Cultura Global e Identidades Locais
Cultura Global e Identidades Locais
Cultura Global e Identidades Locais
o LI-CHANG SHUEN CRISTINA SILVA SOUSA DOUTORANDA DO CENTRO DE PESQUISA E PS-GRADUAO SOBRE AS AMRICAS DA UNIVERSIDADE DE BRASLIA. PROFESSORA ASSISTENTE DO CURSO DE JORNALISMO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHO
CULTURA GLOBAL E IDENTIDADES LOCAIS: conflitos culturais na interface da globalizao Li-Chang Shuen Cristina Silva Sousa Resumo: A proposta deste trabalho discutir o problema da cultura na era da globalizao e da formao de uma suposta cultura global, que perpassa as culturas locais e se relaciona com elas de forma assimtrica. Sustentamos que os fluxos globais de informao e entretenimento no so capazes de impor uma cultura global capaz de suplantar as culturas locais fortemente estabelecidas e que a fora cultural de determinadas comunidades interfere diretamente no processo de assimilao. Introduzimos a noo de transregio como o local de interseco de vrios locais culturais onde os fluxos da cultura global se diluem mais facilmente na realidade local, produzindo assim tais fluxos uma interferncia mais difusa e menos determinista nos processos culturais j regionalmente estabelecidos. O artigo discute ainda o prprio conceito de globalizao, assim como os de cultura e cultura global, discusso essa assentada na interface entre perspectivas tericas derivadas da Economia, das Cincias Sociais e dos Estudos Culturais. Palavras-chaves: Globalizao Cultura Conflitos culturais Cultura global Introduo Quinta-feira, 16 de julho de 2009. noite. Pessoas esto confortavelmente sentadas na calada de um bar, conversando, bebendo, ouvindo a msica ambiente ou simplesmente vendo o tempo passar. O bar tambm um restaurante e serve comida oriental. Sushi e Yakisoba so os principais atrativos do menu. De repente, um jovem com traos indgenas aparece vestido e maquiado como Michael Jackson e logo repete no meio da rua os passos que fizeram a fama do cantor morto recentemente e chama para si todas as atenes. A cena aconteceu em Imperatriz, uma cidade do interior do Maranho, mas poderia acontecer em qualquer cidade do mundo. Certamente cenas parecidas estavam acontecendo em locais to diversos quanto grandes centros urbanos e cidades pequenas e mdias em todos os continentes. A comoo global pela morte de um dolo internacional era mais do que
esperada. Na era da globalizao, a um indgena brasileiro, tanto quanto a um jovem asitico ou hindu, a despeito das diferenas econmicas, sociais e inclusive tnicas, lcito se apropriar da imagem de um personagem que s foi possvel existir em tal escala justamente por causa da globalizao. Em tempos de globalizao no h surpresa em tais cenas. H, contudo, dvidas se as culturas regionais e locais iro sobreviver hegemonia de fluxos culturais globais que podem estar em vias de se transformar em uma cultura global. A dvida torna-se preocupao quando se coloca na equao a probabilidade dessa cultura global submeter as manifestaes locais a um processo de estandardizao e homogeneizao a tal ponto de j no se reconhecerem as culturas tradicionais, em um futuro onde elas poderiam ser completamente suplantadas pelo global. Alguns questionamentos surgem da observao da paisagem cultural ao redor de qualquer cidado de um mundo cada vez mais econmica e tecnologicamente integrado. Um deles a prpria possibilidade de estarmos diante da constituio de uma cultura global. Discutimos essa possibilidade no segundo tpico deste trabalho, aps um exerccio de problematizao e questionamento do conceito ou conceitos de globalizao oferecido por perspectivas tericas derivadas da Economia, das Cincias Sociais e dos Estudos Culturais. De antemo possvel afirmar que, assim como no h consenso sobre a natureza da globalizao, no h consenso sequer sobre o termo a ser usado para designar o processo de uniformizao e encolhimento do mundo que estamos presenciando, muito menos sobre o conceito em si. Ao lado das preocupaes econmicas, tecnolgicas e sociais levantadas por este processo, existe a discusso sobre o que a globalizao faz com a cultura quando leva s mais diferentes comunidades fragmentos de outras culturas e, mais ainda, blocos inteiros de produes culturais miditicas, homogneas e, primeira vista, conflitantes com aquilo que identificado como o mais representativo de uma comunidade: as suas tradies histricas ou em construo. Neste trabalho problematizamos o conceito de cultura, analisamos o papel das identidades locais para que haja ou no permeabilidade do local ao global e introduzimos o conceito de transregio na discusso sobre as estratgias e alternativas de resistncia a uma suposta dominao do global em relao ao local. 3
Levantamos, ainda, o questionamento a respeito da inevitabilidade de conflitos entre o local e o global na arena das manifestaes culturais. No h consenso sobre se essa interpenetrao malfica ou benfica a um dos lados da relao: as comunidades locais. Recentemente, entrou em vigor a Conveno sobre a Proteo da Diversidade Cultural, negociada no mbito da Organizao das Naes Unidas, com o objetivo de estreitar os vnculos entre desenvolvimento sustentvel e o respeito s culturas por meio do dilogo1. Enquanto ativistas pela preservao de culturas ameaadas pela globalizao vem no texto da conveno pelo menos uma inteno de deter o que consideram como avano predatrio da globalizao e da cultura-mercadoria, outros, como o filsofo naturalizado norte-americano Kwame Anthony Appiah, vem contradio no patrocnio da ONU a tal iniciativa2. Sobre a globalizao Harvey (2005) define a globalizao como um eufemismo para o novo imperialismo, que norte-americano. O imperialismo americano (globalizao) est centrado na lgica do capital, que precisa se expandir para se reproduzir. Assim, ao exportar seu modelo de consumo e de democracia, os Estados Unidos exportam os movimentos do capital que do sustentao ao estado. Para os pases importadores desse modelo, no haveria escolha. O autor identifica o poder americano como uma hegemonia lastreada no consentimento, na fora e na combinao entre consentimento e coero e destaca o papel da liderana moral e intelectual para o exerccio da hegemonia americana na era do capitalismo global. A produo cultural dos Estados Unidos seria, na perspectiva de Harvey, uma ferramenta para a consolidao e manuteno da liderana do
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A conveno entrou em vigor em 18 de maro de 2007. Mais de 50 pases haviam ratificado o texto at aquela data, entre eles o Brasil e a Unio Europia. A conveno prev ainda a criao de um fundo para a preservao da diversidade cultural e exorta os pases a adotar polticas de preservao do patrimnio cultural. Fonte: www.unesco.org 2 Appiah afirma que a conveno baseia-se no temor de que a cultura de massa ocidental ocupe o espao das diferentes formas culturais de outras partes do globo. Esse o argumento para que os pases defendam suas expresses artsticas e costumes nacionais ou locais. , no mnimo, uma contradio. A prpria ONU defende a livre circulao de idias, a liberdade de pensamento e de expresso e os direitos humanos. A conveno para proteo cultural pode ser usada para desrespeitar esses valores. O que, alis, j vem acontecendo. Na China, o governo utiliza a conveno da ONU como justificativa para impedir que a populao tenha livre acesso internet. Os burocratas chineses esto preocupados em preservar a cultura local? Claro que no. Apenas querem impedir os cidados de ter contato com idias e informaes que os levem a desafiar o governo (entrevista Revista Veja, 8 de maro de 2006).
pas nos processos de redefinio do sistema mundial contemporneo. A indstria do cinema de Hollywood, as grandes gravadoras, as redes de televiso com alcance global que exportam no apenas modelo de fico, mas tambm de tratamento da realidade por meio do jornalismo, so elos de uma cadeia inseparvel da poltica e da economia. Ao lado disso, h o importante papel das instituies globais para a sustentao da hegemonia americana: ONU, FMI, OMC (que exerceria o papel de legitimador do novo imperialismo ao tentar impor a liberalizao dos fluxos comerciais globais que, via de regra, so desiguais em favor das economias mais fortes). De acordo com essa perspectiva oferecida por Harvey, a incluso de temas relacionados propriedade intelectual e livre fluxo de mercadorias culturais est consoante com os propsitos do novo imperialismo de manter a produo simblica que o sustenta sob seu domnio e vigilncia, inclusive quando feita por outros pases-atores do sistema. Mander e Goldsmith (1997) partem de uma postura militante contra a globalizao para analis-la e propor alternativas a ela. A globalizao, enquanto processo, caracterizada como o maior redimensionamento da arquitetura poltica e econmica do mundo desde a Revoluo Industrial. O fato de que as descries ou explicaes miditicas sobre o processo serem feitas por agentes da globalizao faz com que o discurso dominante seja o que de trata-se de um processo inevitvel e benfico para todos. Porm, todos aqui deve ser entendido como as parcelas de populao, polticos e empresrios do primeiro mundo que se beneficiam dela. apenas uma pequena parte da populao mundial. Para a grande maioria, globalizao significa a destruio dos modos de vida tradicionais, da autosuficincia alimentar de comunidades at ento protegidas do fantasma da fome, das culturas locais e, principalmente, da autonomia poltico-econmica. Para essa maioria, globalizao subordinao a um modo de vida que no foi escolhido: foi imposto. Os autores argumentam que mesmo quando a mdia noticia algum problema da globalizao, no so feitas anlises sobre as conexes entre as crises eventualmente descritas e a raiz da causa dessas crises. Mais: a mdia rotula aqueles que so contrrios globalizao em curso colocando todos em uma mesma categoria discursiva. Os termos usados para caracterizar essas 5
pessoas ou grupos assumem conotaes pejorativas, como protecionistas, nacionalistas e ambientalistas. Alm disso, a mdia no ajuda ningum a compreender as questes que envolvem o processo de globalizao, porque ela no explica o que est acontecendo, apenas relata. A principal falha da globalizao em curso o distanciamento dos cidados dos processos decisrios. Eles esto virtualmente excludos da discusso sobre o que vai atingir diretamente sua vida cotidiana. Logo, as pessoas que sofrem as conseqncias da globalizao no escolheram os caminhos que esto sendo obrigadas a seguir. Canclini (2003), a partir de uma abordagem culturalista, chega a uma crtica semelhante sobre o encurtamento e a homogeneizao do mundo em que vivemos. Ele escreve que
curioso que essa disputa de todos contra todos, em que fbricas vo falindo, empregos so destrudos e explodem as migraes em massa e os conflitos tnicos e regionais, receba o nome de globalizao. Chama a ateno o fato de que empresrios e polticos interpretam a globalizao como a convergncia da humanidade rumo a um futuro solidrio, e que at muitos crticos do processo entendam essa devastao como o processo por meio do qual todos acabaremos homogeneizados.
O autor chama a ateno, porm, a um fato paradoxal que deve ser percebido mesmo pelo mais consciente e convicto crtico da globalizao: por mais que seus efeitos sejam devastadores para a maior parte das economias e modos de vida tradicionais, nem os pobres nem os marginalizados podem prescindir dos fluxos globais. A circulao de mercadorias, tecnologias e idias pode ser algo benfico se bem conduzido. Devido a esse carter contraditrio do processo, Canclini classifica a globalizao como objeto cultural no identificado, querendo dizer com isso que qualquer definio seria imprecisa pela imensa dificuldade em se dimensionar em um conceito todos os aspectos que devem ser levados em considerao ao se analisar o que vem a ser a tal globalizao. Nesse sentido, ele afirma:
muito do que se diz sobre a globalizao falso. Por exemplo, que ela uniformiza todo o mundo. Ela nem sequer conseguiu estabelecer um consenso quanto ao que significa globalizar-se, nem quanto ao momento histrico em que seu processo comeou, nem quanto a sua capacidade de reorganizar ou decompor a ordem social. (ibdem: p.41)
Mesmo
sabendo
da
dificuldade
em
oferecer
um
conceito
incontroverso, Canclini (ibdem: 42-42) arrisca uma definio que tenta incluir dois dos mais contraditrios aspectos do processo: o que se costuma chamar de globalizao apresenta-se como um conjunto de processos de homogeneizao e, ao mesmo tempo, de fragmentao articulada do mundo que reordenam as diferenas e desigualdades sem suprimi-las. Por ser a globalizao algo to controverso e de difcil conceituao, Robertson (1990: p.17-18) evita, inclusive, usar o termo corrente para designar o processo atual e prefere chamar a globalizao de processo de transformao das realidades nacionais e regionais em mundo-como-um-todo. Ele afirma que any attempt to theorize the general field of globalization must lay the grounds for relatively patterned discussion of the politics of the global-human condition, by attempting to indicate the structure of any viable discourse about the shape and the meaning of the world-as-a-whole. Outro autor que prefere no usar o termo globalizao Mato (2005, mimeo), que prefere usar processos de globalizao, como uma relao que se estabelece a partir de significativas interrelaciones e interdependencias entre actores sociales a niveles tendencialmente planetarios. Ele chama ateno para o fato de que a maior parte das abordagens so deficientes em oferecer uma viso mais acurada a respeito do que est acontecendo sem as amarras da militncia pr ou anti-globalizao:
en estos das se habla y escribe demasiado sobre algo que se da en llamar globalizacin. Pero en general se lo hace de maneras poco precisas, reduccionistas y fetichizadoras, que no sirven de mucho para orientar las acciones de los actores sociales. Dependiendo de quin habla o escribe, resulta que eso que nombran globalizacin es sealado como causa de todos nuestros males o, alternativamente, como la panacea que resolver todos nuestros problemas. (ibdem:p.1)
A fetichizao de que fala Mato tem a ver com o fato de que a maioria, tanto de seus crticos quanto de seus detratores, parece esquecer que a globalizao no algo supra-humano. Pelo contrrio: ela um construto humano tanto quanto o a tecnologia que a possibilita ou a economia que se sustenta e fortalece por meio dela. Assim como qualquer obra humana, passvel de falhas e acertos. O autor (idbem: p.4) sugere que devemos evitar
fetichizar a idia de globalizao e uma das maneiras de faz-lo , conforme suas palavras,
no hablar de globalizacin en singular y casi como si se tratara de un nombre propio (en este caso presumiblemente de una suerte de demiurgo), y hablar en cambio de procesos de globalizacin, as en plural. La expresin procesos de globalizacin nos sirve para designar de manera genrica a los numerosos procesos que resultan de las interrelaciones que establecen entre s actores sociales a lo ancho y largo del globo y que producen globalizacin, es decir, interrelaciones complejas de alcance crecientemente planetario. Este conjunto de interrelaciones es resultado de muy diversos tipos de procesos sociales en los que intervienen en la actualidad, y han venido interviniendo histricamente, incontables actores sociales en los ms variados mbitos de la experiencia humana, desde los ms variados rincones del globo.
Ao incluir na problemtica a discusso sobre o papel dos atores sociais, Mato conduz a nossa anlise para um aspecto sem dvida alguma relevante em todo o processo: os encaminhamentos globais que levam ao encurtamento das distncias e compresso do tempo tambm nos direcionam a um novo espectro cultural, espectro esse onde os atores sociais sentem com mais fora, ao lado do campo econmico, o peso da globalizao em curso: a cultura. Sobre a cultura, identidades locais e a cultura global Uma crtica comum globalizao a suposta capacidade que ela tem em suplantar as manifestaes culturais locais, substituindo tradies e criando novas demandas culturais ao mudar o gosto das pessoas ao redor do mundo, gosto este que se deslocaria do tradicional, identificado com a vida cotidiana palpvel, vivida em um determinado espao-tempo, para um em que as formas culturais preferidas seriam, a partir de ento, aquelas desenraizadas e produzidas em larga escala sem identificao alguma com qualquer comunidade. Surge ento a preocupao com uma nova forma de cultura que estaria destinada a tomar o lugar daquela que conhecemos e com a qual nos reconhecemos. Uma possvel cultura global seria a prxima fronteira da humanidade. Antes, contudo, de analisar a possibilidade de a globalizao efetivamente forjar algo parecido a uma cultura global, cabe discutir, em linhas
gerais, o que entendemos por cultura em uma era de redefinies e incertezas conceituais. Wallerstein (1991: 184) resume toda a problemtica que se esconde por trs de um termo to corrente e to internalizado (e externalizado) em nosso discurso cotidiano. Para ele,
the very concept of culture poses us with a gigantic paradox. On the one hand, culture is by definition particularistic. Culture is the set of values or practices of some part smaller than some whole. This is true whether one is using culture in the anthropological sense to mean the values and/or the practices of one group at the same level of discourse (French vs. Italian culture, proletarian vs. bourgeois culture, Christian vs. Islamic culture), or whether one is using culture in the belles-lettres sense to mean the higher rather than the basis values and/or practices within any group, a meaning which generally encompasses culture as representation, culture as the production of art-forms. In either usage, culture (or a culture) is what some persons feel or do, unlike others that do not feel or do the same thing.
Anthony Smith (1990: 171) trabalha no mesmo nvel de anlise de Wallerstein ao se questionar a existncia de uma cultura global quando nem ao menos sabemos o que vem a ser cultura tal como a conhecemos hoje. Nas palavras do autor:
can we speak of culture in the singular? If by culture is meant a collective mode of life, or a repertoire of beliefs, styles, values and symbols, then we can only speak of cultures, never just culture; for a collective mode of life, or a repertoire of beliefs, etc., presupposes different modes and repertoires in a universe of modes and repertoires. Hence, the idea of a global culture is a practical impossibility, except in interplanetary terms. Even if the concept is predicated of homo sapiens , as opposed to other species, the differences between segments of humanity in terms of lifestyle and belief repertoire are too great, and the common elements too generalized, to permit us to even conceive of a globalized culture.
Posto nestes termos, o problema da cultura no mundo globalizado , com efeito, o problema da cultura em si. Ela no pode ser completamente absolutizada no existe uma cultura universal per se , nem completamente relativizada cultura, ou suas manifestaes, no algo que pertence, de determinadas formas e sob perspectivas circunscritas, a apenas uma comunidade humana, sem a existncia de intercmbios e bases comuns identificveis. Ribeiro (2007: 6), problematiza antropolgicos, afirmando que
a noo antropolgica de cultura significa atributos universais compartilhados por todos os seres humanos. O termo culturas refere-se s variaes concretas de tais atributos em incontveis contextos histricos e geogrficos. Cultura, no singular, tambm pode ser usada na descrio de uma forma nica da experincia humana, como na expresso cultura Yanomami. Assim, o mesmo
a questo em termos
substantivo pode expressar um universal e os seus particulares, aspectos comuns a todos os seres humanos, assim como experincias vivenciadas por apenas uma parte da humanidade. Sob o guarda-chuva de um nico atributo humano (cultura), as diferentes culturas precisam ser compreendidas em sua pluralidade e em sua capacidade de comunicar-se entre si. Cultura existe apenas atravs de culturas. Cultura(s) pode(m), portanto, ser associada(s) a entidades universais, particulares ou mistas.
Ribeiro trabalha com a noo de particularismos e universalismos para problematizar a noo de diversidade cultural tributria da noo de cultura como forma de chegar a uma explicao do que seria hoje o mais prximo de uma cultura global, ou seja, fluxos culturais atravessados por e que atravessam diversas culturas em um processo de construo mais do que de imposio cultural. O imperialismo cultural norte-americano, para o qual a alguns a palavra globalizao um mero eufemismo, um particularismo local universalizado atravs de efeitos de poder. Tais efeitos so conseguidos por meio da hegemonia da indstria cultural norte-americana, aliada ao alcance de sua hegemonia poltica, econmica e militar. A globalizao da cultura norte-americana seria a forma mais perfeita de soft power de que falam os tericos da Teoria das Relaes Internacionais. Ao mesmo tempo, apresenta-se como um paradoxo, especialmente se enquadramos a cultura estadunidense no conceito de particularismo local de que nos fala Ribeiro (ibdem:8):
Particularismos locais so o conjunto de prticas e discursos mantidos por certas pessoas em uma dada localidade, de tal maneira que eles parecem ser social e espacialmente delimitados. Em virtude de seu forte apego originalidade e autenticidade, os particularismos locais parecem ser idiossincrticos. Tal tipo de particularismo relevante especialmente quando se associa crena de que se refere a expresses e modos de vida nicos a um certo povo. Assim, ele imediatamente relacionado a diferenas e diversidades culturais. Oferece um forte sentido de coeso, de unidade e de identidade, sendo uma poderosa fonte para a construo de coletividades.
As expresses e modos de vida nicos ao povo norte-americano acabaram por transformar-se, pelo menos essa parece ser a lgica da globalizao a partir da perspectiva da cultura, em expresses e modos de vida quase universalmente adotados. Das formas de alimentao (fast food), passando pela forma de vestir (street wear), passando pela forma de expressar sentimentos e concepes estticas (formas musicais como rock, blues, jazz, 10
country) e modos de vida (cinema), aspectos particulares da vida norteamericana deixaram de ser particulares e tornaram-se amplamente difundidos. Podem no ser universais j que imensas regies do globo resistem a elas mas esto mais prximas disso do que qualquer outro particularismo local. O prprio Ribeiro (ibdem) condensa esse aparente paradoxo:
Ainda que os particularismos locais sejam meios simblicos disposio das populaes locais, tambm podem disseminar-se para outras pessoas. Isso especialmente verdade em uma era de globalizao caracterizada pela existncia de diversos fluxos desterritorializados de bens, informaes e pessoas. Porm, nem todos os particularismos fluem com a mesma intensidade e visibilidade.
Ou seja, apenas os particularismos que tm a seu dispor uma rede de comunicaes tecnologicamente avanada, ao lado de um poder poltico, econmico e militar capaz de dar sustentao ao mesmo tempo em que o particularismo sustenta de volta tal poder s investidas em direo universalizao de tais particularismos. o que a globalizao estaria permitindo hoje em quase todos os aspectos da vida cotidiana3. Mato (2005) oferece uma viso integrada de cultura, na qual pe em relevo os aspectos simblicos de todas as prticas humanas. Essas prticas acabam por criar identidades que se fragmentam em muitas e sedimentam-se como prprias a determinadas comunidades. O mal estar da globalizao a falta de identificao dos sujeitos tanto os produtores quanto os consumidores com comunidades identitrias identificveis e delimitadas. No caso dos produtores culturais, Canclini (2003:25) escreve:
Na poca do imperialismo, podia-se experimentar a sndrome de Davi ante Golias, mesmo sabendo que o Golias poltico estava, em parte, na capital do prprio pas e, em parte, em Washington ou em Londres; o Golias da comunicao em Hollywood, e assim por diante. Hoje, cada um desses gigantes se desdobra em trinta cenrios, com gil flexibilidade para se mover de um pas para o outro, de uma cultura a muitas, pelas redes de um mercado polimorfo.
Ribeiro trabalha ainda a noo de particularismos translocais aqueles que se proliferam por meio dos fluxos de informao, de pessoas e de servios e os particularismos cosmopolitas, capazes de sintetizar os particularismos anteriores em uma arena na qual a tolerncia e a convivncia formam o cadinho no qual uma cultura permeada ao mesmo tempo por muitas outras se desenvolve.
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Essas redes enfraquecem as identidades locais ao ponto de novas identidades serem forjadas tendo como base as anteriores que, ao mesmo tempo, tornam-se irreconhecveis quando reelaboradas por meio dos processos globais. Em tempos de globalizao, as identidades podem ser construdas por meio de percursos to distintos quanto inusitados. Canclini (1989) prope pensar tais percursos por meio do conceito de hibridizao. O autor (1997: 111), defendendo-se das crticas recebidas, afirma que o conceito de culturas hbridas tem maior capacidade de
abarcar diversas mezclas interculturales que con el de mestizage, limitado a las que ocurren entre razas, o sincretismo, frmula referida casi siempre a funciones religiosas o de movimientos simblicos tradicionales. Pens que necesitbamos uma palabra ms verstil para dar cuenta tanto de esas mezclas clsicas como de los entrelazamientos entre lo tradicional y lo moderno, y entre lo culto, lo popular y lo masivo. Una caracterstica de nuestro siglo, que complica la bsqueda de un concepto ms incluyente, es que todas esas clases de fusin multicultural se entremezclan y se potencian entre si.
O que Canclini comenta pe em relevo a dificuldade em sair do conceito de cultura ao de identidade em uma era de aceleradas mudanas e crescentes incertezas que influenciam diretamente na percepo que as comunidades sejam elas locais, regionais, nacionais ou transnacionais tm em estabelecer um parmetro minimamente aceitvel e incontroverso a respeito de suas marcas identitrias para alm daquilo que d sentido de unidade e pertencimento a um povo, conforme Castells (2000). Daniel Mato (1994) caminha na direo de conceituar identidade cultural como representaes socialmente construdas, construo esta operada por diversos atores que se situam nos planos local, nacional e mesmo global. Como produtos de aes sociais e no de fenmenos sociais, as identidades so construdas a partir de lutas travadas entre diversos atores sociais e por isso sustenta que no pode existir nem identidade nica nem homogeneidade mesmo dentro de uma sociedade geogrfica e culturalmente delimitada. Da a dificuldade em afirmar que existe, por conseqncia, tanto uma cultura quanto uma identidade globais no atual estgio da globalizao. Talvez atingi-las seja uma impossibilidade prtica por mais que a tecnologia sugira que isso seria possvel.
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Smith (1990:178) retoma a discusso sobre a possibilidade de uma cultura e de uma identidade globais como uma inveno feita possvel apenas no plano discursivo. O autor sustenta que
there can in practice be no such thing as culture, only specific, historical cultures possessing strong emotional connotations for those who share in the particular culture. It is, of course, possible to invent, even manufacture, traditions as commodities to serve particular class or ethnic interests. But they will only survive and flourish as part of the repertoire of national culture, if they can be made continuous with a much longer past that members of that community presume to constitute their heritage. In other words, grafting extraneous elements must always be a delicate operation; the new traditions must evoke a popular if they are to survive, and that means to vernacular motifs and styles.
possvel argumentar, ento, que a cultura global essa inveno possvel, na verdade fabricada, produzida como a mercadoria que realmente , com as caractersticas de toda mercadoria tecnolgica no mundo moderno: instantaneidade, tendncia rpida obsolescncia e conseqente substituio por outra de acordo com as convenincias do fabricante. Para que elementos dessa mercadoria sejam incorporados s culturas locais, preciso haver um processo de hibridizao e ressignificao operado por meio do discurso de forma a fazer com que as comunidades locais encontrem elos entre o global, que novo e estranho s suas realidades, e a cultura local, nem sempre permevel a novidades que vm de fora. A fora da cultura global reside no fato de que existe todo um aparato miditico-discursivo capaz de penetrar nas mais resistentes comunidades e infiltrar novos elementos de forma massiva e repetitiva no cotidiano das pessoas at o ponto em que o global parea to natural a essas pessoas quanto o local. Isso no significa, porm, que o global substitua por completo o local, ou o torne totalmente obsoleto a ponto de as pessoas desejarem substitu-lo pela novidade global, elaborando uma nova identidade cultural. Smith (idbem: 179) esclarece o que ele tem em mente quando fala em identidade:
the concept of identity is here used, not of a common denominator of patterns of life and activity, much less some average, but rather of the subjective feelings and valuations of any population which
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possesses common experiences and one or more shared cultural characteristics (usually customs, language and religion). These feelings and values refer to three components of their shared experiences: 1) a sense of continuity between the experiences of succeeding generations of the unity of population; 2) shared memories of specific events and personages which have been turning-points of a collective history; and 3) a sense of common destiny on the part of collectivity sharing those experiences
O autor afirma ainda que a cultura global uma cultura sem memria, que no se relaciona com qualquer identidade histrica. Por isso, a cultura global painfully put together, artificially, out of the many existing folk and national identities into which humanity has been so long divided. There are no world memories that can be used to unite humanity; the most global experience to date colonialism and World Wars can only serve to remind us of our historic cleavages (Ibdem: p.180).
O local e o global como arenas de conflito na era da cultura globalizada As tenses entre culturas e identidades locais e globais constituem hoje um notvel ponto de conflito permeando as relaes entre as diversas sociedades. O principal ponto de alimentao desse conflito a homogeneizao que impe a substituio de manifestaes locais por manifestaes culturais globais. Canclini (2003:22) coloca o problema nos seguintes termos:
A globalizao, que acirra a concorrncia internacional e desestrutura a produo cultural endgena, favorece a expanso de indstrias culturais com capacidade de homogeneizar e ao mesmo tempo contemplar de forma articulada as diversidades setoriais e regionais. Destri ou enfraquece os produtores pouco eficientes e concede s culturas perifricas a possibilidade de se encapsularem em suas tradies locais. Em uns poucos casos, d a essas culturas a possibilidade de estilizar-se e difundir sua msica, suas festas e sua gastronomia por meio de empresas transnacionais.
Podemos citar como exemplo desse processo de difuso dentro dos parmetros permitidos pelos processos de industrializao cultural global o que acontece com a msica rabe, a qual, a partir dos anos 90, foi estilizada e reelaborada pela indstria fonogrfica e ganhou as pistas de dana do mundo inteiro, com a criao de uma msica hbrida: cantada em rabe, com temas universais como o amor, com sonoridade bsica identificada com as msicas
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tradicionais rabes, mas com a juno de elementos sonoros ocidentais como a batida do hip-hop e de outros ritmos danantes que dominam as boates do mundo. Na esfera da gastronomia, o exotismo de cozinhas orientais foi matizado para que o paladar ocidental se acostumasse a iguarias tailandesas, por exemplo, tendo a comida popular chinesa chegado ao ponto de constituirse em um novo padro de fast-food com pratos universalmente consumidos como o yakisoba, o shop suei e os rolinhos primavera. Assim, o local se beneficia do global especialmente quando consegue produzir uma troca que apara as arestas mais excludentes de suas caractersticas para que possa haver uma adequao bidirecional: do local em direo ao global e do global em direo ao local. Mesmo com essa possibilidade, conflitos so verificados com freqncia. Barnet e Cavanagh (1997) afirmam que os satlites, a msica, o cinema e outras formas de difuso da cultura dominante so como as artrias atravs das quais os conglomerados da indstria do entretenimento homogenezam os gostos para a formao de uma cultura global. Eles sustentam que o impacto dessa homogeneizao nas at ento ricas culturas locais tem sido imenso e as conseqncias disso comeam a emergir na forma de conflitos culturais que se refletem nos nacionalismos culturais e nas polticas de valorizao do local: musicians, social critics, and politicians in poor countries of Asia, Africa, and Latin America worry that the massive penetration of transnational sound will not only foreclose employment opportunities for local artists but will doom the traditional music for their local culture (ibdem: p.74). Indubitavelmente, a msica pop penetra em praticamente todas as comunidades do mundo, mesmo as mais isoladas. No possvel afirmar, porm, que apenas a msica local sofre a influncia da msica pop e de forma negativa j que para ser aceita, uma expresso cultural alheia a um determinado grupo deve conter elementos que possibilitem uma identificao por mnima que seja. Assim, a msica pop, assim como a cultura pop em si (cultura da globalizao) deve constantemente reelaborar-se, incorporando elementos locais e transformando-se em algo menos alheio s tais audincias.
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Da mesma forma, artistas locais reelaboram o global de acordo com as suas perspectivas e as de seu pblico mais prximo. o que acontece, por exemplo, com o vasto mercado das verses, muitas vezes estilizadas em ritmos como forr, folk, polca, tango, samba, etc. Nesses casos, muda-se a letra, altera-se o ritmo, e mantm-se apenas uma semelhana com a melodia original que circula ao redor do mundo. Quando ouvidas por estrangeiros de passagem por essas comunidades, tais melodias so imediatamente reconhecidas e as diferenas incorporadas localmente so objeto no apenas de curiosidade mas de genuno interesse comercial para esses viajantes, que adquirem cpias e as levam para outros lugares. Militantes anti-globalizao sugerem que a nica forma de reverter a globalizao e seus efeitos, inclusive no campo da cultura, seria um retorno ao local, valorizao das formas tradicionais de economia e expresses culturais. Eles no indicam, porm, como esse retorno deveria ser feito. Essa , alis, uma das maiores falhas das crticas globalizao: indica-se o que se deve fazer, mas no como fazer. De qualquer forma, o retorno ao local no garante imunizao contra a fragmentao cultural. Existem comunidades locais, por exemplo, que so criadas artificialmente, como as cidades planejadas construdas a partir do zero e povoadas com deslocamento de diferentes populaes originrias de diferentes lugares. Como, nesses casos, a cultura local criada e consolidada? Possivelmente a histria comum o elemento de ligao entre povo e cultura, conforme (1990) sugere, e esse elemento no se constri e solidifica em um curto lapso de tempo. Outro problema com relao ao local saber o que, exatamente, queremos dizer com local. Devemos lembrar que os limites geogrficos so arbitrrios e os mapas so artificialidades de convenincia. Populaes inseridas dentro de uma rea geogrfica, como um estado federado dentro de uma repblica nos moldes da brasileira, podem ser consideradas locais, dotadas assim de uma cultura local para efeitos de cartografia, mas que no fundo a nica coisa que as une uma linha traada sobre um papel e que se traduz em uma realidade poltica, no necessariamente cultural. Nesses casos, a fragilidade do elo local no pode ser explicada pela influncia malfica da globalizao, como querem seus crticos. 16
Acreditamos que no seja apenas a cultura globalizada o que enfraquece a cultura local, mas a interao entre vrias culturas locais que se entrecruzam em uma transregio e do origem a culturas mais ou menos fortes, mais ou menos permeveis aos fluxos globais. Transregio aqui entendida como o lugar de interseco entre vrios locais, onde elementos culturais desses vrios locais transitam com mais facilidade e velocidade do que a prpria cultura global. As trocas so mais fluidas por ser um local de fronteira. Esses pontos em que se articulam diversos locais produzem elementos culturais que se diluem mais facilmente nos fluxos que chegam at eles. A fronteira ponto de constante reelaborao e por isso a cultura dita local no consegue, no curto prazo, se estabelecer ao ponto de fazer emergir conflitos com outras formas de cultura, mesmo a globalizada. Na transregio os fluxos da cultura globalizada se diluem mais facilmente na realidade imediata do que no local, entendido como lugar de comunidades tradicionais e consolidadas. A transregio , assim, o lugar formado por fluxos migratrios e culturais em constante transformao. As mltiplas influncias que incidem sobre ela em curtos espaos de tempo deixam a sensao de que se trata de um lugar sempre em expanso, inclusive cultural, por isso mesmo aberto a influncias at mesmo contraditrias mas que se encaixam de alguma forma na realidade das pessoas a tal ponto que as contradies no so percebidas. Contradies do tipo em que um descendente indgena, ou um filho de aborgenes australianos ou mesmo campons nos confins da sia encarnam a figura de Michael Jackson com a naturalidade que encarnariam os personagens e mitos de suas comunidades de origem. Nas comunidades locais ou tradicionais, o sentido de identidade cultural mais perceptvel. Nelas, o risco da globalizao est nos dois sentidos: do local para o global e do global para o local. Tanto um pode influenciar quanto ser influenciado pelo outro. E, de fato, muito das culturas locais, embora reelaborado e muitas vezes fetichizado, acaba por ser absorvido pela indstria do entretenimento globalizada e tambm se globaliza, como a comida chinesa e a msica rabe citadas anteriormente. Na transregio, a aceitao do global muitas vezes uma via de mo nica por no se encontrar
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ali, suficientemente desenvolvida, algum tipo de manifestao cultural que oferea resistncia ao que vem de fora. Acreditamos que a resistncia da tradio o que faz com que no haja algo parecido com uma cultura global, universalizada, homognea e suficientemente forte para suplantar as culturas locais. O que existe so smbolos globais, reconhecidos em qualquer parte, mas que ainda no substituem os locais. Para que a completa substituio das culturas por uma cultura global ocorra seria necessrio o local, em toda parte, transformar-se em transregional. Neste caso, estaramos entrando em uma hipottica e improvvel era de migrao total, de reconfigurao total do espao por meio do deslocamento completo de seus ocupantes para outros espaos, em uma espiral sempre em movimento. Produzir-se-ia, desta forma, um espao global em constante criao em cada mnimo ambiente, dos bairros aos estadosnao. O que se v, ao contrrio, a construo e a manuteno de comunidades culturais cada vez mais fortemente ancorada na histria comum, que tem impedido ou dificultado a criao de transregies totalmente novas e desenraizadas de comunidades locais. Em suma, o local est se reforando cada vez mais. Mesmo os lugares de interseco, permeveis s manifestaes culturais globais em maior grau do que as comunidades tradicionais, tendem a se consolidar como um local algum dia. Se a histria, a tradio que d coeso a uma cultura, nada impede que as transregies adquiram estabilidade suficiente para, algum dia, reconhecerem-se como portadoras de uma histria e, conseqentemente, uma identidade que as caracterize em contraposio ao outro positiva e no negativamente (no sentido de que s se definem em relao ao outro negando serem igual ao outro em questo). Quando isso acontecer, e a transregio transformar-se em um local, pode acontecer de essa nova cultura local ser to identificada com o global que no haja conflito nos moldes dos vivenciados pelos atuais locais. Pode ser tambm que os conflitos se instalem da mesma forma, com a mesma intensidade e com as mesmas caractersticas dos atuais. Ento, mais uma vez, no seria possvel falar em cultura global.
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Consideraes finais Apesar da penetrao da cultura espalhada pela globalizao, ainda no possvel falar em uma cultura global. O fato de, em uma cidade no interior de um estado nordestino haver um clone de Michael Jackson atesta, principalmente, o fato de que a cultura local permevel ao global, mas no que o global esteja em vias de substituir o local. Concordamos com Smith (1990: p.188), para quem
we are still far from even mapping out the kind of global culture and cosmopolitan ideal that can truly supersede a world of nations, each cultivating its distinctive historical character and rediscovering its national myths, memories and symbols in past golden ages and sacred landscapes. A world of competing cultures, see to improve their comparative status rans and enlarge their cultural resources, affords little basis for global projects, despite the technical and linguist infrastructural possibilities
Apesar da base tecnolgica, da rapidez das trocas comerciais e da fluidez com que elementos da cultura hegemnica cruzam o globo, o local ainda resiste tanto em aspectos econmicos quanto culturais. Conforme discutimos neste trabalho, o que chamamos de globalizao um movimento que atinge parcelas, no toda a populao mundial. Mesmo em pases onde tal processo mais forte e difuso, apenas partes dos territrios esto integrados aos fluxos globais. As outras partes tomam conhecimento deles, mas no se pautam por eles. Diferentemente do que ocorre em lugares como So Paulo, Ciudad de Mxico, Buenos Aires ou Santiago. Em pequenas comunidades tradicionais, e mesmo nas periferias das grandes metrpoles cosmopolitas, a cultura local se impe por ser tangvel, por estar diretamente relacionada e identificada com as prticas cotidianas. O global coloca-se como mais uma forma de cultura disposio das pessoas, no como a forma de cultura, a nica disponvel porque suplantou as tradies locais como se erradicasse todas as influncias ancestrais. A prpria cultura da era da globalizao no deve ser encarada como algo a ser simplesmente combatido, de forma absoluta, porque, como vimos, h um movimento de mo dupla nas relaes culturais. isso o que pressupe o termo troca. Nas trocas culturais, global e local influenciam-se mutuamente. Isso vale para a esfera da 19
cultura, mas tambm para a da economia, especialmente porque a economia, muitas vezes, culturalmente determinada. No toa que a rede de fastfood Mc Donalds vende hamburguer vegetariano na ndia e inclui salmo naquele vendido no Chile, assim como churrasco no comercializado nos pases platinos. Conforme procuramos mostrar, a prpria globalizao algo controverso: das origens ao conceito. Os autores com os quais trabalhamos so enfticos ao afirmar que o processo de encolhimento e homogeneizao do mundo criao humana, portanto, deve ser desfetichizado para que possa ser analisado sob a perspectiva de criao humana e, como tal, passvel de falhas e de acertos. Mostramos ainda que um dos maiores problemas das crticas feitas a tal processo que se indica o que deve ser feito para parar e mesmo reverter a globalizao o retorno ao local mas no se indica o caminho que deve ser percorrido para que tal retorno acontea. Identifica-se o ponto de chegada sem se oferecer um mapa. De qualquer forma, nada garante que o retorno ao local faa com que os efeitos da globalizao sejam revertidos, nem que se deseja que todos esses efeitos sejam revertidos. Por ser uma via de mo dupla, como j dito, possvel que os dois lados dessa troca global-local se beneficiem dela e que as comunidades de alguma forma atingidas pela globalizao sintam-se mais beneficiadas do que prejudicadas por ela. Em outras palavras, alm de desfetichizar, preciso matizar a natureza da globalizao e de seus efeitos. Nem a globalizao algo completamente bom, como querem nos fazer crer seus defensores, nem completamente mau, como afirmam seus detratores, porque assim a natureza prpria de seu agente: o homem.
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