Morar Na Casa Do Amor
Morar Na Casa Do Amor
Morar Na Casa Do Amor
Anselm Grün
SUMÁRIO
Introdução
Do que vive o ser humano?
2. Realizações do amor
Destinos do amor na literatura mundial
A diluição do amor
Expectativas de amor exageradas
Amor e ciúme
8. A dádiva do amor
O Cântico dos Cânticos
Amor e dor
O cântico paulino de amor
Conclusão
Quem não ama não existe,
não vive, morreu.
Quem tem vontade de amar supera a morte,
e somente quem ama vive para sempre.
ROBERT WALSER
INTRODUÇÃO
Os amigos viviam me pedindo: "Escreva alguma coisa sobre o amor!". Eu sempre recusava,
dizendo que a palavra era muito elevada para mim. E quase não há outra palavra que seja mais mal-
empregada e desgastada do que "amor". Uns equiparam amor a sexualidade. Os sucessos musicais
cantam um amor eterno, referindo-se com isso a uma paixão romântica. Mesmo em círculos eclesiais,
essa palavra é frequentemente usada apenas como uma fórmula vazia. Fala-se do amor de Deus, mas
ninguém sente nada dele. Continuam a ser palavras que falam à cabeça, mas deixam o coração frio. Às
vezes, o amor é empregado na Igreja como arma para sufocar na raiz qualquer conflito e reprimir
qualquer opinião independente. Em nome do amor se desculpa tudo. Quando uma sessão foi preparada
com desleixo, é preciso suportá-la em nome do amor. Se ficamos furiosos com uma falsa
argumentação, por amor devemos aceitá-la. Ou então se alega a exigência moral de que devemos amar
tudo e não podemos cometer nenhuma agressão. As pessoas adotam belas formulações de como
devemos estar sempre repletos de amor. Então tudo ficaria diferente. Ou surge também o slogan que
soa bonito, mas que em si é falso: "Somos cristãos pelos outros". Então o cristão não é nada em si
mesmo? Ele não é
filho amado, a filha amada de Deus? Isso não é realidade? Esse abuso da palavra "amor" me tirava,
até então, a vontade de escrever sobre ele. Além disso, sempre tive algumas inibições para falar de
meu amor por Deus ou do amor de Deus por mim, pois quando os outros mostravam imensa
leviandade ao falar dele tudo me parecia uma fórmula vazia.
Pois bem, nos Exercícios Espirituais individuais tive um sonho, no fim do qual aparecia a
intimação: "Desperte nas pessoas o anseio por amor, o anseio pelo amor trino!". E, ao mesmo tempo,
ouvi no sonho: "Mas comece cuidadosamente!". Senti que não podia falar imediatamente do amor de
Deus, mas devia buscar as pessoas onde elas estão, onde elas têm a sua experiência com amor, onde
são dilaceradas entre o sentimento de felicidade de amor e a decepção pelo amor frustrado, onde
gostariam de amar e não o conseguem, onde anseiam por amor e por ser amadas e o seu anseio nunca
se aplaca. Quando a senhora Hildegunde Wõller, da Kreuz Verlag, me perguntou se eu não queria
escrever sobre a experiência do amor de Deus como o verdadeiro fundamento da nossa vida, vi isso
como um aceno para seguir o meu sonho.
Senti, no entanto, que não se trata de aumentar as muitas palavras sobre o amor, mas de
escrever sobre o amor de Deus e o nosso amor humano de tal forma que também possamos
experienciá-lo e, por meio da experiência, vivenciar a cura das nossas feridas e a satisfação do nosso
mais profundo anseio. Aqui me comporto como alguém que, depois da perda da fala, por exemplo após
um derrame cerebral, começa a juntar novamente as velhas palavras. E espero não apenas repetir
simplesmente as palavras, mas dizê-las de tal modo que o coração se sinta compreendido por elas.
1.
O ANSEIO POR AMOR PURO
É provável que todas as pessoas anseiem por amor. Basta ouvir os sucessos musicais ou
acompanhar a programação da TV. Em toda parte se fala de como pessoas desejam amor, como
esse amor lhes deve trazer felicidade e, no entanto, muitas vezes as deixa infelizes. Em primeiro
plano está o anseio de ser amado por outra pessoa, de ser incondicionalmente aceito por outro
indivíduo. Muitos concordam com a equação: "Sou amado, logo existo". Sentem-se valiosos
quando são amados. Quem teve essa experiência de amor vive em harmonia consigo mesmo. Mas,
para quem foi decepcionado em seu anseio por amor, esse sentimento pode se tornar um vício. A
pessoa sempre se perguntará se os outros gostam dela, se o homem ou a mulher que ela ama
também a ama ou se seu amor é vão. As crianças pequenas também giram em torno do tema amor.
Ficam enciumadas quando os pais dedicam mais atenção ao irmão mais novo. Observam com
precisão quanto tempo a mãe tem para cada filho. E cuidam para que tenham o mesmo tempo
dedicado aos irmãos. Essa questão também está presente em muitas salas de aula. Os meninos
competem para obter o reconhecimento da menina mais bonita, para conquistar a garota mais
cobiçada. E as meninas se esforçam para ter um namorado o mais cedo possível para não se sentir
inferiores. O namorado é como um símbolo de status de que ela precisa para sua autoestima. Contudo
1
. Thomas MANN, Doktor Faustus. Das Leben des deutschen Tonsetzers Adrian Leverkühn, Frankfurt, 1975, 332.
essas são muitas vezes formas imaturas de amor. Trata-se mais da força de atração do sexo oposto, da
busca da própria identidade. Contudo, justamente na puberdade irrompe também a força do amor, a
experiência singular de que não sou apenas reconhecido e valorizado por uma menina, mas realmente
amado tal como sou. Os garotos e garotas sonham com um amor que encanta tudo. Em devaneios sem
fim, eles imaginam como seria se a outra pessoa por quem estão apaixonados correspondesse a esse
amor e existisse apenas para eles. A experiência da força encantatória da paixão é tão intensa que eles
dão tudo para amar e ser amados.
Em muitas conversas de cura de almas, aborda-se o anseio de ser finalmente amado pela mãe
ou pelo pai. Uma mulher, por exemplo, investiu toda sua energia para finalmente ter a atenção e o
amor do pai. E sempre foi decepcionada. O anseio pelo pai vai acompanhá-la por toda a vida, mesmo
que ele já tenha morrido há muito tempo. Ou um homem deseja ser amado pela mãe. Mas toda vez que
estão juntos só acontecem brigas. Como não recebe o que espera da mãe, ele reage com agressão a
cada palavra dela. Quanto menos o anseio de amor é preenchido pelos pais, mais fortemente ele deter-
mina a nossa psique. E mais confusas ficam as relações com o pai e a mãe. O amor pela mãe torna-se
com frequência um sentimento de amor e ódio. A filha não se desliga da mãe. Ela deseja seu amor e ao
mesmo tempo a odeia, porque a mãe não lhe dedica esse amor. O filho fica paralisado no amor pela
mãe e se torna incapaz de realmente amar a esposa. Ao mesmo tempo, o sufocante amor materno o faz
ir de uma mulher a outra, na esperança de finalmente se livrar desse sentimento doentio e encontrar
o amor verdadeiro. Mas é um círculo vicioso do qual ele consegue sair apenas com dificuldade.
Em cursos para jovens, constato que as histórias de relacionamentos são o conteúdo cada
vez mais determinante das conversas confessionais e de cura de almas. Um rapaz sofre por não
encontrar uma jovem que o ame. Mesmo amando uma garota, o amor dele é vão. Ou ele não ousa
revelar sua afeição a ela, ou vivencia a rejeição. Ela já tem um namorado. Em outro caso, uma
mulher sofre de solidão. Quando era jovem, tinha muitos pretendentes. Nessa época, ela brincava
com eles. Era tão bom ser independente. Agora é cada vez mais difícil encontrar um companheiro
adequado. E esse é, no entanto, seu desejo mais ardente.
Muitas vezes outros desejos se imiscuem no anseio por amor. Existe o desejo de receber
cuidado, não ficar sozinho, fundar uma família, achar um sentido na vida. Sem amor nos sentimos
sozinhos, temos medo do futuro, da velhice. Não se trata apenas de amor, mas também de se
perguntar pelo valor próprio. Alguns se sentem inúteis sem filhos. Sobre esse amor cabe a pergunta:
Mereço ser amado por outra pessoa? No amor reside o desejo de ser único para outra pessoa, de que
o outro ame somente a mim. A experiência da dignidade própria está associada à experiência de um
amor que me considere em minha singularidade, no qual eu posso ser inteiramente eu mesmo e no
qual descubro minhas capacidades e possibilidades.
Os vários sucessos que cantam o amor tratam, em última análise, do anseio por uma relação
bem-sucedida, por um amor que dure para sempre, que satisfaça todos os desejos, no qual possamos
descansar, que nos conceda felicidade eterna. Mesmo que muitas vezes as canções cantem esse amor
de maneira bem superficial, elas mostram o que move as pessoas em seu âmago.
A pergunta é: Como nós, curadores de alma, podemos responder a esse anseio por amor de
modo que as pessoas se sintam acolhidas? Só podemos responder se sentimos a fundo seu anseio e
se confessamos nosso próprio anseio, se o contemplamos e confiamos nele.
4
. F. M. DOSTOIEVSKI, Die Brüder Karamasow, Berlin, 1950, 425.
5
. Ibid., 651.
6
. Ibid., 718.
7
. ID., Schuld und Sühne, München, 1920.
Em Crime e castigo, o amor tem êxito. Em contrapartida, no romance O idiota, o amor puro
do príncipe Mishkin não tem lugar neste mundo. Na figura do idiota, Dostoievski desenhou uma
figura de Cristo. Assim como Cristo não foi compreendido num mundo de ódio e falta de
misericórdia, hoje também um amor tão puro, como o encarnado pelo ingênuo príncipe Mishkin,
não tem chance alguma. Nastácia Fillipovna sente que o amor do príncipe poderia salvá-la. Mas ela
acaba optando pelo amor do homem que será o seu assassino, Rogoshin. Dostoievski descreve aqui,
de maneira impressionante, como o amor é capaz de matar quando não é puro como o do príncipe
epiléptico Mishkin, que perante a visão da mulher assassinada, a quem ele devotou um amor tão
puro, recai novamente na sua doença. Num mundo em que o amor está tão distorcido, que mata em
vez de ressuscitar, o amor puro só pode se esconder atrás da doença. Nesse romance arrebatador,
Dostoievski pretende despertar em nós o anseio por um amor sincero e puro, tal como o do príncipe
e o que Jesus Cristo viveu para nós. Só ele pode despertar vida e curar as feridas humanas.
REALIZAÇÕES DO AMOR
A diluição do amor
O amor não fracassa apenas porque o ambiente o impede, mas porque ele se desintegra por si
mesmo. Muitas tragédias de divórcio mostram como o amor pode terminar dolorosamente. Há o caso
de uma mulher que já no início de seu amor reconhece a natureza reticente do marido, mas acredita
que poderá amá-lo saudavelmente. E, então, depois de 25 anos, tem de admitir que seu marido
sempre a traiu com outras mulheres e a tratou apenas como uma faxineira barata. Agora, ele não tem
mais nada a lhe oferecer. Ele a feriu ao também destruir, com a sua energia criminosa, o alicerce
financeiro da vida dela. Ela acreditou no amor e investiu toda a sua força nele. E agora ela se vê
8
. Graham GREENE, Das Ende einer Affüre, Hamburg, 1974, 87.
9
. Ibid., 113.
diante dos cacos da sua vida. Todo o seu amor foi mal-usado. Ela mesma sucumbiu a uma ilusão.
Ter de confessar isso é uma dor infinita.
Um fenômeno que muitos amantes vivenciam é a transformação do estar apaixonado em
desilusão, até mesmo em estranhamento. Os apaixonados juram fidelidade eterna. E poucas semanas
depois eles se zangam tanto um com o outro que os sentimentos enfraquecem. Eles se admiram por não
ter sobrado mais nada do sublime sentimento da paixão. Um culpa o outro por ter mudado tanto, por
não ter sobrado nele nada de amável. Eles simplesmente não conseguem dizer que o amor neles se
diluiu. É preciso culpar o outro. Não querem nem pensar que isso pode ter a ver com as suas próprias
projeções.
No entanto, em geral, essa rápida diluição do amor revela que a pessoa amou apenas uma
imagem do outro, mas não o outro como ele realmente é. Quando a imagem se desintegra e o outro
aparece como realmente é, evapora também o amor que valia para a imagem mas não para a pessoa.
Ernst Bloch diz a respeito desse fenômeno:
Muita imagem inicial torna-se, de mau grado, carne. Sobretudo se a imagem onírica se
alimentou mais do amante que a tinha do que do amado a quem ela se aplicava. Por isso, almas
demasiado românticas, muito enamoradas, da época do conto de fadas do amor jovem, e frágeis para a
realidade sobressaíram, em geral, na fobia à realização, especialmente no ódio ao casamento10.
O verdadeiro amor renuncia a imagens do outro. Ele considera o outro como ele é. Max Frisch
escreveu no seu diário:
É notável como podemos dizer tão pouco a respeito de como é justamente a pessoa que
amamos. Simplesmente a amamos. O amor, a maravilha do amor, consiste em nos manter no
suspenso do vivo, na prontidão em seguir outra pessoa em todos os seus possíveis
desenvolvimentos11.
Muitos não sabem de onde vem a súbita transformação dos sentimentos. Com frequência, eles
sentem, lado a lado, sentimentos positivos e negativos. Alguém está apaixonado e sente saudades da
outra pessoa. De repente, sente dúvidas se o outro é realmente fiel e ama apenas a ele. E essa dúvida é o
suficiente para nutrir a sede de vingança. Então surgem, de súbito, pensamentos de como ferir o outro.
Muitas vezes a dúvida não tem um motivo real. Mas o indivíduo pensa tanta coisa sobre o outro que não
consegue mais diferenciar se são os seus próprios sentimentos ou se essas coisas correspondem à
realidade. No entanto, os pensamentos sobre o eventual comportamento da pessoa amada podem, de
repente, despertar sentimentos de raiva, fúria, depressão, ciúmes, que põem o amor em perigo.
É estranho como pensamentos, sentimentos de amor e ódio podem estar próximos. Eles se
misturam e mostram como o nosso amor é quebradiço. Às vezes imaginamos como nos ferir para
ferir o amado, ou como podemos com palavras remexer nas feridas da pessoa amada e abri-las ainda
mais. Queremos mostrar ao outro que também podemos viver sem ele. Nós lhe mostramos a nossa
frieza, para aturdi-lo. Mas, se ele tirasse a conclusão óbvia disso, ficaríamos profundamente
ofendidos e feridos.
10
. Ernst BLOCH, Das Prinzip Hoffnung, Frankfurt, 1959, 376.
11
. Max FRISCH, Tagebuch 1946- 1949, Frankfurt, 1970, 31.
Você! Nesse sentido você a amou, é certo, até se esvair. Ela como a sua criatura. E agora esse medo
de que ela possa morrer para você! Ela não se tornou o que você esperava. Uma obra de vida
inacabada!12
Como sua mulher não evoluiu como queria Stiller, ele fracassou no seu amor. E em vez de
se amar eles se torturam um ao outro. O amor deles vira um sofrimento só.
Você ama sem poder fazer feliz a criatura que você ama. Esse é o seu sofrimento. Um sofrimento
real, à parte toda a nossa vaidade, pois também gostaríamos de brincar um pouco de Deus, que tira o
mundo da cartola, que cria a vida sobre a mesa. E então, é certo, gostaríamos de ser nós mesmos felizes,
amando...13.
A única solução que Rolf pode oferecer ao amigo é eles conviverem honestamente, sem que
queiram mudar um ao outro: "Parem de se torturar dia a dia com essa expectativa insana de que
poderíamos transformar uma pessoa, ou a nós mesmos, com essa orgulhosa desesperança. [...] De modo
bem prático: aprendam a rezar um pelo outro"14. É interessante que Max Frisch recomende aqui a oração
pelo outro como saída para o verdadeiro amor. Orando pelo outro, nós o recomendamos a Deus e
paramos de brincar de Deus para ele. Nós nos livramos das imagens arquetípicas que fizemos do nosso
amor e que cabem apenas a Deus; a imagem de salvador, redentor e benfeitor. Simplesmente dizemos
"sim" ao outro, tal como ele é, e o apresentamos a Deus, para que encontre nele, e não em nós, a sua
verdadeira salvação.
Amor e ciúme
Muitos acreditam que um ciúme intenso faz parte do genuíno amor. Mas o ciúme é sempre um sinal
de que eu gostaria de possuir a pessoa amada para mim. Às vezes, o ciúme pode se tornar doentio. Exemplo:
um homem que transforma sua mulher em prisioneira. Ela tem de existir apenas para ele. Mal pode sair de
casa, pois do contrário o marido já fica com ciúmes. O ciúme pode se tornar tão intenso que o indivíduo
chega a matar a pessoa amada. É um paradoxo: o amor, que na verdade dá vida, também pode matar. Um
amor que quer controlar e dominar o outro mata-o, ainda que não fisicamente. Nessa prisão de controle e
poder, simplesmente não se pode mais viver.
Muitas pessoas sofrem com o próprio ciúme. Elas querem se livrar dele, dar liberdade ao
companheiro. Mas a vontade não basta para superar o ciúme. Ele reaparece espontaneamente. Então de
nada adianta repreender o outro. Com frequência, o ciúme aponta experiências de perda, vivências de
como a confiança sofreu abusos e rupturas. Uma mulher havia concordado que uma velha amiga do seu
namorado viesse para uma visita. Mas, quando a amiga chegou, ela simplesmente não pôde suportar.
Racionalmente, era bem claro que o seu namorado estava com ela e que essa velha amizade era coisa do
passado. Todavia, isso de nada adiantou contra o avassalador sentimento de ciúme, que simplesmente
tomou conta dela, sem que ela quisesse. O ciúme aqui não pretende dominar. Ele simplesmente existe.
No entanto, se o namorado não repreende a namorada, mas procura compreendê-la, sem avaliá-la, o
ciúme pode aos poucos se transformar em confiança.
Também existem formas saudáveis de ciúme. Exemplo: uma mulher, em sua intuição,
percebe que a secretária do marido está flertando com ele, que ela manda mensagens que significam
mais do que uma relação entre amigos. O homem afirma que pode lidar com isso. Mas na verdade
ele gosta de fazer o papel de sedutor. Quer ser amado por todas as mulheres e admirado por muitos.
Ele absolutamente não enxerga a sua participação. Não percebe que está mandando a seguinte
mensagem para as mulheres: "Isso, me amem. Vai valer a pena para vocês".
Muitos relatos de violência e abuso sexual no casamento e na infância mostram que o amor
pode ferir e matar. Nesses casos não se trata verdadeiramente de amor, mas de uma pulsão que ganha
12
. ID., Stiller, Frankfurt, 1963, 557.
13
. Ibid., 562s.
14
. Ibid., 566.
autonomia, que simplesmente precisa ser satisfeita, porque a pessoa é incapaz de amar realmente o
outro. Ela o usa como objeto para satisfazer a sua própria sexualidade. Mas a sexualidade aqui não
tem mais nada a ver com amor. Ela é uma pulsão tão poderosa, que domina totalmente o indivíduo.
O amor quer se expressar na sexualidade e pode ter o seu auge justamente na entrega sexual. Porém,
quando a sexualidade se separa do amor, ela se torna um animal bruto, que ataca e mata, sem
consideração pela dignidade do outro, e o ser humano se torna um lobo predador. Provavelmente em
nenhuma outra área aconteçam sofrimentos tão inúmeros e profundos como na da sexualidade. Isso
não vale apenas para o abuso de crianças, que pode prejudicá-las por toda a vida. Também em
muitos casamentos as mulheres são violentadas. Muitos homens veem a mulher como posse. Acham
que têm o direito à relação sexual com ela. Passam por cima do afeto, com o qual poderiam se
aproximar docemente da esposa, e se limitam ao ato sexual. Usam a mulher para si, para a satisfação
do seu instinto ou para relaxar. Muitas mulheres simplesmente aguentam o ato sexual, mas não se
sentem bem. Assim, elas perdem a dignidade, pois onde são mais vulneráveis — no âmbito íntimo
da sexualidade —, alguém pisa sobre elas, sem se dar ao trabalho de as levar a sério como pessoa.
Em todos os dramas de amor e em todas as perversões da sexualidade de que nos fala a
literatura mundial, esconde-se um profundo anseio de amor. Em vez de reclamar sobre o amor
imperfeito, que muitas vezes tem sabor de amargura, medo, coerção, violência e morte, queremos
acreditar com Thomas Merton que "no conflito e na autocontradição de um amor falso podemos
aprender o nosso caminho para o amor verdadeiro" 15. Merton acha que podemos reprimir o amor
quando reprimimos suas energias negativas, como ódio, avidez e ciúme. Devemos descobrir também
nessas forças "más" o amor que nelas se oculta. Só assim ele pode se transformar e criar espaço
para o amor verdadeiro.
Todo mundo já teve experiências com o amor. Cada um já amou uma vez e foi amado. E cada
um já experimentou a maravilha do amor, mas também a frustração, as complicações em que o amor
pode nos meter. Evidentemente o amor é uma das forças mais intensas no ser humano, pelo menos
uma força que ninguém consegue ignorar. E em todas as experiências de amor, bem-sucedido ou
frustrado, ansiamos pelo verdadeiro amor, por um amor que não fere nem destrói, mas vivifica e
constrói, que não controla nem estreita, mas liberta e abre um espaço de vida. Em última análise,
ansiamos pelo amor divino, que realmente nos faz viver em liberdade. Ansiamos por ser amados
incondicionalmente em tudo o que somos. É claro, ninguém consegue isso plenamente. O amor
incondicional e absoluto é uma característica de Deus. Tudo o que o homem realiza em termos de
amor é dependente de condições e relativo. Thomas Merton diz: "Por sermos apenas frágeis
criaturas humanas, que vivem na terra e no tempo, nosso amor é dilacerado pela autocontradição.
Ele se nega a si mesmo. Apenas o amor de Deus é totalmente puro" 16. Esse amor puro é o anseio de
todos nós, cujas realizações experienciamos no próprio corpo.
3
O AMOR CRUCIFICADO DE DEUS
Num sonho meu nos Exercícios Espirituais, recebi a tarefa de despertar o anseio pelo
amor trino de Deus. Na meditação, esse amor divino me apareceu sobretudo na cruz. Isso pode
causar estranhamento a quem vê na cruz sobretudo os suplícios que Jesus teve de sofrer. Já os
evangelistas tentaram reinterpretar a atroz realidade da cruz. O Evangelho de João interpreta a
morte de Jesus na cruz como consumação do seu amor. João inicia a narrativa da Paixão com a
15
. In Ernesto CARDENAL, Das Buch von der Liebe. Lateinamerikanische Psalmen. Mit einem Vorwort von Thomas
Merton, Gütersloh, 1977, 13.
16
. Ibid., 14.
frase: "Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até a consumação" (Jo 13,1).
Nos três versos em que descreve a morte de Jesus, João usa três vezes a palavra
"consumação", para indicar que a morte foi a consumação do amor que Jesus devotou ao ser humano
durante a sua vida (cf. Jo 19,28-30). A palavra grega traduzida como consumação, telos, deriva da
linguagem dos mistérios e significa a iniciação no mistério de Deus. Para João, a cruz é a nossa
iniciação no mistério do amor divino.
Se João reconhece precisamente na cruz o amor de Jesus até a consumação, isso
supostamente ocorre porque ele sabe da unidade entre amor e dor. Não existe amor humano sem
dor. E evidentemente o amor de Deus também chega à consumação na dor. Ao amar o homem, o
próprio Deus se faz vulnerável. A cruz simboliza ambas as coisas: o amor de Deus pelo homem e o
seu sofrimento por ele se fechar. Contemplando a cruz, somos iniciados no mistério do amor divino.
E, junto à cruz, pressentimos que o nosso amor a Deus não será sem dor, e que onde amamos Deus
sofremos com a nossa estreiteza. Dói quando o amor nos abre para Deus.
No seu amor, Jesus sempre tocou e abraçou as pessoas. Ele lhes ofereceu a sua proximidade.
E elas se sentiam bem com essa proximidade. Obviamente, irradiavam dele um calor e um amor que
passavam às pessoas a mensagem de que eram totalmente aceitas, eram filhas e filhos amados de
Deus. A cruz é para João não o fracasso desse amor, mas a consumação. Para ele, isso já está visível
no gesto de Jesus na cruz. Na cruz, Jesus abre os braços. João vê nesses braços abertos não um
gesto da luta dolorosa, mas um gesto de amor. Por meio da paixão ele vê o verdadeiro
acontecimento, a revelação do amor de Deus em Jesus Cristo. O próprio Jesus diz a respeito desse
gesto: "Quanto a mim, quando eu for elevado da terra, atrairei a mim todos os homens" (Jo 12,32).
Jesus abre os braços, convidando-nos para nos deixar abraçar por ele.
Os braços escancarados de Jesus significam, para mim, mais uma coisa. Simbolizam um
amor que liberta, que não prende, mas me deixa respirar em liberdade. Quando eu mesmo me ponho
no gesto da cruz, pressinto algo desse amor que flui em mim e para o mundo exterior. Por isso, João
interpreta o gesto da cruz por meio da imagem do coração perfurado, do qual jorram sangue e água
e do qual o amor encarnado de Deus flui para nós, seres humanos.
Ainda há outra imagem do amor visível na cruz. Jesus se deixa pregar na cruz. Ele diz "sim"
à sua estreiteza. Ele se deixa prender no seu amor para sempre, e tão fortemente que morre. O amor
crucificado de Deus é um amor que se sacrifica por nós. Nas palavras de despedida, Jesus diz sobre
esse amor: "Ninguém tem maior amor do que aquele que entrega sua vida por seus amigos" (Jo
15,13). Aqui supostamente João retomou uma antiga regra da amizade e a relacionou ao amor de
Jesus. A palavra grega para "entregar" também pode ser traduzida como "pôr sua vida em jogo".
Jesus ama os seus amigos incondicionalmente. Nem a morte pode deter isso. Esse é o auge de todo
amor: amar o outro até a morte. Jesus nos ama até a morte; ele nos ama para além da morte. O
verdadeiro amor supera a morte. Ele cria uma relação que não pode ser destruída nem na morte.
O filósofo francês Gabriel Marcel descreveu esse amor que supera a morte: "Não há amor
humano digno desse nome que ao mesmo tempo não represente aos olhos daquele que pensa uma
garantia e uma semente de imortalidade... quem ama diz: 'Você não morrerá!" 17. O amor profundo não
encontra limite na morte. Ele vai além da morte. Essa é a convicção do evangelista João, que faz Jesus
dizer no discurso de despedida palavras sobre o amor que anula a separação entre céu e terra, vida e
morte, que cria uma relação entre Jesus e os seus discípulos que dura além da morte. Também é essa a
convicção de todos os amantes. Eles estão convencidos de que se verão novamente na eternidade, de
que então reconhecerão pela primeira vez o mistério do seu amor. Mas isso não é apenas crença;
corresponde à experiência do amor autêntico. Uma mulher me contou que após a morte do marido
sentia o amor dele em muitos sinais e que ele ainda a acompanhava em amor. O amor não foi
17
. Gabriel MARCEL, Homo Viator. Philosophie der Hoffnung, Düsseldorf, 1949, 212s.
destruído nem pela morte; durou para além dela. E na morte dessa mulher ele não desaparecerá, mas
se consumará.
18
. Cf. Verena KAST, Paare, 58ss.
19
. Ernesto CARDENAL, Das Buch von der Liebe, 28s.
precisava começar cuidadosamente a despertar nas pessoas o anseio pelo amor. Quando
escrevo muito rápido sobre o amor, ele se torna palavras triviais, que podemos ler por toda a
parte, mas que não tocam mais ninguém, porque já as ouvimos com demasiada frequência.
20
. Cf. Josef PIEPER, Über die Liebe, München, 1972, 39ss.
21
. Ibid., 56.
22
. Henry J. M. NOUWEN, Im Haus des Lebens. Von der Angst zur Liebe, Freiburg, 1986, 8.
4
AMOR HUMANO E AMOR DIVINO
Na primeira epístola de João lemos: “O amor vem de deus; e todo aquele que ama
nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus” (1Jo 4,7s.). aqui se fala de maneira
absoluta do amor. Não se diz aqui que amamos Deus ou que Deus nos ama, mas que Deus
em si é amor. O amor não tem objeto. Ele simplesmente existe. Todos nós também temos
um anseio de ser simplesmente amor. Há pessoas em cujos olhos vemos que são pleno amor,
que são totalmente permeáveis ao amor divino. Conheço um velho senhor que passou por
muitas situações difíceis, mas não ficou amargo. Dos seus olhos emana algo de caloroso,
amoroso. Falo com uma mulher simples que sofreu injustiça. Ela tem um rosto amável.
Essas pessoas não estão apaixonadas por outra, elas irradiam amor em toda a sua existência.
O seu amor vale para todos com quem se encontram. Elas podem se voltar para todos com
afeição indivisa. O seu amor se dirige aos animais, às plantas, a uma estátua, a uma imagem,
a uma música. Dirige-se a todos os momentos. Perto delas nos sentimos bem.
Elas irradiam amor. As suas mãos têm certa ternura. Não conseguimos descrever o
que exatamente nos ocorre quando encontramos tais pessoas. Mas, de algum modo, nos
sentimos aceitos, levados a sério, considerados, amados. Nosso coração se desprende. Nós
nos sentimos livres. Não precisamos esconder mais nada. Podemos ser tais como somos.
Seus olhos são o convite para simplesmente sermos.
No meu quarto há uma imagem de São Nicolau, na frente da qual medito todos os dias.
São Nicolau irradia amor em todo o meu quarto. Ele é totalmente permeado de amor. A lenda
descreve Nicolau como o grande amante. Ele auxilia as pessoas em necessidade, aproxima-se
das pessoas que estão desesperadas. Intervém por aqueles que não sabem mais o que fazer. A
imagem não exprime o amor remontando às histórias da lenda, mas fazendo resplandecer o
amor no rosto do santo. Sua face é amor. De todos os seus poros flui amor para mim. Eu
também gostaria de amar de tal forma que os meus olhos irradiassem amor, que se pudesse ler
o amor nos meus traços faciais, que se sentisse amor na minha postura corporal, na aura do
meu corpo. Mas sei muito bem que não posso produzir essa irradiação. Ela é expressão de que
me abri para o amor de Deus, de que coloquei no amor de Deus tudo o que está em mim.
Quando não reprimo nada em mim, mas exponho tudo ao amor de Deus, então posso entrar em
contato com a fonte interna do amor divino, que nunca seca.
Ser amor
Estive duas vezes no monte Athos. Lembro-me com prazer da primeira visita há vinte anos.
O velho padre nos cumprimentou, a mim e a meu irmão, em Simonos Petras. Não entendemos nada
do que ele falava. Mas as mãos que nos estendeu eram tão macias e sensíveis que exalavam amor. E
os seus olhos irradiavam tal amor que logo nos sentimos em casa. Então pressenti como uma pessoa
pode mudar quando é atravessada por inteiro pelo amor de Deus. Quando olho tais pessoas que são
puro amor lembro-me também de uma velha camponesa em cujo olhar se podia ler amor e
misericordiosa doçura. Ela passou por altos e baixos na vida. Não falava muito. Mas em todo o seu
ser brilhava um amor que brotava de todos os poros do seu corpo. Dessas pessoas flui um amor que
tudo une, Deus, homem e criação. Elas estão em harmonia consigo mesmas e com a sua vida. Elas
se amam e se sabem profundamente amadas por Deus. Elas fazem o seu amor fluir para tudo que
encontram, para os homens, mas também para os animais e as coisas, que elas tocam
amorosamente.
É provável que o leitor também conheça essas pessoas que são preenchidas de amor em todo
o seu ser. Perto delas, você se sente em casa, aceito, amado. Mas o que é isso que irradia dessas
pessoas? Temos dificuldade quando tentamos definir com mais precisão aquilo a que chamamos
amor. Só podemos descrever que o amor é, evidentemente, uma qualidade do sentir, do falar e do
agir, uma força que flui de nós, uma irradiação. Nela estão as qualidades da doçura, da bondade, da
ternura, da amizade, da mansidão, da alegria. Por fim, estão reunidos no amor todos os frutos do
Espírito que Paulo enumera na Epístola aos Gálatas (G1 5,22s.).
5
A DIMENSÃO ERÓTICA DO AMOR DE DEUS
Muitos se queixam de que o amor a Deus não move realmente o seu coração, e de que
gostariam de amar a Deus mas muitas vezes não conseguem. Ou acham bom e bonito que Deus os
ame, coisa em que também acreditariam, mas dizem que não podem viver disso, pois não teriam a
experiência desse amor na profundeza do seu coração. Os místicos vivenciaram o amor de Deus
existencialmente. Eles descreveram esse amor numa linguagem erótica. Naturalmente, o amor de
Deus produziu nessas pessoas o mesmo efeito da experiência da união sexual. Elas tiveram uma
experiência corporal do amor divino, às vezes como um orgasmo. É célebre a visão de Santa Teresa
de Ávila, segundo a qual Cristo a fere com a flecha do amor. Bernini representou essa cena tão
plasticamente que muitos reconhecem nela um orgasmo. Teresa se prostra de amor, assim como uma
mulher se prostra com todos os seus sentidos diante do homem que ela ama.
A mística holandesa Hadewijch von Anvers (1230-1260) descreve como, na vigília de
Pentecostes, ela de repente teve a sensação de que o próprio Cristo vinha até ela e a abraçava:
"Ele me tomou inteira em seus braços e me apertou contra si. Com todos os meus
membros, senti toda a bem-aventurança do seu corpo segundo o desejo humano do meu coração.
Com plena consciência, eu me satisfiz à vontade" 23. No encontro com Cristo, Hadewijch tem
uma experiência semelhante à que têm o homem e a mulher no ato sexual. Uma experiên cia
espiritual intensa exprime-se no corpo da mesma maneira que uma experiência sexual. Sempre
que uma pessoa é totalmente tomada por alguma coisa, o seu corpo também é toca do por isso.
Quando creio em Deus não apenas com o corpo, mas tenho experiência dele em todo o meu
coração e com todos os meus sentidos, o corpo inteiro é afetado. Ele pode tremer e estremecer
como na experiência sexual. Ele "se satisfaz" tal como no ato sexual.
Ao ler as obras dos místicos, algumas pessoas têm a impressão de que estão longe da
experiência deles. Dizem que não sentem tão profundamente o amor de Deus ou o amor de Cristo.
Não podemos forçar uma experiência mística como essa. Mas podemos nos abrir para ela.
Considero importante tentar, com todos os sentidos, perceber Deus na criação. Muitos dizem: sinto
uma pessoa que eu possa abraçar, beijar, mas Deus está tão longe... Mas o que realmente constitui a
experiência do amor humano? O toque, o beijo? Pode-se tocar a pele de uma pessoa sem sentir
amor. Sim, podemos até beijar sem amar. Se um toque ou um beijo medeia o amor depende de eu
amar realmente o outro e então expressar esse amor, fazê-lo fluir pela respiração, pelo contato, pelo
beijo. Quando não existe amor, não é um beijo que vai criá-lo. Se, no entanto, ele flui em mim, ele
pode escoar para o outro pelo toque carinhoso ou pelo beijo. Então sinto o amor como um fluxo, como
uma troca interior. Da mesma forma, o amor de Deus pode fluir para mim, quando estou inteiramente no
contato. Quando afago uma flor, quando me deixo roçar pelo vento, isso pode se tornar uma experiência
23
. Herman VEKEMAN, Erotik und eheliche Liebe bei Hadewich, in O. STEGGINK (Hrsg.), Mystik. Band 1. Ihre
Struktur and Dynamik, Düsseldorf, 1983, 183s.
de amor tão intensa como o toque humano. Tudo depende de eu acreditar no amor de Deus, que quer me
abraçar por meio da criação, e de eu permiti-lo no plano corporal.
Peter Schellenbaum fala da "consciência perceptiva". As pessoas sentem o amor entre si
apenas quando estão na consciência perceptiva, quando estão inteiras no contato. Assim, um toque
absolutamente terno já pode expressar tudo o que há de amor em nós. Muitos que perderam essa
consciência da percepção precisam abordar o corpo do outro com violência para extrair-lhe o amor,
o prazer. Eles só se sentem se apertam um ao outro com força cada vez maior. Eles tiram proveito
da excitação, do auge sexual, mas não conseguem desfrutar o amor, não conseguem percebê-lo por
muito tempo. Schellenbaum imagina, por exemplo, que pessoas que se amam muito renunciem à
fusão sexual. Há também um amor erótico entre homem e mulher que não visa ao ato genital.
Schellenbaum fala de uma mulher que, em benefício da sua capacidade de amar, renuncia às
relações sexuais. Ele também não aceita que se dê a designação de "assexuais" às pessoas que
vivem o seu eros na entrega a uma obra social, cultural ou religiosa. "Pelo contrário, às vezes elas
têm uma forte irradiação sexual. O seu corpo mobiliza, nas fases intensas da sua entrega, os
mesmos hormônios do corpo de uma pessoa que se prepara para um encontro sexual" 24. Em toda
entrega intensa são despertados "sentimentos vivificantes da união que aflui". Isso vale também
para a entrega a Deus. Ela pode fazer o corpo humano excitar-se e vibrar corno a entrega no ato
sexual.
24
. Peter SCHELLENBAUM, Das Nein in der Liebe. Abgrenzung und Hingabe in der erotischen Beziehung, München,
1986, 101.
dominados pela sexualidade. Ela é como um vulcão, que pode entrar em atividade tão logo toquemos
nele. Preferimos então colocar uma tampa sobre esse vulcão. Mas é preciso muita energia para
pressionar essa tampa de modo que impeça uma erupção. Quando pessoas devotas reprimem a sua
sexualidade, não conseguem desenvolver uma espiritualidade profunda. A sua devoção é marcada
apenas por leis e preceitos, que se devem cumprir. É uma devoção moralizante, que evita a sua
incapacidade de integrar a sexualidade ao caminho espiritual pregando a observância da moral sexual
eclesial e estabelecendo exigências rigorosas.
A repressão da sexualidade não leva a um amor verdadeiro a Deus. Quem reprime a sexualidade
se trata com dureza e crueldade. Essa dureza e, muitas vezes, essa brutalidade até se exprimem também
no trato com as coisas, por exemplo os livros que se leem, a maleta, a ferramenta. E se mostra no
julgamento sobre outras pessoas. É conhecida, infelizmente não sem razão, a brutalidade de pessoas
devotas, que fazem julgamentos impiedosos sobre os outros, censuram-lhes falhas constantemente e
não deixam de espionar a sexualidade deles. Justamente nos Estados Unidos — em que a moral sexual
puritana determina muitas pessoas —, é uma verdadeira mania espionar a conduta sexual de pessoas
proeminentes e se ocupar com isso. Essa atitude aponta sempre a repressão da sexualidade própria, o
que resulta numa forma desumana e brutal de lidar com o outro. Essa dureza também se mostra na
relação com Deus. Deus é visto sobretudo como aquele que impõe exigências rigorosas e observa se o
homem as está cumprindo. É impossível amar a esse Deus, ainda que nos falem tanto do seu amor por
nós e nos exortem bastante a amá-lo. Trata-se de uma pregação desamorosa do amor. As palavras estão
corretas, mas não emana do pregador nenhum amor, apenas dureza. E por trás da dureza se ocultam
tristeza, desespero, frieza. Quando os místicos falam de Deus, eles irradiam um calor. O nosso coração
é tocado. Sentimos que eles realmente amam a Deus, que o seu coração está repleto de amor. É difícil
encontrar outro santo que irradie um amor divino tão profundo como São Francisco. Dele se conta que,
sempre que aparecia a palavra "Senhor" no Salmo, ele lambia os lábios de prazer e amor. Quando
rezava a palavra "Senhor", seu coração transbordava de amor a Cristo.
25
. Ken WILBER, Eros, Kosmos, Logos. Eine Vision an der Schwelle zum nãchsten Jahrtausend, München, 1996, 555s.
26
. Ibid., 555.
consumo. E para recebê-lo pessoas são sacrificadas no altar do ganho de prazer.
Hans Jellouschek observa que em muitos casais a sexualidade é superexigida, porque é
transformada no único lugar de autotranscendência. O que se esperava da religião — que no
êxtase do amor a pessoa fosse além de si mesma e se fundisse com Deus — é esperado da
sexualidade. Com isso ela se torna um substituto da religião e é extremamente superexci tada. Ela
se torna um produto de consumo, que não mais conduz o homem para além de si mesmo. A
sexualidade vira a única promessa de vitalidade. Como o indivíduo se torna incapaz de perceber o
mistério da vida e do amor em tudo, ele se fixa na sexualidade, a única que o faz pressentir algo
de transcendência e auto esquecimento. A sexualidade ganha uma dimensão religiosa. Mas não
aponta mais para a transcendência; permanece, antes, fechada em si mesma. Assim contudo, diz
Jellouschek, no ato sexual ficamos "sozinhos, tendo no máximo um vislumbre da Unio mystica,
mas não participando dela. O amor entre os sexos não existe para satisfazer o anseio de união
abrangente, mas para conservá-lo desperto e nos manter no caminho até ele 27.
27
. Hans JELLOUSCHEK, Mànner und Frauen auf dem Weg zu neuen Beziehungsformen, in: P. M. Pflüger (Hrsg.),
Der Umbruch im Mann, Olten, 1989, 177.
Deus da sexualidade reprimida. Um importante critério é sempre a realidade. Os místicos eram
pessoas realistas, que deixaram a sua marca também neste mundo, que podiam trabalhar muito e
eficientemente, e que viveram relações humanas. Eles não tomaram o amor de Deus como substituto
do amor humano. Para eles, o amor de Deus era, antes, o ápice da experiência do amor. No encontro
com o amor de Deus, a sua vivência era a de que esse amor permeia o homem inteiro, corpo e alma,
consciente e inconsciente, mobilizando todas as forças vitais e iluminando todo o corpo. Os místicos
eram sempre pessoas amantes. Eles experienciaram o amor com o corpo e o irradiaram com todo o
seu ser. Para Schellenbaum é imprescindível que os celibatários em sua dedicação vivenciem o eros
como vivificante, que eles não se recolham num gueto. Quando um mosteiro se considera um gueto,
"a manifestação mística do eros enfraquece" 28. Por isso, para os místicos a amizade com outras
pessoas também sempre foi importante. Eles vivenciavam o amor a uma pessoa de maneira não-sexual,
contudo erótica. O amor erótico pelas pessoas fortalecia o eros do seu amor divino. Para eles, o amor era
realmente a sua atitude básica. Eles podiam, com o mesmo amor sensorial, amar os homens, os animais,
as plantas, o vento, o sol e Deus. Eles eram amor por completo. Eles, por assim dizer, moravam no amor.
O amor também influenciava a relação consigo mesmos. Não havia autodesprezo e autodepreciação, mas
uma grata harmonia consigo mesmos e com a vida. Eles podiam olhar amorosamente para a sua própria
realidade. Quem é amor pode amar sempre e por toda a parte, dele emana um amor mesmo que ele não
viva numa amizade sólida com uma pessoa.
Quem ama realmente, a ele muitas vezes basta a respiração da pessoa amada. Na respiração
conjunta, ele sente como esse amor corre por ele e o liga profundamente ao outro. Na respiração, eles
se fundem num ser só. Quem perceber esse amor humano com cuidado e consciência — com a
consciência perceptiva de que fala Schellenbaum —, também reconhecerá o amor de Deus, se lidar
cuidadosamente consigo mesmo, com as coisas, as plantas, os animas, e as pessoas. O místico persa
Dschalal ed-din ar-Rumi, no século XIII, descreveu de maneira maravilhosa como Deus em nossa
respiração nos enche com seu perfume de amor.
Ó, grande Deus,
Com tua alma a minha se misturou,
Como água com vinho.
Quem pode separar a água do vinho,
Quem me desunir de ti?
Tu te tornaste meu grande eu.
E nunca mais quero ser só um pequeno ele.
Tu me afirmaste para sempre,
. Peter
28
SCHELLENBAUM, Das Nein in der Liebe, p. 102.
indistintamente comigo, de modo que exala por todos os poros de meu corpo e não há mais nada em
mim que não seja tocado pelo "perfume do amor de Deus".
O que o místico persa exprime, eu o reencontro nas palavras de Jesus sobre a videira (Jo 15,1-
8). Na minha respiração, o amor de Deus corre em mim. Eu me ligo à videira de Cristo. E toda a vida
que sinto em mim é o seu amor divino, pois o vinho é, para João, uma imagem do amor de Deus, que
nunca se esgota. Jesus nos promete: "Eu sou a vinha, vós sois os sarmentos: aquele que permanece em
mim e no qual eu permaneço, esse produzirá fruto em abundância" (Jo 15,5). O fôlego que me
penetra, o sangue que corre em mim, tudo o que flui em mim é imagem do amor de Deus, que
preenche o meu corpo e me dá vitalidade e fertilidade. Jesus exorta os seus discípulos: "Permanecei
no meu amor" (Jo 15,9). Posso evidentemente "morar" no amor de Jesus. Ele é o fluido que me
circunda. É a força que corre em mim. É o perfume do amor de Deus, que na minha respiração
preenche todo o corpo. Para Jesus tanto faz dizer "Permanecei em mim" ou "Permanecei no meu
amor". Ser em Cristo significa ser no seu amor, morar na casa do seu amor, encontrar um lar no seu
amor. No seu amor, o anseio do coração se realiza, nele o coração pode descansar.
O pressuposto para ter uma experiência corporal do amor de Deus é que eu me envolva
por completo na minha respiração, que eu me abandone nisso e esteja apenas no respirar. Então
terei uma experiência do amor de Deus quase tão intensa como quando sinto o amor de uma
pessoa num beijo ou na fusão sexual. Numa pessoa, só vou sentir realmente esse amor quando
acreditar nele. Só o beijo não é ainda amor. Ele exprime apenas o amor em que acredito. Da
mesma forma, a respiração pode ser vazia, sem amor, sem proximidade. Mas, quando creio que
na minha respiração o amor de Deus entra em mim e quando me uno por inteiro com a minha
respiração, então posso ter aí uma experiência corporal do amor de Deus. Não está em meu poder
prender esse amor. Às vezes, apesar de todo cuidado e toda atenção, não vou senti-lo. Permaneço
em mim mesmo e na minha inquietude. Então me é útil confiar no meu anseio. Ainda que eu não
sinta o amor de Deus, estou ciente de um profundo anseio por esse amor. Se persigo esse anseio,
também reaparece um pressentimento do amor de Deus em mim.
Mesmo que eu não possa me prender ao amor de Deus, sei, contudo, que ele não é tão
frágil como o amor humano. Numa amizade ou num casamento, podemos vivenciar inten samente
o amor de uma pessoa. Mas, ao mesmo tempo, sabemos que esse amor pode mudar rapidamente
em indiferença, agressão, pretensões de posse, estreitamento, ofensa mútua. Basta que o outro nos
magoe para que se levantem em nós palavras com as quais tentamos vingar a ofensa e tocar no se u
ponto fraco. E sabemos como pode ser rápida a diluição do sentimento de amor. Alguns reagem
prendendo o outro ou se escondendo por trás de uma fachada fria, para que não fiquem tão
vulneráveis. No entanto, posso deixar que o frágil amor humano me aponte também para o amor
de Deus. Eles não são dois opostos que se excluem. Ao contrário, a experiência do amor humano
está sempre me remetendo ao amor de Deus. É salutar desfrutar o amor por uma pessoa sem
medo de que eu possa ferir esse amor. A experiência do amor divino me livra de uma fixação
muito forte no outro. Sei que o nosso amor só pode perdurar se nos deixamos remeter ao amor de
Deus. Assim, a experiência do amor de Deus é o fundamento sobre o qual também podemos
construir o nosso amor humano. Esse é o sentimento do sacramento do casamento: de que o amor
entre homem e mulher seja o mediador do amor de Deus e remeta ao amor de Deus. Isso dá ao
amor deles segurança e constância.
Para mim, a respiração não é o único caminho para experienciar corporalmente o amor de
Deus; há também os gestos. Também exprimimos o nosso amor por uma pessoa com gestos.
Abraçamos o outro, tocamos as suas mãos, o beijamos. Os gestos de oração têm a mesma forma
dos gestos de amor humanos. Aqui, sobretudo o gesto da cruz é, para mim, o gesto de amor.
Quando observo Cristo na cruz, como ele abre os seus braços, eu me sinto abraçado por ele. Se eu
mesmo abro os meus braços, tenho o sentimento de que em mim corre amor, de que sou um vaso
no qual se derrama o amor de Deus. Então pressinto que há em mim tanto amor que ele pode
também fluir para fora de mim, sem que eu me esvazie dele. Outra maneira do gesto da cruz
consiste em cruzar as mãos sobre o peito. Maria, muitas vezes, é representada como se olhasse
totalmente para dentro e guardasse a palavra no coração. Nesse gesto, sempre me vem à mente a
imagem de Henry Nouwen segundo a qual a vida espiritual consiste em vigiar o fogo interior. Em nós
arde o fogo do amor divino. Mas, não raro, deixamos as portas do nosso forno abertas e nos
apagamos. Com os braços cruzados sobre o peito, fecho as portas do meu coração. Não deixo
ninguém entrar em mim. Assim estou sozinho com o meu Deus. Assim vigio o fogo interior, o amor
de Deus, que atravessa o meu corpo. Quando exercitamos esse gesto num curso, uma mulher disse que
sentiu muito calor. É uma experiência equivalente à do amor por uma pessoa. Nosso coração também
se aquece. Esses gestos nos fazem perceber que o amor de Deus pode se exprimir no plano corporal
de modo tão intenso como o terno amor entre um homem e uma mulher. Para quem sente o amor de
Deus nesse gesto, os textos bíblicos do Deus do amor não são palavras vazias.
6.
A FORÇA CURATIVA DO A MOR
Algumas pessoas tomadas pelo amor exprimem isso dizendo: "Estou doente de amor". O
amor pode agitar o corpo tal como uma doença. Mas só o amor não correspondido nos deixa
doentes. Se duas pessoas se amam, o seu amor tem força curativa. As feridas da infância consistem
geralmente na falta de amor, na experiência de rejeição, ofensa, depreciação, frieza e ódio. E só o
amor pode curar tais feridas. Isso não se aplica somente ao amor dos apaixonados, mas também ao
processo terapêutico. O que em última análise cura o paciente não é o método psicológico que o
terapeuta usa, mas o amor que ele lhe oferece, ou, como exprime Rogers: o interesse irrestrito,
valorizador, a empatia, a atenção incondicional, positiva. O paciente necessita da experiência da
aceitação incondicional do terapeuta para poder trabalhar a sua escassez de experiência de amor na
infância. Com bastante frequência, ele se apaixona pelo seu terapeuta. Acontece a chamada
transferência, que pode ser absolutamente salutar. O paciente deve apenas aceitar de volta essa
transferência, para não se tornar dependente do terapeuta. Deve sentir em si mesmo o amor que o
terapeuta lhe mostra inconscientemente. Então o amor irá curá-lo. Se continuasse dirigindo seu
amor ao terapeuta, ele o transformaria cada vez mais em Messias, salvador, redentor. Mas com isso
iria sobrecarregá-lo. Iria lançar sobre ele uma imagem arquetípica que o tornaria, em última análise,
semelhante a Deus.
29
. Ernesto CARDENAL, Das Buch von der bebe, p. 27.
tornamos verdadeiramente humanos. Então não seremos mais determinados pelas nossas feridas e
ofensas, mas pelo amor que transforma as nossas feridas, que as modela como um grito de amor.
Cardenal sempre volta a falar da câmara interna, que está em nós e na qual Deus mora como amor:
"No interior de cada ser humano há um espaço, uma esfera totalmente pessoal, a que apenas Deus tem
acesso. Mas a maioria das pessoas ignora a existência desse espaço interno, e por isso o seu coração é
vazio e sem amor"30. Apenas quando descobrimos o amor divino na base de nossa alma é que
paramos de procurar cheios de sofreguidão e avidez, lá fora no mundo, a satisfação das nossas
necessidades. Muitos permanecem descontentes na sua busca de um amor que preencha todo o seu
coração. "Eles procuram a felicidade em coisas tão irrisórias como dinheiro, álcool ou no prazer com
toda a força dos seus sentidos, que está, contudo, determinada para a visão da bem-aventurança" 31.
Eles só poderiam experienciar verdadeira paz no seu coração, escreve Cardenal, "se se voltassem para
o seu próprio interior, para o grande, único amor que pulsa e respira neles" 32. Para Ernesto Cardenal,
a experiência do amor de Deus foi curativa. Antes da sua entrada na ordem dos trapistas, ele amou
de várias maneiras. Agora ele percebe que Deus o ama de maneira incomparável:
Meus amores anteriores me ensinaram o que esse amor significa. Sei como tu me amas, pois
eu também amei e sei o que é paixão e obsessão e loucura por alguém. E tu és louco por mim e me
amas com obsessão. Tu me amas com todas as minhas fraquezas, as minhas falhas, herdadas e
adquiridas, com todo o meu ser, tal como ele é, com toda a minha hipersensibilidade e o meu
temperamento, com todos os meus costumes e meus complexos. Tu me amas como sou33.
Essa foi para Cardenal uma experiência curativa, que deu à sua vida uma nova qualidade.
Antes, apesar da experiência de muitos amores por várias pessoas, ele se sentia muitas vezes sozinho à
noite, e os seus suspiros caíam no vazio. Mas agora ele pode dizer: "Quase sinto no meu interior, mais
profundamente dentro do que eu mesmo, a Sua respiração".
As feridas que cada um de nós arrasta consigo são, em última análise, condicionadas pela falta de
amor. Quando crianças, não fomos aceitos na nossa singularidade. Não experienciamos um amor
verdadeiro. Fomos usados em vez de amados. Os adultos nos usaram para suprir suas próprias
necessidades. E ignoraram nossas mais profundas necessidades. A falta de amor nos deixou doentes. A
cura só será possível se tivermos experiência do amor, se pessoas nos amarem incondicionalmente e se
no amor humano reconhecermos o infinito amor de Deus. Mas o amor de Deus não depende do amor
humano. Ele também está presente no nosso coração. Por isso não precisamos estar o tempo todo à
procura de pessoas que nos amem. Nas conversas, sempre ouço a queixa de alguém que desde a infância
anseia por amor, mas nunca o recebeu. Essas pessoas têm, com frequência, um anseio tão desmedido por
amor que ninguém se atreve se aproximar delas, pois qualquer um que tentasse lhes oferecer algum
amor seria totalmente monopolizado por elas. Suas super expectativas em relação ao amor de uma
pessoa lhes tornam impossível vivenciar o amor pelo qual anseiam. Na conversa, procuro
responder a essa queixa de duas maneiras. Por um lado, volto o olhar delas para o amor que elas já
experienciaram, o amor dos seus pais, dos seus amigos, para os inúmeros pequenos sinais de amor
que elas vivenciam diariamente, num olhar amigo, num presente, numa boa conver sa. Quando elas
se livram da desmedida das suas expectativas, descobrem esses sinais de amor por toda a parte. Por
outro, tento mostrar à pessoa que se queixa de falta de amor um caminho para o seu coração,
habitado pelo amor. Ela absolutamente não poderia ansiar tanto assim por amor se não o sentisse
em si mesma. Em vez de ir para fora com o seu anseio, ela deve, ao contrário, descobrir em seu
âmago a razão do seu anseio, o amor de Deus que já está nela. Quando imagina que Deus mora no
seu recinto mais íntimo como amor, que ali existem calor e doçura, ternura e carícia, e quando se
30
. Ibid., 45.
31
. Ibid., 28.
32
. Ibid., 29.
33
. Ibid., 50s.
entrega a esse amor, então ela pressente, na sua experiência de falta, que tudo já está nela. O amor
por que tanto anseia já preenche o seu coração. Precisava apenas descobri-lo. Preci sava apenas
acreditar nele e, na crença, vê-lo e senti-lo. A crença a liberta da cegueira, que a fez ignorar o amor
no seu coração. Se vejo o amor, também posso senti-lo. Ele poderá então desdobrar a sua força
curativa em mim.
Pegar o amor
Muitos querem afastar as suas feridas com várias atividades, ou para os homens para ter a
sua atenção, ou para Deus para comprar o seu amor. Mas, pela produção, elas nunca vão vivenciar o
amor que Deus lhes oferece. Elas mesmas querem curar as suas feridas. Porém, não conseguem. Elas se
extenuam e se enfraquecem cada vez mais — como a mulher com hemorragia, que quer comprar o amor
dando tudo (Mc 5,25-34). Ela dá o seu sangue, toda a sua força vital escoa dela. Ela representa as
mulheres que dão tudo numa relação e ficam cada vez mais fracas. Elas se esgotam no seu amor e
acabam por se sentir exangues. Quem muito dá também precisa de muito. Mas, em geral, essa pessoa não
consegue, pela doação, o que deseja. A mulher hemorrágica dissipa todos os seus bens com os médicos.
Se não recebe na relação o que deseja, ela quer obter a atenção dos médicos e terapeutas. E deve pagar
por isso. Contudo, aqui também ela não recebe aquilo por que anseia. Juntamente com as suas posses, ela
dá as suas possibilidades, as suas capacidades, seu talento, a sua força. Ela faz muito pelos outros, a fim
de comprar a atenção deles. Ela dá tanto porque precisa de muito amor. Anseia por amor. E crê só poder
atingir esse amor dando tudo que possui, a sua vida, os seus bens. Mas dando tudo o que tem para
finalmente ser amada ela piora cada vez mais. Fica vazia e esgotada, toda a sua força se esvai no sangue.
A sua cura pode se iniciar apenas quando ela para de querer comprar o amor dando coisas e começa a
pegar o amor que já existe, que vem ao seu encontro em Jesus. Ela toca na bainha da túnica de Jesus. Ela
agarra. Não pede atenção, mas a toma para si. Ela estende a mão para a túnica de Jesus. Ela o faz
secretamente, porque ainda não quer confessá-lo para si mesma. Ela se identificou tanto com o seu papel
de doadora que o ato de pegar lhe foi difícil. Por isso ela o faz às ocultas. E apenas pegou na orla da
túnica de Jesus, e já experienciou o amor pelo qual sempre ansiara. O amor está aí. Precisamos apenas
agarrá-lo. Então ele vai nos curar. Jesus confirma a ação dela. Ele lhe diz amorosamente: "Minha
filha, tua fé te salvou; vai em paz e fica curada de teu mal" (Mc 5,34). Jesus fala com ela como
filha. Agora ela tem a experiência de atenção paternal. Agora existe uma relação pai-filha, em que
ela experimenta o amor pelo qual sempre ansiou. E a experiência desse amor lhe traz paz interior e
cura as suas feridas.
34
. Ibid., 7.
sofreram na infância. Elas ferem a si mesmas porque não trabalharam a ferida da infância. Seu anseio é
que finalmente um homem satisfaça a necessidade que elas têm de um amor autêntico e puro. Como não
se curaram, são magoadas novamente. Justamente o caminho para dentro seria apropriado para a
verdadeira cura das feridas. Elas deveriam primeiro poder amar a si mesmas e desistir da ideia de que só
serão dignas de amar se amarem os homens. Elas são dignas e capazes de amar por si mesmas. No seu
coração já existe amor. O caminho para dentro consistiria em sentir o amor de Deus no coração e acreditar
nele. Ele poderia libertá-las do girar em torno do amor humano, que elas nunca vivenciarão como
esperam.
A ambiguidade do amor
A ambiguidade dessas pessoas que anseiam por amor e o rejeitam quando lhes é oferecido é descrita
de forma impressionante por Marcos na cura do possuído de Gerasa (Mc 5,1-20). Há um homem que vive
na frieza da morte. Ele mora nos sepulcros, está totalmente desvinculado do amor humano. Uma
mulher me contou que, quando bem pequena, morou numa caverna assim. A mãe não pôde construir
uma relação com ela, porque em segredo a censurava por não mais poder se separar do pai por causa
do nascimento dela. A mãe não podia amamentar o bebê, nem cuidar dele. Como reação, a criança
rejeitava a alimentação. Ela cresceu sem relação com a mãe. Nesse ambiente, desenvolveram-se
agressões. O possuído de Gerasa não se deixa dominar. Ele rebenta todos os grilhões com que querem
prendê-lo. E ele fere a si mesmo. Ele se golpeia com as pedras para chamar a atenção para si. Quem se
fere e se tortura o faz na esperança de que alguém veja a sua dor e a cure. O possuído grita dia e noite.
Quem grita quer atenção, em última análise grita por amor. Mas quando Jesus vem e o trata com amor
ele vitupera: "Que tens a ver comigo... não me atormentes!" (Mc 5,7). Na frieza da falta de amor, ele
vivencia o amor de uma pessoa como tormento. Ele é atraído por esse amor, mas não pode aceitá-lo,
pois ele derreteria a sua geleira sentimental. E isso lhe causaria dor. Ele se instalou de tal forma na sua
fria estrutura de vida que o calor de um amor pelo qual anseia lhe seria insuportável. Jesus quebra essa
resistência contra o amor iniciando uma conversa com ele, perguntando pela sua identidade e sua
história. A pergunta "Qual é teu nome?" (Mc 5,9) não é apenas a pergunta pelo nome, mas por aquilo
que o constitui. O possuído fala dos muitos demônios que habitam nele, e Jesus atende aos seus
desejos: só então ele se abre para o amor de Jesus, que o liberta dos demônios. No acompanhamento
espiritual, diante de uma pessoa que anseia por amor e ao mesmo tempo se fecha a toda atenção, às
vezes me sinto impotente para lhe abrir o olhar para o amor e para a vida. Jesus mostra aqui um
caminho: primeiro devo deixar que ela me narre toda a extensão de frieza e desespero, e devo aceitar
suas reflexões e estratégias. Só então a resistência pode aos poucos ceder. O gelo pode lentamente se
desfazer. E o coração se abrir para o amor.
A mulher que quando criança viveu na geleira da falta de relação puniu a mãe com atitudes
agressivas e a deixou totalmente desamparada nos seus sentimentos de culpa. Na terapia, ela, num
grito, exprimiu as suas agressões. Mas isso só fez aprofundar a sua dor. O caminho para fora da
geleira passa pelo seu próprio anseio por amor. Na infância, ela perseguiu esse anseio. Ela sabia
exatamente o que podia auxiliá-la. Ela corria para a floresta, onde ficava horas a fio sentada num
posto de observação. Lá, do alto, ela vivenciava algo do amor maternal da natureza.
Quando confia nesse amor maternal de Deus, que encontra na criação, ela não precisa mais,
como o possuído, bater a cabeça na geleira do seu abandono. Ela pode então olhar o abandono e, ao
mesmo tempo, descobrir o amor que a circunda, o grande amor de Deus, em que ela, abandonada
pela mãe, também é protegida e acalentada. Essa mulher não conseguia crer no amor de Deus. Para
ela Deus, não importa se como pai ou como mãe, estava muito longe. Mas na natureza ela se sabia
encoberta por um amor maternal. E esse amor, que ela experienciou na criação, foi a sua trilha de
vida, na qual ela reaprendeu a viver e a amar.
7.
Caminhos psicológicos e espirituais da cura
Não quero aqui escrever nenhum tratado sobre a relação entre os acompanhamentos
espiritual e psicológico. Há muitos livros que tratam disso. Gostaria apenas de relatar algumas
experiências que tive na área de acompanhamento espiritual. Para mim é importante que eu leve a
sério o nível psicológico. Não posso saltá-lo colando em cada ferida um esparadrapo espiritual. Mas
o acompanhamento espiritual não pode copiar a terapia. A sua meta genuína consiste em enviar a
pessoa para um caminho em que se aprofunde cada vez mais no mistério do amor de Deus por ela e
que a torne cada vez mais capaz de amar a si mesma, ao próximo e a Deus. Que a capacidade de
amar é o objetivo do acompanhamento, os psicólogos também o diriam. Para Rogers, por exemplo,
o objetivo é que o paciente no decorrer da terapia se abra cada vez mais para as experiências da sua
vida, que trate a si mesmo e aos outros com mais ternura, que fique mais atento e cuidadoso, pronto
para encarar a verdade e se aceitar e se amar com toda a sua verdade. No acompanhamento espi-
ritual, não importa apenas a ação do conselheiro pastoral mas também a abertura para a graça do
Espírito Santo, que na conversa influi em ambos os lados. E se trata de vivenciar o amor de Deus
como o fundamento da vida.
No acompanhamento espiritual e no terapêutico, abordam-se com frequência os mesmos temas.
Fala-se a respeito das feridas da infância, da agressão e da sexualidade, do medo e das disposições
depressivas, do abandono e da solidão, da angústia e da paralisação, da divisão e da obsessão. Mas
também sempre aparece no acompanhamento espiritual a pergunta: "O que significa isso tudo para a
sua relação com Deus? Como você lida com isso, por causa da sua crença no amor incondicional de
Deus? Para onde essa experiência quer conduzi-lo?". Não se trata apenas de trabalhar as feridas da
infância, mas de vivenciá-las como um salto para o amor de Deus. Isso talvez soe como um salto beato.
Mas não é essa a intenção. Devo primeiro enfrentar a minha verdade, as minhas feridas, a dor e a raiva
que a lembrança das feridas causa em mim. Devo entrar nos sentimentos da raiva e da dor. Não posso
passar por cima delas, por uma espécie de "spiritual bypassing"35, num encurtamento espiritual, que
parece ser bem mais fácil do que ter de enfrentar a realidade dolorosa. Em muitos círculos cristãos,
pula-se o passado com muita rapidez. Uma mulher me contou que viviam lhe aconselhando que não
olhasse o seu passado. As pessoas lhe diziam que Jesus Cristo o tinha resolvido, que o tinha tirado
dela. Mas essa autoritária proibição de olhar o passado nasce antes do medo dele do que da confiança
de que eu, com o meu passado, estou nas boas mãos de Deus. As feridas da infância voltarão a surgir.
A crença sozinha não me livra do caminho que Cristo exige de mim, o caminho da descida ao reino das
sombras da minha alma, em que foi preso tudo o que eu por muito tempo não quis olhar, porque me
era desagradável e não correspondia ao meu ideal cristão.
35
. Em inglês no original: "atalho espiritual". (N.d.R.)
significa que logo terei pronta uma resposta devota. No entanto, elas me incitam a abandonar o meu
lamento sobre as feridas e confrontar a minha realidade com minha fé. A minha fé no amor de Deus é
apenas uma aparência beata ou pode transformar as minhas feridas? A fé no amor de Deus não é uma
droga maravilhosa que age em qualquer ferida. Para mim, a fé no amor incondicional de Deus é um
auxílio para enfrentar sem medo as minhas feridas. O amor de Deus é, para mim, uma atmosfera
curativa, em que posso tirar a bandagem dos meus ferimentos para que o hálito curativo de Deus sopre
sobre eles. As minhas feridas querem me impulsionar justamente para o amor de Deus. Elas me
mostram que dependo da graça e do amor de Deus, que não posso curá-las sozinho. A ferida pode me
abrir para o amor de Deus. O amor de Deus pode se derramar no lugar aberto. Então, de repente
sinto, apesar de tudo, uma profunda paz interior na minha ferida. A ferida não deixa de doer. Mas
paro de remexer nela. Sinto na ferida que sou aceito e amado por Deus. Isso transforma a dor do
ferido na dor do amado, que é mais fácil de suportar. A ferida se torna o lugar da experiência de
Deus.
38
. Ibid., 26.
39
. Ernesto CARDENAL, Das Bucb von der Liebe, 34.
dos Cânticos: "Mais doce que o vinho é teu amor". O lidar atento e cuida doso com todas as
coisas pode me revelar que encontro o amor de Deus em tudo, que em tudo toco no amor de
Deus por mim. Isso modificará minha vida. Vou parar de me queixar de que ninguém me ama,
de que desejo tanto proximidade mas não a vivencio porque ninguém se importa comigo, porque
ninguém me acha digno de amar. O amor me rodeia. Preciso apenas agarrá-lo. Assim como
muitos não querem acreditar no amor dos seus pais ou amigos, eles também se recusam a crer no
amor de Deus, que também os circunda de forma tão real como o amor dos seus pais.
Mas como uma pessoa que viveu a perda de um ente amado ou vivenciou a infância como
um inferno pode crer no amor de Deus? Não posso tomar o amor de Deus como um consolo e
colá-lo na ferida supurante. Devo primeiro, de modo cuidadoso, olhar a ferida e envolvê-la em
atadura. Isso é expressão do amor de Deus, ao passo que palavras muito precoces sobre o seu amor
podem parecer fuga da realidade e um fechar-se para a dor do outro. Muitas pessoas têm uma ex -
periência espiritual justamente na mais profunda dor devida ao fracasso, ao colapso de uma
amizade, à perda da pessoa amada. Se lhes é tirado tudo sobre o que construíram a sua existência,
elas pressentem de repente que profundamente formam uma unidade com a base de todo ser e que, a
despeito de toda decepção, no fundo tudo é bom. Eles não designariam isso corno experiência de Deus. Para
mim o acompanhamento espiritual significa olhar, juntamente com a outra pessoa, as experiências dela de tal
forma que ela reconheça nisso o seu anseio e o seu pressentimento de um amor de Deus que a carrega.
8.
A DÁDIVA DO AMOR
O amor, nos diz a Bíblia, é a dádiva de Deus aos homens, é expressão da divina bênção da
criação. O ser humano simplesmente encontra o amor. Este lhe é dado. Ele o vivencia, quer queira
quer não. O amor pode adoecê-lo ou encantá-lo. É como uma brasa que arde nele. É como uma
torrente que o arrasta. O amor aqui não é apenas o amor entre homem e mulher, mas também o amor
aos filhos,
amor às pessoas, à natureza, o amor como disposição básica e atitude, que marca todo o nosso pensar
e todo o nosso agir, é o amor entre Deus e o ser humano. Na Bíblia há dois hinos ao amor: no Antigo
Testamento, uma coletânea de cânticos de amor erótico, e na Primeira Epístola aos Coríntios a
descrição do amor pelo apóstolo Paulo. Não posso escrever sobre o amor sem recorrer a esses textos
bíblicos clássicos.
40
. Otmar KEEL, Deine Blicke sind Tauben. Zur Methaphorik des Hohen Liedes, Stuttgart, 1984, 13.
Tu me enlouqueces, minha irmã-noiva!
Com um só de teus olhares,
Com uma só pérola do teu colar.
Que belo é o teu amor, ó minha irmã-noiva!
Quão mais doce é teu amor do que o vinho! (Ct 4,9s.)
O amado é incapaz de resistir ao olhar da sua noiva. Do seu olhar de amor emana uma força
quase divina. Ao mesmo tempo, contudo, ele vê que a amiga é inacessível como uma deusa, acima
das trivialidades da existência humana.
Jardim fechado és tu, minha irmã, noiva minha, Manancial recluso, fonte selada (Ct 4,12).
Quando o amado pode ingressar no jardim fechado, quando pode desfrutar o amor da
sua noiva, ele a vivencia como fonte de nova vida, como fonte de alegria e prazer.
O amado é descrito de forma igualmente fascinante, como rei e pastor, que conduz a
mulher à vida e à sua verdadeira dignidade. A mulher está doente de amor. Está cheia de desejo
de levar o amado à sua casa. Ele é para ela "um bolsinho de mirra, posto entre meus seios" (Ct
1,13). A mirra é um cosmético que exala um perfume maravilhoso. A mulher carrega em seu seio
o bolsinho de mirra como um amuleto. Graças ao amado, a mulher fica mais bela e atraente. O
amor dá um novo sabor a tudo. E ela vivencia uma certeza que não lhe pode ser arrancada por
nada, nem mesmo pela morte. Ela quer ser para o amado um sinete no seu coração. O seu amor
deve expandir a vida dele e protegê-la da morte, pois, assim como um sinete deve manter longe a
morte, o amor também pode vencer a morte. Ele é mais forte que a morte. Ele sobreviverá à
morte:
Forte como a Morte é o Amor; inflexível como o Sheol é a paixão (Ct 8,6).
Não se pode falar sobre o amor com mais beleza do que a contida nos magníficos cânticos
desse livro do Antigo Testamento. Nele se canta, sem medo e timidez, sem estreitamento moral, a
maravilha do amor, que enfeitiça os amantes e lhes confere beleza interior. E o amor é sempre algo
de divino. Esse fato se exprime nas várias alusões às representações das deusas do amor no âmbito
egípcio e palestino. Que o homem possa amar a mulher e a mulher possa amar o homem é o maior
presente que Deus preparou para o ser humano: "Se alguém desse toda a posse de sua casa pelo
amor, certamente só seria desprezado" (Ct 8,7). Homem e mulher podem desfrutar o amor que Deus
lhes deu como a maior dádiva, e ninguém os deve atrapalhar nisso: "Não acordeis, nem desperteis o
amor, até que este o queira" (Ct 2,7).
Sempre que as pessoas poetam sobre o amor, voam ao seu encontro comparações com anjos
e deusas. E sempre se atribui ao amor o poder de despertar à vida o que está morto em nós e de
sobreviver à morte. Naturalmente, o amor entre homem e mulher reflete o brilho do amor divino. E
apenas os poetas conseguem descrever o amor de forma apropriada. Eu gostaria de me restringir a
duas estrofes do poema Diotima, de Friedrich Hӧlderlin:
Diotima, ser bem-aventurado!
Grandiosa, por quem meu espírito,
Curado do medo da vida,
Vislumbra juventude divina!
Nosso céu persistirá,
Em afinidade insondável,
Antes até de nos vermos,
Nosso íntimo se conheceu.
Então me cerca teu ser celestial,
Em doce brincadeira infantil,
E em teu feitiço soltam-se
Com alegria minhas amarras ;
Já se foi meu sedento anelo,
Já se foi da luta o último sinal,
E na plena vida dos deuses
Entra a natureza mortal.
Na Antiguidade, eram as deusas do amor que encantavam os seres humanos. No cristianismo, é
o amor de Deus manifestado em Jesus Cristo que resplandece em cada amor humano. Mesmo que o
Cântico dos Cânticos na origem cante apenas o amor entre homem e mulher — nem sequer o amor
conjugal, mas o amor livre —, não é de surpreender que já no judaísmo e depois no cristianismo
primitivo esse livro tenha sido compreendido e interpretado como imagem do amor entre Yahweh e
seu povo, entre Cristo e a Igreja ou entre Cristo e a alma individual. A mística sempre empregou a
linguagem erótica desse livro para exprimir a sua experiência de Deus. João da Cruz, no seu leito de
morte, não quis que lessem os salmos de penitência, mas justamente esse canto de amor. A morte era
para ele a realização do seu anseio por amor. Ali chamejava sua chama de amor sem limitação, na
brasa do amor ele se uniu com o Deus amado sobre todas as coisas. Morrendo, ele ouviu com novos
ouvidos as palavras de amor:
Suas brasas são brasas de fogo,
São veementes labaredas.
As muitas águas não poderiam apagar o amor,
Nem os rios afogá-lo.
João da Cruz não se transtornou com a linguagem tão abertamente erótica, muitas vezes
sexual, dessa canção de amor. Para ele, a relação com Deus era o cumprimento do amor humano.
Para ele, o que é descrito no Cântico dos Cânticos como amor humano só alcança sua verdadeira
essência no amor a Deus e no amor de Deus ao ser humano. Sua compreensão do Cântico dos
Cânticos era livre de ansiedade e de estreiteza moral. Não havia difamação da sexualidade e do
erótico. Ele concebeu o erótico e a sexualidade como aquilo que são a partir de Deus, como boas
dádivas que o homem pode desfrutar, mas que passando pela pessoa amada apontam para um amor
ainda mais profundo, o amor entre Deus e o ser humano.
Amor e dor
Em todos os séculos, os poetas cantaram o amor. Eles sentiram que o amor é o mais belo
presente que Deus pôs em nosso coração. Mas o amor também sempre está associado à dor e à
paixão. O amante vivencia o céu, mas também passa pelo inferno da sua solidão e da sua dor
quando não encontra mais a amada. Por isso, a poesia descreve sobretudo o destino trágico dos
amantes: Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Abelardo e Heloísa. Mais uma vez, alguns versos de
Friedrich Hӧlderlin sobre a queixa de Mênon por Diotima representam a dor do amor:
Tranquilamente sorríamos, sentíamos o próprio Deus
Numa conversa íntima, num hino da alma,
Em inteira paz conosco, infantil e alegremente sozinhos.
Mas a casa agora me parece deserta,
Eles me tiraram os olhos
E junto com ela também me perdi.
Por isso vago errante, e assim como as sombras
Devo viver,
E sem sentido, desde muito, me parece tudo o mais.
Os poetas têm em mente o amor entre homem e mulher. Nisso eles veem o mistério do amor
em geral. O amor conduz o homem a si mesmo. No amor, ele sabe quem é. Sem amor, ele se perde.
Ao mesmo tempo, os poetas também pressentem que há um amor que excede o amor entre homem e
mulher. É o amor de Deus, que brilha por todo o amor humano e sobrevive a ele. É essa a
experiência de Hӧlderlin, quando no fim da lamentação pela perda de Diotima diz:
Por isso, a vós, imortais, quero também dar graças
E que do peito aliviado surja de novo a oração do poeta.
E, como quando estava com ela,
Erguido na ensolarada altura,
Reanimando-me, de dentro de seu templo, me fala.
Então quero também viver! Os campos já verdejam!
E dos montes prateados de Apolo, chega-me um apelo
Como de uma lira sagrada.
Vem! Foi como um sonho!
Pois já se curaram
As asas sangrentas, e rejuvenescidas vivem todas as
esperanças!
É muito encontrar o grande, muito ainda resta, e quem assim
Amou deve seguir pela rota que aos deuses leva!
Vemos que nem a perda do amor humano pode quebrar o ser humano, pois no amor à amada
resplandeceu alguma coisa que é indestrutível, que conduz a Deus. O caminho que vai do amor entre
homem e mulher à intuição de um amor divino é cantado por vários poetas. Eles exprimem com isso
o que o misticismo fez quando utilizou também a linguagem erótica para a descrição do amor de
Deus. E incontáveis poesias de amor patenteiam o que Paulo descreveu na Primeira Epístola aos
Coríntios como sua experiência de amor.
momento presente por palavras ofensivas. Ele não é melindroso. O melindroso sempre é arrancado do
momento. Palavras ofensivas sempre lhe revelam a raiva e o descontentamento que se acumularam sob
a superfície.
O amor não se ressente do mal. Ele não o põe na conta. Na relação mútua sempre pomos na
conta o que o outro nos fez. Nós nos vingamos. Achamos que uma boa relação vive de compensação.
Se o outro me feriu, vou feri-lo. No entanto, isso não traz compensação, e sim um constante "pôr na
conta", um círculo vicioso da ofensa mútua, que nunca termina. Só o mesquinho calcula e põe na
conta incessantemente. Quem se expandiu pelo amor não tem mais necessidade de pôr o mal na
conta. O amor derrota o mal, em vez de aumentá-lo num processo de compensação. O amor não se
contenta com a injustiça, com a ofensa, mas com a verdade. Ele se alegra quando o outro sobressai
como ele é. Ele não quer depreciá-lo com ofensas e lhe tirar a razão.
Paulo conclui a descrição do amor com quatro importantes declarações: 'Tudo suporta, tudo
crê, tudo espera, a tudo resiste" (1Cor 13,7).
Essa fórmula se assemelha aos hinos sobre o amor que Platão ou Máximo de Tiro entoam.
Também aqui não devemos pensar imediatamente na relação com outra pessoa. O amor é visto,
antes, como dom de Deus, que atua sobre todo o nosso comportamento. O amor suporta. Na
verdade, isso quer dizer: ele cobre, abriga, guarda tudo. A palavra grega para isso deriva de "teto,
coberta". O amor é, por assim dizer, um teto protetor, que impede que a umidade invada a nossa
43
. Hans CONZELMANN, Der 1. Brief an die Korinther, 260.
casa, que disposições negativas a ocupem. O amor é como uma casa em que podemos morar, em que
nos sentimos protegidos e abrigados. E quando nos sentimos à vontade na nossa casa podemos
também, com o nosso amor, oferecer ao outro um teto protetor, sob o qual ele se saiba protegido e
aceito. O amor também convida outras pessoas para a nossa casa de vida.
O amor crê em tudo. A palavra grega peisteuein significa "confiar". O amor é sustentado por
uma confiança fundamental nas pessoas, na vida, em Deus. Apenas quando acredito em alguém posso
amá-lo. É o que exprime também a língua alemã, que deriva glauben (crer), lieben (amar) e loben
(louvar) da mesma raiz. Liob significa bom. Crer significa ver de modo bom. Amar significa tratar de
modo bom. Só posso amar a quem considero bom, em quem confio. Isso vale também para o homem,
como para Deus. Não posso amar um Deus em relação ao qual tenho uma abismal desconfiança. O
amor precisa da confiança, mas ele também se exprime concretamente na confiança e na crença.
Acreditando na pessoa, ele a ergue e traz para fora o bom nela. Louvar significa citar o bom também.
Pondo em palavras o que é bom, ele se torna real e eficaz.
O amor espera tudo. A esperança é outro aspecto do crer. Espero algo de quem amo. Julgo-o
capaz de alguma coisa. Tenho esperança por ele, de que ele pode se desenvolver, de que o bom nele
ficará cada vez mais forte. O amor rompe o aparente. Ele vê mais fundo. Ele descobre na pessoa o
cerne bom, que quer aflorar nela. Vê nela os sinais de vitalidade, autenticidade, de capacidades e
possibilidades. E o amor espera tudo de Deus. Acredita que Ele vai operar em nós e nas pessoas que
amamos o milagre do seu amor.
O amor a tudo resiste. Ele se põe sob o outro, para ampará-lo e sustentá-lo. Ele o apoia, não
importando como ele se desenvolva e o que revele de si. O amor fica com ele em todos os seus
equívocos e confusões. O amor é capaz disso apenas porque crê em tudo e tudo espera, porque vê o
bom no outro e tem esperança de que o cerne bom virá à luz cada vez mais. É como uma coluna na
qual o outro pode se apoiar, que sustenta a casa da convivência. No amor mora uma força. O termo
grego para resistir, hypomenein, vem da linguagem bélica. Significa ficar para repelir um ataque
inimigo, enfrentar o ataque, não se esquivar. O amor não bate tão facilmente em retirada. Ele parte para
a batalha contra forças hostis. Acredita na vitória. É mais forte do que tudo que pretende enterrar a
vida. "O amor jamais acaba" (1Cor 13,8). Ele é manifestação do eterno no tempo e, portanto, nunca
tem um fim, ao passo que todos os outros dons do espírito são transitórios e encontram seu fim na
morte.
Em todas essas declarações de São Paulo não podemos pensar de imediato que devemos fazer
isso ou aquilo, que não podemos ser coléricos ou enciumados, que jamais devemos pensar em nós
mesmos, mas sempre no proveito do outro. Se vemos apenas exigência na descrição de Paulo, o amor
se torna para nós uma exigência excessiva. Paulo descreve do que o amor é capaz. O amor é uma
força que temos. Às vezes sentimos que somos plenos de amor. A mulher que me contou que de
repente percebera em si um profundo sentimento de ternura e amor, e não sentiu nenhuma pressão
moral de que devia amar tudo, simplesmente estava plena de amor. O amor fluiu dela para todas as
pessoas, e para as flores no campo, os animais; no seu quarto, no seu corpo. É sempre um mistério
quando somos apanhados pelo poder do amor. O amor é então uma qualidade de vivência, que não
podemos fabricar. Ele é um presente divino. É isso o que diz Paulo quando fala do amor como dom
do Espírito Santo. Com sua descrição, Paulo não quer exigir em excesso de nós, mas mostrar uma
maneira de como podemos viver verdadeiramente, como a nossa vida ganha novo gosto e como é
preenchida e encantada pelo sabor de Jesus.
Muitas vezes não sabemos por que justamente agora estamos tão repletos de amor e, às
vezes, por semanas a fio não sentimos nada de amor apesar de todo o discurso a seu res peito. É
sempre um momento da graça se um coração humano é preenchido pelo amor. O que podemos
fazer para sentir esse amor em nós foi o que tentei descrever neste livro. Mas nenhum esforço
humano é capaz de extrair o amor. É o próprio Deus, como diz Paulo e como diziam antes dele os
gregos com o mito de Eros, que provoca o amor no ser humano. O amor é expressão de sua
divindade. O amor é divino. Deus é o amor. Quem está em Deus está também no amor. E vice-
versa: "Quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus permanece nele" (1Jo 4,16). Mas
não basta desfrutar a dádiva divina do amor. Devemos também deixar o amor fluir para as pessoas
e para o mundo. Devemos dar-lhe expressão por novas formas de conduta. Do contrário ele
definha. Do contrário sufocamos no sentimento de amor. O amor deve correr, fluir para
permanecer vivo.
CONCLUSÃO
Escrevi muitas páginas a respeito do amor. Apesar disso, o seu mistério ainda continua
fechado para mim. As palavras podem ser sempre apenas aproximações do amor e jamais
conseguirão substituí-lo. Espero que a palavra tantas vezes mal-empregada "amor" tenha adquirido
um novo brilho para você, caro leitor. E desejo que você sinta um pouco do amor que é independente
do fato de ser amado por alguém ou estar apaixonado por outra pessoa. O amor é uma qualidade
divina. Ele encanta a nossa vida. Esse amor está em cada um de nós e nos rodeia na criação que nos
abraça; está na presença amorosa de Deus que nos envolve, e nas pessoas que nos amam. Desejo-lhe
que tome consciência de que é amado e tenha prazer com o amor com o qual você ama os outros.
Confio que você, nas suas experiências de amor, nas suas decepções com o amor e na alegria que ele
provocou, reconheça e perceba o mistério de um amor que não é mais quebradiço, com o qual você
pode sempre contar, que nunca seca, porque se nutre da fonte do amor divino que corre em você. Se
você sente esse amor, pode estar certo de que você está em Deus e de que foi iniciado no maior
mistério de Deus, o mistério do seu amor.