Repensando A Funcionalidade Do Racismo para o Capitalismo Contemporaneoo No Brasil
Repensando A Funcionalidade Do Racismo para o Capitalismo Contemporaneoo No Brasil
Repensando A Funcionalidade Do Racismo para o Capitalismo Contemporaneoo No Brasil
RESUMO
INTRODUÇÃO
É fato que vivemos uma época em que a igualdade jurídico-formal não tem
sido capaz de diminuir/extirpar as desigualdades sociais no Brasil, em particular.
Embora a Constituição (1988) em vigência garanta que “todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza” (artigo 5º), esta premissa não foi suficiente
para efetivar direitos de cidadania plena para as mulheres, para os negros e para os
grupos indígenas, por exemplo. Entraves institucionais, econômicos e valorativos
culturais vêm obstaculizando, na prática, o acesso a bens e serviços por estes
grupos depreciados/desprestigiados socialmente, embora nos discursos e na teoria
estejamos todos protegidos pelo “manto democrático”2.
Além disso, historicamente, as políticas de cunho universalista não foram
capazes de dirimir as consequências advindas da intolerância nem de garantir
socialmente a igualdade de oportunidades para os grupos vítimas de racismo,
sexismo3 e homofobia, dentre outros. Assim, o princípio constitucional da
igualdade, que tem estruturado a democracia brasileira, vem sendo alvo de
questionamentos e a noção de equidade4 vem ganhando espaço em muitos
debates.
Ocorre que, ao longo das últimas décadas no Brasil, ao se discutir os
“direitos das minorias”, existe uma tendência em parte significativa da academia,
em remeter-se quase automaticamente à “questão do negro”. Entretanto, segundo
o resultado do último censo do IBGE, a população negra brasileira representa
50,7% do total – ou seja, o contingente populacional de pretos e pardos atingiu
a maioria numérica (Cf. IBGE, 2011). Porém, o acesso dessa população a
bens e serviços públicos e/ou privados permanece inversamente proporcional.
Temos, como exemplo, os dados que se referem à educação formal: do total de
analfabetos no país, 24,5% (na faixa etária de 40 anos), é constituído por negros
e 10,2% por brancos; acima de 25 anos de idade, 17,9% de negros e 7,3% de
brancos (PAIXÃO et alli, 2011:207). Essas assimetrias também aparecem no
mercado de trabalho, no qual o valor médio de renda mensal dos negros é de R$
510,00 e dos brancos R$ 800,005. Portanto, apesar de não se constituir numa
minoria numérica, não é segredo que a população negra brasileira é minoria na
representatividade política, social etc.
Diversas pesquisas realizadas por Paixão e outros (2011), IBGE (2011;
2011a) e DIEESE (2011) também vêm demonstrando como as desigualdades
sociais operam e se perpetuam na realidade brasileira em relação à população
negra, em particular. Assim, a cor da pele atua, ao longo dos tempos, como um
“critério objetivo” para definir quais postos podem e devem ser ocupados no
mercado de trabalho brasileiro, e por quem.
A memória acerca da escravidão não foi totalmente reparada com
a Abolição em 1888 e, até hoje, seus reflexos podem ser sentidos e vistos no
cotidiano brasileiro, particularmente pelas classes subalternas. Tomemos como
exemplo a região metropolitana de Salvador, constituída majoritariamente pela
população negra. Conforme dados do DIEESE (2011:5), na Pesquisa de Emprego
e Desemprego naquela região,
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os espaços ocupacionais considerados mais vulneráveis tem
importância maior na estrutura ocupacional dos negros. A
maior presença nas posições de trabalho do emprego do-
méstico, do assalariamento no setor privado sem carteira
assinada e entre os autônomos dos negros em relação aos
não-negros demonstra a forma desigual como os grupos de
raça ou cor e sexo se inserem no mundo do trabalho metro-
politano de Salvador.
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Ocorre que as lutas pela superação da discriminação contra mulheres e/
ou população negra e/ou indígena (dentre outras) muitas vezes são vistas pela
esquerda brasileira como demandas superáveis através da emancipação humana
em geral. Ou seja, argumentam que quando a classe explorada finalmente tornar-
se detentora dos meios de produção e, enquanto maioria, determinar os rumos
da sociedade, não mais se submetendo aos ditames do capital, essas “questões
menores”, esses temas considerados “periféricos” também serão superados.
Não restam dúvidas que a dinâmica das relações de produção na sociedade
brasileira tem sofrido alterações ao longo dos anos, particularmente após a
Abolição da Escravatura (1888). Os fenômenos do racismo e da discriminação
racial6, por sua vez, também vêm apresentando configurações e manifestações
diferenciadas, conforme o momento histórico do país. Ressaltamos, porém, que,
seria impossível discutir todas as nuances das relações étnico-raciais assimétricas
no cotidiano brasileiro, devido à transversalidade do racismo nas relações sociais
– que se manifesta de forma “cordial”, passando pelo racismo institucional, até
mostrar-se totalmente por meio do racismo explícito, o qual, mesmo sendo
denunciado nos Tribunais de Justiça brasileiros, não vem resultando nas sanções
previstas em lei7.
Segundo Gomes (2001:20), esta situação se justificaria no fato de que o
“aspecto cultural, psicológico (...) faz com que certas práticas discriminatórias
ingressem no imaginário coletivo, ora tornando-se banais, e portanto indignas
de atenção salvo por aqueles que dela são vítimas, ora se dissimulando através de
procedimentos corriqueiros, aparentemente protegidos pelo Direito”.
Também partimos do princípio que, na luta pela superação do capitalismo
também existem batalhas, perpassadas por demandas de grupos específicos, como
dos povos indígenas, dos negros, dos deficientes, das mulheres, dentre outros. Não
restam dúvidas de que essas demandas têm suas especificidades, mas não podem
ser consideradas “menores” frente à luta do trabalho contra o capital, sob pena de
causar: por um lado, o empobrecimento do debate; e, por outro, o esvaziamento
da motivação destes segmentos, que compõem a classe trabalhadora, e também
são marginalizados socialmente, para a luta em torno da superação da exploração
do trabalho pelo capital.
Mas, por que fazer esse debate no Serviço Social, especialmente no que tange
ao Brasil? Em primeiro lugar, porque não é possível discutir questões absolutamente
contemporâneas, como reconhecimento ou reparação por direitos violados, por
exemplo, sem observarmos que essas temáticas são perpassadas pela análise de
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relações de poder, que implica também disputa de hegemonia. Inclusive, Fernandes
(1989:61) analisa que o negro tem especificidades na luta de classes, por ser proletário
e também por “sofrer discriminações e violências. (...) Todos os trabalhadores
possuem as mesmas exigências diante do capital. Todavia, há um acréscimo: existem
trabalhadores que possuem exigências diferenciais, e é imperativo que encontrem
espaço dentro das reivindicações de classe e das lutas de classes”.
Neste sentido, observamos que o aporte teórico e de análise acumulado
pelo Serviço Social brasileiro, particularmente nas últimas décadas, pode
contribuir de forma significativa para ampliar o alcance dessas discussões, ao
debruçar-se sobre elementos constitutivos da formação profissional dos assistentes
sociais, atentando para os sujeitos sociais aos quais é direcionada a nossa prática
profissional cotidiana.
Dados trazidos pelo “Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil;
2007-2008” (PAIXÃO; CARVANO) demonstram que, no Brasil, a “pobreza”, a
miserabilidade e o analfabetismo atingem majoritariamente a população negra.
Em outras palavras, esse contingente populacional, o qual é mais duramente
atingido pelas refrações da “questão social”,8 tem se constituído como público-
alvo de intervenção profissional dos assistentes sociais, mesmo que teoricamente
muitas vezes não seja “recortado” como tal9.
1. Cabe ressaltar que o Código de Ética Profissional dos Assistentes
Sociais em vigência expressa o empenho na “eliminação de todas as formas de
preconceito”, estando aí incluído o preconceito racial. Trata-se de um princípio
ético para a categoria e, poderíamos dizer, também político, ultrapassando a
dimensão técnico-profissional, mas sem perder de vista as mediações sociais que
perpassam esses processos, bem como a perspectiva de interpretação da realidade
social pela perspectiva da totalidade.
2. As Diretrizes Curriculares, por sua vez, segundo o Caderno
ABESS nº 7, (1997:62) expressam como princípios a serem buscados na formação
profissional os seguintes:
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respostas profissionais que potenciem o enfrentamento da
questão social, considerando as novas articulações entre o
público e o privado; 5. Exercício profissional cumprindo as
competências e atribuições previstas na legislação profissio-
nal em vigor. Grifo nosso.
Assim, estamos atentos ao fato de que uma mudança na cultura, por si só,
não transforma a estrutura em que se assenta todo um sistema social pautado por
desigualdades sociais e econômicas.
14 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
(...) A luta por direitos é uma questão política, ainda ne-
cessária, que pode ser um dos momentos da luta. Porém,
não pode ser confundida com o objetivo final (e inicial) -
o de emancipação humana em geral. Por esta razão, faz-se
necessário “reeducar o olhar”, atentando para o fato de que
as segregações social e racial se entrecruzam na dinâmica
cotidiana da sociedade brasileira. O processo de formação
em Serviço Social não pode omitir-se em discutir essas
“questões”, considerando-as “menores”, uma vez que elas
são constitutivas dos sujeitos. Afinal, na prática profissio-
nal cotidiana, nos relacionamos com sujeitos concretos, que
apresentam demandas específicas – dentro de um conjunto
multifacetado de determinantes que expressam a “questão
social”. (MENEZES; JANOÁRIO, 2010:07).
Temos como premissa que a “práxis” social pode ser alicerçada em novas
bases, construindo uma nova sociabilidade ou se caracterizar numa reorganização
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e até evolução nos conceitos e formas de agir socialmente (renovando o antigo).
Decidir qual caminho seguir, pode ser uma escolha individual ou coletiva. Porém,
não isenta nenhum sujeito social das consequências advindas desse processo.
Por esta razão, na presente pesquisa de tese, iremos destacar as relações
étnico-raciais no Brasil contemporâneo como nosso tema de análise. Um tema que
é complexo, intenso e que, necessariamente, remete a uma época11 considerada
por alguns como uma “passagem” constrangedora da história nacional e que,
portanto, deveria ser esquecida – um argumento do qual discordamos totalmente,
pois ainda hoje seus resquícios permanecem e se fortalecem.
Como nosso objeto, intentamos investigar qual a funcionalidade do racismo
na estrutura de exploração capitalista do Brasil contemporâneo. Questionamos
também se apenas o capitalista se beneficiaria do racismo existente no país (qual
a utilidade do racismo no Brasil e para quem?). Neste intuito, utilizaremos a
seguinte compreensão de racismo para nortear nossas primeiras aproximações de
análise:
RESGATANDO A HISTÓRIA
16 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
política de Estado. A utilização da mão de obra, trazida compulsoriamente do
continente africano, veio suprir a carência de força de trabalho nas grandes
lavouras de monocultura da colônia, a qual, por sua vez, abastecia o sistema
mercantilista com açúcar, café e algodão.
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A escravidão era vista como natural e necessária para o desenvolvimento
e enriquecimento da colônia. Apesar da vasta extensão territorial (e talvez
também por isso), a utilização de mão de obra africana não era questionada –
pelo contrário, uma vez que o tráfico era muito lucrativo. A Igreja Católica,
desde o início, levantou-se contra a escravização indígena, mas não questionou
a legitimidade da escravização de africanos – era inclusive proprietária de várias
“peças”. Gomes (2008) até mesmo ressalta que a elite colonial prosperou bastante
com a escravidão, sendo a que mais lucrou com o tráfico. Assim, em mais de
300 anos, foram trazidos ao país, para serem escravizados, cerca de 4 milhões de
africanos ( HERINGER, 2002).
Por outro lado, o tráfico sistemático de negros africanos para as Américas,
havia desabastecido de mão de obra as colônias do Império Britânico no continente
africano. Há que se destacar, no entanto, que o capitalismo inglês beneficiou-se
diretamente do regime escravocrata brasileiro, pois era o destinatário de matérias-
primas produzidas aqui.
No período compreendido entre 1873 e 1885, o capitalismo enfrentou
uma crise causada pelo excesso de produção e falta de compradores. Ocorre
que o regime escravocrata brasileiro “representava um obstáculo à expansão da
racionalidade indispensável à aceleração da produção de lucro. (…) É com a
separação completa entre trabalhador e os meios de produção que se estabelece
uma condição básica à entrada da economia nacional no ciclo da industrialização”
(IANNI, 2004:29-30).
A base judiciária no Brasil Império também não dava garantias adequadas a
empreendimentos de grupos mercantis. Isto porque “era apropriada a um regime
dominado por plantadores escravistas” (GORENDER, 2004:20).
Assim, historicamente, podemos dizer que o fim da escravidão no Brasil
foi resultante de três fatores interligados: as resistências e lutas dos negros pela
liberdade; a pressão britânica por novos consumidores de seus produtos e a
própria lógica do capitalismo.
A Inglaterra precisava ampliar seu mercado consumidor para escoar suas
manufaturas, e pressionava o Brasil a coibir o tráfico de escravos – a própria Lei
Eusébio de Queiroz foi resultado dessa pressão. Esta proibição do tráfico de africanos
escravizados (1850) trouxe um impulso para a industrialização do país, já que boa
parte dos capitais sobrantes passou a ser investido para equipar e desenvolver as
cidades. Por outro lado, a complexificação das relações de produção no país com
a expansão das exportações, principalmente, de café, também gerava divisas para
serem investidas no país. Assim, o processo de crescente industrialização trouxe
18 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
a reboque uma lógica que só comportava a existência de trabalhadores livres –
que se comprometiam a vender “livremente” sua força de trabalho no mercado,
pela via do contrato. Nas palavras de Ianni (2004:30), “impôs-se a humanização
do escravo, isto é, sua libertação. O percurso entre o escravo e o cidadão será
ininteligível se não passar pela mercantilização da força de trabalho”.
Os escravizados se constituíam em meio de produção. Eram também um
investimento caro e arriscado, pois eram passíveis de fugas e morte precoce (por
exaustão, doenças, maus tratos, homicídio ou suicídio) – não dando chance
aos escravagistas de recuperarem os valores investidos na sua aquisição. Por sua
condição, os escravizados não tinham salários e, portanto, não consumiam.
Empregar trabalhadores assalariados era mais barato (pois não teria gastos com
alimentação), a mão de obra excedente poderia ser dispensada ao final da colheita,
além da possibilidade de se economizar nos gastos com vigilância.
Ademais, nenhuma das revoltas ocorridas no país no período escravocrata,
mesmo aquelas vinculadas aos ideais da Revolução Francesa12, tinha como intento
a abolição da escravidão no país (por exemplo, a Inconfidência Mineira).
Muitos historiadores também apresentam leis promulgadas no período
escravocrata, visando ratificar uma pretensa cordialidade da escravidão no país
e defender a existência de possíveis “direitos sociais” para os escravizados ou
alforriados, naquele período.
No caso dos escravos, por exemplo, o fato de, em casos pontuais, terem
recebido um tratamento mais “humanizado” por parte de seus proprietários,
em nada alterou sua condição social de não ser proprietário de si próprio e de
sua força de trabalho. No caso dos alforriados, “o preconceito racial servia para
manter e legitimar a distância do mundo dos privilégios e dos direitos do mundo
das privações e deveres” (DA COSTA apud GUIMARÃES, 2009:49). Em razão
destas colocações, gostaríamos de chamar a atenção para outro ponto de vista,
que contesta aquelas convicções, começando a partir da situação social vivida
pelos negros que haviam alcançado sua alforria.
A Constituição Brasileira de 1824 só considerava como cidadãos os
negros libertos nascidos em terras nacionais. Essa “cidadania” era bastante restrita
visto que não poderiam ser candidatos a cargos políticos e só seriam eleitores
caso comprovassem possuir a renda mínima exigida. Já os alforriados tinham o
status equiparado com os de estrangeiros: “Para viajar, (…) precisavam provar
sua condição, sob pena de serem confundidos com escravos fugidos e o risco de
serem reescravizados. Frequentemente os libertos se viam envolvidos em conflitos
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por reagirem às discriminações e ao não reconhecimento de sua condição”
(ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006:156).
Encontramos outro exemplo na – ironicamente chamada – “Lei do
Ventre Livre” (1871)13, que, ao contrário do que sua nomenclatura supõe, não
tornava livre nenhuma criança negra nascida após sua promulgação. As crianças
teriam que trabalhar durante 14 anos para compensar a permissão recebida de
permanecer com sua mãe até os seus primeiros sete anos de vida14. Ou seja, seriam
escravas “de fato” até os 21 anos de idade. Só não permaneceram escravas até
aquela idade porque houve a promulgação da Lei Áurea dezessete anos depois da
Lei nº 2040/1871.
A Lei Saraiva-Cotegipe, conhecida como Lei dos Sexagenários (1885)15, em
sua “letra”, garantia a liberdade dos escravos com mais de 65 anos de idade. Ocorre
que, devido ao regime desumano de trabalho, maus-tratos e castigos, poucos
escravos chegavam àquela idade e, quando chegavam, já se encontravam quase
que completamente esgotados. Essa lei beneficiou muito mais aos proprietários,
que poderiam se livrar dos idosos, sem ônus ou responsabilidade, não sendo mais
obrigados a lhes fornecer alimento e abrigo16.
De fato, a escravidão no Brasil não foi branda, cordial nem dócil como a
obra de Gilberto Freyre tentou fazer crer. Não deve ser esquecida a contribuição
internacional dada pelo autor, na década de 1930, em suas obras “Casa-Grande &
Senzala” e “Sobrados & Mocambos”, para a romantização da figura da escravidão
no Brasil e para a venda de uma imagem fictícia de harmoniosa convivência entre
os escravizados e seus “donos”, negando o intenso conflito existente entre ambos.
Muito embora a história oficial insista em omitir os fatos, os 350 anos de
escravidão no país não foram isentos de contínuos processos de resistência e lutas
por parte dos escravos. Um elemento importante, que contribuiu para a abolição,
refere-se à ação dos escravizados em busca da liberdade.
Sendo lembrado de forma recorrente como exemplo da resistência negra
à opressão, a partir do século XVII, na região de Pernambuco, o Quilombo
dos Palmares criou uma organização com sociabilidade diversa, com regras
próprias, tendo uma economia próspera e terras férteis de propriedade coletiva
voltadas para a policultura. Estima-se que sua população oscilou entre 20 e 30
mil habitantes ao longo de sua existência. Palmares muitas vezes é citado como
se fosse um bloco de resistência isolado, num mar de “docilidade” dos negros
escravizados. Entretanto, estudos têm demonstrado que, ao longo do período
escravista, podem ser contabilizados cerca de 2.228 quilombos em todo o país17 –
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o que dá a dimensão das rebeliões negras no período; além do papel das chamadas
“irmandades negras”, que davam suporte às fugas dos escravizados.
Jacino (2008:37) pesquisou particularmente o período pré-abolição no
Estado de São Paulo e concluiu o seguinte: “a reação dos setores dominantes (...)
ia desde a repressão aos movimentos até a censura de jornais e o rebaixamento
da gravidade das rebeliões nos documentos oficiais, de maneira a evitar o debate
sobre a deterioração dos mecanismos de controle social”.
Também foram registradas tentativas de controle por parte dos abolicionistas
sobre os escravos fugidos. Um exemplo pode ser visto no Quilombo de Jabaquara
(SP), o qual apresentava características diferenciadas em relação aos demais.
Os quilombolas trabalhavam nas fazendas da região, mas seus salários eram
negociados pelos abolicionistas. Não tinham a posse da terra e estavam submetidos
à tutela dos seus “benfeitores”. Joaquim Pinheiro, um dos abolicionistas que
ajudou na organização deste Quilombo, “explorou posteriormente o trabalho
dos quilombolas em proveito próprio. Possuidor de uma caieira, empregava os
escravos refugiados no Jabaquara sem remuneração em sua empresa a troco de
comida e esconderijo” (MOURA,1988:245).
O número de escravizados havia diminuído consideravelmente após a Guerra
do Paraguai (1864-1870), uma vez que eles eram enviados para os combates, em
substituição aos seus proprietários. As revoltas e levantes dos escravos ainda eram
registrados, embora de forma reduzida. Assim, os escravocratas buscaram levar a
questão da abolição para ser discutida no Parlamento. O objetivo era preparar a
abolição, através de acordos, mas não perder o controle sobre os negros. Ocorre
ainda que, segundo Maestri (1994:97-99), até àquele momento:
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derrota do sul escravista, nos Estados Unidos, a escravidão
sofreria outro violento golpe. O Brasil tornava-se a única
nação escravista independente.
22 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
na América do Sul etc.) é necessário que se crie um modo de
produção que corresponda ao escravo (MARX, 2005:13).
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disso, o custo dos escravizados tornou-se muito maior em comparação à utilização
de trabalhadores “livres”. Assim, a transição do trabalho escravo para o trabalho
“livre” passou a vigorar como questão posta na ordem do dia. Aliado a isso,
segundo as argumentações de Da Costa (2008:68-69):
A partir daí, a imigração voluntária passou a ser tratada como uma alternativa
viável para resolver uma questão de falta de mão de obra, agravada pelas crescentes
rebeliões nas senzalas, além da evasão dos escravizados das fazendas. Mas, logo de
saída, a imigração de chineses foi rejeitada com base em argumentos de origem
racista: “Cristiano Otoni, expressando o ponto de vista dos que assim pensavam
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caracterizou os chineses como fracos, indolentes por natureza, narcotizados física
e moralmente pelo ópio, alquebrados pela depravação de costumes e pelos maus
hábitos que adquiriam desde o berço” (DA COSTA: 2008:70).
Segundo Mello (1990:75), ocorre que a lógica da produção colonial
encontrou um impasse para sua própria expansão e aumento do volume de lucro
– a impossibilidade de “progresso técnico”:
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O que desejavam os fazendeiros era converter os parceiros
em proletários e não fomentar futuros concorrentes. O que
ambicionavam os parceiros não era se proletarizarem, mas,
sim, se transformarem em proprietários, encarando sua
condição como espécie de etapa para formar um pecúlio, o
bastante para dar o “salto”.
26 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
Assim, a Abolição resultou numa reforma vertical – de cima para baixo
–, em que a estratégia de omitir os dados para negar os fatos mais uma vez
foi utilizada: Rui Barbosa decretou, em 1890, que os documentos acerca da
escravidão fossem queimados. As atrocidades ocorridas no período foram varridas
para “debaixo do tapete da História”. Isso é corroborado por Chauí (2008:121-
123), quando ressalta que:
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se apropriavam da remuneração recebida pelos chamados “negros de ganho”
(GORENDER, 2004).
Mesmo assim, pessoas que, à custa de seu trabalho compulsório e não-
pago, foram o sustentáculo da economia mercantil-escravista, após a Abolição
ficaram ladeadas à nova reorganização da produção, que passou a utilizar mão de
obra de imigrantes europeus, dificultando seu acesso ao trabalho. Assim, segundo
Da Costa (2008:137-138):
28 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
processo de acumulação do trabalho compulsório do negro. Nas palavras de
Gorender (2000:54), “os escravocratas brasileiros conseguiram roer o osso de sua
propriedade humana até quase o último resquício de tutano”.
Assim, embora a qualificação dos negros para exercerem atividades
laborativas na fase pós-Abolição não carecesse de comprovação, “ao tentarem
se reordenar na sociedade capitalista emergente, são, por um processo de
peneiramento constante e estrategicamente bem manipulado, considerados
como mão-de-obra não-aproveitável e marginalizados” (MOURA, 1988:69).
De forma irônica e controversa – bem à moda capitalista –, estavam lançadas as
bases que constituem, ainda hoje, a maioria do contingente de inimpregáveis,
subempregados e superexplorados, que formam hoje a base da pirâmide social
brasileira.
“Aos negros e negras das primeiras décadas do século XX, nas regiões
mais desenvolvidas do país, simplesmente estava vedado o acesso à posse da
terra e ao mercado de trabalho formal” (GORENDER, 2000:39-40). Embora
a citação acima se refira ao início do século XX, a situação nos dias atuais não se
mostra diferente. Ainda hoje o acesso à terra, à educação e, consequentemente,
às ocupações no trabalho formal em melhores condições é uma realidade muito
distante para a população negra brasileira.
Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010 29
RELAÇÕES DE PRODUÇÃO E RACISMO NO BRASIL “DA
MODERNIDADE”
30 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
o negro poderia se integrar naquela sociedade e não como aquela sociedade faria
para integrá-lo ou ainda como aquele tipo de sociedade poderia ser superado.
Assim, podemos inferir que não deixou de existir certa “cooptação” por parte da
classe dominante dos intelectuais orgânicos que davam o direcionamento dessas
publicações. Isto porque, segundo Coutinho (2006:102):
Esse foi um continuum até meados das décadas de 60 e 70, quando as lutas
negras começaram a se aproximar e dialogar com as ideias socialistas – assunto do
qual falaremos mais à frente.
A partir dos anos 1930, é criado o jornal A voz da raça, vinculado à Frente
Negra Brasileira (FNB), também com tendência direitista. Em 1937, a Frente
Negra Brasileira (criada em 1931) sinalizou a possibilidade de fundar um partido
político. Imediatamente foi posta na ilegalidade pelo Estado Novo de Getúlio
Vargas.
O regime varguista cumpria duplo papel de estímulo à industrialização
e de gestor das relações entre capital e trabalho. Ocorre que o conjunto de leis
trabalhistas de Vargas restringia o alcance da cidadania aos trabalhadores fabris,
“deixando intocada a situação do subproletariado urbano, ao mesmo tempo seu
objetivo era impedir a organização independente do trabalho, negando assim
a dimensão política da cidadania” (HASENBALG, 1979:257). Aliás, naquela
conjuntura de organização de leis trabalhistas, particularmente urbanas e fabris,
a maioria da população negra, que compunha o subproletariado e sobrevivia
na informalidade, não foi contemplada. Os trabalhadores rurais também não
foram contemplados, visto que não estavam organizados e encontravam-se
fora do alcance das ideias comunistas – ao contrário do que acontecia com os
trabalhadores urbanos.26 Assim, era criado um conjunto de leis de proteção ao
trabalho urbano, ao mesmo tempo em que as greves foram consideradas ilegais.
Note-se que a cidade de São Paulo já havia sido palco de uma greve geral
operária em 191727. Naquele período, os operários urbanos começavam a se
organizar, respaldados também pela experiência trazida pelos imigrantes europeus.
Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010 31
Assim, as práticas autoritárias do Estado, como forma de controle da população
e manutenção do status quo, deram a tônica das relações entre capital e trabalho
dos anos 1930 a 1945.
Um posicionamento político diferenciado é tomado pela Imprensa Negra,
após 1945, e a luta de classes já aparece como um componente importante nas
reivindicações sociais e raciais dos periódicos, particularmente no “Senzala” –
uma publicação com tendência socialista. Os anos 50, particularmente, registram
muitos protestos dos negros contra a discriminação racial.
“A despeito das condições econômicas, políticas e culturais adversas,
os negros e os mulatos continuam a fazer experiências em associações, clubes,
jornais, grupos de teatro, meios artísticos e outros. Inclusive apóiam e votam em
candidatos negros e mulatos a cargos eletivos, como vereador, deputados estaduais
e federais” (IANNI, 2004:117).
Ao mesmo tempo, as teorias assimilacionistas e relacionadas à “democracia
racial” continuam a respaldar um sistema ideológico que, na teoria, proclama
uma convivência dócil e cordial entre as três diferentes “raças” que compõem a
nação, mas pratica a segregação racial. Assim, a perspectiva assimilacionista ganha
fôlego, enquanto estratégia de cooptação, ressaltando as virtudes da “mestiçagem”
e da “morenidade brasileira”, visando o controle da população negra, que, na
prática, vive a impossibilidade de obter a mobilidade social ascendente, por causa
das barreiras impostas pelos detentores de privilégios na estrutura social, via
racismo institucional28, particularmente.
Nesse mesmo período, preocupada com as atrocidades praticadas na
Segunda Guerra Mundial por Hitler contra os judeus29; o apartheid na África do
Sul30, além da própria segregação nos EUA, a UNESCO patrocinou estudos sobre
as relações raciais no Brasil com o objetivo de tornar amplamente conhecido, em
todo o mundo, o nosso modelo de convivência pacífica entre as diferentes “raças”.
Mas, ao contrário das pesquisas identificarem os motivos da democracia racial
no país, resultaram em documentos que denunciavam o racismo existente e até
formas pouco sutis de segregação racial no Brasil (MAIO, 1999).
32 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
projeto foi ainda responsável por promover a profissionali-
zação e a institucionalização das ciências sociais brasileiras,
além de fornecer munição teórica para os/as ativistas ne-
gros/as que agora tinham cientificamente comprovadas suas
denúncias de existência de racismo e preconceito racial no
país (GPP-GER, s.l.:05, grifo do autor).
Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010 33
(...) o Teatro Experimental do Negro, ou TEN, que se pro-
punha a resgatar, no Brasil, os valores da pessoa humana e
da cultura negro-africana, degradados e negados por uma
sociedade dominante que, desde os tempos da colônia,
portava a bagagem mental de sua formação metropolitana
europeia, imbuída de conceitos pseudo-científicos sobre a
inferioridade da raça negra. Propunha-se o TEN a trabalhar
pela valorização social do negro no Brasil, através da educa-
ção, da cultura e da arte.
Pela resposta da imprensa e de outros setores da sociedade,
constatei, aos primeiros anúncios da criação deste movi-
mento, que sua própria denominação surgia em nosso meio
como um fermento revolucionário. A menção pública do
vocábulo “negro” provocava sussurros de indignação. Era
previsível, aliás, esse destino polêmico do TEN, numa so-
ciedade que há séculos tentava esconder o sol da verdadeira
prática do racismo e da discriminação racial com a peneira
furada do mito da “democracia racial”. Mesmo os movi-
mentos culturais aparentemente mais abertos e progressis-
tas, como a Semana de Arte Moderna, de São Paulo, em
1922, sempre evitaram até mesmo mencionar o tabu das
nossas relações raciais entre negros e brancos, e o fenômeno
de uma cultura afro-brasileira à margem da cultura con-
vencional do país. (...) Teríamos que agir urgentemente em
duas frentes: promover, de um lado, a denúncia dos equívo-
cos e da alienação dos chamados estudos afro-brasileiros, e
fazer com que o próprio negro tomasse consciência da situ-
ação objetiva em que se achava inserido. Tarefa difícil, quase
sobre-humana, se não esquecermos a escravidão espiritual,
cultural, socioeconômica e política em que foi mantido an-
tes e depois de 1888, quando teoricamente se libertara da
servidão. (NASCIMENTO, 2004:02).
34 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
classes. Conforme as considerações de Guimarães (2006), a necessidade de uma
aproximação com as origens africanas, a influência da luta por direitos civis nos
EUA e o processo de descolonização da África irão trazer elementos importantes
para a autoafirmação dos negros brasileiros. Irá também estimular sua luta por
cidadania em duas frentes – luta democrática com influência socialista e luta pela
valorização cultural – ambas abrigadas pelo Movimento Negro Unificado contra
a Discriminação Racial (MNU), criado em 1978.
Dentro do MNU, uma das principais correntes, nos anos 80, é chamada
de “Quilombismo”. Seu principal expoente foi Abdias do Nascimento, que já
havia organizado o TEN. Tinha como proposta, por um lado, aproximar as raízes
africanas e seu legado enquanto civilização antiga dos negros brasileiros (ou seja,
saber de onde vieram seus antepassados, resgatando sua história de exploração
e lutas neste país) e, ao mesmo tempo, trazer as contribuições marxistas para a
discussão.
No processo de resistência e combate à ditadura militar, o MNU teve uma
contribuição importante. Também teve participação, junto com outros atores
sociais, no processo de redemocratização no país.
Já em meados da década de 80, período que culminou na Constituição de
198834, houve um esfriamento do debate voltado para as contribuições marxistas,
dentro dos movimentos negros e até uma espécie de “estranhamento”, em que as
discussões sobre raça e classe foram se distanciando, ao mesmo tempo em que a
capacidade de diálogo entre ambas progressivamente diminuía35.
Nos anos 90, com a opção político-econômica pelo neoliberalismo,
aprofundado no Governo FHC com a Contrarreforma36, o papel do Estado foi
redefinido. Como consequência, direitos sociais foram desarticulados e esvaziados
de seu significado – enquanto resultado de embates da classe trabalhadora por
melhores condições de vida, entrando em cena os chamados “novos movimentos
sociais”, atuando como “sociedade providência” em substituição às funções de
seguridade social, pertinentes ao Estado.
Assim, refazendo esta linha do tempo, é possível concordar com as
argumentações de Guimarães (2008:111) acerca do “Movimento Negro”:
Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010 35
anos, desde o seu surgimento, um movimento altamente
nacionalista, que fazia questão de afastar-se ideologicamen-
te das lutas que travavam outros povos negros, para acen-
tuar o caráter essencialmente nacional do negro brasileiro,
visto como o principal criador da nação. Nos últimos anos,
entretanto, o movimento negro tem reforçado uma estra-
tégia muito mais internacionalista, de solidariedade com
outros movimentos sociais de afirmação étnica e racial, ain-
da que mobilizando-se essencialmente em torno de direitos
humanos e de ideias de igualdade e justiça sociais.
36 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
da sociedade de classes foram abandonadas, embora segmentos da militância
nos movimentos negros, em particular, estejam empenhados em denunciar as
iniquidades sociais que vitimizam a população negra brasileira – o que também
é necessário.
Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010 37
democrática do acesso aos bens econômicos e às oportunidades educacionais. Ou
seja, a estrutura de produção social se modificou, todavia a estrutura assimétrica
de relações raciais sofreu poucos abalos, e continuou desfavorecendo a população
negra.
Analisando esta situação vivida pela população negra, Fernandes (2007)
fez uma afirmação que se tornou clássica – embora tenha sido também alvo de
contestação: que a discriminação racial e o racismo no Brasil contemporâneo
são consequências de um atraso cultural, no qual as relações raciais arcaicas do
passado continuaram subsistindo.
É fato que, no caso brasileiro, as desigualdades sociorraciais se revelam
também na divisão social do trabalho, na qual a população afrodescendente ocupa
as posições pior remuneradas e de menor status social. Ou seja, o eurocentrismo,
que é cultural (simbólico), tem rebatimentos no acesso, posição ocupada e
permanência dos negros no mercado de trabalho (dimensão econômica).
Porém, cabe ainda afirmar, segundo Guimarães (2006), que seria necessário
relativizar a afirmação de que o fato de não-negros e negros ainda hoje estarem
inseridos em camadas sociais opostas (ricos e pobres, respectivamente), seria
resultado exclusivo do passado escravista. Particularmente, consideramos um
equívoco afirmar que a discriminação no Brasil é apenas por origem de classe, e
não por raça (socialmente falando), quando várias pesquisas vêm demonstrando
que a assimetria social – no que se refere ao acesso ao mercado de trabalho e
renda, e, inclusive, aos bens simbólicos – na realidade brasileira, é perpassada por
um recorte étnico-racial38.
Desse modo, podemos problematizar a tese de Florestan Fernandes de
que a discriminação racial no Brasil seria um resquício de um atraso cultural
advindo do passado escravista. Talvez, parcialmente. Porém, não contempla todos
os aspectos mais profundos desta questão. Segundo Hasenbalg (1979:79),
38 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
negros. Assim, as desigualdades sociais e raciais no Brasil acabam por se confundir,
não podendo ser discutidas separadamente – não sem perdas significativas para
o projeto de emancipação humana em geral. Portanto, não consideramos que
discutir as relações étnico-raciais no Brasil contemporâneo seja um retrocesso na
trajetória de lutas nem uma supervalorização da microrealidade social, preterindo
uma abordagem macro.
Hasenbalg (1979:85), na segunda parte do texto “A transição para a
liberdade, industrialização e relações raciais”, sugere que a discriminação e o
racismo foram ressignificados na estrutura social atual e apresentam novos
objetivos. Assim, ao desqualificar os “não-brancos” e afastá-los da disputa, o
grupo dominante branco obtém e perpetua benefícios materiais e simbólicos.
Assim, podemos dizer que, embora haja uma manipulação conceitual, com o
intuito de disseminar uma falsa ideia de troca de valores culturais entre os povos
dominados – no caso analisado, a população negra – e os dominadores, essa fusão
não existe (e nunca existiu) no Brasil. Como consequência, o respeito à diversidade
racial inexiste e prevalecem os padrões culturais dos dominadores, enquanto
“elementos de dominação estrutural”, já que os dominados são classificados como
pertencentes a uma “cultura primitiva”.
A este respeito, Losurdo (2004:53) faz as seguintes ponderações:
Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010 39
de um conflito racial explícito e abrandou uma possível consciência culpada
dos brancos em relação à situação social vivida pelos negros, desaguando no que
chamou de “conservadorismo ideológico”, que manteve fora do âmbito político
as consequências do racismo latente. Ressalta que “o mito da ‘democracia racial’
brasileira é indubitavelmente o símbolo integrador mais poderoso criado para
desmobilizar os negros e legitimar as desigualdades raciais vigentes desde o fim do
escravismo” (MOURA, 1988:242).
Guimarães (2009:39) inclusive analisa que a recusa em se discutir o racismo
no Brasil se alicerça nesta crença de uma democracia racial, na qual esta seria a
“prova inconteste de nosso status de povo civilizado” diante do mundo.
Ocorre que esse “mito da democracia racial” se beneficia de uma construção
social abstrata chamada “mérito pessoal”. Ou seja, em tese, a ponte que separa o
êxito social do fracasso pessoal seria a capacidade do indivíduo se comprometer
e se esforçar para o alcance de seus objetivos. No discurso oficial, a sociedade
proporciona as oportunidades, as quais são estendidas a todos, e que seriam mais
bem aproveitadas por determinados indivíduos.
Mas, podemos recorrer às reflexões de Mészáros (2004:544), o qual é
taxativo ao desmascarar esse discurso da “igualdade de oportunidades”.
40 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
vislumbrar que o aparente “fracasso pessoal” esconde duas características que
se complementam (dentre outras) na realidade brasileira: a estrutura capitalista
em que a sociedade brasileira se assenta, na qual não há oportunidade/oferta de
trabalho para todos que se encontram em fase produtiva; e as barreiras raciais
que impedem uma capacitação mínima para a disputa das vagas disponíveis, ou
mesmo havendo a capacitação solicitada, existe o pretexto de “não preencher o
perfil” desejado pelo empregador – ou de não ter a chamada “boa aparência”
exigida pelo mercado – a qual podemos chamar de racial profile. Assim, a negação
de oportunidades – sustentadas pelas barreiras de cor, derivadas de uma estrutura
social discriminatória, ficam encobertas.
Mas, conforme sugere Chauí (2008:66-67):
Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010 41
se perpetuar no cotidiano brasileiro ao longo dos anos? Como o racismo brasileiro
conseguiu alcançar um status tão confortável de conformação social, ao ponto de
tornar-se praticamente invisibilizado?
Mas, conforme a análise de Moore (2007:256):
42 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
necessárias – à outra parte, tida como moralmente fraca,
cujo peso desqualificante de sua culpa e ineficiência eco-
nômica a impede de se elevar ao território ideal. Assim, os
muros da segregação vão desde os reais espaços de distinção nas
unidades urbanas, até os argumentos que procuram, sob ilusões
construídas num universo comum de valores, fundamentar a
separação como destino não compartilhado produzido pelo aca-
so de escolhas individuais equivocadas. Eles são o resultado da
lógica em que são postas essas sociedades (Grifo nosso).
Ocorre que, muito embora seja possível comprovar por meio de dados
estatísticos a existência do racismo na pretensa “democracia racial brasileira”,
ainda configura-se como um nó crítico de análise sua capacidade de se reatualizar
– operando e se refazendo, sem “oficialmente” existir. Como bem observou o
Professor Kabenguele Munanga, “se dependesse apenas da genética, não teríamos
um problema racial no Brasil.(...) Porém, a cor [da pele] atua como uma categoria
social de dominação”42.
Assim, é possível dizer que a defesa da existência de “democracia racial” no
Brasil pode ser considerada uma espécie de “universal abstrato”, tal como pensado
por Chauí (2008:89) – ou seja, um componente da ideologia – pois, segundo ela,
os “universais abstratos” são:
Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010 43
nante manifesta-se na ausência de conflito racial aberto e
na desmobilização política dos negros, fazendo com que os
componentes racistas do sistema permaneçam incontesta-
dos, sem necessidade de recorrer a um alto grau de coerção
(MOURA, 1988: 246).
44 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
íntima relação com a estrutura de classes nesta sociedade. Segundo Souza
(2006:56), esta apresentação naturalizada dos fenômenos influencia nosso modo
de pensar e de viver na sociedade, sem que realizemos uma mediação reflexiva e
consciente acerca disso.
Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010 45
Desse modo, apenas na aparência e nos discursos oficiais, as desigualdades
se tornam fluídas e são naturalizadas, a classe se transmuta em povo (uma massa
disforme, manipulável, ausente de conflitos explícitos), que representaria a
“unidade e vontade” nacionais. Porém, é fato que a contemporaneidade é marcada
pelo neoliberalismo e suas consequências, no qual a busca pela manutenção e
fortalecimento da hegemonia do capital – às vezes até com aparência mais
“humanizada” – visa facilitar a cooptação das classes subalternas, mas estando
sempre a serviço dos interesses da classe dominante.
Do nosso ponto de vista, o modus operandi do racismo no Brasil também
não foge a esta regra.
46 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
Dessa maneira, está posto o seguinte problema: abolir a divisão de classes
sociais não significa, por extensão, superar as desigualdades raciais. Esta afirmativa
traz a seguinte questão: Poderia a história da humanidade conviver e compactuar
com o racismo, que é uma prática de hierarquização de seres humanos? Pois bem,
esta é uma das contradições do real, que está posta como um desafio, carecendo
de uma resposta que a esquerda brasileira ainda não foi capaz de fornecer.
Segundo Mészáros (2006:104), “o estado real dos instrumentos estratégicos
necessários ao movimento da classe trabalhadora não pode ser uma questão
indiferente para a teoria marxiana”, sob pena de tornar-se um “revolucionismo
esvaziado de seu conteúdo”. Assim, reconhecer a atualidade e validade das ideias
de Marx para explicar as condições objetivas da produção e reprodução capitalista
em seu processo de acumulação ainda hoje – particularmente no Brasil – não
é simples questão de coerência. Pois, “uma vez que a ideologia é a consciência
prática das sociedades de classe, a solução dos problemas gerados nos confrontos
ideológicos não é inteligível sem a identificação de sua dimensão prática, material
e culturalmente eficaz” (MÉSZÁROS, 2004:115).
Por isso, a complementaridade dessas discussões (raça e classe) pode ser um
caminho aglutinador para a classe trabalhadora nacional. Fernandes (1989:61)
defendia este posicionamento, pois analisava que:
Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010 47
as limitações existentes (nós críticos) na articulação da classe trabalhadora sejam
expostas (preconceitos raciais, de gênero, orientação sexual, geracionais etc.). Ao
optarem politicamente por ignorar determinações – embora não aparentes e ao
mesmo tempo concretas –, alguns pensadores recorrem ao argumento de que
discutir subjetividades e especificidades seria apropriado apenas para a matriz
pós-moderna. Porém, essa postura que se repete historicamente do “se não me
toca pessoalmente, se não compreendo, também não analiso, apenas rejeito” só
beneficia ao capital.
Por outro lado, é importante ressaltar que nem sempre a rejeição
pelas discussões com recorte étnico-racial é por absoluta “má fé” ou medo de
partilhar “subjetivismos”. Ocorre que a crença e também defesa da existência de
democracia racial no Brasil (embora se admita a ocorrência de “casos” isolados de
discriminação racial) até por segmentos da esquerda pode ser explicada, segundo
Chauí (2008:91): “Esse fenômeno de manutenção das ideias dominantes mesmo
quando se está lutando contra a classe dominante é o aspecto fundamental daquilo
que Gramsci denomina hegemonia, ou o poder espiritual da classe dominante”.
Assim, a defesa das ideias dominantes é resultado da absorção dos seus
valores pelos dominados. Pois,
48 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
Não podemos esquecer que o capitalismo fomenta a competição entre
os indivíduos e reforça as desigualdades materiais. Embora Mehring (2003:27)
tenha escrito a frase a seguir pensando num outro contexto, suas palavras cabem
perfeitamente à situação ora estudada, na perversidade da lógica capitalista,
para explicar um dos efeitos práticos do racismo no país (velado, mas revelado)
intraclasse: “Aumenta a concorrência entre os trabalhadores e arrefece seu
sentimento de solidariedade”.
Desse modo, com o objetivo de tornar parcelas da classe trabalhadora
antagônicas entre si, o capitalismo também hierarquiza os trabalhadores por
fenótipos raciais. Isso possibilita que, no processo de exploração do capital sobre o
trabalho, os trabalhadores não se identifiquem entre si nem se reconheçam como
igualmente explorados e oprimidos (sob estratégias diferentes), e ideologicamente
passem a avalizar sua própria exploração. É por esta razão que discordamos, ao
analisar a situação enfrentada pela população negra no Brasil, da afirmação de que
o capitalista seria o único beneficiado pelo racismo existente no país.
Por isso, consideramos interessante e pertinente utilizar as contribuições de
SOUZA (2006), particularmente numa análise do conceito de “capital simbólico”,
recolhido de Bourdieu, para pensar as relações raciais no Brasil contemporâneo.
Muito embora o autor utilize o conceito para discutir como a subcidadania em
geral vai sendo construída e aceita socialmente no Brasil, a definição de “capital
simbólico” pode também ajudar a explicar uma das estratégias que subsidiam a
perpetuação do racismo na sociedade brasileira.
Capital simbólico é definido por ele como:
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padrões sociais estabelecidos sejam veementemente rejeitadas (as cotas raciais nas
universidades públicas, por exemplo), uma vez que os critérios hierarquizadores
já se encontram arraigados.
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pretos e pardos (0,753) era equivalente ao que ficava entre o Irã e o Paraguai, na
95° posição do ranking mundial. Já o IDH dos brancos (0,838) correspondia ao
de Cuba, na 51° posição”.
Por isso, é necessário lembrar a transversalidade em que o racismo opera
e reconhecer que ele também está presente internamente em parcelas da própria
classe trabalhadora. Essa cisão constante causada pelo racismo pode ser uma
das estratégias utilizadas pelo capitalismo para controlar a classe trabalhadora
– pois, enquanto a maioria (parcelas da classe trabalhadora) compete velada e
agressivamente – entre si, a minoria (capital) mantém o controle sobre todos.
Por esta razão, até a solidariedade intraclasse trabalhadora precisa ser construída
e fomentada. Isto ocorre porque os sujeitos sociais, inseridos na vida social
cotidiana, não são mera abstração, são concretos e ainda pouco elucidados em
suas particularidades (rebeldias, conformismos e lutas) e nas suas relações sociais,
no tempo e espaço histórico que vivemos. Produzem e se reproduzem socialmente
sob a influência da ideologia47 dominante.
Sabemos que confrontar-se analiticamente com esta “disputa” velada
interna à classe trabalhadora pode ser “moralmente” desconfortável, decepcionante
e até indigesta de se admitir. Mas, mesmo os antagonismos dentro da própria
classe trabalhadora precisam ser discutidos e enfrentados (como o racismo e as
hierarquias funcionais por raças sociais, por exemplo). Ocorre que, ainda hoje,
discutir abertamente o racismo na sociedade brasileira e as possíveis formas de
sua reparação constrange e incomoda alguns segmentos até mesmo de setores
reconhecidos socialmente como progressistas/de vanguarda.
Essa postura de omissão (advinda, inclusive, dos setores progressistas)
frente às demandas específicas de uma parcela significativa das classes subalternas
brasileiras há muito já vem demonstrando seu custo histórico – com o afastamento
da maioria esmagadora dos Movimentos Negros, por exemplo.
Isto é preocupante, pois, como ressaltou Chauí (2008:72): “Sem as
condições materiais da revolução, é inútil a ideia de revolução, ‘já proclamada
centena de vezes’. Mas sem a compreensão intelectual dessas condições materiais,
a revolução permanece como um horizonte desejado, sem encontrar práticas que
a efetivem”.
Faz-se necessário ressaltar mais uma vez que a busca da população negra
pelo acesso aos direitos sociais, a uma participação verdadeiramente democrática,
tem convergência com a luta pela emancipação humana em geral. Por isso,
defendemos que incorporar essas e outras demandas de segmentos específicos da
classe trabalhadora não colocaria em risco o projeto de outra sociabilidade.
Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010 51
Muito pelo contrário, segundo nosso entendimento, traria contribuições
importantes para o debate e agregaria forças para a construção de uma nova
sociabilidade, verdadeiramente justa e democrática. Embora uma parte da
esquerda brasileira, em particular, considere a “questão dos negros” no Brasil
um tema periférico, “a interação de raça e classe existe objetivamente e fornece
uma via para transformar o mundo, para engendrar uma sociedade libertária e
igualitária sem raça e sem classe, sem dominação de raça e sem dominação de
classe” (FERNANDES, 2009:12).
Isto posto, é preciso compreender ainda que realizar o debate sobre o
papel da ideologia racial no capitalismo periférico brasileiro se trata não de uma
tentativa de profanar o legado de Marx, mas de utilizar suas contribuições teóricas
como suporte para discutir questões inerentes à classe trabalhadora no Brasil –
que apresenta algumas características ímpares e outras semelhantes, frente às
classes trabalhadoras de outros países do mundo.
É fato que, enquanto classe trabalhadora, não somos unidade e estamos
muito longe disso, o que nos enfraquece historicamente. A este respeito, porém,
Fernandes (1989:62) traz a seguinte contribuição:
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igualdade e de fraternidade. Ele não pode dar a outra face. É tudo ou nada. Ou
rebeldia ou capitulação. Ou democracia pra valer ou luta contra os grilhões, agora
ocultos por uma pseudodemocracia”.
Porém, enquanto parte da esquerda se omite em discutir esse tema, outros
projetos de sociedade em disputa o acolhem. Como resultado, o projeto de
emancipação humana vai diluindo sua histórica base de sustentação – a classe
trabalhadora, que no Brasil é majoritariamente constituída pela população negra.
Assim, está posta a questão: Como conduzir/alcançar a transformação societária
sem essa base de apoio – uma parcela significativa da classe trabalhadora nacional?
Por ausência de respostas (ou pelo silêncio constrangedor) da esquerda
às questões postas, muitas das demandas dos grupos indígenas, das mulheres,
da população negra, dentre outros, têm sido incorporadas de forma maciça pela
direita e pelos adeptos das chamadas “Teorias Pós-Modernas”.
Sem embargo, estas reflexões trazem implícitas algumas questões,
que, embora não sejam de respostas fáceis e imediatas, estão postas, pois são
componentes do real concreto. Entretanto, faz-se necessário alertar para o fato
de que existe uma forma social que vem legitimando as desigualdades sociais. Ao
aceitá-las como se fossem “naturalmente” humanas, como se sempre houvessem
existido (como o racismo e suas consequências, por exemplo), ratificamos sua
falsa imutabilidade.
Essa discussão também nos remete a um fato ocorrido há cerca de três
anos em sala de aula48, quando o Professor Marcelo Paixão propôs as seguintes
questões: 1) Você considera razoável supor que a superação do sistema capitalista
traria por si só o fim da discriminação racial no Brasil e no mundo? Por quê? 2)
É racional para o sistema capitalista a discriminação racial ou esta racionalidade
seria vigente apenas em uma sociedade de tipo escravista?
Embora estivéssemos empenhadas em responder rápida e automaticamente,
passamos vários meses realizando leituras e refletindo acerca das implicações que
envolveriam as respostas a estas questões.
Numa sociedade de tipo escravista, o escravizado não dispõe de autonomia
sobre seu corpo e, por consequência, sobre sua força de trabalho. É o senhor
quem tem o controle sobre o corpo, sobre o trabalho, sobre a vida e a morte do
escravizado, além de ser o único beneficiário do resultado financeiro do trabalho
deste último. O trabalho do escravizado é gerador de riquezas apenas para o
“senhor”, suplantando enormemente seu investimento inicial. Temos como
exemplo a própria escravidão do negro no Brasil, que era vista como natural e
Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010 53
necessária para o desenvolvimento e enriquecimento da colônia. Gomes (2008)
inclusive ressalta que a elite colonial prosperou bastante com a escravidão e foi a
que mais lucrou com o tráfico.
Já numa sociedade “livre”, em tese, um indivíduo pode concorrer
livremente no mercado e vender sua força de trabalho. Ao final de um período
de tempo, recebe certa quantia de dinheiro como pagamento por seu trabalho.
Seria esta uma troca justa entre iguais (quem vende e quem compra a força de
trabalho), apenas aparentemente.
Uma sociedade de tipo escravista, por sua vez, pode ser compatível com o
capitalismo, pode ser “racional” com sua lógica. Em alguns períodos históricos, a
discriminação racial foi altamente funcional ao capitalismo49 e ainda é, inclusive
no Brasil. Isso ocorre porque essa discriminação não precisa necessariamente ser
“explícita” – pode ser velada, como ocorre no discurso mitológico da “democracia
racial” brasileira, que foi incorporado por uma parcela da população, inclusive
negra. Essa pode ser uma das justificativas para o “estigma” existente na sociedade
brasileira, na qual “certas profissões são destinadas a certos tipos de pessoas”,
determinando qual seu “andar” na pirâmide social. Mas a sociedade pode negar
essa discriminação se apoiando na igualdade entre os homens e louvando o mérito
(o que o capitalismo, nas suas vertentes liberal e neoliberal também defende) como
se esse não se sustentasse sobre uma base sólida de desigualdade de oportunidades
(sociais, culturais, históricas e financeiras) desde o seu ponto de partida.
Portanto, a discriminação racial e o racismo podem estar presentes tanto
em uma sociedade de tipo escravista quando “de homens livres” e que o sistema
capitalista é suficientemente maleável e adaptável a ambas, sabendo se organizar
dentro de dois modos de produção com características particulares. Dessa forma,
é possível dizer que a discriminação racial e o racismo podem ser funcionais
ao sistema capitalista – mas até certo ponto. Nosso argumento para sustentar
essa afirmação consiste no fato de que o sistema capitalista tem condições de
incorporar demandas como as do movimento negro, desde que não afete seu
processo de acumulação.
De acordo com as análises de Wood (2006) e Coutinho (1997) – um dos
pressupostos dos quais partimos – isso ocorre porque o acesso à cidadania de
fato e de direito não afeta a exploração de classe. Assim, é possível ressaltar que,
quando é de seu interesse, o capitalismo pode também rejeitar e ajudar a combater
as chamadas “desigualdades extraeconômicas” – como é o caso da discriminação
racial – desde que sua estrutura de exploração de classe se mantenha intacta e não
comprometa seu objetivo maior: a acumulação de capital.
54 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
Assim, podemos suspeitar também que a superação do sistema capitalista
por si só não conseguiria acabar com a discriminação racial e o racismo. A
superação do capitalismo caracterizaria a opção por uma nova sociabilidade, mas
não garantiria, de imediato, a aceitação da (o respeito à) diversidade. Vejamos.
A cultura pode ser (e é) influenciada pelos determinantes econômicos. Mas
nem só de determinantes econômicos se sustenta a cultura. Ela pode vir carregada
tanto de influências louváveis – que devem ser aplaudidas e cultivadas para que
floresçam – quanto de preconceitos, que precisam ser quebrados e superados.
Porém, ambos são constituintes e também expressões de relações sociais que
podem transcender o econômico. Portanto, superar a discriminação racial e
promover a aceitação do outro em sua diversidade continuaria sendo um desafio.
Felizmente, a este respeito, Wood (2006:242) faz as seguintes considerações:
Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010 55
Refletindo globalmente sobre tais condições [do capitalis-
mo selvagem em que floresce a “injustiça social”] é fácil
constatar que, por trás das dificuldades do desenvolvimento
da classe operária, existem compensações frutíferas. Os pro-
letários, ao se constituírem como classe relativamente au-
tônoma e capaz de desenvolvimento independente, abrem
novos rumos para toda a sociedade. Suas estratégias de luta
de classes são típicas da periferia; não poderia ser de outra
maneira, porque aqui está o cerne da socialização política
que lhes restou e do próprio fechamento histórico da revo-
lução burguesa pelas elites das classes dominantes, nacio-
nais e estrangeiras. Grifo nosso.
56 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
O que interessa é a divisão social do trabalho e, portanto, a
relação entre os próprios homens através do trabalho dividido.
Esta divisão começa no trabalho sexual de procriação, pros-
segue na divisão de tarefas no interior da família, continua
como divisão entre pastoreio e agricultura e entre estes e o
comércio, caminha separando proprietários das condições
de trabalho e trabalhadores, avança como separação entre
cidade e campo e entre trabalho manual e intelectual. Essas
formas da divisão social do trabalho, ao mesmo tempo em
que determinam a divisão entre proprietários e não pro-
prietários, entre trabalhadores e pensadores, determinam a
formação das classes sociais e, finalmente, a separação en-
tre sociedade e política, isto é, entre instituições e Estado
(CHAUÍ, 2008:56, grifo nosso).
Por esta razão, nossa proposta é realizar uma análise das relações sociais
no Brasil que parta da luta de classes, do ponto de vista das classes subalternas.
Em nenhum momento foi esquecida a diretriz contida em Marx e Engels
Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010 57
(2009) de que “não se trata de reformar a propriedade privada, mas de aboli-
la; não se trata de atenuar os antagonismos de classe, mas abolir as classes; não
se trata de melhorar a sociedade existente, mas de estabelecer uma nova” (apud
FERNANDES, 2009:40).
Ocorre que os elementos presentes na atual conjuntura nacional apresentam,
salvo engano, um potencial de luta política para a classe dominada, o qual foi
cortejado no passado (por Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Costa Pinto e
outros), mas que não continuou estreitando laços em estudiosos posteriores na
vertente marxiana/marxista – salvo raras exceções.
De modo adverso, ao se buscar uma “identidade” para o proletariado
nacional, analítica e artificialmente invisibilizando as “múltiplas determinações50
que compõem o concreto”, como o tratamento dado pelo capital nacional aos
trabalhadores e trabalhadoras negros(as), por exemplo, resultou em rebatimentos
para a constituição da “classe para si” no Brasil. Ou seja, os setores de vanguarda
– nos mesmos moldes dos setores reacionários – deram a mesma destinação para
as reivindicações dos movimentos negros – o limbo: lugar para onde são enviadas
as coisas que não têm utilidade.
Ou, na melhor das hipóteses, tentam desqualificar as discussões acerca
da discriminação racial e racismo, dizendo que seriam apenas “panfletárias” e
sem correspondência analítica com a luta de classes. Porém, como foi escrito por
Chauí (2008:123):
58 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
violências. (...) Todos os trabalhadores possuem as mesmas exigências diante do
capital. Todavia, há um acréscimo: existem trabalhadores que possuem exigências
diferenciais, e é imperativo que encontrem espaço dentro das reivindicações
de classe e das lutas de classes”. E, portanto, ao desconsiderarmos o sujeito
em sua concretude, em seus embates cotidianos na realidade social, sem nos
aproximarmos para conhecer uma das “múltiplas determinações” do concreto,
estaremos colaborando para a inviabilidade da formação da “classe para si”.
Chauí (2008:51) vem corroborar as argumentações acima ao destacar que:
Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010 59
tempo externo, para discutir e superar antigos “tabus”, incorporando as demandas
de grupos específicos (particularidades na classe), sempre ficará aquele “mal-
estar” de que a única demanda considerada legítima pela esquerda é a da classe
“abstratamente” falando, que se traduz numa postura altamente discriminatória
– intencional ou por omissão.
Por isso, buscamos uma compreensão da inter-relação entre o racismo na
estrutura social brasileira contemporânea e a luta de classes. Assim, será possível
agregar forças para lutar pela superação da ordem social vigente, em busca da
emancipação humana geral. Pois, nada a não ser o livre-arbítrio, consciência
social e vontade, nos impediria de construir coletivamente as bases para uma
redistribuição transformativa e verdadeiramente isonômica, respaldada pela
filosofia da práxis.
Por ora, gostaríamos de ressaltar que temos o discernimento de que, fazer
uma crítica à posição ocupada pela população negra no mercado de trabalho
brasileiro por si só, não teria um sentido de emancipação. Isto de deve ao
fato de que, ao se buscar o direito de igualdade na disputa e permanência no
mercado de trabalho (igualdade de condições), está-se lutando pelo direito de ser
igualmente explorado, não atacando/combatendo o cerne que é a forma social
em que o trabalho representa a própria exploração capitalista. Porém, também
não é possível realizar a discussão do racismo no Brasil contemporâneo, no nosso
entendimento, sem discutir como se dão as relações de produção neste locus do
capitalismo periférico.
ABSTRACT
The object of this study is the functionality of racism in the current structure of capitalist
exploitation in contemporary Brazil. We ask: What the usefulness of racism in Brazil and
for whom? Are just capitalists who benefit from racism in the country?
We aim to warn of the importance of coordination of black movement with other social
actors that converge in the defense of human rights and/or the construction of a new
sociability, founded on new basis, where the social always take precedence over economics.
In this regard, we note that the theoretical analysis accumulated by Brazilian Social Work,
particularly in recent decades, can contribute significantly to expand the scope of this
discussion, given the elements of the professional training of social workers and given
the social profile of the people to whom it is directed our professional practice everyday.
60 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
NOTAS
1
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 175.
2
Para LAURENCE (apud GOMES, 2001:30), “quando o discriminador não tem consciência
do seu preconceito e tem convicção de que percorre a trilha da justiça são parcas as chances de
sucesso da razão e da persuasão moral”.
3
Segundo Gomes (2001:20), “os efeitos presentes da discriminação do passado, cuja manifestação
mais eloquente consiste na tendência, facilmente observável em países de passado escravocrata
e patriarcal, como o Brasil, de sempre reservar a negros e mulheres os postos menos atraentes,
mais servis do mercado de trabalho como um todo ou de um determinado ramo de atividade”.
4
“Ela é algo mais que a igualdade, na medida em que tem por consequência tornar mais concreta
a igualdade de oportunidades entre os indivíduos e pelo fato de atenuar a má percepção que
as pessoas ou a sociedade tem de determinado grupo cultural ou comunidade étnica. Devido a
tais características, o apelo à equidade constitui, em diversos países, um procedimento especial”
(d’ADESKY, 2009:232-233).
5
Ou seja, o grupo constituído por negros recebe 36,25% menos, na média salarial.
6
Partimos das seguintes definições de preconceito, racismo e discriminação: “Preconceito (i.e.
atitudes usualmente negativas e enviesadas em relação a grupos sociais e seus membros),
racismo (um preconceito orientado contra certos grupos vistos como biologicamente diferentes
e inferiores ao seu), e discriminação (comportamento iníquo ou tratamento desigual de outros
com base em sua pertença grupal ou possessão de um traço arbitrário, como a cor da pele)”
(DION apud GUIMARÃES, 2008:50).
7
“De acordo com os indicadores levantados pelo LAESER, em seu banco de dados Júris, verifica-
se que o Poder Judiciário brasileiro, em média, não tem acolhido as teses e provas apresentadas
pelas supostas vítimas, tendo elas perdido na maioria dos processos que tramitaram nos
Tribunais de Justiça (de primeira e segunda instâncias) e Trabalhista (de segunda instância). (...)
Assim, a chance de acórdão favorável aos supostos réus é maior na primeira do que na segunda
instância dos tribunais brasileiros” (PAIXÃO et alli, 2011:266).
8
A esse respeito, IAMAMOTO (2008), traz as seguintes contribuições analisar as particularidades
presentes na “questão social”: “A questão social expressa, portanto, desigualdades econômicas,
políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por disparidades nas relações de gênero,
características étnico-raciais e formações regionais, colocando uma causa amplos segmentos
da sociedade civil no acesso aos bens da civilização. Dispondo de uma dimensão estrutural,
ela atinge visceralmente a vida dos sujeitos numa “luta aberta e surda pela cidadania” (Ianni,
1992), no embate pelo respeito aos direitos civis, sociais e políticos e aos direitos humanos.
Esse processo é denso de conformismos e rebeldias, expressando a consciência e a luta pelo
reconhecimento dos direitos de cada um e de todos os indivíduos sociais. É nesse terreno de
disputas que trabalham os assistentes sociais” (p.160).
9
Apresentamos como algumas exceções, em diversificadas vertentes teóricas, os trabalhos de:
PINTO, E. A. O Serviço Social e a Questão Étnico-Racial. São Paulo: Terceira Margem, 2003;
RIBEIRO, M. As abordagens étnico-raciais e o Serviço Social. Revista Serviço Social &
Sociedade. nº 79. São Paulo: Cortez, 2004. p.149-61; FILHO, J. B. da S. O Serviço Social e a
questão do negro na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Marques Saraiva, 2006; ROCHA,
R. F. A questão étnico-racial no processo de formação em Serviço Social. Revista Serviço
Social & Sociedade. nº 99. São Paulo: Cortez, jul.-set./2009. p.540-62.
Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010 61
10
A autora refere-se à “relação indivíduo e sociedade; a conjugação entre as dimensões macro
e microssocietárias; a articulação entre os planos da objetividade e da subjetividade na vida
social e entre universalidade, particularidade e singularidade, que são questões indissociáveis do
exercício profissional” (id.:id).
11
Mais de 350 anos de escravização de africanos e de seus descendentes nascidos em terras
nacionais.
12
Ocorrida entre 1789 e 1799; tinha como lema: Igualdade, Liberdade e Fraternidade.
13
Cf. BRASIL. Lei nº 2040 - de 28 de setembro de 1871. Declara de condição livre os filhos
de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros,
e providencia sobre a criação e tratamento daqueles filhos menores e sobre a libertação
anual de escravos. In < http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-
Hist%C3%B3ricos-Brasileiros/lei-do-ventre-livre.ht ml>. Acesso em 17/03/2011.
14
Os senhores também poderiam entregar a criança ao Estado e receber 600 mil réis a título de
indenização.
15
Cf. BRASIL. Lei nº 3270 - de 28 de setembro de 1885. Regula a extinção gradual do elemento
servil. In < http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66550>. Acesso
em 18/03/2011.
16
“Inválidos, eram entregues à Santa Casa, onde passavam o resto da vida num hospital ou nos
asilos de mendigos. Outros iam engrossar as fileiras de indigentes que esmolavam em grande
número nas cidades brasileiras” (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006:154).
17
São exemplos também os Quilombos de Ambrósio/MG; Iguaçu/RJ; Oitizeiros/BA; Chapada
dos Negros/GO e Rio Manso/MT, dentre outros.
18
Porém, quando o lucro está em jogo, falar em ética pode tornar-se motivo de piada ou
constrangimento, causados pela “inocência” do argumento.
19
Cf. BRASIL. Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888. Declara extinta a escravidão no Brasil. In <
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/1851-1900/L3353.htm>. Acesso em 18/03/2011.
20
Inclusive, em relação ao protagonismo dos abolicionistas neste processo, cabe uma consideração
breve trazida por Jacino (2008): “era no campo, e não no ambiente urbano, que estava o
epicentro do movimento que derrotou o escravismo, embora os líderes abolicionistas urbanos
acabassem por ser considerados os principais atores, devido a sua visibilidade e moderação”
(p.37).
21
Este termo refere-se à Princesa Isabel.
22
Ocorre que, nas páginas anteriores já destacamos as formas de resistência e luta dos escravizados
no Brasil.
23
Com o fim da escravidão nas terras das treze colônias inglesas na América do Norte, o ódio racial
dos brancos sulistas contra os negros se mostrou explicitamente. Assim, caiu o mito da “Grande
Família” sulista. O fim da escravidão nos EUA ocorreu em 1865 (13ª Emenda Constitucional)
e iniciou um período de perseguição sanguinária dos membros da KKK (Ku-Klux-Klan) contra
os negros. Esta sociedade secreta de cunho racista foi formada em 1867 a partir de fazendeiros
sulistas que se dedicavam a plantações de tabaco e algodão, utilizando mão de obra de escravos
negros. Promoveram linchamentos, casas incendiadas, estupros e homicídios de pessoas negras
e famílias inteiras, além de outros atos terroristas como seu modus operandi. Esse ódio contra os
negros era validado e fortalecido, abertamente, pelas instituições americanas, particularmente
sulistas.
24
O escritor infantil Monteiro Lobato (1882-1948) era um dos simpatizantes do filósofo francês
Gobineau e de suas teorias de degenerescência física e racial a partir da mistura de arianos com
raças consideradas por ele “desiguais” e inferiores, como negros e australianos.
62 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
25
“Em 1890, para estimular a imigração européia, o recém-instaurado governo republicano mandou
divulgar no exterior que os estrangeiros dispostos a trabalhar no Brasil eram bem-vindos, exceto os
asiáticos e africanos. Para fazer cumprir essa determinação, a polícia estava autorizada a impedir
o desembarque de negros e asiáticos nos portos do país. Durante a Primeira República a recusa a
imigrantes negros era justificada por razões explicitamente racistas. Existia tanto empenho em
impedir a imigração negra que em 1921 dois deputados federais, Andrade Bezerra e Cincinato
Braga, apresentaram na Câmara o projeto de lei nº 209, que proibia “a imigração de indivíduos
humanos das raças de cor preta”. O projeto, disseram os autores, era uma precaução. Naquele
mesmo ano o governo do Mato Grosso divulgou que estava concedendo terras para quem se
dispusesse a ocupá-las no interior do estado. Logo os jornais noticiaram que norte-americanos
negros estavam interessados na proposta. As opiniões contrárias à imigração desses norte-
americanos foram divulgadas em todo o país. Num jornal se podia ler a seguinte questão:
‘por que irá o Brasil, que resolveu tão bem o seu problema de raça, implantar em seu seio
uma questão que não entra em nossas cogitações? Daqui a um século, a nação será branca!’
A repercussão da notícia fez com que o governador desistisse das concessões e os deputados
Andrade Bezerra e Cincinato Braga elaborassem o projeto de lei nº 209. Embora o projeto não
tivesse sido aprovado, a repulsa à imigração de negros e asiáticos continuou latente na sociedade
brasileira. Havia até quem calculasse que cem anos, no máximo, seriam suficientes para que o sangue,
a pele e os costumes dos brasileiros “branqueassem”. Em 1911, durante o Congresso Internacional
das Raças realizado em Londres, o representante brasileiro, Batista Lacerda, garantiu que no
início do século XXI já não haveria negros no país e que o número de mulatos seria insignificante”.
(ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006:207-8, grifo nosso)
26
O setor exportador rural já contava com subsídios do Estado.
27
Foram cerca de 70 mil pessoas reivindicando aumento de salários, melhores condições de
trabalho e proibição do trabalho para menores de 14 anos.
28
“A ideia do racismo institucional é recente na sociedade brasileira. Surgiu nas duas últimas
décadas com o Movimento Negro Brasileiro denunciando as desigualdades sociais nas
instituições do mercado de trabalho, da saúde, da educação, da segurança pública e até nas
atividades de lazer” (SANTOS, 2005:49).
“Ele [racismo institucional] pode ser visto ou detectado em processos, atitudes e comportamentos
que totalizam em discriminação por preconceito involuntário, ignorância, negligência e
estereotipação racista, que causa desvantagem à pessoa” (SAMPAIO apud SANTOS, 2005:50
– grifo nosso).
29
O regime nazista alemão, liderado por Hitler, perseguiu e exterminou judeus (seu principal
alvo), ciganos, poloneses, russos e de outros países do leste europeu, além de deficientes físicos
e mentais, pacifistas, comunistas/socialistas e homossexuais. Motivado pelo racismo promoveu
o genocídio de mais de seis milhões de pessoas.
30
Regime de segregação racial, implantado por lei, de 1948 a 1994, na África do Sul, onde
a minoria branca (afrikâners) privou de direitos civis, políticos, sociais a população negra,
mestiça e indiana do país. Dentre todas as atrocidades promovidas por aquele regime de Estado,
podemos destacar o ocorrido em 21/03/1960, em que policiais afrikâners mataram 69 pessoas
negras num crime que ficou conhecido como o “Massacre de Sharpeville”.
31
Conforme destaca o artigo de NASCIMENTO (2004), até 1944, mesmo em peças cuja
personagem principal original era negra, sua interpretação no Brasil era feita por atores não-
negros, com seus rostos pintados de preto: “ lembrava que, em meu país, onde mais de vinte
milhões de negros somavam a quase metade de sua população de sessenta milhões de habitantes,
na época, jamais assistira a um espetáculo cujo papel principal tivesse sido representado
Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010 63
por um artista da minha cor. Não seria, então, o Brasil, uma verdadeira democracia racial?
Minhas indagações avançaram mais longe: na minha pátria, tão orgulhosa de haver resolvido
exemplarmente a convivência entre pretos e brancos, deveria ser normal a presença do negro em
cena, não só em papéis secundários e grotescos, conforme acontecia, mas encarnando qualquer
personagem – Hamlet ou Antígona – desde que possuísse o talento requerido. Ocorria de fato
o inverso: até mesmo um Imperador Jones, se levado aos palcos brasileiros, teria necessariamente
o desempenho de um ator branco caiado de preto, a exemplo do que sucedia desde sempre com as
encenações de Otelo. Mesmo em peças nativas, tipo O demônio familiar (1857), de José de
Alencar, ou Iaiá boneca (1939), de Ernani Fornari, em papéis destinados especificamente a
atores negros se teve como norma a exclusão do negro autêntico em favor do negro caricatural.
Brochava-se de negro um ator ou atriz branca quando o papel contivesse certo destaque cênico ou
alguma qualificação dramática. Intérprete negro só se utilizava para imprimir certa cor local ao
cenário, em papéis ridículos, brejeiros e de conotações pejorativas” (p.:01-02).
32
Segundo Nascimento (2004:02): “o TEN alfabetizava seus primeiros participantes, recrutados
entre operários, empregados domésticos, favelados sem profissão definida, modestos funcionários
públicos – e oferecia-lhes uma nova atitude, um critério próprio que os habilitava também a
ver, enxergar o espaço que ocupava o grupo afro-brasileiro no contexto nacional. Inauguramos
a fase prática, oposta ao sentido acadêmico e descritivo dos referidos e equivocados estudos”.
33
Cf. BRASIL. Lei nº 1.390, de 3 de julho de 1951. Inclui entre as contravenções penais a prática
de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor (Lei Afonso Arinos). In < http://www.
jusbrasil.com.br/legislacao/128801/lei-afonso-arinos-lei-1390-51>. Acesso em 17/03/2011.
34
Em seu artigo 14, trouxe como facultativo aos analfabetos (historicamente, na maioria
pertencentes à população negra) o ato de votar, mas os manteve inelegíveis. O conjunto de leis
subsequentes aos precedentes abertos pela Constituição de 1988, tornou o racismo um crime
que não cabe fiança e nem prescreve. Isso ocasionou uma mudança significativa em relação à
Lei Afonso Arinos, que o qualificava apenas como contravenção, cujas punições não coibiam o
racismo na prática.
35
A este respeito conferir particularmente o tópico “Política x Cultura no Movimento Negro:
dilemas que vem de longe”, em: RATTS (2009), “ENCRUZILHADAS POR TODO O
PERCURSO: individualidade e coletividade no Movimento Negro de base acadêmica. In
PEREIRA, A. M.; SILVA, J. (orgs.) O Movimento Negro Brasileiro: escritos sobre os sentidos de
democracia e justiça social no Brasil. Belo Horizonte: Nandyala, 2009. P. 81-108.
36
Utilizando como subterfúgio a existência de uma “crise do Estado” que, para ser sanada,
necessitaria de um austero ajuste fiscal, enxugamento de gastos públicos, na verdade, promoveu
a ampliação do domínio do capital no Brasil via privatizações e Programa de Publicização,
que resultaram na ampliação do desemprego estrutural, do empobrecimento da população, do
subemprego, dentre outras medidas nefastas para a classe trabalhadora. Cf. BEHRING, Elaine
R. Brasil em Contra-Reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez,
2003.
37
Um marco na luta pelo respeito à diversidade humana.
38
Cf. IBGE, 2011/2011; IPEA, 2011; PAIXÃO et alli, 2011).
39
Com discursos do tipo: “Você não é afrodescendente, somos todos brasileiros”.
40
“Segundo esse mito, o país teria sido formado pela influência genética e cultural de três povos
originários: portugueses, indígenas e negros. Esses grupos originais geraram, por causa da
miscigenação ao longo dos séculos, uma população pronunciadamente mestiça. Tal origem
nos teria retirado, ou mesmo impossibilitado, formas agressivas de ódio e conflito social, pelo
contrário, sendo responsável pela montagem de uma civilização pronunciadamente tolerante
64 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010
do ponto de vista do convívio racial e étnico. O mito apontava para o caráter inclusivo de nossa
cultura, sendo o assimilacionismo nossa marca cultural por excelência, e o mulato e a mulata,
bem como o caboclo e a cabocla, os mais lídimos representantes da mestiçagem de nosso povo”
(id.:44-5).
GUIMARÃES teria afirmado que a expressão foi utilizada pela primeira vez nos meios
acadêmicos por Charles Wagley: “‘O Brasil é renomado mundialmente por sua democracia
racial’, escrevia Wagley, em 1952..” (apud HERINGER, 2002:58 – grifos da autora).
41
Decreto-Lei nº. 2.848/1940 (Código Penal); Lei nº 1.390/1951 (Lei Afonso Arinos); Lei nº
7.437/1985 (Lei Caó); Lei nº 7.716/1989 (Define os crimes resultantes de preconceito de raça
ou de cor); Artigo 5º, inciso XLII da Constituição de 1988 (Racismo como crime inafiançável);
Lei nº 7.716/1989 (Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor); Lei nº
10639/03 (Inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História
e Cultura Afro-Brasileira”); Lei nº 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial).
42
Trecho extraído da palestra ministrada, na abertura do VII Congresso Brasileiro de Pesquisadores
Negros (COPENE), na cidade de Florianópolis, em 16/07/2012.
43
Cf. dados do censo do IBGE já citados no início deste texto.
44
A este respeito, conferir as contribuições de: WESSELING, H. L. Dividir para Dominar: A
partilha da África (1880-1914). Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Revan, 1998.
45
Assim, “com efeito, o trabalhador passa a ser uma coisa denominada força de trabalho, que
recebe uma outra coisa chamada salário. O produto trabalho passa a ser uma coisa chamada
mercadoria, que possui uma outra coisa, isto é, um preço” (CHAUÍ, 2008:59).
46
A pesquisa realizada pelo DIEESE (2011) na região metropolitana de Salvador – já citada
no início deste texto na página 04 – traz dados que confirmam essas gritantes desigualdades
sociorraciais, além dos dados apresentados pelo IBGE.
47
Ideologia é definida por CHAUÍ (2008:66) como “o sistema ordenado de ideias ou representações
e das normas e regras como algo separado e independente das condições materiais, visto que
seus produtores - os teóricos, os ideólogos, os intelectuais – não estão diretamente vinculados à
produção material das condições de existência. E, sem perceber, exprimem essa desvinculação
ou separação através das suas ideias. Ou seja: as ideias aparecem como produzidas somente pelo
pensamento, porque os seus pensadores estão distanciados da produção material. Assim, em
lugar de aparecer que os pensadores estão distanciados do mundo material e por isso suas ideias
revelam tal separação, o que aparece é que as ideias é que estão separadas do mundo e o explicam.
As ideias não aparecem como produtos do pensamento de homens determinados – aqueles
que estão fora da produção material direta -, mas como entidades autônomas descobertas por
tais homens. (…) Porém, como as contradições reais permanecem ocultas (são as contradições
entre as relações de produção ou entre as forças produtivas e as relações sociais), parece que a
contradição real é aquela entre as ideias e o mundo”.
48
Num dos módulos do Curso de Indicadores Sociais – ênfase em relações etnicorraciais, realizado
no Rio de Janeiro, em 2009, por meio da parceria do LAESER - UFRJ/SINPRO- Rio.
49
A política do ‘apartheid’ na África do Sul, por exemplo.
50
Cabe ressaltar também que a autora faz um alerta importante sobre o significado de determinação
na afirmativa de Marx (concreto como síntese de múltiplas determinações), que devemos
“entender o conceito de determinação não como sinônimo de conjunto de propriedades ou
de características, mas como os resultados que constituem uma realidade no processo pelo qual
ela é produzida. Ou seja, (...) o conceito de ‘determinação’ pressupõe uma realidade como um
processo temporal” (CHAUÍ, 2008:51).
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51
Referindo-se ao livro, classificado amplamente como pós-moderno, de: SANTOS, Boaventura
de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
REFERÊNCIAS
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CHAUÍ, M. O que é ideologia. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2008. (Coleção Pri-
meiros Passos; 13).
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de Salvador. Novembro de 2011. In < http://www.dieese.org.br/ped/ssa/negros-
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tórico. São Paulo: Boitempo, 2006.
PÁGINAS NA INTERNET:
SENADO - http://www.senado.gov.br
SEPPIR - http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/seppir/.arquivos/
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72 Libertas: R. Fac. Serv. Soc., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 9 - 72, jan./jun. 2010