Jack Kerouac, o Desconhecido, Cláudio Willer
Jack Kerouac, o Desconhecido, Cláudio Willer
Jack Kerouac, o Desconhecido, Cláudio Willer
Claudio Willer*
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sobre rebelião individual, dá voz ao conflito de um adolescente
com a sociedade burguesa. Mas sem a dimensão épica da con-
vocação feita por Kerouac ao anunciar a geração beat – termo
criado por ele em 1948 durante uma conversa com outro escri-
tor, John Clellon Holmes, autor de Go, narrativa à clef prota-
gonizada por Kerouac, Allen Ginsberg e Neal Cassady – e ao
apresentar-se como seu porta-voz em On the road e algumas
obras subsequentes. Conforme registrado em seus diários e ob-
servado por estudiosos, Kerouac pretendia até mesmo intitular * Poeta, ensaísta e tradutor, ligado ao
surrealismo e à geração beat. Entre ou-
essa narrativa de beat generation. tros, publicou os seguintes livros: Dias
Ao ser finalmente publicado, em setembro de 1957 – o ma- ácidos, noites lisérgicas, relatos (Córre-
go, 2018), A verdadeira história do sé-
nuscrito original havia sido escrito em três semanas, em 1951 –, culo 20, poesia (Córrego, 2016, Apenas
livros – cadernos surrealistas, 2014),
extrapolou o campo da criação propriamente artística. A crôni- Os rebeldes: geração beat e anarquismo
ca das consequências de sua leitura é extensa. Inclui a história místico, ensaio (l&pm, 2014), Manifes-
tos, 1964-2010 (Azougue, 2013), Um
do rapaz que, tendo-o lido, saiu de casa com sua guitarra, dei- obscuro encanto: gnose, gnosticismo e
poesia, ensaio (Civilização Brasileira,
xou de se chamar Robert Zimmerman e adotou o nome de Bob 2010), Geração beat, ensaio (l&pm,
Dylan. Algo semelhante ao que ocorreria com outros criadores: 2009), Estranhas experiências, poesia
(Lamparina, 20004). Traduziu Lautréa-
o cineasta Francis Ford Coppola, o narrador Ken Kesey1 e o mú- mont, de Allen Ginsberg, Jack Kerouac
e Antonin Artaud. Doutor em letras na
sico Lou Reed, entre tantos que integraram a lista de autores e
Universidade de São Paulo (usp), onde
personalidades influenciados por Kerouac, em particular, e pela fez pós-doutorado. Mais em http://
claudiowiller.wordpress.com/about.
beat, como um todo.
Semelhante impacto foi favorecido por aquele, precedente, 1 O depoimento de Kesey, autor de Um
estranho no ninho (One flew over the
de Uivo e outros poemas, de Allen Ginsberg. São obras que, cuckoo’s nest), está registrado no docu-
mentário The magic trip, sobre a aluci-
além de terem estimulado rupturas, transmitiram um sentido de nada viagem de usuários de lsd atra-
identidade, de pessoas à margem se sentirem identificadas com vessando os Estados Unidos em 1965.
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co, como modelo de vida e fonte de acontecimentos, e não só
de textos. Projetaram em seu comportamento os autores que
liam: ao viajar, podiam ser Rimbaud ou Herman Melville; tran-
sitando pelo submundo, realizavam Dostoiévski, Genet ou Hart
Crane; fazendo um discurso profético, encarnavam Whitman;
ao terem visões, eram Blake, Yeats ou Böhme; sob alucinóge-
nos, reviviam De Quincey, Baudelaire, Michaux; internados,
faziam parte, a exemplo de Artaud, da confraria dos escritores
loucos; ao relatarem tudo isso, traduziam a seu modo Proust e
Thomas Wolfe. Conforme observei em outra ocasião (cf. Willer,
2009, p. 52), onde o escritor realista supõe a distinção entre
dois mundos, o da realidade e aquele da literatura que, mimeti-
camente, a descreveria, e o escritor formalista não vê interesse
em examinar relações entre o mundo autônomo dos signos e a
vida, o escritor visionário confunde os dois planos. As relações
entre literatura e vida são múltiplas e complexas; e os beats
enriqueceram seu exame e a discussão.
Cabe, em primeira instância, rever o estereótipo de Kerouac
como narrador de viagens ou escritor-viajante. Seu período de
produção mais intensa, e também de vida mais frenética e aven-
turesca, entre o início das viagens relatadas em On the road,
em 1947, e seu lançamento, em 1957, resultou, além do híbri-
do e experimental Visões de Cody, em obras memorialísticas
tratando da infância e juventude, Visions of Gerard e Maggie
Cassidy; por sua vez, desdobramentos, já adotando sua prosa
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a exemplo de Barry Miles em Jack Kerouac – King of the
beats, aqui publicado. Também teve edição brasileira O li-
vro de Jack, de Lawrence Lee e Barry Gifford, composto por
entrevistas e depoimentos sobre Kerouac, originariamente de
1978. Barry Gifford observa, no prefácio, que ele e Lawrence
Lee tinham como intuito que o público desfrutasse da lei-
tura de onze romances de Kerouac, muitos deles ignorados
na época. Naquele momento, beat e contracultura pareciam
coisas do passado, em recesso.
Estudiosos, especialmente Lee e Gifford, tocam neste tópico
de especial interesse: o desconhecimento de Kerouac. A mito-
logia ou mística beat encobriu qualidades propriamente literá-
rias, discerníveis não apenas em On the road, porém em obras
que devem ser consideradas as melhores. Em primeiro lugar – e
quanto a isso há consenso – Visões de Cody, complexa obra
experimental publicada apenas em 1971. Escrita para homena-
gear Neal Cassady, explora todas as possibilidades da escrita,
desde o registro direto, através da transcrição de gravações, ras-
cunhos e notas de On the road, até passagens de prosa poética
e trechos afins à escrita automática ou à expressão do fluxo de
consciência. Por exemplo, esse a seguir, no qual combina idio-
mas, inclusive o dialeto joual dos franco-canadenses, o inglês
falado, palavras-baú, onomatopeias e glossolalias. É o suposto
diálogo entre um padre (ou Deus?) e um coroinha:
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ainda residindo em sua cidade natal, Lowell, Kerouac e seu ami-
go Sammy Sampas faziam leituras em voz alta de Shakespeare.
A confusão entre o Kerouac histórico, protagonista das nar-
rativas autobiográficas ou apresentadas como tal, e o escritor
foi provocada por ele. Sobrepôs o aventureiro ao autor; e mais,
a alguém que, desde a adolescência, havia estabelecido um vín-
culo com a criação literária. Um dos biógrafos de Kerouac, Yves
Buin, reportando-se a 1944: “Kerouac lê de tudo, de Goethe a
Lautréamont, passando por Freud e Koestler. Sua leitura assí-
dua e recorrente de Shakespeare ensina-lhe o domínio ao qual
aspira” (2007, p. 58). Antes, Shelley e Byron, através de Sammy
Sampas, seu amigo e interlocutor na cidade natal, Lowell; Ulisses
e Finnegan’s wake, de Joyce; os autores-viajantes Jack London
e Hermann Melville (cf., entre outros, Nicosia, 1983). Mas as
influências mais fortes, como se vê por seus diários, são de Tho-
mas Wolfe2, memorialista e viajante, matriz de seu primeiro livro
publicado, Cidade pequena, cidade grande: ouvindo a prosa de
Wolfe, reconhece-se Kerouac. E Louis Ferdinand Céline, autor de
Viagem ao fundo da noite e Morte a crédito, que provocou um
abalo pelo modo como trouxe o francês falado para a literatura.
Mas, em primeira instância, Dostoiévski: Baudelaire rezava
para Edgar Poe, conforme seus escritos íntimos; Kerouac, em 2 O autor de romances memorialísti-
cos como Look homeward, Angel, You
seus diários, registra que, todo dia, antes de começar a escrever, can’t go home again e, disponível em
rezava para o autor de Crime e castigo. A relação entre Memó- português, O menino perdido (The lost
boy), contos – não confundir com Tom
rias do subsolo, de Dostoiévski, e Os subterrâneos, de Kerouac, Wolfe, o expoente do new journalism.
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E por um instante alcancei o estágio do êxtase que
sempre quis atingir, que é a passagem completa
através do tempo cronológico num mergulhar em
direção às sombras intemporais, e iluminação na
completa desolação do reino mortal e a sensação
da morte mordiscando meus calcanhares e me im-
pelindo para frente como um fantasma perseguindo
seus próprios calcanhares, e eu mesmo correndo em
busca de uma tábua de salvação de onde todos os
anjos alçaram voo em direção ao vácuo sagrado do
vazio primordial, o fulgor potente e inconcebível re-
luzindo na radiante Essência da Mente, incontáveis
terras-lótus desabrochando na mágica tepidez do
céu. [...] Percebi ter morrido e renascido incontáveis
vezes, mas simplesmente não me lembrava justa-
mente por que as transições da vida para a morte e
de volta à vida são tão fantasmagoricamente fáceis,
uma ação mágica para o nada, como adormecer e
despertar milhões de vezes na profunda ignorân-
cia, e em completa naturalidade. Compreendi que
somente devido à estabilidade da Mente essencial
é que essas ondulações de nascimento e morte acon-
teciam, como se fosse a ação do vento sobre uma
lâmina de água pura e serena como um espelho.
[...] Pensei que ia morrer naquele instante. Mas não
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México, um estudo comparativo mostrando o James Joyce lei-
tor de William Shakespeare, cotejando passagens de Finnegan’s
wake e Henrique v, além de comentar bastante o discurso da
Batalha de Azincourt. E, ainda, os relatos da criação, concomi-
tante, da mais católica entre suas obras, Visões de Gerard, sobre
seu irmão mais velho, morto aos 7 anos, discutindo, à luz da
teologia, como era possível alguém tão bom ter uma morte pre-
matura e dolorosa (de tuberculose óssea). Sua conclusão é jan-
senista, ou de um gnosticismo pessimista, quando diz que Deus
existe para ser adorado ou cultuado pela humanidade, mas está
ausente do mundo; nada devemos esperar Dele (1994b).
Como interpretar tais paradoxos? Já foi dito por vários co-
mentaristas que On the road, em especial, e a obra de Kerouac,
como um todo, correspondem a uma “busca religiosa”. Cunnell
observou: “Sabemos que o romance [On the road] é bem mais
uma busca espiritual do que um guia de como se tornar um hips-
ter” (Kerouac, 2008, p. 12). Nicosia fez comentários análogos
referindo-se a On the road, mas que valem para toda a sua obra:
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eration, put its properly literary qualities in the background.
CLAUDIO WILLER