(Série Vaga-Lume) O Preço Da Coragem - Raul Drewnick
(Série Vaga-Lume) O Preço Da Coragem - Raul Drewnick
(Série Vaga-Lume) O Preço Da Coragem - Raul Drewnick
CONTRA-CAPA
FINAL DA CONTRA-CAPA
APRESENTAÇÃO
PSIU!
Todos são suspeitos e as paredes têm ouvidos
Já fazia uma hora que Claudete havia chegado em casa com a espantosa
notícia, mas a mãe, dona Bete, ainda estava nervosa e preocupada.
- Não sei, não. Não sei, não - repetia ela, andando de um lado para o
outro da cozinha. - Seu pai vai ficar uma fera. Uma fera!
- Você acha, então, que eu não fiz bem?
- Não, Clau, não. Eu acho que você fez bem. Mas eu não sou seu pai.
Você sabe como ele é... Ô vida. Ô vida!
Claudete procurava aparentar tranqüilidade, mas estava tão nervosa e
preocupada quanto a mãe. Gostaria de fugir para bem longe dali, porque
quando o pai recebesse a notícia... Havia homens teimosos e homens muito
teimosos. Ele era muito, mas muito mais teimoso do que qualquer outro na
face do planeta. Quando dizia não, era não mesmo, sem possibilidade de
discussão. NÃO!!! com letras maiúsculas e três pontos de exclamação.
E agora ela, Claudete, que o conhecia tão bem, pela primeira vez em
dezoito anos ia desafiar para valer aquele homem - um heroísmo que dona
Bete, em cinco anos de namoro e dezenove de casamento, pouquíssimas vezes
tinha sido capaz de ousar.
O tomate que Claudete estava cortando para ajudar a mãe a fazer a
salada do jantar escapuliu de suas mãos, caiu no chão e tentou correr
para baixo da geladeira, mas ela conseguiu apanhá-lo antes que ele se
escondesse.
- Nossa! Parece que até ele está nervoso - comentou dona Bete. - Será
que seu pai põe medo até nas coisas?
Esse momento de bom humor, o primeiro em uma hora, afrouxou a tensão
que as duas estavam sentindo. Riram tanto que a mãe acabou chorando e a
filha teve um ataque de soluços. Enquanto uma pegava um lenço e a outra
tomava pausadamente um copo de água, o instante de alívio se desfez e
voltaram o nervosismo e a preocupação.
- Eu falo com o pai, quando ele chegar, ou você...?
- É melhor eu puxar o assunto, Clau. A gente precisa ir devagar.
Sempre que ele chega, vem nervoso com os problemas do trabalho, você
sabe. O jeito é deixar seu pai falar à vontade daquilo tudo até se
acalmar. Acho que a melhor hora para falar com ele vai ser depois da
sopa. Eu vou fazer a de...
- Ervilha?
- Como é que você adivinhou?
- Mãe, você é um gênio.
Claudete encheu a mãe de beijos. Para tentar amansar o pai, não
poderia haver nada mais eficiente do que uma sopa
de ervilha. Era o prato predileto dele, o único que o fazia suspirar de
satisfação e elogiar a mulher. Nunca tomava menos de três pratos.
- Então, Clau. Quando ele tiver acabado a sopa, eu entro no assunto e
seja o que Deus quiser. É melhor você não falar muito, no começo. Vamos
devagar, senão ele acaba com a gente.
Quando seu Júlio chegou e abriu a porta, Claudete concluiu que o pai
era mais forte do que qualquer exercício de ioga. Suas pernas começaram a
tremer vergonhosamente e a voz parecia a daquelas bonequinhas choronas
quando ela se levantou do sofá e disse:
- Boa noite, pai. Tudo bem?
Ele resmungou um boa-noite ininteligível, como fazia sempre, e não
quis perder tempo respondendo se estava bem. Sua filha devia saber que
ele estava sempre mal, muito mal. Seu fígado era uma droga, seu estômago
era outra, a pressão não andava boa e a respiração estava muito pior.
Também, com aquele maldito emprego que tinha, até um santo ia perder a
paciência e a saúde.
Claudete leu tudo isso no rosto dele, como vinha fazendo havia tempo.
Esperou que ele pusesse o paletó em cima de uma cadeira e lavasse as
mãos. Quando ele entrou na cozinha, ela criou coragem para se aproximar.
Viu o beijo sem entusiasmo que o pai deu no rosto da mãe e sentiu de novo
as pernas tremendo quando ele perguntou com sua voz de trovão:
- Afinal, come-se ou não se come nesta casa?
Parecia estar mais zangado do que nunca. Sentou-se
e lançou um olhar tão furioso às panelas no fogão que dona Bete se
apressou em dizer:
- Calma, Júlio. Está tudo pronto. Eu já vou servir. Só um
instantinho.
Aí ele começou a falar do seu assunto favorito: as contrariedades que
tinha no trabalho.
- Hoje aquele malandro daquele gerente saiu para o almoço e sabe
quantas horas ele ficou fora? Duas. É. Duas horas. E o cretino aqui, que
tinha um monte de serviço para fazer, parou tudo e foi lá tapar o buraco.
Subgerente é para isso mesmo. Fazer o seu trabalho e o dos outros.
- E o outro subgerente? - perguntou dona Bete.
- O outro subgerente? Aquele não presta para nada. E eu lá camelando
pelos dois. Recebendo vendedores, falando com fiscais, ligando para o
escritório central. Eu já estava meio doido com tudo aquilo e, aí, o que
acontece? Entra na sala uma velhinha ameaçando chamar a polícia e os
jornais porque não tinha encontrado na prateleira um detergente que
estava em oferta no nosso folheto de promoção. Quando eu disse que não
podia fazer nada se o produto tinha acabado, ela virou uma leoa. Pensei
que ela ia me despedaçar. Ainda olhei no computador para ver se tínhamos
no estoque mais algum pacote daquele maldito detergente. Nada. Aí a
velhinha saiu da sala me xingando de tudo que vocês possam imaginar. E
vocês sabem de uma coisa? Eu mereço. Eu mereço. Se eu tivesse vergonha na
cara, largava essa porcaria de supermercado. Os gostosões lá ficam
passeando, paquerando as moças, e eu dando duro sozinho. Droga! Droga!
Dois socos na mesa fizeram tilintar nervosamente os pratos e os
talheres. Dona Bete pediu que ele tivesse paciência.
- Paciência? O gerente ganha o dobro do meu salário. E o outro
subgerente, que não faz nem a metade do que eu faço, ganha mais do que
eu. Pouco, mas ganha. Fora o que ele recebe de caixinha para comprar uns
produtos e não comprar outros... Ele e o gerente. Meu Deus, a que ponto
eu cheguei! Estou com quarenta e quatro anos nas costas e ainda preciso
aturar essas coisas. Qualquer hora eu faço uma besteira das grandes, juro
que faço. Eles lá se enchendo de dinheiro e eu... Bem que meu pai me
falava que eu devia estudar para ser alguém na vida. Eu não acreditei
nele e, agora, não posso reclamar.
Claudete e a mãe ouviram o discurso sem interromper. Estavam mais do
que acostumadas. Sabiam que toda noite ele precisava daquele desabafo. Se
não dissesse o que pensava de Luís Antônio, que dividia com ele o
trabalho da subgerência, e de Vanderlei, o gerente, comia mal e dormia
pior. Por isso, elas sempre o deixavam falar, falar, falar à vontade.
Pouco a pouco ele ia se acalmando e às vezes - milagre dos milagres! -
até sorria e chegava a conversar alegremente com as duas, como se não
fosse o ranzinza incorrigível que era. Esses milagres se tornavam menos
impossíveis se em cima da mesa estivesse um bom prato de sopa de ervilha.
Era nisso que mãe e filha estavam apostando.
Logo que dona Bete destampou a panela e o cheiro da sopa se espalhou,
seu Júlio mudou de expressão. As rugas se atenuaram, o rosto se
descontraiu e ele lançou um olhar de gula ao fogão.
- De vez em quando você se lembra de fazer o que eu gosto, hem,
Betinha?
O começo da guerra não podia ser mais animador para Claudete e a mãe.
Nas raras vezes em que chamava a mulher
de Betinha, seu Júlio costumava se mostrar um pouco mais tolerante e
compreensivo.
Tudo parecia bem encaminhado, mas aí Claudete cometeu
um erro fatal: levantou-se, tomou o prato das mãos da mãe e resolveu ela
mesma servir o pai. Ele estranhou:
- Ei, o que é isso, menina? Você nunca foi assim gentil comigo. O que
é que está acontecendo aqui? Eu acho que vocês duas aprontaram alguma e
estão querendo me amolecer. Eu não vou entrar nessa, não.
Quando ele acabou de dizer isso, dona Bete olhou para a filha com
reprovação. Não haviam combinado direitinho a tática para enfrentar o
tirano? Por que ela, então, não tinha ficado quietinha no seu lugar?
Claudete retribuiu com uma careta que dizia: desculpe, mãe, eu sou
mesmo uma desastrada.
Seu Júlio observou o diálogo mudo trocado por elas e,
já com a cara fechada outra vez, reassumiu seu jeito de implicante.
Encarando o prato de sopa como se ali houvesse veneno, disse:
- Eu adivinhei, não é? Vocês aprontaram mesmo alguma, estou certo?
Então é melhor irem contando logo o que foi.
Bem que eu estranhei essa história de sopinha de ervilha assim numa
terça-feira... Vamos, vamos. O que foi que vocês duas andaram tramando
enquanto eu dava duro para sustentar esta casa?
Dona Bete sentiu que, se tentasse adiar a revelação, só iria irritar
ainda mais o marido. Se a fera precisava ser enfrentada, que fosse logo,
com ou sem o auxílio da sopa de ervilha.
- Você falou no duro que você precisa dar para sustentar a casa.
- E não é verdade?
- É. Eu não discuto isso. Mas eu também tenho procurado ajudar, não
tenho?
- Tem. Você sabe que eu reconheço isso. Sem o dinheiro das suas
camisas e dos seus pijamas, o orçamento já ia ter estourado.
- Então. Mas, mesmo com as camisas e os pijamas, todo mês o orçamento
tem cada furo...
- Tem mesmo. Mas o que eu posso fazer? Eu trabalho das nove às nove.
Estou lá quando o supermercado abre e estou lá quando o supermercado
fecha. Não sobra tempo para fazer mais nada.
- Não. Você não. Eu estou pensando é em...
- Espere aí. Você não vai me dizer que está querendo fazer ainda mais
camisas e pijamas para o seu Tufik... Você já não tem tempo nenhum!
- Não, Júlio. A solução não é por aí, eu sei. Por isso é que a
Claudete...
- O que é que tem a Claudete? Você não está pensando em ensinar a
Claudete a fazer camisas e pijamas, está? - Havia raiva no rosto de seu
Júlio.
- Não, Júlio. A Claudete não tem nenhum jeito para isso.
- Ainda bem. E, mesmo que tivesse, eu não ia permitir nunca. Nós
ainda não estamos na miséria, graças a Deus. Eu não quero que ela
trabalhe, por enquanto. Ela precisa é continuar os estudos. Eu não ouvi o
que meu pai me recomendou e olha o que aconteceu. Estou aqui quase com
cinqüenta anos, num emprego que eu odeio, mas que não posso abandonar,
senão minha família morre de fome. E eu não quero que minha filha chegue
à minha idade nesse mesmo sufoco.
- Júlio, me desculpe, mas eu vou discordar de você. Trabalhar todos
precisam um dia. E eu acho que a Clau...
- Vamos parar, vamos parar por aqui mesmo, antes que eu comece a
engrossar feio.
- ... e eu acho que a Claudete está bem na hora de ter o seu primeiro
emprego.
CAPÍTULO 5 - A BATALHA CONTINUA
Parecia impossível, mas seu Júlio estava ainda mais assombrado do que
no início da conversa. Brincar com ele? Essa era outra das grandes
novidades do dia. Ela não estava cansada de saber que ele não tolerava
brincadeiras? Além disso, não tinha gostado nem um pouco daquela história
de que ele não era de olhar para as mulheres. Nenhum homem gostaria dessa
fama...
Sentiu-se derrotado. Percebeu que a decisão de Claudete estava tomada
e que nada poderia mudá-la. Bom, se ela queria ir trabalhar no Mil
Ofertas, mesmo sabendo que aquilo era um inferno, o jeito era deixar. Não
dava uma semana para ela desistir. Fez uma pergunta só por perguntar, já
sem esperança de virar o jogo.
- Quer dizer, então, que já está tudo certo?
- Está, sim, pai.
- E com quem foi que você falou?
- Com o gerente. O Vanderlei.
- E ele sabe que você é minha filha?
- Eu não disse nada. Mas, depois que eu já estava aprovada, ele viu o
sobrenome e perguntou se você era meu pai. Aí eu disse que sim.
- Ainda bem. Pelo menos não vão dizer que você entrou por proteção.
Ele explicou direitinho como é o serviço?
- Explicou. E disse que no início outra caixa vai acompanhar o meu
trabalho, até eu me acostumar. Não é muito difícil, é?
- Trabalhar na caixa é sempre um problema. Mas o pior é o ambiente.
Aquilo lá é um nojo. Só fofoca, fofoca, fofoca. Quando é que você foi lá?
- Hoje.
- Aposto que foi na hora em que eu saí para almoçar.
- Foi. Eu cheguei lá pelo meio-dia e fiquei ali na esquina,
esperando. Você demorou um tempão para sair, hem?
- Você não acabou de me ouvir dizer que o sem-vergonha do gerente
ficou duas horas almoçando? Eu e o Luís Antônio só pudemos ir almoçar
quando ele voltou.
- O Luís Antônio é aquele que saiu com você?
- É.
- Ele não tem jeito de ser tudo aquilo que você diz que ele é.
- Você é ingênua mesmo, Claudete. Quem vê aparência não vê nada. Ele
é malandro, sabe o que é ser malandro? Vive exigindo dinheiro para
comprar o biscoito A e não comprar o biscoito B, para fechar negócio com
o iogurte X e não fechar negócio com o iogurte Y. Para mim, isso é
desonestidade. E do gerente, o que você achou?
- O Vanderlei? Também me pareceu normal. Um pouco vaidoso, meio
entrão, perfumadinho, mas fora isso...
- Um pouco vaidoso? Você viu a roupa dele? Parece roupa de lorde. E
aquele perfume chega a fazer doer a cabeça da gente. Vou lhe dar um
conselho: cuidado com ele. As moças de lá sabem que, para passar a mão e
agarrar, ele não pensa duas vezes. Outro dia, uma caixa, a Sueli, pediu a
conta e foi embora. Ele estava dando demais em cima dela. Sabe qual é o
apelido dele? Garanhão. Até a faxineira, que já tem uns cinqüenta anos e
é mais feia do que o rascunho do mapa do inferno, já levou mãozada e
agarrão.
- Nossa! Ele é assim, é? - escandalizou-se dona Bete, fazendo uma
careta de repugnância. Depois, reforçou o conselho:
- Então tome cuidado com ele, Clau. Eu, hem? Não fique sozinha com
esse homem, de jeito nenhum. O que ele pensa
que é? Dono das moças? Isso é assédio sexual. É só uma delas fazer queixa
e ele vai ter de se explicar com a polícia. Nenhuma ainda pensou nisso?
- Elas têm medo de perder o emprego.
- E essa tal, que pediu a conta, por que não fez uma denúncia à
polícia antes de ir embora, Júlio?
- Porque o Vanderlei não é tão bobo assim. Ele não dá muita bandeira.
Ia ser a palavra dela contra a dele. Ela arranjou outro emprego e achou
melhor sair numa boa do que acabar sendo demitida por justa causa.
- Mas como o safado ia conseguir isso?
- Ele é o gerente, não é? Ele pode armar qualquer coisa. Vocês acham
que, com essa falta de emprego, alguém lá ia ser louco de testemunhar
contra ele?
Com a tensão do diálogo, ninguém tinha dado uma colherada sequer na
sopa. Quando seu Júlio se lembrou de que na mesa estava seu prato
predileto e foi prová-lo, não gostou:
- Ô, mulher, isto aqui está frio. Assim não dá.
- Também, o que você quer? Você só fala, fala, fala. Calma, homem.
Hora de comer é hora de comer. Se não, a comida pode até fazer mal.
Espere um pouco, que eu vou esquentar.
- Foram vocês que provocaram - justificou-se seu Júlio e, para que as
duas não julgassem extinto seu mau humor, armou sua melhor cara de
zangado e resmungou:
- Afinal, come-se ou não se come nesta casa?
Seu Júlio chegou com a cara mais amarrada do que nunca. Entrou
pisando firme, como se fosse um soldado marchando. Atirou o paletó em
cima da cadeira e foi para a cozinha, onde Claudete continuava contando
as aventuras e as desventuras do seu primeiro dia de trabalho. Ao ver a
filha, ele puxou o ar com força, expeliu tudo de uma vez só e, sem dizer
boa-noite, começou:
- Cada dia, agora, você vem com uma revelação, não é?
Pressentindo que ele ia falar do almoço dela com Douglas, Claudete
ficou calada. O nervosismo do pai era tão sem fundamento que nem merecia
resposta. O silêncio da filha deixou seu Júlio ainda mais zangado.
Virando-se para dona Bete, ele perguntou:
- Sabe que eu dei um flagra nela?
- Flagra?
- É. Eu fui almoçar no quilo e quem estava lá? Sua filha, na maior
intimidade com um sujeitinho lá do supermercado.
- Já sei - disse dona Bete. - Foi com o Douglas, não foi?
- Ah, ela teve o descaramento de contar a você? Aí Claudete não
agüentou mais.
- Descaramento não, pai. Eu contei porque não vi mal nenhum nisso.
- Então você acha normal conhecer um sujeito e no mesmo dia ficar
mostrando todos os dentes para ele? Para mim, isso tem um nome:
assanhamento.
Claudete perdeu a voz e quem tomou a palavra foi a mãe, tão indignada
quanto ela.
- Júlio, quer dizer que você acha um crime a Claudete almoçar com
alguém?
- Almoçar? Ela estava era paquerando escandalosamente com ele. Só
você vendo.
- Mesmo que ela estivesse paquerando, qual é o problema? Ela já tem
dezoito anos, Júlio. Dezoito. Será que você nunca vai se lembrar disso?
- Bete, você não vê como isso é desagradável para mim? A filha do
subgerente na boca do povo?
- Meu Deus, como você é ultrapassado, Júlio. Você não existe. Você é
um dinossauro. Por que você não arranja um jeito de a Claudete almoçar
sozinha, trancada no banheiro?
- Vou pensar nisso.
- Às vezes eu acho que você está brincando.
- Brincando, eu? Eu estou é pensando no futuro dela. Trabalhando e
namorando, que tempo vai sobrar para o estudo?
- Você precisa aprender a confiar em mim, pai. Eu não sou mais
criança.
- E o que é você, então? Uma mulher?
- Não, pai. Eu sou uma idiota, por ficar tentando manter uma conversa
séria com o senhor.
- O quê? O quê? Você ouviu o que sua filha me disse, Bete? Se eu
dissesse uma coisa dessas ao meu pai, ele me enchia de bofetadas. Sabe de
uma coisa? Você já estragou meu apetite.
- Já que ele está estragado, acho então que não faz mal eu contar que
agora à noite eu fui com o Douglas à festinha da Selma.
Dessa vez, quem perdeu a fala foi seu Júlio. Enquanto ele procurava
uma resposta para a suprema ousadia da filha, Claudete deu um boa-noite
ríspido e foi para o seu quarto.
- Você é testemunha, Bete, você é testemunha. Acho que o que faltou
para educar bem essa menina foram umas boas surras na hora certa. A
culpada foi você. Quem educa as filhas é a mãe. Se ela fosse um menino,
você ia ver como ia andar na linha. O que tem para comer hoje?
- Olhe, o que tem está aí em cima do fogão. Se você puder esquentar
sozinho, é um favor. E, agora, se você não se importa, eu vou dormir.
Estou com muita dor de cabeça.
Boquiaberto, seu Júlio começou a destampar as panelas, para ver o que
ia jantar. Em quase vinte anos de casamento, era a primeira vez que ele
precisava esquentar a comida. Parecia ter perdido o controle tanto da
mulher quanto da filha.
CAPÍTULO 24 - DOIDINHA
Quando foi bater o ponto para sair, Claudete viu que um pouco atrás
dela na fila estava Doroti, com um dos rapazes da noite anterior. Todo
feliz, ele exibia uma mancha de batom no rosto e outra no colarinho. Quem
o visse não duvidaria que ele seria capaz de se atirar do último andar de
um edifício, se Doroti pedisse.
Ao olhar para os dois, Claudete percebeu que Doroti estava dizendo
alguma coisa dela, porque imediatamente seu apaixonado acompanhante deu
uma daquelas gargalhadas capazes de acordar até defunto.
Claudete bateu o ponto e, embora seu sangue estivesse fervendo,
conteve o impulso de encher de tapas o palerma e sua deusa. Contando até
dez pausadamente, para se acalmar, ela caminhou até a frente do
supermercado e ficou ao lado de uma banca de jornal, esperando Douglas
chegar.
Dois minutos se passaram e, no momento em que ela ia olhar de novo
para o relógio, teve sua atenção despertada
por uma moto que havia parado na frente da banca. Desviou o rosto, ao ver
que o motoqueiro parecia estar querendo falar com ela, e deu alguns
passos para se livrar da paquera, quando ouviu uma voz familiar:
- Claudete! Ô, Claudete!
Virou-se e, espantada, reconheceu o motoqueiro. Era Douglas.
- Por que você não me disse que andava de moto?
- Se eu dissesse, você não ia aceitar o convite para sair comigo...
- Você está querendo dizer que vai me levar para passear nisso aí?
- Falando assim, você vai magoar a Doidinha.
- Que Doidinha?
- Ela - explicou Douglas, dando umas palmadinhas carinhosas no guidom
da moto. - Prepare-se. Aqui em cima você vai viver loucos momentos.
Nesse instante, Claudete notou que Doroti e o escravo que a
acompanhava tinham saído do supermercado e se aproximavam. Teve então um
irresistível impulso de dar o troco. Encostou a orelha no rosto de
Douglas e fingiu que ele lhe dizia alguma coisa. Quando viu que os dois
estavam perto, começou a rir escancaradamente e a olhar para eles. A
expressão de raiva de Miss Batom e de seu lacaio lhe deu a certeza de que
a vingança tinha sido consumada, com as mesmas armas. Em seguida, sem que
Douglas precisasse pedir, ajeitou-se atrás dele na moto, abraçou sua
cintura e, exultante, ordenou:
- Acelera, comandante. Os loucos momentos nos esperam!
Ele obedeceu e, contagiado pelas gargalhadas dela, riu até chegar ao
farol. Lá, tirou o capacete e o colocou na cabeça de Claudete. Quando a
luz verde apareceu, ele arrancou de novo. Para Claudete, que pela
primeira vez andava de moto, era incrível a sensação causada pelo vento,
pelo barulho e pela trepidação.
Pararam na lanchonete com mesinhas fora em que haviam almoçado. Assim
que se sentaram, Douglas perguntou:
- Aquelas risadas eram para a Doroti e o Bebeto?
- Ah, é Bebeto o nome daquele cretino, é? Eu fiz aquilo porque ela
começou a rir de mim, na hora em que eu fui bater o ponto, e aquele
imbecil aplaudiu.
- Ah, foi? Então você deu a resposta em cima.
- Dei mesmo. E não me arrependo nem um pouco.
- Você fez bem. Quer comer alguma coisa?
- Não. A esta hora minha mãe deve estar preparando um superjantar. Se
meu pai não fosse careta como é, você podia até ir comer lá em casa.
- O que você vai beber?
- O suco de laranja daqui é ótimo. Eu vou querer um.
Douglas pediu dois.
- Qual é mesmo o nome dela? - perguntou Claudete, apontando a moto.
- Doidinha.
- Ah, é! Por quê? Ela corre muito?
- Corre, mas só quando tem vontade. E quase nunca ela tem vontade. Eu
preciso dar uma regulada nela. Acho que ela está com um parafuso a menos.
- Hoje ela está com vontade, não está?
- Já vi que você não entende nada de moto. Hoje ela está mais lerda
do que nunca.
- Lerda? Eu achei que ela estava correndo tanto!
- Se a gente viesse a pé, chegava antes. Quer mais um suco?
Depois que passaram pelo posto de gasolina, Claudete pediu a ele que
entrasse na primeira rua à direita.
- É nesta que você mora?
- É.
- Como é o nome dela?
- Sousa Araújo.
- Esta, então, é que é a famosa Sousa Araújo?
- Que eu saiba, ela nunca foi famosa.
- Pode não ter sido, mas agora é. Pelo menos para mim, é a mais
importante rua da cidade.
- Ah, é? E por quê? Posso saber? - perguntou Claudete, adivinhando a
resposta e já se envaidecendo com ela.
- Porque é na Sousa Araújo que você mora. Tinham parado na esquina,
cem metros depois da casa de Claudete, que não queria chamar a atenção
dos vizinhos.
A chuva caía mais forte agora, e Claudete e Douglas estavam
encharcados. Ela desceu da Doidinha e devolveu o capacete a Douglas, que
o apoiou no guidom. Depois ele estacionou a moto e também desceu. Pegou a
mão de Claudete entre as dele e disse:
- Prometi que você ia estar na sua casa às sete e meia e já são dez
para as oito. Desculpe.
- Tudo bem. Ainda tenho um tempinho para ajudar a minha mãe em alguma
coisa.
- Você tem ainda um minutinho, antes de entrar?
- Tenho.
- Ah, que bom. Porque eu preciso fazer uma coisa.
- O que é? - perguntou ela, de novo pressentindo o que aconteceria em
seguida e torcendo para que não deixasse de acontecer.
- Eu vou tirar esse cisco do seu rosto - disse ele, um segundo antes
de pôr a mão no queixo de Claudete e, beijando seus ansiosos lábios,
confirmar o pressentimento dela.
Claudete não sentiu o mundo girar, nem ouviu o toque de mil sinos -
emoções transmitidas pelas heroínas de tantos romances que havia lido -,
mas soube, enquanto fechava os olhos para que nada ao redor dela pudesse
distrair sua atenção, que aquela sensação jamais se repetiria. Daria
outros beijos em sua vida, mas nenhum a faria esquecer aquele. Procurou
definir que sabor era aquele que ela nunca havia provado, mas o tumulto
crescente do seu coração não lhe permitiu distinguir nenhum gosto senão o
da chuva, que ela bebia na boca de Douglas. Quando os lábios dos dois se
soltaram, ela abriu os olhos e se perguntou se depois daquilo o mundo lhe
pareceria o mesmo.
- Amanhã a gente se vê - disse ele. - Tchau.
- Tchau - sussurrou ela, pensando se aquele suave atordoamento que
sentia não era o mundo girando. E aquele zunido, ainda leve, não seria
por acaso o som dos mil sinos começando a tocar?
Entrou em casa sorrindo.
Dona Bete e Claudete estranharam seu Júlio, quando ele chegou. Estava
abatido, mas seu famoso mau humor parecia ter tirado folga. Abriu a porta
e, ao ver a mesa do jantar preparada na sala, não teve a reação que elas
temiam. Não perguntou que palhaçada era aquela, não fez cara feia, não
reclamou de nada.
Beijou a aniversariante e - surpresa das surpresas!
- estendeu-lhe um pacotão caprichosamente embrulhado. Pelo tamanho e pelo
esforço que ele fazia para segurá-lo, dona Bete e Claudete ficaram ainda
mais curiosas para saber o que era.
- Cuidado - advertiu ele -, é pesado.
- Nossa. O que é isto? - perguntou dona Bete, apoiando o pacote na
mesa.
- Aposto que são barras de ouro - brincou Claudete.
As duas começaram a abrir cuidadosamente o pacote, talvez pensando em
reaproveitar ou guardar como lembrança o fino papel cor-de-rosa, mas a
ansiedade de conhecer o que havia embaixo dele acabou prevalecendo.
Desistiram de preservar o papel e o inutilizaram logo, depois do primeiro
rasgo acidental feito por Claudete.
- Mãe, eu não acredito.
- O que é isso?
- Mãe, você não está vendo? É uma televisão!
- Nossa! É mesmo. Mas que exagero, Júlio. Para que isso? Nós já temos
televisão...
- Você e a Clau não se queixam sempre de que no domingo só eu vejo a
tevê?
- E não é verdade, pai? Você fica vendo um jogo atrás do outro...
Claudete acabou de dizer isso e, instintivamente, ficou à espera do
contra-ataque do pai. Mas ele não veio. Em vez dos berros que ela receava
ouvir, uma voz resignada disse:
- É verdade. Foi por isso que eu trouxe essa aí.
Dona Bete não sabia o que dizer. Olhava para o marido como se nele,
de repente, estivesse vendo outro homem - um estranho que, do seu Júlio,
tinha só a roupa. Depois de hesitar um pouco, ela perguntou:
- Mas você precisava trazer uma deste tamanho? Deve ter custado uma
fortuna! Eu não entendo. A gente vive discutindo um jeito de diminuir
gastos e você de repente enlouquece e me dá um presente como este?
- Você está esquecendo que nos seus dois últimos aniversários eu não
dei nada?
Mãe e filha se entreolharam, desnorteadas. Acabavam de descobrir que
o tirano tinha memória e podia até se lembrar de coisas sem importância,
como aniversários, recentes e antigos. Emocionada, dona Bete puxou a
filha para um canto e murmurou:
- Ah, como eu me arrependo de não ter feito a sopa de ervilha!
Dona Bete recebeu também com muita alegria a bolsa comprada por
Claudete.
- Menina, para que você foi gastar tanto dinheiro?
- Mãe, foi com o seu dinheiro que eu comprei... Quando eu receber o
pagamento, eu devolvo.
Para não verem suas lágrimas, dona Bete foi para a cozinha. Seu Júlio
lavou as mãos e sentou-se para jantar.
Além do abatimento, seu rosto mostrava agora preocupação. Dona Bete
achava que de ia começar a falar dos contratempos do trabalho, como fazia
todas as noites, mas ele não abriu a boca. Também não perguntou se afinal
se comia ou não se comia naquela casa. Pegou uns salgadinhos e se pôs a
mastigá-los sem vontade.
- As empadinhas não estão boas? - perguntou dona Bete, com seu brio
de cozinheira já um pouco ofendido.
- Estão, sim - ele respondeu, distraído.
- Não parece.
- Por quê?
- Pela sua cara. Parece que você está comendo vidro.
- Desculpe. As empadinhas estão gostosas, e as coxinhas também.
Ele pediu desculpas era outra novidade, uma vitória até. Mas dona
Bete queria uma retratação completa.
- E os pasteizinhos?
- Estão muito bons. Eu é que não estou.
- É, eu já vi. Sua cara não está nada boa. O que foi?
- Coisas do supermercado.
- Que coisas? As de sempre?
- É. E outras.
- Outras como?
- Nos últimos dias surgiu uma boataria.
- É sobre os roubos? - intrometeu-se na conversa Claudete.
- Até você, que tem só dois dias lá, também já ouviu?
- Aquilo ali é mesmo um antro de fofocas, pai. Você tem razão.
- Sempre foi. Mas agora a coisa está ficando insuportável. Todo dia
falam de roubos, de sumiço de mercadorias. Eu já conversei com o
Vanderlei, para ver se
ele quer ajuda para montar um esquema, mas ele diz sempre
que não precisa.
- Eu ouvi dizer que hoje a polícia esteve lá.
- Eu também. Só que eu não vi ninguém. Vocês não acham que eu, como
subgerente, devia ficar sabendo de tudo?
- Eu acho - concordaram ao mesmo tempo Claudete e dona Bete.
- Então. Só que eu fico sabendo das coisas como os outros
funcionários. Na base do diz-que-diz-que. E o pior de tudo é que, até
pegarem o ladrão, se é que existe ladrão, todo mundo é suspeito. Até eu.
Maldita a hora em que eu fui trabalhar no Mil Ofertas!
Aos poucos, seu Júlio foi se acalmando e até comeu a salada e a
lasanha com apetite. Chegou a reclamar do tempero da salada e Claudete,
com medo de que ele tivesse voltado ao normal, imaginou que logo ele iria
começar a falar dela e de Douglas. Mas ele não tocou no assunto. Parecia
preocupado mesmo com a situação no supermercado.
Claudete dormiu mal e teve um pesadelo. Nele, o pai era acusado de
ser o ladrão do Mil Ofertas.
De manhã, ela foi procurar a nota de compra da tevê. Devia ter
custado um dinheirão. Virou e revirou a caixa,
mas não a encontrou. Saiu antes do pai para o trabalho. No ônibus,
inquietou-se ao lembrar que o pai tinha dito alguma coisa sobre comprar
um carro logo. Depois, censurou-se por estar deconfiada dele. Seu pai
podia ser tudo, menos ladrão. Entrou no supermercado com um rosto que não
era o seu.
FINAL DO LIVRO