Mestiçagem e Ambivalência

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Mestiçagem e ambivalência.

Um breve levantamento
Mestizaje and ambivalence. A brief survey
Renan S. Moraes1

Resumo: Qual tempo ordenava as características de brasilidade na virada do século XIX para
o XX? Ou ainda, existia um tempo da nação? A qual recorrer para atribuir ao corpo da nação
uma qualidade particular? Essas questões importantes aos intérpretes da brasilidade na
Primeira República nortearam um conjunto de reflexões acerca do que era a nação, como se
formou e o que poderia ser aquilo que chamavam Brasil. Neste sentido, o conceito de
mestiçagem emerge como uma política do tempo mobilizando dimensões de performances
que estabelecem formas de ordenar o passado, o presente e o futuro. O texto a seguir buscará
problematizar o conceito de mestiçagem como uma ferramenta que, além de atribuir algum
sentido de identidade, possibilita ao intelectual um dispositivo político-temporal de estudo.
Para tanto, analisaremos três questões importantes: o campo semântico do conceito de
mestiçagem, as disputas narrativas sobre a miscigenação e o mestiço e as dimensões político-
temporais atribuídas à mestiçagem. Em síntese, buscaremos compreender de que maneira os
intelectuais do período refletiram sobre a nação, mobilizando conceitos politicamente
temporalizados.
Palavras-chaves: história intelectual; Primeira República; conceito de mestiçagem.

Abstract: What time was the order of Brazilian characteristics at the turn of the nineteenth
century to the twentieth? Or was there a time of the nation? What do you have to do to assign
a particular quality to the nation's body? These important questions to the interpreters of
Brazilianness in the First Republic guided a set of reflections about what the nation was, how
it was formed and what could be what they called Brazil. In this sense, the concept of
mestiçagem emerges as a politics of time mobilizing dimensions of performances that
establish ways of ordering past, present and future. The following text will seek to
problematize the concept of mestiçagem as a tool that, besides attributing some sense of
identity, allows the intellectual a political-temporal device of study. In order to do so, we will
analyze three important questions: the semantic field of the concept of mestizaje, the narrative
disputes about miscegenation and the mestizo, and the political-temporal dimensions
attributed to mestizaje. In short, we will try to understand how the intellectuals of the period
reflected on the nation, mobilizing politically temporalized concepts.
Keywords: intellectual history; First Brazilian Republic; concept of mestizaje.

I.

Em setembro de 1933, o acadêmico Humberto de Campos escreveu um artigo cheio de


humor para a Revista Ilustrada O Cruzeiro, intitulado “Hitler, o amor e as morenas”. Tratava-
se de crítica a uma circular nazista de que aos homens alemães não seria prudente o
casamento com mulheres morenas. Campos, indignado com a sentença hitlerista, pontua que

1
Doutorando do PPGHis/Ufop, orientado pelo professor Mateus Henrique Pereira, bolsista fapemig, email:
[email protected]
“impressionou, talvez, o chefe racista, a tendência do alemão para as alianças conjugais deste
gênero”, acrescentando em seguida que “Hitler passará, e que as morenas ficarão” 2. O artigo,
publicado no mesmo ano de Casa Grande e Senzala, sinaliza uma exaltação do mestiço e da
miscigenação como marcas de uma etnia tipicamente brasileira: a pele morena vencerá os
abusos do racismo. Conclui o acadêmico contra o político alemão: “Hitler, com sua camisa
cinzenta, e armado de pistola, é poderoso. Há, porém, alguém mais poderoso do que ele, e
que, nesse caso, rasgará os seus decretos. É um menino armado de flecha, e que anda nu” 3.O
mestiço venceria os ideais hitleristas não porque dispunha dos avanços técnicos da “pistola”,
mas pelo poder de constituir-se como ser historicamente harmônico no tempo ao reunir
elementos de adequação étnica no espaço. Ou seja, a miscigenação era a combinação triunfal
das diversas etnias que compunham o brasileiro.
Essa compreensão do mestiço como ser harmônico no tempo e no espaço é comum às
leituras de brasilidade da década de 1930 que buscavam compreender a qualidade da nação na
formação da civilização nos trópicos. Não por acaso, pelo menos a partir da segunda metade
dos anos 1930, quando o nazismo já ia se mostrando um problema político, a ideia de
“democracia racial” se disseminará com pretensões de contraposição ao regime racista
alemão. Com efeito, à ditadura das raças arianas que o partido nacional-socialista pregava,
para esses intelectuais o Brasil ofereceria uma gestão racial livre de preconceitos: “a
democracia racial do Brasil absorveu a todos”4. E não era só ao racismo alemão que a
intelectualidade brasileira contrapunha esse regime pretensamente democrático, o embaixador
Nelson Tabajara opunha a integração indígena e africana no Brasil à privação dos negros na
vida política estadunidense. Ele conclui: “considero esta adaptação do negro e do índio como
uma verdadeira felicidade. (...) Somos todos brasileiros, rezando e agindo como brasileiros,
isto é, quase como latinos puros. A tribo e a senzala estão remotas”5.
A ideia de que um regime racialmente democrático vigorava no Brasil, fruto da
miscigenação, estava presente em diversos pensadores dos anos 30 e advinha de uma “batalha
semântica” com aspirações de posicionamentos políticos internacionais. Segundo Reinhart
Koselleck, “a batalha semântica para definir, manter ou impor posições políticas e sociais em
virtude das definições está presente, sem dúvida, em todas as épocas de crise registradas” 6.

2
CAMPOS, Humberto de. Hitler, o amor e as morenas. In. Revista Ilustrada O Cruzeiro. Rio de Janeiro, n. 45, a.
V, 1933, p. 3.
3
Idem.
4
TABAJARA, Nelson. Indios e pretos. In. O Jornal, Quarta Seção. Rio de Janeiro, 23 de maio de 1937, p. 6.
5
Idem.
6
KOSELLECK, Reinhart. História dos conceitos e história social. In. Futuro passado. Contribuição à semântica
dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, p. 102.
Essas batalhas são caracterizadas por conceitos que possuem pouca referência de
experimentação político-social e muita esperança de realizações futuras, por criações de
neologismos que diminuem a “coincidência entre o conteúdo empírico e o campo de
expectativa”, ou ainda: “conceitos de agrupamento e de dinâmica para ordenar e mobilizar as
massas estruturalmente desarticuladas”7. Neste sentido, o neologismo “racismo” 8 emerge com
a experiência nazista nos anos de 1920 e 30, descrevendo o advento de uma ditadura da raça
ariana, hierarquizando com base nos racialismos precedentes. E é se contrapondo a esta
concepção de governabilidade que se desenvolveu no Brasil a “democracia racial”, com
pretensões de ordenamento e mobilização nacionais.
No cenário geopolítico internacional, diversos projetos de ordenação e mobilização
nacionais foram desenvolvidos desde a segunda metade do século XIX, quando “a ascensão
do nacionalismo na política” possibilitou a formação de diversos movimentos ideológicos 9 e a
formulação de inúmeros excepcionalismos – como o americano de liberdade e igualdade, o
sionista de raça escolhida e o brasileiro de mestiçagem 10. Anterior ao debate sobre a
“democracia racial”, as narrativas de brasilidade da Primeira República sinalizavam para uma
compreensão próxima daquela dos anos de 1930, que aproveitou bastante da discussão
anterior. Neste sentido, o conceito de mestiçagem pode ser visto a partir da articulação de
reflexões de ordem política, social e cultural, a uma crescente temporalização da qualidade de
nação. Ao contrário da ideia de ser harmônico no tempo e no espaço, contida na “democracia
racial”, a “mestiçagem” emerge na virada do Império para a República como conceito
ambivalente.

II.

“A cor da população interessava diferentemente aos diversos níveis do Estado” 11, desta
maneira Ivana Lima sugeria que o mestiço atuava num “espaço de ambigüidades” no período
do Império. A polissemia do conceito de mestiçagem e a busca de uma identidade brasileira –
como ordenação/homogeneização do nacional – constituem uma virada de modernização na

7
Idem, Ibidem, p. 103.
8
A primeira aparição do termo em dicionário ocorreu em 1932, no francês Larousse.
9
HOBSBAWM, Eric. Bandeiras desfraldadas: nações e nacionalismo. In. ____. A era dos Impérios. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2010, p. 227.
10
GRIN, Monica. Mitos de excepcionalidade: versões do Império português e da nação miscigenada brasileira.
In. HERMANN, J. et alli. Memória, escrita da história e cultura política no mundo luso-brasileiro. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 286.
11
LIMA, Ivana S. Cores, marcas e falas. Sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2003, p. 206.
linguagem política da república: dentre os muitos sentidos desse conceito, o de ambivalência
é o que predomina em meio a algumas esferas semânticas dessa linguagem. Portanto, um
estudo sincrônico da dimensão semântica do conceito de mestiçagem pode ser interessante
para o intuito de compreender seus sentidos no período destacado.
A força da “ambivalência” como sentido histórico-político do conceito de mestiçagem
na Primeira República pode ser depreendida em três esferas semânticas que estão conectadas
no pensamento político e social: a simbólica, a temporal e a política. Para tanto, buscaremos
utilizar a história dos conceitos – como método especializado de crítica das fontes e
interpretação dos textos – em conjunção com os estudos das “ideias em contexto” – como
estratégia de análise da história intelectual a partir da linguagem 12. Ou ainda, a interpretação
do circuito semântico do conceito de mestiçagem na Primeira República como avaliação das
camadas de significações que sinalizaram a ambivalência desse conceito.
Com efeito, buscaremos destacar neste circuito três esferas às quais o sentido
ambivalente do conceito percorre. Em primeiro lugar, a análise da esfera simbólica busca
compreender a (re)invenção do mestiço como personagem social pelos intelectuais da virada
do século XIX para o XX, sobretudo, trata-se do exercício de abstração de elementos
sensíveis aos intelectuais. Em segundo lugar, a esfera temporal abarca leituras, diagnósticos e
projetos com vistas à formulação de uma ordem do tempo da nação. Por fim, a esfera política
sugere a concepção de relações de poder acerca da concepção do ser nacional. Assim,
buscaremos apontar de que maneira tais esferas semânticas, a partir das diversas camadas de
significação, criaram um sentido de acaso, de contingência, para o conceito de mestiçagem.
O sociólogo Zygmunt Bauman, ao tratar da relação entre ambivalência e modernidade,
afirmou: “a ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma
categoria, é uma desordem específica da linguagem, uma falha da fuynção nomeadora que a
linguagem deve desempenhar”13. Ambivalência é, pois, uma forma de linguagem que atua
conjuntamente no nomear/classificar: “classificar é dar ao mundo uma estrutura”, é a
manipulação das probabilidades que torna a linguagem mais eficiente, o apontamento de
elementos distintos, similares e aproximáveis. A partir do ato de nomear/classificar, a
linguagem se situa entre um mundo ordenado e outro contingente: “a linguagem esforça-se
em sustentar a ordem e negar ou suprimir o acaso e a contingência” 14. O sentido ambivalente
do conceito de mestiçagem é desenvolvido como um mecanismo ambíguo de correção da

12
Na linha do que Elias José Palti chamou de uma “nova história intelectual”, ver PALTI, Elias J. La nueva
historia intelectual y sus repercusiones en America Latina. In. História Unisinos, 11(3), 2007.
13
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência.Rio de Janeiro: JZE, 1999, p. 9.
14
Idem, p. 10.
nação e experiência de constrangimento sócio-político para projetos de identidade nacional.
Enfim, “de certa forma a identidade é uma ilusão e uma contingência, apoiada exatamente na
crença de que é uma verdade e uma necessidade”15.

III.

Uma passagem de Manoel Bomfim é especialmente importante ao sugerir um ponto de


partida ao conceito de mestiçagem: “conheçamo-nos, e chegaremos à convicção de que somos
um povo cruzado, e que povos cruzados serão sempre aquilo em que se fizeram: expressão de
misturas combinadas. Poderão unificar-se; hão de unificar-se, em tipos definidos e estáveis” 16.
Se por um lado, a “mestiçagem” denota uma consideração sobre a população nacional,
fazendo ecoar um lugar-comum muito revistado desde as sugestões Carl von Martius sobre a
escrita da história brasileira; por outro, é possível notar na segunda parte da citação duas
noções fundamentais para o conceito de mestiçagem: a mobilização social e política e sua
temporalização.
Mestiçagem tornou-se um conceito geral nas reflexões republicanas acerca da
brasilidade, não que o tema fosse escasso no debate romântico, mas os ocorridos do último
quartel do século XIX levaram intelectuais e políticos a (re)pensarem o nacional em termos de
mistura e cruzamento, menos por conta da Abolição e da República que pelas revoltas
escravas contra a escravidão nos anos de 1880, a resistência sertaneja ao novo regime na
década seguinte, as agitações populares dos anos 1900, etc. Unindo a isso a sensação de o
brasileiro não constituir um povo, expressa por uma parcela dos intelectuais da época, o
problema de definir o nacional urgia. A miscigenação apareceu, então, como elemento lógico
dessa pretensão de caracterizar o brasileiro, acentuada por viajantes estrangeiros e pelos
nacionais.
A título de exemplo, destacamos o trecho do livro de Louis Couty, publicado em 1881,
sobre a escravidão no Brasil:

O colono no Brasil não se limitou a mestiçar-se; mas, na maior parte dos casos, e
também aí difere dos colonos das Antilhas ou da América do Norte, ao invés de
rejeitar os produtos da mestiçagem à condição de raça inferior, libertou-os
imediatamente. Estas circunstâncias, já tão favoráveis à raça escravizada, lhe são
ainda mais propícias em virtude de outras facilidades17.

15
LIMA, Ivana S. Op. Cit., p. 18.
16
BOMFIM, Manoel. O Brasil na América. Caracterização da formação brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks,
1997 [1929], p. 195.
17
COUTY, Louis. A escravidão no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988 [1881], p. 61.
É importante notar na passagem, além da ideia do “mestiçamento”, um sentido peculiar de
integração na composição do Brasil. Por muito tempo o conceito de mestiçagem remeteu a
uma noção de ausência de preconceito de raça ou cor no Brasil, expressa nas relações étnico-
raciais que os intelectuais apreendiam. Segundo Silvio Romero, “o cruzamento modificou as
relações do senhor e do escravo; trouxe mais doçura aos costumes e produziu o mestiço, que
constitui a massa de nossa população, e em certo grau a beleza de nossa raça” 18. A ideia de
assimilação dos “produtos da mestiçagem” e da “doçura” das relações entre senhor e escravo
levaram a interpretações acerca do preconceito no Brasil: por um lado, o processo de
miscigenação foi diluindo o “orgulho de raça” do colonizador europeu, como muitas vezes
podemos ler nas obras da virada do século XIX para o XX; por outro, essas leituras atribuíam
ao mestiço uma autonomia com relação ao português.
Tais concepções foram reforçadas quando comparadas a outros países, tanto por
viajantes estrangeiros quanto por brasileiros que se estabeleceram fora. Oliveira Lima relatava
em suas notas sobre os Estados Unidos, publicado na Revista Brasileira, a segregação do
negro naquela sociedade19. Neste sentido, observamos que a noção de preconceito está
associada à segregação, sendo a “mestiçagem” definida pela assimilação; por isso, supunha-se
estar o Brasil livre de preconceito de cor ou raça. Só muitos anos depois os racialismos foram
apreendidos como concepções preconceituosas acerca da sociedade.
Para além da noção de ausência de preconceito, outra característica dessas leituras é a
expressão das três raças fundadoras do “tipo nacional”, uma redução da diversidade de
nacionalidades que eram observadas nessa construção pelos intelectuais. Tal redução pode ser
vista como uma tentativa de conferir ao mestiço a capacidade de retornar, num futuro, a
alguma pureza racial que dê à nação a homogeneidade pretendida no fim do século XIX. Nas
palavras de Romero, o mestiço era o “agente transformador por excelência (...), que por sua
vez já é uma transformação”20, a constituição de tradições “formadas do concurso de três
raças, que há quatro séculos se relacionam” 21. Essa redução trinitária não se baseia tão-só na
observação direta da população, antes, trata-se de uma construção político-intelectual que
privilegia certos aspectos em detrimento de outros, como a formulação das relações entre raça
superior e raças inferiores.

18
ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980 [1888], p. 134.
19
Ver os artigos “Uma nota da América” e “Primeiras impressões dos Estados Unidos”, publicados na Revista
Brazileira nos anos de 1895 e 96.
20
ROMERO, Silvio. Op. Cit. 1980, p. 131.
21
Idem.
No interior desta tradição republicana de se pensar a brasilidade, o mestiço surge como
a personificação da ambigüidade nacional: qual era o papel do Brasil no “concerto das
nações”? qual era o papel do mestiço na sociedade brasileira? Essas questões faziam parte de
uma série de reflexões do final do século XIX e começo do XX, caracterizada pela imprecisão
do papel do mestiço na cultura nacional. Tomemos aqui uma frase para ilustrar um momento
em que essas questões começam a ganhar força: “todo brazileiro é um mestiço, quando não no
sangue, nas idéas”22. É oportuno lembrar que temas como a escravidão e sua influência na
sociedade tornavam-se cada vez mais discutidos entre os intelectuais no começo da década de
1880. No mesmo ano do artigo de Romero saíram o supracitado A escravidão no Brasil, do
Couty, e O mulato, de Aluízio de Azevedo, que tratou de temas como a racialização do
mundo numa ficção naturalista. A escravidão e o mulato aparecem n’O abolicionismo,
publicado por Joaquim Nabuco 1883, como marcas de uma influência negativa de vícios na
sociedade brasileira. Essa esfera de ambigüidade desponta com a emergência do mestiço
como narrativa.
Nina Rodrigues definiu numa frase a relevância que o tema assumia: “a mestiçagem
humana é um problema biológico dos mais apaixonantes intelectualmente e que tem o dom
especial de suscitar sempre as discussões mais ardentes” 23. Não só da biologia, a
miscigenação tornou-se o mote de defesas apaixonadas, exaltações e condenações em
diversos autores. As narrativas sobre a miscigenação davam conta, muitas vezes, de duas
noções: contato e contraste, ora para falar das relações entre as etnias que formaram o
mestiço, ora para ressaltar suas diferenças. E na esteira dessas duas possibilidades de
interpretação, surgiam outras duas de conclusão: contribuição e confronto. Neste sentido,
quando um autor pendia mais para abordar os contatos, quase sempre se destacavam as
contribuições; de outro modo, quando privilegiavam os contrastes, buscavam apontar para os
confrontos.
Tomemos dois textos como exemplos, a começar com Nina Rodrigues:

o cruzamento de raças tão diferentes, antropologicamente, como são as raças branca,


negra e vermelha, resultou num produto desequilibrado e de frágil resistência física
e moral, não podendo se adaptar ao clima do Brasil nem às condições da luta social
das raças superiores24.

22
ROMERO, Silvio. “Introducção à historia da litteratura brazileira”. In. Revista Brasileira, Rio de Janeiro, t.
VIII, 1881,p. 233.
23
RODRIGUES, Nina. Mestiçagem, degenerescência e crime. In. História, Ciências, Saúde-Manguinhos. Rio de
Janeiro, v. 15, n. 4, 2008, p. 1151. Publicado originalmente em 1899, na revista Archives d’anthropologie
criminelle.
24
Idem, Ibidem, p. 1161.
Mais à frente, no mesmo texto o autor conclui assim:

podemos, então, concluir que o crime, como as outras manifestações de


degenerescência dos povos mestiços (...) está intimamente ligado, no Brasil, à
decadência produzida pela mestiçagem defeituosa de raças antropologicamente
muito diferentes (...)25.

Aqui o autor destaca as diferenças étnicas do “cruzamento defeituoso” como causa para
manifestações criminais, ou ainda, o crime como confronto na sociedade. Em contrapartida,
em Porque me ufano do meu país, Afonso Celso dá ênfase em como os contatos étnicos que
formaram o mestiço contribuíram para o crescimento nacional. Segundo o autor, “é hoje
verdade geralmente aceita que, para a formação do povo brasileiro, concorreram três
elementos: o selvagem americano, o negro africano e o português”, e acrescenta a seguir que
“do cruzamento das três raças, — portuguesa, africana e índia, — originou-se o tipo do
mestiço brasileiro, (...) contribuíram e contribuem eficazmente para a formação da riqueza
pública. Só eles exercem certas tarefas”26. Porém, é importante salientar que nem todos os
intelectuais concebiam o mestiço ou a miscigenação dessa maneira, Manoel Bomfim explorou
mais o lado do contraste sem apontar para um confronto étnico.
Essas várias formas de tratar o assunto produziram inúmeras polêmicas e disputas
narrativas, isso num período que Roberto Ventura indicou como propenso ao gênero: “época
de escritores combativos, polemistas irados, de bacharéis em luta” 27. A palavra polêmica vem
do grego polemos que significava a guerra dos gregos contra os bárbaros, uma guerra
naturalmente justa na acepção da palavra; é possível dizer, então, que o polemista compreende
a si como representante de um justo saber e um justo combate à barbárie da ignorância do
adversário polemizado. Silvio Romero foi um dos maiores promotores desse gênero no
período, tanto que ganhou título num artigo de Araripe Jr. chamado “Sylvio Romero,
polemista”. Mas, para não ficarmos muito tempo nessa descrição, tomemos duas posições
acerca da “mestiçagem” nesses dois autores, um em resposta ao outro na mesma publicação.
Num artigo sobre o teatro de Martins Pena disse o seguinte:

A mescla, porém, de raças totalmente distanciadas de cor, de grau de cultura, de


psicologia, é o grande disparate dos modernos tempos, que enfraqueceria
irremediavelmente a humanidade se não ficasse sempre um reduto imesclado de
gente superior.28
25
Idem, ibidem, p. 1176.
26
CELSO, Afonso. Porque me ufano do meu país. Versão e-book retirada do sítio
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/ufano.html#21, na data 08/09/2017. A obra original foi em 1900.
27
VENTURA, Roberto. Estilo tropical. História cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914). São Paulo:
Cia das Letras, 1991, p. 13.
28
ROMERO, Silvio. Martins Penna. In. Revista Brasileira, Rio de Janeiro, t. X, 1897, p. 249.
No que Araripe Jr. responderia três anos depois:

não necessitamos, portanto, para salvar o solo do Brasil, eliminar o povo, que o tem
regado com lágrimas e suor, e chamar a conquista europeia ou americana, como
único meio de fazê-la florescer e de libertar esta terra... 29

Não observamos aqui apenas duas posições contrárias acerca da mestiçagem, mas disputas
narrativas que envolvem a melhor forma de tratar o assunto, tomando para si o poder-saber e
o poder-dizer, elementos fundamentais de tais disputas.
As disputas narrativas demarcavam posições muitas vezes opostas e discordantes, mas
o que muitos desses intelectuais concordavam era de que a mestiçagem consistia num
conceito que tratava de um processo em andamento. Segundo Nina Rodrigues, “o
mestiçamento da população brasileira está ainda em via de formação e se encaminhamos para
lá, não se pode falar ainda de uma raça mestiça única capaz de figurar como individualidade
antropológica ao lado das três raças puras primitivas” 30. Não haveria, neste sentido, uma
“raça” formada, mas em processe de formação através do “mestiçamento”, evocando um
processo de temporalização da identidade posta num futuro não necessariamente previsível.
Isto porque alguns intelectuais apostavam num período necessário em que o mestiço seria
uma etnia “estável”31.
Alguns intelectuais procuraram projetar num futuro, mais ou menos datável, a
estabilização étnica do Brasil, um futuro branqueado pela insistência otimista de um processo
étnico-civilizador. Se lembrarmos da tela de Modesto Brocos, Redenção de Cam, de 1895,
observamos as três gerações nas quais a civilização europeia iria impondo a correção étnica
na brasilidade: do lado esquerdo da tela está uma avó negra, possivelmente escrava por conta
dos pés descalços, a agradecer pela obra de redenção de seu neto; no centro, a mãe mestiça em
pose de Madonna apontado o filho branco para a avó; por fim, o pai branco do lado direito
observa a cena com um ar maroto de ter cumprido o dever civilizacional. No conto de
Magalhães de Azeredo, “Uma escrava”, publicado no mesmo ano pela Revista Brasileira,
podemos observar a metade do processo quando o autor descreve a personagem central: a
“mulatinha” Manoela, “filha de um português” e “uma ‘fula’”, que era “famosa naqueles

29
ARARIPE JR. Tristão de Alencar. Silvio Romero – polemista. In. Revista Brasileira, Rio de Janeiro, t. XX,
1900, p. 364.
30
RODRIGUES, Nina. “Os mestiços brasileiros”. In. O Brazil-medico. Revista semana de medicina e cirurgia,
Rio de Janeiro, a. VI, n. 7, 1890, p. 53.
31
Explorei essa questão na minha dissertação e num artigo intitulado “Quadro de época. Uma alegoria sobre a
miscigenação no conto ‘Uma escrava’, de Magalhães de Azeredo”, publicado na revista discente do PPGH-Uerj,
em 2016. No artigo, eu abordo a noção das três gerações necessárias para se alcançar uma etnia “estável”.
sítios pela sua beleza (...); a tez, da verdadeira cor do jambo maduro, e os cabelos anelados,
indicavam a progressiva influência do sangue branco, anulando as imperfeições e rudeza da
raça primitiva, através de duas ou três gerações” 32. Por fim, cabe destacar a réplica de João
Batista de Lacerda às críticas que recebeu pelo texto de sua exposição no Congresso
Universal da Raça, em Londres, no ano de 1911, intitulado “The metis, or half-breeds, of
Brazil”. Na réplica, publicada num relatório apresentado ao Estado, o diretor do Museu
Nacional defendia a ideia das três gerações, não mais em termos individuais, mas nacionais;
num diagrama apresentado, o autor desenvolvia um prognóstico apontando 2012 como o ano
do total desaparecimento do negro e do mestiço no Brasil33.
Na esteira desses três autores, podemos perceber abordagens político-temporalizadas
acerca da mestiçagem, ou ainda o mestiço como um enigma para o futuro. Retomando
Lacerda, o diretor do Museu Nacional apresentou seu texto numa seção com, entre outros, W.
E. B. Du Bois, expondo sua interpretação sobre a realidade étnica brasileira. Afirmava o autor
sobre os mestiços: “they are not a real race, because many of their physical characters are not
fixed, but tend to vary at each new crossing” 34. O mestiço como incógnita tornou-se um
referencial para os intelectuais que estavam preocupados com as qualidades da nação, um
ponto onde a indefinição da brasilidade encontrava espaços para especulações diversas acerca
das cores suspensas ou dissolvidas num mar histórias. O conceito de mestiçagem não dava
conta do ser harmônico no tempo e no espaço que haveria de vencer as ditaduras racistas nas
leituras da democracia racial dos anos de 1930, antes, dizia respeito às potencialidades de
futuro da nação...

Bibliografia

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Janeiro, n. 45, a. V, 1933.

32
MAGALHÃES AZEREDO, Carlos. “Uma escrava”. In Revista Brasileira, Rio de Janeiro, t. I, 1895, p. 131.
33
LACERDA, João Batista de. Informações prestadas ao Ministro da Agricultura Pedro de Toledo. Rio de
Janeiro: Papelaria Macedo, 1912, p. 101.
34
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