Jack Kerouac, o Desconhecido, Cláudio Willer

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JACK KEROUAC, O DESCONHECIDO

Claudio Willer*

On the road, de Jack Kerouac, talvez seja a narrativa mais in-


fluente da segunda metade do século xx. Outros títulos podem
ser lembrados. No entanto não ultrapassaram o sistema literário.
Criações literárias modificam ou enriquecem a percepção do mun-
do; contudo um Gabriel García Marques em Cem anos de solidão,
por exemplo, inspirou a literatura, mas não o comportamento.
Também integra esse rol de narrativas influentes Catcher
in the rye (Apanhador no campo de centeio), de J. D. Salinger
(1951), recentemente relançado no Brasil em uma nova tradu-
ção. Livro poderosíssimo, sua publicação coincide com o térmi-
no da primeira versão de On the road, por Kerouac. Igualmente

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sobre rebelião individual, dá voz ao conflito de um adolescente
com a sociedade burguesa. Mas sem a dimensão épica da con-
vocação feita por Kerouac ao anunciar a geração beat – termo
criado por ele em 1948 durante uma conversa com outro escri-
tor, John Clellon Holmes, autor de Go, narrativa à clef prota-
gonizada por Kerouac, Allen Ginsberg e Neal Cassady – e ao
apresentar-se como seu porta-voz em On the road e algumas
obras subsequentes. Conforme registrado em seus diários e ob-
servado por estudiosos, Kerouac pretendia até mesmo intitular * Poeta, ensaísta e tradutor, ligado ao
surrealismo e à geração beat. Entre ou-
essa narrativa de beat generation. tros, publicou os seguintes livros: Dias
Ao ser finalmente publicado, em setembro de 1957 – o ma- ácidos, noites lisérgicas, relatos (Córre-
go, 2018), A ver­dadeira história do sé-
nuscrito original havia sido escrito em três semanas, em 1951 –, culo 20, poesia (Córrego, 2016, Apenas
livros – cadernos surrealistas, 2014),
extrapolou o campo da criação propriamente artística. A crôni- Os rebeldes: geração beat e anarquismo
ca das consequências de sua leitura é extensa. Inclui a história místico, ensaio (l&pm, 2014), Manifes-
tos, 1964-2010 (Azougue, 2013), Um
do rapaz que, tendo-o lido, saiu de casa com sua guitarra, dei- obscuro encanto: gnose, gnosticismo e
poesia, ensaio (Civilização Brasileira,
xou de se chamar Robert Zimmerman e adotou o nome de Bob 2010), Geração beat, ensaio (l&pm,
Dylan. Algo semelhante ao que ocorreria com outros criadores: 2009), Estranhas experiências, poesia
(Lamparina, 20004). Traduziu Lautréa-
o cineasta Francis Ford Coppola, o narrador Ken Kesey1 e o mú- mont, de Allen Ginsberg, Jack Kerouac
e Antonin Artaud. Doutor em letras na
sico Lou Reed, entre tantos que integraram a lista de autores e
Universidade de São Paulo (usp), onde
personalidades influenciados por Kerouac, em particular, e pela fez pós-doutorado. Mais em http://
claudiowiller.wordpress.com/about.
beat, como um todo.
Semelhante impacto foi favorecido por aquele, precedente, 1 O depoimento de Kesey, autor de Um
estranho no ninho (One flew over the
de Uivo e outros poemas, de Allen Ginsberg. São obras que, cuckoo’s nest), está registrado no docu-
mentário The magic trip, sobre a aluci-
além de terem estimulado rupturas, transmitiram um sentido de nada viagem de usuários de lsd atra-
identidade, de pessoas à margem se sentirem identificadas com vessando os Estados Unidos em 1965.

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algo maior – à beat. Isso é bem registrado nas páginas finais
da autobiografia de Diane di Prima, Memórias de uma beatnik
(2013), que relata a percepção de que seu modo de vida fazia
parte de um movimento geracional.
Promoveram, Kerouac e Ginsberg em primeira instância –
sem deixar de reconhecer a contribuição de William Burroughs,
mentor intelectual daquele grupo, e de autores como Gregory
Corso e, subsequentemente, Michael McClure, Gary Snyder,
Law­rence Ferlinghetti e outros –, o aparecimento dos beatniks e
hippies. Foram anunciados em outra das narrativas de Kerouac,
The Dharma bums (Os vagabundos iluminados), na fala do per-
sonagem Japhy Rider, alter ego de Snyder:

Pense na maravilhosa revolução mundial que vai


acontecer quando o Oriente finalmente encontrar
o Ocidente, e são caras como nós que podem dar
início a essa coisa. Pense nos milhões de sujeitos
espalhados pelo mundo com mochilas nas costas,
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percorrendo o interior e pedindo carona e mostran-


do o mundo como ele é de verdade para todas as
pessoas. (Kerouac, 2007a, p. 209)

No entanto, mais tarde, Kerouac criticaria os hippies e demais


manifestantes da década de 1960, enxergando neles a massifi-
cação que, individualista radical, tanto execrava; e, rea­cionário
convicto, uma ameaça comunista. Por exemplo, em sua entrevis-
ta à Paris Review em 1968, pouco antes de morrer: “Eles vivem
com a cabeça cheia de socialismo e querem que todo mundo
viva em uma espécie de kibutz frenético, com companheirismo e
tudo mais” (apud Willer, 2014, p. 48).
O conservadorismo político de Kerouac, e isso desde sua ju-
ventude, pode ser visto como herança familiar: o pai e a mãe,
filhos de imigrantes franco-canadenses, eram, inclusive, antis-
semitas. Contrasta com a influência sobre ele de outro escritor-
-aventureiro, Jack London, que foi marxista; com sua identi-
ficação com índios, negros, marginais em geral, vagabundos
errantes (a ponto de replicar seu modo de vida), com declara-
ções categóricas, como esta, em On the road:

Num entardecer lilás caminhei com todos os mús-


culos doloridos entre as luzes da 27 com a Welton
no bairro negro de Denver, desejando ser um ne-
gro [...]. Desejava ser um mexicano de Denver, ou

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­mesmo um pobre japonês sobrecarregado de traba-
lho, qualquer coisa, menos aquilo que eu tão aterra-
doramente era, um “branco desiludido”. (­Kerouac,
2004, p. 223)

Recebido com uma resenha elogiosa no New York Times por


Gilbert Millstein, que impulsionou suas vendas, e, subsequente-
mente, desencadeou um terremoto comportamental, uma leva
de jovens itinerantes, situando-se à margem da ordem estabe-
lecida, isso não impediu que, desde o lançamento, On the road
fosse atacado. Entre outros motivos, pelo culto à espontaneida-
de, desordem formal, apologia da libertinagem uso exagerado
de termos e categorias religiosas. Recebeu objeções pautadas
pela correção política, apontando hedonismo, sexismo e ime-
diatismo. Kerouac, em especial, e os beats, em geral, chegaram
a ser acusados de iletrados, obliterando seu intertexto e as cons-
tantes referências a leituras. Na verdade, foram um exemplo de
crença extrema na criação literária, atribuindo-lhe valor mági-

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co, como modelo de vida e fonte de acontecimentos, e não só
de textos. Projetaram em seu comportamento os autores que
liam: ao viajar, podiam ser Rimbaud ou Herman Melville; tran-
sitando pelo submundo, realizavam Dostoiévski, Genet ou Hart
Crane; fazendo um discurso profético, encarnavam Whitman;
ao terem visões, eram Blake, Yeats ou Böhme; sob alucinóge-
nos, reviviam De Quincey, Baudelaire, Michaux; internados,
faziam parte, a exemplo de Artaud, da confraria dos escritores
loucos; ao relatarem tudo isso, traduziam a seu modo Proust e
Thomas Wolfe. Conforme observei em outra ocasião (cf. Willer,
2009, p. 52), onde o escritor realista supõe a distinção entre
dois mundos, o da realidade e aquele da literatura que, mimeti-
camente, a descreveria, e o escritor formalista não vê interesse
em examinar relações entre o mundo autônomo dos signos e a
vida, o escritor visionário confunde os dois planos. As relações
entre literatura e vida são múltiplas e complexas; e os beats
enriqueceram seu exame e a discussão.
Cabe, em primeira instância, rever o estereótipo de Kerouac
como narrador de viagens ou escritor-viajante. Seu período de
produção mais intensa, e também de vida mais frenética e aven-
turesca, entre o início das viagens relatadas em On the road,
em 1947, e seu lançamento, em 1957, resultou, além do híbri-
do e experimental Visões de Cody, em obras memorialísticas
tratando da infância e juventude, Visions of Gerard e Maggie
Cassidy; por sua vez, desdobramentos, já adotando sua prosa

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espontânea, o modo menos discursivo de narrar, e apresentan-
do-se como protagonista através da expressão na primeira pes-
soa, do livro de estreia, The town and the city (Cidade grande,
cidade pequena). Criou outros relatos memorialísticos: Maggie
Cassidy, sobre sua adolescência, Visões de Gerard, tratando da
infância, e Doctor Sax, que também é alegoria ou narrativa fan-
tástica. Em acréscimo, textos expondo sua poética como Old
angel midnight e The essentials of spontaneous prose; a prolífica
criação de poemas, da qual resultaram livros como Mexico City
blues, com seus 320 “choruses”, San Francisco blues e Scattered
poems, além do Livro de haicais, organizado posteriormente por
Regina Weinreich; três obras sobre budismo, The scripture of
the golden eternity, Some of the Dharma e Wake up (Despertar),
biografia de Buda; as anotações de sonhos de Book of dreams; e
uma narrativa caracteristicamente beat, exibindo plenamente a
“prosódia bop”, Os subterrâneos (The subterraneans), que não
é de viagem, pois sua ação se passa no mesmo lugar (em São
Francisco, no livro, em Nova York, na realidade).
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Pode-se supor que Kerouac tenha se dedicado preferencial-


mente ao relato de viagens após a publicação de On the road,
com Os vagabundos iluminados, Viajante solitário, Anjos da de-
solação e o sombrio Big sur, relatando a que ponto o levara seu
alcoolismo, além de Satori in Paris; e isso, respondendo a uma
demanda de público e editores. Retornaria à memorialística às
vésperas da morte, em 1967, em seu canto de cisne, Vanity of
Duluoz. Retomando anotações de 1947, completou o ciclo de
obras que, somadas, comporiam o que ele intitulou de “Saga de
Duluoz”, declarando que sua obra consistia em “um vasto li-
vro” e fazendo um paralelo com Proust. Vanity of Duluoz é uma
obra comovente, das melhores que escreveu (opinião partilhada
pelo biógrafo Gerard Nicosia), mostrando como era capaz, em
longos períodos, de harmonizar o coloquial, a fala das ruas e
uma prosódia clássica, shakespeariana.
Precedendo sua extensa narrativa de estreia, Cidade grande,
cidade pequena, Kerouac já havia preenchido inumeráveis lau-
das, incluindo The sea is my brother (Omar é meu irmão), es-
crito enquanto navegava; mais Galloway; uma primeira versão
de Vanity of Duluoz, que concluiria em 1967, às vésperas de
sua morte; o conjunto de textos intitulado Atop the underwood;
e And the hippos were boiled in their tanks (Os hipopótamos
foram cozidos em seus tanques), em parceria com Burroughs.
Felizmente, cresce uma bibliografia crítica pertinente, exa-
minando Kerouac e os beats. É representada, entre outros

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­exemplos recentes, pelos ensaios ao alcance do leitor brasileiro
que precedem a edição de On the road – o manuscrito original.
A propósito, esse rolo de papel com a primeira versão de On
the road, preparado por ele para não perder tempo trocando
folhas na máquina de escrever, seria arrematado em leilão por
2 milhões e 420 mil dólares, recorde na venda de originais lite-
rários. O datiloscrito corre o mundo, exposto em museus.
Precedendo os ensaios, vieram biografias, encabeçadas
pela importante contribuição de Ann Charters, sua estudio-
sa e interlocutora. Personagem de si mesmo, com uma vida
intensa que se confundiu com a criação literária, Kerouac
foi o biografável por excelência. Descerraram cortinas, ao
relatar sua intrincada vida sexual e de seu companheiro de
viagem Neal Cassady, o Dean Moriarty de On the road, e
Cody Pomeroy, de outras narrativas, com Carolyn Cassady,
Luanne Henderson e outros parceiros – Ginsberg inclusive.
Dessas biografias, Memory babe, de Nicosia, de 1983, conti-
nua a mais completa, como o reconhecem outros estudiosos,

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a exemplo de Barry Miles em Jack Kerouac – King of the
beats, aqui publicado. Também teve edição brasileira O li-
vro de Jack, de Lawrence Lee e Barry Gifford, composto por
entrevistas e depoimentos sobre Kerouac, originariamente de
1978. Barry Gifford observa, no prefácio, que ele e Lawrence
Lee tinham como intuito que o público desfrutasse da lei-
tura de onze romances de Kerouac, muitos deles ignorados
na época. Naquele momento, beat e contracultura pareciam
coisas do passado, em recesso.
Estudiosos, especialmente Lee e Gifford, tocam neste tópico
de especial interesse: o desconhecimento de Kerouac. A mito-
logia ou mística beat encobriu qualidades propriamente literá-
rias, discerníveis não apenas em On the road, porém em obras
que devem ser consideradas as melhores. Em primeiro lugar – e
quanto a isso há consenso – Visões de Cody, complexa obra
experimental publicada apenas em 1971. Escrita para homena-
gear Neal Cassady, explora todas as possibilidades da escrita,
desde o registro direto, através da transcrição de gravações, ras-
cunhos e notas de On the road, até passagens de prosa poética
e trechos afins à escrita automática ou à expressão do fluxo de
consciência. Por exemplo, esse a seguir, no qual combina idio-
mas, inclusive o dialeto joual dos franco-canadenses, o inglês
falado, palavras-baú, onomatopeias e glossolalias. É o suposto
diálogo entre um padre (ou Deus?) e um coroinha:

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SR. Mono-ló-ó-go-lo [...] – eh, weyondom, il faut
saccotez dans um moment comme ça? Arrête... par-
lez.... tu sais, bien tu sais, mon vieux, a tarra ecri um
let si tu larrra lasse faire la pauvedit maudite comme
quelle eta belle et tabarnac shi shpa capable faire
ça dans l’derrière et fre mon o padre falava sozinho
num monotéski entonalizante e entonatitaviano la
música la musique la belle mais arrête donc il faut
arrêtez um moment? E assim por diante sozinho
COROINHA. Ekara-du-rium?
SR. (estalando uma articulação) Paradorum, etabo-
rum, bumbumdorum, etara, metaradelamarea, c’est
impossible de setangler jê veux dire se desetangletai
stev barrfora condt nocamnho skehe otrara ela jipra-
fora, echrie e, Frância pare idl algns e fracasst tna dh
illnrrglt, mais emeie o ejeu. (Kerouac, 2009, p. 284)

Oralidade é um tópico fundamental para a melhor compreen­


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são de Kerouac. Filho de franco-canadenses, sua língua natal foi


o joual, esse dialeto, ou francês macarrônico: língua de trans-
missão oral, sem uma tradição escrita. Foi aprender o inglês aos
5 anos, ao ingressar na escola. Provavelmente, isso contribuiu
para sua sensibilidade auditiva, ligada, por sua vez, à paixão
pelo jazz, lembrando que essa modalidade, especialmente o bop,
mimetiza instrumentalmente a fala. Mas, conforme observei em
outra ocasião (Willer, 2014), Kerouac foi um musical total, com
preferências abrangendo desde repertórios eruditos até os mais
popularescos; desde Shostakovich (teria resolvido deixar a Uni-
versidade de Columbia ouvindo sua Quinta Sinfonia) e Wagner
(uma versão de sua decisão de se lançar à aventura teve como
fundo musical a “Música do fogo mágico”, de Die Walküre)
até Vic Damone (acentuando a satisfação por haver descido da
montanha e retornado ao mundo em Anjos da desolação).
Um trecho delirante de Visões de Cody, identificável à escrita
automática surrealista, leva sua prosódia bop – a escrita mimeti-
zando a expressão jazzística – a extremos; e também é aquele em
que há mais referências a autores de sua predileção – Melville,
Whitman, Conrad e Joyce –, com alusão ao monólogo de Molly
Bloom do fim do Ulisses:

o Rumor das Águas, a Noite, o Vento á Noite e o


Toque dos Lábios pelos Campos à Noite, o Monte
Leitoso dos Amantes na Grama, Eu e Ela, Monta-

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dos Um em Cima do Outro na Grama, Debaixo
da Macieira, Debaixo das Nuvens que Encobrem a
Lua, no Vasto Mundo, a Estrela Úmida na Buceta
Dela, o Universo Derretendo as Laterais do Céu, a
Sensação de Calor, a Estrela Úmida entre as Coxas
Dela, a Enfiada Quente, o Movimento na Grama, o
Rataplã das Pernas, as Roupas Quentes, os Mosqui-
tos Sedentos, as Lágrimas, o Tremor, as Mordidas,
as Línguas, os Gestos, os Gemidos, o Movimen-
to, o Embalo, a Batida, Ah, Meu Deus, Meu Deus
Está Vindo, Está Vindo e Vem, Duas, Três V
­ ezes.
(­Kerouac, 2009, p. 366)

Aproximações de Kerouac a Joyce nada têm de gratuito: Ulis-


ses é várias vezes citado nos Diários; e Nicosia (1983), além de
enxergar em Visões de Cody um jogo entre Ulisses e Finnegan’s
wake, relata que Joyce era lido em voz alta por Kerouac e ami-
gos para captar sua prosódia. Biógrafos também relatam que,

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ainda residindo em sua cidade natal, Lowell, Kerouac e seu ami-
go Sammy Sampas faziam leituras em voz alta de Shakespeare.
A confusão entre o Kerouac histórico, protagonista das nar-
rativas autobiográficas ou apresentadas como tal, e o escritor
foi provocada por ele. Sobrepôs o aventureiro ao autor; e mais,
a alguém que, desde a adolescência, havia estabelecido um vín-
culo com a criação literária. Um dos biógrafos de Kerouac, Yves
Buin, reportando-se a 1944: “Kerouac lê de tudo, de Goethe a
Lautréamont, passando por Freud e Koestler. Sua leitura assí-
dua e recorrente de Shakespeare ensina-lhe o domínio ao qual
aspira” (2007, p. 58). Antes, Shelley e Byron, através de Sammy
Sampas, seu amigo e interlocutor na cidade natal, Lowell; Ulisses
e Finnegan’s wake, de Joyce; os autores-viajantes Jack London
e Hermann Melville (cf., entre outros, Nicosia, 1983). Mas as
influências mais fortes, como se vê por seus diários, são de Tho-
mas Wolfe2, memorialista e viajante, matriz de seu primeiro livro
publicado, Cidade pequena, cidade grande: ouvindo a prosa de
Wolfe, reconhece-se Kerouac. E Louis Ferdinand Céline, autor de
Viagem ao fundo da noite e Morte a crédito, que provocou um
abalo pelo modo como trouxe o francês falado para a literatura.
Mas, em primeira instância, Dostoiévski: Baudelaire rezava
para Edgar Poe, conforme seus escritos íntimos; Kerouac, em 2 O autor de romances memorialísti-
cos como Look homeward, Angel, You
seus diários, registra que, todo dia, antes de começar a escrever, can’t go home again e, disponível em
rezava para o autor de Crime e castigo. A relação entre Memó- português, O menino perdido (The lost
boy), contos – não confundir com Tom
rias do subsolo, de Dostoiévski, e Os subterrâneos, de Kerouac, Wolfe, o expoente do new journalism.

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é ilustrativa. Entre suas obras, é das mais lidas; mas pode ser
objeto de restrições: encontrou na protagonista “Mardou Fox”3,
não uma companheira, mas um personagem e um pretexto para
parafrasear, desler ou glosar o relato de Dostoiévski para re-
viver e reescrever seus argumentos em favor da solidão. Uma
frase-chave, no fim de Memórias do subsolo, resume a ética e
a cosmovisão de Dostoiévski: “O que é melhor, uma felicida-
de barata ou um sofrimento elevado? Vamos, o que é melhor?”
(Dostoiévski, 1864/2007, p. 145).
Em On the road, outra paráfrase, quando é contraposta à “fe-
licidade barata” dos que criticam Neal Cassady/ Dean Moriarty
ao “sofrimento elevado”, através do qual atinge “a alegria esfar-
rapada e extasiante de simplesmente ser” (Kerouac, 2004, p. 239).
A santidade atribuída a Cassady oferece um exemplo da san-
tificação do pecado – no caso, fundamentada em Dostoiévski,
que lançou todas as dúvidas sobre a fronteira ou os limites en-
tre elevação e abjeção. Trata-se de um tema forte em místicas
da transgressão, os antinomismos: “A descida ao abismo, para
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achar ali a vida, é apenas uma outra forma da antiga doutrina


antinomística sobre a ‘Santidade dos Pecados’”, comentou Ger-
shom Scholem, a propósito do sabataísmo e franquismo, here-
sias judaicas (1996, p. 179; cf. Willer, 2014, p. 87).
Uma variante do fim de Memórias do subsolo, a pergunta
sobre a “felicidade barata” ou o “sofrimento elevado”, tam-
bém termina Anjos da desolação. É quando Kerouac dá por
encerrada sua vida beat, de viagens, aventuras e festas, despe-
dindo-se dos companheiros, os “anjos da desolação”: “Uma
tristeza tranquila em casa é o que eu tenho de melhor para
oferecer ao mundo, no fim, e assim eu me despedi dos meus
Anjos da Desolação. Uma vida nova para mim” (­Kerouac,
2009, p. 359). A “tristeza tranquila” se opõe à “felicidade ba-
rata” rejeitada por Dostoiévski.
Tomada como conjunto, a obra de Kerouac é uma suces-
são de paradoxos e contradições, se cotejada com seu autor
“real”, histórico. Um exemplo: a permanência em 1955, du-
rante seis semanas, em uma montanha, o Desolation Peak, em
busca de uma ascese búdica e uma remissão de seu alcoolismo.
No fim de Vagabundos iluminados, uma experiência de êxtase,
celebrada em páginas de prosa poética. No início de Anjos da
desolação, narrativa extensa sobre sua despedida da geração
beat, é horror, solidão insuportável agravada pela abstinência
de bebida alcoólica. Biógrafos evidenciam que a versão da his-
3 Alene Lee, sabe-se hoje. tória de vida de Kerouac fiel é a dessa segunda narrativa.

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A criação de On the road faz parte dessa mitografia. Confor-
me a versão corrente, tendo aquele rolo com um texto contínuo
sido rejeitado imediatamente pelo editor de Cidade pequena, ci-
dade grande, foram necessários mais seis anos e inúmeras revi-
sões, impostas por editores, para que o livro saísse. O próprio
Kerouac propalou essa versão em entrevistas. Cometeu um de
seus deslizes éticos ao responsabilizar Malcolm Cowley, um inte-
lectual notável e principal responsável pelo livro ter saído, pelas
alterações. A verdade é outra: conforme um excelente artigo de
Matt Theado (em Holladay & Holton, 2009), entre outras fontes,
reescrever tudo foi decisão do próprio Kerouac. Foi sua iniciativa
dividir o livro em partes e introduzir parágrafos naquele texto
contínuo, bem como eliminar passagens supérfluas – por exem-
plo, sua tentativa de reconciliação com a ex-esposa Edie Parker –,
além de adicionar algo: as revisões coincidiram com sua imersão
no budismo, resultando na boa prosa poética do trecho em que
passa fome em São Francisco e tem uma ­percepção do Universo:

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E por um instante alcancei o estágio do êxtase que
sempre quis atingir, que é a passagem completa
através do tempo cronológico num mergulhar em
direção às sombras intemporais, e iluminação na
completa desolação do reino mortal e a sensação
da morte mordiscando meus calcanhares e me im-
pelindo para frente como um fantasma perseguindo
seus próprios calcanhares, e eu mesmo correndo em
busca de uma tábua de salvação de onde todos os
anjos alçaram voo em direção ao vácuo sagrado do
vazio primordial, o fulgor potente e inconcebível re-
luzindo na radiante Essência da Mente, incontáveis
terras-lótus desabrochando na mágica tepidez do
céu. [...] Percebi ter morrido e renascido incontáveis
vezes, mas simplesmente não me lembrava justa-
mente por que as transições da vida para a morte e
de volta à vida são tão fantasmagoricamente fáceis,
uma ação mágica para o nada, como adormecer e
despertar milhões de vezes na profunda ignorân-
cia, e em completa naturalidade. Compreendi que
somente devido à estabilidade da Mente essencial
é que essas ondulações de nascimento e morte acon-
teciam, como se fosse a ação do vento sobre uma
lâmina de água pura e serena como um espelho.
[...] Pensei que ia morrer naquele instante. Mas não

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morri e ­caminhei uns sete quilômetros, catei dez
longas baganas e as levei para o quarto de Marylou
no hotel e derramei os restos de tabaco no meu ve-
lho cachimbo a o acendi. (­Kerouac, 2004, p. 217)

Na primeira versão de On the road, aquela recuperada do


manuscrito original (Kerouac, 2008), o mesmo episódio é rela-
tado, até com mais detalhes do relacionamento com Lou Anne;
mas sem o ciclo das reencarnações e a “radiante Essência da
Mente”, com seus ecos de neoplatonismo, pitagorismo e budis-
mo. Além de acréscimos, como esse aqui transcrito, houve cortes,
inclusive de cenas de sexo, além da substituição dos personagens
reais por pseudônimos. Devem-se à maior aproximação de Ke-
rouac ao budismo no período durante o qual escreveu Some of
the Dharma, The scripture of the golden eternity e Despertar, a
biografia de Buda, além da quantidade de haicais. E a história
da criação de On the road ainda inclui sua preparação: uma
quantidade de “prototextos”, esboços e rascunhos que seriam
54

incorporados com maiores ou menores alterações ao livro escri-


to em três semanas de trabalho contínuo e frenético, conforme
bem levantado, entre outros, por Howard Cunnell, organizador
da edição do manuscrito original (Kerouac, 2008).
Enfim, cada obra de Kerouac admite um enredo paralelo so-
bre sua criação. Uma das melhores é Doctor Sax, rememoração
de infância e reconstituição da enchente do rio Merrimack, em
Lowell, que destruiu a gráfica de seu pai, arruinando-o. Em um
livro curto, com capítulos breves, utiliza todos os recursos da
prosa, desde o modo mais documental, jornalístico, ao apresen-
tar fl
­ ashes da inundação, ao mais delirante. Cruza esse relato
com uma lenda, do confronto de Sax, um mago, com a serpente
que vive no interior da Terra e representa o mal. Na abertura,
sustenta que o rio Merrimack nasce nos Andes, junto a outros
formadores do Amazonas, e segue subterraneamente até o Leste
dos Estados Unidos. Doctor Sax teria sido escrito no México,
durante uma estadia na casa de William Burroughs em 1952;
como o lugar era movimentado, com pessoas chegando constan-
temente, Kerouac trancou-se no banheiro e sentou-se na privada
com a máquina de escrever no colo (cf. Miles, 2014). Mas toda
narrativa de Kerouac comporta várias versões sobre sua cria-
ção: havia feito anotações para Doctor Sax na década de 1940,
concomitantes aos seus diários da época; e, decidido a corrigir
a imagem do beat i­tinerante, substituindo-a pelo memorialista,
­reescreveu-o em 1958. Lançado, o livro foi massacrado pela crítica.

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A súmula de paradoxos e contradições está em Some of the
Dharma,4 um calhamaço publicado na íntegra apenas em 1999,
com uma diagramação complexa, replicando seu modo de fazer
anotações. Escrito para “converter a humanidade ao budismo”,
reúne o melhor e o pior de Kerouac. Enxundioso, repete e repisa
ensinamentos do budismo tradicional, o Terawada – achava o
zen intelectualizado demais, embora também houvesse criado
uma quantidade de haicais, modalidade diretamente relaciona-
da a essa corrente do budismo adotada no Japão. Insistindo no
caráter ilusório do real, expõe sua misoginia, sentindo-se perse-
guido pela ex-esposa, Joan Hawerthy (com quem tivera uma fi-
lha, Jan, a quem se recusara a reconhecer como tal), e apontando
mulheres e luxúria como a fonte de todos os males. Isso, além da
homofobia, com observações depreciativas sobre Ginsberg, que
tanto estimulara sua criação literária, retratado como agente do
Mal. Tudo isso, de permeio à bela prosa poética sobre a morte
de seu gato, esboços de narrativas sem relação imediata com o
budismo, o relato de peripécias durante mais uma viagem ao

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México, um estudo comparativo mostrando o James Joyce lei-
tor de William Shakespeare, cotejando passagens de Finnegan’s
wake e Henrique v, além de comentar bastante o discurso da
Batalha de Azincourt. E, ainda, os relatos da criação, concomi-
tante, da mais católica entre suas obras, Visões de Gerard, sobre
seu irmão mais velho, morto aos 7 anos, discutindo, à luz da
teologia, como era possível alguém tão bom ter uma morte pre-
matura e dolorosa (de tuberculose óssea). Sua conclusão é jan-
senista, ou de um gnosticismo pessimista, quando diz que Deus
existe para ser adorado ou cultuado pela humanidade, mas está
ausente do mundo; nada devemos esperar Dele (1994b).
Como interpretar tais paradoxos? Já foi dito por vários co-
mentaristas que On the road, em especial, e a obra de Kerouac,
como um todo, correspondem a uma “busca religiosa”. Cunnell
observou: “Sabemos que o romance [On the road] é bem mais
uma busca espiritual do que um guia de como se tornar um hips-
ter” (Kerouac, 2008, p. 12). Nicosia fez comentários análogos
referindo-se a On the road, mas que valem para toda a sua obra:

Kerouac nunca nos deixa esquecer que seus per-


sonagens estão em uma busca religiosa. Embo-
ra utilize a terminologia litúrgica padrão, logo 4 Está para sair uma edição brasileira
pela l&pm, tradução minha.
descobrimos que está fazendo saltos associativos
em ­domínios além de qualquer igreja instituída.5 5 Denominational church, o termo uti-
lizado por Nicosia, que traduzi como
(Nicosia, 1983, p. 347) “igreja instituída”.

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Para não deixar dúvidas, na autoapresentação com que abriu
Viajante solitário, declarou: “Na verdade, não sou um beat, mas,
sim, um estranho e solitário católico, louco e místico” (­Kerouac,
2006a, p. 10). Mas essa religiosidade de Kerouac apresenta ta-
manhas contradições que se acaba por acreditar em uma subs-
tituição de credos. No lugar de qualquer uma das religiões que
adotou, ou de um misticismo neoplatônico em sua versão mais
desenfreada, uma religião da literatura levada a extremos.
n

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lindo, trad.). São Paulo: Todavia Livros. (Trabalho original
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­místico. Porto Alegre: l&pm.

Jack Kerouac, o desconhecido Paradoxalmente, a enorme influên­ resumo | summary


cia e repercussão de On the road, a narrativa de Jack Kerouac
que projetou a geração beat, pôs em segundo plano suas qua-
lidades propriamente literárias. | Jack Kerouac, the unknown
Paradoxically, the enormous influence and repercussion of On
the road, the Jack Kerouac narrative that projected the beat gen-

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eration, put its properly literary qualities in the background.

Jack Kerouac. Geração beat. Contracultura. | Jack Kerouac. palavras-chave | keywords


Beat generation. Counterculture.

CLAUDIO WILLER

Alameda Barão de Limeira, 1348


01202-002 – São Paulo-sp
recebido 16.06.2018
[email protected] aceito 29.06.2018

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