DA Sebenta JCA
DA Sebenta JCA
DA Sebenta JCA
Apontamentos
ÍNDICE
DIREITO ADMINISTRATIVO I
Administração 5
1.1. Introdução 5
1.4. Crítica das concepções negacionistas e dualistas das posições subjectivas dos particulares 11
2. Concepções actuais 13
3. Administração autónoma 26
DIREITO ADMINISTRATIVO II
2.2. Consequências da evolução do princípio da legalidade no quadro das fontes do Direito Público,
3. O poder discricionário 44
2. As funções do procedimento 66
5. Validade e eficácia 78
5.1. Invalidade 80
Bibliografia 93
moderno teve, contudo, uma infância traumática, e ainda hoje é marcado por várias
psicanálise cultural.1
dispersa que existia anteriormente. Proclamavam-se pela primeira vez, num cenário de
fundo, uma contraditória continuidade entre o Ancien Régime e o Estado liberal. Neste
1
VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. Ensaio sobre as Acções no Processo
Administrativo (2.ª ed.), Coimbra, Almedina, 2009, pp. 9 e ss.
2
O princípio da separação de poderes, teorizado por Montesquieu, consiste num reconhecimento de forças
político-sociais diferentes que mutuamente se equilibram, constituindo as bases de um Estado moderado. Para
uma síntese da evolução deste princípio, vide LUÍSA NETO, “O Estado de Direito democrático e as leis de valor
reforçado”, in AAVV., Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, Coimbra, Coimbra
Editora, 2003, pp. 467-474.
consequências são ainda visíveis nas concepções doutrinárias e legislativas deste ramo do
Direito; um trauma inicial que condicionou nos séculos seguintes a relação dos poderes
1.1. Introdução
A organização e a evolução dos modelos de exercício da função administrativa reflectem
Administração Pública, que não conhecia ainda o desenvolvimento que veio a imprimir-lhe
àqueles que a lei expressamente conferia, sendo que também a lógica anti-intervencionista
do Estado liberal implicava uma relativa redução da produção legislativa. Ao indivíduo era,
perdurou até ao final do século XIX e teve no acto de autoridade o seu instrumento
privilegiado de intervenção.
finais do século XIX e o final da Primeira Guerra Mundial, vieram pôr novos desafios ao
poder político, chamando o Estado a desempenhar funções até então inéditas de natureza
3
Nesta evolução, que tem início com as políticas sociais de Bismarck, o Estado começa por intervir no domínio
do Direito do Trabalho e na regulação dos primeiros sistemas de segurança social; já numa fase posterior,
verifica-se a regulação centralizada da actividade económica. Hoje, identificamos nas funções do Estado uma
dimensão primordialmente prestadora, servida pela chamada Administração constitutiva. Para um
aprofundamento deste conceito, vide JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional – tomo V (Actividade
Constitucional do Estado), 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2000, pp. 8-39.
sociais vastas e transversais vem convocar o Estado a uma acção tendente, e.g., à correcção
administrativa.
para assumirem uma natureza cada vez mais prestadora e constitutiva, desempenhando a
lei ao caso concreto e na execução do direito, mas que implicam a ideia de uma capacidade
que são moldados pelas constituições. É, com efeito, na constituição que se evidencia se um
determinado Estado tem uma natureza mais liberal, onde a Administração Pública cumpre
sobretudo uma função associada à segurança, ou mais social, com uma intervenção
indivíduos para o Estado, acompanhado por uma desconfiança e insatisfação dos agentes
privados, com a crescente falta de legitimação dos poderes públicos e mesmo o alheamento
dos cidadãos em relação aos fenómenos políticos, sobretudo com a falência do modelo
4
Sobre esta nova dimensão constitutiva da Administração Pública, vide ROGÉRIO ERHARDT SOARES, “Princípio
da legalidade e administração constitutiva”, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra LVII (1981), pp. 176-179.
modelo que podemos designar como de Estado pós-social, em que, por um lado, se
sociedade) e, por outro, se confere uma importância inédita à participação dos cidadãos na
Pública deixa de ser integralmente responsável pela satisfação das necessidades colectivas,
como tarefa fundamental do Estado, que a tanto destina recursos humanos e materiais. Neste
dos poderes estaduais. A Administração Pública pode conceber-se em sentido orgânico (ou
serviços e agentes do Estado, bem como as demais pessoas colectivas públicas que asseguram
com vista à satisfação regular e contínua das necessidades colectivas de segurança, cultura e
bem-estar, obtendo para o efeito os recursos mais adequados e utilizando as formas mais
próprio de agir da Administração Pública e disciplinam as relações pelas quais ela prossiga
5
DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo (4.ª ed.), vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pp. 64
e ss.
6
IDEM, ibidem.
7
São muito numerosas as definições de Administração Pública propostas pelas doutrina. Salientamos ainda a
acepção tradicional, que entende a Administração em sentido estrito como o conjunto das pessoas colectivas
de direito público, reguladas pelo Direito Administrativo (formulação presente no art. 2.º, n.º 4, CPA), e a
dimensão privada, salientada pelas perspectivas mais recentes, que nela inclui as entidades administrativas
privadas, reguladas na sua estrutura pelo direito privado.
tradicional actua através de poderes de autoridade, o que correspondente a uma fase inicial
da organização estadual. Apesar de ainda seguida por alguns autores contemporâneos, esta é
distinguia o direito público e o direito privado através de uma ideia de finalidade, que deve
ser sempre pública ou privada. O Prof. Marcelo Rebelo de Sousa retomou esta distinção para
explicar todo o Direito Administrativo: este consiste, na sua visão, num conjunto de
equações cuja finalidade é a satisfação primária do interesse público, cuja definição cabe ao
poder político, exercido pelos órgãos superiores do Estado.9 Observamos à partida como a
utilização do termo “primária” limita esta definição: é iniludível que existem hoje outras
privado.
perspectiva do Prof. Vasco Pereira da Silva, o critério mais adequado para caracterizar o
8
MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, vol. I (10.ª ed.), Coimbra, Almedina, 2016, p. 42.
9
Neste âmbito, podemos distinguir a dimensão criadora do poder político face à dimensão primordialmente
executiva da Administração Pública.
de direito privado.
poder estadual em seu próprio benefício, o que mostra como esta concepção não deixa de
ser a de um poder próprio do Estado. Bühler define três pressupostos destes direitos: em
primeiro lugar, a existência de uma norma vinculativa; em segundo, que esta norma proteja
interesses individuais; por fim, uma efectiva tutela jurisdicional da posição individual.12
Esta construção é extremamente importante, pois permite uma distinção clara entre
face do poder estadual global que surgiram os direitos dos súbditos, que lhes são concedidos,
posição subalterna e funcional, é mais um objecto deste poder. De acordo com esta
concepção, os particulares não possuem, na esfera administrativa, senão os direitos que a lei
10
cf. AFONSO R. QUEIRÓ, “A função administrativa”, Revista de Direito e Estudos Sociais XXIV (1977), pp. 1-31.
11
Apresentada em Die subjektiven öffentlichen Rechte und ihr Schutz in der deutschen Verwaltungsrechtsprechung
(Lípsia, 1913).
12
cf. VASCO PEREIRA DA SILVA, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Coimbra, Almedina, 2016, pp. 221 e
ss.
existência de relações jurídicas com os órgãos do poder público, constitui, de certo modo,
uma novidade e uma transformação conceptual. Os particulares não são já objectos de direito
(aliás, objectos do poder público), mas sujeitos de direito, titulares de posições de vantagem
susceptíveis de oposição à Administração. Não é difícil observar como estas realidades estão
intrinsecamente ligadas. Por um lado, a afirmação da natureza dos particulares como sujeitos
de direitos é uma condição da existência de direitos subjectivos, mas, por outro, é uma
integra, naturalmente, quer posições de carácter activo, quer deveres, sujeições e outras
Hoje deve considerar-se, pelo contrário, que, numa extensão da ideia de direitos
deveres. O Prof. Vasco Pereira da Silva acentua esta lógica de igualdade entre os particulares
e a Administração: o interesse público não tem uma natureza incompatível com os direitos
dos particulares; pelo contrário, não se pode admitir uma realização unilateral do interesse
público que ponha em causa os direitos dos particulares e vice-versa, na medida em que os
particulares como sujeitos de direito integrando uma relação jurídica com direitos
1.4. Crítica das concepções negacionistas e dualistas das posições subjectivas dos particulares
Na ordem jurídica portuguesa, a protecção dos direitos dos particulares resulta não apenas
organização do poder como o escopo primordial das disposições constitucionais, refere que
Temos assim o reconhecimento de uma dimensão personalista dos particulares – o que não
o art. 212.º, n.º 3, CRP comete-lhes o julgamento das acções e recursos contenciosos que
tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e
fiscais. A Constituição fixa, assim, uma tutela jurisdicional efectiva dos particulares como
13
Neste âmbito, saliente-se o novo papel dos tribunais administrativos, que no julgamento de litígios passaram
a conceber e a utilizar o Direito Administrativo não já como um direito especial e restrito à Administração,
mas também como um direito que pode ser utilizado pelos particulares em face dos poderes públicos.
uma concepção dos particulares como titulares de posições subjectivas susceptíveis de serem
admitem um único direito subjectivo, seja ele reactivo, seja o reconhecimento de um dever
de agir da Administração).
particulares vão a tribunal apenas para colaborar com a Justiça e com a Administração, não
sendo partes em qualquer sentido processual. Esta parece, hoje em dia pelo menos, uma
concepção absurda: pois ninguém vai a tribunal se não for afectado num direito, i.e., se não
for ou vier a ser prejudicado pela Administração. A lógica tradicional de Laferrière entende
beneficiados de facto, mas não lhes sendo possível exercer posições jurídicas de vantagem.
Por outras palavras, os particulares ganham alguma coisa com a actuação administrativa, mas
se assemelha a uma posição dos particulares funciona apenas como um reflexo do Direito.
Para esta escola, é inadmissível que os particulares tenham um poder de vontade em relação
cumprimento da lei pelos poderes públicos: entende-se, assim, que em proveito dos
Nega-se, como vimos, a ideia de direito subjectivo – mais uma variante da construção
objectivista de Otto Mayer –, ainda que aparentemente no quadro da sua afirmação. Todavia,
apropriação.
2. Concepções actuais
As construções acima expostas são hoje inaplicáveis, na medida em que são incompatíveis
com quase todas as constituições; não é possível replicá-las em Portugal nem nos restantes
público no respeito pelos direitos dos particulares e consagram a tutela jurisdicional efectiva
existência de direitos subjectivos, interesses legítimos e interesses difusos. Esta trindade foi
amplamente adoptada em Portugal, por autores como os Profs. Freitas do Amaral, Rui
Machete ou Sérvulo Correia, e mesmo pelo Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, que defende uma
Anteriormente dominante, é uma concepção que tende hoje a ceder em face da evolução do
interesses legítimos (ou legalmente protegidos) e interesses difusos, ambos com protecções
14
vide MARCEL LALIGANT, “La notion d’intérêt pour agir et le juge administratif”, Revue du Droit Public et de la
Science Politique en France et à l’Étranger LXXXVII (1971), pp. 43-82.
(tribunais judiciais). Esta divisão encontra uma justificação histórica, mas nunca vigorou em
matéria de interesses.15
i.e., uma norma dirigida ao funcionamento da Administração, não aos direitos dos
utilizada pelo Prof. Freitas do Amaral.16 Apesar de esta distinção se ter generalizado, em
ambos tratados por igual e concebidos, do ponto de vista legislativo, como iguais.17
Marcelo Rebelo de Sousa justificam a distinção com o “amor à verdade”: de um lado, há uma
protecção directa (direitos subjectivos); doutro, uma protecção indirecta (a norma dirige-se
à Administração). Esta visão é criticada pelo Prof. Vasco Pereira da Silva: como pode uma
forma indirecta? Estamos sempre perante protecções jurídicas, quer num caso, quer noutro
– pelo que a distinção carece de sentido: é a mesma coisa dizer que A. tem direito a uma coisa
e que B. tem o dever de fazer a mesma coisa em benefício de A.; este dever da Administração
legalmente estabelecido existe no interesse dos particulares, e tal como no Direito Civil, um
única distinção entre direito subjectivo e interesse legítimo é o modo como uma norma
15
Desde os finais do séc. XX (1998), a legislação do contencioso administrativo e a própria lógica constitucional
criaram em Itália áreas de giurisdizione esclusiva dos tribunais administrativos (viz., Saúde, Urbanismo,
Ambiente, realidades sociais).
16
Da segunda situação emerge, não obstante, uma protecção dos particulares.
17
Deve rejeitar-se, por conseguinte, a tese de que vigoram regimes jurídicos distintos, proposta pelo Prof.
Marcelo Rebelo de Sousa.
Ainda segundo esta teoria, os interesses difusos seriam, de certo modo, “direitos de
terceira ordem”. Em primeiro lugar, não são direitos criados pelo legislador ordinário, mas
resultam de previsões constitucionais. Pergunta-se, contudo: não são também criados pelo
chamou-lhes, não obstante, direitos. Segundo o Prof. Vasco Pereira da Silva, esta distinção
não tem arrimo no ordenamento actual, correspondendo antes à lógica do séc. XIX de um
Segundo o Prof. Freitas do Amaral, numa posição mais tarde retomada pela Prof.
uma tutela objectiva de um bem não significa que não possa existir um aproveitamento
de um bem no art. 66.º CRP, que estabelece o direito fundamental ao ambiente. Um bem,
pela sua natureza pública, não deixa de poder ser aproveitável individualmente: e.g.,
ninguém pode ser impedido de ir a uma praia: mas pode haver uma utilização concessionada
de gasolina numa auto-estrada exploram espaços comerciais inseridos num espaço público,
tal como uma esplanada comercial colocada na via pública. Observamos aqui sempre uma
uma confusão entre uma protecção objectiva conferida pela ordem jurídica e os interesses
subjectivos. Segundo o Prof. Vasco Pereira da Silva, não há qualquer justificação teórica,
18
OTTO MAYER, Deutsches Verwaltungsrecht, vol. I (6.ª ed.), Berlim, Duncker & Humblot, 1969, p. vi.
reactivos, teorizados por Eduardo García de Enterría. Esta construção concebe o poder de
ir a tribunal (i.e., o direito de reagir contenciosamente) como o único direito que está em
causa na perspectiva administrativa. O Prof. Vasco Pereira da Silva rejeita também esta visão:
ninguém põe em causa que o direito de ir a juízo seja um direito subjectivo, mas ele existe
para a tutela de outros direitos, o que não significa que os outros direitos de base não
existam.19
logo o due process of law. Esta realidade contemporânea gera não apenas uma imediata
fronteiras administrativas, ambas no domínio das pescas: o caso das “Gambas e Tartarugas”
(Shrimp-Turtle, de 1994) e o caso do “Atum azul” (Tuna-Dolphin I e II, de 1972 e 1992). Para
que estes casos se pudessem ter verificado, alterou-se, nas últimas cinco décadas, uma série
Internacional Público, é a ideia de que apenas os Estados são sujeitos de direito: hoje, pelo
contrário, os Estados são sujeitos coabitantes com outros sujeitos, por vezes designados
19
Alguns autores, como os Profs. Mário Aroso de Almeida e Rui Medeiros, desenvolvem ainda hoje uma
doutrina assente na noção de direito reactivo.
20
A designação “Direito Administrativo sem fronteiras” pretende agregar um conjunto de denominações
comummente utilizadas neste domínio (viz. Direito Administrativo transnacional, internacional ou direito
internacional administrativo).
não-governamentais.22
apenas aos Estados, que os próprios Estados respondem também perante outras entidades
e que essas normas são directamente aplicáveis, prescindindo de intermediação estatal. Por
Estado.23 Este entendimento surgiu em primeiro lugar no quadro dos direitos humanos,
diversos domínios. Naturalmente, desta aplicação resultam também litígios, a que não é
alheia a discussão sobre a prevalência das normas internacionais sobre as normas internas,
prevalência é real.
unilateral dos Estados Unidos violava, contudo, as regras internacionais do GATT (General
Agreement on Tariffs and Trade), um tratado em matéria comercial de 1947. Para a resolução
do litígio foi estabelecido um tribunal arbitral, composto por juízes norte-americanos, que
porque fora tomada abruptamente e sem consideração pelo due process of law (na medida
em que não tinha havido audiência prévia dos exportadores, que eram os principais
21
Cf. MARIA LUÍSA DUARTE, “O Estado e os outros: quem é quem no Direito Internacional”, in M. L. Duarte,
R. Lanceiro e F. Abreu Duarte (edd.), Ordem Jurídica Global do século XXI: Sujeitos e Actores no Palco Internacional,
Lisboa, AAFDL, 2020, pp. 19-77.
22
e.g., a grande maioria das presenças na actual Assembleia Geral da ONU é de entidades não estaduais.
23
SABINO CASSESE, “Gamberetti, tartarughe e procedure. Standard globali per i Diritti Amministrativi
nazionali, in S. Cassese (ed.), Oltre lo Stato, Roma, Laterza, 2006, p. 73.
afectados pela decisão); em segundo, refutando a argumentação de que não era possível
chamar a juízo os pescadores asiáticos (e ainda na medida em que pelo menos os cidadãos
ouvidos). Além disso, entendeu o tribunal que as normas existentes para a protecção de
tartarugas não podiam ser utilizadas para o embargo à importação de gambas, uma vez que
não havia o mesmo fim.24 A decisão administrativa norte-americana foi, assim, entendida
pelo tribunal como “arbitrary and capriccious” e materialmente ilegal, pela violação do
princípio da proporcionalidade.
Este caso foi precedido pelos Tuna-Dolphin I e II, de 1972 e 1992, que envolveram
o Japão, a Austrália, os EUA e o Canadá. Na sequência do acordo das Nações Unidas sobre
o Direito do Mar, criou-se uma comissão mista, com o nome Expanded Commission,
composta por entidades administrativas dos Estados signatários e por pescadores, que
quotas de pesca de todos os países que integram o tratado; já em caso de violação das
normas, a comissão converte-se em tribunal para julgar litígios. Um conflito nesta matéria
entre vários Estados seria, no quadro constitucional, irresolúvel. A área comercial – como,
Uma realidade paralela deve ainda ser tida em conta: trata-se do Direito
24
Trata-se de uma situação de desvio de poder (ou desvio de fim), que se verifica na discrepância entre o fim
legalmente estabelecido e o fim efectivamente protegido.
25
Estas relações são, hoje, particularmente visíveis no plano da protecção ambiental, em que a jurisdição
pública internacional assume um carácter largamente administrativo.
26
Se recuarmos aos primórdios do Direito Administrativo, vemos, por exemplo, como Otto Mayer, antes do
Deutsches Verwaltungsrecht (Lípsia, 1895), escreveu, durante duas décadas, uma Theorie des Französischen
Verwaltungsrecht (Estrasburgo, Trübner, 1886), reconhecendo largamente, também no prefácio ao manual
alemão, a relevância das perspectivas comparatistas. O próprio Laferrière foi muito influenciado pelo Direito
Comparado, como também a generalidade dos autores franceses que precederam Hauriou.
de ser um recurso da doutrina ou uma fonte de inspiração legislativa “para passar a ser
process of law. Esta realidade administrativa supra-estadual recebe hoje ainda os contributos
dos primórdios deste ramo do Direito, com uma nova realidade internacional de realização
estrangeiros..
27
VASCO PEREIRA DA SILVA, “O impacto do Direito Administrativo sem fronteiras no Direito Administrativo
português”, in Direito Constitucional e Direito Administrativo sem Fronteiras, Coimbra, Almedina, 2019, p. 42.
28
M. HAURIOU, Précis de Droit Administratif et de Droit Public (12.ª ed.), Paris, Sirey, 1933.
29
Veja-se também, em Portugal, o contributo da perspectiva comparatística para a evolução da concepção
actual de contrato administrativo e a discussão levada a cabo, neste âmbito, pelos Profs. Maria João Estorninho,
Diogo Freitas do Amaral e João Caupers.
Pública. Esta obedece a uma estrutura hierárquica – constituída por vínculos jurídicos de
onde resultam relações de supra e infraordenação entre órgãos ou entre órgãos e serviços –,
abstractos que impõem a adopção de uma determinada conduta em face de alguma situação
futura. Há que ter em conta ainda o poder de supervisão, que consiste na faculdade de o
ordens e instruções dos seus legítimos superiores hierárquicos, desde que estas ordens
entidade dependente. Distingue-se assim do poder de direcção, que permite dar ordens ou
permitem a uma pessoa colectiva pública intervir na gestão de outra pessoa colectiva, nos
quanto aos fins, em tutela de legalidade e de mérito; quanto ao conteúdo, compreende cinco
que não prejudica, contudo, o carácter unitário do Governo.30 Esta estrutura orgânica,
prevista no art. 183.º da Constituição, era tradicionalmente fixada pela Lei Orgânica do
Governo: esta era, todavia, uma lei em sentido impróprio, pois revestia a forma de decreto-
pela jurisprudência nas décadas de 50 e 60; a competência é, assim, de cada ministro, sem
30
De acordo com o Prof. Freitas do Amaral, os ministérios podem ser classificados em quatro grupos: os
ministérios de soberania, que correspondem às principais funções do Estado soberano (e.g., Negócios
Estrangeiros, Defesa Nacional), económicos, com funções de natureza económica, financeira e monetária (e.g.,
Finanças, Economia, Planeamento), sociais (e.g., Educação, Saúde, Cultura, Trabalho e Segurança Social) e
técnicos (e.g., Obras Públicas, Urbanismo, Ambiente ou Infraestruturas).
do Governo).31
coordenação e de controlo da actividade geral dos diferentes ministérios (art. 201.º, n.º 1,
CRP); já do ponto de vista político, nele reside a fonte principal da legitimidade democrática
Durante anos, pela sua importância política, a Presidência do Conselho teve o estatuto de
super-ministério, composto por numerosos secretários de Estado, numa lógica que ainda
tarefas de gestão.
do Governo, realizada de forma directa (os ministros são distinguidos pelas suas diferentes
embora se possa dizer que o elenco das atribuições não se encontra exaustivamente
Governo o planeamento a nível nacional, com base nas leis das grandes opções do plano, e
fazê-las executar, com funções de coordenação e exercício (art. 199.º, al. a), CRP); a Lei das
que cada vez mais se desdobra em planos para os vários domínios de actividade (e.g., planos
(art. 199.º, al. b), CRP). A execução orçamental, em grande medida condicionada
actualmente pelo Direito da União Europeia, é missão exclusiva do Governo, tal como a
31
Os secretários de Estado podem substituir os ministros em caso de ausência ou impedimento (art. 185.º, n.º
2, CRP).
Cabe ainda ao Governo fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis
(art. 199.º, al. c), CRP). Os regulamentos são actos normativos gerais e abstractos: neste caso,
trata-se de regulamentos executivos, que têm uma ligação filial a uma lei. A par destes,
das necessidades colectivas (art. 199.º, al. g), CRP). Esta acção compreende sobretudo a
infra.33 Face à realidade tradicional da função administrativa, o art. 199.º CRP ampliou
outras palavras, podemos definir a administração indirecta como o exercício por entidades
da administração indirecta foram teorizadas pelo Prof. Freitas do Amaral, num modelo que
actualmente pontuado por algumas fugas. A designação administração indirecta reflecte, aliás,
32
vide infra, Parte II, §IV.
33
Já os regulamentos são “gerais e abstractos”, segundo o CPA (mas rectius, “gerais ou abstractos”, segundo o
Prof. Vasco Pereira da Silva, de acordo com a natureza da ordem jurídica portuguesa).
entidades que gozam de autonomia, mas existem sempre para o cumprimento das funções
Este modelo, correspondente em larga medida à realidade dos anos 80, é composto
intimamente ligados ao Estado, funcionando como uma direcção-geral, mas com relativa
(i.e., não associativo), criadas por acto legislativo (art. 9.º, n.º 1, LQIP), que desempenham
funções administrativas de carácter não empresarial (que lhes são cometidas por lei: arts.
3.º, n.º 3, e 8.º, n.º 3, LQIP) e que poderiam funcionar como direcções-gerais, mas que se
fundacional (arts. 3.º, n.º 1 e 2, e 51.º LQIP, art. 49.º, n.º 4, LQF): as fundações públicas
(de que é exemplo a ADSE) alocam um determinado património público, que lhes é
interesse social. O modelo de fundação pública não é, todavia, aplicável a outras realidades
que não os activos financeiros, sendo, por conseguinte, descabido, no quadro da Lei das
34
Assim, por exemplo, se um ministério entende que, para certa actividade, seriam necessários meios
financeiros disponíveis de forma mais imediata, pode optar por criar um instituto em vez de uma direcção-
geral. Não deixa de haver alguns desvios a esta lógica de funcionamento: e.g., o Direito da União Europeia
obriga a que a agência do Ambiente seja responsável pelas avaliações de impacte ambiental; em Portugal,
porém, o Ministério do Ambiente libertou-se dos seus serviços de direcção-geral, delegando-os na Agência
Nacional do Ambiente, mas esta entidade funciona como uma direcção-geral, dependendo do Ministério, pelo
que, tendo embora poderes de autoridade máxima, não é autónoma nem independente.
35
Neste sentido, o Instituto da Juventude ou a Agência Nacional do Ambiente, por exemplo, poderiam ser
ambos direcções-gerais. Na distinção entre serviços e institutos públicos importa, assim, atender à
personalidade jurídica, que apenas os institutos têm; os serviços, por seu turno, constituem uma parte da
orgânica de uma pessoa colectiva pública.
Universidades, chamar fundação a uma universidade, que é sempre forçosamente, pela sua
são reguladas por uma lei própria, o Regime Jurídico do Sector Público Empresarial
Estado entende que estão mais ligadas ao exercício da respectiva função e que, dotadas de
capitais públicos, mantêm o estatuto de pessoas colectivas públicas (criadas por acto jurídico-
público, com direcção e capitais públicos), enquanto outras são sociedades comerciais
Todavia, todas são empresas de capitais públicos, geridas de forma pública e visando a
terem lucro, tendo natureza pública e fins de carácter público; todavia, são entidades de
natureza económica. Portanto, os encarregados da gestão das empresas ditas públicas, como
actuam no mercado e ali exercem funções de interesse público, devem garantir o lucro, sob
pena de essas tarefas deixarem de ser realizadas. Há aqui, portanto, uma lógica para que estas
36
Esta autonomia resulta de previsão constitucional que impõe a “autonomia estatutária, científica, pedagógica,
administrativa e financeira das universidades públicas” (art. 76.º, n.º 2, CRP).
37
cf. art. 9.º, n.º 1, RJSPE. Nos termos da mesma lei (art. 24.º, n.º 1), é aprovado por resolução do Conselho de
Ministros “o conjunto de medidas e directrizes relevantes para o equilíbrio económico e financeiro do sector
empresarial do Estado.”
Contas (art. 26.º RJSPE), mas têm uma quase total autonomia privada no exercício das suas
Estas entidades foram chamadas, na expressão do Prof. João Caupers depois generalizada,
junto das embaixadas e que devem ser consideradas dentro da administração indirecta do
Estado.38
3. Administração autónoma
Além da administração indirecta do Estado, há que considerar a administração autónoma,
prosseguem fins próprios e são dirigidas por órgãos eleitos pela vontade dos respectivos
199.º, n.º 4, al. d), da Constituição.39 O exemplo paradigmático são as autarquias locais,
mas desde a lição de agregação do Prof. Jorge Miranda, sobre as ordens profissionais, tem
sido genericamente aceite pela doutrina a tese então apresentada, segundo a qual estas
38
O Prof. João Caupers distingue também uma administração periférica interna, categoria que o Prof. Vasco
Pereira da Silva considera desnecessária.
39
A administração autónoma do Estado prossegue interesses públicos próprios das pessoas que a constituem,
sendo auto-regulada e definindo com total independência a orientação da sua acção, sem se sujeitar à hierarquia
ou à superintendência do Governo.
Amaral.40
antes dos próprios Estados, pois a organização e os fins de natureza local sempre precederam
os fins de natureza estadual (e.g., as cartas de alforria, os forais, etc.) e tiveram, na nossa
história, uma função primordial em matéria de organização territorial. Mais do que uma
próprios, têm competências muito amplas, em certos casos rivalizando mesmo com as
integralmente dos municípios – embora este não seja o modelo adoptado em Portugal, que
é marcado por uma forte tradição centralista –, sendo também possível a opção por um
40
As ordens profissionais, actualmente reguladas por lei-quadro própria (o Regime Jurídicos das Associações
Públicas Profissionais, lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro), são também associações que precedem o Estado; em
Portugal, com o corporativismo, as associações profissionais adquiriram o estatuto de organizações públicas. Têm
como função regular o exercício de determinada profissão, auto-organizada, com total autonomia e órgãos
próprios, obedecendo ainda a uma regra de unidade (i.e., não podem existir outras associações públicas com
objectivos e jurisdição semelhantes) e prevendo inscrição obrigação para o exercício da profissão. As ordens e as
câmaras profissionais distinguem-se de acordo com o grau académico exigido aos associados: as ordens agregam
profissões que exigem um curso superior, enquanto as câmaras profissionais regulam o exercício de profissões
que exigem apenas um curso intermédio (art. 11.º RJAPP).
Também as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira se integram na administração autónoma do Estado,
embora com especificidades de regime que as distinguem das autarquias e das associações públicas. As Regiões
Autónomas são pessoas colectivas de direito público, de base populacional e territorial, com fins específicos, um
estatuto político-administrativo próprio (que reveste a forma de lei reforçada) e órgãos de governo próprios (as
Assembleias Legislativas Regionais e os Governos Regionais). A defesa dos interesses regionais encontra-se
limitada pela integridade e soberania do Estado português e pela subordinação à Constituição da República.
41
Por descentralização, em sentido jurídico, entende-se o desempenho das funções do Estado por uma
pluralidade de pessoas colectivas, em vez de por uma só pessoa.
42
Identificam-se habitualmente quatro elementos indispensáveis no poder autárquico: um território, um
agregado populacional, interesses comuns e órgãos representativos.
43
A Administração Central do Estado compreende os órgãos e serviços cuja competência se estende a todo o
território nacional. Os principais órgãos centrais são o Presidente da República, a Assembleia da República, o
Governo e os tribunais.
permanente dos assuntos municipais (art. 33.º da Lei das Autarquias Locais). A lógica de
câmara, confiados aos vereadores (em número que varia de acordo com a dimensão do
têm apenas duas competências próprias: a conservação dos cemitérios e dos jardins
públicos (art. 7.º do Regime Jurídico das Autarquias Locais, lei n.º 75/2003, de 12 de
freguesias podem assumir tarefas mais importantes, o que, no caso das grandes cidades, é
muito frequente. Deve salientar-se ainda a diferença política entre as freguesias urbanas e
rurais: neste último caso, sendo por vezes as únicas instituições públicas próximas dos
consequências na falta de organização a nível regional, por um lado, e reflecte, por outro,
a dimensão regionalizada da União Europeia, que é representada pelas CCDR. Estas são
nomeadas pelo Governo e exercem funções estaduais a nível regional, sobretudo nos
44
A delegação de poderes é um acto que permite a um órgão administrativo autorizar, dentro dos limites da lei
e desde que para tal exista uma lei de habilitação (art. 111.º, n.º 2, CRP), outro órgão ou agente a praticar actos
administrativos sobre matérias da competência do delegante. A delegação não é incompatível com os princípios
da irrenunciabilidade e da inalienabilidade da competência, como dispõe o art. 36.º CPA.
quadro regional, cada ministério exercendo funções regionais de acordo com a sua própria
Se a Constituição, com efeito, criou regiões administrativas, estas acabam por não
existir, uma vez que o procedimento legislativo adoptado para a sua criação constituiu uma
espécie de lei-travão. Estão dependentes de uma lei geral, orgânica, que as crie em
simultâneo, mas posteriormente, cada uma das regiões criadas pela lei geral tem de ser
autonomizada por outra lei, que deve sujeitar-se a um referendo – prevendo-se, aliás, a
DIREITO ADMINISTRATIVO II
1. Introdução
A protecção do meio ambiente, a transição digital e a Saúde constituem hoje, com a
públicos, em torno dos quais se articulam políticas públicas de conteúdo reformista, apoiadas
económico dos Estados-membros da União Europeia. Esta nova realidade europeia obrigou,
por vezes, mesmo a revisões constitucionais em países cujas constituições são menos
tem sofrido alterações politicamente motivadas (veja-se, ao nível dos vectores fundamentais
administrativo especial).
45
ROGÉRIO ERHARDT SOARES, “Princípio da legalidade e administração constitutiva”, p. 169.
é a fonte máxima do poder, impondo-se a todo o exercício dos poderes públicos. Todavia, a
públicos, regidos por um droit inégalitaire que no interesse público fundava quaisquer
princípio de reserva de lei quanto a um princípio de preferência de lei: assim, a lei fixava
existência de lei), e nesse domínio reservado se impunham sempre à sua vontade. Este
desdobramento ainda hoje se aplica, ainda que deva reconhecer-se que corresponde a uma
46
Embora modernamente decorra do princípio da legalidade um princípio da submissão da Administração
Pública aos tribunais, que apreciam a actividade administrativa. Para uma análise de um dos casos fundamentais
do Direito Administrativo inicial, o Caso Agnès Blanco (verdadeira “certidão de nascimento” do Direito
Administrativo), passado em Bordéus em 1873, vide VASCO PEREIRA DA SILVA, Em Busca do Acto Administrativo
Perdido, pp. 36 e ss.
47
Neste sentido, observava JEAN RIVERO (“Existe-t-il un critère du droit administratif?”, Revue de Droit Public et
de la Science Politique en France et à l'étranger VII (1953), p. 279), que “[l]es règles de droit administratif se
caractérisent par les dérogations, au profit des personnes publiques, des droits reconnus aux particuliers dans
leurs relations, soit dans le sens d’une réduction de ces droits.”
48
Numa perspectiva moderna, salienta MANUEL AFONSO VAZ (Lei e Reserva da Lei, Porto, Universidade Católica
Portuguesa, 1992, p. 165), contrariando a ideia da legitimação através do processo, que há que encontrar “uma
legislativa dos parlamentos era muito limitada, o que significava que as restrições legais à
aos poderes públicos tudo fazer em todos os domínios não regulados pela lei. O formalismo
pela legalidade, “não nos aparece hoje em dia como uma forma típica da actividade do
Estado, mas antes como uma das maneiras por que se manifesta a sua autoridade (…),
do princípio da legalidade como reportado a um conteúdo formal (i.e., para além dos
direitos fundamentais, o Código Civil e pouco mais) deixava uma margem de actuação
extremamente livre. Eram escassas as leis que limitavam a Administração e muitas vezes
executoriedade (que consiste no poder de autotutela efectiva das próprias decisões),51 que
posição sustentável para quem procure os fundamentos de validade das soluções ou decisões jurídicas, e não
apenas o saber como e quem pode decidir.”
49
M. CAETANO, Manual de Direito Administrativo (5.ª ed), Coimbra, Coimbra Editora, 1960, p. 8. Para a
evolução do conceito de poder administrativo entre as funções do Estado, vide DIOGO FREITAS DO AMARAL,
Curso de Direito Administrativo, vol. II (4.ª ed.), Coimbra, Almedina, 2018, pp. 9 e ss.
50
Sobre a construção dos “privilèges exorbitants du droit commun”, vide, por todos, JACQUES CHEVALLIER,
“Les fondements idéologiques du droit administratif français”, in J. Chevallier (ed.), Variations autour de
l’Idéologie de l’Intérêt Général, vol. 2, Paris, Presses Universitaires de France, 1979, pp. 38 e ss. Para uma síntese
do pensamento de Duguit sobre as funções do Estado, vide “Des fonctions de l'État moderne: étude de
sociologie juridique”, Revue Internationale de Sociologie (1894), pp 161-197.
51
Esta realidade era desconhecida, naturalmente, do Direito Inglês, que desde sempre previu um sistema
chamado de administração judiciária, consequência da rule of law, onde a Administração Pública se encontra
subordinada, como os particulares, ao direito comum, não existindo privilégios nem prerrogativas de
autoridade pública. Do mesmo modo, não existe a figura da executoriedade, tendo sempre os órgãos
administrativos – que carecem de autoridade própria – de recorrer ao poder judicial para executar as suas
decisões em casos de litígio.
Presumia-se, aliás, que as ordens emitidas pelos poderes públicos seriam necessária
estão sempre determinadas pela lei na sua actuação e subordinam-se a regras e princípios
de Direito Público que restringem a sua actividade; só os particulares são livres, não a
fazer sentido. Nem faz sentido considerar o princípio da legalidade na sua dimensão
meramente formal (pois deve ser materialmente alargado, não se esgotando na lei, mas
52
“A este poder da Administração [sc. a tomada de resoluções obrigatórias para os particulares e que, havendo
inobservância, podem ser coercivamente impostas], que a coloca no mesmo plano da Justiça e em situação
privilegiada relativamente aos meros particulares para a prossecução dos interesses públicos, chamamos
privilégio da execução prévia.” (M. CAETANO, Manual de Direito Administrativo (5.ª ed), p. 227; realce nosso); cf.
ainda a justificação da executoriedade aduzida por ÉDOUARD LAFERRIÈRE, um dos autores que mais
influenciaram o pensamento do Prof. Marcello Caetano, no Traité de la Jurisdiction Administrative et des Recours
Contentieux, vol. I (2.ª ed.), Paris, Berger-Levrault, 1896, p. 647.
53
vide J. CHEVALLIER, loc. cit., p. 39, e a problematização actual da presunção de legalidade apresentada por MÁRIO
AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo (9.ª ed.), Coimbra, Almedina, 2022, pp. 349-371.
54
Observa JEAN-MARC FÉVRIER (“L’administré face au procès administratif”, Les Petits Affiches XCIII (1998), p.
13): “Telle est la caractéristique même du droit administratif, un corps de règles conférant des prérogatives
exorbitantes en raison du but supérieur recherché par la puissance publique.”
55
Uma posição com origem em MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, vol. I (10.ª ed), pp. 506
e ss.
que é entendido o princípio da legalidade devem ser amplos e abertos, e todos os princípios
definitórios: a lei não lhe confere a prerrogativa de definir o direito aplicável ao caso
Administração, num Estado de direito, tem poderes e não privilégios – e apenas os poderes
que resultam de previsões legais. Como vimos, não é possível incluir entre as características
quantias monetárias não comportam actuação coerciva. Por conseguinte, os mitos em que
assentava a construção tradicional do Direito Administrativo não fazem hoje sentido, não
visão típica dos Direitos Reais, como uma propriedade limitada pelas suas extremas. Esta
visão é destituída de sentido em termos teóricos: a legalidade não determina nada que não
possa decorrer da sua própria eficácia, e o princípio da legalidade deixou hoje de ser
a obrigação de respeitar as leis existentes) para ser visto na sua dimensão positiva – tanto o
56
V. PEREIRA DA SILVA, “Do princípio da legalidade à juridicidade. O sentido actual das fontes de Direito Público”,
Osservatorio sulle Fonti X (2017), pp. 5 e ss. (publicação on-line, disponível em https://www.osservatoriosullefonti.it).
esteja generalizada na doutrina (e.g., Sérvulo Correia). A definição da lei deve partir de ideias
apriorística, como numa lógica de propriedade. Há que abandonar esta visão do princípio da
legalidade, entendendo-o não apenas em termos formais, mas materiais; há ainda que
considerar que abrange normas e princípios jurídicos no quadro de uma ordem jurídica em
maneira diversa da realidade meramente teórica afirmada nos manuais, mas destituída de
sentido concreto.
prestadora, e mais tarde com o Estado pós-social e a Administração estrutural, levou a que,
A defesa deste alargamento a uma lógica mais ampla na ordem jurídica portuguesa
foi feita pela primeira vez pelo Prof. Rogério Soares58 e, depois, pela Prof. Maria da Glória
redacção, estabeleceu o art. 3.º, n.º 1, CPA que “[o]s órgãos da Administração Pública devem
57
Para uma perspectiva moderna da reserva de lei, vide JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional –
tomo V, pp. 196 e ss., 217-224; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição (7.ª ed.),
Coimbra, Almedina, 2003, pp. 671 e ss.
58
ROGÉRIO ERHARDT SOARES, Interesse Público, Legalidade e Mérito, Coimbra, Atlântida, 1955; “Princípio da
legalidade e Administração constitutiva”, pp. 161-191.
59
MARIA DA GLÓRIA GARCIA, Da Justiça Administrativa em Portugal: sua Origem e Evolução, Lisboa, Universidade
Católica Portuguesa, 1994.
poderes vinculados, quer os poderes discricionários, uma vez que a discricionariedade não
pode constituir uma excepção à legalidade (nas palavras do Prof. Rogério Soares, “a
actividade da Administração é uma parte integradora dum sistema mais subtil que o da
construção geométrica «criar direito – aplicar direito – verificar direito». Por isso, a
Administração está, ainda mesmo onde parece que lhe é reconhecida uma liberdade,
subordinada ao direito.”60).
Em 2015, manteve-se esta formulação, embora com uma alteração ao texto do n.º 2.
com preterição das regras estabelecidas no n.º 1. Interpretado de maneira literal, a nova
necessidade, que devem ser fixadas pelo Parlamento em cada caso) e é meramente repetitiva
se interpretada à luz do disposto sobre o estado de excepção constitucional (art. 19.º CRP).
uma submissão formal às leis, decretos-leis e decretos legislativos regionais, e por outro, uma
Direito da União Europeia (que estabelece fontes directamente aplicáveis a toda a ordem
jurídica nacional e onde também se integra o direito dos Estados-membros, numa lógica de
Pública61). Lei, na nossa ordem jurídica actual, encerra todos estes significados.
com um princípio de eficácia directa, mas ao mesmo tempo acrescendo ao direito interno.
60
R. E. SOARES, “Princípio da legalidade e Administração constitutiva”, pp. 190-191.
61
vide V. PEREIRA DA SILVA, “O impacto do Direito Administrativo sem fronteiras no Direito Administrativo
português”, pp. 45 e ss.
Neste contexto, está em causa o exercício da função administrativa em comum, com regras
ambientais, energéticas, agrícolas ou industriais. Esta é também uma realidade nova, distinta
que atender, assim, aos contributos do Direito da União Europeia. A Administração Pública
é uma realidade de nível europeu em todos os domínios, tendo sido afastada, por exemplo,
a distinção entre contratos privados e administrativos (ainda seguida, não obstante, por
constitucional, como a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de onde deriva
o direito fundamental à Boa Administração). Deve considerar-se assim também uma dupla
Europeia, pois realiza a nível nacional as suas grandes opções, mas também este depende
tanto quanto possível, os direitos que antes garantira. A Administração está vinculada ao
62
IDEM, ibidem, pp. 57 e ss.
acto, podendo alterá-lo apenas em termos limitados e com respeito pela ordem jurídica que
à legalidade o mais amplo sentido possível, formal e material. A ideia de que o Direito
realidade política do séc. XIX estava sempre sujeita à possibilidade de mudança e de exercício
do poder constituinte originário. Por outro lado, esta realidade constitucional era, mesmo
do ponto de vista político – única dimensão em que era entendida –, de limitada eficácia, o
que decorria de alguma imunidade dos restantes ramos da ordem jurídica ao Direito
Constitucional passou a ter um papel central na ordem jurídico-política (cf. art. 18.º CRP,
imediata), estabelecendo regras e princípios válidos para todo o direito positivo e vinculando
Na actualidade, podemos dizer não apenas que mudou a relação entre o Direito
concretizam regras, princípios e valores que regulam toda o exercício dos poderes públicos
na vida em sociedade.64
63
vide supra, Parte I, §II.1.2.
64
vide FRITZ WERNER, “Verwaltungsrecht als konkretiziertes Verfassungsrecht”, in Recht und Gericht unser Zeit,
Colónia, Carl Heymanns Verlag, 1971, pp. 212 e ss.; V. PEREIRA DA SILVA, “Do princípio da legalidade à
juridicidade. O sentido actual das fontes de Direito Público”, pp. 8 e ss.
Administrativo, com a vinculação à lei e ao Direito no seu conjunto (cf. art. 3.º, n.º 1, CPA).
Do ponto de vista das fontes do Direito Público, integram assim a noção material de lei um
a sua actuação).
Para compreender este nível supralegal das fontes de Direito, Sabino Cassese65 aduz
os contributos dos casos internacionais sobre pescas para a criação de fontes de direito à
escala global. Esta abertura compreende em especial as regras procedimentais adequadas (due
process of law) relevantes para o direito interno, mas estabelecido em sede internacional, com
65
SABINO CASSESE, “Global standards for national administrative procedure”, Law and Contemporary Problems
LXVIII (2005), pp. 109-126, e “Gamberetti, tartarughe e procedure. Standard globali per i Diritti
Amministrativi nazionali, in S. Cassese (ed.), Oltre lo Stato, Roma, Laterza, 2006, pp. 72 e ss.
direito global assume naturalmente maior significado para os Estados que ainda não
que se impõe também a necessidade de uma interpretação jurisprudencial dessas normas que
Internacional Público, nesta visão plural da ordem jurídica, permite um juízo valorativo
sobre os Estados que não adoptam aqueles princípios: não se trata de valores apenas éticos
(mesmo que tenham alguma ressonância ética), mas de valores eminentemente jurídicos,
translegal que reflicta as ordens jurídicas hodiernas, em que cada vez mais se podem
identificar normas aplicáveis ao caso concreto. Estas considerações são também válidas, na
nossa ordem jurídica, para a normação infralegislativa: pois mesmo realidades jurídicas com
força inferior à legal são susceptíveis de constituir fontes do Direito. Entre nós, o exemplo
medida em que são emitidos pelos órgãos da Administração, mas que têm, não obstante,
força normativa.67
“à lei e ao Direito” (art. 3.º, n.º 1, CPA), aí incluindo os poderes vinculados e discricionários.
à lei e ao Direito encerra, por um lado, uma submissão formal às fontes imediatas da lei – na
66
vide VASCO PEREIRA DA SILVA, “Do global ao particular. O princípio da legalidade sem fronteiras”, in Direito
Constitucional e Direito Administrativo sem Fronteiras, pp. 11-34.
67
O Direito do Urbanismo, por exemplo, resulta de planos feitos ao nível municipal (os Planos Directores
Municipais), regras que, não sendo leis em sentido formal nem material, obedecem a uma lógica de legalidade.
68
Esta secção distancia-se acentuadamente do ensino do Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva.
noção material e ampla de lei onde caibam realidades supra e infralegislativas. Por outras
dos direitos dos particulares, garantida pelo art. 268.º, n.º 4, da Constituição (introduzido
da legalidade administrativa.72
69
Art. 112.º CRP: cf. JORGE MIRANDA, op. cit., pp. 173 e ss.
70
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo (5.ª ed.), Coimbra, Imprensa da
Universidade, 2017, pp. 49-54.
71
Discordamos de ANTÓNIO AUGUSTO COSTA (“A erosão do princípio da legalidade e a discricionariedade
administrativa”, Revista CEDIPRE Online XII (2012), p. 8), quando considera que “o direito positivo fundamenta
claramente este entendimento” (sc., a subordinação da Administração a um princípio abstracto de juridicidade).
Não vemos, aliás, como pode extrair-se dos arts. 112.º, n.º 7, e 266.º, n.º 2, CRP senão os princípios clássicos
da legalidade e da competência.
72
Expressão do Prof. PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública. O Sentido da Vinculação Administrativa à
Juridicidade, Coimbra, Almedina, 2003, p. 893.
73
vide ALF ROSS, Theorie der Rechtsquellen. Ein Beitrag zur Theorie des positiven Rechts auf Grundlage
dogmenhistorischer Untersuchungen, Berlim, F. Deuticke, 1929, pp. 290 e ss.
jurídico moderno,75 assente sobre uma noção normativista de constituição que estabelece
nas revisões constitucionais de 1982, 1989 e 1997. Não cabe ao intérprete ponderar princípios –
ao legislador, não ao juiz; e se os mais importantes princípios são acolhidos pelo legislador,
normação? Cada jurista apresentará uma definição diferente de princípios jurídicos. A nosso
74
Em comunicação à Associação dos Professores Alemães de Direito Público.
75
Na sua base, a noção de constituição como o conjunto de regras disciplinadoras de normas jurídicas gerais e
que constituem o nível mais elevado do sistema jurídico estadual.
76
Expressão de ALF ROSS, op. cit. A visão kelseniana do legislador negativo colide com uma concepção
material-axiológica de constituição que admite a função jurisdicional como um legislador paralelo,
desenvolvida hoje sobretudo por Robert Alexy, na senda do constitucionalismo de matriz axiológica de Rudolf
Smend. Um dos contributos mais importantes de Alexy para o edifício das fontes do Direito é justamente a
defesa de uma visão principialista da concretização dos direitos fundamentais no Estado de direito democrático.
77
Neste âmbito, mesmo a Declaração Universal dos Direitos do Homem é convertida em parâmetro axiomático
de interpretação constitucional (art. 16.º, n.º 2, CRP) não por força da sua conformidade com vectores
fundamentais do ordenamento jurídico, mas pela vontade do poder constituinte democraticamente exercido.
ordenamento jurídico globalmente considerado – o que significa que se extraem das normas
conformadores da normação, pois a validade das leis resulta da sua conformidade formal com
material com postulados axiológicos prévios.78 Não cremos, pois, que as estruturas formais
da própria juridicidade,79 pois isso equivaleria a rejeitar (no mínimo, a relegar para um plano
do Estado de direito – que, pese embora de difusão quase universal nas sociedades
revisão de 1982, com uma importante ressalva: Portugal não é apenas um Estado de direito,
controlos.”81 Em síntese, e de acordo com o princípio da vinculação do juiz à lei (art. 203.º
78
Para a distinção entre princípios e normas, vide JOSÉ LAMEGO, Elementos de Metodologia Jurídica, Coimbra,
Almedina, 2016, pp. 57-63; IDEM, Filosofia do Direito, vol. I, Coimbra, Almedina, 2021, pp. 90 e ss.
79
Entendimento de ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES, “A unidade do sistema jurídico: o seu problema e o seu
sentido (diálogo com Kelsen)”, in Digesta. Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e
outros, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, vol. II, pp. 140-145.
80
Sobre o Estado de Direito, vide BRIAN TAMANAHA, On the Rule of Law. History, Politics, Theory, Cambridge,
Cambridge University Press, 2004, e DANILO ZOLO, “The Rule of Law: a critical reappraisal”, in P. Costa &
D. Zolo (edd.), The Rule of Law: History, Theory and Criticism, Dordrecht, Springer, 2007, pp. 3-71. Na
doutrina portuguesa, cf. MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp.
139-150.
81
LUÍSA NETO, “O Estado de Direito: autonomia e heteronomia; consenso e determinação; espaço de retórica”,
VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Coimbra, CES, 2014, p. 21. Assim se previnem
também os efeitos imprevisíveis da Rechtsfortbildung, o extravasamento dos limites da interpretação da lei para
criar o direito aplicável.
CRP), não cabe ao intérprete (nem ao juiz) definir o que é o Direito; por outro lado, o Direito
das disposições iniciais do Código Civil com o art. 203.º da Constituição, a subordinação do
arbitrário de normas ao ordenamento jurídico, aqui entendido como o conjunto das normas
legais, porquanto num Estado de Direito democrático apenas é possível admitir que, no
executar as leis e satisfazer necessidades colectivas, por prévia opção política consideradas de
responsabilidade estadual.”83
3. O poder discricionário
A aplicação da lei é uma actividade assente, em primeiro lugar, na interpretação. Law in the
books converte-se em law in action por via de uma tarefa de interpretação que implica
escolhas. Estas escolhas são delimitadas, no caso da Administração, pela ordem jurídica.
do aplicador do Direito.
com as teses culturalistas, o Direito não é uma ciência social, mas antes uma ciência cultural
82
Tenhamos em mente que a Constituição de 1933 subordinava o Estado, no seu art. 4.º, “ao Direito e à moral”;
cf. também, neste quadro, o importante art. 97.º, n.º 1, da constituição alemã, que dispõe que “os tribunais
apenas estão sujeitos à lei”.
83
MARCELO REBELO DE SOUSA, Direito Constitucional, Braga, Livraria Cruz, 1979, p. 252.
jurídica. Uma das explicações culturalistas recorre à imagem do tradutor (o jurista como
Direito para o mundo dos factos, como quando se traduz.84 Outra comparação é a do Direito
com uma arte cénica: um jurista parte de uma norma (de um texto) e interpreta-a numa
Num tribunal, tal como num palco, há uma dimensão pública e várias interpretações
possíveis. A lei permite várias escolhas, com uma determinada margem conferida pela
entre diferentes soluções legalmente possíveis que resultem de certa lei) e vinculados. O
poder discricionário deve entender-se, num Estado de direito, como o meio por que a
operação com aspectos vinculados, mas que também implica escolhas (sendo as escolhas mais
norma. Interpretar é reconstituir a norma no mundo dos factos, atendendo a uma lógica de
juridicidade, de acordo com a qual interpretar a lei não é unicamente um poder vinculado
(como consideram os Profs. Sérvulo Correia e Marcello Caetano), mas admite também uma
previsão. Muitas vezes, a subsunção é insuficiente, pois pode haver necessidade de integrar
84
Proposta por JAMES B. WHITE, Justice as Translation: an Essay in Cultural and Legal Criticism, Chicago,
University of Chicago Press, 1990, e FRANÇOIS OST, Le Droit comme Traduction, Québec, Presses de l'Université
Laval, 2009.
85
A pluralidade de interpretações possíveis da norma explica-se pela existência de uma comunidade aberta dos
intérpretes-aplicadores do Direito, que vão criando a norma. Neste sentido, posições em certo momento
unânimes podem mais tarde ser alteradas (viz. de acordo com um voto vencido). É possível considerar
inclusivamente que um voto vencido é tão importante como o conteúdo da norma na construção moderna das
fontes do Direito.
aspectos técnicos nesta apreciação. A apreciação não é livre, mas delimitada por margens que
Mesmo perante uma norma que pareça integralmente vinculada, oferecem-se certas escolhas
através de uma actuação criadora, nunca é inteiramente livre, por via do estabelecimento
elementos essenciais da ordem jurídica que carecem de aplicação; normas e princípios têm
uma relação entre si, mas os princípios valem com um peso autónomo que se concretiza
actividade do juiz.
86
Nas palavras do Prof. Rogério Soares, “a ideia de equilíbrio e contrapeso da separação de poderes, que […]
exige o reconhecimento dum poder administrativo autónomo, não pedestremente executivo, implica também
que não se atribua a esse poder a liberdade de, em matérias essenciais, conformar a existência dos cidadãos.”
(“Princípio da legalidade e administração constitutiva”, p. 184)
87
A divisão dogmática ao nível do ensino do Direito Administrativo em Portugal foi especialmente vincada na
segunda metade do século XX, por via da influência francesa sobre a “escola de Lisboa” (representada pelos
Profs. Marcello Caetano, Freitas do Amaral e Sérvulo Correia), em contraste com a influência mais marcada
do direito alemão sobre a “escola de Coimbra” (representada pelos Profs. Afonso Queiró e Rogério Soares).
O controlo do poder discricionário opera por via das limitações dos vínculos da
competência e do fim. O vínculo da competência implica que um órgão não pode actuar sem
uma norma habilitante, pois a competência decorre obrigatoriamente da norma, não sendo
qualificação do vício de fim com o conceito de desvio de poder, distinguindo entre desvios
de poder por motivos de interesse público ou de interesse privado.90 O caso então objecto
de estudo foi o de uma enfermeira da Maternidade Alfredo da Costa, punida com a sanção
máxima (expulsão da Função Pública) num caso de troca de bebés. Pela primeira vez, na
Supremo Tribunal Administrativo veio a dar razão à enfermeira, considerando que o fim
em causa na decisão era de interesse público (in casu, dar uma satisfação à opinião pública),
mas era ilegalmente prosseguido com aquele conteúdo, porquanto a conduta da enfermeira
apenas poderia conduzir a sanções disciplinares leves (i.e., o fim do acto de punir não
estava a ser prosseguido nos termos da sua dimensão real). Foi este em Portugal o primeiro
Mais grave é a situação de desvio de fim por razões de interesse privado: se o titular
terceiro de quem é próximo, estamos perante um tipo de desvio de fim que o Prof. Freitas
obrigatoriamente nula. Visão diferente era a do Prof. Marcello Caetano, que considerava
que o desvio de poder era o único vício alegável no âmbito do exercício de poderes
88
JORGE MIRANDA, op. cit., pp. 57 e ss.
89
Distingue-se entre incompetência absoluta e incompetência por falta de atribuições.
90
Hoje transformou-se esta ideia para se considerar um desvio de fim.
discricionários, uma vez que todos os outros vícios diriam respeito a actos vinculados. Esta
concepção hoje em dia não pode subsistir, uma vez que as vinculações decorrentes dos
princípios geram situações de ilegalidade material, já admitidas pelo Prof. Freitas do Amaral
e pelos seus continuadores. O desvio de poder não se limita hoje à discricionariedade: pode
sempre haver vícios de fim, no exercício de quaisquer poderes administrativos. Há, pois,
obrigatórios; estes princípios podem ser múltiplos e resultam quer da ordem jurídica
global, quer da própria ordem constitucional. Pelo menos dois princípios da ordem jurídica
jurídica.
alguns destes princípios fundamentais, que têm sido alargados em cada revisão
natureza orgânica, que se encadeiam (arts. 268.º e ss.) com outros princípios e deveres de
natureza fundamental. O CPA, quer na versão de 1991, quer na versão actual, alargou
regime geral do art. 19.º CRP. Os actos praticados ao abrigo desta previsão carecem de
razões urgentes que possam atender a determinada emergência. Pode, porém, perguntar-
se como é sindicável o preceito de que os resultados “não pudessem ser obtidos de outro
modo”: o Prof. Vasco Pereira da Silva considera este novo n.º 2 inconstitucional,
indemnização aos particulares em caso de lesão de direitos; pois dizer, sem mais, que os
actos são válidos em qualquer circunstância, desde que haja indemnização, parece
do interesse público, o princípio do respeito pelos direitos dos particulares (art. 4.º CPA),
que deve ser integrado com o art. 266.º, n.º 1, da Constituição. Numa lógica actual de
certo que a celeridade e a eficiência são elementos da boa administração (o Prof. Freitas do
Amaral critica a formulação do princípio, por confundir questões de mérito com questões
de legalidade), mas, para além destes aspectos – e de outros, regulados por outras normas
–, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que permite ampliar este
dimensão material.
Do ponto de vista legal, o princípio da boa administração é fixado pela primeira vez
com a reforma do procedimento administrativo de 2015, integrado no art. 5.º CPA, cujo n.º
1 prescreve que “[a] Administração Pública deve pautar-se por critérios de eficiência,
na CDFUE, integrava a ordem jurídica portuguesa já antes de 2015. Assim, antes do novo
código, já poderia haver actuações administrativas que, por violação do princípio da boa
administração, fossem sancionáveis em tribunal. Há que o interpretar à luz das regras e dos
o princípio da participação dos interessados (art. 267.º, n.º 1, CRP), que implica o respeito
pelo direito de audiência, tornado genericamente obrigatório pelo CPA em todas as decisões
que respeitem aos particulares,92 o direito à informação (art. 37.º CRP) e o princípio da
91
Defendia o Prof. Sousa Franco que estes princípios eram implicitamente consagrados pela Constituição no
domínio das Finanças Públicas.
92
Cf. todavia os arts. 121.º, n.º 1 e 2, e 122.º CPA.
fundamentação dos actos administrativos (art. 268.º, n.º 3, CRP), que obriga a
legais.
material da actuação. A boa administração deve incluir, pois, a ideia do procedimento devido,
realidade. Não há nenhum princípio administrativo que não seja dotado de obrigatoriedade,
embora autores como o Prof. Sérvulo Correia não admitam a consagração da juridicidade da
os tribunais serem obrigados a decidir sobre questões de mérito, o que reflecte ainda uma
exercício dos poderes discricionários da Administração. Pode a isto obstar-se com o respeito
Administração Pública nas suas relações com os particulares. A estes admitem-se, nas
relações pessoais, comportamentos discriminatórios que, desde que não violem valores
93
Neste sentido, o Prof. Marcello Caetano referia-se a um “controle de mera legalidade” da actuação
administrativa, o que subtraía à sindicabilidade judicial tudo o que fossem questões de mérito.
excesso no n.º 2 do art. 7.º (“As decisões da Administração que colidam com direitos
Pública deve tratar de forma justa todos aqueles que com ela entrem em relação, e rejeitar as
jurídico transversal à actuação administrativa, estabelece que cabe aos órgãos competentes
sentido viola a lei e pode determinar a anulação da decisão. Neste âmbito, o impedimento
(arts. 69.º a 72.º CPA) e a suspeição (arts. 73.º a 75.º CPA) operam como garantias
preventivas para evitar a violação da imparcialidade; nas suspeições, que constituem casos
menos graves do que os impedimentos, há que atender ao caso concreto para verificar a
são importantes não apenas numa perspectiva jurídica, mas também enquanto
dos órgãos públicos não decidam em causa própria, nem em causas em que se interponham
actuação do Ministério Público (que tem actuado mais no quadro do Direito Penal do que
do Direito Administrativo), mas opera também por iniciativa dos particulares. Não se trata
O princípio da boa-fé (art. 10.º CPA) nasce no Direito Privado. Começou por se
considerar que a Administração deve actuar como uma pessoa de bem, tratando todos de
forma justa; mas para além desta ideia formativa do comportamento da Administração, a
ilegalidade que deva ser corrigida pode ser afectado este princípio, não podendo, e.g.,
mudanças de critérios de mérito afectar casos passados. Um dos primeiros estudiosos deste
princípio no quadro do Direito Administrativo foi o Prof. Menezes Cordeiro, que dedica
uma parte da sua tese sobre a Boa-fé à sua concretização no Direito Público.94 A
94
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1984.
Administração Pública deve actuar, assim, de acordo com a boa-fé, proteger a confiança dos
particulares (arts. 165.º e ss. CPA) e o objectivo a alcançar com a actuação pretendida.
administrativa (viz., criando mecanismos que levem os particulares a cumprir a lei, com
dignidade constitucional (arts. 267.º, n.º 1, e 268.º CRP), sendo um dos seus corolários a
públicos antes da tomada de decisões que os possam afectar. A posição dominante nesta
matéria, defendida pelos Profs. Freitas do Amaral e Rui Machete, é que os actos praticados
sem audiência dos particulares geram apenas anulabilidade; todavia, de acordo com os Profs.
Marcelo Rebelo de Sousa, Gomes Canotilho e Vasco Pereira da Silva, o vício correspondente
se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência que lhe sejam apresentados,
por inacção do órgão competente. O dever de decisão – entendida a decisão enquanto causa
de extinção do procedimento administrativo – não significa, porém, que haja que responder
decidir (art. 129.º CPA). O prazo actual para a abstenção de resposta a pedidos idênticos, sem
alteração de circunstâncias, é de dois anos (foi alargado o prazo inicial, que era de apenas um
ano).95
95
vide TIAGO ANTUNES, “A decisão no novo Código do Procedimento Administrativo”, in Carla Amado Gomes
et al. (edd.), Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, vol. II (4.ª ed.), Lisboa, AAFDL, 2018,
pp. 167-203.
formulação do artigo, em especial o n.º 1 e o n.º 3, pela sua vacuidade e mesmo pelo carácter
Introdução
Antes do estudo da teoria das formas de actuação administrativa – o acto administrativo, o
o conceito de procedimento, realidade essencial nos nossos dias, e, por último, de relação
jurídica administrativa.
O título Viagem ao Centro do Direito Administrativo remete para Júlio Verne (1828-
1905). A ideia de centro é sempre de algum modo ficcional e, nesta matéria, em parte
para o Direito Civil o negócio jurídico. Todavia, nem o negócio jurídico esgota todo o
Direito Civil, nem o acto administrativo esgota todo o Direito Administrativo: a ideia de
autoritária forem substituídas por outras mais actuais – como o procedimento ou a relação
Administrativo. Neste sentido, o recurso à obra literária permite ilustrar a ideia de centro
como uma construção fictícia: estamos, com efeito, perante realidades policêntricas.
a procura de conceitos mais amplos e mais frequentes. Neste sentido, quer o procedimento,
quer a relação jurídica são, em si mesmos, mais amplos do que o acto administrativo; mas,
embora mais completos, não esgotam toda a realidade administrativa. Há que partir da
(Eingriffsverwaltung), parcamente limitada pela lei, e que, de acordo com a filosofia liberal,
actuava quase apenas para garantia da segurança pública. A lógica liberal era a da protecção
eram a polícia e o exército. O centro deste direito era, consequentemente, o acto de polícia,
dos pais do Direito Administrativo moderno, concebe o acto administrativo como uma
espécie de sentença, uma decisão de autoridade da Administração que define o direito dos
administrados no caso concreto. Nesta sua noção de acto administrativo, onde apenas cabem
poder policial (i.e., uma decisão que admitia a execução coactiva contra a vontade dos
(executoriedade).96
Liberalismo clássico. Todavia, na viragem para o século XX, a realidade política muda
permanecem iguais em quase toda a Europa. Podemos dizer que as fórmulas repetidas pela
não faziam sentido do ponto de vista jurídico-político. A evolução foi lenta, e foram
desses traumas, porque as ideias de Otto Mayer e de Maurice Hauriou foram replicadas no
século XX pela doutrina dos países do Sul da Europa. Em Portugal, por exemplo, foi
preciso esperar pela revisão constitucional de 1989 para que a noção de acto definitivo e
fenómeno estranho.98 Alguns autores clássicos contribuíram decisivamente para isto, como
Santi Romano, em Itália, e o Prof. Marcello Caetano, em Portugal, que aplica esta realidade
96
Considerava-se, assim, que as decisões administrativas possuíam força executória própria, um conceito
fundamental para toda a história do Direito Administrativo.
97
A este propósito, vide MARIA TERESA DE MELO RIBEIRO, “A eliminação do acto definitivo e executório na
revisão constitucional de 1989”, Direito e Justiça VI (1992), pp. 365-400, e VII (1993), pp. 191-234.
98
Um “fenómeno quase paranormal” de vida para além da morte, considerava o Prof. Vasco Pereira da Silva
em 1996, na tese Em Busca do Acto Administrativo Perdido.
coactiva). Esta noção informa todo o direito português, pois não apenas era aceite pela
doutrina e pela jurisprudência como também constava da lei, com tradução nas normas do
tripla definitividade. Não basta que o acto seja definitivo, mas tem de ser definitivo em três
órgão de topo (o que explica a preservação, durante muitos anos, da ideia do recurso
caso concreto.
99
No direito português, o primeiro autor a formular uma noção completa de acto administrativo foi Jacinto
António Perdigão, nos Apontamentos de Direito, Legislação e Jurisprudência Administrativa e Fiscal, de 1883.
Segundo este autor, são actos administrativos “todas as medidas, providências ou resoluções tomadas pelos
agentes directos da administração activa ou pelos corpos gerentes da administração local, seja qual for a
natureza que tiverem ou a forma que revestirem” (apud M. CAETANO, Manual de Direito Administrativo, vol. I
(10.ª ed.), p. 427). Só na geração seguinte os Profs. Fezas Vital e Magalhães Collaço viriam a identificar o acto
administrativo como uma expressão da vontade dos órgãos administrativos com efeitos na esfera jurídica dos
particulares. Sobre a relevância, no direito português, do conceito inovador de acto administrativo proposto
pelo Prof. Marcello Caetano nas décadas de 30 e 40 (não sem algumas flutuações ao longo das décadas
seguintes), vide MARIA TERESA DE MELO RIBEIRO, loc. cit., parte II, pp. 202 e ss.
100
A ideia de que antes de ir a tribunal, havia que recorrer ao superior hierárquico, não sendo o acto
impugnável antes do recurso.
discussão em torno de noções delas directamente resultantes tinha sentido quer teórico,
administrativo não define o direito: pelo contrário, o acto produz efeitos jurídicos, mas a
produção de efeitos não implica até necessariamente que se trate de um acto jurídico. A
colectivas, no que é radicalmente diferente dos tribunais, que têm no Direito o fim da sua
própria actividade. O juiz define o direito aplicável no caso concreto; a Administração não,
Administração prestadora tem por objecto a atribuição de bens e serviços que não definem
Não é possível dizer hoje, assim, que a definitividade seja uma característica essencial
do acto; e considerando-a na tripla dimensão defendida pelo Prof. Freitas do Amaral, ainda
Administração actuar – poderá ser um resultado, efeito jurídico do acto, mas não um fim em
sempre que um deles produza efeitos lesivos de direitos, é susceptível de impugnação judicial.
Portanto, não é apenas o último acto – o acto que esgota o procedimento – que é relevante:
101
Tomemos como exemplo um controlador aéreo que, no aeroporto, dá ordens aos aviões que lhes permitem
aterrar ou levantar voo: estas ordens não são determinadas por qualquer conhecimento jurídico, mas são dadas
com base na meteorologia e no tráfego aéreo do momento. O controlador não tem ideia de que está a praticar
um acto administrativo, nem tão-pouco o seu acto tem conteúdo especialmente jurídico. Para todos os efeitos,
a ordem dada pelo controlador tem de ser cumprida, mas este acto não define qualquer direito (não define o
direito do avião nem dos passageiros do avião).
102
Se, por exemplo, alguém pede uma autorização para o exercício de uma actividade industrial, inicia-se um
procedimento de avaliação do qual resultam actos, impugnáveis, que confirmam que não existem prejuízos
ambientais; segue-se um processo de licenciamento autónomo que origina outro acto, também este
impugnável, que afere das condições de exercício da actividade.
das situações procedimentais. O acto produz efeitos jurídicos, o que é suficiente para
permitir a sua impugnação; a tese de que o acesso aos tribunais apenas seria possível na
desconsideração do direito à tutela jurisdicional efectiva, mas também por violação dos
na medida em que a maior parte dos actos da Administração prestadora (actos favoráveis
que prestam bens e serviços) são insusceptíveis de execução contra a vontade dos
princípio da legalidade abrange também o poder executório, que não existe se não se fundar
numa lei.
sentia-se já nas décadas de 40 e 50, quando surgiu uma plêiade de figuras paralelas ao acto
década de 50, surgiu em Itália uma concepção procedimental, objectivista, partindo dos
administrativa, foi feita pela doutrina italiana. Em cada uma das funções do Estado
administrativo e o processo judicial. Se, por um lado, todos são procedimentos autónomos,
103
Contudo, e apesar das dúvidas de constitucionalidade, o recurso hierárquico necessário manteve-se até à
reforma de 2004, previsto no art. 25.º da Lei de Processo. Em 2004, deixou de ser exigido, mantendo-se,
todavia, em casos extraordinários e quando houver previsão expressa em lei especial.
104
Cf., por todos, M. AROSO DE ALMEIDA, op. cit., pp. 273 e ss., e a bibliografia aí citada.
procedimentais e processuais. São substantivas aquelas que decorrem das normas de Direito
processuais as relações criadas com o recurso aos tribunais de um sujeito para obter a tutela
105
Mesmo os actos administrativos concretos produzem efeitos em relação a terceiros: e.g., todos os candidatos
de um concursos são afectados por uma decisão tomada no âmbito do procedimento concursal.
uma posição hegemónica, num modelo assente sobretudo em valores materiais. Este
De acordo com esta lógica nova, podemos considerar que o legislador português
constitucionais que o prevêem e que nele encontram concretização: nesta medida, são
jurídicos procedimentais.
conjunto de regras que então se previu trata não apenas da ideia de relação jurídica, como
descentralizada (art. 267.º CRP).106 Assim, no n.º 5 do art. 267.º, estabelece-se que o
utilizar pelos serviços e a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações
106
Por descentralização administrativa entende-se a criação de pessoas colectivas distintas (cf. supra, p. 27, n.
41); por desconcentração (de poderes), fundamento das relações de hierarquia administrativa, entende-se a
criação de poderes decisórios separados, ou, com maior pormenor, a distribuição de competências pelos
diferentes graus da hierarquia, por forma a que o superior hierárquico mais elevado não tenha de tomar todas
as decisões.
que lhes disserem respeito. O legislador entendeu que o procedimento, enquanto realidade
autónoma que serve a tomada de decisões e a sua execução, constitui uma forma privilegiada
simultaneamente objectiva e subjectiva nos arts. 267.º e 268.º CRP. O procedimento serve
para racionalizar a actuação dos poderes públicos, mas é também um instrumento que
direitos fundamentais. Isto traduz uma nova lógica democrática, própria do Estado social.
direitos dos particulares por via da participação. O legislador constituinte conjuga relação
relações jurídicas administrativas, com os direitos e deveres de cada uma das partes.
de uma lei específica. Se o CPA fosse revogado e não fosse substituído por outro diploma,
Administrativo surgiu apenas em 1991 – o que significa que entre 1976 e 1991, o legislador
O primeiro destes foi o CPA, resultado do trabalho da Comissão Freitas do Amaral, onde
colaboraram os Profs. Vasco Pereira da Silva e João Caupers.108 Esta primeira lei do
secretariado, e foi alvo de críticas desde a primeira hora. Foi, todavia, o principal elemento
séc. XIX (em que Mouzinho da Silveira teve grande importância), mas estes eram apenas
diplomas parcelares que dispunham sobre a administração local. O CPA é, em rigor, mais do
que um simples código de procedimento: na primeira parte (arts. 1.º a 19.º) encontram-se os
princípios gerais do Direito Administrativo; na segunda (arts. 20.º a 52.º), regras gerais sobre
regras sobre o procedimento; na quarta (arts. 135.º a 202.º), regras sobre o regulamento, o
107
Neste sentido, considerava o Prof. RUI MACHETE (“Considerações sobre a dogmática administrativa no
moderno Estado social”, Separata do Boletim da Ordem dos Advogados (2.ª série), 1986, reed. in Estudos de Direito
Público e Ciência Política, Lisboa, Fundação Oliveira Martins, 1991) que a antiga expressão de Otto Mayer “O
Direito Constitucional passa, o Direito Administrativo permanece” continuava, de alguma forma, a fazer
sentido em Portugal, pois a nossa realidade administrativa era, do ponto de vista legislativo, ainda a do passado.
108
A Comissão Freitas do Amaral foi constituída em 1988, por iniciativa do Ministro da Justiça, Mário Raposo,
com o propósito de reformar o contencioso administrativo, e de acordo com a convicção de que as leis de 1984
e 1985 (ETAF e LEPTA) tinham procedido a uma actualização insuficiente. A codificação do procedimento
encontrou, ainda na versão do anteprojecto, as reservas dos Profs. Rogério Soares e (mais restritamente)
Marcelo Rebelo de Sousa.
espanhol; a escola de Coimbra criticou a opção, considerando que, não havendo um código
2. As funções do procedimento
Em 2015, o CPA foi objecto de uma reforma profunda, sob a direcção do Prof. Fausto de
certas normas. Diplomas modernos são diplomas abertos à realidade histórica, e o código é
1.º, que não foi alterada em 2015. Ainda que porventura desactualizada, o Prof. Vasco
na formulação do art. 1.º, a noção dos anos 70 de que o procedimento deve ter autonomia,
109
A existência de uma lei especial que disciplina a actividade administrativa está prevista no art. 267.º, n.º 5,
CRP. Apesar da sua importância, o CPA é uma lei ordinária, que pode ser substituída por outra lei mediante
aprovação por maioria simples. Entendeu o legislador que o procedimento para a alteração deveria ser
flexibilizado.
110
Não é demais salientar-se a distinção entre a natureza passiva do poder judicial, que se encontra acima de
todos os interesses e é exercido por juízes independentes e inamovíveis no seu cargo, e a natureza activa da
Administração, vinculada à prossecução do interesse público (e, nesse sentido, obrigada a uma actuação
interessada) e exercida por órgãos e agentes subordinados a uma cadeia hierárquica.
111
Trata-se da construção de Aldo Sandulli, alargada para a total autonomia do procedimento adoptada pelo
legislador administrativo português.
legislador de 2015 parece, mais do que o do primeiro código, ter descurado os aspectos
obstante certas formalidades devam ser seguidas no processo decisório, as regras que
relativamente aos seus fins – uma noção limitativa e mesmo de negação do procedimento
Entre os exemplos de como esta concepção influenciou o direito português está o art.
161.º, n.º 2, al. g), CPA, que refere que os actos que careçam absolutamente de forma legal
forma não podem confundir-se, e são mesmo realidades opostas. Se no início se negou
ainda de estrito positivismo, surgiu uma concepção monista que integrava procedimento e
contencioso final. Esta visão foi dominante em Portugal, por via do ensino do Prof. Marcello
112
As primeiras referências ao procedimento administrativo foram feitas por Laferrière, nos primórdios do
contencioso administrativo. Laferrière considerava que o procedimento era, quando muito, uma mera
formalidade correspondente à forma do acto administrativo. Esta confusão entre forma e formalidades (i.e.,
entre a forma do acto e o procedimento administrativo) ilustra bem a negação do procedimento: a forma, com
efeito, é a maneira como o acto se expressa, como foi organizado – a sua aparência –, o que é diferente da forma
como o acto foi produzido, que corresponde ao procedimento (o iter que explica o acto, com as regras que
determinaram o seu surgimento).
Caetano e da sua continuidade nos trabalhos dos Profs. Freitas do Amaral, Jorge Miranda e
Sérvulo Correia, e teve uma influência mesmo para além da sua utilização noutros países.113
Tal como nos anos que se seguiram à Revolução Francesa, ainda na segunda metade
promiscuidade entre Administração e Justiça (designada por vezes como a “fase do juiz-
procedimento também existente em Portugal, por via da recepção do modelo francês pela
escola de Lisboa.
que não tem admissibilidade jurídica. Impõe-se, pelo contrário, uma visão procedimental do
processo, pois é o procedimento a categoria geral de formação das actuações públicas: essas
que corresponde ao processo. Por outras palavras, deve adoptar-se uma visão procedimental
113
Se o Prof. Freitas do Amaral defendeu sempre a ideia do processo administrativo gracioso, na obra dos
Profs. Jorge Miranda e Sérvulo Correia esta ideia preservou-se já não no nome, mas na visão processualista do
procedimento.
114
A este propósito, vide VASCO PEREIRA DA SILVA, “Breve crónica de um legislador do procedimento que
parece não gostar muito de procedimento”, in AAVV., Nos 20 Anos dos C.J.A., Braga, CEJUR, 2017, pp. 367-372.
se acaba por restringi-lo a uma formulação final, ao resultado. Com efeito, o predomínio do
resultado surge em várias normas do CPA: desde logo, no questionável art. 163.º, n.º 5, que
ser dispensado. em três situações diferentes: quando o conteúdo do acto anulável não possa
ser outro, quando o acto tiver conteúdo vinculado ou se a apreciação do caso concreto
permitir identificar apenas uma solução legalmente possível.116 Ora, o conteúdo do acto
determina-se pelo procedimento, que, nas suas diferentes fases, configura o conteúdo do
procedimento não se realizou, não pode haver outra consequência senão a anulabilidade.
Por outro lado, o artigo prevê também que o conteúdo do acto não possa ser outro
por o acto ser de conteúdo vinculado. Esta ideia é insustentável na nossa ordem jurídica, em
correspondem a duas dimensões da legalidade. E também a ideia final, de que o fim visado
com a exigência procedimental pode ser conseguido por outra via – outra via não
Esta norma, copiada do código de procedimento administrativo alemão, faz com que
115
A formação é o procedimento, a manifestação o acto, a execução a materialização da decisão administrativa.
Aqui se distinguem a justiça formal e a justiça material, pois não basta uma decisão formalmente válida: é
necessário que seja válida também no plano material.
116
Em rigor, o art. 163.º, n.º 5, CPA vem afastar o efeito anulatório sobre um determinado acto para (sem o
validar) lhe atribuir efeitos enquanto acto meramente irregular. Não apenas a aplicação do n.º 5 deste artigo
(“sem margem para dúvidas”) se pode considerar uma probatio diabolica, como o Prof. Vasco Pereira da Silva o
considera inconstitucional, por violação do art. 267.º CRP, que estabelece a necessidade de um código de
procedimento e os seus objectivos, designadamente a participação.
causa, uma vez que a Constituição obriga a que haja sempre um direito à notificação, à
audiência e à fundamentação das decisões – todos os direitos consagrados nos arts. 267.º e
268.º CRP. Temos aqui um claro limite à aplicabilidade do art. 163.º, n.º 5, CPA.
Outra objecção tem a ver com a própria existência dos direitos fundamentais. Um
portuguesa pelo art. 18.º; desse regime resulta implicitamente que qualquer decisão no
administrativo, o que configura uma das garantias mínimas constitucionais para que o
conteúdo desse direito fundamental não seja violado. Por outras palavras, e numa conclusão
não pode ser afectado por qualquer decisão administrativa se não houver um procedimento
que, nos termos estabelecidos na constituição, o permita. Isto significa, na prática, que o
hoje como absolutamente essencial, sem o qual toda a actuação dos poderes públicos é ilegal.
Tal como nas leis de Processo, não basta que a Administração tome as decisões correctas:
tem de as tomar de maneira correcta, pois é isso o que caracteriza uma administração
democrática num Estado Social, em que não importa apenas a legalidade material.
Administrativo, que significa que o procedimento desempenha várias funções que não é
maior parte dos órgãos administrativos goza apenas da legitimidade do Estado de Direito
legal-burocrática.
a realidade administrativa é cada vez mais complexa e sujeita a grupos de pressão, públicos e
os particulares interessados, sem prejuízo de poderem ter sido ouvidos já na fase instrutória.
A audiência pode ser dispensada, sempre com fundamentação. De outro modo, cria-se uma
próprios direitos fundamentais. O Prof. Vasco Pereira da Silva defende uma concepção
evolutiva, distinguindo entre os direitos primeira geração (no quadro do Estado liberal do
séc. XIX), os de segunda geração (direitos económicos, sociais e culturais, que instituem os
par dos direitos procedimentais ou processuais, cuja função é, antes de mais, de prevenção
no art. 267.º, n.º 3. O direito de participação, entendido como um direito fundamental, tem
podem ter lugar nos casos de exercício de um direito fundamental material) ou a ilegalidade
dos actos praticados em desrespeito genérico por um direito fundamental, que ocupa sempre
(em particular pelos Profs. Jorge Miranda, Gomes Canotilho e Vital Moreira), não sendo
administrativa, que tem preferido, na generalidade dos casos, considerar que a violação do
direitos fundamentais aos direitos da primeira geração. Esta posição, embora muito
influente, equivaleria, contudo, a dizer que estes direitos pararam no tempo, não sendo
possível integrar na previsão normativa, por via deles, quaisquer novas ameaças à dignidade
da pessoa humana. Os argumentos principais são, todavia, de outra ordem. Antes de mais, a
lógica da compatibilidade entre normas vista de forma acrítica (viz. o Prof. Pedro Machete):
a nossa ordem jurídica, tratando do procedimento disciplinar – sanção mais grave entre
todas –, impõe, como indispensável, que um arguido se pronuncie antes de ser punido. Neste
se o legislador prevê para os casos mais graves a simples anulabilidade, os casos menos graves
serem ouvidos.
O caso está qualificado, hoje, de maneira inconstitucional, e por uma lei emitida no
subordinado ao regime geral do art. 20.º CRP, a sua violação não pode senão comportar uma
situação de nulidade da actuação administrativa. Esta questão doutrinária acabou por não ter
a relevância que se antecipava, pois os tribunais vieram a agir, em todos os casos de falta da
a decisão final.
material. Em Itália, considera-se que estes casos configuram apenas uma violação do
resultado, assente numa lógica monista, é a norte-americana: a prática do push back, em que
um juiz pode obrigar a Administração a reconsiderar uma posição que tomou anteriormente.
Todavia, os tribunais nos sistemas europeus julgam a Administração depois de esta ter
cometido eventuais ilegalidades, não reenviando decisões para nova ponderação pelos
poderes administrativos.
interesse público e o respeito pelos interesses dos particulares. Estes princípios não podem
concretizar-se unilateralmente, pois deve observar-se entre ambos uma relação obrigatória
Por conseguinte, o mesmo rigor que observa na anulação dos casos de preclusão do
direito de audiência deve ser aplicado no julgamento dos casos em que as posições
audiência não pode revestir uma lógica meramente formal, mas deve encontrar uma
decidir de acordo com elas, mas tão-somente considerar, numa lógica actualista, a posição que
administrativo, apresenta uma noção que convoca o problema da centralidade do acto entre
obrigatórios do acto administrativo, como ensina o Prof. Freitas do Amaral: (1) uma decisão,
situação individual e concreta (no que se distingue dos regulamentos), (4) e que produza
efeitos externos. Os actos primários versam pela primeira vez sobre uma determinada
117
Isto corresponde ao procedimento administrativo decisório de primeiro grau (que termina com uma
primeira decisão sobre determinado assunto). Em caso de recusa, pode desencadear-se, mediante reclamação
ou recurso hierárquico. um procedimento de 2.º grau, regulado pelos arts. 184.º a 199.º CPA.
Caetano do acto administrativo como “a decisão que regula o caso concreto com força
de executar coactivamente por meios próprios, ergo sem necessidade de mandato judicial,
as decisões administrativas).118
Esta realidade entra em crise ao oporem-se ao acto administrativo formas cada vez
administrativa por excelência para passar a ser uma entre muitas. Por outro lado,
constitucional de 1989.119
Estas duas características, na verdade, não existem na maior parte dos actos da
dita a última palavra no caso concreto, como numa sentença, traduzindo-se num acto de
aplicável a actuações gerais da Administração (i.e., actos que, não tendo conteúdo jurídico,
acto isolado, mas antes fazem parte de uma sucessão intrincada de procedimentos que geram
diversos actos.
pois nem a Administração Pública tem um poder autoritário que lhe permita executar
qualquer tipo de decisões, nem a lei estabelece que todos os actos administrativos são
118
J. C. VIEIRA DE ANDRADE, op. cit., p. 199.
119
cf. MARIA TERESA DE MELO RIBEIRO, loc. cit.
estudo, tal é inconcebível). Os únicos actos ainda dotado de executoriedade – e apenas nas
Este conceito de acto definitivo e executório era, ainda assim, acolhido pela
privilégio da execução prévia. A questão coloca-se hoje no direito português de acordo com
dois pressupostos fundamentais, devidos a Maurice Hauriou e a Otto Mayer. Para Hauriou,
que parte de uma concepção de acto administrativo como acto produtor de efeitos, têm
Administração e numa realidade individual e concreta seria, pois, o único sentido útil do acto
administrativo.
Já para Otto Mayer, o acto administrativo tem natureza reguladora, significando isto
novos, que não podem decorrer exclusivamente da lei ou existir previamente na ordem
jurídica. Desta concepção provém a distinção entre actos administrativos (que no direito
acto administrativo definitivo e executório: o acto não define o direito, apenas o utiliza para
satisfazer necessidades colectivas. Consiste, pois, num meio, e raras são hoje as situações,
entre a multiplicidade das que os actos têm por objecto, que admitem natureza definitória.
favorável aos interesses dos particulares é susceptível de coacção; por outro, a Administração
administrativos: assim, o art. 148.º CPA estabelece que o acto administrativo é unilateral e
formulado por Otto Mayer. Os actos administrativos estão tipificados no CPA, não sendo de
admitir quaisquer realidades paralelas. Todavia, o código regulou apenas os actos produtores
de efeitos jurídicos novos (e.g., para o acto constitutivo não basta a produção de efeitos: é
necessário que sejam efeitos novos e constituídos directamente por esse acto). O legislador
alemão, todavia, por entre a mesma lógica tipificada, encontrou realidades divergentes, não
tipificadas, mas em que se produziam idênticos efeitos jurídicos. Para enquadrar estas formas
informais, que compreende actuações jurídicas que, não sendo contratos nem regulamentos,
(regulador ou constitutivo) é proposta pela escola de Coimbra desde o Prof. Rogério Soares:
um acto constitutivo não executório, ou a ideia mais ampla de acto regulador (i.e., qualquer
acto produtor de efeitos jurídicos novos). Todavia, esta proposta de distinção não é adequada
nem legítima, uma vez que está em causa uma característica (a produção unilateral de efeitos
jurídicos) comum a todos os actos administrativos: um direito não tem de ser inovador para
ser um direito e tão-pouco tem de ser constituído integralmente. A constituição desse direito
formas de actuação.120
120
Um dos argumentos invocados, designadamente pelo Prof. Freitas do Amaral, é a expressão legal “decisão”.
Todavia, decisões são tanto os actos quanto as sentenças, significando apenas uma actuação de vontade de um
Com a revisão de 2015 surge um novo argumento: a nova formulação do art. 148.º,
efeitos internos não gera um acto administrativo, mas outra actuação, um quase-acto
efeitos na esfera jurídica dos particulares.122 Todavia, esta distinção, que também existia no
Direito italiano, deixa de fazer sentido com o aperfeiçoamento do Estado de Direito, em que
efeitos internos num dado procedimento, mas que são simultaneamente externos
5. Validade e eficácia
No quadro operativo do Direito Administrativo, distinto do Direito Privado (onde as regras
de validade e eficácia andam a par), um acto inválido pode, ainda assim, produzir efeitos
jurídicos, da mesma forma que um acto pode ser praticado segundo os requisitos legais e não
produzir efeitos. A lei estabelece requisitos diferentes de legalidade (i.e., para que um acto
seja válido) e de eficácia (para que um acto produza efeitos jurídicos): e.g., uma decisão já
tomada e publicitada não produz efeitos enquanto não for notificada, na medida em que a
administrativos inválidos, e mesmo os contrários à lei, podem ter eficácia jurídica. A nossa
ordem jurídica distingue nulidade de anulabilidade. Um acto nulo – sanção mais grave – não
produz quaisquer efeitos ab initio, todos os que se tenham eventualmente verificado tendo-
ente público, não um alargamento do efeito útil da norma. “Decisão” deve, pois, ser interpretado como um acto
voluntário da Administração que visa produzir efeitos jurídicos.
121
vide JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Algumas reflexões a propósito da sobrevivência do conceito de acto
administrativo no nosso tempo”, in AAVV., Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Coimbra,
Coimbra Editora, 2001, pp. 1189-1220.
122
São actos internos, e.g., as delegações de poderes, como também os pareceres (arts. 91.º e 92.º CPA), o que
ilustra bem a relevância procedimental da figura.
se como inexistentes. Já um acto anulável produz efeitos até ser anulado. Esta anulação tem
efeitos ex tunc (retroactivos), afastando quaisquer efeitos produzidos desde a prática do acto
anulação; e se nunca vier a ser anulado – quer porque a Administração não tomou a
2004, os actos podem ser já inimpugnáveis pelos particulares e, ainda assim, nos casos em
ilegalidade de um acto e anular uma decisão viciada, nos termos do art. 38.º CPTA.123
Temos, assim, duas realidades diferentes: por um lado, um acto válido pode não
produzir efeitos; por outro, um acto inválido pode ser eficaz enquanto não houver anulação
pela própria Administração124 ou pelos tribunais, numa existência tolerada pelos sujeitos das
relações jurídicas administrativas.125 Subsiste, não obstante, uma divergência entre a letra da
lei e a prática jurídica, na medida em que o cumprimento das previsões legais obriga a uma
123
Neste âmbito, o Prof. Vasco Pereira da Silva propõe uma interpretação extensiva do regime da anulação
administrativa (arts. 165.º e 168.º CPA), considerando que a Administração pode (rectius, deve) a todo o tempo
anular os actos viciados, atendendo a que sobre os poderes públicos impende um dever de correcção de
situações de ilegalidade.
124
O procedimento de anulação de um acto anterior constitui um procedimento novo, cujo fim é um acto
administrativo secundário que observa as regras dos arts. 110.º e ss. e 148.º e ss. (em particular 152.º, n.º 1, al.
e)), CPA, no concernente ao conceito e forma do acto. O acto anterior é o objecto do novo procedimento, e ao
acto que o anula dá-se o nome de acto desintegrativo.
125
Por outras palavras, certas deficiências ou irregularidades do procedimento, insusceptíveis de implicar
nulidade, podem não inviabilizar a subsistência de um acto administrativo (embora inválido) na ordem jurídica
e a produção dos respectivos efeitos.
5.1. Invalidade
O desvalor jurídico da invalidade, mais restrito do que a ilegalidade,126 pode definir-se como
normas jurídicas aplicáveis. A invalidade do acto está hoje estreitamente relacionada com a
Aqui, há que atender a dois aspectos essenciais: um de ordem mais teórica, a fonte, e
Todavia, em Portugal esta leitura é largamente complicada pela teoria dos vícios do acto
francês e português.
lei. Esta enumeração, na perspectiva do Prof. André Gonçalves Pereira, é ilógica e, no quadro
actual, incompleta. Actualmente, nenhuma lei contém esta enumeração, e, acrescenta o Prof.
Vasco Pereira da Silva, deve mesmo ser considerada ilegal, pois nem na Constituição nem
126
A desconformidade de um acto administrativo com o Direito pode, com efeito, resultar tanto da sua
contrariedade à lei como de outras formas de invalidade: daqui que sejam por vezes consideradas entre as fontes
de invalidade do acto não só a ilegalidade stricto sensu (traduzida nos vícios do acto administrativo), mas também
a ilicitude e os vícios na formação da vontade.
stricto sensu e o vício procedimental, que estava ausente da enumeração tradicional. Aqui,
num único vício encontramos também dois elementos materiais do acto administrativo.
distinguem o poder discricionário do poder vinculado, o que (como vimos supra) não é
juridicamente possível. Desta lógica está ausente o procedimento: todos os vícios da vontade
coacção, devem ser integrados numa noção mais ampla de violação da lei.
No art. 161.º, n.º 2, CPA, encontramos a única referência legal aos vícios na nossa lei
– e são apenas dois, a usurpação de poderes e o desvio de poder para fins de interesse privado.
Todos os outros estão ausentes, bem como a necessidade qualificar as ilegalidades segundo a
teoria dos vícios. Deve, pois considerar-se que a actuação administrativa é válida ou não,
actuação viciada.
elementos essenciais: identificação do autor, destinatário, objecto e conteúdo (art. 155.º, n.º
2, CPA). Todos os actos a que falte qualquer um destes elementos são juridicamente
inexistentes. Todavia, nem todos os actos existentes são válidos, pelo que importa distinguir
sendo esta última a invalidade mais grave e considerada excepcional. Os arts. 161.º e 162.º
CPA estabelecem as condições e o regime da nulidade, prevendo que “o acto nulo não produz
quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade” (art. 162.º, n.º 1),
produzem efeitos jurídicos, que podem ser destruídos com eficácia retroactiva se vierem a
ser anulados por decisão proferida pelos tribunais administrativos ou pela própria
Administração (art. 163.º, n.º 2). Pode pôr-se a questão da tipicidade dos actos nulos: a versão
de 2015 do CPA alterou o n.º 1 do art. 168.º no sentido da tipificação (segundo os autores da
reforma, como o Prof. Sérvulo Correia), o que se repercutiria na interpretação do art. 161.º,
n.º 1. Por outras palavras, o regime da nulidade seria restrito, e a sanção-regra da ordem
A visão do Prof. Vasco Pereira da Silva é diferente. Dispõe o art. 161.º, n.º 1, CPA
que “São nulos os actos para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.”
Esta formulação, todavia, não implica uma técnica de tipificação, na medida em que no n.º 2
do mesmo artigo se diz que “são, designadamente, nulos” certos actos a seguir enumerados.
São, portanto, exemplos, dados nas alíneas a) a l), definidos por conceitos gerais amplos. Não
é, pois, correcto dizer que existe tipificação, mantendo-se uma cláusula aberta. O legislador
e nulidade através de um juízo de intensidade. Não existe, pois, no Código uma regra geral
que, de acordo com a escola de Lisboa, se centra na definição dos efeitos de um acto sobre
revogação ab-rogatória ou extintiva, que correspondia a uma alteração motivada por juízos
terminológica foi a clarificação das figuras. Isto não significa, porém, e ao contrário do que
sustenta a escola de Coimbra, que haja uma distinção completa de regimes jurídicos: de resto,
os arts. 165.º e ss. CPA estabelecem um regime de aplicação único para ambas (com o art.
autores de Coimbra (in primis o Prof. Vieira de Andrade) de que as regras da revogação e da
anulação, como existiam em Portugal, eram excessivamente rígidas, havendo que introduzir
flexibilidade na ponderação dos valores em causa. O regime anterior previa que apenas fosse
possível praticar um acto sobre outro acto quando não tivesse ainda decorrido um prazo-
limite de um ano, o decurso desse prazo implicando sempre uma estabilização pelos efeitos
discussão de actos sobre actos, há que ter em conta valores constitucionais – desde logo o
princípio da legalidade, que obriga a uma ponderação flexível da anulação, mas também a
preferíveis de actuar, deve fazê-lo, limitada embora naturalmente pelos princípios da boa-fé
e da tutela da confiança.
127
Definidas com base no interesse público (art. 266.º, n.º 1, CRP).
128
À anulação subjaz sempre um vício, uma desconformidade do acto administrativo com a lei, enquanto à
revogação subjaz apenas um vício de oportunidade.
forma alemã comete a resolução ao juiz, enquanto a forma francesa determina que seja
sempre o legislador a resolver os conflitos. O caso decidido, em rigor, não tem lugar numa
não se compreenda que o legislador tenha optado por manter os prazos como critério último,
Os actos administrativos podem ser revogados desde que com a sua revogação se não
afecte a estabilidade jurídica, não haja uma vinculação legal impeditiva ou não estejam em
causa direitos irrenunciáveis. Assim, em princípio, um acto constitutivo de direitos não pode
ser revogado sem mais, pois há uma eficácia inelutável desta actuação administrativa; só pode
revogação. Já nos casos de actos constitutivos de direitos que incluam também decisões
desfavoráveis, admite-se a revogação parcial (cf. art. 167.º, n.º 2, al. c), CPA); por último,
também quando haja uma reserva de revogação, o acto praticado admita precarização e se
O art. 168.º CPA, relativo à anulação, não comporta, como vimos, a mesma
flexibilidade, por via de uma manutenção de prazos que podemos mesmo considerar, como
129
Assim, VASCO PEREIRA DA SILVA, “Revisitando a questão do pretenso caso decidido no Direito Constitucional
e no Direito Administrativo português”, in M. Rebelo de Sousa, Fausto de Quadros e P. Otero (edd.), Estudos
de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda. Volume III (Direito Constitucional e Justiça Constitucional), Coimbra,
Coimbra Editora, 2012, pp. 797 e ss.
130
Apesar da previsão destes prazos pelo legislador, o Prof. Vasco Pereira da Silva entende que há que
interpretar a lei à luz do princípio da legalidade (que obriga a revogar os actos ilegais), da tutela da confiança e
da prossecução do interesse público. Nesta óptica, qualquer decisão que ponha em causa estes limites
constitucionais é ilegal, justificando uma actuação conforme da Administração Pública.
admitir-se que, para além do prazo, seja sempre possível anular um acto administrativo
quando isso for essencial à prossecução do interesse público. Do mesmo modo, o Prof. Vasco
Pereira da Silva considera o n.º 7 do art. 168.º tanto inconstitucional quanto ilegal, por
o qual a iniciativa e competência para a revogação deveriam estar no mesmo órgão que
praticou certo acto viciado, e o do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, que considera caber a
iniciativa apenas aos órgãos competentes. O Prof. Vasco Pereira da Silva entende, pelo
Por último, temos a execução, em cujo âmbito a reforma de 2015 operou uma
legalidade aplicado aos actos administrativos, com a tipificação das respectivas formas de
execução. Nesta matéria, o art. 179.º CPA proíbe a execução coactiva de dívidas pecuniárias,
Pereira da Silva critica quer a opção, quer a formulação do art. 176.º CPA (legalidade da
execução), que vem considerar que o garante da legalidade tem tradução no acto executivo
prévio: num entendimento actual do Direito Administrativo, este garante deve ser antes a
aplicação da proporcionalidade do uso da força. Não se trata, pois, de praticar ou não praticar
131
Com efeito, prescreve o art. 38.º CPTA que, em certas circunstâncias, os tribunais devem conhecer da
ilegalidade dos actos administrativos em qualquer prazo e em qualquer tempo.
132
vide VASCO PEREIRA DA SILVA, “Acto administrativo e reforma do Processo Administrativo”, in A. DE
ATHAYDE et al. (edd.), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Diogo Freitas do Amaral, Coimbra, Almedina, 2010,
pp. 81 e ss.
separação de poderes (viz. o Prof. Freitas do Amaral, segundo o qual os regulamentos são
Para o Prof. Vasco Pereira da Silva, não faz sentido pôr a questão nestes termos:
podendo, em caso algum, o regulamento ter conteúdo de lei nem substituir-se à lei. Já os
tribunais administrativos.
133
Todas as entidades administrativas têm poder regulamentar.
O regulamento não pode, assim, ter conteúdo legal; a inovação regulamentar tem
contrário do que previa a lógica positivista, integram um conteúdo criador diferente da lei.
São cada vez mais frequentes os regulamentos, por via da nova realidade
introduzida pelos planos, que são uma forma regulamentar do exercício da função
(individual e concreto).
ser apenas geral ou abstracto, não se verificando qualquer necessidade de acumular ambos
enquanto o acto individual e concreto não deixa também de produzir efeitos relativamente
a terceiros. Afigura-se, assim, mais correcto afirmar que a generalidade é suficiente para
perante uma situação que corresponde à realidade abstractamente prevista; mesmo que o
acto seja individual (e.g., a norma que estabelece as regras dos apoios dados pelo Estado no
estes últimos sempre subordinados a um diploma normativo. Nos termos do art. 112.º
particular regula.134
embora uma relação mais ténue com a lei, devem sempre indicar também a competência
de regulação, tanto a nível subjectivo quanto objectivo. Esta ligação umbilical à lei resulta
inovadores dentro da sua esfera própria de actuação, que é a esfera do poder legislativo que
lhes subjaz.
134
vide JORGE MIRANDA, op. cit., pp. 207-215.
135
Na concepção do Prof. Marcello Caetano, o regulamento não pode ter conteúdo inovador, contrariamente
à lei. Os regulamentos são necessários e adequados à boa execução das leis, estando-lhes subordinados numa
dimensão secundária.
A regulação do direito dos contratos públicos surgiu por via eurocomunitária, superando
contratos ditos privados da Administração, estes últimos regulados pelo direito civil e no
âmbito da competência de regulação dos tribunais civis. Ambos são, como a Prof. Maria
João Estorninho apontou pela primeira vez na sua tese de mestrado,137 regulados no
quadro da lei, não havendo razão para preservar esta dicotomia. A favor da unificação do
regime da contratação pública estiveram os Profs. Marcelo Rebelo de Sousa, André Salgado
tradicional, defendida pelos Profs. Freitas do Amaral, Pedro da Costa Gonçalves, Vieira de
contratos ditos privados à luz das regras da circulação comum de pessoas, bens e capitais.
comuns.
Em primeiro lugar, a origem destes contratos não remonta aos momentos iniciais
136
O título é de Jorge Luis Borges, incluído nos contos reunidos pela primeira vez em Ficciones (Buenos Aires,
Editorial Sur, 1944).
137
MARIA JOÃO ESTORNINHO, Requiem pelo Contrato Administrativo, Coimbra, Almedina, 1990.
138
Um dos problemas mais determinantes desta tendência foi a iluminação pública, tarefa que implicava
montar estruturas, obter e distribuir energia.
qual se cedia um bem público à exploração dos particulares; duas figuras que podiam ser
utilizadas cumulativamente.
O que começou como uma realidade processual tornou-se, em França e nos países
dependem sempre, não obstante, de contrato ou da lei, como sucede em qualquer outro
também inaplicável, porquanto tudo o que há de especial nestes contratos está sujeito a um
princípio contratual (e.g., as empreitadas de obras públicas e privadas são reguladas por
circunstâncias ou da resolução).
impossível, na medida em que não estamos perante uma relação unilateral, mas um
então um regime comum, alterando os dados da questão através de uma expressão oriunda
do direito alemão. Otto Mayer entendia, com efeito, que o Estado nunca poderia contratar
com os particulares, mas quando começam a surgir contratos entre entidades públicas,
possíveis no âmbito privado (viz. compra e venda, empreitada, prestação de serviços, etc.);
públicas, ainda que realizadas por particulares (definidos nos arts. 7.º e ss. CCP). No
característica da intervenção dos poderes públicos, podendo impor-se aos particulares sem
que perduram até hoje, no âmbito da transposição integral destas directivas. O Código dos
Contratos Públicos, se, por um lado, uniformizou todo o regime processual, continua a
reservar para uma categoria residual destes contratos o nome contratos administrativos. A
primeira mudança foi de índole processual: a reforma de 2004 estabeleceu que todos os
contratos – quer públicos, quer ditos administrativos, quer ditos privados – eram objecto
expressões, mas manteve o mesmo regime contencioso para todos os contratos; regulou
todos os contratos em que intervém a Administração Pública (arts. 1.º a 4.º e 7.º CCP). Na
parte segunda do Código dos Contratos Públicos, estabelece-se um regime geral para todos
A par deste novo regime da contratação pública, a União Europeia introduziu uma
áreas de actuação ambiental. A primeira manifestação desta figura deu-se no Ac. Concordia
Bus (2002), seguida pelo Livro Verde, de 2011, e por um conjunto de directivas de 2014,
o Estado poderia incluir cláusulas ambientais nos contratos, devendo dar preferência, e.g.,
vinculativos aplicáveis a todos os contratos públicos (arts. 74.º e 75.º CCP) e, bem assim,
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