Mestre Tamoda - Uanhenga Xitu

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Uanhenga Xitu

(Agostinho A. Mendes de Carvalho)

“Mestre” Tamoda
&
Vozes na sanzala (Kahitu)

CONTOS
DESTA COLECÇÃO
1 – Manana
2 – “Mestre” Tamoda e Vozes na Sanzala (Kahitu)
3 – Os Discursos do “Mestre” Tamoda
4 – Mungo (Os Sobreviventes da Máquina Colonial Depõem…)
5 – O Ministro
6 – Cultos Especiais
7 – Bola com Feitiço
UANHENGA XITU
(Agostinho A. Mendes de Carvalho)

“Mestre” Tamoda
&
Vozes na sanzala (Kahitu)
CONTOS

Colecção: BIBLIOTECA UANHENGA XITU – 2


DEZEMBRO – 2009
LUANDA
“Mestre” Tamoda &
Vozes na sanzala (Kahitu)

Autor: UANHENGA XITU


© Uanhenga Xitu /Editorial Nzila, Lda, Luanda – 2009
Direitos reservados por Editorial Nzila, Lda
Colecção: BIBLIOTECA UANHENGA XITU – 2
Edição: Editorial Nzila, Lda.
Rua 9 – Talatona Park – A12, Talatona – Luanda Sul, Angola
Caixa Postal: n.º 3462
Telefax: 222 006082
E-mail: [email protected]
Paginação e fechamento de arquivo: Luciano de Paula Almeida
Capa:
Impressão e Acabamento:
Tiragem: 2.500 exemplares
1.ª edição: Luanda, Dezembro de 2009
Depósito Legal n.º 4736/2009
ISBN: 978-989-631-173-5
ÍNDICE

“Mestre” Tamoda .........................................................................


Vozes na sanzala (Kahitu) ...............................................................
Terminou o julgamento no tribunal militar territorial ....................
Foram condenados pelos tribunal militar territorial ........................
O tribunal militar de Luanda condenou mais 20 Réus .....................
Comunicado do Comando-Chefe das forças armadas ......................
Introdução ...................................................................................
Principais personagens ..................................................................
Kahitu ..........................................................................................
Kituta ..........................................................................................
Escola ..........................................................................................
Cartório .......................................................................................
Kizolexa .......................................................................................
Sai njimu, sai hete .........................................................................
Kisoko ..........................................................................................
Ndum ni mu Mbanza ...................................................................
Kahitu .........................................................................................
Bibliografia de Uanhenga Xitu .......................................................
“Mestre” Tamoda
À memória do saudoso e malogrado
meu compadre Kamundongo (Higino
Aires Alves de Sousa Viana e Almeida),
falecido em 11/1/1970, num
domingo. Morreu o Higino Aires!!!...

Tamoda, muito novo, dirigiu-se à cidade de Luanda, onde viveu


muitos anos. Nesta, trabalhava e estudava nas horas vagas, com os filhos
dos patrões e com os criados do vizinho do patrão. Assim, conseguiu
aprender a fazer um bilhete e uma cartinha que se compreendia.
No último emprego, na casa de um Doutor que vivia solteiro,
quando o patrão se ausentava para o serviço, passava o tempo a decorar
e a copiar os vocábulos do dicionário. Aqueles vocábulos que lhe soavam
bem.
Já homem e na idade de casar, abandonou a cidade e o emprego e
voltou à sanzala1 que o viu nascer.
Quando desembarcou na estação dos Caminhos-de-Ferro, sobraçava
dois volumosos calhamaços e uma pasta de arquivo na mão. Duas
maletas e um saco de pano branco que, além de outros volumes, foram
levados pelos parentes que nesse dia iam ao seu encontro.
Em casa, na presença daqueles que o iam saudar, abriu a mala que
trazia muitos romances velhos, entre eles um dicionário usado e já
carcomido, algumas folhas soltas de dicionários, cadernos garatujados
com muito vocabulário, um livro de Como se escrevem cartas de amor,
____________________________________
1 sanzala – aldeia, lugarejo (N.E.).

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Uanhenga Xitu

outro de Manual de correspondência familiar e alguns volumes de leis.


O novo intelectual, no meio de uma sanzala em que quase todos os
seus habitantes falavam quimbundo e só em casos especiais usavam o
português, achou-se uma sumidade da língua de Camões. Ao dicionário
apelidava: o ndunda – aliás, termo também aplicado, em quimbundo, a
qualquer livro volumoso e de consulta.
Nas reuniões em que estivesse com os seus contemporâneos
bundava2, sem regra, palavras caras e difíceis de serem compreendidas,
mesmo por aqueles que sabiam mais do que ele e que eram portadores
de algumas habilitações literárias.
Quando em conversa com moças analfabetas e que mal
pronunciavam uma palavra em português, o “literato”, de quando em
vez, lozava3 os seus putos4. Porém, alguns deles nem constavam dos
dicionários da época.
Era um “etimologista”, um “dicionarista”, que tinha descido na
sanzala!
Quem o aturou mais, nessa sua maneira de se expressar em putos
caros, em público, foi a namorada Mufula, com quem mais tarde veio
a casar-se.
Como da cidade trazia dinheiro e podia pagar a alguém que lhe
fizesse o trabalho de obrigação a que certo “morador” estava sujeito a
prestar nas lavras dos sobas5 e de outras autoridades, o “dicionarista”
tinha tempo de exibir os seus fatos, trazidos da cidade.
A exibição era feita pelo período da tarde, quando regressava da
lavra dos seus pais, e na altura em que, geralmente, todos os lavradores
estão de volta dos campos.
Granjeava bastante simpatia dos jovens estudantes. E é nesta classe
de “moradores” em que os seus putos tiveram terreno propício.

____________________________________
2 bundava – intercalava, interpunha (N.A.).
3 lozava – intercalava, interpunha (N.A.).
4 puto – português. De “Puto”, que significa “Portugal” em quimbundo (N.E.).
5 soba – chefe tradicional (N.E.).

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“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

Aguardava pela passagem dos moços quando voltavam da escola. Os


garotos ouviam o “mestre” Tamoda com grande interesse. Alguns deles
tomavam notas nas ardósias e nas capas dos cadernos do vocabulário
que o “mestre” ia ditando. Nem sempre havia tempo de tirar o material
para tomar nota dos apontamentos, o que os alunos faziam nas suas
coxas ou nos antebraços negros como a cor da ardósia. O ditado era
rápido.
Nas reuniões juvenis, cada garoto, para mostrar a sua capacidade
intelectual, de vez em quando intercalava um vocábulo na conversa,
quer tivesse ou não relação com o assunto. Porém, a confusão era tanta
que cada um só sabia o que continha a sua folha. A fama do Tamoda,
difundida pelos garotos, dominava as povoações, incluindo gente
feminina, que, geralmente, não frequentava a escola.
Distribuía folhas soltas de dicionário, para serem decoradas pelos
miúdos e eram encaixadas com mais facilidade que o ditongo, sílaba e
adjectivo do professor oficial.
O mestre era tão querido pelos seus petizes que quando passava,
todo ele janota, vestido de calções e camisas bem brancas, meias altas
e capacete também da mesma cor do fato, sapatos à praia com lixa6,
ouvia-se o coro dos rapazes que tributavam ao Tamoda:
– Lungula7, Tamoda!... Lungula, Tamoda!
Tamoda, na cadência das vozes e do sapato a chiar, ia marcando
o ritmo com a cabeça e os ombros, muito esticada e sorridente, e
lungulava como um kingungu-a-xitu8:
“... Ié-ié, ié-ié, ié-ié (o chiar do sapato)... Ié-ié, ié-ié”, que era
correspondido com a vozearia dos garotos: “’Lungula, Tamoda!
Lungula, Tamoda! Lungula, Tamoda!”.
O “mestre” volteava-se cerimoniosamente para os seus fãs com o

____________________________________
6 sapatos à praia com lixa – sapatos de cor branca e preta que rangem ao andar (N.E.).
7 lungula – Ginga (N.A.).
8 kingungu-a-xitu – grande pássaro do mato, também conhecido por peru-do-mato (Kingunguaxitu ou kingungu)
(N.A.).

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Uanhenga Xitu

sorriso a relancear-se-lhe na face, e repetia pausadamente, em sua voz


grossa, as palavras gritadas: “ Lungula, Tamoda!” – ao mesmo tempo
que, com o capacete entre os dedos e mal pousado na cabeça, fazia com
garbo uma vénia de diplomata.
Os garotos, radiantes com a saudação, mais gritavam:
– Lungula, Tamoda! Lungula, Tamoda!...
Às vezes, os garotos acompanhavam o chio dos sapatos com
o estribilho de “uá, uákala-uá! Uá-uá, uákala-uá ngasumbile kiá
jakuké...”.9
Tamoda, com uma mão no kimokoto10 e outra no capacete, girava
sobre si e encarava a rapaziada, todo radiante, ao mesmo tempo que
estremecia o pé e cumbuacumbuava11 a cabeça sorrindo.
No lar e na rua os resmungos dos miúdos eram feitos em português
do Tamoda, o que criava dissabores aos “estudantes”. Porque os pais e
manos que não compreendiam o significado da palavra interpretavam-
na como asneira, o que se pagava com uns bons açoites.
– Mano Tamoda, a gente quer saber o feminino de muchacho! –
perguntaram dois garotos duvidosos e na altura em que o “mestre” saía
da cacimba de banho.
– O feminino de muchacho é “muchachala”! – respondeu
prontamente o “mestre”, senhor de si e o único a quem se podia
consultar nas dúvidas.
Os garotos, Kidi e Kuzela, saíram a correr, satisfeitos, para divulgarem
o novo vocábulo, a acrescentar aos outros como: “mucama, embasbacado,
cavalgadura, cavaldagem, mequetrefe, caviloso, sundéifulo, carabaixa,
bajoujo, gentiga, jocoso, grageu, vasca, zoomorfo, zornar, lamecha,
xucro, xéta, caduco, panhonho, pacóvio, larápio, manganar, biltre,
basbaque, vagabundo...”.

____________________________________
9 uákala-uá... – o chiar do sapato (N.E.)
10 kimokoto – ilharga (N.A.).
11 cumbuacumbuava – meneava (N.A.).

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“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

Porém, o novo vocábulo de “muchachala” não vigorou muitos dias,


porque é parecido com uma palavra em quimbundo: muxa-xala, que
significa sulco nadegueiro ou via retal.
As rapariguinhas que eram tratadas por “muchachalas” com o
significado de moça, jovem, corriam para se queixarem aos pais, quando
elas não podiam sovar os novos “académicos”. Os pais ou manos
daquelas não tardavam a aparecer, para fazer contas com os discípulos
do Tamoda.
– Muxaxala uanhi, inn?! Ja Tamoda-zé!?... Kiene?...12 – inquiriam os
pais das garotas. Em seguida, puxãozinho de orelhas, palmadas e umas
chicotadinhas bastavam para fazer esquecer o feminino de muchacho.
Os moços estavam tão interessados em decorar o dicionário que, na
sanzala, as folhas soltas de jindunda* eram procuradas a todo o custo.
Muitos pais ficaram com os dicionários incompletos, nesta gana de
aprender, porque os filhos arrancavam as folhas para as trocar, por 50 a
100 castanhas de caju cada folha, aos outros que andavam à procura.
Uma noite, Kidi e Kuzela foram ao sungi(8) onde o Tamoda,
afastado um pouco do grupo dos outros pernoitadores, conversava com
a namorada, a Mufula.
Meia hora antes, já tinha corrido com alguns miúdos que não lhe
deixavam conversar à vontade.
– Ó Tamoda, boa noite. Como vai a vida? – saudou o Bento, seu
contemporâneo.
– Olá, Bento, eu sempre na excelência com a minha cachopa.
– Mano Tamoda, cachopa é quê? – perguntou Kuzela.
– Cachopa é donzela.
– Donzela é quê? – interrogou Kidi.
– Donzela é ninfa.

____________________________________
12 Muxaxala uanhi, inn... – Muxaxala de quê, hem?! São os putos do Tamoda, não é?! (N.A.).
13 jindunda – dicionário (N.E.).
14 sungi – lugar de serão (NA).
15 tundam – saiam (NA).

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Uanhenga Xitu

– Ninfa é quê?
– Ninfa é muchacha ou “muchachala” ...
– Xé, miúdos de merda, seus sacanas! Está a chatear mais
velho porquê? Pessoa pergunta-pergunta mais e não engula cuspe;
tundam(9) daqui!!! – disse o Bento, muito aborrecido com Kidi e seus
companheiros.
– Não, Bento, deixa os muchachos perguntarem... Eles querem
desnublar a ebiótica e etogenia.
– Está bem, perguntar também tem hora. Não deixa mais você com
o coração sossegado! E não deixa também você falar com vontade com
Mufula!
– Não faz mal, Mufula não tem cachonda16 – disse o “mestre”,
sorrindo abertamente como era seu hábito. – Vamos, meus muchacharia,
perguntem à vontade. A cabeça do Tamoda é um ndunda (ah!, ah!, ah!,
ah!) ... – o mestre dava gargalhadas.
– Perguntem sempre, não é assim, Mufula? Responde, ou estás com
entojo de domingo? (ah!, ah!, ah!...).
Kuzela e companheiros desejavam fazer mais perguntas mas tinham
medo do Bento, que conversava agora com Mufula. Esta sorria com as
pilhérias do namorado e sentia-se feliz por ser noiva do “homem de
ndunda”, como às vezes era alcunhado o Tamoda.
Alguns rapazes, para se não esquecerem do novo vocabulário
acabado de ouvir, monologavam baixinho: cachonda-cachondear...
cachonda, cachonda, cachonda, cachopa, cachopa, donzela, ninfa,
cachonda, cachondear, ebiótica, etogenia...
– Mano Tamoda, a gente só queria dizer que português de
“muchachala” está a dar porrada, então. Estão a dizer que é dis¬paratar
e mesmo no dicionário não tem...
– Quem é que disse elevíssima patranhosa? – exclamou Tamoda,

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16 cachonda – cio das cadelas e fêmeas em geral (N.E.).

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“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

muito indignado e ofendido. – Vejam lá que muchacharia não está no


dicionário!? Estes dicionários que andam por aí com esses basbaques
são infíssima folhagem do ndunda do Doutor onde Tamoda se
evidenciara!... Que descoco, que descoco! É chufa! É chufa! Estou
metido no vulto de cavalgaduras, cambadas de cameliformes!!!
– Vuua17, que puto, Tamoda, é chufa, é chufa, grande puto de
Tamoda, já Tamoda da Kiá18 ndunda de Tamoda saiu! Kuene o puto19:
é chufa, é chufa – imitavam e gritavam os garotos numa algazarra de
júbilo, por ouvirem a fluência do “dicionarista”.
–... que discoco – que discoco, é chufa, é chufa – agora era uma cantiga
dos alunos.
Kidi e o amigo deixaram Tamoda, que também já ia despedir--se da
noiva, e dirigiram-se a uma fogueira onde moças assavam castanhas de
caju, numa chapa larga de zinco.
A resina que deitavam as castanhas alteava de tal forma o fogo, como
se o lume fosse alimentado de gasolina; vum-vum, vum... – estalavam as
castanhas. De vez em quando algumas saltavam da assadeira e vinham
ter à rapaziada de volta.
Foi nessa altura que algumas castanhas vieram morrer aos pés de
Kuzela. Este pisou-as. Mas não aguentou a quentadura e com jeito de
pé chutou algumas para longe – apanhá-las-ia mais tarde. Da assadeira
continuavam a pular castanhas. Kidi vergou o tronco, despistando a
vigilância das donas, apanhou algumas e meteu-as no bolso, mas a coxa
aqueceu e atirou-as longe com subtileza.
– Kuzela, dá castanha que escondeu aí nas pernas! – pediu a Sabalo,
uma das três raparigas que as assavam.
– Não tem castanhas.
– Tem, eu vi bem...
– Também esse Kidi pôs castanhas na gibeira, dá castanha! – disse a
____________________________________
17 Vuua – Viva! (N.A.).
18 já Tamoda da Kiá – os putos do Tamoda em acção, ei-los! (N.A.).
19 Kuene o puto – que grande português, que português excelente (N.E.).

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Uanhenga Xitu

Kinoka, uma das donas.


– É mentira, não tenho castanha, veja só, veja só – Kidi revolvia o
forro dos bolsos. – Você pega só ladrão sem nada, grageu de merda!...
– Grageu, eie muene20.
– Cala mazé21, seu panhanha.
– Panhá eie muene, mequetrefe ié, pacovi ié! – respondeu Kinoka,
toda ela afinada no português de Tamoda.
– Não te admito que mim me chama mequetrefe, pacóvio.
Não admito, mucama de merda, sundéifula22.
– Sundéifili eie muene, nguetu kié jiputu já Tamoda ben ‘aba23, a
gente quer só castanha no chão agora mesmo – replicou Kamanhi, uma
das companheiras. A Kamanhi era rabanca24 e já empurrava Kuzela.
Alguns garotos pulavam, incitando a luta.
– Ó Kuzela, vamos embora, deixa lá estes janotas, cavídias25,
berzundas26 – gritou Kidi, muito vaidoso.
De repente surgiu o irmão mais velho da Sabalo, que fora chamado
para enfrentar os discípulos do Tamoda que procuravam demonstrar a
cultura.
– Que raio é esta?...
– Sim, mano João, é estes, andam viri aqui com puto de Tamoda e
roubar castanhas. Quando a gente fala começa a disparatar...
– Ai é? Final venha aqui com puto de roubar!? Este puto de caviia,
caviia bersundo, bersundo é português que falou como? – Eu falou
cavídia e berzundas – respondeu Kidi, preparando-se para fugir.
– Está bem, caviia, cavidi é mesma coisa. Mas é puto que disse
como, é puto de quê, zuela iambe kié?!...27. E este puto de bersundo,
bersundo final é puto de disparatar de verdade! A gente costuma só
____________________________________
20 eie muene – é você; és tu (N.A.).
21 mazé – mas é (N.E.).
22 sundéifula – vulva (N.E.).
23 nguetu kié jiputu… – tenha paciência, por enquanto não queremos português do Tamoda cá (N.A.).
24 rabanca – briguenta (N.E.).
25 cavídia / caviia / cavidi – roedor (N.E.).
26 berzunda (ou berzundela) – bebedeira (N.E.).

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“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

ouvir que veio puto de Tamoda, final é puto de disparatar mesmo!...


Os dois moços abriram caminho na aglomeração de gente e deram
às de vila-diogo.
– Agarra, agarra! – eram seguidos com gritaria e arremesso de pedras
e de achas incandescentes.
No outro dia, na escola, e na hora da leitura, três alunos e duas
alunas estavam sentados diante da professora, num banco comprido.
Enquanto Kuzela lia de pé, a sua colega Júlia cabeceava.
– Júlia está a cachondear... – cochichou Kidi no ouvido de Helena.
Esta sorriu.
– Que estás a rir, Helena? É hora da lição ou de brincadeira? –
perguntou a professora.
– É o Kidi que disse que a Júlia está a cachondear, e eu ri...
– E isso dá alguma graça para rir? E tu, Kidi, quem deu autori-zação
para falar?
– Perdão, sô-psora...
– E o que quer dizer cachondear?
– Cachondear é cabecear.
A professora virou-se, reparou que alguma coisa não estava sobre
a secretária encostada à parede. Pensavam os alunos que a professora
andava à procura da vara ou da palmatória.
A professora saiu para a sua residência, que ficava a uns passos. Aula
interrompida.
Na ausência da mestra, alguns alunos passaram a falar alto,
comentando. Outros apontavam para Kidi, Helena e Júlia como sendo
as vítimas da sova do dia. Kidi andava sobressaltado com a interpretação
de “cachondear”, pois não se achava bem seguro com o significado.
Acrescia ainda a agravante de que os colegas Oxai, Mbelengenze, João,
Pedro, não tinham vindo nesse dia. E eram esses que tinham as folhas
do dicionário respeitantes à letra C, e de C até CAT.
____________________________________
27 é puto de quê, zuela iambe kié?! – o que significa este português?! (N.E.).

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Uanhenga Xitu

Quando a professora entrou sobraçando um volumoso dicionário


ilustrado, o silêncio voltou a reinar na aula. A professora fazia a vez do
marido, que se encontrava em Luanda, para poucos dias.
– Então, ó Kidi, o que quer dizer cachondear?
– É cabecear, sô-psora – disse o garoto muito apreensivo.
– Quem te ensinou este português?
– Nós ouvimos ontem no sungi, sô-psora.
– De quem?
– Do mano Tamoda, sô-psora...
– Então, para se esquecer dele, vais levar uma lição.
E o rapaz foi cruelmente palmatoado e varado.
– Fiquem já avisados – dizia a professora, dirigindo-se para os alunos.
– Não quero palavras do português do Tamoda cá dentro e nem lá fora.
E todo o aluno que for denunciado que continua a usá-lo será castigado.
E como exemplo está aí o vosso colega. – Kidi ainda choramingava e
torcia-se. – Nada do português do Tamoda. Em vez de estudarem a
matéria da escola passam o tempo a decorarem disparates!...
A seguir a esta prelecção, a professora, com a ajuda dos alunos mais
crescidos, fez uma busca geral nos livros, pastas, carteiras e bolsos dos
alunos. Conseguiu caçar folhas soltas de dicionários, além de cadernos
completamente cheios de putos do Tamoda. A última parte da aula
limitou-se a isso.
Da escola a casa, pelo caminho, os fãs do Tamoda vinham a comentar
a estupidez da professora e do ódio que o “povo-cavalgadagem”, nos
dizeres do Tamoda, mostrava contra o “homem de ndunda”.
Nos cadernos que os pais compravam para exercícios, o professor,
depois de regressar, encontrou muitos vocábulos que não constavam
em nenhum dicionário português. Eram de invenção de Tamoda, e
muitos deles de significação pornográfica.
O Curso do Tamoda encerrado.
Uma ocasião o “mestre do português novo” foi chamado pela
autoridade para se identificar. Tinha sido denunciado como um

22
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

mandrião e sem documentos. Também o facto de alcunhar os cipaios28


de verdugos ou fintilhos, e aos quimbares29 de panaças, de pacaios,
criara-lhe antipatia junto das autoridades.
Independentemente disso, os frisos de cabelos que introduzira na
gente nova, para ter o cabelo igual ao seu, provocaram queimaduras na
cabeça.
A afamada Kikema – processo de fazer frisos – estava tão propagada
que os pais, educadores e autoridades sanitárias viram--se em apuros para
impedi-la. O culpado disso era o indesejável “professor de português”.
Eram sete horas da manhã quando o Tamoda chegou ao edi-fício de
Administração do Concelho.
Na varanda do Posto Sede de Catete, o “mestre” passeava de um
lado para outro, sobraçando dois volumes de leis: código civil e código
penal, já velhos. Estavam forrados de pergaminho e timbrados em
letras douradas. Os livros traziam o carimbo do leilão onde tinham
sido adquiridos, quando trabalhava na cidade.
– Negro como era e passear assim com sapatos a chiarem e
de capacete na cabeça! Não... este não era um gajo qualquer. Ou é
engenheiro ou é doutor ou é estrangeiro – murmuravam os outros
pretos que aguardavam pela hora da entrada dos funcionários.
– Mona ngan’ô30, bom dia – cumprimentou uma velha.
– Bom dia – respondeu Tamoda sem olhar para quem o saudou, e
continuou nos seus passeios: “ié-ié, ié-ié” – faziam os seus sapatos.
A velha não gostou do Tamoda e pôs-se a murmurar com as
outras.
– Vamos-lhe perguntar ainda, cada veji31 é nosso filho que andam
lá nas terras de longi e já não nos conhece mais.
– Para que perguntar? Ele mesmo quando passa na gente parece já
é branco ...
____________________________________
28 cipaios – policiais africanos, encarregados de policiar a população africana no tempo colonial (N.E.).
29 quimbar – regedor (autoridade administrava) (N.E.).
30 Mona ngan’ô – senhor, filho de fulano (N.E.).

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Uanhenga Xitu

– Ah! Vou perguntar. São filho da gente e saber um outro não é mal.
Se é pessoa de respeito não vai disparatar um velho que pode ficar como
pai dele.
Tamoda, sempre que passava pelo grupo, ouvia os comentários que
faziam à volta de si, mas não queria nada com eles.
“Pessoa que vai falar com o Senhor Administrador, não vai dar
conversa com estes cavalgaduras, aqueles verdugos, fintilhos. Mesmo
aquele velho que está a falar parece-me um ‘panaça’ e querem confiança
comigo. Bom dia e já chega. Veja lá se chegar agora o Administrador
ou Secretário e encontra Tamoda em ‘croniquizamento’ com esta
‘gentalha’!... Vai pensar o Adminis-trador que Tamoda é da ‘igualhagem’
dos mucamas; e ainda vai pensar que Tamoda é pessoa de lupanar,
carambas!!! Eu não tenho empáfia, mas aqui a confiança é pouca.
Porque se um cair tem de levantar o outro, agora se todos nós cairmos
na mesma corda, por sermos da ‘igualhagem’, ninguém se salva. Por isso
Tamoda tem de ficar longe dos ‘analfabeteiros’. Lá na sanzala está bem:
mano aqui, tio aqui, primo lá e todos os cavalgaduras podem comer,
dormir, dançar com Tamoda...”, de si para si Tamoda comentava:
Do regresso de um dos extremos da comprida e vasta varanda,
passou pelo banco dos cipaios, onde estavam três deles sentados. Ao
chegar em direcção de um grupo de homens que vinham tratar dos seus
assuntos, alguém para ele se dirigiu. Tamoda parou.
– Senhor, desculpa. A gente está a ver só pessoa-que-passa, pessoa-
vai, pessoa-que-passa, pessoa-que-vai, mas cada veji pode ser nosso
filho que não conhece mais a gente. O senhor favor dizer só, se você é
de onde é?
– Sou cidadão Tamoda, que veio atender petição de Excelência
Administrador e Juiz Instrutor, por causa das “facultagem” imponente
da craveira sapiencial do Tamoda...
O velho que perguntara ficara na mesma. Apenas abanava a cabeça,
____________________________________
31 cada veji – às vezes (N.E.).

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“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

admirado pela fluência com que o homem falava o português. Os


cipaios e outra gente que estavam enchendo a varanda aproximaram-se
do homem culto. Mas Tamoda, mal respondeu, deu costas e voltou ao
seu passeio, cheio de importâncias.
– Estes rapazes, quando saem na cidade, pensa já não é pessoa da
terra – cochichou um dos cipaios para os outros.
– Mas o gajo põe puto tudo de dicionário. Deve ser funcionário.
– Quem?! Aka mukuá tuhaa maié!... kingilé, o jiboto ojo nhi
capacet’oko tuondo musumbe eko mumakoka...32
– Não diga assim, como o rapaz está a falar não é pessoa que vai
ficar na enxada ou na estrada!
Quando o Secretário e os Aspirantes atravessavam a varanda para
o gabinete, Tamoda descobriu a cabeça e com o capacete na mão disse
alto:
– Salve, Vossa Excelência, Secretário do Império!
Este parou um pouco, correspondeu ao cumprimento com uma
vénia e, virando-se para os Aspirantes, sorriu discretamente. O mesmo
fizeram aqueles.
– Está a ver, este não dá para lhe dar uma bengala33.
– Não dá porquê? Mas já lhe bateste a bengala?
– O nosso cabo, eu queria lhe dar mesmo o kitukulu34, mas tem
língua muito depressa, puto menha35. Quando o nosso cabo vê um
preto falar muito português na Administração, não dá para lhe pedir
matabicho, pode-te queixar na Administração, é perigoso. Vale mais
pedir um branco. O nosso cabo não lembra mais que passou com nosso
Kambengala?
A secretaria estava em movimento. As máquinas de escrever estalavam
ritmo de batuque e o pessoal que esperava na varanda começou a ser

____________________________________
32 Aka mukuá tuhaa maié!... – Alguns são pelintras, uns zés-ninguéns!... Espere, não tarda muito que fique sem
esses sapatos e o capacete à troca de mandioca (N.A.).
33 dar bengala – pedir gorjeta (N.A.).
34 dar o kitukulu – o mesmo que dar bengala (N.E.).

25
Uanhenga Xitu

atendido. Tamoda continuava a dar as suas voltas, aguardando a vez.


Não tardou muito.
– O senhor, o siâ-secretário manda perguntar se quer alguma coisa
– anunciou o cabo dos cipaios para o Tamoda.
– Trago ofício-trânsito36 remetido a Sua Excelência Administrador
de Circunscrição e Concelho de Icolo e Bengo, em Catete...
O cabo voltou, mas segundos depois veio novamente para pedir o
ofício-trânsito.
O Secretário leu a guia passada pelo Chefe do Posto. Viu o número
das notas nela referenciadas. Consultou a correspondência trocada
entre o Delegado de Saúde e o Administrador, e este com o Chefe de
Posto, por fim sorriu... Estava diante de um finório – disse o Secretário
consigo.
O cabo dos cipaios voltou para a varanda onde o “mestre”, de calças
brancas, camisa de boa popelina, casaco de seda-da-china, fazia chiar os
sapatos à praia, bem branqueados e engraxados.
O cabo não ligava à conversa dos colegas. Matutava como dar a
bengala ao homem dos sapatos de lixa, antes de chegar o Administrador.
Criou coragem e interpelou Tamoda:
– Ó senhor, o Dimixi37 demora... Mas se precisar voltar depressa é
só falar com a gente. A gente aqui com este farda (picava o dedo na sua
farda de caqui) já costuma ajudar até brancos que venham aqui... Bem,
aqui em Catete é quente, mutu uatokala udi-fikidila38.
– Está bem, não há urgentíssima, desejo falar é com o Juiz Instrutor
– respondeu Tamoda e ia meter costas, quando o cabo atirou outra
bengala.
– O senhor não fuma? Queria um cigarro, favor só...
– Fumar nicotina que “ensambleia” o juízo e as vias aéreas e
bocágicas, não, Tamoda não admite isso!
____________________________________
35 puto menha – português como água (fala fluentemente o português) (N.A.).
36 ofício-trânsito – guia de apresentação, documento administrativo da época colonial (N.E.).
37 Dimixi – administrador (N.A.).

26
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

O cabo ficou aborrecido com o malogro dos seus planos.


Afastou-se, resmungou e, dirigindo-se para os colegas, disse:
– Deixa estar, a gente vai-lhe garrar, só se o sacana volta já hoje para
Luanda. Mesmo quando o senhor Secretário estava a ler a guia dele,
todos estavam a rir. É um bandido, kahála39.
– Este nosso cabo também, então pessoa que leva bengala, não lhe
vê nas costas dele? Este rapaz desde que chegou aqui putu mu putu,
muene u di-ta-né?40
Eram nove horas e meia quando o Administrador desceu da
carrinha41, em frente da Administração. O cipaio correu para tomar a
pasta das mãos do Administrador. Antes levou a mão à pala, fazendo
continência. O chefe do Concelho subiu a escada que dava para a ampla
e arejada varanda do edifício.
Tamoda tirou os livros da axila e aprumou-se para saudar a
autoridade que ele aguardava desde pela manhã. Quando o Mixia42
passava, os cipaios alinharam para a continência. Outra gente sentada e
distraída foi mandada levantar. E o Tamoda, que se aprumara próximo
da porta de entrada, saudou:
– Seja bem-vindo, Vossa Senhoria Excelência do Concelho!
– Com um aceno de mão e sem olhar para o Tamoda, o Dimixi
correspondeu.
No fim de duas horas tocou a campainha do gabinete do Dimixi
– trirrri-immmmm – ... O cabo correu, passado um instante voltou à
varanda:
– O senhor é o senhor Domingos João Adão?
– É o sumo Tamoda, criado de você...

____________________________________
38 mutu uatokala u-di-fikidila – a pessoa deve arranjar um apoio; cunha; protecção (NA).
39 kahála – zé-ninguém; coitado (N.E.).
40 putu mu putu, muene u di-ta-né? – só fala português e com uma rapidez extraordinária, é com este que te
queres meter? (N.A.).
41 carrinha – caminhonete aberta, tipo pick-up (N.E.).
42 Mixia – o mesmo que Dimixi (N.E.).

27
Uanhenga Xitu

– Você não, não admito. Eu está a chamar o senhor como é senhor,


porque está me dizer você?! – disse o cabo, muito ofendido.
– Espera, você não é disparatar, quer dizer Vossa Excelência.
Ouvi dizer muitas vezes, nas casas dos Doutores que trabalhei, você,
vossemecê, vossa senhoria, portanto...
– Aqui em Catete é quente, o português tem de ficar ainda na trás.
Vamos, o senhor Administrador chamou; mas esses livros não pode
entrar com ele.
– Porquê? Desejo desassombrar, croniquizar, elucidar e esclarecer
o senhor Administrador nestes livros (batia neles com os dedos, ao de
leve).
– Não pode, lá no Luanda está bem, aqui em Catete a gente costuma
ficar os livros aqui no banco. Aqui não tem roubador..
Tamoda (este nome é alcunha e gostava muito dele, foi-lhe dado
pela rapaziada quando garoto, sete anos, e poucos o não conheciam por
outro nome) não conseguiu levar o cabo. Pousou o capacete e os livros
no banco. Na pequena sala de espera o cabo abriu a porta do gabinete
e disse para o Tamoda entrar.
– Ilustre Excelência, autoriza o cidadão avançar no seu
“gabinéfilo”?
– Entra só, aqui dentro o português pára, e o português fica ainda
fora, vamos! – respondeu o cipaio no lugar do Mixia, que assinava um
montão de papéis que se levantava da secretária.
Desde que entrara o Administrador, não ligara ao homem,
continuava a ler e a assinar notas e ofícios. O cabo com Tank43 ia
mataborrando as assinaturas e as observações de despachos. Silêncio.
– Você está na frente do siô Administrador e começa fazer dançar a
pena? – acusou o cabo, cortando o mutismo que reinava no gabinete,
onde só o farfalhar dos papéis e os sons ténues deixa-dos pela caneta
davam sinais de vida.
O Dimixi olhou seriamente o acusado, enquanto estremecia a
mão que segurava a caneta para mais umas assinaturas... Reconheceu

28
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

que era uma calúnia do cipaio, e continuou o seu labor. Mas Tamoda
olhava ameaçadoramente o cabo. Muita coisa lhe passava pela cabeça.
Conteve-se.
– Estes “carcinhas”44 quando sai no Luanda não fica mais com
respeito de autoridade... Hum!... Então você no gabinete e com o siô
Administrador fica com as mãos no kimokoto? – mais uma insinuação
do cipaio.
Dimixi olhou para o homem e depois para o cabo, mas um olhar
inquiridor, e voltou a assinar os papéis. Tamoda mudou da posição de
mãos cruzadas atrás (e não nas ilhargas, como lhe acusara o cipaio)
para cruzá-las à frente. Não estava a gostar da interferência malévola do
cipaio e, mais, a querer ensinar-lhe regras de boa educação.
“Eu já trabalhei como criado do Doutor Desembargador, de
generais e coronéis, de médicos de grande fama no Hospital Central de
Luanda, contínuo de ‘eminêncio’, advogados, este fintilho, mequetrefe,
basbaque, cavalgadura do cipaio, ximba45 de merda, kabujanganga46,
sundéifulo a pensar que sou da igualhagem, porquê?... Se o senhor
Administrador ainda não me atendeu é
porque está a trabalhar e não porque não me reconheceu o valor.
Porque mesmo no gabinete do Doutor Juiz Desembargador e do
Advogado onde trabalhei guardava silêncio até que o superior nos
perguntasse. Este verdugo do raio está muito enganado” – ruminava o
Tamoda.
– Ó home, você deve ficar sossegado, as mãos não fica no peito
quando está com siô Administrador, as mãos fica aqui (indicava). Você
nunca andou na tropa47, não é?
Tamoda pigarreou atrevidamente. O Mixia abandonou o gabinete,
dirigiu-se ao WC, abriu a porta, fechou-a sobre si e ali sorriu-se à vontade

____________________________________
43 Tank – marca de mata-borrão (N.E.).
44 carcinhas – corruptela de calcinhas, africano que copiava a maneira de vestir dos europeus (N.E.).
45 ximba – cipaio (N.E.).
46 kabujanganga – roedor semelhante ao esquilo que exala odor desagradável (N.E.).

29
Uanhenga Xitu

das impertinências do cabo e da reacção denunciada do Tamoda. Na


ausência, o cipaio chegou-se ao Tamoda e falou-lhe no ouvido:
– Aqui em Catete é quente, nunca ouviu falar? Vocês quando
venham aqui precisa trazer cigarros para a gente que não ganha nada...
O “mestre”, com vontade de esganá-lo, deu costas e olhava pela janela
de cortinas coloridas. Despertou quando regressou o Administrador.
– Bem, bem, vamos ver o assunto deste excelência. Mostra-me os
teus documentos, identifica-te...
– V. Ex.ª, V. S.ª, Sumo e Ilustre, exige a coaptidão de um
recipiendário?
– Identifica-te e deixa-te de coaptidão. Foste acusado de vadio, sem
documentos e além disso esteve cá o Sr. Dr. a queixar-se de que estás
a provocar queimaduras nos garotos com quiquema – aquela casca de
mubanga e o fixador de mutamba, além de outros ingredientes e o
ferro de engomar que andas a meter na cabeça das crianças. Também o
professor se veio queixar de que andas a ensinar português de disparate
na sua escola. Como vês, quero saber de quem se trata. Lá da cidade
trazem vícios e querem passá-los à juventude da área...
– Eu, V. Ex.ª, V. S.ª...
– Apenas quero os documentos e o resto fica para mais tarde, já
disse...
– Mas V. Ex.ª Ilustre...
– Documentos, rapaz! – bradou o Mixia, que estava a perder
a paciência. Deixou de assinar e olhava ameaçadoramente para o
“mestre” de português. Abandonou de novo a sala para o gabinete do
Secretário.
– Ó senhor, eu não disse que aqui em Catete é quente? Aqui o
senhor Administrador só quer os documentos, jiputu pal’ anhi, uondo
temexe ngó o mundele! 48 – interveio o cabo na ausência da autoridade.
– Mas eu quero explicar.
____________________________________
47 tropa – exército (N.E.).

30
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

– Mas explicar mais quê? Você está pensar que está na Mbanza49 do
soba ou quê? O branco disse que é documento, é documento e pronto,
para que mais explicar? Vocês rapazes quando fica já na cidade parece
já Administrador também! – disse o cabo palmeando numa atitude de
admiração.
Voltou o Administrador.
– Vá, explica lá, mas depois quero os documentos.
– Sumo, Excelência, aquele professor preto é difamoso e o senhor
chefe do Posto não inquiriu bem com a averiguação penicial a
consequência do kikema para instalar os autos ao Sr. Dr. Tudo é chufa,
é chufa. Eles têm raiva de mim porque ensino português e os miúdos
me gostam. E pessoa como interlocutor, nos termos do Código Civil,
do Código Penal, do Código Comercial, Tamoda não é mucama, não é
mequetrefe, não é grageu, não é basbaque, não é panhonho para andar
fazer trabalho de igualha cavalgadagem, sem soldo...
A autoridade depois de tanto olhar para ele... fez sinal ao cipaio
e o “catedrático” foi enxovalhado. Como documento o “interlocutor”
apenas tinha o de há dois anos. A caderneta50 do ano em curso
emprestara a um amigo, em Luanda, para se livrar das rusgas (naquele
tempo as fotos nas cadernetas não eram obrigatórias), até que arranjasse
dinheiro e pagasse o seu.
– Vais para a tua sanzala e dentro de um mês quero o imposto
pago. E deixa-te de te meteres com as crianças e seus pais. Se voltar a
ouvir que continuas com “queimaduras” e com as aulas de português
pornográfico, desterrar-te-ei para muito longe daqui.
Para a varanda Tamoda ia com as mãos cruzadas e bem aquecidas
perante a satisfação do público e sobretudo dos cipaios. – Ndandu
iami 51, quando venham aqui precisa ficar um bocado obediente...

____________________________________
48 jiputu pal’anhi... – muito português para quê? Só vais irritar o branco! (N.A.).
49 Mbanza – tribunal ou palácio do soba (N.A.).
50 caderneta – documento pessoal da população africana no tempo colonial; os brancos usavam bilhete de
identidade (N.E.).

31
Uanhenga Xitu

português de ndunda é lá na cidade, está ouvir, mano Domingos? –


dizia um cipaio em tom da chacota.
– Está bem, mas eu não falei mal.
– Pronto já, ouviu? Pega já nos livros (mal ele procurava levantar
os códigos) e vai fazer como o Dimixi disse. Mesmo o mano tem sorte,
disparatar o Dimixi e não ficar no castigo.
– Mas eu não prevariquei, só “verbesiei” eloquentemente...
– Eh!! Pronto já, puto mais para quê, puto menha, puto menha
ma’kuene dijimu! 52 Quando venham aqui primeiro é ainda falar com
a gente que conhece as coisas, não é só viri safuá53. Mesmo o senhor
se nos molhasse só as mãos quando chegou a gente traba-lhava tudo
– aconselhou e rematou o cabo que se juntara ao grupo dos colegas
que motejavam o mestre e procuravam dar-lhe o “kitukulu” de
misericórdia.
Era noite quando Tamoda chegou à sanzala. Porém a notícia do
enxovalhamento chegara mais cedo. Os seus amigos o aguardavam para
o saudar. Esteve lá.
– Oh! O gajo bateu-me porque lhe disse quatro portugueses
“furacadas” que lhe deixaram embasbacado... Ah, uakumbu naju 54
durante muito tempo, e, como não entendia do puto que lhe mandava,
bateu-me por vingança, bateu-me mesmo só por raiva. Eles são assim
mesmo, não querem que a gente sabe mais do que eles...
Tamoda, em volta de velhos e dos seus fãs, continuou a justificar-
se:
– Na primeira pergunta, ele não sabia que quer dizer “coaptidão”.
Depois falei os livros das leis (Vuua, Tamoda! – ouviu-se esta expressão
no meio da multidão). Quando lhe falei nos códigos é que ele ficou
“empavidamente sorumbático!”... Então ele viu que eu não falava
português qualquer, mas português dos Doutores Desembargadores e
____________________________________
51 Ndandu iami – Meu parente, meu amigo (N.E.).
52 (22) puto menha... – muito português mas sem documentos (N.A.).
53 viri safuá – surgir de repente (sem cunha, sem ser protegido) (N.A.).
54 uakumbu naju – ficou estupefacto (N.A.).

32
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

de Advogados meritíssimos. Então foi quando lhe mandei quatro putos


mais fundos que saíam como fogo de nzaji 55: tratà-tàtàtàtàtà, “ e o
madípora ficou estonteado. Ah, a resposta só era mesmo porrada. Mas
o culpado é o professor, cavalgadura em sundéifulo.
Faleceu anos depois, mas já sem camisa, sem os sapatos, nem o
capacete, nem o ndunda, tal como profetizara o cabo tios cipaios:
kingilé, o jibot’ojo, o capacet’oko tuondo musumbe-ko mu makoka.

____________________________________
55 nzaji – trovoada (N.E.).

33
Vozes
na Sanzala
(Kahitu)
Ao Zeca:
José Mendes de Carvalho – “HOJI
IA HENDA” – filho bem-amado do
Povo Angolano e Combatente Heróico
do MPLA.

1960
PARLATÓRIO DA CADEIA
DA CASA DE RECLUSÃO MILITAR DE ANGOLA
– LUANDA

“Primo, no Liceu está um professor a querer complicar-se comigo.


Perguntou-me: se o Mendes de Carvalho, preso da PIDE56 que está
na cadeia, era seu parente... O tipo deve ter um parente ou amigo a
trabalhar na PIDE. Hoje, no intervalo da aula, o mesmo professor
disse para as pessoas que o acompanhavam que aquele (indicava para
mim) era parente do tal!... Para evitar o pior tenho um plano, estudar
fora... Quero uma opinião. Não sei se o Zeca (Ismael Gaspar) já te disse
alguma coisa...”.
Os dois amigos Zecas eram jovens e o plano da fuga arriscado.
Ambos estavam debaixo do olho da PIDE. O Zeca Gaspar era quase o
solicitador, o que se ocupava de muitos assuntos dos presos e o elo entre
algumas famílias dos detidos. E, se ainda não o tinham incomodado,
a PIDE o tinha por conta de um garoto inexperiente mas... mordeu o
____________________________________
56 PIDE – Polícia Internacional de Defesa do Estado: polícia política portuguesa durante o período salazarista
(N.E.).

37
Uanhenga Xitu

lábio quando soube da sua fuga. O Zeca de Carvalho, seu nome estava
ligado a um “terrorista separatista-racista”, como alcunhavam os presos
políticos que pretendiam separar Angola da Mãe-Pátria, tinha os passos
contados.
Falou-se que na Kibala deu-se um burburinho no autocarro do
Huambo – Luanda. Um passageiro ao ser identificado, a autoridade
franziu a testa:
– Olha lá, tu és parente do...
Antes de acabar a pergunta, respondeu o homem aflito:
– Não, não... Não lhe conheço, eu não sou parente dele. Ele é do
mato, eu não. Já no Huambo me chatearam por causa de um bandido
que na cadeia anda nas políticas; não, não, eu não, sou nada com ele...
As fronteiras muito vigiadas, caminhos controlados, os motoristas
das carreiras não inspiravam confiança. Pedem um plano... uma
opinião!... “Mas não quero que o velho Sessenta o saiba, apenas o mano
Zito!”
Lá fora serão mais úteis. Cheira pólvora no ar, rastilho para breve.
E se caírem numa emboscada como aquela dos companheiros que iam
pelo Uíje-Damba-Maquela?! Atenção que no processo da PIDE, no
tribunal, há acusação de se ter abordado cerca de 600 jovens para Gana,
via Cabinda-Brazza e Leopoldville, os quais já seguiram 100 para serem
treinados para a luta de guerri-lha!... Na altura do processo fizeram-
se todas as tentativas para uma acareação a fim de se esclarecer o que
apenas foi um plano e viu-se transformado num acto consumado...
E os sádicos agentes do crime insistiram, insistiram dias após dias
para saber quem eram os cem... Convém aguardar pelo julgamento,
marcado para todo o mês de Dezembro.

38
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

TERMINOU O JULGAMENTO
NO TRIBUNAL MILITAR TERRITORIAL
de 20 indivíduos acusados
do exercício de actividades
contra a segurança externa do Estado

Sob a presidência do Sr. major de artilharia António Luís Margarido


Castilho, tendo como juiz-auditor o Sr. Dr. José Roque Gonçalves da
Costa e como vogal o Sr. capitão tirocinado João Melo de Oliveira,
terminou ontem à tarde, no Tribunal Militar Territorial de Luanda,
o julgamento do processo em que são réus, acusados do exercício de
actividades contra a segurança externa do Estado, 20 indivíduos, cujas
penas foram assim discriminadas:
António Pedro Benje, segundo-oficial dos Serviços de Saúde, a 10
anos de prisão maior; Agostinho A. Mendes de Carvalho, enfermeiro,
a 10 anos e 6 meses de prisão maior; Fernando Pascoal da Costa,
funcionário aposentado, a 9 anos de prisão maior; Garcia Lourenço
Contreiras, enfermeiro, a 7 anos de prisão maior; Nobre Ferreira
Pereira Dias, director da Escola Evangélica de Luanda, a 7 anos de
prisão maior; Armando Ferreira Conceição Júnior, empregado do
Consulado de Portugal em Léo, a 7 anos de prisão maior; Noé da Silva
Saúde, estudante liceal, a 6 anos de prisão maior; Belarmino Sabugosa
Van-Dúnem, enfermeiro, a 5 anos de prisão maior; André Rodrigues
Mingas Júnior, segundo-oficial da Fazenda, a 5 anos de prisão maior;
Pasmal Gomes de Carvalho Júnior, funcionário dos Serviços de Saúde,
a 5 anos de prisão maior; João Lopes Teixeira, auxiliar de mecânico,

39
Uanhenga Xitu

a 4 anos de prisão maior; Manuel Baptista de Sousa, tipógrafo, a 3


anos e 6 meses de prisão maior; Manuel Bernardo de Sousa, enfermeiro
particular, a 4 anos de prisão maior; José Manuel Lisboa, mecânico,
a 3 anos de prisão maior; José Diogo Ventura, enfermeiro, a 4 anos
de prisão maior; Florêncio Gamaliel Gaspar, enfermeiro, a 4 anos de
prisão maior; Sebastião Gaspar Domingos, empregado comercial, a 4
anos de prisão maior; João Fialho da Costa, enfermeiro particular, a 3
anos e 6 meses de prisão maior; Adão Domingos Martlns, enfermeiro
auxiliar, a 4 anos de prisão maior; e Joaquim Figueiredo, funcionário
dos C.T.T.U.57, a 8 anos de prisão maior.
Todos os réus foram condenados a perda de direitos políticos por
15 anos, sendo levado em conta metade do tempo de prisão já sofrida.

Assim dizia o ABC do dia 21-12-1960


(Página 8).

FORAM CONDENADOS
PELO TRIBUNAL MILITAR TERRITORIAL OS 20 RÉUS
ACUSADOS DE ACTIVIDADES CONTRA A SEGURANÇA
EXTERNA DO ESTADO

No Tribunal Militar Territorial de Angola, nesta cidade, iniciou-se


no dia 5 deste mês o julgamento de 20 indivíduos acusados do exercício
de actividades contra a segurança externa do Estado. Ao tribunal
presidiu o Sr. major António Luís Margarido Castilho, tendo como
juiz-auditor o Sr. Dr. José Roque Gonçalves da Costa e como vogal o
____________________________________
57 C.T.T.U. – Companhia dos Telégrafos e Telefones do Ultramar (N.E.).

40
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

Sr. capitão João Melo de Oliveira. O julgamento terminou na terça-


feira passada, sendo todos os réus condenados, como segue:
António Pedro Benje, segundo-oficial dos Serviços de Saúde, a 10
anos de prisão maior; Agostinho A. Mendes de Carvalho, enfermeiro,
a 10 anos e 6 meses de prisão maior; Fernando Pascoal da Costa,
funcionário aposentado, a 9 anos de prisão maior; Garcia Lourenço
Contreiras, enfermeiro, a 7 anos de prisão maior; Nobre Ferreira
Pereira Dias, director da Escola Evangélica de Luanda, a 7 anos de
prisão maior; Armando Ferreira Conceição Júnior, empregado do
Consulado de Portugal em Léo, a 7 anos de prisão maior; Noé da Silva
Saúde, estudante liceal, a 6 anos de prisão maior; Belarmino Sabugosa
Van-Dúnem, enfermeiro, a 5 anos de prisão maior; André Rodrigues
Mingas Júnior, segundo-oficial da Fazenda, a 5 anos de prisão maior;
Pascoal Gomes de Carvalho Júnior, funcionário dos Serviços de Saúde,
a 5 anos de prisão maior; João Lopes Teixeira, auxiliar de mecânico,
a 4 anos de prisão maior; Manuel Baptista de Sousa, tipógrafo, a 3
anos e 6 meses de prisão maior; Manuel Bernardo de Sousa, enfermeiro
particular, a 4 anos de prisão maior; José Manuel Lisboa, mecânico,
a 3 anos de prisão maior; José Diogo Ventura, enfermeiro, a 4 anos
de prisão maior; Florêncio Gamaliel Gaspar, enfermeiro, a 4 anos de
prisão maior; Sebastião Gaspar Domingos, empregado comercial, a 4
anos de prisão maior; João Fialho da Costa, enfermeiro particular, a 3
anos e 6 meses de prisão maior; Adão Domingos Martins, enfermeiro
auxiliar, a 4 anos de prisão maior; e Joaquim Figueiredo, funcionário
dos C.T.T.U., a 8 anos de prisão maior.
Todos os réus foram condenados à perda de direitos políticos por
15 anos, sendo levado em conta metade do tempo de prisão já sofrida.

Assim dizia A Província de Angola do dia 22-12-1960


(Página 4).

41
Uanhenga Xitu

O TRIBUNAL MILITAR DE LUANDA


CONDENOU MAIS 20 RÉUS

Sob a presidência do Sr. major de artilharia António Luís Margarida


Castilho, tendo como juiz-auditor o Sr. Dr. José Roque Gonçalves da
Costa e como vogal o Sr. capitão tirocinado João Melo de Oliveira,
terminou na 3.a feira, no Tribunal Militar Territorial de Luanda, o
julgamento do processo em que são réus, acusados do exercício de
actividades contra a segurança externa do Estado, 20 indivíduos, cujas
penas foram assim discriminadas:
António Pedro Benje, segundo-oficial dos Serviços de Saúde, a 10
anos de prisão maior; Agostinho A. Mendes de Carvalho, enfermeiro,
a 10 anos e 6 meses de prisão maior; Fernando Pascoal da Costa,
funcionário aposentado, a 9 anos de prisão maior; Garcia Lourenço
Contreiras, enfermeiro, a 7 anos de prisão maior; Nobre Ferreira
Pereira Dias, director da Escola Evangélica de Luanda, a 7 anos de
prisão maior; Armando Ferreira Conceição Júnior, empregado do
Consulado de Portugal em Léo, a 7 anos de prisão maior; Noé da Silva
Saúde, estudante liceal, a 6 anos de prisão maior; Belarmino Sabugosa
Van-Dúnem, enfermeiro, a 5 anos de prisão maior; André Rodrigues
Mingas Júnior, segundo--oficial da Fazenda, a 5 anos de prisão maior;
Pascoal Gomes de Carvalho Júnior, funcionário dos Serviços de Saúde,
a 5 anos de prisão maior; João Lopes Teixeira, auxiliar de mecânico,
a 4 anos de prisão maior; Manuel Baptista de Sousa, tipógrafo, a 3
anos e 6 meses de prisão maior; Manuel Bernardo de Sousa, enfermeiro
particular a 4 anos de prisão maior; José Manuel Lisboa, mecânico,
a 3 anos de prisão maior; José Diogo Ventura, enfermeiro, a 4 anos
de prisão maior; Florêncio Gamaliel Gaspar, enfermeiro, a 4 anos de
prisão maior; Sebastião Gaspar Domingos, empregado comer-cial, a 4
anos de prisão maior; João Fialho da Costa, enfermeiro particular, a 3
anos e 6 meses de prisão maior; Adão Domingos Martins, enfermeiro

42
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

auxiliar, a 4 anos de prisão maior; e Joaquim Figueiredo, funcionário


dos C.T.T.U., a 8 anos de prisão maior..
Todos os réus foram condenados a perda de direitos políticos por
15 anos, sendo levado em conta metade do tempo de prisão já sofrida.

Assim dizia O Apostolado de 24-12-1960


(Página 2).

“Primo, assistimos ao julgamento. A sentença, que não é sentença,


foi uma demonstração de força... Sim, as penas aplicadas são para
intimidar: EXIGIMOS A INDEPENDÊNCIA TOTAL E IMEDIATA.
Gostamos das vossas contestações, é assim mesmo. Tenho de partir
mesmo...”.
1961
19 de Janeiro às 22 horas partia o Zeca para buscar o nome da Glória:
Hoji ia Henda. Maria, mais a D.ª Chica, vão ao local X certificarem se
os parentes partiram sem complicações.
Amanhã um sinal pelo nosso Cabo Ambrózio (Aspirante de
Campo). Operação feliz: Zeca + Zeca + Duque + Cristina = Okei.
Quando escrevia Kahitu, sentado numa pilha de lenhas, andava
no mbonge 58 em serviço de ronda um guarda cabo-verdiano da nossa
rede clandestina “Os Subterrâneos da Liberdade”. Fez-me o sinal
característico. Encostei-me ao arame farpado, e, de costas viradas,
escutei:

nhô Zebedeu, hôbi no Rádio que n’Angola morri um homi na guerra


qui tchôma 59 Mendes Carvalho. E crê sabi si ês homi qui morri tâ fazi
parte família di nhô.

____________________________________
58 mbonge – dique (N.E.).
59 tchôma – chama-se, em crioulo de Cabo Verde (N.E.).

43
Uanhenga Xitu

Como iria identificar concretamente o combatente tombado com


o nome indicado, de uma família com mais de 3000 pessoas? Tombou
um angolano no dever da Pátria.
Mais tarde chegava-me um recorte do jornal O Apostolado, do dia
1-5-1968, pág. 3, que dizia assim:

COMUNICADO DO COMANDO-CHEFE
DAS FORÇAS ARMADAS

O Comando-Chefe das Forças Armadas em Angola comunica:


“Em adiantamento ao que foi noticiado no último comunicado
deste Comando (período de 14 a 20 de Abril) pode, agora, informar-
se que um dos mortos causados aos terroristas pela reacção das Nossas
Tropas ao ataque realizado contra Caripande é José Mendes de
Carvalho, habitualmente conhecido por ‘Henda’. Este indivíduo, que
era membro do Comité Director do MPLA, desempenhava as funções
de chefe máximo de todos os grupos armados daquela organização
subversiva.”

44
Introdução

Na prisão do Tarrafal, Chão Bom, Ilha de Santiago, Cabo Verde,


escrevi mais esta história e foi uma das amigas íntimas e fiéis do meu
longo cativeiro.
Esta história e outras que vivi constituíram, para mim, a base
íntima, pessoal, dando-me forças para resistir, resistir até à liberdade.
Quando me debruçava sobre ela, o pensamento voltava sempre
à infância, e andava nas nascentes de Kasadi, de Nzele, da Menha-a-
Môngua, sombreadas de compacto e verdejante mangal e palmar; pulava
valas secas e outras cheias de água; passeava nas margens do Cuanza
e Bengo, ali nas sanzalas de Madimu, de Caju, Jinganga, Cassenda,
Quilende, Quinzenza, Ngala, Cabiri e Funda; estava nos lugares de
serão onde, nas noites de luar-prata, brincava, cantava, batia palmas
com a Kisanda, Mixinji, Tonha, Kiamuxinda, Mabunda, Kudijimbe,
Keza; entrava na casa desta e daquela amiga; ia aos laços de pássaros e
esquilos, aos cajueiros e mangueiras alheias...
E quando a imaginação se desprendia de mim, tinha passado uma
grande porção de horas, deambulando em meditação pela infância.
Tão bem me fez este pequeno trabalho, que os mesmos pensamentos
concebidos durante a escrita seguiam-me no sono, e, quando acordava,
dir-se-ia que os tinha vivido novamente. E, só por isso, terá valido a
pena.

Tarrafal, Chão Bom, Cabo Verde – 17-7-69 a 10-10-69


AGOSTINHO MENDES DE CARVALHO
(Uanhenga Xitu)

45
Principais personagens

KAHITU – o paralítico

KAUALENDE – a mulher que viu a sereia

MBENDE e KUINJA – o pai e a mãe de Kaualende, e bisavós de


Kahitu

MUKITA e MBOMBO – o pai e a mãe de Kahitu

LENGELENGE – pai de Mukita e avô de Kahitu

KILAMBA e BANGEBANGE – quimbandas

SAKI – a moça muito desejada

BAKU e MBAMBA – o pai e a mãe de Saki

BUANGA – mulher de Kisoko

SANGE – amiga de Saki

47
Kahitu

Era paralítico de infância. Desde a nascença nunca ficou de pé. No


dia em que experimentou fazer o tende nhi kubane o mbui 60, caiu!
Inama iabulukuta!!! 61
Mukita e Mbombo, pai e mãe de Kahitu, andavam atrapalhados
de quimbanda para quimbanda para encontrarem a cura do filho. Mas
nada conseguiram.
Kahitu aprendeu somente a gatinhar e a rastejar: Kikata kia
Nzambi! 62 Mas o que Deus lhe tinha tirado na locomoção das pernas,
aumentara-lhe nos ombros, peito e cérebro.
Desde pequeno, o moço revelava curiosidade e inteligência entre
as crianças da sua idade, facto que despertava a atenção dos pais e dos
demais.
O rapaz crescia, sofrendo a chacota das outras crianças, que
mangavam do seu defeito físico. No princípio vacilava perante a troça
dos garotos. Limitava-se a chorar e, às vezes, quando criava ânimo,
atirava pedras aos que o gozavam.
Quando chegou à idade escolar, Kahitu não podia frequentar a
Escola, que ficava a muitos quilómetros da sua sanzala.
Papá, eu quero ir também na Escola, com Teleja e Kipenze.
Velho Mukita sentiu o corpo a tremer. Um cabo de nervos movido
por forças estranhas deu sensação à cabeça, passou para os braços e
seguiu directo aos pés. E o velho começou a transpirar.
– Papá, eu quero ir também na Escola, com Teleja e Kipenze –

____________________________________
60 tende nhi kubane o mbui – tem-tem para te dar uma bola de funji (pirão de farinha de mandioca, milho ou
batata-doce) (N.A.).
61 nama iabulukuta – As pernas ficaram sem acção (N.A.).
62 Kikata kia Nzambi – paralítico de Deus (N.A.).

49
Uanhenga Xitu

repetiu o miúdo, como se o pai não ouvisse o primeiro pedido.


– Sim, filho, eu já vou tratar disso.
Velho Mukita deixou o filho na varanda da casa. E, com uma lenha
de fogo que fifiquinhava63 no cachimbo, ia andando sem direcção pela
sanzala fora. Pensava na desgraça que Deus lhe dera por ter aquele
filho:
– Que azar meu! Veja lá! Depois da mulher dar-me quatro filhos
sãos, resolveu a sereia mandar-me este kikata*!... (Mukita falou para
si, mas pensou que tinha dito asneiras, e rectificou). Aceito boamente
o que Deus me deu. “Muvumu, kitumba; mu tunda o njimu nhi kioua,
mutunda o mukuá-sauidi nhi kinema” 64. É o ditado do mundo. Porém,
o que neste, momento peço a Deus é a coragem para poder resolver
o pedido de Kahitu. Levá-lo nas costas, todos os dias, à Escola, que
fica mais de seis quilómetros; não posso dizer ao filho que não pode
frequentar a Escola, porque é aleijado?... Não tenho coragem para
isso.
– Boa noite, mano – cumprimentou o João, despertando velho
Mukita na cogitação. – Eh, vuelu ‘ôô! 65
– Kuebi oko, nhi uxinganekenu ‘ôô? 66
–Vou à procura das ovelhas. Está a escurecer. Se elas “tomarem
vento”, torna-se difícil metê-las no curral. Vinha pensando no pedido
que me fez Kahitu. Confesso-te que estou atrapalhado, por não saber
a resposta a dar ao garoto. Já lutei com a consciência e não encontro
saída. Acredita, meu mais novo João, que eu sofro por causa desse filho.
Não há dia que não faça barulho – ora eu, ora a mulher e mais pessoas
– para evitar que as outras crianças trocem e batam no aleijado. Ele
pretende freqüentar a Escola. Mas como, naquele estado?
– Bem, mano Mukita, ouça o que lhe vou dizer. Como a nossa
____________________________________
63 fifiquinhar – introduzir a brasa no cachimbo (N.E.). kikata - paralítico (N.E.).
64 Muvumu, kitumba... – No ventre é como numa mata, sai o esperto e o néscio, o saudável e o aleijado (N.A.).
65 Eh, vuelu ‘ôô! – Oh lá, meu manozinho! (vuelu é uma palavra de carinho usada pelos velhos para os mais
novos) (N.A.).
66 Kuebi oko... – Para onde vais tão pensativo? (N.A.).

50
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

Igreja pediu um professor para cá, diz ao seu filho para aguardar, porque
a vinda do mestre está para breve.
– Muito bem, tiraste-me uma espinha da garganta.
Numa noite, quando já se encontrava na cama, a Mbombo segredou
ao marido:
– Mukita, ngemita dingi 67. Espero que não vá suceder mais como
na gravidez do Kahitu... Sempre te fiz lembrar para dar o banquete
ao Kituta de Kasadi68, ou oferecer um presente ao nosso Kilamba69
assistente, como vinhas fazendo das anteriores vezes... Mukita escutava
com toda atenção, fez um tossido, não interrompeu a mulher, que
continuou:
– Antes de casarmos, meus pais, ainda vivos, recomendaram
bastantes vezes aos teus para cumprir à risca essa kijila 70. Lembro-me
como se fosse hoje, quando o Kilamba recomendava aos meus sogros
e dizia: “todas as vezes que se manifestarem os primeiros sinais de
concepção na Mbombo, vocês têm de pagar o prometido que fizeram
ao Kituta, antes de ela dar à luz. O esquecimento desse preceito será
uma grande desgraça no lar”.
– E eu não tenho cumprido, Mbombo?
– Deixa-me concluir, homem! Nos primeiros filhos cumpriste,
mas quando fiquei no estado de Kahitu perguntei-te se tinham ido
ao Kilamba. Respondeste que sim. Mas não o fizeste. Enganaste--me.
E enganaste-te a ti próprio. Porque tu sofres tanto como eu ou mais,
desde que se manifestou a doença de Kituta no Kahitu.
– Mas, ó mulher, quem é que te disse que eu não paguei a
promessa?
– Mentes, Mukita. Soube-o por aquele que fingiste consultar,
____________________________________
67 Mukita, ngemita dingi – Mukita, estou grávida, novamente (N.A.).
68 Kituta de Kasadi – sereia (bissexuada) do rio Kasadi (N.E.).
69 Kilamba – Kimbanda (curandeiro, adivinho) ligado às sereias que, por vezes, consagra os sobas e dirige as
cerimónias da “coroação” e das sereias; também trata e cura as doenças relacionadas com a Kituta. Ocupa um lugar
de destaque no meio social da tribo (N.A.).
70 Kijila – preceito; usa-se também no sentido de tabu (N.E.).

51
Uanhenga Xitu

quando a paralisia deu no Kahitu. Pensas, porventura, que pelo facto


de eu estar calada há três anos, não sei a causa da doença do meu
filho? Tiveste vergonha de procurar o Kilamba na doença do Kahitu,
porque na minha gravidez não o fizeste. E ainda agravaste o crime,
por teres ido, mais tarde, ao Kilamba de Kasadi de Koba, julgando tu
que não havia diferença entre os dois. Foi alguém que te aconselhou.
Desse conselho só o meu filho ficou prejudicado. Pois digo-te, Mukita,
enquanto Kahitu viver, será o teu fardo. Porque com Kituta não se
brinca.
– Tu sabes bem o que nessa altura aconteceu entre mim e o Kilamba;
por que havia eu de o consultar, humilhando-me, enquanto na terra
havia outros? Se o importante era pagar o prometido ao Kituta, isso
fiz...
– Acreditei e fiquei tranquila, pensando que foste ao Kilamba que
sempre nos assistiu - o único que sabe do acontecimento que se deu
com a minha mãe, quando eu estava no ventre.

52
Kituta

Velha Kaualende, numa madrugada, levou a sua disanga 71 às costas


e dirigiu-se à fonte de Kasadi. Não era vulgar as pessoas “amadrugarem”
para tirar água daquela nascente.
Kaualende fê-lo, porque tinha muito que fazer e, nesse dia, o
trabalho para ela começava de madrugada.
A mulher, pelo caminho, ia pensando no programa do dia. O carreiro
por onde passava mal se via. O capim alto, pesado de dimune 72, vergava
sobre o caminho, impedindo a passagem... De vez em quando, com
as mãos, a rapariga afastava o mbulu 73 e o disenu74 que dificultavam o
andamento. Outras vezes, com a ajuda de pau, ia batendo no musoke 75
para deixar cair o orvalho que lhe molhava os panos.

O cantar de kabirindjindu 76:

“kabande ku muxi
ma’ kakuata mbambi” 77,

era o único eco que nessa madrugada despertava a atenção de Kaualende.


O pássaro cantava, dando as boas-vindas ao Sol, que ainda não se via,
apenas denunciado pelos primeiros sinais da aurora.
Ao entrar na baixa da nascente, cheia de palmeiras, bananeiras,

____________________________________
71 disanga – pote grande de barro (N.A.).
72 dimune – orvalho, água da chuva no capim (N.A.).
73 mbulu – capim alto que se usa para a cobertura de casas, entre outras aplicações (N.A.).
74 disenu – capim para fabricar cestos: tem também outras aplicações. Há duas ou mais qualidades de disenu
(N.A.).
75 musoke – capim (N.E.).
76 kabirindjindu – tipo de canário (N.E.).
77 kabande ku muxi – subiu no pau mas está cheio de frio (apesar de estar bem colocado, tem medo (N.A.).

53
Uanhenga Xitu

goiabeiras e mafumeiras, a mulher foi assustada por voo pesado de um


kingunguaxitu. O par desse grande pássaro, no outro lado da honga 78,
cantava:

Kuile ‘ko... kuile ‘ko


ngum-ngum... ngum-ngum
hum-hum... hum-hum
kuile ‘ko... kuile ‘ko
ngum-ngum... ngum-ngum
hum-hum... hum-hum79

Kaualende, sugestionada com o encontro do kingunguaxitu, parou


no primeiro degrau dos socalcos que desciam até à nascente, e pôs-se à
escuta:

Kuile ‘ko, kuile ‘ko


ngum-ngum, ngum-ngum
hum-hum, hum-hum

Durante muito tempo esteve parada, e a falar sozinha. (Aquele que


canta é um outro kingungu. Porque o que se encontrou comigo meteu-
se por esse lado. Segundo os velhos, o encontro muito próximo com
aquele pássaro é sinal de azar. Mas não bastou isso… O outro pássaro
canta para mim, e como me avisa para não ir à fonte... Será isso medo,
sugestão ou um aviso real. Voltar?... Esperar um pouco, até que apareça
alguém para entrarmos juntas na baixa... Não! Vou sempre.)

Kuile ‘ko, kuile ‘ko


ngum-ngum, ngum-ngum
hum-hum, hum-hum
____________________________________
78 honga – baixa (N.A.).
79 kuile ‘ko... – não vai para lá, não vai para lá / Vê lá, vê lá... (onomatopaico) (N.A.).

54
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

Continuava a cantar o pássaro pressagioso.


A mulher chegou à fonte. Pousou a sanga no chão. Despiu o pano
que cobria o tronco, ficando simplesmente com o de jiponda 80. O
tronco estava nu. A aurora invadia a escuridão da madrugada. Já se
podiam distinguir bem, a passos, alguns vultos. Ela mirou e remirou
o seu ventre. Pôs-se a contemplar a linha escura que, do seu corpo
bronzeado, lhe descia do peito à púbis. E exclamou vaidosamente:
– Kikumbi kiatu! Kua kambe ngo mbeji jitatu, ngondotulami kiá 81.
Apalpou o ventre, e disse:
– Aqui, deve estar a cabeça do filho, neste lado do kiambi82 os pés.
Reparou nos seios. Espremeu o bico da mama. Saiu um pouco de
líquido. Limpou a ponta do seio. Tirou a sanga da nguua83. Arregaçou
o único pano com que tinha ficado no corpo, deixando as coxas a
descoberto, e entrou na água.
Lembrou-se que trazia um comprido colar de contas, ao pescoço.
Retirou-o e atirou-o para o pano que estava enrodilhado próximo da
nguua.
O colar foi cair mesmo no pano, e ela, muito satisfeita, exclamou:
– Enge a-ngi-bangele ngi mukongo, kibonzokale kiama ki ngilueza,
ngejiia o kunonga84.
Passou a vau a água, que lhe chegava muito acima dos joelhos.
Dirigiu-se à parede de onde saía a água. Nessa parede estava espetada
uma calha de casca de árvore, e que fazia a vez de caldeira. Era lá que
a Kaualende ia encher a sanga. Porque a água que pisava só servia para
lavagens de roupas e tomar banho.

____________________________________
80 jiponda – pano do cinto; há ainda o pano de tulu, que cobre o tronco, e o pano de tandu, que cobre todo o
corpo. (N.E.).
81 Kikumbi kiatu!... – A linha da minha barriga está nítida! Apenas faltam 3 meses. Darei à luz (N.A.).
82 Kiambi – baço (NA).
83 nguua – artefacto de cordas para levar o pote às costas (NA.).
84 Enge a-ngi-bangele... – Se me fizessem, a mim, caçadora, não haveria caça que me escapasse; sei apontar
(N.A.).

55
Uanhenga Xitu

Logo que acabou de encher o pote, quando ia levantar a panda 85,


um vozeirão atrás de si disse:
– Eme Kasadi ka-ngi-te ami kalaji86. – Em seguida, um som especial
de sinos começou a ecoar melodiosamente.
Assustada, Kaualende virou-se e deparou um vulto humano alvo
como a neve. De cabelos compridos que lhe caíam até às costas.
A rapariga, inconscientemente, caiu de cócoras na água, com tal
sorte que abraçou a sanga cheia de água, e tinha a cabeça encostada
sobre o gargalo do pote.
A água que caía da bica, em contacto com a da vala, onde estava
meio submerso o corpo da desmaiada, fazia um barulho que parecia
batuque mágico. O mbuangungu 87 deslizava docemente indo algum
com a correnteza, e o outro circundava a sanga juntamente com o
corpo de Kaualende, como se quisesse protegê-la do frio.
Os fetos frondosos e exuberantes que enchiam quase toda a baixa,
com mais um quilómetro de comprimento, faziam acenar as folhas.
O mesmo imitavam os esguios coqueiros e palmeiras, as goiabeiras,
as mafumeiras, as bananeiras e as mais diversas árvores e plantas. Os
macacos guinchavam e faziam pulos acrobáticos nunca antes vistos por
qualquer homem.
Próximo do corpo da Kaualende, levantavam-se três compridas
palmeiras, sobre as quais andava um felpudo esquilo, muito irrequieto.
“Cantava.” Mas um “cantar” estridente: “ndende iami... ndende iami...
ndendele-ketekete!” 88
O ndengu 89 pulava de uma palmeira para outra. Fazia-o de uma
forma precipitada e denunciadora. E quando parava para executar o
outro seu “cantar”: “nga-ku-ambelé, nga-ku-ambelé...” 90 – eriçava a
____________________________________
85 panda – pote de barro, igual à disanga ou menor (N.A.).
86 Eme Kasadi... – Eu sou a Sereia de Kasadi; não admito intrusas de madrugada (N.A.).
87 mbuangungu – planta cor de alface que cresce sobre as águas doces (N.A.).
88 ndende iami... – o meu dendê... o meu dendê, ndendele-ketekete! (linguagem onomatopaica) (N.A.).
89 ndengu – esquilo (N.A.).
90 nga-ku-ambelé – não te avisei, não te avisei... (linguagem onomatopaica) (N.A.).

56
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

cauda, e olhava o corpo da rapariga semimorta, fazendo caretas com a


cabecita: “nga-ku-ambelami!? nga-ku-ambelami!?” 91
Kingunguaxitu continua a cumprir a sua missão dessa manhã,
cantando:

kuile, ‘ko, kuile ‘ko


ngum-ngum, ngum-ngum
hum-hum, hum-hum

O som deslumbrante de jinginza 92 (19) enchia toda a baixa!


E assim... Quando o Kituta surge, tudo se mexe!... Todos estavam
mancomunados com Kituta: o borbotão musicado, o mbuangungu,
o farfalhar das folhas de árvores e plantas, os macacos, o esquilo, o
kingunguaxitu e o piar de outras aves. Porque se não obedeces sem o
Muene-Kasadi93 secava-lhes o manancial.
As primeiras raparigas que chegaram à fonte, já manhã clara,
ainda ouviram, ao longe, o eco de campainhas misteriosas. Ficaram
sobressaltadas.
Uma das mulheres deu com o pano, a nguua e o colar da Kaualende.
Porém, pensavam que a dona tivesse ido a um lugar privado e próximo
dali. Não tardou que todas gritassem em coro:
– Mamanhi’ééé! Madiuanu’ééé!!!...94 – O eco de terror inundou a
baixa e foi vagueando, vagueando... Viram Kaualende na água, abraçada
à sanga.
Algumas das mulheres, a tremer, pegaram na desmaiada, fria e
sem sentidos, e puseram-na em terra. Devia ter permanecido na água
cerca de uma ou mais horas. Outras mulheres partiram pressurosas e
chorando em voz alta para anunciar na sanzala a morte de Kaualende

____________________________________
91 nga-ku-ambelami – eu não te disse, eu não te disse!? (N.A.).
92 jinginza – guizos (N.A.).
93 Muene Kasadi – Senhor das águas do Kasadi (N.E.).
94 Mamanhi’ééé! Madiuanu’ééé!!!... – Coisas que assombram, abominam (N.A.).

57
Uanhenga Xitu

e chamar o marido, os pais e outra gente, a fim de carregarem com o


cadáver.
Como a fonte servia gente de muitas sanzalas, o aviso do
acontecimento correu mais depressa do que se supunha. As mensageiras,
ao encontrarem-se com as mulheres que vinham a Kasadi, lançavam a
notícia num tom de criar pena e medo, o que, imediatamente, gerava
pânico nos ouvintes, provocando choros e correrias desabridas.
Kindunda! 95
De tipóia, a doente foi levada até a sanzala. Ainda respirava; o povo
chorava em voz alta; das lamentações que deixava escapar ouviram-se
frases como “Kituta mu Kasadi, madiuanu mu Kasa di” 96, acompanhadas
de agitamentos de lenços, de panos, de vassouras, de ramos de árvores,
e de um balouçar de corpos, gestos característicos que, nas ocasiões de
mortes ou desastres, traduzem profunda consternação.
Portadores haviam sido enviados às outras sanzalas, para chamarem
quimbandas, e às lavras para anunciarem o acontecimento às pessoas
que tinham ido de madrugada. De vez em quando, os quimbandas que
prestavam os primeiros socorros saíam fora para repreender o povo a
não chorar. A doente ainda respirava.
E Kaualende esteve no kiambu 97 todo o dia. No dia seguinte, à
tarde, abriu os olhos. Não falava, mas, pelo olhar assustado e as lágrimas
que derramava, mostrava que ainda vivia o drama de Kasadi.
Desde o primeiro dia do acontecimento, a mulher esteve cercada de
muitos quimbandas, sobretudo do Kilamba de Kasadi98.
O Kilamba de Kasadi é o único que tinha adivinhado a causa do
desmaio da doente, enquanto os outros mágicos inventavam motivos
fúteis.

____________________________________
95 Kindunda – fuga precipitada, geralmente de mais de uma pessoa, que provoca grande alarido (N.A.).
96 Kituta mu Kasadi... – Kituta em Kasadi, desastre em Kasadi (N.A.).
97 kiambu – desmaio; coma (N.A.).
98 Este é kilamba de nome e de profissão. Pois kilamba, além de ser o representante das Sereias na Terra, também
trata e cura as doenças relacionadas com Ituta (plural de Kituta) e, por vezes, unge os sobas (N.A.).

58
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

– Velho Mbende, esteja descansado. Porque, depois de a tua filha


acordar, dir-te-á, de certeza, que se avistou com Muene Kasadi. Eu já lá
estive e, pelas informações que me deram, dos sinos de mandungela e
da direcção de que vinha a sinfonia, concluo sem dúvidas de que ela se
encontrou com Muene Kasadi. – Velho Mbende, com a mão no queixo
e abanando a cabeça, num gesto de apoio, escutava o Kilamba, que
continuou:
– Há muito venho despertando a essa gente de que era tempo de se
oferecer um banquete ao Kasadi. Mas... A água está a diminuir, já não
chega até lá ao fundo, na lavra do Kingolo; os dendéns já não têm o
mesmo gosto e nem produzem o óleo como antigamente; há dias, uma
cobra preta e cheia de cabelos correu atrás das mulheres que iam buscar
água, escapando matar o filho de Kinguadi, e não falemos na jibóia
que engoliu o cão de Kaiambi, agora surge este caso da tua filha!... Não
teríamos evitado tudo isso se o povo ouvisse os meus conselhos?...
– Ah, mesene 99 Kilamba – interrompeu um dos velhos presentes –
hoje, é escusado, os nossos filhos não ligam a essas coisas. Vieram os
homens da Missão...
– E que desrespeito, cantam e assobiam atrevidamente os hinos
da Missão, mesmo quando estão a tomar banho nas águas do Ngana
Kasadi! 100 – disse um outro velho, num tom de muito aborrecido.
– Mbende, todos os manjares que tu e teu genro ofereceram foram
postos na mesa, lá no sítio. Quando para lá voltei mais os meus, para
recolher os objetos do banquete, o Kasadi tinha comido tudo. É sinal
de que a tua filha não morrerá desta. Tive muita maçada, mas satisfeito,
porque cumpri o meu dever junto daquela que eu represento na Terra.
Podes-te gabar, Mbende, desde que fui consagrado como Kilamba
nunca dirigi um banquete cheio de pompa como desta vez... Kasadi,
no seu palácio, deve reconhecer isso.

____________________________________
99 mesene – mestre (N.E.).
100 Ngana Kasadi – Senhor das águas do Kasadi (N.E.).

59
Uanhenga Xitu

– Oxalá, oxalá, Kilamba. Já disse que darei tudo para oferecer ao seu
Deus – prometeu o velho Mbende.
– Mas, Mbende, fizeste mal convidar mais quimbandas. Não viste
desde o princípio que o caso era do foro de kituta?
– Está bem, Kilamba, mas nessas situações a pessoa lança mão a
tudo, para salvar a vida de uma pessoa. E de quem como a da minha
única filha! Tive doze filhos, morreram todos. Ficou esta Kaualende
que dei em casamento há seis meses. Contava que ela tivesse vida e me
desse muitos netos, no lugar dos filhos que morreram. Agora sucede
isso. Não acha que é de perder a cabeça?
A casa do velho Mbende estava repleta de gente como se fosse
um óbito. Aliás, as primeiras visitas que o velho recebera vinham
convencidas de irem ao óbito de Kaualende, como fora anunciado no
primeiro dia do acontecimento.
– Psiu, peço-vos não mexerem a doente. E não a forcem a falar. Se
ela ainda não o fez, é porque não chegou a vez – disse Kilamba para as
visitas, e, virando-se para o velho Mbende, aconselhou:
– Deves diminuir os doutores. Uma doente assistida por muitos
quimbandas, geralmente não se salva. E se livrar dessa situação, não se
saberá para quem vai a fama.
– Oh, Kilamba, peço-lhe não falar mais nisso. Deixe estar os
quimbandas que convidei. Porque se os irrita são capazes de me matarem
a filha que está quase a dar a voz. Conheço a vida dos quimbandas,
meu amigo. Tanto estão bem connosco de manhã, como à tarde estão
a desejar-nos a morte. Eu tenho o que chega para pagar-vos se for caso
para isso. Nada de contendas. Antes devem trabalhar em harmonia,
para que tudo corra a meu e a vosso favor. Quanto à fama, já o Kilamba
me garantiu que depois de a minha filha dar a voz confessará o que
prognosticou. Ontem, o Bangebange atirou uma piada101 que me
estremeceu as entranhas.
____________________________________
101 piada – remoque, indirecta (N.E.).

60
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

No terceiro dia, à tarde, a rapariga pediu água. Houve uma


manifestação de regozijo de todos os presentes.
Deram-lhe água e um pouco de mudimbu 102 com mel. A equipe
de quimbandas, chefiada por Bangebange, o primeiro que foi avisado,
entrou imediatamente no quarto da doente e pôs-se a contactar com a
mulher.
O Kilamba que se encontrava numa casa vizinha, a conversar, foi
avisado de que a doente já dizia algumas palavras. Veio a correr. Mas
quando entrou no quarto deu com os outros mágicos, à volta da cama
da doente.
– Bem, meus senhores, a primazia pertence-me para interrogar a
doente.
– Mesene Kilamba, não sei porquê, sabendo que nós todos fomos
chamados, e aqui andamos dia e noite, à procura da salvação da mulher
– falava o Bangebange, o mestre da junta de quimbandas. Sobraçava
uma saca de mahamba 103. Sobre as vestes garridas trazia jingonga 104 que
cruzavam nas costas e no peito.
Tinha a face caracterizada – como os seus coadjutores – de pós
pretos, brancos e encarnados.
– Falo assim porque a doença deu-se nas terras de Muene Kasadi,
do qual sou o único representante na Terra.
– Mas o fato de a doença se ter dado na nascente não significa que a
mesma foi motivada pela divindade que representa. Porque nos nossos
adivinhos já encontramos muitas coisas que se relacionam com o mal
da Kaualende. Além disso, dos mizambu105 feitos está tudo a bater
certo. Não acha, mano Mbende?... Antes de ontem, não lhe dissemos,
eu e meus colegas (mostrava-os à cabeceira da cama), que, se no terceiro
____________________________________
102 mudimbu – papa de fuba (N.A.).
103 mahamba – saco onde se guardam amuletos (N.E.).
104 jingonga – alças para fins rituais, das quais pendem ídolos e amuletos, e que os quimbandas e seus doentes
costumam trazer cruzadas sobre o peito e costas (tb. designação geral de artigos relacionados com quimbandas e
divindades) (N.A.).
105 mizambu – adivinhações (N.A.).

61
Uanhenga Xitu

dia a doente não falar, estará perdida?


– Sim, disseram-me isso. Mas há aqui uma coisa que devo esclarecer.
Nunca vi quimbandas a discutirem desta forma e na presença da doente.
Ou o azar é meu (o velho soluçava) ou o azar é do meu genro. Peço
portarem-se com o mesmo prestígio que mereceis do povo de todo o
Mundo. Um quimbanda não discute desta maneira e em público...
– Ó Mbende, se a doença da tua filha não foi provocada pela presença
do Kituta que ela deve ter visto, juro que devolver-te-ei toda a oferta do
banquete que fizeste ao Muene Kasadi. E eu, imediatamente, passarei
o encargo de representar Kasadi aos meus sucessores, caso já tenham
nascido. Como bem sabes, Mbende... todo aquele que viu Kituta, antes
não deve revelar a ninguém o que viu, senão ao kilamba. Além disso,
a revelação da visão ao público só se faz com a prévia autorização do
kilamba. Uma hipótese: sucede que a tua filha viu mesmo o Kituta
(nessa parte, a doente, sentada no meio da cama, começou a menear a
cabeça, dando a entender aos circunstantes que de fato vira o Kituta).
Ora, com as perguntas que estão sendo feitas por estes meus colegas,
se ela responder que na verdade viu o Kituta, a tua filha viverá ou
morrerá?... O bem é para ti. E é por isso que estou a pedir a primazia de
fazer o interrogatório.
– Mesene Kilamba, nós sabemos que é o maior entre os maiores
mestres. Porque representa as divindades das águas das chuvas, das
lagoas, dos rios, dos mares, das ribeiras e das nascentes. Sem vós, não há
água. E sem água não há vida. Não queremos entrar em litígio consigo.
Vamos sair, deixamo-lo trabalhar à vontade. Está aí a autorização –
concluiu Bangebange, o decano dos quimbandas, e ia retirar-se mais os
seus, quando o Mbende o pegou num braço e disse:
– Bangebange! Não sais ainda. Kunheme, nga-ku-diondo! 106 E para
que tudo corra em paz. Eu pago a vossa fama como se tivessem chegado
ao fim como chegaram. Louvo a tua atitude. Assim é que reconheço os
____________________________________
106 Kunheme, nga-ku-diondo! – Não te melindres, rogo-te (N.A.).

62
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

homens. A cedência do lugar ao nosso Kilamba regozija-me, e faz-me


saber que de fato tu e a tua comitiva desejam a salvação da minha filha.
E faço votos que ela e sua casa estejam ligadas a todos vós, mestres,
desde hoje até à velhice dizer basta.
– Todos, peço saírem do quarto! – pediu Kilamba com autoridade
às visitas. Só o velho Mbende e a mulher e o genro ficaram.
– Kaualende, conta! O que te deu quando chegaste à fonte? –
perguntou então Kilamba.
Kaualende começou a tremer. Ainda cheia de comoção, lastimava
e sacudia as orelhas.
– Podes contar tudo, não tenhas medo. Eu sou o representante dos
habitantes de Kasadi, e me enviaram até cá para te ouvir...
– Bem, primeiro – começou Kaualende –, pelo caminho,
encontrei-me com um kingunguaxitu muito grande! Fez-me assustar.
O coração pesou-me, mas resolvi ir até à nascente. Posta lá, ouvi
cantar outro kingungu, parecia persuadir-me para não avançar. Mas
como a interpretação do cantar daquele pássaro é considerada como
brincadeira de crianças, embora esteja envolvida a muitas lendas, não
liguei... Quando enchi a sanga, comecei a ouvir um som de guizos.
Pensei que fosse uma pessoa vestida de mandungela107 e que ia a um
xingidi 108. Logo que endireitei a disanga já cheia, ouvi alguém a dizer:
Eme kasadi ka ngitelami kalaji109 (Kilamba deu um pulo e soprou no
seu apito mágico, exultando de alegria).
– Vá, continua, filha! – disse Kilamba, muito sorridente.
– Quando me voltei, vi... (ao dizer vi... Kaualende estava a desfalecer
e tombava sobre a cabeceira da cama).
Acudiram o pai e Kilamba. A mãe chorava, e muita gente assomou
à porta.
– Psiu, tudo para a rua! Fechem a porta, e tu, velha, cala-te –
____________________________________
107 mandungela – guizos (N.A.).
108 xingidi ou xinguilador – médium; pessoa que invoca ou incorpora um espírito (N.A.).
109 Eme kasadi... – Eu sou a Sereia de Kasadi; não admito intrusas de madrugada (N.A.).

63
Uanhenga Xitu

ordenou Kilamba.
Desesperada, a velha Kuinja saiu do quarto a correr, foi lançar-se ao
monturo de cinza, e, rebolando-se nele, chorava em voz alta, dizendo:
– Xanenu Bangebange! Mona u-ngi-fuila kaxinji ka imbanda,
n’akuetu. Ngana Tata? Kituxi kianhi ki-ngakuta? Kixibu uambata mafu,
kitembu ulundumuna mitanhi nhi mabanji, ma jindanji ua-ji-xila
hâdia. Kituxi kianhi ki-nga-kutà. Ku-ng’-andela o mona umoxi ‘u mesu a
nzamba? Mona u-mu-sumbula u maku a imbanda ia muhongo, ngongo
talenu?!...110
Cá fora muitas mulheres faziam coro com a velha Kuinja, perante
a indignação do Kilamba, que ora saía para as mandar calar ora estava
com a doente, fazendo-a cheirar pós mágicos e medicamentosos,
tratamento que aplicava acompanhado de preces.
A velha Kuinja e quase todas as visitas atribuíam o novo
desfalecimento de Kaualende ao velho Bangebange, afastado por
Kilamba. Momentos depois a doente recompôs-se e voltou a calma.
– Fala, Kaualende! Eu sou o Kilamba, representante daquele que
viste. Ele disse-me para contares tudo. Fala, Kaualende, sem receio.
– ... e vi uma pessoa branca, branca como a fuba de kindele! 111 Só
a vi da cabeça à cintura, estava ajoelhada na água, e tinha-me dado as
costas. O cabelo, comprido e molhado, colava-se-lhe às costas... Daí
comecei a perder os sentidos. Só as mauaia-uaia 112 me acompanhavam
no sono. Comecei a ouvir a música como que vindo de longe, e de um
mundo diferente do meu. Nada mais sei. Estou admirada como hoje
me encontro neste quarto...
– Dizes hoje, filha? Estás cá desde antes de ontem – atalhou o velho
Mbende com a cara lavada de lágrimas.
____________________________________
110 Xanenu Bangebange!... – Chamem o Bangebange! Morre-me a filha por capricho dos quimban das, meus
senhores, meu Deus?! O cacimbo (a seca) faz cair as folhas, a tempestade parte os troncos e os ramos, mas sempre
poupa as raízes para o futuro. Que crime cometi para me comer (matar) a única filha e na presença desta multidão?
Roubas-me a filha das mãos (nas barbas) dos quimbandas consagrados, e todo o mundo a ver?... (N.A.).
111 fuba de kindele – fuba de milho (N.A.).
112 mauaia-uaia – sons misteriosos; sons pouco audíveis (N.A.).

64
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

– Mas a voz que ouviste, parecia-te de um homem ou de uma


mulher? – interrogou Kilamba.
– Era uma voz grossa. Nem com uma nem com outra se parecia.
Era uma voz que nunca ouvi.
– E os guizos, tocaram como na invocação de um kilundu113?
– Também não sei explicar... Nunca ouvi uma música igual... –
respondeu Kaualende num tom de cansaço e de grande admiração.
Findo este diálogo com a doente, Kilamba passou o olhar, muito
concentrado, para uma esteira de mabela114 estendida no luando115 que
estava entre ele e a doente. Ficou muito tempo nessa posição, movendo
os lábios, e incidia a vista nos copos de vidro fino que estavam sobre
a esteira. Eram copos que já serviram, no passado, nos banquetes de
Ituta, e oferecidos ao Kilamba para usá-los em certas cerimónias.
Num movimento rápido, endireitou-se na kibaka 116 e disse:
– Mbende, a partir de hoje, esta tua filha e a sua geração servirão
as sereias. Em qualquer festa ou invocação que se fizer em memória de
Ituta, ela terá de participar. Da gravidez que traz, nascerá uma menina
que levará o nome de Mbombo. São ordens de Ngana Kasadi!... Avisa
o teu genro que o homem que casar com a Mbombo deverá cumprir à
risca os preceitos de Ngana Kasadi. Porque esta Kaualende deve a vida
à filha que leva no ventre. Kituta, quando é abusado, raro castiga com
a morte as mulheres grávidas. O que ele faz, nesses casos, é deformar os
frutos que saem do ventre da mulher que o ofende. Não se esqueça da
lição, que é bem importante.
Pegou em dois copitos e encheu-os com uma bebida que trazia no
mukudi 117. Despejou umas gotas no chão, depois bebeu ele e deu o
outro copito à doente. Em seguida, do outro mukudi, encheu quatro
copos com uma bebida diferente do primeiro mukudi.
____________________________________
113 kilundu – espírito; divindade não especificada (N.A.).
114 mabela – ráfia (N.A.).
115 luando – esteira de folhas utilizadas para fazer cercas (N.E.).
116 kibaka – banco feito de um só tronco (N.A.).
117 mukudi – garrafa; garrafa de barro; botija (N.A.).

65
Uanhenga Xitu

De uma dibaka 118 tirou uns pós e deitou uma pitada em cada
copo. Fez uma oração ritual e deu a beber o conteúdo dos copos aos
circunstantes, Mbende, Kuinja, o genro e a ele próprio.
Segurou num conjunto de guizos e começou a agitá-lo freneticamente,
enquanto cantava. Na canção foi acompanhado pelo Mbende e pelo
genro. O povo entrou na sala e começou a cantar também.
Meses depois Kaualende dava à luz uma menina. A recém-
nascida trazia uma mancha escura e lisa nas costas e outra na coxa,
esta constituída por umas penugens pretas. A criança era muito forte e
bonita.
Nos primeiros dias do parto, muitos curiosos acorreram à casa
da parturiente, para admirarem a célebre criança que deu a vida a
Kaualende. Comentava-se que a criança era uma kilombo-kia-hasa119,
era muito clara... quem sabe se era Kituta também?
Dias depois, a criança foi levada à nascente no sítio onde a mãe
vira o Kituta. E ali se realizou um rito (parecido com a cerimónia
do baptismo dos cristãos), e ao mesmo tempo fez-se a cerimónia de
apresentação da criança ao Muene ou Ngana Kasadi. Kaualende não
participou dessas cerimónias.
Quando Mukita pediu em casamento a Mbombo, já o velho
Mbende e a mulher tinham falecido. Contudo, Kaualende e o marido,
na presença do Kilamba, contaram a história aos pais do Mukita, que
vinham fazer o pedido.
Por ordem do Kilamba, abriu-se uma excepção à regra de decoro
que assistia àquela gente. Aos pais de Mukita foi mostrada a coxa da
futura nora.
– Não, não faça isso, Mesene Kilamba – dizia Lengelenga, pai do
Mukita.
– Não, deixa mostrar-vos os sinais da escrita mágica que Ngana
Kasadi talhou no corpo desta vossa privilegiada Mbombo. Fá-lo para
____________________________________
118 dibaka – tigela ou prato de madeira (NA).
119 kilombo-kia-hasa – albina (N.A.).

66
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

ficarem ligados a um compromisso que o teu filho terá de levar a cabo,


se vier a casar com a Mbombo – insistiu Kilamba.
– Mesene, este caso foi muito comentado. E nós mesmos estivemos
cá quando nasceu esta futura minha nora. Eis a razão por que peço
evitar-nos este acto. E como sabe é incesto ver a coxa de uma nora...
– Incesto nenhum, Lengelenge. Estou a dar-te a posse e a res-
ponsabilidade da mulher que pretendes levar... Vem cá, Mbombo.
Mostra as costas a estes velhos.
A Mbombo cassunou 120 o pano e mostrou o sinal, que agora estava
mais vivo, por causa do kikumbi 121 que a rapariga trazia em toda a sua
constituição física. E todos viram.
– Agora, minha neta, levanta um pouco o pano para vermos o outro
sinal... – tornou a dizer Kilamba.
A moça ficou a olhar para os futuros sogros, muito comprometida.
Depois virou-se para a mãe de cara fechada.
– Vamos, filha! É preciso que isso se faça. É o Kilamba que está a
mandar.
Com muito custo Mbombo levantou o pano até à parte superior da
coxa. A perna bem torneada e ornamentada com jimbuta 122, no artelho,
denunciava a sua clareza abafada pelos panos. Lá estava a mancha em
forma de losango, com uns cabelos muito escuros e macios.
– Lengelenge, vejam! Aqui está a verdade (Kilamba alisava o losango
com o polegar direito). Não querias ver por causa do medo que quase
todos tomam dessas coisas de Kituta. Ai do teu e dos teus netos, no dia
em que deixarem de servir os Ituta e o Kilamba! Da minha parte, como
representante e pai espiritual desta rapariga, aceito o vosso pedido de
casamento, desde que se comprometam a obedecer às leis de Ituta.
– Kilamba – proferiu solenemente.
– Kioso ki uambe, ta ta Kilamba. Tuia nakiu, tua-ki-telekela, tua-
____________________________________
120 cassunou – desamarrou (N.A.).
121 Kikumbi – viço; sinal de puberdade ou de gravidez; saúde (N.A.).
122 jimbuta – qualidade de missangas finas (N.A.).

67
Uanhenga Xitu

kizalela enge tua-ki-uaia o hula ni maji 123.


Aí fica a verdade de como Mbombo viera para este mundo.
E eis aí a razão das preocupações da mãe de Kahitu, com a nova
prenhez, ao insistir com o marido para que não descurasse, desta vez, a
promessa feita ao Ngana ou Muene Kasadi.

____________________________________
123 Kioso kiuambe... – Tudo o que disser. Senhor Kilamba. O compromisso vai connosco, damos-lhe de comer e
de beber, arranjamos-lhe cama e havemos de untá-lo e perfumá-lo com os melhores cosméticos (Obs.: o compromisso
é tão importante que é tomado como um ser sobrenatural.) (N.A.).

68
Kaxena124

Kahitu, quando avistava, ao longe, os amigos que vinham da Escola,


rastejava para o encontro. Ali mesmo, no lugar do encontro, começava
a receber as lições dos estudantes. Estes faziam por transmiti-las tal
como as recebiam do professor.
Kikata kia Nzambi, como, às vezes, alcunhavam Kahitu, mostrava
uma grande vontade de aprender a ler e a escrever. Para todos os lados
que fosse passear, levava consigo uma saca, suspensa pelas alças, ao
pescoço, que continha o livro de “João de Deus”125, uma ardósia e um
lápis de pedra.
Sempre que visse alguém a passar e que soubesse escrever, chamava-o
para uma explicação. Todo o mundo gostava e tinha pena de Kahitu. E
os que sabiam sentiam prazer em ensinar o rapaz.
Era no meio juvenil que o paralítico encontrava o maior desgosto
em ter nascido kikata.
As crianças tinham-no como um boneco, miúdo que nascera para
mbuazaria126. De tanto rastejar, tinha arranjado calos nas palmas das
mãos e em certas regiões dos membros inferiores, as que sempre estavam
em contacto com o chão.
– Kâxii... kaxen êêh 127 – gritou ao ouvido de Kahitu, assustando-
-o, um miúdo que o seguia traiçoeiramente. O miúdo fugiu, não
conseguindo Kahitu deitar-lhe a mão.
– Sacana de merda! Espera, vou dar parte no teu pai. Sacanas!
Chamam-me kaxena por causa de kuxena. Mas eu tenho culpa?
____________________________________
124 Kaxena – aquele que rasteja (do verba kuxena, rastejar) (N.A.).
125 João de Deus – poeta e educador português, da escola romântica, também conhecido pelo método didáctico
que criou para o aprendizado da língua portuguesa (N.E.).
126 mbuazaria – chacota, zombaria (N.A.).
127 Kâxii ... kaxen êêh – estribilho utilizando o verbo kuxena (arrastar-se) (N.A.).

69
Uanhenga Xitu

Qualquer dia às mães deles vai nascer também um filho como eu.
Esperam só...
– Ki-iii, kika uió!128 – outras crianças gritavam para o paralítico,
que ainda não tinha parado de regatear o primeiro gozo.
– Esperam! Se vos apanho ngi-mi-bosola129. São outros bichos,
chamam-me kika porque eu sou kikata (Kahitu soluçava). Aquele
filho do mano Gaspar vai apanhar hoje mesmo. O pai dele já me deu
ordem.
Kahitu já estava um pouco crescido. Como os seus contemporâneos
se ausentavam para a Escola, lavras e a outras ocupações, as únicas
pessoas com quem mais contactava durante adia eram as crianças.
Era com elas que jogava a dimbuela, kimbokadi, kindembele 130, e com
um baralho de cartas pintadas por ele mesmo. Também jogavam para
disputar castanhas de caju.
Por mais que exigisse respeito, os garotos só obedeciam no momento.
E um ou outro, às vezes, andava à pancada com os gozões, em defesa
dele.
Kahitu foi durante muito tempo, ou toda a sua vida, o “mestre” das
crianças. Ensinava-lhes diversos jogos, como fazer e armar os laços para
caçar pássaros e esquilos; como atirar pedras aos embondeiros, para
arrancar a mákua 131; como nadar. Ele não sabia nadar, mas em terra,
ou na água que lhe chegava até ao pescoço, ia dando as instruções aos
seus pupilozinhos. Ensinando-os a fimbar132, nadar de costas, a nadar
de lado e mais outras modalidades.
Ainda ensinava os seus amiguinhos a fazer arcos e flechas para caçar
gafanhotos e passarinhos. Na bola, ele era o “refi”133. Às vezes fazia a

____________________________________
128 Ki-iii, kika uió! – (estribilho) Aí vai o aleijado! (N.A.).
129 ngi-mi-bosola – piso-vos (N.A.).
130 dimbuela, kimbokadi, kindembele – jogos regionais (NA).
131 mákua (ou múcua) – frutos do embondeiro ou baobá (N.A.).
132 fimbar – mergulhar (N.A.).
133 refi – centroavante (do inglês half ) (N.E.).

70
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

vez de “kiper”134 e de orientador do jogo. Muitos garotos não podiam


passar sem Kahitu.
Havia dias em que ele passava em muitas casas, dando parte dos
garotos aos pais, para que repreendessem os filhos que faziam pouco
dele.
Dos pais dos malandrinhos, recebia carta-branca para surrá-
los, quando pudesse com eles. Principalmente as mães dos garotos,
que viviam sugestionadas de que um dia podiam gerar um Kahitu,
incitavam-no a dar nos filhos com muita força. Algumas mães batiam
os filhos na presença do paralítico, que se deleitava todo. Porém, a surra
nada resolvia.
– Kik’ ééé!... - gritou um miúdo, numa guita135.
– Ai, sacana! Agora mesmo passei na casa do teu pai, sô cachorro.
Brinca, vou te dar uma surra de cagar bichos. Toma conta! Só cachorro
espera, está aqui apontado...
– Kik ekk!
– Toma conta, só cachorro, estás aqui apontado. – A estas palavras,
Kahitu levantava o braço, fazendo o sinal de “espera” com a palma
da mão bem aberta e, em seguida, reforçava a ameaça com o gesto de
molhar com a ponta da língua a palma e o dorso da mão e, por fim,
aprovava a sua sentença abanando a cabeça num gesto de assentimento:
estava garantida a sova.
– Kaxiii... – continuava o garoto a gritar e a fazer caretas para
Kahitu, que já andava fulo.
– Continua, aproxima que te mato, cão!...
Kahitu tinha criado músculos nos braços e trazia um peito
descomunal, em relação à sua idade. Enquanto os seus coevos cresciam
em estatura, ele se desenvolvia naquelas partes anatómicas.
Para se poder defender dos gozos dos seus amiguinhos de jogos,

____________________________________
134 kiper – goleiro (do inglês goalkeeper) (N.E.).
135 guita – corrida (N.E.).

71
Uanhenga Xitu

tinha arranjado um chicote, armado de uma corda comprida. Kaloda.


Da necessidade nasce o engenho, diz-se. Havia treinado com o
chicote de tal forma que poucos garotos escapavam da sua armadilha.
E raro era o miúdo que se aproximava, sorrateiramente, para lhe gritar
ao ouvido (kaxen’ é, kaxiii, kika, Kikekk), como o faziam antes, sem ser
pescado.
Um dia, Kipenze, garoto muito traquinas e sombra funesta de
Kahitu, a uns metros da sua vítima, gritou:
– Máxii…136
Kahitu, habilidoso a atirar o seu chicote, arremessou-o aos pés
do Kipenze. Enrolou-lhe as duas pernas e prendeu-o. Kahitu, muito
satisfeito, refestelava-se como um gato que apanhou um rato:
– Nga-ku-kuata137, nga-ku-kuata, Kipenze! Lelu nga-ku-kuata,
Kipenzepo. Sô sacana, vai pagar tudo o que me fizeste e aquilo que me
fizeram os teus amigos... Nga-ku-kuata, Kipenze! – Kahitu continuava
a gritar, muito entusiasmado. – Ai, fala então, quem é maxikamenu
(máxii)? Anda a fazer pouco dos calos que trago no cu, não é?
Maxikamenu de macaco, kiene138? Fala já, então?...
O miúdo gritava e procurava desprender-se das mãos calejadas do
kikata. Mas era difícil. Kahitu, às vezes, brigava com adultos e meninos
mais fortes do que Kipenze. Deu-lhe tanto! Despiu-lhe os calções e
cuspiu-lhe no cu – símbolo de humilhação. É o mesmo que dizer: “lhe
deram de merda”.
Muitos velhos assistiram à sova que Kipenze apanhara nesse dia. Não
quiseram apaziguar para exemplo de outros garotos. Porém, quando o
miúdo foi solto, atirou uma quantidade de pedras ao aleijado, que não
feriram graças ao jeito do kikata em saber desviar-se delas, e também
pela intervenção dos circuns-tantes.
Nessa ocasião, velhos, adultos e rapazes se aproximaram para
____________________________________
136 Máxiii... – (estribilho) de maxikamenu - assentos calejados (N.A.).
137 Nga-ku-kuata... – Apanhei-te, Kipenze! Hoje apanhei-te! (N.A.).
138 kiene? – não é assim? (N.A.).

72
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

apreciar o invento de Kahitu.


– Mano Kahitu, experimenta ainda dar uma chicotada naquele
rapaz! – alguém pediu.
O gaiato indicado afastava-se para fugir. O kikata fez demonstração,
arremessando o chicote. E o rapaz foi pescado pela barriga, onde se
enrolara a corda.
– Agora tomem cautela, crianças! Não brinquem mais com mano
Kahitu. Mesmo de longe, consegue caçar-vos – aconselhava um velho,
muito admirado com a habilidade do infeliz.

73
Escola

Quando o esperado professor chegou à sanzala, Kahitu já sabia ler


todo o livro de “João de Deus” e o de “Deveres dos Filhos”139. Ele sabia
mais do que alguns dos antigos seus explicadores.
Na aula, o professor prestava-lhe muita atenção. Fez-lhe a revisão
dos livros que já acabara e passou-o para a Leitura Pequena, de João
Grave, era assim como se chamava o livro da primeira classe.
O kikata continuava a revelar-se o melhor aluno da turma.
Discutia contas com os meninos da 2.a classe. Vivia mais satisfeito
agora, por estar ao lado dos seus contemporâneos que o haviam
abandonado, quando a escola ficava longe.
Noutro aspecto, muito contente, porque já não precisava dos
miekeieke140, como tratava os garotos que o escoltavam e o insultavam.
Encontrava-se no meio daqueles que nasceram na mesma época.
Embora em tempos já o tivessem gozado também. Agora, respeitavam-
no e procuravam defendê-lo da troça dos miúdos.
No dia da ginástica, o professor punha-o na caixa para marcar a
cadência da marcha dos estudantes: “esquerda... esquerda... esquerda-
direita... um, dois, esquerda-direita... – tãtã-tam--trarram, tãtã-tam-
trarram, pum, pum”, Kahitu, muito vaidoso, ia batendo no tamborinho,
comprimido entre o corpo e o braço.
– Aí Kahitu, bom bombeiro! Olha, Kahitu também já sabe tocar! Ó
Kahitu, trarramm-tam... – gritavam e imitavam os garotos que na hora
da “caixa” iam propositadamente apreciar o kikata...
A Escola demorou pouco tempo. O número de alunos matriculados

____________________________________
139 João de Deus e Deveres dos Filhos – respectivamente, 1.ª e 2.ª parte da cartilha (N.A.).
140 miekeieke – miúdos, garotinhos (N.A.).

75
Uanhenga Xitu

era bem grande, mas a maior parte dos papás não pagavam a
mensalidade do professor. E, assim, o “tamborileiro” viu-se novamente
embaraçado.
Como a Escola da sua sanzala não podia manter o professor, os
alunos passaram a frequentar a antiga, longe daí, o que só era possível
aos alunos que podiam caminhar quinze ou mais quilómetros, ida e
volta, diariamente.
Quando isso sucedeu, o rapaz já estava no meio do livro da 3.ª
classe, e resolvia bem as quatro operações e alguns problemas. Muito
triste, passava os dias que se seguiram ao encerramento da Escola.
Tinha de voltar para o meio dos miúdos. Eram os companheiros mais
chegados, embora indesejáveis.
Antes da Escola, durante muitos anos, Kahitu frequentara, como
lugar de passatempo, a oficina de um velho ferreiro que fazia facas,
machados, catanas141, agulhas para fazer cestos e balaios, arpões, chuços,
enxadas e mais outros artigos.
De vez em quando, o ferreiro convidava o rapaz para dar ao fole. E
dava conta. Chegava a tocar batuque com o muanzu 142, e era tanta a sua
habilidade que fazia admirar os homens batidos na profissão. Quando a
ditenda143 estivesse cheia de fregueses, dizia o mestre:
– Kahitu, sobe no muanzu. Faz dançar essa gente!
O rapaz rastejava-se, dirigindo-se ao muanzu. E, todo sério,
perguntava à assistência:
– Que batuque quer, de itonda144, de kalembe145, ou quê?
– Seja qual for – respondia a clientela.
E viam-se os músculos do peito e dos braços, bem desenvolvidos,
a mexerem-se com os movimentos que ele executava no fole. As brasas
____________________________________
141 catana – facão (N.E.).
142 muanzu – fole (N.A.).
143 ditenda – oficina; tb. fábrica (N.A.).
144 itonda – dança regional exclusiva para mulheres (N.A.).
145 kalembe – dança de crítica social que se praticou entre 1903 e 1912 na região de lcolo e Bengo, composta a
partir de palavras sem nexo e do batuque mágico dos quimbandas (N.A.).

76
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

sopradas pelos dois canos de muanzu brilhavam de forma incandescente.


O ferro no braseiro tomava a cor do fogo. O rapaz transpirava. As suas
costas escuras espelhavam. A face iluminada pela fogueira ndondava
kinono146 abundante. Os sopros ritmados nvem-nvem, zuca-zuca... que
o fole deixava escapar, transmitiam o som do batuque de itonda e de
outros mais. Alguém começava a cantar, acompanhando a cadência
do fole no auge. E a assistência transformava a oficina em lugar de
divertimento.
– Kouelenu!...147
Assobios e gritos de satisfação ecoavam. O velho, dono da oficina,
muito comovido, deixava cair o nzundu148 das mãos. Assoava um pouco
de muco nasal; e com o dorso da mão, cheio de suor e pó, limpava
os olhos lacrimosos. No passado, a arte de ferreiro era aureolada com
muitos ritos.
Durante o tempo em que a Escola esteve na sanzala, o Kikata não
ia à oficina do ferreiro.
Agora, para enganar as saudades deixadas pela Escola, resolveu
abrir, por sua conta, uma oficina de ferreiro. Os moradores que tinham
ferramenta em casa emprestaram ao moço habilidoso e cheio de
vontade.
Na sua oficina aparecia gente de toda a ordem. Velhos e velhas,
homens e mulheres, rapazes e raparigas. Não contando os miúdos
antigos e novos camaradas do actual mestre de oficina.
As gerações de miúdos nunca mais acabavam. Passava uma, nascia
outra. Esta, enquanto não fosse adulta, pisava o mesmo trilho da antiga:
mangando Kahitu.
– Kik’ek?!
– Espera, sô sacana, quando acabar só esta faca vou no teu pai que
é do mesmo tempo comigo.
____________________________________
146 ndondava kinono – deitava suor (N.A.).
147 Kouelenu!... – Aplaudi!... (N.A.).
148 nzundu – malho (N.E.).

77
Uanhenga Xitu

– Kàxêêê!...
– Anh! Tu também? Não vai ficar muito tempo, vou-te apanhar.
Logo no sungi 149 vou-te arrastar até na casa da tua mãe. Quando nasci
com a Kialenguluka nem tu contavas de ser fabricado, sô “cabinji”150...
Tens os cabelos como lambidos por uma jibóia, sacana de merda. Eu
vi a tua mãe namorar e a ser levada para a casa do teu pai, não brinca
comigo, sô “cabinji”. É a tua mãe que deves chamar Kuxena.
– Kàxêêê!... – gritava o miúdo, sorrindo e fazendo caretas.
– Continua, sô “cabinji”! Kaxena é a tua mãe Kialenguluka. O dia
que pisares os pés nesta oficina, vou-te meter um ferro quente na boca.
Juro, palavra de honra! Só se este embondeiro que serve de oficina não
tem ouvidos... Vejam lá, um garoto daquele que vi a mãe nua, nós
ainda novos lá na cacimba, e o sacana, hoje, a chatear-me também?!...
Muita garotada em idade não escolar passava o dia na ditenda.
Alguns filhos eram deixados pelas mães ao cuidado de Kahitu. Todos
traziam as suas merendas e recreavam – brincando e jogando – em volta
do embondeiro, até que os seus familiares voltassem das lavras.
Aos mais adultos, o mestre utilizava-os para pôr carvão no fogo,
apagar brasas, e outros eram empregues no muanzu.
Ainda tinha um grupinho que servia para impedir que os garotos
mais fracos fossem batidos pelos mais fortes – a sua “polícia”.
Os filhos deixados sob tutela de Kahitu estavam bem entregues. As
mães ficavam satisfeitas com a ama. Da merenda que deixavam para os
filhos, as mães contavam já com o mestre.
A “polícia” do mestre ferreiro, composta por miúdos de cinco a oito
anos de idade, às vezes não podia agir contra os gozões, malandrões que
alguns deles já andavam na Escola.
Mas ai do miúdo que não fosse pupilo do mestre e viesse brincar
e criasse desordens entre os seus protegidos! Era amarfanhado pelos

____________________________________
149 sungi – lugar de serão (N.A.).
150 cabinji – parvo (N.E.).

78
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

“policiazinhos” que atacavam como mabeku151.


Na sua oficina também fabricava makamba152, makumba153, isaku154,
isomenu155, jinvu156, ndjabitu157, jipenze158, maxalu159, matemu160 outros
artigos.
A ditenda era lugar de encontro de muita gente. Até pessoas estranhas
da sanzala apareciam. Doentes vinham passar tempo na oficina. Outras
pessoas, depois das lavras, lá caíam com baralhos de cartas e com a kiela
para kuseta161, enquanto aguardavam pela hora de jantar.
O mestre era o homem mais informado da sanzala. Estava a par
de todas as conversas, até das íntimas. Conhecia a fundo o segredo de
algumas famílias. Porque, enquanto os seus contemporâneos faziam da
sanzala lugar de transição, ele estava lá desde a nascença. Viu velhos
e novos a morrerem, e crianças a nascerem. Assistiu a casamentos e
divórcios. Conhecia todo o verbo e adágios regionais para conquistar
mulheres. Também sabia derrubar um argumentador astucioso. E
servia como orientador de muitos rapazes para conquistarem moças,
e conselheiro de moças para se escaparem de rapazes com más
intenções.
Assistia a muitos e diversos julgamentos na Mbanza do Soba.
Quem quisesse saber da genealogia de uma determinada família bastava
recorrer a Kahitu. Ele era o mais indicado para ler e interpretar cartas
de terrenos, escritas no século XVIII, com tinta de folhas de tomateiros,
sendo a pena: muá-muá ua kisak162, e o aparo: o espinho da piteira.

____________________________________
151 mabeku – chacais (N.A.).
152 makamba – instrumentos de caça, lanças.
153 makumba – fechaduras, cadeados.
154 isaku – agulhas para fazer cestos.
155 isomenu – instrumentos de ferro ou de madeira para fazer esteiras, portas de palha.
156 jinvu – podões; foices.
157 ndjabltu – machadinha.
158 jipenze – instrumentos de caça; lanças com ganchos (arpões).
159 maxalu – machados.
160 matemu – enxadas (N.A.).
161 kuseta – jogo tradicional utilizando um tabuleiro com 28 buracos (kiela) (N.E.).
162 muá-muá ua kisaka – pêlo de porco-espinho (N.A.).

79
Uanhenga Xitu

Desde pequeno, ele sobrecarregava conhecimentos de valor, da sua


área.
Rapazes que viviam nas cidades escreviam para ele, a pedirem
informações de raparigas para casamento. E moços galanteadores, de
sanzalas estranhas, dirigiam-se a ele, para se informarem da conduta
desta e daquela rapariga.
Anos atrás era um bom cristão. Na Igreja, ao lado dos cristãos da
época – João e Pedro –, cantava como um “anjo”.
Dos espectáculos que a Igreja dava, interpretando passagens bíblicas,
muitas vezes fazia o papel do “coxo dos Apóstolos João e Pedro”.
Tinha boa memória para recitar capítulos da bíblia.
Tão reservado era, que não se tinha esquecido do filho da
Kialenguluka. Viu-o metido num grupo de rapazes que jogavam
kindembele. Fazia os possíveis para chegar ao sítio sem ser visto. O jogo
estava no auge:
– ...mu amoxi, mu aiadi, mu atatu, mu auana... mu kuala... mu
tolo... ku dima dia kahama... kakuata! 163 – os miúdos faziam muita
algazarra. E tão absorvidos estavam no jogo que não davam pela chegada
do “kika”, que se rastejava de mansinho cuobando-os à onça164.
Os garotos continuavam a discutir as partidas do jogo:
– Kiatenge!...165
– É mentira, Kiatenge nada – altercavam porque um deles quer
trapacear.
– Vamos acabar e vamos começar de kapokona makondo166 – sugeriu
um companheiro.
Kahitu, num voo felino, que só ele, aleijado, o sabia dar, atirou-se
ao grupo, e prendeu, com as suas mãos calejadas, a perninha do garoto
desejado. Os outros, assustados, espalharam-se fazendo muita gritaria,

____________________________________
163 mu amoxi... – regras do jogo: 1.°, 2.°, 3.°, 4.° (a interpretação do restante é ambígua) (N.A.).
164 cuobando-os à onça – pé ante pé, sem fazer barulho (N.E.).
165 Kiatenge! – Mexeu-se! (N.A.).
166 kapokona makondo – outra modalidade do jogo de kindembele (N.A.).

80
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

enquanto o companheiro chorava e se debatia desesperadamente.


– Lelu, nga-ku-kuata, eme kaxêêê? Kaxena inanhi? Zuela, kaxena
inanhi?!...167
– Deixa, deixa... – berrava o garoto que estava sendo sovado sem
dó.
Alguém tinha ido chamar Kialenguluka. Esta veio a correr, mas
encontrou o filho já solto a chorar.
– Mano Kahitu, que fez o filho, bater assim parece que roubou?
Inh, roubou quê?... Ele é servente ou é cão ou é escravo?
– Ó Kialenguluka, não venha já com esta força. É preciso educar
o filho, porque kaxena deve chamar você e com teu homem, ouviu?
Bati este cachorro – mostrava o garoto que fungava para exemplo, e
vou procurar os outros. Costumo dizer que eu não tem culpa de nascer
aleijado. Tu, Kialenguluka, também pode nascer, um dia, um filho
como eu. Crescemos junto, e era você mesmo que me acudia, quando
outros rapazes me faziam pouco. Agora deve fazer mesma coisa que
andava fazer antigamente, defendendo-me do teu filho e dos outros
rapazes que querem gozar a minha desgraça...
– Eu não digo que não bate. Mas quando bate a mão não deve ficar
muito pesado nos miúdos...
– Pedi-te muitas vezes para ralhar teu filho, no meu lugar, mas nunca
quer saber nada. Os garotos são juados168? Está bem. Mas também
tem remédio do juado. Toma conta, com esta porrada que apanhou
o teu filho, ele não vai chatear mais na minha vida... Eu sei que não
vai chatear mesmo. Você é testemunha da “cruz de Jesus Cristo” que
ando levar desde pequeno. Padeço mais com chacota dos vossos filhos
– principalmente o teu filho – do que com os meus pés mortos. Jesus
Cristo não esqueceu o aleijado...

____________________________________
167 Lelu, nga-ku-kuata... – Hoje apanhei-te; eu sou o kaxena? Quem é o kaxena? Fala, quem é o kaxena?!...
(N.A.).
168 juados – traquinas (N.A.).

81
Uanhenga Xitu

Acabando de dizer estas palavras, chorou. A Kialenguluka olhou


fixamente para o kikata. Respirou fundo, e por fim começou a despejar
lágrimas: bulu-bulu-bulu-bulu-bulu...

82
Cartório

Velho Mukita, uma ocasião, veio da lavra muito cedo. Ao entrar em


casa, encontrou na sala muitas mulheres: velhas e novas.
– Kahitu, para que tanta gente em casa?... A sala está a dar o aspecto
de que alguém está doente...
– São pessoas que vieram para lhes ler as cartas que vieram dos seus
parentes, e outras para lhes escrever cartas de resposta.
O velho, brincando, dirigiu-se às visitas e disse:
– Vocês passam a trazer qualquer coisa para esse aleijado.
Das encomendas que receberam dos vossos filhos, devem tirar um
pouco para o vosso escriturário.
– Está bem, temos feito isso. Vamos, mano Kahitu, está sendo hora
de trabalho – pediu uma velhota.
– Devo começar nas mais velhas ou nas mais novas? – perguntou
Kahitu.
– Primeiro somos nós. Estas novas estão cheias de segredos.
Que fiquem sós...
E o mestre começou a ler uma carta de uma das senhoras:
“... 21 de Janeiro de 193...
Minha querida tia Mafuma:
Desejo saber a sua saúde eu cá bom sem novidade. Eu mando dizer
que...”
– Psiuuu, kik’êêêê! – interrompeu um garoto.
– Kika é a tua mãe... ia tatenu moxi!!!169 – explodiu Kahitu numa
cólera desenfreada. Não respeitou sequer as visitas, tal era o seu estado
nervoso, causado por um garoto que da janela o insultara. Tremia e
____________________________________
169 ia tatenu moxi! – vai para o caralho do teu pai! (N.E.).

83
Uanhenga Xitu

transpirava.
– Mas quem foi o malandro que gritou aí pela janela? – perguntou
a dona de casa.
– Foi o filho da Kanzenze, lá vai a correr...
– Vamos continuar com a nossa carta, mano Kahitu. Não deves
ligar a estes garotos, ainda pioras. Eu me encarrego de passar pela casa
da Kanzenze, não te irrites mais. Estes miúdos são autênticos diabos;
com tanta surra que levam, nunca se emendam!...
– Ainda há dias dei uma porrada de cagar bichos ao filho da
Kialenguluka. Faltava-me um bicho, agora aparece mais esse a chatear-
me. Está na minha lista...
Terminado com o correio das velhas, seguiu com o das novas. Em
geral, todo o aluno que nasceu e cresceu na sanzala e lá estudou, já
provou a situação embaraçosa em que se vê, quando lhe ditam em
quimbundo uma carta para ser feita em português.
Elas, as velhas, não sabem falar português, mas procuram corrigir
certas passagens da carta! Talvez guiadas pelo sentido dos seus escreventes
permanentes.
As velhotas não gostam dos escreventes que se libertaram há pouco
da Escola. Dizem elas que as cartas que escrevem os moços não têm a
consistência nem a pausa, tal como o fazem os adultos. “– Você escreveu
só, mas vou mandar ler mais no tio Chico (velho).” Alguns chegam de
dizer isso e mais alguma coisa.
– Kiaiangô, chegou a tua vez – gritou o mestre.
A moça, muito bonita e de maneiras modestas, entrou no quarto
onde funcionava o escritório e viu:
O mestre próximo da janela, debruçado sobre uma mesita com
tampo de caixote e pernas de pau de paku170. Como toalha, a mesita
estava coberta de velhos jornais de Portugal, Diário da Manhã 171. Ele
____________________________________
170 pau de paku – madeira muito resistente usada, em geral, na construção (N.E.).
171 Diário da Manhã – jornal publicado em Lisboa no tempo de Salazar: órgão da União Nacional, o partido
criado por Salazar (N.E.).

84
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

sentava-se num caixote. Tanto a mesa como o que servia de banco eram
de altura relativa à sua estatura e ao jeito de se comportar junto dos
móveis. Na mesa estavam dois tinteiros: um de vidro, do tempo de
“Luís XV”, e outro, já velho, de madeira envernizada, com três bocas
abertas, e tendo ainda um lugar para pousar as canetas, no qual estavam
três bem grossas. Tinham sido oferecidas pelos amigos, em serviço nas
cidades. Na mesa, ainda se viam duas pedras de sossoua172, bem lisas e
redondinhas, que faziam a vez de pesa-papéis e, às vezes, serviam para
tirar aos ganapos-mangadores. A cama de jipapa173, mizalumuna174 e
kitanda175, tinha um colchão: dois luandos, um de kalangala e outro de
kuzala176. Na cabeceira da cama, fazia a vez de almofada e travesseiro: um
tronco de kixingu177, entre os dois luandos, com a medida da largura da
cama. Na munhunga178 estavam pendurados um pano, camisa, calções
e outras roupas. Num dos cantos do quarto, havia, encostado à parede,
um baú velho, sobre o qual estavam volumes de livros já carcomidos e
um pequeno candeeiro de lata.
Desde que Kiaiangô entrou, observava o quarto do mestre com
muita atenção. E, se não fosse o interrompimento das companheiras
que esperavam na sala, ela continuaria a mirar.
– Então, Kiaiangô, desde que entraste não falas para abreviares as
outras, o que estás a fazer?
– O Kahitu está acabar de escrever uma carta. E vocês já sabem
quando se lhe interrompe, corre connosco.
– Quem tem pressa vai’mbora! – observou Kahitu.
– Falamos só. Pronto, fazes primeiro o teu trabalho. Se formos,

____________________________________
172 sossoua – pedras brilhantes e redondas (N.E.).
173 jipapa – forquilhas de cama; “finca-pé”.
174 mizalumuna – travessa de cama.
175 kitanda – estrado (N.A.).
176 uando de kalangala e de kuzala – esteiras que se estendem sobre o estrado: o de kalangala fica por cima do
de kuzala (N.A.).
177 kixingu – tronco seco de madeira fofa e leve; acha (N.A.).
178 munhunga – corda (N.E.).

85
Uanhenga Xitu

a quem iremos ter? Há muitos que sabem escrever, mas interpretar o


pensamento de quem dita e àquele que escreve, não há melhor que
tu. Bem sabes que os nossos parentes mandaram dizer que cartas sem
a letra de Kahitu não se percebem bem. Até a carta que escreveu o
branco Sousa, que sabe mais do que o Chefe do Posto, o primo Manuel
mandou dizer que não respondia mais cartas sem a tua letra.
– Bem, Kiaiangô, encosta a porta para as outras não ouvirem as
conversas. Trazes papel?
A rapariga levantou um pouco o pano-de-cima. E de um sítio
oculto tirou o papel e envelope que custaram “duzentos réis”, na loja
do comerciante Sousa.
– Fala primeiro antes de eu começar a carta.
– Tudo?
– Pois ‘tá claro. Às vezes vocês começam com uma conversa e,
quando já chegam no final, já não querem o que mandaram dizer.
– Diga mesmo no Madima assim como eu vou falar, não ponha
nem tira:
“Recebi o dinheiro para o tabaco que ele mandou na mamã. Volta
não quero. Eu não gosto dele. Se alguém que intrujou que eu costuma
pensar no Madima, é mentira. Ele vai mas é queimar o cabelo, e tudo sai
na cabeça. O mbuiji idia o dixinde dia-mu-uabela, muene o ku-ngi-
jijimika mukonda?179 Com uma data de mulher que anda no mundo
Madima ranja outra mulher. Na carta, ele disse que só quando eu morrer
ele me deixa perseguir. O mamã foi na casa de pai dele fazer ver isso. Eu
nunca lhe comi dinheiro dele, nem se recebi kambundu ka musanga180.
Ele pode feitiçar, não pega. Já tenho namorado. Se no mundo não tem mais
mulher como eu, também digo que neste mundo não tem home que não
presta como ele. Ouvi dizer que quer vir para mi roubar. Pode vir também
tem home que pode com ele. Mais nada.”

____________________________________
179 O mbuiji... – A paca come o capim de que gosta. Por que ele insiste tanto comigo? (N.A.).
180 kambundu ka musanga – grão de missanga (N.A.).

86
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

– Ambanjiná 181, Madima que está vir com feitiço de intrujar? –


acrescentou a moça, muito aborrecida.
– Mas tu quer ir mesmo com aquele rapaz de Mutamba? – perguntou
Kahitu.
– E depois?
– Olha que, raparigas de Longo, são pouco que costumam habituar
com a vida das margens do Cuanza.
– Eme kima! 182 Tem muitas mulher de Longo e andam bem.
Mas a pessoa, quando gosta, até no fogo vai.
– Tu vai trocar um rapaz da tua sanzala com um mutambi a
mbiji 183?
– É gosto, mano Kahitu. Vamos, escreve ainda.
O mestre ferreiro, conselheiro, escrevente e dirigente dos miekeieke,
escreveu tal qual como a Kiaiangô ditara. No fim leu-lhe a carta, e
perguntou:
– Está bem assim?
– Sim.
– Não tem medo ou bocado de amor para Madima que gosta de
ti?
– Não, ni o coração está pesado. Gosto é gosto. Já tenho meu rapaz,
mutu uzuela o kidi kiê...184 – respondeu a moça, sorrindo.
– Outra – chamou Kahitu.
Entrou a menina KanvuIa, que disse:
– É aquilo que falamos ontem no sungi.
– Nada mais tem para pôr?
– Nada.

____________________________________
181 Ambanjiná – Ora bolas! (N.A.).
182 Eme kima! – Não interessa! (N.A.).
183 mutambi a mbiji – pescador (N.A.).
184 mutu uzuela o kidi kiê – a pessoa diz a sua verdade (N.A.).

87
Uanhenga Xitu

“... , Janeiro de 193...


Meu querido do coração
Mbenza
Quero saber a, sua saúde. Eu não durmo, todos os dias andar só pensar
no você. Recebi a carta, as missangas de jingondo185, de milakidi186 as
pulseiras. Não sei quando vai vir me ver. Em casa tem muitas conversas. O
papá e mamã e mais gente, não gosta de você. E o meu coração anda como
não sei. Só o primo Miguel e o tio Makoza gostam de você. Papá e mamã
querem me obrigar ir num homem. Eu disse não quero, porque se me
obriga eu vou pôr uma corda no pescoço. Portanto, fala mesmo se você me
gosta de verdade... Tio Makoza falou com papá mas o papá não quer ouvir.
Até o vinho, que o teu pai foi com ele na nossa casa, para sunguilar 187, só
o tio Makoza que bebeu. A mamã também não recebeu o tabaco que lhe
levaram.
Mamã disse se migar com você, vai-se matar. Papá disse mais vale eu
morrer do que migar com você. Já apanhei duas porradas por causa das
cartas que mandaste-me. As coisas que recebi, escondi na casa do primo
Miguel. Muitos costumam me aconselhar que os velhos no princípio é
assim, depois aceitam. Mas comigo parece que tudo vai ficar mal. Eu gosto
de você mesmo, Mbenza. Também já disse no tio Makoza que se me batem
mais vou-me pendurar no pau de mutete188. Sabe? Única forma de a gente
se amigar mesmo, é mesmo nos roubar. Eu aceito. Papá e mamã ficam
zangados mas depois passa. Mas também o coração está dizer se amigar
você, a mamã vai meter corda no pescoço. Pior ainda se você me roubar.
Mas tio Makoza disse que é mentira, mamã só está intrujar. Mamã está
falar assim para ver se meu coração fica mole. Mas vejam só o homem
que querem me obrigar! É o velho Kizuba que já tem três mulheres. Eu,
pôr “ukàjina”189 com muitos que andam aí, é azar. Costumam, dizer que
____________________________________
185 jingondo – qualidade de missanga dourada (NA).
186 milakidi – qualidade de missanga, de grãos mais compridos que roliços, mas finos (N.A.).
187 sunguilar – conversar ou divertir no sungi (N.A.).
188 mutete – árvore (N.A.).
189 pôr “ukajina” – aceitar as normas da poligamia (N.E.).

88
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

Kizuba é feiticeiro e dança com a mulher mais velha, e é quem é que vão-
me dar para ficar com ele. Esta mulher anda comer os filhos das outras
comborças 190. É nesta casa de conversa que eu vai ir?...”
– Dá mais papel, este não chega – interrompeu Kahitu e continuou
a escrever:
“... Vai aí com o tio Banda um bocado de castanhas de caju, mbombó
de mandioca 191, doze mangas e algumas batatas-doces, assadas. São os
meus pensamentos. Minha irmã Anhica manda muitos cumprimentos, e as
pulseiras também lhe dei duas.
A filha de Jingondo lhe deram uma barriga na casa do pai dele. A
Nzamba lhe querem num rapaz de Malambo. A Sangue já foi no homem,
mas passou uma conversa grande. Você pergunta na Catidi? A Catidi vai
já lhe trazerem no rapaz dele, depois de cortar a mbala192. Cumprimento
para o primo António e mano Cundinda. Mais nada. Manda resposta na
terça-feira sem falta. Tua namorada que lhe gosta muito no coração,
Kanvula”.

– Pronto, acabei a carta. Mas você sabes porque o teu pai não gosta
do Mbenza?
– Costumam dizer que é por causa dumas conversas que passou
muito tempo com meu avô e avô do Mbenza. Eles já morreu. Eu tenho
coisa com isso?
– Eu vou contar-te:
O teu avô e o velho Dixinde andaram namorar a mesma mulher.
Depois a mulher ficou com Dixinde. Mas o teu avô jurou que a mulher
não ficava com ninguém. A rapariga, no primeiro parto, morreu com o
filho na barriga. Passou barulho grande.
Disseram que o teu avô é que feitiçou. Então lhe insultaram e lhe
bateram no óbito, nos parentes da falecida e mais nos parentes do velho
____________________________________
190 comborça – concubina (N.E.).
191 mbombó de mandioca – mandioca fermentada (N.E.).
192 mbala – sorgo (N.E.).

89
Uanhenga Xitu

Dixinde. Desde esse dia o teu avô que ficou sujo, deixaram de falar com
a família do Dixinde. Esta maka193 passou no ano que você nasceste.
Mas antes de passar a conversa, o teu pai com o pai de Mbenza eram
amigos. Mas os pais deles obrigou os filhos não falarem também.
Então, quando os dois velhos já morreram, os vossos pais começaram a
se cumprimentar outra vez. Na hora de morrer o teu avô, ele chamou
todos os filhos e disse que nenhuma pessoa da família dele vai amigar
na família do Dixinde. Porque aquele que não cumprir a minha ordem
vai ficar com azar até morrer. Agora aparece esse vosso namoro. Teu pai
tem medo que você vai morrer de parto ou te vai acontecer uma coisa
muito triste. O pai de Mbenza é da Igreja e não liga estas coisas. É assim
como se passaram as conversas, o que falta você um dia vai saber....
– Mas eu nada sei dessa conversa, e não tem nada com ele.
– Eu estou a pensar que os teus pais vão-te dizer, só estão esperar o
dia. Eles estão-te ainda a pôr medo para ver se você larga a namoração.
Mas se eles adivinharem o teu pensamento que aceitas ser raptada, vão
te dizer logo. Porque se você eras uma bisneta, talvez as coisas iam de
outra maneira. Agora, você neta daquela que deixou a ordem, as coisas
estão muito fresco, Kanvula. Vais perguntar o teu tio Makoza...
As outras moças que esperavam na sala entraram depois da saída da
Kanvula. O mestre leu as cartas que uma trazia, para esse efeito.
Na véspera e dia de comboio194, o trabalho de Kahitu começava
com o escrever e o ler cartas de parentes, pessoas amigas e conhecidas.
Como recompensa, recebia, de vez em quando, algumas ofertas, por
exemplo: batata-doce, mandioca, castanhas de caju, milho e outros
mimos; também açúcar e pão, que os filhos da cidade enviavam para
os seus. Recebia as ofertas quando as “clientes” se lembrassem dele,
porque Kahitu trabalhava por “amor à arte”. Às vezes, quando os
amigos regressavam das suas ocupações, lá longe da terra, ofereciam-lhe
____________________________________
193 maka – briga; discussão (N.E.).
194 dia de comboio – a passagem do trem, que se dava três vezes por semana, era um pequeno acontecimento
(N.E.).

90
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

algumas roupas usadas, papel e envelope, canetas, tintas e lápis.


As crianças nunca deixavam de incomodar o paralítico, não
obstante a idade que já aparentava. Sucedia que mesmo os pupilos que
ele protegia na sua oficina também o gozavam.
Uma ocasião, o miúdo Nzeue, depois de passar todo o dia na
oficina, ao despedir-se gritou:
– Máxiii...
E desatou a fugir. Atrás dele seguiram alguns “polícias” (baixotes e
gordinhos, de 5 a 6 anos de idade) para o apanhar. Mas eram pequenos
demais para um patifezinho que aparentava ter 8 anos de idade. Nessa
tarde Kahitu ficou transtornado, e lamentava:
– Sacana do ingrato! Maxikamenu, eme!!! 195 É preciso ter muito
azar!... Todos estão aqui apontados. Vou surrá-los, um por um. E o
cachorro parecia ser um obediente!...
Numa tarde, depois de o sol amainar, e o chão estar propício para
um paralítico poder rastejar-se e gatinhar sem se queimar, Kahitu
resolveu dar um passeio pela sanzala.
Qualquer transeunte podia saber onde o mestre estava, denunciado
pelo rasto que os seus pés e mãos deixavam marcado no chão.
– Boa tarde, mano Kahitu, para onde vais?
– Boa tarde, vou dar uma volta até lá em baixo. Muito tempo que
não vejo a rapaziada.
O escrevente, já disse que era reservado. Quando engolisse o nome
de um miúdo que o desrespeitasse, não ficava satisfeito enquanto não
o sovasse. Dessa vez ia à caça daquele garoto que uma vez o chamou
“kikata” na mesma altura que o filho da Kialenguluka. Ao passar
próximo de uma mulelema196, viu um grupo de garotos que jogavam
kimbokadi 197. No grupo estava um dos seus “polícias”. Chamou-o:
____________________________________
195 Maxikamenu, eme!!! – Calos nas nádegas, eu!!! (N.E.).
196 mulelema (ou muxixi) – pequena árvore burserácea (N.E.).
197 kimbokadi (ou kaluuila) – jogo infantil em que quatro cacos de louça, com uma das faces pintadas, são
arremessados para cima; segundo a posição em que caem, faz-se a contagem dos pontos avançando-se com uma
pedrinha em buracos praticados no chão (N.E.).

91
Uanhenga Xitu

– Kinda, venha! – O “policiazinho” veio a correr, todo satisfeito.


Trazia a face, a barriga e as mãos cheias de terra.
Estou aqui, mano Kahitu.
– Não viste o Pazito, filho da Sota?
– Não.
– Então dá uma corrida até o fundo da sanzala e vê se está lá. Corre,
eu vou devagarinho, e encontramos no caminho. É ver só. Não lhe diga
nada. – O garoto partiu velozmente. Passado um momento estava de
volta.
– Está lá jogar kaluila, na trás da casa do Kamanhi. Naquele “capinho
“, aliii... Está com Kimba, Buatu, Zinha, Bati e Mbaxi – informou o
miúdo, respirando com aceleração.
Os jogadores estavam muito entretidos com o kimbokadi. O mestre,
usando da sua artimanha para caçar miúdos, ia-se aproximando.
Eram seis garotos sentados em círculo. No centro havia um buraco
em que cabia um ovo de jacaré, do qual partia uma fila, de dez buracos
mais pequenos, para cada jogador. A kaluila estava em acção. De quando
em vez os jogadores alteravam a voz, ao corrigirem uma jogada ou para
animarem a partida.
E ouvia-se o cair ao chão dos quatro cacos de louça pintada de
um só lado. Ao mesmo tempo que iam marcando as vazas, diziam os
preceitos do jogo. Isto é, conforme os cacos atirados primeiramente ao
ar mostrassem, no chão, as pintas em par ou ímpar ou uma só face.
– Miti 198 – o jogador marcou um buraco.
– Dinake199 – o contemplado marcou oito buracos, por conseguir,
de uma só atirada, virar os quatro cacos do lado da face pintada.
– Uabele...200
– Uabele a-mu-luila201 – responderam todos em coro, e cada jogador

____________________________________
198 Miti – par (no jogo de kaluila, dois cacos com a mesma face) (N.A.).
199 Dinake – oito (N.E.).
200 Uabele... – Perdeu... (N.A.).
201 Uabele a-mu-luila – Quem perdeu dá um ponto aos outros (N.A.).

92
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

marcou um buraco, menos o perdido.


Kahitu continuava a espiar e a fazer os planos de apanhar o
malandrote. O jogo em movimento:
– Dikuinhi 202 – outro jogador marcava dez buracos, porque todos
os cacos, no chão, mostravam a face não pintada.
– Uabele! – perdeu agora, o mesmo jogador, porque, atirados os
quatro cacos ao ar, caíram no chão mostrando número ímpar (três da
mesma face e um de outra).
O jogo mudou para o parceiro a seguir, do lado direito. Este atirou
os quatro cacos, dois dos quais caíram sobrepostos. E todos gritaram:
– Dikuba!
– Dikuba a-di-luila 203 – disseram os companheiros que marcavam
um buraco com muita satisfação, menos o que retinha os cacos, que
atirou de novo ao ar os cacos sobrepostos. Por infelicidade, ao caírem,
um dos cacos fincou no chão, em posição de esquina, em vez de cair
por uma das faces, como é habitual. Por isso, houve novos gritos de
regozijo:
– Ngima! Ngima ia ngonga fula dia’ alunga!!! 204 – em coro disseram
os jogadores beneficiados. O jogador atirou de novo o caco que deu o
ngima para ver se conseguia um par com os que já estavam no chão.
Infelizmente arranjou um ímpar.
– Uabele! – gritaram os beneficiados, e ao mesmo respondem:
– Uabele a-mu-luila! – marcaram, menos o que tinha o jogo.
Por sinal era o Pazito quem perdia. Tinha de ser castigado pelos
outros cinco que ganharam. Mas ficou resolvido que só no fim da
segunda partida o faziam.
Terminada a primeira, principiou a segunda, com a pragmática:
– Ngitunda’nzo, ngiza’nzo, ngibokola...205 – cada jogador marcou

____________________________________
202 Dikuinhi – dez (N.E.).
203 Dikuba a-di-luila – exclamação que indica a superposição de dois cacos no jogo de kaluila (N.E.).
204 Ngima!... – linguagem enigmática e obscura (N.A.).
205 Ngltunda’nzo... – Saio de um buraco, passo noutro e entro neste... (N.A.).

93
Uanhenga Xitu

três buracos antes de principiar a atirar os cacos ao ar. É a regra.


Kahitu achou melhor contornar a casa, para chegar à parede onde
os garotos se entretinham. A caçada era difícil.
Sem contar, Pazito saiu do grupo para mijar. Quando ia contornar
a kipapa206, onde Kahitu já media o seu voo característico, o garoto
deu um encontrão no seu inimigo que não lhe deu tempo para fugir.
E, como uma dádiva caída do Céu, o mestre abraçou o miekeieke com
toda a satisfação.
Pazito deu um grito pungente que despertou os companheiros e os
assistentes da partida.
– Kahitu-é! Kahitu-é!... – gritavam os outros miúdos como se
vissem um fantasma.
O dono da casa sabia que o aleijado batia mal, correu a acudir ao
garoto que berrava sob a pressão dos dedos de alicate do escrevente,
ferreiro e mestre dos miekeieke.
– Larga, Kahitu, para exemplo chega – pedia o dono da casa.
– Stá bem, mas ele tem de dizer o que tinha dito. Diga, Pazito, o
que disse naquele dia!
– Não digo mais.
– Diga para eu te deixar.
– Amba kooo! 207 – aconselharam os companheiros que, de volta e
muito nervosos, andavam a fazer barulho somente. – Se eu falar, ele
vai-me bater mais...
– Não bate, não, amba ngo’kik’êêê, kaxiii, máxiii!... – insistiam os
amigos da kaluila. O rapaz gemia. E, numa voz baixa e trémula, disse:
– Kikâ, mâxi, kâxe...
– Vais chamar mais um dia kika? – perguntou Kahitu.
– Kaná 208.

____________________________________
206 kipapa – parede (N.A.).
207 Amba kooo! – Fala então! (N.A.).
208 Kaná – não (N.E.).

94
Kizolexa209

Não obstante o seu estado de mutilado, o mestre aspirava ter um


lar. Desposar! Quando não, ao menos conhecer uma mulher, para ver
se era ou não viril.
Concebeu essa ideia desde que os contemporâneos começaram a
casar. Porém, nunca quis exteriorizá-la, temendo a topia210 que viria a
sofrer da parte do público.
O quarto de Kahitu, além de ser um “escritório”, também funcionava
como lugar de escola de civismo. Pois nele convergiam adultos e adultas
em idade de casar para ouvir e aprender os ensinamentos que o tempo
e a experiência ofereceram ao “kikata de Deus”.
No princípio, o pai – a mãe, velha Mbombo, há muito tinha falecido
– opunha-se à kanvuanza 211 que se registava em sua casa. Muitas
visitas de rapazes e raparigas. Muita gente velha ia à procura do filho
de Mukita, para pedir a intervenção do aleijado, a fim de aconselhar
um determinado filho a seguir esse ou aquele caminho. Ele conhecia a
fundo a psicologia dos garotos que viu nascer. Alguns moços e moças
acatavam mais um conselho dele do que o dos pais.
O mestre, já maduro no pensamento, uma vez respondeu ao pai,
que se aborrecia com as visitas, que deixasse vir o mundo que o visitava.
Porque, se Deus lhe tinha negado o viver como os outros rapazes sãos,
em parte compensara-o com a kizolexa de ser amado por muita gente. E
se ainda não se tinha suicidado, ao pensar nas pernas que não tem, deve
agradecer a todas as pessoas que o visitavam. E queria lembrar o pai que
a mãe, na hora da morte, contara-lhe o motivo da sua paralisia.
____________________________________
209 kizolexa – qualidade de ser amado por muita gente; estima (N.A.).
210 topia – troça (N.A.).
211 kanvuanza – confusão (N.A.).

95
Uanhenga Xitu

Nesse dia, o velho Mukita ficou muito comovido. A partir dessa


data nunca mais se importou com o número de visitas que o filho
recebesse. Não poucas vezes o velho recebia louvores, por ter um filho
tão inteligente. O velho agradecia com muita satisfação. Mas, no
fundo, ficava com medo de que o filho fosse enfeitiçado pela esperteza
manifestada e tão realçada.
Um dia Kahitu foi intimado a comparecer na Mbanza do Soba,
para dizer se a letra de uma carta anónima, dirigida ao Soba, era dele. A
carta censurava uma pena que o Tribunal do Soba aplicara a um pai de
uma das suas pupilas da “escola cívica”.
A carta tinha sido escrita por ele, com uma caligrafia disfarçada. O
escrevente não se limitava a insurgir-se só contra a pena, mas estendera-
se em apontar certos erros do sobado.
Instado e ameaçado, na presença de professores que tinham sido
convidados para examinarem a caligrafia, o escrevente negou a acusação.
Mas não convenceu os makota 212 do Tribunal, que o tinham sempre
debaixo de olho.
Velho Mukita, quando viu o filho na disanza 213 de maka214, e ouviu
os comentários jocosos e ameaças da parte do Soba e seus Ministros,
temeu que o filho tivesse caído na lista negra dos feiticeiros.
Nessa audiência, o escrevente respondeu em parábolas às parábolas
dos Juízes, e fê-lo com subtileza que deixou espantada a assistência. No
seu depoimento foi muito presunçoso, e mostrou atitudes insolentes
que lhe iam custar vexame, sova, se não fosse a intervenção pronta dos
professores e de algumas pessoas que se comoveram.
À noite, em frente da casa de Kahitu era o lugar de disungi 215.
Os jovens, depois do jantar, apareciam para algumas brincadeiras
de dança e de jogos.

____________________________________
212 makota – conselheiro do soba (N.E.).
213 disanza – largo; lugar de reunião, de justiça (N.A.).
214 de maka – em apuros; com problemas (N.E.).
215 disungi – local de passeio, de recreio (N.E.).

96
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

Enquanto cá fora a gritaria das crianças e de adultos cortava a noite,


o mestre, no seu quarto, estava em volta de donzelas bonitas, feias e as
de beleza média – iluminadas por um tosco candeeiro de lata,
As gargalhadas das moças estalavam, consoante o assunto, se era
ou não palpitante. Mas, fora, grosso maior de gente, o barulho dos
brincadores abafava as risadas indiscretas das “alunas”.
Nessa espécie de “escola de civismo”, cada frequentadora fazia a
sua pergunta às colegas ou ao mestre. Geralmente era o mestre que
dava a explicação de como uma rapariga se deve portar junto de um
namorado; as respostas que se devem dar ou não ao galanteador; a
forma como se deve portar a moça no primeiro dia do casamento;
como evitar o kubatekela 216; o que se deve dizer ao namorado quando a
moça pretendida já não é honrada, e se deve dizer ou não isso ao rapaz
antes do matrimónio; a significação dos três ou mais dias, a seguir ao
casamento, em que a noiva é obrigada a dormir com a sogra ou mulher
que a substitua; os deveres a atender no dia das núpcias, junto dos
futuros sogros, dos cunhados, do povo e, principalmente, das damas
que a acompanham; como se elimina a vergonha de que se apossam as
noivas, nas primeiras refeições, logo a seguir ao enlace.
São estas e mais coisas que Kahitu ministrava às moças, sem
conhecimento de muitos pais. Estes alcunhavam o dormitório do
mestre como quarto de kinzangala 217 ou de makudi 218.
Eram noites mais felizes na vida do aleijado. Aquelas em que se
encontrava com as raparigas no seu quarto. O petróleo era comprado
pelas discípulas. Estas levavam para lá conversas muito íntimas, que
ouviam das cunhadas, das tias, das mulheres de kisoko 219 e daquelas

____________________________________
216 kubatekela – ato de parir filhos uns atrás de outros (N.A.).
217 kinzangala – casa onde dormem ou se reúnem rapazes ou moças solteiras (N.A.).
218 makudi – solteiros (N.A.).
219 kisoko – acordo entre famílias pelo qual seus membros tratam-se sem cerimónias, não reconhecendo idade
ou condição social; de início tal acordo tornava lícitos inclusive alguns actos atentatórios à moral (adultérios,
roubos e até sevícias). O kisoko é firmado entre famílias ligadas seja por parentesco (transmitindo-se, nesse caso, aos
descendentes), seja por amizade (não se trans mitindo aos descendentes) (N.A.).

97
Uanhenga Xitu

senhoras, há pouco casadas, “ex-alunas” da “escola de Kahitu”.


O mestre ouvia com toda a atenção as histórias das pupilas.
E registrava-as na sua fértil memória, a fim de transmiti-las às futuras
alunas. Por vezes, ele contava também as suas histórias palpitantes e
insinuosas, por vezes. Histórias que ouviu da geração passada. E as
risadas estridentes ecoavam no quarto, com maior satisfação e num
à-vontade prazenteiro.
Valeram a muitas mocinhas essas “aulas”. Porque muitas raparigas
teriam caído nas mãos de vigaristas, se não fosse o conselho de mestre
boamente executado, como passatempo, por Kahitu.
No quarto, e na hora da “aula”, só entravam as adultas.
Não havia horário estabelecido. Elas vinham quando quisessem.
Algumas raparigas que, por qualquer razão, não pudessem comparecer
à reunião, sentiam-se aborrecidas.
O mestre foi muitas vezes insultado e ameaçado de levar uma
trepa, pelos rapazes que queriam sunguilar220 com as raparigas, e não o
podiam fazer, porque estavam a atender o aleijado. Houve queixas atrás
de queixas aos pais das “alunas”. Porém, não surtiam efeitos, porque
as filhas justificavam perante os pais a intenção malévola dos rapazes
queixosos.
As mães preferiam mais que as filhas estivessem toda a noite a
conversar com o aleijado, do que uns minutos com os moços. Estes,
alguns deles, vinham das cidades com defeitos que não se ajustavam à
maneira de ser do povo da sanzala.
Porém, as mesmas “lições” que recebiam as raparigas, ao invés, eram
também ministradas aos rapazes que frequentavam a sala de makudi,
mas em dias diferentes.
A cabeça de Kahitu estava cheia de confidências.
As reuniões do quarto de kinzangala, frequentava uma rapariga de
nome Saki, muito alegre e jovial como o indica o seu próprio nome.
____________________________________
220 sunguilar – conversar, bater papo; neste sentido preciso, namorar (N.E.).

98
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

Desde criança fora sempre uma brincalhona. Seja em que reunião


estivesse, tinha uma ou mais histórias para fazer rir. No quarto de
makudi as suas gargalhadas sobressaíam às das outras.
A mãe, quando a repreendia, usava sempre o estribilho: “Saki, eie u
mukuá-umeta…” 221. Não era muito bonita de cara mas era bem formada
de corpo. Os dentes branquinhos eram embelezados por kienze 222.
Dava graça o seu andar de ginga. As pernas grossas, mas proporcionadas
ao corpo, e altura, e botoladas223 por missangas, contrastavam com a
pouca beleza da sua face.
Vinha sendo pretendida por muitos cavalheiros da sua e de
sanzalas estranhas, mas ela desdenhava a todos. Dizia com a sua face
de kimuemuexa224: o homem para mim ainda não nasceu... E era a
mesma resposta que andava a pôr nas cartas em que respondia aos
apaixonados.
Muitas das suas companheiras do sungi e do quarto da makudi já
se encontravam em casa dos maridos. Casamentos, alguns, facilitados
por ela. Porque às vezes, para se ver livre dos incómodos de um pertinaz
galanteador, indicava-lhe uma amiga.
Nos lares das contemporâneas casadas era bem recebida. E delas
colhia muita conversa de umbôxa 225, que levava à casa da reunião, para
servir de tema ou para provocar risadas desalmadas, como aquelas que
deram no dia do casamento da Sange, antiga pupila de kinzangala.
Talvez fosse conveniente interromper a narração sobre a menina
Saki de saki e malumbi226 para resumir o muito falado caso da Sange.
Mas peço aos leitores para não perderem a meada.
A Sange tinha sido raptada pelo noivo – era a forma mais rápida
de se casar e estava na moda. Aliás, tolerada pelo regime da terra, não
____________________________________
221 “Saki, eie u mukuá-umeta” – “Saki, és muito saliente”. (N.A.).
222 kienze – intervalo natural entre os dentes incisivos frontais (N.A.).
223 botoladas – cingidas, apertadas (N.E.).
224 kimuemuexa – fisionomia alegre, sorridente (N.A.).
225 umbôxa – íntima (maka a umbôxa - conversa íntima do lar; mukua-umbôxa – linguareiro) (N.A.).
226 saki e malumbi – presença e vaidade (N.E.).

99
Uanhenga Xitu

obstante os perigos em que, às vezes, incorrem os raptores.


Raptada e posta em casa, mas no leito, não consentiu que o marido
a possuísse. Nesse dia levou uma tareia que de nada serviu. No terceiro
dia, o marido convidou velhas para aconselharem a mulher caprichosa.
A Sange respondeu-lhes que sim, mas, na hora devida, recusou. O caso
já estava a ser muito comentado e de uma maneira escandalosa.
No quarto dia, o marido introduziu amigos no quarto. A Sange foi
amarrada de pés e mãos, com ajuda de panos e lenços de cabeça, aos
quatro cantos da cama. Nada lhe valeram os gritos, que eram abafados
pelos cantos e pelo tanger de bumbo de um ensaio de carnaval,
propositadamente arranjado.
Cá fora, entre os dançarinos, havia gente que, despertada pelos gritos
da moça, apoiava a ideia do marido, isto é, castigar a rapariga que não
queria cumprir o dever sagrado da mulher. Com a excepção dos amigos,
na multidão ninguém mais sabia que a Sange estava amarrada.
– Ê assim mesmo! Ambanjiná 227, anda estas safadas ficarem como
santas. Os namorado anda gastar muito dinheiro, muito tempo e
paciência para migar mulher, e as tipa para fugir vergonha – undumbu
uá moxi 228 – que anda fazer aí-por-aí, foge de dormir com home dele,
sacana! Mas Sange costuma pensar que andou a namorar com irmão
dele ou pai dele? Ou pensa que migar só capinar, varrer e buscar água
e comer?... É assim mesmo! – incitava uma mulher de língua solta,
e mukuá-kisoko do noivo, que resmungava no meio do povo com os
panos levantados.
A mulher parecia doida, andando na multidão de um lado para o
outro com as mãos levantadas, ameaçando as moças-amigas da Sange.
Sacudia-se e batia com a palma da mão no mataku 229. No fim, chegou
à janela do quarto e gritou para o kisoko:

____________________________________
227 Ambanjiná – Ora bolas! (N.E.).
228 undumbu uá moxi – suas vadias de merda (N.A.).
229 mataku – nádegas (N.A.).

100
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

– Eh diiala dia ngunza! 230 Se a gaja tem munvu 231, manda já entrar
depressa para eu vir já cortar!...
A gente ria-se das piadas da mukuá-kisoko, e também do
acontecimento invulgar.
Ê mentira! Sange era bem menina. O que o mundo não esperava era
que, mesmo com esse espectáculo, o marido não conseguisse realizar o
acto. Estava nervoso...
O mundo falou, criticou e xingou. Até no feitiço, que os namorados
destronados teriam feito para vexar o marido da Sange, falaram.
Foi a intervenção de Kahitu, por intermédio da Saki, que conseguiu
que a Sange cedesse. E era menina, apenas tinha tomado aquela decisão
por ter sido raptada contra a sua vontade.
A história é grande. Voltemos, pois, para Saki, mas não para contar
o diálogo que ela teve com Sange. Porque essa história dá para rir,
lagrimar e estatelar-se no chão, morto de tanta risada! Puf... porque
história contada pela boca da Saki e ajudada com os seus gestos
característicos (por mais murcha que se torna na boca de outra pessoa)
dá muita graça.
As declarações de amor para Saki continuavam a chover, quer por
cartas e directamente, quer através de jipoxi 232. A moça era prendada.
Além da esperteza, sabia capinar bem, tinha muitos conhecimentos
culinários, fazedora de ibandu 233, jingalu 234, ikumba 235, matamina 236
e inda 237.

____________________________________
230 Eh diiala dia ngunza! – O homem corajoso! (N.A.).
231 munvu ou muvu – membrana vaginal que por vezes é tomada como hímen, e que impede o coito e a
concepção. É uma doença que se trata com intervenção de uma cirurgiã (geralmente uma velha kimbanda) que
opera sob um ritual (N.A.).
232 jipoxi – intermediários que se encarregam de tratar de assuntos de namoro (tb. Advogados,conse-lheiros,
alcoviteiros) (N.A.).
233 ibandu – artefactos de palha e fibra, para joeirar, estender cereais, fuba, etc.
234 Jingalu – balaios.
235 ikumba – cestos grandes.
236 matamina – cestos médios entre ngalu e kinda.
237 inda – cestos maiores que as matamina e menores que asikumba (N.A.).

101
Uanhenga Xitu

Em casa, era uma burra de trabalho. Sabedora dos seus dotes,


através dos elogios que o povo lhe fazia directamente e, às vezes, por
intermédio dos pais, mantinha-se modesta.
Pais e mães queriam a Saki como nora. Algumas mães incitavam
indirectamente os filhos para cortejarem a rapariga:
– Ah, que felicidade ter a Saki como nora! – diziam mães para
outras mães e na presença dos filhos.
Mas ela continuava a fazer sofrer os corações dos rapazes
conquistadores. Houve um que no sungi, por descuido, deixou escapar
uma confidência:
– Namorei a Saki e não quis. Desta vez vou raptá-la, com ou sem
vontade. Porque, uma vez em casa, já feita mulher, não terá coragem
de voltar à casa dos pais. Quanto às consequências: “maka’a anandenge,
milonga ia’diakimi” 238.
A notícia correu depressa. O moço foi ameaçado por outros
cavalheiros, antes de os pais da Saki terem conhecimento. Ameaçaram
queimar a casa dos pais do atrevido e aquela onde Saki fosse recolhida
se realizasse tal rapto.

____________________________________
238 maka’a anandenge... – problemas dos filhos, aborrecimentos para os pais (N.A.).

102
Sai njimu, sai hete

Sai njimu, sai hete


Sai njimu ia maka
Sai hete ia maka
Njimu mulombolodi, muzangi
Hete mutungixi, mulongi,
Kialu kia njimu u-ki-ibula mu Mbanza,
Kibaka kia hete u-ki-sota bu Bata.
Hete uvuala njimu
Njimu kavuala hete 239.

No fim de uma das suas habituais reuniões, que acabou perto


da meia-noite, e quando todas as moças já estavam na rua, Kahitu
chamou:
–Saki-é, venha ainda.
– Mano Kahitu, me chamaste?
– Sim...
A rapariga entrou, mas antes avisou as outras que esperassem por
ela.
– Sabe?... Você é mesmo a rapariga mais esperta que conheço. Neste
quarto já passaram muitas, mas raparigas como você ainda não vi...
– Mas porque o mano Kahitu está falar assim? Viu uma coisa?
– Vi, como você respondeu na Tônha. Agora, faz favor: olha para

____________________________________
239 Há o Sábio, há o Prudente. / Há Sábio para resolver makas (discussões) / Há Prudente para resolver makas. /
O Sábio é intérprete, (às vezes) destruidor (velhaco) / O Prudente é edificador, conselheiro / A cadeira do Sábio, seu
lugar é na Mbanza / O banco do Prudente procura-se na sanzala. / De um Prudente pode nascer um Sábio / Do
Sábio não nasce um Prudente (N.A.).

103
Uanhenga Xitu

mim!
Os olhos de Kahitu olhavam os de Saki. E os de Saki aos de Kahitu.
Ficaram quase um minuto nessa posição estranha, como se estivessem
a hipnotizar-se. A moça resistiu à brincadeira: muemou240 e desviou a
vista. O mestre mantinha-se calado e sério.
– Fala então, que quer, as outras está na minha espera. – disse a
rapariga, cortando o mutismo.
– Não quero nada, pode sair, e obrigado – a moça saiu e juntou-se
às amigas.
Por todo o caminho falou pouco. Estava intrigada com a atitude
do mestre. Procurava descobrir porque Kahitu lhe fizera elogios e, em
seguida, aquele jogo de olhos...
Dias depois daquele incidente, Saki voltou, de dia claro, ao quarto
do mestre, a fim de lhe ler e responder uma carta, vinda de mais um
cavalheiro.
– Mano Kahitu, me lê ainda esta carta e dá resposta também.
A resposta já sabe: “o homem para mim ainda não nasceu”. Não
ponha nem tira palavra. Ê só isso que escreve...
– Mas porque não quer os rapazes?
– Eu não quero, mano Kahitu, ainda não sentiu vontade para ter
home. Dizer sim um rapaz é ficar com dívida no coração...
– Quer dizer continua fazer sofrer os corações dos rapazes, não é?
E se um dia aparecer um rapaz zangado que te rapta como fizeram a
Sange?
Saki riu-se abertamente como era seu hábito, e respondeu:
– O home que me rouba como está na moda não ficava com mulher
em casa. Ficava com uma cobra. Burra é Sange, que demorou tanto dia
e não fugiu. Mas esse home que vai roubar, comi-lhe o quê dele? “Jitaiji”
jatumisa jibixa, jipulsera, kitadi, mixinga, ma’ eme: lêmbua-lêmbua 241.
____________________________________
240 muemou – sorriu (N.A.).
241 “Jitaiji” jatumisa jibixa... – Os namorados têm oferecido, sempre, brincos, pulseiras, dinheiro, mascotes para
os pulsos, mas, cá comigo, é escusado (taiji – namorado, é calão) (N.A.).

104
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

Um home para roubar uma mulher precisa pegar ponto.


– Você é muito esperta! Olha para mim.
– Ah, para quê mais, mano Kahitu?
– Olha só, faz favor, e chega mais aqui.
A rapariga obedeceu, e os olhos de ambos se fitavam. O mestre
colocou-lhe as duas mãos sobre os ombros, e olharam-se fixamente.
Foi Kahitu quem interrompeu a “sessão” e, em seguida, mandou sair a
“discípula”.
Novamente, Saki, para casa, ia pensando no mexerico que existia
na monomania do “mestre”. “O que haverá atrás desse proceder do
Kahitu?... Devo comunicar às outras o que se está passando?... Não.
Quererá ele impressionar-me? Estará ele a adivinhar alguma coisa no
meu íntimo? Longe de mim pensar que, um dia, mano Kahitu queira
abusar do meu corpo, da minha franqueza e bondade para com ele...
Ele é um bonzinho, é coitado! Sem a nossa companhia (ele o confessa),
já teria morrido há muito. E, sem o mano Kahitu, eu e demais pouco
ou nada saberíamos do mundo em que vivemos...”
Certo dia, Saki não acompanhou os pais à lavra. Ficou para pisar
milho e fazer fuba, como recomendara a mãe, velha Mbamba.
O “mestre”, que se encontrava doente, uma diarreia, mandou
portador a Saki para que lhe enviasse um pouco de matete242. Veio ela
própria com uma panela de mudimbu.
– Entra, Saki... Como és tão boa para comigo!...
– A panelinha pode ficar, busco-a amanhã. Já vou, apenas vinha
saber como estás. – E ia sair, quando Kahitu a interrompeu:
– Olha, Saki, vou pedir-te um favor, ao mesmo tempo um segredo...
– pigarreou e esteve indeciso, ganhou coragem e disse: – Ainda sou
novo. As dores dos intestinos me têm atacado quase constantemente. É
mau sinal, neste meu estado. Pode a morte chegar daqui a alguns anos,
como dentro de dias ou horas. No mundo, não tenho pessoa tão amiga
____________________________________
242 matete – papa de farinha de milho ou mandioca; (N.E.).

105
Uanhenga Xitu

como tu, depois do meu pai e irmãos. É minha vontade, Saki, que
antes de deixar este mundo... (ficou muito tempo parado e suspirou)...
Antes de deixar este mundo, gostaria de ver, simplesmente, os peitos de
uma rapariga nova. (Ao ouvir isso, Saki sungou nzuna 243 e mudou de
posição.)
Kahitu continuou:
– Desculpa-me, Saki. Eu nasci e cresci sempre aleijado. Confesso-te
que, em toda essa minha vida de sofrimentos constantes, nunca vi os
peitos de uma rapariga nova. Nunca tive coragem de fazer um pedido
desse. Porque fico receado de que a rapariga se zangue, me xingue e vá
contar-me ao povo. Como sei que és amiga, mas amiga de confiança,
confesso-te o que sinto. É só ver...
A moça, tão vivida, espertalhona e sempre de resposta na ponta da
língua, mantinha a cara para baixo, o olhar no dedo grande que cavava
um buraco no soalho nu.
– Saki, dizes alguma coisa! Aceitar ou não, um segredo de morte te
peço. Porque, se um dia revelares a alguém este meu pedido, suicido-
me. Porque se os insultos dos miúdos quase que me tiram a vida, o
que fará uma denúncia dessa forma? Tu não me quererás matar, não
achas?...
– Não – respondeu, abanando a cabeça, num gesto negativo.
– Fala, se aceitas ou não... – A moça continuou calada, com aspecto
de muito envergonhada.
– Sei que aceitaste, mas custa-te. Nas mulheres é assim mesmo, o
silêncio é consentimento.
O “mestre”, sentado à cabeceira da cama, xenou244 até ao outro
extremo, onde estava encostada a moça e pegou no pano com que Saki
cobria o tronco.
– Dá licença (ia jitunando245 o pano).
____________________________________
243 sungou nzuna – franziu a testa (N.A.).
244 xenou – rastejou, andou de rastos (N.A.).
245 jitunando – desamarrando (N.A).

106
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

A rapariga virou a cara para a jimbala 246. E Kahitu mantinha abertas


as pontas do pano. Estava diante de duas “maçãs” pudicas. Nenhum
cavalheiro as vira antes. Entre as “maçãs”, caía um fio de missanga de
jingondo que, na sua cor dourada, iluminava as pontas escuras dos seios
púberes. Rapariga pouco bonita de cara, mas do pescoço começava-
lhe a beleza muito cortejada por homens sãos. O “mestre da escola-
matemo-social” estava deslumbrado! Olhou durante alguns segundos,
e cobriu o peito, nervosamente. E balbuciou:
– Pega o pano, Saki, minha grande amiga. Graças a ti, sinto-me
homem pela primeira vez.
A moça saiu sem se despedir. Cheia de vergonha, ia pensando
consigo mesma:
“Não percebo como cometi tamanho erro! Nenhum homem viu os
meus peitos. Nem mesmo na cacimba do Kienda, quando uma vez eu
e as amigas nadávamos e fomos surpreendidas por um homem! Nesse
incidente a primeira coisa que fiz foi tapar o peito com as mãos e sentar-
lhe na água... Deixar de atender um pedido de kikata como Kahitu, é
difícil... Mas feio é ir até aonde cheguei. Eu creio na sua sinceridade.
O que custa mostrar só?! Ele nada tira. Mas a vergonha que senti, meu
Deus!... Muita gente fala mal do aleijado. Atribui-lhe calúnias de andar
a desviar as jovens. Os rapazes quase o agridem, acusando-o de ser o
mandão das raparigas. Os miúdos nunca o deixaram em paz. E ele diz:
só em mim, como pessoa estranha, confia. Pronto, se a minha sina
é essa, vou fazendo os possíveis... Mas, como me sinto perturbada!
Cometi uma grande falta, deixar-se despir por um homem! Mas ele
não é home, é um kikata. E quem sabe se lhe negar o que me pede, sou
capaz de nascer um monstro como ele?”
Desde esse dia Saki nunca mais apareceu às reuniões, facto que
despertava a atenção às companheiras e ao próprio “mestre”, que vivia
atemorizado.
____________________________________
246 jimbala – parede de casa (por extensão) (N.A.).

107
Uanhenga Xitu

Uma reunião sem a Saki não tem expressão de vida. Foi preciso
mandar-lhe recados para voltar à “escola de civismo”. Mas não se
mostrou tão animada como antes.
Kahitu tinha descoberto um brinquedo. Fazendo pedidos constantes
à moça, para o deixar observar os peitos. Bastou a primeira vez para
Saki se deixar embalar. E o astuto mestre observou, observou, observou
e ela, já sem o ndjungu247 na face, foi deixando, deixando, deixando...
Saki, mesmo soberba, como era alcunhada pelos rapazes, tinha os
seus amigos, e mantinha-os à distância quando quisessem ultrapassar os
limites da amizade.
Meses depois a moça começou a aparecer mais bonita e atraente aos
olhos do povo. E mais conquistadores apareciam, atraídos agora pelo
kikumbi.
Aparecia espaçadamente às reuniões. Sentia muita moleza e
náuseas matinais. Uma vez ou outra aparecia no sungi para comandar
os brinquedos da juventude. Gozava de muita simpatia da parte dos
garotos. Sabia entoar muitos cantos regionais.
“– Dia njila, dia njila ué
– Dia njila
– Tat’ etu ku muiji ué
– Dia njila
– Mam’etu ku muiji ué
– Dia njila”248

Uma noite, no sungi, ela cuimbilava249 esta canção aos seus meninos.
Estes respondiam em coro à voz da mestra. Trazia os panos bacados. Um
outro pano enrolado sobre as ancas que se moviam com os movimentos
que a brincadeira exigia.
O luar muito claro iluminava as formas da menina soberba.
____________________________________
247 ndjungu – medo, receio, pudor (N.A.).
248 Dia njila... – canção popular (N.A.).
249 cuimbilava – fazia cantar; cantava o solo (N.A.).

108
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

Estava bonita! Até a cara estava embelezada pelo kikumbi. Na


assistência encontravam-se alguns rapazes vencidos e não convencidos
pelo “não” seco da comandante da brincadeira.
– Saki, deixa agora estes garotos, nós mais velhos também queremos
brincar – pediu um dos moços.
– Vamos brincar o Ndolonga – sugeriu Kaxiki, do conjunto.
Formada a roda de rapazes e raparigas, todos começaram a bater
palmas, ao mesmo tempo que entoavam a canção de Ndolonga.
Os da roda, além de kutonda250, cupudicavam 251.
A Saki e o Bonga entraram no centro da roda para fazerem o dueto.
A coincidência do par despertou a atenção dos outros dançarinos e
da assistência em geral. Porque o Bonga tinha sido um dos insistentes
pretendentes da Saki, e que vira as suas pretensões seguirem o rumo dos
outros. Era o que em tempos pensou raptar a companheira do duo.
E assim começou a kizomba252, entre palmas, passadas e
umbigadas:

“– Jina dié, nanhi ué?


– Ndolonga
– Jina diami Saki-ué
– Ndolonga
– Uasokana’té bebi-ué?
– Ndolonga
– Ngasokana kua’alun’géé
– Ndolonga
– Koue nanhi ué?
– Ndolonga”
– Kou’ami Mbeji uee
– Ndolonga
____________________________________
250 kutonda – bater palmas (N.A.).
251 cupudicavam – batiam palmas rápida e cadenciadamente (N.A.).
252 kizomba – dança; brincadeira; divertimento (N.A.).

109
Uanhenga Xitu

– Eme nguam’ami ue
– Ndolonga
…………………………
– Kaiala ualembeel o môngua.
– Ku ulo ué
– Usau ua-mu-kuata
– Ndolonga.

Esta estrofe acabou debaixo de sembadas desenfreadas e de palmas


fortes – Ndolonga!...
– Esta não chega, queremos mais brincar o Kaxéé, mana Saki, um
favor só, vamos – pediam os garotos.
– Vamos, mas depois não aceito mais.
Roda feita, panos bacados e a canção entre palmas e assobios
começou:

Kaxéé...
Uééé... lelé Kaxé
Kaxe ka mbala Tumba
Kaxe ka mbala Samba
Kixima kia muenge
Nimbala dia Alunga
Eie boba nudum... eie boba ndum...
Nhungunuka:
Nzele nzetu
Mbandu ia kamukua Nzelele nzetu
Ba akutekula
Teku teku teku
Ba akuzakula
Zaku zaku zaku

110
Kisoko

É quase certo que a mãe é a última pessoa a observar o estado de


gravidez da filha, quando solteira. Geralmente são pessoas estranhas
que denunciam esse estado.
Quando Saki pisava milho para fazer fuba, apareceu-lhe uma
mulher de kisoko, já idosa. Esta sentou-se no kinu 253 onde a moça
fez o trabalho. A rapariga peneirava a parte do milho pisado. Com o
kibandu 254 pequeno nas mãos, estava inclinada sobre o kibandu-kia-
kuzala 255, no chão, aonde caía a parte limpa do cereal. O “quimoni”
curto com que cobria o tronco estava largo, e deixava ver bem o peito e
o ventre.
A mukuá-kisoki, bem instalada no kinu, observava com muita
curiosidade os movimentos e as formas da rapariga. Tanto mirou e
remirou, disse:
– Tu estás muito elegante estes dias! Estes olhos tão vivos e este
corpo meio loxocado256 parecem de uma mulher que se meteu com um
homem.
– Ó Buanga, se vens cá com conversas porcas é melhor andar – disse
a rapariga, assustada, não gostando do motejo.
– Bolas, já não se pode brincar com uma comborça? O que tu
chamas conversas porcas? Estou a dar-te uma lição de maternidade. Vale
mais ouvires os segredos das mulheres da minha boca do que na boca de
outras... Estas tuas mamas (a velha kisoko inclinou-se e bulatou-as257,
Saki deu um grito) andam à espera do homem que ainda não nasceu,
____________________________________
253 kinu – pilão (N.A.).
254 kibandu – peneira (N.E.).
255 kibandu-kia-kuzala – peneira de kuzala (tipo de esteira) (N.E.).
256 loxocado – enfraquecido (N.A.).
257 bulatou-as – apertou-as (N.A.).

111
Uanhenga Xitu

não é?
– Ai, sua porca, ordinária, vens tentar-me? Daqui a pouco abandono
o trabalho e vou andando!
– Vais para onde, tu não tens casa nem marido? Inh, fala, para
onde?...
A velha Buanga levava o caso a brincar, como é hábito nesse preceito
de kisoko, onde os gracejos não respeitam idade nem condição social.
Porém a Saki estava tremida; sempre que a velha quisesse dizer qualquer
coisa, ela manifestava inquietação.
– Fala, tens ou não homem?
– Chatiça!258 Estás a oferecer-me homem, és tu que me arranjaste?
– Ó pá, não digas isso. Foste a rapariga mais cortejada nestes últimos
tempos, e nenhum homem te serve. A tua resposta foi sempre que “o
homem para mim ainda não nasceu”...
– Pronto, Buanga, gira259!
– Não me corras como uma cadela. Irei quando me apetecer. O
kisoko foi adquirido desde os nossos avoengos, para falar o que a gente
quer. Só vou se me deres um pouco de mukunza260, resolve! Porque
quero soltar a língua...
– Está bem, dou-te a mukunza e está a andar.
A moça tirou umas mãos no monte de pône261, e deitou-as na ponta
do pano da Buanga. Esta, antes de sair, inclinou para o ouvido da
rapariga e ciciou:
– Mas, mukuá-kisoko, confessa-me! Com estas mamas rijas, cara de
três meses, e esta mbunda 262 a volumar, não estás mesmo grávida?
– Aia-iaiaiaia, tunda-tunda, kumita kumita nh’eie enge nhi
mulenge?...263
____________________________________
258 Chatiça! – Porra! (N.E.).
259 gira! – desaparece! (N.E.).
260 mukunza – canjica (N.E.).
261 pône – milho pisado e preparado para fazer fuba ou matete (N.A.).
262 mbunda – nádegas (NA).
263 Aia-iaiaiaia... – Ai, ai, sai-sai, engravidar, engravidar, é contigo ou com o vento? (N.A.).

112
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

– Comigo não. Tu pensas que a gravidez só se apanha depois de


casada? Ali no vosso sungi já se deram muitas “barrigas”.
Buanga saiu a correr e sorrindo.
A rapariga acabou o trabalho com muita dificuldade. Uma sensação
de tremor tomou-lhe todo o corpo. E sentia calafrios. Temia que a
linguareira Buanga não motejasse apenas.
Uma velha experiente tinha descoberto o estado em que se
encontrava, e era capaz de dizer a todo o mundo. A “gaja” é de kisoko,
mas a conversa não é de kisoko... “Será verdade que eu esteja mesmo
grávida? Como?!... Um aleijado não faz filho, dizia o mano Kahitu. Será
que a bondade que tive por kikata me custe vexame e a morte? Eu, ser
humilhada pelo mundo inteiro!?...
A rapariga despertou dos seus pensamentos e entrou no quarto.
Apalpou a barriga, e disse consigo: “não há nada. A Buanga é
uma brincalhona antiga. Mas estes enjoos e sintomas idênticos aos
de uma mulher grávida como os descrevia o mano Kahitu! Hui, que
desgraça!!!”
Pelo caminho, Buanga, ao encontrar-se com Mbamba, mãe de Saki,
despertou-lhe:
– Mbamba, peço reparares bem na tua filha. Aquele brilho de cara,
aquele olhar comprometedor, e o andar que não é de uma menina
saudável, e quem como a Saki que sempre foi rija, são indícios de
gravidez.
– Hahaààà (Mbamba deu uma gargalhada estridente)... Tu és kisoko
muito desbocada, pensei que fosse uma conversa séria, afinal são sempre
as tuas brincadeiras. Quando é que se confia numa pessoa de kisoko que
anuncia mortes onde há saúde e dá novidades que não existem?! Vai a
tua vida, Buanga, e deixa a minha filha em paz.
– Juro, ngedi ngãã! 264 caçoada fora. Estou a falar a sério, põe-se de
parte o kisoko. Venho da tua casa, olha (mostrava a ponta do pano que
____________________________________
264 ngedi-ngãã! – palavra de honra! (N.E.).

113
Uanhenga Xitu

continha a mukunza), roubei-te um pouco disso. Reparei a rapariga e


está mesmo com “dois corpos”.
A mãe Mbamba pôs de sobreaviso algumas parentes para
confirmarem ou não as suspeitas de Buanga. Já tinha observado a filha;
de facto estava com kikumbi exagerado. Mas, gravidez, gra-videz, como
e com quem, meu Deus?! Que azar, que vergonha!
Dias depois soube das parentes que, de facto, a rapariga estava
concebida e julga-se a caminho de três meses.
Baku, já na cama, foi posto ao corrente do facto pela mulher.
Nessa noite quis levantar-se para interrogar e surrar a filha.
– Calma, Baku, amanhã é dia. Vai tudo devagar. Pode ser que a
gente esteja enganada.
– Enganada, com uma filha com três meses?! Tu andas aqui em
casa e não sabes do que se passa, e ainda estás à espera dos milagres dos
enganos?
– Mas que culpa me cabe neste negócio, Baku? Não fizemos tudo
para que ela aceitasse o casamento, de tantos pedidos que nos fizeram?
– Já em tempos pedi-te que suspendesses as suas idas àquela casa de
kinzangala do senhor Kahitu. Respondeste que a deixasse divertir-se.
– E estás convencido que a gravidez que ela deve ter proveio da casa
do makudi?
O casal falou, barafustou e discutiu toda a noite. Nessa noite, velho
Baku fumou mais de cinco cachimbos para disfarçar a dor que lhe
triturava os miolos. E não dormiu.
Logo de manhã cedo, Saki foi chamada para o interrogatório.
Faziam parte da reunião familiar duas tias.
– Saki, tu estás grávida! Dizes com quem? – perguntou uma das
tias.
Ao ouvir a pergunta, Mbamba meteu a cabeça entre as mãos, e com
os dedos procurava tapar os ouvidos. Soluçava e abanava a cabeça, num
gesto de profunda mágoa.
– Responde, menina! Queremos saber o menino desta proeza.

114
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

Saki mantinha-se calada. Com a cara virada para a kipapa, parecia


uma pessoa a vaguear em imaginação.
Sentados fora, mas próximos da porta do quarto onde passava o
interrogatório, estavam a conversar: Baku e o irmão mais novo, dois
velhos, amigos da casa, e dois irmãos de Mbamba, também chamados
para deslindarem a pouca-vergonha da sobrinha.
– Menina, fala! Não viemos cá para perder tempo. Se tivesses um
noivo evitar-te-íamos a maçada. Agora, uma menina como tu, que
nunca nos apresentaste um cavalheiro, e apareceres em estado em que
te encontras é uma vergonha para toda a família – insistiu a outra tia.
Mas a rapariga andava alheia a todas as perguntas e comentários. Tinha
optado pela táctica do silêncio.
– Fala! – berrou a tia, muito exaltada.
No quarto surgiu o irmão de Baku:
– Saki, fala! Porque senão vais apanhar uma sova que nunca
experimentaste na vida. Não estamos aqui para contemplações.
A moça mantinha-se muda, perante os rogos da mãe e a impaciência
das tias. O tio começou a surrá-la com um chicote de ngifi 265.
– Se for preciso um cacete, dê-lhe – recomendou o velho Baku, na
porta do quarto.
Nem por isso falou. Procurava defender-se apenas. E chorava
numa voz sumida. Não era a bela voz que se ouvia no sungi. Nem a das
gargalhadas na casa de makudi.
– Fala, minha filha! Veja só, então, as midimba 266 nas costas e nos
braços! Porque estás a sofrer, filha? Só queremos que confesses...
– Ó cunhado, pára de bater, assim mata-me a filha. Logo, eu...
Mbamba não tinha acabado a frase, quando Baku, que da porta
observava tudo, avançou para o quarto e deu um estalo na mulher.
Acudiram imediatamente os cunhados.

____________________________________
265 ngifi (jifi, jingifi, jifika) – planta fibrosa (NA).
266 midimba – sulcos provocados por vergastadas (N.E.).

115
Uanhenga Xitu

– Mandas parar porquê? Não vês que esta diuta 267 sujou o nome
da família, e ainda estás a acudi-la? Pelos vistos estou a ver que sabes da
conversa!
– Não me acuses, Baku, nada sei. Estava a dizer que, logo, era
capaz de arrancar-lhe a confissão com a ajuda de outras pessoas. Não a
castiguem mais, peço-vos! – pedia a mãe, de joelhos e entre lágrimas.
– O que achas estranho, Baku, neste caso tão vulgar e que se dá com
muito boa gente, e...
– Cala-te! Estes casos deram-se desde sempre, e não deixaram de
ter o castigo merecido, e dependia da maneira como se davam, porque,
nos tempos passados, casos como estes, alguns deles pagavam-se com
a morte do atrevido rapaz, e da rapariga que vexasse uma família de
respeito; assim se fazia para o mal não passar aos outros filhos, não
acham? – perguntou, olhando para os circunstantes.
– É assim mesmo, e ainda hoje não está totalmente acabado esse
castigo. Porque, a filha que faz baixar a “crista” dos pais, seu corpo servia
para fórmula mágica dos feiticeiros e dos quimbandas – respondeu um
dos velhos.
– Pouca-vergonha, pouca sorte é a minha! Na sanzala andarei de
cabeça baixa. Para as lavras sairei de madrugada e de lá voltarei à noite.
Feito fugitivo, por mau passo de uma filha que não soube honrar a casa
dos pais – lamentava Baku.
– Mas porque é que esta Saki não confessa o nome do rapaz?! Pois
que aqui é onde reside a complicação toda, ai que azar nosso! – interveio
uma tia, cortando a palavra ao Baku, que, em seguida, prosseguiu:
– Ainda mais isso!... Cometeu, conta a verdade aos parentes, não
conta! Quando ela se viu nessa pouca-vergonha, valia mais que se
entregasse à casa do criminoso. Nada feito, nem uma nem outra. E
com que cara posso eu olhar para o povo, ela que não tem namorado,
pelo menos conhecido em casa? Porventura serei eu o acusado dessa
____________________________________
267 diuta – víbora (NA).

116
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

monstruosidade? Bolas... bui-bui-bui brrr nnnn... – Baku, xinguilando,


avançou com as mãos abertas e os dedos em garras, para o pescoço da
filha, pronto a sufocá-la. Mas a tempo intervieram as mulheres e os
velhos:
– Ai Baku, ku kibange; eha, ambula, eha Baku! Mona u-mu-dingila
ba boto? Kivuadi kilomba polo, kilombe muxima 268 – ao mesmo tempo
que assim rogavam ao Baku, outros iam-lhe batendo, levemente, com a
palma da mão na cabeça, dizendo preces, para acalmá-lo e expulsarem
o espírito que se apossara dele: – Tulama, kulama kilundu kia Nginza,
vutukal… Tulama, kulama...269
A gente da sanzala e de outras vizinhas estavam a par do incidente
de Saki. Enquanto alguns cavalheiros que a pretenderam esconjuravam
a moça, e faziam comentários disparatados, outros aguardavam ser
acusados como autores da proeza.
O nome de Bonga, com quem dançara o Ndolonga no sungi, pela
última vez, estava sendo apontado como um dos capazes de cometer o
crime.
Houve quem apontasse o nome de Kahitu, mas foi logo vaiado. Um
aleijado e sem jeito para o resto, vá lá agora meter-se com a simpática
Saki! Só a pensar nisso é uma injustiça que se faz ao paralítico... coitado!
Ele que foi, durante muito tempo, kiledi 270, “mestre”, professor e
conselheiro de algumas gerações e nunca sequer falou a uma “pupila”
para um namoro, atribuir-lhe essa calúnia é um crime grave!... A mulher
é um bicho grande... Porque ela não quer falar?... – Eram estes e outros
comentários que se teciam à volta do caso da gentil Saki.
A rapariga passou mais um dia em jejum. À noite, a chamado da
velha Mbamba, veio a Sange para ver se convencia a amiga a confessar.
Porque o Baku era capaz de matar a filha.

____________________________________
268 Ai Baku... – Ó Baku, não faças isso! Larga, deixa, Baku! Estrangulas a filha na presença de pessoas? Um pai
pinta a cara mas nunca o coração (N.A.).
269 Tulama, kulama... – Calma, sossega Espírito sanguinário, arreda!... Calma, sossega (N.A.).
270 kiledi – ama (N.A.).

117
Uanhenga Xitu

As duas amigas, sentadas no luando, trocaram algumas impressões.


A voz da Saki mal se ouvia.
– Saki, quando fui raptada contra minha vontade, porque esperava
por um casamento respeitoso, foste tu quem me convenceu a mudar
de capricho. Agora, vim pedir-te um favor: dizer-me quem é o mano
desta obra que trazes no ventre? Que mal há nisso, o de ficares grávida?
Há tantas que ficaram nas tuas condições e vivem felizes. Ainda
temos muitos dias de gozos, não te sacrifiques com a surra diária que
estás apanhando. Deixa-te de caturrice. O mal está feito, nada vale o
capricho... Vês como estás amarela, durante os dias que estás fechada no
quarto, nem fora queres sair, que estupidez!... Passa cá essa cabeça para
te fazer algumas tranças! – disse, por fim, Sange, numa voz meiga.
Saki escutava a amiga, que não tinha acabado de aconselhar. Tinha
agora a cabeça encostada no regaço da Sange, que também estava
concebida. Com as cócegas que sentia na cabeça, ora uns ituiki ora uns
ifune 271, a rapariga adormecia. Há três dias que não pegava no sono,
lutando com a consciência, com a surra e com o vexame.
– Estás a dormir, Saki?
– Estou a cochilar. Sinto-me fraca, não como desde antes de ontem
e...
– O que é, rapariga!?
– É o que te digo, Sange. Não tenho apetite nem sono. Sofro...
Já pensei enforcar-me. Mas a morte é pesada (lagrimou). Pus as duas
coisas na balança: o suicídio e o vexame. O suicídio é pesado. Não
posso com ele. A tua presença tirou-me da agonia em que me debato.
Eu... – interrompida pela mãe Mbamba, que, ouvindo a voz da filha,
entrou rapidamente no quarto e disse:
– Estás a falar, filha? É isso que eu disse, Sange, vocês se conhecem
e entendem. Terias evitado todos estes aborrecimentos se falasses, Saki.
Andas aí a definhar-te sem necessidade. Se tu morreres, também vou
____________________________________
271 ituiki e ifume – estalidos (produzidos na cabeça com os dedos) (N.A.).

118
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

contigo. Não fico, porque...


– Ai, eu não quero barulho aqui! – disse a Saki, cortando a palavra
à mãe. – Portanto, mãe Mbamba, sai e deixa-nos sós – acrescentou a
Sange. – Vá, continua, Saki.
– Eu cometi o crime mais monstruoso! (a rapariga soluçava)...
– Tu és burra; pelo facto de ficares grávida, chamas a isso um crime
monstruoso? Lembras-te, quantas raparigas que o Kahitu nos apontou
e passaram pelo mesmo caminho? E quem as vê, hoje, na rua, alguém
se lembra do passado delas?
– Está bem, mas o meu caso não tem precedente. Espantar-te--ás
quando te confessar que o autor da gravidez deve ser o Kahitu, o único
com quem me “admiti”...
Sange abriu a boca, deitando a língua fora. Quis dizer alguma coisa.
Preferiu calar-se para não abominar mais a outra. E conteve-se durante
alguns minutos...
– Mas não dizem que é o Bonga? Ainda o meu marido disse-me à
noite que, conversando com o Bonga, este lhe dissera que não era ele,
mas se lhe impingirem a Saki, aceitava-a, bem como o seu fruto. Ora,
um homem que fala dessa maneira, deve ser ele mesmo. Porque, quem
havia de aceitar uma gravidez de outrem?
– Sei que o Bonga anda perdido por mim, assim como outros
rapazes. Já cá recebi recados do Chico e do Miguel, propondo para
acusar um deles. Mas eu não quero. Nunca conheci outro homem
senão Kahitu. Cedi, porque confiada estava que ajudava um kikata kia
Nzambi. Deves lembrar-te que Kahitu dizia que um homem como ele
não faz filho: ordens de Kituta... Ele manifestou o desgosto de morrer
sem conhecer o peito de uma moça. Pediu, exigiu que lhe fizesse esse
favor. E fiz. Que mal há nisso? – dizia comigo. Eu ou a Sange faria o
mesmo para um coitado e amigo como Kahitu. Pediu-me mais vezes e
fui deixando. Até que um dia tomou-me. Nesse dia não sei como estava.
Parecia uma pessoa hipnotizada, porque não reagi sequer. Pela roupa,
senti-me ferida. Foi quando me revoltei e quis arremessar-me a ele. Mas,

119
Uanhenga Xitu

mais uma vez a voz da complacência venceu-me. E nada fiz. Desde esse
dia criei ódio de morte ao kikata. Nunca mais fui às reuniões. E nunca
pensei que ficasse neste estado. Porque em primeiro lugar ele é um
kikata. E, por último, como ouvimos dizer das cunhadas, mulheres de
kisoko, de amigas já casadas e dele próprio, Kahitu, uma muzelekete 272
não concebe no primeiro contacto com o homem. Mesmo no dia em
que a Buanga despertou-me a atenção, não temi tanto, porque a gaja
era de kisoko. Ainda hoje, amiga Sange, tenho as minhas dúvidas de que
seja filho o que está nesta barriga (apalpava-a com os dedos). Deve ser
um kikata.
Logo que acabou o relato, mudou de posição sentada, e estirou-
se no luando, fazendo almofada as coxas da Sange, que continuava
xaxatando273 os cabelos da amiga.
– Olha, minha grande amiga, para evitarmos maior escândalo,
atribui-se o seu estado ao Bonga ou ao Miguel ou ao Chico. Porque, se
confessar o nome de Kahitu, a indignação do público crescerá, e o coitado
que sempre quiseste agradar ver-se-á em apuros incalculáveis. Se tiveste
pena dele, agora deves ir até ao fim, poupando-o do linchamento, por
parte dos cavalheiros que te namoraram, e dos olhos dos feiticeiros que
nessas ocasiões aproveitam razões para os seus fins maléficos. E estou
certa que Kahitu cometeu sem contar que havias de ficar grávida...
– Não. Criei agora vida. Direi a verdade. Dizem os velhos que
atribuir uma barriga a outro homem, quando se tem conhecimento
que não é o autor dela, no dia de dar à luz a parturiente não aguenta
e morre. Nestas condições, citar o nome de um daqueles moços era
o mesmo que aceitar o suicídio que procurei evitar. Se uma mulher
grávida tiver relações com outro homem, é o suficiente para causar a
morte, no dia do parto; o que acontecerá se impingir uma barriga?
– Mas isso não se chama impingir, Saki, porque o rapaz é que quer.

____________________________________
272 muzelekete – donzela (N.A.).
273 xaxatando – acariciando (N.A.).

120
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

Ele tem conhecimento da causa. Vamos evitar-te o maior vexame e


pouparmos a vida do Kahitu.
– Não, Sange. Direi a verdade. Um daqueles rapazes aceitará o
crime, para diminuir-me a vergonha e poupar a vida do kikata. Mas
com o rolar dos tempos atirar-me-á, constantemente, ofensas à cara.
E o sofrimento será para sempre. Não quero. O primeiro homem
que conheci é o Kahitu, mas o fruto do meu ventre é de kituta, assim
penso.
– Então poderei dizer à mãe Mbamba toda esta história?
– Sim. Basta dizer-lhe que foi o Kahitu.
– Jura-me de que, venha o que vier, aguentarás tudo sem mais a
ânsia de suicídio?
– Sim.
– Não sejas tola. Todo o mundo gosta de ti. Não sei o feitiço que
tu tens. Vê lá tu, até o meu marido, que era para ser teu, quando está
de bom humor, fala de ti e de uma maneira que deixa ciúme. – Todas
sorriram, mas a inconfundível gargalhada da Saki não se ouviu.
– Mostra ainda a tua barriga! Para ver se está igual à minha. E depois
mostro-te também.
A muito custo Saki desenrolou os panos. A Sange também pôs
a barriga à mostra. Olharam-se e sorriram novamente. A ditxatxa 274
característica da rapariga mais adorada estava apagada. Só a kimuemuexa
que transparecia nas suas bochechas manifestava alegria sumida...
– Sesa275 – ouviu-se gente fora que batia à porta e pedia para
entrar.
– Quem é? – perguntou Sange.
– Somos nós...
– Entrem... Bem, Saki, já vou-me embora e até amanhã de manhã
cedinho. Fiques agora com as moças que te vêm visitar. – despediu-se

____________________________________
274 ditxatxa – gargalhada (N.A.).
275 Sesa – Licença; dá licença (N.A.).

121
Uanhenga Xitu

Sange.
Algumas frequentadoras da casa de kinzangala de Kahitu, em
número de dez, vinham à antiga companheira, agora envolvida numa
maka de vida ou de morte. Atrás delas, um grupo de rapazes perseguia-
as, como um cardume de peixe a uma isca. Mas foi fechado fora –
proibido a entrada! Bonga, Miguel, Chico e mais outros estavam fora,
resmungando, à espera das visitantes.
Bonga não se conteve. Dirigiu-se à velha Mbamba, na cozinha,
pedir consentimento para ver a doente.
– Vai-te embora, seu atrevido! Ensarilhaste-me e ainda vens cá
fazer pouco de mim? Tens sorte por o Baku ter saído agora. Mas espera
aí, “uondo-moné iabila m’onzo”! 276 Amanhã no Soba, seu bandido,
vigarista. Teus pais hão-de me ouvir. Lá porque te julgas homem já te
sentes com coragem de vir enfrentar-me. Retira-te já da minha porta,
antes que não se espete esta lenha de fogo na cara, grande cachorro...
Paz e sossego acabaram no meu lar.
Por tua causa. A sanzala inteira ri-se de mim e tu o vens fazer mesmo
na minha cara...
Bonga ficou intrigado perante a atitude da velha. Mas, embora
se sentisse enxovalhado, e na presença dos companheiros e de outras
pessoas que passavam, em parte satisfeito, por pensar que era ele o
acusado pela Saki.
Miguel e Chico, com o insulto da velha, dirigido a Bonga, ficaram
como ofendidos e desbancados das pretensões que alimentavam. Saki
tinha ficado com o Bonga! – pensavam.
Saki, ao ouvir o raspanço da mãe, quase que tremia de raiva, por
julgar que o Bonga vinha apresentar-se como o autor. (Aquele palerma
de Bonga compreendeu mal a resposta que lhe mandei dizer ou o
portador o enganou? – dizia consigo.)
Absorvida nos seus pensamentos, tinha-se esquecido das amigas,
____________________________________
276 “uondo moné iabila m’onzo”! – “vais ver o que se queimou em casa” (Espera pelo que te vai acontecer)
(N.A.).

122
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

que também escutavam silenciosamente a Mbamba.


Nesta noite, o povo da sanzala tomou conhecimento de que o autor
da gravidez da Saki era o Bonga. O mesmo boato chegara a Kahitu, que
se encheu de satisfação por escapar de um crime que lhe podia custar a
vida, e falou de si para si:
“Nzambi iami ia-ngi-manena!” 277 Vejam só o azar, se a Saki me
falasse que era eu!... A Saki é mesmo amiga de verdade, é parente como
no mundo não tem mais... Mas, também, para a Saki contar o nome
do Bonga, parece que o Bonga também foi lá! Mas a rapariga parece
que estava virgem. Não sei como vou fazer para chamar Saki e falar com
ela... Bem, mufulukuku ubite hanji nhi kuzele 278.
Na mesma noite, que foi longa para muitos, Bonga foi instado pelos
seus parentes e na presença do pai furioso.
– Foi você mesmo ou quê? Já costumo dizer, rapaz, não gosto
pessoa que ponha dedo no meu olho. Gosto tudo ir direito. Se você
queria mulher, fala; agora ir fazer pouca-vergonha que faz sujar a gente,
porquê? Foi você ou não foi? Porque eu não quero ver pessoa vir meter
dedo dele na cara – perguntou o pai, que abanava nervosamente um
kixingu 279 que não conseguia acender o cachimbo.
– Papá, é esperar ainda, porque “primeiramente” vou falar com
Saki.
– “Ora, chatiç’ome!” “primeiramente” é falar ainda com Saki para
dizer mais como, se a gente já está dizer é de você mesmo!? – disse um
dos irmãos mais velhos de Bonga.
– Zuela, mon’ami, etu o milonga tu-i-bak’eé, nguetu mabalabala. Enge
eie muene, uamb’eme. Nguetu ita280 – pedia e aconselhava a mãe.

____________________________________
277 “Nzambi iami ia-ngi-manena!” – O meu Deus está junto de mim! (N.A.).
278 mufulukuku ubite hanji nhi kuzele – passe o nevoeiro e apareça a visibilidade (N.A.).
279 kixingu – tronco seco de madeira fofa e leve; acha (N.A.).
280 Zuela mon’ami... – Fala a verdade, meu filho, responsabilizamo-nos, não queremos complicações. Se fores tu
mesmo, dizes: “fui eu”; não queremos sarilho (N.A.).

123
Ndum ni mu Mbanza281

Como ficara combinado com Sange, a mãe Mbamba, um pouco


antes de amanhecer, dirigiu-se para a casa da amiga da filha.
Sange estava a desenrolar a meada. Mas, quando chegou ao ponto
de que o autor do acto era Kahitu, a velha Mbamba saiu a correr como
louca, não deixando Sange entrar em pormenores. Posta em casa, foi
directo ao quarto da filha e começou a buibuilar282:
– Kahitu? Kuambe? Kidi enge dimi? Saki, Kahitu? Kuambe?! Kidi enge
dimi? Saki?...283 – Mbamba espumava e as perguntas seguiam-se umas
atrás das outras. – Saki, Kahitu? Kuambe? Zuela! Ngi-di-nhenga, ngi-di-
nhenga, zuela, kidi enge dimi? 284 – berrava a xinguiladora285 de kilundu 286
de Kasamba287 e de Mutakalombo288 e que neste momento tinha sido
actuada por um dos espíritos, e começou a agitar-se diabolicamente no
quarto da filha, dando urros que despertavam atenção do mundo.
Sange abandonou a casa, veio a correr até ao quarto da amiga,
temendo que a mãe sufocasse a filha.
Baku já tinha ido “deitar” o pisá289 na Mbanza do Soba, contra o
velho Mukita e seu filho Kahitu.
Com a confissão do escândalo invulgar – um paralítico como Kahitu
engravidar a simpática e querida Saki – houve uma manhã agitada.

____________________________________
281 Ndum ni mu Mbanza – Até na Mbanza (Tribunal ou Palácio do Soba) (N.A.).
282 buibuilar – urrar, rugir (N.A.).
283 Kahitu? Kuambe? – Kahitu? Verdade ou mentira? Saki, Kahitu? É verdade ou mentira?! Saki?... (N.A.).
284 Saki, Kahitu?... – Saki, é o Kahitu? Verdade? Fala! Enforco-me, enforco-me, fala. É verdade ou mentira?
(N.A.).
285 xinguiladora – médium; pessoa que invoca ou incorpora um espírito (N.A.).
286 kilundu – espírito; divindade não especificada (N.A.).
287 Kasamba – divindade protectora; o xinguilador desse espírito protege os sapos e rãs (Ngana Kapietele) (N.A.).
288 Mutakalombo v divindade que protege e castiga, sobretudo os caçadores. Um dos deuses da justiça mais
invocados (N.A.).
289 pisá – queixa apresentada ao Soba ou ao quimbar (cabo civil) (N.A.).

125
Uanhenga Xitu

Todos aqueles que se dirigiam às lavras e a outras ocupações fincaram


pé. Voltaram para assistir ao julgamento sumário que ia ter lugar nessa
manhã, como prometera o Soba.
A gente da sanzala estava dividida nas suas opiniões e comentários.
Havia a que condenava e achincalhava Kahitu e sugeria que o maroto
fosse arrastado fora da sanzala. Pois não se sabia se se estava diante
de um simples paralítico, para tamanha façanha, ou de um camuflado
feiticeiro perigoso que acabaria por seduzir todas as filhas, através de
mbanze290.
Outra gente desconsiderava a soberba Saki de quem, para muitos,
não se esperava outra coisa ou até pior, como a morte causada por
feitiço de um dos seus muitos pretendentes, rejeitados.
Linda manhã, de um sol suave derramado na relva viçosa que
delimitava a comprida sanzala. Na relva rasteira despontavam jiseia-ja-
hánga291, que davam o aspecto de um campo plantado de cebolas. O
chão e o ambiente ainda cheiravam a frescura de umas chuvas caídas há
dias. Muito longe, lá pelos lados do Madimu e de Zenca do Golungo,
o céu estava carregado de nuvens brancas, desenhando cogumelos e
cadeias de montanhas sobrepostas – bom prenúncio de uma chuvada,
dentro de dias.
Ali e acolá, nos pequenos declives e subidas, viam-se rebanhos de
ovelhas malhadas e de cabritos pintalgados, que pastavam, berravam.
Uma linda manhã, um bonito panorama, pena é que essa beleza
contrastasse com o acontecimento que abalara a sanzala inteira!
O povo para o julgamento já se fazia em direcção à Mbanza.
Passava, de passo pesado, na sanzala de misonga292. O barulho das suas
vozes comprimidas era velado pela sinfonia das cigarras agachadas nas
mulembas293 e nas miloza294 cheias de flores rubras. O cantar da cigarra
____________________________________
290 mbanze – feitiço para atrair mulheres, para fins amorosos; amavio (N.A.).
291 jiseia-ja-hánga – plantas com bulbos parecidos com os das cebolas (N.A.).
292 misonga – plantas da família das acácias que se plantam próximo das casas para o seu cheiro afugentar as
cobras (N.A.).
293 mulembas – árvores de copa volumosa (Ficus welwitschii Warb) (N.E.).
294 iniloza – acácías rubras (N.A.).

126
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

soava a uma música fúnebre.


Na multidão viam-se os makota, andando juntos com a assistência
curiosa e as testemunhas. À frente do povo estavam os parentes e amigos
do Baku e da mulher. No meio ia a Saki acompanhada da Sange e
demais amigas. Estava atraente, embora mostrasse um aspecto pálido.
Levava a cabeça coberta por “pano-de-cima”. No fim da “procissão”
seguia a família da falecida Mbombo, mãe de Kahitu, bem como os
parentes e amigos do velho Mukita.
Este já estava sentado na sala de sessões, ladeado pelos seus filhos
mais velhos que Kahitu, o qual ainda se encontrava ausente.
O Soba tinha ocupado o seu lugar. Alguns makota fizeram o mesmo.
Os homens da Justiça fumavam e conversavam assuntos relacionados
com lavras, sementeiras e chuvas, enquanto esperavam pelos outros
makota e pelo réu.
A sala de sessões, que funcionava debaixo de um embondeiro
frondoso e de diâmetro descomunal, estava repleta de gente de todas
as idades. Dos seus muitos ramos, desciam mixinga295 que sustentavam
bolas de jimbungulula296, muitas delas já rebentadas, mostrando as
suas entranhas cheias de pétalas bonitas e de estames e filamentos
complicados, às quais jimbungulula davam o aspecto de uns candelabros,
de uns balões de enfeites, de uns globos de lâmpadas eléctricas.
Um sem-número de cigarras lançavam cantares que, para alguns
circunstantes, soavam como música, para outros, sereias estridentes
que lhes ofendiam os ouvidos, e, na assistência, ainda havia uns,
atemorizados, que cochichavam, dizendo: o Kituta de Kasadi veio
defender Kahitu – porque em tempo nenhum se juntaram tantas
cigarras numa árvore e numa manhã como aquela!
As folhas do embondeiro e as jimbungulula abertas – que bonitos
quebra-luzes, que ricos reflectores com rendilhado branco apresentavam!
– oscilavam levemente, ao sopro suave de um vento agradável.
____________________________________
295 mixinga – pedúnculo (no caso de jímbungulula) (N.A.).
296 jimbungulula – frutos do embondeiro (baobá), de onde se formam as mákua (N.A.).

127
Uanhenga Xitu

Neste Tribunal tão bem ornamentado pela Natureza, julga-se o


primeiro caso dessa espécie; em que um paralítico de nascença – e que
paralítico! – engravida uma das raparigas mais requestadas nos últimos
tempos.
A assistência, sentada e de pé, tinha formado um círculo. Vendo-se
no centro os maiores e os principais da “dimanda”. Havia ainda muita
gente sentada nas grossas raízes entroncadas do embondeiro, as quais se
distribuíam pela copa como jibóias monstras.
Kahitu, a noite passada, não pregara olho só de pensar como
enfrentar o julgamento, que, geralmente, é público.
Consideram crime grave a um caso tão vulgar só porque sou
paralítico! Assisti tantos casos desta natureza durante a minha vida e
nunca houve tanto barulho, alarme! E por cúmulo queixam-me para
ir diante de um soba que me detesta e de uma cambada de makota
que não percebe nada de justiça. Tipos estes que só vêem o meu valor
quando necessitam de lhes ler e escrever cartas. Cambada de makota
que há anos denunciei vergonhosamente em pleno Tribunal, quando
quiseram tomar a mulher do Kumbi para ser entregue a um dos velhos,
seu amigo. Na altura fora eu quem escrevera a carta ao Chefe do Posto
e servira de intérprete quando o Soba e a camarilha mancomunavam
com o cipaio pago para prender e desterrar para S. Tomé o Kumbi,
acusando-o de um inventado crime grave. É a este Tribunal de velhacos
que me irei sentar para ser ouvido? Qual é o crime? Tanto fiz para
esta gente, muitos rapazes e raparigas ajudei a crescer, muitos ensinei a
ler e a escrever, enfim, fiz quase tudo e, no fim, como agradecimento:
devo ser julgado num Tribunal composto por feiticeiros, gatunos,
velhacos, interesseiros, ingratos. Não, não vou, ainda que eu tenha de
ser arrastado. Se me deixassem ser julgado por um Chefe de Posto,
talvez aceitasse. Mas não tenho pernas para me esquivar e ir até lá longe
pedir justiça. Bolas, já suportei demais. Se de fato sou um dos enviados
do Kituta de Kasadi, como dizia a minha mãe, porra, alguma vez na
vida esta Kituta me ajudará. Lembro-me quando novo e frequentava

128
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

a Igreja e na cena de textos bíblicos que se referiam ao paralítico eu


gritava: “Jesus, filho de David, tenha misericórdia de mim!”. Houve
momentos que sentia a impressão de que os pés estavam a querer
mexer-se. Mas fiquei desiludido, não obstante a fé, a fé que o mano
Pedra, fanático, recomendava. Textos de um passado e de um povo que
a história registou. Se tu és Kituta mesmo, Kituta de Kasadi, da água
que bebo e tomo banho, ao menos que tenha pena de mim...
Velha Mbamba, em vez de se dirigir ao Tribunal, lembrou-se de
passar pela casa de Kahitu.
– Vim ter contigo para saber como é que me pregaste esta
partida...
– Partida de quê? – titubeou Kahitu.
– Vim manifestar-te a indignação que sinto pela maior desgraça
que causaste à minha filha. Nem posso compreender como é que a
Saki aceitou pôr-se debaixo destes palitos (a velha Mbamba levantava
uma perna inerte de Kahitu). Pois, Kahitu preferia que a minha filha
morresse do que vexar a família inteira. Ainda se tu fosses homem,
tolerava-se!
– Não fala assim – dizia Kahitu num tom de humilhação.
Tinha a cara virada para o chão.
– Não falo assim, porquê? Valia mais que ela fosse engravidada por
um cão! Mas tu precisas de mulher para quê, inútil e inválido como tu,
uma mulher para dar-lhe o quê? E onde é que se viu um kikata como
tu ter mulher?
– Não fala assim – Kahitu, sempre com a cara voltada para baixo,
tinha uma varinha na mão com que separava, inadvertidamente, umas
pedrinhas. Seus olhos estavam cheios de lágrimas.
– Vejam a minha desgraça! (Mbamba, de mãos abertas, dirigia a
atenção ao povo que ainda continuava a passar para o Tribunal.) Vejam
a minha desgraça, ter um genro como tu! Não podes trabalhar para
ti, nem para a mulher e nem para o filho que vem. Arranjaste aí a
tua artimanha e seduziste a minha filha com feitiço, que recebeste no

129
Uanhenga Xitu

Kimbiji, teu amigo, seu cão, desgraçado! Devias morrer no dia em que
a tua mãe te teve. Ou, quando viram que estavas mirrado das pernas,
deveriam atirar-te no Kasadi, donde os teus pais te buscaram...
– Não fala assim...
– Vai à merda, Kahitu! – vociferava Mbamba transtornada, e dava
indícios de xinguilar novamente. – Vai à merda, Kahitu, uevu? 297 Tanta
paciência, tantos sofrimentos para criar e educar uma filha, e, no fim,
o pagamento é um presente destes: um genro para-lítico que se rasteja
e gatinha! À noite andas metido com as nossas filhas, como “mestre”
de porcaria. Abusaste a bondade das nossas filhas que te iam distrair.
Pensávamos que eras uma pessoa; finalmente, uma hiena que anda por
aí... Um bicho com forma de gente...
– Não fala assim...
– Kadié tuji 298, cala-te! Se me sobe o Hitu 299, racho-te! Porque és
um bicho do mato – berrava a mulher, que parecia estar fora de si.
Algumas pessoas que iam ao Tribunal pararam para ouvir a pregação
da Mbamba. Mas ficaram tão penalizadas de Kahitu que tiveram de
intervir, pedindo a Mbamba para deixar o moço. O caso já estava
entregue ao Soba. Aguardemos. Já disseste o suficiente. O aglomerado
foi desfeito com a chegada de um homem que disse:
– Kahitu, vamos na Mbanza!... Depressa, o Soba e makota tudo
está na espera. – Era o “oficial de diligências” do Soba. O Tribunal
estava constituído, só faltava o réu.
Mbamba abandonou o rapaz, mas pelo caminho ia lamentando e
resmungando em voz alta. Kahitu pediu ao “oficial de diligências” para
ir ao quarto mudar o calção.
E entrou no quarto. Debaixo da cama havia uma latinha que
continha um medicamento para matar gafanhotos – era na época da
praga dos gafanhotos. Pegou na latinha e emborcou o seu conteúdo.
____________________________________
297 uevu? – ouviste? (N.E.).
298 Kadié tuji – Vai à merda (N.A.).
299 Hitu – divindade a que se atribui muitos males; espírito teimoso, melindroso (N.A.).

130
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

O portador do Soba esperava, impaciente, cá fora. Mas ouviu algo


que no quarto fazia estrondo e se debatia. Resolveu entrar para ver o
que passava, e levar à força o réu, se fosse preciso. E deparou-se-lhe um
quadro triste:
Kahitu contorcia-se de dores. Puxava inconscientemente a
roupa de que estava vestido. E arrastava a que estava na cama. Dava
tubongamena300, tunjembe301, como um chimpanzé do circo, e a boca
espumava, grunhia como um macaquito molhado. Tinha os olhos
saídos. O quarto estava numa desordem.
O quarto!... Este cartório, escritório e antiga “sala de aulas”!! O
kambengela302 do Soba veio a correr para fora e deu o alarme de socorro!
Entrou de novo para ajudar o escrevente, o ferreiro, o “mestre” de
miekeieke, e o “professor” da “escola materno-social”, em agonia.
Mukita e outros velhos fumavam soberbamente nos seus cachimbos
de ukumbu303. Mas o público, na sala de audiências, levantou-se,
despertado por umas mulheres que se dirigiam ao Tribunal, com choros,
e abanando lenços e panos – sinal de grave acontecimento:
– Kahitu uafuêêê, Kahitu uafuêêê! 304 – eram os gritos que se
percebiam daquelas que vinham a chorar.
A multidão, makota e o próprio Soba, todos correram ao encontro
das mulheres, e dirigiam-se à casa do velho Mukita.
Ainda Kahitu se debatia na agonia! Fez-se esforço para salvá-lo
com vomitórios e outros métodos aconselháveis. Tudo feito. Mas nesse
mesmo dia à tarde kiabu ku dilenu Kahitu!...305
A sanzala ficou consternada. Ouviam-se choros copiosos por todos
os lados. Os garotos tinham perdido o companheiro de gozo, o professor
e mestre, a figura característica de algumas gerações; os velhos e velhas
____________________________________
300 tubongamena – cambalhotas (N.A.).
301 tunjembe – cabriolas (N.A.).
302 kambengela – oficial de diligência: tb. garoto porta-recados (N.A.).
303 ukumbu – prestígio; tb. vaidade, personalidade (N.A.).
304 Kahitu uafuêêê!... – Kahitu morreu, Kahitu morreu! (N.A.).
305 kiabu ku dilenu Kahitu!... – Acabou-se. Chorai o Kahitu!... (N.A.).

131
Uanhenga Xitu

jamais terão um escrevente ou leitor de cartas que soubesse traduzir o


seu pensamento; os rapazes e raparigas da geração de Kahitu e da Sange,
num coro de lamentação poética traduzindo poemas fúnebres, iam
declamando-os pela sanzala fora através de gritos-de-choro pesados.
Kahitu seria enterrado nesse mesmo dia. Ao meio da tarde, o céu
cobria-se de nuvens que passeavam sem direcção ao sabor de um vento
suave. O sol escondia-se na altura que o corpo de Kahitu era depositado
no caixão.
– Fazem depressa, para irmos no enterro, está a ficar escuro e é
capaz de chover à noite – observou um velho kimbanda.
O caixão, do quarto, foi levado ao centro do quintal, onde um
mundo o esperava. Choros.
De repente um vento forte sopra com insistência, o céu torna-se
pesado de nuvens carregadas de aguaceiro. A multidão espalha-se à
procura de abrigo.
– Tirem o caixão, tirem o caixão para dentro – vozes que gritam.
As árvores são sacudidas impiedosamente, os cabritos e ovelhas, do
pasto, correm entre berros para os currais. Algumas casas de colmo
cobertas a capim são destapadas e o capim levado em rebuliço nas
alturas. Então, desaba um aguaceiro forte acompanhado de vento e
trovoadas aterradoras,
– Nvuleêê, nvuleêê!!!...306 – gritos do povo.
– Vamos assim mesmo aproveitar enterrar o corpo.
– Com esta chuva e trovoada, como vamos enterrar? É melhor
esperar porque tudo vai passar, depois vamos enterrar à noite, Chegam
os coveiros do cemitério molhados até aos dentes e dizem que não é
possível enterrar-se hoje porque a cova havia ruído.
... Não acabaram o relato quando um clarão acende, cega, escurece
e ouve-se uma grande explosão:
Brrurruum...
____________________________________
306 Nvuleêê! – Olha a chuva! (N.E.).

132
“Mestre” Tamoda & Vozes na Sanzala (Kahitu)

Pânico geral!
As cabanas, muitas delas já caídas, ameaçavam incêndio. A noite ia
alta e o tornado não esperançava parar aí. Pelo contrário, as trovoadas
e raios continuavam a atemorizar o povo já enco-lhido nos cantos das
casas. As descargas eléctricas eram tantas que as mães de cujos pequenos
gozaram Kahitu iam de joelhos de quando em quando apalpar o lado
do coração dos filhos, e por vezes levantavam-nos apertando-os contra
si num abraço de temor e desconfiança. Lágrimas caíam. As baixas
transbordavam de água de forma tal que nunca foi vista na sanzala. O
pomar da nascente de Kasadi estava quase submerso. Na sua tumultuosa
passagem, as águas diluviais, borbulhando, cantavam música mágica. Era
madrugada e os galos não anunciaram o nascer de mais um dia. Quem
atrevia vir cá fora? Ninguém. Os raios desenhavam figuras sinistras na
noite profundamente escura. A terra cheirava a pólvora. Troncos de
embandeiras desabavam, aumentando os estrondos ensurdecedores das
trovoadas divinais. De quando em vez ouvia-se um choro aqui e acolá
que não se sabia se era por Kahitu ou por causa de mais uma casa,
curral, cozinha ruída, soterrando valores e haveres. Seria Kahitu ou a
vingança de Kahitu? – cochichavam aqueles que ainda tinham coragem
de o fazer. Velho Baku e a mulher, acocorados com os filhos debaixo
de uma tarimba porque o tecto da casa fora descoberto no princípio
do tornado, nem mugiam nem tugiam. O vizinho de Baku, um velho
corajoso kimbanda, conseguira chegar às casas de alguns mágicos,
convidando-os para nessa madrugada fazerem uma sessão de magia
que fizesse atrair os raios que atormentavam a população da sanzala.
Práticas antigas que deram efeitos no passado.
A chuva caía, caía copiosamente, acompanhada ora de rebentamentos
demoníacos, ora de ventos implacáveis. Estava a nascer o Sol. Exercícios
de encantamentos, preces e cantos. Espalharam--se grãos de milho no
chão, melhor dizer na água. De repente descem os raios em forma de
galos de penas vermelhas. Bicam sofregamente o milho. As torneiras do
céu continuavam abertas, apenas as descargas eléctricas diminuíram.

133
Uanhenga Xitu

Mas alguém, não preparado, de uma casa abre à socapa a janela para
espreitar o que se passava cá fora. Um dos galos desconfia, faz menção
de voo, abre as asas, um clarão, e voa mesmo: nvieêmm: Buumm,
tratàtàtàtà ... – O inferno, fogo e enxofre, o fim do mundo! O maior
estrondo do tempo que ensurdece, reboa, reboa; fulminou casas, passou
pelo quarto de Saki, que é atirada a distância da cama, jazendo no chão
com uma abundante hemorragia vaginal. De manhã uma inundação
completa ameaçava a sanzala, já que as baixas não suportavam o volume
das águas caudalosas.
Com mais três pessoas fulminadas pelas faíscas, só no terceiro dia
foi a enterrar Kahitu e num buraco cheio de água, sofrendo o povo anos
os efeitos da chuva que lhes tinha levado as sementeiras, casas, animais
domésticos e familiares.

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Kahitu

Quer tivesses nascido do ventre de uma mulher, quer concebido pela


minha imaginação e parido pela minha cabeça, presto--te homenagem,
ao colocar no teu túmulo uma lápide, com esta inscrição:

KAHITU

Kiximbi kia zalêle


Kuuaba m’kuiba
Anga adia
Au’ a-mu-dile ue
(Um privilegiado que dera um banquete
Ao Bem e ao Mal
Comeram.
E, no fim, “comeram-no” também.)

Tarrafal (Cabo Verde), 1968

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BIBLIOGRAFIA DE
Uanhenga Xitu

Agostinho André Mendes de


Carvalho é o nome de Uanhenga Xitu.
Nasceu em Calomboloca, Icolo e Bengo, a
29 de Agosto de 1924. Fez os seus estudos
primários e secundários em Luanda. Fez o
curso de enfermagem em Luanda, profissão
que exerceu durante muitos anos deslocando-
se por todo o país, que conhece bem. Fez
estudos em Ciências Políticas na Alemanha (Ex-RDA).
Em 1959 foi preso, tendo feito parte do chamado “Processo dos
50” e enviado para o Tarrafal onde permaneceu de 1962 a 1970.
Após a independência foi Membro do Conselho da Revolução,
Comissário (Governador) da Província de Luanda, Ministro da Saúde de
Angola, Embaixador de Angola na República da Polónia, Actualmente
é Deputado à Assembleia Nacional pela Bancada do MPLA, tendo sido
membro do Comité Central do MPLA até 1998. É membro da União
dos Escritores Angolanos.
Sobre as personagens que recria nas suas obras, Uanhenga Xitu
diz: “As personagens do meu mundo ficcional, a princípio apenas
imaginadas, vão-se autocriando, ganham rosto próprio e, mesmo
quando lhes dou mais atenção, tornam-se tão autónomas no interior da
minha narrativa, e nem sempre o destino que lhes traçara acabará por
se cumprir. Nunca soube, antecipadamente, o fim que cada um teria.
O Kahitu, que era tão dócil na redacção das suas cartas, não conseguira
convencer... Nunca o tive como modelo acabado.”
Foi na cadeia que começou a escrever os seus contos, tendo para

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isso sido aconselhado por alguns dos seus colegas e amigos de prisão
como António Cardoso e António Jacinto.
Suas obras publicadas são: O Meu Discurso (1974); “Mestre” Tamoda
(1974); Bola com Feitiço (1974); Manana (1974); Vozes na Sanzala
(Kahitu) (1976); Os Sobreviventes da Máquina Colonial Depõem
(1980); Os Discursos do “Mestre” Tamoda (1984); O Ministro (1989);
Cultos Especiais (1997), Mungo (Os Sobreviventes da Máquina Colonial
Depõem…) (reedição, 2002).

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