e fugir com cerca de 50 pessoas, vinte delas
talhadas para a guerra. Mandu inicia a sua saga visando à união da grande nação indígena
para uma guerra sem trégua ao branco invasor.
Na condição de novo cacique dos aranis, fato inédito para um índio de outra tribo,
Mandu desce o rio Piracuruca, onde propõe à tribo do mesmo nome uma união de forças
para combater o inimigo branco. Por essa época já tinha tomado por esposa a bela índia
Korena, viúva de um guerreiro aranis, morto em combate.
Vitoriosos em mais uma ousada ação, os agora quase cem guerreiros subiram a
serra Grande, divisa com o Ceará, onde tentariam convencer os índios acaraús, itapajés e
pitiguaras a juntarem-se a eles. A missão foi parcialmente exitosa, com a recusa taxativa de
apenas uma das tribos.
Já formavam uma pequena e aguerrida nação: aranis, piracurucas, itapajés, alguns
acaraús, Mandu dos Abelhas, dois índios da antiga cariri e alguns ex-escravos. Partiram para
o litoral piauiense, no famoso delta do Parnaiba, onde resistia bravamente a tribo dos
tremembés. Unir-se a eles era fundamental para conformar o exército imaginado por
www.averdade.org.br
Mandu. Marcharam rumo ao rio Parnaíba – o velho Punaré – e por ele o trajeto era feito
mais facilmente em balsas construídas com a madeira do buriti.
“Índios corsos” é como o branco invasor passou a chamar o exército de Mandu,
numa alusão depreciativa aos piratas do mar. Os guerreiros indígenas, diferentemente dos
piratas, tinham origem e tinham causa: viver livremente em suas próprias terras.
No rastro de sangue que se formava em torno de Mandu, os cadáveres do cunhado
do ouvidor-geral do governo do Maranhão e do irmão e herdeiro de Domingos Jorge Velho
foram a senha para que os fazendeiros do Piauí fossem até São Luís, a que o Piauí era
subordinado, para solicitar intervenção oficial e conter a marcha de Mandu Ladino.
A luta
Para formar o exército oficial dos brancos foram disponibilizados 80 homens, 100
índios flecheiros, montarias, armamentos para todos e víveres assegurados pelos
fazendeiros, todos sob o comando do coronel Souto Maior. A tropa resolveu marchar rumo
ao rio Parnaíba para surpreender os guerreiros de Mandu Ladino, que a essa altura subiam
o rio de volta, vindo do litoral para o poente.
De fato, só ao chegar em pleno litoral, Mandu veio a saber que os índios tremembés
haviam sido completamente aniquilados pela força de quatro navios que chegaram à costa
piauiense propondo amizade e os surpreenderam, crédulos e desarmados. Foram todos
mortos traiçoeiramente.
Com uma rede de informantes voluntários cada vez maior, formada principalmente
por índios escravos – os chamados índios mansos que ele tanto odiava, mas que
terminavam lhe prestando um grande serviço – Mandu soube da existência da tropa oficial
e resolveu, ele sim, tomar a iniciativa do combate. A seu favor contava o fator surpresa.
Ninguém em sã consciência esperava que ele tomasse a iniciativa da luta. E ele assim o fez,
ainda em terras maranhenses, do lado de lá do Parnaiba, quando o inimigo estava
desprevenido.
Contando com a colaboração de aliados entre os índios flecheiros e com a ajuda da
madrugada escura, Mandu Ladino comandou um combate com as poderosas e surpresas
forças armadas do Maranhão, e venceu-as triunfalmente à base de flechas, paus, facões e
pedras. A data provável da batalha foi 12 de junho de 1712.
www.averdade.org.br
A traição
O acordo durou alguns anos, até que Mandu começou a sentir cheiro de traição no
ar, pelo jeito esquivo dos líderes tabajaras, e as ausências prolongadas do padre que dava
assistência à aldeia. Não tardou a chegar notícia dando conta da aproximação do exército
de Bernardo. Sem alternativa, Mandu comandou a retirada rumo ao nascente, mas apartou
as mulheres, crianças e anciãos, que seguiram por itinerário diverso do dos seus guerreiros.
Fazer uma retirada estratégica com cerca de 100 guerreiros a pé com um exército
montado e bem nutrido no seu encalço não é tarefa fácil. Em alguns dias Mandu foi
alcançado e a batalha se verificou sangrenta em um vale descampado, na localidade onde
hoje é o município piauiense de Batalha. Além da desvantagem militar e numérica, os índios
não entendiam por que suas flechas não atingiam o inimigo, ficando presas na sua couraça
de ferro, sem penetrar-lhes o corpo. Quando se deram conta de que deveriam mirar nas
montarias e não nos cavaleiros, a batalha já estava perdida. Cerca de 80 guerreiros índios,
www.averdade.org.br