A Boa Razao e o Iluminismo Portugues
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da boa razão” só passou a ser utilizada para fazer referência a esta lei após a
Eduardo Teixeira de Carvalho Junior
pela boa razão em que são fundadas”; mas, se não houvesse uma resolução por
meio de nenhuma destas fontes, recorrer-se-ia às glosas de Acúrcio e Bártolo;
em última instância, se o caso permanecesse sem uma solução, recorria-se a
uma consulta ao rei, cuja resolução passava a servir de referência para futuros
casos semelhantes(ORDENAÇÕES FILIPINAS, 1603, p. 664).
A “lei da boa razão” ratifica algumas recomendações das Ordenações Filipinas
e a moderniza conforme os ditames do racionalismo iluminista. De acordo com
[...] aquela boa razão, que consiste nos primitivos princípios, que
contém verdades essenciais, intrínsecas, e inalteráveis, que a
Ética dos mesmos Romanos havia estabelecido, e que os Direitos
Divino, e Natural, formalizaram para servirem de Regras Morais,
e Civis entre o Cristianismo (SILVA, 1830b, p.5, grifo nosso).
A ideia de boa razão deveria constituir o espírito das leis, “Leis das Nações
Cristãs, iluminadas, e polidas” de acordo com os “novos tempos” de luzes das
“nações civilizadas”. Outra diferença importante em relação ao Código de
1603 é seu caráter laicizante, enfatizando que crimes de pecado “pertencem
privativa, e exclusivamente ao foro interior e a espiritualidade da Igreja”,
extinguindo qualquer possibilidade de confusão entre a esfera espiritual e
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pelos jesuítas nos diversos setores da educação, tendo como eixo central o
problema do método de ensino utilizado pelos jesuítas, fundado na filosofia
escolástica. Os “estragos” haviam começado desde os estudos preparatórios,
com destaque para o método de ensino do latim, língua fundamental para o
conhecimento das ciências, especialmente as jurídicas, cujas leis estavam
escritas nesta língua.A lista de “estragos” era imensa, desde os cursos
tradicionais como teologia, direito, medicina e filosofia, estendendo-se para
outras disciplinas como retórica, lógica e metafísica. Conforme já havia sido
apontado por alguns pensadores portugueses, como Luiz António Verney,
as críticas fundamentavam-se no uso de um método considerado atrasado e
prejudicial, que envolvia também o desprezo ou ausência de algumas disciplinas
consideradas fundamentais, como história, geografia e o ensino da língua grega.
De acordo com o Compêndio, os jesuítas teriam envolvido a jurisprudência
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em segundo plano, podendo ser utilizado com bom senso, ou seja, de acordo
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uma interpretação da lei poderia ser considerada legítima. O objetivo era evitar
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meados do século XVIII, havia uma pluralidade de normas leis e fontes do direito
que dariam lugar a uma perspectiva centralizadora e utilitarista de acordo com
as diretrizes do iluminismo. A concepção corporativista da sociedade baseia-se
na cosmovisão medieval na qual havia uma ordem precedente aos homens e às
coisas e que deveria ser reconhecida para o bom funcionamento da sociedade
e de seus desígnios. Portanto, de uma maneira geral, havia uma concepção
de natureza que fundamentava por sua vez uma noção de direito natural.
Cada parte do todo tinha sua função e participava de uma forma diferente
na realização deste destino cósmico (HESPANHA; XAVIER, 1998, p.114). Em
uma sociedade bem governada, esta partilha natural deveria traduzir-se na
autonomia político-jurídica dos corpos sociais.
Na linguagem jurídico-política medieval, a palavra que designa o poder era
a palavra iurisdictio (o ato de dizer o direito). No século XVIII vai haver uma
mudança de paradigma: deixa-se de pensar no poder enquanto a administração
de uma ordem objetiva das coisas, o poder passa a ser concebido mais como um
ato de vontade (HESPANHA; XAVIER,, 1998, p.117). Seja na vontade de Deus
manifestada indiretamente na figura dos reis, seja na vontade de pactuar, o
que daria lugar à corrente identificada como contratualista. A vontade, e não
um equilíbrio preestabelecido, passa a ser o princípio que nortearia o direito.
De acordo com a doutrina seiscentista, fundamentada em uma concepção
corporativa do direito, os reis poderiam ser muitas vezes sujeitados pelas leis.
Entre o século XVII e XVIII ocorre uma mudança importante para a ideia de
uma ordem legal e constitucional distinta, a do Estado, o qual o governante
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Xavier, embora nestes dois momentos houvesse uma tradição comum sobre as
obras de moral, direito e política, “os modernos tendem a ler coisas diferentes
dos tradicionais” (HESPANHA; XAVIER, 1998, p.113). Um importante divisor
de águas é a imposição do princípio da utilidade como fundamento dos
vínculos sociais. No modelo corporativista a moral e as virtudes se impõem
perante a utilidade. No modelo corporativista conselhos e tribunais podiam
se opor ao rei. O paradigma corporativista pressupunha a ideia de sociedade
como um organismo em que cada parte do corpo coopera de forma diferente,
caracterizada por uma autonomia político-jurídica dos corpos sociais. Dentro
desta concepção a ideia de um poder concentrado no soberano era estranha. No
paradigma corporativista não é o pacto que fundamenta o direito, é este que
fundamenta a obrigatoriedade dos pactos (HESPANHA; XAVIER, 1998, p.115).
O poder não é fundamentado no pacto, ou na vontade de pactuar, mas na forma
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dogmas da Igreja orientavam toda a produção filosófica. Mais tarde, estas ideias
assumiram um significado diferente e um papel fundamental na era moderna,
tornando-se conceitos-chave para se compreender o movimento iluminista
europeu e seu impacto nos diversos setores da sociedade.
Mas o que diferencia a percepção dos antigos sobre a razão quando
comparada com a dos modernos? A confiança na razão vem principalmente das
descobertas científicas, que de forma empírica, conseguem estabelecer nexos
de causa e efeito acerca de determinados fenômenos naturais. Esta certeza vem
através do uso da matemática; Galileu afirmava que Deus se comunicava por
meio da natureza em linguagem matemática (ver BAUMER, 1977, p.68). E por
isso observamos o impacto que as ideias de Newton causaram na república das
letras. Newton nunca questionou a existência de Deus, mas sua explicação de
alguns fenômenos da natureza (as leis de Newton) entrou em rota de conflito
com a forma como a Igreja descrevia e explicava estes fenômenos. Por isso, o
método da física experimental se tornaria um paradigma que também deveria
ser adotado para explicar as questões do homem e da moral. Impunha-se a
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[...] Estes, comumente, não dão razão do que dizem, mas apontam
somente os autores casuístas de onde o receberam, os quais nem
menos assinam razão, mas fundam-se em outros antecedentes. E assim,
copiando-se uns aos outros, multiplicam-se os livros sem necessidade,
nem utilidade (VERNEY, 1950, v. 3, p.263).
Verney considerava a ética uma parte importante da filosofia, mas que no seu
entender era desprezada em Portugal, por estar subordinada à teologia.4Além de
precisar ser integrada à filosofia, a ética deveria ser tratada como propedêutica
da jurisprudência e da teologia.5Além disso, na sua concepção, o direito natural
estava inserido dentro da ética (VERNEY, 1950,v. 3, p.257-260). Enquanto a
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na letra da lei, o que requer erudição, mas adequada aos ditames da filosofia
moderna, cujo método inspirado nas descobertas das ciências da natureza,
fundamentavam a verdade menos na autoridade dos textos (doutores) e sim
nas evidências da observação e da experiência, o que corresponde a toda uma
nova lógica e um novo método.
A publicação das críticas de Verney no seu Verdadeiro Método de Estudar
gerou uma série de reações, principalmente por parte dos jesuítas. Por meio
da publicação de folhetos e livros, eles e seus adeptos acusavam Verney de ser
um traidor e inimigo da nação portuguesa. Dentre estas obras destacamos as
Reflexões Apologéticas a obra entitulada Verdadeiro Método de Estudar, do jesuíta
José de Araújo, escrita sob o pseudônimo de Frei Arsênio da Piedade. Nesta obra,
Araújo defendia a superioridade da teologia perante a filosofia, alegando que
somente a teologia teria competência para indicar os filósofos que “discorreram
bem e aqueles que discorreram mal” (ARAÚJO, 1748, p.35). Araújo também
defendia a importância da razão natural para se saber as obrigações do homem,
os valores cristãos, mas também acreditava que a mesma razão natural deveria
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levar a certeza de que “existe apenas um só Deus”. Para ele o direito natural e
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2003, p.37).
Na sua obra Os deveres do homem e do cidadão, Pufendorf pretendia divulgar
para um público mais amplo, especialmente aos jovens, conhecimentos básicos
sobre o direito natural. Esta obra, cuja edição inglesa saiu com o título de The
Whole Duty of Man, Accordingtothe Law of Nature (1691) teve grande repercussão
na Europa, principalmente após ser traduzida para o francês por Jean Barbeyrac,
em 1707, edição que influenciou outras edições inglesas até culminar com a de
1735. Para Pufendorf, o direito natural deveria ter os mesmos privilégios de
outras ciências como o direito civil, a ética, a filosofia natural e a matemática.
Na obra Os deveres do homem e do cidadão, Pufendorf estabelece três fontes
sobre o conhecimento do homem de seu dever, cuja principal diferença entre
elas resulta das diferentes origens pelas quais derivam seus princípios. O direito
natural, comum a todas as nações, que corresponde aos deveres do homem como
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que o direito natural é mais importante e necessário para que o homem possa
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reconhecer ações que possam ser contrárias à comunidade e que atuem contra
a paz (PUFENDORF, 2007, p.47). E assim, defende a ideia de que “a conduta do
homem bom é em toda a parte a mesma” e que existe uma lei fundamentada na
natureza dos homens, ensinada pela razão, uma lei perpétua e irrevogável, uma
“lei universal da humanidade” (PUFENDORF, 2007, p.450). Por isso critica as
leis baseadas no costume: “O costume é a opinião e a decisão de uma multidão
cega, e não de sábios e sensatos” (PUFENDORF, 2007, p.445).
Embora Grócio e Pufendorf fossem autores fundamentais para o ensino
do direito natural, Verney advertia para o fato de serem “hereges”, e por isso
recomendáveis apenas aos mestres. Contudo, mesmo assim, segundo ele, quem
não tivesse outra opção, poderia ler Pufendorf.6 Esta postura de Verney pode
ser relacionada com o que na historiografia costuma se chamar de “iluminismo
católico” 7, na medida em que havia o objetivo de uma modernização e laicização
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católica.
Dentre os autores que deveriam ser evitados, Verney aponta uma lista
extensa incluindo Maquiavel, Espinoza, Hobbes, Locke e também Barbeirac,
principal divulgador da obra de Pufendorf na Europa. São autores que tem
muita utilidade, mas que poderiam ser perigosos para os jovens estudantes e
para aqueles que ainda não tivessem bem formados nos princípios da religião
católica. Da mesma forma, embora os Estatutos recomendassem Grócio e
Pufendorf como referências fundamentais do direito Natural, reforçava-se o
papel da religião, advertindo que Pufendorf havia priorizado o estudo das leis
naturais em detrimento de tópicos importantes como “a essência de Deus”, “a
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no coração dos homens e que são naturalmente acessíveis pela luz natural da
razão (GONZAGA, 2004, p.10). A questão básica era saber se esse Deus era um
Deus católico, protestante ou de qualquer outra religião. A grande maioria dos
filósofos modernos não questionava mais a existência de Deus, mas considerava
esta temática menos fundamental do que avançar no sentido daquilo que
poderia ser conhecido por meio da razão e dos métodos científicos.
Na transição do século XVII para o XVIII, Paul Hazard apontou para a
presença de uma crise de consciência, em que as certezas do homem vão sendo
corroídas pelas ideias dos filósofos modernos (HAZARD, 1971). Basicamente,
consiste na triste constatação de que não existe uma sabedoria além do alcance
humano somente penetrável exclusivamente pela revelação, mas apenas
aquela alcançável pela limitada razão. Este processo tem como pano de fundo
a separação entre religião e filosofia, processo lento e gradual que marcou a
transição do século XVII para o século XVIII. Embora as certezas da revelação
tenham sido substituídas pelas incertezas da razão, havia um otimismo em
relação ao século XVIII, a esperança de futuras felicidades pelo triunfo da razão
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Referências
ANTUNES, Álvaro de Araujo. Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas
pombalinas no campo jurídico. R. IHGB, Rio de Janeiro, v.172, n. 452, p. 15-50,
jul./set. 2011.
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Eduardo Teixeira de Carvalho Junior
ao senhor Rei D. Jose I antes do seu governo, o qual foi do conselho dos senhores D.
Pedro I e D. João V., e seu embaixador às cortes de Viena, Haya, e de Paris; onde
morreu em 1749. Lisboa: Impressão Regia, 1820.
JOSÉ I, Rei (comp.). Livro I: o curso theologico. In: JOSÉ I, Rei (comp.). Estatutos
da Universidade de Coimbra. Lisboa: Regia OfficinaTypografica, 1772b. Disponível
em: https://books.google.com.br/books?id=FSfsE2VgkzEC&pg=PR14&dq=estat
utos+da+universidade+de+coimbra+livro+i&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwjR
5cq3sr3oAhXCJ7kGHWGRDwoQ6AEIRTAE#v=onepage&q=estatutos%20da%20
universidade%20de%20coimbra%20livro%20i&f=false.Acesso em: 28 mar. 2020.
id=PHZTdPaBh9gC&printsec=frontcover&dq=estatutos+da+universidade+de+c
Eduardo Teixeira de Carvalho Junior
oimbra+livro+iI&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwid56vMs73oAhVuD7kGHfzWA
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MONCADA, Luís Cabral de. Um iluminista português do século XVIII: Luís António
Verney. São Paulo: Saraiva &C.a Editores, 1941.
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SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Para a instrução dos homens encarregados dos
negócios públicos no final do Antigo Regime português. In: FONSECA,ThaïsNivia
de Lima e. (org.). As reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições,
2011.p.205-226.
TELLES, José Homem Correia. Commentario crítico á Lei da Boa Razão, em data de
18 de agosto de 1769. Lisboa: Typografia de N. P. de Lacerda, 1824.
Notas
Doutor em História pela UFPR. Professor do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba).
1
2
Sobre a influência da Lei da Boa Razão na prática dos agentes da administração da
justiça ver: (ANTUNES, 2011).
3
Ver Carta 11 Volume III. Na edição organizada pelo professor Salgado Junior (VERNEY,
1950) a obra é dividida em 5volumes.O volume I, intitulado Estudos Lingüísticos,
contém as Cartas I (Introdução); II (Língua Portuguesa); III (Gramática Latina) e IV
(Latinidade). O volume II, intitulado Estudos Literários, a Carta V (Línguas Orientais);
Carta VI (Retórica) e Carta VII (Poesia). O volume III, Estudos Filosóficos, a Carta VIII
(Lógica); Carta IX (Metafísica); Carta X (Física) e a Carta XI (Ética). O volume IV, Estudos
Médicos, Jurídicos e Teológicos, a Carta XII (Medicina); Carta XIII (Direito Civil) e Carta
A boa razão e o iluminismo português
7
O termo “iluminismo católico” é atribuído a Cabral de Moncada que considerava que o
Iluminismo havia se propagado de formas distintas para cada região da Europa, mas que
os países católicos, como Itália, Espanha e Portugal seguiam características comuns:
“Este Iluminismo era assim, pode dizer-se, essencialmente Reformismo e Pedagogismo.
O seu espírito era, não revolucionário, nem anti-histórico, nem irreligioso, como o
francês; mas essencialmente progressista, reformista, nacionalista e humanista. Era o
Iluminismo italiano” (MONCADA, 1941, p. 12).
Carta escrita de Verney a Muratori de Roma em dezembro de 1745, Morais (2006, p. 133).
8
9
De acordo com D. Luís da Cunha, um dos fatores que compõe a riqueza dos reinos é
sua população. Por isso chamava a atenção para a “sangria” de gente provocada pela
Inquisição.
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