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Resumo:
O presente artigo analisa narrativas de vida sobre trajetórias de sujeitos/as brancos/as e negros/as
em carreiras de prestígio de diversas épocas e instituições do país. A problemática diz respeito à
intensificação do racismo e da branquitude nos processos constitutivos das identidades negras e
brancas nas trajetórias em carreiras de prestígios sociais. O estudo se constitui como mecanismo
de compreensão mais ampla das dimensões do racismo e da branquitude, de maneira que tais
problemáticas sejam enfrentadas em suas verdadeiras faces, tendo a educação como instrumento
político-pedagógico-científico de transformação das estruturas raciais produtoras das
desigualdades e dos privilégios raciais. A investigação se alicerça numa pesquisa qualitativa de
perspectiva etnossociológica, tendo as narrativas de vida como princípio direcionador da coleta de
dados. Aponta-se para a importância da educação antirracista como processo formativo no
combate às mentalidades e práticas racializadas, seja em nível micro, seja em nível macro. Indica-
se a relevância do continnum das ações afirmativas para a população negra e a participação ativa
e crítica da população branca ao se reconhecer privilegiada na luta antirracista.
Palavras-chave: negritude; branquitude; carreiras de prestígio; narrativas de vida.
Abstract:
The current article analyzes life narratives related to the path of white and black individuals in
prestigious careers within several periods and the country’s institutions. The discussion is about
the racism intensification and the whiteness in the constitutive processes of black and white
identities regarding their path in social prestigious careers. The study is constituted as a mechanism
of broader comprehension of the racism and whiteness dimensions in a way that such issues are
confronted in their real faces, considering education as a political-pedagogical-scientific
instrument of transformation of racial structures that produce inequalities and racial privileges.
The investigation is founded on qualitative research that has an ethnos sociological perspective
1
Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
2
Professor Adjunto do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB).
and their life narratives as a guiding principle of data collection. It stands out the importance of an
antiracist education as a formation process in the combat of racialized mentalities and practices,
in micro and macro levels. The study indicates the relevance of continuum with the affirmative
actions for the black population and the active and critical participation of the white population
when they are acknowledged as privileged in the fight against racism.
Keywords: negritude; whiteness; prestigious careers; life narratives.
INTRODUÇÃO
Contra os ataques é possível nos defendermos: contra o elogio não se pode fazer
nada. (Sigmund Freud).
3
A pesquisa foi em parte financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
e teve o apoio do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica na Amazônia (PROCAD-AM).
4
Os dados das narrativas de vida foram coletados entre os meses de abril a julho de 2022. O período de duração da
pesquisa constitui de março de 2022 a fevereiro de 2023.
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SANTOS; ROCHA 3
REFERENCIAL TEÓRICO
5
Sinais diacríticos são atributos selecionados a partir do complexo cultural do/a sujeito/a, como religião, política,
economia, artes, visão de mundo, etc. (BARTH, 2011).
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4 ENTRE O ESCONDERIJO DO PRIVILÉGIO E A BLINDAGEM RACIAL...
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como novas questões podiam surgir no fluxo da interação. O protocolo, contudo, permanecia como
elemento direcionador para a interação com o entrevistado. Destacamos que ele contemplou, num
primeiro momento da entrevista, um questionário fechado, contendo pontos para que os/as sujeitos
respondessem, como o nome completo, idade, origem, estado civil, profissão, curso de graduação,
ano de formatura e cor/raça, em que se pergunta ao entrevistado/a sua declaração étnico-racial.
Finalmente, uma característica importante desse tipo de metodologia é que, nele, os instrumentos
de pesquisa se confundem, em diferentes graus, com o próprio pesquisador, que, na verdade,
assimila os protocolos de pesquisa como critérios de orientação prática para suas interações em
campo (BEAUD; WEBER, 2010).
Assim, a consulta a qualquer versão impressa do protocolo de entrevista foi evitada ao
máximo durante a condução das entrevistas. Indo nessa esteira da compreensão dos significados
da vida das pessoas na realidade social, a perspectiva etnossociológica (BERTAUX, 2010),
também nos ajuda a estudar um fragmento particular da realidade social e histórica constituído por
um objeto social. Ela permite a compreensão de como esse objeto funciona e se transforma,
evidenciando as configurações de relações sociais, os mecanismos, os processos e as lógicas de
ação que o caracterizam. As narrativas de vida, como uma forma particular de entrevista na qual
o pesquisador solicita a um/uma sujeito/a de pesquisa que lhe conte toda ou uma parte de sua
experiência vivida, constituem-se numa descrição próxima da história “realmente vivida”, tanto
objetiva quanto subjetivamente. Assim, a perspectiva etnossociológica de pesquisa leva a orientar
as narrativas de vida para uma forma de narrativas de prática em situação, considerando a ideia
central de que a partir das práticas pode-se começar a compreender contextos sociais nos quais
elas se inscrevem e que elas contribuem, seja para reproduzir, seja para transformar (BERTAUX,
2010).
6
Os nomes dos/as sujeitos/as são fictícios e escolhidos tendo como critério nomes de algumas personalidades negras
e brancas nas áreas de Engenharia Elétrica, Direito, Arquitetura e Urbanismo e Ciências Humanas e Sociais.
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6 ENTRE O ESCONDERIJO DO PRIVILÉGIO E A BLINDAGEM RACIAL...
quê que foi aplicado ali e a gente não consegue saber muito bem. Numa empresa
pequenininha que trabalhei seis meses, só que foi um pé de meia para eu poder ir
pro mestrado, teve situação de privilégio, por quê? Porque um dos caras que
trabalhavam lá, o pai dele era muito amigo do dono. Então, a gente dizia que ele
podia fazer todas as nabas7 possíveis e inimagináveis e o chefe nunca ia demitir
ele. Não era um privilégio por ele ser branco, mas, coincidentemente, ele era
branco, né?, engraçado isso! Coincidência... [risos], enfim... (Edith Clarke, Raça
Não Informada, Engenharia Elétrica).
Edith evidencia, em sua narrativa de vida, a ausência de um entendimento e olhar para a
questão étnico-racial, haja vista não ser importante para si do ponto de vista do racismo e de suas
consequências, em decorrência de sua marcação não muito definida como pessoa branca
privilegiada.
Ademais, em paralelo à ideia de Edith de que não consegue saber exatamente o que fora
aplicado em termos de critérios em situações em que há a efetivação de vantagens raciais para
brancos/as, como o caso narrado por ela, para além de uma explicação de processos subjetivos
racializados, há também a concretização certeira do racismo institucional. Sendo assim, ele se
caracteriza como uma organização ou estrutura social que cria um fato social racial hierárquico a
partir de um estigma visível, identidades incorporadas e geografias sociais. Como consequência
de sua execução, é engano pensar que ações ou atos, para serem considerados racializados,
precisam ocorrer, necessariamente, de forma intencional (AMAR, 2005). Daí a “dificuldade” ou a
“dúvida” no entendimento de Edith sobre a existência do privilégio racial.
Edith evidencia uma ambiguidade na sua autoidentificação racial, pois, num primeiro
momento, se mostra como “branca privilegiada”, portadora de benefícios raciais; já em outro
momento, não se identifica como tal para o pesquisador, ao pedir que ele coloque no questionário
“raça não informada” em sua classificação racial, mesmo tendo características fenotípicas brancas,
já que “não me defino como branca”, pois é “o povo [que] me define.” Por conseguinte, Edith
apresenta duas dimensões da branquitude. A primeira seria uma branquitude não nomeada (PIZA,
2002), já que “eu não me defino como branca”, principalmente quando isso a privilegia. Portanto,
ao não se definir como tal, tira a responsabilidade do privilégio racial de si mesma, deslocando
para o “povo que a define”. A segunda constitui uma branquitude marcada (FRANKENBERG,
2004), quando apresenta a noção de seu privilégio racial como branca, pois, conforme a depoente,
“nunca fui discriminada etnicamente.” Assim, o jogo da identidade racial de Edith expresso em
sua narrativa de vida depende dos interesses e negociações dela que estão em jogo, pois sua
branquitude não foi anunciada de um lado, mas, de outro, foi tornada visível, racializada.
Em outro espectro, ainda evidenciamos que quando faz o jogo do deslocamento identitário
da branquitude, colocando-se num no lugar de não branca, ela se aporta às sombras de um vampiro,
perfazendo aquilo que Cardoso (2020) denominou “branco drácula”. Então, como uma vampira
que se esconde, ela não suporta a luz, não suporta ser focalizada, iluminada, “encarada” de frente
e olhada nos olhos. Edith, como uma “vampira”, se organiza como uma branca que pouco narra
ou simplesmente não fala a respeito de si, a ponto de indicar que os privilégios raciais são
escondidos, principalmente os dos outros, ou de identificar uma “coincidência” de maneira
7
Na linguagem popular, nabas significa lambanças, algo desastroso, feito equivocadamente.
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disfarçada e jocosa acerca de um privilégio racial de um homem branco que teve prerrogativa
racial de fazer qualquer “naba” possível e inimaginável numa empresa onde trabalhavam.
Adiante, mesmo evidenciando aspectos que nos fazem voltar a trechos da narrativa de vida
de Edith, explicitamos Mary, negra e advogada, que narra aspectos de sua trajetória de vida ligados
às questões raciais, em especial a relação de racismo com ascensão social, passando mais
especificamente a temas ligados à experiência de discriminação no mundo do trabalho:
Pela questão racial, a gente sabe que é mais difícil, e foi um dos motivos que eu
desisti de procurar emprego como advogada, porque não aguentava mais ouvir as
mesmas perguntas. Olha, eu passei por uma entrevista num escritório bem famoso
aqui em Brasília, no Lago Sul, por exemplo, que a primeira pergunta foi de quem
era o carro que eu tinha chegado, porque têm câmeras, né, na entrada do
escritório. Naquela época eu estava com um carro do ano, era um Voyage preto,
com a porta Sedan. E a primeira pergunta não foi nem qual seu nome, mas a
preocupação foi de quem era o carro, e o carro era meu. Trabalhei muitos anos
num escritório de advocacia antes de eu me formar, né? Comecei a trabalhar no
escritório até mesmo antes de eu querer fazer Direito, trabalhei seis anos. E aí, eu
juntei dinheiro, né? E casei, a gente conseguiu comprar um carro. E a
preocupação deles era: “e esse carro, é seu?” Tipo assim: “a pessoa vem para uma
entrevista de emprego, né, e já vem com o carro do ano?” Então, assim, saltou
aos olhos deles. Foi muito constrangedor, né? Você ter que contar a sua história
íntima para justificar o carro que você estava chegando. E, em contrapartida,
existem estagiários [brancos] nesses próprios escritórios que chegam de carro
BMW, porque o pai é rico. Ninguém pergunta pra ele: “quem te deu o carro, né?”
Então, assim, foi um dos motivos que foi me cansando! Em um [escritório] tinha
essa pergunta, no outro, você era boa demais para o cargo, né, que foi uma
entrevista lá no Lago Norte: “Não, porque você se encaixa e ultrapassa o cargo”.
Não sei o quê e tananâ... E aí essas coisas foram cansando, sabe? Ah, gente, quer
saber? Trabalhar eu sei, e foi aí que eu decidi trabalhar sozinha, virar autônoma
mesmo e comecei a trabalhar num escritório próprio. (Mary Aguiar, Negra,
Direito).
Sobre esse pré-julgamento a que Mary foi submetida numa entrevista de emprego na área
advocatícia acerca de seu carro, entendemos, dentro das lógicas das relações raciais brasileiras, o
veículo como elemento de suspeição para uma advogada negra, haja vista que, provavelmente,
estavam duvidando e preocupados acerca da capacidade dela de poupar e investir na referida
aquisição. Como consequência, isso estrutura a naturalização dos lugares ditos nobres e de acesso
aos recursos materiais gerados pela branquitude, considerando a preocupação e uma espécie de
“medo branco”: “esse carro é seu?” Assim, o racismo tem um poder específico de elaborar e formar
juízos de valores atrelados à suspeição até mesmo da capacidade de negros/as de investirem em
sua formação acadêmica e na aquisição de bens, principalmente duráveis, como um Voyage Sedan.
Aqui identificamos uma fixidez do lugar social da mulher negra nas relações raciais, indo ao
encontro do que Lélia Gonzalez (1983) analisa acerca desse lugar social. Para ela, o lugar social
da mulher negra, desde as relações escravistas do período colonial, foi pensado apenas como:
“doméstica” para trabalhos braçais; “ama-de-leite” para amamentar os filhos dos/as senhores/as
escravistas; e “mulata” enquanto objeto sexual.
A desconfiança, bem como a ausência de validade social e de “perfil” para assumir um
cargo como advogada decorrem da imagem coletiva racializada acerca da população negra
confinada e imobilizada em áreas sociais precarizadas, subalternas e pouco valorizadas,
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perfazendo a máxima da racialização que seja a associação automática dos fenótipos raciais às
características morais, psicológicas etc. (TODOROV, 1993). Assim, fica evidente que, em razão
dessa racialização produtora das desigualdades raciais, em muitos casos, os/as negros/as sofrem
discriminação racial e racismo em todas as classes sociais, inclusive como advogados/as ou
qualquer cargo ou função na área jurídica.
Ao evidenciar aspectos de sua trajetória ligados à relação da raça com a família, à
escolarização e ao trabalho, aproximando-se em algumas questões da narrativa de vida da
advogada Mary, Sharon mostra as contradições e os efeitos do racismo na constituição de sua
identidade negra e de sua amiga negra. Segundo ela:
Por a gente ter uma blindagem, no colégio, né, da classe social, eu não sofria
ataques diretos. Obviamente que tinha essa questão do racismo, da identidade, de
você não se identificar com o seu cabelo, com a sua estética, existia isso! Mas, a
gente foi bem preparada, entendeu? Eu não tenho grandes traumas em relação a
isso. Eu não posso afirmar que foi um problema, meus pais me prepararam muito.
Minha mãe por ser branca e saber que iam nos atacar, meu pai por ser negro e ter
tido uma formação. Depois, na universidade, eu entrei antes das cotas, aí logo,
dois anos depois, quando foi instaurado as cotas, eu tive uma amiga negra, lá de
Santo Antônio de Leverger8, que fez Arquitetura. Ela, tipo, me contava as coisas
que ela passou, né, porque, eu sempre fui esclarecida em relação ao racismo
estrutural que existe no Brasil, as diferenças de oportunidades, tudo isso sempre
foi muito claro. Mas ela me contava situações que ela viveu na vida dela que eu
ficava assim emocionalmente até desestabilizada, entendeu? Porque ela foi muito
mais agredida por ela ser de uma classe pobre, entendeu? Em todos os aspectos,
porque a mãe dela era empregada doméstica, levava ela pra onde ia trabalhar, ela
sofria assédio sexual. Então, assim, aconteceu coisas muito graves! E teve até um
dia que ela foi no meu prédio e o porteiro pediu para ela subir pelo elevador de
serviço, tipo, naquele período, ah, eu desci, fiz um maior escândalo. O
preconceito vai existir independente de classe social, ele existe, né? Ele é
estrutural, você enfrenta isso no dia a dia. Hoje, no mercado de trabalho, eu vejo
isso muito mais do que na minha infância, mas eu acho que realmente, quando
você é mulher, negra e pobre, e, se você, tipo, estiver com sobrepeso, gorda, ixi...
será muito mais agressivo, será o ápice da agressão (Sharon Sutton, Negra,
Arquitetura e Urbanismo).
Para Sharon, arquiteta negra, o fato de ser de classe média alta e ter estudado em escolas
de padrão considerável favoreceu que tivesse “uma blindagem” perante o racismo, mesmo
existindo problemas raciais em decorrência de sua forma de lidar com aspectos de sua identidade,
como cabelo e estética. Aqui, há uma afirmação dogmática pela excelência da brancura com a
consequente degradação estética da cor preta, haja vista ser esta um dos suportes psicológicos da
espoliação racial (RAMOS, 1995).
Mesmo com isso, Sharon aponta que sempre foi “esclarecida em relação ao racismo”, desde
a infância, tendo em vista a formação dada por seus pais para enfrentá-lo. Essa formação permitia
que ela estivesse preparada para isso, seja pelo fato de a mãe ser branca (de ter o poder da
branquitude), seja pelo pai ter formação acadêmica e condições materiais concretas. Não obstante,
8
Município brasileiro da Região Metropolitana do Vale do Rio Cuiabá, pertencente ao Estado de Mato Grosso,
localizado na Região Centro-Oeste do Brasil.
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ela destaca que percebe a interferência maior do racismo no mercado de trabalho, como apontado
também na narrativa de vida de Mary, anteriormente.
Assim, entendemos que o racismo desestabiliza emocionalmente as pessoas negras visando
dominá-las pelo rebaixamento de sua autoestima, o que reverbera, em muitos casos, em
incômodos, insatisfações ou até em desistências de postos conquistados. Portanto, é necessário ser,
antes de tudo, forte, enfrentar os desafios, visto que esse racismo, que Sharon está chamando de
estrutural, pretende construir o fracasso profissional do/a negro/a no mercado de trabalho e,
consequentemente, impedi-lo/a de ascender socialmente. Não obstante, é necessário destacar que,
às vezes, ser forte para provar e mostrar o seu “valor”, para o/a negro/a, representa tornar-se um/a
verdadeiro/a “super-negro/a”, já que tem que provar muito mais vezes que o/a branco/a, por
exemplo, que é capaz de ocupar, merecer e exercer algum cargo de prestígio social (ANDREWS,
1998).
A “blindagem” de Sharon contra o racismo, configurada pelo apoio familiar e pelos
atributos de classe e de status decorrentes de sua formação acadêmica, que a permitiu não “sofrer
ataques diretos” ou não ter “grandes traumas”, a priori, se constitui, única e exclusivamente, num
revestimento protetor e resistente antirracista, mesmo ponderando que “o preconceito [racial] vai
existir independente de classe social”, já que “ele é estrutural e você enfrenta-o no dia a dia.” Mas,
a posteriori, ao se aprofundar no áudio completo da narrativa de vida dela, trazendo toda a
semântica e a tecitura de suas experiências com o racismo, inseridas em parte na transcrição antes
apresentada, percebemos que, de um revestimento protetor e resistente, essa blindagem racial tem
uma faceta de termômetro racial que permite um maior entendimento das variações e dos graus
do racismo na condução da vida dela, tanto para senti-lo (“fiquei emocionalmente
desestabilizada”), detectá-lo e enfrentá-lo (“desci e fiz um maior escândalo”), quanto para negá-lo
(“não posso afirmar que foi um problema”).
Narrando aspectos de sua trajetória de vida, que dialogam em muitos casos com as
narrativas de vida da advogada Mary e da arquiteta Sharon, a médica negra Thelma evidencia,
com riqueza de detalhes, as várias facetas de sua identidade negra no contexto das relações raciais
brasileiras, abordando aspectos ligados à família, à escola, ao trabalho e às sociabilidades diversas.
Eu acho esses conceitos todos muito confusos, né? Quando eu era bem mais nova
diziam que eu era parda, porque a minha mãe é branca e o meu pai é negro. Então,
não posso ser considerada negra [risos]. Só que eu vejo que sempre fui
considerada negra nos ambientes que frequento. Porque eu vivi em ambiente
branco na minha vida toda, né? [...] Porque, nesses ambientes, eu não era parda.
Parda era uma pessoa que era morena de pele mais escura, né? Eu sempre me
destaquei nos ambientes como não branca, né, aí não dá para disfarçar que eu não
sou negra num ambiente só de brancos. [Mas], na verdade, sempre foi uma coisa
muito velada, que não é uma coisa de alguém me impedir de eu entrar em algum
ambiente. Era mais a maneira de tratar, de ser visto, a maneira quando você chega.
Por exemplo, [risos] depois que eu já tinha formado e acabado a minha residência,
fui na concessionária comprar um carro, aí cheguei lá, eu falei: olha, eu queria
comprar, eu vim ver as possibilidades de tal carro. A mulher virou para mim e
falou: “entra no site da empresa que tem”. Esse tipo de tratamento que a pessoa
olha para você: “ah, essa pessoa não deve ter dinheiro para poder estar aqui para
comprar alguma coisa, né?” Eu falei obrigada e fui embora, entrei em outra
concessionária e comprei outro carro que não era esse que eu esperava. Na
infância, lembro que você chegava numa sala de aula, quando as pessoas iam se
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juntando para formar as amizades, nunca era comigo. Dava para perceber que as
crianças viam uma diferença. Quando passava alguns dias, ia conversando, vendo
e acabava que as coisas iam acontecendo e a gente se integrava, né? (Thelma
Assis, Negra, Medicina).
Thelma aponta as complexidades de suas classificações raciais em diversos ambientes e
situações. Descreve que a vida toda viveu num mundo branco e que as pessoas da mesma cor que
ela, com quem conviveu, sempre foram as da sua família. Aponta também que quando mais nova
classificavam-na como parda em decorrência da mistura de seu pai negro com sua mãe branca.
Todavia, nos ambientes sociais vinculados ao “mundo branco”, era vista como não branca, já que
não dava “para disfarçar que eu não sou negra.”
Thelma também chama a atenção que essa identificação como negra nos espaços sociais
brancos se dava, sobretudo, por uma via racial velada, desvinculando-se de qualquer impedimento
“direto” para sua inserção em algum ambiente. O racismo velado foi exemplificado por ela em
duas situações. A primeira ocorreu quando a médica foi comprar um carro na concessionária, em
que a vendedora solicitou que ela verificasse a informação do veículo no site da empresa. A
segunda foi quando ela percebia que, quando aluna no período da infância, sempre era “esquecida”
na formação das primeiras amizades na escola, enfim, nunca era chamada para relações de
socialização, num primeiro momento. Considerando as duas situações, mesmo pertencendo a uma
classe social economicamente mais elevada, as marcas raciais negras de Thelma colocam-na em
confronto com o racismo e a branquitude. Assim, há que se considerar que, no Brasil, a experiência
com o racismo, “varia com a intensidade das marcas e com a maior ou menor facilidade que tenha
o indivíduo de contrabalançá-las pela exibição de outras características ou condições – beleza,
elegância, talento, polidez etc.” (NOGUEIRA, 2006, p. 302). Desse modo, na concessionária,
ficou evidente o poder do racismo e da ausência da branquitude sobre sua identidade racial. No
seio familiar, as pessoas colocaram-na como parda, mas ela percebia que era considerada negra
desde a infância, quando, por exemplo, as crianças viam-na com diferença.
O racismo velado, que se caracteriza como “frio, reservado e indireto”, diferente do
racismo flagrante, que “é violento, tacanho e direto”, (PETTIGREW; MEERTENS, 1995, p. 112),
fez com que Thelma fosse em outra concessionária. Isso foi a consequência de a vendedora tê-la
“expulsada” de lá, já que não concebia, de alguma forma, que a médica tinha potencial econômico
e simbólico para possuir um carro. Esse racismo velado, muito característico da sociedade
brasileira, baseado no mito da democracia racial, nada mais é do que a efetivação do racismo
institucional, como já apontou Amar (2005). Colocando as coisas em seus devidos lugares na
lógica racial brasileira, trata-se do entendimento do preconceito de raça como sentido de posição
de grupo, que é o fulcro da relação do grupo dominante com o subordinado. Tal sentido fornece
ao grupo dominante (ao branco) o enquadramento de sua percepção, sua medida de julgamento,
os seus padrões de sensibilidade e as suas inclinações emocionais (BLUMER, 2013). Enfim, que
o/a negro/a fique em seu lugar: “entra no site da empresa que tem o veículo!” Essa situação é
similar à narrada pela advogada Mary, e aqui voltamos ao potencial cavalar do racismo de colocar
em xeque a capacidade de uma mulher negra de ter condições econômicas e simbólicas de adquirir
um bem, considerado pelos racistas como exclusivo de brancos/as.
Margaret, branca, profissional na área de Ciências Humanas e Sociais, traz aspectos ligados
às questões raciais, especificamente aos da sua experiência como professora universitária,
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evidenciando suas percepções sobre os ícones brasileiros e entrando no debate de quem realmente
deveria estar dentro ou fora dessa seara. Essa situação gerou um conflito racial, conforme ela narra:
Em sala de aula, estava questionando os ícones brasileiros. A gente falando de
cultura. Olha, você vê no Brasil, tem umas subversões, uma iconografia torta.
Quem deveria ser os ícones do movimento abolicionista, da libertação dos
escravos no Brasil, é um José do Patrocínio, André Rebouças, gente que construiu
alguma coisa, não um escravocrata safado como era o Zumbi dos Palmares,
[risos], porque ele tinha os escravos dele, ele queria a liberdade para ele, né? Isso
obviamente pode ser questionado? Sim, mas não é questionável que ele tinha
escravo. Ele era super tirânico com os escravos dele, e tudo mais! Estava falando
de um contexto e aí uma menina negra, que fazia a disciplina e era do movimento
negro, se levantou e saiu de sala. E depois, em outra aula, eles tentaram me
emboscar e vieram tentar impor a mim que eu dissesse que eu sou racista. O que
eu fiz? Pediram permissão para entrar, eu falei: pode entrar! Aí eles começaram
a me atiçar, mas falei: não, olha, o racismo é crime, então, a gente vai ter que
conversar bem sério sobre isso. Ela ficou chateada porque eu estava falando mal
do anjinho dela, que era o Zumbi. Isso significaria que a pessoa é racista. Eu não
estava falando mal dele, mas de uma escolha, que eu acredito que é errada, né?
Eu falei: “não apenas não admito isso, como eu não aceito que vocês me acossem
desse jeito na sala de aula. A pessoa que falou isso para vocês, viu um pedaço da
aula, não viu a aula inteira. Eu vou denunciar vocês na ouvidoria, e aí eu
denunciei, por essa acusação, injuriosa”. Ela voltou às aulas e ficava me olhando
com cara de ódio, assim... [risos], sabe? Eu falava: “gente, alguém tem que ter
maturidade aqui!” Depois desse ocorrido, avisei para eles que estava pensando
seriamente em denunciá-los à polícia. (Margaret Thatcher, Branca, Ciências
Humanas e Sociais).
No contexto de uma aula em que a docente estava apontando esses aspectos sobre a
iconografia nacional, ela indica o inconteste de sua aluna negra e de membros do movimento negro
da instituição sobre sua percepção de Zumbi como um escravocrata, cuja visão favoreceu uma
perspectiva histórica distorcida sobre um personagem importante para os movimentos negros
brasileiros e para o próprio país. Assim, há o confronto entre os manifestantes e a professora no
sentido de que ela se assumisse racista diante da visão dela acerca do Zumbi. Diante dessa querela,
Margaret denuncia os contestadores à ouvidoria e ameaça “denunciá-los à polícia”.
É interessante notar quando Margaret afirma que “não estava falando mal dele [do
Zumbi]”, pois “estava falando de uma escolha, que é errada.” Isso acontece, embora utilize, na
entrevista, o termo “safado” para qualificá-lo. Mais do que um recurso retórico para se defender,
essa afirmação expressa uma tomada de posição específica da branquitude: ver a si mesmo como
detentor, a priori, do ponto de vista objetivo, ao tempo em que vê o negro (sobretudo aquele que
se manifesta sobre questões raciais) como possuído pelas paixões, pela raiva ou pelo
ressentimento, e, portanto, ilegítimo, quando o que está em questão é a verdade objetiva dos fatos.
Não passou pela cabeça de Margaret que aquele episódio pudesse ensejar alguma revisão de sua
visão (claramente estereotipada) de Zumbi dos Palmares. Além de expressar-se pelo apego àquela
visão sobre Zumbi (tecnicamente equivocada, se por nada mais, pelo anacronismo e
descontextualização histórica), a branquitude expressava-se ali também pela negação de uma
posição epistemologicamente válida ao/à negro/a, sobretudo ao/à negro/a como sujeito/a que fala
sobre opressão racial.
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Assim, a partir dos fatos narrados por Margaret, percebe-se a ausência de uma visão crítica
por parte dela sobre algumas questões raciais, mormente de Zumbi dos Palmares, um herói
nacional construído pelos movimentos negros brasileiros, constante e historicamente perseguidos
por argumentos racistas estratégicos das elites para desestabilizar um herói negro, símbolo
contumaz antirracista9. A ausência de criticidade diante do seu racismo sobre a verdadeira história
de Zumbi podemos entender pelo que se nomeia “branquitude acrítica”, caracterizada quando a
identidade branca individual ou coletiva argumenta a favor da superioridade racial, defende o
privilégio branco, vive o signo da tradição, não suporta o outro, não questiona seus privilégios
raciais, se vale de sinceridade sobre sua percepção sobre o negro etc. (CARDOSO, 2020).
A branquitude acrítica de Margaret a faz desaperceber o seu racismo, principalmente
quando utiliza de seu poder como branca e professora universitária, já que “denunciei a ouvidoria
e pensando denunciá-los à polícia.” Isso ocorre para estabilizar as relações de confronto com a
aluna negra e membros dos movimentos negros, arrolando a justificativa do racismo ou qualquer
manifestação de constrangimento e injúria contra si com relação às pessoas negras, já que “o
racismo é crime”. E a percepção de “ameaça” advinda do questionamento pela qual foi confrontada
junta-se ao seu medo branco (a aluna ficava olhando com cara de ódio) de perda do poder da
palavra diante de uma possível “imposição”, “revolta” ou “emboscada” dos/as manifestantes
negros/as por seu comentário sobre Zumbi dos Palmares, o “anjinho deles”.
Esse comportamento de Margaret vai ao encontro do que Bento (2002) denomina falsa
projeção. Ela se constitui num mecanismo que o sujeito procura livrar-se dos impulsos que ele não
admite como seus, depositando-os no outro. Assim, “aquilo que lhe é familiar passa a ser visto
como algo hostil e é projetado para fora de si, ou seja, na ‘vítima em potencial’.” (ibid, p. 38).
Aqui, há a representação do outro como arauto do mal que serve de pretexto para ações racistas e
punitivas em diferentes partes do mundo, de maneira que a agressividade pode ser dirigida contra
esse inimigo comum (a outra raça), sentida como ameaça, mesmo que na maioria dos lugares ela
não tivesse nenhum poder. Portanto, os sujeitos perdem a capacidade de discernir entre o que é
deles e o que é alheio, e então tudo vira falsa-projeção, exterioridade, por meio de uma relação de
poder. Além disso, isso é “um tipo de paranóia que caracteriza freqüentemente quem está no poder
e tem medo de perder seus privilégios. Assim, projeta seu medo e se transforma em caçador de
cabeças.” (BENTO, 2002, p. 38).
A preferência política de Margaret por José do Patrocínio e André Rebouças, dois
personagens negros que “construíram alguma coisa” para o país em detrimento de Zumbi, em que
pese toda a relevância deles à contribuição10 e à memória afro-brasileira, pode decorrer de que
ambos gostavam de agradar as elites brancas ou tinham relações de interesses e de amizades com
a realeza branca escravocrata e latifundiária. Enfim, eram mais tolerados ou não eram vistos como
ameaças, como Zumbi, ao sistema escravista e racializado brasileiro. No contexto da abolição da
escravatura, Patrocínio, por exemplo, apontava que ela deveria ser “uma revolução de cima para
9
Sobre a importância de Zumbi no Brasil e na luta antirracista, indicamos Gomes (2005).
10
José do Patrocínio, considerado o “Tigre da Abolição”, teve participação destacada na imprensa carioca e nas
reuniões abolicionistas do final do século XIX. Ao lado de Joaquim Nabuco, fundou a Sociedade Brasileira contra a
Escravidão. André Rebouças, engenheiro e advogado, um dos maiores especialistas em Direito Civil no Brasil
monárquico. Engajou-se no movimento abolicionista ao lado de Joaquim Nabuco e Patrocínio. Ajudou a criar a
Sociedade Brasileira contra a Escravidão e a Confederação Abolicionista. Foi ativo na publicação de diversos artigos
em jornais contra a escravidão, um conciliador de classes (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006).
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baixo. O povo não teria força por si só para realizar a abolição da escravidão.” (PATROCÍNIO,
citado em MARINGONI, 2011, não paginado). Quanto a André Rebouças, durante os anos
abolicionistas, a sua proposta de reforma agrária se daria de maneira que grandes proprietários
venderiam ou alugariam lotes de terras a libertos, imigrantes e lavradores. Ou seja, seria uma
modalidade de reforma que prescindia da democratização fundiária, restringindo-se às regras do
mercado então vigentes, beneficiando latifundiários e ex-escravistas (CONRAD, citado em
MARINGONI, 2011).
Já Oscar, branco, formado na área de Arquitetura, aborda, em sua narrativa de vida,
aspectos ligados ao entendimento das características complexas do racismo brasileiro que
interferem na explicação e nas vivências de negros/as e brancos/as nas relações raciais.
Eu tenho a percepção de que existe o racismo, embora não seja explícito, como é
às vezes em outros países, em outras raças, né? No Brasil, acho que não tem um
racismo que as pessoas declarem, como você vê, por exemplo, nos E.U.A. Lá, o
cara sai com a camiseta que ele odeia negro e sai para bater em negro. Mas, aqui,
você vê em abordagem policial, se o cara for negro ele é parado, se não for, ele
vai embora, né? Esse é um racismo não explícito, porque em tese todo mundo é
igual, mas quando passa na frente de alguma autoridade, você tem uma
desigualdade que ressalta. É cultural essa coisa da forma como foi feita, como o
português lidou com a escravidão por mais tempo do que qualquer outro país, né?
E lidou de uma forma em que ele se misturava, não separava, como outros países
em que a mistura era uma coisa execrada e tal. A mistura aqui foi tolerada,
inclusive vai gerando aí essa percepção de que tem uma certa igualdade, que as
pessoas se relacionam. Quando você tem algum assunto que vai beneficiar um,
isso aparece, né? O negro e o português às vezes se amasiavam, né? Na minha
área, que é Arquitetura, o caso mais exemplar que a gente tem é o do Aleijadinho,
negro, que era filho de um português, artesão, mestre, né, que ensinou o ofício
para ele, que vai se tornar um dos maiores artistas brasileiros. Então, a história da
Chica da Silva, que tinha também lá um contratador. Isso é muito peculiar do
português. A colonização foi uma interação de autoridade, né, de cima para baixo,
de propriedade, mas ao mesmo tempo de relações afetivas que se criaram ali com
todas as barbaridades que aconteceram, e isso permitia ver que às vezes você teve
filhos de negros que prosperavam. Machado de Assis e Luiz Gama, né, uns, que
agora estão sendo reconhecidos como intelectuais negros. O tempo todo se
esbranquiçaram, essas figuras que são negras. Mas são figuras que, dentro dessa
dificuldade, desse preconceito todo, foram alcançando postos, estudando e
crescendo, foram se destacando, né? (Oscar Niemeyer, Branco, Arquitetura e
Urbanismo).
A partir disso, torna-se necessário o discernimento das características dos tipos de
preconceitos mais evidenciados no Brasil e nos Estados Unidos, apontados por Oscar. Oracy
Nogueira (2006) faz esse discernimento entre o preconceito racial de marca e o preconceito racial
de origem, considerando que o primeiro seria mais factível no Brasil, o segundo mais nos Estados
Unidos. O preconceito de marca se exerce em relação à aparência baseada nos traços físicos do
indivíduo, na fisionomia, nos gestos e no sotaque, constituindo-se pretexto para as suas
manifestações. Já o preconceito de origem se manifesta na suposição de que o indivíduo descende
de certo grupo étnico, de maneira que sofra as consequências desse tipo de preconceito. Assim, a
compreensão da miscigenação como marca de nossas relações a ponto de negar a existência do
racismo ou crer num racismo mais ameno isenta a efetivação do preconceito racial de marca com
uma máxima brasileira, principalmente nas relações de poder, como é o caso do processo de
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mobilidade social vertical ascendente evidenciado, por exemplo, nas trajetórias de Mary, Sharon
e Thelma, conforme seus relatos.
Ao trazer o aporte culturalista freyreano, Oscar explica essa diferença de características e
tipos de racismo entre os dois países. Para ele, essas diferenças se dão numa ordem cultural a partir
do tipo de relação que o colonizador português estabeleceu com os/as colonizados/as, negro/as e
indígenas. No Brasil, com um sistema escravista português baseado na plasticidade, na
miscibilidade, no paternalismo e no sadismo (FREYRE, 2003), Oscar aponta para a existência da
miscigenação entre as três raças, diferentemente da inexistência desse processo no país norte-
americano, onde as relações inter-raciais seriam mais verticais e hierarquizadas. Assim,
considerando o sistema plástico, violento das relações afetivas e sexuais entre senhores e
escravizadas, Oscar fala da existência de amasiamento na Colônia. Disso, surgirão personagens
negros intelectuais que historicamente foram, por si ou por outrem, embranquecidos, como
Machado de Assis e Luiz Gama.
Sobre Luiz Gama, jornalista, advogado e abolicionista negro, o qual Oscar faz referência,
considerando-o como um dos personagens que o “tempo todo se esbranquiçaram”, nesse caso, há
imputação de um embranquecimento. Há que se fazer uma ponderação quanto a essa questão, ou
seja, há que se registrar que Luiz Gama sempre se viu como negro e foi considerado negro, ou
seja, além de ter havido por ele uma autoidentificação como negro, houve uma heteroidentificação
racial que sempre foi imputada a ele. E em seus espaços de atuação, principalmente nos jornais do
século XIX, Gama sempre lutou em prol de uma identidade negra desvinculada de determinismos
raciais. Para Gomes (2008), Luiz Gama contribuiu para subverter o imaginário produzido pelas
teorias raciais do século XIX, constituído por um profundo processo de “coisificação”,
precarização e inferiorização que limitava o ser humano negro a apenas “peça, coisa”. Dessa
forma, ele “protagoniza uma forma de representação original do sujeito negro veiculada pela
imprensa da época e com a qual pretende intervir na cultura.” (GOMES, 2008, p. 5).
Considera-se que o processo histórico de branqueamento de personagens negros e negras
se localiza, principalmente no final do século XIX, como política de estado brasileiro, cujo objetivo
central era a constituição da nacionalidade em prol do progresso e da civilização, livrando-se da
considerada gangrena nacional, as populações negras e indígenas. As teorias raciais em voga nesse
período, baseadas em determinismos biológicos e culturais, arrolavam características racializadas
extremamente inferiorizantes, estigmatizantes e depreciativas para a raça negra, alegando que ela
seria inculta, bárbara, incivilizada, atrasada, constituindo num verdadeiro estorvo para a entrada
do Brasil no rol de nações desenvolvidas e civilizadas. A solução para tal “problema” seria a vinda
financiada pelo Estado de imigrantes europeus para trazer para o país sangue vivaz, energético e a
marca branca. Daí, “pegava mal” divulgar para o mundo, por exemplo, personagens
extraordinários, como Machado de Assis e Luiz Gama, como negros, que, muitas vezes, eram
embranquecidos institucionalmente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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