Anjos Fósseis
Anjos Fósseis
Anjos Fósseis
Além disso, passando pelos portões rangentes das ilustres sociedades, dilapidados
tolos de 50 anos que deram início aos planos para um palácio celestial, mas
inevitavelmente terminaram com o Bates Motel, enquanto lá fora se estende a
multidão. Os embusteiros da psique. O rugido incoerente de nossa hermética torcida
em casa, os anouraques Akashicos, os metidos a Wiccans e o Templo UV dos quarenta
psíquicos-qualquer-coisa fazendo fila para a última franquia do reino das fadas,
reino dos irrecuperáveis hobbituados. Vila Potter.
Em resumo, alguém tem alguma pista do que estamos fazendo, e precisamente por que
estamos fazendo?
Como exatamente isso confirma o Aeon de Horus, Aeon de qualquer coisa se não de
mais consumismo, de política de gangsters, do materialismo levado ao limite da
mente? Isso que parece ser um lugar comum quase universal de aceitação de ideais
conservadores é na verdade sinal de uma desgovernada Thelema? O Cthulhu está
voltando em algum momento próximo ou são as maldições bárbaras da escuridão lá fora
onde os iluministas tentam achar seus traseiros com uma lanterna? O ocultismo
ocidental contemporâneo conseguiu realizar algo mensurável fora da sessão mediúnica
[séance parlour]? A magia tem algum outro uso definido para a espécie humana além
de oferecer a oportunidade de se fantasiar? Putas Tântricas e vigários da noite
temática de Thelema. Pentagramas em seus olhos. “Esta noite, Matthew, eu serei o
Logos do Aeon”. A magia demonstrou algum propósito, justificando sua existência de
modo como a arte ou a ciência ou a agricultura justificaram as suas? Em resumo,
alguém tem alguma pista do que estamos fazendo, e precisamente por que estamos
fazendo?
Certamente, a Magia nem sempre foi divorciada de maneira tão aparente de toda
função humana imediata. Sua origem paleolítica no xamanismo com certeza
representou, naquele momento, a única forma de mediação com um universo vasto e
hostil sobre o qual até então exercíamos muito pouco entendimento ou controle. Em
tais circunstancias é fácil conceber magia como representando inicialmente uma
realidade de parada única numa loja de conveniência pela estrada. Uma visão de
mundo em que todas as outras vertentes da nossa existência – caça, procriação,
lidar com os elementos ou pinturas nas paredes das cavernas – foram agrupadas. A
ciência de tudo, sua relevância para as preocupações comuns dos mamíferos, tanto
óbvias quanto inegáveis.
Essa função de uma “filosofia natural” com tudo incluso, obtida ao longo da
ascensão da civilização clássica, ainda pode ser vista, embora de maneira mais
latente, até o século XVI, quando as ciências mundana e oculta não eram tão
dissociáveis como são hoje. Seria surpreendente, por exemplo, se John Dee não
cedesse seu conhecimento de astrologia matizando sua inestimável contribuição para
a arte da navegação ou vice-versa. Não até que a Idade da Razão gradualmente
pervertesse nossa crença e contato com os deuses que proveram nossos predecessores
e nosso inexperiente senso de racionalidade identificasse o sobrenatural como um
mero órgão vestigial no corpo humano, obsoleto e possivelmente doente, que deve ser
rapidamente extraído.
A ciência, crescida à parte da magia, dotada da magia, cria impulsiva, sua forma
mais prática e portanto materialmente proveitosa de aplicação, muito cedo decidiu
que o ritual e a alfaia simbólica de sua cultura parental alquímica era redundante,
um estorvo e um constrangimento. Inflado em seu novo jaleco branco, com
esferográficas ostentadas como medalhas em seu peito, a ciência envergonhou-se de
seus companheiros (história, geografia, por exemplo) flagrados fazendo compras com
a mãe, com todo o seu resmungo e cantoria. Seu terceiro mamilo. Melhor esconder sua
loucura em algum lugar seguro, alguma Fraggle Rock [gíria inglesa para uma ala
psiquiátrica em que os encarcerados tomam altas dosagens de medicamentos fortes]
para velhos e perturbados paradigmas.
A magia, por outro lado, perdeu todo o seu propósito e utilidade demonstrável, como
muitos pais quando os filhos crescem e vão embora
A cisão que isso causou na família de ideias humana parece irrevogável, com duas
partes do que antes era um organismo separado pelo reducionismo, uma “ciência de
tudo” inclusiva se tornou duas visões separadas, cada uma aparentemente em acirrada
e viciosa oposição em relação à outra. A ciência, no processo deste amargo
divórcio, pode-se dizer que perdeu contato com seu componente ético, com base moral
necessária para prevenir a reprodução de monstros. A magia, por outro lado, perdeu
todo o seu propósito e utilidade demonstrável, como muitos pais quando os filhos
crescem e vão embora. Como preencher o vazio? A resposta é, seja falando da magia
ou do mundano, lastimando por pais e mães com ninhos vazios, com toda
probabilidade, “com ritual e nostalgia”.
Outra clara distinção entre os magos dos séculos XVI e XIX encontra-se em sua
relação com a narrativa de suas épocas. Os irmãos da recém-criada Golden Dawn
teriam se inspirado muito mais por puro romance em torno da magia que por qualquer
outro aspecto, com S. L. McGregor Mathers seduzido pelo desejo de fazer da sua vida
uma fantasia como Zanoni de Bulwer Lytton. Convenceu Moina a se referir a ele como
“Zan”, alegam. Woodford e Wescott, por outro lado, ansiosos por fazerem parte de
uma ordem que tinha ainda mais parafernália que a Maçonaria Rosacruciana, de alguma
forma fizeram contato com os fabulosos (literalmente) graus da Geltische Dammerung,
que significa algo como “hora dourada do chá”. Traziam em mãos seus diplomas de
Nárnia, tirados direto do outro lado do guarda roupa. Ou lá estava Alex Crowley,
tentando forçosamente convencer sua turminha a chama-lo por Alastor, de Shelley,
como algum autonomeado Goth de Nottingham chamado Dave insistindo que seu nome de
vampiro era Armand. Ou, pouco tempo depois, havia todo o tipo de bruxaria de culto
antiquíssimo, todo tipo de coven de linhagem de sangue despertando como os filhos
do dragão onde quer que os escritos de Gerald Gardner estivessem disponíveis. Os
ocultistas do século XIX todos pareciam querer ser o tio do Aladdin em uma eterna
pantomima. Viver o sonho.
John Dee, do contrário, foi talvez mais premeditadamente consciente que qualquer
outra pessoa de sua época. Mais focado e com mais propósito. Ele não precisou
procurar por antecedentes nas ficções e mitologias disponíveis, porque John Dee não
estava de maneira alguma para brincadeira. Ele inspirou as grandes ficções mágicas
de seu tempo, e não o contrário. O Próspero de Shakespeare. Fausto de Marlowe. O
jocoso Alquimista de Ben Johnson. A magia de Dee era uma força viva e progressiva,
integral em seu tempo, em vez de um espécime extinto e empalhado, sem relevância em
histórias e contos de fadas. Tinha em mãos um novo e excitante capítulo, escrito
inteiramente em tempo presente, com a aventura mágica em andamento. Por comparação,
os ocultistas que o seguiram no decorrer de uns três séculos tiveram no máximo um
elaborado apêndice, ou talvez uma bibliografia. Uma liga conservadora, murmurando
em sincronia os ritos de um homem morto. Versões covers. Karaokê da feitiçaria. A
magia, uma vez dada por vencida ou usurpada de sua função social perdeu sua razão
de ser, o astro da noite viu-se em meio ao teatro vazio, de cortinas misteriosas.
Cestos empoeirados de vestidos velhos, inescrutáveis adereços para peças
canceladas. Na falta de um papel, cresceu incerta de suas motivações, a magia
pareceu não ter recursos a não ser bancar o bom cãozinho e seguir o script,
resguardando cada último gesto e suspiro, com sua performance esvaziada por hora
congelou-se, embrulhou-se; habilmente se reempacotando para a posteridade inglesa.
Quão lamentável então, que tenha sido este momento na história da magia, com
conteúdo e função perdidos por trás de um ritual sobrecarregado de pormenores
embutidos, que muito fala e pouco faz, precisamente aquele que as últimas ordens
decidiram por cristalizar. Sem uma meta ou missão pré-definidas, nenhum conforto
vendável, os ocultistas do século XIX parecem ter dado demasiada atenção a um
pomposo papel de presente. Possivelmente inaptos a conceber qualquer grupo que não
fosse estruturado de maneira hierárquica como nas lojas das quais estavam
habituados, Mathers e Wescott obedientemente importaram todos os bens de família
maçônicos quando foram mobilhar a sua recém nascida ordem. Todos os trajes, graus e
utensílios. A mentalidade de uma ordem secreta elitizada. Crowley, é claro, pegou
toda essa bagagem pesada e ostentosa quando puxou seu barco para fundar a O.T.O., e
todas as outras ordens desde então, mesmo em suas pretensas empreitadas
iconoclastas como a I.O.T., parecem ter adotado o mesmo padrão do auge da era
vitoriana. Armadilhas suficientemente sensacionalistas, intrincadas o bastante para
chamar a atenção para o que os críticos maldosos poderiam perceber como um vácuo de
quaisquer resultados práticos, qualquer efeito sobre a condição humana.
Não poderiam todas as ordens magísticas serem interpretadas como os restos imóveis
calcificados de algo antes vivo e mutável?
A décima quarta (e talvez última?) edição da estimada Revista Kaos, de Joel Biroco,
trazia uma reprodução de uma pintura, um surpreendente, afetuoso e assustador
trabalho nas belas pinceladas de Marjorie Cameron, ruiva assustadora, companheira
de lar de Dennis Hopper e Dean Stockwell, reputada dama escarlate, queridinha
telemita. Entretanto, quase tão intrigante quanto o trabalho em si é o título: Anjo
Fóssil, com suas contraditórias conjurações de algo maravilhoso, inefável e
transitório combinadas com isso que é por definição morto, inerte e petrificado.
Haverá aí uma metáfora conveniente, tão sóbria quanto instrutiva? Não poderiam
todas as ordens magísticas, com suas doutrinas e dogmas, serem interpretadas como
os restos imóveis calcificados de algo antes intangível e cheio de graça, vivo e
mutável? Como energias, como inspirações e ideias que dançavam de mente em mente,
evoluindo pelo menos até que a primeira fração de calcário de ritual e repetição as
tenham congelado em seu percurso, paralisando-as no meio do caminho para alguma
realização, algum gesto incompleto? Iluminações de trilobitas. Anjos fósseis.
Algo incipiente e etéreo, uma vez desperto brevemente, como uma pedra saltando pela
superfície de nossa cultura, deixando sua leve e tênue marca no barro humano, uma
impressão digital que moldamos em concreto com um aparente resquício de conteúdo
capaz de nos fazer ajoelhar por décadas, séculos, milênios. Recite as
tranquilizantes e familiares cantigas de ninar ou encantamentos palavra por
palavra, e cuidadosamente reencene a velha e amada historinha e talvez algo
aconteça, como já aconteceu antes. Se amarrarmos um carretel e papel alumínio em
uma caixa de papelão fazendo a parecer vagamente um rádio talvez John Frumm apareça
e traga helicópteros de volta? As ordens secretas, tendo feito um fetiche de todo
tipo de cerimônia que surgiu ou se passou há meio século atrás, sentam como Miss
Haversham e se perguntam se os insetos no bolo de casamento de alguma maneira
confirmam o Livro da Lei.
Uma vez mais, nada disso tem a intenção de negar a contribuição que as várias
ordens e seu trabalho fizeram ao campo da magia, mas meramente observar que essa
contribuição admitidamente considerável, é amplamente, de natureza enclausurante em
sua preservação do ritual e folclore do passado, ou mesmo que sua elegante síntese
de ensinamentos discrepantes é sua principal (e talvez única) conquista. Diante de
tais realizações, entretanto, o persistente legado da cultura ocultista do século
XIX parece em sua maioria uma antítese à continuidade saudável, proliferação e
viabilização da magia, que, como uma tecnologia, com certeza já ultrapassou o
datado vaso ornamentado vitoriano e está precisando urgentemente de um transplante.
Toda a mobília artificial Maçônica e alicerce implementados por Wescott e Mathers,
bastando querer para ser capaz de imaginar outra estrutura válida, tornou-se, para
a nossa época, uma limitação e impedimento para o fomento da magia. Resquícios
enganosos, faixas cerimoniais apertadas que pressionam qualquer crescimento,
restringem todo o pensamento, limitam os caminhos nos quais concebemos ou podemos
conceber magia. Imitando os construtos do passado, pensando em termos não
necessariamente aplicáveis hoje – que talvez de fato nunca tenham sido – parecem
ter deixado o ocultismo moderno totalmente incapaz de visualizar qualquer método
diferente no qual possa organizar-se. Inapto a imaginar qualquer progresso,
qualquer evolução, qualquer futuro, o que é provavelmente a garantia para que não
tenha mesmo nenhum.
para quem buscava qualquer coisa vital dentro da ordem secreta, qualquer coisa que
valha algo para qualquer ser racional, não havia nada lá…
O problema é que jardineiros algumas vezes brigam. Disputas por fronteira. Vendetas
e despejos de inquilinos, sob a luz da lua. Uma vez que estas invejáveis
propriedades são ocupadas, são com frequência cagadas por novas famílias
problemáticas, novas intrigas. Atêm-se às velhas placas de identificação, mantêm-se
o mesmo endereço, mas deixam o lugar se acabar, permitindo que seu terreno caia em
estado de calamidade. Lesmas deslizando-se, ervas daninhas crescendo entre vinte e
duas pétalas de rosa. Nos anos 90 do século XIX, a paisagem do jardim da magia era
porcamente mantida com preguiçosos e desleixados loteamentos subaproveitados e mal
drenados, pintura descascando nas casas de verão egípcias cafonas, agora meros
estábulos onde paranoicos vigilantes rurais ficam acordados a noite toda, mimando
suas espingardas e esperando vândalos adolescentes. Não há produto sequer que
mereça ser mencionado. As flores não têm perfume e não mais encantam. Você sabe,
eram todos aqueles caprichados lamens e tábuas xadrez enoquianas aqui e ali, e
agora vejam só. As desgrenhadas sebes com sua topiária Goética tão seca quanto
palha, ripas de madeira apodrecidas naquele gazebo de estilo Rosacruziano. No que
isso tudo pode resultar é com toda certeza um incêndio.
Leve isso um dia de cada vez, doce Jesus. Infle nossas narinas, nos mantenha
unidos. De alguma maneira iremos suportar
Não, francamente. Terra arrasada. Tem-se aos montes pra indicar. Imagine a cara que
tinha quando a moda dos robes e estandartes pegou. Perder a vida e o sustento era
inevitável, é claro, algum dano colateral no setor de negócios, mas com certeza
seria legitimamente belo. As vigas do templo desmoronando em chamas faiscantes.
“Esqueça-me! Salve os manuscritos cifrados!” Entre as incontáveis Missas Gnósticas,
juramentos, evocações e banimentos, havia qualquer coisa que os distraíssem de um
alerta de incêndio? Ninguém tinha certeza de como eles evacuariam a câmara interna,
nem saberiam quantos ainda estariam lá dentro. Finalmente surgem contos de bravuras
voluntariosas de cortar o coração. “Ele voltou pra resgatar o desenho do LAM, e não
conseguimos pará-lo.” Em seguida, um momento de silencio, para refletir. Enterra-se
o morto, apontam-se os sucessores. Rompe-se o selo de Hymenaeus Gamma. Um olhar
triste sobre nossos acres enegrecidos. Leve isso um dia de cada vez, doce Jesus.
Infle nossas narinas, nos mantenha unidos. De alguma maneira iremos suportar.
E agora? Terra arrasada, é claro, é rica em nitratos e provê uma base para
agricultura de corte e queimada. No pó carbonizado, o broto verde da recuperação. A
vida floresce indiscriminadamente, agitando-se em solo negro. Poderíamos ceder essa
majestosa relva de volta para a natureza. Por que não? Pense nisso como ecologia
astral, o reclame de um cinturão verde psíquico sob o pavimento rachado do
ocultismo vitoriano, como um encorajamento para o crescimento de uma biodiversidade
metafísica. Considerada como um princípio organizador para a operação mágica, a
complexa e autogeradora estrutura fractal de uma selva pareceria tão viável em cada
pequena porção quanto qualquer imposição ilegítima de uma ordem de piso de loja
xadrez; pareceria, de fato, consideravelmente mais natural e vital. Afinal, o
tráfego de ideias que é a essência e a seiva da magia é mais efetivo hoje em dia em
arbustos-telégrafos de um tipo ou outro, em vez de segredos ritualísticos
solenemente alcançados após anos de tentativas, CSEs [certificados de educação
secundária] de Hogwarts. Não será essa floresta tropical o modo de interação, na
verdade, a configuração padrão do ocultismo ocidental para os dias de hoje? Por que
não sair e admitir isso, demolir todos esses clubes que não servem nem como
ornamento, abraçar a lógica dos cipós? Dinamitar as barragens, liberar a enchente,
deixar a nova vida florescer nos ameaçados e moribundos habitats de outrora.
A última seria, um palpite, a que fornece o motivo que é mais popular atualmente. A
ascensão da Magia do Caos na década de 1980 centrada em uma série de promessas de
campanha, a mais notável delas a oferta de um sistema de magia baseado em
resultados e que era prático e fácil de usar. O desenvolvimento único e altamente
pessoal de Austin Spare, o Sigilo Mágico, foi nos dito ser facilmente adaptável
para uso universal, fornecendo uma maneira simples e infalível de que o desejo do
coração de alguém poderia ser fácil e imediatamente cumprido. Pondo de lado a
questão “isso é real?” (e a dúvida subsequente: “se for, por que seus defensores
ainda continuam suas rotinas diárias de trabalho, em um mundo progredindo em
sentido contrário aos desejos dos corações de qualquer um, a cada semana que
passa?”), talvez devêssemos nos perguntar se o prolongamento dessa atitude
pragmática, causal para com o trabalho oculto, seja mesmo um uso digno de magia.
nossas melhores e mais puras ações são aquelas realizadas “sem ânsia de resultado”
Se, por exemplo, é dinheiro que almejamos, por que não seguir o exemplo legítimo de
Austin Spare (quase o único dentre os magos que parece ter visto o uso da magia
para atrair riqueza como uma anátema) considerando tais preocupações? Se for
dinheiro que queremos por que não podemos levantar magicamente nossas bundas
gordas, magicamente trabalhar pelo menos uma vez na nossa sedentária vidinha
mágica, e vemos se as moedas requisitadas não aparecem magicamente algum tempo
depois em nossas contas bancárias? Se for o afeto de alguma paixão não
correspondida o que estamos buscando, então a solução é ainda mais simples: jogar
boa noite cinderela em sua bebida e estupra-la [1]. Afinal, a miséria moral do seu
ato não será pior e pelo menos você não vai ter que mover meio mundo no
transcendente pra fazer coisas como segura-la para você. Ou se há alguém que você
genuinamente acredita merecer um castigo terrível então ponha na estante a sua
clavícula menor de Salomão e vá direto telefonar pro Frankie-Navalha ou pro Big
Stan. O capanga contratado ilustra bem a decisão ética se comparado ao uso de anjos
caídos pra fazer aquele trabalho sujo (isso assumindo que ir até a casa do sujeito
tirar satisfação, ou apenas, você sabe, superar isso e seguir em frente não sejam
opções viáveis). Ou ainda mesmo o exemplo do amigo doente citado anteriormente:
apenas faça uma visita. Apoie-o cedendo um pouco do seu tempo, seu dinheiro, seu
amor, sua conversa. Cristo, envie um cartão com o desenho de um coelho triste na
capa. Vocês dois se sentirão melhores com isso. Magia intencional ou causal pode
muitas vezes parecer com obter a realização de um fim bastante comum sem fazer o
trabalho comumente associado a ele. Poderíamos muito bem afirmar, citando Crowley,
que nossas melhores e mais puras ações são aquelas realizadas “sem ânsia de
resultado”.
Talvez sua outra famosa máxima, que advoga que buscamos “o objetivo da religião”
utilizando “o método da ciência”, ainda que bem intencionada, talvez tenha levado a
comunidade magística (tal como ela é) a esses erros fundamentais. Afinal de contas,
o “objetivo da religião”, se observarmos a palavra latina “religare” (uma palavra
de raiz semântica comum a outras palavras tais como “ligamento” e “ligadura”)
parece insinuar que “todos fossem unidos em uma única crença”. Este impulso à
evangelização e conversão deve, em qualquer aplicação no mundo real, chegar a um
ponto onde aqueles vinculados a um segmento partirão pra cima daqueles ligados por
outro. Neste ponto, inevitavelmente e historicamente, ambas as facções irão levar
adiante sua traçada vontade em vincular uma à outra em sua única e verdadeira
crença. E então nós massacramos os carolas, os crentes, os góis, os iídiches, os
cafres e os cabeças de turbante. E quando isso historicamente e inevitavelmente não
funcionar, nós nos sentamos e pensamos nas coisas por um século ou dois, damos um
intervalo decente, e então fazemos tudo isso de novo, que nem antes. O objetivo da
religião parece estar, enquanto algo claramente benigno, fora da estrada por uma
milha ou duas, jogado para além do acostamento. A meta, aquilo que ela mirava,
permanece intocável, e a única coisa atingida é Omagh ou Kabul, Hebron, Gaza,
Manhattan, Baghdad, Kashmir, Deansgate, e por aí em diante, e em diante, pra
sempre.
não poderíamos dizer que a magia tenha uma simpatia natural com a anarquia, o
oposto do fascismo?
A noção de amarrar tudo que se encontra na raiz etimológica da religião é também
encontrada, de forma reveladora, no agrupamento simbólico de varas amarradas, os
fachos, que mais tarde daria origem ao termo fascismo. Fascismo, baseado em
conceitos místicos tais como sangue e “volk” (povo em alemão), seria mais
propriamente visto como religião que como instancia política, uma política embasada
em alguma forma de razão, porém equivocada e brutal. A ideia de sermos unidos em
uma única fé, uma única crença; que a união (e também, inevitavelmente, a
uniformidade) faz a força, parece ser antitética à magia, que é sobretudo, decerto
pessoal, subjetiva e pertinente ao individual, à responsabilidade por cada criatura
sensível para alcançar seu próprio entendimento do sagrado e assim fazer as pazes
com Deus, o universo e tudo o mais. Então, se podemos dizer que a religião encontra
seu equivalente político próximo ao fascismo, não poderíamos dizer que a magia
tenha uma simpatia natural com a anarquia, o oposto do fascismo (derivado dos
termos an-archon, ou “sem líder”)? O que é claro nos leva de volta aos templos
incendiados, líderes de ordens destituídos e despejados, a terra queimada e a
abordagem de natureza selvagem e anárquica da magia, sugerido anteriormente.
Para além de tudo isso, há outros ruídos, razões convincentes do por que pensar
magia como uma ciência nos limita. Primeiramente e nitidamente que não é. A magia,
depois que renunciou a toda e qualquer aplicação prática ou mundana após o
crepúsculo dos alquimistas, não pode mais ser considerada como uma verdadeira
ciência, assim como também, podemos dizer, a psicanálise. Por mais que Freud possa
ter desejado o contrário, por mais que tenha, entretanto, lamentado que Jung tenha
arrastado seu pretenso método científico para o fundo do escuro e borbulhante lodo
do ocultismo, magia e psicanálise não podem nunca, por definição, serem permitidas
a terem um lugar entre as ciências. Ambas lidam quase exclusivamente com fenômenos
que não podem ser repetidos nas condições de laboratório e que, sendo assim,
existem fora do alcance da ciência, preocupada apenas com as coisas que podem ser
medidas e observadas, comprovadas empiricamente. Uma vez que a própria consciência
não possa ter sua existência comprovada em termos científicos, então nossas
afirmações que diziam que a consciência é atormentada seja pela inveja do pênis ou
por demônios das Qlippoth devem permanecer para sempre além das fronteiras
limítrofes do que pode ser verificado por exame racional. Francamente, deve-se
dizer que a magia, quando considerada ciência, se coloca em um nível equivalente ao
de alguém que escolhe os números da loteria utilizando a data do aniversário de
alguém que ama.
Esse parece ser o “X” da questão: Se a magia é uma ciência, claramente não é uma
particularmente bem desenvolvida. Onde estão, por exemplo, os equivalentes mágicos
das teorias geral ou restrita da relatividade de Einstein, ou mesmo a interpretação
de Bohr em Copenhagen? Sejamos objetivos, onde estão nossas analogias para a lei da
gravidade, termodinâmica e todo o resto? Erastóstenes uma vez mediu a
circunferência da terra utilizando geometria e sombras. Quando foi a última vez que
utilizamos algo tão útil e tão engenhoso quanto isso? Houve qualquer coisa parecida
com alguma teoria geral desde a Tábua de Esmeralda? Uma vez mais, talvez a
preocupação de uma magia com causa e efeito tenha sua parcela de culpa nisso.
Nossos axiomas em maioria parecem estar no nível de que se eu fizer “A” então “B”
vai acontecer. Se nós dissermos essas palavras e chamar por estes nomes então
certas visões aparecerão para nós. E como exatamente isso acontece, bem, quem se
importa? Desde que tenhamos resultados, o pensamento corrente parece ser por que se
importar em como obtemos? Se batermos essas duas pedras uma na outra depois de um
tempo elas vão fazer uma faísca e toda essa grama seca vai pegar fogo. E você já
reparou em como ter certeza de que se você sacrificar um porco durante um eclipse o
sol sempre retorna? A magia, na melhor das hipóteses, é ciência paleolítica.
Certamente é melhor deixar de lado o discurso da entrega do Prêmio Nobel para
quando aparar os cabelos da testa.
nós nos tocamos que não somos nem missionários nem botânicos, mas o que então somos
nós?
Aonde exatamente, podemos razoavelmente perguntar, isso tudo nos leva? Tendo
imprudentemente descartado nossas ordens ou tradições consagradas pelo tempo e
rasgando nossa declaração de intenções; tendo dito que a magia não deve ser
religião e não pode ser ciência, teremos nós levado essa abordagem de Ano Zero do
Khmer Vermelho longe demais, cortando nossas próprias jugulares com a Navalha de
Occam? Agora que trouxemos abaixo as nossas marcações e reduzimos nosso território
a uma mata indistinta, será mesmo que esta é a melhor hora para jogarmos fora nossa
bússola? Agora, enquanto a noite cai sobre a selva, nós nos tocamos que não somos
nem missionários nem botânicos, mas o que então somos nós? Párias? Chiados breves
no breu da escuridão? Se as metas e métodos da ciência ou da religião são
inviavelmente fúteis, mero fim da linha definitivo, qual outro papel para a magia
podemos conceber a existência? E por favor, não diga que é algo tão difícil assim,
pois por todos os mantos negros e assustadores, tenderíamos a nos assustar
facilmente.
as artes sempre consideraram a Magia com mais simpatia e mais respeito que a
ciência e a religião
A literatura, por outro lado, está tão intrinsecamente envolvida com a essência
própria da magia que as duas podem ser efetivamente consideradas a mesma coisa.
Feitiços e soletrar (spell e spelling. o verbo “to spell” pode ser traduzido tanto
como soletrar quanto enfeitiçar), encantos bárdicos, gramáticas e grimórios, magia
como “enfermidade da palavra” como Aleister Crowley tão inspiradamente descreveu.
Odin, Thoth e Hermes, deuses da magia e da escrita. A terminologia mágica, seus
simbolismos, conjurações e evocações, quase idênticos à da poesia. No início era o
verbo. Com a magia sendo quase totalmente uma construção linguística é
desnecessário ditar a longa lista dos muitos literatos praticantes de ocultismo. Na
escrita, como na música ou na pintura, uma intensa e íntima conexão com o mundo da
magia é tanto evidente quanto óbvia, e parece completamente natural. Com
certeza, as artes sempre consideraram a Magia com mais simpatia e mais respeito que
a ciência (que, historicamente, sempre buscou provar que os ocultistas são
fraudulentos ou estão iludidos) e a religião (que, historicamente, sempre buscou
provar que os ocultistas são inflamáveis). Enquanto elas compartilham o status
social e amplo respeito concedidos à igreja e ao laboratório, o campo da arte não
visa excluir, nem é governado por uma doutrina que é inimiga da magia, tal como
pode ser dito de seus dois companheiros indicadores do progresso cultural da
humanidade. Afinal, enquanto a magia tem produzido, em tempo relativamente recente,
alguns poderosos teólogos dignos de nota e mesmo alguns poucos cientistas, ela tem
produzido uma infinidade de inspirados e inspiradores pintores, poetas e músicos.
Talvez devêssemos ficar com aquilo que nós sabemos que somos bons?
As vantagens de tratar magia como uma arte parecem à primeira vista consideráveis.
Por um lado, não há interesses capazes de sustentar uma objeção à inclusão da magia
no cânone, mesmo que eles se entretenham contestando a princípio, o que é pouco
provável. Isso está claramente longe de ser o caso com a ciência e com a religião,
que por natureza própria tem questão de honra em ver a magia insultada e
ridicularizada, marginalizada e deixada para enferrujar no ferro velho da história
junto com as teorias da terra plana, da memória da água e do flogisto. A arte, como
categoria, representa um ambiente fértil e hospitaleiro onde a energia da magia
poderia ser direcionada para seu crescimento e desenvolvimento como campo, em vez
de canalizada em lutas fúteis para aceitação, ou queimada inutilmente e deixada de
lado com o passar do tempo em repetidos rituais do século passado. Outro benefício,
é claro, se encontra na numinosidade da arte, sua própria falta de definição em
arestas rígidas e, portanto, sua flexibilidade. As questões “o que exatamente
estamos fazendo e por que estamos fazendo”, que questionam o “método” e o
“objetivo”, são trazidas a uma nova luz quando questionadas em termos da arte. O
único objetivo da arte pode ser o de lucidamente expressar a mente, o coração e a
alma humana em todas as suas incontáveis variações, assim para alcançar uma melhor
compreensão do universo ou de si mesmo, favorecendo o seu crescimento em direção à
luz. O método da arte é o que quer que possa ser mesmo além do imaginado. Esses
parâmetros de propósito e procedimento não são suficientemente elásticos para
permitir a inclusão de agendas mais radicais ou mesmo conservadoras para a magia?
Ocultismo vital e progressivo, belamente expressado, que não tem obrigação alguma
de se explicar ou se justificar. Cada pensamento, cada linha, cada estranha imagem
feita para nenhum outro propósito senão de serem ofertas dignas aos deuses, à arte,
à própria magia. A arte pela arte.
Se a magia fosse considerada como uma arte ela teria acesso culturalmente válido à
paisagem interior [Infrascape], os territórios imateriais intermináveis que são
ignorados e invisíveis à ciência, que são inacessíveis à razão científica, e,
portanto, compreendem o terreno mais natural da magia. Voltar esforços para a
exploração criativa do espaço interior da humanidade pode não só ser de utilidade
humana massiva, como pode eventualmente restaurar à magia todo o propósito e
relevância, a utilidade demonstrável que lhe foi tão lamentavelmente privada, e por
tanto tempo. Visto como arte, o campo ainda poderia produzir as resmas de teorias
especulativas de que tanto gosta (afinal, filosofia e retórica podem ser vistas
mais facilmente como arte que como ciência), contanto que fossem escritas de
maneira bela e interessante. Enquanto, por exemplo, o Livro da Lei poderia ser
questionado em valor quando considerado puramente como texto profético descrevendo
definitivas ocorrências de estados de consciência porvir, não se pode negar que
seja um exemplo de escrita da porra, que merece ser reverenciado como tal. O ponto
é que se a magia abandonasse suas vazias pretensões enquanto ciência e saísse do
armário como arte, obteria ironicamente a liberdade para seguir em suas aspirações
científicas, talvez até mesmo se valendo de um teorema do campo unificado do
sobrenatural, tudo isso em termos aceitáveis para a cultura moderna. A obra prima
de Marcel Duchamp, A Noiva Despida Por Seus Celibatários, é mais possível que seja
pensada como alquimia genuína, que como descrita em um trabalho de um pobre coitado
que sugere que tenha algo a ver com fusão a frio. A arte é claramente um ambiente
muito mais confortável para o pensamento mágico do que a ciência, com uma decoração
muito mais relaxante e mobília muito mais bonita.
Como é que esta mudança de premissa tem impacto, então, sobre nossa metodologia?
Que mudanças de ênfase podem ser vinculadas, e poderiam tais alterações serem
vantajosas tanto à magia enquanto campo como para nós enquanto indivíduos? Se
tivermos uma intenção séria de reinventar o oculto como A Arte, uma alteração
básica em nossos métodos de trabalho que poderia produzir benefícios consideráveis
seria se nós nos determinássemos a cristalizar qualquer ideia, verdades ou visões
que nossas viagens mágicas tenham nos proporcionado em algum artefato, algo que
todo mundo pudesse ver também, só pra variar. A natureza do artefato, seja um filme
ou Haikai, um expressivo desenho a lápis ou um exuberante espetáculo teatral, é
completamente sem importância. Tudo o que importa é que seja arte e que permaneça
fiel à sua inspiração. Uma vez que tenha sido adotado, em um único golpe, um ajuste
tão pequeno de processo quanto esse poderia verdadeiramente transformar o mundo em
magia. Em vez de ser por uma motivação pessoal, de funcionamento toscamente causal
tanto de intenção duvidosa e resultado duvidoso, magia de punheta que termina
geralmente em satisfação limitada, nossas transações com o mundo oculto seriam
produtivas, gerando questões em resultados tangíveis onde todos possam julgar seus
valores por si próprios. Em termos puramente evangélicos, como propaganda de uma
visão de mundo mágica mais iluminada, a arte com certeza representa a nossa
“evidência” mais convincente de outros estados e planos de existência. Enquanto os
pensamentos de Austin Spare são inegavelmente interessantes quando expressados na
forma de escrita como teoria, é sem dúvida seu talento como artista que proporciona
a percepção de entidades e outros mundos realmente testemunhados e registrados, a
autenticidade imediata que conferiu a Spare muito de sua reputação como um grande
mago. Ainda mais importante, um trabalho como o de Spare fornece uma janela para o
mundo oculto, permitindo aqueles que estão fora uma expressão mais eloquente acerca
do que é a magia do que qualquer trato arcano, oferecendo-lhes uma razão legítima
para se aproximar do oculto pra começo de conversa.
Com a arte, a visão mais forte vai prevalecer, mesmo que demore décadas, séculos
Em nosso cenário selvagem para a magia, com a competição Darwiniana feroz e justa
entre as ideias implícita, tratar o oculto como uma arte também poderia emprestar
um meio de lidar com (ou fomentar) quaisquer disputas que possam surgir. A arte tem
uma maneira de resolver tais disputas por si, indiscutivelmente, sem recorrer a
processos capengas como, por exemplo, resolução violenta de conflitos, litígios, ou
ainda pior, democracia de patricinha. Com a arte, a visão mais forte vai
prevalecer, mesmo que demore décadas, séculos para que aconteça, como William
Blake. Não há necessidade de sequer fazer uma votação sobre qual é a visão mais
forte: esta seria aquela sentada quietinha em seu canto indisputável da nossa
cultura, indiferente palitando os dentes com os esternos de seus rivais. Mozart
abate um Salieri, dorme durante dois dias após o banquete, período no qual a savana
pode relaxar. Dando o bote de repente por entre as sombras das torres de concreto,
J. G. Ballard corta fora Kingsley Amis, enquanto Jean Cocteau não sai da cola da
ossuda bunda Imperial-Ciclópica [possível referência ao Ku Klux Klan] de D. W.
Griffith como um filho da puta. Uma seleção natural artística, sanguinária, mas
equilibrada, parece uma forma muito mais razoável de resolver assuntos que decisões
arbitrárias e sem resposta, proferidas pelos chefes de ordens, como Moina Mathers
dizendo a Violet Firth que sua aura não tinha os símbolos adequados.
Além disso, se a viciosa luta por sobrevivência é promulgada decretada nos termos
daquele cuja a ideia é mais potente e mais bela em sua expressão, então os
espectadores da briga-de-galos estão mais propensos a acabar sujos de metáforas
magníficas do que com respingos frescos de entranhas. Mesmo nossas brigas mais
incestuosas e sem sentido podem, assim, ter um produto que enriquece o mundo em
alguma pequena parcela, em vez de nenhum resultado, salvo de que a magia pareça uma
briga de parquinho ainda mais infantil e inane do que todos pensavam que era. Ao
julgar por seus méritos, tal atitude de lógica selvagem para com a magia, com sua
estética predatória e ideias competindo em uma mata fertilizada por seus
requintados excrementos culturais, parece oferecer ao ocultismo uma situação em que
todos ganham. Como poderia alguém ser contra, exceto no caso daqueles cujas ideias
podem ser vistas como gordas, lentas, incapazes de voar, e fonte acessível de
proteína; aqueles bem qualificados como presa primária que talvez estejam começando
a suspeitar que isso tudo seja um argumento de um tigre para safáris em campo
aberto?
Por que deveria o medo do ridículo causar problemas para ocultistas que juraram
manterem-se firmes frente às próprias portas do inferno?
Após análise, estas últimas dúvidas e medos mencionados, ainda que certamente
triviais dentro de um contexto de bem estar da magia enquanto campo, é provável que
sejam obstáculos mais graves para qualquer grande aceitação de uma ética-pantanal
primal, como é proposta. No entanto, se aceitarmos que as únicas alternativas para
a selva sejam um circo ou um jardim zoológico, a ideia talvez seja mais
considerável. E se nossas preciosas ideias devam ser rasgadas em pedaços no momento
em que mal estão saindo do ninho, mesmo que isso seja, é claro, angustiante, não é
mais que uma prova da qual suportou qualquer poeta estudante ocasional ou pintor de
domingo que expõe seu desajeitado esforço ao julgamento de outro. Por que deveria o
medo do ridículo ou da crítica, medo do qual o mais baixo bêbado de karaokê está
aparentemente bem capaz de superar, causar problemas para ocultistas que juraram
manterem-se firmes frente às próprias portas do inferno? Na verdade, a superação de
tais fobias simples não deveria ser pré-requisito pra quem quer trajar a si como um
mago? Se considerar magia como arte e arte como magia, se como os antigos xamãs
percebêssemos um dom para a poesia como um poder mágico, magicamente concedido, não
teríamos finalmente uma resposta quando uma pessoa qualquer na rua nos pede, de
forma razoável, para demonstrar um pouco de magia, então, já que somos tão
taumatúrgicos?
Ao reclamar a magia como A Arte, nua e furiosa numa selva de Rousseau sem nenhuma
cabana, é provável que os apreensivos pela preposição sejam aqueles que se sintam
desprivilegiados pela ideia, aqueles que suspeitam que a sua oferta artística está
aquém da tarefa dada. Tais temores, embora compreensíveis, não podem estar ao lado
da imagem heroica, destemida, que muitos ocultistas têm de si mesmo. Será que não
há realmente nada, nenhum artesanato ou ofício, que eles não possam usar para
implementar sua magia? Eles não têm nenhum talento que possa ser usado de forma
criativa e mágica, seja para a matemática, a dança, os sonhos, o toque de tambor, a
comédia stand-up, o strip-tease, o grafite, o encantamento de cobras, as
demonstrações científicas, ou mesmo para serrar vacas perfeitamente ao meio, ou
esculpir bustos assustadoramente realistas dos monarcas europeus a partir de suas
próprias fezes? Ou, tipo, qualquer coisa? Mesmo que tais habilidades não sejam hoje
abundantes ou evidentes, tais almas tímidas não poderiam imaginar que a capacidade
para algum trabalho honesto precisa ser primeiro desenvolvida para depois ser
aplicada para algo de útil? O trabalho duro não deveria ser um conceito totalmente
estrangeiro para o Mago. E não é nem mesmo A Grande Obra que nós estamos
necessariamente discutindo aqui, é apenas a Obra Boa-Mas-Nem-Tanto-Assim. Algo
muito mais atingível. Se até mesmo isso soa muito difícil e trabalhoso, você pode
sempre tornar a aquisição de talento artístico profundo e a conquista do sucesso o
desejo mais íntimo do seu coração e então simplesmente bater uma para um sigilo.
Aparentemente, nunca falha. Então, qual a desculpa que alguém teria para não
abraçar a arte como magia, e a magia como A Arte? Se você é, por qualquer razão,
realmente incapaz de ter alguma criatividade, hoje ou sempre, então você tem
realmente certeza que a magia é o campo certo para você? Apesar de tudo, as redes
de fast-food estão sempre contratando. Em dez anos você poderia se tornar um
gerente.
Ao compreender a arte como magia, ao conceber caneta ou pincel como varinha mágica,
nós devolvemos ao mago seus poderes
Ao compreender a arte como magia, ao conceber caneta ou pincel como varinha mágica,
nós então devolvemos ao mago seus poderes xamânicos originais e a sua importância
social, damos de volta ao ocultismo tanto um produto quanto um sentido. Quem sabe?
Pode ser que ao implementarmos tal mudança terminemos por remover toda a nossa
necessidade egóica de encantos e maldições , nossa magia superficial. Se formos
realizados e prolíficos em nossa arte, talvez os deuses se preparem para nos enviar
vales postais substanciais a cada semana, sem que nós sequer peçamos. Nos assuntos
sexuais e românticos, como artistas nós nos sairíamos tão bem quanto Picasso.
Mulheres e homens e animais se ofereceriam nus aos nossos pés. Já acerca da
destruição de nossos inimigos, nós simplesmente não nos incomodaríamos de chamá-los
para nossas celebrações e inaugurações, e eles simplesmente morreriam, com o tempo.
Nada nos impede de nos livramos dos compassos e dos freios, das rodas de
treinamento que têm retardado o progresso da magia por tanto tempo que o musgo já
cobriu tanto as linhas férreas quando os sinalizadores de desvios. Nada pode nos
impedir, caso tenhamos vontade, de redefinir a magia como uma forma de arte, como
algo vital e progressivo. Algo que, em sua habilidade de lidar com o nosso mundo
interior em vias de utilidade realmente demonstráveis, pode efetivamente ajudar as
pessoas comuns, com seus mundos internos sendo usurpados cada vez mais por um
exterior tirânico, colonialista, cujo objetivo é extrair até a última gota dos seus
sonhos, da sua alegria ou automotivação. Se assim nos decidirmos, poderíamos
restaurar a magia a sua potência, um propósito que mal foi tocado nos últimos
quatrocentos anos. Caso estivermos preparados para assumir a responsabilidade desse
empreendimento então o mundo poderá assistir novamente aos grandiosos e terríveis
magos que, fora dos meigos e inofensivos livros para crianças ou dos filmes com
orçamentos obscenos e extravagantes, ele tão somente se direcionou a esquecer. Pode
ser arguido que neste momento angustiante de nossa situação humana as perspectivas
mágicas não são apenas relevantes, mas necessárias e indispensáveis caso desejemos
sobreviver com nossas mentes e personalidades intactas. Ao redefinir o termo
“magia” poderíamos uma vez mais confrontar as perversidades e trevas mundanas com o
nosso método preferido, honrado por sua ancestralidade: com uma palavra.
Está tentando forçar nosso namorado a voltar para nós. Está esfregando dinheiro
para afastar nossa dívida no cartão de crédito, tentando dar àquele babaca que
fugiu com nossa ex-mulher algo terminal. Está garantindo que festas do pijama com o
tema Teen Witch corram bem. Está colocando insignificantes pessoas New Age em
contato com seus insignificantes anjos New Age, e elas estão todas dizendo, tipo,
“De jeito nenhum”, e os anjos estão dizendo, tipo, “Tanto faz”. Está atendendo a
todos os nossos repetidos rituais com o entusiasmo que um patrocinador vem assistir
à peça The Mouse Trap pela centésima sétima vez. Ela gasta os finais de semana
tentando ler nossos péssimos sigilos debaixo da obscurecedora camada de giz, e em
retaliação somente nos coloca em contato com entidades capengas, Elohim do serviço
comunitário que tagarelam como cientologistas bebuns e nunca fazem um tiquinho de
senso. Está no escritório de marcas registradas, registrando selos mágicos. Está
lidando com uma agência de encontros que representa nossa única chance de alguma
vez conhecer uma estranha buceta gótica. Está conseguindo pra nós uma oferta melhor
naquele Renault novo, ajudando a prolongar a miserável vida de nosso cego e
incontinente cachorrinho Gandalf, fazendo networking como louco pra garantir os
diretos daquele Tarot de Hogwarts do Harry Potter. Ainda está tentando resolver o
congestionamento resultante do Aeon de Horus ter furado através do canteiro central
e invadido a pista sentido sul, sendo atingido de frente pelo Aeon de Maat, que
derramou sua carga de penas pretas no acostamento. Não tem certeza se a ketamina
foi realmente uma boa ideia. Está sentada olhando nervosa para mil estantes de
livros desde entrevistas com necrófilos sobre estilo de vida e retrospectivas de
moda na família Manson. Está aparecendo em celebrações neo-nazistas perto de
Dusseldorf. Está se perguntando se deve introduzir uma política de “não pergunte,
não conte” com relação ao 11º Grau. Está aconselhando Cherie Blair sobre tachinhas
de acupuntura, e Islington inteira sobre Feng Sui. Colocou piercing no pênis numa
tentativa de chocar seus pais classe média dos Home Counties, que estão mortos há
dez anos, de qualquer maneira. Ela queria ser David Blaine. Ela queria ser Buffy.
Ou, bem francamente, qualquer um.