GUIMARÃES. M. RIBEIRO. E. Imaginario-em-Exposicao
GUIMARÃES. M. RIBEIRO. E. Imaginario-em-Exposicao
GUIMARÃES. M. RIBEIRO. E. Imaginario-em-Exposicao
nário
em
expo
sição,
manicô
mios
em
descons
trução
Walter Melo
João Henrique Queiroz de Araújo
Amanda de Fátima da Silva Nunes
(Orgs.)
Comissão editorial:
Ademir Pacelli Ferreira (UERJ)
Arley Andriolo (USP)
João Augusto Frayze-Pereira (USP)
João Leite Ferreira Neto (PUC-MG)
Marco Heleno Barreto (FAJE)
Maristela Nascimento Duarte (UFSJ)
Paulo Amarante (FIOCRUZ)
Walter Melo (UFSJ)
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-996542-1-3
21-94152 CDD-158.1
Índices para catálogo sistemático:
Organização
Walter Melo
João Henrique Queiroz de Araújo
Amanda de Fátima da Silva Nunes
59
9 A obra de Nise da Silveira e o
O Museu de Arte Osório Cesar e timbre de Asclépio: companheiro
a abertura de novos horizontes mítico, diretrizes de trabalho e
sobre a produção artística no sujeito do conhecimento
Juquery Walter Melo
Michelle Louise Guimarães
Elielton Ribeiro
72
O Museu Bispo do Rosario e a
21 transformação da Colônia Juliano
O colecionamento da arte de Moreira: a trajetória de um espaço
loucos no Hospital Psiquiátrico de arte e saúde mental
do Juquery: uma resposta da João Henrique Queiroz de Araújo
medicina psiquiátrica aos embates Raquel Fernandes
da experiência artística moderna
Rosa Cristina Maria de Carvalho
Sumário
85 134
Bispo do Rosario e os homens na Os acervos em imagens
Terra
Flavia Corpas
104
Oficina de Criatividade do
Hospital Psiquiátrico São Pedro:
interlocuções entre arte, clínica e
política
Barbara E. Neubarth
Giselle S. Sanches
Larissa K. F. Neubarth
121
O Acervo da Oficina de
Criatividade do Hospital
Psiquiátrico São Pedro de
Porto Alegre/RS: notas de uma
trajetória de pesquisa
Erica Franceschini
Tania Mara Galli Fonseca
Prefácio
Walter Melo
João Henrique Queiroz de Araújo
Amanda de Fátima da Silva Nunes
MELO, Walter. O Terapeuta como Companheiro Mítico: ensaios de psicologia analítica. Rio de
Janeiro: Espaço Artaud, 2009.
MELO, Walter; FERREIRA, Ademir Pacelli. (Orgs.). A Sabedoria que a Gente Não Sabe. Rio de
Janeiro: Espaço Artaud, 2011.
OLIVEIRA, Patrícia Fonseca; MELO, Walter; VIEIRA-SILVA, Marcos. Afetividade, liberdade e
atividade: o tripé terapêutico de Nise da Silveira no Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados.
Pesquisas e Práticas Psicossociais, 12(1), 23-35, 2017.
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
8
O Museu de Arte Osório
Cesar e a abertura de novos
horizontes sobre a produção
artística no Juquery
Michelle Louise Guimarães
Elielton Ribeiro
Introdução
Entre a arte e a saúde, o Museu de Arte Osório Cesar (MAOC), vin- 1
A lei federal n° 10.216, de 6 de abril
de 2001, dispõe sobre a proteção e
culado à Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de Franco da Rocha, os direitos das pessoas portadoras de
transtornos mentais e redireciona o
possui um acervo formado por mais de 8 mil obras que foram produzidas modelo assistencial em saúde mental.
por artistas que estiveram como internos do Complexo Hospitalar do Ju- Disponível em https://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm
query, instituição da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Acesso em 12 fev. 2021.
Criado pela lei municipal n° 1.360/2018, o MAOC passa por um pro
cesso de reconhecimento da sua importância em seu território, formado
por moradores da cidade de Franco da Rocha e demais municípios da Bacia
do Juquery. O acervo artístico da instituição psiquiátrica, que até o mo
mento pertence ao Estado de São Paulo, passará para a responsabilidade da
Prefeitura Municipal de Franco da Rocha, por meio da instituição museoló
gica nela criada. Neste sentido, dividir com o município a responsabilidade
de preservação, pesquisa e comunicação do acervo artístico criado em
um contexto de saúde mental se aproxima dos objetivos da Reforma
Psiquiátrica1, por meio da Luta Antimanicomial, ao compartilhar com os
municípios a responsabilidade pelos serviços de saúde mental, visando um
contato direto e contínuo de atenção na dimensão pública local.
Todavia, para compreender essa realidade Em 1898 foi inaugurado o Asilo dos Alie-
no presente, é preciso contextualizar o período nados do Juquery. O projeto arquitetônico, ela-
de criação do Juquery, a atuação do médico e borado por Ramos de Azevedo, foi realizado
crítico de arte Osório Cesar na instituição, seu em sintonia com as ideias do psiquiatra Franco
pensamento estético e ações que culminaram na da Rocha, primeiro diretor da instituição médi-
criação do Museu Osório Cesar, o fechamento da ca. Franco da Rocha adotou o modelo de asilo-
primeira fase do museu e o processo de reabertu- colônia como principal referência ao Juquery.
ra como Museu de Arte Osório Cesar (RIBEIRO, Esse cenário é próximo ao contexto do
2019a; 2019b). nascimento da psiquiatria moderna na Europa,
no fim do século XVIII. Nesse período eferves-
cente pelo impacto da Revolução Francesa, o mé-
O Juquery
dico francês Philippe Pinel inaugurou o campo
Segundo Pizzolato (2008), o Complexo psiquiátrico explorando o conceito de alienação
Hospitalar do Juquery foi fundado sob o viés mental nos moldes científicos da época, marco
positivista que surgiu com a proclamação da Re- para o desenvolvimento da psiquiatria. Segundo
pública em 1889. Anteriormente, os alienados, Amarante (1996), Pinel defendia a clínica psiqui-
denominação da época para os pacientes psiqui- átrica como espaço dedicado exclusivamente aos
átricos, estavam em asilos superlotados ou divi- alienados e como ideal para a investigação e clas-
diam espaço com presos “normais”. A partir de sificação de seus atos “anômalos”.
uma perspectiva que confere um caráter mais Sob essa lente, a internação nos asilos era
científico ao tratamento da doença mental, em o primeiro passo para o tratamento do indivíduo.
conjunto com uma noção higienista, não somen- Pinel afirmava que os alienados eram acometidos
te em aspecto físico, mas também em aspecto mo- pela força incontrolável das paixões e, por essa
ral, se tornou necessária a criação de um hospital razão, não conseguiam atingir a plena liberdade.
psiquiátrico distante do centro da capital paulista. Os asilos são espaços disciplinares e todas as suas
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
Após a fundação de uma série de colônias ações visam instaurar a ordem moral aos inter-
agrícolas nas cidades de Itapetininga, Guaratin- nos (AMARANTE, 1996). O Asilo dos Alienados
guetá e Sorocaba, o psiquiatra Francisco Franco do Juquery é concebido nesta lógica, incorporan-
da Rocha, o engenheiro Theodoro Sampaio e o do duas noções importantes: o asilo-colônia e a
naturalista francês Albert Löefgren fizeram uma laborterapia.
comissão, no ano de 1892, com o intuito de pro- Para o médico Franco da Rocha, era impor-
por características topográficas adequadas para tante construir o asilo em local tranquilo, rural e
a criação de uma colônia estratégica à cidade de aprazível. O espaço bucólico poderia abrandar o
São Paulo. Entre as regiões estudadas, o Juquery tormento que a alienação mental causava ao su-
se destacou, de acordo com Pizzolato (2008), por jeito, segundo os defensores deste modelo de hos-
ser uma área de fácil locomoção através das li- pital. A laborterapia, por sua vez, consiste no uso
nhas de trem. de trabalhos manuais como recurso terapêutico.
10
No decorrer da história do Juquery, foram ofe- Os médicos do hospital tinham significa-
recidas diversas oficinas de mecânica, marcena- tivo interesse no estudo da mente e, em especial,
ria, carpintaria, tipografia, saboaria, sapataria, do corpo. Da relação entre esses binômios, os ar-
dentre outras. Os produtos confeccionados pro- tistas, à sua maneira, expressaram nas obras suas
porcionaram, muitas vezes, a autossuficiência do experiências e as indagações sobre a realidade
hospital (PIZZOLATO, 2008). interna e externa aos corpos.
Salienta-se que, apesar das semelhanças
com o contexto europeu, a psiquiatria brasileira
Osório Cesar
tem características particulares. Franco da Ro-
cha, de acordo com Ribeiro (2010), corroborou Nascido na Paraíba em 17 de novembro
com a teoria da degeneração, mas, por outro de 1895, o médico Osório Thaumaturgo Cesar é
lado, apresentava interesse no aspecto social da a figura central para a preservação e promoção
saúde mental e na Psicanálise. Pacheco e Silva, das obras artísticas do Juquery e foi pioneiro nos
psiquiatra que impulsionou as perspectivas or- estudos sobre arte como método terapêutico no
ganicistas e eugenistas na psiquiatria brasileira, Brasil.
foi o segundo diretor do hospital (1923-1937). A arte esteve presente na vida de Osório
Naquele período, algumas das primeiras obras Cesar antes mesmo de sua entrada no Juquery.
artísticas foram produzidas pelos internos. E Segundo Carvalho (2016), o médico paraibano
médicos, como Osório Cesar, se aproximaram do era descendente de uma família de musicistas
trabalho de Freud para interpretar as imagens. que participaram do Club Symphonico da
Esta história é narrada por alguns artistas/ Parahyba, a primeira orquestra sinfônica de
internos em suas obras. A paisagem rural, a ar- João Pessoa. Esta relação com a música, não
quitetura do Juquery e o cotidiano das colônias somente despertou a sensibilidade artística de
são temas centrais do acervo do MAOC. Nele, Osório Cesar, como o ajudou a viver na cidade
ses artistas possuem duas características em co- fidedigna de suas vidas, sendo uma fonte de pes-
mum: foram internos do hospital psiquiátrico e quisa, dentre outras possibilidades.
produziram as obras no ambiente hospitalar. En- No século XX, o papel social dos museus
tretanto, possuem variadas experiências de vida foi amplamente debatido, de modo semelhante,
e suas expressões artísticas recorrem a estilos e em certo nível, ao papel dos hospitais psiqui-
técnicas diversificados. átricos (GUIMARÃES, 2018). As instituições
O MAOC tem o intuito de promover as museológicas muitas vezes enclausuram em suas
obras sem adjetivá-las de modo restrito, enfati- reservas técnicas a história de diversos grupos
zando a natureza multicultural do acervo, como invisibilizados, enquanto para o público, nas sa-
também, a receptividade da arte que faz com que las de exposição, apresenta-se uma pretensa his-
pessoas de contextos tão diferentes possam se tória universal que serve aos interesses dos gru-
reconhecer no outro. Acreditamos que a própria pos dominantes. O agir “extramuros” tornou-se
18
uma das principais ferramentas para colocar em
xeque a história oficial dos grandes museus, tal
como a atual Reforma Psiquiátrica e a Luta An-
timanicomial enfatizam a possibilidade de pen-
sar o cuidado além dos limites do hospital ou
além das fronteiras do próprio saber psiquiátrico
institucional.
O Museu de Arte Osório Cesar está aberto
para ser espaço de promoção de debates referen-
tes à museologia, à arte e à saúde mental.
e Tecnologia, 2018.
PIZZOLATO, Pier Paolo Bertuzzi. O Juquery: sua implantação, projeto arquitetônico e
diretrizes para uma nova intervenção. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de
São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, 2008.
RIBEIRO, Paulo Silvino. Franco da Rocha e publicação de suas idéias: uma análise do meio
social na explicação etiológica da loucura. Cadernos de História da Ciência, v. 6, n. 1, 27-55,
2010.
RIBEIRO, Elielton. O Juquery, a arte e o museu: um estudo antropológico das produções
artísticas em um hospital psiquiátrico. Encontro de História da Arte, [S. l.], n. 14, 1054-1062,
2019a.
RIBEIRO, Elielton. O processo de (re)abertura do Museu de Arte Osório Cesar: Interfaces
entre Arte, Saúde Mental e Museologia. ANAIS da III Jornada de Pesquisa em Arte. PPG IA
UNESP – 3ª Edição Internacional, 2019b.
20
O colecionamento da arte
de loucos no Hospital
Psiquiátrico do Juquery:
uma resposta da medicina
psiquiátrica aos embates da
experiência artística moderna
Rosa Cristina Maria de Carvalho
Introdução
Colecionar não é apenas reunir uma categoria, ou algumas categorias, de
objetos. Essa ação solicita uma escolha determinada por princípios que justifi-
quem a reunião. Por essa razão, este texto foi escrito com o objetivo de mostrar a
complexidade de argumentos que nortearam a organização das coleções de obras
de loucos no Hospital Psiquiátrico do Juquery no extenso período de 1911 até a
organização do Museu Osório Cesar, em 1985. No entanto, o enredo apresenta-
do está distante de ser um relato pormenorizado do processo de colecionamento
nesse hospital psiquiátrico, para ser um texto no qual foram expostas as iniciati-
vas de colecionamento e os profissionais que se destacaram como colecionadores.
O enfoque deste texto é situar a prática de colecionar como ação condizente
com a formação da sociedade moderna e salientar o embate ideológico entre
arte, saúde e doença; civilização e barbárie. Para isso, apresenta-se sucintamente
a relação entre genialidade e loucura na psiquiatria europeia, mostrando como
esse tema foi desenvolvido pelos médicos colecionadores, inclusive entre aqueles
1
A criação de grupos de estudo e de que conviveram com artistas. Em seguida, são expostos os pareceres de
congressos de psiquiatria para discutir as
coleções hospitalares era prática comum médicos do Hospital Psiquiátrico do Juquery que dialogaram com o tema
dos médicos desde o final do século XIX.
Auguste Armand Marie (1905; 1929) genialidade e loucura e se posicionaram perante a polêmica sobre o caráter
mencionou as instituições de saúde italianas
e inglesas como pioneiras dessa prática na
patológico da arte de vanguarda. E, finalmente, são abordados: o processo
Europa. de colecionamento no Juquery, destacando-se os objetivos de seleção das
2
O asilo e o tratamento da doença mental, obras; e a singularidade da coleção do médico e crítico de arte Osório Cesar.
assim como a separação da loucura
e da criminalidade, foram questões
fundamentais desse conflito, visto que
a organização do hospital psiquiátrico A apreciação das coleções hospitalares e o embate
foi uma estratégia da classe burguesa
dominante para controlar, pelo poder entre a doença e a criatividade
médico e da doença, a pobreza e a
marginalização de alguns setores sociais Em âmbito psiquiátrico, o colecionamento foi tratado inicialmente
prejudicados pelo desenvolvimento
industrial. como um método complementar de estudo da condição física e psíquica
dos pacientes. A equipe médica de clínicas e instituições de pesquisa uni-
versitárias reunia séries de documentos1, principalmente desenhos, foto-
grafias, escritos e objetos artesanais, por meio dos quais os neurologistas,
psiquiatras e anatomistas buscavam um entendimento dos sintomas, das
causas e de possíveis tratamentos para as perturbações mentais. Assim, fo-
ram organizados verdadeiros acervos hospitalares para consulta, escolha e
empréstimo de documentos aos estudiosos que demonstravam predileção
pela análise de textos e de desenhos, mas mantinham o indivíduo adoenta-
do como enfoque do estudo e atribuíam valor secundário aos documentos
coletados.
O interesse na qualidade material, formal e gráfica dos documentos
apareceu claramente no início do século XX com o surgimento do médico
colecionador: intelectual que convivia e procurava responder às inúmeras
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
XX, os artistas que se recusavam a viver segundo ciência necessários para entender a dimensão
a ordem imposta pela burguesia industrial, que simbólica e sinestésica da natureza. A busca do
tinha como princípio a competição e o lucro des- primitivo foi a alternativa encontrada pelo poeta
medido, buscavam outros modos de perceber o e pelo artista para atender à necessidade da po-
mundo nas sociedades consideradas primitivas e esia, da linguagem mítica e, assim, se diferencia-
na loucura. Eles escolheram o refúgio no exótico e rem do contexto social.
na linguagem pura, e a intuição ao invés da razão. Persistindo no objetivo de criar uma opo-
A linguagem pura almejada por esses ar- sição aos valores da classe burguesa, os artistas
tistas, que foi a base da lírica simbolista, consistiu da nova ordem desconsideravam o belo, o bom
em construir a obra de arte desvinculando seus e o saudável que essa classe representava. Conse-
elementos formais dos elos que eles estabeleciam quentemente, o profissional das artes assumiu o
24
papel de louco por entender na loucura o avesso e surrealistas, passaram a colecionar trabalhos de
da norma social estabelecida. Os artistas procu- loucos e a formar conjuntos com obras de arte
ravam a inspiração para o trabalho de arte em de diferentes culturas, incluindo máscaras e ob-
todos os meios que a sociedade científica e a tra- jetos de culto de povos africanos, ameríndios e
dicionalista julgavam doentios. Às acusações que do continente oceânico. Por vezes, esses objetos
sofriam, os artistas se defendiam e alegavam que de arte não europeia podiam compor coleções
o homem científico estava em processo de aliena- hospitalares como domínio de comparação, no
ção por se afastar da convivência com a natureza intuito de investigar a produção criativa do louco
e por priorizar a consciência lógica em detrimen- e suas semelhanças estilísticas com a arte.
to dos instintos e das sensações (GOMES, 1994). O doutor Auguste Armand Marie (1929),
Nesse contexto de conflito ideológico, a responsável por uma das maiores coleções de
loucura e a cultura primitiva foram os princípios arte de loucos da psiquiatria francesa, foi um dos
que fundamentaram a oposição entre a classe primeiros médicos a afirmar a necessidade de ve-
científica e a classe artística de vanguarda, um rificar o funcionamento da mente perturbada e o
confronto que foi recebendo novos olhares para da mente normal (por meio da identificação de
a arte e a loucura ao longo do século XX e que uma lei psicológica comum e da atuação desta lei
trouxe consequências para o colecionamento nos no psiquismo do artista e no psiquismo do pa-
domínios psiquiátrico e artístico, uma vez que o ciente), para evitar associações preconceituosas e
médico colecionador e o artista ficaram impres- descabidas entre os artistas e os loucos.
sionados com a excepcionalidade da capacidade O doutor Hans Prinzhorn, que organizou
mental demonstrada nos estados de loucura. Os a mais importante coleção de arte de loucos
médicos começaram a investigar a real dimensão no hospital psiquiátrico da universidade de
patológica dessa capacidade (que foi apontada Heidelberg, foi o maior contestador da meto
por Lombroso e por seus seguidores), pois eles dologia de Lombroso de apontar as características
cos que transmitissem uma percepção atual do Por ter sido construído cinquenta anos de-
mundo. Para atender ao anseio de mudança, as pois do Hospício de Pedro II no Rio de Janeiro e
escolas de vanguarda europeias, que no Brasil por estar localizado na cidade de São Paulo, que
ficaram conhecidas como futurismos, foram as- foi o palco para os movimentos de vanguarda em
similadas de modo a procurar, na diversidade da nosso país, o Hospital Psiquiátrico do Juquery
cultura popular, os referenciais de formação de foi visto como instituição atual por sua estrutura
uma mentalidade que priorizasse a sensibilidade hospitalar e pela formação de sua equipe médica
criativa. que se mostrava participativa na sociedade, atu-
Esse novo propósito artístico transformou ando inclusive nos assuntos culturais e, sobretu-
o ambiente intelectual em campo de batalha: de do, na relação arte e loucura, tema para o qual a
um lado, estavam os modernos ou futuristas e, equipe médica manifestava seu posicionamento
de outro, os conservadores (os defensores da arte desde o final do século XIX.
28
O doutor Francisco Franco da Rocha, responsável pela instaura- 5
A convivência do psiquiatra Franco da
Rocha com literatos é narrada por Candido
ção da Psiquiatria em São Paulo, demonstrou pouco apreço científico ao Motta Filho (1972) no livro Contagem
Regressiva: memórias de Cândido Motta
livro Degeneração de Max Nordau por constatar a confusão do autor ao Filho.
aproximar artistas de doentes mentais. Segundo Franco da Rocha, os ar- 6
A obra que ilustra a contracapa do livro
tistas (considerados degenerados superiores) eram pessoas geniais, imagi- A Expressão Artística nos Alienados é
uma gravura realizada por Antonio Paim
nativas, emotivas e impulsivas, dotadas de grande inteligência e capazes de Vieira, o mesmo artista que confeccionou
o ex-libris de Osório Cesar. Segundo
importantes atos, mas não conseguiam se adaptar ao meio social em que Pietro Maria Bardi (1978), Paim Vieira
foi um profissional independente que
viviam, porque faltavam a eles a capacidade reflexiva, analítica e a solidez contribuiu com seu desempenho criativo
da razão. Situação totalmente diferente era aquela encontrada nos hospí- para a variedade artística do modernismo
brasileiro.
cios, repletos de homens dominados por seus delírios “cuja consciência está
obscurecida e cuja vontade não luta” (FRANCO DA ROCHA, 2003, p. 170).
O parecer de Franco da Rocha explicita a visão do homem devotado
à ciência para a qual o raciocínio lógico ocupou o topo na hierarquia do
conhecimento. Em decorrência desse modo de pensar, Franco da Rocha se
aproximou da psicanálise na tentativa de encontrar respostas para os fenô-
menos mentais envolvidos no mistério da criação. Ele ficou fascinado com
a capacidade dos poetas e literatos de trazer para suas obras toda a comple-
xidade psíquica do ser humano. Mas seu interesse pela literatura não esteve
restrito à sua profissão. Franco da Rocha conviveu com poetas e escritores
e os recebeu em sua casa, junto ao hospital psiquiátrico. Ele demonstrava
um conhecimento aprofundado em literatura medieval e acompanhava os
movimentos literários de sua época, como o parnasianismo, o realismo e o
simbolismo5.
Se Franco da Rocha não estabeleceu qualquer semelhança entre o
familiar, com o avô, o pai e os tios músicos, e nâmica da vida moderna, o anseio de novidade,
mantido por ele em ações de colecionador, agen- o despertar dos instintos primitivos, visto que a
te cultural e crítico de arte. A habilidade musi- inadaptação à realidade, aos dogmas e às conven-
cal de Osório Cesar permitiu-lhe frequentar o ções era da natureza da personalidade artística.
grupo modernista e conhecer os pontos de vista Desse modo, a “anormalidade” do artista, segun-
da classe artística a respeito do debate entre arte do a interpretação de Osório Cesar (1934), era a
e ciência, no que se referiu às oposições entre o atitude dos indivíduos de espiritualidade elevada
selvagem e o civilizado, a atualidade e o passado que encontrava na imaginação uma forma sim-
histórico brasileiro. bólica de expressar os complexos subconscientes.
A formação da arte nacional foi uma ques- O louco, assim como o artista, também
tão muito cara aos artistas brasileiros no início do era um inadaptado social em razão de suas
30
perturbações espirituais. Osório Cesar (1934) atribuía ao louco a mesma 7
Segundo Osório Cesar (1929), o artista
e o louco eram portadores de uma
espiritualidade genial do artista de vanguarda7 e, por esse motivo, afirmava espiritualidade genial e, por essa razão,
ele utilizava o termo alienado segundo a
a igualdade do processo criativo nos loucos e nos artistas, uma vez que etimologia antiga (nabi em hebreu e nigrata
em sânscrito) que significa profeta.
ambos expressavam em suas obras os complexos infantis desprendidos do
subconsciente e manifestados pela linguagem simbólica, que aparecia nas 8
Osório Cesar atuou como crítico de
arte por três décadas (1933-1955) e teve
obras em composições deformadas e estilizadas. uma significativa participação na defesa
dos artistas para o desenvolvimento da
No entanto, o louco diferia do artista por causa da anormalidade or- abstração na arte. Trata-se de um período
gânica a que Cesar explicava como a existência de uma fragilidade somática no qual houve perseguições aos artistas
oponentes ao governo de Getúlio Vargas
e não espiritual. em razão de sua afinidade ideológica com
o fascismo.
Por entender o caráter profundamente psicológico da arte de van-
guarda, Osório Cesar defendeu publicamente os artistas Lasar Segall, Anita
Malfatti e Flávio de Carvalho quando esses foram insultados de degene-
rados pelos intelectuais brasileiros que não compreendiam o sentido das
estilizações e abstrações simbólicas presentes nas obras, e reforçou a impor-
tância desses artistas na história do modernismo brasileiro8.
O doutor Osório Cesar foi muito atuante na defesa da criatividade
das obras de loucos, mas ele não foi o único profissional do Hospital Psi-
quiátrico do Juquery a se manifestar sobre as comparações traçadas entre a
arte de vanguarda e a natureza da genialidade. Os médicos Paulo Fraletti e
Mário Yahn também se dedicaram ao colecionamento e ao estudo das obras
de loucos e expuseram suas considerações em artigos publicados em revis-
tas especializadas e na imprensa.
De acordo com Paulo Fraletti (1954), a linguagem simbólica era a
grande semelhança entre a obra do louco e a arte moderna. Ele explicava essa
coleções particulares
O debate sobre o valor patológico ou excepcional da arte moderna
precisa ser considerado na abordagem da prática de colecionamento no
Hospital Psiquiátrico do Juquery, uma vez que profissionais dessa institui-
ção, a começar pelo próprio diretor, se posicionaram contra a visão doen-
tia da personalidade genial e o princípio da degeneração. Nesse sentido, é
necessário esclarecer como as opiniões dos médicos sobre a genialidade, a
criação artística e a loucura determinaram a escolha das obras e as finalida-
des das coleções organizadas naquela instituição.
Embora existam poucos documentos produzidos no início do sécu-
lo XX que relatem o hábito dos psiquiatras brasileiros de reunir objetos e
escritos elaborados pelos pacientes, a tese de Sylvio Braga Aranha de Mou-
ra concedeu ao doutor Enjolras Vampré a iniciativa de colecionamento no
Hospital Psiquiátrico do Juquery (ANDRIOLO, 2004).
Os propósitos desse médico com a atividade de seleção de trabalhos
permanecem desconhecidos, mas a coleção de Vampré despertou a atenção
era constituído de modelagens em argila, em ci- 1949, com a organização de oficinas de cerâmica
mento e em massa de pão; de séries de desenhos e de gravura, e com o estabelecimento de uma
feitos em lápis grafite e lápis de cor em pequenos sede que recebeu o caráter de escola em 1956
suportes; de grupos de textos, em prosa e poesia, (FRALETTI, 1958).
escritos pelos pacientes; de fotografias de dese- As obras elaboradas na Escola Livre de Ar-
nhos gravados nos muros das alas hospitalares; tes Plásticas do Juquery continuaram a assegurar
de bonecas procedentes das oficinas artesanais; e o acervo hospitalar e as coleções dos médicos até
de instrumentos musicais construídos pelos pa- o final da década de 1970. Eram desenhos, pin-
cientes (CESAR, 1929). turas e gravuras organizados em pastas, além de
Em sua seleção, Osório Cesar preferiu os esculturas e objetos em cerâmica que estiveram
trabalhos realizados livremente pelos pacientes espalhados nas dependências hospitalares após
e escolheu poucos artesanatos das oficinas de o fechamento da escola e foram recuperados e
34
inventariados, em 1984, para formar o núcleo material do Museu Osório 11
Segundo Maria Heloisa Corrêa de
Toledo Ferraz (1998), no momento da
Cesar, fundado em dezembro de 1985 (FERRAZ, 1998)11. inauguração do Museu Osório Cesar, o
acervo estava organizado em três núcleos:
A organização de oficinas de arte possibilitou a centralização das ati- o núcleo iconográfico que possuía 2.542
vidades em local adequado, o que facilitou a formação de conjuntos e o peças separadas em coleções de obras
bidimensionais e tridimensionais; um
aprimoramento da seleção das obras. As atividades realizadas nas oficinas, conjunto documental constituído por fotos,
livros e recortes de textos jornalísticos;
sob a orientação de artistas e técnicos, proporcionaram a qualidade mate- e uma coleção de móveis e de objetos
médicos e cirúrgicos.
rial e a diversidade estilística das obras colecionadas. Diante dessas novas
características de trabalho, os doutores Paulo Fraletti e Mário Yahn se em- 12
A oficina de artes foi criada com o
objetivo de proporcionar o colecionamento
penharam em colaborar com o acervo ou a formarem coleções particulares e a pesquisa das obras, o que a diferia
das seções de laborterapia que eram
para atender a objetivos específicos de estudo12. administradas pela diretoria de cada
Ao ocupar o cargo de psiquiatra no Manicômio Judiciário, em 1948, pavilhão hospitalar e cujas atividades
ocorriam de modo independente com
Paulo Fraletti (1954) iniciou uma coleção para estudar as obras gráficas e o propósito de curar ou amenizar o
sofrimento físico e psíquico dos pacientes
plásticas de criminosos com a finalidade de identificar símbolos que indi- e prepará-los para a vida em sociedade.
cassem a presença de sistemas delirantes nos pacientes. Como resultado, A respeito das atividades ocupacionais
desenvolvidas no Hospital Psiquiátrico
constatou a manifestação de agressividade, de impulsos criminosos e de de- do Juquery no período de 1930 até 1958,
consultar Fraletti (1958).
lírios de grandeza na maioria das obras analisadas.
Fraletti (1954) reconhecia o valor do colecionamento na prática te-
rapêutica. Para ele, a obra era o resultado de uma ação que possibilitava
a orientação da energia psíquica para expressão e criação, o que propor-
cionava o bem-estar do paciente. Além disso, a atividade regular no ateliê
permitia o contato dos médicos com as obras, que eram fontes documentais
riquíssimas com as quais o médico estudava a personalidade dos pacientes
por meio da investigação das formas e suas correspondências com a ex-
pressão de ideias e afetos. Pela análise dos trabalhos artísticos, o médico
podia verificar se pacientes com o mesmo diagnóstico produziam obras de
ANDRIOLO, Arley. Traços Primitivos: histórias do outro lado da arte no século XX. 2004.
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41
A genealogia do Museu de
Imagens do Inconsciente
Eurípedes Gomes da Cruz Junior
Introdução
1
A coleção foi objeto de dois
processos de musealização. A França “é possível imaginar, filosoficamente, um museu plural,
contou também com o Musée de la
Folie, que vai de 1905 a 1946, também um museu que seja simultaneamente a representação
no interior de um asilo, mas que não
era completamente aberto à visitação
de um mundo concreto, exterior ao indivíduo, e uma
pública. presentificação do seu mundo interior”.
2
Posteriormente, a Dra. Nise
acrescentou a palavra Reabilitação
Tereza Scheiner
ao nome da Seção, transformando
sua sigla em STOR, que é a mais
conhecida.
originalmente publicado na versão pital Sainte Anne naquele ano. Nela encontra-se o artigo L’art à l’asile (Arte
francesa de 15 de outubro de 1905, ano
da inauguração do Musée de la Folie. O
no asilo) do artista Frédéric Delanglade (1946), que termina com estas pala-
Dr. Marie faleceu em 1934. O número da vras: “Eu chego à conclusão que é necessária a criação de um Museu de Arte
revista Eu Sei Tudo, encontrado no Arquivo
Pessoal da Dra. Nise, é comemorativo do patológica, aberto, tanto aos especialistas como ao público” (p. 50).
30º ano de circulação. Segundo informa
a Biblioteca Nacional, a publicação
Pouco tempo antes da fundação oficial do Museu de Imagens do In-
posicionava-se como uma revista de consciente, acontecera o I Congresso Internacional de Psiquiatria. Nessa
cunho científico, literário, artístico e
histórico, sendo um importante impresso ocasião, o Prof. Robert Volmat, organizador da exposição do evento, solici-
na formação de opinião da sociedade
brasileira em suas duas primeiras décadas.
tou a doação de obras a vários colecionadores para dar início a um museu.
Era um misto de Almanaque com Magazine Não sabemos se esse pedido foi feito ao Prof. Maurício de Medeiros, que
contendo seções como: Páginas de Arte,
Percorrendo o Mundo, Contos, Comédia, era, no evento, o responsável pela coleção de Engenho de Dentro. O fato é
Romance, A Ciência Ao Alcance de Todos,
Conhecimentos Úteis, Curiosidades,
que não há registros desse pedido ou de uma possível doação. Provavelmen-
Diversos e O Mês Que Passa, uma espécie te, ela não aconteceu, já que o Prof. Medeiros era apenas um representante
de almanaque com notícias curiosas. Nesse
mesmo número, por exemplo, uma pequena e não o verdadeiro organizador ou proprietário da coleção6.
nota credita a cientistas a informação
de que “a energia atômica não pode
Não sabemos se a Dra. Nise teve acesso aos anais do Congresso, onde
interferir na meteorologia”; numa outra está relatado esse desejo de museu da parte dos franceses. Mas em seu ar-
um químico nova-iorquino teria inventado
um “ventilador de vidro” para acrescentar quivo pessoal encontramos a separata do artigo publicado em 1952, no qual
mais sabor à água da torneira e ao leite.
Nossa suspeita desse ser um número
Bergeron e Volmat discorrem extensivamente sobre essa ideia; o livro de
comemorativo é reforçada pelo escrito no Volmat, L’art Psychopathologique, relatando as doações das obras, é de 1956.
alto da página da revista “30º Ano. N. 1 –
Junho 1946” (grifo nosso). Mas a “pista” que nos parece mais interessante – também encontra-
da por nós no arquivo pessoal da Doutora – é um artigo muito sugestivo,
cuidadosamente guardado entre seus documentos mais importantes: num
recorte da revista popular Eu Sei Tudo, versão brasileira da homônima fran-
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
começa-se hoje a adotar o hábito (...) de deixar que os doentes dos asilos e
alienados leiam, escrevam ou desenhem, segundo seus gostos. (...). O es-
pírito atento a uma tarefa agradável esquece então, às vezes, o mal que o
obseda. (...) muitas vezes esse tratamento fácil e todo bondade favorece a
cura (MARIE, 1946, p. 31).
Não é, pois, difícil hoje constituir uma antologia literária patológica ou criar
um museu devido ao lápis e ao pincel dos doentes alienados. Há dezoito
Para nós não restam dúvidas de que o espírito sensível da Dra. Nise foi to-
cado por esse texto basilar.
Há um ano eu formei com vários amigos pa- Não fica claro, no texto, se os originais
risienses uma associação para continuar es- prometidos pela Dra. Nise seriam um emprésti-
tas pesquisas e amplificá-las, sob o nome de mo ou uma doação – que não aconteceu, já que,
“Compagnie de l’Art Brut”, e eu anexo nesse em sua resposta, Dubuffet, após uma análise do
envelope uma Comunicação, definindo nossa material enviado, deixa implícito o encerramen-
instituição. to do diálogo.
Ele escreve agradecendo as fotografias que
Nós dispomos de um local em Paris, onde se
foram “longa e cuidadosamente examinadas” por
acha instalado, sob o nome de “Foyer de l’Art
ele e todos do Foyer. Sua primeira impressão é a
Brut” nosso pequeno instituto. Ele possui vá-
existência de um “ar de família” no conjunto das
rias salas, das quais três são abertas ao público.
obras, “como se todos estes trabalhos fossem exe-
Aí nós organizamos constantemente exposi-
ções (...). As outras salas são destinadas à guar- cutados sob o estímulo de um iniciador comum”
da de nossos arquivos, documentos e coleções. que os polariza. Esse iniciador, acrescenta, parece
Estas últimas possuem um número expressivo “possuir um gosto apurado e estar bastante infor-
de obras interessantes. Possuímos também um mado sobre as correntes da pintura modernista
milhar de fotografias e de obras que fotografa- naquilo que ela tem de melhor”. Os trabalhos do
mos em muitos lugares, reunidos em álbuns. Engenho de Dentro lhe pareceram “mais evoluí
Nosso objetivo é também fazer publicações, dos”, “graciosos” e “coquetes”10 que aqueles que
algumas delas já realizadas. habitualmente são encontrados nos hospitais
Um museu no asilo
Esse relato nos permite concluir que em 1952, ano da fundação do
Museu de Imagens do Inconsciente, a Dra. Nise da Silveira reunia informa-
ções e conhecimentos que contribuíram na decisão de criar um museu. Isso
foi fundamental para a preservação do acervo e para o desenvolvimento
e aprofundamento de suas pesquisas. Foi na instituição museológica, com
seus padrões de organização e metodologias, onde encontrou a estrutura
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
Este museu, mesmo com instalações modestas, muito contribuirá para faci-
litar nossos trabalhos de pesquisa (SILVEIRA, 1966, p. 43).
57
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58
A obra de Nise da Silveira
e o timbre de Asclépio:
companheiro mítico, diretrizes
de trabalho e sujeito do
conhecimento
Walter Melo
Introdução
O Museu de Imagens do Inconsciente foi inaugurado no dia 20 de 1
Nise da Silveira assumiu a coordenação
da terapêutica ocupacional em 1946. Em
maio de 1952, a partir da exuberante produção dos ateliês de desenho, pin- 1954, ocorreu a mudança na denominação
tura e modelagem da Seção de Terapêutica Ocupacional1 coordenada por do setor, que passou a se chamar Seção de
Terapêutica Ocupacional e Reabilitação
Nise da Silveira. Em 2022, essa importante instituição completa, portanto, (STOR) (SILVEIRA, 1966, 1979).
70 anos. Assim, temos um momento propício para rememorar as inúmeras 2
A Casa das Palmeiras foi fundada por
contribuições que Nise da Silveira e seus diversos colaboradores proporcio- Nise da Silveira (psiquiatra), Maria Stella
Braga (psiquiatra), Lygia Loureiro da
naram para os campos da saúde mental (SILVEIRA, 1981, 1992a; MELO, Cruz (assistente social) e Belah Paes Leme
(cenógrafa). De 1956 a 1968, funcionou no
2005a, 2009a; MELLO, 2014), da psicologia (MELO, 2001, 2009b) e das ar- primeiro andar de um casarão pertencente
ao Instituto La-Fayette, na Rua Haddock
tes (PEDROSA, 1980; MELO, 2010a, 2010b, 2011) e, também, para preparar Lobo, na Tijuca. De 1968 a 1981, teve como
novos caminhos a serem percorridos. endereço a Rua Dona Delfina, nº 39, em
casa cedida pela CADEME/MEC, também
A primeira lembrança que tenho de Nise da Silveira é de 1988, quan- na Tijuca. Em 1981, a Casa das Palmeiras
adquiriu imóvel próprio, situado à Rua
do ela recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade do Estado Sorocaba, nº 800, em Botafogo, onde ainda
está em funcionamento (SILVEIRA, 1986).
do Rio de Janeiro (UERJ). O auditório estava lotado: estudantes, profes-
sores, reitor, médicos, psicólogos, atores, poetas, clientes e integrantes das
equipes do Museu de Imagens do Inconsciente e da Casa das Palmeiras2,
frequentadores do Grupo de Estudos C.G. Jung, colaboradores e amigos da
médica. Na ocasião, foi exibido o filme Em Busca do Espaço Cotidiano, sobre
3
As quatro aulas que aconteceram na a produção de Fernando Diniz no Museu de Imagens do Inconsciente. Tra-
Casa das Palmeiras foram ministradas,
respectivamente, por Alice Marques dos ta-se da primeira parte da trilogia cinematográfica Imagens do Inconsciente,
Santos (psiquiatra), Gilza Prado (socióloga),
Mendel (professor de teatro) e Philippe dirigida por Leon Hirszman. O filme impressiona pela concepção estética
Bandeira de Mello (psicólogo).
e pelo rigor ético, articulando política, sociedade e arte (MELO, 2010b). A
4
Trata-se do sétimo documentário de cerimônia transcorreu com a entrada da médica no auditório e, além das
uma série de quinze filmes de caráter
didático elaborado pela equipe do falas das autoridades, Gilberto Gouma leu o poema Ode à Nise da Silveira e
Museu de Imagens do Inconsciente. Os
documentários foram dirigidos por Luiz Ferreira Gullar fez a entrega do título.
Carlos Mello, editados por Eurípedes Esse foi o meu primeiro dia de aula como estudante de psicologia na
Gomes da Cruz Junior, coordenados por
Gladys Schincariol, com texto e supervisão UERJ. Saí do auditório muito impressionado com tudo o que tinha visto: a
de Nise da Silveira. O documentário Paixão
e Morte de um Homem possui 20 minutos movimentação e o embevecimento das pessoas, a figura frágil e ao mesmo
e foi narrado pelo ator Cláudio Cavalcanti
(CRUZ JUNIOR, 2009).
tempo forte de Nise da Silveira, as palavras pronunciadas e, principalmen-
te, o filme. O impacto desse dia ainda reverbera e foi atualizado em diversas
ocasiões. Durante as férias de julho, comecei a estudar psicologia analítica
junto com alguns colegas de turma. E, no retorno às aulas, ao entrar por
um dos portões laterais da UERJ, vi um cartaz sépia com o rosto de Nise da
Silveira. O cartaz anunciava uma exposição da Casa das Palmeiras no Mu-
seu do Ingá, em Niterói/RJ, organizada por Marco Lucchesi. Infelizmente,
a exposição já estava encerrada, mas no cartaz havia o telefone da Casa das
Palmeiras. Liguei para a instituição com a intenção de obter algumas infor-
mações e me disseram que estavam organizando um curso para seleciona-
rem estagiários. Fui até a Casa das Palmeiras e fiz a inscrição. Mal sabia que
essa atitude seria um divisor de águas na minha vida.
O curso constava de seis encontros, sendo o primeiro e o último no
apartamento-biblioteca de Nise da Silveira e os demais na própria Casa das
Palmeiras3. No último encontro, levei o livro Imagens do Inconsciente para a
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
anfitriã fazer uma dedicatória: Para Walter, ame aquilo que você faz. Nise da
Silveira. Pouco depois, iniciei a minha colaboração na Casa das Palmeiras,
que perdurou por cerca de uma década. E, ainda hoje, a Casa das Palmeiras
permanece em mim, com seus valores de liberdade, atividade e afetividade
(MELO, 2001).
Dentre as inúmeras experiências extremamente significativas daque-
le período, destacarei dois momentos: o dia 27 de junho de 1990, no último
encontro do Grupo de Estudos C.G. Jung antes das férias de julho; e o ano
de 1992, quando o Museu de Imagens do Inconsciente completava 40 anos.
Na primeira situação, Nise da Silveira convidou os estagiários da
Casa das Palmeiras para o encerramento do grupo de estudos daquele se-
mestre. Foi exibido o documentário Paixão e Morte de um Homem4 sobre
60
a produção pictórica de Isaac Liberato. Assisti tema de Asclépio, como a imagem arquetípica
atentamente o desdobramento das imagens e, em da experiência médica. O debate segue para as
seguida, escutei, com igual atenção, os comentá- possibilidades e dificuldades de reconhecimento
rios de Nise da Silveira. Em especial, a seguinte do timbre de Asclépio nas faces, gestos e atitudes
afirmação: é preciso vestir o escafandro e mergu- de cada profissional da medicina (SILVEIRA,
lhar no mar do inconsciente, retornando com al- 1992b). Podemos estender essas observações de
gumas imagens. Ao final do encontro, aguardei Nise da Silveira para qualquer profissional que
que todos se retirassem e me aproximei de Nise exerça função terapêutica.
da Silveira dizendo que eu havia começado o es- Em 1992, tivemos, ainda, o lançamento do
tágio na Casa das Palmeiras e que gostaria de ser livro O Mundo das Imagens (SILVEIRA, 1992a)
um escafandrista. Ela me olhou de maneira si- no salão de entrada do atualmente denominado
lenciosa e atenta. Em seguida, perguntou o que Palácio Austregésilo de Athayde da Academia
eu faria na manhã seguinte. Meus compromissos Brasileira de Letras. Para os preparativos do lan-
seriam à tarde e à noite, Casa das Palmeiras e çamento, Nise da Silveira solicitou que eu entre-
UERJ. A manhã estaria livre. Falou, então, que gasse um exemplar ao psicanalista Ivan Ribeiro, a
me esperava às 10h do dia seguinte. Quando che- quem ela admirava. Fui até o endereço indicado
guei, ela me entregou uma folha de papel com al- e fiz a entrega. Ao retornar, para minha surpresa,
gumas indicações de leitura para o escafandrista: ela me presenteou com o livro, fazendo a seguin-
de Jung (2011a, 2011b), Símbolos da Transforma- te dedicatória: Para Walter, querido colaborador,
ção e Psicologia e Alquimia, de Câmara Cascudo de longos braços e olhos agudos. Nise. set. 1992.
(1999), Contos Tradicionais do Brasil e as cartas Esses anos iniciais de trabalho na Casa das
de Van Gogh (2017) ao seu irmão Théo, além da Palmeiras deram-me a certeza de que se tratava
recomendação para visitar o Museu de Imagens de uma experiência única, difícil de ser repro-
do Inconsciente, o que fiz inúmeras vezes e farei duzida, praticamente impossível. Mas, ao mes-
um campo de pesquisa “marcadamente interdis- e modelagem permitem “menos difícil acesso aos
ciplinar” (SILVEIRA, 1992a, p. 94). A organiza- enigmáticos fenômenos internos” (p. 11).
ção dos setores de atividades tinha a intenção Podemos concluir que o interesse de Nise
inicial de criar um canal de comunicação, pois a da Silveira (1981, 1992a) pelos aspectos intrap-
linguagem propositiva encontrava-se, muitas ve- síquicos fez com que as atividades expressivas
zes, extremamente prejudicada. Quais seriam os fossem priorizadas e os ateliês de pinturas e de
pensamentos e sentimentos dos frequentadores modelagem se caracterizassem como verdadeiras
da terapêutica ocupacional? Ou, como Nise da escolas, levantando importantes questões clínicas
Silveira costumava falar: o que se passava na cuca e teóricas, tais como: a produção de pinturas con-
daquelas pessoas? Esse objetivo foi amplamente sideradas de alta qualidade artística; a tendência
alcançado e, mesmo, ultrapassado, dado que a à abstração em seu duplo aspecto – expressionís-
participação nas atividades mostrou-se como tico e geometrizante; a subversão do espaço e a
62
busca do espaço cotidiano; as variações nas vivências temporais; as expres- 5
A banca foi composta por Monique
Augras (orientadora) (PUC-Rio), Álvaro
sões simbólicas de dissociação e de ordenação (notadamente as mandalas); de Pinheiro Gouvêa (PUC-Rio) e Ademir
Pacelli Ferreira (UERJ).
a manutenção da capacidade de estabelecer vínculo afetivo; o afeto como
uma espécie de catalisador para processos de organização psíquica; a dis-
tinção entre metamorfose e transformação; as representações opostas à cha-
mada demenciação na esquizofrenia; e a possibilidade de contraposição à
psicocirurgia (lobotomia).
O acompanhamento das imagens do inconsciente representa o cerne
dos livros Imagens do Inconsciente e O Mundo das Imagens. Livros funda-
mentais para os campos da saúde mental, da psicologia e das artes. Mas,
muitas vezes, na recepção dessas obras é criada a distorção de que o traba-
lho desenvolvido por Nise da Silveira acontece apenas nos ateliês de pintura
e de modelagem. Assim, o cotidiano de trabalho fica encoberto por uma
percepção parcial. Então, desenvolver um trabalho acadêmico que abordas-
se a obra de Nise da Silveira já seria uma novidade. Essa novidade seria po-
tencializada se a ênfase estivesse na diversidade de procedimentos metodo-
lógicos. Dessa maneira, foi elaborada a dissertação de mestrado Os Mitos de
Morte/Renascimento na Perspectiva de C.G. Jung (MELO, 2000), defendida
no dia 6 de janeiro de 2000, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio). A banca5 recomendou que o trabalho fosse publicado
em livro, o que aconteceu alguns anos depois, com o título O Terapeuta
como Companheiro Mítico: ensaios de psicologia analítica (MELO, 2009b).
Na passagem do texto da dissertação para livro foram efetuadas al-
gumas modificações. A dissertação estava fundamentada em duas concep-
tulos finais apresentam uma vinheta clínica e um ca para as suas mãos; a pergunta “Quem será o
relato detalhado, ambos de acompanhamento de Benedito que se interessará pelo estudo das ima-
série de imagens do inconsciente. Os primeiro e gens?”; a série de imagens intitulada Os Cavalos
o sétimo capítulos funcionam, portanto, como de Octávio Ignácio, apresentada como um pe-
uma moldura que acolhe as variações de proce- queno-grande tratado de psiquiatria; os embates
dimentos metodológicos. contra os métodos agressivos – lobotomia, coma
As propostas fundamentais do livro po- insulínico e eletrochoque; a persistência em reu-
dem ser compreendidas a partir de alguns pa- nir as imagens que constituem o acervo do Mu-
râmetros apresentados no prefácio de Marco seu de Imagens do Inconsciente; a decisão de não
Lucchesi (2009): os relatos clínicos estão per- vender nenhuma imagem “nem por ouro, nem
meados por um sentimento-ideia evidenciado por prata, nem por sangue de Aragão”; a manu-
pelo título, de que “a humana condição repousa tenção do acervo como base para implementar o
64
Museu de Imagens do Inconsciente como um centro de pesquisa interdis 6
Trata-se de uma frente antifascista criada
em março de 1935, de contraposição ao
ciplinar; a psicologia analítica como fundamentação teórica; a emoção de li- governo Vargas e de resistência ao Partido
Integralista, de extrema direita. Dentre os
dar com os diferentes materiais de trabalho; os estudos de Gaston Bachelard principais integrantes e dinamizadores da
ANL encontram-se líderes do PCB.
sobre a imaginação material; o afeto como catalisador de processos de re-
organização psíquica; a cozinha da Casa das Palmeiras como “o centro de 7
Nise da Silveira saiu da prisão no dia 21
de junho de 1937 e permaneceu afastada do
gravidade emocional” (p. 113); a presença constante de Antonin Artaud; a serviço público até o dia 5 de julho de 1944,
quando foi anistiada. Nos anos iniciais,
presença ainda mais constante dos animais, principalmente os gatos; e os trabalhou na Seção Waldemar Shiller, com
anos de prisão. enfermarias coordenadas por Fábio Sodré
(MELO, 2005a, 2009a). Nesse período,
De 23 a 27 de novembro de 1935, Luís Carlos Prestes liderou a In- Nise da Silveira (1992a) se contrapôs
aos métodos agressivos – lobotomia,
surreição Comunista, com movimentos que rapidamente foram debelados como insulínico e eletrochoque –, sendo
transferida para a terapêutica ocupacional
em três cidades: Natal, Recife e Rio de Janeiro. Desde 1933, Nise da Silveira em 1946, cujo acervo de desenhos, pinturas
vivia no hospital psiquiátrico, que era próximo ao local da insurreição. En- e modelagens originou o Museu de
Imagens do Inconsciente, fundado no dia
tão, no dia 27 de novembro de 1935, ouviu os tiros trocados entre o grupo 20 de maio de 1952.
não sucumbe mentalmente” (p. 9). A partir dessa vidades estipulam um canal de comunicação, se
constatação, o tratamento preconizado por Nise caracterizam como legítimos métodos terapêu-
da Silveira deveria ser permeado por atividades. ticos e levantam importantes questionamentos
No período anterior à prisão, todos os dias de pesquisa (SILVEIRA, 1981), se contrapõem à
uma interna do hospital psiquiátrico levava o clinoterapia8 e ao opróbio dos pátios (SILVEIRA,
café da manhã para Nise da Silveira. A médica 1966, 1979), configuram uma organização de
convidava Luiza para entrar e tentava travar um espaços de produção e de temporalidades di-
diálogo com a moça. Mas, o discurso era extre- versificadas, alternando atividades individuais e
mamente desconexo, pois a linguagem propositi- grupais (MELO, 2013), possibilitam a conjunção
va falhava, dificultando a compreensão. Nise da entre os impulsos para ação e para a produção
Silveira, no entanto, recebia Luiza todas as ma- de imagens (JUNG, 2011c) e criam as condições
nhãs. Até que veio o dia da prisão e esses encon- necessárias para a observação sobre os modos de
66
lidar com os materiais de trabalho (emoção de lidar) (SILVEIRA, 1986). A 8
Tratamento em repouso.
O sujeito do conhecimento
Nise da Silveira é altamente reverenciada. Diante dela, as pessoas cos-
tumavam ficar embevecidas. Esse magnetismo causado pela sua imagem
pode ser percebido ainda nos dias de hoje, cada vez com mais intensidade.
Seus atributos pessoais são realçados: inteligência, persistência, carisma,
humanidade, cultura e sabedoria. Essas e outras características contribuem
para o processo de mitificação e mesmo de santificação de Nise da Silveira.
Esse enaltecimento tem como consequência a pouca inserção de seu pensa-
mento em ambientes acadêmicos e, portanto, a falta de estudos sistemáticos
de sua obra. Se essa é a realidade que encontramos nos dias atuais, a percep-
ção sobre esse fenômeno era ainda mais dramática no início deste século:
Costa), o apelido Caralâmpia (brilho de felici- Artaud (SILVEIRA, 1989b; MELO, 2010a) e em
dade) e os saraus que aconteciam em sua casa. diálogo epistolar com Spinoza (SILVEIRA, 1995;
Essas histórias foram narradas pela própria Nise MELO, 2010c).
da Silveira e constantemente repetidas pelos seus
(per)seguidores como prenúncios do que produ-
Considerações finais
ziu nos campos da saúde mental, da psicologia e
das artes. Dessa maneira, ela passa a ser a enun- Neste texto, busquei recuperar os primei
ciadora do próprio mito da predestinação, ca- ros estudos sistemáticos que empreendi sobre
racterizando-a como um ser a-histórico (MELO, a obra de Nise da Silveira. Nesse sentido, fo-
2007b). A reflexão sobre o mito das origens pos- ram abordadas três produções: a dissertação
sibilita o reconhecimento dos ensinamentos hi- de mestrado (publicada posteriormente em li-
gienistas que recebeu na Faculdade de Medicina vro), o livro encomendado pelo CFP e a tese de
68
doutorado. Cada estudo possui uma temática Atualmente, sigo nos estudos sobre a obra
que auxilia na reflexão sobre a obra de Nise da de Nise da Silveira, inserindo os estudantes dos
Silveira. A dissertação-livro aborda a relação te- cursos de graduação e de pós-graduação da UFSJ
rapêutica permeada pelas imagens arquetípicas nessas pesquisas, incentivando-os na apreensão
(companheiro mítico) e a diversidade de proce- desses conhecimentos e na criação de possíveis
dimentos metodológicos. O livro encomendado desdobramentos. Dessa maneira, marcado pelo
apresenta as diretrizes de trabalho de Nise da timbre de Asclépio, dou continuidade aos ensi-
Silveira: liberdade, atividade e afetividade. A tese namentos recebidos na Casa das Palmeiras e com
defendida é que o processo de mitificação/san- a equipe do Museu de Imagens do Inconsciente,
tificação de Nise da Silveira cria um obstáculo Luiz Carlos Mello, Eurípedes Gomes da Cruz Ju-
para a inserção do vasto conhecimento que pro- nior e Gladys Schincariol.
duziu ao longo de décadas de intenso trabalho e
pesquisas.
41-65, 2007a.
MELO, Walter. Maceió é uma sociedade mítica: o mito da origem em Nise da Silveira.
Psicologia USP, 18(1), 101-124, 2007b.
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introvertida. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 10(3), 865-881, 2010d.
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aberta a visitantes – ao menos até o final desta década, quando, com a mu-
dança da direção da instituição, ficou abandonada (ARAÚJO, 2018).
Pouco se sabe sobre a continuidade deste trabalho e o destino
desta coleção, mas fotografias encontradas recentemente nos arquivos do
Museu Bispo do Rosario indicam que, na década de 1970, funcionava no
edifício sede da CJM um espaço de exposição de pinturas e outros objetos
produzidos por pacientes. A falta de registros impede a criação de uma
cronologia deste acervo, mas há indícios de que a exposição foi remontada
neste espaço e, posteriormente, voltou a ser fechada, até que foi “descoberta”
por Maria Amelia Mattei. Apesar da ausência de documentação sobre este
acervo, a informação ajuda a esclarecer que a produção oriunda dos ateliês
de pintura da CJM e outras oficinas de praxiterapia constituiu, assim,
74
a primeira coleção do então Museu Nise da secundários” à organização, adquirindo regalias
Silveira, na época, formada por 238 telas pintadas e estabelecendo uma rotina para além daquilo
por diversos pacientes desde a década de 1940 que foi sistematicamente planejado pela institui-
até aquele momento, entre outros objetos. ção. A quebra das regras na relação que Bispo es-
tabeleceu com os técnicos, médicos e dirigentes
da CJM influenciou principalmente na conquista
Um museu para Arthur Bispo do
de um alargado “território pessoal” que, comu-
Rosario
mente, era muito restrito em hospitais psiquiátri-
Arthur Bispo do Rosario, negro, nordesti- cos. Segundo Hidalgo (1996),
no e esquizofrênico, viveu ao longo de 50 anos
não consecutivos internado em instituições psi- ninguém fugia das buscas e apreensões na
quiátricas, período em que constituiu uma obra Colônia. Volta e meia, os funcionários faziam
que hoje figura como uma das mais importantes uma ronda especial pelos quartos, a maioria
produções artísticas do campo das artes visuais coletivos, passavam vassouras por baixo das
camas, levantavam colchões, invadiam a pri-
brasileira, reconhecida nacional e internacional-
vacidade. Recolhiam todo e qualquer pertence
mente. Durante os anos em que esteve interna-
dos internos, juntavam tudo numa fogueira.
do na CJM – entre altas, fugas e reinternações
Roupas, vergalhões, acessórios estranhos ao
– Bispo do Rosario se tornou um personagem
figurino oficial, signos da intimidade dos pa-
ilustre. Inserido na rotina do Núcleo Ulisses Via- cientes ardiam em chamas (HIDALGO, 1996,
na, ganhou fama de “xerife”, ajudando os guar- p. 84).
das a conter outros internos em momentos de
crise. Entretanto, não foi só a força bruta, adqui- Porém, subvertendo esta rotina, grande
rida nos tempos em que se arriscou na carreira parte da obra de Bispo do Rosario permaneceu
de pugilista, que fez dele uma pessoa conhecida quase intocável e vista por poucas pessoas, já que
Rosario haviam sido expostas uma única providenciar a restauração dos objetos e de obter meios para conservá-los.
vez em uma exposição coletiva realizada
em 1982 por Frederico Morais no Museu de
No entanto, de acordo com Hidalgo (1996), foi só em 19 de julho de 1989
Arte Moderna do Rio de Janeiro, mostra em que a união de forças foi firmada e a associação foi criada.
que o artista figurou como anônimo, entre
tantos outros. Segundo a jornalista Luciana As primeiras ações realizadas pela associação buscaram criar con-
Hidalgo (1996), a mostra À Margem da
Vida reunia trabalhos artísticos produzidos dições para garantir a conservação do conjunto da obra, impedindo o seu
por presidiários do Instituto Penal Lemos descarte ou desmembramento. Para tanto, a coleção foi removida do Núcleo
de Brito e do Instituto Penal Milton Dias
Ferreira, de menores infratores apreendidos Ulisses Vianna e incorporada ao Museu Nise da Silveira. Apropriadas pelo
na Fundação Nacional para o Bem-Estar do
Menor (FUNABEM), de idosos da Casa São museu, as obras de Bispo do Rosario finalmente puderam ser vistas pelo
Luiz para a Velhice e de internos da CJM.
Na época, Maria Amélia Mattei, diretora
grande público5. Em 18 de outubro de 1989, foi inaugurada uma grande
do Museu Nise da Silveira, fundado no exposição na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro.
mesmo ano, e o fotógrafo e psicanalista
Hugo Denizart convenceram Bispo do Segundo Hidalgo (1996), a exposição Registros de minha passagem
Rosario a autorizar a saída de seus trabalhos
de sua cela. Além dos objetos produzidos pela Terra: Arthur Bispo do Rosário, com curadoria de Frederico Morais,
por Bispo do Rosario, Maria Amélia
Mattei levou para a exposição trabalhos de
esteve em cartaz até 5 de novembro daquele ano, recebendo pelo menos oito
Antonio Bragança, Itaipú Lace, Muniz e mil visitantes no período em que foi realizada. Comparado no catálogo da
Oswaldo Kar.
exposição a grandes nomes da arte contemporânea internacional, como o
francês Marcel Duchamp e o inglês Tony Cragg, naquela ocasião, Bispo do
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
tórios. Os neurolépticos que ingeriu, sempre apoio de artistas que, voluntariamente, desenvol-
com má vontade, durante décadas, não impe- veram novas oficinas em parceria com o museu.
diram sua comunicação com Deus e com as
Destas, há registros de oficinas de serigrafia, te-
milhares de esculturas que recebia ordens de
atro, escultura, fotografia, contos e pintura, esta
compor, e que iam se erigindo em estalagmi-
última desenvolvida por dois artistas usuários
tes de formas e tamanhos diversos na caverna
que escolhera (a caverna do Bispo era o antigo
dos serviços de saúde mental: Gilmar Ferreira e
“bolo”, o mais cruel dos locais repressivos da Leonardo Lobão. Estes, junto com Patrícia Ruth,
Colônia, uma espécie de quatro-forte coletivo) outra artista usuária e ex-interna da CJM, e An-
(DELGADO, 1989, s.p.). tônio Bragança, artista mencionado anterior-
mente, chegaram a ter exposições individuais
Ainda para a exposição do Parque Lage, dos seus trabalhos realizadas na Galeria Mário
Denise Corrêa (1989, s.p.) afirmou que aquela Pedrosa, no Museu Nacional de Belas Artes, no
78
Rio de Janeiro. Estas exposições marcam uma revalorização do trabalho de 6
Museu de Imagens do Inconsciente.
isso me parece trazer novas reflexões não apenas para os campos que lidam 7
O crítico de arte Mário Pedrosa (2015)
nos dá disso um bom exemplo em seu
mais diretamente com a loucura, mas também para a própria arte, na me- texto “Arte, necessidade vital” de 1947.
dida em que lhe força uma abertura ao não-saber, possibilitando com isso o Penso que o artista norte-americano Claes
Oldenburg (1961/2006), em seu escrito
surgimento de algo novo, o que faz também com os demais campos. “Sou a favor de uma arte...”, também
poderia pensar algo nesse sentido. A artista
A dimensão de objeto insere neste debate a problemática do uso da franco-americana Louise Bourgeois (2006),
em sua obra Art is a Garanty of Sanity,
biografia de um artista em uma reflexão sobre sua produção. Eu poderia bem como no texto que escreve sobre
defender a relevância disso, especificamente em Bispo do Rosario, e não Bispo também iria nesta mesma direção.
Frederico Morais (2013) ao defender que a
para todo e qualquer artista, por diferentes perspectivas. Como isso repre- arte tem relação com tudo, inclusive com
a vida de um artista e a loucura, tomada
sentaria um desvio de nosso objetivo aqui, remeto o leitor à tese que defendi por ele como uma circunstância, “capaz de
sobre a vida e a obra de Bispo do Rosario (CORPAS, 2014). Contudo, é impregnar o ato criador” (p. 100) também
pode ser enquadrado no rol daqueles
preciso destacar algo. que consideram estas duas dimensões
articuladas. Para saber mais sobre esse
Penso que uma obra autobiográfica, como a de Bispo, nos convoca tema em específico no caso de Bispo do
festejar uma obra tão potente, fazê-la circular pelo Brasil e pelo mundo,
emocionando e impactando seu público, deixando apagada a existência de
seu autor e a maneira singular como sua vida engendrara sua obra e vice-
versa? Estas são, sem dúvida, perguntas que devem ser feitas quando se
87
9
Não vamos discutir aqui se tal sofrimento questiona a importância de pensar a biografia de Bispo do Rosario, quando
advém do social opressor, numa perspectiva
próxima do que nos propõe Antonin se problematiza a relevância de se remeter à vida do artista quando sua
Artaud, por exemplo, ou se é um fato
de estrutura do sujeito. Na verdade, em obra é o que “realmente” importa. Neste sentido, para mim, trata-se de uma
uma leitura psicanalítica, que é a minha,
consideramos que essas duas coisas estão
questão ética, que, como sabemos, não está apartada da questão estética.
presentes e articuladas. O que importa
agora é marcar que há um sofrimento.
Por mais que o delírio e a loucura possam
ser vistos nas potências que portam, como Artista? Louco? Bispo do Rosario
forma de fazer frente a discursos nefastos
que visam a violência e a segregação das Bispo do Rosario foi diagnosticado como louco, por alguns. Nome-
diferenças, por mais que a loucura seja
afirmada como outra forma de estar ado artista, por outros. Há ainda quem o veja como artista e louco, sem
no mundo, nada disso deve apagar a
dimensão de sofrimento e, sobretudo, da que estas duas características se oponham ou se anulem. Existem também
singularidade aí presente.
aqueles que acreditam que, por ser louco, ele não seria artista ou os que
defendem que, por ser artista, ele não seria louco.
Mas Bispo do Rosario, ele mesmo, parecia não se reconhecer nem
como artista nem como louco. Ele se dizia Jesus Cristo e afirmava ter uma
missão na Terra. Assim como ele não se reconhecia como artista, também
não considerava sua produção como arte, o que não nos impede, obviamen-
te, de nomear e saudar como tal seus objetos: “É arte autêntica, que comove
e pede reflexão” (MORAIS, 2013, p. 65).
Se, para o mundo, por muito tempo, aquilo que este artista produ-
zia era ignorado enquanto bem e arte, para o próprio, sempre se tratou de
algo essencial. Em função de sua psicose – fato da existência que impacta a
vida de um sujeito de forma radical, que comporta uma dimensão de sofri-
mento intensa9 e que dificulta o trânsito do sujeito no mundo das relações
– Bispo do Rosario criou uma maneira singular para se ancorar no mundo
por meio de sua produção de objetos. Ou seja, suas criações tinham uma
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
função vital e singular para Bispo do Rosario, que precisa ser destacada da
função mais ampla que possui para o campo da arte. Muito embora, como
já dissemos, trata-se sempre de um procedimento um tanto artificial, uma
vez que o singular do qual falamos, ao menos para alguns, é parte integrante
da própria arte.
Por meio de seus objetos, ele engendrou aquilo que vou chamar de
estabilização de sua linha da vida. É importante notar que o termo estabili-
zação porta aqui um sentido amplo, o que inclui o fato de que as estabiliza-
ções são, frequentemente, marcadas por alguma precariedade, o que exige
do sujeito um trabalho constante. Assim, por estabilização devemos enten-
der uma operação que “localize a angústia e, com isso, reduza seu nível e,
assim, favoreça a vida e as relações” (GARCIA, 2011, p. 19).
88
Em Bispo do Rosario, a produção de objetos é sua invenção de possi- 10
Ainda que esse seja um mundo
circunscrito ao universo do hospital
bilidade de vida, sua possibilidade de caber no mundo10. Foi por fazer seus psiquiátrico. Sabemos o quanto as
instituições psiquiátricas em que
objetos singulares que ele alcançou alguma estabilização, independente do viveu Bispo do Rosario eram nocivas
e excludentes e, na maioria das vezes,
fato de suas produções serem consideradas arte ou não. Como já lembrei, responsáveis pela cronificação de muitos
foi apenas em 1989, após cerca de 50 anos de intenso fazer, que a designação pacientes. Não estamos, em momento
algum, defendendo os hospitais
de arte foi atribuída aos objetos de Bispo do Rosario. psiquiátricos como produtores de vida
ou estabilização. Contudo, não podemos
Lembremos que alguns sujeitos considerados loucos conseguem se negligenciar o fato de que, apesar de
estabilizar por meio da arte, seja pela nomeação que ela promove e/ou pelo suas características nefastas, as tais
instituições são espaços de relação com
lugar que ela permite ao sujeito ocupar no laço social, independente de o Outro, onde laços sociais, apesar de
tudo, podem ser engendrados, dada a
fama ou ganho de dinheiro, ou ainda em função mesmo do fazer específico possibilidade do sujeito de se inventar,
apesar de circunstâncias extremamente
que a arte enquadra. Lembremos também que outros sujeitos se estabilizam adversas e negativas. No caso de Bispo do
unicamente pela via do fazer, da produção de objetos, esses que por suas Rosario, uma saída singular, através de uma
apropriação daquele espaço, por meio de
características poderão, ou não, ser denominados de obra de arte, antes ou um fazer específico, foi feita em prol de
uma invenção subjetiva, que veio a permitir
depois de sua morte. Bispo do Rosario se insere neste último caso. E, por a ele alguma estabilização.
fim, lembremos ainda que há sujeitos ditos psicóticos para os quais a arte
ou o fazer de objetos enquanto possibilidade de estabilização nada podem.
Art is a Garanty of Sanity [arte é garantia de sanidade] nos diz, em
uma de suas obras, a artista franco-americana Louise Bourgeois (2006), que
dedicou ao nosso artista um pequeno texto. Ela vê na produção de Bispo
do Rosario a busca por uma garantia de sanidade que, segundo ela, é o
princípio de organização atrás de toda sua obra. A sanidade que a artista
afirma ser buscada por Bispo do Rosario, nos sugere o referido trabalho de
Bourgeois, é algo inerente à própria arte. Parece que, mais do que identificar
o que teria levado o artista brasileiro a produzir seus objetos, Bourgeois se
questão.
Sua desvantagem, e aqui está o que é fundamental, é que, pelo uso
que foi feito da reconstrução, tal termo ficou aderido à ideia de que essa
produção era endereçada somente a Deus, o que acabou obscurecendo ou-
tra característica que me parece vital na missão: Bispo do Rosario também
produzia seus objetos visando os homens na Terra12. Trata-se, assim, de um
duplo endereçamento13, o que fará toda a diferença.
Outra questão importante a se observar, e que reforça a problemati-
zação do enfoque do endereçamento de Bispo do Rosario exclusivamente
para Deus, é o fato de seu discurso possuir incríveis semelhanças com o
texto bíblico do Apocalipse, e não apenas com uma de suas partes, o Juízo
Final, como se costuma interpretar. O Apocalipse trata de uma revelação14
92
que vem de Deus, e que por meio de um mensageiro, Jesus Cristo, é ende- 15
Para uma demonstração completa
da relação paradoxal entre delírio e
reçada aos homens na Terra, através de um de seus “servos”, João de Patmos fazer de objetos ver Corpas (2014). Vale
lembrar ainda que para o crítico de
(MORUJÃO, 2010). No Apocalipse, João refere ao fato de que as revelações arte Frederico Morais (2013), o delírio
de Bispo do Rosario também não está
lhe foram trazidas por anjos, o que ressoa com uma passagem biográfica de apartado da obra, tem relação com ela e
Bispo, bordada por ele em um de seus objetos: sua descida do Céu, acompa- amplia as possibilidades de leitura sobre a
mesma. Por outro lado, não há qualquer
nhado por sete anjos, no dia em que ele assume sua identidade como Jesus obrigatoriedade de uma análise da obra se
remeter a ele, opinião que também defendo.
Cristo, em 22 de dezembro de 1938.
Os fatos que Bispo do Rosario descreve no filme O Prisioneiro da
Passagem e que borda em seus objetos – como, por exemplo, o que foi inti-
tulado postumamente Venham as Virgens em Cardume – possuem a mesma
ideia do texto bíblico. Muitas das imagens evocadas por Bispo do Rosario
em seu depoimento a Denizart possuem semelhanças com aquelas presen-
tes no Apocalipse. A expressão “Filho do Homem”, que aparece em alguns
de seus objetos, é recorrente naquele livro da Bíblia. A própria ideia de re-
gistrar as coisas vistas está também presente logo no início do Apocalipse.
Deslocar a missão do Juízo Final para o Apocalipse como um todo
permite refletir sobre as variadas articulações dessa missão. Assim, o acerto
de contas com Deus, o Juízo Final, deixa de ser o foco, dando lugar a uma
missão muito maior, que inclui uma complexa relação com os homens.
Ainda que a ideia de sua missão como representação possa estar li-
gada ao Apocalipse, que vozes ditassem a Bispo do Rosario o que fazer e
que ele se considerasse Jesus Cristo, todo esse aparato delirante aponta para
uma representação singular, para uma prática, que tanto se relaciona com
o delírio, quanto se torna autônoma em relação a ele ao se constituir como
Um delírio instável
A construção do delírio em Bispo do Rosario envolve tanto o cum-
primento de uma missão na Terra, quanto a constituição de uma identidade
messiânica. Não discutiremos em nenhum momento se o delírio é ou não
patologia, pois partiremos do postulado freudiano de que o delírio é sem-
pre uma produção do sujeito ou, em seus termos, uma “tentativa de cura”
(FREUD, 1924/1976, p. 191). Produção que, como tal, deve ser acolhida,
mesmo que trabalhemos para que o sujeito encontre um caminho condi-
zente com uma vida reconhecida e aceita pela comunidade em que se insere
(VIEIRA, 2007).
Bispo do Rosario recebeu, em 1938, o diagnóstico de esquizofrenia
paranoide. O delírio apresentado por ele foi, provavelmente, o principal fa-
tor para tal definição. No entanto, apesar de ter se organizado segundo uma
referência delirante, seu delírio era instável, o que fez com que ele tivesse
que recorrer a construção de objetos como possibilidade de trânsito no Ou-
tro, na cultura – que não deve ser tomada como sinônimo de arte, mas en-
tendida como o campo da linguagem – como possibilidade de estabilização.
Embora a história contada pelo artista não revele um fato desenca-
deador preciso, sabemos, por meio de declarações do próprio e do que ele
registrou em seus objetos, que na noite de 22 dezembro de 1938 algo extre-
mamente marcante aconteceu, mudando sua vida para sempre. Quarenta
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
e dois anos mais tarde, Bispo do Rosario relata a Denizart (1982), no filme
O Prisioneiro da Passagem, que naquela noite sete anjos desceram dos céus,
deixando-o, ele mesmo, Bispo do Rosario, no quintal de sua casa em Bota-
fogo. Além disso, ele afirma, no mesmo depoimento, que era Jesus Cristo.
É importante ressaltar que, a partir do relato prestado a Denizart, temos
acesso ao que podemos chamar de uma versão mais organizada do delírio
de Bispo do Rosario, um delírio que foi sendo construído ao longo dos anos
e que não se constituiu como um delírio estável.
Parece bastante plausível supor que em 1938, em torno dos seus 29
anos, eclodiram as manifestações patentes de uma psicose. Entretanto, sabe-
mos por meio do prontuário do Hospício Nacional de Alienados (BRASIL,
1938), local onde Bispo do Rosario foi internado, em 24 de dezembro de
94
1938, que algumas características que poste- serviços domésticos, passando, inclusive, a viver
riormente seriam determinantes em seu delírio na residência da família. Lá, torna-se um em-
místico já se mostravam presentes a partir de um pregado extremamente humilde. Sabemos que
acidente ocorrido na empresa Light, na qual ele Bispo do Rosario acreditava que ele, o patriarca
trabalhava: a dedicação a “estudos ocultos”, as José Maria Leone e seu filho mais velho, Hum-
penitências corporais sob a forma de abstinência berto Leone, formavam a Santíssima Trindade,
sexual, a ideia de uma missão – que, nessa época, cabendo a Bispo do Rosario o lugar de São José.
fora relatada por Bispo do Rosario como um so- Um tempo depois do convívio com essa família,
nho que ele tivera, em que ele aparecia como um Bispo do Rosario teve seu primeiro surto.
frade, fazendo viagens em missão religiosa pelos Uma mudança representativa no compor-
continentes –, e traços de uma megalomania, que tamento de Bispo do Rosario se deu quando ele
pode ser percebida através das revelações que passa a conviver com os Leone. Segundo revelou
Bispo do Rosario obtinha em seus sonhos, como Humberto Leone (1989), a única característica
o fato de ser um escolhido para servir a Deus. de Bispo do Rosario que chamava a atenção era
As informações contidas nesse prontuário, seu excesso de humildade. O que teria aconteci-
além de outros dados biográficos relevantes, me do com ele, a que se deveu tal mudança? Além
fizeram supor que o delírio foi se construindo ao disso, como já vimos, os aspectos de seu delírio,
longo dos anos. Além disso, tais dados nos mos- que já se mostram patentes desde o acidente, em
traram também que uma construção delirante 1936, ganham, nessa época, nova configuração
relacionada à família do advogado José Maria Le- através da ideia da Santíssima Trindade.
one, para quem Bispo do Rosario trabalhou antes As histórias encontradas nos registros da
e depois de sua primeira internação, já estava em Marinha e da Light descrevem Bispo do Rosario
curso antes do primeiro surto, ocorrido em 1938, como um sujeito indisciplinado e insubordinado.
me fazendo supor que foi, justamente, o fracasso Sabemos como as Forças Armadas e a sociedade
do, depois que arrasasse a Terra em fogo. Dessa comum. Esse postulado, nas palavras de Cléram-
forma, ele se apresentava por meio de uma cons- bault, se apoia nos sentidos disponibilizados pela
trução delirante. Como veremos mais adiante, cultura (VIEIRA, 2011) – como Jesus Cristo, em
seu delírio era tanto instável, aspecto pouco per- alguns casos –, mas dará a eles um sentido fixo,
cebido sobre ele, quanto necessário para o anco- que cristaliza as leituras possíveis para os enig-
ramento de Bispo do Rosario no mundo. Em re- mas do mundo.
lação aos seus objetos, o delírio estava conectado Entretanto, no caso de Bispo do Rosario,
à missão que o artista afirmava ter. Porém, para- aquilo que promove uma ancoragem entre os no
doxalmente, ao colocar em prática tal missão, o mes e o real, esse ponto de basta aludido por Lacan
fazer de objetos ganha também uma autonomia, (1960/1988), não pôde advir de forma metafórica
configurando-se como nova estratégia de anco- no interior do delírio, índice para Lacan de uma
ramento desse sujeito no mundo, fundamental à saída imaginária construída como forma de lidar
96
com o Real impossível de representar. Não foi tas que criava, que serviriam também para que os
através da assunção da identidade de Jesus Cristo, homens o identificassem como o Cristo no “dia
construída como certeza inabalável, que Bispo próximo”, dia em que a Terra seria arrasada.
do Rosario estabeleceu sua forma singular de Diante disso, podemos afirmar que Bispo
caber no mundo. Dada a instabilidade do delírio, do Rosario precisava de seus objetos para se apre-
os objetos produzidos por Bispo do Rosario se sentar aos homens como Jesus, para que esses
acrescentam, configurando a solução encontrada homens o reconhecessem como tal. Assim, em-
por esse sujeito para se ancorar no mundo. bora tenha sustentado durante muitos anos sua
Afirmamos anteriormente que uma cons- identidade messiânica, ele precisava de seus ob-
trução delirante já havia sido posta em curso por jetos como garantia. Isso porque sabia que alguns
Bispo do Rosario antes do desencadeamento de o reconheciam como o Cristo, mas nem todos.
sua psicose, em 1938. Entretanto, essa solução fa- Bispo do Rosario tinha formas de saber
lha e ele é acometido de seu primeiro surto. De- quem o reconhecia ou não: a pergunta “qual a cor
pois disso, seu delírio passa por uma construção de minha aura?”. Muitas das pessoas que o conhe-
complexa ao longo dos anos, envolvendo uma ceram e conviveram com ele confirmam que essa
identidade messiânica, uma missão na Terra, a era a pergunta que ele fazia sempre que alguém
instituição onde Bispo do Rosario ficou inter- tentava entrar na sua cela-ateliê (HIDALGO,
nado e a construção dos objetos que, mais tarde, 1996; MAGALHÃES, 1983; DENIZART, 2008;
vieram a lhe dar um lugar de sujeito e também FIRMO, 2013). E Bonfim (1989), o médico que
um nome como artista. foi patrão de Bispo do Rosario, entre 1960 e
Bispo do Rosario registrou, em muitos 1964, também afirmou que ele lhe fazia a mesma
de seus objetos – dentre eles aqueles intitulados pergunta.
postumamente de Vitrines Fichários –, os no- Ao que tudo indica, a cor em si não inte-
mes das pessoas que o reconheciam como Jesus ressava, parecia não haver uma cor certa, o que
101
Referências
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Um antes...
1
Fundou o Museu de Imagens do A imagem perturba, inquieta, insiste e resiste – mulheres andando
Inconsciente/Rio de Janeiro.
em círculos, cabelos raspados, uniformes cinzentos, olhar distante. Tal é
a lembrança de um dos pátios no antigo manicômio. Era maio de 1971. A
visita ao Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), durante o curso de Psico-
logia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS),
fixou-se como o fazem aquelas fotografias icônicas difíceis de ver, pois
mostram a vulnerabilidade e a fragilidade humanas em limites extremos.
A imagem e o desconforto subsequente perduram. Por vezes, esmaecidos,
em outros momentos, esquecidos, quando voltam, surgem dizendo de uma
impossibilidade no exercício da profissão de psicóloga.
Só em 1987, com a exposição do Museu de Imagens do Inconsciente
(MII) na Reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
que o fato – mulheres no pátio – encontra possibilidade de vazão: a potência
do trabalho artístico no cuidado com pessoas institucionalizadas em mani-
cômios parece a chave possível para dar conta daquela errância e desam-
paro. A descoberta provoca uma necessidade premente em buscar escritos,
livros, filmes sobre Nise da Silveira1 e voltar a algumas de suas referências,
como Machado de Assis, Jung, Herbert Read e Graciliano Ramos, nos
caminhos da arte e loucura, arte-educação, clínica, política, cultura. A 2
Barbara Elisabeth Neubarth (psicóloga),
Luciana Moro Machado (terapeuta
urgência em agir leva a outras tantas novidades, com muitos profícuos ocupacional), Luiza Germani de Paula
Gutierres (artista plástica) e Rosvita Ana
encontros. Bauer (enfermeira).
Sonho. E esse desafio louco, sendo partilhado, encanta algumas ide- 3
Blanca Brites (professora da UFRGS),
alistas , que, juntas, montam uma Oficina de Criatividade dentro do São
2 Edson de Sousa (professor da UFRGS),
Giselle Sanches (psicóloga), Neusa Helena
Pedro. Aos poucos, mais outros tantos utopistas-visionários3 se agregam ao Carvalho (assistente social), Tania Mara
Galli Fonseca (professora da UFRGS)
projeto, entre a Oficina e seu Acervo. Cada um do seu jeito, com suas li- e inúmeras outras pessoas citadas em
nhas e fios, os diferentes atores transformam a tessitura da rede que segue Neubarth, B. (2009).
Movimentos e implicações
A Psiquiatria, instituída, inicialmente, como um conjunto de teorias
e práticas médicas que pretende regulamentar o espaço social, toma força
no Brasil no final do Império e advento da República. Enquanto na Europa
A potência do cotidiano
Salas com materiais diversos são campos de experimentação visual,
táctil, auditiva e sensorial. Assim, os moradores remanescentes ou aqueles
transferidos para Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), além de pes-
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
O acervo
Ao iniciar as atividades da oficina, havia a convicção de que os traba-
lhos produzidos seriam reunidos em um acervo, tendo como norte o Museu
de Imagens do Inconsciente no Rio de Janeiro. Reunidos com as equipes de
saúde, a intenção era discutir os casos, colaborando no tratamento dos mo-
radores. Entretanto, salvo exceções, raras vezes isto aconteceu. A produção
da oficina ficou restrita ao fazer do sujeito, o que resultou em uma infinida-
de de trabalhos que, no ano de 2000, ainda se encontravam amontoados em
precárias condições12.
A partir de 2001, a professora Tania Fonseca agenciou o primeiro
grupo organizador do acervo, na linha de pesquisa Modos de Trabalhar, Mo-
mesmo tempo em que se questiona se é possível Assim, o objetivo da Oficina era, inicial-
preservar toda a produção de um sujeito, e se é mente, construir um acervo para acompanhar a
necessário fazê-lo para preservar sua memória. evolução de casos clínicos, objetivando a com-
Como o espaço do hospital é grande, op- preensão do processo psicótico e seu tratamen-
tou-se por guardar todo o material produzido, to a partir de imagens espontaneamente dese-
dispondo, assim, de uma completa coleção dos nhadas, pintadas ou modeladas. Se este objetivo
trabalhos dos moradores do São Pedro que fre- não foi plenamente alcançado, não significa que
quentam a oficina desde 1990. Mas, diante do o propósito de guardar todo aquele material se
expressivo volume do material, num primeiro mostrou inútil.
momento, foram separadas quatro coleções, de Em setembro de 1998, um evento marcou
Cenilda Ribeiro (3.011 documentos), Frontino a inserção do espaço Oficina de Criatividade no
Vieira (784 documentos) e Luiz Guides (5.446 circuito das artes em Porto Alegre. A exposição
112
Quatro X Quatro representou um importante enlace entre o dentro e o fora. 14
Elida Tessler, Hélio Fervenza, Romanita
Disconzi e Sandra Rey.
Nela, professores do Instituto de Artes/UFRGS14 expõem seus trabalhos no
15
Cenilda Ribeiro, Luiz Guides e Natália
São Pedro, enquanto participantes da Oficina de Criatividade15 são convida- Leite, junto com Antonio Roseno, de
Campinas/SP.
dos a expor seus trabalhos na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, do refe-
rido instituto. O trabalho produzido na oficina ganhou o reconhecimento 16
Coordenado pelos professores Edson L.
A. Sousa e Sandra Rey.
da academia, sendo o evento parte do Congresso Inconsciente e Ato Criativo:
17
Mais informações em http://www.ufrgs.
poiética e psicopatologia16. br/corpoarteclinica/
O material do Acervo tem sido utilizado em exposições de arte no 18
Em 2018, através da professora Vanessa
hospital e fora dele, fato bastante apreciado pela maioria dos frequentado- Barrozo Teixeira.
homem apregoado pela cultura. Pela desrazão, o coletiva. Sua condição de estranho leva-o à de ex-
louco existe como a diferença radical, sendo esta cluído social, restando reconhecer que se refere a
considerada como parte constitutiva de sua natu- sujeitos que não puderam se colocar como objeto
reza singular. Consideramos que não lhe cabem do sonho do outro, ou seja, podem dizer se o pu-
tentativas de reparos que possuam a potência dessem, “Ninguém me sonhou”, restando-lhes o
ilusória de torná-los “semelhantes” ao homem lugar de problema insolúvel e de incômodo.
médio comum. Por outro lado, a loucura não se deixa qua-
Em sua condição de simulacro, os infames lificar enquanto artigo regular, nem do sonho e
loucos carregam, em seus corpos e mentes, po- nem do capital, o que impinge certo mal-estar a
tenciais do impensado sobre o modelo de homem uma sociedade que cobiça a homogeneidade e
erigido pelos padrões da moralidade tradicional. que se enfeita com grandes outdoors para apre-
Uma espécie de não-homem se abriga em seus sentar sua mercadoria. A loucura não se vende,
122
não é passível de marketing e não se encontra nas os binarismos modernos. Ao denunciar o com-
vitrines; muito menos, quer-se minimalista. Ela é portamento de apego do homem ao seu corpo, a
o caos, o vidro estilhaçado, a abertura clandesti- loucura libera um incorpóreo: de potência cria-
na para o outro lado, a terceira margem, sem dei- dora para uns, terrorífico para outros, é somente
xar que se estabeleça uma língua própria ou uma no encontro com estas forças que o sujeito pode
tendência. Sem nomes próprios, ela reinventa a responder ao estímulo que se aproxima. Outros-
linguagem, assim como, reinventa o sonho: já sim, se provocamos este pensamento, isto não
não é possível que o outro sonhe pelo louco, uma significa que intentamos suscitar julgamentos do
vez que este não quer ser compreendido como o que seria normal ou patológico. Se provocamos
outro da história. Ao problematizar a noção do o sujeito a questionar sua própria razão é porque
“outro”, resgatamos o conceito sugerido por Aní- queremos dissolver as fronteiras tanto extensivas
bal Quijano (1999) de “colonialidade do poder”, quanto intensivas entre razão e desrazão, possibi-
onde esta colonialidade legitima um imaginário litando que se diga, acerca de qualquer produção
que estabelece diferenças entre colonizador e co- artística, que ela é também um pouco expressão
lonizado e, à medida que o colonizado aparece da loucura. Pela arte, confiamos, o sujeito des-
como o “outro da razão”, se justificaria o exercício vela um modo de existir, bem como, revela sua
de um poder disciplinar por parte do coloniza- desobediência ao cânone – que, em geral, possui
dor. Logo, o louco não é o outro do sonho, mas um funil muito estreito, pelo qual passam poucas
o próprio sonâmbulo que subverte tanto o sono obras, provenientes de um circuito cultural espe-
como a vigília e encobre com sua neblina inter- cífico. Como nos indica a história, o que resta e
rogativa qualquer razão dominante. Em outras se relega ao lixo é a produção de determinados
palavras, é pela suposição de “poder estar louco” sujeitos sociais marcados pela exclusão e pela di-
que se instaura uma espécie de perigo à repre- mensão do “outro”, tais como mulheres, negros
sentação e à normatividade, um perigo ao qual e negras, pobres e periféricos, sujeitos da loucu-
tória de vida através dos percursos que realiza no tências mínimas” que passariam despercebidas,
dia a dia de seu trabalho como catadora do lixão caso não lhe déssemos um estatuto de realidade.
e das coisas que recolhe do lixo, tangenciando es- Apostamos, portanto, num gesto de instauração
tes restos para compor uma espécie de coleção destas vidas, consoante ao que o filósofo Étien-
impressa pela “experiência estética” (DEWEY, ne Souriau faz no seu livro Les Différents Modes
2010) que conecta vida e obra da narradora. Pela d’Existence (apud LAPOUJADE, 2017) quan-
palavra, ademais, Estamira afirma sua existência: do visava dar acolhida aos seres que não sabe-
“eu sou a beira do mundo, estou em todo lugar”. mos dizer com precisão se existem, postulando
Seu discurso funciona como uma denúncia às certa arte de fazer existir, uma arte de instaura-
práticas psiquiátricas que tomam o sujeito como ção. David Lapoujade, ao comentar este gesto –
objeto. Estamira quer ser sujeito, apenas, de sua de instauração – na leitura que faz de Souriau,
vida. consegue manifestar com precisão aquilo que
126
reivindicamos deste autor à nossa escrita e à nos- remos combater: a exclusão do louco(a) da so-
sa pesquisa: ciedade pela imposição dos muros manicomiais.
Reafirmarmos novamente este compromisso
Instaurar é fazer valer esse direito, promovê-lo. para com nossas pesquisas enquanto seguimos
É legitimar uma maneira de ocupar um espa- endossando movimentos de transgressão ao si-
ço-tempo. (...). A partir de então, instaurar é lêncio imposto que, no tempo presente, toma po-
como se tornar advogado dessas existências sição na gênese de uma nova história.
inacabadas, seu porta-voz, ou melhor, seu por-
ta-existência. Carregamos sua existência como
elas carregam a nossa. Compartilhamos com Insólitas coleções e o que elas nos
elas a mesma causa, contando que possamos dizem dos arquivos da loucura
ouvir a natureza das suas reivindicações, como
se exigissem ser amplificadas, aumentadas,
No ano de 2017, a 30ª Edição do Prêmio
enfim, tornadas mais reais. Ouvir essas rei- Rodrigo Melo Franco de Andrade, promovida
vindicações, ver nessas existências aquilo que pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artís-
elas têm de inacabado, é forçosamente tomar o tico Nacional (IPHAN), apontou o trabalho que
partido delas. É o que significa entrar no ponto vêm sendo desenvolvido na Oficina de Criativi-
de vista de uma maneira de existir, não apenas dade do Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP)
para ver por onde ela vê, mas para fazê-la exis- de Porto Alegre (RS), premiando-o na Categoria
tir mais, aumentar suas dimensões ou fazê-la Iniciativas de Excelência em Técnicas de Preser-
existir de uma outra maneira (p. 90). vação do Patrimônio Cultural. Tal prêmio veio
como um modo de reconhecimento pelos quase
É com este ímpeto de instauração, de ques- trinta anos de funcionamento deste espaço que
tionamento e produção de novas narrativas so- atua no cuidado à loucura e que insurge como
bre arte e loucura, que aceitamos o convite para um dispositivo estratégico dentro das propostas
compor este dossiê e, com alegria, apresentamos
aos estudiosos de diferentes áreas do conheci- “alunos” acerca da arte e/ou sobre técnicas artís-
mento, como Psicologia, Psiquiatria, Artes, entre ticas, à medida que defende a liberdade enquanto
outras. Ademais, para Nise da Silveira, as obras parte do processo de aprendizagem.
ali conservadas valem por sua produção expres- No seu modo de operar, a oficina tor-
siva e terapêutica, enquanto reorganizam a reali- nou-se um espaço de acolhimento (do sujeito e
dade interna e externa dos pacientes (FRAYZE- de sua infâmia), aberto à criação e propício aos
PEREIRA, 1995). encontros entre os corpos que podem experi-
Inspirando-se no modelo de trabalho de mentar-se em sua plenitude inventiva. Ademais,
Nise e no seu Museu de Imagens do Inconsciente compõe-se como um território de fusão entre as
– bem como, no impulso incutido pela Reforma dimensões internas e externas do sujeito, pois, no
Psiquiátrica –, no ano de 1990, é inaugurada a olhar proposto à obra, assim como à loucura, não
Oficina de Criatividade do HPSP, a qual buscou haveria uma separação entre o dentro e o fora,
128
entre artista e sua produção, já que esta mesma em especial, àqueles produzidos nas oficinas de
produção se confunde com os acontecimentos pintura e desenho onde, atualmente, podem-se
que teriam levado o próprio sujeito à experiência encontrar cerca de 200 mil obras que operam
de habitar as margens. Neste aspecto imagético, como uma memória histórica e social da institui-
há uma diferença entre o trabalho desenvolvido ção, bem como, uma memória da vida e obra de
por Nise da Silveira em relação ao que propõe a seus artistas. Diante disso, uma questão começa
Oficina de Criatividade hoje – não porque seja a pairar e impõe-se como uma problemática a
melhor, mas porque concerne a outra tempora- ser resolvida: o que fazer com estes arquivos que
lidade. Tal diferença funda-se na concepção de se acumulam na oficina? E, como preservar este
que uma obra produzida não representa mera- material para evitar seu apagamento pela ação do
mente um determinado estado mental, mas a tempo?
imagem mesma é produtora de novas e possíveis Alicerçado a estas questões, no ano de
realidades. Entretanto, como Nise, também re- 2001, o Projeto de Extensão intitulado Potência
cusamos a interpretação de uma imagem que se clínica das memórias da loucura, coordenado pela
reduz à mera sintomática e nos conciliamos com professora Tania Mara Galli Fonseca do Instituto
o que pensa o historiador e filósofo francês Geor- de Psicologia Social e Institucional da UFRGS,
ges Didi-Huberman (2013) acerca de uma obra apresentou-se como uma resposta a esta deman-
de arte: que toda obra carrega um sintoma, po- da, dando evidências da necessidade de se olhar
rém, um sintoma que está intimamente ligado à para o arquivo e não somente para suas imagens.
história e ao tempo – como um código visual que Olhar para o arquivo, neste sentido, pode ser
permite ser retomado, a posteriori, adquirindo traduzido como a ação de manejar, catalogar e
uma configuração de testemunho deste arquivo, armazenar estas obras: tarefas que passaram a se-
a qualquer tempo. rem exercidas por estudantes da graduação, bol-
Durante estas três décadas de existência, a sistas de Iniciação Científica, com a supervisão e
partir de outro ponto de vista. Ademais, através um passado, já perdido, que retorna e irrompe
desta ação de transmutar o tempo e o espaço, os como um espaço lacunar no tempo presente. Por
estudantes que se aventuram neste projeto de ex- este salto anacrônico, sua coleção literária tem
tensão têm contribuído, não somente à preserva- a potência de modificar, no agora, toda a histó-
ção destes materiais pela prática de catalogação, ria das mulheres na filosofia, tal como uma arte
mas, na fabricação de narrativas que sejam pro- que vem instaurar estas existências femininas no
tagonizadas por estes infames que a história, por pensamento filosófico, outrora excluídas e silen-
muito tempo, relegou: “vidas ínfimas que se tor- ciadas. Além disso, conjecturamos que a força
naram cinzas nas poucas frases que as abateram” transformadora destes textos não está apenas no
(FOUCAULT, 2003, p. 204). Em síntese, falamos seu conteúdo, mas na sua estratégia de apresen-
de uma nova história da loucura pulverizada pe- tação, isto é, pelo modo como o autor monta e
las obras que se erguem como novos rastros da organiza o livro que nos é ofertado à leitura.
130
Correlata a isto, a constituição do Acer- espessura, que um Atlas é sempre a montagem
vo – como atividade referente à pesquisa, à arte da história daquilo que sobrevive, apesar de tudo
e à memória da loucura – também tangencia a – apesar do isolamento, da opressão, da exclusão,
necessidade de dispormos as imagens expressi- do silenciamento; apesar da loucura.
vas com certa intencionalidade, ofertando uma Ao tentar compreender o Atlas Mnemosy-
leitura que não separa o inteligível do sensível. ne de Aby Warburg, Didi-Huberman vai postular
No fim das contas, a técnica empreendida leva que tal produção se constitui como uma forma
à constituição de uma coleção de vidas, mais es- de conhecimento visual, concluindo que sua pre-
pecificamente, de suas sobrevivências, mediante tensão (se pudéssemos falar de um objetivo a ser
um tempo de pontas soltas que se mistura com o alcançado) seria a de preservar o inacabado na
espaço hostil da clausura. Neste ínterim, quando obra, pois, o Atlas inventa
propomos um “retorno” ao lixo que abriga a his-
tória infame da loucura, convocamos a Estamira zonas intersticiais de exploração, intervalos
que habita “todo lugar”, como uma proposição heurísticos. Ignora deliberadamente os axio-
narrativa que se coaduna à atividade de catar os mas definitivos. Corresponde a uma teoria do
conhecimento exposta ao perigo do sensível
restos e recolher toda a sorte de vestígios – perso-
e a uma estética exposta ao perigo da dispa-
nificado na figura do trapeiro criada por Walter
ridade. Por sua própria exuberância, descons-
Benjamin (1989) – que, colocados sobre a mesa,
trói os ideais de unicidade, de especificidade,
remontam à arqueologia das opressões em que se
de pureza, de conhecimento integral. Trata-se
fundam as expressões de nossas sobrevivências. de uma ferramenta, não do esgotamento lógi-
Na disposição de uma coleção imbuída pelo mé- co das possibilidades dadas, mas da abertura
todo da montagem, a qual se furta o arquivista inesgotável aos possíveis ainda não dados. Seu
(que, ora pode ser o estudante ora pode ser qual- princípio, seu motor, não é nada mais que a
quer um), o que temos, enfim, é a composição imaginação (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 15).
patrimônio cultural, mas, com vistas a compor no tempo presente, cuja agulha atravessa a pele e
um exercício de preservação à capacidade in- encontra sua narrativa intramuscular. Ato de su-
ventiva deste arquivo, impedindo que ele se fe- portar: a dor e o peso da borracha que insiste no
che, simplesmente, com a imposição da fita ade- seu apagamento. Por fim, erguem-se. Como titãs,
siva que liga uma ponta a outra do papel pardo. seguram os céus em seus ombros.
Diante disso, consideramos que o Prêmio rece-
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Referências
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Museu de Imagens do
Inconsciente
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
138
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Museu Oficina de
Criatividade (MOC-HPSP)
Imaginário em exposição, manicômios em desconstrução
ISBN 978-65-996542-1-3
ISBN 978-65-996542-1-3