Me Diga Quem Eu Sou - Helena Gayer
Me Diga Quem Eu Sou - Helena Gayer
Me Diga Quem Eu Sou - Helena Gayer
1. Verão, 1988
2. Dançando numa sala vazia
3. Mundos ideais
4. Cavalo de fogo
5. Toda de black
6. Aqueles olhos negros
7. A porção de cada dia
8. Olhar a vida de frente
9. Provocar a vida
10. Seres noturnos
11. Este mar me trouxe para onde estou
Epílogo
ME DIGA QUEM EU SOU
1. Verão, 1988
Dizem que um livro pode mudar uma vida. A Bíblia foi meu livro de bolso
durante a juventude. Eu a lia e relia. No Apocalipse, aprendi que os
escolhidos de Deus seriam 144 mil, marcados com o selo divino. Isso ficou
gravado em minha memória. Que número místico era esse? O que
significava? Anos depois, na casa de um dos meus colegas da faculdade de
oceanografia, meu primeiro curso universitário, me deparei com o mesmo
número mágico num livro que mudaria tudo para mim. Seu título era
sugestivo: Do Jardim do Éden à era de Aquarius, de Greg Brodsky. Eu tinha
dezenove anos, e era como se tivesse encontrado algo que buscava havia
muito tempo. O livro me deu coragem, me fez trilhar caminhos solitários e
inusitados. Ele falava em 144 mil pessoas de nível de consciência elevado,
saudações ao sol, níveis de consciência e alimentação saudável. Só mais
tarde eu me daria conta de que aquilo seria uma grande cilada.
Estávamos em 1986. Eu tinha deixado minha família em Canoas e morava
com uma tia na região metropolitana de Porto Alegre. Apaixonada pela
natureza, eu ia à praia com frequência para conviver com meus adoráveis
colegas de faculdade, que vinham dos quatro cantos do Brasil.
Eu tinha todo tipo de amigos. O Gil era um cara legal: inteligente, alegre,
doidinho. Entramos juntos na faculdade. Era um maluco beleza que tinha
usado todos os tipos de droga, mas seguia firme e forte, e arrastava um
caminhão por mim. Tinha a Cris, minha amiga de São Paulo. Numa tarde
desse mesmo ano bati, perdida, na porta de sua casa no Cassino, e ficou
gravada na minha memória a melhor acolhida que já tive em toda minha
vida. “Helena, é tu? Eu não acredito!” Seus olhos negros brilhavam. “Eu não
acredito, Helena! Que bom que tu está aqui!” Ela segurou minhas mãos e me
girou ensandecidamente como numa ciranda. Ocupamos toda a sala. Duas
amigas. Duas crianças. “Helena! Helena! Ah! Ah! Ah! Que bom! Que bom!”
Meus olhos se encheram de lágrimas. Cris, amada Cris. Havia também o
Diego, gaúcho, talvez de Porto Alegre. Um cara grande, loiro, bonachão,
com o dom de tocar gaita como poucos.
Me lembro de um dia ensolarado à beira-mar. Eu na garupa da bicicleta e
meu amigo Ricardo na direção. Deslizávamos no litoral de Porto Alegre
pela orla do Cassino, uma praia gigante de areia plana e dura, a maior em
extensão do mundo, dizem alguns. As rodas abriam um vinco na areia
molhada; as pessoas, os carros, as dunas, as nuvens e as gaivotas passavam.
Me lembro também de um entardecer. Meus amigos tinham ido nadar no
mar levando um imenso pastor-alemão. Fiquei na minha, mergulhando e
curtindo um arco-íris que surgira no lado oposto ao do pôr do sol. A luz no
céu era linda e as ondas de água salgada que nos envolviam pareciam se
mover sob uma película dourada. Dentro de mim o desejo de que aquele
momento se eternizasse. Eu sentia que tinha toda a vida pela frente.
Sou bipolar. Fui diagnosticada quando tinha 21 anos. Ou seja, vivo entre
dois mundos. De um lado, a depressão; de outro, a mania, a euforia. Nunca
sei para que lado estou indo até mergulhar num dos extremos. Tive uma
adolescência inconstante, rebelde, em que meu humor oscilava radicalmente,
mas nunca havia enfrentado uma crise como a que me atingiu aos 21. Foi uma
bomba, espalhando seus estilhaços por todos os lados.
Era verão, 1988. Eu estava na praia Recanto dos Padres, na paradisíaca
Florianópolis. Havia reencontrado o Diego depois de dois anos sem vê-lo.
Lembro apenas que ele segurou meu braço e disse: “Não! Tu não vai sair!”.
Por ironia do destino, ou acaso divino, meu amigo de um dos períodos mais
iluminados da minha vida seria um dos espectadores do meu primeiro e mais
desastroso surto de mania. O estrago foi tão descomunal e fora de controle
que o resultado foi minha primeira internação psiquiátrica.
Eu tinha abandonado o curso de oceanografia e meus maravilhosos
colegas. Agora eu cursava jornalismo na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, a UFRGS. Vera, uma vizinha, me convidou para acampar em
Florianópolis. Eu não conseguia acreditar em tanta beleza. A vegetação e o
mar de água transparente, em nuances azul-esverdeadas, me inundavam.
Estávamos num ônibus lotado, subíamos e descíamos, morro após morro.
Todo mundo apertado mas feliz, afinal de contas trafegávamos pelo paraíso.
No entanto, jamais poderia imaginar que aos poucos tudo se transfiguraria e
que para mim o paraíso se transformaria na certeza do inferno. Nossa
primeira parada foi na praia de Garopaba. Até aí tudo certo, minha mente
ainda funcionava relativamente bem, mas quando cheguei ao Recanto dos
Padres, o processo de mania começou a se desencadear. Paisagem
maravilhosa, gente bonita, clima agradável. Esse foi o tripé que, aliado às
ideias do livro Do Jardim do Éden à era de Aquarius, fez com que eu
acreditasse estar realmente na era de Aquarius. A partir de então, não houve
mais limites, comecei a ficar ligada.
No início Vera não percebeu a mudança, pois evoluía de forma sutil, mas
em determinado momento foi impossível não notar. A mania chegou a um
ponto em que eu não dormia mais, não comia; era como estar drogada. Havia
várias praias onde eu poderia alucinar, e foi exatamente o que fiz. A
preferida era a Quatro Ilhas. Mar aberto, ondas fortes e o bar Submarino
Amarelo de frente para a praia. Eu e minha vizinha descobrimos o point e
não desgrudamos mais dele. No início, íamos juntas, mas, quando a crise de
mania avançou, comecei a sair sozinha, e Vera passou a não ter ideia de meu
paradeiro.
Minha constante companheira era a lua cheia, que parecia estar no céu
sempre que eu a procurava. Ao chegar ao bar, ela estava lá, imensa e
amarela, brilhando nas águas do oceano, iluminando meus delírios. Tudo
começou ali. Um lugar frequentado por jovens bonitos e bronzeados. O ritmo
envolvente da surf music — novidade para mim e para Vera — e o ambiente
rústico eram mais que uma tentação: eram um convite ao mergulho numa era
de Aquarius moderna. E assim foi. Quase todas as noites estávamos ali, e
não demorou muito para que eu me sentisse em casa — um grande equívoco
de minha parte. No surto de mania toda certeza é uma ilusão. Eu me
interessei por dois rapazes, acho que proprietários do estabelecimento. Um
deles era loiro. (Este eu reencontrei pouco tempo depois numa festa da
faculdade de arquitetura da UFRGS. Ele me reconheceu — o que era
impossível de não acontecer depois de toda a confusão que causei em
Florianópolis — e me deu um olhar demorado e, ao mesmo tempo, frio. Com
certeza me queria a quilômetros de distância.) O outro era um moreno alto
que se chamava Hélio. Nossos olhares se cruzaram e o encontro aconteceu.
Vera e eu tínhamos combinado de começar a sair sem calcinha. Era uma
brincadeira, mas é claro que os hormônios estavam a mil. E era assim que eu
estava quando Hélio me levou um pouco mais para longe do Submarino. Nós
nos deitamos na praia, noite de luar. Não podia acreditar: ele era areia
demais para o meu caminhão. Ele me acariciou, sentiu que eu estava sem
calcinha e tentou ir até o fim. O receio de engravidar me travou. A mesma
cautela faria com que, no futuro, eu escapasse ilesa de situações semelhantes
e evitasse ter um filho de um estranho que nunca mais veria. Depois de gozar
ao meu lado, ele foi embora e me deixou sozinha na areia gelada. Ali
começou a roleta-russa.
Passei a sair sozinha sem qualquer senso de autoproteção. Pelo contrário,
quanto maior era a escuridão da noite, quanto mais eu me arriscava, mais
intensa era a magia que tanto me fascinava. A última vez que saí
acompanhada — com uma garota do camping onde eu estava — se
transformou numa alucinação que detonaria acontecimentos desastrosos.
Estávamos indo para o bom e velho Submarino Amarelo, é claro, e, no
caminho, encontramos um homem bêbado. Seu grau de embriaguez era tão
alto que ele tinha parado o carro na beira de um barranco, com uma das
rodas no ar. O veículo oscilava e dava a sensação de que tombaria a
qualquer instante. Decidimos levar o sujeito para onde estava hospedado.
Era uma enorme cabana. Ele tentou abrir a porta, mas estava completamente
sem coordenação. Peguei a chave de sua mão e entramos na espaçosa
cabana. Estava vazia, mas havia indícios de que outras pessoas também a
ocupavam. Procuramos por comida e achamos alguns salgadinhos. Saímos
para caminhar um pouco com a ideia de aliviar o porre do sujeito. Nosso
rumo foi a praia de Bombinhas. Fechei a porta e guardei a chave no bolso.
Chegando à praia, vi uma série de pedalinhos. Arrastamos um deles até a
água. O pedalinho foi se afastando da costa, nós três empoleirados,
pedalando sem destino. De repente, o homem tentou me agarrar. Pensei em
reagir, mas preferi me jogar na água. A outra garota ficou para trás. À noite o
mar assusta, parece que vai te engolir. As calças de brim encharcadas
exigiam um esforço bem maior de minhas pernas e braços, e o resultado de
minha luta não correspondia em nada à enorme vontade que eu tinha de sair
dali. O bêbado agora me perseguia de pedalinho, queria passar por cima de
mim. A sensação era de que eu me arrastava pela água. Quando meus pés
finalmente tocaram o chão, deixei a praia sem olhar para trás. Foi a última
vez que saí acompanhada. Já estava dormindo pouco e me alimentando mal.
Meu delírio foi ficando mais intenso e passei a rondar sozinha o Submarino
Amarelo, como se ele fosse um ímã que me atraía para o perigo e a
demência. A influência do livro Do Jardim do Éden à era de Aquarius fez
com que eu começasse a me sentir uma enviada divina. A imaginação alçava
voos estratosféricos, e comecei a acreditar ser uma linda mulher em luta
constante contra o Mal.
Praia de Quatro Ilhas, manhã, quase em frente ao bar que tanto me atraía.
Um cão vinha em minha direção. Minha mente começava a dar sinais de que
a viagem que se aproximava não era coisa pouca. Nasceu em mim a certeza
de que aquele animal era a encarnação do demônio, então iniciei um diálogo
interno, silencioso (que a partir daí não permitiria que várias pessoas
percebessem minha insanidade). Ali, a praia estava deserta. Era muito cedo.
O cão se aproximou, passou por mim e se foi. Eu o fuzilei com olhares e
pensamentos, o acusei de ser uma entidade maligna, e imaginei que o fizesse
saber da sua essência. Durou poucos minutos. O inocente animal seguiu seu
caminho, completamente alheio. Para mim, a batalha contra o Mal estava
vencida. Era impossível saber que a guerra que se aproximava seria bem
mais exaustiva.
Os banhos nos chuveiros do camping me revigoravam. Eram um ritual de
magia no qual a água e os sabonetes cheirosos me enchiam de energia apesar
das noites em claro e das longas caminhadas. Em crises futuras também seria
assim. Estar limpa, cheirosa e de cabelos molhados me revigorava, me dava
forças para seguir lutando contra o Mal. A ideia de ser uma mulher linda em
plena era de Aquarius se tornou a minha fortaleza.
Acabei me envolvendo com um rapaz do camping, que de início não
percebeu o terreno movediço em que pisava. Ficávamos ali por perto,
tomando banho de mar, curtindo o verão, até que um dia o convidei para
entrar na cabana da qual eu tinha a chave. Ele aceitou sem questionar, certo
de que o lugar era meu. E era verdade, para mim o caminho estava livre;
afinal, estávamos na era de Aquarius e eu era uma enviada. No segundo
andar da cabana, encontrei uma mala cheia de dólares. Dei a ele algumas
notas pedindo que comprasse roupas. No quarto que supus ser o da dona da
casa, escolhi uma sandália, uma pulseira, uma calça e uma blusa branca. Por
coincidência, eu e ela usávamos o mesmo número. Tudo funcionava como
num passe de mágica. Deixamos o lugar, pegamos uma carona e seguimos
para uma festa de cuja localização eu não fazia a menor ideia. Acredito que
era época de Carnaval. Eu não tinha qualquer cuidado com o rumo que eu
tomava ou como escolhia minhas companhias. Chegamos. A única coisa de
que me lembro é da figura de um homem, um mendigo, na porta da festa. Era
alto, magro, tinha o cabelo castanho-escuro e a pele clara. Acho que estava
sentado pedindo uns trocados. Comecei a encará-lo. Ele percebeu a
insistência do meu olhar. Minha mente viajou longe e novamente o processo
de luta contra o Mal se iniciou. Sim, aquele homem era a encarnação do
maligno. A cada instante meu olhar era mais fulminante, mas de repente a
vítima reagiu. Quando eu menos esperava, ele me deu uma bofetada tão forte
que cheguei a ter a impressão de ver estrelas. O rapaz que me acompanhava
nem percebeu. Aceitei aquela agressão de forma silenciosa. O mendigo me
olhou como se dissesse: “toma, sua vadia”, mas entrei na festa sem me sentir
vencida. A noite tinha acabado de começar e o amanhecer traria mais
desafios. Não lembro o que aconteceu naquele lugar. Devo ter dançado
alucinadamente. Só me recordo da volta. Já era dia. Eu e o rapaz, podres de
cansaço, dentro de um ônibus sacolejante. Foi difícil manter os olhos
abertos, e acabamos dormindo e passando do ponto. Tivemos que descer em
Mariscal, uma praia de mar revolto que fica ao lado de Quatro Ilhas. Ele
ficou bravo por eu ter pegado no sono e colocou em mim a responsabilidade
por termos de caminhar tanto. Ficou ainda mais furioso quando joguei fora
boa parte da cocaína que ele tinha comprado para revender. Recordo sua
frustração misturada com uma espécie de desespero. Apesar de toda a raiva,
ele não encostou a mão em mim. Permaneceu ao meu lado para voltarmos
juntos a Quatro Ilhas.
O corpo exausto pela noite em claro, junto com a fome e o sol, tornou
nossa caminhada extenuante. Permanecemos em completo silêncio durante
todo o trajeto. O dia estava lindo, o céu um azul perfeito. Muito calor,
horário de almoço, pouca gente na rua. Assim que enfiei a chave na
fechadura, a realidade deu uma guinada de 360 graus. A polícia surgiu de
todos os cantos. Dentro da cabana estavam os seus legítimos ocupantes. A
dona das roupas que eu vestia me chamava sem parar de vagabunda. Um
homem que parecia ser o marido me levantou pelo pescoço e depois me
jogou no chão. Permaneci ali, sem qualquer reação, ouvindo cobras e
lagartos. A mulher arrebentou a pulseira do meu braço e exigiu que eu tirasse
suas roupas. Obedeci, e coloquei a parte de baixo do meu biquíni preto e a
blusa decotada que eu tinha deixado na cabana — era como eu costumava me
vestir. Os pés sempre descalços. Os policiais nos tiraram dali. Fomos
algemados e colocados na viatura. O rapaz, me odiando, cuspiu em mim. Em
que cilada ele foi se meter. O pior é que a polícia encontrou o restante da sua
cocaína na cabana, numa caixinha de fósforos. A essa altura, é claro que a
minha ilusão de ser uma enviada divina estava um pouco abalada — só um
pouco. Quando cheguei à delegacia, fui colocada em uma cela vazia
pequena. Faminta, exigi que me trouxessem um xis salada. Por incrível que
pareça, me trouxeram. Mas era um xis bacon e, na minha viagem, imaginei
que o bacon era o Mal. Comi o xis inteiro, exceto o bacon, que cuspi no
chão. Um tempo depois me chamaram para o interrogatório. Perguntas e mais
perguntas. De onde vocês vieram? Onde conseguiram a cocaína? O policial
pegou uma faca e começou a roçá-la no meu pescoço. Ele insistia, inquiria,
me ameaçava. Aí foi demais. Minha cabeça girava, a sensação era de que ia
se soltar do pescoço. Comecei a chorar desesperadamente. Falei que a única
coisa de que tinha conhecimento era que o rapaz tinha comprado a droga
para uso próprio e talvez para revenda. Não tinha mais nada a dizer, era tudo
o que eu sabia. O policial me conduziu então para uma sala onde tiraram
fotos minhas de frente e de perfil. Depois me liberaram.
Não sei o que fizeram com o sujeito. Aquele verão deve ter sido
inesquecível para ele. Para mim, certamente foi. Vera, minha vizinha, foi me
buscar na delegacia. Não sei como ficou sabendo de toda a história.
Voltamos para o camping como se nada fosse. Surpreendentemente, ela ainda
não tinha percebido o que estava acontecendo comigo, e continuei livre para
cometer minhas loucuras. Voltei a frequentar o Submarino Amarelo, agora de
forma ainda mais intensa. Passava dias inteiros gravitando ao redor do bar
como um satélite insano e obcecado. Minha trajetória só foi interrompida na
noite em que comecei a esbravejar com uma cliente. Ela era mais uma
entidade maligna. Dessa vez o dono se irritou e me expulsou do bar com um
golpe de alguma arte marcial que até hoje não identifiquei. Só sei que me
pegou pelos braços e me fez voar como uma pena. Fiquei estatelada no chão,
imóvel. Não disse nada, não reagi, simplesmente permaneci deitada. As
pessoas ao redor me olhavam. Eu, inerte. Só pedi que chamassem a polícia.
Quando ela chegou, me encontrou na mesma posição. Os policiais me
reconheceram e me levaram para o camping. Vera estava lá, mais surpresa
do que nunca. Os policiais me colocaram na barraca e disseram que eu só
precisava descansar. Algo impensável para uma bipolar em plena crise de
mania. Fiquei deitada por alguns instantes, mas, assim que Vera se afastou,
aproveitei para escapar. No caminho, a mão de alguém me impediu de
seguir: “Não! Tu não vai sair!”.
Era o Diego, amigo dos tempos em que eu frequentava a praia do Cassino.
Ele, sim, vinha percebendo mudanças em meu comportamento. Mas insisti, o
despistei e saí. Andei sem cessar nas sombras da noite, nos becos escuros,
desafiando a morte a cada passo sem a menor noção do perigo. Andei até o
amanhecer. Vera me encontrou num morro, os pés cheios de cortes e
espinhos. Me convidou para voltar com ela. Quebrei seus óculos com o
intuito de destruir o Mal. Ela enxergava pouquíssimo sem eles. Agora era o
fim. Vera entrou em contato com meu pai, que foi me buscar de carona com
outra vizinha do meu bairro em Canoas. Seis horas de viagem. Volto para
minha cidade no banco de trás do fusca, calada, a cabeça girando. Fiquei
pouco tempo em casa. Minha alteração de humor era gritante. Fui levada ao
hospital psiquiátrico. Minha família fingiu que meu pai estava doente para
que eu não manifestasse resistência à internação. Ali, pela primeira vez, tive
a experiência de ser amarrada a uma cama. Quando algum interno vai para as
cordas, todos os outros sabem, e a sensação é desconcertante. É o terror, é o
começo de um calvário que parece interminável.
2. Dançando numa sala vazia
Quando pensamos estar indo pelo caminho certo, surge algo que nos indica
novas possibilidades. Assim que comecei a cursar oceanografia, embora eu
tivesse me identificado com as pessoas, percebi que aquele não era o meu
universo. Vivia carregando livros de cálculo, química e física sem ter
vontade de abri-los. A falta de contato com seres humanos me invadia nas
aulas de laboratório em que eu decepava sapos inocentes e esponjas do mar.
Aos poucos fui murchando. Após uma adolescência à sombra da alternância
entre estados depressivos e hipomaníacos, meu desejo mais profundo era
viver em contato com outras pessoas e, assim, poder estabelecer
relacionamentos saudáveis e construtivos. Como se fosse fácil. O fato é que
minha insatisfação foi se agigantando de tal forma que, ainda no primeiro
semestre, abandonei o curso para tentar jornalismo na UFRGS. No período de
um ano mudei as escolhas em minha vida. Mais uma vez um livro influenciou
minhas decisões, As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano.
A obra fez com que eu me defrontasse com um universo que a minha
ingenuidade adolescente não concebia existir. Mecanismos de poder e
expropriação de um continente, ambos legitimados por um sistema
indiferente à miséria social. A inquietação tomou conta de mim, e resolvi me
tornar uma jornalista que pudesse investigar e denunciar toda essa
barbaridade. A missão não seria nada fácil, mas sempre tive o hábito de
optar pelos caminhos mais difíceis. Talvez por influência dessa sina de me
imaginar uma enviada, uma justiceira ou algo parecido. Armadilhas e mais
armadilhas que me imobilizariam até que eu percebesse a realidade de ser
apenas um ser humano com suas limitações.
Imbuída de minha missão, levei sete anos para concluir um curso cuja
duração normal é de quatro. Vitimada por crises anuais de mania e
consequentes internações em clínicas ou hospitais psiquiátricos, travei uma
luta hercúlea pela sanidade e pelo direito de ser livre. Apesar de tudo, nunca
desisti de mim nem dos outros. A possibilidade de conviver em liberdade
com as pessoas era algo que me alimentava. Estar entre amigos e dançar
eram minha droga predileta. O prazer de sentir a música invadir meu corpo e
movimentá-lo de forma espontânea e sensual era algo que nunca passava
despercebido ao olhar de quem estivesse ao meu redor. Era comum eu abrir
a pista e dançar de forma alucinada até perder o fôlego; aquilo fazia parte de
um ritual mágico e sagrado para mim. No entanto, não buscava apenas a
exclusividade do prazer como uma hedonista em fúria. Apesar das viagens
astronômicas de minha mente insana, estava sempre tentando me reconectar
com a realidade que insistia em me escapar pelos dedos. Estou certa de que
a preocupação com as grandes questões sociais e a necessidade de pertencer
à roda da vida foram responsáveis por minhas inúmeras aterrissagens.
Certo dia, assisti a um anúncio da Anistia Internacional na TV Educativa. A
imagem mostrava pessoas num cemitério, vestidas de preto e segurando
guarda-chuvas também pretos. Estavam enterrando um caixão vazio, pois a
pessoa falecida era, na verdade, um livro. Aquilo tudo me comoveu. Mais
uma vez minha ingenuidade foi sacudida por fatos que falavam por si.
Procurei o escritório da Anistia em Porto Alegre, e foi amor à primeira
vista. Cartões, bótons, livros, camisetas, bolsas, tudo a favor da luta pelos
direitos de pessoas que foram presas, torturadas ou mortas apenas pelo fato
de expressarem suas ideias.
Eu me sentia bem ali porque sabia que poderia ser útil. Além disso, fui
recebida por Pedro, um rapaz extremamente educado e atencioso. Ele ainda
me veria em crise por causa de meu distúrbio de humor, mas sua educação e
seu carinho nunca se alterariam. Os voluntários da Anistia eram organizados
em grupos e tinham de apoiar e defender seus próprios “prisioneiros de
consciência”, ou seja, pessoas que haviam sido presas por questões
políticas, religiosas ou étnicas, que haviam resistido pacificamente à
opressão em seus países. Me sensibilizei pela questão dos direitos humanos,
que representam um instrumento para que tenhamos uma vida digna.
Enviávamos cartas para vários países num período predeterminado de tempo
com o fim de chegarem em grande quantidade e assim mobilizarem
autoridades. Eu adorava enviar ações urgentes, pois faziam com que eu me
sentisse uma cidadã do mundo, uma mensageira da paz; e me sentia bem por
isso. Mesmo com o dinheiro contado, tentava colocar pelo menos uma carta
por mês no correio. E assim meus sonhos de liberdade e dignidade cruzavam
o Atlântico chegando a países aos quais eu jamais iria, mas que, de certa
forma, sentia próximos pelo simples fato de estar defendendo pessoas tão
especiais, que lutavam por seus ideais sem optar pela violência.
O prisioneiro de consciência do meu grupo era um jovem que havia
desaparecido numa manifestação no México. Enviei uma carta para o jornal
El Día expondo os fatos sobre o desaparecimento do rapaz. Pedi ajuda com
a tradução para alguns colegas chilenos que estudavam comigo. Para minha
surpresa, tempos depois, um colega da Anistia disse que minha carta tinha
sido publicada no jornal. Fiquei feliz, mas, ao mesmo tempo, me sentia
impotente pelo fato de o paradeiro daquele jovem não ter sido descoberto.
Atuei na Anistia por três anos, e saí de forma nada convencional: foi no
auditório da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul,
durante o lançamento do livro O cidadão de papel, do jornalista Gilberto
Dimenstein. Lá estávamos eu, os colegas da Anistia Internacional e mais
centenas de pessoas envolvidas com a causa dos direitos humanos. Cabeça a
mil, o distúrbio bipolar entrando com tudo na fase de mania, e eu ali, em
plena liberdade, circulando entre várias pessoas. O livro de Dimenstein
tratava da questão dos meninos de rua no Brasil. Era uma publicação cheia
de fotos, com uma abordagem sensível e sincera. Eu levara um exemplar
para ser autografado, mas meu humor incandescente não permitiu que isso
acontecesse.
O jornalista começou o evento com uma palestra e, logo em seguida, abriu
o microfone para perguntas. Foi então que, mais uma vez, minha loucura se
tornou pública. Subi no palco, peguei o microfone e me apresentei como
voluntária da Anistia Internacional. Comecei então a proferir o que
provavelmente foi a fala mais delirante que alguém possa ter ouvido naquele
auditório. A sensação de me ouvir assim amplificada era algo maravilhoso.
Me sentia uma verdadeira mensageira divina, portadora de uma voz linda e
serena. Mas o fato é que o meu discurso não soava tão especial assim para a
plateia. Comecei razoavelmente bem, afirmando que a Anistia estava
disposta a defender a causa dos meninos de rua. Contudo, o fato é que a ONG
não atuava nessa área. Continuei solta no palco, dizendo o que me vinha à
cabeça. Ninguém me interrompia. Até que comecei a acusar Dimenstein de
fazer muito pouco pelos meninos de rua. Ele me olhou surpreso. Na verdade,
todos os presentes ficaram perplexos com minha ousadia. Depois que desci
do palco, me deixaram circular livremente pelo lugar, sem qualquer censura.
Acredito que tenha escapado ilesa por estar num evento de direitos humanos,
no qual as pessoas normalmente têm uma tolerância maior à diversidade de
opiniões. A vergonha fez com que me afastasse da Anistia, embora a real
consciência do que havia ocorrido no palco da Assembleia Legislativa só
tenha vindo um tempo depois. Às vezes é preciso se retirar do cenário com o
pouco de dignidade que nos resta.
Certo dia, resolvi cortar os cabelos bem curtos, tipo Sinéad O’Connor. A
mudança de visual tinha um significado muito singular. Era como se algo
grande estivesse para acontecer. O que, de certa forma, acabou se mostrando
verdadeiro. De frente para o espelho, tesoura na mão, cortei meus fios de
cabelo até que ficassem rentes ao couro cabeludo. Foi assim que segui para
Rio Grande para ver meus amigos da oceanografia. Eu já estava cursando
jornalismo, mas os constantes retornos a minha praia eram uma forma de
reabastecer as energias junto ao mar e aos colegas tão queridos. Todos
comentaram meu novo corte e, é claro, a química de meu cérebro recebeu
isso como um sinal verde para uma disparada que tinha como destino certo a
insanidade. Eu usava uma camiseta rosa com fotos de rabos de baleias em
azul. Assim prossegui sob a proteção de minha armadura e de meu elmo
simbólicos em mais uma investida cega ao fantástico. Minha via crucis, cujo
destino final foi mais uma internação num hospital psiquiátrico, começou
com uma breve escala na casa do Gil, um colega que sempre foi a fim de
mim. No entanto, o contexto havia mudado. Ele estava namorando, e não foi
tão bom anfitrião como nas vezes anteriores. Anoiteceu, e eu fiquei a esmo,
sem dinheiro sequer para uma passagem de ônibus. Me lembro de vagar por
uma rua de areia pouco movimentada e de ver um carro se aproximar. Pedi
carona, ou melhor, me atirei diante do pequeno fusca. A porta se abriu e
revelou o interior escuro e a silhueta de um homem jovem. Entrei, já
imaginando ser o fusquinha de uns amigos da oceanografia, mas não era.
Totalmente sem rumo definido, segui junto àquele homem que nem conhecia.
Ele imaginava saber quais eram minhas intenções. A sensualidade
multiplicada por mil pelo surto psicótico não significava, necessariamente,
sexo. Alheia às intenções dele, fui me deixando levar até que estacionamos à
beira-mar, na escuridão e no isolamento. Só então percebi seu membro ereto,
e o desespero me dominou. Tentei me esquivar, mas ele era forte. Resisti, até
que consegui abrir a porta. Saí, pedi socorro e, por uma força do destino, ali
perto havia uma viatura da polícia. Na verdade, eles tinham nos seguido por
terem achado o carro suspeito. Me tiraram dali e depois me liberaram. O
homem, assim como surgiu, desapareceu por completo. De minha parte,
prossegui no meu delírio psicótico, numa vertigem que parecia não ter fim.
Passei dias e noites vagando pelas ruas do balneário. Perdia a noção de
tempo à medida que a mania avançava e alcançava níveis estratosféricos. A
imaginação completamente alterada fez com que eu começasse a me
perceber como morta. Era como se eu saísse de meu corpo e o observasse de
fora, numa espécie de projeção da minha consciência. De certa forma, já me
tornara um tipo de zumbi, pois não sabia mais o que era comer e dormir. Por
um momento, a sensação de não estar viva fez com que me jogasse no chão
na expectativa de que alguém viesse resgatar meu suposto cadáver. Protegida
pelo elmo de cabeça raspada e pela armadura da camiseta larga com os
rabos de baleia, em plena noite, permaneci imóvel até alguém se aproximar.
De repente, senti mãos me apalparem na cintura, nos seios, como se
quisessem decifrar se eu era um homem ou uma mulher. A magreza e o estilo
Sinéad O’Connor confundiam, principalmente à noite. Carregaram meu
corpo inerte até uma barraca e ali me deixaram por um tempo. Imaginei ser
meu túmulo. Finalmente havia encontrado um descanso. No entanto, fui
levada à polícia e, mais uma vez, liberada. Então desisti da ideia de ser um
defunto e procurei um posto de saúde. Estava louca de fome. Não sei como,
mas me ofereceram um prato feito, que devorei em minutos: ovo frito, arroz,
feijão e bife. Simplesmente delicioso. Energia renovada, segui jornada, e
minha imaginação se superava a cada passo. Cheguei a uma região pouco
habitada, formada por campos onde animais pastavam. Eu me aproximei de
uma cerca e imaginei que, quando a ultrapassasse, assumiria a forma de um
cavalo. Minha mente inquieta realmente acreditava nisso. Observei minha
futura família pastando enquanto refletia sobre que decisão tomar: atravessar
a cerca ou não. Contemplei o horizonte. Refleti. Dentro do meu delírio, era
uma decisão séria e importante. Mas prevaleceu a sanidade e o desejo de
rever as pessoas amadas, aquilo já havia me levado à exaustão. Decidida a
não ser mais um cavalo, embora já fosse um — e um cavalo de fogo, no
horóscopo chinês —, busquei alguém que me tirasse daquele pesadelo. Já
não tinha mais forças. O surto de mania trouxera todo o cansaço, toda a fome
e todo o esgotamento físico e psicológico que meu corpo podia suportar.
Então me joguei à beira da estrada de asfalto num pedido desesperado por
ajuda. Os carros passavam e eu aguardava imóvel a poucos centímetros da
pista, como se estivesse desacordada, mas no fundo eu rezava, rezava muito.
Um carro finalmente parou, e fiquei aliviada. Senti alguém caminhar ao meu
redor e depois ir embora. Lamentei muito aquele afastamento, mas continuei
rezando. Alguns minutos depois, outro carro parou. Era novamente a polícia.
O policial fez a volta em torno de mim e me agarrou em seus braços.
Finalmente alguém me libertou daquele ciclo de insensatez. Eu não poderia
ter feito isso sozinha. Estava outra vez no posto de saúde, onde já havia
alguns parentes procurando por mim. Foi tão bom revê-los. Pena que me
encontraram naquelas condições. Segui de ambulância para um hospital
geral. Recordo minha querida tia Giulia sempre segurando minha mão.
Radiografaram meu crânio, mas minha fratura era na alma. Fui mais uma vez
internada num hospital psiquiátrico. Três meses de clausura até conquistar
novamente o direito de viver em liberdade.
Mergulhei na piscina. Ela era pequena e estreita, mas isso não diminuiu o
prazer que senti ao entrar em contato com a água num verão de temperaturas
elevadas em Porto Alegre. A sensação era de estar mergulhada num oceano
sem gravidade. Meu corpo flutuava e os movimentos suaves traziam
aconchego e um lampejo de liberdade. Eu usava um maiô preto que pertencia
a Manuela, uma moça jovem e bonita que estava internada comigo, e que
acredito também ser bipolar. Ela tinha a mania de fazer contas de cabeça,
sempre à procura de um número perfeito. Práticas que, para mim, não eram
desconhecidas. Eu também buscava o número perfeito, inspirada na leitura
do Apocalipse, que tanto estudei na juventude enquanto buscava o rosto de
Deus nas nuvens.
Manuela me fazia lembrar os momentos de crise em que ficava somando
números na esperança de que o resultado fosse três, representando a
Santíssima Trindade, ou sete, o número divino. Qualquer número diferente
era o prenúncio de que coisas não muito boas poderiam ocorrer, o que se
tornava um martírio, porque me levava a um círculo vicioso de tensão e
expectativas ruins. É claro que isso não representava algo real, mas, para
uma mente inquieta, na qual o delírio impera, a lógica não tem grande
importância. Eu entendia o que Manuela sentia e, de certa forma, me
solidarizava com ela; estávamos no mesmo barco, ou seja, internadas
naquela clínica psiquiátrica privada. Ali o tratamento oferecia condições
mais dignas, e ficar confinada por certo período não parecia algo tão
autoritário e ultrajante como nos hospitais públicos.
Com livre acesso ao pátio, eu me deliciava na piscina e circulava sem me
importar com limites de horário. Passava muito tempo sentada sobre um
imenso tronco de árvore caído, um segredo que ninguém descobrira. Aquela
árvore morta assumia para mim a identidade de uma grande baleia
assassinada. Um imenso mamífero imaginário que no meu delírio
representava a degradação da natureza e a consequente ganância humana.
Imersa na minha viagem, estabelecia diálogos filosóficos com aquela
criatura gigantesca e terna que permitia a minha presença sobre seu cadáver.
Uma sensação de paz me invadia enquanto trocávamos confidências sobre o
sentido da vida e a importância de encontrarmos o equilíbrio e a paz. O
tempo foi passando, e com ele meu estado de mania, e comecei a não
conseguir mais conversar com minha amiga baleia. De qualquer forma, ela
ouviu meus desatinos sem protestar e me livrou da loucura, pois qualquer
forma de troca é o avesso da solidão.
Também me lembro das amoras gigantes que mais pareciam pequenos
cachos de uva. Até hoje não encontrei outros exemplares nas mesmas
proporções. Em meu universo mágico, elas representavam um éden de
fartura. Eu comia alucinadamente, extasiada por imaginar que nunca
chegariam ao fim. Recebi alta antes que as frutas secassem, e isso fez com
que, para mim, parecessem eternas. Era bom poder acordar e ir dormir a
hora em que eu bem entendesse, assim como circular entre os quartos e
conhecer outras pessoas. Havia um rapaz bonito, de pele bem branca,
cabelos negros cacheados e olhos azuis intensos. Estava internado por causa
do vício em cocaína. Era um cara muito talentoso, que desenhava coisas
fantásticas. Havia outro meio gordinho de pele clara que também fazia
desenhos interessantes. Ele desenhou um galo de penas multicoloridas e
volumosas. A expressividade da sua arte era algo praticamente impossível
de não ser percebido.
Um dia, quando estava sobre minha amiga baleia, vi esse artista atravessar
o pátio numa corrida desatinada e pular o muro rumo à liberdade. Nunca
cogitei uma fuga, nem mesmo dos sanatórios, pois estar presa me trazia uma
sensação de impotência.
As visitas representavam um sopro de vida. Minha mãe me visitava todos
os dias, mesmo sob o sol escaldante e sem conhecer direito Porto Alegre.
Ela era uma bênção que me enchia de esperança e me trazia a certeza de que
alguém me esperava do lado de fora e, mais que tudo, torcia por mim. Me
lembro, um pouco depois, de estar no apartamento de minha tia Giulia,
deitada no sofá em posição fetal, a cabeça repousando no colo de minha
mãe. Lá estava eu, recém-saída de uma internação, trêmula e ansiosa por não
conseguir dormir. Essa mulher especial segurava minha mão por horas, até
eu me acalmar, numa demonstração de carinho e solidariedade extremos.
Minha mãe sempre será um presente de Deus. Ali, naquela clínica, era meu
elo com um mundo exterior que ela me fazia imaginar repleto de
oportunidades. Meu mundinho no hospital também possuía outros focos de
luz menos intensos, mas nem por isso insignificantes. Minhas amigas Paula,
Aline e Vanda, assim como minhas irmãs e meu tio Valdo, traziam um pouco
da liberdade em seus olhares. Jorge, meu amigo da casa do estudante, ficava
deslumbrado com o luxo do lugar. Meu médico vinha me ver todos os dias.
Sua presença era bem-vinda e seu sorriso aberto sempre trazia um pouco de
paz. Mesmo assim, logo no início da internação, fui amarrada numa maca.
Não lembro mais por quê. Os enfermeiros te imobilizam, a injeção te dopa,
as amarras te prendem e só resta aguardar em silêncio pela generosidade de
alguma mão que talvez te liberte da paralisia.
Minha segunda grande viagem seria ainda mais desafiadora, mas, quando
soube que a faria, acho que passei pelo menos uma semana com um sorriso
de orelha a orelha. Afinal de contas, tinha meus motivos, e era mais que
merecido comemorar. Havia conseguido um estágio num projeto de
preservação da vida marinha, no Espírito Santo, e aquilo não era pouca
coisa para uma ex-estudante de oceanografia. Realizaria meu trabalho de
conclusão da faculdade na área que sempre amei e, assim, iria materializar
um sonho. Os temas comunicação interpessoal e educação ambiental me
encantavam, como também a antropologia, na qual me aprofundava para
saber como lidar com a comunidade de pescadores. Na mala, levei caixas e
mais caixas de Lexotan e de carbonato de lítio, que pendurava na parede do
alojamento, deixando meu distúrbio evidente. Para mim era uma prova de
fogo, uma vez que surtar no verão, e quase sempre à beira-mar, era minha
sina. Mas me joguei de corpo e alma.
Dessa vez, eu estaria bem longe de casa e contando apenas comigo mesma.
Sair do sul do país em direção ao norte era algo considerável para uma
bipolar diagnosticada como um caso de grande complexidade. Meu
psiquiatra me liberou para a viagem, mas com certas recomendações: tomar
os remédios religiosamente, dormir e me alimentar bem, e ligar de forma
impreterível nos dias combinados. Segui suas orientações à risca, pois nada
me faria perder aquela oportunidade. Nada.
Fiquei conhecida na vila de pescadores como a moça da mochila
vermelha, na qual eu carregava meu gravador, fitas e, obviamente, as pílulas
responsáveis pela minha sanidade. Imbuída de uma vontade sincera e
ingênua de mudar o mundo, encontrei portas humildes que se abriram para
mim. Em cada casa por que passei, me deparei com o relato de um morador
local que teve um passado de fartura e que, no presente, se mostrava
abandonado. O saudosismo por uma natureza exuberante era marca constante
no discurso dos mais velhos. Ao mesmo tempo, os jovens temiam o
desemprego. Apesar das limitações enfrentadas pela comunidade, aquele
lugar foi uma experiência mágica e inesquecível. Admirar a grande baleia
esguichando água salgada a poucos metros da costa, acariciar a pequenina
raposa mansa e desfrutar do brilho da lua cheia em toda a sua plenitude
foram lembranças que ficaram. Impossível esquecer os forrós de sábado à
noite, único momento em que calçava meus pés já tão acostumados à
liberdade nas ruas de areia. O calor e o suor apimentavam o salão e o
enchiam de energia, e a noite transcorria como se o tempo não passasse.
Também foi numa noite de lua cheia que uma colega bióloga e eu fomos
recebidas pelo abraço de dezenas de crianças descalças e lindas. A pureza
de seus olhos e o carinho daquele gesto quase fizeram com que eu partisse
para outra dimensão. Eu tinha certeza de que estava cercada por anjos. Eu
poderia ter surtado, mas não mergulhei de cabeça em mais uma viagem
porque tinha um objetivo muito claro: tinha realizado um sonho conquistado
pela esperança e persistência. Eu estava com 27 anos e decidira abrir mão
da fantasia em nome da realidade, uma das melhores escolhas que fiz. Mas
outras crises de mania viriam e minha sina me perseguiria ainda por um bom
tempo, sem a mínima intenção de cessar.
E me mostraram um mundo
Onde eu poderia ser tão dependente
Ah, doentio
Ah, intelectual, cínico
[...]
À noite, quando o mundo inteiro dorme,
As questões seguem tão profundas
Para um homem tão simples
Por favor, me diga o que aprendemos
Eu sei que soa absurdo
Mas, por favor, me diga quem eu sou.
Rose escreveu sobre o pai alcoólatra que batia na mãe e que ela mesma
havia expulsado de casa. Edite, sobre a irmã homossexual de quem gostava
muito e a quem, acima de tudo, admirava pela coragem de assumir sua
orientação sexual. Ronaldo confessou levar uma vida tediosa, só em função
de escola, casa e outras coisas sem graça. Cris falou do pai que abandonou a
família quando ela era ainda bem jovem e que, por isso, sempre teve de
batalhar muito pelas coisas. Pedro, que foi interno numa instituição para
jovens infratores, teve dificuldade para escrever, e Cláudia, que tentou
esfaquear o próprio pai, ficou rindo da minha iniciativa, mas depois pediu a
fita emprestada para escutar em casa. E foi assim que deixei aquele grupo de
jovens. Vestida de negro e com o coração partido.
O lugar foi ficando para trás, e segui para meu pequeno apartamento no
quarteirão da Casa de Cultura Mário Quintana, refúgio que viria a se tornar
uma armadilha atroz e de onde minha alma sairia ferida a ponto de me privar
da alegria pelos intermináveis quatro anos subsequentes. Mas até então eu
não tinha a mínima ideia do que me esperava. Eu me despi das vestes
fúnebres e iniciei outra viagem na qual a sexualidade contida brotava de uma
forma ingênua e incompreendida. Meu novo adorno era agora um sutiã
branco em forma de taça, uma saia verde clara muito leve, desfiada em
vários bicos irregulares, e um par de sapatos negros de saltos relativamente
altos e grossos como os de flamenco. Envolta nessa atmosfera contraditória
— pura e, ao mesmo tempo, de louca sensualidade —, invadi o prédio do
Gasômetro, centro cultural de Porto Alegre, sem a mínima noção de limites.
O som de meus saltos nas lajotas do prédio me levou para uma dimensão em
que me transfigurava numa mulher linda e desejada. Nada me convenceria do
contrário. Foi me sentindo assim que entrei numa sala onde um grupo de
homens e mulheres se reunia em círculo. Sem pedir licença e sequer
cumprimentar os presentes, me dirigi a um homem que estava sentado e
comecei a dançar ao redor dele como uma bailarina de boate de última
categoria. Ele não reagiu, então me aproximei cada vez mais. Coloquei
minhas pernas entreabertas ao redor das dele e movimentei o corpo de forma
provocante. Repousei as mãos sobre minha cabeça numa manifestação de
total entrega e excitação. Uma mulher gritou: “O que é isso?”. Todos
estavam atônitos e indignados com minha investida surpreendente e
desenfreada. Em seguida, apareceu um guarda para me tirar dali. Saí
tranquila e caminhei sem rumo à beira do Guaíba até encontrar um jovem
com sua bicicleta. Ele se mostrou atencioso, me deixou descansar a cabeça
em seu colo e permitiu que eu andasse no seu veículo de duas rodas pela
orla. Pedi que me levasse para sua casa, me sentia sozinha. Ele não disse
nem que sim nem que não, apenas se afastou. Fiquei ali observando aquele
homem gentil se perder entre os pedestres, os carros e as ruas. Engoli em
seco o gosto amargo do desamparo e da alienação. Um Josué implacável me
indicara o caminho da rua e do desamor, fizera com que eu me perdesse na
cidade grande sem conseguir encontrar o caminho de volta. O final desse
labirinto se mostraria ainda mais aterrador. Embora o perigo me rondasse a
cada esquina, na minha loucura eu não tinha a menor consciência dele.
Retornei ao apartamento para incorporar a última personagem daquele teatro
de tragédias e sofrimento. Vestida de vermelho e negro, flertei mais uma vez
com o perigo ao me imaginar uma entidade, mais especificamente a
Pombajira. Ao me transformar nessa mulher sedutora, amante do sexo e da
alegria, minha mente tinha apertado o gatilho contra mim. Assim, a roleta-
russa começou a girar outra vez, e eu estava completamente indefesa, à
mercê da sorte. Fui para a rua quando anoiteceu. Não foi preciso ir muito
longe. Parei na lancheria do andar térreo do meu prédio, onde três homens
bebiam. Me juntei a eles como se fôssemos amigos íntimos. A conversa
fluía, pelo menos era o que minha mente maníaca imaginava. O tempo passou
e o estabelecimento fechou as portas. Eu ainda estava acelerada, querendo
mais, e convidei os três para subirem até meu apartamento. Realmente não
era eu quem estava ali. Só podia ser uma Pombajira libidinosa que me
conduzia daquela forma a um leito de luxúria e perdas sem que eu pudesse
sequer reagir. Eu me lembro dos três homens entrando no apartamento,
abrindo gavetas e armários, talvez procurassem drogas. Me lembro de estar
dançando em meus trajes rubro-negros, da luz do abajur, dos beijos de um
deles. Na minha imaginação, eles eram anjos, embora não enxergasse suas
asas. Era uma forma de sublimação para uma mente destroçada. Em meio a
tanta dor, a maior manifestação da misericórdia divina foi permitir que tudo
se apagasse de minha memória. Poupada dos detalhes sórdidos, acordei de
manhã como se nada tivesse acontecido. Ainda vi o último deles vestindo as
calças e saindo pela porta. Uma sensação de anestesia e vazio invadiu
vísceras e mente, e tive certeza de que não havia mais nada a fazer. Me
levantei para fechar a porta. A chave estava do lado de fora, mas a deixei no
mesmo lugar. Agora era tarde demais, minha vida já tinha sido escancarada.
Avisados por um amigo, meus tios Valdo e Giulia conseguiram me encontrar
e, assim, fui internada mais uma vez. Ladrões invadiram o apartamento na
minha ausência e levaram meu computador, presente de meu pai e único bem
que eu tinha até então.
6. Aqueles olhos negros
Internada mais uma vez no hospício, observei aterrorizada uma ferida que
surgira perto do punho direito. Seria aids? Impiedoso Deus! As atitudes
insanas, a lembrança daqueles homens no meu apartamento e a perda de
memória transformaram minha mente num redemoinho de sensações
aterradoras. Encolhida em um canto do imenso salão, cercada por alienados
e dependentes de álcool e drogas, imaginei a possibilidade de ser fulminada
por uma punição tão atroz. De repente ele chegou, sentou ao meu lado e me
perguntou se estava tudo bem. Eu disse que não e questionei se ele achava
que era a doença. Ele respondeu que não. Perguntei qual seria a sua atitude
se descobrisse que era HIV positivo. Ele respondeu que seguiria sua vida
normalmente. Seu olhar doce e sereno foi aos poucos me acalmando e me
trazendo uma paz que eu julgava perdida. Seu nome era Michel e, assim
como eu, ele também havia sido internado. Graças à sua companhia,
consegui suportar a internação mais sofrida de minha vida. O resultado do
exame deu negativo e, enquanto a ferida no punho ia desaparecendo, íamos
nos aproximando. Ele era casado, tinha filhos, mas estava disposto a deixar
tudo por mim. Falava que nunca havia encontrado uma mulher como eu, com
quem podia conversar e ser ele mesmo. Nossa história repercutiu em todo o
sanatório e o amor dele crescia de uma forma que nem eu mesma conseguia
entender. Eu me deixei levar. Sua presença me trazia alívio, mas, ao mesmo
tempo, eu sabia que meus sentimentos em relação a ele não eram tão intensos
assim. Nós nos encontrávamos no pátio ou no grande salão, quando
alienados, alcoólatras e viciados compartilhavam o mesmo espaço. Ele
sempre aparecia com um aparelho de som embaixo do braço. Suas músicas
prediletas eram os pagodes românticos que pareciam dedicados a nós dois.
Ficávamos um ao lado do outro conversando e trocando olhares intensos
com lampejos de promessa. A cada distração dos enfermeiros, eu me
arriscava acariciando sua pele negra. Certa vez fui posta de castigo por
trocar um beijo suave com ele em pleno salão. Mas isso não nos afastou, e
continuamos a ficar perto um do outro quando estávamos no pátio. Michel
era pedreiro e morava em um dos bairros mais pobres da cidade. Nunca
soube o que realmente causou a sua internação, mas ele dizia que iria mudar,
que faria qualquer coisa para ficar comigo. Aquele sentimento
gradativamente me tirava do fundo do poço. A fama da nossa história foi
crescendo e, na ala masculina, já havia quem torcesse por nossa união. Mas
isso não aconteceu. Ele teve alta antes de mim e me esperou sair. Até nos
encontramos algumas vezes, ele era fascinado por mim, sempre respeitador e
carinhoso. Nunca um homem me olhara com tanto amor e admiração, seus
olhos negros chegavam a cintilar, mas não consegui corresponder ao que ele
sentia e um dia ele se afastou definitivamente. Além disso, minha família não
queria nossa união. Eu tinha plena consciência de que estava perdendo um
homem maravilhoso, mas isso estava além de mim. Um Josué implacável
ainda dominava minha alma e minhas vísceras. Ele era um vício e uma
amarga lembrança que tornaram cinzentos vários anos de minha vida. Michel
se foi e ficou a dúvida de saber como teria sido se tivéssemos ficado juntos.
Ao contrário de Josué, ele iluminou as trevas, e serei eternamente grata,
esteja ele onde estiver.
Até hoje me rendo à força daquele olhar que se fixou em minha alma como
um elo para a vida inteira. Enquadrada pela câmera de um fotógrafo
profissional, San-Hã, uma pequenina índia waiãpi, me cativou com seu
sorriso de uma pureza descomunal. Fitar aqueles olhos negros de um brilho
intenso foi como encontrar uma joia rara incrustada em plena floresta
Amazônica. Um sorriso de uma candura indescritível estava diante de meus
olhos, e eu tinha uma certeza: ela sorria para mim. Os cabelos escuros e
lisos e o bracinho direito envolto por um bracelete de sementes próximo ao
ombro emolduram seu lindo rostinho e atestam a origem indígena.
Impossível esquecer seu nome tão singular. Mais impossível ainda não me
entregar àquele amor à primeira vista.
No entanto, minha perplexidade foi enorme quando o fotógrafo me contou
que aquele anjo havia se suicidado, assim como vários índios brasileiros,
por falta de perspectivas de uma vida digna. Nunca mais me separei de sua
foto, que guardo em minha escrivaninha junto com as melhores lembranças.
San-Hã se tornou a filha que nunca tive e a esperança que continua bela
apesar da violência. Não poderia, no entanto, imaginar que, anos depois, em
mais um de meus surtos de mania, seria possível pensar em San-Hã como
alguém presente no corpo de outra pessoa.
Ali estava eu mais uma vez, perambulando sozinha, ensandecida, pelas
ruas de Pelotas em plena lua cheia. Dessa vez, em meu delírio, buscava
minha sobrinha, filha de minha irmã mais nova, de ascendência indígena por
parte de pai: olhos negros, cabelos escuros e pele levemente morena. Uma
vez que não pudera evitar o suicídio de minha filha pequenina, agora meu
plano mirabolante era proteger aquela pessoa querida das drogas e do
álcool. O estopim disso tudo se deu porque minha sobrinha comentara que
certa vez um homem tinha tentado colocar um comprimido na sua boca. Com
a missão imaginária de defendê-la, fui às raias da loucura em meio à
multidão numa agitada noite de sexta-feira sem que ninguém soubesse por
que motivo eu lutava. Minha mente alterada simplesmente não concebia que
qualquer miserável ousasse me afastar do convívio com aqueles olhos
negros, assim como fizeram com a pequena criança que corria livre pelas
terras do Amapá. Um sentimento desesperado se apossou de minha mente
como a ânsia de uma mãe pela segurança de sua filha. As consequências
desse ímpeto foram amargamente desastrosas. Ainda longe da multidão, me
lembro de correr de forma desatinada e, sem parar, roubar um espetinho de
carne de um vendedor de rua. Estava com fome e não tinha nenhum dinheiro
no bolso. Era meu primeiro ato de ousadia, e saíra ilesa. Mas a noite mal
começara, e não seria sempre assim. Segui em meio às luzes da cidade na
direção que levava à avenida principal, onde os jovens se reúnem em êxtase
nos finais de semana. Aos poucos, o silêncio das ruas marginais cedia
espaço ao movimento ruidoso de pessoas aglomeradas. Ali estava minha
plateia, e o show seria mais que surreal. Comecei abordando um grupo que
estava próximo de uns carros estacionados. Fechei o porta-malas dos
veículos que tocavam o rádio a todo volume e fiz ameaças com o palito do
churrasquinho entre os dentes, como um canibal em fúria. A busca por minha
sobrinha desprezava qualquer senso de ridículo. Aqueles jovens não se
importaram com meu sofrimento e me escorraçaram dali como um cão
sarnento. Esse conjunto foi perfeito para que meu surto se intensificasse e
assumisse dimensões mais que constrangedoras. Perambulei sem destino
pela avenida e, assim, ocupei todo o palco do meu desespero. De repente,
uma música dos anos 1980, vinda de outro carro, me chamou a atenção. Por
alguns minutos, esqueci a fúria que tinha me apossado e, sem o menor pudor,
dancei sensualmente em plena rua como se estivesse numa boate de última
categoria. Chocar era meu intuito e, de certa forma, consegui, pois
desligaram o som em meio a olhares de desprezo. Era assim que a cada
instante me tornava uma criatura desagradável, apenas isso, o destino de
qualquer alienado que não encontra o caminho de volta para a sanidade.
Como numa cartada final, invadi a pista, me coloquei na frente dos carros em
movimento e me despi da cintura para cima. Me desfazer da camisa da
United Colors of Benetton, estampada com desenhos coloridos dos
continentes, foi para mim uma atitude de desprezo a esse sistema pútrido.
Tudo representava o mundo que levou San-Hã e que, no meu delírio, agora
pretendia violentar minha sobrinha. Sem camisa, parei numa esquina e
aguardei o momento em que os carros diminuíam a velocidade para então
enfiar minha perna por suas janelas dianteiras. Queria detê-los de qualquer
maneira. Onde ela está? Digam, seus desgraçados, onde ela está?! A cada
carro abordado, me deparava com motoristas atônitos em cujo semblante
percebia um misto de susto, raiva e desprezo. Em meio a tanta fúria, senti um
leve resquício de razão e desisti dessas investidas ao temer quebrar a perna
ou ser arrastada por alguma daquelas carcaças. Ainda despida da cintura
para cima, prossegui naquela cruzada pela grande avenida à espera de um
novo estímulo que exorcizasse minha raiva desgovernada. Um par de
algemas aprisionando minhas mãos às costas encerrou todo aquele circo de
demências no qual a grande palhaça era eu. Fiquei detida até que minha
sempre generosa tia Giulia chegasse. Ela colocou um casaco de lã vermelho
e preto sobre meus ombros sem dizer uma única palavra ríspida, em seguida
me conduziu ao hospital psiquiátrico público. Lá estava eu, mais uma vez
reclusa na imensa casa branca onde meses imitam a eternidade.
7. A porção de cada dia
“As loucas acometidas por um acesso de raiva são acorrentadas como cães
à porta de suas celas e separadas dos guardiões e dos visitantes por um
comprido corredor defendido por uma grade de ferro; através dessa grade é
que lhes entregam comida e palha, sobre a qual dormem. Por meio de
ancinhos, retira-se parte das imundícies que as cercam.” Encontro esta
descrição de um manicômio francês do fim do século XVIII no livro de
Foucault, História da loucura, enquanto pesquiso material para embasar
uma entrevista que faria para a faculdade de jornalismo com o deputado
estadual Marcos Rolim. Defensor da extinção progressiva dos grandes
manicômios e da sua substituição por formas alternativas de atendimento,
este homem, durante a entrevista, me proporcionou um diálogo franco e
esclarecido, considerado por minha professora um dos melhores já obtidos
por seus alunos de redação jornalística. Claro que a escolha do tema me era
algo bem familiar, mesmo assim, as colocações daquele homem me soavam
como um elixir inédito de vida e dignidade. A maior polêmica do projeto de
lei do deputado estava em pretender dar aos doentes mentais o direito à
liberdade. Segundo ele, a diminuição das internações psiquiátricas era algo
palpável quando havia a aposta na criação de serviços alternativos. Para
Rolim, a ideia de superação dos manicômios não era utopia, mas sim um
ideal democrático.
Ao mesmo tempo que o escuto, me sinto muito próxima, a ponto de
compreender extremamente bem o que aquele homem dizia. Quando afirma
que as pessoas perdem o direito civil no Brasil a partir do momento em que
recebem um diagnóstico que recomenda a internação, sinto a alma lavada,
principalmente por saber que, até o final da Idade Média, o louco era um
homem inacessível, mas livre. Visto como portador de um conhecimento
esotérico e constituído de formas estranhas, o alienado era um símbolo de
sabedoria e inocência. De certa forma, às vezes, em inúmeros surtos de
mania, eu me sentia como uma enviada divina a serviço da humanidade. Em
contraposição, em vários momentos pude sentir o gosto amargo da exclusão
e da indiferença.
Marcos Rolim me fascinava com sua forma clara, sofisticada e doce de se
expressar, mesmo ao falar de um assunto tão controverso. Ele comenta o fato
de as pessoas se referirem ao louco como alguém perigoso e incapaz,
quando, na verdade, isso não é real. Ele então diz que ninguém é louco 24
horas por dia, uma vez que as pessoas com maior volume de sofrimento
psíquico intercalam períodos que poderiam ser chamados de normalidade
com períodos de anormalidade. Ninguém mais do que eu sabia o que era a
luta para me manter na vida real até que a próxima crise de mania me
colocasse dentro de um hospício. Internada praticamente uma vez por ano,
meu maior medo era não retornar daquele espectro insano. Ao final da
entrevista, ele pergunta por que resolvi abordar aquele assunto. Respondo
que já fora hospitalizada e que era bipolar. Rolim não consegue disfarçar a
surpresa e diz, em tom de amizade, que, se eu precisasse de qualquer apoio,
ele estaria à disposição. Desesperada com a falta de trabalho, diversas
vezes tentei entrar em contato com ele, mas as tentativas foram em vão. De
qualquer forma, continuei admirando aquele homem, e a vida se encarregou
de mostrar outros caminhos. O mais incrível deles se materializou na luta
por minha sanidade, que indicou a maior vitória de todas ao me fazer
guerreira frente a um mundo tantas vezes débil e hipócrita.
8. Olhar a vida de frente
O Araketu
O Araketu
Quando toca
Deixa todo mundo
Pulando que nem pipoca.
Lá estava eu, 31 anos, surtada, em plena rua de Pelotas, dançando atrás de
um carro de som ao ritmo do axé numa tarde de Carnaval. Porta-estandarte
da própria dor, me perdi entre os carnavalescos como quem tentava esquecer
querendo se encontrar. De vestido curto de linho, equilibrada sobre um par
de sandálias de salto alto, requebrava solitária em meio à multidão. Meu
destino não era bem aquele, mas a música me envolveu e, por instantes,
minha mente já alterada ficou imersa naquele clima alegre e sensual da festa
da carne. Quando saí do êxtase, segui meu verdadeiro rumo, um tanto
contraditório: o retiro espiritual de uma igreja evangélica. Eu estava
morando com meus pais e eles não tinham a mínima ideia dos meus
descaminhos.
Deixei o Araketu para trás e fui para o bairro Fragata. Andei várias
quadras até chegar à igreja e, por incrível que pareça, fui bem recebida. Pelo
menos foi o que registrou minha visão deturpada de psicótica em pleno surto.
Os jovens ficariam alojados no salão da igreja durante todo o feriado de
Carnaval. Cheguei sem uma mala sequer, apenas com o vestido curto e as
sandálias de salto alto. Indumentária nada adequada, mas desconsiderei
essas evidências e continuei na minha vertigem. Acabaram me arranjando
trajes mais decentes, e assim permaneci alheia às diferenças num ambiente
que na verdade se mostraria bastante hostil. Lembro os cânticos que eu
acompanhava com uma desenvoltura que ia além do que os códigos do lugar
recomendavam. Eu cantava de forma entusiasmada e circulava entre os
jovens tratando-os com uma intimidade que só existia na minha cabeça.
Talvez por isso, e por outras coisas mais, o pastor tenha me indicado a porta
de saída da igreja como se escorraçasse um cão sarnento prestes a ameaçar
suas ovelhas. Inquieta e totalmente ligada, fui posta para a rua em plena
madrugada de Carnaval. Sem um tostão no bolso, fiquei vagando sem rumo
noite afora, até que no meu caminho surgiu um homem ou, melhor dizendo,
um filho da besta. Consciente do meu estado de demência, ele me conduziu
ao seu barraco de restos de madeira e me enclausurou num quarto minúsculo
repleto de imagens baratas de santos. Cheguei a ouvi-lo conversar com uma
mulher mais velha em outro cubículo, o que não o intimidou frente à
possibilidade de abusar da minha fraqueza. E foi assim que me conduziu
para baixo do tule que cobria sua cama e tirou minha calcinha. Por várias
vezes tentou me penetrar, mas me contraí com tanta força que suas tentativas
foram infrutíferas. Irritado, o pequeno e troncudo homem me guiou por entre
os barracos e, pela segunda vez numa mesma noite, me apontaram o caminho
frio e deserto da madrugada.
Entregue novamente à própria sorte, procurei um lugar onde pudesse
encontrar um pouco de aconchego. Encontrei um posto de gasolina aberto,
onde permaneci até o dia amanhecer. Eu me lembro de dar voltas em torno
de uma mesa, correndo atrás de um funcionário. Ele apenas sorria, sem
permitir que o tocasse. Chegou a me emprestar sua camisa de flanela para
que eu me protegesse do frio, mas jamais encostou em mim. Após tantos
demônios na longa madrugada, tive a sorte de encontrar esse anjo bom pelo
caminho. O cansaço tomou conta de meu corpo e minha mente já pesada
suplicava por clemência. Num lapso de sanidade, lembrei meu número de
telefone. De um orelhão próximo ao posto, a voz de minha mãe soou como
um bálsamo de alívio e esperança. Meu maior desejo era estar perto de
pessoas que me acolhessem sem preconceitos ou abusos e, assim, eu pudesse
descansar em paz. Segui de táxi para a casa de meus pais, que me
aguardavam juntamente com minha pequena sobrinha, que se agarrava ao
travesseiro, ainda sonolenta. Seguimos todos de táxi para o hospital
psiquiátrico. Todos aguardamos na sala de espera cujas únicas mobílias
eram bancos duros e gelados nos quais subi e cantei incessantemente, pois
me julgava um anjo encurralado. Mesmo estando em surto, estava evidente
que a liberdade acabava ali.
Mais um inevitável período de internação pela frente. O pastor que me
expulsou do retiro espiritual ligou para saber o que tinha ocorrido, mas não
ousou botar os pés na casa branca para me abençoar. Desde aquele retiro
entre anjos e abutres, nunca mais voltei a frequentar uma igreja. A iniciativa
de procurá-las como uma forma de aliviar o sofrimento tinha partido de mim.
Foi impressionante constatar como questões mal resolvidas podem nos
conduzir a caminhos equivocados e abalar uma vida.
O gatilho para tanta dor, que desencadeou minha busca angustiada pelo
consolo na religião, veio de onde eu menos esperava e num momento
bastante inoportuno. Após retornar da primeira ida ao Espírito Santo, meu
peito estava cheio de expectativas, e a autoconfiança começava a dar sinais
de existência após anos de uma leve, mas crônica, depressão. Tudo foi
abaixo quando Giulia, num acesso de fúria diante de meu psiquiatra Edson,
me acusou de ser totalmente irresponsável. Nessa época, morávamos juntas.
Meu pai já estava morando em Pelotas, e minha família decidiu que eu
ficaria morando com ela em Porto Alegre para concluir a faculdade.
Sobrecarregada no trabalho, minha tia começou a se estressar com minha
falta de colaboração nas tarefas domésticas. Ela tinha razão; o problema era
a falta de diálogo. Isso gerou um dos maiores desconfortos de minha vida,
pois a sensação era de que eu estava dividindo o teto com alguém que na
verdade me odiava e que só então eu percebia. Mas eu sabia que ela me
amava muito. Esse foi o estopim para que buscasse várias igrejas
pentecostais numa sede desenfreada por consolo e paz de espírito. Em
algumas encontrei certa dose de alívio. Procurei também acolhida na casa de
minha irmã mais nova, mas ela se negou a me receber, alegando
incompatibilidade de gênios. Então convivi por mais nove meses com minha
tia.
Nesse período, voltei ao Espírito Santo mais duas vezes, mas a cidade já
não tinha o mesmo brilho e a mesma alegria. Comecei a respirar mal, e as
faltas de ar de fundo emocional torturavam meu peito com uma dor que não
dava trégua, a ponto de muitas vezes eu ter a sensação de que a morte me
levaria. Foi nesse contexto que, após minha formatura, deixei a capital e fui
morar com meus pais em Pelotas. Apesar da separação de corpos, eles
continuavam morando sob o mesmo teto num pacto de conveniências em que
as brasas não adormeciam e carcomiam sua relação dia após dia.
Três anos de sofrimento ininterrupto se seguiram, e por mais que eu
tentasse não conseguia me libertar do rótulo de irresponsável e inadequada.
Remédios tarja preta como Lexotan, além dos livros de autoajuda, eram
meus companheiros de cabeceira, mas nada aliviava aquele sofrimento.
Apenas um singelo livro de bolso cristão fez a diferença: Livre para
perdoar. Após dias e noites de repetidas leituras, finalmente alcei um dos
voos mais significativos de minha vida, que só o perdão poderia
proporcionar. Antes de tudo, hoje entendo que a ignorância dos medianos
jamais permitirá que alcancem o raciocínio de uma bipolar, mas que o
contrário é possível. A grande aventura foi primeiro conhecer a mim mesma,
e depois buscar aceitar os outros e nunca alimentar a ilusão de ser
compreendida.
Não havia nada mais reconfortante do que o contato com a água em plena
chapada dos Guimarães. Minha viagem começou em Cuiabá, mais
especificamente na casa de meu amigo do jornalismo, o Zé. Foi ele quem me
proporcionou a impressionante vista do Véu da Noiva, em forma de uma
cachoeira alva, longa e tênue. Assim, passamos um dia inteiro em meio a
águas poderosas e a escaladas pelas encostas daquele lugar mágico. Doce de
caju e um conjuntinho de short e blusa cor-de-rosa foram os presentes que
recebi de sua mãe. Seu pai reclamava de minha demora no banheiro, onde eu
me trancava com minha nécessaire preta com produtos para as intrépidas
espinhas causadas pelo lítio. Esse era o início de minha conquista pela
liberdade numa aventura por cinco capitais brasileiras após minha primeira
internação. Agora com 23 anos, diante dessa manifestação de desequilíbrio
total de minha parte, meu pai relutou em permitir que eu me arriscasse
sozinha pelo país. Giulia morava conosco, e sugeriu que eu fosse, já que eu
precisava ser responsável por mim mesma. Com a carta de alforria da
família, me lancei rumo ao inesperado com a certeza de que surtar seria a
última alternativa.
Após Cuiabá, a próxima escala foi um encontro nacional de estudantes de
comunicação, em João Pessoa, na Paraíba. Fazendo jus à minha futura
profissão — e como comunicar era meu dom —, por várias vezes me
aventurei em diálogos inesperados nesta viagem que mais pareceria um teste
para a vida em liberdade. Ainda no avião, a preocupação por chegar à meia-
noite na capital paraibana era algo real. Comentei o fato com o senhor que
estava sentado ao meu lado. Após me ouvir em silêncio, ele pediu meu nome
completo e o número da minha identidade. Só então fiquei sabendo que tinha
uma alta patente no Exército e, assim, mesmo descendo numa escala anterior,
ele providenciou uma carona do aeroporto direto para a universidade da
Paraíba. Assustador foi enfrentar o breu da madrugada sozinha no banco
traseiro de um carro, em uma cidade desconhecida, com dois homens que eu
nunca vira antes sentados à minha frente. Eles obedeciam às ordens do
comandante, e eu, não estando num surto de mania, sabia que corria certo
risco, mas a bipolaridade faz com que o sentimento de estar em perigo
sempre tenha um fascínio.
Tudo correu bem e cheguei à universidade em plena madrugada, para a
surpresa de meus colegas que já estavam ali. Pouco recordo dos debates
sobre comunicação, mas lembro que eu e meus colegas da UFRGS éramos os
únicos que não fumavam maconha. Em meio à fumaceira geral, nossa sala era
um raro oásis de ar puro. Também guardo na memória a imagem de um
homem que se despiu e subiu numa mesa do refeitório. É claro que a
manifestação não levou a nada, mas pelo menos deve ter satisfeito o ego do
jovem que estava exibindo seus atributos. Certa noite, caminhávamos pela
beira-mar quando, de repente, ouvimos o latido furioso de um cão atrás de
um muro. De uma hora para outra, o portão se abriu e o animal ficou cara a
cara com a gente. Todos saíram correndo, menos eu. Parada, encarei o
grande cachorro que também olhava para mim. Para surpresa de todos, ele
saiu tranquilamente para a rua sem agredir ninguém. Havia muito tempo eu
sabia que demonstrar medo aos nossos algozes era incentivar a carnificina.
E, assim, o cão se foi sereno enquanto eu dava provas da minha pretensa
psicologia animal aos meus colegas surpresos.
Numa manhã de sol, fomos à Ponta do Seixas, ponto mais oriental do
Brasil e da América Continental. Estar ali suscitou em mim um sentimento de
pequenez diante de todo um planeta. Essa sensação foi positiva, uma vez que
me colocou no meu devido lugar: eu era um ser humano comum, e não uma
bipolar superpoderosa. Pensar assim foi fundamental para enfrentar a
próxima escala que se mostraria repleta de tentações. Cheguei a Recife com
um destino certo: Diretório Central dos Estudantes, situado na rua do
Hospício. O nome era um mau agouro ou ironia do destino. Desembarquei no
aeroporto em pleno horário do rush, e a perspectiva de enfrentar ônibus
lotados fez com que eu deixasse minha mala, de proporções consideráveis,
no guarda-volumes. Fiquei apenas com uma pequena sacola de plástico
contendo o básico para poucos dias, mas as filas imensas e desorganizadas
fizeram com que eu desistisse de pegar um ônibus. Sem saber o que fazer,
fiquei parada, um pouco distante daquela confusão toda. De repente chegou
uma moça, e eu, falante que sou, comecei a puxar papo e a lhe expor todo o
meu drama. Como numa providência divina, ela me disse que seu marido iria
buscá-la ali e que me dariam uma carona. Era incrível, e eu só podia pensar
que o universo conspirava a meu favor.
Para minha surpresa, o companheiro dela surgiu em uma pequena moto.
Mais surreal ainda foi cabermos os três no veículo em direção à rua do
Hospício. Chegamos ao DCE, um prédio frequentado por estudantes que,
segundo o casal que me levara até ali, pareciam suspeitos. Eles me deixaram
com um olhar de preocupação, mas lhes assegurei que tudo ficaria bem. Na
verdade, eu não tinha a mínima ideia do que me aguardava, mas não havia
como voltar atrás.
Descobri que teria de dormir no parquete duro, colchões nem pensar. O
máximo que havia era um pedaço de esponja disputado quase à tapa. No
banheiro coletivo só contávamos com um cano, cuja água era compartilhada
por um bando de mulheres peladas. Era véspera de Carnaval e o clima era
de aventura. Numa noite me dirigi a Olinda com um grupo de estudantes
cujos rostos não me recordo, mas que, com certeza, não eram de nenhuma
igreja evangélica. A festa da carne atravessou meu caminho sem me privar
da liberdade. Bonecos gigantes confeccionados pela população local, o
encontro das quatro esquinas famosas, os Quatro Cantos, o bar do cantor
Alceu Valença e a alegria de uma multidão espremida entre os prédios
históricos. Pulei Carnaval cercada por absolutos estranhos. Confesso que
nunca estive tão bem acompanhada. Foi lá que provei uma bebida energética
caseira chamada “pau do índio” e cheirei loló pela primeira — e única —
vez na vida. Conversei com várias pessoas das quais também não recordo o
rosto e muito menos o nome. Tudo transcorreu bem, e no dia seguinte segui
numa Kombi velha com outro grupo em direção a uma praia deserta cheia de
coqueiros maravilhosos e águas límpidas.
Depois de um Carnaval maravilhoso em Olinda, meu próximo destino foi
Maceió. Dessa vez não deixei minha mala no aeroporto, uma vez que em
Recife me roubaram alguns pertences que viriam a fazer falta. No aeroporto,
peguei uma carona até a praia de Ponta Verde com dois rapazes que conheci
no desembarque. Numa singela pousada, consegui uma cama quebrada onde
passar a noite. Deixei minha mala no quarto e fui para a rua, rezando para
que ela não fosse violada. Circulei sozinha de biquíni pela praia no dia
ensolarado. À tardinha, saí novamente e reencontrei os dois rapazes com os
quais dividi a carona, mas eles não me deram muita atenção. Comparado ao
agito de Recife, achei Maceió entediante. Só passei uma noite lá. Fiz a mala,
peguei uma carona até o aeroporto e parti em direção a Salvador com
dinheiro apenas para um cartão telefônico. Minha irmã estava na cidade, na
casa de uma amiga, e torci para que ela atendesse o telefone. Socorrida mais
uma vez pela providência divina, minha irmã me acolheu e me deu dinheiro
para voltar a Porto Alegre. Antes, dei um passeio pela praia de Itapuã para
sentir a brisa do mar.
Retornar sã e equilibrada foi uma façanha incrível. Todos os dias da
viagem, ligava para os meus pais para dizer como estava. A viagem deu
certo. Mostrei a eles que tinha condições de me aventurar por outros lugares.
Aquilo foi um estímulo que fez com que eu acreditasse em mim mesma e
renascesse de depressões e manias sempre que necessário, mesmo que as
evidências indicassem o contrário. Assim aprendi o valor das palavras
“confiança” e “fé”, e como elas fazem diferença na vida.
9. Provocar a vida
O ano era 1991, e a guerra no Golfo Pérsico seguia com força total. Pouco
mais de um ano depois da queda do muro de Berlim, o receio de uma guerra
mundial habitava o imaginário de várias pessoas. Eu me preocupava com
minha irmã mais velha, uma pessoa que acreditava em discos voadores, que
temia a bomba atômica, e que eu julgava tão frágil. Na ocasião, ela
trabalhava no Rio de Janeiro e morava sozinha. O conflito no Oriente Médio
me impressionou a tal ponto que desencadeou um surto de mania que me fez
sair do Rio Grande do Sul para encontrá-la. Minha família pareceu não
perceber os indícios do distúrbio de humor se apoderando de minha mente, e
embarquei sozinha no aeroporto Salgado Filho numa viagem que me
conduziu a mais um delírio insano. Tudo começou no próprio avião, quando
percebi a presença de um jovem loiro e bonito. Ele viajava a negócios, e
conversamos de forma descontraída até aterrissarmos no Galeão. A
preocupação com minha irmã foi se dissipando e acabei me embrenhando
por caminhos inusitados.
Ainda no aeroporto, eu e ele esperávamos um táxi quando, de repente,
surgiu uma moça alemã perguntando como podia fazer para chegar ao centro
da cidade. Já mergulhada no surto, achei tudo aquilo mágico e convidei a
turista para dividir o táxi conosco. Apesar do meu inglês mediano,
conseguimos nos entender. O homem permaneceu calado, pois não entendia o
idioma. Eu me sentia nas nuvens. Conversar com uma pessoa de outro país
sempre me fascinou. O distúrbio bipolar facilita ainda mais o diálogo, pois
ignora qualquer amarra para uma mente que se expande numa entrega em que
receios e constrangimentos não existem. Nesse ponto, eu havia me esquecido
completamente de minha irmã. Acabei passando as noites no quarto de hotel
dele e, durante o dia, passeava pelo Rio com a alemã. Era como se
conhecesse o território havia muito tempo. Incrível como tudo se encaixava e
assim passeávamos por pontos turísticos, subíamos o Cristo Redentor e
andávamos de bondinho como algo mais que natural para mim. Talvez, na
verdade, a alemã me conduzisse e eu, totalmente alienada, nem percebesse.
Eu me lembro do repuxo muito forte na praia de Copacabana. Não entrei no
mar, mas ela, professora de educação física na Alemanha, se arriscou a dar
várias braçadas, enquanto eu caminhava pela orla numa tarde nublada e
chuvosa. Eram passeios agradáveis, nos quais eu tinha a oportunidade de
treinar meu inglês e de conhecer alguém de uma cultura diferente. O mesmo
não acontecia quando retornava ao hotel. Meu desejo era simplesmente
dormir ao lado daquele homem, mas, é claro, meu comportamento insinuante
indicava o contrário. Mesmo enfrentando aquela situação constrangedora,
não entrei em contato com minha irmã.
A essa altura, a guerra no Golfo já tinha sido apagada de minha memória e
os temores com relação a ela eram reminiscências de um passado distante.
Minha irmã chegou a ir ao hotel me procurar. Batera à porta, mas, do outro
lado do olho mágico, fiquei observando sua imagem distorcida. Com a mente
dominada pelo surto de mania, ignorei seu chamado. Só a procurei quando a
situação ficou insustentável e aquele homem deixou minha mochila na
portaria do hotel e proibiu minha entrada. O homem bonito do avião me
colocou dentro de um táxi e pagou a corrida até o apartamento de minha
irmã. Ela me recebeu bem, e à noite arrumou uma cama no chão do pequeno
apartamento para nós duas e seu namorado.
Com a cabeça já desnorteada, acabei dando uns beijos no braço dele.
Minha irmã deu um salto, perguntando o que estava acontecendo. Eu não
tinha onde me enfiar. Na verdade, nem eu mesma tinha a exata noção de por
que agira daquela forma. Num surto, nada faz muito sentido. O tempo custa a
passar. Na primeira hora do dia seguinte, fui conduzida ao aeroporto pelos
dois. Me lembro de ela comentar sobre minha agenda da Anistia
Internacional dizendo que a iniciativa da ONG era muito interessante. Em
minha alucinação, pensei que seria melhor ainda se todas as pessoas,
inclusive ela, realmente fizessem algo pelos direitos humanos. Fui colocada
num avião em direção ao lugar de onde nunca devia ter saído. A guerra do
Golfo se estendeu por mais algumas semanas. Não ajudei minha irmã; pelo
contrário, infernizei-a, fazendo-a inclusive faltar ao trabalho. Aprendi que
depois de depenar uma galinha soltando suas penas ao vento é praticamente
impossível recuperá-las. Naquele momento, percebi que o perdão não está
ao alcance de todos e que perder a confiança de minha irmã foi uma sequela
que eu talvez tivesse de carregar pela vida inteira. Mas tempos depois o
destino me deu uma nova chance.
Sua face se transformara numa expressão raivosa e seu dedo em riste parecia
me culpar por tudo aquilo. Ele vociferava em altos brados discursos
metafísicos sobre o spin do átomo com a boca cheia de comida, distribuindo
amostras do cardápio para todos os lados. Ali estava eu, no abarrotado
restaurante universitário em pleno horário de almoço, enquanto Cláudio
enlouquecia numa física apocalíptica e aparentemente contava com minha
cumplicidade. Nós nos conhecemos no grupo de lítio por ocasião da minha
primeira internação. O destino nos colocou na mesma faculdade, e foi assim
que testemunhei seu surto com um misto de medo e vergonha.
Cláudio era um homem alto, forte, de pele morena e expressão decidida.
Sua mania estava nas alturas, a ponto de perseguir as colegas pelos
corredores da faculdade. Por saber o que se passava com ele e, ao mesmo
tempo, temendo por minha reputação, quanto mais ele aprontava, mais
desconfortável eu me sentia. Todos na faculdade mantinham distância, como
se lidassem com um ser estranho. E ele não deixava de ser, uma vez que
estava literalmente noutra dimensão. Ele às vezes vinha em minha direção,
como que me testando. Mesmo temendo me expor, num ato mais que
desesperado, lhe dei alguns comprimidos de lítio, pois àquela altura era
certo que o retrocesso daquela loucura era algo bem mais complexo. Na
realidade, não estava certa se ele me reconhecia no seu delírio, mas o fato
de conhecer sua identidade e doença me corroía por dentro. Voltei para casa
abalada com tudo aquilo, e me encolhi na cama em posição fetal, buscando
aconchego e proteção no quarto vazio. Não comentei o ocorrido com meus
familiares. Aquele era um problema que só a mim cabia solucionar. A
vontade era de sumir, de voltar ao ventre materno como numa forma de
exorcismo do transtorno bipolar. O medo também crescia diante da
possibilidade de eu voltar a mergulhar num surto de proporções
catastróficas. Além disso, havia a vergonha pela exposição diante de colegas
da faculdade de jornalismo que poderiam vir a me julgar.
Chorei e me aninhei em forma de concha num misto de lamento e
responsabilidade, por saber o que estava acontecendo sem fazer nada. No
dia seguinte, fiquei sabendo que Cláudio tinha dormido na escadaria de
acesso à faculdade. Aquilo já estava indo longe demais. Deixando qualquer
pudor de lado, procurei a diretora e expliquei o que estava acontecendo com
ele. Naquele momento, confessei que também era bipolar e sugeri a
internação como o melhor a ser feito. Era assim que minha família lidava
comigo, e eu mesma achava que aquela era a solução mais acertada dentro
da minha experiência de vida. O camburão da polícia foi pegá-lo. Ele tentou
resistir, mas acabou sendo internado. Tempos depois ele reapareceu na
faculdade, mas estava só de visita. O fato de me expor e ficar rotulada para
sempre não era algo que me preocupasse tanto até então. Outros surtos
viriam depois disso. Apesar de não ter uma imagem imaculada, aprendi que
a capacidade de se reerguer é o grande trunfo de um bipolar e, no meu caso,
essa foi a maior prova de amor por mim mesma.
O sol penetrava ainda tímido por entre as roturas de uma grossa cortina
azul-marinho, iluminando a superfície da cama no pequeno quarto. Imersos
na tênue penumbra, descansavam os corpos nus de um homem e uma mulher
entrelaçados após um momento de intimidade consagrado pelo amor. Minha
mão acariciou seu peito num gesto tímido ao confessar pela primeira vez,
num sussurro, as crises e internações psiquiátricas por que passei. Com uma
história marcada por traumas na infância e revolta na adolescência, este
homem de alma nobre sorriu e disse que estava tudo bem. Seu afeto
incondicional entrou como um raio de luz, e agora eu sabia que já não estava
só. Foi assim que um novo horizonte surgiu onde imperava a fragilidade e a
culpa. Fragilidade por não ter sabido lidar com a separação de corpos de
meus pais. Culpa por ter sido a única a tombar enquanto os outros membros
de minha família seguiam suas vidas sem olhar para trás. Se houve um tempo
em que me permiti abstrair totalmente da realidade, hoje esta mente antes
insana se mostra minha mais fiel aliada, se transformando num elmo sagrado
na conquista do equilíbrio em busca do simples desejo de viver a vida real.
Sigo, contudo, sem jamais esquecer a solitária magia de me entregar aos
altos e baixos de um mar de insanidade e risco. Este mar me trouxe para
onde estou. Suas inquietas ondas me jogaram na areia da praia do
entendimento. Cresci. Só fica a certeza de saber que, de onde vim, muitos
outros ainda virão.
Não sei em que exato momento cruzei a ponte que me conduziu à sanidade,
mas posso dizer que entendo o processo que me trouxe até aqui. Uma
filosofia vinda do oriente me fez refletir sobre mim e sobre como interagir
com as pessoas que cruzaram meu caminho. Em vez de raiva e decepção, o
discernimento e a esperança de que seria possível sobreviver aos meus
limites nesta relação entre mim e o mundo. Estou sem internações desde
2005, quando encontrei perdidos numa calçada os trinta reais que me
possibilitaram comprar A arte de lidar com a raiva, do Dalai Lama. Foi
nesse momento que começou meu aprendizado de que é mais importante
observar as batalhas do que nelas intervir. Aprendendo a me amar, me tornei
livre. Aprendendo a entender, me libertei da tirania dos infelizes.
Aprendendo a perdoar, libertei a mim mesma. Então, percebi que o apego ao
sofrimento de meu pai após a separação de corpos gerou a doença mental
que me fustigou por anos a fio.
Apesar da importância dos ensinamentos budistas, nunca consegui deixar
de acreditar em Deus e num Jesus amoroso que me acolhesse e me trouxesse
paz em momentos difíceis. Assim, fui deixando por terra ilusões de um
mundo irreal e mágico. O melhor lugar é aqui e agora. É neste instante que eu
posso viver, amar e ser eu mesma em todo o meu esplendor. Já não busco um
mundo ideal, busco um mundo real e melhor a cada dia. Meu aprendizado
começou ao trabalhar como faxineira, doméstica, massagista e hoje
funcionária pública. Deixei para trás meus tempos de Joana d’Arc e encarei
a vida com toda sua simplicidade e beleza. Ainda penso em fazer um
mestrado em antropologia, já que a condição humana me fascina tanto. Em
2006, aos 39 anos, um ano após comprar o livro do Dalai Lama, encontrei
meu companheiro, meu anjo da guarda. Sua bondade e simplicidade
cruzaram meu caminho com decisão e insistência. Disse ter se encantado por
mim à primeira vista. Eu estava ali, reclusa, ainda com certo receio das
pessoas e com medo de mim mesma, com medo de uma mente insana que me
arrancava do mundo sem pedir licença. Ele me aconchegou em seus braços e
me aceitou como eu era, de uma forma que ninguém havia feito. Ele enxergou
no fundo de meu coração e eu fiz o mesmo em relação a ele. Dois seres
rebeldes, mas dóceis; frágeis, mas fortes. Crescemos juntos numa espécie de
pacto silencioso. Vencemos obstáculos e sorrimos mesmo tendo tão pouco
diante do conceito de sucesso dos materialistas e infelizes donos da razão.
Cessaram as internações.
Fábio me abraça enquanto andamos à noite pelas ruas de areia da praia do
Laranjal. Dos fones de ouvido que dividimos vêm as vozes de David Bowie
e Prince. Presentes dele para mim. De repente, toca uma música dos anos
1980, mágica. Penso em como seria fácil surtar vendo aquelas estrelas, as
árvores e o imenso céu. Mas ele me segura pela cintura, é a minha âncora, o
meu anjo que me quer aqui. Nunca ninguém me quis tão perto como ele,
nunca desejei tanto ficar.
Epílogo
Em 2016, depois de ter terminado este livro, fui hospitalizada outra vez.
Precisei trocar de medicação porque o lítio estava me intoxicando. Hoje
tomo Depakene, que é um estabilizador de humor, Riss, que é um
antipsicótico, e Akineton, para evitar o tremor nas mãos. Largar um remédio
que você toma há tantos anos não é nada fácil. Meu humor ficou instável e
acabei discutindo com uma colega no trabalho. Ter aquele acesso de raiva e
impaciência me desestabilizou, foi contra tudo o que eu buscava. Foi um
sofrimento muito grande, e para mim foi como se as coisas perdessem o
encanto.
Tudo em que eu acreditava se fragilizou, até mesmo o budismo, que eu
vinha seguindo nos últimos anos. Para falar a verdade, nunca fui uma budista
de carteirinha. Pegava o que me interessava e não deixava de acreditar em
Deus, o que poderia parecer meio contraditório. Certa vez, fui a uma
palestra de um lama num hotel e perguntei como era ser budista num mundo
competitivo e consumista. Ele disse para eu meditar na frente de uma vitrine.
As pessoas presentes riram, mas eu não. De qualquer forma, continuei indo
às reuniões de um grupo budista de Pelotas, pois buscava meu equilíbrio
para assim ajudar outras pessoas através da paciência e da compaixão, já
que tinha sido expulsa de uma igreja evangélica num retiro de Carnaval.
Apesar dos meus surtos absurdos, eu tinha o sonho de ajudar outras pessoas
buscando a renovação da minha mente e o amor. Continuei persistindo nessa
ideia. Aspirava ao bem das pessoas e, para isso, tentava buscar uma vida
generosa e sincera, embora nem sempre conseguisse. De repente, após minha
última crise, tudo mudou.
Durante todo o processo de internação, Fábio continuou ao meu lado, e
isso fez uma grande diferença, mas me decepcionei muito comigo mesma.
Internada, encontrei consolo no Novo Testamento, que pedi a Fábio que
levasse para mim. Junto com ele vinha um desenho do rosto de Jesus dizendo
que sempre estaria ao meu lado. A partir daí me afastei do budismo e só
ficou um sentimento de impotência e tristeza. No hospital, havia uma
funcionária evangélica que, de tempos em tempos, falava comigo. Um dia
conversamos sobre Deus e Jesus. Seus olhos brilhavam enquanto ela falava.
Queria que os meus brilhassem daquele jeito.
Minha colega de quarto se chamava Cristina. Era uma senhora miúda e
tratava a todos com muita educação. Ela morava no hospital, fora colocada
ali pela família. Tinha hábitos muito regrados, como escrever em silêncio em
seus cadernos, lavar suas roupas e dobrá-las perfeitamente. Lia a Bíblia
todos os dias e rezava ajoelhada ao lado da cama. Dizia que estava ali
injustamente por se importar demais com os filhos, que consideravam seu
afeto uma forma de perseguição. Um dia estávamos conversando e lhe disse
que eu havia escrito um livro sobre bipolaridade. Então falei que o bipolar é
uma pessoa sensível, que se afeta bastante e que por isso muitas vezes é
incompreendido. Contei também que, nos tempos de estudante de jornalismo,
trabalhei como recenseadora do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística; que, atuando numa zona perto do hospital Moinhos de Vento, em
Porto Alegre, conheci uma numeróloga de quarenta e poucos anos que me
disse que um dia eu escreveria um livro que ajudaria muitas pessoas. Ela me
escutou calada. Pediu o nome do livro e disse que iria ler. Espero que não se
assuste com as encrencas em que me envolvi e que consiga entender os
conflitos de alguém que se atrapalhou em meio a um mundo tão confuso e
muitas vezes pouco acolhedor.
Pelotas, agosto de 2016
LUÍSA PLANELLA - PRODUÇÃO FOTOGRÁFICA