O Amanhã Não Está À Venda
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O Amanhã Não Está À Venda
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Folha de rosto
Sumário
O amanhã não está à venda
Sobre o autor
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Parei de andar mundo afora, cancelei compromissos. Estou com a minha
família na aldeia Krenak, no médio rio Doce. Há quase um mês, nossa
reserva indígena está isolada. Quem estava ausente regressou, e sabemos bem
qual é o risco de receber pessoas de fora. Sabemos o perigo de ter contato
com pessoas assintomáticas. Estamos todos aqui e até agora não tivemos
nenhuma ocorrência.
A verdade é que vivemos encurralados e refugiados no nosso próprio
território há muito tempo, numa reserva de 4 mil hectares — que deveria ser
muito maior se a justiça fosse feita —, e esse confinamento involuntário nos
deu resiliência, nos fez mais resistentes. Como posso explicar a uma pessoa
que está fechada há um mês num apartamento numa grande metrópole o que
é o meu isolamento? Desculpem dizer isso, mas hoje já plantei milho, já
plantei uma árvore…
Faz algum tempo que nós na aldeia Krenak já estávamos de luto pelo nosso
rio Doce. Não imaginava que o mundo nos traria esse outro luto. Está todo
mundo parado. Quando engenheiros me disseram que iriam usar a tecnologia
para recuperar o rio Doce, perguntaram a minha opinião. Eu respondi: “A
minha sugestão é muito difícil de colocar em prática. Pois teríamos de parar
todas as atividades humanas que incidem sobre o corpo do rio, a cem
quilômetros nas margens direita e esquerda, até que ele voltasse a ter vida”.
Então um deles me disse: “Mas isso é impossível”. O mundo não pode parar.
E o mundo parou.
Vivemos hoje esta experiência de isolamento social, como está sendo
definido o confinamento, em que todas as pessoas têm de se recolher. Se
durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados
da ruptura ou da extinção do sentido da nossa vida, hoje estamos todos diante
da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda. Assistimos a uma
tragédia de gente morrendo em diferentes lugares do planeta, a ponto de na
Itália os corpos serem transportados para a incineração em caminhões.
Essa dor talvez ajude as pessoas a responder se somos de fato uma
humanidade. Nós nos acostumamos com essa ideia, que foi naturalizada, mas
ninguém mais presta atenção no verdadeiro sentido do que é ser humano. É
como se tivéssemos várias crianças brincando e, por imaginar essa fantasia da
infância, continuassem a brincar por tempo indeterminado. Só que viramos
adultos, estamos devastando o planeta, cavando um fosso gigantesco de
desigualdades entre povos e sociedades. De modo que há uma sub-
humanidade que vive numa grande miséria, sem chance de sair dela — e isso
também foi naturalizado.
O presidente da República disse outro dia que brasileiros mergulham no
esgoto e não acontece nada. O que vemos nesse homem é o exercício da
necropolítica, uma decisão de morte. É uma mentalidade doente que está
dominando o mundo. E temos agora esse vírus, um organismo do planeta,
respondendo a esse pensamento doentio dos humanos com um ataque à forma
de vida insustentável que adotamos por livre escolha, essa fantástica
liberdade que todos adoram reivindicar, mas ninguém se pergunta qual o seu
preço.
Esse vírus está discriminando a humanidade. Basta olhar em volta. O
melão-de-são-caetano continua a crescer aqui do lado de casa. A natureza
segue. O vírus não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos.
Quem está em pânico são os povos humanos e seu mundo artificial, seu modo
de funcionamento que entrou em crise.
É terrível o que está acontecendo, mas a sociedade precisa entender que
não somos o sal da terra. Temos que abandonar o antropocentrismo; há muita
vida além da gente, não fazemos falta na biodiversidade. Pelo contrário.
Desde pequenos, aprendemos que há listas de espécies em extinção.
Enquanto essas listas aumentam, os humanos proliferam, destruindo florestas,
rios e animais. Somos piores que a Covid-19. Esse pacote chamado de
humanidade vai sendo descolado de maneira absoluta desse organismo que é
a Terra, vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega
a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos.
Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam se manter agarrados
nessa Terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta,
nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na
América Latina. Esta é a sub-humanidade: caiçaras, índios, quilombolas,
aborígenes. Existe, então, uma humanidade que integra um clube seleto que
não aceita novos sócios. E uma camada mais rústica e orgânica, uma sub-
humanidade, que fica agarrada na Terra. Eu não me sinto parte dessa
humanidade. Eu me sinto excluído dela.
Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a
humanidade e nos alienamos desse organismo de que somos parte, a Terra,
passando a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade.
Eu não percebo que exista algo que não seja natureza. Tudo é natureza. O
cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.
Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas
grandes corporações, que são os donos da grana. Agora esse organismo, o
vírus, parece ter se cansado da gente, parece querer se divorciar da gente
como a humanidade quis se divorciar da natureza. Ele está querendo nos
“desligar”, tirando o nosso oxigênio. Quando a Covid-19 ataca os pulmões, o
doente precisa de um respirador, um aparelho para alimentação de oxigênio,
senão ele morre. Quantas máquinas dessas vamos ter de fazer para 7 bilhões
de pessoas no planeta?
A nossa mãe, a Terra, nos dá de graça o oxigênio, nos põe para dormir, nos
desperta de manhã com o sol, deixa os pássaros cantar, as correntezas e as
brisas se moverem, cria esse mundo maravilhoso para compartilhar, e o que a
gente faz com ele? O que estamos vivendo pode ser a obra de uma mãe
amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por um instante.
Não porque não goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa. “Filho,
silêncio.” A Terra está falando isso para a humanidade. E ela é tão
maravilhosa que não dá uma ordem. Ela simplesmente está pedindo:
“Silêncio”. Esse é também o significado do recolhimento.
Quem dera eu pudesse fazer uma mágica para nos tirar desse
confinamento, que pudesse fazer todos sentirem a chuva cair. É hora de
contar histórias às nossas crianças, de explicar a elas que não devem ter
medo. Não sou um pregador do apocalipse, o que tento é compartilhar a
mensagem de um outro mundo possível. Para combater esse vírus, temos de
ter primeiro cuidado e depois coragem.
Vemos algumas pessoas defenderem a manutenção da atividade
econômica, dizendo que “alguns vão morrer” e é inevitável. Esse tipo de
abordagem afeta as pessoas que amam os idosos, que são avós, pais, filhos,
irmãos. É uma declaração insensata, não tem sentido que alguém em sã
consciência faça uma comunicação pública dizendo “alguns vão morrer”. É
uma banalização da vida, mas também é uma banalização do poder da
palavra. Pois alguém que fala isso está pronunciando uma condenação, tanto
de alguém em idade avançada, como de seus filhos, netos e de todas as
pessoas que têm afeto uns com outros. Imagine se vou ficar em paz pensando
que minha mãe ou meu pai podem ser descartados. Eles são o sentido de eu
estar vivo. Se eles podem ser descartados, eu também posso.
Governos burros acham que a economia não pode parar. Mas a economia é
uma atividade que os humanos inventaram e que depende de nós. Se os
humanos estão em risco, qualquer atividade humana deixa de ter importância.
Dizer que a economia é mais importante é como dizer que o navio importa
mais que a tripulação. Coisa de quem acha que a vida é baseada em
meritocracia e luta por poder. Não podemos pagar o preço que estamos
pagando e seguir insistindo nos erros.
Michel Foucault tem uma obra fantástica, Vigiar e punir, na qual afirma
que essa sociedade de mercado em que vivemos só considera o ser humano
útil quando está produzindo. Com o avanço do capitalismo, foram criados os
instrumentos de deixar viver e de fazer morrer: quando o indivíduo para de
produzir, passa a ser uma despesa. Ou você produz as condições para se
manter vivo ou produz as condições para morrer. O que conhecemos como
Previdência, que existe em todos os países com economia de mercado, tem
um custo. Os governos estão achando que, se morressem todas as pessoas que
representam gastos, seria ótimo. Isso significa dizer: pode deixar morrer os
que integram os grupos de risco. Não é ato falho de quem fala; a pessoa não é
doida, é lúcida, sabe o que está falando.
Desde muito tempo, a minha comunhão com tudo o que chamam de
natureza é uma experiência que não vejo ser valorizada por muita gente que
vive na cidade. Já vi pessoas ridicularizando: “ele conversa com árvore,
abraça árvore, conversa com o rio, contempla a montanha”, como se isso
fosse uma espécie de alienação. Essa é a minha experiência de vida. Se é
alienação, sou alienado. Há muito tempo não programo atividades para
“depois”. Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos
vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã.
Penso naqueles versos do Carlos Drummond de Andrade: “Stop./ A vida
parou/ ou foi o automóvel?”. Essa é uma parada para valer. O ritmo de hoje
não é o da semana passada nem o do ano novo, do verão, de janeiro ou
fevereiro. O mundo está agora numa suspensão. E não sei se vamos sair dessa
experiência da mesma maneira que entramos. É como um anzol nos puxando
para a consciência. Um tranco para olharmos para o que realmente importa.
Tem muita gente que suspendeu projetos e atividades. As pessoas acham
que basta mudar o calendário. Quem está apenas adiando compromissos,
como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado. O futuro é
aqui e agora, pode não haver o ano que vem. Ninguém escapa, nem aquelas
pessoas saindo de carro importado para mandar seus empregados voltarem ao
trabalho, como se fossem escravos. Se o vírus pegá-los, eles podem morrer,
igual a todos nós. Com ou sem Land Rover.
As cidades são sorvedouros de energia: se faltar eletricidade, as pessoas
morrem fechadas nos seus apartamentos, sem conseguir descer. Não tivemos
capacidade crítica para pensar as consequências de uma crise sanitária nos
grandes centros urbanos, e preciso confessar que tenho dó de quem vive
nessas metrópoles. Muitas pessoas vivem sozinhas nesses centros, deixamos
de ser sociais porque estamos num local com mais 2 milhões de pessoas.
Em artigo que li sobre a pandemia, o sociólogo italiano Domenico De Masi
cita a obra profética A peste, de Albert Camus: a peste pode vir e ir embora
sem que o coração do homem seja modificado. Ele cita um trecho inteiro do
romance em que o personagem diz algo assim: o bacilo que trouxe aquela
mortandade, que parece que tinha sido dominado, podia continuar oculto em
alguma dobra, algum corrimão, janela, poltrona, só esperando o dia em que,
infortúnio ou lição aos homens, a peste acordará seus ratos para mandá-los
morrer numa cidade feliz.
Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porque não
valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. Depois disso
tudo, as pessoas não vão querer disputar de novo o seu oxigênio com dezenas
de colegas num espaço pequeno de trabalho. As mudanças já estão em
gestação. Não faz sentido que, para trabalhar, uma mulher tenha de deixar os
seus filhos com outra pessoa. Não podemos voltar àquele ritmo, ligar todos
os carros, todas as máquinas ao mesmo tempo.
Seria como se converter ao negacionismo, aceitar que a Terra é plana e que
devemos seguir nos devorando. Aí, sim, teremos provado que a humanidade
é uma mentira.
Ailton Krenak nasceu em 1953, na região do vale do rio Doce, território do
povo Krenak, um lugar cuja ecologia se encontra profundamente afetada pela
atividade de extração de minérios. Ativista do movimento socioambiental e
de defesa dos direitos indígenas, organizou a Aliança dos Povos da Floresta,
que reúne comunidades ribeirinhas e indígenas na Amazônia. É um dos mais
destacados líderes do movimento que surgiu durante o grande despertar dos
povos indígenas no Brasil, que ocorreu a partir da década de 1970.
Contribuiu também para a criação da União das Nações Indígenas (UNI).
Ailton tem levado a cabo um vasto trabalho educativo e ambientalista, como
jornalista, e através de programas de vídeo e televisivos. A sua luta nas
décadas de 1970 e 1980 foi determinante para a conquista do “Capítulo dos
índios” na Constituição de 1988, que passou a garantir, pelo menos no papel,
os direitos indígenas à cultura autóctone e à terra. É coautor da proposta da
Unesco que criou a Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço em 2005 e é
membro de seu comitê gestor. É comendador da Ordem do Mérito Cultural
da Presidência da República e, em 2016, foi-lhe atribuído o título de doutor
honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais.
Copyright © 2020 by Ailton Krenak
Texto elaborado a partir de três entrevistas com Ailton Krenak, realizadas em abril de 2020:
MAAKAROUN, Bertha, “O modo de funcionamento da humanidade entrou em crise”. Estado de Minas, 3
abr. 2020; HELAL FILHO, William, “Voltar ao normal seria como se converter ao negacionismo e aceitar
que a Terra é plana”. O Globo, 6 abr. 2020; MARTINS, Christiana, “Não sou um pregador do apocalipse.
Contra essa pandemia é preciso ter cuidado e depois coragem”. Expresso, Lisboa, 7 abr. 2020.
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor
no Brasil em 2009.
Capa
Alceu Nunes
ISBN 978-85-5451-732-8