Texto 17. Universalização e Localismo
Texto 17. Universalização e Localismo
Texto 17. Universalização e Localismo
Os movimentos sociais na área rural da Amazônia, que nas duas últimas dé
cadas vêm se consolidando fora dos marcos tradicionais do controle clientelístico
e tendo nos Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs) uma de suas expressões
maiores, conhecem no momento atual certos desdobramentos, cujas formas de as
sociação e luta escapam ao sentido estrito de uma organização sindical c às formas
de enquadramento urdidas pelo Estado.
Conflitos localizados, envolvendo aparelhos de poder, cujas instituições de ca
ráter econômico implantam seus programas como uma ordem a ser acatada a todo
custo, têm se agravado até um ponto de extrema tensão. Barragens, campos de trei
namento militar, base espacial, áreas reservadas à mineração, portos, aeroportos,
ferrovias, rodovias, implantação de usinas de ferro gusa e outros projetos incen
tivados, no momento de sua implementação, têm gerado inúmeros conflitos com
grupos camponeses e povos indígenas. No bojo destes antagonismos aguçados,
tém se manifestado, todavia, desde meados de 1988, condições favoráveis à aglu
tinação de interesses específicos dc grupos sociais diferenciados. Embora não haja
homogeneidade absoluta nas suas condições materiais de existência, são momenta
neamente aproximados e assemelhados, baixo o poder nivelador da ação do Estado.
Em outras palavras e a outro nível de abstração, pode-se adiantar que as políticas
públicas é que possibilitam os elementos básicos à formação de composições e de
vínculos solidários, tal como registrados naquelas situações dc confronto. São elas
que concorrem decisivamente para uniformizar ações políticas de grupos sociais
não-homogêneos do ponto de vista econômico. Sem representar necessariamente
• Este texto foi redigido no segundo semestre de 1989 e publicado na Revista da ABRA, n.1. Campinas,
1990. Posteriormente foi atualizado no CE5E Debate. Número 3, Ano IV, Maio de 1994.
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categorias profissionais ou segmentos de classe, tais grupos têm se organizado em
consistentes unidades de mobilização, não somente na Amazônia, mas em todo o
país. O valor da força de trabalho não constitui sua base racional c declarada mas, a
despeito disto, verifica-se um elevado grau de coesão em suas práticas, tomando-as
formas ágeis e eficazes de organização política. Por se encontrarem atreladas a lutas
localizadas c imediatas, cuja especificidade se atém ao próprio tipo de intervenção
dos aparelhos de poder consorciados com interesses de empreendimentos privados,
estabelecem uma articulação particular do político com o econômico. Mesmo com
todas as diferenciações c desigualdades que porventura encerrem, estas unidades
mobilizam-se pela manutenção das condições de vida preexistentes aos mencio
nados programas c projetos. Compõem-se, objetivando garantir o efetivo controle
de domínios representados como territórios fundamentais à sua identidade e, in
clusive, para alguns deles, à sua afirmação étnica. O caráter consensual desse ob
jetivo superou reservas, ressentimentos, desconfianças e competições. O que antes
dividia, crodiu temporariamente, permitindo convergências inimaginadas noutros
momentos. Fatoits étnicos, raciais e religiosos, usualmente utilizados para reforçar
solidariedades e distinguir as chamadas “minorias”, perdem relativamentc, no con
texto destes antagonismos, sua força de marcar diferenças intransponíveis. Amea^_
çados pela perda de direitos às pastagens, às florestas densas e.aos recursos hídricos
et pj^co_nsj£guinte?^ ^ agriculturatvivem ajuptura.da esta-
biüdademxombinaçãode recursos ejio exercício de atividades elementares como
prenúnciode uma “crise ecológica” (JVolf, 1984:336-350) sem precedentes. As ter
ras indígenas, as chamadas “terras de preto” ou das comunidades remanescentes de
quilombos, as áreas tituladas e aquelas de posse aparecem aí alinhadas, uma após
outra, num bloco compacto de reivindicações em que grupos sociais atingidos lu
tam para não serem removidos compulsoriamente (casos de barragens, campos de
treinamento militar, ferrovias, rodovias, Base de Alcântara) ou para que não sejam
forçosamente fixados (casos de garimpeiros face ao anteprojeto que institui o “regi
me de permissão de lavra mineral”, onde mudar de área explorada constitui crime).
O direito de imobilizar ou de remover de forma compulsória aparece como atribu
to e primazia de aparelhos de poder que representam os atingidos como cidadãos
de segunda categoria. A “crise ecológica”, vivida por segmentos do campesinato c
por povos indígenas da Amazônia, tem uma dimensão marcadamente política e
ideológica e não corresponde, necessariamente, à denominada “questão ecológica”
que caracteriza hoje a sociedade abrangente (Almeida; 1990:13).
Nestes antagonismos, em que à primeira vista não há o predomínio político
de classe, as categorias de mobilização refletem, na medida adequada, o tipo de
intervenção dos aparelhos de Estado. Os agrupamentos traduzem efeitos de ação,
adstritos à sua própria definição social, senão vejamos: “atingidos por barragens”,
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“remancjados”, “deslocados”, “rcasscntados:’ c “assentados”. Prevalecem também
noções genéricas, que encobrem possíveis espccificidadcs, tais como: “povos da
floresta” e “ribeirinhos”. O que parece importar é que categorias de circunstância
(“atingidos”) surgem combinadas com outras de sentido permanente (povos da flo
resta) no contexto de conflitos abertos.
/ A nova estratégia do discurso dos movimentos sociais no campo, ao desig
nar os sujeitos da ação, não aparece atrelada â conotação política própria do termo
/ camponês, que pode ser datada, no caso brasileiro, desde pelo menos os anos 50
com a formação das Ligas Camponesas. Politiza-se agora aqueles termos de uso lo-
; cal e referidos a realidades localizadas. Seu uso cotidiano c difuso não é visto como
\ se opondo aos movimentos classistas, antes parece ser considerado como fator de
educação política, estimulado tanto pela União das Nações Indígenas, quanto pelo
Conselho Nacional dos Seringueiros, pela Comissão Nacional dos Atingidos por
Barragens ou pélo recém-criado Movimento Interestadual das Quebradeiras de
Côco Babaçu (M IQCB). Cinde-se com o monopólio político do significado dos
termos camponês e trabalhador rural, que até então eram utilizados com preva
lência por partidos políticos, movimento sindical dos trabalhadores rurais e enti
dades confessionais. Isto sem destituir o atributo político daquelas categorias de
mobilização-A-nova classificação, verificada na alteraçãojasjiomeaçõesjcjnum
conjunto dc práticas organizativas, traduz transformações políticas mais profun
das na capacidade dc mobilização destes grupos sociais face ao poder do Estado7.
“Seringueiros”, “castanheiros”, “juteiros”, “quebradeiras de côco babaçu”, “barran-
queiros”, “assentados”, “colonheiros”, “posseiros”, “colonos” e pescadores sugerem
denominações de uso local e de condições econômicas que se derramam naquelas
categorias de mobilização, de pretensão abrangente, como “povos da floresta”, “qui-
lombolas” e “ribeirinhos”. Revelam-se ainda embutidas cm outras derivações que
elas vão conhecendo segundo a particularidade dos antagonismos: “os não-indeni-
zados dcTucuruí”, “os deslocados pela Base de Lançamento de Alcântara”, “os que
serão atingidos pelas barragens de Altamira e do Rio Trombetas”. -
Os grupos sociais assim delineados mobilizam-se organizadamente cm nú
cleos que recebem as seguintes denominações: “comissões” (de “atingidos por
barragens”), “conselhos” (de seringueiros), “associações” (de garimpeiros e dc
“assentados”) e “comunidades negras rurais” ou “comunidades remanescentes de
quilombos” e “comunidades” de resistência indígena. De acordo com as lutas lo-
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calizadns c imediatas, constituem -se, pois, em unidades de m obilização de cuja
coesão social não se pode duvidar, tanto pcln uniform idade dc suas práticas, quanto
pela força com que se colocam nos enfrentam entos diretos. Logram múltiplas e
bem sucedidas mobilizações como os “em pates” intensificados pelos seringueiros,
impedindo os dcsmntamcntos com centenas dc famílias, em bargando no local os
serviços dc derrubada, ou como as ocupações dos canteiros de obra no caso dos
“atingidos por barragens”. Tais mobilizações concorrem para to m a r aquelas unida*
des organismos legítimos de representação, que não m ais podem ser descartados da
mesa dc negociações, quando das tentativas dc resolução dos conflitos.
Não obstante diferentes níveis dc prática e de organização e relações distintas
com os aparelhos dc poder, tais unidades dc m obilização podem ser interpretadas
como potcncialm ente tendendo a se constituir cm forças sociais. N esta ordem, elas
não representam apenas sim ples respostas a problem as localizados. Suas práticas
alteram padrões tradicionais de relação política com os centros de poder e com
instâncias dc interm ediação, possibilitando a em ergência de lideranças que pres
cindem dos que detêm o poder local. D estaque-se, neste particular, que mesmo
distante da pretensão de serem m ovim entos para a tom ada do poder político, lo
gram generalizar o localism o das reivindicações e, m ediante estas práticas de mobi
lização, aum entam seu poder de barganha face ao governo e ao E stado. Para tanto,
suas form as dc ação transcendem as realidades localizadas e geram m ovimentos de
m aior abrangência, que agrupam as diferentes unidades, a saber: Comissões Re
gionais de A tingidos p or Barragens, distribuídas p o r quase to d o o país; Conselho
N acio n al dos Seringueiros, U nião dos Sindicatos e Associações de Garimpeiros
da A m azônia Legal e Associação das Áreas de A ssentam ento do M aranhão. Ain
da que incipientes, enquanto m odalidades de organização política, têm realizado
sucessivos atos de mobilização. N o decorrer dos cinco prim eiros meses de 1989,
intensificaram os preparativos para planos de luta em escala nacional.
R euniram assembléias de delegados e representantes nos cham ados “encon
tros”, ou seja, um a form a superior de luta ou o evento m aior de universalização do
localizado. N os “encontros” são votadas e definidas as pautas de reivindicação.
C aso fosse necessária um a periodização, se poderia classificar o referido pe
ríodo ora estudado, que corresponde em tese aos prim eiros seis m eses dc 1989, ou
seja, logo após a prom ulgação da C onstituição de outubro de 1988, com o “o tempo
dos prim eiros encontros”.
A ssim , o 1 E n co n tro dos Povos Indígenas do X in g u foi realizado entre 20 e
25 de fevereiro, em A ltam ira (PA), form alizando protesto c o n tra a construção da
usina hidrelétrica de Kararaô e a inundação das terras indígenas. O docum ento
final da assembléia, intitulado Declaração Indígena dc A ltam ira, foi aprovado por
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400 índios representando cerca de 20 povos e 10 nações c tendo como observadores
trabalhadores rurais da região, isto é, “colonos” c posseiros*.
O I Encontro dos Povos da Floresta foi realizado entre 25 e 31 de março de
1989, em Rio Branco (AC),juntamente com o II Encontro Nadonal dos Seringuei
ros, definindo um amplo programa de lutas por uma imediata reforma agrária, com
a implantação de reservas extrativistas, pela demarcação das terras indígenas e con
tra a criação de “colônias indígenas”, tal como vem sendo efetivadas, notadamente
no âmbito dos projetos especiais da Calha Norte; pelo “fim do pagamento da renda e
das relações de trabalho, que escravizam os seringueiros nos seringais tradicionais”;
bem como reivindicações para a preservação ambiental, para uma nova política de
preços c comercialização, de saúde e de educação das “populações extrativistas”. Este
programa foi aprovado por 135 seringueiros c 52 índios, representando trabalha
dores extrativistas de 26 municípios do Amapá, Acre, Rondônia, Pará, Amazonas
e de uma área de seringais da Bolívia. Como observadores convidados, sem direito
a voto, por não serem delegados eleitos em seus povoados e aldeias, participaram 17
seringueiros e 9 índios. Credenciaram-se, também, junto à secretaria do encontro,
267 representantes de entidades governamentais e não-govemamentais9.
0 I Encontro Nacional dos Trabalhadores Atingidos por Barragens foi re
alizado em Goiânia (GO), entre 19 e 21 de abril, reivindicando não apenas uma
“nova política para o setor elétrico, com a participação da classe trabalhadora”, mas
também “reforma agrária já”e “demarcação das terras indígenas e das comunidades
negras remanescentes de quilombos”. O documento final, denominado de Carta
de Goiânia, foi subscrito por 25 entidades, sendo uma central sindical, um pólo
sindical e um “movimento”e, ainda, 6 comissões estaduais de “atingidos por barra
gens”, 4 “comunidades indígenas” (Kaingang de Irai, Kaingang de Chapecozinho,
Ava-Guarani e Pankararu) e 12 entidades de apoio e institutos de pesquisa e do
cumentação. Foi criada, no referido encontro, a Comissão Nadonal de Atingidos.
0 1 Encontro dos Atingidos pela Barragem dcTucuruí realizou-se em Belém
(PA), discutindo as relações dos chamados “atingidos”, intermediados pelos STRs,
junto às prefeituras e à Eletronorte, a propósito do cumprimento dos convênios para
reparar danos e atender reivindicações (escolas, postos de saúde). Delegados repre
sentantes de 8 STR’s (Itupiranga, Tucuruí, Jacundá, Baião, Mocajuba, Cametá,
Igarapé-Mirim, Oeiras do Pará), duas Colônias de Pescadores (Jacundá e Igarapé-
Mirim), Dois núcleos de pescadores não-formalizados (Cametá e Tucuruí), junta-
» Maiores esclarecimentos podem ser encontrados na série de artigos publicados em A Província do Pará.
Belém, 25 de fevereiro de 1989,1 Q cad.
« Cf. Secretaria do Encontro (CNS - UNI) - Boletim Notícias, número 3. Rio Branco, 27 de março de 1989,
p. 156.
19
mente com membros do STR de Altamira, da FETAGRI-PA e da CUTTocantina,
definiram que a atuação dos STRs deve ser a de fiscalizar a execução das obras e de
sua administração. Participaram também do evento quatro entidades de apoio.
O fundador e ex-presidente da União dos Sindicatos c Associações de Garim
peiros da Amazônia Legal (USAGAL), José Al tino Machado, apresentado como
“garimpeiro do Tapajós”, num manifesto intitulado “Urutu, na Amazônia, é co
bra”, publicado cm 15 de abril de 1989, pelo Jornal do Brasil, protestou contra o
anteprojeto dc lei sobre a atividade garimpeira enviado à Presidência da República
pela Secretaria de Asscssoramento e Defesa Nacional (SADEN),0.O autor forne
ceu dados sobre os possíveis representados, na oportunidade em que se preparava o
encontro dc garimpeiros dc Roraima:
"O garimpo tinha 4 0 0 m il profissionais h á apenas dois anos. H oje são hum
milhão. Chegam-nos mais de 1 m il5 0 0 pessoaspor d ia à A m a zô n ia ."
10 Cf. Machado, José Altino - "Urutu, na Amazônia, é cobra". Jornal do Brasil. Rio d e Janeiro, 15 de abril
de 1989.
si Cf. Dados divulgados pela FETAEMA: esta organização congrega hoje 136 STRs com cerca de dois
milhões de trabalhadores rurais sindicalizados.
20
plicitnmcnte à titulação definitiva dos “remanescentes das comunidades de quilom
bo”. A discussão sobre os quilombos foi iniciada na Assembléia Constituinte e para
ela foram remetidas as decisões do 1 Encontro das Comunidades Negras Rurais do
Maranhão ocorrido em agosto de 1986.
0 11 Encontro Raízes Negras do Mcdio Amazonas Paraense realizou-se no
período de 30 de junho a 02 dc julho de 1989, na comunidade de Jauary, Rio Ere-
pccuru (Orbdminá-PA), coordenado pelo Centro de Estudos e Defesa do Negro
no Pará (CEDENPA) c organizado junto com os Quilombos de Pacoval, Curuá,
Mata, Acapu, Cuminá, Erepccuru, Trombctas e Jauary. A entidade, criada para
conduzir, localmcntc a luta pelo reconhecimento destas terras dc quilombos, é a
Associação dos Remanescentes dc Quilombos de Oriximiná (ARQMO).
Ainda cm julho de 1989, realizaram-se inúmeras assembléias de mulheres tra
balhadoras rurais no Vale do Mcarim (MA), em Espcrantina, no Piauí, c no Bico do
Papagaio (TO), objetivando a criação das Associações das Quebradeiras de Côco
Babaçu, voltadas, fúndamcntalmcntc, para assegurar o livre acesso aos babaçuais
ilegalmente cercados. O I Encontro Interestadual de Quebradeiras dc Côco Ba
baçu somente será realizado, entretanto, em setembro de 1991, em São Luis (MA).
« Vide "Jucá vai resistir se o governo resolver expulsar garimpeiro" Jornal do Brasil, 29 de junho de 1989, p. 7.
21
desaguar, todos cies, numa única c ideal mesa de negociações, embora cada um
deles, em seu campo próprio, tenha como interlocutores aparelhos de poder com
competências específicas. Conformando aspectos consensuais de confrontos loca*
lizados e sem ser uma mera soma deles, estes novos organismos de representação
lograram impor, aos aparatos de Estado, uma via única de interlocução, não lhes
permitindo negociar por partes e forçando-os a uma negociação mais global, base
ada em princípios gerais que orientam as políticas públicas. Os critérios locais dc
intervenção são relativizados. O caráter universal, que rompe com o localismo, é,
pois, imposto pela própria dinâmica das mobilizações, que se estruturam a partir
dc lutas específicas e realidades localizadas. Universalizam e, concomitantemente,
dialogam com os interlocutores oficiais, um a um, sem perder de vista o conjunto
dos centros dc poder. Há, assim, uma globalização de lutas localizadas, que num
tempo único exigem interlocutores distintos, mas que simultaneamente tratam os
aparatos de Estado em bloco e procuram ampliar suas redes de apoio e pressão.
Consultando-se os documentos finais dos “encontros”, verifica-se uma ênfase
na ampliação das bases sociais dos movimentos, mediante acordos para um fim co
mum, através de composições definidas como “aliança”, “juntar forças” e “acordo .
22
Nesse sentido, percebe-se que as unidades de mobilização empenham-se, por
um lado, no contato com uma infinidade de pequenos grupos que quase sempre se
mostram desconfiados e recusam receber orientações e lideranças de fora. Na con
fluência entre o povoado, a aldeia, o “centro” (local de produção), a “beira” (local
de circulação) c a sociedade mais abrangente, insinuam-sc novas intermediações,
emanadas da própria capacidade destes grupos imporem lideranças representati
vas de seus interesses intrínsecos. Os pequenos seringueiros, de Xapuri c Brasiléia, '
independentes, livres dos mecanismos de imobilização c do julgo dos seringalistas,
concentram a liderança do movimento. Dispõem de condições próprias e de mo
bilidade para, inclusive, orientar e apoiar a luta nas demais regiões, como a bacia
do Juruá, onde os seringueiros ainda lutam pelo fim da subjugação às “rendas” ê
proibições de livre comercialização da borracha, ditadas pelos seringalistas.
Por outro lado, a necessidade de apoios externos para confrontar as forças de
dominação local, não implicam novos atrelamentos, indicando uma autonomia tá
tica (Wolf 1984:333-361 ) essencial ao êxito da mobilização dos seringueiros. A
rotina do funcionamento dos grupos de trabalho e das plenárias, na oportunidade
do II Encontro Nacional dos Seringueiros e do I Encontro dos Povos da Floresta,
deixou isto bem claro. As entidades de apoio e as associações voluntárias presen
tes foram mantidas em reuniões à parte e fora do processo de tomada de decisões.
Não puderam se dirigir aos delegados reunidos em plenária, lideranças partidárias
externas ao movimento13. Nesta ordem c que também alteram os padrões tradicio
nais de relação política com os antigos intermediários, ao mesmo tempo em que, o
fazem com os candidatos a novos mediadores.
Na Declaração Indígena de Altamira, os signatários além de se disporem
como “ameaçados”, lado a lado com os chamados “ribeirinhos”, que abrangem, lato
sensOy juteiros, barranqueiros, colonheiros e os que cultivam as terras de várzea ou
nelas habitam, como os pescadores, c os que trabalham com cerâmica, distinguem
forças no campo politico:
23
Nacional e com o povo brasileiro, para juntos protegermos essa importante
região do mundo, nossos territórios. '
m Cf. Carta dos Parlam entares aos Povos Indígenas. In: A Província do Pará. Belém, 25 d e fevereiro de
1989, p. 9.
is Cf. “Seringueiros e índios lançam em, São Paulo, aliança dos povos da floresta". Folha d e São Paulo. 12
de m aio d e 1989. p. A-8.
24
Parecem insistir numa regra de mobilização através de frentes e composições,
comnítido predomínio político de entidades sindicais.
No que concerne às “alianças”, a exceção, novamente, consiste naUSAGAL.
Alem de defender a legalização dos garimpos cm território Yanomami, favorecen
do o intrusamento de áreas indígenas, alia-se a interesses do poder estadual, tal
como preconizado pelo então governador - interventor de Roraima. Em contra
partida se coloca contra algumas cooperativas de garimpeiros e contra a atuação
dc entidades confessionais c ambientalistas, que apoiam as lutas de demarcação
imediata das terras indígenas. Estes dados evidenciam o provável equívoco de se
analisar esta mencionada entidade em conjunto com as demais, ora mencionadas.
Para estas prevalece o critério de aliança com forças da sociedade civil e a questão
central resume-se em forçar o Estado a por fim às funções coercitivas que os pro
gramas dos vários aparatos dc poder estão a exigir para sua implantação efetiva.
As contradições internas ao movimento dos garimpeiros dispõem, de um lado,
aUSAGAL e a COOGAR (Cooperativa dos Garimpeiros de Serra Pelada), que
congregam os que têm participação nos “barrancos” e fornecem aos garimpeiros,
e, de outro lado, os trabalhadores do garimpo, diretamente empenhados na extra
ção, também chamados “peões”, “formigas”, “trabalhadores do barranco”, com suas
subdivisões específicas, tais como: “raizeiro”, “bicojateiro”, “maraqueiro”, etc. Os
primeiros, que monopolizam o credito e imobilizam os demais são impropriamen
te denominados garimpeiros, subordinam os trabalhadores diretamente envolvi
dos na extração mineral, que não são beneficiados pela legislação trabalhista e pelos
demais direitos juridicamente assegurados aos trabalhadores contratados16.
« Consulte-se Pinto, Lúcio Ftávio - "O uro: g u erra suja". Jornal Pessoal - Ano 1. n" 9. Belém, primeira
quinzena d e janeiro d e 1988. p p . 1-5 e “G arim po: houve um genocídio? “ Jornal Pessoal- Ano 1. n® 10-1988.
w A propósito, consulte-se Lenin - S obre os Sindicatos; coletânea d e textos publicados pela Ed. Vitória em
1961.
25
Outro tipo possível de crítica advém daquelas concepções que consideram
estes movimentos sem efeitos pertinentes sobre o poder do Estado. Analisam a
função de ordem do Estado e seu tipo de intervenção como impedindo que os inte
resses de classe venham a emergir nos antagonismos sociais. Deste ângulo, as uni
dades de mobilização, paradoxalmente, se conformariam aos desígnios dos apara
tos de poder, inibindo as mobilizações de classe e debilitando os órgãos máximos de
representação dos trabalhadores.
Para além destas interpretações, algo genéricas, conduzimos o enfoque para
processos reais e para formas concretas de mobilização, relativizando os possíveis
pragmatismos, tanto quanto as análises formais e tributárias do economicismo.
Importam, cm verdade, nos termos da exposição desta pesquisa, as práticas em
jogo c seus efeitos pertinentes sobre os aparelhos de poder, no âmbito dos enfren-
tamentos diretos. Desta perspectiva é que se pode adiantar que a relação destes
movimentos com as entidades sindicais dos trabalhadores rurais apresentam-se,
pelo menos sob dois aspectos: i) suplantaram-nas na condução e orientação das
lutas, onde elas se mostram frágeis c ii) subordinaram-se ou têm sido conduzidos
por elas, onde os STR’s se mostram eficazes nas mobilizações. Afinal, também nas
estruturas sindicais são detectados níveis de contradição que podem inibir ou não
a capacidade mobilizatória. No caso, por exemplo, dó Centro de Lançamento de
Alcântara, o STR conduziu a luta das famílias atingidas, nas negociações diretas e
no plano jurídico, mobilizando-as com êxito.
De igual maneira, o Pólo Sindical do Submédio São Francisco tem conduzido
a luta dos atingidos pela Barragem de Itaparica. Aqui, o sindicalismo não exclui as
mobilizações, antes as assimila, fortalecendo-se inclusive. O mesmo não ocorre, em
regiões do Acre, com a luta dos seringueiros, em que se registram tensões entre uni
dades de mobilização do Conselho Nacional de Seringueiros e entidades sindicais.
O poder destas unidades de mobilização revela-se incomodativo pelo caráter
democratista ou de inspiração nos princípios da democracia direta, que às vezes
contraria a vontade dos mediadores de falar em termos de consciência de classe,
estrito senso. No âmbito de suas manifestações, os STR’s participam ombro a om
bro com as entidades ambientalistas, as instituições confessionais, as associações
voluntárias e demais grupos informais. Todavia, nos “encontros”, as decisões são
aprovadas exclusivamente por delegados, que tanto podem estar representando
povoados, aldeias, povos indígenas, famílias ou outras unidades sociais como uma
colocação ou um seringal.
Não há critério de proporcionalidade nos votos, poderia ponderar, ortodoxa
mente, um analista político. Tampouco, há listagens ou direitos de voto restritos a
sócios, tal como nas assembléias sindicais. A capacidade de aglutinação, entretanto,
26
vem do que é p o ten cialm en te m obilizável, num a situação de confronto aberto. O
delegado votante en cerra a au to rid ad e necessária para garantir pressões indispen
sáveis à negociação poh'tica dos conflitos. P areceu-m e surpreendente o elevado nú
mero de seringueiros, castanheiros e índios, presentes ao I E n co n tro dos Povos da
Floresta, que jam ais haviam particip ad o d c assem bléias do gênero ou que, sendo
do Acre, jam ais tin h am visitado a capital, m as que se m anifestavam inteiram ente
coadunados com o sen tid o político das lutas específicas. O raio de alcance destes
movimentos parece, pois,' te n d e n te à am pliação; já que as exigências de participa
ção não se restringem a “associados" voluntários, m as sim a áreas críticas de conflito
e tensão social e seus respectivos representantes. O m óvel da m obilização m ostra-
-se condicionado, em certa m edida, à frequência e à tem poralidade dos confrontos,
o que faz destas m encionadas u n id ad es de m obilização instrum entos ágeis de luta
política, num a co n ju n tu ra de violências sucessivas.
Pode-se adm itir, ainda, que sejam m ovim entos sociais de data certa - absolu
tamente situacionais e com fim anunciado. E m 1985, com o IV C ongresso Nacio
nal dos T rabalhadores R urais, tin h a-se u m p o n to de convergência de todas estas
lutas específicas. B asta ler nos A n a is’8 as proposições aprovadas, para se constatar
que foram contem pladas as questões concernentes aos “atingidos p o r barragens”
(CONTA G; 1985: 102-104), ao m ódulo adequado à atividade seringueira (ibid,
182), às desapropriações p o r utilidade pública que não foram antecedidas por de
sapropriações p o r interesse social, ao recurso à violência de que se valem “em pre
sas estatais e agências governam entais com o a C H E S F , a C O D E V A SF , o G E -
TAT (ibid, 67); às relações de trabalho e inobservância da legislação trabalhista
(ibid,147-176), etc. O p roblem a da reform a agrária abarcava então m últiplas ques
tões e o m ovim ento sindical dos trabalhadores rurais concentrava a orientação,
numa conjuntura definida com o de transição dem ocrática”, de um a infinidade de
lutas específicas e localizadas.
Nos quatro anos seguintes, os conflitos se intensificaram m ediante o retraim en-
to da ação fundiária oficial, e parecem te r havido dificuldades políticas e operacionais
por parte de organizações sindicais para continuarem a concentrar a condução das
reivindicações e exercer sua m ediação com eficácia. A dinâm ica das lutas localizadas e
dos confrontos, transcendendo de certo m odo determ inadas intermediações, impeliu
a uma relativa dispersão as práticas reivindicatórias. Aquelas referidas estruturas pa
reciam ineficientes para com portá-las e conduzi-las. E m princípio dc 1989, quando
se aguardava a realização do C ongresso para eleger a nova diretoria da C O N TA G ,
retomando um processo de condução organizada de lutas de massa, sujeitas à disper-
27
são e marcadas pelo aguçamento dos confrontos, tal não sucedeu. A oportunidade
de discutir os impasses foi perdida. O chamado “tem po dos primeiros encontros”, já
agendado, desde fins do ano anterior, se cumpria então com mais impulso, tentando,
como ainda agora, “reconccntrar a dispersão”.
H á outra, análises correntes que assinalam tendências burocráticas, que asfi
xiaram organizações sindicais e facilitaram a dispersão de lutas e a emergência de
outros organismos de representação. Indicam , tam bém , a não-renovação de lide
ranças centrais como fragilizando a mediação nos confrontos. Interessa, porem,
chamar a atenção para dois tipos de impasses com que está se havendo hoje a orga
nização sindical dos trabalhadores rurais; de um lado, o caráter am plo e difuso das
unidades de mobilização, congregando diversos segmentos sociais e orientando-
-se, sobretudo, pela lógica dos enfrentamentos; e, de outro, um m ovim ento qualita
tivamente distinto que busca separar, organizacionalmente, o proletariado rural do
campesinato possuidor de terra. O s processos reais e as realidades localizadas, que
envolvem o primeiro impasse são de natureza diferente das condições ideais que
predefinem o segundo e que até o momento parecem ocorrer, fundam entalm ente,
no Estado de São Paulo'9.
» O V Congresso National dos Trabalhadores Rurais, finalmente realizado entre 26 e 30 de novem bro de
1991, em Brasilia, não logrou aglutinar todas as lutas reivindicativas, embora tenham sido incorporados à
chapa vencedora membros da CUT, tentando reduzir de certo modo a referida dispersão.
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quem vai regendo gradativam ente o pano de fundo das negociações por parte do
governo não ap_arece_para discutir e, sem fazê-lo, dita as regras do jogo.
0 ex-presidente da U S A G A L , no seu m anifesto de 15 de abril de 1989, chega
a perceber isto, cham ando a atenção para o que pode ser considerado uma hiper
trofia de funções da S A D E N e dos segm en tos da burocracia militar executores de
suas decisões, nom eados por A ltin o M ach ad o de “vontade feudal dos fardados de
gabinete” (M achado; 1989):
2o Leia-se P in to , Lúcio Flávio - "O Exército vai reforçar se u e fe tiv o e m M arabá, in stalan do novas unidades,
uma aerotran sp ortad ora e o u tr a d e b lin dad os." J o r n a l Pessoal, n° 9 - janeiro d e 1988 p.5.
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com setores do empresariado c segmentos do poder local. Afinal a pressão de mobi
lização de índios, trabalhadores rurais, entidades confessionais e ambientalistas lo
grou obter a suspensão oficial por três meses da aprovação de projetos beneficiários
de incentivos fiscais e crcditícios. Assim, rcalizou-se em M anaus, entre 06 c 08 dc
março de 1989, o III Encontro dos G overnadores da A m azônia Brasileira, ocasião
em que o general Rubem Bayma Denis, secrctário-geral da SA D EN , debateu com
os governadores o Programa Nossa Natureza, criado pelo Dec. 96944 dc 12 novem
bro dc 1988. N a mesma cidade, nos dias 06 e 07 de agosto de 1989, cerca dc 37 en
tidades empresariais (Confederação Nacional da Indústria, Confederação Nacional
da Agricultura, Confederação Nacional do Comércio, Associação dos Empresários
da Amazônia, Associação Brasileira da Indústria Eletro-Eletrônica, Associação
Brasileira de Investidores cm Projetos Incentivados, Associação dos Importadores
da Zona Franca, Sindicato da Indústria M adeireira do Am azonas, etc) promove
ram, com apoio do Governo do Amazonas, o I Encontro dos Em presários da Ama
zônia. Participaram cerca de 250 empresários, assistindo palestras proferidas, dentre
outros, por: senador Roberto Campos (PD S-M T ), deputado- federal Alysson Pau-
linelli (PFL -M G ), presidente da Confederação Nacional da Agricultura, e senador
Albano Franco, presidente da Confederação Nacional da Indústria. O s interesses
empresariais neste evento, mostram-se indissociáveis da ação do Estado e inteira
m ente tributários de suas concessões e benefícios. O docum ento final do encon
tro consiste na intitulada “Carta da Amazônia”, que anuncia a criação do Conselho
Empresarial da Amazônia, defende a “atualização do zoneam ento geo-econômico
e ecológico da região", bem como a manutenção da concessão de incentivos fiscais
e creditícios. Não há menção a conflitos e tensões e a questão indígena é tratada
como uma das “especificações”daqucle aludido zoneamento, num a ligeira referência
às “áreas de reservas indígenas”. Evidencia-se, assim, um a coalizão de interesses bas
tante consolidada, sobretudo, na defesa dos benefícios fiscais, am parando implicita
m ente o afundamento dos canais de intcrlocução urdido pelos aparelhos de poder31.
Através da Medida Provisória n° 150, de 16 de março de 1990, foi extinta a
Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional, mas a m encionada coalizão de
interesses não foi afetada. As iniciativas governamentais na A m azônia, persistin
do no propósito de reforçar a presença militar e o controle gcopolítico estratégico,
privilegiaram o chamado Programa Calha N orte. Inicialm ente tratava-se de um
program a circunscrito à faixa de fronteira, mas a burocracia m ilitar tem objetivado
um a ampliação para toda a Amazônia. Tal propósito é explicitamente mencionado
na Exposição do Ministro do Exército, General Carlos Tinoco, no Senado Fede-
zi Vide "Empresário tom a decisão pol ftica sobre a Amazônia" Jornal d o Brasil, 15 d e ag o sto d e 1989 p 8-9
nil, em 4 de abril dc 1991, sobre os conflitos na região doTraira, na fronteira com
a Colombia22. Ao contrário da finalidade histórica de “salvaguarda das fronteiras
amazônicas”, isto é, voltada prioritariamente para fora, a burocracia militar busca
descrever um movimento inverso, partindo de ações na faixa de fronteira interna
cional para dentro do território brasileiro. Senão vejamos:
u Para outras informações consulte-se: Exposição do Ministro de Estado do Exército, Carlos Tinoco. Ata da
29' Sessão Legislativa Ordinária, da 49* Legislatura. Diário do Congresso Nacional. Brasília. V. 17 n9 3 4 ,5 de
abril de 1991 pp. 1386-1404.
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à balcanização, isto é, de scparatismos e secessões, provocadas por conflitos étnicos
ou religiosos, quer seja no chamado Cone Sul, quer seja na fronteira Oeste ou na
Amazônia.
Em contrapartida à concepção autoritária de “ampliação para dentro” do Pro
jeto Calha Norte, os movimentos sociais no campo não só acentuam sua capaci
dade mobilizatória como descrevem um deslocamento no sentido inverso, isto é,
“para fora”, ao romper pelo conflito as linhas de fronteira internacional, relativi-
zando à sua moda o princípio da nacionalidade.
Em 23 de agosto de 1993, com as múltiplas pressões de diferentes movimentos
sociais e organismos transnacionais, a partir das notícias do massacre dos Yano-
mami, cm Haximu, maloca localizada na faixa de fronteira com a Venezuela, foi
anunciada a criação do Ministério Extraordinário para a Articulação de Ações na
Amazônia Legal. Formalmente se reconhecia as limitações do Projeto Calha Nor
te na administração de conflitos. Os quadros da diplomacia, que já compunham
as comissões consulares nas discussões sobre os conflitos sociais nas fronteiras in
ternacionais, envolvendo índios, garimpeiros, seringueiros e pequenos produtores
agrícolas, são convocados para a direção do Ministério. Ocorre a fusão deste orga
nismo com o preexistente Ministério do Meio Ambiente resultando no Ministério
do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, cujo titular é o ex-embaixador brasileiro
nos Estados Unidos, Rubens Ricupero. Suas primeiras declarações são no sentido
de promover a coordenação dos “mais de vinte órgãos públicos que hoje se ocu
pam da Amazônia”, conforme entrevista ao Jornal do Brasil em 16 de setembro
de 1993. Suas primeiras medidas referem-se à criação do Sistema de Vigilância da
Amazônia (SIVAM) apoiado numa rede de comunicações, como se a questão dos
conflitos sociais, dos massacres e das práticas de genocídio se devesse ao fato de
serem ocorrências marcadas pelo isolamento e pelas dificuldades de acesso, tributá
rias de fatores físicos e de natureza geográfica. A tentativa de responder, imediata
mente, a pressões sociais evidencia, entretanto, que, de certo modo, o próprio setor
público está em crise. O novo esforço de rearticular diferentes órgãos, objetivando
concentrar as ações numa conjuntura de graves conflitos sociais, simbolizados pe
los massacres e pelas chacinas, trata-se de uma forma de atualizar mecanismos de
controle que se tomaram defasados. Afinal, a dispersão dos movimentos sociais e a
inexistência de formas de interlocução e de arbitragem direta, capazes de adminis
trar os conflitos, deixam transparecer que a função homogeneizadora dos aparatos
de Estado encontra dificuldades hoje, na Amazônia.
Os mecanismos de controle social que tradicionalmente ignoravam diferen
ças culturais, desigualdades e especificidades econômicas, defrontam-se agora com
uma diversidade de segmentos sociais mobilizados em tomo de novas identidades
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coletivas e suas respectivas organizações representativas, em múltiplas ocorrências
de conflito, as quais constituem uma forma de afirmação da pluralidade sociológica
daquelas situações particulares c localizadas.
Ao contrário de outras regiões onde se sugere reduzir a presença do Estado, pri-
vatizando a economia e a sociedade, na Amazônia, região de fronteira, o Estado é
instado a reorganizar a função precípua de dominação de seus aparatos, expandin
do-a, intensifleando-a e separando-a da influência dos movimentos sociais. Para o
exercício deste tipo de controle é que preconiza medidas como o zoneamento econô-
mico-ecológico, as estatísticas censitárias e os recadastramcntos estimulados pela Se
cretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República. A despeito das
alterações de competência legal c da convocação de membros da burocracia diplomá
tica, deslocando momentaneamente os quadros dc formação militar, percebe-se que
se mantêm os mesmos pressupostos de ação autoritária, não permitindo que se vis
lumbre quaisquer medidas permanentes capazes de solucionar democraticamente os
conflitos e tensões sociais hoje registrados na Amazônia. Em contrapartida, intensi
fica-se a multiplicidade das formas de organização dc índios e camponeses, marcadas
por uma autonomia crescente face aos aparelhos de Estado, configurando um novo
capítulo da vertente autoritária do desenvolvimento capitalista na região amazônica.
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