GUIMARÃES. M. RIBEIRO. E. Imaginario-em-Exposicao

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Imagi

nário
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trução
Walter Melo
João Henrique Queiroz de Araújo
Amanda de Fátima da Silva Nunes
(Orgs.)

coleção Arte e Saúde Mental


número 3
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
© 2021 by Walter Melo
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada
sem autorização expressa do autor e do editor.

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


Walter Melo et al.

Coleção Arte e Saúde Mental - número 3

Capa e diagramação: Derval Braga

Imagem da capa: Arthur Bispo do Rosario, Colônia Juliano Moreira -


Reconheceram o filho de Deus, sem data

Comissão editorial:
Ademir Pacelli Ferreira (UERJ)
Arley Andriolo (USP)
João Augusto Frayze-Pereira (USP)
João Leite Ferreira Neto (PUC-MG)
Marco Heleno Barreto (FAJE)
Maristela Nascimento Duarte (UFSJ)
Paulo Amarante (FIOCRUZ)
Walter Melo (UFSJ)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Imaginário em exposição, manicômios em


desconstrução [livro eletrônico] / organização
Walter Melo, João Henrique Queiroz de Araújo,
Amanda de Fátima da Silva Nunes. --
Divinópolis, MG : Mosaico Design Gráfico, 2021. --
(Coleção arte e saúde mental ; 3)
PDF

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-996542-1-3

1. Arte 2. Saúde Mental 3. Reforma Psiquiátrica


I. Melo, Walter. II. Araújo, João Henrique Queiroz de.
III. Nunes, Amanda de Fátima da Silva.
IV. Série.

21-94152 CDD-158.1
Índices para catálogo sistemático:

1. Arte e saúde mental : Psicologia 158.1

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380


Imaginário
em exposição,
manicômios
em desconstrução

Organização
Walter Melo
João Henrique Queiroz de Araújo
Amanda de Fátima da Silva Nunes

coleção Arte e Saúde Mental


número 3
6 42
Prefácio A genealogia do Museu de
Walter Melo Imagens do Inconsciente
João Henrique Queiroz de Araújo Eurípedes Gomes da Cruz Junior
Amanda de Fátima da Silva Nunes

59
9 A obra de Nise da Silveira e o
O Museu de Arte Osório Cesar e timbre de Asclépio: companheiro
a abertura de novos horizontes mítico, diretrizes de trabalho e
sobre a produção artística no sujeito do conhecimento
Juquery Walter Melo
Michelle Louise Guimarães
Elielton Ribeiro
72
O Museu Bispo do Rosario e a
21 transformação da Colônia Juliano
O colecionamento da arte de Moreira: a trajetória de um espaço
loucos no Hospital Psiquiátrico de arte e saúde mental
do Juquery: uma resposta da João Henrique Queiroz de Araújo
medicina psiquiátrica aos embates Raquel Fernandes
da experiência artística moderna
Rosa Cristina Maria de Carvalho
Sumário
85 134
Bispo do Rosario e os homens na Os acervos em imagens
Terra
Flavia Corpas

104
Oficina de Criatividade do
Hospital Psiquiátrico São Pedro:
interlocuções entre arte, clínica e
política
Barbara E. Neubarth
Giselle S. Sanches
Larissa K. F. Neubarth

121
O Acervo da Oficina de
Criatividade do Hospital
Psiquiátrico São Pedro de
Porto Alegre/RS: notas de uma
trajetória de pesquisa
Erica Franceschini
Tania Mara Galli Fonseca
Prefácio
Walter Melo
João Henrique Queiroz de Araújo
Amanda de Fátima da Silva Nunes

Os outros livros da Coleção Arte


1 É com satisfação que apresentamos o livro Imaginário em exposição,
e Saúde Mental são os seguintes: manicômios em desconstrução, número 3 da Coleção Arte e Saúde Mental1.
O Terapeuta como Companheiro
Mítico: ensaios de psicologia Os textos analisam as produções e os modos de trabalho das seguintes
analítica (MELO, 2009) e instituições museológicas: Museu de Arte Osório Cesar, Museu de Imagens
A Sabedoria que a Gente Não
do Inconsciente, Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea e Museu
Sabe (MELO; FERREIRA, 2011).
O segundo livro está disponível Oficina de Criatividade. O livro é fruto do esforço de trabalhadores/
na página do Programa de Pós- pesquisadores e apresenta contribuições diversificadas para os campos
Graduação em Psicologia da
Universidade Federal de São João
da saúde mental, da psicologia e das artes. São propostas reconhecidas
del-Rei (PPGPSI/UFSJ). em âmbito nacional e internacional, que consolidam o debate com a
2
As exposições foram organizadas por
sociedade mais ampla, através de exposições artístico-científicas, produções
Walter Melo. A segunda, em parceria audiovisuais e publicações de catálogos, artigos e livros. Esse profícuo debate
com a artista plástica Georgete
Melhem. possibilita transformações nos modos de organizar os dispositivos de saúde
mental, de produzir novos saberes psicológicos, de fazer arte, de analisar
as manifestações artísticas, além de trazer novas concepções museológicas.
O livro faz parte das atividades desenvolvidas pelo Núcleo de Estudo,
Pesquisa e Intervenção em Saúde, da Universidade Federal de São João
del-Rei (NEPIS/UFSJ). O trabalho realizado na UFSJ tem suas origens na
Casa das Palmeiras e no Espaço Artaud. No longo período de trabalho na
Casa das Palmeiras, as relações da arte com o campo da saúde mental foram
abordadas em três exposições2: (1) Casa das Palmeiras: 35 anos de revolução
em psiquiatria, julho de 1991, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), Sala Cândido Portinari e subsolo da capela ecumênica; (2) Casa
das Palmeiras – A Emoção de Lidar, de 25 de maio a 27 de junho de 1993,
Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), Sala Clarival do Prado Valladares;
(3) Mar do Inconsciente: a imagem como linguagem, julho de 2004, Espaço
BNDES.
A equipe do Espaço Artaud, por sua vez, organizou quatro encontros3 3
Além da organização dos encontros de
Arte & Saúde Mental, o Espaço Artaud
de Arte & Saúde Mental: UERJ (2006), em parceria com Ademir Pacelli desenvolveu outras atividades, dentre
as quais podemos destacar o premiado
Ferreira; FIOCRUZ (2008), em parceria com Paulo Amarante; UFSJ (2009); grupo de teatro Os Nômades e, como pode
ser verificado nas referências ao final, o
e UERJ (2010), novamente em parceria com Ademir Pacelli Ferreira, tendo trabalho de editoração de livros.
como subtítulo O Paradigma Estético na Clínica de Nise da Silveira. 4
Nesse período, Walter Melo coordenou
Em meio a essas atividades e dando continuidade a elas, ocorreram um conjunto de quatro pesquisas, com
a participação de Patrícia Fonseca de
as participações na Oficina Nacional de Indicação de Políticas Públicas Cul- Oliveira (Bolsista de Iniciação Científica,
turais para Pessoas em Sofrimento Mental e em Situações de Risco Social FAPEMIG), Lisângelo José Coimbra
Fontôra, Joely da Silva Andrade (Bolsista
– Loucos pela Diversidade: da diversidade da loucura à identidade cultural; de Iniciação Científica, CNPq), Maria
Alice Silveira Batista (Menção Honrosa
e na Rede Saúde e Cultura. Ambas foram organizadas pelo Ministério da no X Congresso de Produção Científica
da UFSJ, em 2012) e Filippe de Mello
Cultura e pela FIOCRUZ, respectivamente em 2007 e de 2012 a 2014. Lopes (Bolsista de Iniciação Científica,
As exposições, os debates e a colaboração para a implementação de CNPq). Atualmente, Lisângelo é psicólogo
do município de Leopoldina/MG, Joely é
políticas públicas prepararam o terreno para organização de atividades psicóloga no município de São José dos
Campos/SP, Maria Alice, Filippe e Patrícia
integradas de ensino-pesquisa-extensão na UFSJ. Dessa maneira, foram são mestres em psicologia pela UFSJ.
organizados grupos de estudo, disciplinas eletivas abordando o trabalho Durante o mestrado, Patrícia desenvolveu
pesquisa sobre a relação da arte com o
desenvolvido por Nise da Silveira no Museu de Imagens do Inconsciente e na campo da saúde mental. A dissertação
Liberdade, Afetividade e Atividade: o tripé
Casa das Palmeiras, foram desenvolvidas oficinas no CAPS por mais de uma terapêutico de Nise da Silveira no discurso
dos integrantes do Núcleo de Criação e
década e, por um breve período, no CAPS ad, além de diversas pesquisas de Pesquisa Sapos e Afogados está disponível
iniciação científica e de mestrado. Dentre esses diversos trabalhos, vamos na página do PPGPSI/UFSJ. Além disso, foi
elaborado o artigo Liberdade, Afetividade
destacar a pesquisa As Relações da Arte com o Campo da Saúde Mental, que e Atividade: o tripé terapêutico de Nise da
Silveira no Núcleo de Criação e Pesquisa
teve seu núcleo inicial entre 2009 e 2011, quando foi efetuado mapeamento Sapos e Afogados (OLIVEIRA; MELO;
VIERA-SILVA, 2017).
de atividades artísticas no campo da saúde mental no Brasil4, através de

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


contatos com as secretarias estaduais e municipais de saúde, de serviços de
saúde mental – principalmente os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)
e os Centros de Convivência –, além de levantamentos na internet. Dentre
as diversas relações da arte com o campo da saúde mental, destacamos
nesta publicação as produções de artes visuais que deram origem a museus.
Esses museus devem ser frequentados, pois são constituídos por acervos
que apontam para o silenciamento de muitos (talvez de todos nós), mas,
ao mesmo tempo, se caracterizam pela expressão genuína que se apresenta
pela beleza de formas e de cores, pela denúncia incisiva contra as práticas
asilares e pela possibilidade de transformação da sociedade.
Boa leitura.
7
Referências

MELO, Walter. O Terapeuta como Companheiro Mítico: ensaios de psicologia analítica. Rio de
Janeiro: Espaço Artaud, 2009.
MELO, Walter; FERREIRA, Ademir Pacelli. (Orgs.). A Sabedoria que a Gente Não Sabe. Rio de
Janeiro: Espaço Artaud, 2011.
OLIVEIRA, Patrícia Fonseca; MELO, Walter; VIEIRA-SILVA, Marcos. Afetividade, liberdade e
atividade: o tripé terapêutico de Nise da Silveira no Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados.
Pesquisas e Práticas Psicossociais, 12(1), 23-35, 2017.
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
8
O Museu de Arte Osório
Cesar e a abertura de novos
horizontes sobre a produção
artística no Juquery
Michelle Louise Guimarães
Elielton Ribeiro

Introdução
Entre a arte e a saúde, o Museu de Arte Osório Cesar (MAOC), vin- 1
A lei federal n° 10.216, de 6 de abril
de 2001, dispõe sobre a proteção e
culado à Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de Franco da Rocha, os direitos das pessoas portadoras de
transtornos mentais e redireciona o
possui um acervo formado por mais de 8 mil obras que foram produzidas modelo assistencial em saúde mental.
por artistas que estiveram como internos do Complexo Hospitalar do Ju- Disponível em https://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm
query, instituição da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Acesso em 12 fev. 2021.
Criado pela lei municipal n° 1.360/2018, o MAOC passa por um pro­
cesso de reconhecimento da sua importância em seu território, formado
por moradores da cidade de Franco da Rocha e demais municípios da Bacia
do Juquery. O acervo artístico da instituição psiquiátrica, que até o mo­
mento pertence ao Estado de São Paulo, passará para a responsabilidade da
Prefeitura Municipal de Franco da Rocha, por meio da instituição museoló­
gica nela criada. Neste sentido, dividir com o município a respon­sabilidade
de preservação, pesquisa e comunicação do acervo artístico criado em
um contexto de saúde mental se aproxima dos objetivos da Reforma
Psiquiátrica1, por meio da Luta Antimanicomial, ao compartilhar com os
municípios a responsabilidade pelos serviços de saúde mental, visando um
contato direto e contínuo de atenção na dimensão pública local.
Todavia, para compreender essa realidade Em 1898 foi inaugurado o Asilo dos Alie-
no presente, é preciso contextualizar o período nados do Juquery. O projeto arquitetônico, ela-
de criação do Juquery, a atuação do médico e borado por Ramos de Azevedo, foi realizado
crítico de arte Osório Cesar na instituição, seu em sintonia com as ideias do psiquiatra Franco
pensamento estético e ações que culminaram na da Rocha, primeiro diretor da instituição médi-
criação do Museu Osório Cesar, o fechamento da ca. Franco da Rocha adotou o modelo de asilo-
primeira fase do museu e o processo de reabertu- colônia como principal referência ao Juquery.
ra como Museu de Arte Osório Cesar (RIBEIRO, Esse cenário é próximo ao contexto do
2019a; 2019b). nascimento da psiquiatria moderna na Europa,
no fim do século XVIII. Nesse período eferves-
cente pelo impacto da Revolução Francesa, o mé-
O Juquery
dico francês Philippe Pinel inaugurou o campo
Segundo Pizzolato (2008), o Complexo psiquiátrico explorando o conceito de alienação
Hospitalar do Juquery foi fundado sob o viés mental nos moldes científicos da época, marco
positivista que surgiu com a proclamação da Re- para o desenvolvimento da psiquiatria. Segundo
pública em 1889. Anteriormente, os alienados, Amarante (1996), Pinel defendia a clínica psiqui-
denominação da época para os pacientes psiqui- átrica como espaço dedicado exclusivamente aos
átricos, estavam em asilos superlotados ou divi- alienados e como ideal para a investigação e clas-
diam espaço com presos “normais”. A partir de sificação de seus atos “anômalos”.
uma perspectiva que confere um caráter mais Sob essa lente, a internação nos asilos era
científico ao tratamento da doença mental, em o primeiro passo para o tratamento do indivíduo.
conjunto com uma noção higienista, não somen- Pinel afirmava que os alienados eram acometidos
te em aspecto físico, mas também em aspecto mo- pela força incontrolável das paixões e, por essa
ral, se tornou necessária a criação de um hospital razão, não conseguiam atingir a plena liberdade.
psiquiátrico distante do centro da capital paulista. Os asilos são espaços disciplinares e todas as suas
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

Após a fundação de uma série de colônias ações visam instaurar a ordem moral aos inter-
agrícolas nas cidades de Itapetininga, Guaratin- nos (AMARANTE, 1996). O Asilo dos Alienados
guetá e Sorocaba, o psiquiatra Francisco Franco do Juquery é concebido nesta lógica, incorporan-
da Rocha, o engenheiro Theodoro Sampaio e o do duas noções importantes: o asilo-colônia e a
naturalista francês Albert Löefgren fizeram uma laborterapia.
comissão, no ano de 1892, com o intuito de pro- Para o médico Franco da Rocha, era impor-
por características topográficas adequadas para tante construir o asilo em local tranquilo, rural e
a criação de uma colônia estratégica à cidade de aprazível. O espaço bucólico poderia abrandar o
São Paulo. Entre as regiões estudadas, o Juquery tormento que a alienação mental causava ao su-
se destacou, de acordo com Pizzolato (2008), por jeito, segundo os defensores deste modelo de hos-
ser uma área de fácil locomoção através das li- pital. A laborterapia, por sua vez, consiste no uso
nhas de trem. de trabalhos manuais como recurso terapêutico.
10
No decorrer da história do Juquery, foram ofe- Os médicos do hospital tinham significa-
recidas diversas oficinas de mecânica, marcena- tivo interesse no estudo da mente e, em especial,
ria, carpintaria, tipografia, saboaria, sapataria, do corpo. Da relação entre esses binômios, os ar-
dentre outras. Os produtos confeccionados pro- tistas, à sua maneira, expressaram nas obras suas
porcionaram, muitas vezes, a autossuficiência do experiências e as indagações sobre a realidade
hospital (PIZZOLATO, 2008). interna e externa aos corpos.
Salienta-se que, apesar das semelhanças
com o contexto europeu, a psiquiatria brasileira
Osório Cesar
tem características particulares. Franco da Ro-
cha, de acordo com Ribeiro (2010), corroborou Nascido na Paraíba em 17 de novembro
com a teoria da degeneração, mas, por outro de 1895, o médico Osório Thaumaturgo Cesar é
lado, apresentava interesse no aspecto social da a figura central para a preservação e promoção
saúde mental e na Psicanálise. Pacheco e Silva, das obras artísticas do Juquery e foi pioneiro nos
psiquiatra que impulsionou as perspectivas or- estudos sobre arte como método terapêutico no
ganicistas e eugenistas na psiquiatria brasileira, Brasil.
foi o segundo diretor do hospital (1923-1937). A arte esteve presente na vida de Osório
Naquele período, algumas das primeiras obras Cesar antes mesmo de sua entrada no Juquery.
artísticas foram produzidas pelos internos. E Segundo Carvalho (2016), o médico paraibano
médicos, como Osório Cesar, se aproximaram do era descendente de uma família de musicistas
trabalho de Freud para interpretar as imagens. que participaram do Club Symphonico da
Esta história é narrada por alguns artistas/ Parahyba, a primeira orquestra sinfônica de
internos em suas obras. A paisagem rural, a ar- João Pessoa. Esta relação com a música, não
quitetura do Juquery e o cotidiano das colônias somen­te despertou a sensibilidade artística de
são temas centrais do acervo do MAOC. Nele, Osório Cesar, como o ajudou a viver na cidade

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


encontram-se reproduções de imagens de trata- de São Paulo. Entre os anos de 1912 e 1916, na
dos anatômicos em baixo relevo e cenas que en- capital paulista, ele foi violinista e professor de
volvem médicos e enfermos. música, enquanto estudava Odontologia. Após
A artista Lourdes da Costa Justino repre- concluir este curso, Osório Cesar se dedicou ao
sentou, por exemplo, uma cena de eletrochoque campo médico de anatomopatologia e com essa
sendo aplicada a uma paciente. Imagens como formação foi efetivado no quadro de funcionários
essas, que representam uma realidade mais fi- do Juquery.
gurativa, convivem com um universo imagético Embora tenha escolhido a carreira médica,
interior, mais simbólico ou abstrato. Cores vi- Cesar não abandonou o interesse pelas artes. Em
brantes e elementos disformes penetram as pai- São Paulo, o futuro médico trabalhou como vio-
sagens de alguns artistas, conferindo um aspecto linista na Villa Kyriall do senador e patrono das
menos realista às obras, profundamente subjeti- artes, Freitas Valle. Nesse espaço, Cesar teve con-
vo e sensorial. tato com os artistas do modernismo brasileiro.
11
2
“Em 1950, Osório Cesar reorganizou o
sistema classificatório e restringiu a análise Esses encontros estimularam o seu trabalho no Juquery e também a sua
da manifestação do alienado às obras de atuação como crítico e colecionador de arte.
artes plásticas, notadamente ao desenho.
Os quatro grupos principais receberam a Em 1923, ainda como estudante de medicina, Cesar teve o primei-
seguinte denominação:
1. Desenhos rudimentares e automáticos; ro contato com os desenhos dos internos do hospital. Notou que muitos
2. Arte simbólica e decorativa (semelhante
às produções de artistas de vanguarda);
pacientes tinham uma potência criativa e chegavam a usar suportes pouco
3. Neoprimitivismo; 4. Produções de caráter convencionais para materializar seus pensamentos e emoções, tais como
acadêmico” (CARVALHO, 2016, p. 230).
as paredes da instituição e miolos de pão para modelar esculturas. Dessas
primeiras observações, escreveu o artigo “A Arte Primitiva nos Alienados:
manifestação esculptórica com carácter simbólico fetichista num caso de
síndrome paranoide”, em 1924.
Em 1929, Osório Cesar publicou A Expressão Artística nos Alienados,
sua obra fundamental. Nesse livro são destacadas várias tipologias artís-
ticas, como a música, artes plásticas e a poesia no contexto do Juquery. O
estudo das imagens das obras apresentadas demonstra a influência aguçada
da psicanálise freudiana em seu trabalho. Semelhante a Freud, Cesar tem
interesse nos simbolismos, no que há por trás do conteúdo manifestado,
isto é, no significado que está oculto nas imagens expressas e que podemos
chamar de inconsciente:

A linguagem simbólica havia surgido quando o homem percebeu que a


liberdade dele podia ser coagida pelo desejo ou vontade do seu semelhante,
ou por uma coação do ambiente no qual vivia. O símbolo estava relacionado
aos momentos de revolta do homem diante da incapacidade de agir aos
fatos ou situações e, por essa razão, os símbolos representavam sentimentos.
Osório Cesar definia o símbolo como a exteriorização de fatos passados
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

localizados no inconsciente, e o estudo do simbolismo como uma maneira


segura de encontrar as bases fundamentais da construção “dos mitos, das
fábulas, das lendas e tradições populares”; enfim, “dos costumes e hábitos
ancestrais” de um povo (CARVALHO, 2016, p. 197-198).

Para compreender tais expressões artísticas, o médico paraibano pro-


pôs um sistema classificatório2, com base na comparação com os estilos ar-
tísticos reconhecidos a seguir:
1) Arte do primitivo (desenho e música): produções artísticas antigas,
como pinturas e gravuras rupestres;
2) Arte primitiva ou arcaica (desenho, escultura, decoração, poesia, mú-
sica, dança): estilos artísticos do bizantino, gótico e arte africana. En-
quanto as expressões artísticas da arte do primitivo “mostravam uma
12
compreensão anímica ou mágica do mundo de banhos do sexto pavilhão feminino. Nele eram
(...) a arte primitiva envolvia um tipo de pen- oferecidos materiais para desenhos, esculturas e
samento que teria sido originado a partir das pinturas em tela. Nos anos de 1950, Osório Cesar
relações totêmicas” (CARVALHO, 2016, p. assume a direção e a seção passa a ser chamada
216); de Escola Livre de Artes Plásticas (ELAP).
3) Arte clássica ou acadêmica (desenho, pin- Artistas plásticos como Maria Leontina,
tura, escultura, decoração, poesia, música, Moacyr Rocha e Clélia Rocha passaram pela
dança): estilo puramente técnico que visa a ELAP ensinando ou orientando determinadas
reprodução da realidade, seguindo os mode- técnicas artísticas. Entretanto, Osório Cesar en-
los europeus de arte acadêmica; tendia que os internos deveriam ser livres para
4) Arte de vanguarda (desenho, pintura, escul- produzir sem fortes influências externas. Nos
tura, decoração, poesia, música, dança): esti- primeiros 20 anos, algumas obras participaram
los das vanguardas europeias (cubismo, sur- de exposições, como a Exposição Internacional de
realismo). A arte da vanguarda relaciona-se Arte Psicopatológica no I Congresso Internacio-
com a arte do primitivo e a arte primitiva. É nal de Psiquiatria, em 1950, Paris, e a Exposição
densamente simbólica e obscura, associada dos Artistas Plásticos do Hospital do Juqueri, em
ao inconsciente. 1954, no Museu de Arte de São Paulo. Na década
Ponderando sobre o desenvolvimento do de 1970, as atividades da ELAP foram encerra-
acervo artístico do MAOC, incluindo o momen- das por fatores financeiros e pela superlotação do
to posterior ao falecimento de Osório Cesar, é hospital, que chegou a ter aproximadamente 16
possível notar que o atributo artístico conferido mil internos nos anos de 1960. Do acervo atual,
às obras permaneceu latente e hoje é ressaltado foram identificadas em torno de 2.500 obras da-
no nome da instituição, como um museu de arte, quele período.
acima de tudo.

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


Museu Osório Cesar (1985-2005)
A arte no Juquery Em 1983, um grupo de pesquisadores fez
uma vistoria no hospital psiquiátrico, organizada
A Escola Livre de Artes Plásticas
pela Coordenadoria de Saúde Mental do Estado
Na primeira metade do século XX, a pro- de São Paulo, e encontrou essas obras armazena-
dução da arte no Juquery era descentralizada, das em condições extremamente precárias. Esse
sem ter um espaço exclusivo para o fazer artís- grupo de pesquisadores, liderado pela professo-
tico. No fim da década de 1940, foi criada a Se- ra Maria Heloisa Corrêa de Toledo Ferraz, rea-
ção de Artes Plásticas, que destinava um ateliê de lizou as primeiras atividades museológicas com
artes para os internos do Juquery. O psiquiatra o acervo, incluindo documentação e conserva-
Mário Yahn foi o seu primeiro diretor. Segundo ção das obras e impulsionou a criação do Mu-
Ferraz (1989), o espaço do ateliê era a antiga sala seu Osório Cesar, em 1985. Em sintonia com o
13
museu, foi inaugurado um novo ateliê de artes O atual Museu de Arte Osório Cesar in-
para os pacientes do Juquery. Os trabalhos deste corpora o pensamento de Ferraz aos objetivos de
período também foram incorporados à institui- sua missão institucional, a partir de uma com-
ção, formando o acervo salvaguardado até hoje, preensão da instituição como um museu de arte
com aproximadamente 8.500 obras, entre dese- em diálogo com as questões de saúde mental e o
nhos em papel, pinturas em tela e esculturas em território no qual está inserido.
cerâmica e gesso.
No museu e ateliê de artes participaram
O Museu de Arte Osório Cesar
diversos profissionais como terapeutas e arte-
educadores. Entre eles, a própria Heloisa Ferraz, O Museu de Arte Osório Cesar (MAOC)
Sueli Donola, Solange Del Nero de Andrade foi criado pela lei municipal n° 1.360, de 2018,
Mello, Helena Barbosa Fenerich, Mônica Nador e para a preservação, pesquisa e comunicação das
Adhemar Molon Filho. No ano de 2005, ocorreu produções de artistas que estiveram como inter-
um incêndio de grandes proporções no hospital nos psiquiátricos do Complexo Hospitalar do
psiquiátrico, atingindo o prédio administrativo Juquery e está vinculado à Secretaria de Cultura
central e a biblioteca. O museu e seu acervo não da Prefeitura de Franco da Rocha. A lei é o pri-
foram afetados, mas por questões de segurança, a meiro instrumento jurídico de criação de uma
instituição foi fechada por tempo indeterminado instituição que, na prática, já existiu como Mu-
no mesmo ano. seu Osório Cesar, de 1985 até 2005, quando foi
Em sua tese de doutorado, Ferraz discor- fechada para uma possível obra de restauro, após
re sobre a necessidade de compreender o acervo o incêndio que atingiu o prédio administrativo
além do crivo médico: central do Complexo Hospitalar do Juquery, no
qual também estava localizada a biblioteca do
Enquanto Osório Cesar, em sua época, orga- hospital.
nizava mostras para divulgar os trabalhos dos
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

pacientes junto ao meio artístico e social, nós O restauro do prédio e a documentação


procurávamos um caminho inverso: levar à do acervo
comunidade científica uma de nossas premis-
sas básicas que era não fazer simplesmente O processo de restauro foi iniciado em
uma abordagem psicológica. Pedíamos que se 2013, a partir de uma parceria entre a Prefeitu-
detivessem também nas referências estéticas ra de Franco da Rocha e o Complexo Hospitalar
que estavam presentes nas obras dos pacientes, do Juquery, para ser reaberto no âmbito munici-
o que facilitaria uma leitura mais próxima da pal como Museu de Arte Osório Cesar, com um
linguagem de cada um. Pretendíamos ainda, acervo formado a partir das produções artísticas
sensibilizar a área de saúde mental para a efe- da Escola Livre de Artes Plásticas (ELAP), entre
tivação do museu que estávamos preparando
as décadas de 1940 e 1970 e do Atelier de Arte do
(FERRAZ, 1989, p. 170-173).
Museu Osório Cesar, entre os anos de 1985 e 2005.
14
Em 2014, a prefeitura foi contemplada por debater as possibilidades de apresentação do seu
um edital do Fundo de Interesses Difusos (FID) acervo, formado entre a arte e a saúde.
da Secretaria de Justiça e Cidadania do Governo Segundo Ferraz (1998), o nome “Osório
do Estado de São Paulo e, em 2017, com a assi- Cesar” foi proposto pela própria comunidade
natura de um convênio, os recursos foram libera- durante o processo de criação do antigo museu
dos para o início das obras de restauro e estrutu- como uma forma de homenagear um dos prin-
ração da instituição. Estes recursos se somaram cipais divulgadores das produções artísticas no
aos investimentos municipais para a contratação Juquery, que se tornaram importantes contribui-
de profissionais técnicos em serviços especializa- ções na história da arte brasileira.
dos para o museu. O museu está sediado, desde 1985, na an­
No projeto de restauro e estruturação fo- tiga Casa do Diretor do hospital, que abrigou o
ram incluídas ações especificamente voltadas médico Franco da Rocha, idealizador e primeiro
para o acervo, como a higienização, catalogação e diretor da instituição, bem como se tornou
fotografia de obras, que foram iniciadas em 2017. patro­no da cidade. Trata-se de uma construção
Nesse sentido, também foi contratada a museólo- que in­ tegra o conjunto inicial do complexo,
ga Cecília Machado para a elaboração do Plano pro­jetado pelo Escritório Ramos de Azevedo e
Museológico. O serviço consistia na definição tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio
dos programas a serem trabalhados pelo MAOC Histó­rico, Arqueológico, Artístico e Turístico
a partir de um planejamento estratégico, fruto de (CONDEPHAAT), desde 2011.
um acompanhamento das ações relativas ao pro- Essas são algumas questões particulares do
museu que se tornaram presentes nas formações
cesso de abertura do museu.
culturais, pois poderia se propor a ser um museu
histórico sobre o Juquery, sobre a cidade de Franco
Palestras e formações culturais
da Rocha, um museu-casa sobre os médicos

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


Entre 2017 e 2019, a prefeitura, por meio Franco da Rocha ou Osório Cesar ou, até mesmo,
da Secretaria Municipal de Cultura, organizou um museu de arte sobre as produções de artistas
palestras e formações culturais abertas ao pú- da cidade. Por fim, foi definido como um mu­
blico para dialogar com a comunidade local e seu de arte sobre as produções artísticas em um
demais interessados pelo MAOC, convidando contexto de saúde mental, mais especificamente
pesquisadores para comunicações sobre as pro- no Juquery, preservando a homenagem a Osório
duções artísticas no Juquery, o médico e crítico Cesar e assumiu-se uma posição de entendimen-
de arte Osório Cesar, o médico Franco da Rocha, to das produções dos artistas do Juquery como
a formação da cidade e a construção arquitetôni- obras de arte ao nomear a instituição como Mu-
ca do Juquery. Estes eventos contribuíram para a seu de Arte Osório Cesar.
definição dos objetivos do MAOC, enquanto pri-
meiro e único museu da cidade, bem como para
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A exposição de longa duração “Há luz Neste sentido, expor pelo menos uma obra de
atrás dos muros” cada artista se tornou uma das intenções da cura-
doria, como forma de dar visibilidade aos nomes
O artista Pedro Quintanilha, morador de e expressões de seus criadores.
Franco da Rocha que conviveu com alguns ar- A ideia do acúmulo se tornou presente,
tistas do Atelier de Arte do Museu Osório Ce- tendo como principal referência a exposição das
sar, entre eles, o artista Ubirajara Ferreira Braga produções artísticas nas paredes da ELAP, pela
(artista com mais obras no acervo do MAOC), e artista Maria Leontina, que atuou como orien-
o antropólogo Hélio Menezes foram convidados tadora de artistas do Juquery. Essa organização
para serem os curadores da exposição de longa pode ser vista em fotografias de Alice Brill, feitas
duração do MAOC, marcando a sua inauguração. em 1950, quando visitou a então Seção de Artes
Pedro Quintanilha e Hélio Menezes tive- Plásticas que foi transformada anos depois em
ram o desafio de fazer uma seleção entre as mais ELAP. Essas fotografias integram o acervo do
de 8 mil obras do acervo, em uma pesquisa so- Instituto Moreira Salles (IMS).
bre as composições, considerando os dois prin- Nesse anseio, as duas salas do MAOC que
cipais períodos de criação artística e temáticas eram inicialmente destinadas para exposições
recorrentes, como a religião, a sexualidade, as temporárias de curta duração passaram a ser
representações de paisagens e as construções de ocupadas pela exposição de longa duração, mas
retratos. com obras que versam sobre a produção indivi-
A partir das obras, se tornou possível dual de alguns artistas ou no aprofundamento de
abordar o processo de formação do MAOC, uma temática, como a natureza-morta. Assim,
com representações do Juquery, do museu, assim permitiu-se que essas obras fossem substituídas
como de figuras emblemáticas, entre elas, Osório por outras do acervo, sem prejudicar a constru-
Cesar, Sigmund Freud e Franco da Rocha. Com ção da narrativa da exposição e contribuindo
isso, aproximadamente 280 obras foram selecio- para a diversificação das obras do MAOC em
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nadas para integrar a exposição e ocupar as salas exibição.


do MAOC, que apresenta uma arquitetura gran- “Há luz atrás dos muros” foi o título es-
de para uma casa, mas pequena para um museu colhido para a exposição de longa duração, com
com um acervo tão extenso. uma curadoria de imersão pelas produções de ar-
Tanto os curadores quanto a equipe do tistas do Juquery. Ao lado da recepção do MAOC
MAOC possuem uma compreensão das pro- e, antes de adentrar as salas da exposição, uma
duções artísticas do acervo como obras de arte, sala foi reservada para a exibição de um vídeo
ainda que tenham sido criadas em um contexto de sensibilização sobre a trajetória do médico e
hospitalar como possibilidade terapêutica. Além crítico de arte Osório Cesar e sua relação com o
disso, compreendem as obras como registros de Juquery. Nesse sentido, uma lacuna da exposição
vidas de pessoas que passaram pelo Juquery e na sobre essa importante figura na construção do
instituição ficaram isoladas do convívio social. museu foi suprimida. Assim, estabeleceu-se um
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diálogo com a mostra, ao mesmo tempo em que Nessa terceira fase de comunicação das
outra forma de comunicação do museu com os produções artísticas no Juquery, na qual o
visitantes foi oferecida, através de recurso audio- MAOC se encontra, a ação educativa entra como
visual, sensorial e de imersão. um setor já consolidado na museologia brasilei-
ra e necessário para a mediação do acervo, no
Ação Educativa do MAOC cruzamento das diretrizes de comunicação e de
pesquisa. Nesse sentido, a prefeitura realizou
Ao lado do prédio principal do museu,
contratações específicas de educadores, sendo
que já foi uma casa, tem uma edificação menor,
André Bispo e Nádia Lima, respectivamente, os
construída para ser a Casa do Motorista e que
responsáveis pelo desenvolvimento do programa
passou a abrigar o Educativo do MAOC. Nes-
educativo e de um projeto educativo, que passa-
ta nova configuração da instituição, este espaço
ram a integrar o Plano Museológico, em diálogo
passou a servir para a realização de atividades
com a equipe do MAOC.
em grupos, com propostas de reflexões sobre o
acervo e oficinas a partir das obras de artistas do
Quadro de funcionários
Juquery. Essas ações estão sendo pensadas para
ocorrer em paralelo com as visitações à exposi- A contratação da equipe técnica, em ques-
ção de longa duração e à sala de vídeo, tendo em tão, integra as ações de estruturação do MAOC
vista a necessidade de distribuição do público pela prefeitura, que previu a efetivação de cargos
pelos espaços físicos do museu, que comportam museológicos na lei de criação, bem como a con-
poucas pessoas, aproximadamente 15 por visita. tratação de estagiários para o Educativo. Nesse
A ação educativa está intrinsecamente rela- sentido, foi aberto o concurso público que levou
cionada com o processo de formação do acervo do à contratação dos autores deste texto: Elielton
MAOC, tanto na primeira fase, com a criação da Ribeiro, no final de 2018, como Técnico de Mu-
ELAP, entre as décadas de 1940 e 1950, com uma seu, e Michelle Louise Guimarães, em junho de

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metodologia de livre expressão para a criação ar- 2019, como Museóloga.
tística, quanto na segunda fase, a partir de 1985, São novos cargos de servidores na estru-
com a criação do Atelier de Arte dentro do Museu tura administrativa da prefeitura, para uma atu-
Osório Cesar. Essa primeira configuração do mu- ação no primeiro e, até o momento, único mu-
seu foi criada na década de 1980 como um desdo- seu municipal. Ainda que o museu possua uma
bramento da tese de doutorado desenvolvida pela articulação específica entre a arte e a saúde, não
professora e arte-educadora Heloisa Ferraz sobre deixa de possibilitar inúmeros diálogos com a ci-
a ELAP, com orientação da também professora e dade e sua formação.
arte-educadora Ana Mae Barbosa. Já o Atelier de
Arte foi criado como uma forma de retomar as
ações da ELAP e contribuir para a estruturação de
um setor de ação educativa no museu.
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Considerações finais definição “arte” oferece um valor que pode ser
debatido, mas assumimos seu uso para ampliar
Entre as mais de 8 mil obras do museu, as possibilidades de investigação sobre o acervo.
muitas representam lembranças de um mundo Nos primeiros dois meses de visitação do
anterior à internação no Complexo Hospitalar público (dezembro de 2020 e janeiro de 2021), o
do Juquery. Nas pinturas e desenhos há a paisa- museu recebeu mais de 4 mil visitantes. O perfil
gem que circundava a instituição, mas também deste público engloba, em primeiro lugar, a po-
nota-se ambientes longínquos às realidades ime- pulação francorochense e pessoas oriundas de
diatas de nossos(as) artistas. A arte pode ampliar municípios da Bacia do Juquery, como Francisco
os horizontes que nossos olhos não alcançam e, Morato e Caieiras. Muitos visitantes comentam
de modo concomitante, revelar caminhos para que foram funcionários do hospital psiquiátrico
dentro de nós. Não há confinamento que impeça ou que conheceram pessoas internadas na insti-
os movimentos da memória e da arte. Em 2020, tuição. Para nós, esses depoimentos são ótimas
ano em que o mundo precisou optar pelo isola- indicações do fortalecimento dos laços entre a
mento como medida de preservação da vida, o população de Franco da Rocha e o museu.
Museu de Arte Osório Cesar foi inaugurado. Os próximos passos do MAOC visam pre-
A abertura de uma instituição cultural encher lacunas existentes na história do acervo e
em um ano tão atípico representou um desafio abrir caminhos para narrativas de histórias ainda
para todos os profissionais que participaram do não contadas ou pouco difundidas sobre a arte
processo. Entretanto, após a inauguração, sur- no Juquery. No momento atual, temos poucas
gem novos desafios, enriquecedores pelas po- informações biográficas sobre os artistas, pois
tencialidades que oferecem à futura trajetória da o acesso aos prontuários médicos leva em conta
instituição. complexas diretrizes éticas. Acentuamos, entre-
O acervo artístico do Juquery possui uma tanto, que o documento médico não encerra a
história de aproximações e distanciamentos. Es- história de cada artista ou expressa a versão mais
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ses artistas possuem duas características em co- fidedigna de suas vidas, sendo uma fonte de pes-
mum: foram internos do hospital psiquiátrico e quisa, dentre outras possibilidades.
produziram as obras no ambiente hospitalar. En- No século XX, o papel social dos museus
tretanto, possuem variadas experiências de vida foi amplamente debatido, de modo semelhante,
e suas expressões artísticas recorrem a estilos e em certo nível, ao papel dos hospitais psiqui-
técnicas diversificados. átricos (GUIMARÃES, 2018). As instituições
O MAOC tem o intuito de promover as museológicas muitas vezes enclausuram em suas
obras sem adjetivá-las de modo restrito, enfati- reservas técnicas a história de diversos grupos
zando a natureza multicultural do acervo, como invisibilizados, enquanto para o público, nas sa-
também, a receptividade da arte que faz com que las de exposição, apresenta-se uma pretensa his-
pessoas de contextos tão diferentes possam se tória universal que serve aos interesses dos gru-
reconhecer no outro. Acreditamos que a própria pos dominantes. O agir “extramuros” tornou-se
18
uma das principais ferramentas para colocar em
xeque a história oficial dos grandes museus, tal
como a atual Reforma Psiquiátrica e a Luta An-
timanicomial enfatizam a possibilidade de pen-
sar o cuidado além dos limites do hospital ou
além das fronteiras do próprio saber psiquiátrico
institucional.
O Museu de Arte Osório Cesar está aberto
para ser espaço de promoção de debates referen-
tes à museologia, à arte e à saúde mental.

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Referências
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entre Arte, Saúde Mental e Museologia. ANAIS da III Jornada de Pesquisa em Arte. PPG IA
UNESP – 3ª Edição Internacional, 2019b.
20
O colecionamento da arte
de loucos no Hospital
Psiquiátrico do Juquery:
uma resposta da medicina
psiquiátrica aos embates da
experiência artística moderna
Rosa Cristina Maria de Carvalho

Introdução
Colecionar não é apenas reunir uma categoria, ou algumas categorias, de
objetos. Essa ação solicita uma escolha determinada por princípios que justifi-
quem a reunião. Por essa razão, este texto foi escrito com o objetivo de mostrar a
complexidade de argumentos que nortearam a organização das coleções de obras
de loucos no Hospital Psiquiátrico do Juquery no extenso período de 1911 até a
organização do Museu Osório Cesar, em 1985. No entanto, o enredo apresenta-
do está distante de ser um relato pormenorizado do processo de colecionamento
nesse hospital psiquiátrico, para ser um texto no qual foram expostas as iniciati-
vas de colecionamento e os profissionais que se destacaram como colecionadores.
O enfoque deste texto é situar a prática de colecionar como ação condizente
com a formação da sociedade moderna e salientar o embate ideológico entre
arte, saúde e doença; civilização e barbárie. Para isso, apresenta-se sucintamente
a relação entre genialidade e loucura na psiquiatria europeia, mostrando como
esse tema foi desenvolvido pelos médicos colecionadores, inclusive entre aqueles
1
A criação de grupos de estudo e de que conviveram com artistas. Em seguida, são expostos os pareceres de
congressos de psiquiatria para discutir as
coleções hospitalares era prática comum médicos do Hospital Psiquiátrico do Juquery que dialogaram com o tema
dos médicos desde o final do século XIX.
Auguste Armand Marie (1905; 1929) genialidade e loucura e se posicionaram perante a polêmica sobre o caráter
mencionou as instituições de saúde italianas
e inglesas como pioneiras dessa prática na
patológico da arte de vanguarda. E, finalmente, são abordados: o processo
Europa. de colecionamento no Juquery, destacando-se os objetivos de seleção das
2
O asilo e o tratamento da doença mental, obras; e a singulari­dade da coleção do médico e crítico de arte Osório Cesar.
assim como a separação da loucura
e da criminalidade, foram questões
fundamentais desse conflito, visto que
a organização do hospital psiquiátrico A apreciação das coleções hospitalares e o embate
foi uma estratégia da classe burguesa
dominante para controlar, pelo poder entre a doença e a criatividade
médico e da doença, a pobreza e a
marginalização de alguns setores sociais Em âmbito psiquiátrico, o colecionamento foi tratado inicialmente
prejudicados pelo desenvolvimento
industrial. como um método complementar de estudo da condição física e psíquica
dos pacientes. A equipe médica de clínicas e instituições de pesquisa uni-
versitárias reunia séries de documentos1, principalmente desenhos, foto-
grafias, escritos e objetos artesanais, por meio dos quais os neurologistas,
psiquiatras e anatomistas buscavam um entendimento dos sintomas, das
causas e de possíveis tratamentos para as perturbações mentais. Assim, fo-
ram organizados verdadeiros acervos hospitalares para consulta, escolha e
empréstimo de documentos aos estudiosos que demonstravam predileção
pela análise de textos e de desenhos, mas mantinham o indivíduo adoenta-
do como enfoque do estudo e atribuíam valor secundário aos documentos
coletados.
O interesse na qualidade material, formal e gráfica dos documentos
apareceu claramente no início do século XX com o surgimento do médico
colecionador: intelectual que convivia e procurava responder às inúmeras
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questões e ambivalências decorrentes do conflito ideológico entre a ciência


positiva e a sua crítica, preconizada pelo pensamento romântico2.
Com uma formação eclética, o médico colecionador foi um profissio-
nal que não rompeu com o racionalismo e com o avanço da ciência médica.
Ele investigou as doenças mentais e empregou métodos de tratamento ci-
rúrgicos e químicos, mas ele não se limitou aos estudos de sua área e se in-
seriu na cultura de seu tempo, demonstrando apreço pela arqueologia, pela
etnografia e pelas artes. Certamente, esse médico esteve atento ao debate
que surgiu a partir da crença romântica na relação da inspiração genial com
a loucura e a associação que foi estabelecida com o artista.
A excepcionalidade da inspiração artística foi uma das principais
questões que ocupou a medicina psiquiátrica na segunda metade do século
22
XIX e ao longo do século XX. Esse assunto, que atributo artístico. Os loucos estavam envolvidos
se tornou popular no meio científico, foi visto em uma atividade constante de expressão plás-
como um fenômeno a ser esclarecido pelo saber tica repetitiva, compulsiva, da qual resultavam
intelectual, uma vez que o estudo de grandes per- composições desproporcionais, cheias de figuras
sonalidades artísticas mostrou que muitas delas ambíguas ou de abstrações lineares. Extrema-
sofreram de perturbação mental em algum mo- mente coloridas, essas obras, segundo Lombro-
mento da vida. Desse modo, o comportamento so, eram a manifestação do estranhamento e da
desinibido do artista foi interpretado como uma perversão, marcadas, principalmente, pela pre-
espécie de anomalia da personalidade genial e, sença constante de temas eróticos e alegóricos
por essa razão, a medicina psiquiátrica começou (MACGREGOR,1989).
a observar atentamente o comportamento dos Lombroso não tolerava a ambiguidade
loucos, inclusive o hábito deles de se manifesta- simbólica das obras dos loucos. Ele pensava o
rem por meio de alguma linguagem artística. símbolo como o resultante da correspondên-
O doutor Cesare Lombroso se destacou cia objetiva entre o signo e o seu significado.
no estudo dos fenômenos mentais relacionados Logo, as alegorias presentes na obra dos loucos
à criação por ter elaborado uma metodologia de foram interpretadas apenas como representa-
classificação da produção intelectual e artís­tica de ções de ideias doentias. Além disso, os estilos
loucos e de personalidades geniais, com o objetivo das obras contribuíam para o estranhamento,
de caracterizar a linguagem da loucura em sobre os quais Lombroso estabeleceu compa-
oposição à cultura do civilizado (MACGREGOR, rações com trabalhos de épocas remotas, como
1989). o período pré-histórico e a Idade Média, para
No que se refere à loucura, Lombroso atri- provar que a produção dos loucos era a expres-
buiu uma causa hereditária para esse distúrbio e são de vestígios psicológicos da mente primitiva
desconsiderou a responsabilidade social na for- (MACGREGOR,1989).

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mação das doenças mentais. Nessa perspectiva, A interpretação de Lombroso favoreceu
os desenhos e escritos dos loucos (que Lombroso a aproximação das obras dos loucos com a arte
colecionou em conjunto com uma variedade de romântica e simbolista e, posteriormente, com
documentos, todos julgados estranhos) foram as estéticas de vanguarda, uma vez que serviu de
compreendidos como evidências patológicas base às inúmeras pesquisas que reafirmavam ou
comprovadas pelos temas e estilos dos traba- contestavam o caráter psicopatológico da produ-
lhos e pelo comportamento dos doentes. O pró- ção do louco e da arte moderna.
prio hábito de desenhar, em casos de loucura, O médico Max Nordau, fundamentado na
era sintoma para Lombroso, que fez uma leitura interpretação patológica de Lombroso da simbo­
nosológica das obras dos loucos tendo como pa- logia presente nas obras de loucos, recriminou
râmetro de análise a saúde e a beleza, segundo os movimentos de arte como produto de men­
a ordem racional. Para ele, as obras dos loucos talidades degeneradas. O degenerado, segundo
não eram originais e não possuíam qualquer Nordau (1909), era um indivíduo emo­ tivo,
23
pessi­mista, luxurioso, anarquista (porque não com o mundo, ou seja, afastar o signo de seu sig-
conseguia se adaptar às normas sociais) e místico nificante real. Na poesia pura, por exemplo, as
(por deixar-se conduzir pelo instinto, pelo sonho palavras eram símbolos, eram evocações de coi-
e pela religião). sas materiais ou emoções, mas nunca era a coisa
A partir desse conceito, Nordau condenou em si (GOMES, 1994).
o extremismo e a violência do comportamento Distanciar a obra de sua materialidade foi
dos artistas românticos, simbolistas e decaden- uma estratégia da classe artística para protestar
tistas e os acusou de charlatanismo, pois ele via contra a mercantilização do trabalho de arte. O
apenas deformação, incoerência, fantasia e mis- artista (fosse pintor, músico ou poeta) que assu-
ticismo nas obras desses artistas. miu uma postura crítica ao capitalismo e à indus-
Além da agressividade destinada aos artis- trialização do final do século XIX, recorreu ao
tas, Nordau interpretou os movimentos de arte psíquico, ao espiritual, para dele acessar imagens
pré-vanguarda como a revelação da barbárie, arquetípicas, estados inocentes, paradisíacos (ou
ou seja, o retorno a estados selvagens da huma- ainda às reminiscências que atingiam a coletivi-
nidade. Nordau entendeu a revolta dos artis- dade) e criar a metáfora pelo uso dos elementos
tas ao capitalismo e ao pensamento organicista das linguagens artísticas. Agindo desse modo, o
como recusa em colaborar com o progresso da artista acreditava estar elaborando outra maneira
nação. Para ele, os representantes desses movi- de o homem se corresponder com o mundo, pois
mentos estéticos só podiam esperar a zombaria havia o receio da perda da capacidade humana
do homem de ciência. O estudo de Nordau re- de viver a dimensão poética, uma vez que o ho-
presentou a crítica da classe científica ao pro- mem se filiava ao racional, com maior intensi-
testo da classe artística contra a banalização da dade, como sinônimo de progresso e civilização
arte em decorrência do progresso científico e da (GOMES, 1994).
industrialização. Em decorrência desse temor, o artista pro-
No entanto, na passagem do século XIX ao curou na cultura primitiva os estados de cons-
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XX, os artistas que se recusavam a viver segundo ciência necessários para entender a dimensão
a ordem imposta pela burguesia industrial, que simbólica e sinestésica da natureza. A busca do
tinha como princípio a competição e o lucro des- primitivo foi a alternativa encontrada pelo poeta
medido, buscavam outros modos de perceber o e pelo artista para atender à necessidade da po-
mundo nas sociedades consideradas primitivas e esia, da linguagem mítica e, assim, se diferencia-
na loucura. Eles escolheram o refúgio no exótico e rem do contexto social.
na linguagem pura, e a intuição ao invés da razão. Persistindo no objetivo de criar uma opo-
A linguagem pura almejada por esses ar- sição aos valores da classe burguesa, os artistas
tistas, que foi a base da lírica simbolista, consistiu da nova ordem desconsideravam o belo, o bom
em construir a obra de arte desvinculando seus e o saudável que essa classe representava. Conse-
elementos formais dos elos que eles estabeleciam quentemente, o profissional das artes assumiu o
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papel de louco por entender na loucura o avesso e surrealistas, passaram a colecionar trabalhos de
da norma social estabelecida. Os artistas procu- loucos e a formar conjuntos com obras de arte
ravam a inspiração para o trabalho de arte em de diferentes culturas, incluindo máscaras e ob-
todos os meios que a sociedade científica e a tra- jetos de culto de povos africanos, ameríndios e
dicionalista julgavam doentios. Às acusações que do continente oceânico. Por vezes, esses objetos
sofriam, os artistas se defendiam e alegavam que de arte não europeia podiam compor coleções
o homem científico estava em processo de aliena- hospitalares como domínio de comparação, no
ção por se afastar da convivência com a natureza intuito de investigar a produção criativa do louco
e por priorizar a consciência lógica em detrimen- e suas semelhanças estilísticas com a arte.
to dos instintos e das sensações (GOMES, 1994). O doutor Auguste Armand Marie (1929),
Nesse contexto de conflito ideológico, a responsável por uma das maiores coleções de
loucura e a cultura primitiva foram os princípios arte de loucos da psiquiatria francesa, foi um dos
que fundamentaram a oposição entre a classe primeiros médicos a afirmar a necessidade de ve-
científica e a classe artística de vanguarda, um rificar o funcionamento da mente perturbada e o
confronto que foi recebendo novos olhares para da mente normal (por meio da identificação de
a arte e a loucura ao longo do século XX e que uma lei psicológica comum e da atuação desta lei
trouxe consequências para o colecionamento nos no psiquismo do artista e no psiquismo do pa-
domínios psiquiátrico e artístico, uma vez que o ciente), para evitar associações preconceituosas e
médico colecionador e o artista ficaram impres- descabidas entre os artistas e os loucos.
sionados com a excepcionalidade da capacidade O doutor Hans Prinzhorn, que organizou
mental demonstrada nos estados de loucura. Os a mais importante coleção de arte de loucos
médicos começaram a investigar a real dimensão no hospital psiquiátrico da universidade de
patológica dessa capacidade (que foi apontada Heidelberg, foi o maior contestador da meto­
por Lombroso e por seus seguidores), pois eles dologia de Lombroso de apontar as características

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sabiam que os psiquismos do indivíduo normal da pato­ logia mental nas obras. Em verdade,
e do anormal eram regidos pelas mesmas leis. As Prinzhorn ficava incomodado com os estudos
obras, para eles, antes de terem um valor artís- clínicos realizados no período correspondente às
tico, documentavam a natureza da capacidade duas últimas décadas do século XIX e a primeira
mental do louco. do século XX, porque ele verificava o desprezo
Sob esse ponto de vista, as coleções forma- dos médicos pelas configurações das obras
das pelos médicos, no início do século XX, po- colecionadas. Para ele, os aspectos essenciais das
diam ser consideradas exemplares da criativida- obras dos loucos não haviam sido estudados,
de do louco, mas isso não significava que médicos quais sejam: o caráter fantástico das obras e a
atribuíam valor artístico às obras. Esses valores percepção mística do mundo.
começaram a ser pensados a partir do momen- Segundo Prinzhorn (1984), as obras
to em que os artistas, notadamente dadaístas dos loucos eram signos de comunicação e
25
3
Como interno no Hospital Sainte-Anne, concretizavam um tipo de necessidade vital na qual a forma comunicava
o doutor Jean Vinchon começou a estudar
as relações entre o automatismo psíquico sentimentos e percepções mágicas resultantes de uma relação sensível com
e a criação artística, e esse interesse
o aproximou do escritor Guillaume o mundo: uma relação de sensibilização dos objetos. A percepção de mundo
Apollinaire, com quem iniciou uma
discussão sobre o fenômeno da genialidade
na loucura era semelhante à inspiração em estado puro e, por essa razão,
e da loucura. Vinchon mostrou desenhos e as obras dos loucos, para Prinzhorn, podiam ser consideradas artísticas,
escritos de pacientes do hospital ao poeta,
assim como emprestou obras de loucos uma vez que evocavam a produção de arte da humanidade desde as mais
para ilustrar revistas publicadas pelo grupo
surrealista. A respeito da convivência de remotas épocas.
Jean Vinchon com os artistas de vanguarda, E a respeito da recorrente associação da arte de vanguarda com as
ver: READ, Peter. Apollinaire et le docteur
Vinchon: poésie, psychanalyse et les obras colecionadas nos hospitais psiquiátricos, Prinzhorn afirmava que am-
débuts du surréalisme. Revue des sciences
humaines, n. 307, p. 35-59, jul/set. 2012. bas eram manifestações de um estranhamento individual do mundo exter-
no, resultante de uma experiência de inadaptação, mas esse estranhamento
na loucura era suportado como algo em que o louco lutava antes de se en-
tregar ao delírio. Diferente da atitude excêntrica dos artistas que, conforme
Prinzhorn, era uma consequência do sentir o mundo tradicional de modo
desagregado e, por consequência, o artista precisava criar um mundo novo
e uma nova arte tendo como referência as culturas não europeias.
Distanciando-se um pouco dos valores atribuídos por Hans Prinzhorn
às obras dos loucos, o doutor Jean Vinchon (1950), médico sensível às artes
e próximo dos simbolistas e surrealistas, afirmava que as obras dos loucos
não podiam ser colecionadas como arte, embora fossem imagens mentais
originais, pois a elas faltavam a harmonia estrutural que conferia unidade à
composição. Somente na presença dessa harmonia as obras de artistas, que
tinham sido acometidos de loucura, eram qualificadas como geniais3.
A aproximação dos médicos com a classe dos artistas de vanguarda
no intuito de estudar o caráter estético das obras de loucos foi significativa
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

no período entre guerras, momento no qual os artistas, sobretudo os surre-


alistas, receberam o apoio dos doutores Gaston Ferdière e Lucien Bonnafé
no empréstimo de obras de suas coleções para comporem exposições or-
ganizadas com o objetivo de enfatizar o valor poético e humano da arte de
vanguarda, que naquele momento era alvo de preconceitos decorrentes da
intransigência de governos totalitários, principalmente da campanha nazis-
ta contra a abstração na arte (DUROZOI, 2002; SÉGALAT, 1968).
No que diz respeito às coleções formadas por profissionais da medicina,
o olhar do artista deslocou as obras de seu conjunto, geralmente identificado
pelo nome da instituição hospitalar ou do psiquiatra que as colecionava,
para conferir-lhes pessoalidade estilística a partir do reconhecimento
26
do indivíduo criativo. Assim, entre os surrealistas começaram a ganhar 4
De acordo com Durozoi (2002), Gaston
Ferdière reconheceu a relevância do
destaque as esculturas de Auguste Forestier, as pinturas de Adolf Wölfli e movimento surrealista, que criticou o
tratamento asilar em suas obras literárias
de Guilhaume Pujolle, e os desenhos de Albert G, conhecido como Baron e intelectuais, para a mudança na postura
clínica dos psiquiatras.
de Ravallet.
As obras dos loucos tiveram o seu lugar na arte somente após a Se-
gunda Guerra Mundial com o princípio da arte bruta pensada pelo pintor
Jean Dubuffet, que legitimou a genialidade como a mola propulsora da ver-
dadeira arte, essa que procedia de um estado espiritual presente no psi-
quismo do ser humano, próximo ao delírio e à mania. A criação não era o
resultado da razão, mas da clarividência, dizia Jean Dubuffet (1967).
Mantendo a antiga crítica ao capitalismo desmedido, à mediocridade
do homem “civilizado” e ao mercado de arte, o movimento da vanguarda
artística continuou a procurar na imaginação sem freios do louco e no pen-
samento mágico (o qual os artistas atribuíam ao sistema de vida dos povos
pré-históricos e de culturas não europeias) a relação poética com o mundo,
em que a arte e a ciência não estavam separadas e o homem se mantinha
próximo da natureza.
A necessidade dos artistas de elaborar uma filosofia que priorizasse a
comunhão do homem com o universo teve suas consequências na medici-
na, pois o envolvimento do artista no estudo das obras criativas dos loucos
fez o médico repensar a psiquiatria, os tratamentos e até mesmo o modo de
olhar as obras colecionadas4.

A polêmica comparação entre loucos, artistas e gênios

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


segundo os profissionais do Hospital Psiquiátrico do
Juquery
A natureza da capacidade criativa dos loucos foi um dos assuntos que
impulsionou o médico ao colecionamento das obras em ambiente hospita-
lar brasileiro, ao lado dos objetivos terapêuticos de cura e alívio de sintomas
e da ressocialização dos pacientes. De modo semelhante às condutas dos
psiquiatras europeus, as investigações dos médicos sobre o processo criati-
vo de pessoas sob o diagnóstico de doença mental, principalmente esqui-
zofrênicos, não estavam separadas das mudanças culturais que marcaram a
modernidade em nosso país, representadas por uma série de contradições
ideológicas geradas pelo conflito entre duas noções de progresso: o científi-
co/industrial e o humano/artístico.
27
O progresso científico estava fundamen­ como imitação da natureza) que, ao se sentirem
tado na razão e sua sistemática favorecia o ameaçados, tomaram de empréstimo o conceito
desejo das elites republicanas de transformar a de degeneração proposto por Max Nordau para
capital federal e as principais províncias em ver­ acusar pejorativamente o grupo que se opunha
dadeiras metrópoles, uma vez que a burguesia a eles.
direcionou, pela lógica capitalista, seu projeto de As consequências da incompreensão do
urbanização e formação da sociedade moderna público leigo e especializado à arte moderna fo-
(CAMARGOS, 2001). ram desastrosas à medida que a ideia de arte e de
Nesse cenário de pretenso desenvolvimen- artista degenerados foi utilizada como manobra
to, a classe de artistas, que analisava criticamente política durante e após a Segunda Guerra Mun-
as consequências sociais da modernidade dire- dial. O caráter político-econômico atribuído à
cionada pelo industrialismo desmedido, temia a arte de vanguarda deturpou a finalidade dessa
mercantilização da obra de arte e a desvaloriza- arte que passou a ser vinculada ao charlatanis-
ção do fazer poético. Essa classe, embora avessa mo e a interesses puramente mercadológicos, o
ao hábito da intelectualidade brasileira de impor- que não condizia com a realidade, pois, como já
tar modismos franceses, se aproximou dos ideais foi exposto neste texto, a nova arte era uma crí-
do movimento simbolista de defender o trabalho tica à lógica capitalista e aos sistemas políticos
de arte como a concretização de uma inteligência ditatoriais.
especial, oriunda de estados espirituais superio- A medicina mental, pela própria relevân-
res com o objetivo de criar a oposição à moral cia social que ocupou como área de conhecimen-
burguesa do lucro e à razão científica. to, teve os seus saberes envolvidos nesse conflito
Essa atitude contestatória dos artistas e os seus profissionais não foram indiferentes às
abriu espaço, no início do século XX, para mu- comparações estabelecidas entre o artista e o lou-
danças na arte brasileira, iniciadas com a busca co, assim como à hipótese do despertar de habili-
desses profissionais por novos códigos artísti- dades geniais na loucura.
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

cos que transmitissem uma percepção atual do Por ter sido construído cinquenta anos de-
mundo. Para atender ao anseio de mudança, as pois do Hospício de Pedro II no Rio de Janeiro e
escolas de vanguarda europeias, que no Brasil por estar localizado na cidade de São Paulo, que
ficaram conhecidas como futurismos, foram as- foi o palco para os movimentos de vanguarda em
similadas de modo a procurar, na diversidade da nosso país, o Hospital Psiquiátrico do Juquery
cultura popular, os referenciais de formação de foi visto como instituição atual por sua estrutura
uma mentalidade que priorizasse a sensibilidade hospitalar e pela formação de sua equipe médica
criativa. que se mostrava participativa na sociedade, atu-
Esse novo propósito artístico transformou ando inclusive nos assuntos culturais e, sobretu-
o ambiente intelectual em campo de batalha: de do, na relação arte e loucura, tema para o qual a
um lado, estavam os modernos ou futuristas e, equipe médica manifestava seu posicionamento
de outro, os conservadores (os defensores da arte desde o final do século XIX.
28
O doutor Francisco Franco da Rocha, responsável pela instaura- 5
A convivência do psiquiatra Franco da
Rocha com literatos é narrada por Candido
ção da Psiquiatria em São Paulo, demonstrou pouco apreço científico ao Motta Filho (1972) no livro Contagem
Regressiva: memórias de Cândido Motta
livro Degeneração de Max Nordau por constatar a confusão do autor ao Filho.
aproximar artistas de doentes mentais. Segundo Franco da Rocha, os ar- 6
A obra que ilustra a contracapa do livro
tistas (considerados degenerados superiores) eram pessoas geniais, imagi- A Expressão Artística nos Alienados é
uma gravura realizada por Antonio Paim
nativas, emotivas e impulsivas, dotadas de grande inteligência e capazes de Vieira, o mesmo artista que confeccionou
o ex-libris de Osório Cesar. Segundo
importantes atos, mas não conseguiam se adaptar ao meio social em que Pietro Maria Bardi (1978), Paim Vieira
foi um profissional independente que
viviam, porque faltavam a eles a capacidade reflexiva, analítica e a solidez contribuiu com seu desempenho criativo
da razão. Situação totalmente diferente era aquela encontrada nos hospí- para a variedade artística do modernismo
brasileiro.
cios, repletos de homens dominados por seus delírios “cuja consciência está
obscurecida e cuja vontade não luta” (FRANCO DA ROCHA, 2003, p. 170).
O parecer de Franco da Rocha explicita a visão do homem devotado
à ciência para a qual o raciocínio lógico ocupou o topo na hierarquia do
conhecimento. Em decorrência desse modo de pensar, Franco da Rocha se
aproximou da psicanálise na tentativa de encontrar respostas para os fenô-
menos mentais envolvidos no mistério da criação. Ele ficou fascinado com
a capacidade dos poetas e literatos de trazer para suas obras toda a comple-
xidade psíquica do ser humano. Mas seu interesse pela literatura não esteve
restrito à sua profissão. Franco da Rocha conviveu com poetas e escritores
e os recebeu em sua casa, junto ao hospital psiquiátrico. Ele demonstrava
um conhecimento aprofundado em literatura medieval e acompanhava os
movimentos literários de sua época, como o parnasianismo, o realismo e o
simbolismo5.
Se Franco da Rocha não estabeleceu qualquer semelhança entre o

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


artista genial e o doente hospitalar, essa separação não foi evidente para o
anatomopatologista Osório Cesar, que colecionou e investigou as manifes-
tações artísticas dos pacientes do hospital e concluiu que a obra elaborada
por eles revelava a situação psíquica do indivíduo, mas as formas consti-
tuintes dessa obra mostravam a relação de beleza que o paciente estabelecia
com o mundo.
Cesar deixou explícito no livro A Expressão Artística nos Alienados
o envolvimento dele no debate sobre a loucura e a genialidade (que para
ele era sinônimo de originalidade e inventividade) a começar pela apresen-
tação do tema na capa e contracapa (para as quais foram escolhidas um
desenho de paciente do hospital e uma ilustração de uma lâmpada mági-
ca)6 e pelo conteúdo do livro, no qual Osório Cesar (1929) mencionou o
29
estudo de Max Nordau e pontuou o equívoco do século XX que os impulsionou a buscar a essência
médico que interpretou a postura revolucionária dessa arte na reconstrução de nossa cultura, da
dos poetas simbolistas como sintomas de doença qual o indígena foi a fonte original. Nesse sentido,
mental. regressar ao passado e estar próximo das culturas
A oposição de Osório Cesar ao conceito referenciadas primitivas era entender a nação.
de degeneração deve-se à leitura particular que No meio artístico o contato com a cultura
ele fez das comparações estabelecidas por Ce- de origem foi interpretado de duas formas: ha-
sare Lombroso para as obras de loucos e a arte. via o grupo que pensava a conciliação da cultura
Lombroso justificou a proximidade do desenho original com a cultura europeia do colonizador,
do louco com a arte de épocas pré-históricas e e outro grupo que via no regresso da cultura de
medievais como atavismo à infância da humani- origem um momento de criticar a colonização e
dade. Essa característica regressiva oferecia um estabelecer os valores originais, ou primitivos,
valor extraordinário às obras dos loucos, mas como a verdadeira cultura brasileira. No entanto,
Lombroso associou a doença a esse valor. Osório o estilo que essa arte nacional teria era o grande
Cesar ateve-se à associação entre o simbolismo impasse a ser resolvido, pois o subjetivismo da
extraordinário das obras e a exuberância da ima- estética de vanguarda não foi bem recebido em
ginação, sem enfatizar o sintoma. As obras dos nosso país e foi associado à manifestação de lou-
loucos eram repletas de símbolos e esse caráter cos e aos degenerados de Max Nordau.
excessivo foi interpretado como o extremo da Como já foi mencionado neste texto, jul-
criatividade por Cesar, que conferiu um valor gar o comportamento do artista e as obras de
positivo às obras. vanguarda como sintomas de degeneração não
A interpretação construtiva de Osório Ce- fazia sentido para Osório Cesar que conhecia
sar da literatura psiquiátrica dedicada à criação a teoria psicanalítica e entendia o artista como
genial e à loucura deve-se também ao envolvi- personalidade genial que manifestava, no exage-
mento dele com as artes que foi iniciado no meio ro de seus comportamentos e de suas obras, a di-
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

familiar, com o avô, o pai e os tios músicos, e nâmica da vida moderna, o anseio de novidade,
mantido por ele em ações de colecionador, agen- o despertar dos instintos primitivos, visto que a
te cultural e crítico de arte. A habilidade musi- inadaptação à realidade, aos dogmas e às conven-
cal de Osório Cesar permitiu-lhe frequentar o ções era da natureza da personalidade artística.
grupo modernista e conhecer os pontos de vista Desse modo, a “anormalidade” do artista, segun-
da classe artística a respeito do debate entre arte do a interpretação de Osório Cesar (1934), era a
e ciência, no que se referiu às oposições entre o atitude dos indivíduos de espiritualidade elevada
selvagem e o civilizado, a atualidade e o passado que encontrava na imaginação uma forma sim-
histórico brasileiro. bólica de expressar os complexos subconscientes.
A formação da arte nacional foi uma ques- O louco, assim como o artista, também
tão muito cara aos artistas brasileiros no início do era um inadaptado social em razão de suas
30
perturbações espirituais. Osório Cesar (1934) atribuía ao louco a mesma 7
Segundo Osório Cesar (1929), o artista
e o louco eram portadores de uma
espiritualidade genial do artista de vanguarda7 e, por esse motivo, afirmava espiritualidade genial e, por essa razão,
ele utilizava o termo alienado segundo a
a igualdade do processo criativo nos loucos e nos artistas, uma vez que etimologia antiga (nabi em hebreu e nigrata
em sânscrito) que significa profeta.
ambos expressavam em suas obras os complexos infantis desprendidos do
subconsciente e manifestados pela linguagem simbólica, que aparecia nas 8
Osório Cesar atuou como crítico de
arte por três décadas (1933-1955) e teve
obras em composições deformadas e estilizadas. uma significativa participação na defesa
dos artistas para o desenvolvimento da
No entanto, o louco diferia do artista por causa da anormalidade or- abstração na arte. Trata-se de um período
gânica a que Cesar explicava como a existência de uma fragilidade somática no qual houve perseguições aos artistas
oponentes ao governo de Getúlio Vargas
e não espiritual. em razão de sua afinidade ideológica com
o fascismo.
Por entender o caráter profundamente psi­cológico da arte de van-
guarda, Osório Cesar defendeu publicamente os artistas Lasar Segall, Anita
Malfatti e Flávio de Carvalho quando esses foram insultados de degene-
rados pelos intelectuais brasileiros que não compreendiam o sentido das
estilizações e abstrações simbólicas presentes nas obras, e reforçou a impor-
tância desses artistas na história do modernismo brasileiro8.
O doutor Osório Cesar foi muito atuante na defesa da criatividade
das obras de loucos, mas ele não foi o único profissional do Hospital Psi-
quiátrico do Juquery a se manifestar sobre as comparações traçadas entre a
arte de vanguarda e a natureza da genialidade. Os médicos Paulo Fraletti e
Mário Yahn também se dedicaram ao colecionamento e ao estudo das obras
de loucos e expuseram suas considerações em artigos publicados em revis-
tas especializadas e na imprensa.
De acordo com Paulo Fraletti (1954), a linguagem simbólica era a
grande semelhança entre a obra do louco e a arte moderna. Ele explicava essa

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


linguagem como o resultado de uma elaboração mental na qual coexistiam
o pensamento mágico e o lógico, e essa coexistência podia ser harmônica ou
ocorrer na predominância de algum dos dois pensamentos por sucessão. Na
arte, essa natureza coexistencial do psiquismo se mostrava por intermédio
de seus estilos que podiam privilegiar a cópia ou a fixação de uma impressão
ou, ainda, podia aparecer o estilo da arte de vanguarda a que Fraletti expli-
cava como a concretização de uma ideia de tendência objetiva e subjetiva.
Por esse motivo, Fraletti (1954), que encontrou uma resposta para o
processo criativo nos estudos psicanalíticos de Stekel, rebatia as críticas pe-
jorativas direcionadas ao artista moderno, e afirmava a integridade desses
profissionais que eram conscientes da realidade social e procuravam o pro-
gresso ao oferecer à população “o bem estar e o prazer ‘espiritual’” (p. 163).
31
O artista medíocre, referenciado por
9
Paulo Fraletti (1954) atribuía a responsabilidade pela marginalização
Paulo Fraletti no artigo Considerações
sobre a arte dos alienados e dos artistas da arte de vanguarda à Psiquiatria e à Sociologia, pois essas áreas de estudo
modernos, era uma crítica ao integralismo
de grupos fascistas que queimavam quadros somente se importavam com a doença e o fato social, e não se preocupa-
e provocavam o caos em São Paulo para
afirmar a condição “doentia” de artistas
vam com o ser humano. Para ele, não existia separação entre o artista e a
modernos. Ao escrever o referido artigo, obra de arte, já que a obra sempre revelava um conteúdo psicológico. E foi
Fraletti (1954) alertou o público do perigo
da arte filiada a movimentos político- justamente com a intenção de evitar os preconceitos em relação à arte de
sociais, pois, na visão dele, a arte era um
“fenômeno social e vital que o artista cria vanguarda que Fraletti defendeu a participação da Medicina no estudo das
por determinismo social e individual” obras de arte e das coleções hospitalares, no intuito de auxiliar a educação
(p. 169), ou seja, a arte não era apenas
contemplação e prazer estético, mas pública e de evitar a banalização do artista e do louco. A preocupação de
também não era apenas a concretização de
uma ideologia política. Fraletti estava direcionada aos artistas medíocres que usavam da excentri-
cidade e da loucura para se autopromoverem9.
Fundamentado no pensamento psicanalítico de Stekel, Paulo Fraletti
defendeu a arte como a realização de uma inquietação interna inconsciente
resultante do conflito psicológico de forças instintivas individuais diante de
proibições morais da sociedade. O progresso e a revolução somente resulta-
vam desse estado conflitivo e angustiado. Logo, para Paulo Fraletti, artista
e gênio eram neuróticos, no sentido de indivíduos que viviam essa inquie-
tação. Sob o ponto de vista do conflito psicológico e das angústias internas,
os processos criativos do artista, do gênio e do louco eram semelhantes,
mas a arte dos loucos era a manifestação de expressões humanas profunda-
mente psicológicas, enquanto a obra de arte moderna era o resultado genial
de inquietações individuais diante do conflito cultural. Contudo, ambas as
manifestações não eram doentias em sua essência.
Assumindo uma posição diferente daquela declarada por seus cole-
gas Osório Cesar e Paulo Fraletti, o doutor Mário Yahn (1951) não desvin-
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

culava a manifestação artística da doença psíquica e considerava a vontade


do paciente de se expressar, por meio da linguagem artística, um indicativo
intermediário da doença. Se o indivíduo apresentasse tendências para as
artes antes da internação, essa habilidade podia se manter conservada ou
modificada por longo tempo, mas fatalmente seria comprometida pelo es-
tado psíquico.
Desse modo, a perda ou a modificação no estilo da obra não era ori-
ginalidade criativa, mas uma característica da arte dos doentes mentais.
Isto porque, a patologia comprometia a estrutura psíquica do indivíduo que
perderia a capacidade de síntese, utilizada principalmente na elaboração da
obra de arte. Por esse motivo, Mário Yahn admitia a ocorrência da obra ge-
nial somente no âmbito da normalidade, no qual os indivíduos mantinham
32
a razão intacta. Em seus textos, Mário Yahn não se dedicou a extensas re- 10
A presença do médico Enjolras Vampré
em eventos culturais paulistas é divulgada
flexões sobre a arte moderna ou sobre os artistas que dela participaram. Ele na imprensa na seção de notas de arte.
Ver: EXPOSIÇÃO brasileira de belas
se concentrou na descrição dos processos de criação dos pacientes, o que artes. Correio Paulistano. São Paulo, 31 jan
1912. Registro de Arte, p. 4; EXPOSIÇÃO
esclarece o enfoque de seus estudos. Clodomiro Amazonas. A Gazeta, São
Paulo, 19 jun 1933. Notas de Arte, p. 6;
EXPOSIÇÃO Salinas. Correio Paulistano.
São Paulo, 12 set 1912. Registro de Arte, p.
A dinâmica de colecionamento no Hospital 2; SOCIEDADE de cultura artística. Correio
Psiquiátrico do Juquery: o acervo hospitalar e as Paulistano. São Paulo, p. 3, 01 abr 1913.

coleções particulares
O debate sobre o valor patológico ou excepcional da arte moderna
precisa ser considerado na abordagem da prática de colecionamento no
Hospital Psiquiátrico do Juquery, uma vez que profissionais dessa institui-
ção, a começar pelo próprio diretor, se posicionaram contra a visão doen-
tia da personalidade genial e o princípio da degeneração. Nesse sentido, é
necessário esclarecer como as opiniões dos médicos sobre a genialidade, a
criação artística e a loucura determinaram a escolha das obras e as finalida-
des das coleções organizadas naquela instituição.
Embora existam poucos documentos produzidos no início do sécu-
lo XX que relatem o hábito dos psiquiatras brasileiros de reunir objetos e
escritos elaborados pelos pacientes, a tese de Sylvio Braga Aranha de Mou-
ra concedeu ao doutor Enjolras Vampré a iniciativa de colecionamento no
Hospital Psiquiátrico do Juquery (ANDRIOLO, 2004).
Os propósitos desse médico com a atividade de seleção de trabalhos
permanecem desconhecidos, mas a coleção de Vampré despertou a atenção

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


dos doutores Osório Cesar e Durval Marcondes, que viram no conjunto de
desenhos um rico material para estudo dos processos inconscientes de cria-
ção de imagens, pois era recorrente a presença de obras com composições
misteriosas em que apareciam personagens e cenários enigmáticos, seme-
lhantes a contos de fada.
Pela característica dessas obras, pressupõe-se que Vampré estava in-
teressado na manifestação genial, até mesmo porque ele era um apreciador
das artes e frequentava os saraus e as conferências da Sociedade de Cultura
Artística de São Paulo, visitava os Salões de Belas Artes e comprava pintu-
ras, especialmente paisagens10.
Apesar da dedicação de Enjolras Vampré ao colecionamento, essa
prática era incipiente no hospital psiquiátrico porque o artesanato e as
atividades artísticas (como desenhar, pintar, modelar, ouvir ou executar
33
música) eram entendidos como entretenimento laborterapia, por considerá-las como atividades
cujo valor curativo estava na própria ação e não voltadas ao trabalho sistematizado e pouco fa-
no resultado material que podia ser produzido a voráveis aos processos de criação. No entanto,
partir dela (MATTOS, 1929). Cesar reconhecia as propriedades curativas da
A dispersão do colecionamento foi notada laborterapia como possibilidade de contato do
por Osório Cesar em 1923, quando ele iniciou paciente com a vida social e como atenuante dos
um estágio de conclusão do curso de medicina. estados de perturbação mental (CESAR, 1945).
Cesar estava familiarizado com as pesquisas mais Ao observar os pacientes, Osório Cesar
recentes da época sobre potencialidades geniais
(1945) percebeu em alguns deles a manifestação
nos loucos e trazia os estudos de Hans Prinzhorn
de habilidades intelectuais e artísticas que po-
e Jean Vinchon como principais referências. Ele
diam ser incentivadas pelo oferecimento de ma-
sabia da relevância das coleções para as futuras
teriais apropriados ao trabalho de arte e com a
compreensões da loucura e entendia a amplitu-
orientação de profissionais especializados. Desse
de cultural que esse assunto estava adquirindo.
modo, Cesar inseriu as atividades artísticas no
Por esse motivo, Cesar formou um acervo (o qual
denominou museu artístico) com as produções programa assessorial mantido pela Instituição de
artísticas que ele considerou curiosas, com ca- Assistência Social aos Psicopatas, órgão do qual
racterísticas próximas aos desenhos de crianças ele foi diretor no período de 1955 a 1958.
na faixa etária de quatro a seis anos e às obras Com os recursos financeiros dessa ins-
de arte de culturas conhecidas como primitivas tituição, foi possível a compra de instrumentos
(CESAR, 1929). musicais e de equipamentos para a gravação
O conjunto de obras, que inicialmente era das interpretações e das composições musicais
um amontoado de documentos desordenados, dos pacientes. Os recursos da instituição tam-
foi organizado de acordo com os critérios de bém permitiram o aprimoramento da seção de
seleção estabelecidos por Cesar. Esse conjunto pintura, iniciada pelo doutor Mário Yahn em
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

era constituído de modelagens em argila, em ci- 1949, com a organização de oficinas de cerâmica
mento e em massa de pão; de séries de desenhos e de gravura, e com o estabelecimento de uma
feitos em lápis grafite e lápis de cor em pequenos sede que recebeu o caráter de escola em 1956
suportes; de grupos de textos, em prosa e poesia, (FRALETTI, 1958).
escritos pelos pacientes; de fotografias de dese- As obras elaboradas na Escola Livre de Ar-
nhos gravados nos muros das alas hospitalares; tes Plásticas do Juquery continuaram a assegurar
de bonecas procedentes das oficinas artesanais; e o acervo hospitalar e as coleções dos médicos até
de instrumentos musicais construídos pelos pa- o final da década de 1970. Eram desenhos, pin-
cientes (CESAR, 1929). turas e gravuras organizados em pastas, além de
Em sua seleção, Osório Cesar preferiu os esculturas e objetos em cerâmica que estiveram
trabalhos realizados livremente pelos pacientes espalhados nas dependências hospitalares após
e escolheu poucos artesanatos das oficinas de o fechamento da escola e foram recuperados e
34
inventariados, em 1984, para formar o núcleo material do Museu Osório 11
Segundo Maria Heloisa Corrêa de
Toledo Ferraz (1998), no momento da
Cesar, fundado em dezembro de 1985 (FERRAZ, 1998)11. inauguração do Museu Osório Cesar, o
acervo estava organizado em três núcleos:
A organização de oficinas de arte possibilitou a centralização das ati- o núcleo iconográfico que possuía 2.542
vidades em local adequado, o que facilitou a formação de conjuntos e o peças separadas em coleções de obras
bidimensionais e tridimensionais; um
aprimoramento da seleção das obras. As atividades realizadas nas oficinas, conjunto documental constituído por fotos,
livros e recortes de textos jornalísticos;
sob a orientação de artistas e técnicos, proporcionaram a qualidade mate- e uma coleção de móveis e de objetos
médicos e cirúrgicos.
rial e a diversidade estilística das obras colecionadas. Diante dessas novas
características de trabalho, os doutores Paulo Fraletti e Mário Yahn se em- 12
A oficina de artes foi criada com o
objetivo de proporcionar o colecionamento
penharam em colaborar com o acervo ou a formarem coleções particulares e a pesquisa das obras, o que a diferia
das seções de laborterapia que eram
para atender a objetivos específicos de estudo12. administradas pela diretoria de cada
Ao ocupar o cargo de psiquiatra no Manicômio Judiciário, em 1948, pavilhão hospitalar e cujas atividades
ocorriam de modo independente com
Paulo Fraletti (1954) iniciou uma coleção para estudar as obras gráficas e o propósito de curar ou amenizar o
sofrimento físico e psíquico dos pacientes
plásticas de criminosos com a finalidade de identificar símbolos que indi- e prepará-los para a vida em sociedade.
cassem a presença de sistemas delirantes nos pacientes. Como resultado, A respeito das atividades ocupacionais
desenvolvidas no Hospital Psiquiátrico
constatou a manifestação de agressividade, de impulsos criminosos e de de- do Juquery no período de 1930 até 1958,
consultar Fraletti (1958).
lírios de grandeza na maioria das obras analisadas.
Fraletti (1954) reconhecia o valor do colecionamento na prática te-
rapêutica. Para ele, a obra era o resultado de uma ação que possibilitava
a orientação da energia psíquica para expressão e criação, o que propor-
cionava o bem-estar do paciente. Além disso, a atividade regular no ateliê
permitia o contato dos médicos com as obras, que eram fontes documentais
riquíssimas com as quais o médico estudava a personalidade dos pacientes
por meio da investigação das formas e suas correspondências com a ex-
pressão de ideias e afetos. Pela análise dos trabalhos artísticos, o médico
podia verificar se pacientes com o mesmo diagnóstico produziam obras de

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


mesmo caráter formal.
Embora Fraletti (1954) tenha organizado uma coleção para atender
às finalidades semiológicas, ele se surpreendia com as características de
magia e de misticismo dos desenhos de esquizofrênicos e os considerava
criativos como os artistas. O médico afirmava a origem inconsciente das
manifestações artísticas de loucos, de crianças e de artistas, questionava
as convenções e solicitava ao meio artístico o reconhecimento estético das
obras dos loucos.
A qualidade formal dos trabalhos colecionados por Fraletti é pratica-
mente desconhecida. O único registro escrito deixado por ele foi o caso de
um parafrênico que modelava em papel machê figuras humanas portando
armas.
35
Em 1981, Walter Zanini abordou a histó- orientação do artista profissional, que auxiliaria
ria das coleções organizadas por psiquiatras bra- os pacientes do Hospital Psiquiátrico do Juquery
sileiros na Mostra de Arte Incomum da XVI Bie- no uso dos materiais e arrumaria o espaço de
nal de Artes de São Paulo. Naquela ocasião, doze ateliê deixando-o adequado à prática artística e à
obras dos artistas do Juquery fo­ram expostas exposição das obras.
como exemplares da coleção do médico Fraletti. Segundo Yahn (1951), estava sob a respon-
Essas obras, no entanto, não pertenceram à co- sabilidade de Maria Leontina selecionar os traba-
leção de anomalias psíquicas do Manicômio Ju- lhos com qualidade artística, enquanto ele obser-
diciário, tratava-se de um pequeno conjunto de vava as obras e verificava se nelas havia aspecto
trabalhos da antiga coleção de Osório Cesar que patológico, originalidade, recorrência de alguma
ficou sob os cuidados de Paulo Fraletti como he- forma simbólica e indicação de gosto artístico.
rança (BALSA, 1981). Como consequência desse pensamento, Mário
A iniciativa de colecionamento do doutor Yahn foi o único médico no Hospital Psiquiátrico
Paulo Fraletti foi motivada pela renovação do do Juquery que teve a sua coleção organizada por
sistema assistencial ao doente mental que, após um artista plástico.
1945, esteve focalizado na ressocialização dos Mário Yahn tratava a produção coleciona-
egressos por meio da preparação ao trabalho, da como documento de análise clínica e questio-
razão pela qual se investiu intensamente na la- nava a eficácia do estudo de desenhos, pinturas
borterapia e nas oficinas de artes, de onde provi- e esculturas como meios de compreensão da
nham as obras colecionadas pelos médicos. Foi mente inconsciente. Isto porque, diferente do so-
nesse contexto que o doutor Mário Yahn formou nho, a memória de fatos conscientes podia atuar
sua coleção com a produção artística realizada na durante a elaboração do trabalho artístico, uma
seção de pintura organizada por ele com o auxí- vez que a construção da imagem mental na obra
lio da artista plástica Maria Leontina Franco. gráfica ou plástica solicitava do paciente um pro-
Na coleção do doutor Mário Yahn havia cesso mais longo de conclusão.
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

desenhos a lápis, esculturas em madeira e em A consistente coleção de trezentas obras


gesso e, principalmente, pinturas feitas a óleo ou praticamente se perdeu no tempo com a ausência
a guache sobre papel cartão. Os temas e estilos de cuidados. Restou apenas o conjunto de treze
eram variados, pois havia cópias bem elaboradas trabalhos que foram doados por Mário Yahn
de obras de arte ou de paisagens e de ambien- ao professor Robert Volmat após a Exposition
tes do hospital, mas a maioria das obras revelava Internationale d’Art Psychopathologique e, atual­
lembranças pessoais ou cenas inventadas, exe- mente, compõe a Collection Sainte-Anne do
cutadas de modo cuidadoso e ausentes de apuro Centre d’Étude de l’Expression localizado em
técnico. Após um ano de atividades na seção, a Paris (DUBOIS, 2009).
coleção reunia mais de trezentas obras. De todos os profissionais envolvidos no
Foi o doutor Mário Yahn quem instau- colecionamento e no estudo do valor artístico
rou o modelo de realização das atividades sob a das obras dos pacientes do Hospital Psiquiátrico
36
do Juquery, certamente, o doutor Osório Ce- a natureza era percebida de modo objetivo, re-
sar foi o mais atuante, pois, além de organizar alista e, consequentemente, a emoção perdia
o acervo hospitalar, manteve em sua residência intensidade.
uma coleção particular formada por milhares de Em razão do mecanismo psicológico de
obras dos artistas do Juquery e por quadros e es- interação do artista com o mundo, Osório Cesar
culturas dos principais representantes da primei- afirmava existir na obra de arte a beleza plástica
ra e da segunda fases do modernismo brasileiro. e a beleza moral. A primeira era responsável pela
Ele apreciava o trabalho dos artistas Candido autenticidade da forma e a segunda aprimorava
Portinari, Emiliano Di Cavalcanti, Alfredo Volpi, a expressão emocional percebida na gestualidade
Fúlvio Penacchi, Jorge Mori, Francisco Rebolo e da linha, na escolha das cores e na expressividade
Walter Lewy (KAWALL, 1979). das representações. A beleza moral devia existir
A coleção de arte de alienados e arte mo- na obra de arte como autenticidade psicológica,
derna traduzia a coerência do pensamento de pois, segundo Cesar, a arte não era feita apenas
Osório Cesar que entendia o fenômeno artísti- de técnica e de composições harmoniosas, mas
co como a função mais elevada e primordial do da combinação do plano físico da obra, o qual
psiquismo. Isto porque, a arte agia no nível pré- ele denominava o realismo da forma, com o pla-
-consciente (que é justamente a área de atuação no mental, reconhecido por ele como o realismo
da censura) e possibilitava a expressão de emo- psicológico.
ções, desejos, inteligência e sensibilidade estética. A interação psicológica com o mundo tam-
Osório Cesar (1947a) afirmava que a fi- bém ocorria no alienado e as obras mostravam,
nalidade da arte era “o uso da inteligência para em alguns casos, a conservação do sentimento de
a criação da beleza” (p. 4). Por esse motivo, ele beleza e do prazer estético. Esse fato impressiona-
julgava como verdadeiras obras de arte aquelas va Osório Cesar que presenciava uma variedade
que apresentavam qualidade técnica e intensida- de linguagens simbólicas nas obras dos loucos.

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


de emocional. A qualidade técnica, para Cesar, Esse simbolismo diversificado se fazia presente
resultava do estudo e do labor sincero do artista ora como simples manifestação de desenhos li-
que se empenhava na criação ausente de esque- neares aleatórios ora na elaboração de obras re-
mas de representação e de concepções de beleza alistas que revelavam o uso de recursos técnicos
pré-estabelecidas. Já o caráter emocional era um para representar paisagens ou retratos, ou ainda
aspecto dinâmico da obra de arte por estar rela- por um estilo de caráter subjetivo marcado pela
cionado ao temperamento do artista. De acordo originalidade nos temas apresentados.
com Osório Cesar, a beleza da obra de arte re- Dessa variedade, Osório Cesar tinha pre-
sultava da relação que o artista estabelecia com dileção pelas composições de caráter subjetivo
a natureza. Alguns artistas sentiam a natureza as quais ele classificava de expressionistas e pri-
de modo subjetivo e neles o mundo exterior es- mitivistas. No expressionismo, explicava Osório
timulava a imaginação, o que permitia a criação Cesar, o indivíduo revelava as impressões pesso-
de imagens de alto valor simbólico. Para outros, ais sobre a natureza, enquanto no primitivismo o
37
indivíduo manifestava na obra um entendimento colecionador a receber suas doações. Assim,
simples, puro e instintivo do mundo. Neste caso, justifica-se a presença de cento e um trabalhos em
tratava-se, para Cesar, de uma característica da desenhos e pinturas no acervo do Museu de Arte
personalidade individual que foi construída pelo de São Paulo Assis Chateaubriand, bem como a
contato com culturas genuínas e populares que representação de treze desenhos de Albino Braz
priorizavam o entendimento puro do mundo. na Collection de l’Art Brut, organização suíça
Formalmente, Cesar (1947a) explicava a lingua- representante da arte bruta criada pelo pintor
gem expressionista como “o exagero ou a distor- Jean Dubuffet, em 1945.
ção dos aspectos naturais” (p. 3) e a linguagem Após o falecimento de Osório Cesar, par-
primitivista como a elaboração de composições te de sua coleção foi vendida para antiquários e
ausentes de técnicas de representação, principal- para colecionadores dos quais se destaca o cine-
mente do uso da perspectiva (CESAR,1946a, p. 4). asta Bruno Decharme, fundador da L’association
Ainda no que se refere à variedade de lin- abcd (art brut connaissance & diffusion), como o
guagens simbólicas, é importante salientar a ati- maior mantenedor de obras da antiga coleção de
tude de Osório Cesar de estabelecer semelhanças Cesar.
estilísticas entre as obras dos loucos e a arte de van- O colecionador Osório Cesar revelou um
guarda. Cesar aproximava o processo de criação pensamento revolucionário por intermédio de
do artista moderno ao do louco e qualificava as suas atitudes de reconhecimento do valor estéti-
obras dos loucos com categorias artísticas. Assim, co nas obras de loucos. Ele considerava um gran-
na produção escrita de Cesar, é comum encontrar de equívoco manter as coleções arquivadas no
as obras dos artistas do Juquery sendo referencia- hospital psiquiátrico e responsabilizava a nossa
das de primitiva, expressionista ou realista. educação cultural à persistência desse fato, visto
Ao defender a conservação da sensibilida- que a sociedade ainda entendia a arte como mera
de estética em estados de loucura, Osório Cesar repetição de padrões artísticos, os quais Cesar
atribuiu potencialidades artísticas às obras sele- criticava severamente:
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

cionadas por ele e formou conjuntos com traba-


lhos reconhecidos como arte. A maneira como Na arte, o perigo da disciplina está quando o
pintor se apega em regras demasiadamente es-
Cesar entendia o processo criativo justifica o fato
tritas o que o faz degenerar em fórmulas fáceis
de conjuntos de obras de sua antiga coleção estar
e fatais sobretudo para os artistas escassos de
hoje em acervos de arte, compondo as principais
imaginação e de poder criador. Essa a tragédia
coleções europeias de arte bruta, ideologia da
dos acadêmicos e dos conservadores dos prin-
qual ele se aproximou no final da década de 1940
cípios da arte estática.
por sustentar a originalidade e o caráter subver- As obras desses artistas, embora apresente
sivo da arte de alienados. combinações perfeitas e estreitamente subme-
A aquisição desses conjuntos foi propor­ tidas a regras impessoais, não nos inspiram
cionada pelo próprio Osório Cesar que escolhia, nenhum interesse por sua trivialidade e me-
por afinidade ideológica, a instituição e o diocridade que só nos aborrecem.
38
Ao contrário nos encantam os trabalhos da- loucos acumula significados que passam do pa-
queles que compõem acima de tudo o poder tológico ao terapêutico e deste ao artístico. Es-
da criação pelas possibilidades do inesperado ses significados são provenientes dos acervos em
de suas pesquisas. que essas obras foram inseridas.
Na pintura, além da composição, a sua impor- Aparentemente, a arte de loucos conquis-
tância está também na harmonia que consiste
tou seu lugar na cultura com a organização de
no arranjo do acorde dos tons, das linhas e dos
galerias, bienais e museus destinados a essa arte.
valores. Tudo isto reunido dá ao quadro equilí-
Contudo, dúvidas permanecem. Como será tra-
brio, sedução e agrado aos olhos do espectador
tado o caráter revolucionário da arte de loucos
(CESAR, 1946b, p. 3).
após a inserção cultural das coleções iniciadas
Se o valor da arte está no seu poder cria- em hospitais psiquiátricos? E como as obras de
tivo, conforme afirmou Osório Cesar, as obras loucos serão apresentadas ao público pelas ins-
dos loucos conquistaram os espaços artísticos tituições de arte que acolheram em seus acervos
em virtude da crença que foi construída para a segmentos de coleções hospitalares?
originalidade dessas obras. Atualmente, a arte de

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


39
Referências

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Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

Plásticas).
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40
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Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


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Psicopatas Franco da Rocha, 1951. p. 23-33.

41
A genealogia do Museu de
Imagens do Inconsciente
Eurípedes Gomes da Cruz Junior

Introdução
1
A coleção foi objeto de dois
processos de musealização. A França “é possível imaginar, filosoficamente, um museu plural,
contou também com o Musée de la
Folie, que vai de 1905 a 1946, também um museu que seja simultaneamente a representação
no interior de um asilo, mas que não
era completamente aberto à visitação
de um mundo concreto, exterior ao indivíduo, e uma
pública. presentificação do seu mundo interior”.
2
Posteriormente, a Dra. Nise
acrescentou a palavra Reabilitação
Tereza Scheiner
ao nome da Seção, transformando
sua sigla em STOR, que é a mais
conhecida.

As tentativas de criação de museus dedicados à guarda, exibição e


estudo das obras criadas pelos loucos resultaram, em sua grande maioria,
infrutíferas. A Suíça, país que teve tanta importância nessa história, só
instituiu a Coleção de Arte Bruta (reunida em território francês) em 1972.
A França, onde o estudo, a pesquisa e as reflexões sobre esse tema foram
entabuladas de forma mais profusa e consistente, só conseguiu ver seu
primeiro museu de arte bruta em 1984, quando da experiência da Coleção
L’Aracine no Château Guérin, cujo voo solo terminou em 1997 com sua
absorção por um museu de arte, o LaM1.
No Brasil, aconteceu de maneira diferente. Quando se fala em Museu
de Imagens do Inconsciente estamos nos referindo a uma instituição públi-
ca, genuinamente brasileira, cujo acervo de obras plásticas desperta admi-
ração pela originalidade e pela qualidade dos trabalhos produzidos em seus
ateliês de atividades expressivas. O Museu nasceu dos ateliês da Seção de
Terapêutica Ocupacional2. Museu e STOR conviveram durante um período,
até a extinção desta última. Do projeto original da Dra. Nise da Silveira,
restaram os ateliês de pintura e de modelagem, do próprio hospital e números de música
funcionando até a presente data. Será de bom pelo “Regional” da C.J.M. [Colônia Juliano
alvitre estudar um pouco as origens e os concei- Moreira] (SILVEIRA, 1946, p. 7).
tos que regeram a STOR, para a compreensão do
ambiente onde o Museu emergiu, onde se gerou A seguir vem o ateliê de pintura, onde
a herança que traz consigo até nossos dias. desde o início a liberdade de expressão é o eixo
principal:

A Seção de Terapêutica A 9 (nove) de setembro o serviço de terapêu-


Ocupacional tica ocupacional abriu o seu atelier de pintu-
ra e modelagem. Este setor ficou a cargo do
A inadaptação de Nise da Silveira aos
desenhista Almir Mavignier, da secretaria do
mé­todos de tratamento agressivos em voga na
C.P.N. e que se revelou dotado de raras qua-
psiquiatria dos anos 1940 foi um dos motivos para
lidades para as novas funções que passou a
que ela fundasse a Seção de Terapêutica Ocupa­ exercer. Nossa orientação foi a de deixar sem-
cional. Além disso, diz Nise da Silveira (1976) “é pre aos doentes a mais completa liberdade
possível que aí tenha contribuído também a minha de expressão. Apenas lhes é mostrado como
experiência de prisão, porque todo preso procura utilizar o material. Geralmente, sem que seja
uma atividade, senão sucumbe mentalmente” feita sobre eles qualquer pressão ou insistên-
(SILVEIRA, 1976, p. 9). A jardinagem foi a cia, uma vez diante do papel e das tintas logo
primeira atividade proposta por Nise com “um se entregam ao prazer de pintar. Foram expe-
grupo de pacientes dirigido pela bibliotecária rimentados, com interessantes resultados, os
D. Aurora Magalhães, que se tornou nossa dedi­ modernos métodos das “garatujas” (scribbles) e
cada e espontânea colaboradora” (SILVEIRA, de pintura a dedo. A produção total foi de 264
trabalhos, dos quais 170 acham-se atualmente
1946, p. 6). Uma oficina de trabalhos manuais
em exposição e vêm despertando grande in-

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


femininos viria a seguir: “Não foi tarefa das mais
teresse entre psiquiatras, psicólogos e artistas
fáceis”, ela relata, e um dos motivos era a própria
(SILVEIRA, 1946, p. 8).
arquitetura do hospital, que não dispunha de
nenhuma sala de estar, todo ele dividido em
O Relatório de 1947 mostra que a produ-
dormitórios, corredores e refeitórios:
ção adquire consistência e o status de “preciosa
documentação para estudo”. Mais uma vez a li-
Seguiu-se a instalação de uma oficina de en­
berdade de seus frequentadores é ratificada:
cadernação e o início das atividades de recrea­
ção: organizou-se uma festa cujo programa
No atelier de pintura, frequentado por doentes
incluía “um teatro de sombras e de fantoches
do H.P. e do H.G.R3, prosseguiram os traba-
(da Sociedade Pestalozzi) e, cenas cômicas
lhos dentro da mesma orientação do ano an-
por dois palhaços de um dos circos da
terior: os doentes entregaram-se ao prazer de
cidade, jogos de competição entre as crianças
pintar com a mais completa liberdade. Raro
43
3
Iniciais de Hospital de Psiquiatria
tomam para motivo de seus quadros modelos do mundo exterior, prefe-
e Hospital Gustavo Riedel, unidades
integrantes do Centro Psiquiátrico rindo quase sempre fixar imagens subjetivas. Esta seção possui, portanto,
Nacional.
precisa documentação para estudo. A produção total foi de 599 trabalhos
4
Quando esse relatório foi escrito, já haviam (SILVEIRA, 1947, p. 3)4.
acontecido as primeiras exposições externas
que tanto interesse e polêmica despertaram
em críticos e artistas. O contato com Mário
Pedrosa, que vinha de chegar da Europa, Em 1949, a produção é dobrada, segundo o trecho do relatório desse
onde tinha travado relacionamento com ano, que destacamos:
o meio artístico, especialmente com os
surrealistas, foi muito importante, pois
certamente tinha ele conhecimento do
interesse destes pelas obras dos loucos.
Seção de pintura e de escultura sob a direção do terapista Almir Mavignier
e colaboração do terapista Walter Grijó
5
Nesse mesmo ano de implantação da
STOR, Nise da Silveira já havia conseguido Pintura
que funcionárias fizessem pequenos cursos
na Sociedade Pestalozzi como, por exemplo, Número de doentes que frequentaram o estúdio ......... 23
o de Teatro de Bonecos, possibilitando
a realização no hospital de peças com Número de trabalhos produzidos .................................. 900
fantoches e teatro de sombras.
Modelagem
Número de doentes que frequentaram o estúdio ......... 7
Número de trabalhos produzidos .................................. 50
(SILVEIRA, 1949a).

A preocupação com a fundamentação teórica do trabalho aparece


já no primeiro relatório, de 1946, onde a Dra. Nise aponta como uma das
falhas mais graves de seu trabalho a “maneira quase empírica segundo a
qual foi executado”. Mas, face à precariedade de meios e o desinteresse dos
outros médicos, fato que será uma constante ao longo dos anos e que muito
a decepcionará, ela investe na capacitação dos técnicos da Seção: “Nesse
sentido já estamos planejando a organização de um curso intensivo para
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

a formação de terapistas, que deverá iniciar-se em abril do ano próximo”5


(SILVEIRA, 1946, p. 9). Considerava o treinamento dos técnicos como um
passo indispensável para sair do nível empírico.
A terapêutica ocupacional nunca gozou de prestígio nem na psiquia-
tria nem na nossa cultura “deslumbrada pelas elucubrações do pensamento
racional e tão fascinada pelo verbo” (SILVEIRA, 1981, p. 66). Segundo Nise,
compreende-se que “no meio do arsenal constituído pelos choques elétricos
(...); pelo coma insulínico; pela psicocirurgia; pelos psicotrópicos adminis-
trados em doses brutais”, um método cujos processos dão-se, sobretudo, em
nível não-verbal e utiliza como agentes terapêuticos atividades expressivas
logicamente seria julgado “ingênuo e quase inócuo”. Começa então a bus-
ca para estruturar cientificamente o trabalho, baseando-se nos diferentes
44
pontos de vista psiquiátricos “kraepelinianos, Voltemos nossa atenção para os setores
bleulerianos, segundo H. Simon, K. Schneider, de pintura e modelagem, que logo se destaca-
P. Sivadon, ou na ótica da psicologia de Freud e, ram entre as demais atividades, seja pelo notá-
um pouco mais tarde, na de Jung” (p. 67). vel benefício terapêutico que exerciam em seus
Os médicos recusavam-se a receitar ativi- frequentadores, seja pela quantidade, qualidade
dades para os pacientes, o que, em sua opinião, e conteúdo do material produzido. Quando abriu
inviabilizava a terapêutica ocupacional cientifi- o setor de pintura, a intenção da Dra. Nise era
camente orientada, uma vez que só eles podiam encontrar caminho de acesso ao mundo interno
conhecer a dinâmica dos sintomas de seus doen- do psicótico, visto que com este as comunicações
tes e o grau de regressão a que tinham chegado. verbais eram difíceis, deixando o médico “do ou-
Após anos de insistência, “veio o cansaço e um tro lado do muro”. Para ela, foi espantoso verifi-
certo conformismo com a situação” (SILVEIRA, car que o ato de pintar podia adquirir por si só
1966, p. 54). Os princípios ideais de funciona- eficácia terapêutica: “Essa constatação empírica
mento da Seção segundo a ótica de Nise eram: foi confirmada ao longo dos anos subsequentes”
(SILVEIRA, 1981, p. 132).
1-A ocupação é receitada pelo médico Mello (2014, p. 185) descreve o ateliê como
2-A receita do médico é executada pelo mo- um ambiente favorável onde seus frequentado-
nitor res, tratados com respeito e carinho, “aos poucos
3-Os setores de atividade são mistos revelavam por meio das imagens plasmadas, seus
4-A produção é secundária.
profundos mergulhos na alma humana”. Nise ia
(SILVEIRA, 1966, p. 53-55).
tecendo, “com arguta inteligência, a partir da es-
pantosa produção que acontecia nos ateliês, os
As atividades também eram divididas em
fios de sentido que ligavam a história individual
4 grupos:
dos pintores aos níveis mais profundos e univer-

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


A - Atividades que envolvam o esforço carac-
sais do psiquismo humano, o que veio formar os
terístico do trabalho – marcenaria, sapataria, alicerces científicos de sua obra”.
encadernação, cestaria, trabalhos técnicos di-
versos, trabalhos manuais femininos, costura, Um museu em gestação
jardinagem, trabalhos agrícolas, etc.
B - Atividades expressivas – pintura, modela- Difícil imaginar quando se teria iniciado
gem, gravura, escultura em madeira, música o desejo desse Museu. A Dra. Nise já tinha per-
(canto e instrumentos) dança, mímica, teatro cebido o valor que as séries de pintura assumiam
C - Atividades recreativas – jogos de comple- para o estudo. Isso implicava na manutenção das
xidade diversa, festas e seu preparo, cinema, obras em seu conjunto, despertando o desejo de
rádio, televisão, esporte, passeios preservação. Exposição, pesquisa, conservação:
D - Atividades culturais – escola, biblioteca.
temos aqui o que denominaremos de ingredien-
(SILVEIRA, 1966, p. 61).
tes endógenos básicos para a alquimia museística.
45
6
Heitor Péres, da Colônia Juliano Moreira, Pesquisando seus arquivos pessoais, encontramos pistas do que po-
Osório Cesar e Mário Yahn do Hospital
Juquery de São Paulo fizeram doações deríamos chamar de ingredientes exógenos. Uma dessas pistas é o número
de obras, que se encontram até hoje no
Hospital Sainte Anne.
da revista Quadrige, publicado em maio de 1946, cujo tema La Raison et la
Folie (A razão e a loucura) foi motivado pela exposição realizada no Hos-
Trata-se de uma reedição do artigo
7

originalmente publicado na versão pital Sainte Anne naquele ano. Nela encontra-se o artigo L’art à l’asile (Arte
francesa de 15 de outubro de 1905, ano
da inauguração do Musée de la Folie. O
no asilo) do artista Frédéric Delanglade (1946), que termina com estas pala-
Dr. Marie faleceu em 1934. O número da vras: “Eu chego à conclusão que é necessária a criação de um Museu de Arte
revista Eu Sei Tudo, encontrado no Arquivo
Pessoal da Dra. Nise, é comemorativo do patológica, aberto, tanto aos especialistas como ao público” (p. 50).
30º ano de circulação. Segundo informa
a Biblioteca Nacional, a publicação
Pouco tempo antes da fundação oficial do Museu de Imagens do In-
posicionava-se como uma revista de consciente, acontecera o I Congresso Internacional de Psiquiatria. Nessa
cunho científico, literário, artístico e
histórico, sendo um importante impresso ocasião, o Prof. Robert Volmat, organizador da exposição do evento, solici-
na formação de opinião da sociedade
brasileira em suas duas primeiras décadas.
tou a doação de obras a vários colecionadores para dar início a um museu.
Era um misto de Almanaque com Magazine Não sabemos se esse pedido foi feito ao Prof. Maurício de Medeiros, que
contendo seções como: Páginas de Arte,
Percorrendo o Mundo, Contos, Comédia, era, no evento, o responsável pela coleção de Engenho de Dentro. O fato é
Romance, A Ciência Ao Alcance de Todos,
Conhecimentos Úteis, Curiosidades,
que não há registros desse pedido ou de uma possível doação. Provavelmen-
Diversos e O Mês Que Passa, uma espécie te, ela não aconteceu, já que o Prof. Medeiros era apenas um representante
de almanaque com notícias curiosas. Nesse
mesmo número, por exemplo, uma pequena e não o verdadeiro organizador ou proprietário da coleção6.
nota credita a cientistas a informação
de que “a energia atômica não pode
Não sabemos se a Dra. Nise teve acesso aos anais do Congresso, onde
interferir na meteorologia”; numa outra está relatado esse desejo de museu da parte dos franceses. Mas em seu ar-
um químico nova-iorquino teria inventado
um “ventilador de vidro” para acrescentar quivo pessoal encontramos a separata do artigo publicado em 1952, no qual
mais sabor à água da torneira e ao leite.
Nossa suspeita desse ser um número
Bergeron e Volmat discorrem extensivamente sobre essa ideia; o livro de
comemorativo é reforçada pelo escrito no Volmat, L’art Psychopathologique, relatando as doações das obras, é de 1956.
alto da página da revista “30º Ano. N. 1 –
Junho 1946” (grifo nosso). Mas a “pista” que nos parece mais interessante – também encontra-
da por nós no arquivo pessoal da Doutora – é um artigo muito sugestivo,
cuidadosamente guardado entre seus documentos mais importantes: num
recorte da revista popular Eu Sei Tudo, versão brasileira da homônima fran-
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

cesa Je sais tout, publicada em junho de 1946, aparece o famoso artigo do


Dr. Auguste Marie, sob o título O Museu da Loucura. No centro da primeira
página, há a célebre foto do Dr. Marie ao lado de sua estátua, feita em ma-
deira por um paciente. No alto da página, de próprio punho, a Dra. Nise
escreve a referência do artigo: “Eu sei tudo (revista)”7.
Não poderíamos deixar de reproduzir alguns trechos desse artigo,
que com certeza calaram fundo no espírito atento e observador da Dra. Nise
da Silveira. Já de início, o Dr. Marie procura desmistificar as ideias correntes
sobre o louco:

Montaigne disse outrora que se enclausuram alguns homens como loucos


para fazer crer aos outros que têm bom senso. Todas as invectivas espirituo-
sas contêm uma parcela de verdade. Não será preciso esgaravatar os crânios
46
dos que se acreditam perfeitamente racionais para descobrir em algum lugar 8
A Dra. Nise da Silveira ressalta o caráter
perturbador que a visão assume na loucura:
o germe do defeito. O alienado não tem um cérebro diferente assim do nos- sobre o assunto destacam-se seus estudos
so! Não há diferença entre eles e nós senão exageros, às vezes parciais. É um sobre a dialética entre a visão dos mundos
externo e interno através de representações
erro muito comum considerar os alienados como seres fora da humanidade, do próprio ateliê de pintura e as vivências
acreditar que sua incoerência mental e sua imaginação desordenada se apli- espaciais da esquizofrenia, ambos no livro
Imagens do Inconsciente.
cam a um mundo que nos é estranho (MARIE, 1946, p. 31).

Observa-se nesse texto uma crítica à psiquiatria organicista (ou não


dinâmica), sempre em busca de uma causa física para a loucura. É uma
primeira afinidade com o pensamento da Dra. Nise, que discordou dos as-
sentamentos tradicionais da psiquiatria desde o início de sua atividade à
frente da STOR. Marie descreve um pouco as características das pinturas
que ornam “a grande sala de reuniões do asilo de Villejuif ”, para logo em se-
guida entrar em outro assunto caro à nossa médica brasileira, a importância
das atividades na terapêutica:

começa-se hoje a adotar o hábito (...) de deixar que os doentes dos asilos e
alienados leiam, escrevam ou desenhem, segundo seus gostos. (...). O es-
pírito atento a uma tarefa agradável esquece então, às vezes, o mal que o
obseda. (...) muitas vezes esse tratamento fácil e todo bondade favorece a
cura (MARIE, 1946, p. 31).

E vem o arremate, a consequência, a pedra de toque:

Não é, pois, difícil hoje constituir uma antologia literária patológica ou criar
um museu devido ao lápis e ao pincel dos doentes alienados. Há dezoito

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


anos que me dedico ao serviço médico dos asilos e pude reunir uma coleção
pessoal de documentos interessantes sob esse ponto de vista; alguns confra-
des meus recolhem, tanto na França como no estrangeiro, documentos des-
sa espécie, cujo conjunto permitirá um dia sínteses curiosas. São, às vezes,
estranhamente reveladores (MARIE, 1946, p. 31, grifo nosso).

O artigo contém diversas ilustrações, algumas com forte conteúdo


simbólico. As legendas procuram ressaltar o caráter enigmático das obras.
Marie faz interessantes observações sobre algumas características que pro-
cura associar à doença. Ele nos fala, por exemplo, de uma “modificação
da capacidade de medir as relações visuais das coisas”, o que muitas vezes
empresta um caráter arcaico às obras. A verdade da visão seria influenciada
pelo “incessante pesar” do doente, cujo olhar “não percebe senão as cores
que a disposição do espírito deseja”8.
47
9
Vemos em todas essas citações Marie também confirma o fato de que “pintores e desenhadores em
o afloramento de temas que serão
aprofundados pela Dra. Nise e seus quem a loucura despertou uma vocação até então adormecida, são talvez os
colaboradores a partir das imagens
do acervo do Museu de Imagens do mais interessantes entre os artistas dos asilos” (MARIE, 1946, p. 33). Mes-
Inconsciente. mo inábeis e sem escola, a obra destes é “cheia de sinceridade, de paixão
original e de imprevisto. Passa por todas as tentativas das primeiras idades
da humanidade”, fazendo saltar aos olhos o renascimento de “atavismos que
se julgavam abolidos”.
A representação de delírios nas pinturas e desenhos também foi ob-
servada por Marie: “os perseguidos, em particular, traçam no papel o in-
ferno que os atormenta, os inimigos que os afligem, os demônios que os
atenazam, os carrascos que os despedaçam” (MARIE, 1946, p. 34). Para
concluir o seu artigo, Marie lança as pontes para possíveis estudos revelan-
do sua crença na proficiência do estudo das imagens para a compreensão
do homem:

Em resumo, em se querendo analisar pormenorizadamente a obra artística


da loucura, encontrar-se-iam nela todos os reflexos das etapas do pensa-
mento humano, desde as suas origens, seus ensaios, seus erros, suas quedas,
suas paixões e seus progressos. Encontrar-se-ia nela, escrita, em caracteres
mais fortes que os do criador ponderado, a gênese da concepção artística
(MARIE, 1946, p. 34)9.

O texto do Dr. Marie, além disso, mostra uma abordagem surpreen-


dentemente clara e ousada em se tratando de dirigir-se a um público leigo,
num veículo de leitura ligeira. Isso só vem reforçar a importância que ele
teve na disseminação do assunto, conforme ressaltado por vários autores.
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

Para nós não restam dúvidas de que o espírito sensível da Dra. Nise foi to-
cado por esse texto basilar.

Um contato com a arte bruta


Em 1949, a Dra. Nise recebeu uma carta de Jean Dubuffet. Em papel
timbrado da Compagnie de L’Art Brut, o artista diz que o endereço da Dra.
Nise lhe foi fornecido por um certo Monsieur P. E. Salez-Gomez, que o
aconselhara a inteirá-la sobre a coleção de arte bruta e solicitar ajuda nas
pesquisas que estava realizando com obras de doentes mentais, “desenhos
(mesmo grosseiros e rudimentares) ou produções diversas como bordados,
objetos modelados ou esculpidos, etc.”. Eis alguns trechos da carta:
48
Eu me ocupo pessoalmente dessas pesquisas já o prazer de enviar ao Instituto de Arte Bruta
fazem alguns anos; elas me conduziram a mui- alguns originais.
tas viagens e colocaram-me em contato com
vários médicos e psiquiatras na França e em Concordo com os pontos de vista de vossa
outros países estrangeiros. Companhia (...). (SILVEIRA, 1949b).

Há um ano eu formei com vários amigos pa- Não fica claro, no texto, se os originais
risienses uma associação para continuar es- prometidos pela Dra. Nise seriam um emprésti-
tas pesquisas e amplificá-las, sob o nome de mo ou uma doação – que não aconteceu, já que,
“Compagnie de l’Art Brut”, e eu anexo nesse em sua resposta, Dubuffet, após uma análise do
envelope uma Comunicação, definindo nossa material enviado, deixa implícito o encerramen-
instituição. to do diálogo.
Ele escreve agradecendo as fotografias que
Nós dispomos de um local em Paris, onde se
foram “longa e cuidadosamente examinadas” por
acha instalado, sob o nome de “Foyer de l’Art
ele e todos do Foyer. Sua primeira impressão é a
Brut” nosso pequeno instituto. Ele possui vá-
existência de um “ar de família” no conjunto das
rias salas, das quais três são abertas ao público.
obras, “como se todos estes trabalhos fossem exe-
Aí nós organizamos constantemente exposi-
ções (...). As outras salas são destinadas à guar- cutados sob o estímulo de um iniciador comum”
da de nossos arquivos, documentos e coleções. que os polariza. Esse iniciador, acrescenta, parece
Estas últimas possuem um número expressivo “possuir um gosto apurado e estar bastante infor-
de obras interessantes. Possuímos também um mado sobre as correntes da pintura modernista
milhar de fotografias e de obras que fotografa- naquilo que ela tem de melhor”. Os trabalhos do
mos em muitos lugares, reunidos em álbuns. Engenho de Dentro lhe pareceram “mais evoluí­
Nosso objetivo é também fazer publicações, dos”, “graciosos” e “coquetes”10 que aqueles que
algumas delas já realizadas. habitualmente são encontrados nos hospitais

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


psiquiátricos franceses:
Nós muito lhe agradeceríamos se fosse possí-
vel nos enviar originais ou fotografias de docu- O caso do doente que assina RAPHAEL (R.D.,
mentos (DUBUFFET, 1949a). Nºs 1 a 20) me parece especialmente interes-
sante. Suas obras mostram um grande talento
Em sua resposta, a Dra. Nise envia 71 foto- e inventividade.
grafias e resume o espírito do trabalho no ateliê:
Diz que alguns dos desenhos lembram
Quase todos os nossos artistas receberam o Matisse, outro parece ter “uma incontestável in-
diagnóstico de esquizofrenia. Assim, eles são fluência de Paul Klee”. A seguir, um questiona-
livres das convenções da moda e certamente mento curioso:
preferem os modelos interiores. Eles traba-
lham na mais completa liberdade. Logo terei
49
10
Sedutor ou pretensioso (Dicionário Nos desenhos [de Raphael] de Nºs 13 e 14, e também nos seguintes, eu achei
Priberan da Língua Portuguesa).
alguma coisa que me intrigou por razões pessoais e sobre a qual eu gostaria
O crítico Antonio Bento descreve, em
11
que V.Sa. me esclarecesse: eu encontrei uma semelhança com meus pró-
sua coluna As Artes, no Diário Carioca,
uma visita que fez em companhia de Mário prios desenhos e pinturas. V.Sa. crê que este doente teve oportunidade de
Pedrosa ao Foyer de l’Art Brut. Ao término
da visita, guiada pelo próprio Dubuffet, ver reproduções em alguma revista de arte ou isto é apenas coincidência?
Pedrosa mostra-lhe alguns desenhos de (DUBUFFET, 1949b).
Raphael. Dubuffet aponta as semelhanças
entre estes e os desenhos de Matisse.
Pedrosa, protesta, dizendo ser muito
improvável que Raphael tenha conhecido os Outros desenhos pareceram-lhe semelhantes àqueles executados por
desenhos de Matissse, já que adoeceu muito crianças: sem dúvida alguém chamou a atenção dos doentes para o charme
jovem. Na despedida, narra Bento, Dubuffet
diz acreditar na boa-fé de Pedrosa, mas dos desenhos infantis, insuflando-lhes o gosto. Das esculturas, as únicas
insiste: “alguma coisa me diz que Raphael
conhece a obra de Matisse”. Infelizmente que lhe interessaram “pessoalmente” foram as de Adelina Gomes. À guisa
o recorte existente no Arquivo Pessoal da
Dra. Nise da Silveira não traz a data da
de conclusão, escreve que, apesar de as obras serem bem mais interessan-
publicação, e não nos foi possível recuperar tes que a maioria dos trabalhos de artistas profissionais que se encontram
esse dado nos arquivos da Biblioteca
Nacional, apesar de repetidos esforços nesse nas galerias de arte, não são “suficiente e profundamente originais”, não são
sentido.
“muito fervorosas”, não são suficientemente “brutas”. A carta veio acompa-
nhada de fotografias de obras da Coleção de Arte Bruta11.

Um museu no asilo
Esse relato nos permite concluir que em 1952, ano da fundação do
Museu de Imagens do Inconsciente, a Dra. Nise da Silveira reunia informa-
ções e conhecimentos que contribuíram na decisão de criar um museu. Isso
foi fundamental para a preservação do acervo e para o desenvolvimento
e aprofundamento de suas pesquisas. Foi na instituição museológica, com
seus padrões de organização e metodologias, onde encontrou a estrutura
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

adequada para que todo um conjunto de ações – exposições, grupos de


estudos, observações clínicas – e de pessoas – pacientes, monitores, pes-
quisadores, artistas, estudantes – fomentassem o convívio, uma das carac-
terísticas que fizeram do Museu de Imagens do Inconsciente um lugar tão
especial. Esse convívio gerou um ambiente favorável à germinação e fer-
mentação de ideias, agregando pessoas atraídas pela força gravitacional de
um núcleo denso e altamente energético, centrado na figura inteligente e
carismática da psiquiatra.
A inauguração do Museu em 1952 foi um ato singelo, sem grande
repercussão. Sua sede resumia-se a uma sala localizada no primeiro andar
do Bloco Médico-Cirúrgico, edifício que abrigava as especialidades clínicas
do Hospital:
50
A produção do atelier era muito grande, aumentando cada dia. O agrupa- 12
A Dra. Nise cita a data de 28 de setembro
de 1956 para a inauguração das novas
mento em séries das pinturas levantava interrogações no campo da psicopa- instalações do Museu. Pelo menos três
jornais cariocas (O Globo, Jornal do Brasil
tologia. Começou-se a falar em museu, como um órgão que reunisse todo
e Correio da Manhã) publicaram a notícia
esse volumoso material de importância científica e artística. E, assim, foi da inauguração do Museu no dia 12 de
outubro, informando que a inauguração
inaugurado o Museu de Imagens do Inconsciente, cujas raízes estavam nos acontecera no dia anterior, ou seja, 11 de
ateliers de pintura e de modelagem de uma modesta seção de terapêutica outubro.

ocupacional (SILVEIRA, 1981 p. 16). 13


Não se tem notícia de algum museu
criado pelo Prof. Henri Ey. Em seu
discurso, proferido durante a cerimônia
Em 1956, o Museu foi transferido para um novo local do Hospital, de inauguração, considerou o Museu um
“patrimônio que era tanto do Brasil como
mais amplo e no pavimento térreo, sendo reinaugurado: mas agora, o fato da arte psicopatológica mundial” (Correio
da Manhã de 12 out 1956). O Prof. Ramon
foi noticiado nos maiores jornais da cidade, que se referiram ao evento Sarró saudou-o como “um dos museus de
como a inauguração de um “Museu de Pintura”. O jornal O Globo que cir- Psicopatologia mais impressionantes do
mundo” (SILVEIRA, 1966, p. 125).
culou no dia 12 de outubro trouxe uma pequena nota sob o título Inaugu-
rado o Museu de Pintura. No mesmo dia, o Jornal do Brasil também publi-
ca nota, na qual enumera a presença de diversas autoridades: a hierarquia
do Ministério da Saúde, encabeçada pelo chefe do gabinete do Ministro da
Saúde, Dr. Henrique de Novaes Filho; Mme. Mineur, adido cultural da Em-
baixada da França; e os catedráticos López Ibor (Universidade de Madrid),
Ramon Sarró (Universidade de Barcelona) e Henri Ey (diretor do Hospital
de Bonneval, Paris): “Os trabalhos apresentados constituíam-se de obras
em gesso, aquarelas, pinturas a óleo, guaches e demais representações, in-
clusive desenhos, colecionados com observações médicas” (NO CENTRO
PSIQUIÁTRICO..., 1956)12.
O jornal cita, ainda, que em sua fala o diretor do Centro Psiquiátrico
Nacional, Dr. Mathias Costa, disse “aceitar com particular agrado a suges-

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


tão do Dr. Henri Ey, para a criação do Museu de Psicopatologia, à maneira
do que fez este na França”13.
Agora um fato curioso: apesar dos seus quatro anos de existência,
o museu ainda não tinha um nome. As reportagens sobre a inauguração
do museu referem-se a um “Museu de Pintura”. Analisando o trabalho 20
anos de terapêutica ocupacional em Engenho de Dentro, um texto com mais
de 150 páginas publicado na Revista Brasileira de Saúde Mental e impor-
tante fonte de informações sobre o período 1946-1966, constatamos que
em diversas ocasiões a Dra. Nise da Silveira refere-se ao “nosso Museu de
obras plásticas” (p. 41), “Museu de pintura” e “Museu de cerâmica” (p. 43),
“Museu da STOR” (p. 100-101); Documentos oficiais, como a Ordem de
Serviço 3/63 do Diretor do Serviço Nacional de Doenças Mentais alude ao
51
14
O trabalho é dividido em 11 seções. “Museu de Pintura” e ao “Museu de Cerâmica” (p. 100). O nome “Museu de
A de número 6 intitula-se simplesmente
O Museu. O relatório de 1965, consultado Imagens do Inconsciente” (p. 97 e 124) só aparece nas duas vezes que sua
em seu arquivo pessoal, refere-se ao “Museu
da STOR”.
inauguração é relatada14.
Isso exposto, podemos concluir que a denominação Museu de Ima-
gens do Inconsciente passou a ser usada oficialmente a partir de 1956. A
partir de sua reinauguração em novo e maior espaço, o reconhecimento
oficial, a opinião favorável de pesquisadores internacionais, a divulgação de
sua existência na imprensa, o Museu recebeu um importante impulso. No
ano seguinte, a Dra. Nise viajaria para Zurique onde o Museu faria a célebre
exposição do II Congresso Internacional de Psiquiatria. A partir de 1958, o
Museu passa a realizar exposições temporárias com regularidade, às vezes
promovendo duas no mesmo ano.
No dia 11 de maio de 1961, os jornais publicaram mensagem do Pre-
sidente da República Jânio Quadros, convocando a Dra. Nise ao seu gabi-
nete, para apresentar um plano de trabalho “para o exercício e de ampliação
para o futuro” (SILVEIRA, 1966, p. 39). No texto do plano apresentado, ela
afirma que o Museu reunia, naquela ocasião, cerca de 40 mil peças, e pleiteia
recursos para a aquisição de estantes de aço para o Museu de Pintura “que
nos livrarão da permanente ameaça dos cupins, fichários, arquivos, remo-
delação de álbuns antigos e confecção de novos álbuns, biblioteca especiali-
zada” (SILVEIRA, 1966, p. 41 e 43).

Instalaremos um museu de trabalhos de cerâmica e modelagem. Essas obras


se encontram, presentemente, amontoadas, o que muito dificulta sua cata-
logação e estudo.
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

Este museu, mesmo com instalações modestas, muito contribuirá para faci-
litar nossos trabalhos de pesquisa (SILVEIRA, 1966, p. 43).

E ressalta o caráter científico do Museu:

o Museu de obras plásticas da STO [Seção de Terapêutica Ocupacional]


do CPN [Centro Psiquiátrico Nacional] tornar-se-á um centro de estudo
e pesquisa, aberto não só a psiquiatras, mas também a antropólogos, artis-
tas, críticos de arte e educadores interessados pelos problemas da psicologia
profunda e da atividade criadora (SILVEIRA, 1966, p. 46).
52
O projeto era ousado, propondo, como solicitado pelo Presidente, 15
O fato foi comunicado ao diretor do
Centro Psiquiátrico em 30 de março de
uma política de terapêutica ocupacional padrão para o país, transformando 1965. Segundo escreve a Dra. Nise no
relatório daquele ano, foram furtadas
a STOR em um órgão de referência nacional. Como resposta ao plano apre- numerosas pinturas sobre cartolina ou
sentado pela Dra. Nise da Silveira, o Presidente Jânio Quadros edita o De- papel, principalmente dentre aquelas que
figuraram na Exposição do II Congresso
creto 51.169, de 9 de agosto de 1961. Nele, são acatadas as propostas da Dra. Internacional de Psiquiatria (Zurique).

Nise, inclusive as orçamentárias, dispondo o seguinte inciso no Artigo 2º:

IV – Manter um museu de obras plásticas, que será um centro de estudo e


pesquisa (SILVEIRA, 1966, p. 50).

Antes que o plano entrasse em execução, aconteceu a renúncia do


Presidente e “as autoridades dos novos governos não se interessaram pela
execução do decreto presidencial 51.169 ou não houve condições para fa-
zê-lo. Tudo continuou como antes” (SILVEIRA, 1966, p. 51). Em 1963, o
Diretor do Serviço Nacional de Doenças Mentais, órgão do governo ao qual
o hospital estava subordinado, edita a Ordem de Serviço nº 3/63, com o ob-
jetivo, segundo a própria Dra. Nise, de melhor proteger o acervo do Museu.
O texto determina que:

c) o Museu de Pintura e o Museu de Cerâmica, da Seção de Terapêutica


Ocupacional e Reabilitação, do Centro Psiquiátrico Nacional, sejam os mu-
seus da referida Seção do Serviço Nacional de Doenças Mentais.
d) resolve, ainda, que as obras de arte plásticas daqueles Museus sejam ina-
lienáveis e que, para fins de estudo e pesquisa (...) terão de permanecer den-
tro do território daquela Seção (SILVEIRA, 1966, p. 100).

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


Mas, apesar da constante vigilância, “o acervo do Museu tem sido
desfalcado, pelo furto, de documentos importantes. Em princípios de 1965
foi cometido furto de grande vulto, que privou as coleções do Museu de
peças do maior interesse para as pesquisas concernentes à psicopatologia
profunda”15. Ela enumera 12 exposições organizadas na sede do Museu de
1958 a 1966 e afirma ter o Museu, naquela ocasião, cerca de 70 mil docu-
mentos (SILVEIRA, 1966).

O museu chega à maioridade


O Museu foi admitido como membro do Conselho Internacional
de Museus (ICOM) em 1973. Nesse período, a convite da Dra. Nise, a
53
16
Museu de Imagens do Inconsciente: presidente e a secretária geral da AM-ICOM Brasil, respectivamente
uma experiência vivida num hospital
psiquiátrico do Rio de Janeiro. Fernanda de Camargo-Moro e Lourdes Maria Novaes, prestam colaboração
no que diz respeito à organização técnica, inclusive com a realização de
“um curso de ciclagem museológica para os funcionários do Museu em
novembro de 1974” (SILVEIRA, 1980, p. 24).
A experiência dessas profissionais do campo da museologia está
descrita no artigo Museum of Images of the Unconscious, Rio de Janeiro: an
experience lived within a psychiatric hospital16, publicado em 1976 na Re-
vista Museum, da UNESCO. No artigo, além de assinalar a utilização do
ARAS como sistemática de catalogação utilizada no Museu, a autora aponta
o desafio de promover modificações estruturais sem comprometer o fun-
cionamento do Museu e o convívio de pacientes, funcionários e visitantes
(CAMARGO-MORO, 1976).
Assim, as modificações empreendidas foram realizadas durante o
dia, à vista de todos: aumento da área de exposição, montagem de uma ex-
posição permanente, colocação de suportes e prateleiras para exibição de
esculturas, forração das paredes das salas de exibição com cânhamo, foram
alguns dos aspectos museográficos trabalhados então. Segundo ela, algu-
mas práticas profissionais, padrões em museologia, apesar de seu alto valor
técnico, não poderiam ser aplicadas no Museu, devido às suas peculiarida-
des (CAMARGO-MORO, 1976).
A “ciclagem museológica” dos funcionários a que se referiu a Dra.
Nise constou da realização de um curso de noventa e oito horas no qual fo-
ram abordados estudos sobre patrimônio cultural, preservação, museologia
e museografia. Como parte prática, foram realizadas visitas a museus, com
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

a posterior elaboração de relatórios e discussões sobre classificação e cata-


logação, com a implantação de um sistema de classificação em bases mu-
seológicas, além daquela já existente (ARAS) (CAMARGO-MORO, 1976).
Participaram desse treinamento 35 pessoas entre médicos (1), psi-
cólogos (2), estudantes de medicina (1), advogado (1), terapeutas ocupa-
cionais (20) e pessoal administrativo (10). Foi também realizada pesquisa
no entorno do hospital, para verificar o conhecimento sobre o Museu na
comunidade circundante. O resultado mostrou que 80% das pessoas não
sabiam da existência do Museu. Entrevistas com visitantes demonstraram
o alto impacto causado pelas obras expostas. Outro dado que aparece no
artigo é o número de visitantes: 280 em 1973 e 580 em 1974 (CAMARGO-
MORO, 1976).
54
Em 1975 acontece a aposentadoria com- papel (SILVEIRA, 1980). O treinamento da equi-
pulsória da Dra. Nise. Nessa época, a hostilidade pe para a conservação e pequenos reparos pos-
da direção do Hospital torna-se evidente – re- sibilitou mutirões que impediram o processo de
dução dos espaços do Museu, corte de verbas degradação de milhares de obras importantes do
(SILVEIRA, 1980). Porém, um acontecimento de acervo (SOCIEDADE AMIGOS..., [1983]).
grande importância para a sobrevivência do Mu- O Ministério da Saúde cedeu um prédio
seu vem mudar esse cenário de ameaças: a cria- independente, nos fundos do terreno do hospi-
ção, em dezembro de 1974, da Sociedade Amigos tal, anteriormente ocupado por um pronto-so-
do Museu de Imagens do Inconsciente (SAMII), corro. O edifício foi adaptado para suas novas
centralizada pela educadora Zoé Noronha Cha- funções e a equipe contratada pelo projeto foi
gas Freitas. Já em 1975, a SAMII tem papel deci- absorvida pelo Ministério da Saúde, uma exigên-
sivo na realização da já citada exposição Imagens cia da FINEP para a continuidade do convênio.
do Inconsciente – centenário de C. G. Jung, pri- Salas foram projetadas especialmente para re-
meira mostra itinerante do Museu, inaugurada ceber as obras e móveis de aço adquiridos para
no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, acondicioná-las.
em junho de 1975, e que depois percorreria as Até então, as obras eram guardadas preca­
cidades de Brasília, Curitiba e Belo Horizonte riamente em salas sem nenhuma segurança;
(SILVEIRA, 1980). embora organizadas, não possuíam nenhuma
Inicialmente presidida pelo ministro Edu- pro­teção. Agora, desenhos e pinturas em papel
ardo Portela, foi durante a administração de Alu- foram empacotados ou acondicionados em caixas
ísio Magalhães que a atuação da Sociedade exe- de papelão, as telas dispostas em trainéis de telas
cutou o projeto que seria um divisor de águas na de aço ou estantes modulares (SOCIEDADE
história da instituição: Treinamento Terapêutico e AMIGOS..., [1983]).
Manutenção do Museu, nome dado ao convênio
celebrado entre a SAMII e a Financiadora de Es- Uma atmosfera de criatividade permeia hoje o

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


tudos e Projetos (FINEP) e que foi coordenado museu como um todo (...). Bem cedo de uma
pela psicóloga Gladys Schincariol. A contratação manhã ensolarada eu cheguei à nova sede. Ela
vibrava de atividade. Pacientes pintavam e es-
de uma equipe de bolsistas, técnicos e profissio-
culpiam no jardim. As oficinas lá dentro esta-
nais possibilitou a realização de seminários, cur-
vam cheias de pessoas. Um forte clima de en-
sos, exposições, documentários científicos; re-
tusiasmo permeava o ambiente, acompanhado
cursos destinados à aquisição de livros ajudaram
harmoniosamente pelo piano da sala de conví-
na organização de uma biblioteca especializada vio (CAMARGO-MORO, 1981, p. 168).
e de uma imagoteca, com cromos, diapositivos
e fotografias; foi também aperfeiçoado o sistema A precariedade de determinados suportes
de registro e indexação do acervo; a totalidade até então utilizados (papéis de embrulho, jornais,
das obras em suporte de tela foi restaurada, e formulários administrativos), bem como técni-
também a parte mais danificada do acervo em cas não apropriadas (óleo sobre papel) levaram a
55
17
O módulo Imagens do Inconsciente
reuniu, além de obras do MII, trabalhos da
pesquisas e iniciativas não ortodoxas na área da conservação, segundo nos
Casa das Palmeiras, do MASP, do Museu informou Ingrid Beck, especialista responsável pela conservação e restaura-
Osório Cesar e do artista Bispo do Rosario.
ção das obras do Museu de Imagens do Inconsciente desde 1979. O Museu
18
Com a intermediação do Centro Cultural
do Ministério da Saúde. possui em seus arquivos ampla documentação dessa época, com fichas de
conservação e fotografias do processo de restauração das obras.
Com o novo espaço, o Museu passou a exibir mostras mais comple-
xas e com maior cuidado nas informações e no acabamento visual. Parale-
lamente, a equipe desenvolvia materiais didáticos para divulgação dos tra-
balhos realizados no Museu: dirigidos por Luiz Carlos Mello, editados pelo
autor deste trabalho e coordenados por Gladys Schincariol, sempre sob a
supervisão científica da Dra. Nise da Silveira, um conjunto de 15 documen-
tários científicos, feitos em diapositivos com textos gravados por grandes
atores e atrizes brasileiros, foi realizado entre 1982 e 1994. Esses documen-
tários são frequentemente apresentados em universidades e centros de cul-
tura do país, sempre que o Museu é convidado a expor seus métodos de
trabalho.
Segundo o curador e diretor do Museu, Luiz Carlos Mello, as expo-
sições do Museu, especialmente a partir dessa nova fase da instituição, pro-
curam apresentar trabalhos de qualidade estética, sem deixar de enfatizar a
pesquisa científica. No final da década de 1990 crescem as mostras com uma
abordagem mais artística, especialmente depois da participação do Museu
na Mostra do Redescobrimento Brasil +500. Esta última, que procurou traçar
um panorama retrospectivo da produção plástica nacional de 1500 até nos-
sos dias, foi vista por mais de 2 milhões de pessoas. Uma enquete revelou
que o público escolheu, entre todos os módulos, aqueles dedicados à Arte
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

Indígena e às Imagens do Inconsciente como os mais impactantes17.


O apoio financeiro da FINEP terminou em 1982. Depois, a escassez
de recursos e a falta de pessoal da área museológica fez decrescer as ativida-
des de conservação e catalogação, alternando períodos de total estagnação
com outros de pouca produção. A partir de 2000, acontece a regulamentação
da lei do Sistema Único de Saúde (SUS), transferindo o hospital e tudo que
nele havia para a administração municipal. O complexo psiquiátrico muda
de nome, passando a chamar-se Instituto Municipal de Assistência à Saúde
Nise da Silveira (IMASNS). Um convênio com o Ministério da Saúde per-
mitiu a contratação de estagiários da Escola de Museologia da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), que se mantém até hoje18.
As atividades de conservação e documentação, portanto, conseguiram
56
manter-se com regularidade, o que resultou nas excelentes condições do 19
Nise se referia aos grandes artistas do
ateliê do MII como “camafeus”.
acervo na atualidade.
20
O pleito da SAMII, iniciado na gestão
Foi também em 2000 que o MII recebeu importante aporte de recur- do já citado Humberto Franceschi, foi
atendido durante a presidência do Prof.
sos da Fundação Vitae, que permitiu concluir a etapa básica de organização Cícero Mauro Fialho Rodrigues, ex-reitor
do acervo. Chamamos etapa básica aquela que abrange o arranjo da coleção da Universidade Federal Fluminense.

de forma científica, a consolidação das informações em uma base de dados,


o acondicionamento adequado e uma política de conservação. Esse aporte
permitiu a aquisição de arquivos deslizantes, mapotecas, além de conside-
rável quantidade de materiais para acondicionamento.
Em 2003, o Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN) atendendo pleito da SAMII, à época presidida pelo his-
toriador, pesquisador e fotógrafo Humberto Franceschi, procedeu ao tom-
bamento das principais coleções do museu. Esse tombamento atingiu cerca
de 128 mil obras, todas produzidas entre o início da coleção (1946) e o ano
de 1999. Em maio de 1999 morre o artista Fernando Diniz, o último dos
grandes camafeus19 e, em outubro, ocorre o falecimento da própria Dra.
Nise, que encerra o ciclo de nascimento, formação e consolidação da expe-
riência de Engenho de Dentro.
Em 2006 foi realizado um inventário dos acervos museológicos, bi-
bliográficos e arquivísticos do agora Instituto Municipal Nise da Silveira, ao
qual o Museu está administrativamente subordinado. Ao fim desse inventá-
rio, verificou-se o número de 352 mil obras no acervo.
Em 2014, também por iniciativa da SAMII, o Arquivo Pessoal da Dra.
Nise da Silveira, sob a guarda dessa Sociedade e acondicionado na Reserva

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


Técnica do MII, recebeu da UNESCO o Registro de Memória do Mundo,
categoria nacional. Em 2015, recebe o Registro Regional (América Latina e
Caribe)20. E, em 2021, recebe o Registro Internacional.

57
Referências
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maladies. L’Encéphale, 41, 143-211, 1952.
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experience lived in a psychiatric hospital. Museum, Lausanne, v. XXVIII, n. 1, 35-42, 1976.
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166-168, 1981.
DELANGLADE, Frédéric. L’Art à l’Asile. Quadrige. Paris, n. 7, 48-50, 1946.
DUBUFFET, Jean. Carta à Nise da Silveira de 24 de março de 1949a. Arquivo Pessoal Nise da
Silveira, Museu de Imagens do Inconsciente. Consulta em março de 2014.
DUBUFFET, Jean. Carta à Nise da Silveira de 13 de junho de 1949b. Arquivo Pessoal Nise da
Silveira, Museu de Imagens do Inconsciente. Consulta em março de 2014.
MARIE, Auguste. O Museu da Loucura. Eu sei tudo, n. 1, 51-54, 1946.
MELLO, Luiz Carlos. Nise da Silveira: caminhos de uma psiquiatra rebelde. Rio de Janeiro:
Automática, 2014.
NO CENTRO PSIQUIÁTRICO NACIONAL. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 out 1956.
[s.p.]. Arquivo Pessoal Nise da Silveira, Museu de Imagens do Inconsciente. Consulta em
abril de 2015.
SILVEIRA, Nise. Relatório de Atividades da Seção de Terapêutica Ocupacional. Endereçado
ao Diretor do Instituto de Psiquiatria Cincinato Magalhães de Freitas. 31.12.1946. Cópia
datilografada. Arquivo Pessoal Nise da Silveira, Museu de Imagens do Inconsciente. Consulta
em março de 2015.
SILVEIRA, Nise. Relatório de Atividades da Seção de Terapêutica Ocupacional. 31.12.1947.
Arquivo Pessoal Nise da Silveira, Museu de Imagens do Inconsciente. Consulta em março
de 2015.
SILVEIRA, Nise. Relatório de Atividades da Seção de Terapêutica Ocupacional. Manuscrito
(rascunho). 31.12.1949a. Arquivo Pessoal Nise da Silveira, Museu de Imagens do
Inconsciente. Consulta em março de 2015.
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

SILVEIRA, Nise. [Carta a Jean Dubuffet de 4 de junho de 1949, manuscrita]. 1949b. Arquivo
Pessoal Nise da Silveira, Museu de Imagens do Inconsciente. Consulta em: mar. 2015.
SILVEIRA, Nise. 20 Anos de Terapêutica Ocupacional em Engenho de Dentro (1946-1966).
Revista Brasileira de Saúde Mental. Rio de Janeiro, v. X, 17-161, 1966.
SILVEIRA, Nise. Entrevista concedida a David Bocai, Joel Bueno e José Paulo. Revista
Rádice. Rio de Janeiro, n. 3, 1976.
SILVEIRA, Nise. Museu de Imagens do Inconsciente: histórico. In: Museu de Imagens do
Inconsciente. Coleção Museus Brasileiros, v. 2. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980. p. 13-29.
SILVEIRA, Nise. Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981.
SOCIEDADE AMIGOS DO MUSEU DE IMAGENS DO INCONSCIENTE. Projeto
Treinamento Terapêutico e Manutenção do Museu. Relatório Final de Atividades. Rio de
Janeiro, [1983]. Arquivo do Museu de Imagens do Inconsciente. [s.p.]
VOLMAT, Robert. L’Art Psychopathologique. Paris: PUF, 1956.
58
A obra de Nise da Silveira
e o timbre de Asclépio:
companheiro mítico, diretrizes
de trabalho e sujeito do
conhecimento
Walter Melo

Introdução
O Museu de Imagens do Inconsciente foi inaugurado no dia 20 de 1
Nise da Silveira assumiu a coordenação
da terapêutica ocupacional em 1946. Em
maio de 1952, a partir da exuberante produção dos ateliês de desenho, pin- 1954, ocorreu a mudança na denominação
tura e modelagem da Seção de Terapêutica Ocupacional1 coordenada por do setor, que passou a se chamar Seção de
Terapêutica Ocupacional e Reabilitação
Nise da Silveira. Em 2022, essa importante instituição completa, portanto, (STOR) (SILVEIRA, 1966, 1979).
70 anos. Assim, temos um momento propício para rememorar as inúmeras 2
A Casa das Palmeiras foi fundada por
contribuições que Nise da Silveira e seus diversos colaboradores proporcio- Nise da Silveira (psiquiatra), Maria Stella
Braga (psiquiatra), Lygia Loureiro da
naram para os campos da saúde mental (SILVEIRA, 1981, 1992a; MELO, Cruz (assistente social) e Belah Paes Leme
(cenógrafa). De 1956 a 1968, funcionou no
2005a, 2009a; MELLO, 2014), da psicologia (MELO, 2001, 2009b) e das ar- primeiro andar de um casarão pertencente
ao Instituto La-Fayette, na Rua Haddock
tes (PEDROSA, 1980; MELO, 2010a, 2010b, 2011) e, também, para preparar Lobo, na Tijuca. De 1968 a 1981, teve como
novos caminhos a serem percorridos. endereço a Rua Dona Delfina, nº 39, em
casa cedida pela CADEME/MEC, também
A primeira lembrança que tenho de Nise da Silveira é de 1988, quan- na Tijuca. Em 1981, a Casa das Palmeiras
adquiriu imóvel próprio, situado à Rua
do ela recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade do Estado Sorocaba, nº 800, em Botafogo, onde ainda
está em funcionamento (SILVEIRA, 1986).
do Rio de Janeiro (UERJ). O auditório estava lotado: estudantes, profes-
sores, reitor, médicos, psicólogos, atores, poetas, clientes e integrantes das
equipes do Museu de Imagens do Inconsciente e da Casa das Palmeiras2,
frequentadores do Grupo de Estudos C.G. Jung, colaboradores e amigos da
médica. Na ocasião, foi exibido o filme Em Busca do Espaço Cotidiano, sobre
3
As quatro aulas que aconteceram na a produção de Fernando Diniz no Museu de Imagens do Inconsciente. Tra-
Casa das Palmeiras foram ministradas,
respectivamente, por Alice Marques dos ta-se da primeira parte da trilogia cinematográfica Imagens do Inconsciente,
Santos (psiquiatra), Gilza Prado (socióloga),
Mendel (professor de teatro) e Philippe dirigida por Leon Hirszman. O filme impressiona pela concepção estética
Bandeira de Mello (psicólogo).
e pelo rigor ético, articulando política, sociedade e arte (MELO, 2010b). A
4
Trata-se do sétimo documentário de cerimônia transcorreu com a entrada da médica no auditório e, além das
uma série de quinze filmes de caráter
didático elaborado pela equipe do falas das autoridades, Gilberto Gouma leu o poema Ode à Nise da Silveira e
Museu de Imagens do Inconsciente. Os
documentários foram dirigidos por Luiz Ferreira Gullar fez a entrega do título.
Carlos Mello, editados por Eurípedes Esse foi o meu primeiro dia de aula como estudante de psicologia na
Gomes da Cruz Junior, coordenados por
Gladys Schincariol, com texto e supervisão UERJ. Saí do auditório muito impressionado com tudo o que tinha visto: a
de Nise da Silveira. O documentário Paixão
e Morte de um Homem possui 20 minutos movimentação e o embevecimento das pessoas, a figura frágil e ao mesmo
e foi narrado pelo ator Cláudio Cavalcanti
(CRUZ JUNIOR, 2009).
tempo forte de Nise da Silveira, as palavras pronunciadas e, principalmen-
te, o filme. O impacto desse dia ainda reverbera e foi atualizado em diversas
ocasiões. Durante as férias de julho, comecei a estudar psicologia analítica
junto com alguns colegas de turma. E, no retorno às aulas, ao entrar por
um dos portões laterais da UERJ, vi um cartaz sépia com o rosto de Nise da
Silveira. O cartaz anunciava uma exposição da Casa das Palmeiras no Mu-
seu do Ingá, em Niterói/RJ, organizada por Marco Lucchesi. Infelizmente,
a exposição já estava encerrada, mas no cartaz havia o telefone da Casa das
Palmeiras. Liguei para a instituição com a intenção de obter algumas infor-
mações e me disseram que estavam organizando um curso para seleciona-
rem estagiários. Fui até a Casa das Palmeiras e fiz a inscrição. Mal sabia que
essa atitude seria um divisor de águas na minha vida.
O curso constava de seis encontros, sendo o primeiro e o último no
apartamento-biblioteca de Nise da Silveira e os demais na própria Casa das
Palmeiras3. No último encontro, levei o livro Imagens do Inconsciente para a
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

anfitriã fazer uma dedicatória: Para Walter, ame aquilo que você faz. Nise da
Silveira. Pouco depois, iniciei a minha colaboração na Casa das Palmeiras,
que perdurou por cerca de uma década. E, ainda hoje, a Casa das Palmeiras
permanece em mim, com seus valores de liberdade, atividade e afetividade
(MELO, 2001).
Dentre as inúmeras experiências extremamente significativas daque-
le período, destacarei dois momentos: o dia 27 de junho de 1990, no último
encontro do Grupo de Estudos C.G. Jung antes das férias de julho; e o ano
de 1992, quando o Museu de Imagens do Inconsciente completava 40 anos.
Na primeira situação, Nise da Silveira convidou os estagiários da
Casa das Palmeiras para o encerramento do grupo de estudos daquele se-
mestre. Foi exibido o documentário Paixão e Morte de um Homem4 sobre
60
a produção pictórica de Isaac Liberato. Assisti tema de Asclépio, como a imagem arquetípica
atentamente o desdobramento das imagens e, em da experiência médica. O debate segue para as
seguida, escutei, com igual atenção, os comentá- possibilidades e dificuldades de reconhecimento
rios de Nise da Silveira. Em especial, a seguinte do timbre de Asclépio nas faces, gestos e atitudes
afirmação: é preciso vestir o escafandro e mergu- de cada profissional da medicina (SILVEIRA,
lhar no mar do inconsciente, retornando com al- 1992b). Podemos estender essas observações de
gumas imagens. Ao final do encontro, aguardei Nise da Silveira para qualquer profissional que
que todos se retirassem e me aproximei de Nise exerça função terapêutica.
da Silveira dizendo que eu havia começado o es- Em 1992, tivemos, ainda, o lançamento do
tágio na Casa das Palmeiras e que gostaria de ser livro O Mundo das Imagens (SILVEIRA, 1992a)
um escafandrista. Ela me olhou de maneira si- no salão de entrada do atualmente denominado
lenciosa e atenta. Em seguida, perguntou o que Palácio Austregésilo de Athayde da Academia
eu faria na manhã seguinte. Meus compromissos Brasileira de Letras. Para os preparativos do lan-
seriam à tarde e à noite, Casa das Palmeiras e çamento, Nise da Silveira solicitou que eu entre-
UERJ. A manhã estaria livre. Falou, então, que gasse um exemplar ao psicanalista Ivan Ribeiro, a
me esperava às 10h do dia seguinte. Quando che- quem ela admirava. Fui até o endereço indicado
guei, ela me entregou uma folha de papel com al- e fiz a entrega. Ao retornar, para minha surpresa,
gumas indicações de leitura para o escafandrista: ela me presenteou com o livro, fazendo a seguin-
de Jung (2011a, 2011b), Símbolos da Transforma- te dedicatória: Para Walter, querido colaborador,
ção e Psicologia e Alquimia, de Câmara Cascudo de longos braços e olhos agudos. Nise. set. 1992.
(1999), Contos Tradicionais do Brasil e as cartas Esses anos iniciais de trabalho na Casa das
de Van Gogh (2017) ao seu irmão Théo, além da Palmeiras deram-me a certeza de que se tratava
recomendação para visitar o Museu de Imagens de uma experiência única, difícil de ser repro-
do Inconsciente, o que fiz inúmeras vezes e farei duzida, praticamente impossível. Mas, ao mes-

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


tantas outras. mo tempo, sentia a necessidade de refletir sobre
Nesse período, passei a ter livre acesso ao essa experiência e divulgá-la, pois, com certeza, a
apartamento-biblioteca de Nise da Silveira e, às marca deixada em mim e em tantos outros, esse
recomendações iniciais, foram acrescidas leitu­ timbre de Asclépio, poderia reverberar e servir
ras indicadas ao final de cada capítulo de Jung: de inspiração para o desenvolvimento de prá-
vida e obra (SILVEIRA, 1968) e, principalmente, ticas e concepções singulares. E, seguindo esse
em um pequeno fichário com as dicas para o impulso, construí um longo caminho que passa
Benedito (MELO, 2001, 2005a, 2007a). pela elaboração de uma dissertação de mestrado
Em relação à segunda situação, Nise da (MELO, 2000) – que se desdobrou na publica-
Silveira escreveu um pequeno texto comemora- ção de um livro (MELO, 2009b) –, no convite do
tivo em que, a partir de suas memórias da Fa- Conselho Federal de Psicologia (CFP) para es-
culdade de Medicina da Bahia e do período de crever um livro sobre a médica alagoana (MELO,
reclusão durante a ditadura Vargas, apresenta o 2001), pela defesa de uma tese de doutorado
61
(MELO, 2005a) e publicação de uma série de ar- um método terapêutico eficaz. Dessa maneira,
tigos (MELO, 2004, 2005b, 2007a, 2007b, 2009a, as atividades de terapêutica ocupacional foram
2010a, 2010b, 2010c, 2010d, 2013, 2017; MELO; organizadas em quatro grupos: (1) utilitárias –
FERREIRA, 2013; OLIVEIRA; MELO; VIEIRA- marcenaria, sapataria, cestaria, costura, jardina-
SILVA, 2017). Atualmente, como professor da gem e encadernação; (2) expressivas – desenho,
Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), pintura, modelagem, poesia, teatro e música; (3)
desenvolvo atividades integradas de ensino-pes- recreativas – jogos, festas, cinema, rádio, televi-
quisa-extensão que abordam o pensamento de são, esportes e passeios; (4) culturais – biblioteca
Nise da Silveira, amando aquilo que faço e ten- e estudos (SILVEIRA, 1966, 1979).
tando contribuir na formação de profissionais de Mas, levando em consideração os modos
novo tipo (CERQUEIRA, 1984), na medida do de executar as atividades, o aspecto expressivo
alcance dos meus braços e da acuidade do meu está sempre presente. Nesse sentido, podemos ci-
olhar. tar a produção de José na marcenaria da Casa das
Palmeiras. Os berços, bancos, porta-retratos e
demais objetos utilitários continham, de maneira
O companheiro mítico e a
invariável, a imagem do coração. Essa imagem
diversidade de procedimentos
era extremamente valorizada por José e estava di-
metodológicos
retamente relacionada ao material simbólico que
Os livros Imagens do Inconsciente e O Mun- expressava em outras atividades, como em tex-
do das Imagens reúnem inúmeras experiências, tos poéticos (MELO, 2010d, 2013). Desse modo,
observações e reflexões de Nise da Silveira (1981, Nise da Silveira (1981) observa que a produção
1992a) no hospital psiquiátrico e de seu posicio- nos diversos setores de atividades revelava “in-
namento divergente em relação à psiquiatria tra- suspeitadas riquezas” do mundo interno de cada
dicional. O Museu de Imagens do Inconsciente é, frequentador. Assim, as atividades expressivas
portanto, fruto desse esforço e, ao mesmo tempo, ganham destaque e, dentre elas, desenho, pintura
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

um campo de pesquisa “marcadamente interdis- e modelagem permitem “menos difícil acesso aos
ciplinar” (SILVEIRA, 1992a, p. 94). A organiza- enigmáticos fenômenos internos” (p. 11).
ção dos setores de atividades tinha a intenção Podemos concluir que o interesse de Nise
inicial de criar um canal de comunicação, pois a da Silveira (1981, 1992a) pelos aspectos intrap-
linguagem propositiva encontrava-se, muitas ve- síquicos fez com que as atividades expressivas
zes, extremamente prejudicada. Quais seriam os fossem priorizadas e os ateliês de pinturas e de
pensamentos e sentimentos dos frequentadores modelagem se caracterizassem como verdadeiras
da terapêutica ocupacional? Ou, como Nise da escolas, levantando importantes questões clínicas
Silveira costumava falar: o que se passava na cuca e teóricas, tais como: a produção de pinturas con-
daquelas pessoas? Esse objetivo foi amplamente sideradas de alta qualidade artística; a tendência
alcançado e, mesmo, ultrapassado, dado que a à abstração em seu duplo aspecto – expressionís-
participação nas atividades mostrou-se como tico e geometrizante; a subversão do espaço e a
62
busca do espaço cotidiano; as variações nas vivências temporais; as expres- 5
A banca foi composta por Monique
Augras (orientadora) (PUC-Rio), Álvaro
sões simbólicas de dissociação e de ordenação (notadamente as mandalas); de Pinheiro Gouvêa (PUC-Rio) e Ademir
Pacelli Ferreira (UERJ).
a manutenção da capacidade de estabelecer vínculo afetivo; o afeto como
uma espécie de catalisador para processos de organização psíquica; a dis-
tinção entre metamorfose e transformação; as representações opostas à cha-
mada demenciação na esquizofrenia; e a possibilidade de contraposição à
psicocirurgia (lobotomia).
O acompanhamento das imagens do inconsciente representa o cerne
dos livros Imagens do Inconsciente e O Mundo das Imagens. Livros funda-
mentais para os campos da saúde mental, da psicologia e das artes. Mas,
muitas vezes, na recepção dessas obras é criada a distorção de que o traba-
lho desenvolvido por Nise da Silveira acontece apenas nos ateliês de pintura
e de modelagem. Assim, o cotidiano de trabalho fica encoberto por uma
percepção parcial. Então, desenvolver um trabalho acadêmico que abordas-
se a obra de Nise da Silveira já seria uma novidade. Essa novidade seria po-
tencializada se a ênfase estivesse na diversidade de procedimentos metodo-
lógicos. Dessa maneira, foi elaborada a dissertação de mestrado Os Mitos de
Morte/Renascimento na Perspectiva de C.G. Jung (MELO, 2000), defendida
no dia 6 de janeiro de 2000, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio). A banca5 recomendou que o trabalho fosse publicado
em livro, o que aconteceu alguns anos depois, com o título O Terapeuta
como Companheiro Mítico: ensaios de psicologia analítica (MELO, 2009b).
Na passagem do texto da dissertação para livro foram efetuadas al-
gumas modificações. A dissertação estava fundamentada em duas concep-

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


ções: os mitos de morte/renascimento, diretamente relacionados à viagem
marítima noturna (JUNG, 2011a), em que um herói solar enfrenta enormes
perigos e é tragado por um monstro marinho, mas consegue se salvar; e o
princípio de Hórus, definido por Nise da Silveira (1981) como “o impul-
so para emergir das trevas originais até alcançar a experiência essencial da
tomada de consciência” (p. 245). O livro, por sua vez, está fundamentado
na relação terapêutica que se estabelece em diferentes contextos, engendra
variados procedimentos metodológicos, mas possui como fio condutor
para os relatos clínicos a noção de companheiro mítico, ou seja, a relação
terapêutica baseada nos impulsos para ações e para a produção de imagens
arquetípicas (JUNG, 2011c).
Dessa maneira, no primeiro capítulo é efetuado o acompanhamen-
to de uma série de imagens do inconsciente, tendo como núcleo temático
63
central o rito conjugal, relacionado ao símbolo nessa incessante criação mítica” (p. 13); os va-
da árvore e dos desdobramentos das imagens riados procedimentos metodológicos caracte-
femininas – sereias, estátua, princesas, atrizes de rizam uma práxis inquieta, sustentada por uma
cinema, noviça, fadas, mulher fatal, ninfas, cam- disposição afetiva; e o conhecimento produzido
ponesas, Eva, menina e esposa. Assim, o livro é “permeado por uma cultura ética” (p. 15). Po-
O Terapeuta como Companheiro Mítico (MELO, demos afirmar, portanto, que o terapeuta como
2009b) se alinha aos dois grandes livros de Nise companheiro mítico instaura o homem em um
da Silveira (1981, 1992a) Imagens do Inconsciente mundo permeado pela criação de imagens ar-
e O Mundo das Imagens. Mas, seguindo a ideia quetípicas, pela inquietude no fazer e pela dis-
de apresentar as variações nos procedimentos ponibilidade para acolher as diferenças, tendo
metodológicos, os quatro capítulos subsequen- as situações emocionais como a condição funda-
tes apresentam tais relatos clínicos: um acompa- mental para as relações humanas, com o mundo
nhamento terapêutico (AT) pautado em visitas e consigo mesmo. Temos, assim, um homem em
domiciliares, narrativas míticas e elaboração de construção em um mundo em construção, con-
textos; um atendimento de família em serviço ferindo abertura à condição humana, proposta
ambulatorial, tendo como demanda inicial os ri- fundamental para se pensar os tratamentos no
tuais obsessivos; a rua como espaço clínico e a campo da saúde mental.
relação entre cidade e subjetividade; e três expe-
riências teatrais com objetivos terapêuticos. Os
As diretrizes de trabalho: liberdade,
temas míticos permeiam esses quatro relatos, que
atividade e afetividade
enfatizam aspectos da obra de Nise da Silveira
que não eram evidenciados, mas que já estavam O livro Nise da Silveira (MELO, 2001)
presentes no cotidiano de trabalho, seja na Se- é permeado de lembranças: o gesto que parava
ção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação no ar, como se estivesse pegando uma ferramen-
(STOR) ou na Casa das Palmeiras. Os dois capí- ta, dizendo da adequação da psicologia analíti-
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

tulos finais apresentam uma vinheta clínica e um ca para as suas mãos; a pergunta “Quem será o
relato detalhado, ambos de acompanhamento de Benedito que se interessará pelo estudo das ima-
série de imagens do inconsciente. Os primeiro e gens?”; a série de imagens intitulada Os Cavalos
o sétimo capítulos funcionam, portanto, como de Octávio Ignácio, apresentada como um pe-
uma moldura que acolhe as variações de proce- queno-grande tratado de psiquiatria; os embates
dimentos metodológicos. contra os métodos agressivos – lobotomia, coma
As propostas fundamentais do livro po- insulínico e eletrochoque; a persistência em reu-
dem ser compreendidas a partir de alguns pa- nir as imagens que constituem o acervo do Mu-
râmetros apresentados no prefácio de Marco seu de Imagens do Inconsciente; a decisão de não
Lucchesi (2009): os relatos clínicos estão per- vender nenhuma imagem “nem por ouro, nem
meados por um sentimento-ideia evidenciado por prata, nem por sangue de Aragão”; a manu-
pelo título, de que “a humana condição repousa tenção do acervo como base para implementar o
64
Museu de Imagens do Inconsciente como um centro de pesquisa interdis­ 6
Trata-se de uma frente antifascista criada
em março de 1935, de contraposição ao
ciplinar; a psicologia analítica como fundamentação teórica; a emoção de li- governo Vargas e de resistência ao Partido
Integralista, de extrema direita. Dentre os
dar com os diferentes materiais de trabalho; os estudos de Gaston Bachelard principais integrantes e dinamizadores da
ANL encontram-se líderes do PCB.
sobre a imaginação material; o afeto como catalisador de processos de re-
organização psíquica; a cozinha da Casa das Palmeiras como “o centro de 7
Nise da Silveira saiu da prisão no dia 21
de junho de 1937 e permaneceu afastada do
gravidade emocional” (p. 113); a presença constante de Antonin Artaud; a serviço público até o dia 5 de julho de 1944,
quando foi anistiada. Nos anos iniciais,
presença ainda mais constante dos animais, principalmente os gatos; e os trabalhou na Seção Waldemar Shiller, com
anos de prisão. enfermarias coordenadas por Fábio Sodré
(MELO, 2005a, 2009a). Nesse período,
De 23 a 27 de novembro de 1935, Luís Carlos Prestes liderou a In- Nise da Silveira (1992a) se contrapôs
aos métodos agressivos – lobotomia,
surreição Comunista, com movimentos que rapidamente foram debelados como insulínico e eletrochoque –, sendo
transferida para a terapêutica ocupacional
em três cidades: Natal, Recife e Rio de Janeiro. Desde 1933, Nise da Silveira em 1946, cujo acervo de desenhos, pinturas
vivia no hospital psiquiátrico, que era próximo ao local da insurreição. En- e modelagens originou o Museu de
Imagens do Inconsciente, fundado no dia
tão, no dia 27 de novembro de 1935, ouviu os tiros trocados entre o grupo 20 de maio de 1952.

comunista liderado por Agildo Barata Ribeiro e a polícia de Filinto Müller,


mas não sabia o que estava acontecendo. Após esse dia, foi iniciada uma
caçada a Prestes, preso no dia 5 de março de 1936, junto com sua esposa,
Olga Benário. Nesse contexto, qualquer pessoa que tivesse algum vínculo
com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) passava a ser suspeita. Nise da
Silveira foi filiada ao PCB e frequentou as suas reuniões por um breve perí-
odo. Além disso, integrou a União Feminina do Brasil (UFB), órgão ligado
à Aliança Nacional Libertadora (ANL)6.
Assim, na seção comunismo do Departamento de Ordem Política e
Social (DOPS) foi efetuada uma anotação, de 27 de maio de 1935, sobre a
participação de Nise da Silveira na UFB (MELO, 2005a). Além disso, em

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


seu quarto no hospital, possuía alguns livros de psiquiatria, de literatura e
de cunho marxista. Com a intensificação das prisões, em fevereiro de 1936,
Nise da Silveira foi denunciada por uma enfermeira e, no dia 20 daquele
mês, a polícia se dirigiu ao gabinete de Valdomiro Pires, diretor do hospital,
que mandou chamar a médica. Assim que Nise da Silveira chegou ao recinto,
o diretor disse, simplesmente, “é esta”, e a polícia efetuou a prisão no local de
trabalho da médica. Após o inquérito e a abertura do prontuário nº 13.990
no DOPS, Nise da Silveira foi liberada. Mas, no dia 26 de março de 1936, foi
novamente detida, permanecendo até o dia 3 de abril nas celas do DOPS,
quando foi transferida para o presídio da Rua Frei Caneca, ficando alocada
na Sala 4 (WERNECK, 1988).
Podemos dizer que Nise da Silveira fez da experiência na prisão7 um
ponto de orientação para as futuras transformações que empreendeu nos
65
campos da saúde mental, da psicologia e das ar- tros não mais aconteceram. Em um dia de visitas
tes. Nesse sentido, vamos destacar três aspectos: na casa de detenção, Nise da Silveira recebeu a
liberdade, atividade e afetividade. Em relação ao seguinte notícia: no dia seguinte da prisão, Lui-
primeiro aspecto, Nise da Silveira (1990) cons- za foi levar o café da manhã para a médica, mas
tatou, de maneira imediata, semelhanças entre a não a encontrou; a moça que falava apenas frases
prisão e o hospital psiquiátrico: a exclusão social, desconexas andou pelos corredores do hospital
a vigilância contínua, a regulação do espaço e do perguntando onde estava a Dra. Nise; ficou sa-
tempo, as grades, os muros altos... Os estudos de bendo que havia sido presa; ficou sabendo que
Erving Goffman (1974) apontam que todas as a médica havia sido denunciada; ficou sabendo
instituições tendem ao fechamento, mas algumas quem a denunciou e deu uma surra na enfermei-
se fecham totalmente, as denominadas institui- ra. Essa história é de fundamental importância
ções totais, como as prisões e os hospitais psiqui- para Nise da Silveira, pois contradizia os pres-
átricos. A partir dessa constatação, o tratamento supostos da psiquiatria clássica, dado que Luiza
preconizado por Nise da Silveira deveria aconte- demonstrava os afetos de maneira exuberante e,
cer em liberdade. ainda, que a partir do afeto era possível concate-
A segunda observação: os prisioneiros nar as ideias e organizar a linguagem propositiva,
passaram a organizar uma série de atividades. mesmo que temporariamente (SILVEIRA, 1981;
Assim, o cotidiano no cárcere era permeado por MELO, 2005a). A partir dessa constatação, o tra-
jogos de cartas e de tabuleiro, práticas esportivas, tamento preconizado por Nise da Silveira estaria
grupos de estudos e a programação da Rádio Li- fundamentado na afetividade.
bertadora, alternando notícias, informes políti- As memórias contidas no livro Nise da
cos, recados sobre as visitas e canções românticas Silveira (MELO, 2001) têm como fio condutor a
(RAMOS, 1982). Anos mais tarde, Nise da Silvei- apresentação de suas diretrizes de trabalho: liber-
ra (1977) fez a seguinte observação em uma en- dade, atividade e afetividade. A liberdade de ex-
trevista: “Todo preso procura uma atividade, se- pressão está aliada à liberdade de ir e vir. As ati-
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

não sucumbe mentalmente” (p. 9). A partir dessa vidades estipulam um canal de comunicação, se
constatação, o tratamento preconizado por Nise caracterizam como legítimos métodos terapêu-
da Silveira deveria ser permeado por atividades. ticos e levantam importantes questionamentos
No período anterior à prisão, todos os dias de pesquisa (SILVEIRA, 1981), se contrapõem à
uma interna do hospital psiquiátrico levava o clinoterapia8 e ao opróbio dos pátios (SILVEIRA,
café da manhã para Nise da Silveira. A médica 1966, 1979), configuram uma organização de
convidava Luiza para entrar e tentava travar um espaços de produção e de temporalidades di-
diálogo com a moça. Mas, o discurso era extre- versificadas, alternando atividades individuais e
mamente desconexo, pois a linguagem propositi- grupais (MELO, 2013), possibilitam a conjunção
va falhava, dificultando a compreensão. Nise da entre os impulsos para ação e para a produção
Silveira, no entanto, recebia Luiza todas as ma- de imagens (JUNG, 2011c) e criam as condições
nhãs. Até que veio o dia da prisão e esses encon- necessárias para a observação sobre os modos de
66
lidar com os materiais de trabalho (emoção de lidar) (SILVEIRA, 1986). A 8
Tratamento em repouso.

afetividade perpassa a organização dos ateliês (ambiente afetivo), as rela-


ções com humanos, plantas e animais (afeto catalisador) e as imagens do
inconsciente (carregadas de afeto).

O sujeito do conhecimento
Nise da Silveira é altamente reverenciada. Diante dela, as pessoas cos-
tumavam ficar embevecidas. Esse magnetismo causado pela sua imagem
pode ser percebido ainda nos dias de hoje, cada vez com mais intensidade.
Seus atributos pessoais são realçados: inteligência, persistência, carisma,
humanidade, cultura e sabedoria. Essas e outras características contribuem
para o processo de mitificação e mesmo de santificação de Nise da Silveira.
Esse enaltecimento tem como consequência a pouca inserção de seu pensa-
mento em ambientes acadêmicos e, portanto, a falta de estudos sistemáticos
de sua obra. Se essa é a realidade que encontramos nos dias atuais, a percep-
ção sobre esse fenômeno era ainda mais dramática no início deste século:

Ao se optar pela imagem do gênio criador e, mais especificamente, pela ima-


gem mítica da libertadora, como meio que por si só basta como legitimado-
ra de qualquer prática, ocorre o total ou quase total esquecimento da obra
de Nise da Silveira nos centros de formação (universidades e hospitais) de
profissionais da saúde mental: as leituras das obras de Nise da Silveira são
indicadas de maneira escassa para os estudantes de psicologia e são prati-
camente inexistentes nas especializações de psiquiatria. Desta maneira, a

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


principal psiquiatra brasileira é, pouco a pouco, reduzida a uma imagem
(MELO, 2005a, p. 1-2).

A tese defendida no doutorado foi, exatamente, o processo de miti-


ficação/santificação de Nise da Silveira como um obstáculo para o estudo
sistemático de sua obra. Com o título, Ninguém Vai Sozinho ao Paraíso: o
percurso de Nise da Silveira na psiquiatria do Brasil (MELO, 2005a), algumas
noções que pudessem auxiliar na compreensão desse processo histórico são
apresentadas de início: (1) para efetuar seu trabalho revolucionário no cam-
po da saúde mental, Nise da Silveira contou com diversos colaboradores; (2)
um grupo de colaboradores foi denominado como continuadores e outro
grupo como (per)seguidores; (3) o segundo grupo apresenta a obra de Nise
67
da Silveira inserida em um mito da predestina- da Bahia e o deslocamento epistemológico pos-
ção; (4) esse mito faz com que seja perdida a vi- sibilitado pelos encontros que ocorreram no Rio
são da construção histórica da obra; (5) a exces- de Janeiro, com artistas modernos e militantes
siva coerência entre vida e obra cria uma unidade políticos (MELO, 2005a). No segundo capítulo
monolítica da autora; (6) assim, basta enunciar são abordados três aspectos da obra de Nise da
o nome Nise da Silveira para que se tenha a im- Silveira: a organização da STOR e do Museu de
pressão de já se conhecer a sua obra. A partir des- Imagens do Inconsciente (MELO, 2009a, 2011);
se campo de análise do processo de mitificação/ a trilogia cinematográfica Imagens do Inconscien-
santificação de Nise da Silveira, foi elaborado um te, dirigida por Leon Hirszman (MELO, 2004,
campo de reflexão sobre a sua obra, pautado no 2010b); e a criação da Casa das Palmeiras como
abandono da ampliação excessiva dos atributos uma clínica com as portas abertas (MELO, 2000,
pessoais da médica alagoana e a ênfase nos pro- 2009b, 2010d, 2013). O terceiro capítulo tem a
cessos históricos de produção do conhecimento. biblioteca de Nise da Silveira como epicentro,
A tese é dividida em três capítulos: As Três principalmente os estudos sobre a leitura das
Cidades, A Escafandrista da Substância Infini- imagens, reunidas no fichário denominado Be-
ta e Atravessando os Desertos com a Santa. No nedito (Melo, 2001, 2005a, 2007a). Na relação
primeiro capítulo é abordado o processo de mi- de Nise da Silveira com os livros, ela aparece de
tificação/santificação de Nise da Silveira nas três duas maneiras: (1) como personagem (MELO,
cidades em que viveu: Maceió, Salvador e Rio de 2005b) – de ficção e de memórias em obras de
Janeiro. Por exemplo, a infância e adolescência Graciliano Ramos (1979, 1982) –; (2) como au-
passadas em Maceió trariam evidências para a tora de fundamentos da psicologia analítica (SIL-
busca pelas origens para a criação de uma obra VEIRA, 1968), da síntese de sua vasta experiên-
libertária. Assim, muitas vezes, são lembrados al- cia no campo da saúde mental (SILVEIRA, 1981,
guns aspectos de sua vida pessoal, como o nome 1992a), da relação com os animais (SILVEIRA,
Nise (oriundo de poesias de Claudio Manoel da 1989a, 1998), de análise sobre a obra de Antonin
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

Costa), o apelido Caralâmpia (brilho de felici- Artaud (SILVEIRA, 1989b; MELO, 2010a) e em
dade) e os saraus que aconteciam em sua casa. diálogo epistolar com Spinoza (SILVEIRA, 1995;
Essas histórias foram narradas pela própria Nise MELO, 2010c).
da Silveira e constantemente repetidas pelos seus
(per)seguidores como prenúncios do que produ-
Considerações finais
ziu nos campos da saúde mental, da psicologia e
das artes. Dessa maneira, ela passa a ser a enun- Neste texto, busquei recuperar os primei­
ciadora do próprio mito da predestinação, ca- ros estudos sistemáticos que empreendi sobre
racterizando-a como um ser a-histórico (MELO, a obra de Nise da Silveira. Nesse sentido, fo-
2007b). A reflexão sobre o mito das origens pos- ram abordadas três produções: a dissertação
sibilita o reconhecimento dos ensinamentos hi- de mestrado (publicada posteriormente em li-
gienistas que recebeu na Faculdade de Medicina vro), o livro encomendado pelo CFP e a tese de
68
doutorado. Cada estudo possui uma temática Atualmente, sigo nos estudos sobre a obra
que auxilia na reflexão sobre a obra de Nise da de Nise da Silveira, inserindo os estudantes dos
Silveira. A dissertação-livro aborda a relação te- cursos de graduação e de pós-graduação da UFSJ
rapêutica permeada pelas imagens arquetípicas nessas pesquisas, incentivando-os na apreensão
(companheiro mítico) e a diversidade de proce- desses conhecimentos e na criação de possíveis
dimentos metodológicos. O livro encomendado desdobramentos. Dessa maneira, marcado pelo
apresenta as diretrizes de trabalho de Nise da timbre de Asclépio, dou continuidade aos ensi-
Silveira: liberdade, atividade e afetividade. A tese namentos recebidos na Casa das Palmeiras e com
defendida é que o processo de mitificação/san- a equipe do Museu de Imagens do Inconsciente,
tificação de Nise da Silveira cria um obstáculo Luiz Carlos Mello, Eurípedes Gomes da Cruz Ju-
para a inserção do vasto conhecimento que pro- nior e Gladys Schincariol.
duziu ao longo de décadas de intenso trabalho e
pesquisas.

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


69
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71
O Museu Bispo do Rosario e
a transformação da Colônia
Juliano Moreira: a trajetória
de um espaço de arte e
saúde mental
João Henrique Queiroz de Araújo
Raquel Fernandes

A criação do museu da Colônia Juliano Moreira


1
O Museu de Imagens do Inconsciente
foi criado em 1952 a partir de um ateliê Colocar-se no espaço de um museu de arte situado em uma insti-
de pintura e modelagem ligado à Seção
de Terapêutica Ocupacional do Centro tuição psiquiátrica pode suscitar diversos questionamentos, especialmente
Psiquiátrico Nacional, instituição quanto ao papel destes equipamentos culturais que, no Brasil, até não muito
psiquiátrica localizada no bairro do
Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. A tempo atrás, pouco dialogavam com a área da saúde mental, mas se tornam
STO era coordenada por Nise da Silveira
desde 1946. cada vez mais comuns neste contexto. A própria trajetória de Nise da Silvei-
ra neste campo, por exemplo, iniciada ainda na década de 1940, aponta que
a proposta que orientava o trabalho no Museu de Imagens do Inconsciente
permaneceu ao longo de décadas como uma experiência marginal1. Foi só
a partir da década de 1980 que novos espaços denominados “museus”, com
propostas museológicas inclinadas às artes, foram sendo criados em outras
instituições psiquiátricas no Brasil, dentre eles, o Museu Bispo do Rosario.
Localizado no Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano
Moreira, antiga Colônia Juliano Moreira (CJM), no bairro de Jacarepaguá,
no Rio de Janeiro, este museu é vinculado à Secretaria Municipal de Saúde
e vem atuando por meio de uma equipe multidisciplinar, que inclui profis-
sionais das áreas psi, mas também museólogos(as), curadores(as), produto-
res(as), artistas e educadores(as).
A proposta de criação de um museu na abertura para atuar em um projeto de transfor-
CJM surgiu no contexto do movimento da Re- mação do manicômio por meio da arte.
forma Psiquiátrica. Após denúncias de maus Maria Amélia Mattei foi contratada para a
tratos e das condições precárias de tratamento CJM pela Campanha Nacional de Saúde Mental,
dos internados, realizadas pelo jornalista Samuel em 1978. Ao ingressar na instituição, esteve pes-
Wainer Filho em reportagem exibida em 18 de quisando o que podia fazer a partir do seu tra-
maio de 1980 no programa Fantástico, da Rede balho como artista plástica. Alguns anos depois,
Globo, e que teve grande repercussão nacional, seria levada por Heimar Camarinha a conhecer
a instituição iniciou um processo de reestrutura- um salão cheio de objetos que a deixaram sur-
ção de sua política assistencial. No mesmo ano, a presa. Neste espaço, se deparou com um depó-
direção da CJM foi entregue ao jovem psiquiatra sito cheio de panos de pratos coloridos, sapatos,
Heimar Saldanha Camarinha que, com apenas cadeiras de vime, pinturas em tela etc., tudo feito
trinta anos de idade, assumiu a responsabilidade pelos pacientes. Muitos dos objetos ali encon-
de administrar um dos maiores manicômios do trados foram vendidos em feiras locais, sendo
país. Seu grande feito anterior teria sido perce- o dinheiro repassado para os pacientes, confor-
ber, desde sua chegada ao hospício, em 1978, que me se descobria em qual núcleo da CJM foram
o vínculo entre internos e funcionários estava produzidos. Os quadros foram restaurados com
enrijecido a partir da lógica vítimas versus algo- a ajuda de seu marido, também artista plástico
zes. Ousou, assim, buscar humanizar as relações (ARAÚJO, 2016).
comunitárias na instituição, abrindo as celas do Tendo tomado a decisão de permanecer
Núcleo Rodrigues Caldas, do qual era responsá- com a coleção de pinturas, passou a lidar com
vel (HIDALGO, 1996). o desafio de preservá-la. Sua primeira ideia foi
Iniciado o processo de transformação criar o Salão Álvaro Ramos de Praxiterapia, que
interna, a CJM deu prioridade ao caminho da chegou a ter uma placa. Logo depois, decidiu

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


ressocialização (AMARANTE, 1995). Neste sen- pelo nome de Nise da Silveira, a quem pessoal-
tido, foram criados diversos programas assis- mente informou da homenagem. Segundo ela,
tenciais com vistas à superação da lógica mani- Nise ficou surpresa com o convite, já que nunca
comial. Esses novos programas abriram espaço havia sido homenageada com seu nome dado a
para a multiplicação de atividades oferecidas aos alguma instituição (ARAÚJO, 2016). O evento
pacientes da CJM, muitas com o objetivo comum foi noticiado em reportagem publicada no 1º Ca-
de resgatar a cidadania e a participação social dos derno do Jornal do Brasil do dia 12 de dezembro
internados. A crítica à onipotência do saber mé- de 1981:
dico-psiquiátrico estava em voga, o que abriu as
portas da CJM para outros atores interessados Ao inaugurar um salão de exposições com o
e engajados na transformação daquela comuni- seu nome e que abriga um acervo de 238 telas
dade. Foi a partir deste contexto que uma artis- pintadas pelos próprios internos da Colônia
Juliano Moreira, a psiquiatra Nise da Silveira
ta plástica e servidora da instituição encontrou
73
2
Neste mesmo período, também foram lamentou que ali não estivessem obras admiráveis feitas por esquizofrênicos
criados os ateliês de pintura do Centro
Psiquiátrico Nacional e do Hospital do na década de 30 quando ali esteve como estudante, época em que ainda não
Juquery, cujos acervos deram origem
havia a preocupação de se guardar essas pinturas como documentos psico-
posteriormente ao Museu de Imagens do
Inconsciente e ao Museu Osório César. lógicos (JULIANO MOREIRA INAUGURA..., 1981).
O crescente interesse de psiquiatras
pela produção artística de pacientes
psiquiátricos naquele momento evidencia- O jornal informava ainda:
se pela realização da Exposição de Arte
Psicopatológica, montada durante o
I Congresso Internacional de Psiquiatria,
que aconteceu em 1950, em Paris. A A presença da psiquiatra Nise da Silveira, criadora do Museu de Imagens
convite da organização do congresso, o do Inconsciente do Centro Psiquiátrico Pedro II, emocionou a todos. Ela,
Brasil participou da exposição enviando
395 trabalhos artísticos produzidos nos apesar de sua simplicidade habitual, também ficou emocionada com a ho-
ateliês da CJM, do Centro Psiquiátrico
menagem e percorreu as dependências do salão fazendo perguntas sobre as
Nacional e do Hospital do Juquery. Para
mais informações, ver ANDRIOLO, A. obras ao diretor da Colônia, médico Heimar Saldanha Camarinha. Entre
O horizonte histórico da arte incomum.
Revista Nupeart, 3, 11-32, 2004. as obras, três foram destacadas: as de Clóvis, ainda interno; as de Osvaldo
(Kar); e as de Antônio Pedro Bragança, este último já falecido, e cuja obra
3
Sobre a praxiterapia na CJM, ver
VENÂNCIO, A. T. A. & CASSÍLIA, J. A. retrata muito bem a Colônia na década de 50 (JORNAL DO BRASIL, 12 de
Política assistencial psiquiátrica e o caso da
Colônia Juliano Moreira: exclusão e vida
dezembro de 1981).
social (1940-1954). In: Y. M. WADI & N.
W. SANTOS. História e loucura: saberes,
práticas e narrativas. Uberlândia: EDUFU, O nome de um dos artistas referidos na matéria recupera a memória
2010. p. 51-83 e ARAÚJO, J. H. Q. & JACÓ-
VILELA, A. M. Heitor Péres e a Praxiterapia da experiência inaugural de organização de um ateliê de pintura da CJM,
Integral na Colônia Juliano Moreira. Estud. ainda na década de 19402. Antônio Bragança foi um dos primeiros pacien-
pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 20, n. 1,
373-392, 2020. tes a ingressar na chamada Colmeia de Pintores, oficina de pintura criada em
1946 no contexto da praxiterapia, isto é, do tratamento por meio da ativi-
dade3. A produção deste ateliê ajudaria a compor a I Exposição de Pintura e
Arte Feminina Aplicada da CJM, que também apresentava ao público pro-
dutos de outras oficinas de praxiterapia, como tecidos bordados e móveis,
por exemplo. Inaugurada em 1950, se tornou uma exposição permanente
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

aberta a visitantes – ao menos até o final desta década, quando, com a mu-
dança da direção da instituição, ficou abandonada (ARAÚJO, 2018).
Pouco se sabe sobre a continuidade deste trabalho e o destino
desta coleção, mas fotografias encontradas recentemente nos arquivos do
Museu Bispo do Rosario indicam que, na década de 1970, funcionava no
edifício sede da CJM um espaço de exposição de pinturas e outros objetos
produzidos por pacientes. A falta de registros impede a criação de uma
cronologia deste acervo, mas há indícios de que a exposição foi remontada
neste espaço e, posteriormente, voltou a ser fechada, até que foi “descoberta”
por Maria Amelia Mattei. Apesar da ausência de documentação sobre este
acervo, a informação ajuda a esclarecer que a produção oriunda dos ateliês
de pintura da CJM e outras oficinas de praxiterapia constituiu, assim,
74
a primeira coleção do então Museu Nise da secundários” à organização, adquirindo regalias
Silveira, na época, formada por 238 telas pintadas e estabelecendo uma rotina para além daquilo
por diversos pacientes desde a década de 1940 que foi sistematicamente planejado pela institui-
até aquele momento, entre outros objetos. ção. A quebra das regras na relação que Bispo es-
tabeleceu com os técnicos, médicos e dirigentes
da CJM influenciou principalmente na conquista
Um museu para Arthur Bispo do
de um alargado “território pessoal” que, comu-
Rosario
mente, era muito restrito em hospitais psiquiátri-
Arthur Bispo do Rosario, negro, nordesti- cos. Segundo Hidalgo (1996),
no e esquizofrênico, viveu ao longo de 50 anos
não consecutivos internado em instituições psi- ninguém fugia das buscas e apreensões na
quiátricas, período em que constituiu uma obra Colônia. Volta e meia, os funcionários faziam
que hoje figura como uma das mais importantes uma ronda especial pelos quartos, a maioria
produções artísticas do campo das artes visuais coletivos, passavam vassouras por baixo das
camas, levantavam colchões, invadiam a pri-
brasileira, reconhecida nacional e internacional-
vacidade. Recolhiam todo e qualquer pertence
mente. Durante os anos em que esteve interna-
dos internos, juntavam tudo numa fogueira.
do na CJM – entre altas, fugas e reinternações
Roupas, vergalhões, acessórios estranhos ao
– Bispo do Rosario se tornou um personagem
figurino oficial, signos da intimidade dos pa-
ilustre. Inserido na rotina do Núcleo Ulisses Via- cientes ardiam em chamas (HIDALGO, 1996,
na, ganhou fama de “xerife”, ajudando os guar- p. 84).
das a conter outros internos em momentos de
crise. Entretanto, não foi só a força bruta, adqui- Porém, subvertendo esta rotina, grande
rida nos tempos em que se arriscou na carreira parte da obra de Bispo do Rosario permaneceu
de pugilista, que fez dele uma pessoa conhecida quase intocável e vista por poucas pessoas, já que

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


entre técnicos e internos. Arthur Bispo do Rosa- tinha um cuidado excepcional pelo seu trabalho,
rio também criava. Em seu delírio místico, isto dotando as peças de um valor sagrado.
é, em sua missão de reconstruir o mundo para Durante a década de 1980, o crescente
apresentar a Deus no dia do juízo final, produziu interesse despertado pela produção do inter-
milhares de objetos feitos de sucatas, itens de uso no atraiu cineastas, artistas, curadores e demais
cotidiano do hospital e outros materiais que lhes curiosos que queriam conhecer este persona-
eram doados por funcionários e amigos que fez gem e sua obra. Entretanto, devido ao apego e
no hospício (HIDALGO, 1996; MORAIS, 2013). apreço que Bispo do Rosario tinha por aqueles
Na instituição total que era o manicômio, objetos, houve poucas oportunidades em que o
Bispo do Rosario adquiriu certos “privilégios” grande público pôde ter contato com o seu uni-
por ter bom comportamento e cooperar com as verso místico. Austero guardião de sua obra, para
tarefas da equipe técnica. Algo próximo daquilo acessarem a sua cela, desenvolveu uma espécie de
que Goffman (2005) definiu como “ajustamentos processo de reconhecimento. Os visitantes eram
75
4
Segundo informativo publicado na coluna questionados a descobrir a cor de sua aura e, também, deviam ganhar sua
Artes Plásticas do Jornal do Comércio de
1º de novembro de 1989, faziam parte da simpatia. Nem todos conseguiam este feito.
associação a diretora da CJM, Dra. Isabel
do Carmo Torres; a psicóloga Denise Com o seu falecimento, em 5 de julho de 1989, este cenário se modi-
de Almeida Corrêa; a assistente social
Conceição Robaina; o psiquiatra Pedro
ficou completamente e a CJM se viu no dever de conservar a sua obra. Pou-
Gabriel Godinho Delgado; o curador de co antes deste trágico acontecimento, preocupados com a saúde do artista
arte Frederico Morais; os artistas Márcio
Rolo, Carla Guagliardi, Nelly Gutmacher e com o destino dos objetos criados por ele, um grupo de pessoas come-
e Brigite Exter-Hoelck; o artista, médico
e criador do projeto Espaço Aberto ao çou a planejar a criação da Associação dos Amigos dos Artistas da Colônia
Tempo, no Engenho de Dentro, Luiz Carlos Juliano Moreira4, com o objetivo de conseguir um local mais salubre onde
Wanderley, entre outros.
Bispo do Rosario pudesse continuar a produzir seu trabalho, bem como de
Algumas peças produzidas por Bispo do
5

Rosario haviam sido expostas uma única providenciar a restauração dos objetos e de obter meios para conservá-los.
vez em uma exposição coletiva realizada
em 1982 por Frederico Morais no Museu de
No entanto, de acordo com Hidalgo (1996), foi só em 19 de julho de 1989
Arte Moderna do Rio de Janeiro, mostra em que a união de forças foi firmada e a associação foi criada.
que o artista figurou como anônimo, entre
tantos outros. Segundo a jornalista Luciana As primeiras ações realizadas pela associação buscaram criar con-
Hidalgo (1996), a mostra À Margem da
Vida reunia trabalhos artísticos produzidos dições para garantir a conservação do conjunto da obra, impedindo o seu
por presidiários do Instituto Penal Lemos descarte ou desmembramento. Para tanto, a coleção foi removida do Núcleo
de Brito e do Instituto Penal Milton Dias
Ferreira, de menores infratores apreendidos Ulisses Vianna e incorporada ao Museu Nise da Silveira. Apropriadas pelo
na Fundação Nacional para o Bem-Estar do
Menor (FUNABEM), de idosos da Casa São museu, as obras de Bispo do Rosario finalmente puderam ser vistas pelo
Luiz para a Velhice e de internos da CJM.
Na época, Maria Amélia Mattei, diretora
grande público5. Em 18 de outubro de 1989, foi inaugurada uma grande
do Museu Nise da Silveira, fundado no exposição na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro.
mesmo ano, e o fotógrafo e psicanalista
Hugo Denizart convenceram Bispo do Segundo Hidalgo (1996), a exposição Registros de minha passagem
Rosario a autorizar a saída de seus trabalhos
de sua cela. Além dos objetos produzidos pela Terra: Arthur Bispo do Rosário, com curadoria de Frederico Morais,
por Bispo do Rosario, Maria Amélia
Mattei levou para a exposição trabalhos de
esteve em cartaz até 5 de novembro daquele ano, recebendo pelo menos oito
Antonio Bragança, Itaipú Lace, Muniz e mil visitantes no período em que foi realizada. Comparado no catálogo da
Oswaldo Kar.
exposição a grandes nomes da arte contemporânea internacional, como o
francês Marcel Duchamp e o inglês Tony Cragg, naquela ocasião, Bispo do
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

Rosario foi reverenciado como um visionário que dialogou com as novas


tendências da arte sem nunca ter tido contato com elas, o que permitiu que,
pouco tempo depois, sua obra fosse consagrada no universo da arte.
A exposição chamou tanta atenção que acabou circulando por várias
cidades do país, sendo realizada, em 1990, uma itinerância que passou pelo
Museu de Arte de Belo Horizonte, Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Mu-
seu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo e Centro de Cria-
tividade de Curitiba. O grande interesse pela coleção não se limitou ao Brasil e
a validação internacional não tardaria a vir. Em 1991, um numeroso conjunto
de obras do artista foi exibido na mostra Viva Brasil Viva, em Estocolmo, na
Suécia. Estas seriam apenas as primeiras das quase duas centenas de exposi-
ções individuais e coletivas realizadas com obras do artista até os dias atuais.
76
Entretanto, cabe destacar que o grande partida a restauração de algumas peças (ARAÚ-
reconhecimento, nacional e internacional, viria JO, 2016). A catalogação do acervo, que resultou
a partir de dois marcos importantíssimos que no seu tombamento, também exigiu uma força
merecem destaque na cronologia deste acervo. tarefa para ser realizada no prazo necessário. To-
O primeiro deles foi o tombamento do conjun- das estas ações demonstram o esforço realizado
to da obra pelo Instituto Estadual do Patrimônio naquele momento pelo museu perante sua nova
Cultural do Rio de Janeiro (INEPAC), realizado missão, ou seja, a guarda e preservação das obras
em 1992, o que concedeu às obras o estatuto de de Bispo do Rosario.
patrimônio artístico e cultural a ser preservado.
O segundo foi a exibição dos trabalhos de Arthur
O mesmo museu, novas
Bispo do Rosario na Bienal de Veneza, em 1995,
possibilidades
onde as obras do artista representaram o Brasil,
ao lado dos trabalhos de Nuno Ramos, na mais Se a legitimação do seu acervo no univer-
importante mostra internacional de arte. so da arte dava-se como tarefa realizada – ape-
O reconhecimento das obras do artista sar dos desafios impostos por sua preservação
acabou selando também outro destino para o –, qual seria agora o papel do museu da CJM no
Museu Nise da Silveira. Motivada por conflitos campo da saúde mental?
com relação ao tratamento dado à obra de Bis- Com a morte e a consequente ascensão do
po do Rosario após a sua morte, Maria Amélia artista Arthur Bispo do Rosario, o Museu Nise
Mattei acabou deixando o cargo de direção do da Silveira, que até então não havia incorporado
museu, assumido então pela psicóloga Denise uma função delimitada na instituição, ressignifi-
Corrêa no final do ano de 1990. A antiga diretora caria suas atribuições, fixando entre elas a missão
defendia que as obras do artista deveriam perma- de preservar e divulgar ao mundo a vida e a obra
necer no Núcleo Ulisses Vianna, mas uma série do homem que resistiu ao enclausuramento, à

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


de novos desafios impostos pela necessidade de violência psiquiátrica e ao processo de aniquila-
preservação do conjunto da obra inviabilizaria ção da personalidade comum às pessoas subme-
esta proposta. tidas à rigidez e à padronização características do
O fato é que a obra de Bispo do Rosario manicômio.
tornou-se uma prioridade para o museu. De Com isto, em meio ao processo da Refor-
acordo com Hidalgo (1996), os integrantes da ma Psiquiátrica, o discurso estabelecido sobre
Associação dos Amigos dos Artistas da Colô- a obra de Bispo do Rosario tornou-se bastante
nia Juliano Moreira assumiram a missão de cui- apropriado, na medida em que apontava uma
dar daquelas obras sem verba própria, agindo via alternativa para a almejada mudança, isto
na busca de leis de incentivo cultural e outros é, a transformação do manicômio por meio
apoios para preservação do acervo. Muitas das da arte. Por suas peculiaridades, a biografia e
exposições realizadas, incluindo as mostras em a obra de Arthur Bispo do Rosario circunscre-
Estocolmo e em Veneza, tiveram como contra- viam de modo bastante efetivo a ideia de que a
77
desconstrução da estrutura manicomial e dos era “uma homenagem àquele que vencendo to-
efeitos nocivos desta instituição era possível. das as amarras de uma instituição total, conse-
Isto significa dizer que as narrativas que guiu dar asas a sua criatividade e nos legar este
podiam ser extraídas de sua vida e obra dialoga- importante acervo”. Logo em seguida, menciona
vam com o momento de transformação do mani- as vítimas da psiquiatrização, da segregação so-
cômio, visto que Bispo do Rosario buscou literal- cial e da desindividualização características do
mente desconstruí-lo através da personalização manicômio, complementando com a seguinte
de objetos que serviam, a princípio, para unifor- afirmação: “neste contexto surge de forma es-
mizar, padronizar e garantir a ordem na institui- pontânea a obra do Bispo como uma contradi-
ção. Com sua capacidade de incorporar os diver- ção à anomia do asilo”. A partir destas declara-
sos objetos do cotidiano, carregados do peso da ções, verifica-se que aqueles atores envolvidos
massificação asilar, estabeleceu na sua poética a no processo de remodelação da instituição, em
subversão da estrutura manicomial. Assim, no meio ao contexto da Reforma Psiquiátrica, com
ato de desfiar uniformes para produzir o fio que seu projeto de desconstrução dos manicômios e
usava para revestir seus objetos e tecer seus es- ressignificação da ideia de loucura, tinham agora
tandartes, reconstruiu o mundo com a missão de um sujeito real a quem se referenciar como um
apresentá-lo a Deus no dia do Juízo Final. exemplo expressivamente simbólico do projeto
Tal leitura simbólica, que inspira a resis- político que ali estava sendo construído.
tência ao manicômio, já aparece em sua pequena Durante toda a década de 1990, o Museu
biografia escrita pelo psiquiatra Pedro Gabriel Nise da Silveira permaneceu sendo um espaço de
Godinho Delgado para o catálogo da exposição promoção de atividades para pacientes psiqui-
do Parque Lage: átricos, principalmente por meio de oficinas de
pintura, ainda que com certa descontinuidade.
Há quase dez anos não tomava mais medica- No entanto, no final desta década, há registros
mentos, exceto para seus problemas respira- de que estas iniciativas se multiplicaram com o
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

tórios. Os neurolépticos que ingeriu, sempre apoio de artistas que, voluntariamente, desenvol-
com má vontade, durante décadas, não impe- veram novas oficinas em parceria com o museu.
diram sua comunicação com Deus e com as
Destas, há registros de oficinas de serigrafia, te-
milhares de esculturas que recebia ordens de
atro, escultura, fotografia, contos e pintura, esta
compor, e que iam se erigindo em estalagmi-
última desenvolvida por dois artistas usuários
tes de formas e tamanhos diversos na caverna
que escolhera (a caverna do Bispo era o antigo
dos serviços de saúde mental: Gilmar Ferreira e
“bolo”, o mais cruel dos locais repressivos da Leonardo Lobão. Estes, junto com Patrícia Ruth,
Colônia, uma espécie de quatro-forte coletivo) outra artista usuária e ex-interna da CJM, e An-
(DELGADO, 1989, s.p.). tônio Bragança, artista mencionado anterior-
mente, chegaram a ter exposições individuais
Ainda para a exposição do Parque Lage, dos seus trabalhos realizadas na Galeria Mário
Denise Corrêa (1989, s.p.) afirmou que aquela Pedrosa, no Museu Nacional de Belas Artes, no
78
Rio de Janeiro. Estas exposições marcam uma revalorização do trabalho de 6
Museu de Imagens do Inconsciente.

outros artistas da CJM para além de Bispo do Rosario.


Após Denise Corrêa deixar a direção do museu em 1995, o espaço
ficou a cargo do psiquiatra Jorge Gomes. Durante a sua gestão, chegou-se a
cogitar a transferência do acervo para um edifício da Vigilância Sanitária,
na Praça XV, na região central do Rio de Janeiro. A divulgação do projeto
causou polêmica, por ensejar a possibilidade de se extinguir o museu da
CJM e por impedir a implantação de outro projeto na praça XV que visava a
instalação de um novo espaço em homenagem à Nise da Silveira. Conforme
ela mesma afirmou em entrevista concedida ao Jornal do CRP, em 1997, o
Espaço Nise da Silveira foi uma ideia de Ferreira Gullar, proposta ainda no
governo Sarney, e planejada para ser implantada também no prédio da Vi-
gilância Sanitária, onde se realizariam exposições e palestras. A indignação
com o projeto de Jorge Gomes foi registrada na biografia de Nise da Silveira
escrita por Ferreira Gullar (1996), onde afirma que:

Agora, no governo de Fernando Henrique Cardoso, anuncia-se o golpe de


misericórdia no Espaço Nise da Silveira: pretende-se instalar no prédio da
Vigilância Sanitária, uma outra coisa com outro nome. Mediante um convê-
nio entre a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro e o Ministério da Saúde,
o Museu Nise da Silveira, que funciona na Colônia Juliano Moreira e onde
está o acervo de Arthur Bispo do Rosário, será extinto; as obras daquele ar-
tista ocuparão o prédio da Vigilância Sanitária que se transformará em um
museu com o seu nome. Assim, com a extinção do Museu Nise da Silveira e
o sepultamento do Espaço Nise da Silveira, por assim dizer, o governo deso-

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


menageia a mulher que tanto fez pela renovação da psiquiatria brasileira, e
impede que as obras do MII6 se tornem acessíveis ao grande público (p. 26).

Nenhum dos dois projetos foi à frente e, tanto as obras de Bispo do


Rosario quanto as dos artistas do Engenho de Dentro, permaneceram em
seus lugares de origem. No entanto, ainda assim, pouco tempo depois, o
nome de Nise da Silveira perderia seu lugar no museu da CJM.
No início da gestão do psiquiatra Ricardo Aquino, que assumiu a
direção do Museu Nise da Silveira no ano 2000, um novo projeto para o
espaço foi posto em prática. Alterações significativas foram feitas na orga­
nização do museu, sendo a primeira delas a mudança de seu nome. A partir
deste ano, o museu da antiga CJM passou a ser chamado de Museu Bispo do
Rosario. A mudança de nome estava em consonância com a nova proposta
79
orientada pela direção, que objetivava oferecer A partir de 2013, quando Raquel Fernan-
um novo tratamento às obras produzidas por des assumiu a direção do Museu Bispo do Ro-
ex-internos e usuários dos novos serviços de sario, o museu passou a ter como desafio não
saúde mental. De acordo com Aquino (2007), só a preservação e difusão da obra de Arthur
os trabalhos deveriam ser “expostos segundo as Bispo do Rosario, mas também se propôs a es-
correntes do campo da história da arte, porém tabelecer uma conexão com a comunidade do
sem a necessidade de classificá-los em cada entorno e com os dispositivos de saúde mental
exposição” (p. 57). ali presentes. Desde então, o museu se coloca
Ainda dentro desta proposta, em 2002, o simultaneamente como uma instituição de arte
nome do museu foi alterado mais uma vez, pas- contemporânea e um dispositivo de cuidado em
sando a se chamar Museu Bispo do Rosario Arte saúde mental. Assim, inspirado também pelos
Contemporânea e houve uma tentativa de des- preceitos da Nova Museologia (DECLARAÇÃO
vincular a produção artística que circulava no DE QUEBEC, 1984), este equipamento de saúde
museu do campo da loucura e da saúde mental. e cultura vem atuando no território com o pro-
Deste modo, no início dos anos 2000, a arte se pósito de se consolidar como um museu social
estabeleceu como recurso e instrumento prin- comunitário, visando ampliar o seu diálogo com
cipal do Museu Bispo do Rosario Arte Contem- os serviços de saúde e atuar por meio da dimen-
porânea, sendo a realização de exposições e o são sociocultural da Reforma Psiquiátrica como
desenvolvimento de oficinas estritamente artís- agente de transformação do lugar social da lou-
ticas suas principais atividades. No seio de um cura (AMARANTE; FREITAS; NABUCO; PAN-
espaço outrora dominado pelas práticas e saberes DE, 2012).
psi tradicionais, nascia, assim, um museu dedi- A Reforma Psiquiátrica Brasileira, in-
cado à arte contemporânea. O projeto buscava, fluenciada fortemente na experiência da Psiquia-
desta forma, o apagamento e a negação total do tria Democrática italiana, tem seu eixo de ação
manicômio. centrado na desconstrução da lógica manico-
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

mial. Deve, portanto, ser entendida a partir da


noção de desinstitucionalização, um processo
O Museu Bispo do Rosario na
atualidade social que não se limita a uma reforma de ser-
viços assistenciais, mas almeja um deslocamento
De acordo com a Política Nacional de Mu- que busca uma transformação na relação que a
seus (BRASIL, 2007), os museus, mais do que sociedade criou com a loucura (BIRMAN, 1992).
instituições estáticas, são processos a serviço da O entrelaçamento destes dois movimentos
sociedade e, sendo assim, se constituem como nos levou a pensar a instituição “museu” para
instâncias fundamentais para o aprimoramento além de um lugar de simples exibição de suas
da democracia, da inclusão social, da construção coleções de objetos, sejam eles históricos ou
da identidade, do conhecimento e da percepção artísticos. Percebemos que a constituição de
crítica da realidade. nosso patrimônio ocorre não só da herança de
80
nosso acervo, mas também a partir da construção só realizando exposições próprias, mas também
da noção de pertencimento que se estabelece estimulando a sua circulação em outras institui-
através de um processo coletivo de produção ções no Brasil e no mundo.
de cultura. Por essa razão, o museu desenvolve O Polo Experimental de Convivência,
suas ações, na atualidade, embasado na noção Educação e Cultura é o terceiro dos eixos estru-
de museu expandido, incorporando o território turantes do museu e integra saúde, arte e educa-
como diretriz fundamental no desenvolvimento ção no desenvolvimento de seus programas. Suas
de seus projetos e atividades. Sendo assim, hoje, atividades são realizadas no prédio do Centro
as ações do museu são compreendidas como de Convivência, na sede do museu, no território
algo que vai além das galerias e engloba não onde o museu se localiza e, mais recentemente,
só a apresentação do passado asilar que marca nas redes sociais. O Polo Experimental é com-
a história do território, mas inclui também as posto pelos seguintes programas:
novas relações que se estabelecem nele no âmbito
do “cuidar” (FERNANDES, 2018). 1. Atelier Gaia: espaço de arte, criação,
O Museu Bispo do Rosario desenvol- formação e convivência, integrado
ve suas atividades através de três eixos de ação por artistas usuários da rede de saúde
fundamentais: Exposições, Acervo e Polo Expe- mental. O programa estimula a pes-
rimental de Convivência, Educação e Cultura. quisa e a prática artística de seus par-
Ao longo de todo o ano, o museu apresenta uma ticipantes e busca apoiar seu ingresso
ou mais exposições, oferecendo uma série de no circuito da arte e o intercâmbio
programas educativos relacionados às mostras com artistas de outros contextos;
e voltados para todas as idades, sendo todos os 2. Casa B: programa de residência artística
serviços gratuitos. para artistas visitantes que visa o desen-
Seu acervo é composto por mais de 1500 volvimento de pesquisas através do di-

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


objetos, com diferentes características e nature- álogo com a comunidade e com outros
zas. A parcela mais relevante da sua coleção é programas desenvolvidos pelo museu;
reconhecidamente a produção do artista Arthur 3. Arte, Horta & Cia.: programa de ge-
Bispo do Rosario, conjunto de obras de relevân- ração de trabalho e renda que inte-
cia e circulação nacional e internacional. Porém, gra as oficinas de mosaico, bordado e
o acervo também é composto por obras que fo- costura, horta e culinária. Suas ações
ram produzidas por pacientes nos ateliês de ar- incluem processos de elaboração de
teterapia da Colônia Juliano Moreira, entre os produtos, venda e prestação de servi-
anos de 1940 e 1980, além dos trabalhos dos ar- ços. Baseadas na lógica da economia
tistas vinculados ao Atelier Gaia, ateliê de artistas solidária, as oficinas visam estabelecer
usuários dos serviços de saúde mental criado na uma rede de sustentabilidade e autono-
CJM na década de 1990. Por meio de parcerias, o mia envolvendo usuários dos serviços
museu busca dar visibilidade ao seu acervo não de saúde mental e a comunidade local;
81
4. Cursos Livres: cursos abertos à comu- tal) é convocado a participar, fazendo um des-
nidade em formato de espaço integra- locamento da condição de paciente para agente
do de convivência e aprendizagem, das proposições, criando uma relação de per-
com viés artístico e cultural, voltado tencimento com o fazer artístico, possibilitando
para diferentes faixas etárias. Os cur- novas formações identitárias com o território e
sos estimulam a criação e possibilitam com a instituição, assim como entre os próprios
novas inserções sociais. sujeitos.
Hoje, ao trabalhar prioritariamente com
Através da articulação de seus eixos e de a temática da arte e da saúde mental, o Museu
seus programas de ação, o museu propõe espaços Bispo do Rosario procura estabelecer a constru­
de co-criação e colaboração, integrando artistas, ção de uma narrativa sobre o seu acervo que re-
estudantes, moradores do território, usuários e tire o discurso da loucura do campo do exótico e
trabalhadores dos serviços de saúde mental. Os o legitime em sua positividade, em sua potência
processos artísticos desenvolvidos pelos artistas criadora. Sem negar o passado manicomial do
convidados para as exposições e/ou por artistas território ou a loucura, o museu busca ressignifi-
residentes precisam se fazer na interlocução e car estes lugares sociais por meio de proposições
contaminação com o ambiente do museu, seu sí- de caráter artístico e educativas que ensejem pro-
tio e seus habitantes. Desta forma, o público cessos de construção coletiva da memória e da
(grande parte usuários da rede de saúde men- realidade presente.
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
82
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Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
84
Bispo do Rosario e os
homens na Terra1
1
Este texto retoma formulações que
Flavia Corpas desenvolvi na tese de doutorado “Arthur
Bispo do Rosario: do claustro infinito à
instalação de um nome” (CORPAS, 2014).
2
O IPHAN realizou o segundo
tombamento do acervo de Bispo do
Rosario. O primeiro foi feito pelo INEPAC,
onde foram elencadas 802 obras, número
Os objetos singulares de Bispo do Rosario diferente do tombamento feito pelo IPHAN.
3
Alguns estandartes de Bispo do Rosario
“Deixa bens? Ignorado”. É o que consta na certidão de óbito de Ar- foram exibidos em 1982, na exposição
thur Bispo do Rosario, morto em 1989. Considerado hoje, pela crítica espe- coletiva À Margem da Vida, no Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro. Contudo,
cializada, um expoente da arte brasileira, o artista nos legou um rico acervo em minha opinião, não foi nessa ocasião
que eles foram legitimados como arte,
de 805 obras, tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico tal como vemos hoje. Este processo só
se iniciou a partir de 1989, após a morte
Nacional (IPHAN), em 2018, e também pelo Instituto Estadual do Patrimô- do artista, e em função da sua primeira
nio Cultural do Estado do Rio de Janeiro (INEPAC)2, em processo iniciado exposição individual, Arthur Bispo do
Rosario: registros de minha passagem pela
em 1992 e concluído em 1994. Terra, no Parque Lage.
Embora no Brasil, desde a década de 1929,
“Deixa bens? Ignorado”. Ou seja, aqueles objetos, que atualmente já houvesse alguma abertura para a inclusão,
no campo da arte, de obras criadas por
qualificamos como obras de arte, permaneceram, durante bastante tempo, sujeitos ditos loucos, é curioso observar
que ninguém tenha se dado conta de Bispo
cerca de 50 anos, ignorados para o mundo enquanto bens. Eles só vieram do Rosario durante tanto tempo. Até o
a ganhar tal status em função da denominação de obra de arte que lhes foi ano de 1989, ele não existia como artista.
É verdade que sua figura exótica e seus
acrescentada, e que se deu somente após determinada assimilação feita pelo objetos não passavam despercebidos na
rotina dos hospícios por onde esteve, mas
campo da arte – processo complexo, amplamente debatido e que teve rela- não eram considerados arte. Em novembro
de 1943, a revista O Cruzeiro (MANZON e
ção também com o próprio falecimento do artista. NASSER, 1943) publicou uma matéria sobre
o Hospício Nacional dos Alienados, no
Foi apenas alguns meses depois de sua morte – ocorrida em 5 de Rio de Janeiro, retratando a vida de muitos
julho de 1989, na Colônia Juliano Moreira – que o crítico de arte Frederico internos. Bispo do Rosario é um deles.
É descrito como mais um dos pacientes
Morais assinou a curadoria da primeira exposição individual do artista, na que possuem “manias diferentes” e suas
produções são mencionadas apenas como
Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro. A partir daque- sintoma da loucura. Em janeiro de 1944,
a revista A Cigarra (MANZON; NASSER,
le momento, Bispo do Rosario começa a se tornar um importante nome 1944) também publicou uma matéria de
mesmo teor, na qual Bispo – cujo nome
no universo da arte, tal como vemos hoje3. O olhar e interesse atento do é entendido pelo jornalista como uma
autodenominação em função de sua loucura
crítico e de outras pessoas4 fundamentais no processo de reconhecimen- – é apresentado como o místico mais
to e preservação dessa obra, o falecimento do artista e outros motivos que famoso. Seus mantos são descritos como
vestes divinas de um sujeito que se dizia um
também visavam a preservação desses objetos – que ficaram ameaçados de ser celestial.
Depois da exposição de 1982, Bispo do destruição pelos funcionários da Colônia após a morte de Bispo do Rosario
Rosario também despertou o interesse
de psicanalistas, de artistas e da mídia, (ROBAINA, 2008), – colocaram em curso o processo que alçou tais objetos
mas suas produções não eram, de fato,
entendidas ainda como obra de arte. à dignidade da obra de arte.
Havia uma espécie de vacilação a esse
respeito. Frederico Morais (2013) afirma ter
Desta forma, se até o falecimento do artista nada daquilo era reco-
reconhecido a potência daquela produção nhecido, como é hoje, enquanto obra de arte – um bem, portanto –, fica
como arte quando entrou em contato
com o filme O Prisioneiro da Passagem do esclarecida a informação encontrada na certidão de óbito. “Deixa bens? Ig-
psicanalista e fotógrafo Hugo Denizart,
muito embora já tivesse conhecimento de norado”. Mas tudo isso ressalta ainda, e aqui reside o motivo pelo qual estou
Bispo através de uma reportagem sobre a frisando tal informação, os diferentes sentidos e funções que as produções
Colônia, feita pelo programa de televisão
Fantástico, em 18 de maio de 1980, na de Bispo do Rosario podem encarnar.
qual nosso artista é entrevistado. Morais
tentou fazer uma exposição individual logo De um lado, aquilo que representavam e sustentavam para o próprio
depois de À Margem da Vida, mas Bispo se
recusou. Segundo Morais, Bispo afirmou
Bispo do Rosario, circunscrevendo o que nomeei a respeito de seus trabalhos,
que não podia se separar de seus trabalhos. de dimensão de objeto (CORPAS, 2014). De outro, o que eles significam
O crítico ofereceu a ele um quarto no
museu, onde ele poderia ficar durante o para o mundo e para a arte, a dimensão de obra de suas produções5. Em
período da exposição, mas ainda assim ele
recusou. Desta forma, entre 1982 e 1989 termos lacanianos, podemos afirmar que a dimensão de objeto se aproxima
temos um período em que esta produção daquilo que Lacan (1965-66/2018) chamou de “uso interno” da obra, um
fica numa espécie de “limbo” de definição
até que ocorre a exposição do Parque uso próprio feito pelo sujeito que cria e que visa dar conta de sua inserção
Lage, centro da produção carioca de arte
contemporânea. no mundo: “Ela [a obra] lhe serve [ao artista] para dar sua própria volta”
Por não existir como artista, suas obras não
foram expostas, por exemplo, no módulo
(p. 402). Segundo a psicanalista Tania Rivera (2013), o “uso interno” da
Arte Incomum, da 16ª Bienal de São Paulo, obra seria a “dimensão em que a obra coincide com a fantasia” (p. 164). Já
realizada no ano de 1981. Vale ressaltar
que a curadoria da mostra englobava obras a dimensão de obra, segundo minha proposta, tem relação com o que essa
produzidas por “doentes mentais”, termo
usado por Walter Zanini, curador geral da autora define como “uso externo”, que ultrapassa seu “uso interno”, e que
bienal, e também por outro grupo, definido
por ele da seguinte forma: “indivíduos
concerne à arte, esta que se define “por sua potência de chegar ao outro”
desatados dos contextos normais da (p. 164). Para Rivera, na arte não se trata de “dar sua própria volta”, mas sim
visualidade” (ZANINI, 1981, p. 7).
Se Bispo do Rosario não existia como de dar uma volta a mais, que enganche o outro. Volta em que fantasia e arte
artista, nem mesmo como “artista
não mais coincidam, apontando uma operação sobre a fantasia. Uma volta
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

incomum” – o que nos faz pensar que


ele era um marginal até mesmo em um imprópria, “nos dois sentidos do termo: uma volta que não é a sua e que
segmento marginalizado da arte –,
foi porque suas obras não cabiam naquilo não se coaduna inteiramente ao enredo fantasístico no qual este eu toma
que, na época, se entendia como arte,
tampouco se ajustavam ao que havia lugar” (p. 164, grifo nosso), implicando em um reviramento da fantasia6, do
sido definido como obras de loucos e de
“incomuns”. Suas obras não cabiam em
enquadre que o sujeito produziu para si no mundo.
conceito algum, eram inclassificáveis. Mas a divisão que aqui proponho entre dimensão de objeto e dimen-
4
Alguns profissionais da Colônia, e são de obra poderia ser artificial, ao menos para alguns pensadores, de on-
de outras instituições de saúde mental,
bem como artistas que trabalhavam tem e de hoje, que consideram que a arte incorpora também aquilo que diz
voluntariamente naquela. São eles: respeito ao “uso interno” da obra7. As duas voltas poderiam, assim, fazer
Izabel do Carmo Torres da Silva,
Denise Correa, Pedro Gabriel Delgado, parte da própria arte. Podemos, inclusive, interpretar a própria argumenta-
Conceição Robaina, Lula Wanderley,
Nelly Gutmacher, Brigitte Anna ção de Rivera (2013): há uma dimensão em que obra e fantasia coincidem
Exter-Hoelck, Carla Guagliardi e
Annie Luporini (MORAIS, 2013). É
– trata-se do “uso interno” da obra que não deixa de ter relação com a obra;
fundamental citar ainda Hugo Denizart. há o reviramento da fantasia, uma volta que não se coaduna inteiramente à
86
fantasia, volta a mais que, contudo, não deixa de ter alguma relação com ela, 5
Ainda que o termo objeto também seja
usado pelo campo da arte, no âmbito
já que trata de uma operação sobre a fantasia. Mas, ao mesmo tempo, essa desta diferenciação ele circunscreve o uso
interno, singular e estabilizador que Bispo
é uma volta em que se opera algo sobre a fantasia, fazendo com que ela e a do Rosario extraiu de suas produções,
arte não coincidam mais8. fazendo delas uma forma de ancoramento
possível no mundo das relações entre os
Apesar do perigo de parecer artificial, a partilha entre dimensão de homens. É preciso ainda não perder de
vista o fato de que este texto está sustentado
objeto e dimensão de obra é necessária para pensar Bispo do Rosario. Sem pela psicanálise para a qual a noção de
objeto possui um lugar específico também
ela não conseguiríamos avançar na reflexão que aqui proponho. Isso por- no que diz respeito às interlocuções entre
que, correríamos o risco de deixar obliterada a especificidade de cada uma arte e psicanálise.

destas vertentes neste sujeito. Já absolutamente assimilada ao campo da 6


Embora toda essa discussão se situe no
campo da neurose, podemos estendê-
arte, essa produção poderia ter sua dimensão de objeto negligenciada. Des- la à psicose, fazendo um paralelo entre
a função da fantasia na neurose e a do
ta forma, arriscaríamos reduzir o enorme potencial que essa produção tem delírio e de outras soluções mais singulares
de nos ensinar sobre o que pode, diante da psicose, o fazer de um sujeito. E encontradas pelo sujeito na psicose.

isso me parece trazer novas reflexões não apenas para os campos que lidam 7
O crítico de arte Mário Pedrosa (2015)
nos dá disso um bom exemplo em seu
mais diretamente com a loucura, mas também para a própria arte, na me- texto “Arte, necessidade vital” de 1947.
dida em que lhe força uma abertura ao não-saber, possibilitando com isso o Penso que o artista norte-americano Claes
Oldenburg (1961/2006), em seu escrito
surgimento de algo novo, o que faz também com os demais campos. “Sou a favor de uma arte...”, também
poderia pensar algo nesse sentido. A artista
A dimensão de objeto insere neste debate a problemática do uso da franco-americana Louise Bourgeois (2006),
em sua obra Art is a Garanty of Sanity,
biografia de um artista em uma reflexão sobre sua produção. Eu poderia bem como no texto que escreve sobre
defender a relevância disso, especificamente em Bispo do Rosario, e não Bispo também iria nesta mesma direção.
Frederico Morais (2013) ao defender que a
para todo e qualquer artista, por diferentes perspectivas. Como isso repre- arte tem relação com tudo, inclusive com
a vida de um artista e a loucura, tomada
sentaria um desvio de nosso objetivo aqui, remeto o leitor à tese que defendi por ele como uma circunstância, “capaz de
sobre a vida e a obra de Bispo do Rosario (CORPAS, 2014). Contudo, é impregnar o ato criador” (p. 100) também
pode ser enquadrado no rol daqueles
preciso destacar algo. que consideram estas duas dimensões
articuladas. Para saber mais sobre esse
Penso que uma obra autobiográfica, como a de Bispo, nos convoca tema em específico no caso de Bispo do

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


Rosario ver Morais (2013). Podemos
a um questionamento sobre o que seria uma escrita autobiográfica e o lu- dizer que Freud também
gar da biografia. Penso que um sujeito que teve sua existência praticamente trilhou esse mesmo percurso ao se
aproximar de determinados artistas
apagada pela exclusão do discurso asilar nos exige, no mínimo, nos per- e obras, como em Uma Lembrança de
Infância de Leonardo da Vinci
guntarmos sobre esta vida. Como uma vida inteira pôde ser apagada desta (1910/1976).
Por fim, é preciso lembrar que entre os
maneira? citados existem diferenças e nuances na
Diante disso, deste apagamento, seria possível pensar esta obra, articulação entre dimensão de objeto e
dimensão de obra.
que é extremamente biográfica, sem pensar o sujeito que a produziu?
8
Como destacou a própria autora, essa
Seria possível pensar esta obra sem pensar seu contexto, o da loucura, e discussão se tece no âmbito da complexa
também o da exclusão produzida pelas instituições totais? Teria sentido noção de sublimação na psicanálise.

festejar uma obra tão potente, fazê-la circular pelo Brasil e pelo mundo,
emocionando e impactando seu público, deixando apagada a existência de
seu autor e a maneira singular como sua vida engendrara sua obra e vice-
versa? Estas são, sem dúvida, perguntas que devem ser feitas quando se
87
9
Não vamos discutir aqui se tal sofrimento questiona a importância de pensar a biografia de Bispo do Rosario, quando
advém do social opressor, numa perspectiva
próxima do que nos propõe Antonin se problematiza a relevância de se remeter à vida do artista quando sua
Artaud, por exemplo, ou se é um fato
de estrutura do sujeito. Na verdade, em obra é o que “realmente” importa. Neste sentido, para mim, trata-se de uma
uma leitura psicanalítica, que é a minha,
consideramos que essas duas coisas estão
questão ética, que, como sabemos, não está apartada da questão estética.
presentes e articuladas. O que importa
agora é marcar que há um sofrimento.
Por mais que o delírio e a loucura possam
ser vistos nas potências que portam, como Artista? Louco? Bispo do Rosario
forma de fazer frente a discursos nefastos
que visam a violência e a segregação das Bispo do Rosario foi diagnosticado como louco, por alguns. Nome-
diferenças, por mais que a loucura seja
afirmada como outra forma de estar ado artista, por outros. Há ainda quem o veja como artista e louco, sem
no mundo, nada disso deve apagar a
dimensão de sofrimento e, sobretudo, da que estas duas características se oponham ou se anulem. Existem também
singularidade aí presente.
aqueles que acreditam que, por ser louco, ele não seria artista ou os que
defendem que, por ser artista, ele não seria louco.
Mas Bispo do Rosario, ele mesmo, parecia não se reconhecer nem
como artista nem como louco. Ele se dizia Jesus Cristo e afirmava ter uma
missão na Terra. Assim como ele não se reconhecia como artista, também
não considerava sua produção como arte, o que não nos impede, obviamen-
te, de nomear e saudar como tal seus objetos: “É arte autêntica, que comove
e pede reflexão” (MORAIS, 2013, p. 65).
Se, para o mundo, por muito tempo, aquilo que este artista produ-
zia era ignorado enquanto bem e arte, para o próprio, sempre se tratou de
algo essencial. Em função de sua psicose – fato da existência que impacta a
vida de um sujeito de forma radical, que comporta uma dimensão de sofri-
mento intensa9 e que dificulta o trânsito do sujeito no mundo das relações
– Bispo do Rosario criou uma maneira singular para se ancorar no mundo
por meio de sua produção de objetos. Ou seja, suas criações tinham uma
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

função vital e singular para Bispo do Rosario, que precisa ser destacada da
função mais ampla que possui para o campo da arte. Muito embora, como
já dissemos, trata-se sempre de um procedimento um tanto artificial, uma
vez que o singular do qual falamos, ao menos para alguns, é parte integrante
da própria arte.
Por meio de seus objetos, ele engendrou aquilo que vou chamar de
estabilização de sua linha da vida. É importante notar que o termo estabili-
zação porta aqui um sentido amplo, o que inclui o fato de que as estabiliza-
ções são, frequentemente, marcadas por alguma precariedade, o que exige
do sujeito um trabalho constante. Assim, por estabilização devemos enten-
der uma operação que “localize a angústia e, com isso, reduza seu nível e,
assim, favoreça a vida e as relações” (GARCIA, 2011, p. 19).
88
Em Bispo do Rosario, a produção de objetos é sua invenção de possi- 10
Ainda que esse seja um mundo
circunscrito ao universo do hospital
bilidade de vida, sua possibilidade de caber no mundo10. Foi por fazer seus psiquiátrico. Sabemos o quanto as
instituições psiquiátricas em que
objetos singulares que ele alcançou alguma estabilização, independente do viveu Bispo do Rosario eram nocivas
e excludentes e, na maioria das vezes,
fato de suas produções serem consideradas arte ou não. Como já lembrei, responsáveis pela cronificação de muitos
foi apenas em 1989, após cerca de 50 anos de intenso fazer, que a designação pacientes. Não estamos, em momento
algum, defendendo os hospitais
de arte foi atribuída aos objetos de Bispo do Rosario. psiquiátricos como produtores de vida
ou estabilização. Contudo, não podemos
Lembremos que alguns sujeitos considerados loucos conseguem se negligenciar o fato de que, apesar de
estabilizar por meio da arte, seja pela nomeação que ela promove e/ou pelo suas características nefastas, as tais
instituições são espaços de relação com
lugar que ela permite ao sujeito ocupar no laço social, independente de o Outro, onde laços sociais, apesar de
tudo, podem ser engendrados, dada a
fama ou ganho de dinheiro, ou ainda em função mesmo do fazer específico possibilidade do sujeito de se inventar,
apesar de circunstâncias extremamente
que a arte enquadra. Lembremos também que outros sujeitos se estabilizam adversas e negativas. No caso de Bispo do
unicamente pela via do fazer, da produção de objetos, esses que por suas Rosario, uma saída singular, através de uma
apropriação daquele espaço, por meio de
características poderão, ou não, ser denominados de obra de arte, antes ou um fazer específico, foi feita em prol de
uma invenção subjetiva, que veio a permitir
depois de sua morte. Bispo do Rosario se insere neste último caso. E, por a ele alguma estabilização.
fim, lembremos ainda que há sujeitos ditos psicóticos para os quais a arte
ou o fazer de objetos enquanto possibilidade de estabilização nada podem.
Art is a Garanty of Sanity [arte é garantia de sanidade] nos diz, em
uma de suas obras, a artista franco-americana Louise Bourgeois (2006), que
dedicou ao nosso artista um pequeno texto. Ela vê na produção de Bispo
do Rosario a busca por uma garantia de sanidade que, segundo ela, é o
princípio de organização atrás de toda sua obra. A sanidade que a artista
afirma ser buscada por Bispo do Rosario, nos sugere o referido trabalho de
Bourgeois, é algo inerente à própria arte. Parece que, mais do que identificar
o que teria levado o artista brasileiro a produzir seus objetos, Bourgeois se

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


identifica, ela mesma, com Bispo do Rosario, fazendo assim com que sua
verdade, a de sua obra, se aplique também ao nosso artista. A prática da
costura que herdou da mãe, como ela mesma afirma no texto, é uma ação
simbólica contra o medo de ser separada e abandonada: “Nós percebemos
no trabalho de Bispo do Rosario que ele também tinha medo de perder o
contato” (p. 23).
No caso do artista brasileiro, a afirmação da obra de Bourgeois, Art
is a Garanty of Sanity, é tanto verdadeira quanto falsa. Verdadeira porque
suas produções, que garantiram sua sobrevivência, são obras de arte. Para
Bourgeois (2006), aquilo que chamei de dimensão de objeto coincide com
a da própria obra, ou seja, a artista considera a dupla dimensão daquilo
que produzia Bispo do Rosario. Mas preciso dizer que ela também é falsa
porque, para Bispo do Rosario, os objetos que produzia eram frutos de
89
11
Não que eu considere esse o intuito de um fazer que em nada se endereçava ou se relacionava a uma nomeação
Bourgeois, muito pelo contrário. Ocorre-me
que ela, por ser artista, tenha um saber como artista, ao status de obra de arte ou ainda pela filiação ao exercício
sobre tudo isso que nos ultrapassa, contudo,
sua afirmação poderia, em alguma medida, de práticas consideradas artísticas. O paradoxo aqui proposto visa, por um
ser lida como panaceia.
lado, problematizar uma leitura da arte como uma espécie de panaceia na
loucura11 – o que em minha opinião não resulta em benefícios nem para
a arte nem para os sujeitos considerados loucos. Mas, sobretudo, este
paradoxo tem o objetivo de orientar nosso olhar para o que é singular e
único em Bispo do Rosario. E isso tem desdobramentos em uma leitura
sobre ele e sua obra.
Se ressalto, com base em estudos biográficos, que Bispo do Rosario
não considerava obra de arte o que ele produzia, e se procuro destacar agora
que a arte não é apenas um conjunto de técnicas, mas também uma for-
ma de nomeação que produz efeitos sobre o sujeito, é para marcar que o
não endereçamento de Bispo do Rosario ao campo da arte tem importantes
consequências em uma leitura sobre o artista. Não foi exatamente por fazer
arte, portanto, que ele conseguiu alguma estabilização possível de sua linha
da vida – por mais instável que ela possa ter sido, e como podem ser, com
alguma frequência, as estabilizações na psicose. O que contava para ele era
o fazer de objetos e não se os objetos eram obra de arte ou não. Ainda assim,
é impossível, para nós, não conferir a seus objetos o status de arte.
O fato de Bispo do Rosario não ter a intenção de fazer arte não deter-
mina se seus objetos serão, ou não, considerados obra de arte. Minha ideia
ao sublinhar que ele não se reconhecia como artista e também não consi-
derava sua produção como arte não tem nenhuma relação com qualquer
tipo de argumentação que enverede pela problemática e desgastada questão
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

da intencionalidade da arte. Bispo do Rosario não tinha intenção de fazer


arte, embora o tenha feito, mas tinha total intenção de fazer o que fazia. E
o que era esse fazer? É exatamente aqui que a diferenciação entre dimensão
de objeto e dimensão de obra nos ajuda e se justifica em Bispo do Rosario.
Considerar a função singular que esses objetos encarnavam para
nosso artista é uma maneira de exaltar o fazer próprio de Bispo do Rosario,
é refletir sobre ele e tirar daí conclusões. É uma forma de abrir a questão
tanto para a psicanálise quanto para a arte e outros saberes. Por outro lado,
tomar de imediato como arte aquilo que Bispo do Rosario produzia pouco
nos informa sobre a especificidade deste fazer, acabando assim por deslocar
a ênfase de seu gesto singular para algo que seria inerente à arte de forma
90
mais universal. Na verdade, é o fazer de Bispo de Bispo do Rosario, aos filmes de Hugo Denizart
do Rosario que acrescenta ao campo da arte algo (1982) e Fernando Gabeira (1985) e à entrevis-
a mais, não sendo a nomeação de artista o que ta feita pela assistente social Conceição Robaina
oferece a ele uma maneira de inscrição no laço (BISPO DO ROSARIO, 1988). Através de depoi-
social. mentos gravados ou de escritos bordados em seus
O destino dado aos objetos criados por um diferentes objetos, Bispo do Rosario nos conta so-
sujeito, ao circularem no mundo, pode depender bre sua missão e sua identidade messiânica.
muito pouco, ou até mesmo ser completamente Duas passagens sintetizam a relação de
independente das vontades e objetivos, conscien- Bispo do Rosario com sua missão delirante. Para
tes ou não, daquele que os produz. Isso, contudo, Robaina (2008), ele revelou que sua missão im-
não torna vedada uma reflexão sobre o fazer de plicava o ato de representar: “Minha missão é
objetos em Bispo do Rosario no intuito de pensar essa, é conseguir isto, o que eu tenho para no
sobre a função singular que eles possuíam para o dia próximo, eu representar a existência da Terra
próprio artista. Rica em consequências, tal refle- que taí, tudo que eu fiz” (BISPO DO ROSARIO,
xão me abriu a possibilidade de uma nova leitura 1988). No filme de Denizart (1982), Bispo do
sobre a missão de Arthur Bispo do Rosario sobre Rosario afirma: “Esse é material usado na Terra
seu delírio e sobre sua obra. pro uso do homem que eu represento”.
Assim sendo, em meu entendimento, a
missão de Bispo do Rosario era, portanto, repre-
A missão de Bispo do Rosario
sentar o material existente na Terra do uso do ho-
Segundo consta frequentemente na li- mem. É importante lembrar ainda que essa mes-
teratura sobre o artista, sua missão era recons- ma versão da missão se apoia também no que foi
truir o mundo para apresentá-lo a Deus no dia registrado no relatório de Rosangela Maria Grilo
do Juízo Final. Em minha opinião, essa versão é Magalhães (1983), que atendeu Bispo do Rosario

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


uma das interpretações possíveis para a missão entre os anos de 1981 e 1983, quando era estagi-
de Bispo do Rosario, que foi elaborada pelos pri- ária de psicologia na Colônia Juliano Moreira. E,
meiros profissionais que se dedicaram à sua obra nesse contexto, no discurso de Bispo do Rosario,
– Morais (1989), Hidalgo (1996) e Quinet (1997) o que seria representar?
– e reproduzida, posteriormente, por muitos No senso comum, representação tende a
ou­tros autores. Proporemos aqui uma leitura remeter à noção de mimesis, ou seja, de imita-
distinta. ção. Superpor essa significação ao que visa Bispo
Buscando ter sempre em mente a advertên- do Rosario à sua missão poderia ensejar inter-
cia do psicanalista Jacques Lacan (1955-56/1988) pretações redutoras, esvaziando seu caráter de
quanto ao que ouvimos do sujeito na psicose, invenção, no sentido proposto pelo psicanalista
aquele que chamamos também de louco, tomare- Jacques-Alain Miller (2003), a produção de algo
mos “ao pé da letra” o que Bispo do Rosario nos novo a partir do que existe, como bricolagem. De
conta. Recorremos a fontes distintas: aos objetos fato, seus objetos não eram reproduções, mas sim
91
12
Mesmo que tenha sido encontrado verdadeiras recriações e intervenções, como as vitrines que acumulavam
no prontuário do antigo Centro
Psiquiátrico Nacional (BRASIL, objetos industrializados, por exemplo.
s/d) uma referência à missão como
“reforma do mundo em que vivemos”, Portanto, longe de afiançar leituras de Bispo do Rosario como de um
não há, no referido documento,
nenhuma menção ao fato de essa
“copiador” de imagens e objetos, consideramos que vale explorar a singula-
missão estar ligada à intenção ridade e originalidade que o termo representação comporta em seu discur-
de mostrar algo para Deus, ou
exclusivamente para ele. Além disso, é so, dando a ele um lugar central. Privilegiaremos esse termo, nas expressões
preciso considerar ainda que, segundo
minhas pesquisas, essa foi a única “representar a existência da Terra” e “material usado na Terra pro uso do
vez que Bispo do Rosario se referiu homem que eu represento”, em toda sua polissemia, em lugar de “recons-
dessa forma à sua missão, enquanto
a representação, que carrega consigo truir” o mundo ou de “apresentá-lo” a Deus no dia do Juízo Final. Trata-se
a ideia do endereçamento também
aos homens, é recorrente em sua fala. de trazer para primeiro plano o significante produzido pelo próprio Bispo
É preciso lembrar também, como
já afirmamos, que a ideia da missão
do Rosario como uma das formas de fazer valer a advertência lacaniana
em Bispo do Rosario foi tomando anteriormente aludida, quanto ao que ouvimos do sujeito na psicose, e tra-
contornos ao longo dos anos e
englobando as experiências vividas balhar seus desdobramentos.
por ele.
O fato de “reconstrução” não ter sido um termo cunhado pelo pró-
13
Agradeço a Lula Wanderley (2008) prio Bispo do Rosario não impediria, necessariamente, sua utilização. Se
por ter, em uma entrevista, me
chamado a atenção para tal aspecto. pensarmos na relação entre representação e reconstrução em termos de S1,
A partir disso, desenvolvi um intenso
trabalho de pesquisa para formalizar e significante-mestre a partir do qual todas as possíveis significações poderão
demonstrar essa leitura, que me parece
bastante consistente por seguir “ao pé
surgir, e S2, as possíveis significações (LACAN, 1969-70/1992), podemos
da letra” Bispo do Rosario. dizer que a representação é o S1, enquanto a reconstrução é um S2. Mas não
14
O termo apocalipse, derivado do se trata de um S2 de Bispo do Rosario, mas sim produzido por aqueles que
grego, significa revelação. Na tradição
judaico-cristã, o Apocalipse é uma fizeram leituras de suas obras.
revelação divina de coisas que perma-
neciam em segredo para um escolhido
É possível pensar também que a noção de reconstrução poderia até
de Deus (MORUJÃO, 2010). mesmo evitar o tipo de imbróglio semântico acima referido, na medida em
que, em si mesma, a reconstrução já porta o caráter de invenção citado e
afasta a ideia da representação como reprodução imaginária do objeto em
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

questão.
Sua desvantagem, e aqui está o que é fundamental, é que, pelo uso
que foi feito da reconstrução, tal termo ficou aderido à ideia de que essa
produção era endereçada somente a Deus, o que acabou obscurecendo ou-
tra característica que me parece vital na missão: Bispo do Rosario também
produzia seus objetos visando os homens na Terra12. Trata-se, assim, de um
duplo endereçamento13, o que fará toda a diferença.
Outra questão importante a se observar, e que reforça a problemati-
zação do enfoque do endereçamento de Bispo do Rosario exclusivamente
para Deus, é o fato de seu discurso possuir incríveis semelhanças com o
texto bíblico do Apocalipse, e não apenas com uma de suas partes, o Juízo
Final, como se costuma interpretar. O Apocalipse trata de uma revelação14
92
que vem de Deus, e que por meio de um mensageiro, Jesus Cristo, é ende- 15
Para uma demonstração completa
da relação paradoxal entre delírio e
reçada aos homens na Terra, através de um de seus “servos”, João de Patmos fazer de objetos ver Corpas (2014). Vale
lembrar ainda que para o crítico de
(MORUJÃO, 2010). No Apocalipse, João refere ao fato de que as revelações arte Frederico Morais (2013), o delírio
de Bispo do Rosario também não está
lhe foram trazidas por anjos, o que ressoa com uma passagem biográfica de apartado da obra, tem relação com ela e
Bispo, bordada por ele em um de seus objetos: sua descida do Céu, acompa- amplia as possibilidades de leitura sobre a
mesma. Por outro lado, não há qualquer
nhado por sete anjos, no dia em que ele assume sua identidade como Jesus obrigatoriedade de uma análise da obra se
remeter a ele, opinião que também defendo.
Cristo, em 22 de dezembro de 1938.
Os fatos que Bispo do Rosario descreve no filme O Prisioneiro da
Passagem e que borda em seus objetos – como, por exemplo, o que foi inti-
tulado postumamente Venham as Virgens em Cardume – possuem a mesma
ideia do texto bíblico. Muitas das imagens evocadas por Bispo do Rosario
em seu depoimento a Denizart possuem semelhanças com aquelas presen-
tes no Apocalipse. A expressão “Filho do Homem”, que aparece em alguns
de seus objetos, é recorrente naquele livro da Bíblia. A própria ideia de re-
gistrar as coisas vistas está também presente logo no início do Apocalipse.
Deslocar a missão do Juízo Final para o Apocalipse como um todo
permite refletir sobre as variadas articulações dessa missão. Assim, o acerto
de contas com Deus, o Juízo Final, deixa de ser o foco, dando lugar a uma
missão muito maior, que inclui uma complexa relação com os homens.
Ainda que a ideia de sua missão como representação possa estar li-
gada ao Apocalipse, que vozes ditassem a Bispo do Rosario o que fazer e
que ele se considerasse Jesus Cristo, todo esse aparato delirante aponta para
uma representação singular, para uma prática, que tanto se relaciona com
o delírio, quanto se torna autônoma em relação a ele ao se constituir como

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um fazer específico, sua produção de objetos15. Em meu entendimento,
tudo isso reporta ao que Lacan (1976-77, aula de 15/02/1977) define como
o termo savoir-y-faire. Nele, a letra “y” introduz um algo a mais do que o
know-how de uma técnica. Essa letra a mais indica um “saber fazer com”, um
saber se virar com algo que ultrapassa o sujeito, e que Miller (1996-97/2005)
apresenta como algo que conduz ao singular do ato e que comporta algo da
ordem da invenção.
Assim sendo, vale repetir: representação no discurso de Bispo do Ro-
sario deve ser tomada com ênfase em sua singularidade. Ser Jesus Cristo e
representar o material existente na Terra implicava uma série de ações e me-
didas sui generis, que definiam tanto seus efeitos sobre Deus quanto sobre os
homens, e também, sobre o próprio Bispo do Rosario. É importante marcar,
que esse endereçamento aos homens convoca um destino mundano ao fazer
93
16
Para a demonstração completa de minha incansável e infinito desse sujeito, que é essencial para a produção dos obje-
hipótese sobre o delírio de Bispo do Rosario
ver Corpas (2014). tos que lhe deram um lugar no mundo e, posteriormente, também na arte.

Um delírio instável
A construção do delírio em Bispo do Rosario envolve tanto o cum-
primento de uma missão na Terra, quanto a constituição de uma identidade
messiânica. Não discutiremos em nenhum momento se o delírio é ou não
patologia, pois partiremos do postulado freudiano de que o delírio é sem-
pre uma produção do sujeito ou, em seus termos, uma “tentativa de cura”
(FREUD, 1924/1976, p. 191). Produção que, como tal, deve ser acolhida,
mesmo que trabalhemos para que o sujeito encontre um caminho condi-
zente com uma vida reconhecida e aceita pela comunidade em que se insere
(VIEIRA, 2007).
Bispo do Rosario recebeu, em 1938, o diagnóstico de esquizofrenia
paranoide. O delírio apresentado por ele foi, provavelmente, o principal fa-
tor para tal definição. No entanto, apesar de ter se organizado segundo uma
referência delirante, seu delírio era instável, o que fez com que ele tivesse
que recorrer a construção de objetos como possibilidade de trânsito no Ou-
tro, na cultura – que não deve ser tomada como sinônimo de arte, mas en-
tendida como o campo da linguagem – como possibilidade de estabilização.
Embora a história contada pelo artista não revele um fato desenca-
deador preciso, sabemos, por meio de declarações do próprio e do que ele
registrou em seus objetos, que na noite de 22 dezembro de 1938 algo extre-
mamente marcante aconteceu, mudando sua vida para sempre. Quarenta
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e dois anos mais tarde, Bispo do Rosario relata a Denizart (1982), no filme
O Prisioneiro da Passagem, que naquela noite sete anjos desceram dos céus,
deixando-o, ele mesmo, Bispo do Rosario, no quintal de sua casa em Bota-
fogo. Além disso, ele afirma, no mesmo depoimento, que era Jesus Cristo.
É importante ressaltar que, a partir do relato prestado a Denizart, temos
acesso ao que podemos chamar de uma versão mais organizada do delírio
de Bispo do Rosario, um delírio que foi sendo construído ao longo dos anos
e que não se constituiu como um delírio estável.
Parece bastante plausível supor que em 1938, em torno dos seus 29
anos, eclodiram as manifestações patentes de uma psicose. Entretanto, sabe-
mos por meio do prontuário do Hospício Nacional de Alienados (BRASIL,
1938), local onde Bispo do Rosario foi internado, em 24 de dezembro de
94
1938, que algumas características que poste- serviços domésticos, passando, inclusive, a viver
riormente seriam determinantes em seu delírio na residência da família. Lá, torna-se um em-
místico já se mostravam presentes a partir de um pregado extremamente humilde. Sabemos que
acidente ocorrido na empresa Light, na qual ele Bispo do Rosario acreditava que ele, o patriarca
trabalhava: a dedicação a “estudos ocultos”, as José Maria Leone e seu filho mais velho, Hum-
penitências corporais sob a forma de abstinência berto Leone, formavam a Santíssima Trindade,
sexual, a ideia de uma missão – que, nessa época, cabendo a Bispo do Rosario o lugar de São José.
fora relatada por Bispo do Rosario como um so- Um tempo depois do convívio com essa família,
nho que ele tivera, em que ele aparecia como um Bispo do Rosario teve seu primeiro surto.
frade, fazendo viagens em missão religiosa pelos Uma mudança representativa no compor-
continentes –, e traços de uma megalomania, que tamento de Bispo do Rosario se deu quando ele
pode ser percebida através das revelações que passa a conviver com os Leone. Segundo revelou
Bispo do Rosario obtinha em seus sonhos, como Humberto Leone (1989), a única característica
o fato de ser um escolhido para servir a Deus. de Bispo do Rosario que chamava a atenção era
As informações contidas nesse prontuário, seu excesso de humildade. O que teria aconteci-
além de outros dados biográficos relevantes, me do com ele, a que se deveu tal mudança? Além
fizeram supor que o delírio foi se construindo ao disso, como já vimos, os aspectos de seu delírio,
longo dos anos. Além disso, tais dados nos mos- que já se mostram patentes desde o acidente, em
traram também que uma construção delirante 1936, ganham, nessa época, nova configuração
relacionada à família do advogado José Maria Le- através da ideia da Santíssima Trindade.
one, para quem Bispo do Rosario trabalhou antes As histórias encontradas nos registros da
e depois de sua primeira internação, já estava em Marinha e da Light descrevem Bispo do Rosario
curso antes do primeiro surto, ocorrido em 1938, como um sujeito indisciplinado e insubordinado.
me fazendo supor que foi, justamente, o fracasso Sabemos como as Forças Armadas e a sociedade

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dessa construção o que fez com que um surto se em geral do início do século XX podem ter sido
desencadeasse. preconceituosas com um sujeito negro e nordes-
Lacan (1955-56/1988) afirma em “De uma tino, que parecia ter vontade própria e não que-
questão preliminar a todo tratamento possível na rer se deixar explorar. Mas os jornais das décadas
psicose” que o desencadeamento de uma psicose de 1920 e 1930, que registram seu passado de bo-
está relacionado ao fato de que aquilo que man- xeador, também sugerem que Bispo do Rosario
tinha um equilíbrio para o sujeito deixa de ope- era uma pessoa de muita “personalidade”, ativo
rar. Suponho que tenha sido justamente isso que e protagonista de sua própria vida. Diante disso,
ocorreu com o artista. o que dizer sobre o fato de, após ter começado a
O advogado José Maria Leone defendeu os trabalhar para os Leone, ele tenha se tornado um
interesses de Bispo do Rosario em um acordo tra- sujeito extremamente servil?
balhista com a Light. Após esse episódio, ele vai Podemos supor o desencadeamento da
trabalhar na casa do advogado, desempenhando psicose como correlato do ganho obtido no
95
acordo com a Light e de sua relação com a família sua existência, já que o delírio, por sua instabi-
Leone? O acidente da Light, que teria posto o lidade, fracassa em garantir a Bispo do Rosario
derradeiro fim à carreira de lutador de boxe, uma estabilização.
teria relação com o início das ideias delirantes de
Bispo do Rosario? Teria tudo isso, ainda, relação
A ambivalência da identidade
com a morte do pai, da qual temos notícia através
messiânica
de um documento datado de 1933? Embora não
possamos garantir a relação entre esses fatos, Embora possamos falar que o delírio con-
também seria exagerado considerá-los mera cedeu a Bispo do Rosario, alguma estabilidade
coincidência. Contudo, nos faltam dados para durante um período de sua vida, não podemos
tomar como certas tais correlações. afirmar que ele fosse baseado em uma certeza
De qualquer forma, é possível pensar que, inabalável, em um ego rígido, que nos permita
entre 1936 e 1938, um arranjo delirante construí­ falar no estabelecimento daquilo que Lacan cha-
do por Bispo do Rosario teve seus efeitos, man- mou de metáfora delirante (1957-58/1998), ou
tendo-o, sem maiores problemas, no laço social seja, de uma estabilização que tenha se sustenta-
e evitando o que chamamos de “surto”, o desen- do unicamente por meio de um delírio.
cadeamento de sua psicose. Todavia, isso não A noção de metáfora delirante implica
parece ter sido suficiente, pois, em 22 de dezem- em uma ordenação do mundo fundada em uma
bro de 1938, o equilíbrio construído por Bispo significação fixa. Na psicose, o sujeito é acome-
do Rosario se rompe e ele é enviado ao Hospício tido por uma conjunção de significados. Os ele-
Nacional de Alienados. mentos dessa metáfora valem mais pela signifi-
Em seu depoimento a Denizart, Bispo do cação que ela sustenta – por exemplo, “mulher
Rosario afirma que era Jesus Cristo, que tinha de Deus”, no caso clássico de psicose escrito por
vindo à Terra para julgar os vivos e os mortos e Freud (1911/1976) –, do que pelas variadas possi-
que iria governar um novo mundo, por ele cria- bilidades de significado que possuem em seu uso
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do, depois que arrasasse a Terra em fogo. Dessa comum. Esse postulado, nas palavras de Cléram-
forma, ele se apresentava por meio de uma cons- bault, se apoia nos sentidos disponibilizados pela
trução delirante. Como veremos mais adiante, cultura (VIEIRA, 2011) – como Jesus Cristo, em
seu delírio era tanto instável, aspecto pouco per- alguns casos –, mas dará a eles um sentido fixo,
cebido sobre ele, quanto necessário para o anco- que cristaliza as leituras possíveis para os enig-
ramento de Bispo do Rosario no mundo. Em re- mas do mundo.
lação aos seus objetos, o delírio estava conectado Entretanto, no caso de Bispo do Rosario,
à missão que o artista afirmava ter. Porém, para- aquilo que promove uma ancoragem entre os no­
doxalmente, ao colocar em prática tal missão, o mes e o real, esse ponto de basta aludido por Lacan
fazer de objetos ganha também uma autonomia, (1960/1988), não pôde advir de forma metafórica
configurando-se como nova estratégia de anco- no interior do delírio, índice para Lacan de uma
ramento desse sujeito no mundo, fundamental à saída imaginária construída como forma de lidar
96
com o Real impossível de representar. Não foi tas que criava, que serviriam também para que os
através da assunção da identidade de Jesus Cristo, homens o identificassem como o Cristo no “dia
construída como certeza inabalável, que Bispo próximo”, dia em que a Terra seria arrasada.
do Rosario estabeleceu sua forma singular de Diante disso, podemos afirmar que Bispo
caber no mundo. Dada a instabilidade do delírio, do Rosario precisava de seus objetos para se apre-
os objetos produzidos por Bispo do Rosario se sentar aos homens como Jesus, para que esses
acrescentam, configurando a solução encontrada homens o reconhecessem como tal. Assim, em-
por esse sujeito para se ancorar no mundo. bora tenha sustentado durante muitos anos sua
Afirmamos anteriormente que uma cons- identidade messiânica, ele precisava de seus ob-
trução delirante já havia sido posta em curso por jetos como garantia. Isso porque sabia que alguns
Bispo do Rosario antes do desencadeamento de o reconheciam como o Cristo, mas nem todos.
sua psicose, em 1938. Entretanto, essa solução fa- Bispo do Rosario tinha formas de saber
lha e ele é acometido de seu primeiro surto. De- quem o reconhecia ou não: a pergunta “qual a cor
pois disso, seu delírio passa por uma construção de minha aura?”. Muitas das pessoas que o conhe-
complexa ao longo dos anos, envolvendo uma ceram e conviveram com ele confirmam que essa
identidade messiânica, uma missão na Terra, a era a pergunta que ele fazia sempre que alguém
instituição onde Bispo do Rosario ficou inter- tentava entrar na sua cela-ateliê (HIDALGO,
nado e a construção dos objetos que, mais tarde, 1996; MAGALHÃES, 1983; DENIZART, 2008;
vieram a lhe dar um lugar de sujeito e também FIRMO, 2013). E Bonfim (1989), o médico que
um nome como artista. foi patrão de Bispo do Rosario, entre 1960 e
Bispo do Rosario registrou, em muitos 1964, também afirmou que ele lhe fazia a mesma
de seus objetos – dentre eles aqueles intitulados pergunta.
postumamente de Vitrines Fichários –, os no- Ao que tudo indica, a cor em si não inte-
mes das pessoas que o reconheciam como Jesus ressava, parecia não haver uma cor certa, o que

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Cristo. Tratava-se das pessoas que diziam que faz pensar que o que realmente importava era se
viam sua aura, que lhe atribuíam uma cor ou que as pessoas confirmavam que viam sua aura, ou
simplesmente concordavam com ele quando ele seja, se o reconheciam como Jesus Cristo. Nos fi-
dizia ser Jesus Cristo. Essas eram as pessoas que o chários onde registra os nomes das pessoas que
reconheciam e que iriam encarnar, os escolhidos o reconheciam, ele registra também a cor vista,
para a nova vida depois que ele arrasasse a Terra que era variável. O registro da cor atribuída pode
em fogo. ser pensado como a prova desse reconhecimento
Alguns de seus objetos, de acordo com de- simbólico pelo Outro.
poimentos dados pelo artista (DENIZART, 1982; Além disso, outros dados biográficos re-
GABEIRA, 1985), serviam também como instru- velam a ambivalência da identidade imaginária
mentos para sua apresentação aos homens, como construída por Bispo do Rosario. Quando alguém
as amarras para os braços, que auxiliariam os an- duvidava de sua identidade messiânica, como de
jos a levantar Bispo-Jesus ao céu, e as vestimen- fato acontecia, ele se mostrava muito contrariado,
97
17
A TV Senado exibiu em 25/02/2011,
no programa Inclusão, o episódio “O
tendo atitudes que surpreendiam, como retornar de Teresópolis ao Rio de
rosário sagrado de Arthur Bispo”. Em seu Janeiro a pé após uma pessoa ter dito que não via nele cor alguma, ou mes-
depoimento, José Carlos Leone afirma que
Bispo do Rosario ficava satisfeito e se abria mo se recusar a morar na casa dos Leone, a família de advogados que o
à conversa aos que afirmavam que viam
uma cruz branca ou uma luminosidade acolheu durante muitos anos, como ocorreu na década de 1940, depois que
especial nele. um dos parentes do advogado disse não ver nenhuma cruz em suas costas
(HIDALGO, 1996).
Esses fatos apontam para uma ambivalência de Bispo do Rosario em
relação à sua identidade como Jesus Cristo, denunciada por seu compor-
tamento diante das respostas negativas das pessoas sobre sua identidade
mística, por sua necessidade de impor o teste da cor, ou por outros indícios
que comprovassem que ele era reconhecido como Jesus17, e do uso de seus
objetos para que os homens o pudessem identificar, como confirmação de
sua identidade. Ao mesmo tempo em que há a certeza sobre sua identidade,
uma vez que ele afirmava ser Jesus Cristo durante vários anos, havia uma
necessidade de confirmação, que deveria vir do reconhecimento dado pelo
Outro, no caso, os homens na Terra.
A ambivalência de Bispo do Rosario em relação à sua identidade
messiânica é um dos aspectos de seu delírio que ficaram obliterados pela
interpretação da missão como reconstrução do mundo para mostrar para
Deus no dia do Juízo Final, já que essa ambivalência só se torna patente
quando trazemos para o primeiro plano o endereçamento de seus objetos
também aos homens, explicitado pela ideia da missão como representação.
Dada a ambivalência da construção de uma identidade imaginária como
Jesus Cristo, o delírio, por si só, não se constituiu como uma solução estável.
Assim sendo, Bispo do Rosario se lança à construção de seus objetos. Aqui
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está o ponto que gostaria de ressaltar: a importância do endereçamento aos


homens no interior de seu delírio místico como reconhecimento dado pelo
Outro e seus desdobramentos no que diz respeito ao processo de autonomia
do fazer de objetos.
Parece-me inviável demonstrar tal processo, em função de nosso li-
mite de espaço neste texto. Exigir-nos-ia um amplo percurso pela biografia
de Bispo do Rosario e a introdução de uma série de conceitos psicanalíticos.
Em minha tese (CORPAS, 2014), o demonstrei através de um período espe-
cífico da vida do artista, ao qual nomeei de do claustro infinito à instalação
de um nome, expressão que compõe, inclusive, por sua importância em meu
pensamento, o subtítulo do trabalho. Farei aqui, contudo, um breve recorte
de minha argumentação.
98
A biografia de Bispo do Rosario nos mostra que o ato de fazer seus 18
Para uma discussão mais completa sobre
a inclusão da Colônia no delírio ver Corpas
objetos produziu uma nova possibilidade de estabilização para além do de- e Vieira (2011) e Corpas (2014).

lírio, mas também relacionada a ele. O delírio, portanto, está implicado na 19


Como os artistas que se engajaram
em trabalhos na Colônia, fotógrafos,
solução construída por este sujeito, sem fazer de sua produção de objetos como Hugo Denizart e Walter Firmo, e
uma obra delirante, do delírio. Ao ser posto em curso, esse fazer de objetos jornalistas, como Samuel Wainer Filho
e José Castello, que foram retratar Bispo
se torna autônomo. Um importante período de sua vida, quando ele passa a do Rosario na instituição, críticos de arte,
como Frederico Morais, psicanalistas e
viver exclusivamente para esse fazer, entre 1964 e 1989, permite trabalhar a profissionais do campo da saúde mental.
ideia de autonomia do fazer. Apoiada neste recorte demonstrei como Bispo 20
Podemos dizer que entre 1938 e 1980, a
do Rosario engendrou a estabilização de sua linha da vida, uma forma de produção de Bispo do Rosario ficou restrita
ao universo dos hospitais em que ele
caber no mundo. E essa forma é inseparável de algum tipo de reconheci- viveu, mesmo que ele tenha sido retratado,
nos anos de 1944 e 1945, nas revistas O
mento dado por esse mundo ao fazer próprio de Bispo do Rosario, o que Cruzeiro e A Cigarra, como citado na
delimitei com a expressão do claustro infinito à instalação de um nome. nota 3, nas quais sua produção embora
mencionadas não se configura como arte.
Esse reconhecimento do Outro vinha de fontes distintas: (1) daqueles Com a redemocratização do país, as portas
dos hospícios começaram a ser abertas e
que reconheciam sua identidade como Jesus Cristo, os que viam a cor de pessoas de diferentes campos passaram a
sua aura, por exemplo, muito embora aqui se dê algo mais circunscrito ao trabalhar, muitos deles de forma voluntária,
nestas instituições. Em 1980, o fotógrafo
delírio e menos a autonomia do fazer de objetos; (2) da Colônia, ao assentir e psicanalista Hugo Denizart inicia um
projeto financiado pelo Ministério da
que Bispo do Rosario cumprisse sua missão, o que é surpreendente, tendo Saúde que visava registrar e denunciar as
condições de vida desumanas na Colônia
em vista o fato de que na época, enquanto instituição total, nenhuma sin- Juliano Moreira. Nesse contexto, ele
gularidade era permitida. Contudo, Bispo do Rosario consegue fazer um faz o filme O Prisioneiro da Passagem,
que apresenta Bispo do Rosario e seus
furo na Colônia e ali instalar seus objetos e a si mesmo. Por esse motivo, trabalhos. Tanto Denizart (2008) quanto
o terapeuta e poeta visual Lula Wanderley
a própria Colônia passa a ser incorporada ao seu delírio18, como também (2008) afirmam que a princípio não
tinham muita noção do que era aquilo que
percebe Denizart (COUTINHO, 1983); (3) na cultura – depois de ultrapas- Bispo do Rosario fazia, ou seja, era algo
sar os muros do hospício e alcançar alguns interessados19 – mas não ainda enigmático e fora do sentido. O crítico
de arte Wilson Coutinho (1983) descreve
no sistema da arte20. Algumas pessoas, ao terem contato com os objetos de Bispo do Rosario, em matéria veiculada

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no Jornal do Brasil, de forma ambígua:
Bispo do Rosario, reconheciam neles a potência de algo que o sustentava e primeiro se refere a ele como “artista”,
que era sustentado pelo artista, ainda que isso, naquele momento, não tenha com aspas, e depois afirma que ele se
portava tal como um artista em seu
sido, ou pudesse ser, tomado em toda sua amplitude como obra. Esse reco- ateliê, não tendo diferença entre os dois.
Mas nada diz o crítico sobre a produção
nhecimento do Outro da cultura, reconhecimento de um fazer de objetos, de Bispo e sua inserção na arte, embora
a elogie. Segundo Coutinho, Denizart
também deve ser tomado como furo no Outro. considera que Bispo do Rosario se salvou
O caso de Bispo do Rosario nos mostra que, ao construir seus obje- de toda a violência da instituição a partir
da sacralização que fez da loucura em
tos, ele faz furo no Outro, da Colônia e da cultura, por meio do efeito que forma de objetos.

produz no Outro. Sua biografia revela que na Colônia, e mesmo na cultura –


depois de ultrapassar os muros do hospício e alcançar alguns interessados –,
mas ainda não no campo da arte, aqueles objetos eram reconhecidos como
enigmáticos. Eles não tinham valor de uso, já que haviam sido retirados
de suas funções ordinárias, e tampouco possuíam valor de troca, pois não
eram considerados arte ou artesanato.
99
21
Sobre as diferentes conotações que tal Mas aquelas produções representavam Bispo do Rosario para o Ou-
termo pode ocupar em uma análise sobre
Bispo do Rosario ver Corpas (2014). tro, ainda que o Outro nada pudesse dizer daqueles objetos. O Outro podia
22
Tudo isso comporta o que chamo de apenas assentir com aquele fazer e reconhecer aquele sujeito da forma como
leitura clínica, o que me permitiu extrair
um termo que pudesse circunscrever o fazer
ele mesmo se forjou. A isso estou chamando de efeito de furo no Outro. E
de Bispo do Rosario: a acumulação. Por tudo isso tem desdobramentos ainda para o próprio Bispo do Rosario, que
outro lado, há também o que denominei
de leitura da obra, a partir da qual me colhe os efeitos desse reconhecimento de trânsito no campo da linguagem,
propus a fazer uma análise estética da
obra a partir da interlocução entre arte do Outro, o que permite a manutenção de seu árduo trabalho de instala-
e psicanálise (CORPAS, 2014). Há uma ção21 de si e de seus objetos.
possibilidade de convergência entre estas
duas perspectivas, o que não significa que
todas as consequências que tiramos de
uma abordagem clínica sejam úteis para
pensar a obra ou vice-versa. Estas leituras
Por fim...
não recobrem uma à outra, não se anulam
nem se completam. Elas se sobrepõem, Ao me debruçar sobre a história de vida de Bispo do Rosario e sobre
acrescentam, e não se reduzem a uma mera
tentativa de explicação de uma perspectiva o processo de legitimação de sua produção como arte, pude pensar: (1) sua
através da outra. O que extrai da leitura
clínica, o fazer como acumulação, implica missão como representação dos “materiais existentes na Terra do uso do
nos procedimentos de extração, reunião e, homem”; (2) sua identidade messiânica e seu delírio como instáveis; (3) seu
principalmente, do registro, levando a
uma invenção, os próprios trabalhos de endereçamento aos homens, e não só a Deus; (4) a dimensão de objetos e
Bispo. Foi a partir da noção de acumulação
que pude desenvolver a articulação entre a dimensão de obra de suas produções; (5) seu fazer de objetos como saída
a leitura clínica e a da obra. Para marcar a
especificidade do que faz Bispo do Rosario,
singular, como forma de estabilização; (6) a relação paradoxal entre delírio
recorri a esta noção no campo da arte. A e fazer de objetos, na qual o delírio se relaciona com a obra, na medida
ideia de acumulação está vinculada ao
termo assemblage e a algumas instalações em que a missão de Bispo do Rosario é o que impulsiona o fazer de obje-
artísticas. O termo foi cunhado por Jean
Dubuffet (MORGAN, 2007), que também tos. Contudo, quando esse fazer entra em cena, ele se torna autônomo em
criou a noção de art brut, para se referir relação ao delírio, engendrando a si mesmo22. Esse engendramento já me
às produções artísticas de pessoas fora do
circuito formal da arte, como os loucos. parece ser uma volta a mais dada pelo artista, para retomar aqui o que foi
Mas a acumulação se refere também
àquilo que Argan (1992) nomeia como tratado no início deste texto.
dissemblage: o oposto da acumulação na
Se no “uso interno” da obra, o sujeito dá a sua própria volta, como
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assemblage. Enquanto a última trata


da justaposição de objetos da mesma disse Lacan (1965-66/2018, p. 402), e se a arte precisa de uma volta a mais
natureza que, apesar de produzir um
novo conjunto, não faz com que seus que enganche o outro e produza um reviramento do enquadre que o sujeito
elementos percam seu sentido original,
a dissemblage diz respeito ao que Pierre deu para si no mundo (RIVERA, 2013), como podemos pensar o caso de
Restany observa: “o acúmulo de x objetos
da mesma natureza sugere outra coisa e
Bispo do Rosario, que me parece ter dado ao menos três voltas? Guiado pela
mais que um objeto único, considerado sua identidade como Jesus Cristo e pela missão, ele dá sua primeira volta
isoladamente” (RESTANY apud
ARGAN, 1992, p. 559). Essa outra coisa e produzindo objetos que, em um primeiro momento, são complementares
mais são as produções de Bispo.
ao delírio, lhe concedendo alguma estabilização (CORPAS, 2014). Estamos
aqui no terreno em que obra e delírio coincidem, o “uso interno”.
Mas já há também um reviramento daquilo que dava um enqua-
dramento para o sujeito no mundo, o delírio, pois os objetos promovem
uma nova forma de estabilização. E já percebemos aqui um enlaçamento
do Outro, uma vez que esses objetos também são endereçados aos homens
100
na Terra, produzindo efeitos sobre a Colônia e a cultura, e também sobre 23
Na nota 6, lembrei que embora a
discussão sobre uso interno e externo
Bispo do Rosario. Já temos então uma volta a mais. Mas não podemos dizer da obra se situe no campo da neurose,
podemos estendê-la à psicose, fazendo
ainda que se trata do “uso externo” da obra, já que essas duas voltas não um paralelo entre a função da fantasia na
neurose e a do delírio e de outras soluções
introduzem as produções de Bispo do Rosario no universo da arte e de seus mais singulares encontradas pelo sujeito
desdobramentos, como já defendi anteriormente. Falta algo? na psicose. Na nota 8, esclareci que tal
discussão se tece no âmbito da complexa
Bispo do Rosario nos ensina que o enlaçamento do Outro e o revi- noção de sublimação na psicanálise.
Gostaria de acrescentar agora que, no caso
ramento não são suficientes para engendrar uma obra de arte. Sua segun- de Bispo do Rosario, trabalhei a questão
da volta, que ainda é “uso interno”, inscrita na dimensão de objeto, já tem da sublimação na psicose a partir da
noção de escabelo extraída da leitura que
características que definem o “uso externo” da obra, a dimensão de obra. Lacan (1975-76/2007) faz de James Joyce
(CORPAS, 2014).
Daí seu potencial para ser incorporada ao campo da arte, independente das
24
Esta derradeira nota encerra meu texto.
voltas dadas pelo artista23. Espero não ter aborrecido demais o leitor
A volta necessária à arte, a terceira no caso dos trabalhos de Bispo do com tal estilo, que demanda tantas idas
e vindas, entradas e saídas em assuntos
Rosario, não foi feita propriamente por ele. A obra mesma, em sua potência, diferentes, mas intimamente conectados.
Sei dos riscos que corro com minhas longas
se encarregou disso, muito embora tenham sido os movimentos desse su- notas, que podem vir a comprometer uma
jeito, sobretudo aquele em direção aos homens e às coisas do mundo, o que leitura mais fluida e, com isso, até mesmo,
o sentido do texto. Mas peço paciência ao
viabilizaram todo esse processo. Complexo? Paradoxal? Sem dúvida. Bispo leitor, pois tenho um argumento relevante:
não se trata de uma escolha minha, mas
do Rosario se endereçava ao mundo por meio de um enigma. daquilo que a vida e a obra de Bispo do
Rosario exigem daqueles que por elas se
Mas tudo isso pode ser pensado à luz do que argumenta Lacan (1957- aventuram. Abordei, em outra pesquisa
58/1998): o “estado do sujeito (neurose ou psicose) depende do que se de- (CORPAS, 2019), este movimento que o
artista nos impõe sob a égide da expressão
senrola no Outro” (p. 555). Ao que eu complemento: mas o campo do Outro gesto de leitura. Trata-se de assumir, na
própria escrita, em seu conteúdo e forma, o
diz respeito também, ainda que de maneira específica, ao universo da arte. que emana do objeto pesquisado, afetando
aquilo que se escreve, aquele que escreve
Por isso, a possibilidade de articulação e também de disjunção entre as di- e aquele que lê. Por isso o estilo deste
mensões de objeto e de obra em nosso artista. texto, que é tecido de diferentes assuntos,
acumulação de reflexões diversas, que nos
No fundo, penso que tudo se resume mesmo ao que nos diz o próprio implica e convida a voltas a mais.

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Bispo do Rosario: “é pra quem enxerga, pra quem não enxerga não dá pé”.
Afinal, estarei vendo ou sendo cega? Essa é a pergunta que me acompanha
toda vez que me entrego a um trabalho de reflexão e escrita sobre esse artis-
ta, sempre que me vejo às voltas com Bispo do Rosario24.

101
Referências
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103
Oficina de Criatividade do
Hospital Psiquiátrico São
Pedro: interlocuções entre
arte, clínica e política
Barbara E. Neubarth
Giselle S. Sanches
Larissa K. F. Neubarth

Um antes...
1
Fundou o Museu de Imagens do A imagem perturba, inquieta, insiste e resiste – mulheres andando
Inconsciente/Rio de Janeiro.
em círculos, cabelos raspados, uniformes cinzentos, olhar distante. Tal é
a lembrança de um dos pátios no antigo manicômio. Era maio de 1971. A
visita ao Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), durante o curso de Psico-
logia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS),
fixou-se como o fazem aquelas fotografias icônicas difíceis de ver, pois
mostram a vulnerabilidade e a fragilidade humanas em limites extremos.
A imagem e o desconforto subsequente perduram. Por vezes, esmaecidos,
em outros momentos, esquecidos, quando voltam, surgem dizendo de uma
impossibilidade no exercício da profissão de psicóloga.
Só em 1987, com a exposição do Museu de Imagens do Inconsciente
(MII) na Reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
que o fato – mulheres no pátio – encontra possibilidade de vazão: a potência
do trabalho artístico no cuidado com pessoas institucionalizadas em mani-
cômios parece a chave possível para dar conta daquela errância e desam-
paro. A descoberta provoca uma necessidade premente em buscar escritos,
livros, filmes sobre Nise da Silveira1 e voltar a algumas de suas referências,
como Machado de Assis, Jung, Herbert Read e Graciliano Ramos, nos
caminhos da arte e loucura, arte-educação, clínica, política, cultura. A 2
Barbara Elisabeth Neubarth (psicóloga),
Luciana Moro Machado (terapeuta
urgência em agir leva a outras tantas novidades, com muitos profícuos ocupacional), Luiza Germani de Paula
Gutierres (artista plástica) e Rosvita Ana
encontros. Bauer (enfermeira).
Sonho. E esse desafio louco, sendo partilhado, encanta algumas ide- 3
Blanca Brites (professora da UFRGS),
alistas , que, juntas, montam uma Oficina de Criatividade dentro do São
2 Edson de Sousa (professor da UFRGS),
Giselle Sanches (psicóloga), Neusa Helena
Pedro. Aos poucos, mais outros tantos utopistas-visionários3 se agregam ao Carvalho (assistente social), Tania Mara
Galli Fonseca (professora da UFRGS)
projeto, entre a Oficina e seu Acervo. Cada um do seu jeito, com suas li- e inúmeras outras pessoas citadas em
nhas e fios, os diferentes atores transformam a tessitura da rede que segue Neubarth, B. (2009).

se constituindo e multiplicando através de percursos diversos, oferecendo 4


Saúde mental: o que é, doenças,
tratamentos e direitos. Portal do Governo
um espaço público e de qualidade às pessoas com necessidades de atenção Brasileiro. Disponível em http://www.
saude.gov.br/saude-de-a-z/saude-mental
em saúde mental. Acesso em 15 jul 2019.
Buscando promover uma maior integração social, fortalecendo a au-
tonomia e o protagonismo do indivíduo adoecido psiquicamente, o atendi-
mento é complementar aos procedimentos da Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS). Tal como preconizado pelo Ministério da Saúde4, tudo inicia pelo
acolhimento, em que se identificam as necessidades do sujeito e se procura
aliviar seu sofrimento. A partir disso, a proposta de intervenção é singular
e tem, nos procedimentos artísticos, sua principal ferramenta de cuidado.

Movimentos e implicações
A Psiquiatria, instituída, inicialmente, como um conjunto de teorias
e práticas médicas que pretende regulamentar o espaço social, toma força
no Brasil no final do Império e advento da República. Enquanto na Europa

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


ela surge aparentemente como uma medicina especial que se preocupa com
as “doenças da razão”, no Brasil, deriva da medicina social e tem uma tarefa
comum a esta: sanear os centros urbanos. Ou seja, nos hospícios brasileiros,
o movimento de reafirmação do potencial normativo se caracteriza por sua
função eminentemente segregadora e de simples reclusão asilar, sendo a
exclusão um de seus mais fundamentais papéis.
Ao enclausurar o sujeito da “desrazão” – o louco, aquele que não se
adapta às novas razões do trabalho e do mundo burguês – a ordem e o pro-
gresso são favorecidos. Assim, o dito louco é internado em um lugar higie-
nizado, saudável, onde poderia recuperar-se moralmente (SCHIAVONI,
1997).
No Rio Grande do Sul, o Hospício São Pedro é inaugurado em 29 de
junho de 1884, na esteira das mesmas preocupações higienistas, associadas
105
5
Processo em que os pacientes foram à modernização das cidades. Instalado na antiga Estrada do Mato Grosso,
agrupados nas unidades de moradia
segundo sua região de procedência na hoje Avenida Bento Gonçalves, possui como referência ser ali o fim da linha
intenção de um resgate de valores culturais
esquecidos. Na eventualidade de alta
do bonde (CHEUICHE, 2004).
hospitalar, imaginavam que o processo de Sob condições precárias, o hospital chega a abrigar cinco mil pessoas,
voltar para casa seria facilitado. Exemplo:
no HPSP, pacientes oriundos da zona fato que inviabiliza um tratamento adequado. É comum, naquele período,
missioneira foram remanejados para uma
unidade de nome Missões. serem todos tratados como se sofressem de um mesmo mal. Tal prática tem
como decorrência um apagamento dos sujeitos, o que é corroborado pelas
cerca de quinhentas pessoas que, ainda no ano 2000, sequer tinham certi-
dão de nascimento, sendo identificadas como “ignorado(a) de tal” (CÔR-
TES, 2002). Como cuidar de alguém sem identificação, sem identidade?
(NEUBARTH, B., 2009).
Com o advento das drogas psicotrópicas e a introdução de técnicas
socioterápicas e psicoterápicas na década de 1950, decai, em todo o mundo,
o número de pacientes institucionalizados. No São Pedro, o processo de se-
torização5 é determinante para a desospitalização, que se dá a partir de pro-
cedimentos inovadores para a época, a saber, ambientoterapia, socioterapia,
grupos operativos, reuniões comunitárias, entre outros (NEUBARTH, B.,
2009). Apesar das grandes dificuldades na condução dessas estratégias, a
população de internados é reduzida na década de 1970 para aproximada-
mente 850 pessoas (PICCININI, 2006).
Mudanças no modelo de atenção à saúde mental estão na base da
Reforma Psiquiátrica, que se estabelece no conjunto de ações que visam à
democratização do país, que clama por liberdades individuais, dentre elas,
os direitos à cidadania do dito louco (TENÓRIO, 2001). Transformações
sociopolíticas e científicas se multiplicam no mundo ocidental e também,
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

mesmo que em um lento repique, dentro do São Pedro. Entre as medidas


propostas para o hospital a partir de 1987, está a implantação de um Centro
de Referência Humanística, um dos polos do Projeto Vida. Coordenado
pelo psiquiatra Salvador Célia, tal projeto se destina a populações carencia-
das, incluindo-se, entre estas, os pacientes psiquiátricos.
O documento elaborado na época explicita a proposta do Proje-
to Vida no São Pedro, como implantação de uma política voltada para o
bem-estar social e o resgate da cidadania (direitos civis, sociais e políticos),
concentrando esforços no sentido da efetiva ressocialização do usuário
institucionalizado, priorizando a criação de alternativas para a saída das
pessoas do interior das unidades e construção de espaços comunitários de
saúde. Além disto, prevê a inserção da comunidade do entorno – bairro
106
Partenon – a ser beneficiada com equipamentos buscava novas formas de entendimento e cuida-
sociais para realização de atividades culturais, re- dos aos indivíduos que padeciam de sofrimento
creativas, expressivas e de trabalho. Como afirma psíquico.
Célia (1994), este conjunto de ações destina-se A Oficina de Criatividade surge, pois,
ao resgate da autoestima e da cidadania, criando como um espaço de valor terapêutico, onde as
um espaço para além do espaço físico, que busca pessoas podem se expressar livremente, em um
o lúdico, a criatividade e a saúde, respeitando a clima de respeito e muito afeto. Não um lugar
cultura de cada um. onde o sujeito é mantido simplesmente ocupa-
Em 1990, existia um clima de grande efer- do, mas, como dizia Jung (1991), onde se pu-
vescência no São Pedro e o grupo que adminis- desse recuperar o gérmen criador que existe
trava o hospital durante aquele ano era originá- em cada um. Assim, conforme Nise da Silveira
rio de diferentes movimentos organizados que (1981), se as imagens tomam a alma da pessoa,
lutavam no combate à ditadura e construção do o pintar seria agir e o inconsciente se manifes-
Sistema Único de Saúde (SUS). Naquele momen- taria neste processo. Esta clínica potencializada
to, muitos sonhos e projetos por uma sociedade pela arte pode desmanchar os estereótipos das
mais justa poderiam, enfim, ser colocados em emoções que invadem o cotidiano da loucura.
prática. Ao relacionarem-se com sua produção plástica
Neste contexto de mudanças, que vai resul- ou poética, os sujeitos produzem mapas de des-
tar na promulgação da lei estadual sobre a Refor- locamentos subjetivos, que expandem suas vidas
ma Psiquiátrica (RIO GRANDE DO SUL, 1992), encolhidas e marcadas por práticas de exclusão e
é construída a Oficina de Criatividade, inspirada de apagamento.
na experiência de Nise da Silveira que ressignifi- Inicialmente voltada para os moradores
ca conceitos sobre arte, loucura e clínica. Segun- da assim chamada área asilar e alguns frequenta-
do relato de funcionários antigos, o trabalho das dores do ambulatório, em 1996, o espaço oficina

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


artes não era novidade dentro do hospital. Em passou a receber crianças e, mais tarde, adoles-
julho de 1990, quatro técnicas da área da saúde, centes e adultos, usuários da rede de saúde men-
acompanhadas por duas estagiárias de artes plás- tal do SUS. Desde logo, são abertos espaços de
ticas, garimpam um espaço amplo e iluminado diálogo e pesquisa com diferentes universidades.
para transformar a pequena oficina de artes, que A partir de 2001 até os dias atuais, foi efetuada
atendia oito pessoas por dia, em uma pretensiosa parceria com o Programa de Pós-Graduação em
Oficina de Criatividade capacitada para abrigar Psicologia Social e Institucional da UFRGS, atra-
cinquenta clientes por turno (NEUBARTH, B., vés da professora Tania Mara Galli Fonseca.
2009). Dentro do contexto da saúde mental, a
O sonho era embalado pelo movimen- Oficina de Criatividade faz parte de uma rede de
to de luta por uma sociedade sem manicômios, atenção e cuidado como um dispositivo de in-
deflagrado em nível nacional. O modelo hospi- venção e de experimentação de novos sentidos,
talocêntrico há muito estava falido, e a sociedade em que a produção artística tem um caráter de
107
7
Essas informações estão disponíveis em resistência e testemunho. Ali, sem recorrer a possíveis interpretações, as
http://www.redehumanizasus.net
práticas expressivas são pautadas em padrões nem sempre verbais e de vi-
vências daquilo que pode apresentar dificuldades de ser nomeado.
É a clínica que dá passagem a uma comunicação através do ato cria-
tivo e de uma possível interlocução com o social, tendo a potência de pro-
duzir rachaduras no instituído. Ao permitir passagem à vida, possibilita, no
seu cotidiano, a produção de novas práticas e saberes, assim como outros
ritmos e fluxos singulares. Uma práxis sensível, de acolhimento das dife-
renças, de movimentação dos corpos, de zonas de respiro, do intempestivo
e do imprevisto. Com as mudanças no paradigma da assistência em saúde
mental, os usuários estão em cena nesta oficina, espaço de diferenciação e
de expansão.
Em O Sentido-Resistência da Oficina de Criatividade em um Contexto
Manicomial, Ávila (2006) define a Oficina de Criatividade como um espaço
de heterotopia, conceito de Foucault que se refere a lugares que têm uma
função específica ligada ao espaço que sobra, um espaço de compensação e
escape dentro da estrutura manicomial. Ao longo dos anos, a Oficina atu-
aliza suas práticas, ratificando, nelas, o exercício ético, político e estético
encontrado na vida e obra de Nise da Silveira.

A potência do cotidiano
Salas com materiais diversos são campos de experimentação visual,
táctil, auditiva e sensorial. Assim, os moradores remanescentes ou aqueles
transferidos para Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), além de pes-
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

soas internadas na área hospitalar, usuários do ambulatório e grupos da


comunidade do entorno dos bairros Partenon, Lomba do Pinheiro e Agro-
nomia – podem participar da Oficina. Os frequentadores externos são indi-
cados por profissionais do ambulatório do hospital ou das Unidades Básicas
de Saúde (UBS), a partir do processo de matriciamento7.
No cotidiano da Oficina, os frequentadores são acompanhados no
sentido de desenvolverem sua capacidade expressiva através de recursos
artísticos diversos. Sua criatividade é incentivada, sendo encorajados o for-
talecimento do sujeito e o avanço nos seus relacionamentos sociais. Ao fo-
car em propostas integradas de reabilitação psicossocial, que servem como
suporte e fator de proteção, é possível evitar internações. Para que tudo isto
ocorra, muitas vezes, a atenção se estende às relações familiares, inclusive
108
estimulando a participação da rede de suporte em eventos, como festas e 8
Aqui vale recomendar o trabalho de
Herbert Read (1986), que destaca a
exposições. importância do processo espontâneo
da criação artística, em detrimento do
Neste ambiente de invenção artística e convivência, o sujeito tem produto final dos trabalhos. A partir dessa
visão, estar absorvido em um desenho ou
possibilidade de desenhar, pintar, bordar, cantar, escrever e/ou performar em outra atividade criativa pode ser uma
textos e poesias ou, simplesmente, descansar no sofá aproveitando o rádio espécie de felicidade, sendo identificada
ao desenvolvimento de uma expressão
e, eventualmente, um café. É um espaço de livre expressão8, como um ateliê estética pessoal.

de produção expressiva – uma escola de artes – tal como concebia Augusto 9


O artista Augusto Rodrigues funda, no
Rio de Janeiro, em 1948, a Escolinha de
Rodrigues, para quem, no processo de aprendizagem, professor e aluno de- Arte do Brasil.
vem estar em perplexidade, aprendendo juntos, sem imposições, castrações
ou verdades pré-estabelecidas9.
Nesses encontros se desenvolve o que Stoléru e Moralès-Huet (1989)
denominam de “psicoterapia da atenção” e “conhecimento emocional” do
outro como ser humano (empatia). É um partilhar temporário de senti-
mentos quanto à qualidade e não à quantidade, ao tipo e não ao grau. As-
sim, enquanto o sujeito trabalha, seu processo artístico é valorizado como
produção de linguagens possíveis. É quando ele se encontra “imerso num
universo de intensidades, permeado pelos valores simbólicos que o trans-
cendem e pelas forças pulsionais que o impactam” (BIRMAN, 2007, p. 296).
A psicanálise é utilizada para que se possa compreender aquele es-
paço como ponto de ancoragem (TENÓRIO, 2001), em que o sujeito tem
a possibilidade de encontrar um organizador da condição subjetiva, quer
através do seu trabalho, do espelhamento em um semelhante, da possibi-
lidade de criar. Neste sentido, o dispositivo oficina se coloca como labora-
tório de possíveis, onde o frequentador pode se experimentar e a presença

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


do acompanhante é mediadora entre matéria e sujeito, entre sujeito e seus
pares, entre o sujeito e o novo, possibilitando acolher o que o frequentador
da oficina oferece (NEUBARTH, B., 2009).
Isto se dá numa cumplicidade, muitas vezes inexplicável, mas que
requer, como premissa, que o acompanhante suponha que ao seu lado está
um sujeito, cuja diferença precisa ser reconhecida na experiência da alte-
ridade e da intersubjetividade. Nesses momentos, em relações como es-
tas, pode ocorrer de se aguçar o desejo, inquietando-o para uma possível
satisfação, que requer algo sedutor e suficientemente atraente (BIRMAN,
2007). Ocasiões em que a resposta poderá vir através de sonhos, devaneios,
desenhos, pinturas, bordados e poesias que têm a fantasia como presença
constitutiva da existência.
109
Projeto premiado na I Mostra Regional
10
Para que o sujeito se expresse através das diferentes linguagens ar-
de Práticas em Psicologia – A Técnica
Aliada à Arte: 50 Anos de História (CRPRS, tísticas, é preciso, ainda, dar-lhe um crédito – articulado à hipótese de que
2012). Equipe: Barbara E. Neubarth
(coordenação), Mara Weinreb, Neusa ele é competente para criar – e um prazo – para que possa desenvolver-se
Helena Carvalho, Ricardo Severo e Tania ao seu tempo (BERGÈS; BALBO, 2003). É isso que tem sido feito na oficina
Cappra. Apoio técnico: Maurício Zancanaro
Basler e Vitor Butkus. para que, no processo de criação, o sujeito possa voltar a fazer e se reinven-
tar cotidianamente.
Desde o início, havia a intenção em abrir espaço para a comunidade,
mas as tentativas eram tímidas. Aos poucos, no entanto, as práticas artísti-
cas como alternativa terapêutica em saúde mental têm sido decisivas para
consolidar tal abertura. As fronteiras se diluem, construindo laços entre os
de dentro e os de fora.
Foi o que aconteceu com uma proposta que, neste sentido, se mos-
trou emblemática. Ao longo do ano de 2006, oficinas de bordado reuniram
pessoas oriundas de diferentes espaços de saúde, educação e cultura com os
frequentadores-moradores do Hospital. Em encontros semanais, desenvol-
veram um enorme varal de bordados sobre pano azul a partir da técnica de
tapeçaria de recortes no projeto denominado Tapete Voa-Dor10.
Nesse trabalho coletivo, as dores da alma, essas que exigem terapêu-
ticas muito especiais, são estimuladas a voar, vencer as distâncias entre os
ditos mundos internos e externos (psíquicos e geográficos) acirradas pela
incompreensão, pelo abandono e preconceito. Cada participante borda ao
seu estilo, com suas cores e histórias de vida, e o vai e vem das linhas na
agulha perfurando o tecido convida à fala. Na bordagem do tapete, exer-
cita-se a convivência e o respeito às diferenças. Transforma-se na fantasia
para, quiçá, transformar na realidade. O tapete voa, ramificando-se em mil
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

possibilidades e direções, crescendo pelas fissuras do espaço, entrando em


outros serviços de saúde, em outras conversas, abrindo outras margens e,
também, novos centros (NEUBARTH, B., 2009).
Porém, toda essa tessitura entre o dentro e o fora da Oficina de
Criatividade só tem sido possível a partir do significativo número de
estagiários de diferentes cursos que enriquecem os laços sociais: artes visuais,
arte-terapia, dança, medicina, museologia, música, psicologia, teatro, terapia
ocupacional. A presença desses estagiários, orientadores, professores, amigos
da oficina e funcionários junto aos frequentadores inscreve a diferença entre
o apagamento e o convite à vida. A potência do afeto, do afago, do olhar, é
reafirmada a cada encontro genuíno. Uma história feita de acontecimentos,
enlaces, aproximações, afetos, risos, choros, indecisões, deslumbramentos,
110
inquietações, descobertas e dúvidas. Assim são construídos laços e nós 11
Residência Integrada em Saúde/Saúde
Mental Coletiva/ESP/HPSP/RS. O núcleo
(NEUBARTH, B., 2009). de artes funcionou entre 1999 a 2013.

Com o ingresso dos profissionais de artes participantes na Residên- 12


Estima-se que, em 2019, o acervo
contava com 300.000 documentos.
cia Integrada em Saúde11, iniciou-se o diálogo, por vezes tímido, com as
equipes de saúde das áreas hospitalares e do ambulatório. A arte começou a 13
Carina Rippel, Cristiane Vasconcellos,
Cylene Dallegrave, Fátima Ávila, Gabriela
ser escutada através de um profissional competente para potencializar este Costa e Juçara Mongeló.

núcleo de saber. Como intérprete da linguagem artística, tal profissional


aproximou-se da obra interrogando-a, acompanhando o sujeito durante
todo o processo, compreendendo e distinguindo a singularidade de cada
acontecimento, numa fenomenologia que recoloca a essência na existência
(MERLEAU-PONTY, 2004).

O acervo
Ao iniciar as atividades da oficina, havia a convicção de que os traba-
lhos produzidos seriam reunidos em um acervo, tendo como norte o Museu
de Imagens do Inconsciente no Rio de Janeiro. Reunidos com as equipes de
saúde, a intenção era discutir os casos, colaborando no tratamento dos mo-
radores. Entretanto, salvo exceções, raras vezes isto aconteceu. A produção
da oficina ficou restrita ao fazer do sujeito, o que resultou em uma infinida-
de de trabalhos que, no ano de 2000, ainda se encontravam amontoados em
precárias condições12.
A partir de 2001, a professora Tania Fonseca agenciou o primeiro
grupo organizador do acervo, na linha de pesquisa Modos de Trabalhar, Mo-

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


dos de Subjetivar. Em agosto de 2003, duas historiadoras, uma profissional
das artes plásticas, uma socióloga, uma jornalista e uma psicóloga13 iniciam
o garimpo nas obras, possibilitando um deslocamento no colecionismo da
loucura, para o reconhecimento de um dito louco enquanto subjetividade
que cria. Pouco a pouco, pinturas, desenhos, alguns bordados e peças de
argila foram identificados e armazenados, enquanto o acervo documental,
composto de livros de registros, relatórios, material de exposições (convites,
cartazes), recortes de jornais e revistas, vídeos e fotografias, foram cataloga-
dos e organizados em fichários. Nesse momento, o trabalho de catalogação
passou a contar com a assessoria da professora Blanca Brites, do Instituto de
Artes (UFRGS), que até hoje segue no acervo como especialista do campo
das artes.
111
O grupo de professores, alunos e volun- documentos), já falecidos, e Natália Leite, que
tários pesquisam com curiosidade acadêmica e segue produzindo, para além dos seus 12.000
respeito pelo material. Observando a dedicação e trabalhos.
a abrangência do que é discutido, é possível pre- As quatro coleções, escolhidas segundo
ver o quanto o coletivo qualificado é importante critérios de quantidade de trabalhos, participa-
para visibilizar a matéria bruta que ali está, como ção em exposições e qualidade estética, estão
em um grande celeiro. Segundo Fonseca (2009), catalogadas. Na ficha cadastral, individualizada
o trabalho junto ao acervo pode “sensibilizar a e numerada por obra e coleção, há espaço para
sociedade”, através de um contra-discurso em re- dimensão do suporte, linguagem utilizada, técni-
lação ao que se pensa sobre “loucura e louco”. Em ca, autor, título, observações diversas, como co-
2005, Cristiane Vasconcellos descreve o processo mentários do autor ou de quem o acompanhou
de organização do acervo fotográfico em O Acer- no processo. Além destes dados, cada obra pode
vo Fotográfico da Oficina de Criatividade Nise da ser fotografada. A foto e a ficha catalogadas e
Silveira do HPSP (VASCONCELLOS, 2005). enumeradas permitem ao pesquisador selecionar
Já a historiadora Juçara Mongeló (2006), previamente o material, o que contribui para a
em A Oficina de Criatividade e seu Acervo, refle- sua conservação.
te sobre o elevado número de trabalhos produ- Os trabalhos dos demais moradores estão
zidos e sua preservação. Segundo ela, é preciso separados por autor e, aos poucos, são cataloga-
ter claro o que se deseja da coleção. Museu ou dos. Quanto aos participantes externos, como a
acervo? O que preservar e para quem? Mongeló relação com o resultado de seus trabalhos é outra,
é sensível ao produtor do acervo. Segundo ela, diferentes são os critérios de seleção de trabalhos
para o doente mental, desprovido de pertences para exposições e acervo. Entre estes frequenta-
ou identidade, estes trabalhos podem ser os úni- dores, é comum que queiram dar seus trabalhos
cos testemunhos de uma vida. Assim, tende a se como presente ou vendê-los, conseguindo algu-
instalar um contexto onde nada é descartado, ao ma renda extra para bancar suas despesas.
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

mesmo tempo em que se questiona se é possível Assim, o objetivo da Oficina era, inicial-
preservar toda a produção de um sujeito, e se é mente, construir um acervo para acompanhar a
necessário fazê-lo para preservar sua memória. evolução de casos clínicos, objetivando a com-
Como o espaço do hospital é grande, op- preensão do processo psicótico e seu tratamen-
tou-se por guardar todo o material produzido, to a partir de imagens espontaneamente dese-
dispondo, assim, de uma completa coleção dos nhadas, pintadas ou modeladas. Se este objetivo
trabalhos dos moradores do São Pedro que fre- não foi plenamente alcançado, não significa que
quentam a oficina desde 1990. Mas, diante do o propósito de guardar todo aquele material se
expressivo volume do material, num primeiro mostrou inútil.
momento, foram separadas quatro coleções, de Em setembro de 1998, um evento marcou
Cenilda Ribeiro (3.011 documentos), Frontino a inserção do espaço Oficina de Criatividade no
Vieira (784 documentos) e Luiz Guides (5.446 circuito das artes em Porto Alegre. A exposição
112
Quatro X Quatro representou um importante enlace entre o dentro e o fora. 14
Elida Tessler, Hélio Fervenza, Romanita
Disconzi e Sandra Rey.
Nela, professores do Instituto de Artes/UFRGS14 expõem seus trabalhos no
15
Cenilda Ribeiro, Luiz Guides e Natália
São Pedro, enquanto participantes da Oficina de Criatividade15 são convida- Leite, junto com Antonio Roseno, de
Campinas/SP.
dos a expor seus trabalhos na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, do refe-
rido instituto. O trabalho produzido na oficina ganhou o reconhecimento 16
Coordenado pelos professores Edson L.
A. Sousa e Sandra Rey.
da academia, sendo o evento parte do Congresso Inconsciente e Ato Criativo:
17
Mais informações em http://www.ufrgs.
poiética e psicopatologia16. br/corpoarteclinica/
O material do Acervo tem sido utilizado em exposições de arte no 18
Em 2018, através da professora Vanessa
hospital e fora dele, fato bastante apreciado pela maioria dos frequentado- Barrozo Teixeira.

res. É quando o grupo da oficina ganha espaço na cidade de Porto Alegre,


no interior ou até em outros estados, conhecendo e se fazendo conhecer.
Sobre esta perspectiva, Ávila e Jaeger (2005) escreveram um artigo em que
discutem o dispositivo exposições fora do manicômio como pequeno gesto
agenciador na Reforma Psiquiátrica no HPSP.
A matéria bruta da Oficina produziu uma série de eventos. Dentre
eles, o simpósio Corpo, Arte e Clínica (2003), o Colóquio Internacional sobre
Colecionismo (2005), as edições dos encontros Rizomas da Loucura (2005,
2006 e 2007), a exposição e o catálogo Eu sou você (2010)17 e variados textos
e livros. Estes e outros tantos encontros foram estimulados pela professora
Tania Galli Fonseca nos seminários das quartas-feiras de manhã, onde te-
mas vinculados ao acervo dialogavam com as artes, a filosofia da diferença
e a psicologia social.
O ingresso do curso de Museologia (UFRGS)18 qualifica a estraté-
gia museológica do acervo. Esta parceria inicia na exposição ImensaMente

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


(2018), com a participação de obras de Romeu Borba e as performances
de Preta Sô. Os trabalhos e os escritos se espalham. Lugares do Delírio, ex-
posição com curadoria de Tania Rivera, que apresenta Natália Leite e Luiz
Guides, acontece no Rio de Janeiro, no Museu de Arte do Rio (MAR), em
2017, e segue para São Paulo/SP, no SESC POMPEIA, em 2018.
Natália foi à abertura de sua exposição no Rio de Janeiro. Quando
se deparou com os trabalhos expostos, a alegria daquele momento foi tra-
duzida nos muitos beijos que estalava no rosto daqueles que a cumprimen-
tavam. Nesta viagem, acompanhada pela psicóloga Giselle, experimentou
voar e conheceu a praia. Em seu retorno, contou sobre o passeio, introdu-
zindo, em meio às costumeiras figuras, o desenho de um avião que a levou
para longe, bem longe daqui. Assim como apareceu em um fugaz instante,
o avião desapareceu em um horizonte que lhe é longínquo.
113
Quem trabalha na oficina encontra diver- so, em todas as linguagens, pode se esconder um
sos sentidos em sua prática. Talvez um sentido enigma, a ser ou não decifrado.
menor, possam pensar alguns, ou uma total falta Há, também, atrás de cada desenho, pin-
de sentido, pensem outros, olhando a montanha tura, música, poesia, a força de, ao menos, um
de papéis no acervo e, por vezes, comentando: sujeito. Pensar sobre esta relação entre a obra e
que desperdício! Contudo, o olhar privilegiado o autor pode nos levar a inumeráveis discussões
de quem testemunha o processo de produção filosóficas, mas essa não é a intenção deste tex-
da obra observa o quanto de cada sujeito ali se to. Trata-se de algo muito mais prosaico, mas
materializa e se amplia. São singulares momen- cuja dimensão toca no íntimo do humano e, por
tos de criação, especialmente para quem se ar- isto mesmo, deve ser respeitosamente protegido.
risca a olhar além dos poderosos braços da Queremos falar de identificar – trabalho artísti-
pulsão de morte, como é o abraço manicomial co e autor – para responder, simplesmente, quem
(NEUBARTH, B., 2009). fez este trabalho?
O acervo, as pesquisas e as exposições Se, ao sujeito internado em um hospício,
cumprem um papel social de testemunho. Em até lhe era permitido fazer algum desenho, pintu-
2017, a Oficina de Criatividade e seu Acervo ra ou bordado, de outra parte, era comum negar-
de Imagens do Inconsciente são reconhecidos e -lhe a autoria. E os muitos papéis, desenhados,
agraciados pelo Instituto do Patrimônio Histó- escritos ou pintados, rolavam pelas enfermarias
rico e Artístico Nacional (IPHAN), com o prê- até seu completo desbotamento e abandono, sen-
mio Rodrigo Melo Franco de Andrade, a mais do tais produções uma metáfora da própria vida
importante premiação do país voltada para ações de seus autores.
de valorização, promoção e preservação do Patri- Não foi sem muita luta que pessoas como
mônio Cultural Brasileiro. Adelina Gomes, Aurora Cursino dos Santos,
Bispo do Rosario, Carlos Pertuis, Emygdio de
Barros, Fernando Diniz ou, no Rio Grande do Sul,
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

Eles têm nome e precisamos falar


Cenilda Ribeiro, Frontino Vieira, Luiz Guides,
sobre
Natália Leite, entre tantas outras em diferentes
A linguagem simbólica, carregada de manicômios do Brasil, alcançaram o reconheci-
emoção e reveladora da própria condição huma- mento a partir de sua produção artística.
na, é material que aparece nos trabalhos realiza- Ao pensar em questões como esta, desde
dos diariamente na Oficina de Criatividade. Às o início, os profissionais da oficina são movidos
vezes servindo de alívio para as muitas dores do pelo desejo de deixar fazer, tendo como princípio
mundo, expressam tristeza, revoltas, angústias, identificar cada produção, desde o risco naquele
mas também, denúncias, proposições, vitórias, pedacinho de papel até o gesto feito no chão ou
sensações de prazer ou desconforto. Atrás de na parede. Nesta nomeação, abriu-se espaço para
cada gesto, cada marca, cada pincelada, cada ver- visibilizar o que de singular acontecia. Assim, os
114
frequentadores da oficina, cada um ao seu tempo, através de sua prática, 19
Nome artístico de Solange Luciano
Gonçalves
começaram a dizer de si para não cair no esquecimento.
20
Revista Noize #83, 2018 Portais da
Cada participante constrói seu percurso particular: há aqueles que, Loucura.
como Maria Delfina dos Santos, escrevem, mesmo sem saber o alfabeto;
como Kátia Souza, converse, mesmo sem falar; pinte, como Maria Teresa,
mesmo sem movimento nas mãos; se dedique, durante toda a manhã, a
rasgar papéis, tecidos, jornais, como Rita Moraes, em um movimento que
iniciou na sua infância; a fazer círculos, como Dona Maria Iva, mesmo que
a tinta do pincel acabe e até que fure o papel; ou como Guilherme Barbosa,
que pinte tablados e desafie passes, modificando posições não apenas do
jogo de damas, mas também do tabuleiro institucional (NEUBARTH, L.,
2021).
Assim, o que se produz é uma possibilidade de autoria, um fui eu
que fiz, que Sousa (2018) defenderá como maneira de fazer furos nos es-
paços totalitários de discurso, criando chances de uma narrativa por vir,
de um mundo por vir. E os pequenos riscos, na medida das possibilidades
de cada um, podem se repetir como no movimento de um balanço, cuja
grande satisfação está no seu vai e vem ou também podem se transformar
em projetos artísticos mais audaciosos. Alguns escolhem o desenho, outros
a pintura, a escrita, o trabalho na argila ou na colagem. Outros preferem,
ainda, o vídeo, a fotografia, a performance ou uma mistura entre todas estas
linguagens. Ao desenvolver seu estilo, obra e frequentador muitas vezes se
fundem, passando a um re-conhecimento.
Tal como Preta Sô19, que se expressa através de diversas linguagens.

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


Nestas, aborda a causa das mulheres, dos negros, dos pobres e da saúde
mental. Suas Vestes Falantes, obra em processo, lembram os Parangolés de
Oiticica. Peças de roupa tornam-se manifesto: são suporte para desenhos
e escritos, e circulam por diferentes eventos do país, em variadas perfor-
mances. Quando se apresenta, afirma que as suas vestes são roupas de dor-
mir, porque antigamente as pessoas internadas só comiam e dormiam. Em
2018, junto ao fotógrafo Martino Piccinini, tendo o prédio do São Pedro
como fundo, produz o ensaio fotográfico Portais da Loucura, para a revista
NoiZe20.
Já Frontino Vieira pintava abstratos, em delicadas pinceladas com
guache, que se assemelham a ideogramas da escrita japonesa. Possui sete-
centos e cinquenta trabalhos catalogados, sendo produzidos em torno de
dez por manhã. As séries de imagens eram o resultado de seu processo de
115
21
Música de Gildo de Freitas. experimentação, através das linhas, das camadas de tinta e das cores, até que
lograsse alcançar uma síntese, integrando harmoniosamente os elementos.
Ao apreciar seus trabalhos, é possível encontrar similitudes com aspectos
definidos pelos suprematistas, que criavam, através da sensibilidade e da
liberdade, uma arte livre das tecnicidades e que se coloca no abstracionismo
moderno. Este emparelhamento entre um sujeito que vive recluso em uma
instituição psiquiátrica, sem acesso aos meios de comunicação, e um grupo
de artistas vinculados às vanguardas russas do começo do século XX é pos-
sível quando se pensa em uma abordagem ao estilo da história da arte de
Aby Warburg, em um anacronismo positivo em que se percebem conexões
entre vários tempos históricos (DIDI-HUBERMANN, 2013).
Natália Leite, institucionalizada ainda mocinha, em seus primeiros
anos de manicômio, foi desenhada por um reconhecido gravurista gaúcho.
Edgar Koetz esteve internado no São Pedro por conta de alcoolismo, exa-
cerbado pelos atos arbitrários do regime militar de 64. Neste período, dedi-
ca-se a retratar pacientes, o que resulta na série Alienados, que se encontra
no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS). A história do encontro
entre Natália e Koetz originou o texto Alienados e Inacabados, fora de tempo
invisíveis nos espaços (NEUBARTH, B., 2004) e foi tema de Alienados, epi-
sódio da série Histórias Extraordinárias, produzido pela RBS em 2008, com
roteiro de Grace Luzzi e direção de Marta Biavaschi. Ao longo de mais de
meio século, Natália desenha, modela e borda. São casas, árvores, porcos,
bois, galinhas, papagaios, às vezes, pessoas, carroças, igrejas. Figuras que
podem remeter à sua origem missioneira, como seu cantarolar da canção
Sistema dos Pagos (1965)21. Sua participação na Oficina costuma ser diária,
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

salvo em dias de muita chuva, quando acaba permanecendo na unidade em


que mora. A esses momentos, ela comenta: “dói de desinteresse”.
Para muitos dos frequentadores, o que parece importar é o tempo
dedicado ao fazer. Giovane produz colagens, complexas formas geométri-
cas que lembram mandalas ou os azulejos de Alhambra. Ao finalizar seus
trabalhos, faz questão de que sejam cuidadosamente guardados. De tempos
em tempos, solicita uma visita ao acervo para verificar se continuam ali e se
há perspectiva de uma próxima exposição.
Também há aqueles para quem o trabalho de criação passa a ser um
trabalho de produção artesanal. São os frequentadores que sentem neces-
sidade de vender seu trabalho. Nestes casos, e a partir do interesse do fre-
quentador, busca-se quem o acompanhe no fazer, para que o trabalho possa
116
ter valor no mercado e que não seja adquirido 2016, o documentário Epidemia de Cores, um
por caridade. É quando se cola, junto a ele, um poema visual de muitas narrativas.
especialista na área, estagiário ou profissional das
artes visuais ou artesão.
… agora
Desenhos e pinturas podem transbordar,
sem limites, conteúdos reprimidos e uma vida Ao conhecer o trabalho de Nise da Silvei-
de violência e desencontros. Marlene/Madalena ra, ficamos fascinadas por sua interlocução com
encontra no bordar um mergulho apaziguador. a mitologia, a leitura das séries de imagens e pelo
Risca sobre tecidos de algodão, tecido que, ao se- uso das práticas artísticas no tratamento de seus
gurar a linha e a agulha, também lhe segura. Nes- clientes. Tudo isto serviu de base para a proposta
tes momentos de absorção pelo ato de bordar, da Oficina de Criatividade. Passados trinta anos,
flores de muitas cores brotam no tecido. É quan- olhando para trás, observamos o que foi aberto
do seu trabalho se torna mais valorizado e Marle- com aquela chave. Algumas questões se colocam.
ne pode vendê-lo no valor que julgar adequado. Primeiro, é preciso dizer de uma eterna gratidão
Os pequenos acontecimentos no suceder pela maestria de Nise. Depois, do quanto sua
dos dias, a partir da aceitação da diversidade, postura ética, política e clínica tem sido destaca-
foram dando passagem para a força do imaginá- da na formação dos nossos estagiários, residentes
rio, o que quer que esse termo signifique. Assim, e pesquisadores. O trabalho de Nise é um norte.
surgiram os aviões do Ernesto, os relógios sem Contudo, por aqui, em um Rio Grande em que se
ponteiros do sr. Luiz Guides, as bolsas da Maria planta, vemos, agora, que a postura no trabalho
da Glória, os homens de barba do Romeu, os ves- entre a arte e a loucura tem sido tal como a de
tidos costurados e bordados pela Armanda Na- um jardineiro.
gel, os desenhos-escritura da Cenilda Ribeiro, os Colocando-nos ao lado dos frequentado-
escritos da Marina e de muitos outros. res da oficina, procuramos dar espaço para que

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


As mais diferentes produções demons- o germe criador, mediante calor adequado, seiva
tram a importância do “lugar oficina” na vida da- suficiente e muito cuidado, possa brotar. E muito
queles que ali estão pela força de seu desejo. Suas nos alegra quando brotos se fazem flores e frutos.
marcas, os avisos da tristeza ou da raiva, o ruído Ao disponibilizar um ambiente de vida e saú-
de seus passos, muitas vezes reconhecidos antes de para que, em alguma medida, se desenvolva
mesmo que se possa enxergá-los, estão lá como a potência criadora, trabalhamos no sentido de
gestos de resistência, reservatórios de singulari- construir espaços de re-conhecimento. Assim, ao
dades e multiplicidades. Apesar das dificuldades, fazer um desenho, seja para guardar, mostrar ou
há uma energia, dada pela força pulsante da cria- oferecer, estes sujeitos se inscrevem na história
ção que, no “lugar oficina”, tem promovido fe- para além de um número de registro de prontu-
cundos encontros. Assim sucedeu, por exemplo, ário. Cabe-nos, em tudo isto, o lugar de testemu-
com a participação do então estudante de Antro- nhar a força de uma vida, que ainda é capaz de se
pologia, Mário Eugênio Saretta, que lançou, em fazer, mesmo entre escombros. Ao preservar seus
117
trabalhos no Acervo de Imagens do Inconscien-
te, assumimos uma condição de fiel, o guardião
dos tesouros.
Para melhor dar conta deste patrimônio,
agora em 2021, inicia-se o processo de instaura-
ção do Museu Oficina de Criatividade do Hospi-
tal Psiquiátrico São Pedro (MOC-HPSP). Como
forma de valorizar as experiências, memórias e
identidades dos frequentadores da oficina, se
busca alçar esses documentos como um conjun-
to museológico.
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
118
Referências

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Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


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História das Ciências em Revista, n. 20, 133-139, 2005.
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
120
O Acervo da Oficina de
Criatividade do Hospital
Psiquiátrico São Pedro de
Porto Alegre/RS: notas de
uma trajetória de pesquisa
Erica Franceschini
Tania Mara Galli Fonseca

Participar desta coletânea implica reconhecer a existência de laços


de solidariedade entre instituições, seus membros e pesquisadores. Tal fato
permite revelar o presente livro como efeito da emergência de um arquivo
de testemunhos referentes a anseios e desafios compartilhados diante do
radical e profundo tema da relação entre loucura e arte. Trata-se, pois, de
registrar algumas notas de uma longa trajetória de pesquisa dedicada não
somente a problematizar questões relacionadas à loucura e ao problema da
expressão, como também de colocar em análise a história de modos de tra-
tar e cuidar da loucura e dos loucos, abrindo fissuras para a emergência de
outras visibilidades e dizibilidades que possam compor uma história que
acaba por ser contada e desejada a contrapelo. Não se trata de romantizar
a loucura e seus efeitos disruptores, muito menos de tomar seus sintomas
como material para uma posterior análise. Referimo-nos à necessidade de
circunscrevê-la como expressão da história mundial da infâmia, uma vez
que encontramos, disseminado por inúmeras culturas, locais e épocas, o
peso dos golpes da infâmia social que abateu, e ainda abate, tantos homens
e tantas mulheres qualificados como loucos. Desde já, queremos pontuar
o uso que fizemos do termo “loucura”, considerando que sua ênfase está,
nesta escrita, alinhada com o nosso desejo de produzir novos sentidos e
pensamentos a esta “experiência-limite”, tal gestos, tons e expressões, sendo incessantemente
como Michel Foucault (2001) a nomeia, no que colocada sob o signo do transtorno e do extra-
tange à experiência que “arranca o sujeito de si- vio. Tal envelopamento vem a se constituir como
mesmo” (p. 862). Na relação com a arte, cremos uma barreira definitiva e um ponto de vista para
que a loucura possa tomar outra posição na cons- a constituição de modos de olhar, nomear e con-
tituição de sua própria história, arrancar-se do já viver com esta espécie estranha da qual se duvida
conhecido e quebrar paradigmas cumpliciados que possa receber as benesses da acolhida social.
com classificações reducionistas, para ampliar o O estranho homem louco torna-se ele próprio a
olhar e engajar este olhar da diferença no mundo. figura de nosso próprio estranhamento, permi-
Quando reconhecemos a força perfor- tindo-nos apontar para o conceito freudiano de
mativa dos diagnósticos patologizantes sobre os estranho-familiar. Pelo louco visualizamos forças
corpos como golpes, queremos assinalar a sua selvagens que também nos habitam enquanto su-
potência na constituição da realidade, a sua força jeitos não diagnosticados, reconhecemos fissuras
modelizadora nos âmbitos subjetivo e coletivo, na fina porcelana da superfície de nossos corpos,
levando o próprio sujeito golpeado a crer naqui- por onde vertem, secreta e silenciosamente, o ex-
lo que o exclui e inferioriza. Destacamos, assim, cesso e a hybris que os processos de socialização
a força do preconceito em sua radical face, por e de civilização não conseguem esgotar e fazer
se encontrar, desta vez, também interiorizado e desaparecer. Operando como um não-eu, como
incorporado como elemento sobrecodificante da uma diferença incontornável, o louco abriga po-
última intimidade do sujeito que funciona como tenciais de uma linguagem que é concretizada
um terminal dos modos de subjetivação. Em por meio de signos muitas vezes enlouquecidos.
nossa perspectiva, a desrazão passa a ser situada Fala outra língua para a qual não temos escuta.
como potência de criação e de diferença, apon- Mostra-se indócil e indiferente ao nosso gosto
tando para modos de ser que não podem vir a e, muitas vezes, não demonstra uma conduta
ser normalizados em relação ao modelo moral de conciliatória com a imposição da ordem social e
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

homem apregoado pela cultura. Pela desrazão, o coletiva. Sua condição de estranho leva-o à de ex-
louco existe como a diferença radical, sendo esta cluído social, restando reconhecer que se refere a
considerada como parte constitutiva de sua natu- sujeitos que não puderam se colocar como objeto
reza singular. Consideramos que não lhe cabem do sonho do outro, ou seja, podem dizer se o pu-
tentativas de reparos que possuam a potência dessem, “Ninguém me sonhou”, restando-lhes o
ilusória de torná-los “semelhantes” ao homem lugar de problema insolúvel e de incômodo.
médio comum. Por outro lado, a loucura não se deixa qua-
Em sua condição de simulacro, os infames lificar enquanto artigo regular, nem do sonho e
loucos carregam, em seus corpos e mentes, po- nem do capital, o que impinge certo mal-estar a
tenciais do impensado sobre o modelo de homem uma sociedade que cobiça a homogeneidade e
erigido pelos padrões da moralidade tradicional. que se enfeita com grandes outdoors para apre-
Uma espécie de não-homem se abriga em seus sentar sua mercadoria. A loucura não se vende,
122
não é passível de marketing e não se encontra nas os binarismos modernos. Ao denunciar o com-
vitrines; muito menos, quer-se minimalista. Ela é portamento de apego do homem ao seu corpo, a
o caos, o vidro estilhaçado, a abertura clandesti- loucura libera um incorpóreo: de potência cria-
na para o outro lado, a terceira margem, sem dei- dora para uns, terrorífico para outros, é somente
xar que se estabeleça uma língua própria ou uma no encontro com estas forças que o sujeito pode
tendência. Sem nomes próprios, ela reinventa a responder ao estímulo que se aproxima. Outros-
linguagem, assim como, reinventa o sonho: já sim, se provocamos este pensamento, isto não
não é possível que o outro sonhe pelo louco, uma significa que intentamos suscitar julgamentos do
vez que este não quer ser compreendido como o que seria normal ou patológico. Se provocamos
outro da história. Ao problematizar a noção do o sujeito a questionar sua própria razão é porque
“outro”, resgatamos o conceito sugerido por Aní- queremos dissolver as fronteiras tanto extensivas
bal Quijano (1999) de “colonialidade do poder”, quanto intensivas entre razão e desrazão, possibi-
onde esta colonialidade legitima um imaginário litando que se diga, acerca de qualquer produção
que estabelece diferenças entre colonizador e co- artística, que ela é também um pouco expressão
lonizado e, à medida que o colonizado aparece da loucura. Pela arte, confiamos, o sujeito des-
como o “outro da razão”, se justificaria o exercício vela um modo de existir, bem como, revela sua
de um poder disciplinar por parte do coloniza- desobediência ao cânone – que, em geral, possui
dor. Logo, o louco não é o outro do sonho, mas um funil muito estreito, pelo qual passam poucas
o próprio sonâmbulo que subverte tanto o sono obras, provenientes de um circuito cultural espe-
como a vigília e encobre com sua neblina inter- cífico. Como nos indica a história, o que resta e
rogativa qualquer razão dominante. Em outras se relega ao lixo é a produção de determinados
palavras, é pela suposição de “poder estar louco” sujeitos sociais marcados pela exclusão e pela di-
que se instaura uma espécie de perigo à repre- mensão do “outro”, tais como mulheres, negros
sentação e à normatividade, um perigo ao qual e negras, pobres e periféricos, sujeitos da loucu-

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


estamos todos expostos. ra etc. É nesta perspectiva que nossas pesquisas
“Eu sou você”, escreveu Paulo Josué em apostam na arte como um condutor/intercessor
uma de suas pinturas. Paulo, um dos artistas que para a constituição de uma nova e possível socie-
integram o Acervo da Oficina de Criatividade dade – a vida no socius – sendo que, pelo fazer
do Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), pa- artístico, o louco experimenta e exerce o prota-
rece não titubear para transbordar os limites do gonismo, registra sua assinatura, deixa sua marca
sujeito e colocar em questão o próprio ser que, do/no mundo. Em suma, eleva-se como sujeito
duvidando de si, precisa olhar-se, mais uma vez. de direitos e de voz.
“Eu sou você” retira o homem médio da certeza Imerso no problema acerca da loucura, al-
de seu lugar racional, reposicionando-o em uma gumas vezes, alguém acaba questionando o mo-
paisagem ainda desconhecida – não aquela dita tivo pelo qual nosso grupo de pesquisa Corpo,
irracional, porque não quer seu oposto, mas, em Arte e Clínica insiste em atuar junto à oficina
uma nova e inédita composição que extrapola terapêutica que funciona dentro de um Hospital
123
1
O conceito de Fora é utilizado por Michel Psiquiátrico, inquirindo se, por estarmos ali, não acabamos nos posicio-
Foucault que o forja de Maurice Blanchot.
O autor aponta para o Fora da literatura, nando pela manutenção da exclusão do louco da sociedade. Melhor dizen-
onde é possível pensar a literatura estando
fora dela, o que não é um espaço exterior do, pela manutenção do louco no manicômio. De imediato, respondemos
ao mundo, mas é onde o autor já não pode
se dizer “eu”.
que não. Nossa ânsia em permanecer neste espaço, concerne à busca em
transformá-lo e produzir movimentos de saúde que, de dentro para fora,
possam efetivar brechas à invenção e à ressignificação da própria loucura
na tradição científica e social de nosso país. É justamente por este tensiona-
mento que perseveramos no uso do termo “loucura”, ao invés de transtor-
no mental, por exemplo. Por entendermos que não basta alterar a palavra
(que ainda hoje é amplamente utilizada pelo senso comum), é preciso um
grande esforço para humanizar o que, por muito tempo, ficou subjugado à
Igreja que demonizava os corpos loucos e, posteriormente, à Medicina que
instaurou o estatuto de doença e deu lugar ao louco como doente. Conse-
quentemente, e não podemos esquecer, a arquitetura manicomial não se
restringiu ao espaço físico, mas, se perpetuou na forma de “manicômios
mentais”, como explicita o filósofo Peter Pál Pelbart (1990), alertando-nos
sobre a importância de verificar que práticas propagamos atualmente no
cuidado em saúde mental e quais clausuras subjetivas nos habitam.
Neste sentido, qual seria a contribuição da arte no campo da loucura
e, mais especificamente, no processo de desinstitucionalização da loucura?
Se a arte é considerada uma ferramenta que potencializa a capacidade de
imaginar, então, ela possibilita que o sujeito possa imaginar-se para além
daquilo que ele acredita ser. Ou seja, como recurso de expressão, a arte pro-
voca a loucura a reinventar-se e o louco a engendrar uma nova estética para
sua existência. Nisto, por conseguinte, não reside nenhuma novidade, me-
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

diante a imensidão de pesquisas que, ao longo dos anos, abordaram o tema:


o que desejamos, todavia, é ampliar a possibilidade de crítica às construções
imagéticas da loucura, imbuindo um salto em direção à desnaturalização
da arte como correspondente de um fazer enlouquecido. Aqui, ademais,
propomos um esgarçamento da questão que apresentamos anteriormente
quando entendemos que, pela produção artística do louco, é a arte mesma
que pode vir a ser desmistificada/problematizada. Logo, a loucura devolve
o olhar para pensar o que pode a arte e, assim, esta mesma arte busca cons-
tituir-se na relação com seu Fora1, confrontando as amarras do que tende a
se tornar uma verdade no território das interpretações psicológicas e/ou das
classificações taxonômicas. Este entendimento leva-nos a concordar com
Coelho (2002), quando afirma: “percebe-se hoje nitidamente que a loucura
124
nunca poderá enunciar a verdade da arte, assim ruptura de seu silenciamento, enquanto possibi-
como nunca a arte terá como enunciar a verdade lidade de dizer, apesar das estruturas de poder.
da loucura” (p. 161). Em outras palavras, pode- Quando dizemos, por conseguinte, que as
mos dizer que a arte não revela a loucura na mes- obras de “artistas-loucos” podem ser qualificadas
ma medida que a loucura não revela uma obra como arte bruta, não queremos – repetidamen-
de arte. te e como em muitas ocasiões fez a história da
Logicamente, do campo que provimos, en- arte – tentar enquadrar sua produção em um
quanto pesquisadores da Psicologia Social e Ins- sistema particular. Não obstante, podemos infe-
titucional, não temos condições e nem se esboça rir que cada obra produzida no seio da loucura
como nossa intenção olhar para determinada constitui seu próprio sistema, expresso, aliás,
obra e dizer “isto é arte” ou “isto não é”. Esculpi- como um contrassistema convertido à contesta-
mos, outrossim, um olhar à obra, a partir daqui- ção social. Frayze-Pereira (1999) é quem recupe-
lo que ela nos devolve de sua experiência mais ra este conceito de arte bruta do pintor francês
profunda, conforme já apontamos, desta possibi- Jean Dubuffet que, nos anos 40, percebeu que as
lidade de não-ser, tanto da loucura como de sua produções marginais feitas por sujeitos sem for-
expressão. Neste ponto, encontramo-nos em ou- mação artística e que não circulavam por espa-
tro regime de visibilidade, no qual não queremos ços destinados a intelectuais e acadêmicos (por
interpretar a obra pelo que ela representa – tal exemplo, crianças, loucos ou criminosos), seriam
como uma árvore percebida como a represen- descomprometidas com estilos, formas e merca-
tação materna –, mas contemplá-la naquilo que dos. Portanto, estas obras carregariam elementos
ela ainda não manifesta pela imediaticidade do de espontaneidade e de imaginação, fugindo de
olhar. Conquanto, uma imagem não teria um condicionamentos culturais, bem como, liber-
correspondente único, bem como, não haveria tando-se de compromissos profissionais que se
uma causa aguardando seu efeito. Aqui, os efei- baseariam na relação entre o artista que produzia

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


tos poderiam se multiplicar, já que a imagem e o cliente que encomendava. O que seria margi-
multiplica seus sentidos no encontro com o seu nal nestas obras, destarte, não se refere às cate-
espectador que, por sua vez, passa a ser incluído gorias em que elas poderiam ser esquadrinhadas
como integrante/artista desta mesma obra, quan- no campo da arte, senão, do lugar de origem da
do produz uma nova linha imagética que incide produção plástica (THOMAZONI; FONSECA,
em sua leitura. É nesta dimensão que a loucura 2011), tais como as prisões e os manicômios.
pode assustar, já que ela sempre está aliançada à A fim de especificar um pouco mais do
gênese de um corpo desconhecido, como novas que consiste a arte bruta, trazemos a definição de
imagens que invadem a sala de estar sem pedi- Michel Thévoz, conservador da Collection d’Art
rem licença para se apresentar. Como quadros Brut, desde sua fundação em 1975 até 2001. Para
que não encomendamos, sua arte é bruta e im- ele, arte bruta “é uma criação impulsiva, muitas
passível de ser atribuída qualquer valor monetá- vezes, circunscrita ao tempo, ou esporádica, que
rio, posto que sua valoração está na expressão, na não obedece a nenhuma demanda, que resiste a
125
toda solicitação de comunicação, que talvez en- À margem do mundo e da arte, a loucu-
contre mesmo sua força opondo-se aos outros” ra não pode limitar-se a figurar somente como
(THÉVOZ, 1990, p. 35). Seria nesta dimensão, problemática de pesquisa das ciências sociais
pois, que a arte produzida pela loucura vem ir- e da saúde ou, simplesmente, alinhavando-se
romper o social e redimensionar seus atores em a uma antipsiquiatria – sendo que este último
uma nova história que é a história de um povo movimento é proposto como uma negação total
que resiste e sobrevive no Fora, já que diverge do que a psiquiatria entendia, na década de 60,
dos interesses do Estado. Assim sendo, sua nar- em relação à doença mental. Estamira, de fato, é
rativa acolhe também a desigualdade, a opressão, diagnosticada com esquizofrenia e negligenciar
a intolerância e a exclusão que fizeram e fazem este estado mental seria também negligenciar um
ainda sofrer sujeitos acometidos pela loucura. cuidado integral à sua condição. Ao contrário,
Lembrando o que Franco Basaglia (precursor da não queremos limitar, mas ampliar as discussões
Reforma Psiquiátrica na Itália) já dizia no ano de pertinentes a este assunto, de modo a criar alian-
1979: tudo que não é produtivo ao capital ganha ças com outras ciências, incluindo aquelas que
o estigma de doente. Como uma obra (im)pro- extrapolam o domínio acadêmico e se apresen-
dutiva e, em suma, uma obra de oposição, a arte tam como experiências de vida. Neste momento,
bruta nos leva para as margens, onde encontra- pretendemos ocupar um lugar de testemunhas
mo-nos com os ditos marginais e/ou os infames dos arquivos produzidos por estas “vozes meno-
da história. Não há como não lembrar, neste ínte- res”, dando espaço para que elas mesmas se con-
rim, de Estamira, uma mulher que vivia no lixão tem – levando-se em consideração que, mesmo
de Gramacho, marcada pela pobreza, negritude na condição de “menores”, possuem voz – permi-
e loucura, e que nos é apresentada através do tindo, assim, à expressão entranhar-se no texto
documentário homônimo – Estamira – dirigido ou, tal como Estamira, de poder narrar-se com/
pelo brasileiro Marcos Prado (2007). Neste, Esta- pelo seu próprio lixo. Ao enunciar este lugar, é
mira é a protagonista que vai narrando sua his- como se corroborássemos na defesa destas “exis-
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

tória de vida através dos percursos que realiza no tências mínimas” que passariam despercebidas,
dia a dia de seu trabalho como catadora do lixão caso não lhe déssemos um estatuto de realidade.
e das coisas que recolhe do lixo, tangenciando es- Apostamos, portanto, num gesto de instauração
tes restos para compor uma espécie de coleção destas vidas, consoante ao que o filósofo Étien-
impressa pela “experiência estética” (DEWEY, ne Souriau faz no seu livro Les Différents Modes
2010) que conecta vida e obra da narradora. Pela d’Existence (apud LAPOUJADE, 2017) quan-
palavra, ademais, Estamira afirma sua existência: do visava dar acolhida aos seres que não sabe-
“eu sou a beira do mundo, estou em todo lugar”. mos dizer com precisão se existem, postulando
Seu discurso funciona como uma denúncia às certa arte de fazer existir, uma arte de instaura-
práticas psiquiátricas que tomam o sujeito como ção. David Lapoujade, ao comentar este gesto –
objeto. Estamira quer ser sujeito, apenas, de sua de instauração – na leitura que faz de Souriau,
vida. consegue manifestar com precisão aquilo que
126
reivindicamos deste autor à nossa escrita e à nos- remos combater: a exclusão do louco(a) da so-
sa pesquisa: ciedade pela imposição dos muros manicomiais.
Reafirmarmos novamente este compromisso
Instaurar é fazer valer esse direito, promovê-lo. para com nossas pesquisas enquanto seguimos
É legitimar uma maneira de ocupar um espa- endossando movimentos de transgressão ao si-
ço-tempo. (...). A partir de então, instaurar é lêncio imposto que, no tempo presente, toma po-
como se tornar advogado dessas existências sição na gênese de uma nova história.
inacabadas, seu porta-voz, ou melhor, seu por-
ta-existência. Carregamos sua existência como
elas carregam a nossa. Compartilhamos com Insólitas coleções e o que elas nos
elas a mesma causa, contando que possamos dizem dos arquivos da loucura
ouvir a natureza das suas reivindicações, como
se exigissem ser amplificadas, aumentadas,
No ano de 2017, a 30ª Edição do Prêmio
enfim, tornadas mais reais. Ouvir essas rei- Rodrigo Melo Franco de Andrade, promovida
vindicações, ver nessas existências aquilo que pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artís-
elas têm de inacabado, é forçosamente tomar o tico Nacional (IPHAN), apontou o trabalho que
partido delas. É o que significa entrar no ponto vêm sendo desenvolvido na Oficina de Criativi-
de vista de uma maneira de existir, não apenas dade do Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP)
para ver por onde ela vê, mas para fazê-la exis- de Porto Alegre (RS), premiando-o na Categoria
tir mais, aumentar suas dimensões ou fazê-la Iniciativas de Excelência em Técnicas de Preser-
existir de uma outra maneira (p. 90). vação do Patrimônio Cultural. Tal prêmio veio
como um modo de reconhecimento pelos quase
É com este ímpeto de instauração, de ques- trinta anos de funcionamento deste espaço que
tionamento e produção de novas narrativas so- atua no cuidado à loucura e que insurge como
bre arte e loucura, que aceitamos o convite para um dispositivo estratégico dentro das propostas
compor este dossiê e, com alegria, apresentamos

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concernentes à Reforma Psiquiátrica. Considera-
nosso campo de pesquisa: a Oficina de Criativi- mos relevante dar ênfase a este movimento, pois,
dade do Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto será através dele que toda uma tradição de inter-
Alegre/RS. Através deste, seguiremos discutindo venções no campo da saúde mental passa a ser
as implicações da loucura e sua arte marginal na modificada, à medida que ocorre a descentrali-
contemporaneidade, bem como, para convergir zação do modelo de tratamento biomédico, para
ao tema proposto junto à solicitação desta escri- uma abordagem que articule outros recursos te-
ta, damos enfoque às coleções dos artistas-loucos rapêuticos às intervenções no campo, dentre os
que estão guardadas no acervo da oficina, como quais, as atividades artísticas tiveram grande des-
uma maneira de revolver estes arquivos, dar es- taque. Tal ampliação, outrossim, caminhou lado
paço aos modos de existência que ali incidem e a lado com a necessidade de reinvenção do social
que, aliás, podem vir a funcionar como opera- e dos atores envolvidos com este cuidado, levan-
dores de resistência em relação àquilo que que- do-se em conta que a proposta da Reforma não
127
se limitava à efetivação de mudanças na técnica coadunar um relevante esforço ao movimento
utilizada, ao passo que visava (e ainda visa) uma antimanicomial e às lutas que estavam ocorren-
transformação macropolítica, através do respeito do no contexto social-democrático da época. Sua
à dignidade humana e pela oferta de atenção in- constituição, por conseguinte, aconteceu dentro
tegral ao sujeito acometido pela loucura. do próprio hospital, no momento em que vai
No Brasil, a psiquiatra Nise da Silveira foi alocar-se na estrutura arquitetônica outrora des-
pioneira na proposição de outro modo de tratar/ tinada ao manicômio, como que procedendo a
cuidar, ao implementar no Hospital Psiquiátri- uma dobra neste ambiente. Há que se dizer que
co Pedro II do Rio de Janeiro, no ano de 1946, esta inédita e desconhecida dobra passa a ser per-
a Seção de Terapêutica Ocupacional, na qual os corrida por papéis e pincéis que evocam uma nova
internos produziam, pela pintura e pela mode- superfície imagética: da “experiência estética” da
lagem, o que Nise vai chamar de “imagens do arte que se alinha a uma arte da existência. Logo,
inconsciente” (SILVEIRA, 1992) – já que, do com a implementação da Oficina de Criatividade
ponto de vista psicológico, estas imagens dariam passa-se a acolher a expressão que, por sua vez,
forma às emoções do sujeito. Nesta perspectiva, não tinha como emergir quando o tratamento
a função do terapeuta seria a de conectar as pro- da loucura se limitava ao isolamento e à exclusão
duções que representavam o mundo interno do social, com uso desenfreado de grades, coletes de
paciente à sua realidade externa, de maneira que força e tratamentos invasivos, como a lobotomia
o terapeuta deveria fugir a qualquer pretensão e os eletrochoques – isto apenas para citar alguns
de tomar para si o lugar de crítico de arte. Por dos procedimentos profusamente utilizados –
conseguinte, no ano de 1952, é inaugurado neste que, contrariamente, funcionavam para reprimir,
mesmo hospital, o Museu de Imagens do Incons- esfacelar e silenciar qualquer expressão emitida
ciente que vai reunir uma volumosa coleção de pelos internos, em geral, pessoas pobres e negras.
materiais produzidos pelos internos, funcionan- De outra parte, a Oficina também buscava esca-
do até os dias atuais como um meio de pesquisa par de um modelo tradicional de “ensinar” a seus
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

aos estudiosos de diferentes áreas do conheci- “alunos” acerca da arte e/ou sobre técnicas artís-
mento, como Psicologia, Psiquiatria, Artes, entre ticas, à medida que defende a liberdade enquanto
outras. Ademais, para Nise da Silveira, as obras parte do processo de aprendizagem.
ali conservadas valem por sua produção expres- No seu modo de operar, a oficina tor-
siva e terapêutica, enquanto reorganizam a reali- nou-se um espaço de acolhimento (do sujeito e
dade interna e externa dos pacientes (FRAYZE- de sua infâmia), aberto à criação e propício aos
PEREIRA, 1995). encontros entre os corpos que podem experi-
Inspirando-se no modelo de trabalho de mentar-se em sua plenitude inventiva. Ademais,
Nise e no seu Museu de Imagens do Inconsciente compõe-se como um território de fusão entre as
– bem como, no impulso incutido pela Reforma dimensões internas e externas do sujeito, pois, no
Psiquiátrica –, no ano de 1990, é inaugurada a olhar proposto à obra, assim como à loucura, não
Oficina de Criatividade do HPSP, a qual buscou haveria uma separação entre o dentro e o fora,
128
entre artista e sua produção, já que esta mesma em especial, àqueles produzidos nas oficinas de
produção se confunde com os acontecimentos pintura e desenho onde, atualmente, podem-se
que teriam levado o próprio sujeito à experiência encontrar cerca de 200 mil obras que operam
de habitar as margens. Neste aspecto imagético, como uma memória histórica e social da institui-
há uma diferença entre o trabalho desenvolvido ção, bem como, uma memória da vida e obra de
por Nise da Silveira em relação ao que propõe a seus artistas. Diante disso, uma questão começa
Oficina de Criatividade hoje – não porque seja a pairar e impõe-se como uma problemática a
melhor, mas porque concerne a outra tempora- ser resolvida: o que fazer com estes arquivos que
lidade. Tal diferença funda-se na concepção de se acumulam na oficina? E, como preservar este
que uma obra produzida não representa mera- material para evitar seu apagamento pela ação do
mente um determinado estado mental, mas a tempo?
imagem mesma é produtora de novas e possíveis Alicerçado a estas questões, no ano de
realidades. Entretanto, como Nise, também re- 2001, o Projeto de Extensão intitulado Potência
cusamos a interpretação de uma imagem que se clínica das memórias da loucura, coordenado pela
reduz à mera sintomática e nos conciliamos com professora Tania Mara Galli Fonseca do Instituto
o que pensa o historiador e filósofo francês Geor- de Psicologia Social e Institucional da UFRGS,
ges Didi-Huberman (2013) acerca de uma obra apresentou-se como uma resposta a esta deman-
de arte: que toda obra carrega um sintoma, po- da, dando evidências da necessidade de se olhar
rém, um sintoma que está intimamente ligado à para o arquivo e não somente para suas imagens.
história e ao tempo – como um código visual que Olhar para o arquivo, neste sentido, pode ser
permite ser retomado, a posteriori, adquirindo traduzido como a ação de manejar, catalogar e
uma configuração de testemunho deste arquivo, armazenar estas obras: tarefas que passaram a se-
a qualquer tempo. rem exercidas por estudantes da graduação, bol-
Durante estas três décadas de existência, a sistas de Iniciação Científica, com a supervisão e

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Oficina de Criatividade atendeu um grande nú- apoio de profissionais da Psicologia e das Artes
mero de frequentadores que, até os dias atuais, Visuais – esta última fora representada pela pro-
constituem grupos bastante heterogêneos, nos fessora do Instituto de Artes da UFRGS, Blanca
quais participam usuários-moradores do HPSP, Brites. Nesta articulação, entre uma área e outra,
usuários ambulatoriais encaminhados de outros por conseguinte, foi possível se pensar na cria-
serviços, estudantes de diferentes áreas da gradu- ção de um Acervo, análogo ao que Nise criou no
ação e pós-graduação, profissionais multidisci- Hospital Psiquiátrico Pedro II do Rio de Janei-
plinares e eventuais visitantes. Deste alargamen- ro – o Museu de Imagens do Inconsciente. Por
to do espaço e da profusão de suas práticas pelas sua vez, criar este acervo de imagens implicava
atividades de pintura, desenho, modelagem, bor- em armazenar os trabalhos produzidos na Ofi-
dado e escrita, cada vez mais obras foram sen- cina de Criatividade, na forma de coleções: cada
do produzidas, gerando, como consequência, artista-louco teria sua coleção de obras guarda-
um amontoado de trabalhos. Damos ênfase, das como um arquivo, envolto em papel pardo
129
e catalogado para fins de pesquisa e de localiza- memória, constituindo outra face inconclusa do
ção espacial (posto em determinada prateleira) e agora.
temporal (com inscrição do ano de sua feitura). Na mesma medida, se compreendemos,
Uma espécie de registro da passagem do louco tal como indicamos anteriormente, que estamos
por aquele espaço, mas também e, principalmen- lidando com “existências mínimas” marcadas
te, de sua passagem no mundo; um ato, por assim pela loucura, passamos a considerar o processo
dizer, de subversão e confronto, diante das tenta- de catalogação do Acervo da Oficina de Criati-
tivas de apagamento dos rastros da loucura como vidade do HPSP como um gesto necessário, que
produtora e sujeito da história. reservaria a possibilidade de instauração destas
Desta experiência, em buscar dar visibi- vidas que ainda vagam na sombra dos discursos
lidade ao patrimônio imaterial imbricado com do poder dominante. Logo, o trabalho da memó-
a construção de identidades sociais (imaterial, ria se concilia com o gesto arquivista, a fim de re-
porque não se constitui enquanto bem monetá- colher o que fora deixado para trás pela Grande
rio), surge a figura do arquivista, compreendido História – esta que continua a ser a história do
por Jacques Derrida (2001) como aquele que, na homem com o estereótipo de colonizador, escri-
sua operação de leitura, exerce a função de in- ta por ele e para seus triunfos. Em recente obra,
térprete e consignador do arquivo. Por esta defi- publicada pela “n-1 editora”, o filósofo Maxime
nição, acreditamos que a presença do arquivista Rovere (2019) reúne uma coleção de textos escri-
é essencial à existência do acervo, ao passo que, tos por mulheres filósofas e filósofos feministas,
além de atuar sobre seu arranjo constitutivo, é datados do século XVII e XVIII, com o objetivo
ele quem mantém a mobilidade do arquivo, ofer- de apresentar o que ele chama de um arqueofe-
tando memórias que se deslocam e abrem-se à minismo. Tal palavra – arqueofeminismo – pres-
possibilidade de tornarem-se outras; isto quando supõe uma narrativa dialética entre o arquivo e
se encontram com uma nova imagem ali inseri- o procedimento arqueológico, como se o pesqui-
da ou quando estas mesmas imagens são lidas a sador procedesse a uma expedição na busca por
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

partir de outro ponto de vista. Ademais, através um passado, já perdido, que retorna e irrompe
desta ação de transmutar o tempo e o espaço, os como um espaço lacunar no tempo presente. Por
estudantes que se aventuram neste projeto de ex- este salto anacrônico, sua coleção literária tem
tensão têm contribuído, não somente à preserva- a potência de modificar, no agora, toda a histó-
ção destes materiais pela prática de catalogação, ria das mulheres na filosofia, tal como uma arte
mas, na fabricação de narrativas que sejam pro- que vem instaurar estas existências femininas no
tagonizadas por estes infames que a história, por pensamento filosófico, outrora excluídas e silen-
muito tempo, relegou: “vidas ínfimas que se tor- ciadas. Além disso, conjecturamos que a força
naram cinzas nas poucas frases que as abateram” transformadora destes textos não está apenas no
(FOUCAULT, 2003, p. 204). Em síntese, falamos seu conteúdo, mas na sua estratégia de apresen-
de uma nova história da loucura pulverizada pe- tação, isto é, pelo modo como o autor monta e
las obras que se erguem como novos rastros da organiza o livro que nos é ofertado à leitura.
130
Correlata a isto, a constituição do Acer- espessura, que um Atlas é sempre a montagem
vo – como atividade referente à pesquisa, à arte da história daquilo que sobrevive, apesar de tudo
e à memória da loucura – também tangencia a – apesar do isolamento, da opressão, da exclusão,
necessidade de dispormos as imagens expressi- do silenciamento; apesar da loucura.
vas com certa intencionalidade, ofertando uma Ao tentar compreender o Atlas Mnemosy-
leitura que não separa o inteligível do sensível. ne de Aby Warburg, Didi-Huberman vai postular
No fim das contas, a técnica empreendida leva que tal produção se constitui como uma forma
à constituição de uma coleção de vidas, mais es- de conhecimento visual, concluindo que sua pre-
pecificamente, de suas sobrevivências, mediante tensão (se pudéssemos falar de um objetivo a ser
um tempo de pontas soltas que se mistura com o alcançado) seria a de preservar o inacabado na
espaço hostil da clausura. Neste ínterim, quando obra, pois, o Atlas inventa
propomos um “retorno” ao lixo que abriga a his-
tória infame da loucura, convocamos a Estamira zonas intersticiais de exploração, intervalos
que habita “todo lugar”, como uma proposição heurísticos. Ignora deliberadamente os axio-
narrativa que se coaduna à atividade de catar os mas definitivos. Corresponde a uma teoria do
conhecimento exposta ao perigo do sensível
restos e recolher toda a sorte de vestígios – perso-
e a uma estética exposta ao perigo da dispa-
nificado na figura do trapeiro criada por Walter
ridade. Por sua própria exuberância, descons-
Benjamin (1989) – que, colocados sobre a mesa,
trói os ideais de unicidade, de especificidade,
remontam à arqueologia das opressões em que se
de pureza, de conhecimento integral. Trata-se
fundam as expressões de nossas sobrevivências. de uma ferramenta, não do esgotamento lógi-
Na disposição de uma coleção imbuída pelo mé- co das possibilidades dadas, mas da abertura
todo da montagem, a qual se furta o arquivista inesgotável aos possíveis ainda não dados. Seu
(que, ora pode ser o estudante ora pode ser qual- princípio, seu motor, não é nada mais que a
quer um), o que temos, enfim, é a composição imaginação (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 15).

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de um Atlas, neste caso, que aproxima a experi-
ência da arte com a experiência da loucura. Um No projeto do Atlas warburguiano, depara-
Atlas ganha notabilidade por colocar as imagens, mo-nos com 79 painéis de fundo preto, nos quais
umas em relação com as outras: “não mais para Warburg distribuiu cerca de mil imagens fixadas
catalogá-lo ou esgotá-lo numa lista integral: é por pequenas pinças, que possibilitavam movi-
nisso que um atlas se distingue de todo catálogo mentá-las de um lugar a outro, não permitindo
e mesmo de todo arquivo supostamente integral” encerrar a narrativa da história. Cada painel, que
(DIDI-HUBERMAN, 2003, p. 14). Sua potên- se identificava com uma memória coletiva, era
cia criadora está no momento em que revela o montado com todo tipo de material iconológico,
caráter lacunar de cada imagem, colocando em desde fotografias de estátuas do período clássi-
questão sua representação enquanto desvela uma co até mesmo imagens encontradas na mídia de
nova narrativa que ainda não tinha recebido o seu tempo, dando a ver este procedimento de
gesto que a instaurou como existência. É nesta trapeiro que reconstrói a história pelos restos e
131
que salva a narrativa histórica de seu acabamen- bido pelo projeto de catalogação realizado na
to: “é assim que o atlas, sem falta, transforma a Oficina de Criatividade do HPSP – citado na
gaia ciência (gai savoir) em gaia ciência inquieta abertura deste subtítulo, quando apresentamos
(gai savoir inquiet) (DIDI-HUBERMAN, 2011, nosso campo de pesquisa – está mais atrelado a
p. 290). É assim, inclusive, que o arquivista no um procedimento de montagem que levaria à
Acervo depara-se com o inarquivável do arquivo, manutenção da mobilidade do arquivo, do que
à medida que há uma força ali que não subjaz à ao mero mecanismo de armazenamento de suas
finalização: trata-se, sempre, deste trabalho ina- imagens.
cabado de montagem e remontagem da expres- Tais imagens, aliás, impingem outra posi-
são, de recolher os vestígios de sua sobrevivência ção a ser tomada pelo arquivista a partir de um
e de dispô-los em novas relações. recuo de outra posição que costumeiramente as-
Com este pensamento fragmentário, sumimos no espaço acadêmico: a de produtores
compomos nosso Atlas pela mobilidade do do conhecimento. Nesta instância, são as cole-
Acervo. Na mitologia grega, Atlas é o titã que ções que postulam novos saberes e narrativas,
carrega o universo, aquele que tudo suporta, borrando as fronteiras entre a obra e o artista,
que possui todo o conhecimento e que, ao ga- entre o arquivo e seu testemunho. Nesta grande
nhar a forma de livro, compila e organiza tudo coleção que guardamos, desejamos preservar e
o que sabe, desde a geografia das cidades até a manter viva a luta contra esquecimento das vidas
astronomia das estrelas; manifestando-se como que se constituem no espaço mínimo, no lixo de
uma coleção que tende à preservação. De ma- Estamira, nos restos da história. Uma coleção de
neira semelhante, nosso arquivo tende a uma vidas que carrega uma nova visualidade, acor-
prática de preservação da memória da loucura dando ao seu discurso uma dimensão política,
pela arte e da desmistificação de uma arte da já que pelas vias fluidas da expressão que se co-
loucura; porém, não para insuflar a uma preser- letiviza, é o louco mesmo o narrador de si e de
vação estável desta coleção a ser guardada como sua história. Arqueosobreviventes que rebentam
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

patrimônio cultural, mas, com vistas a compor no tempo presente, cuja agulha atravessa a pele e
um exercício de preservação à capacidade in- encontra sua narrativa intramuscular. Ato de su-
ventiva deste arquivo, impedindo que ele se fe- portar: a dor e o peso da borracha que insiste no
che, simplesmente, com a imposição da fita ade- seu apagamento. Por fim, erguem-se. Como titãs,
siva que liga uma ponta a outra do papel pardo. seguram os céus em seus ombros.
Diante disso, consideramos que o Prêmio rece-
132
Referências
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Museu de Arte Osório Cesar
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

Figura 1 – Ubirajara Ferreira Braga, O mundo esquizôfrenico, 1995.


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Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
Figura 2 – Lourdes da Costa Justino, sem título, 1955. 135
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
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Figura 3 – Waldemar Lúcio Raymond, sem título, 1986.


Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
Figura 4 – Maria Aparecida Dias, Museu Dr. Osório Cesar, 1989.

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Museu de Imagens do
Inconsciente
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
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Figura 5 – Adelina Gomes, sem título, 1969.


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Figura 6 – Fernando Diniz, sem título, 1954.
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
140

Figura 7 – Raphael Domingues, sem título, 1948.


Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
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Figura 8 – Emygdio de Barros, sem título, 1948.
Museu Bispo do Rosario
Arte Contemporânea
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

Figura 9 – Arthur Bispo do Rosario, Abajur, sem data.


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Figura 10 – Arthur Bispo do Rosario, Jangada, sem data.

Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução


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Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

Figura 11 – Arthur Bispo do Rosario, Merendeira Cor-de-Rosa, sem data.


144
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
Figura 12 – Arthur Bispo do Rosario, Manto da Apresentação, sem data.

145
Museu Oficina de
Criatividade (MOC-HPSP)
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução

Figura 13 – Angelita, sem título, sem data.


146
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
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Figura 14 – Mauro Salvatti, sem título, sem data.
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
148

Figura 15 – Romeu Figueiró, sem título, sem data.


Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
149
Figura 16 – Natália Leite, sem título, sem data.
Este livro composto em Minion Pro e títulos em Philosopher,
foi produzido pela Mosaico Design Gráfico no ano de 2021.
Amanda de Fátima da Silva Nunes João Henrique Queiroz de Araújo
Sobre os Autores
Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de São Graduação em Produção Cultural (IFRJ) e Psicologia (UERJ).
João del-Rei (UFSJ), possui bacharelado em História pela Doutor em Psicologia Social (UERJ). Coordenador de Projetos
Universidade de São Paulo (USP). Integrante do Núcleo de e Pesquisas do Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea.
Estudo, Pesquisa e Intervenção em Saúde (NEPIS) e do Grupo Contato: [email protected]
Caminhos Junguianos. Contato: [email protected]
Larissa Ko Freitag Neubarth
Barbara E. Neubarth Graduada em Psicologia (UFRGS). Foi estagiária na Oficina de
Graduada em Psicologia e Artes Visuais (PUC-RS). Doutora Criatividade do HPSP (2018) e bolsista de extensão (UFRGS)
em Educação (UFRGS). Fundadora e coordenadora Oficina junto ao Acervo no projeto coordenado pela Prof. Dra. Tania
de Criatividade e Acervo/Hospital Psiquiátrico São Pedro/ Galli Fonseca (2016-2018). Contato: larissaneubarth@hotmail.
RS (1990-2019). Atual voluntária neste serviço. Contato: com
[email protected]
Michelle Louise Guimarães
Elielton Ribeiro Museóloga do Museu de Arte Osório César. Mestre e
Técnico em Museologia do Museu de Arte Osório César, formado Doutoranda em Ciência da Infor­mação pelo Instituto Brasileiro
pela ETEC Parque da Juventude. Graduando em História da Arte de Informação em Ciência e Tecnologia em convênio com a
pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Contato: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduada em
[email protected] Museologia (UFOP). Contato: [email protected]

Erica Franceschini Raquel Fernandes


Psicóloga, Mestra e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Diretora geral do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.
em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). Integrante Graduada em Medicina (UFRJ) e Cinema pela Universidade
do Grupo de Pesquisa “Políticas do Texto”, coordenado pelo Estácio de Sá. Psiquiatra com especialização em Psicanálise pela
professor Dr. Luciano Bedin da Costa. Universidade Santa Úrsula e MBA em gestão de museus pela
Contato: [email protected] Universidade Cândido Mendes. Contato: [email protected]

Eurípedes Gomes da Cruz Junior Rosa Cristina Maria de Carvalho


Graduado em Música/Composição (UFRJ). Mestre e Doutor em Professora de Artes da Secretaria Municipal de Educação de
Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST). Menção Honrosa Cajamar-SP. Doutora em História da Arte (Instituto de Filosofia
no Prêmio Capes de Tese 2016. Museólogo do Museu Nacional e Ciências Humanas – Unicamp). Mestre em Artes (Instituto
de Belas Artes (IBRAM/MinC). Trabalhou no Museu de Imagens de Artes – Unicamp). Graduada em Licenciatura em Educação
do Inconsciente durante 30 anos. Contato: euripedesjr@yahoo. Artística e Bacharel em Artes Plásticas (Instituto de Artes –
com.br Unicamp).
Contato: [email protected]
Flavia Corpas
Psicanalista e curadora de artes visuais. Pós-doutorado em Tania Mara Galli Fonseca
Ciência da Literatura (UFRJ). Doutora em Psicologia Clínica Psicóloga, Professora Titular do Instituto de Psicologia e
(PUC-Rio). Foi docente do Curso de Especialização em Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e
Acessibilidade Cultural (UFRJ). Organizadora do livro “Arthur Institucional (UFRGS). Pesquisadora CNPQ.
Bispo do Rosario: arte além da loucura”, do crítico de artes
Frederico Morais. Curadora das exposições “Walter Firmo: um Walter Melo
olhar sobre Bispo de Rosario”, “Quase Aqui” do artista Daniel Graduado em Psicologia e Residência em Psicologia Clínico-
Senise e “Reflexivos”, do artista Iran do Espírito Santo. Contato: Institucional (UERJ). Mestre em Psicologia Clínica (PUC-
[email protected] Rio). Doutor em Psicologia Social (UERJ). Pós-Doutorado
(Sorbonne). Professor da Universidade Federal de São João
Giselle Silva Sanches del-Rei (UFSJ). Docente dos Programas de Pós-Graduação em
Psicóloga do Hospital Psiquiátrico São Pedro (1997-2019). Psicologia (UFSJ e UFJF). Coordenador do Núcleo de Estudo,
Contato: [email protected] Pesquisa e Intervenção em Saúde (NEPIS/UFSJ). Coordenador
do Grupo Caminhos Junguianos. Contato: [email protected]
Neste
Neste
número:
número: AmandaAmanda
de Fátima
de Fátima
da Silva
da Nunes
Silva Nunes
Barbara
Barbara
E. Neubarth
E. Neubarth
Elielton
Elielton
Ribeiro
Ribeiro
Erica Erica
Franceschini
Franceschini
Eurípedes
Eurípedes
Gomes Gomes
da Cruz
da Cruz
JuniorJunior
FlaviaFlavia
CorpasCorpas
Giselle
Giselle
S. Sanches
S. Sanches
João Henrique
João Henrique
Queiroz
Queiroz
de Araújo
de Araújo
Larissa
Larissa
K. F. Neubarth
K. F. Neubarth
Michelle
Michelle
LouiseLouise
Guimarães
Guimarães
RaquelRaquel
Fernandes
Fernandes
Rosa Cristina
Rosa Cristina
MariaMaria
de Carvalho
de Carvalho
Tania Tania
Mara Mara
Galli Fonseca
Galli Fonseca
WalterWalter
Melo Melo

ISBN 978-65-996542-1-3
ISBN 978-65-996542-1-3

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