Psicologias em Tempos Pandemicos

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PSICOLOGIAS

EM TEMPOS
PANDÊMICOS:
EXPERIÊNCIAS PROFISSIONAIS,
FORMAÇÃO E PESQUISA

Jenniffer Simpson dos Santos


Felipe Maciel dos Santos Souza
Catia Paranhos Martins
Gabriela Rieveres Borges de Andrade
Organização
Esta obra é de acesso aberto.
É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte
e a autoria e respeitando a Licença Creative Commons indicada.

CONSELHO EDITORIAL

Prof. Dr. Thiago Ribeiro Rafagnin, UFOB.


Prof. Dr. Deivid Alex dos Santos, UEL
Prof. Dr. Adilson Tadeu Basquerote Silva, UNIDAVI.
Profª. Drª. Camila do Nascimento Cultri, UFSCar.
Prof. Dr. Gilvan Charles Cerqueira de Araújo, UCB.
Profª. Drª. Fabiane dos Santos Ramos, UFSM.
Profª. Drª. Alessandra Regina Müller Germani, UFFS.
Prof. Dr. Everton Bandeira Martins, UFFS.
Prof. Dr. Erick Kader Callegaro Corrêa, UFN.
Prof. Dr. Pedro Henrique Witchs, UFES.
Prof. Dr. Mateus Henrique Köhler, UFSM.
Profª. Drª. Liziany Müller, UFSM.
Prof. Dr. Camilo Darsie de Souza, UNISC.
Prof. Dr. Dioni Paulo Pastorio, UFRGS.
Prof. Dr. Leandro Antônio dos Santos, UFU.
Prof. Dr. Rafael Nogueira Furtado, UFJF.
Profª. Drª. Francielle Benini Agne Tybusch, UFN.
Profª DRª. Mônica Aparecida Bortolotti, UNICENTRO
Profª. Msc. Maricléia Aparecida Leite Novak, UNICENTRO
Prof. Msc. Sergio Ricardo Gaspar
Profª Msc. Elizandra Petriu Gasparelo, UNICENTRO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:


1. Psicologia 150
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

10.48209/978-65-5417-084-0

Diagramação e Projeto Gráfico: Gabriel Eldereti Machado


Imagem capa: Designed by canva
Revisão: Organizadores e Autores(as)

ARCO EDITORES
Telefone: 5599723-4952
[email protected]
www.arcoeditores.com
Os capítulos desta obra foram avaliados e receberam pareceres de

Dra. Ana Maria Del Grossi Ferreira Mota (UCDB)


Dra. Catia Paranhos Martins (UFGD)
Dra. Camilla Fernandes Marques (UFGD)
Dra. Denise Mesquita de Melo Andrade (UFGD)
Dra. Gabriela Rieveres Borges de Andrade (UFGD)
Dra. Giovana Barbieri Galeano (UFGD)
Dra. Jaqueline Batista de Oliveira Costa (UFGD)
Dra. Luciana Codognoto da Silva (UFMS)
Dra. Maria de Lourdes Dutra (UFGD)
Dra. Mariana Amaral (UNIFIL)
Dra. Rosalice Lopes (UFGD)
Dra. Rosimeri Aquino da Silva (UFRGS)
Dra. Tais Chiodelli (UFGD)
Dra. Verônica Aparecida Pereira (UFGD)
Ma. Denise de Matos Manoel Souza (UNIGRAN)
Ma. Natali Portela (UEMS)
Dr. André Thiago Saconatto (USC)
Dr. Bruno Passos Pizzi (UFGD)
Dr. Conrado Neves Sathler (UFGD)
Dr. Esmael Alves de Oliveira (UFGD)
Dr. Losandro Antônio Tedeschi (UFGD)
Dr. Paulo Eduardo da Silva (ANHEMBI)
Me. Alberto da Silva Santos (PUC-SP)
Me. Thiago Francisco Peppe Del Poço (UCS)
Sumário
Apresentação........................................................................................12
Jenniffer Simpson dos Santos, Felipe Maciel dos Santos Souza, Catia Paranhos
Martins, Gabriela Rieveres Borges de Andrade

PARTE I
Experiências na pandemia

CAPÍTULO 1

Caminhar com vidas: algumas questões sobre pandemia e sofrimento.............15


Anita Guazzelli Bernardes
doi: 10.48209/978-65-5417-084-1

CAPÍTULO 2

Desafios para a Psicologia na Assistência Social em tempos de pandemia:


histórias sobre a fome............................................................................................27
Angelo Luiz Sorgatto
doi: 10.48209/978-65-5417-084-2

CAPÍTULO 3

COVID-19, desigualdade social e processos de racialização: estratégias de


enfrentamento coletivo.........................................................................................38
César Augusto Assumpção, Brianne Benites da Mata de Camargo, Luan Kesley
Mendes Batista, Jenniffer Simpson dos Santos
doi: 10.48209/978-65-5417-084-3

CAPÍTULO 4

A Psicologia de Dourados na pandemia: a experiência no Centro de Atenção


Psicossocial Álcool e outras Drogas......................................................................51
Elenita Sureke Abilio
doi: 10.48209/978-65-5417-084-4
CAPÍTULO 5

Estágio Supervisionado no contexto da pandemia: reflexões sobre saúde mental


junto à equipe de um Centro de Referência de Assistência Social.....................61
Rayssa de Oliveira Duarte, Luan Fernando Schwinn Santos, Gabriela Rieveres
Borges de Andrade
doi: 10.48209/978-65-5417-084-5

CAPÍTULO 6

Em frente: construção de uma intervenção cognitiva autoguiada para pacientes


com sintomatologia depressiva............................................................................74
Mayara Vieira Santos, Amanda Marques Moreira, Luísa Feil Aquino, Betania
Moura Mathias, Karen Priscila Del Rio, Regina Basso Zanon
doi: 10.48209/978-65-5417-084-6

CAPÍTULO 7

Habilidades sociais no ensino técnico: um relato de experiência durante a


pandemia de COVID-19........................................................................................90
Elder Alves Silva, Henrique Cabral Furcin, Rebeca Pereira Manfré, Larissa Dronov
Oliveira, Jaqueline Batista de Oliveira Costa
doi: 10.48209/978-65-5417-084-7

CAPÍTULO 8

Habilidades sociais e competências socioemocionais ‘da pandemia para o dia


a dia’: um relato de experiência...................................................................102
Douglas Emanuel Silveira Ribeiro, Halana Antonagi Caseiro Lourenço, Valeria
Aparecida Risson Dallabrida, Dielma de Sousa Borges Cassuci, Denise Mesquita de
Melo Almeida
doi: 10.48209/978-65-5417-084-8
CAPÍTULO 9

(Im)Possibilidades do ensino remoto: um olhar da licenciatura em


Psicologia..............................................................................................................119
Ana Alice Cavalcanti Serejo, Jaqueline Batista de Oliveira Costa, Júlia Medeiros
Pereira, Luana dos Santos Machado, Mariana Beloto dos Santos
doi: 10.48209/978-65-5417-084-9

CAPÍTULO 10

Pré-natal psicológico online: práticas de promoção da saúde materno


infantil.................................................................................................................140
Ada Oliveira da Silva, Samara Goya Coelho, Valdirene Alves de Lima Rigoni,
Veronica Aparecida Pereira
doi: 10.48209/978-65-5417-084-A

PARTE II
Pesquisas na pandemia

CAPÍTULO 11

Vidas de mulheres no trecho..............................................................................156


Luciana Codognoto da Silva
doi: 10.48209/978-65-5417-084-S

CAPÍTULO 12

Políticas públicas para mulheres e encarceramento em massa feminino:


algumas aproximações.........................................................................................167
Thiago Luís da Silva, Maria de Lourdes Dutra, Conrado Neves Sathler
doi: 10.48209/978-65-5417-084-D
CAPÍTULO 13

Olhares sobre violência doméstica e familiar pelo periscópio de policiais


militares..............................................................................................................183
Eliciel Freire de Salles, Catia Paranhos Martins
doi: 10.48209/978-65-5417-084-F

CAPÍTULO 14

Criminologia feminista: discursos bionecropolíticos na mídia e no sistema


penitenciário.........................................................................................................201
Conrado Neves Sathler, Kyara Mauriane Oliveira Gradini, Rafaela Alexandre da
Costa, Tawana Mirelle Gonçalves de Oliveira
doi: 10.48209/978-65-5417-084-G

CAPÍTULO 15

Atenção Primária em Saúde e relação interpessoal: uma revisão da


produção científica, 2010-2019..........................................................................217
Júlia Medeiros Pereira, Bárbara Yumi Brandão Sakane, Gabriela Rieveres Borges
Andrade
doi: 10.48209/978-65-5417-084-H

CAPÍTULO 16

O prontuário do paciente na atenção primária em saúde: uma revisão


sobre a continuidade da informação e o registro de aspectos psicossociais...231
Barbara Yumi Brandão Sakane, Júlia Medeiros Pereira, Gabriela Rieveres Borges
Andrade, Elenice Machado da Cunha
doi: 10.48209/978-65-5417-084-J
CAPÍTULO 17

Desafios da saúde da população negra: Rede HumanizaSUS no enfrentamento


ao racismo..............................................................................................................249
Elizandra dos Santos Razera, Catia Paranhos Martins
doi: 10.48209/978-65-5417-084-K

CAPÍTULO 18

Primeira infância e políticas públicas: reflexões sobre o Programa Criança


Feliz.....................................................................................................................266
Luan Fernando Schwinn Santos, Gabriela Rieveres Borges de Andrade
doi: 10.48209/978-65-5417-084-L

CAPÍTULO 19

O ensino de Processos Psicológicos Básicos em Dourados.................................282


Maria Luiza da Costa Júlio, Gabriela Markus Chaves, Felipe Maciel dos Santos
Souza
doi: 10.48209/978-65-5417-084-M

CAPÍTULO 20

“Professores culpados”: algumas reflexões sobre dilemas do fracasso escolar


em escolas públicas na perspectiva de docentes de Mato Grosso do Sul....293
Esmael Alves de Oliveira, Fernanda Kozlowski Pinto, Daniela Sales, Liergi Vieira,
Daniele Marques, Tainá Luane da Rocha Mattoso
doi: 10.48209/978-65-5417-084-N
CAPÍTULO 21

O lúdico na terapia analítico-comportamental infantil..................................310


Juliety Aliny Souza, Felipe Maciel dos Santos Souza
doi: 10.48209/978-65-5417-084-B

CAPÍTULO 22

Teste de Flanker como instrumentalização complementar no rastreio do


Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade........................................321
Tainá Dauzaker Cespedes, Carlos Arturo Valiente Filho
doi: 10.48209/978-65-5417-084-V

CAPÍTULO 23

O suicídio na visão da gestalt-terapia................................................335


Thaynara Rodrigues Damasio, Dionatans Godoy Quinhones
doi: 10.48209/978-65-5417-084-C

CAPÍTULO 24

“Ele é um pouco estranho quando você não o conhece”: o transtorno obsessivo


compulsivo de Adrian Monk.............................................................................352
Ellen de Souza Valério Barbosa, Henrique Cabral Furcin, Jonatan dos Santos
Franco, Nagila Thaina Christ Gheller, Felipe Maciel dos Santos Souza
doi: 10.48209/978-65-5417-084-X

Mostra de Livre Expressão......................................................................367

Apresentação das autoras e dos autores..................................................373


Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Apresentação
A XI Semana Acadêmica de Psicologia e o V Simpósio da Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) foram
ações realizadas por meio de um único evento, que buscou reunir a comunidade
acadêmica entre os dias 25 e 27 de outubro de 2021, de forma virtual, tendo
como sede a cidade Dourados, no Mato Grosso do Sul. O evento foi organizado
pelo Centro Acadêmico Virgínia Bicudo e pelo Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da UFGD e teve como tema Psicologias e Práticas na Pande-
mia, agregando uma ampla diversidade de formas de expressão e pretendeu
ser um momento de troca, de aprendizagem e de reflexão, com o propósito de
contribuir para um debate transdisciplinar, público, gratuito e qualificado.

Este livro reúne contribuições que foram apresentadas e discutidas ao


longo do evento. São trabalhos acadêmicos de estudantes, docentes e profis-
sionais do campo das Psicologias e áreas afins, que materializaram reflexões
decorrentes de projetos de ensino, pesquisa e extensão, bem como relatos de
experiência de estágio e atuação profissional. Os capítulos foram separados em
dois blocos, o primeiro reúne experiências profissionais e de estágio e o segun-
do bloco, as pesquisas realizadas por estudantes e docentes na graduação e na
pós-graduação.

Somado ao debate acadêmico, o livro traz algumas produções que com-


puseram a “I Mostra de Livre Expressão: Atos, Retratos e Memórias da Pan-
demia”, que ocorreu de forma concomitante ao evento, e que expressam os
desafios da vida coletiva frente às incertezas que marcam o presente. Música,
poesia, desenho, colagens e demais produções recheiam o livro e não nos dei-
xam esquecer que precisamos de ar e de arte na pandemia e fora dela.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Gostaríamos de agradecer a todas as pessoas que participaram e organi-


zaram, com muita generosidade, o evento. Um agradecimento especial ao Cen-
tro Acadêmico Virgínia Bicudo, que é muito atuante no curso de Psicologia,
concretizando várias formas de resistir coletivamente. Por fim, agradecemos à
Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados
e ao PROAP-CAPES.

Boa leitura e um abraço afetuoso da comissão organizadora.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

PARTE I

Experiências na
Pandemia

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 1

CAMINHAR COM VIDAS:


ALGUMAS QUESTÕES SOBRE
PANDEMIA E SOFRIMENTO
Anita Guazzelli Bernardes
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-1

Este texto é fruto de um convite para participar de uma atividade acadê-


mica do curso de Psicologia da UFGD. Tenho um laço afetivo com a UFGD;
apesar das poucas vezes que estive lá, sempre fui carinhosamente acolhida e re-
conhecida pelo corpo docente. Essa consideração inicial, para mim, é relevan-
te, na medida em que vivemos uma política de inimizades em nosso presente,
de modo que se aproximar de outras formas de alianças, que não sejam o ódio
e a produção de inimigos, torna-se fundamental. Além disso, a possibilidade de
encantamento com encontros afetivos também se torna uma ferramenta para
vivermos e sobrevivermos atualmente. Então, como o texto organizou-se como
uma fala, manterei essa figura narrativa, considerando as potências de compar-
tilhamento que se apoiam nas tradições ancestrais, que são as oralidades, as
contações de histórias e as rodas de conversas.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Dito isso, é uma oportunidade importante estar aqui com vocês para fa-
larmos sobre sofrimento psíquico na nossa atualidade, e quero iniciar colo-
cando uma questão: depois de receber o convite e começar a pensar no que
poderíamos conversar hoje, confesso que senti certo desconforto, não pelas
possibilidades do encontro, mas pela temática “Psicologia e práticas emergen-
tes na pandemia”, sendo a mesa especificamente sobre “Sofrimento psíquico na
pandemia”. O desconforto veio por ter que refletir sobre algo que, de alguma
maneira, pudesse me permitir caminhar aqui, hoje, com vocês. O desconforto
veio porque essa caminhada significaria percorrer um campo que tem feito par-
te de nossas vidas, de modo insistente e incontornável, desde março de 2020.
Desconforto porque me parece que não conseguimos e não podemos não falar
de pandemia. Desconforto porque não sei se há ainda algo a dizer, depois de
tudo que já foi dito, escrito, discutido, ao longo destes dois anos de pandemia e
do pior que temos encontrado de nossas humanidades.

Em razão desse desconforto, resolvi fazer uma rápida rastreada na BVS


para ver se estava sendo injusta com a temática. Em um rastreio sem pro-
fundidade, apenas jogando dois descritores (pandemia e sofrimento) e datas
(2020/2021), apareceram, em 2020, o equivalente a 118.616 textos completos
e, em 2021, até o momento da busca, 4.140. Não li os materiais, portanto, não
me aprofundei no que estava sendo dissertado nos textos. Somente considerei
as quantidades, sendo esse um mero exercício para pensar a atualidade da te-
mática e sua tagarelice. Isso aponta não para a falta de originalidade, tampouco
de relevância, como se já tivéssemos dito tudo que precisava ser dito, mas, para
mim, o que seria possível ainda dizer ou continuar dizendo para que pudesse
estar aqui com vocês e, de alguma forma, falar algo que nos aproximasse da
proposta do evento?

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Frente a essa interrogação, assinalo que não sou uma pessoa muito dada
às tecnologias digitais. Escrevo isso pois hoje, na academia, o universo digital
tornou-se uma imposição às nossas rotinas de trabalho, portanto, uma das vias
privilegiadas que acessamos o mundo e a ele nos conectamos. Utilizo as tecno-
logias digitais na medida mesma que meu trabalho as impõe. Não se trata de ser
a favor ou contra, mas prefiro, quando posso, estar pessoalmente com pessoas,
dar uma aula, fazer uma banca; aprendi psicologia no encontro com as pessoas,
e não pelas intermediações entre as pessoas. As tecnologias digitais, para aque-
les que as acessam, permitiram que algumas atividades continuassem; para os
que não as acessam, aprofundaram os abismos das desigualdades e precariza-
ções. No meu caso, acabei acessando um universo digital que talvez, sem essas
imposições da pandemia, demorasse um pouco mais, ou mesmo nunca acessas-
se. No ano de 2020, não por ter mais tempo sobrando, acabei, por necessidades
do trabalho, entrando nesse universo digital para que ele pudesse auxiliar-me
como professora. Minhas buscas tiveram dois vetores fundamentais: como tor-
nar uma aula no Google Meet mais interessante e como trazer mais vidas para
dentro do Meet. A minha experiência com o universo digital, até então, era de
uma ausência de vida.

Com esses dois vetores, acabei por cruzar com diferentes vidas: literatu-
ra, música, entrevistas, podcasts, documentários, discussões das mais diversas.
Buscava nesses materiais algo que pudesse aproximar-me mais da experiência
do vivido, e não imagens em telas de computador. Ou seja, buscava o encanta-
mento e o tempo das ruas, e não os desencantos de uma vida intermediada por
tecnologias, gestão de tempo, medo. Seguia os rastros de uma vida praticada, e
não de uma vida funcional; rastros de vida de insistências e invenções: “Essa é
a minha história. Eu a contei. Por que me tornei fotógrafo? Porque me faltavam
palavras” (Latun [fotógrafo], 2016, p. 298).

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

O afastamento das experiências do vivido era possível para mim, com


o privilégio de estar no trabalho remoto e protegida da vida lá fora. Ao mes-
mo tempo, essa proteção escondia-me um mundo vivido, o mundo das ruas,
das experiências, dos cruzos. E foi com essa percepção/afetação que caminhei,
tentando desfazer o espaço virtual como lugar de passagem, para encontrar
vidas que ali aconteciam. Como queria algo da vida, não me ocupei em buscar
exclusivamente materiais teóricos densos, mas depoimentos, conversas, rodas,
bate-papos e o que mais que me conduzisse, como pegar onda. Comecei a pen-
sar que a literatura, por exemplo, não precisa mais ser somente uma forma de
exemplificar conceitos, mas uma forma de viver conceitos e criá-los, de modo
que os conceitos se atualizassem nas experiências. Comecei a tomar documen-
tários e rodas de conversas não como exemplos, mas como vidas acontecendo
com conceitos. Encontrei-me com tanta vida que, óbvio, passei a considerar
a minha própria vida. As vidas que encontrei trouxeram-me conceitos, e, em
tempos de pandemia, esses conceitos começaram a cruzar-se com os meus con-
ceitos. A vida deixou de ser o laboratório das experiências, e a academia deixou
de ser o laboratório de conceitos. Ambos produzem vidas e conceitos.

Outra pontuação frente a proposta do evento, considerando a ideia de


como vivo nestes tempos, é o cuidado que entendo ser necessário para não
tomarmos a pandemia como uma dimensão incontornável para a compreensão
de todos os processos sociais, inclusive os psíquicos, como se ela fosse uma
linha capaz de regularizá-los. Entendo também não ser possível “globalizar”
e universalizar a experiência e os efeitos da pandemia. Digo isso porque con-
sidero que a pandemia não é um evento igual para todas as formas de viver;
a pandemia afeta-nos de maneiras distintas e, em algumas situações, ela é só
mais um evento trágico e violento entre tantos outros, conforme tem sido assi-
nalado em estudos, discussões e caminhadas pelas ruas. Por exemplo, pessoas

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

que, em meio à pandemia e o “fique em casa”, foram retiradas de seus locais de


moradia, já extremamente precários, sem casa para ficar. Pessoas que não têm o
que comer, além de permanentemente serem vítimas de violências. Pessoas que
estão nos presídios em condições análogas às das senzalas. Pessoas que vivem
nas e das cracolândias. Essas, dentre outras, vidas em que a pandemia se tornou
mais um evento de uma política de morte – não o pior, mas mais um.

Assim, tentarei na montagem do texto seguir rastros que Silva e Nas-


cimento (2019) propõem sobre uma política do amor e não da morte: formas
como nos relacionamos com outras vidas, de modo a cuidá-las, a nos solidari-
zarmos, a caminharmos com elas, a estarmos com elas; alianças que fazemos
no nosso presente com outras vidas e modos de viver. Então, a pandemia seria
hoje a única maneira de nos afetarmos pelas outras vidas? Escutar o sofrimento,
hoje, implica circunscrevê-lo à pandemia?

Pensei, então, em duas questões básicas que, do modo como trabalho


em Psicologia, me permitem certos posicionamentos ético-políticos quando me
vejo convidada a falar sobre algum tema:

a) Há temáticas que nunca se esgotam, pois elas falam de nossa atualida-


de permanentemente; por exemplo, por que, ainda no século XXI, precisamos
falar de direitos sociais? De racismo? De sexismo? De fascismo? De iniquida-
des sociais? De torturas? Por que são temáticas de nosso presente, e não de uma
história de nosso passado? Por que precisamos, ainda hoje, atualizar temáticas
que dizem ser passadas?

b) A outra questão é o que eu gostaria de conversar aqui, considerando


o tema do evento e da mesa, sem me tornar muito repetitiva em relação a tudo
que vem sendo colocado sobre sofrimento e pandemia.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Cruzos de um caminho

Com essas duas questões, eu começo a tentar dar forma para a temática
“sofrimento psíquico e pandemia”, inspirando-me no livro Vozes de Tchernó-
bil: a história oral do desastre nuclear, da escritora bielorrussa Svetlana Alek-
sièvitch (2016, p. 40):

Este livro não é sobre Tchernóbil, mas sobre o mundo de Tchernóbil. Sobre
o evento propriamente, já foram escritos milhares de páginas e filmados
centenas de milhares de metros em película. Quanto a mim, eu me dedico
ao que chamaria de história omitida, aos rastros imperceptíveis da nossa
passagem pela Terra e pelo tempo. Escrevo relatos da cotidianidade dos
sentimentos, dos pensamentos, das palavras. Tento captar a vida cotidiana
da alma. A vida ordinária de pessoas comuns [...] Tchernóbil para elas não
é uma metáfora ou um símbolo, mas a sua casa.

Então, seguindo essas duas questões e as vozes de Tchernóbil, resolvi


contar um pouco de como tenho vivido nestes tempos pandêmicos e o que te-
nho me interrogado, a partir de afetações de um tempo, de uma catástrofe, de
uma Terra, que se tornaram a nossa casa.

Em uma política do amor cabe considerar que a pandemia talvez tenha


tornado um pouco mais visível o quanto certas vidas parecem não se enquadrar
no luto; existindo ou não, não fazem a menor diferença em uma política de
morte. Uma política que produz as violências da “cotidianidade dos sentimen-
tos, dos pensamentos, das palavras” (Aleksièvitch, 2016, p. 40), da vida ordi-
nária. Quando percebo isso, duas frases ressoam: uma de Conceição Evaristo
(Leituras Brasileiras, 2020) sobre a escrita de seus textos para dar conta de
uma história que é ao mesmo tempo singular e coletiva em que “viver é uma
sangria”; outra de uma mulher que, no mês de outubro de 2021, foi presa por
roubar miojo e suco para dar aos filhos que passavam fome e, quando liberada,
diz: “meu sonho é ser gente” (Teles, 2021; Brasil Urgente, 2021).

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Luis Simas (2021) fala dos cruzos, ou seja, das encruzilhadas que são
lugares de encontros. Encontros que não subsumem um caminho ao outro, mas
que produzem combinações, composições inéditas de caminhos. Essas afeta-
ções sobre como conversar com a temática da mesa e trazer a minha experiência
de encontros com a pandemia e com uma política do amor, posicionaram vidas
lado a lado, conduzindo para encruzilhadas dos caminhos: “vozes de Tchernó-
bil”; escrevivências e a sangria da vida; sonhar em ser gente. Encruzilhadas da
pandemia com o sofrimento. Encruzilhadas para escrever este texto.

É na encruzilhada que arriscamos nossos atos, é lá que nascem, criam-


se e consagram-se os batalhadores. Ao contrário da guerra colonial,
substanciada pelo desencanto da dominação, a batalha dos seres comuns se
inscreve como ato de liberdade, pois é fundamentalmente uma mirada pela
vida em toda a sua amplitude e formas (Rufino, 2020, p. 28).

Essas encruzilhadas, ou encontros dos caminhos, provocam tanto o de-


sencanto pela violência com que vidas são marcadas sistematicamente, quanto
encantos pela poesia e invenção das batalhas de seres comuns. Não se trata
de romantizar tragédias, como fala Conceição Evaristo (Leituras Brasileiras,
2020) sobre a criação de personagens em suas escrevivências, mas de consi-
derar os atos de insistências da vida: “sonho em ser gente”. Essas afetações
são provocações as nossas formas de viver: nos inquietam e nos fazem pensar
sobre nossa condição, no meu caso, privilegiada, para viver e sobreviver a uma
pandemia e ao mesmo tempo lembrar sempre que vivo/pertenço a um mundo,
a um tempo.

Então, sigo um pouco mais no caminho, pois “viver é melhor que sonhar”
(como cantava Elis Regina), e encontro-me com um evento organizado pela
UFAL – Universidade Federal de Alagoas, nomeado de “Formação diaspórica:
por escutas e afetos descolonizados” (2021). Consegui assistir a duas mesas
(César & Rodrigues, 2021; Oliveira, Kariri & Maciane, 2021), ambas com-

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

postas por pessoas negras, quilombolas, indígenas, tanto da graduação quanto


da pós-graduação, e um professor que terminou o doutorado há poucos anos.
Nessas duas mesas, o foco não era a pandemia, mas a academia, em especial,
o curso de Psicologia. A pandemia entrava em certos momentos para falarem
de algumas modificações sobre os deslocamentos e os problemas com internet,
mas as conversas, pois eram conversas, contavam das relações com a formação
acadêmica, com aquilo que encontravam, desencontravam ou não encontravam
na academia, independentemente da pandemia. Para mim, o que ficou muito
marcado foi a ideia de que a academia não os representava. A academia preci-
sava de outras epistemologias. Aquilo que ouviam, aquilo que estudavam, era
muito diferente das formas como viviam. Havia um estranhamento permanente
entre o que era dito dentro da academia e o que viviam ou compartilhavam em
termos de modos de viver, ou seja, a vida encantada das ruas.

A proposta de roda de conversa era justamente para afirmar e autoafir-


mar-se, partindo de outras performances do viver, como as das tradições orais,
como as epistemologias africanas e dos povos tradicionais. Apresentavam-se
falando de suas cores, de seus cabelos, de suas roupas, do espaço onde estavam.
Contavam não aquilo que encontravam na academia, mas seus itinerários de
vida e formas de sobreviver. Um dos alunos conta que a experiência de liberda-
de, para ele, é completamente distinta quando está na comunidade à qual per-
tence e quando vai para Maceió assistir às aulas. Outra aluna conta que apren-
deu com a mãe e a tia, mulheres de terreiro, da cozinha, das ervas, que estar na
capital é perder a relação com a terra e que o ar que falta na capital sobra na sua
cidade. A pandemia, aqui, era um dos caminhos, não o único. Junto à pandemia
e o sofrimento somaram-se a academia, a terra, a liberdade, a violência, os afe-
tos, as ervas, as conversas, as magias, as giras.

22
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Ao pensar nisso, conforme escrito antes, resolvi trazer esses cruzamentos


que tenho tido com a pandemia, considerando, claro, o sofrimento. Resolvi tra-
zer aqui o que mudou para mim em relação à psicologia. Pandemia e sofrimento
me trouxeram corpos encarnados/encantados e epistemologias subalternizadas.

Quando entendo o que considerar para falar sobre sofrimento psíquico


na pandemia, me vem, justamente, como vidas e conceitos têm se engendrado
com e além da pandemia/academia, já que nossa conversa é desde o lugar aca-
dêmico “Psicologia e práticas emergentes na pandemia”. Como olhar/ouvir um
sofrimento psíquico na pandemia/academia, se há tantos sofrimentos? Como
compreender/acolher o sofrimento psíquico frente a tantos desencantos? Como
nos encantarmos com a vida, sem perder as sensibilidades com as distintas
“sangrias do viver” nesta nossa atualidade?

Ana Emília Lobato (2021, p. 28) ajuda-me neste caminho para a com-
preensão do sofrimento psíquico e pandemia, e não propriamente sofrimento
psíquico na pandemia: um corpo mais bio-gráfico do que bio-lógico, um cor-
po “que é também texto, uma escrita da vida que foi se tecendo, sim, a cada
combinação genética aleatória, mas também a cada aprendizado, cada espanto,
cada gesto compartilhado”. O “E”, entre sofrimento e pandemia, entra aqui
como um multiplicador de experiências de vida e de conceitos. O “E” entra
como encruzilhadas, como linhas que se tecem, mais uma, mais uma, mais
uma, constituindo bio-grafias, vidas com distintas grafias, a vida das ruas, das
cozinhas, das florestas, das giras, da Terra. Então, não é o que o sofrimento é na
pandemia, mas que tessituras se cruzam com a pandemia: em algumas, ela de-
saparece; em outras, ela cresce; em outras, ainda, ela é somente uma pandemia.

Depois desses encantos, encontros, encruzilhadas, com essas bio-grafias,


com essas epistemologias subalternizadas e nos desafios das práticas emergen-
tes, ponderei que não sei se são emergentes as práticas ou urgentes: que psico-

23
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

logia é essa pela qual a juventude não se sente representada? Que psicologia é
essa que criou tecnologias que não eram para todas as vidas? Como fazemos,
ainda hoje, uma psicologia que não tem os pés na terra, apoiada em uma bio-ló-
gica ocidental, colonial?

Quando me escuto pensando nisso, lembro o que uma das estudantes de


psicologia – Yasmin Maciane da Silva1 – falou no evento que citei anterior-
mente: quando ela está escrevendo, dá várias paradas, passeios, caminhadas,
adora estar com o pé no chão, e, para ela, pensar é um exercício de conversa,
de oralidades, de ir falando e montando textos, grafias. Isso também ressoa em
mim, porque aquilo que entendo como práticas emergentes, mesmo parecendo
o mais óbvio para o campo psicológico, são justamente aquelas que deveriam
considerar as urgências das vidas, do vivido, de vidas comuns e suas batalhas
cotidianas, de gente que sonha ser gente, portanto, sofrimento e pandemia, mas
também: e fome, e violências, e racismos, e sexismos, entre tantas outras en-
cruzilhadas. Escrevo isso porque me parece que falamos tanto em escuta, que
deixamos de escutar; falamos tanto da vida, de histórias de vida, que deixamos
de pensar biografias em vida. Então, escutar o sofrimento psíquico é escutar a
vida como um acontecimento, com os pés na terra e a partir da terra, trata-se de
uma política do amor. Uma vida com os “E” que fazem os cruzos, as alianças,
as solidariedades. Talvez a pandemia seja um “E”, talvez não.

Em um Rio de Janeiro, distante do mar, sem o já raiou a liberdade, o povo


heroico e o brado retumbante, há quem continue insistindo em colocar na
água suja da aldeia, todos os dias, um barquinho conduzido nos tempos do
cólera por ela mesma, a danada da vida: sem limites e brotando como flor
nas fendas e um muro cinza bordeando a rua (Simas, 2021, p. 139).

1 Esta fala também aparece em um capítulo de livro em que é uma das autoras: Desobediências
epistêmicas e pesquisas monstruosas em psicologia social.
Oliveira, Érika Cecília Soares, Bleinroth, Maria Laura Medeiros, & Silva, Yasmin Maciane da.
(2021). Desobediências epistêmicas e pesquisas monstruosas em psicologia social. In Lílian Rodri-
gues da Cruz, Betina Hillesheim, Letícia Maísa Eichherr (Orgs). Interrogações às políticas públi-
cas sobre travessias e tessituras do pesquisar (pp. 13-32). Porto Alegre: ABRAPSO.

24
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Para algumas vidas, a pandemia tornou-se o sofrimento; para outras, nem


sofrimento nem efeito, apenas mais um dia de uma vida, da sangria de uma
vida, de querer ser gente, de ser fotógrafo porque faltam palavras. As urgências
com os sofrimentos são as escutas das diferentes vozes. Não se trata de dar voz,
mas de escutar distintas vozes. A pandemia não é a única palavra que é falada.
Talvez, assim, possamos pensar aquilo que as comunidades tradicionais insis-
tem em nos ensinar: as oralidades, as oralituras, as contações de histórias como
forma de aprender a ouvir. As tradições orais ensinam o compasso da fala, da
escuta, do silêncio, da espera. As tradições orais ensinam bio-grafias, ensinam
memória, ensinam “ensinamentos”, ensinam tempo, enfim, ensinam a vida.

Referências
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clear. São Paulo: Companhia das letras.

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prisão por roubar alimentos. [You Tube]. Recuperado de https://www.youtube.
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In Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Diásporas na Formação: por es-
cutas e afetos descolonizados – Formação [Evento online – You Tube]. Maceió
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Labato, A. E. (2021) Corpo-herança, corpo biográfico. Revista Cult, 271, 28-


29.

Latun, V. [fotógrafo]. (2016). Monólogo sobre o fato de que se deve somar algo
à vida cotidiana para compreendê-la - Terceira Parte: A Admiração Pela Triste-
za. In S. Aleksièvitch (Org.), Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre
nuclear (pp. 239-338) São Paulo: Companhia das letras.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

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cia. [You Tube]. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=QXopKu-
vxevY

Oliveira, I., Kariri, T. & Maciane, Y. (2021). Histórias e heranças: Pela mão
do povo negro, pela mão do povo indígena. In Universidade Federal de Ala-
goas – UFAL. Diásporas na Formação: por escutas e afetos descolonizados
– Formação [Evento online – You Tube]. Maceió – AL: Universidade Federal
de Alagoas – UFAL. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=djcN-
q6dgF_g

Rufino, L. (2020, jan. 27). Batalha contra o desencanto: a encruza como chega-
da. Revista Cult, edição 254, 26-28.

Silva, V. R. C. da, & Nascimento, W. F. do. (2019). Políticas do amor e socie-


dades do amanhã. Voluntas: Revista Internacional De Filosofia, 10, 168–182.

Simas, L. A. (2021). O corpo encantado das ruas (8a ed.). Rio de Janeiro: Ci-
vilização Brasileira.

Teles, L. (2021). A mulher que sonha ser gente. Revista Forum. Recuperado de
https://revistaforum.com.br/opiniao/2021/10/15/mulher-que-sonha-ser-gente-
-por-lel-teles-104781.html

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 2

DESAFIOS PARA A PSICOLOGIA


NA ASSISTÊNCIA SOCIAL EM
TEMPOS DE PANDEMIA:
HISTÓRIAS SOBRE A FOME
Angelo Luiz Sorgatto
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-2

Este texto é inspirado em uma contribuição realizada na mesa-redonda


intitulada “A psicologia de Dourados na pandemia” no evento online da XI
Semana Acadêmica e V Simpósio da Pós-Graduação em Psicologia da Univer-
sidade Federal da Grande Dourados (UFGD) no ano de 2021. Devido as parti-
cularidades da fala, além de possuir um linguajar mais “livre” devido a situação
onde a fala foi proferida, o texto está escrito ora na primeira pessoa do singular,
ora na primeira do plural, por conta da complexidade da experiência. Encontrar
as palavras para verdadeiramente “escrever” a vida cotidiana nas periferias das
cidades é uma tarefa árdua, ainda mais tendo que se precaver para não sucum-
bir à frieza distante da escrita técnico-científica e acadêmica.

A atuação do psicólogo no Sistema Único de Assistência Social (SUAS)


durante o período de pandemia de COVID-19 – que ainda vivemos – em Dou-

27
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

rados, MS, foi repleto de dilemas e desafios. O que nos provocou a (re)pensar
o fazer da psicologia diante do contexto sanitária vivido em escala global que,
por sua vez, acabou por escancarar e recrudescer, as desigualdades sociais en-
frentadas nas sociedades capitalistas e na nossa.

Nesse período, foi imprescindível às/aos trabalhadoras/res do SUAS a


ida ao território, pois os serviços da Assistência Social (AS) são considerados
essenciais – e diante da situação o foram de fato. Neste contexto, as/os traba-
lhadoras/res enfrentaram diversas dificuldades, desde a ausência de insumos
como, por exemplo, álcool 70º, até outros equipamentos que os protegessem de
se contaminar ou de disseminar o vírus da COVID-19. Foi necessário adquirir-
mos alguns desses itens com recursos próprios.

O conceito de território é importantíssimo para o Sistema Único de Saúde


(SUS) e também para o SUAS, eu diria até central, pois sem ele esses Sistemas
não se sustentam. Resumidamente, o território é o local permeado de vida, de
contradições, preconceitos, discriminações, alegrias, lutas. É local de jogos de
forças e de relações de poder que fazem parte da história das pessoas.

Em relação aos usuários – que no SUAS são nomeados como: usuários/


sujeitos de direitos –, os desafios e dilemas foram maiores ainda. Somente com
a ida à campo e com a escuta de suas histórias é que foi possível termos algu-
ma noção, ainda que não completa, de como a pandemia afetou famílias que
já viviam em uma situação de vulnerabilidade social. A ida ao território nos
permitiu entrar em contato com histórias bastante complicadas e tristes. Diante
desse cenário catastrófico, era preciso que nós (servidores públicos que atuam
em equipe multiprofissional no SUAS, em um fazer que é coletivo) andásse-
mos pelos bairros e paisagens das cidades (claro, sempre precavidos em relação
aos cuidados de saúde).

28
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Quando fui convidado para essa fala sobre as “práticas emergentes du-
rante a pandemia”, fiquei angustiado. Pensei: qual seria a prática emergente
que eu adotei em meu fazer enquanto psicólogo na assistência social? Depois
de repensar toda minha trajetória no decorrer desses últimos anos, cheguei à
conclusão que a melhor prática para o momento seria contar as histórias dos
usuários com os quais pude ter contato. Penso que contá-las faz com que dei-
xemos um pouco de lado o linguajar mais técnico – que, se não for olhado com
atenção, acaba por ser “tecnicizante” -, mas que também tem sua importância.
O momento, contudo, pede que o tecnicismo fique em segundo plano para que
a experiência de escuta das vivências dos outros venha à tona.

Por essa razão, compartilho com vocês algumas experiências que me


afetaram em campo durante a pandemia. Assim, trarei a história de um perso-
nagem (ainda que fragmentada devido ao recorte de tempo e à complexidade
inerente a vida de uma pessoa), que chamarei de “Josivaldo”.

Minha atuação como psicólogo no SUAS acontece no Centro de Refe-


rência Especializado de Assistência Social (CREAS) de Dourados, MS, espe-
cificamente no Serviço de Proteção e Atendimento Especializado à Famílias
e Indivíduos, mais conhecido por sua abreviação PAEFI (Brasil, 2011; Brasil,
2014). Este é um serviço da AS que lida, basicamente, com situações em que os
usuários/sujeitos de direitos do SUAS sofreram algum tipo de violência ou de
violação de seus direitos. Em síntese, o seu intuito é, em conjunto com a famí-
lia e/ou seus membros, alcançar a superação da situação que levou a violação
de direitos, tendo como foco de ação o fortalecimento dos vínculos familiares,
comunitários e sociais, a partir de uma lógica matricial e territorial.

Continuando. Em Dourados, nós tivemos dois lockdowns, dois isolamen-


tos daqueles “fica todo mundo em casa”. O primeiro foi realizado logo no início
da pandemia, diante da situação incerta que vivenciávamos. Já o segundo foi

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

extremamente necessário e ajudou bastante a lidar com o aumento dos casos


de Coronavírus e com a lotação das Unidades Tratamento Intensivo (UTI) na
cidade.

O meu encontro com Josivaldo iniciou pouco antes do segundo período.


A cena se desenrolou da seguinte maneira: era sexta-feira, por volta das 17h00.
No próximo dia teria início o segundo isolamento e a cidade ficaria em lock-
down por 15 dias. Organizávamo-nos para fechar o CREAS.

A equipe que atua no CREAS é composta por diversos profissionais, den-


tre eles: assistentes sociais, psicólogos, advogados e técnicos-administrativos.
Destes, uma parte já havia ido para casa, e apenas uns poucos colegas restavam
no local. De repente, um senhor, muito magro, deixa sua bicicleta na frente do
equipamento e se aproxima de nós com ares de muita preocupação. Sem se
apresentar, Josivaldo – que aparentava estar desesperado - nos disse: “Eu tenho
arroz pra uma noite. Eu tenho três netas. Eu não sei o que fazer”. Ele estava
atrás de algum alimento, comida ou alguma cesta básica, pois não havia conse-
guido alimentos suficientes para passar pelo isolamento.

Eis um breve retrato de Josivaldo. Ele tem 56 anos, é trabalhador infor-


mal, ganha a vida fazendo “bicos” ou como servente de pedreiro (uma profissão
mal remunerada e que dependa da força física). Foi a partir desse encontro que
iniciaram os meus questionamentos (in)diretos – e também em construção - ao
fazer da psicologia. De alguma maneira, penso que Josivaldo reúne, em um
único caso, a atuação de vários serviços públicos que vão desde a Educação,
passando pela Saúde e desembocando na AS. Mais para frente em meu relato
isso ganhará contornos mais definidos.

Em Dourados, nós temos lidado com um problema seríssimo causado


pela pandemia: a fome. Penso que a pandemia não foi a causadora principal

30
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

desse problema. Ele já existia latente em menores proporções há alguns anos.


Chama atenção os eufemismos utilizados nesta e em outras épocas para desig-
nar esse fenômeno, que já foi chamado, por exemplo, de “desnutrição”, mui-
to utilizado no passado recente do município, e hoje em dia recebeu o nome
de “insegurança alimentar”. Tal subterfúgio é feito claramente para diminuir e
mascarar a gravidade do problema, que se alastra por todo o país.

Devido a conjuntura política e econômica do Governo atual (inflação,


desemprego, precarização das condições de trabalho, sucateamento dos servi-
ços públicos), o Brasil retornou ao mapa da fome e esta tem sido um problema
frequente na vida de milhares de brasileiros. A problemática foi imensamente
agravada com a crise sanitária causada pela COVID-19.

Importante reiterar que a pandemia parece ter escancarado essa situação,


mas não a criou. A problemática vem sendo gestada há alguns séculos e tem sua
gênese, principalmente, creio, no projeto de neoliberalização da vida humana,
que instaura o “cada um por si” e uma competividade perversa e mortífera, base
da lógica de mercado que atinge vários aspectos de nossas vidas.

Os usuários acompanhados pelo PAEFI, em sua maioria vivem em situa-


ção de precariedade, vulnerabilidade ou risco social, não só com a pandemia, já
antes havia um desmonte das políticas em curso, foram deixados à revelia por
um governo déspota, autoritário e oportunista, o que se agravou com a pande-
mia. Para algumas dessas pessoas o serviço público, seja na Assistência Social
e na Saúde, foi a diferença entre a vida e a morte, em um cenário que se repetiu
em outras localidades brasileiras.

Isto posto, após o primeiro contato com Josivaldo, realizamos sua aco-
lhida. Fizemos o possível, dentro do que era possível fazer no serviço público,

31
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

para auxiliá-lo. Ele foi encaminhado para outros equipamentos do SUAS, como
o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) do bairro onde residia,
para que recebesse a cesta de alimentos a que tinha direito. Então, começaram
alguns percalços que nos convocaram à reflexões, posicionamentos ético-polí-
ticos e críticos em relação ao fazer das psicólogas e psicólogos.

Os percalços foram os seguintes: havia uma família desesperada atrás de


alimentos, um senhor nos conta ter três netas pequenas e que não têm comida
para mais que uma noite; contudo, naquele período, diante de uma série de fato-
res, não havia disponibilidade de cesta de alimentos para concessão nos CRAS,
pois haviam problemas em relação às licitações para sua aquisição.

Com frequência ouvimos aquele clichê, que tem algum fundo de verdade,
“quem tem fome não espera”, isto é, neste caso, “quem tem fome não espera a
licitação”. Então, seguimos caminhos possíveis dentro do SUAS e também fora
dele. Assim, Josivaldo e sua família passaram pelo isolamento.

Mesmo que, tecnicamente, o caso do Josivaldo não se encaixasse nos


atendimentos prestados pelo PAEFI. Conforme a Tipificação Nacional de Ser-
viços Socioassistenciais, o PAEFI faz parte do nível Proteção Social Especial
de Média Complexidade do SUAS e sua atuação se dá com pessoas ou famílias
que tiveram seus direitos violados por conta das seguintes formas de violência:
Violência física, psicológica e negligência; violência sexual: abuso e/ou
exploração sexual; afastamento do convívio familiar devido à aplicação de
medida socioeducativa ou medida de proteção; tráfico de pessoas; situação
de rua e mendicância; abandono; vivência de trabalho infantil; discrimina-
ção em decorrência da orientação sexual e/ou raça/etnia; outras formas de
violação de direitos decorrentes de discriminações/submissões a situações
que provocam danos e agravos a sua condição de vida e os impedem de
usufruir autonomia e bem estar; descumprimento de condicionalidades do
PBF (Programa Bolsa Família) e do PETI (Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil) em decorrência de violação de direitos (Brasil, 2014, p.
29).

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Dessa forma, achamos por bem inseri-lo neste serviço e acompanhá-lo


por um período, de modo que pudesse ser inserido em outras políticas públicas.
Começamos o acompanhamento socioassistencial, amparado por um fazer em
psicologia crítico, atento às repercussões subjetivas e, principalmente, sociais
que a pandemia causou neste usuário.

Então ficou claro que a situação vivenciada por Josivaldo era atravessada
por uma rede de fatores que se conjugavam, e onde a pandemia foi apenas mais
um elemento que “jogou tudo no ventilador”. Historicamente haviam outras
variáveis, tais como sucateamento dos serviços e das políticas públicas, falta
de investimentos e recursos humanos entre outros, que deixavam suas marcas
no cotidiano dos usuários.

E aqui retomo as intersecções entre Educação, Saúde e Assistência Social


que afetaram Josivaldo. Este não possui um emprego formal, isto é, não traba-
lha com carteira assinada. A dificuldade em acessar os seus direitos trabalhistas
acaba por tornar mais desafiadora a situação enfrentada por Josivaldo. É im-
portante pensar como as situações de “desproteção social”, ou seja, dificuldade
de acesso à direitos trabalhistas, aposentadoria, educação, saúde, e assistência
social, repercutem e incidem na subjetividade das pessoas, trazendo-lhes, além
de dificuldades materiais, sofrimentos psíquicos. Muitos vivem com a dolorosa
instabilidade de um futuro incerto, sem segurança nenhuma.

Nos últimos anos, vimos uma série de “reformas” e “modernizações”


(no trabalho, educação e na previdência social, por exemplo) implementadas à
força no país, com a desculpa de tornar o país mais “competitivo” no cenário
internacional, mas isso às custas de quem? Às custas de famílias como a de
Josivaldo – mas, também, a minha e a sua – que precisam trabalhar hoje para
comer hoje. As “modernizações” dificultaram e precarizaram ainda mais a vida
dos usuários e enfraquecem as políticas sociais. A promessa de prosperidade,

33
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

tão alardeada como justificativas para essas “modernizações”, nunca chegou


até as periferias, quilombos e aldeias, entre outros territórios onde a vida acon-
tece.

Além do desemprego, Josivaldo possui uma condição de saúde muito


frágil. Como ele mesmo diz “o trabalho no pesado”, como servente de pedreiro
fazia com que ele sentisse fortes dores. Explico. Josivaldo possui um problema
no rim que o acompanha há anos. Ele contou que a cada um dia de trabalho nas
obras, passa outros três sem andar por conta das terríveis dores que sente. Para
sanar esse problema, ele precisaria se submeter a um transplante de rim.

Assim, antes da pandemia, o dilema de Josivaldo era o seguinte: ou ele


iria trabalhar para cuidar de suas netas e do restante da família, ou iria se sub-
meter a um transplante (cujo tratamento demandaria tempo e o impediria de
trabalhar). Dito de outro modo, sua escolha girava em torno de trabalhar com
dores para alimentar sua família ou cuidar de sua saúde e acabar com as dores
mas enfrentar outro problema que seria a impossibilidade de trabalhar.

Se a última opção tivesse sido a escolhida, após o procedimento cirúrgi-


co, ele teria que frequentar a hemodiálise. Para quem não sabe, a hemodiálise é
um processo bastante árduo para quem a realiza, isso porque demanda do sujei-
to muito tempo. Tardes e mais tardes naquelas máquinas de hemodiálise, cerca
de três vezes na semana. E a sociedade neoliberal não esperaria Josivaldo fazer
este tipo de tratamento, ou não lhe daria possibilidades de fazê-lo.

Como ele mesmo me disse: “a minha família primeiro e depois eu cuido


da minha saúde”. E Josivaldo abandonou o transplante e foi atrás de empre-
go para alimentar sua família, que naquele tempo já passava por dificuldades.
Aqui vemos o atravessador Saúde em sua vida, que junto com outros como, por
exemplo, Educação, à qual Josivaldo não teve acesso, afetaram-no diretamente.

34
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Muitas vezes o olhar da/do psicóloga/o deve incidir sobre os fatores e aspectos
político-sociais que perpassam a vida dos sujeitos.

Nesse sentido, qual o perigo do fazer psicológico acrítico? O perigo é


reproduzir o discurso neoliberal que individualiza e responsaliza o sujeito por
todos os infortúnios em sua vida, inclusive por aqueles que ele não tem con-
trole, como os históricos, políticos e econômicos, e que recaem pesadamente
sobre si. É ignorar completamente os aspectos sócio-históricos, econômicos,
políticos que atravessam o corpo das pessoas. É preciso enfrentar essa lógica
mercadológica e meritocrática que joga para o sujeito a responsabilidade pelos
seus infortúnios.

Eis, então, o papel fundamental dos serviços públicos e das políticas pú-
blicas (SUAS, SUS, Educação e, etc.). É preciso lutar para que essas políticas
continuem a existir mas que sejam ampliadas. Somente através de investimen-
tos, concursos públicos e trabalhadores/as das políticas sociais concursados
para atuar nesses locais, é que será possível enfrentar as desigualdades sociais
históricas em nosso país. A mais recente “modernização”, a Reforma Adminis-
trativa, consiste em um perigoso golpe aos serviços públicos. Precisamos estar
atentos!

Em síntese, esse foi um fragmento do que pude acompanhar em minha


jornada. (In)diretamente, creio que a história de Josivaldo chacoalha não só a
psicologia, mas todos aqueles que têm sensibilidade – e coragem – para ouvi-la
verdadeiramente e ser afetado por ela.

Psicólogas e psicólogos, encarecidamente lhes peço para que o dia em


que vocês andarem pelo território, que vocês se desvencilhem do saber apren-
dido nas faculdades para aprenderem mais sobre psicologia com as pessoas
desses locais. Temos muito a aprender com as pessoas que vivem nesses locais.

35
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

As experiências de vida enriquecem enormemente a psicologia. É preciso vi-


venciar o cotidiano de pessoas como Josivaldo, se for o caso, sofrer/experien-
ciar junto com ele, indignar-se, revoltar-se, resistir e, principalmente, lutar ao
lado das pessoas por uma vida mais justa.

Ao ir a esses locais, é preciso se desvencilhar de nossas “certezas teóri-


cas”, experienciar a prática que ali se apresenta, para que possamos retornar às
teorias (psicanálise, comportamental, sistêmica familiar, esquizoanálise, cogni-
tivo-comportamental e etc.), e também às universidades e clínicas, provocan-
do-as, deslocando-as e questionando-as: “E aí? E agora? Como vocês dão conta
disso sem assujeitar ninguém? O quê a história do seu Josivaldo ensina para
todos nós, para a psicologia? Como podemos escutar – verdadeiramente – as
nuances enfrentadas por ele e sua família?”

Não tenho como lhes dizer “olha, eu fiz isso e deu certo”, seria muita
pretensão minha. Por isso, gostaria de convidá-las/los a refletirem e se afeta-
rem pelas vivências de Josivaldo e, em seguida, repensar a psicologia. Para que
não fiquemos, como nos diz Fernando Pessoa (2011, p. 49), como “multidões
quotidianas nem alegres nem tristes nas ruas”, pois, ainda com Pessoa, para que
isso não aconteça é preciso com urgência “uma aprendizagem de desaprender”
(Pessoa, 2011, p. 35).

Assim, creio ser essa a melhor prática emergente disponível para o mo-
mento: contar histórias...

Referências
Brasil. Secretaria Nacional de Assistência Social. Ministério do Desenvolvi-
mento Social e Combate à Fome. (2011). Orientações técnicas: Centro de Re-
ferência Especializado de Assistência Social – CREAS. Brasília: Gráfica e Edi-
tora Brasil LTDA.

36
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Brasil. Secretaria Nacional de Assistência Social. Ministério do Desenvolvi-


mento Social e Combate à Fome. (2014). Tipificação Nacional de Serviços
Socioassistenciais. Brasília: Gráfica e Editora Brasil LTDA.

Pessoa, F. (2011). Antologia Poética: Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira.

37
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 3

COVID-19, DESIGUALDADE
SOCIAL E PROCESSOS
DE RACIALIZAÇÃO:
ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO COLETIVO
César Augusto Assumpção
Brianne Benites da Mata de Camargo
Luan Kesley Mendes Batista
Jenniffer Simpson dos Santos
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-3

Este texto aborda práticas comunitárias de enfrentamento à pandemia por


meio da análise do documentário Pandemia do Sistema (2020), dirigido por
Naná Prudêncio. O objetivo foi compreender práticas comunitárias de enfren-
tamento às vulnerabilidades sociais durante a pandemia. As narrativas presen-
tes no filme se associam a partir de problemas em comum, sendo recorrente a
fome, o racismo estrutural, a violência e o desemprego, temáticas mais profun-

38
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

damente enfatizadas neste trabalho.1 O documentário Pandemia do Sistema foi


escolhido como objeto de análise, pois, além de ser um material gratuito e de
fácil acesso, oferece destaque às vozes de pessoas que manifestam seus enfren-
tamentos através de suas próprias narrativas.

O processo de busca e seleção do documentário ocorreu a partir de sites


de busca, priorizando materiais nacionais e gratuitos que retratassem práticas
de resistência coletiva durante a pandemia. Após a seleção do filme, foi elabo-
rada uma decupagem analítica do material. No cinema, o termo decupagem se
refere à divisão do roteiro em cenas, planos e sequências para auxiliar a grava-
ção do filme. Uma decupagem de cunho analítico, adotada neste trabalho, se
refere à construção de uma tabela que permite relacionar momentos da narrati-
va a formulações conceituais, destacando: tema, fotograma, tempo, narrativa,
descrição e discussão. O referencial teórico foi construído a partir de textos e
filmes discutidos no Estágio Básico, com enfoque na História do Cinema e em
práticas comunitárias. Para compor a análise, exploramos a decupagem analí-
tica buscando elaborar discussões relacionadas às narrativas em conjunto com
bibliografias pertinentes. Foram priorizados conceitos relacionados ao desem-
prego, à fome e à organização da sociedade civil a partir das ONGS, devido à
recorrência desses aspectos ao longo do filme.

1 Apesar de reconhecida como um fenômeno global, a pandemia de COVID-19 tem se materiali-


zado de maneiras muito distintas ao redor do mundo. Essa disparidade está relacionada principal-
mente a fatores socioeconômicos e governamentais, responsáveis pela produção de experiências
individuais e coletivas que, de acordo com a organização política do espaço social, perpassam as-
pectos como idade, classe, cor, gênero, condições de acesso à saúde, emprego e desemprego, entre
outros. No Brasil, a chegada do vírus se desdobrou em uma crise sanitária de proporção duradoura
e desordenada, agravada por providências governamentais negligentes quanto à desigualdade so-
cial estrutural do país. Nesse contexto, diversas comunidades se organizaram em torno de práticas
que contemplem condições de acesso à saúde para a população local no contexto pandêmico.

39
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

O filme Pandemia do Sistema - O retrato da desigualdade


na cidade mais rica do Brasil

Pandemia do Sistema é um documentário dirigido e roteirizado por Naná


Prudêncio e realizado pela produtora Zalika Produções, o qual utiliza como
recurso entrevistas realizadas entre março e julho de 2020 com moradores das
periferias de São Paulo durante a Pandemia de COVID-19, destacando algu-
mas mobilizações coletivas da vizinhança para amparar pessoas próximas em
condições de vulnerabilidade. O material está disponível gratuitamente no ca-
nal da Zalika Produções na plataforma de vídeos YouTube. As narrativas em
primeira pessoa e a montagem fotográfica tiveram como proposta estabelecer
diálogo com a própria comunidade, evidenciando sobretudo as vozes que lu-
tam contra os efeitos da dominação socioeconômica das favelas (informação
verbal).2 Conforme exposto no filme, os entrevistados e seus familiares são
vítimas da desigualdade social há muito tempo, sendo destituídos de acesso a
recursos básicos da vida cotidiana. A produção audiovisual desperta reflexões
acerca de fatores que contribuem para a disseminação do vírus e intensificam a
desigualdade, como o sucateamento de serviços públicos e a falta de assistência
básica a uma grande parte da população. Como forma de minimizar os impac-
tos da pandemia, os moradores das comunidades presentes no documentário
se uniram para desenvolver medidas relacionadas à conscientização, arrecada-
ção de cestas básicas e revezamento de tarefas. Os depoimentos demonstram
que a desigualdade faz parte da constituição histórica das favelas, pois a falta
de segurança, saúde e educação sempre estiveram presentes nestas realidades,
porém, com o surgimento da COVID-19, os problemas foram agravados e ine-
gavelmente manifestos. Dessa forma, o título “Pandemia do Sistema” denuncia

2 Intenção exposta por Naná Prudêncio no debate sobre o documentário “Pandemia do Sistema”
por meio da plataforma IHAC Digital da Universidade Federal da Bahia (UFBA) no dia 22 de
outubro de 2020.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

que os impactos da pandemia na vida de algumas populações já eram previsí-


veis, dadas as circunstâncias sociais vivenciadas por estas e poderiam ter sido
evitados se as políticas de proteção social não estivessem voltadas à manuten-
ção do sistema neoliberal.

Desemprego e Processos de Racialização

Para atenuar e prevenir a disseminação do vírus, diversos países parali-


saram, total ou parcialmente, as atividades produtivas. Dessa forma, além da
crise sanitária, o período é marcado pelo aumento do desemprego e pela infor-
malização do trabalho. Costa (2020) aponta que a pandemia afeta com mais in-
tensidade a população que vive na informalidade3, sem acesso à proteção social
vinculada à carteira de trabalho. Diversas histórias em Pandemia do Sistema se
aproximam tematicamente a partir do desemprego e do trabalho informal. Uma
voz presente no documentário é a de Marcivan Barreto, residente em Heliópolis
há 40 anos e representante da organização não governamental CUFA (Central
Única das Favelas), a qual expõe a dificuldade de conseguir emprego devido
ao seu endereço. Marcivan diz que as dificuldades de inclusão no mercado de
trabalho são mais acentuadas na vida de seus amigos negros. O depoimento
de Marcivan é seguido pelo de Ana Paula, residente do Morro do Sabão, que
trabalhava em um restaurante, mas durante a Pandemia de COVID-19 ficou
desempregada e passou a produzir bolos na tentativa de obter acesso às neces-
sidades básicas. Ela compara as suas vivências profissionais e as dos antigos
colegas de profissão. Enquanto ela sempre foi motivada a trabalhar pela neces-
sidade de subsistência e não teve oportunidades de especialização em uma área
de interesse, os colegas de profissão que cursaram faculdade não precisavam
3 Para Costa (2020) o setor informal diz respeito aos trabalhadores privados de condições básicas
ou mínimas de trabalho e proteção social vinculadas à carteira de trabalho assinada, como férias,
salário mínimo, 13° salário, licença médica, licença-maternidade e seguro-desemprego.

41
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

do emprego no restaurante. A expressão “cresci na raça” é utilizada por Ana


Paula para apontar esta diferenciação e remete simbolicamente a uma atmosfe-
ra sócio-histórica de desigualdade racial, na qual a hierarquia colonial estrutura
a vida social através da opressão e da dominação de minorias marginalizadas.

Para Ianni (1996), a globalização do capitalismo, impulsionada pela au-


tomação e informatização dos meios de produção, resulta na crescente tecnifi-
cação do trabalho. De acordo com o autor, o desemprego atual não ocorre de
maneira cíclica, mas é estrutural no contexto de industrialização massiva, no
qual uma parte da população se torna excedente na dinâmica de produção am-
pliada do capital. Conforme Marx (1946/1947, p. 711 apud Ianni, 1996, p. 5),
“A acumulação capitalista produz constantemente, em proporção à sua intensi-
dade e à sua extensão, uma população operária excessiva para as necessidades
médias de exploração do capital, isto é, uma população operária residual ou
excedente”.

Destaca-se a análise de Cristiana Bastos (2020) sobre as plantações colo-


niais e seus efeitos persistentes nas relações de trabalho. Para a autora, a leitura
dos processos de nacionalidade e identidade devem partir da produção cultural
de diferenças difundida no sistema plantation, o qual reduz pessoas escravi-
zadas a uma única categoria e suprime suas particularidades. A racialização,
portanto, decorre da produção social de categorias raciais vivenciadas a partir
de imposições étnicas. Estas categorias se inscrevem no entendimento coletivo
enquanto naturais mas são contingentes e situadas em uma determinada confi-
guração histórica, econômica e cultural. O argumento de Bastos é importante
porque através dele pode-se perceber como as categorias étnicas e o processo
de racialização é forjado com bases na estruturação e manutenção desigual do
capitalismo.

42
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Ao analisar a pandemia de COVID-19, Jonnefer Barbosa (2020) argu-


menta que o conceito de biopolítica não é suficiente para dar conta da realidade
vivenciada no Brasil. Isso porque, não se busca catalogar a população para tirar
o máximo proveito dela. O que se busca é o oposto disso, ou seja, é utilizada
uma política de desaparecimento, nos termos do autor, enquanto estratégia de
governar através da criação de ausências e de esquecimentos. A política de
desaparecimento opera no plano histórico a partir da destruição de rastros, his-
tórias e memórias de uma população no projeto de dominação do Estado, diz
o autor: “Fazer alguém desaparecer, apagar os rastros desta vida, não se reduz
ao ato de matá-la.” (Barbosa, 2020, p.1). As repercussões subjetivas da política
de desaparecimento podem ser imaginadas a partir da narrativa de Raimunda
Boaventura, moradora da Favela do Leme, que descreve a situação da pande-
mia como “viver em um filme de terror”. Raimunda retrata no documentário as
dificuldades enfrentadas na busca pela inserção profissional: “Desde quarenta
e cinco anos que eu não consigo trabalho. Foi milhares de currículos que eu
enviei e que fui presencialmente pra tentar uma vaga… sem êxito. Chegou num
momento que eu desisti. É humilhante, mas eu desisti. Porque não é justo, só
porque a pessoa é negra (...) A pessoa se olhar pela cor, se sentir renegada…
me senti humilhada em algumas empresas que eu trabalhei também”. Seu rela-
to, assim como os anteriores, evidencia a vinculação entre sofrimento, raciali-
zação e relações de trabalho, refletindo a estrutura política vigente.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Fotograma 1. Tempo 2’08”

O filme mescla narrativas de pessoas afetadas pelo desemprego, como


Marcivan, Ana Paula e Raimunda. Conforme Shohat e Stam (2006), a prática
artística no cinema não apreende o real de maneira direta mas constitui uma re-
presentação social, uma enunciação situada em um mundo sócio-ideológico. A
partir de uma representação válida da população mais atingida com o problema
estrutural4, a junção de relatos coletivos possibilita uma leitura do tema que ul-
trapassa leituras quantitativistas. Considerando que os agentes governamentais
na democracia ocidental atuam a partir de cargos representativos, a questão do
direito à representação em textos midiáticos adquire importância política, espe-
cialmente no caso de populações que historicamente foram impossibilitadas de
narrar a própria história5.
Fome

A fome neste trabalho é entendida como uma violação dos direitos hu-
manos relacionada à ingestão diária inadequada e insuficiente de nutrientes.
Uma amostra do problema é a história de Cicera Mariana, mãe solteira de doze
filhos, residente na Favela da Ilha. O auxílio emergencial não chegou nessa
família, pois não tiveram acesso à informações sobre como reivindicar seus di-

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

reitos. Se não fosse a organização de moradores para arrecadar cestas básicas,


muitas famílias como a da Cicera não teriam o que comer.

Fotograma 2. 1’21’’ - 1’35’’

Uma das medidas adotadas pelo governo para controlar os efeitos econô-
micos da pandemia foi a implementação do auxílio emergencial. No entanto, a
execução do programa mostrou-se repleta de problemáticas: a ajuda financei-
ra só foi recebida pelos brasileiros após três meses de distanciamento social,
muitas famílias que precisavam do auxílio não tiveram o cadastro aprovado e
o valor, posteriormente reduzido pela metade, não se mostrou suficiente para
manter a segurança alimentar. Entretanto, como ressaltam Frutuoso e Viana
(2021) o problema da fome já persiste há muito tempo no Brasil:
O risco de aumento da fome no país já havia sendo alertado em discussões
e documentos de organizações da sociedade civil e da academia, diante de
reformas, como a trabalhista, com aumento do desemprego, da pobreza e
da desigualdade social; cortes e congelamentos de gastos públicos com im-
pacto direto em políticas públicas. Ilustram esse cenário as disputas recen-
tes relacionadas ao agronegócio que desmontam as estruturas públicas de
produção, distribuição e abastecimento de alimentos, reavivam as análises
de Josué de Castro e reforçam a sindemia global (...). (Frutuoso & Viana,
2021, p. 9).

O Brasil saiu do Mapa da Fome em 2014 e, segundo a FAO (Organização

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), isso acontece quando o


país tem menos de 5% da sua população em situação de subalimentação. A cir-
cunstância foi possível devido a estratégias macroeconômicas governamentais
voltadas à geração de empregos, correção do salário mínimo e desenvolvimen-
to de programas distributivos de renda. Foram desenvolvidas também políticas
de caráter regional, como o programa de agricultura familiar e a construção de
cisternas no semiárido para promover a diversificação de alimentos no prato do
cidadão (MPMS, 2017). Porém, o Brasil possui uma política descontinuada, ou
seja, o governo subsequente pode extinguir projetos e políticas públicas do go-
verno anterior, mesmo que apresentem bons resultados. É possível que o Brasil
volte para o Mapa da Fome no próximo Censo por conta do atual desmonte de
políticas públicas de combate à fome, cenário evidenciado a partir de 2017, com
o congelamento de vinte anos nos gastos públicos (PEC 241/PEC 55)6, alta do
desemprego e corte em benefícios sociais. As ações coletivas ensinam o cami-
nho e fornecem base para a reivindicação de direitos, porém são emergenciais e
não agem na estrutura da questão. Estratégias de combate à fome precisam ser
pensadas de maneira intersetorial, baseadas no desenvolvimento de políticas
públicas voltadas ao problema considerando tanto suas causas quanto os efeitos.
ONGs e a atuação política da sociedade civil

Considerando as especificidades do contexto político brasileiro, torna-se


relevante compreender o espaço da sociedade civil na relação com o Estado,
assim como práticas de articulação que podem favorecer a inclusão social. No
Brasil, as ONGs atuam como porta-voz da sociedade civil em temas relacio-
nados aos direitos humanos7. Conforme Andion (2020), as incertezas impostas
6 A PEC 241 ou PEC 55, aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado durante a presidên-
cia de Michel Temer em 2016, congela as despesas do Governo Federal por 20 anos e caracteriza
um dos maiores impactos fiscais relacionados a gastos públicos das últimas décadas. A medida
tem sido criticada e questionada por conta de seu bloqueio no investimento em saúde e educação,
direitos previstos na Constituição que ainda não são garantidos aos brasileiros, sobretudo os histo-
ricamente marginalizados. Os efeitos da emenda também têm ameaçado programas sociais.
7 Seja na tomada de decisões diante do poder executivo ou através da influência no Congresso para

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

pela pandemia estabelecem a possibilidade de repensar as formas clássicas de


governar, questionando o espaço da sociedade civil diante da administração
pública. Em alguns momentos, Pandemia do Sistema exibe vozes representan-
tes de ONGS descrevendo os trabalhos realizados para conter os impactos da
COVID-19 na vida da população local. Italla Rocha, uma das representantes
das lideranças na região, descreve o processo de união entre as diversas ONGs
locais: “O entendimento de saber que, devido ao COVID, o desemprego e a
necessidade ia aumentar, a gente se uniu para que a gente pudesse, juntos,
ampliar (...) devido a essa ampliação de oportunidades com as lideranças, co-
meçaram a vir parceiros, foi aí que veio a CUFA, veio o Projeto Formiguinha,
vem os nossos amigos, vem a nossa comunidade, em prol de uma única causa,
que é estender (...)”. Syndi R., outra representante, residente na Vila Joaniza,
esclarece que as organizações atuam em conjunto em 27 favelas na tentativa de
ajudar cerca de seis mil pessoas cadastradas.

A presença das ONGs estabelece um novo elemento no âmbito político,


especialmente pela maneira com que se relaciona com o campo social se com-
parado aos atores tradicionais (partidos políticos e autoridades), constituindo
uma contraposição à tendência política de poder concentrado ao Estado (Pinto,
2006). Entretanto, é importante salientar que o estabelecimento de redes não
impede a instauração de estruturas internas piramidais e hierárquicas.8 Análi-
ses que contemplem a atuação das ONGs e suas redes podem investigar seus
efeitos e obstáculos frente às demandas sociais que se dispõem a combater,
fortificando ações de defesa dos interesses e direitos de populações excluídas
de decisões políticas.

pressionar a aprovação de projetos de lei.


8 Um exemplo deste tipo de dinâmica é simbolizado no filme Quanto vale ou é por quilo? de
Sérgio Bianchi (2005) o qual, a partir da representação de processos sócio-históricos brasileiros,
expõe que redes de ONGs nacionais e internacionais podem ser mais articuladas entre si do que
vinculadas às suas bases.

47
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Fotograma 3. Tempo 23’54”

Considerações Finais

A análise do documentário demonstra que a atual crise sanitária brasileira


foi agravada pela precarização das relações de trabalho e pela intensificação
da vulnerabilidade social, junto ao aumento do desemprego e da fome. Estes
elementos mostraram-se obstáculos às medidas de enfrentamento à pandemia.
Nossas conclusões apontam que a falta de assistência à população durante o pe-
ríodo é decorrente do modo de organização político-econômica neoliberal, ba-
seado na exploração e dominação de populações. Apesar da negligência gover-
namental histórica, estratégias de enfrentamento coletivo à pandemia indicam
que as relações sociais podem se mobilizar em torno de ações que contemplem
a vida comum. As potencialidades dessas ações podem orientar estratégias em
diversos âmbitos, inclusive na promoção de saúde. Quijano (1997/2010 apud
Alves et al., 2020, p.1) considera que a Psicologia no Brasil demanda um posi-
cionamento ético-político de enfrentamento aos discursos e práticas que man-
têm as estruturas de saber/poder da modernidade/colonialidade que perpetuam
a hierarquização social.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

A produção coletiva de Pandemia do Sistema, com atores que se auto-


-representam e contam suas próprias histórias, pode ser associada ao Cinema
Novo proposto pelo cineasta Glauber Rocha. A ideia defendida por Glauber era
a de uma abordagem cinematográfica autoral terceiro-mundista livre e revolu-
cionária, capaz de representar adequadamente as experiências das realidades
locais (Stam, 2000). Nesse sentido, produções audiovisuais como Pandemia do
Sistema (2020) funcionam como ferramentas de resistência extremamente rele-
vantes, pois atuam como porta-voz de comunidades historicamente silenciadas.

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49
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

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Stam, R. (2000). Introdução à teoria do cinema. Papirus Editora.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 4

A PSICOLOGIA DE
DOURADOS NA PANDEMIA:
A EXPERIÊNCIA NO CENTRO
DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS
Elenita Sureke Abilio
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-4

Este texto traz as contribuições compartilhadas na Mesa “A Psicologia de


Dourados na Pandemia”, realizada na XI Semana Acadêmica e V Simpósio da
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD) em 2021, com o tema Psicologias e Práticas Emergentes na Pandemia.

A proposta foi debater os caminhos da Psicologia no serviço público no


período da pandemia de Covid-19 a partir da experiência vivenciada por psi-
cólogos de quatro áreas distintas: saúde, assistência social, educação e justiça.
A autora atua como psicóloga e trabalha no Centro de Atenção Psicossocial
– álcool e outras drogas (CAPS AD) de Dourados, em Mato Grosso do Sul,
vinculada à Secretaria Municipal de Saúde.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

O CAPS AD faz parte da Rede de Atenção Psicossocial, um serviço que


presta atendimento público em Saúde Mental, referência de cuidado para usuá-
rios com prejuízos decorrentes do uso abusivo e dependentes de substâncias
psicoativas (Brasil, 2010). A demanda é espontânea, o espaço físico localiza-se
em área central urbana e atende a cidade de Dourados e a macrorregião com-
posta de 33 municípios. A equipe é formada por profissionais de várias áreas:
assistente social, enfermeiras, psicólogas, médicos clínicos, terapeuta ocupa-
cional e técnicas em enfermagem.

Uma das características da unidade é o trabalho em regime de porta aber-


ta, por demanda espontânea, sem necessidade de agendamento prévio. O usuá-
rio é recebido por um dos profissionais da equipe que utiliza o dispositivo de
acolhimento, que é a realização da primeira escuta, sendo essencial para o es-
tabelecimento de vínculo. Em seguida participa da elaboração de um Projeto
Terapêutico Singular, específico para as suas necessidades e demandas.

A equipe multiprofissional avalia o quadro do usuário e indica um cui-


dado em saúde mental adequado para cada caso. O CAPS AD também atua no
acolhimento às situações de crise e de intenso sofrimento psíquico. São oferta-
das três modalidades de atendimento: atendimento intensivo, que é preconiza-
do aos usuários com quadro clínico de maior comprometimento e que necessita
de um acompanhamento diário; a modalidade semi-intensivo, destinada aos
usuários que necessitam de um acompanhamento mais frequente, mas que não
necessita estar diariamente na unidade; e a modalidade não intensivo, onde o
usuário tem uma frequência menor, por ter atividades como trabalho, estudo
etc. (Brasil, 2010).

Outros dispositivos utilizados para atender os usuários são: Projeto Te-


rapêutico Singular (PTS), Visita Domiciliar, Estudos de Caso, Busca Ativa,
Oficinas Terapêuticas, Grupos Terapêuticos, Apoio Familiar, dentre outros.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

A Psicologia tem um papel necessário e urgente no debate sobre o tópico


“Dourados na Pandemia”, e nos leva a repensar o papel da profissão, o compro-
misso social, também enquanto ciência, e sobre os desafios do desenvolvimen-
to do trabalho exercido por psicólogas e psicólogos na rede pública.

A pandemia de Covid-19 no mundo ainda tem apresentado dados alar-


mantes diariamente. Houve a exigência de mudanças comportamentais, como o
isolamento social, como medida para evitar/reduzir a propagação do vírus, fato
que afetou a saúde mental da população.

A Psicologia, como ciência e profissão, precisa mobilizar o debate sobre


os impactos da pandemia na sociedade, sendo uma das principais profissões
da área de saúde que atende diretamente as demandas de saúde mental, seja
no serviço público ou privado. A instabilidade de comunicação, o repentino
isolamento social e a quarentena, o medo, as perdas, o luto, o desemprego, são
algumas questões primas destacadas como agravantes que afetaram toda a so-
ciedade. Guedes et al. (2020) citam que, desse modo, a psicologia foi convoca-
da a intervir abordando a complexidade do fenômeno e o trabalho teve que ser
expandido para novas modalidades/possibilidades.

Para contribuir com o tema da mesa, foi destacado um estudo realizado


pela Organização Mundial da Saúde (2020), o qual apresenta questões impor-
tantes que precisam ser debatidas nos espaços coletivos. Os dados se referem
a uma pesquisa divulgada em 130 países, onde é citado que 93% destes paí-
ses interromperam os serviços essenciais de saúde mental em decorrência da
pandemia. Outros dados importantes apresentados são: o efeito avassalador da
pandemia na saúde mental da população e o debate sobre o subfinanciamento
destes países destinados a políticas de saúde mental antes da pandemia e a pers-
pectiva do agravante pós-pandemia.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Outro dado significativo na mesma pesquisa cita que a população afetada


pela falta de assistência foram pessoas que se encontravam em extrema vulne-
rabilidade social. Além disso, a pandemia também afetou outras pessoas que
já apresentavam algum transtorno mental, inclusive os associados ao álcool e
outras drogas, e pessoas que já tinham comorbidades orgânicas. No entanto,
foram mais afetadas pessoas com necessidade de cuidados essenciais de saúde
física e mental (OMS, 2020).

O reflexo da pesquisa ora citada traz em seu conteúdo questões para re-
flexão sobre a situação vivenciada em Dourados. Então, o diálogo se referia
a dois pontos: às afetações da pandemia da Covid-19 na vida das pessoas em
vulnerabilidade psicossocial vinculada à demanda de álcool e outras drogas, e
outro ponto foi pensar o trabalho em saúde oferecido à população e exercido
nesse período.

A partir do Decreto Municipal nº 2.480 no mês de março de 2020, que


dispunha “sobre as medidas a serem adotadas para prevenção do contágio do
Coronavírus” (Prefeitura de Dourados, 2020), pudemos direcionar (apesar da
insegurança) as nossas ações iniciais. Mas este documento trazia a ideia de
proteção do usuário e do trabalhador de saúde com Equipamentos de Proteção
Individual (EPIs), como o uso de álcool em gel, máscara, distanciamento so-
cial, mas estas eram informações incertas, visto que esses produtos de proteção
nem estavam disponíveis em quantidade ideal nas unidades e o distanciamento
era uma incógnita para o serviço, visto a necessidade de contato com os usuá-
rios na nossa rotina. As informações eram desencontradas e instáveis, o acesso
à comunicação (televisão/rádio/internet) era necessário para destacar e alertar
para as questões emergentes, mas muitas vezes os discursos eram inconstantes,
de coerção, medo, tensão e carregados de sentimentos muito negativos.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

O discurso apresentado surtiu efeito imediato e avassalador nos serviços


de saúde. Quanto ao trabalho da equipe do CAPS AD, atribuo valor a cada um
dos trabalhadores que dividem o dia a dia no trabalho e mais ainda no período
da pandemia, pela intensidade das situações vivenciadas para manter o serviço
funcionando. Antes da pandemia, a unidade já estava fragilizada por questões
relacionadas à gestão como a alta rotatividade dos trabalhadores, de coordena-
dores, as dificuldades de logística para manter ações básicas como limpeza, ali-
mentação para os usuários, material permanente para a realização de oficinas,
dentre outros.

Em Dourados havia, além da instabilidade política, a instabilidade de


gestão e as questões de manutenção do próprio serviço. A pandemia reforçou a
maior fragilidade do serviço, que era o pouco investimento nas políticas priori-
tárias como a Atenção Básica e a falta de espaços de diálogo com os trabalha-
dores, o que culminou em adoecimento psíquico dos trabalhadores.

O trabalho em saúde, valorizado na maioria das vezes somente como pro-


dução quantitativa, é gerador de adoecimento visto a sobrecarga de trabalho, a
precária atuação interdisciplinar e a alta rotatividade de gestores.

Segundo Yasui, Luzio e Amarante (2018), a Atenção Psicossocial é um


modo de cuidado em saúde que atende ao preconizado na Reforma Sanitária
e a Reforma Psiquiátrica, portanto, um cuidado que tem o usuário como foco
e não a doença, e é desenvolvido por uma equipe multiprofissional, em bus-
ca de uma atuação interdisciplinar baseada no diálogo e nas ações coletivas.
Para isso novas abordagens são necessárias para atender esse novo modelo e
com isso a necessidade de ter como apoio profissionais comprometidos com a
efetivação desse contexto, capazes de prestar atendimento baseado em novos
recursos como a atuação interdisciplinar, práticas baseadas na ampliação da

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

clínica, investimento no projeto terapêutico singular, investimento nas ações de


acolhimento, dentre outros.

Com o Decreto Municipal, as atividades do CAPS AD foram readequa-


das da forma que naquele momento nos parecia o ideal, visto que a comunica-
ção com as instâncias gestoras era praticamente nula. A Saúde Mental no Brasil
já vinha de um processo de muita fragilidade e instabilidade.

Apesar do medo e do receio em manter as atividades, era consenso entre a


equipe de que o serviço não poderia parar e a preocupação com os tantos usuá-
rios que são vinculados com os trabalhadores e que necessitariam de apoio,
principalmente nesse momento, era o foco do nosso trabalho. Mantivemos a
porta de entrada aberta, pois o CAPS AD como local de referência para tantos
usuários não poderia fechar, mas deveria ser readequado, pois era previsível
que a vulnerabilidade dos nossos usuários estaria muito mais latente pelas pró-
prias condições psicossociais que a pandemia impunha.

Toda a equipe da unidade entendia que teríamos que nos adaptar, com
um olhar muito empático pelos usuários, mas alguns trabalhadores tinham co-
morbidades consideradas agravantes e tiveram que se ausentar do serviço, re-
duzindo drasticamente o número de trabalhadores ativos. Já vínhamos de uma
discussão da situação de vulnerabilidade psicossocial de muitos usuários do
serviço e de inúmeras estratégias de amenização dessa questão, mas nesse mo-
mento tão singular o distanciamento/isolamento prejudicaria ainda mais algu-
mas dessas pessoas.

Tivemos que mudar a rotina de atendimento intensivo, onde diariamente


era possível o contato com os usuários, para o atendimento ambulatorial restrito
ao agendamento. Com o distanciamento social, passamos a atender as situações
de crise presencial ou por telefone (quando tínhamos crédito no telefone celular

56
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

institucional) com aconselhamento e escuta, com visitas domiciliares (quando


tínhamos automóvel disponível), simplesmente para ver de longe os usuários,
entregar um EPI, orientar sobre a necessidade de atender as orientações da vi-
gilância epidemiológica, com arrecadação de roupas e alimentos, com alinha-
mento com outros níveis de atenção em saúde e intersetoriais para atender as
demais questões que nos eram apresentadas. As abordagens em saúde mental
precisaram ser construídas e adaptadas às singularidades que nos eram apresen-
tadas, e em muitas situações o atendimento presencial era necessário, embora
colocando as (os) trabalhadoras(es) em risco.

A pandemia gerou muitas mudanças na assistência, mas não mudou a


essência da equipe enquanto trabalhadores de saúde mental, e nos potenciali-
zou para que não perdêssemos o olhar solidário e empático pelas pessoas que
atendemos, apesar de todas as dificuldades, da instabilidade de informações,
do medo. Mudou a rotina, mas não mudou o compromisso da equipe com os
usuários e suas famílias.

Uma demanda emergencial se instalou com situações de crise recorren-


tes, muitos usuários novos no serviço, das mais diversas idades e o aumento
do número de mulheres buscando apoio. Nesse processo de monitoramento e
acolhimento, percebemos cenários de muita vulnerabilidade e miserabilidade.
Os conflitos familiares aumentados, as questões de ansiedade, o isolamento, a
falta de oportunidade de trabalho informal e formal, as crianças que estavam
em casa, pois as escolas fecharam etc. Além das questões emocionais relacio-
nadas à dependência de substância psicoativa, outros sentimentos se somaram
ao sofrimento psíquico, como o medo de adoecer ou morrer pelo contágio de
Covid-19, o receio de contaminar alguém, a insegurança de perder meios de
subsistência, de estar desamparado, da solidão e outros.

57
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Hoje, a situação de emergência na saúde vai transcorrendo e se transfor-


mando com o tempo. Sabemos que é preciso viver os lutos, mas é ainda um
momento frágil, onde, além de realizar o trabalho, precisamos pensar nas nos-
sas limitações e vivências. A pandemia trouxe um repensar a Psicologia, para
além das tantas práticas que já executava. Na nossa área de atuação no CAPS
AD, o lidar com o sofrimento está infelizmente muito vinculado ao aumento do
uso de substâncias psicoativas como estratégia de enfrentamento às situações
adversas.

O decreto ora citado trouxe a necessidade do cuidado com a equipe e com


o usuário, mas dada a complexidade da pandemia, pouco se fez pelos trabalha-
dores em geral. Houve muita dificuldade de acesso aos EPIs de forma efetiva
e suficiente. Esses trabalhadores não tiveram treinamento específico para lidar
e exercer a função nesse período. Houve a sobrecarga de trabalho, aumento do
adoecimento psíquico, a perda de familiares de colegas da nossa equipe por
Covid-19 e outras questões que atingiram diretamente os trabalhadores.

A Política Nacional de Humanização (Brasil, 2010) indicava desde o ano


de 2004 os problemas relacionados à precarização do trabalho com recorrente
desvalorização dos trabalhadores de saúde. Somado a isso, apontava o pouco
investimento em educação permanente e outras questões importantes que po-
dem fortalecer a classe trabalhadora.

O Sistema Único de Saúde (SUS) e as políticas públicas, de forma geral,


não estavam organizados para a pandemia, não consideravam a esse fato as
questões emergenciais como o que estamos vivenciando atualmente. Portanto,
tornou-se muito mais agravante as condições relacionadas ao trabalho em saú-
de e evidenciou o quanto o sistema está despreparado para atender de forma
efetiva as demandas relacionadas ao trabalho conforme preconiza a legislação,

58
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

sendo necessário promover o debate sobre os rumos para o cuidado em saúde


mental dos trabalhadores após a pandemia.

Albuquerque (2021) cita que aos trabalhadores indica-se a necessidade


de cuidados básicos complementares à sua saúde como o descanso, a alimenta-
ção saudável, a prática de atividade física, os vínculos com a família e a comu-
nidade, dentre outros, como estratégias de saúde mental. Compreendendo que o
cenário atual é singular e exige um investimento de políticas públicas emergen-
ciais, considera-se essencial o investimento da Psicologia para o debate sobre
a saúde mental dos trabalhadores de saúde, pois as implicações estão latentes
nos serviços e, mesmo com a vacina e a diminuição dos casos, as demandas de
saúde mental estão aparecendo na retomada da vida, na vivência das perdas e
do luto, nos transtornos mentais associados a estes tópicos etc.

A pandemia trouxe a possibilidade para o trabalho intersetorial remoto,


que foi um ponto positivo neste processo. A maioria dos casos atendidos, pela
complexidade, exige uma atuação intersetorial e a articulação principalmente
com a Secretaria de Assistência Social é comum nas intervenções. Na pande-
mia tivemos que dispor da tecnologia para atender alguns casos. A proposta
foi um estudo de caso coletivo via plataforma digital, mesmo que para a rea-
lização os trabalhadores devessem utilizar os seus equipamentos eletrônicos,
por o serviço não dispor destes. Vários profissionais e setores se mobilizando
para o atendimento aos casos, utilizando a tecnologia a seu favor. Essa questão
despertou para as possibilidades e para a necessidade de discutir esse processo,
analisando os impactos negativos e positivos desse momento tão avassalador
como está sendo a pandemia.

A aproximação do CAPS AD com os dispositivos intersetoriais foi uma


potencialidade, pois a partir dessa mobilização garantiu a integralidade do cui-
dado através da colaboração da equipe multiprofissional.

59
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Referências
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Atenção à Saúde, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização (4a
ed.). Brasília: Editora do Ministério da Saúde.

Decreto nº 2.480 de 23 de março de 2020. Amplia e consolida medidas para


enfrentamento da situação de emergência decorrente da pandemia do Corona-
vírus – Covid 19, no Município de Dourados.

Guedes, A. P., Roveda, A. & Simeão, C. F. de O., Brüning, C. & Ragnini, E. C.


S., Zanin, F. C., & Rêgo, J. L. (2020). Saúde Mental e trabalho em tempos de
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sília (DF). Recuperado de https://www.paho.org/pt/noticias/5-10-2020-covid-
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básica: a vida como ela é no território. Rev. Polis Psique, 8(1), 173-190.

60
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 5

ESTÁGIO SUPERVISIONADO
NO CONTEXTO DA PANDEMIA:
REFLEXÕES SOBRE SAÚDE
MENTAL JUNTO À EQUIPE DE
UM CENTRO DE REFERÊNCIA
DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
Rayssa de Oliveira Duarte
Luan Fernando Schwinn Santos
Gabriela Rieveres Borges de Andrade
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-5

Introdução

Este capítulo tem como objetivo relatar uma das experiências que se deu
no Estágio Supervisionado de Núcleo Comum (ESNC) realizado ao longo de
2021, significativa para compreender as mudanças e adaptações que foram rea-
lizadas no contexto de pandemia da Covid 19. O ESNC é previsto no Projeto
Político Pedagógico do Curso de Psicologia da UFGD para acontecer no ter-
ceiro ano do curso, como uma experiência mais sistemática com os campos de

61
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

práticas da psicologia. O período pandêmico trouxe diversos desafios para a


realização dos estágios, que foram adaptados para um formato remoto.

A experiência aconteceu no segundo semestre de 2021, como resulta-


do de um processo do início de 2020, interrompido por causa da pandemia, e
reiniciado no primeiro semestre de 2021. Trata-se, portanto, de um dos resul-
tados de um longo processo de inserção no campo das políticas públicas. A
proposta deste estágio é consolidar conhecimentos sobre a Política Nacional de
Assistência Social (PNAS), vivenciar a rotina de um Centro de Referência em
Assistência Social (CRAS), conhecer as possibilidades de atuação do psicólogo
na Proteção Social Básica e refletir sobre as formas de atuação junto ao público
atendido por esse equipamento público.

Desenvolver o estágio em formato remoto trouxe inúmeros desafios. A


frase que marcou o período inicial do estágio foi “Estamos tendo que nos rein-
ventar”. Neste sentido, a experiência de uma roda de conversa com a equipe
de um CRAS da cidade de Dourados (MS), sobre saúde mental no mês de se-
tembro, foi significativa neste processo. O objetivo deste texto é relatar e fazer
algumas reflexões sobre esta atividade e os desdobramentos.

Proposta e atividades do Estágio Supervisionados


de Núcleo Comum

Em 2020, serviços foram, obrigatoriamente, suspensos e outros migra-


ram para a estrutura do home office. O grupo, do referido programa de estágio,
realizou atividades tanto síncronas quanto assíncronas. As atividades desen-
volvidas no primeiro semestre do estágio basearam-se em leituras e discussões
sobre os textos, reuniões online semanais e, quando possível, foram desenvol-
vidas palestras com a assistente social e também com a psicóloga do CRAS. No
segundo semestre, além de ter sido dado prosseguimento nas atividades citadas

62
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

anteriormente, foi possível participar de atividades e campanhas desenvolvidas


pelo CRAS, como por exemplo a roda de conversa sobre o Setembro Amarelo.

Os Estágios Supervisionados de Núcleo Comum (ESNC) têm como pro-


posta a unidade entre teoria e prática, com o intuito de conciliar o conteúdo
visto em sala com a prática, observada e experienciada nos locais onde essas
práticas são desenvolvidas. Com a necessidade de isolamento social imposto
pela pandemia da COVID-19, surgiu o desafio de adequar as atividades do es-
tágio para o formato remoto. Como adaptá-lo de forma a se aproximar da reali-
dade fora das telas? Como experienciar a rotina do CRAS e ter contato com os
sujeitos da comunidade? Estes e outros questionamentos guiaram o processo de
adequação do estágio que se deu através de reuniões de supervisão semanais,
estudos individuais e grupais, encontros com profissionais do CRAS e elabora-
ção de atividades para serem compartilhadas com os usuários dos serviços, tais
como vídeos informativos curtos e cartilhas.

A pandemia provocou adequações, mudanças e novos formatos de traba-


lho nos contextos acadêmicos e profissionais. Por meio da Portaria n°337, de
24 de março de 2020, o Ministério da Cidadania estabeleceu normativas para
guiar o SUAS no enfrentamento da COVID-19, prezando a saúde dos usuá-
rios dos serviços e dos profissionais. Foi decretado, por exemplo, a adoção de
revezamento nas jornadas de trabalho para evitar concentração de pessoas no
mesmo ambiente; a adoção e disponibilização de Equipamentos de Proteção
Individual – EPI para os profissionais; a necessidade da disseminação de in-
formações sobre a pandemia, de acordo com as orientações do Ministério da
Saúde (MS); acompanhado dos usuários por parte dos profissionais, mesmo de
forma remota e dentre outras recomendações.

Posteriormente, essas orientações foram reforçadas pela nota técnica emi-


tida pela Secretaria Nacional de Assistência Social, através da Portaria n°54, de

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

1 de abril de 2020, em que preza a garantia dos serviços e atividades essenciais


da Assistência Social aos usuários, com todas as medidas de segurança reco-
mendadas pelo MS. As duas portarias visaram garantir serviços e programas
socioassistenciais, levando em consideração a sua importância para a popula-
ção.

Na dimensão do ensino, a suspensão das aulas e das atividades presen-


ciais redesenhou o trabalho docente, provocando indagações e diálogos sobre
a profissão e a inovação em cenários possíveis. A normativa da suspensão das
atividades e das aulas presenciais, bem como a adoção do ensino remoto abar-
cou os estágios curriculares obrigatórios.

O ESNC, com foco na atuação do psicólogo no CRAS, teve início no


primeiro semestre de 2020. Neste período, entre 12 de fevereiro a 15 de março,
foram realizadas reuniões do grupo de estagiários junto com a supervisora a
fim de debater textos preparatórios e organizar os próximos passos. Entretanto,
através da portaria n°205 de 18/03/2020, o calendário acadêmico foi suspenso
por 30 dias e, posteriormente, esse período foi prolongado, como forma de con-
ter o vírus da COVID-19.

Foi emitida uma portaria n°367 de 26 de junho de 2020 que aprovou a re-
tomada das atividades letivas da graduação, de forma remota, por meio do Re-
gime Acadêmico Emergencial com regulamento próprio e temporário. Porém,
em fevereiro de 2021, a UFGD passou a seguir as diretrizes do Regulamento
Acadêmico por Modalidades e Fases (RAEMF), no qual foram previstas três
modalidades de ensino: não-presencial, presencial e híbrido. Assim, foi possí-
vel retomar com as atividades do estágio, mas de modo remoto.

Foram adotadas atividades síncronas, reuniões semanais via Google


Meet; e assíncronas, realização de leituras, participação em eventos da área e

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

análise de vídeos referente aos assuntos em específico. A comunicação entre


os discentes e a supervisora se desenvolveu por meio do Whatsapp e e-mail.
Assim, as adequações realizadas nas atividades do estágio tiveram como fina-
lidade possibilitar aos alunos, dentro das dificuldades do ensino remoto, uma
formação acadêmica e profissional de qualidade e aos docentes, um ambiente
seguro para desenvolverem seus planos de ensino.

Roda de conversa como estratégia de promoção


da saúde mental

A reflexão das vivências dos servidores públicos que trabalham no CRAS


é uma vivência importante para a formação em psicologia, principalmente para
os que desejam trabalhar futuramente na área. Como já dito anteriormente, um
dos objetivos do estágio é conhecer as possibilidades de atuação do psicólogo
no CRAS e refletir sobre situações vividas no cotidiano na instituição.

No dia 24 de setembro de 2021, ocorreu uma roda de conversa junto às


profissionais do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) - Cachoei-
rinha, sobre o Setembro Amarelo. As estagiárias responsabilizaram-se em de-
senvolver um diálogo sobre o tema, dando ênfase à questão da saúde mental e
de como ela é abordada no CRAS. Durante o encontro, no formato remoto via
Google Meet com a equipe do CRAS, dialogamos sobre a importância da assis-
tência social na formação de uma rede de proteção que auxilie na promoção da
saúde mental das famílias no território, na medida em que visa o fortalecimento
dos vínculos rompendo com o isolamento. Estavam presentes sete profissio-
nais, sendo eles: recepcionista, entrevistadora do Cadastro Único, Orientadora
Social, estagiária, pedagoga e duas assistentes sociais.

A idealização da roda de conversa com os profissionais surgiu com a fina-


lidade de valer-se da programação de atividades do CRAS, no caso, Setembro

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Amarelo. É importante informar que a referida roda de conversa aconteceu de


forma remota, por meio da plataforma do Google Meet, respeitando todas as
medidas de cuidados sanitários contra a COVID-19.

Referente ao Setembro Amarelo, esta é uma campanha de prevenção ao


suicídio, criada em 2014, que visa à conscientização da população sobre im-
portância de se falar sobre saúde mental e na prevenção do suicídio. Essa é
uma campanha de extrema importância, uma vez que o suicídio é um problema
grave de saúde pública e há forma de ser evitado. Para isso, primeiramente, é
necessário que este tema não seja mais tratado como um tabu e que haja mais
diálogo referente à saúde mental.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado pelo


Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2011), o Brasil registrou 12.895 sui-
cídios em 2020. É consequência final determinada por diversos fatores e resul-
tante de uma complexa interação de fatores psicológicos, biológicos, socioam-
bientais e culturais. Com isso, o suicídio é uma das principais causas de morte
no Brasil.

Porém, há formas de prevenir o suicídio e não se limitam no âmbito in-


dividual, mas sendo necessárias medidas no campo coletivo. Por isso, o SUAS
contribui através do funcionamento de uma rede de vigilância, prevenção e
controle, possibilitando o compartilhamento de informações referentes à abor-
dagem, ao acolhimento e ao tratamento das pessoas em situação de vulnerabi-
lidade. Além disso, o SUAS atua diretamente na luta para construção de mais
políticas públicas que atuem na prevenção do suicídio e promoção da saúde,
principalmente para aqueles em situação de vulnerabilidade social (MS, 2011).

Ademais, alguns estagiários ficaram incumbidos de realizar um momento


de diálogo com todos os trabalhadores da instituição e mediar a conversa com

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

intuito de expor informações importantes acerca da saúde mental e, principal-


mente, ter a oportunidade de ouvir e aprender com todos que trabalham cons-
tantemente em contato direto com os sujeitos que habitam aquela determinada
comunidade.

Durante a roda de conversa, primeiramente os estagiários expuseram so-


bre a relevância em dialogar sobre saúde mental, quais os fatores mais propí-
cios que podem acarretar o adoecimento mental e a importância da assistência
social nas ações de promoção do bem estar e do autocuidado, possibilitando o
enfrentamento ao adoecimento e proporcionando espaços de promoção de saú-
de, tendo em vista o impacto que as vulnerabilidades socioeconômicas têm so-
bre a saúde mental, agravadas pelo contexto de pandemia (Nepomuceno, 2013;
Lima, Melo, Perpetuo, 2021; Silva, Jesus, Pinto, 2021).

Em seguida, foram expostos vídeos curtos produzidos por integrantes do


mesmo grupo de estágio, contendo dados sobre o fenômeno do suicídio no
Brasil, sobre a importância do diálogo para o enfrentamento desse fenômeno e
referências de atendimento psicológico por meio de tabela social em Dourados-
-MS; informando sobre o trabalho da assistência social na promoção de saúde
mental e a relevância da atuação de outros setores, além dos profissionais de
saúde como psicólogos(as) e psiquiatras, no cuidado da qualidade de vida da
população e, por fim, esclarecendo alguns mitos a respeito do suicídio. Ao final
da roda de conversa os profissionais presentes foram questionados sobre o que
entendiam por saúde mental.

Saúde Mental, Intersetorialidade e o CRAS

A Reforma psiquiátrica foi um marco para o surgimento da saúde mental


como campo de atuação e o redimensionamento para além do campo da saú-
de que, atrelado a Luta Antimanicomial, propôs a construção de uma rede de

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

serviços e estratégias territoriais e comunitárias. A criação deste campo com


foco na saúde mental foi de extrema importância para a ruptura com a lógica
hospitalocêntrica, o qual usufruiu e continua a utilizar os princípios e diretrizes
do SUS, numa contínua busca da intersetorialidade e capacitação da rede de
cuidados (MS, 2005).

Desta forma, a intersetorialidade é um modo essencial para unir o campo


da saúde e da assistência social, tendo como a família uma área de atuação em
comum, a fim de buscar a superação do paradigma hospitalar/manicomial e a
inserção do dito “louco” na sociedade (Pereira, 2020). Por isso, a inclusão do
psicólogo no CRAS, através da Resolução n° 17 do Conselho Nacional de As-
sistência Social (2011), reafirmou a necessidade da atenção na saúde mental da
população a fim de ofertar uma vida com saúde a ela. Além disso, por meio da
Reforma Psiquiátrica, outros sujeitos sociais, como a família, os movimentos
sociais e grupos de apoio, passaram a ganhar importância e espaço no processo
de cuidado e saúde dos indivíduos inseridos na comunidade (MS, 2005).

Assim, a atuação do psicólogo na Assistência Social deve ser pautada no


compromisso com a transformação social. Por meio da escuta e acolhimento, é
possível haver a construção de um ambiente de cuidado para com os usuários
da saúde mental, tendo como porta de entrada no território a família. Ademais,
como trabalhador do SUAS, o psicólogo deve ter como objetivo somar no for-
talecimento dos usuários como sujeitos de direitos e a consolidação das políti-
cas públicas (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2008).

Num modelo assistencialista, os profissionais são os ‘salvadores’ que fa-


zem de tudo para aliviar a miséria. O problema é que, quando se colocam
nesse lugar, invertem a demanda e acham que sabem o que é melhor para o
usuário. O importante, no entanto, é compreender a demanda dos usuários,
em seus aspectos históricos, sociais, pessoais e contextuais, para se realizar
uma intervenção psicológica mais efetiva e resolutiva, com base na deman-
da planejada (construída pelo diálogo entre o saber do técnico e da popu-
lação referenciada), e não só na demanda espontânea. (CFP, 2008, p.24)

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Portanto, o conhecimento sobre o território é fundamental para a elabora-


ção de políticas públicas e reivindicações por melhorias nos serviços públicos
tanto na área dos serviços sociais quanto na de saúde. O acesso a esse conhe-
cimento só é possível por meio da atuação dos assistentes sociais, psicólogos e
demais profissionais do CRAS ao terem acesso diário na elaboração do territó-
rio e das famílias que habitam ali, ao lidarem com os indivíduos e saberem de
suas vulnerabilidades e potencialidades.

Em 2004, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome


[MDS], por meio da Política Nacional de Assistência Social [PNAS] definiu
o território como base de organização do Sistema Único de Saúde – SUAS.
Posteriormente, a definição de território foi sendo ampliada pelo MDS, como
sendo espaços, arranjos e configurações que vão além do espaço geográfico:
O território representa muito mais do que o espaço geográfico. Assim, o
município pode ser considerado um território, mas com múltiplos espa-
ços intraurbanos que expressam diferentes arranjos e configurações sócio
territoriais. Os territórios são espaços de vida, de relações, de trocas, de
construção e desconstrução de vínculos cotidianos, de disputas, contradi-
ções e conflitos, de expectativas e de sonhos, que revelam os significados
atribuídos pelos diferentes sujeitos. (MDS, 2008, p. 53)

Todas essas informações são de suma importância na tarefa de contribuir


para a saúde mental da população, visto que, ao saberem os dados sobre, por
exemplo, uso e abuso de substâncias psicoativas, níveis de violência e tam-
bém de adoecimento mental na comunidade, torna o planejamento de ações
mais efetivas para a população. Desta forma, não cabe apenas ao psicólogo do
CRAS trabalhar para a promoção de saúde mental da/na comunidade, este ser-
viço deve ser coletivo para que seja eficaz. Mas, para isso, é necessário ter uma
noção do que é saúde mental e qual campo de estudo que a define. Sobre isso,
Amarante (2011) faz uma importante colocação:

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Saúde mental não é apenas psicopatologia, semiologia... Ou seja, não pode


ser reduzida ao estudo e tratamento das doenças mentais... Na complexa
rede de saberes que se entrecruzam na temática da saúde mental estão,
além da psiquiatria, a neurologia e as neurociências, a psicologia, a psi-
canálise (ou as psicanálises, pois são tantas!), a fisiologia, a antropologia,
a filologia, a sociologia, a história, a geografia (esta última nos forneceu,
por exemplo, o conceito de território, de fundamental importância para as
política públicas). (Amarante, 2011, p.16)

Logo, é fundamental a compreensão da dinâmica social da comunidade


em que o CRAS está inserido e a forma como as pessoas habitam nela para que
ocorram avanços nas políticas públicas, tanto com enfoque na saúde mental,
quanto na melhoria de vida da população por meio de mais moradias, sanea-
mento básico, acesso a atividades de lazer, empregos rentáveis e etc. A efetiva-
ção do trabalho de um profissional da assistência social é primordial para o de-
senvolvimento de uma rede de cuidados no atendimento integral aos usuários.

Considerações Finais

Por meio da roda de conversa foi possível perceber a importância do


trabalho coletivo e interligado na promoção de saúde mental junto às vulnera-
bilidades encontradas no território do CRAS. São esses profissionais que estão
em contato com o conhecimento disponibilizado no território, que atuam na
acolhida e na escuta de pessoas em vulnerabilidade, na orientação sobre polí-
ticas públicas e encaminhamentos para serviços que podem ajudar na garantia
de direitos nesse território.

A partir dos relatos foi possível perceber a quase ausência de discussões


sobre saúde mental e de um ambiente adequado e inserido na rotina do serviço,
para que esses assuntos possam ser discutidos entre a equipe do CRAS, e ações
possam ser melhor planejadas. A experiência relatada propiciou a reflexão so-
bre a saúde mental daqueles que atuam diariamente no CRAS frente a diversas
demandas, muitas vezes de vulnerabilidades extremas, agravadas pelo período

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

pandêmico vivenciado. Então, quem cuida dos que cuidam? É necessário que
haja mais atenção e ações efetivas para garantir que esses profissionais tenham
suporte e o cuidado adequados da sua saúde mental.

Sobre a prática de estágio em formato remoto é importante dizer que a


experiência com o campo de atuação, apesar de todas as limitações do formato
virtual, possibilitou o contato com a práxis da psicologia na PNAS. As intera-
ções que ocorreram, em um momento de vulnerabilidade para todos, propor-
cionaram uma sensibilização em relação às vulnerabilidades encontradas no
território de Dourados, exigindo um olhar reflexivo sobre as condições sociais
e de trabalho do profissional de psicologia na Proteção Social Básica.

Por fim, foi possível constatar a importância de serem criados espaços de


diálogo sobre saúde mental para além do Setembro Amarelo. No contexto de
pandemia esta necessidade ficou ainda mais evidenciada, com o aumento de
casos de sofrimento mental. Logo temos a urgência em refletir e elaborar ações
que abranjam diferentes setores como saúde, educação e assistência social e
que atendam a população em geral, em especial aquelas em situação de vulne-
rabilidade. É preciso colocar a temática da saúde mental em destaque para que
as pessoas comecem a discutir, refletir e se atualizar sobre o assunto, por meio
de dinâmicas, intervenções e dentre outras atividades, ressaltando a importân-
cia do coletivo para a qualidade de vida.

Referências
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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

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72
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Portaria n°337,de 24 de março de 2020. (2020) Dispõe acerca de medidas para


o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional
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Portaria n°367, de 29 de junho de 2020. Universidade Federal da Grande Dou-


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vas/PORTARIA%20NUMERO%20367%20de%2029-06-2020.pdf

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o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional
decorrente do coronavírus, COVID-19, no âmbito do SUAS. Secretaria Espe-
cial do Desenvolvimento Social. Ministério da Cidadania. Diário Oficial da
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73
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 6

EM FRENTE: CONSTRUÇÃO
DE UMA INTERVENÇÃO
COGNITIVA AUTOGUIADA
PARA PACIENTES COM
SINTOMATOLOGIA DEPRESSIVA
Mayara Vieira Santos
Amanda Marques Moreira
Luísa Feil Aquino
Betania Moura Mathias
Karen Priscila Del Rio
Regina Basso Zanon
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-6

A depressão é um transtorno de humor que acomete 4.4% da população


mundial, totalizando aproximadamente 332 milhões de pessoas (WHO, 2017).
Entre 2005 e 2015, o número total de pessoas vivendo com depressão teve
um aumento de 18,4%. A prevalência do transtorno se dá em adultos entre as
idades de 55 a 74 anos, embora também se manifeste em crianças e adolescen-
tes. Diante do aumento na incidência da depressão, faz-se necessário o desen-

74
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

volvimento e promoção de intervenções baseadas em evidências que possam


fornecer práticas terapêuticas para este transtorno que acomete uma parcela
significativa da população.

Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais


DSM 5 (APA, 2014), a depressão é caracterizada pela presença de alterações
cognitivas e somáticas, além de humor triste, vazio ou irritável, sendo a ma-
nifestação de humor deprimido e acentuada diminuição do interesse ou prazer
nas atividades na maior parte do dia, quase todos os dias, um dos critérios para
diagnóstico. Para Beck (1967), a depressão é compreendida como resultado de
cognições e esquemas cognitivos disfuncionais, nos quais os pacientes acredi-
tam e agem como se os estados dos acontecimentos fossem pior do que real-
mente são, pois elaboram suas experiências de maneira negativa e antecipam
resultados desfavoráveis para seus problemas. Estas interpretações se mani-
festam na forma de pensamentos automáticos mal-adaptativos (Rangé, 2011)
e devido ao seu caráter imediato, estes pensamentos escapam da percepção e,
consequentemente, de uma avaliação racional a ser realizada pelo sujeito.

Nesse sentido, a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) é indicada


para o tratamento deste transtorno pois objetiva a identificação, questionamen-
to e correção dos pensamentos automáticos disfuncionais, bem como a modi-
ficação de crenças e comportamentos que produzem certos estados de humor
(Oliveira, 2019). As estratégias terapêuticas da abordagem cognitivo-compor-
tamental da depressão envolvem três fases de trabalho: foco nos pensamentos
automáticos e esquemas depressogênicos (1), foco no estilo da pessoa ao rela-
cionar-se com outros (2) e mudança de comportamentos a fim de obter formas
mais adaptadas de enfrentamento para situações-problema (3) (Powell, Abreu,
Oliveira & Sudak, 2008).

75
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Os princípios da TCC a tornam uma abordagem apropriada para ser adap-


tada aos meios de intervenção on-line, seja através da psicoterapia na modali-
dade on-line, dos programas autoguiados de intervenção ou apenas pelo uso de
recursos on-line de maneira complementar à psicoterapia presencial (Guerin,
2021). Além disso, a possibilidade de utilização de protocolos, escalas e in-
ventários nessa abordagem favorece a avaliação da efetividade do tratamento
oferecido, especialmente nas terapêuticas mediadas pela internet (Siegmund,
2014). De acordo com Lopes (2021), tratamentos para a depressão baseados
na Internet se mostraram efetivos e apresentaram vantagens em relação a tra-
tamentos presenciais, pois são potencialmente menos caros, possuem horários
mais flexíveis e disponibilidade em áreas remotas, além disso podem aumentar
o acesso às terapias psicológicas por seu formato.

As intervenções autoguiadas constituem uma das modalidades de trata-


mento que podem ser ofertadas de forma on-line. Barak, Klein e Proudfoot
(2009) as definem como programas executados através de plataformas on-line
(sites, software, aplicativos), utilizados por indivíduos que buscam por assis-
tência relacionada à saúde física e mental. Essas intervenções são em geral,
assíncronas, utilizam programas ou aplicativos on-line, em que o usuário re-
gula sua própria interação (autoguiados), e visam auxiliar o participante com
informação (psicoeducação), exercícios estruturados, passo a passo, tarefas e
aplicações a fim de minorar e administrar seus sintomas (Lopes, Svacina &
Sartes, 2020, p.16).   

Frente ao exposto, o presente capítulo visa apresentar um programa au-


toguiado para direcionado para sintomas depressivos, como possibilidade de
tratamento psicológico a ser ofertado para a população brasileira, denominado
“Em Frente”. O programa busca auxiliá-los no manejo dos sintomas, apresen-
tando a Terapia Cognitivo-comportamental como estratégia terapêutica, e foi

76
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

desenvolvido em contexto de estágio específico supervisionado em Psicotera-


pia Cognitiva, do curso de Psicologia na UFGD. A razão para seleção de pa-
cientes com sintomas depressivos como alvo da intervenção se deu por sua alta
incidência na fila de espera para atendimento da clínica-escola no LabSPA da
UFGD, visto que os programas autoguiados demonstram efetividade para po-
pulações de filas de espera, para ampliação do repertório de estratégias de en-
frentamento de sintomas enquanto aguardam tratamento psicológico e a maior
disponibilidade de bibliografia disponível sobre a aplicação de programas au-
toguiados para esse público.

Programa Em Frente: sobre o percurso metodológico

Etapas 1: construção do Programa

A etapa de construção do programa estendeu-se entre os meses de mar-


ço a setembro do ano de 2021. Foram consultadas referências sobre a Terapia
Cognitivo-comportamental tradicional e suas modificações para o ambiente on-
-line. O desenvolvimento do programa foi fundamentado na proposta de ofere-
cer psicoeducação sobre a depressão, assim como recursos de questionamento,
reconhecimento de distorções cognitivas, planejamento de atividades, entre ou-
tros.

O Programa Em Frente é um programa de intervenção autoguiado, cons-


tituído por cinco módulos, com duração média de 25 a 35 minutos para con-
clusão e se encontram hospedados na plataforma Formulários do Google. Os
cinco módulos foram constituídos por conteúdos e atividades referentes à de-
pressão, teoricamente fundamentados na Terapia Cognitivo-Comportamental.
Cada módulo foi enviado semanalmente aos participantes para a realização da
leitura e atividades propostas. O primeiro módulo psicoeducativo, denomina-
do “O que é a depressão?” (Figura 1), apresenta ao participante o conceito de

77
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

depressão, os critérios diagnósticos do Transtorno Depressivo Maior de acordo


com o DSM 5, assim como os fatores que podem contribuir para o desenvolvi-
mento do quadro depressivo.

O segundo módulo expõe a interpretação da depressão de acordo com a


Terapia Cognitivo-Comportamental, através do modelo cognitivo, e introduz
os conceitos de pensamentos automáticos e distorções cognitivas com o obje-
tivo de promover o desenvolvimento da compreensão cognitiva do participan-
te sobre seus sintomas depressivos (Figura 2). O terceiro módulo tem como
foco a introdução de estratégias comportamentais que auxiliam no manejo des-
te transtorno e para tal forneceu-se exemplos, sugestões e a proposta de um
planejamento de atividades para o participante a fim de estimular sua ativação
comportamental, visto que se configura como uma forma eficiente de enfrentar
a depressão, ajudando a torná-los mais ativo e não somente para melhorar seu
humor, mas também fortalecer seu sentimento de autoeficácia (Beck, 2014).

Já o quarto módulo descreve e exemplifica os padrões de interpretação


negativos exibidos no por pacientes com sintomas depressivos, assim como
suas regras e pressuposições disfuncionais características (Figura 3). Neste
sentido, o participante é convidado a realizar um exercício de questionamento
socrático a partir de uma situação de sua escolha, de modo a avaliar os pensa-
mentos perante as evidências e pensar em formas saudáveis de lidar com tais
situações. Por fim, o último módulo visa orientar os participantes quanto à pre-
venção de recaídas, por meio da identificação de situações de risco e sinais de
alerta, e consequente criação de um plano de ação. Durante todo o programa,
os participantes são encorajados a analisar as possibilidades e interpretações de
maneira mais criteriosa, considerando evidências e reconhecendo suas distor-
ções cognitivas.

78
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Figura 1. Recorte do Módulo 1 - O que é a depressão?

79
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Figura 2. Recorte do Módulo 2 - A depressão na Terapia


Cognitivo-comportamental.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Figura 3. Recorte do Módulo 4 - Interpretações negativas

Etapas 2: Validação por juízes

Em sua segunda etapa, o programa foi avaliado por duas juízas com ex-
pertise no campo de intervenções autoguiadas no Brasil, através de um for-
mulário com questões referentes à experiência do usuário e apresentação dos

81
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

conteúdos dispostos nos módulos do Em Frente, bem como de uma entrevista


realizada no formato on-line e síncrono. Neste sentido, realizaram-se 5 ques-
tões gerais sobre a atratividade, credibilidade, linguagem e clareza, e por fim,
acessibilidade. Ademais, questões individuais foram realizadas em relação à
extensão de cada módulo, como também questões acerca do conteúdo e pedido
de sugestões.

Etapas 3: Estudo piloto

Para a aplicação do estudo-piloto, foram contatados 8 participantes da


lista de espera do Laboratório Serviço de Psicologia Aplicada (LabSPA), sendo
4 homens e 4 mulheres, com idades entre 19 a 44 anos. O convite para partici-
pação do Em Frente foi realizado através de um aplicativo de mensagens. As
4 mulheres manifestaram interesse após receber o convite para participar do
programa, porém apenas duas assinaram o TCLE e deram início a realização
do programa. Em relação aos homens, 2 responderam que tinham interesse e
disponibilidade, mas não assinaram o TCLE e os outros 2 participantes não res-
ponderam o convite enviado. Sendo assim, nesta pesquisa serão apresentados
dados de 2 participantes mulheres.

Devido ao número limitado de participantes do estudo-piloto, a avaliação


quantitativa dos dados do efeito do Programa Em Frente nos sintomas depres-
sivos foi dificultada. Desta forma, o presente capítulo apresenta uma avaliação
descritiva de dados qualitativos baseados nas respostas das pacientes aos exer-
cícios e escalas de humor dos módulos, sem a pretensão de torná-los dados
percentuais.

Nesta etapa, foram aplicados os seguintes instrumentos: Escala de De-


pressão, Ansiedade e Estresse (DASS-21); Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE); Questionário socioeconômico; Formulário de Avaliação

82
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

dos conteúdos e experiência do usuário respondidos pelas juízas; Módulos do


Programa Em Frente, hospedados na plataforma Formulários do Google.

Programa Em Frente: sobre alguns resultados e


discussões

Em relação a Etapa 2, as juízas avaliaram a atratividade, linguagem, cre-


dibilidade, clareza e acessibilidade dos módulos, e forneceram um parecer po-
sitivo quanto ao modelo e conteúdo do programa. Contudo em sua apreciação,
as especialistas apontaram a necessidade de uma reformulação do Módulo 4,
que originalmente tratava sobre o papel das crenças nucleares na instalação
e manutenção da depressão. Tal reformulação foi justificada pois abordar as
compreensões duradouras dos pacientes desenvolvidas na infância poderia cau-
sar mobilizações nos participantes que não seriam devidamente acolhidas no
decorrer dos módulos. Neste sentido, o módulo 4 passou a abordar regras e
pressupostos disfuncionais presentes na depressão, com foco no reconhecimen-
to e alteração dos mesmos.

A seleção dos conteúdos a serem abordados dentro de cada etapa do pro-


grama constituiu uma tarefa desafiadora, visto que a formulação de cada mó-
dulo não deveria somente tratar de uma transmissão de informações sobre o
funcionamento da depressão. Todavia, era necessário que os conteúdos e ati-
vidades selecionados fossem adequados para a elaboração do módulo, com o
objetivo de que o participante pudesse construir conhecimento suficiente para
identificar seus pensamentos e comportamentos desadaptativos e assim modi-
ficar seu padrão de funcionamento, atingindo desta forma o objetivo da psicoe-
ducação (Moreli, Braga & Donadon, 2021).

Para o estudo-piloto (Etapa 3), oito candidatos foram contatados, sendo


4 homens e 4 mulheres. As mulheres demonstraram interesse na participação,

83
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

porém apenas duas responderam o Termo de Compromisso Livre e Esclareci-


do. Dois homens demonstraram interesse mas não responderam o termo e dois
não responderam o convite. Dessa forma, o estudo-piloto é composto por duas
participantes do sexo feminino, doravante denominadas A. e B. Os módulos
foram enviados semanalmente via WhatsApp e, caso o participante não tivesse
respondido o módulo anterior até a data de envio do módulo seguinte, a men-
sagem continha um lembrete para a realização do mesmo. A participante A.
realizou apenas o primeiro módulo, enquanto B. realizou os módulos 1, 2 e 4.

Uma das formas de analisar distorções cognitivas é o questionamento so-


crático. Por meio dele, surgem novas indagações, assim como novas possibili-
dades para reconhecer e gerar suposições diferentes sobre a realidade, as quais
nos orientam a experiências emocionais e respostas comportamentais mais fun-
cionais, enfraquecendo os pensamentos desadaptativos. Ao realizar o questio-
namento socrático, entendemos que nossos pensamentos não são fatos, mas
sim suposições, portanto passíveis de alteração. Um exemplo disso foi quando
a paciente B, no exercício de questionamento socrático proposto no módulo 2,
relembrou um acontecimento com seu pai, conforme ilustração a seguir:

Questão 1: Pense em uma situação estressante que ocorreu com você re-
centemente. Você consegue se lembrar do que pensou naquele momento?
O que você pensou? Que emoções você sentiu?
Resposta: “Uma discussão recente com meu pai. Eu senti muita muita raiva
dele e pensava em como ele é hipócrita, mentiroso, ingrato e falso.”
Questão 2: Qual foi sua interpretação dessa situação?
Resposta: “Eu precisei explodir com meu pai e dizer tudo q penso dele e
das atitudes recentes dele. Conclui que ele não valoriza meu sofrimento e
que é um estranho pra mim.”
Questão 3: E como você agiu perante aquela situação?
Resposta: “Discuti, gritei, não me calei, disse como me sentia. Estava re-
voltada”
Questão 4: Quais são as evidências que apoiam sua interpretação? E quais
evidências são contrárias a esta ideia?

84
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Resposta: “As atitudes do meu pai foram as evidências. Contrário a isso


tudo é que descobri que ninguém tá nem aí pro meu sofrimento.”
Questão 5: Existe uma explicação ou ponto de vista diferente? Se sim, qual?
Resposta: “Acho q cada um decidiu tocar sua vida após a morte de minha
mãe e só eu estou sofrendo e isso me revolta.”
Questão 6: Qual é o efeito de eu acreditar no pensamento automático? E
qual poderia ser o efeito de mudar o meu pensamento?
Resposta: “O efeito é a tristeza. Se eu mudar meu pensamento talvez fique
mais feliz em não me importar no que o outro sente e tentar levar minha
vida sem minha mãe da melhor forma.”
Questão 7: O que eu devo fazer?
Resposta: “Tá difícil descobrir isso.”
Questão 8: Considerando estes novos dados, você acha que sua resposta
anterior estava de acordo com a situação?
Resposta: “Não sei.”

Como resultados deste estudo piloto, foi possível perceber que os módu-
los foram exitosos em seus propósitos, visto que as respostas fornecidas pelas
participantes estavam em conformidade com as informações trabalhadas e os
objetivos das atividades. Outro fator positivo foi a apresentação de conteúdos
pessoais, reflexões e experiências de vida realizadas pelas participantes, fator
que expressa a potencialidade do material elaborado no programa. Por fim,
em relação à psicoeducação pode-se afirmar que as participantes manifestaram
competências suficientes para realizar a avaliação de seus pensamentos auto-
máticos, bem como passaram a conhecer a existência do modelo cognitivo para
compreensão de suas dificuldades e situações cotidianas.

Visto que as participantes não completaram o programa, a segunda apli-


cação da DASS-21 foi comprometida e não pôde ser realizada. Entretanto, a
primeira aplicação trouxe dados relevantes à discussão sobre a continuidade
no programa. A participante A. apresentou pontuação de 95,2% nos itens de
depressão da Escala, enquanto a participante B. obteve um resultado de 66,6%.

85
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

A partir deste dado, pode-se supor que altos índices de depressão dificultem
a motivação para a continuidade da realização de um programa autoguiado.
A hipótese de um menor desempenho na realização de protocolos on-line por
pacientes com depressão requer maior investigação, como apontam Carneiro e
Dobson (2016).

Dada a não adesão dos participantes do programa, faz-se necessário re-


fletir sobre as causas desta desistência. O primeiro fator a ser analisado é a
não adesão de participantes do sexo masculino ao Em Frente, dado que vai de
encontro com os resultados de pesquisas realizadas no campo das interven-
ções autoguiadas ao afirmar que o sexo masculino apresenta menor taxa de
adesão quando comparado com o sexo feminino (Karekla et. al, 2019; Lopes
et. al, 2021). Ademais, esta ausência masculina no programa converge com o
padrão de participantes em intervenções autoguiadas, caracterizado por mulhe-
res, adultas, com alto índice de educação e sintomas depressivos (Späth et. al,
2017).

Neste contexto, pondera-se se o formato, design e temática do progra-


ma foram atrativos para a população masculina e feminina. Conforme aponta
Rufino (2020) a diversificação no formato das intervenções autoguiadas pode
auxiliar na adesão do participante, desta maneira a oferta de programas com a
utilização de chatbots, lembretes e jogos, bem como intervenções hospedadas
em aplicativos para celular ou mesmo sites pode incentivar a permanência do
participante. Exemplos positivos nestes casos são os programas on-line Beating
the Blues (Proudfoot et al., 2003) e Sonreír es divertido (Botella, Mira, Herrero,
García-Palacios, & Baños, 2015) que contam com chatbots, bem como o De-
prexis®, (2017) ofertado também em aplicativo. Outra proposta de utilização
positiva do Em Frente seria sua aplicação associada à psicoterapia, visto que o
processo de psicoeducação integra os objetivos desta modalidade terapêutica
na TCC.  

86
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Considerações Finais

Durante os últimos anos houve um crescente interesse em tratamentos


oferecidos via internet, e a intervenção autoguiada tem sido uma das possibi-
lidades, visto que tem um maior alcance de pacientes, com um menor custo e
com disponibilidade permanente ao usuário. A Terapia Cognitivo-comporta-
mental tem papel fundamental em diversas intervenções autoguiadas, uma vez
que a adaptação de seus conteúdos, técnicas e objetivos se traduz de forma sa-
tisfatória à modalidade virtual (Andersson, 2014), seja por meio de programas
autoguiados ou por psicoterapia na modalidade on-line.

O objetivo deste capítulo foi descrever o protocolo de criação do pro-


grama Em Frente, e trazer dados iniciais de sua aplicação. Apesar dos dados
iniciais ainda não demonstrarem resultados positivos em relação à adesão, a
criação do programa e a continuidade dos estudos em relação a sua efetividade
podem trazer importantes dados sobre ampliação de intervenções assíncronas
na realidade brasileira. Estes resultados demonstram sua importância uma vez
que se trata de um estudo piloto, que forneceu informações sobre o que pode
ser aperfeiçoado na oferta de programas autoguiados para a população, dado
que as intervenções autoguiadas pela internet podem ser uma área promissora,
principalmente para pesquisas no Brasil, proporcionando um melhor conheci-
mento sobre saúde mental e alternativas de tratamento, aliadas ou não a psico-
terapia presencial tradicional.

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89
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 7

HABILIDADES SOCIAIS NO
ENSINO TÉCNICO: UM RELATO
DE EXPERIÊNCIA DURANTE
A PANDEMIA DE COVID-19
Elder Alves Silva
Henrique Cabral Furcin
Rebeca Pereira Manfré
Larissa Dronov Oliveira
Jaqueline Batista de Oliveira Costa
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-7

Nesse capítulo apresentamos a experiência de um grupo de estagiários


na realização de uma Oficina sobre Habilidades Sociais. A mesma foi realizada
durante o período de confinamento ocasionado pelo vírus SARS-CoV-2 (CO-
VID-19), gerando uma pandemia que assolou o mundo e inviabilizou a manu-
tenção da educação presencial. O vírus foi identificado em Wuhan, China no
final de 2019, e em março de 2020 chegou ao Brasil (Tesini, 2021). Com isso o
ensino ficou vinculado ao remoto, modelo pelo qual a maior parte do sistema de
ensino não estava preparada para realizar. Assim sendo a transição para o novo
modelo ficou muito confusa e sem direcionamento por parte do estado. Sem

90
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

diretrizes objetivas para prática do estágio, a universidade viu a necessidade de


se adaptar para o modelo online, para isso foram utilizadas videoconferências,
modelo já muito difundido na pós-graduação por sua facilidade, quebrando
barreiras geográficas e possibilitando o contato entre os estudantes e os profis-
sionais.

Nossa oficina que tratou o tema Habilidades Sociais foi realizada no Insti-
tuto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul (IFMS).
Essa instituição agrega dez campos instalados nos municípios de Aquidauana,
Campo Grande, Corumbá, Coxim, Dourados, Jardim, Naviraí, Nova Andradi-
na, Ponta Porã e Três Lagoas. O IFMS oferta desde qualificação profissional até
pós-graduação, com opções de cursos presenciais e a distância.

O IFMS oferece cursos de: Educação profissional técnica de nível mé-


dio, na forma de cursos integrados (ensino médio + técnico); Formação inicial
e continuada (qualificação profissional); Superior de tecnologia; Licenciatura;
Bacharelado; Engenharia e Pós-graduação lato sensu (aperfeiçoamento e espe-
cialização) e stricto sensu (mestrado e doutorado). Além disso, o IFMS realiza
pesquisa e desenvolve atividades de extensão.

Já o campus Dourados oferece cursos como: Gestão de organizações,


Tecnologia em jogos digitais, Técnico integrado em administração, Técnico em
informática para internet, Técnico em marketing, Espanhol básico, Espanhol
Intermediário, Especialização em docência para a educação profissional, Cien-
tífica e tecnologia, Inglês básico, inglês intermediário vinte e seis estudantes. A
oficina, ofertada contou com 14 alunos matriculados, esses alunos eram prove-
nientes de três cidades: Ponta Porã, Naviraí e Dourados. Apresentavam idades
entre 16 a 18 anos, e frequentavam diferentes cursos, tais como: Técnico em
Informática, Técnico Agrícola etc.

91
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

A Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional (LDB), nº


9.394/1996 estabelece, no Art. 36, que o Ensino Médio tem como finalidade
a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino
fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos, preparação básica
para o trabalho e a cidadania do educando de modo que este seja capaz de se
adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento
posteriores, como também o aprimoramento como pessoa humana, incluindo a
formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento
crítico.

Nessa perspectiva, a escola tem como papel a preparação do aluno para


a vida. Para tanto, métodos pedagógicos devem, por conseguinte, auxiliar o
aluno a desenvolver-se da melhor maneira possível.

Em conformidade com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC),


para atingir seus objetivos a escola se vale de várias disciplinas, no âmbito das
quais se trabalha temas transversais, cujo objetivo é promover um conjunto
progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvol-
ver ao longo da Educação Básica, de modo que seus direitos de aprendizagem
e desenvolvimento sejam assegurados, em conformidade com o que consta o
Plano Nacional de Educação (PNE).

Em suma, a Lei supracitada torna oficial os direitos e deveres atribuí-


dos ao Ensino Médio Técnico no Brasil, viabilizando a equivalência legal dos
cursos, a preparação geral para o trabalho e, facultativamente, a habilitação
profissional, podendo esta ser desenvolvidas nos próprios estabelecimentos de
ensino médio ou em cooperação com instituições especializadas em educação
profissional.

92
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

A fim de garantir a oferta de educação de qualidade a todos os jovens


brasileiros e de aproximar as escolas à realidade dos estudantes de hoje, consi-
derando as novas demandas e complexidades do mundo do trabalho e da vida
em sociedade, em acordo com a Nova Proposta Curricular para o Ensino Médio
Técnico (BNCC/2017), a Lei nº 13.415/2017 alterou a Lei de Diretrizes e Ba-
ses da Educação Nacional e estabeleceu uma mudança na estrutura do ensino
médio, ampliando o tempo mínimo do estudante na escola de 800 horas para
1.000 horas anuais e definindo uma nova organização curricular, mais flexível,
que contemple uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a oferta de
diferentes possibilidades de escolhas aos estudantes, os itinerários formativos,
com foco nas áreas de conhecimento e na formação técnica e profissional.

Seguindo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Pro-


fessores de Psicologia (DCNs/2011), de acordo com a Resolução Nº 5 de 15 de
março de 2011, em seu Art. 13, passou a seguir a legislação que regulamenta a
formação docente no país. Nesse sentido, alguns cursos de psicologia passaram
a adotar a proposta de um projeto pedagógico complementar e diferenciado,
tendo por objetivo articular os saberes específicos da área com os conhecimen-
tos didáticos e metodológicos para atuação na educação.

Ao longo do estágio de formação de professores, buscou-se manter o


comprometimento com valores de cidadania e solidariedade, com intuito de
produzir novos contextos de pensamentos e ações, partindo das reflexões. Le-
vando em conta a educação inclusiva, foram preparadas atividades coletivas,
que envolvessem os diferentes protagonistas da instituição, o que proporcionou
aos estagiários conhecimentos referentes a diferentes abordagens teóricas, o
que caracteriza os saberes educacionais e pedagógicos necessários às práticas
profissionais.

93
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Foram oferecidos conteúdos que requeriam competências e habilidades


desenvolvidos no curso de Psicologia para fins de ampliação e amadurecimento
do papel de professor. Não se desconsiderou as características de aprendizagem
e de desenvolvimento dos alunos, o contexto socioeconômico e cultural em que
estão inseridos, bem como a organização didática de conteúdo. Dessa forma,
buscou-se estratégias e técnicas a serem empregadas tendo em vista a promo-
ção de conhecimento, estimulação do pensamento crítico e reflexivo sobre os
conteúdos trabalhados.

Conforme já mencionado acima, o tema “Habilidades Sociais” foi ampla-


mente explorado durante as oficinas. Elas podem ser definidas como “a existên-
cia de diferentes classes de comportamentos sociais no repertório do indivíduo
para lidar de maneira adequada com as demandas das situações interpessoais”
(Del Prette & Del Prette, 2001, p. 31). Para o desenvolvimento de Habilidades
Sociais, os autores apontam a necessidade de planejamento de interações so-
ciais na escola, com um objetivo educativo, desde a primeira infância, por meio
de estímulos originados em interações sociais (Pereira, 2013).

Dessa forma, as Habilidades Sociais vão refletir a capacidade que alguém


tem de trabalhar com outras pessoas, de maneira a atingir os objetivos comuns
e ao mesmo tempo, fortalecer relações pessoais em contextos sociais. Assim,
podemos identificar o nível de habilidade social pela capacidade de demonstrar
empatia, fazer amizades ou outras relações, demonstrar destreza profissional,
assertividade, autocontrole tanto na vida pessoal do aluno quanto profissional.
(Bolsoni & Carrara, 2010)

Portanto, o tema Habilidades Sociais é de grande importância para os


estudantes em fase de desenvolvimento, pois são comportamentos que colabo-
ram com a convivência das pessoas em coletividade. Acredita-se que todos os
alunos são dotados de potencialidade e de Habilidades Sociais que precisam

94
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

ser trabalhadas durante sua formação. Nessa perspectiva, o trabalho teve como
objetivos ampliar os conhecimentos dos alunos sobre as Habilidades Sociais;
introduzir o conceito de Habilidades Sociais; refletir sobre a importância do
ensino-aprendizagem de Habilidades Sociais; elaborar estratégias de ensino-
-aprendizagem de identificação de Habilidades Sociais, e promover o desen-
volvimento de Habilidades Sociais nos alunos.

Método

Foram desenvolvidos sete encontros, com duração de uma hora aula, nos
quais foram trabalhados conteúdos fundamentados em materiais científicos.
Estes caracterizam-se como desdobramentos do tema Habilidades Sociais. O
público alvo foram estudantes adolescentes do Instituto Federal, das cidades de
Naviraí, Dourados e Ponta Porã, com a faixa etária variando de 16 anos a 18
anos. Participaram dos encontros um total de quinze alunos matriculados vo-
luntariamente na oficina. As intervenções tiveram início em setembro e término
ao final de outubro. Dentre as estratégias foram utilizadas aulas expositivas
acompanhadas de discussões posteriores. Na sequência foram desenvolvidas
práticas com intuito de desenvolver as Habilidades Sociais dos alunos, neces-
sárias para seu contexto de vida escolar e/ou profissional. Foram utilizados,
também, ferramentas de multimídia, Google Meet para as reuniões e Google
Forms para as avaliações.

Os temas tratados nos encontros foram: Articulação entre pensamentos,


emoções e comportamentos, comunicação verbal e não verbal, resolução de
problemas e tomada de decisão, uso de vivências para refinar as habilidades,
feedback, habilidades geradoras de ansiedade: falar com autoridades, falar em
público, lidar com críticas, expressar raiva ou desagrado, aceitar e recusar pe-
didos, coordenar grupos, cooperar e tomar decisões coletivas.

95
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Para a avaliação, foi utilizado um questionário, baseado no IHS-Del-Pre-


tte (inventário de Habilidades Sociais), no início e outro após as reuniões (Via
Google Forms), com o intuito de observar qualitativamente a evolução dos alu-
nos em relação às Habilidades Sociais adquiridas. O questionário possibilitou
que a eficiência da intervenção também fosse avaliada.

Resultados e Discussões

Nos primeiros momentos a grande maioria dos estudantes se mostrou


receptivo, porém, com um pouco de timidez que se expressava nas falas e co-
mentários curtos feitos no chat. As respostas às perguntas feitas pelos estagiá-
rios resumiam-se a “sim” ou “não”. Contudo, como a oficina foi ofertada na
modalidade remota, nenhum dos alunos optou por ligar as câmeras.

No início das atividades buscava-se interagir com o grupo, a fim de en-


contrar formas de reduzir a timidez dos estudantes e deixá-los à vontade para
se expressarem, e, ao fim dos encontros, era aplicada uma dinâmica ou outra
atividade descontraída, tendo em vista promover a socialização com o grupo
e, evitar que o conteúdo teórico não se tornasse maçante e fizesse sentido para
eles.

Tais estratégias se mostraram promissoras ao longo do estágio, pois ge-


raram um vínculo positivo entre professores/estagiários e alunos. Foi possível
perceber que, à medida que o estágio avançava, o diálogo e a interação, durante
os encontros, eram mais envolventes. Uma evidência de que um vínculo posi-
tivo estava estabelecido foi que muitos estudantes passaram a ligar as câmeras
durante as aulas, bem como interagir por chat, seja para fazer comentários,
perguntas ou até mesmo mostrar pontos de vista.

Ao término do estágio foram feitos muitos elogios ao trabalho desenvol-


vido, o que, certamente motiva qualquer professor. Dessa forma, considera-se

96
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

que foi uma experiência produtiva, não só para os alunos, como também para
os estagiários que enriqueceram seus conhecimentos e acumularam experiên-
cias práticas.
“Quando compreende um conteúdo trabalhado em sala de aula, o aluno
amplia sua reflexão sobre os fenômenos que acontecem à sua volta e isso
pode gerar, consequentemente, discussões durante as aulas fazendo com
que os alunos, além de exporem suas ideias, aprendam a respeitar as opi-
niões de seus colegas de sala” (Leite, 2005, p. 3).

Dessa forma, é possível considerar que a compreensão de tais temas refe-


rentes às Habilidades Sociais faria os alunos colocarem na prática o que apren-
deram nas oficinas. Tomando como exemplo, quando foi tratado o tema “falar
em público”, buscou-se inspiração em uma dinâmica baseada em um jogo de
RPG, o qual, tinha como objetivo estimular a imaginação e a fala entre grupos,
os alunos interpretaram seus personagens e criam narrativas que giravam em
torno de um enredo. Seguindo esse formato, em cada temática abordada bus-
cou-se meios eficazes para proporcionar a interação e o dinamismo entre os
alunos. A partir dessas dinâmicas, os alunos conseguiram colocar na prática o
que foi aprendido:

“As aulas práticas podem ajudar no desenvolvimento de conceitos científi-


cos, além de permitir que os estudantes aprendam como abordar objetiva-
mente o seu mundo e como desenvolver soluções para problemas comple-
xos” (Leite, 2005, p.3).

Em suma, a cada encontro um subtema foi abordado, primeiramente de


forma teórica e, posteriormente, de modo prático, utilizando-se de dinâmicas,
para que os alunos conseguissem desenvolver as Habilidades Sociais trabalha-
das em cada encontro.

É importante destacar evidências que comprovam a efetividade da


intervenção refletindo sobre como os alunos do Instituto Federal assimilaram
os conteúdos trabalhados e se estes auxiliaram no dia-a-dia dos mesmos.

97
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Contudo, convém ressaltar que evidências dessa natureza exigiriam um estudo


sistematizado, que exigiria tempo e métodos específicos. Todavia, nos encontros,
já era possível observar um avanço decorrente do aumento das interações
sociais, tanto durante as reuniões como nos canais que eram utilizados para
comunicação com o grupo (WhatsApp, chat, etc.). A ativação mais constante
das câmeras durante as regências, também permite inferir que possíveis modifi-
cações ocorreram no comportamento dos estudantes. O questionário elaborado,
utilizando como base o IHS-Del-Prette, também deixou evidente que, de fato,
as intervenções contribuíram para a ampliação do repertório das Habilidades
Sociais dos alunos.

A partir desse questionário, que continha 10 perguntas, foi possível ob-


servar a diferença entre os discursos dos alunos a partir de certas situações
em que eram colocados como na pergunta 5 (Ao ser elogiado(a) sinceramente
por alguém, eu:), foram observadas respostas que demonstravam dificuldades
em alguns aspectos das Habilidades Sociais, tais como: “fico com vergonha,
acho que é mentira ou elogio de volta” (Aluno 3) já no pós-teste foi possível
observar uma mudança de comportamento pelo menos na situação hipotética
colocada “Agradeço e retribuo o elogio” (Aluno 3). Isso acabou se repetindo
em outras questões e momentos dos questionários, é muito importante observar
certo grau de modificação do comportamento mesmo que a intervenção tenha
sido remota.

A Oficina de Habilidades Sociais é uma das mais prejudicadas pelo mo-


delo remoto. Tal constatação se deve ao fato da dificuldade de realizar ativi-
dades concretas para despertar a interação social dos alunos. Por outro lado,
apesar das atividades remotas não favorecerem integralmente a interação so-
cial, elas se mostram eficientes quando bem selecionadas e planejadas. Um
exemplo disso pode ser visto em uma sessão de role-playing game (RPG) que

98
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

foi trabalhada em um dos encontros. Esse jogo de interpretação, possibilita a


saída do ambiente fechado, pelo menos de maneira imaginativa, possibilitando
que os estudantes se colocassem em situações nas quais o uso das habilida-
des sociais era crucial para o desenvolvimento da dinâmica aplicada, tendo
que pensar também nos colegas para tomar as decisões que poderiam afetar o
grupo. A atividade foi produtiva uma vez que possibilitou o desenvolvimento
de habilidades de fala com autoridades e também de improviso por parte dos
alunos. Além disso, houveram os feedbacks ao final das reuniões e foi possível
observar relatos como esse:

“gente um negócio que eu queria falar é que amanhã vou fazer entrevista
para estágio lá na prefeitura e vocês ajudaram demais nisso com essa ofi-
cina, fiquei dboa pra ir amanhã estava nervosa pra falar” (Aluno)
“Vocês me ajudaram a ver se realmente era isso que eu queria, obrigada,
obrigada por todas esses encontros, adorei muito e vou sentir saudades.”
(Aluno)

É possível observar a necessidade de um ensino de Habilidades Sociais


no meio escolar, também a desmistificação de que falar em público, expressar
ideias e coisas do gênero são inatas e que não podem ser aprendidas. Formar
cidadãos mais preparados é preparar cidadãos que sabem se expressar e que
entendam suas habilidades.

Conclusão

O desenvolvimento deste trabalho, desde a escolha do tema acerca das


Habilidades Sociais, teve como objetivo ampliar o conhecimento dos alunos
acerca das Habilidades Sociais e sua importância.

Acompanhar semanalmente o progresso dos alunos e o entusiasmo dos


mesmos foi mais um dos fatores observáveis que nos permitiu constatar que a
proposta, bem como os objetivos estabelecidos no início das intervenções esta-

99
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

vam se concretizando aos poucos e que os alunos estavam conseguindo absor-


ver os conteúdos trabalhados nas oficinas. Foi visível o progresso conquistado
pelos jovens! Este não ficou evidente apenas nas respostas dadas ao questio-
nário aplicado pré e pós-intervenção, como, também, nas falas e atitudes dos
mesmos durante o semestre.

A prática do estágio foi de grande aprendizado para os estagiários, contu-


do consideramos que o fato dos encontros terem acontecido de forma remota,
por via do Google Meet, trouxe alguns prejuízos ao processo de aprendizagem
dos alunos. No formato remoto, embora tenhamos uma grande variedade de
instrumentos digitais disponíveis, as atividades práticas se tornam um tanto
quanto limitadas. Nesse sentido, consideramos que o estágio seria mais rico,
tanto para o licenciado em Psicologia quanto para os estudantes do ensino mé-
dio, se ocorresse de maneira presencial, o que não foi possível devido ao mo-
mento pandêmico que estamos todos envolvidos. Entretendo, há que se desta-
car o quanto foi significativo para nossa experiência, enquanto acadêmicos, e
até mesmo para o crescimento profissional.

Referências
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http://basenacionalcomum.mec.gov.br/

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Caballo, V. E. (1996) Manual de técnicas de terapia e modificação do compor-


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100
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Comodo, C. N., & Dias, T. P. (2017). Habilidades sociais e competência social:


Analisando conceitos ao longo das obras de Del Prette e Del Prette. Interação
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coronav%C3%ADrus-e-s%C3%ADndromes-respirat%C3%B3rias-agu-
das-covid-19-mers-e-sars

101
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 8

HABILIDADES SOCIAIS
E COMPETÊNCIAS
SOCIOEMOCIONAIS ‘DA
PANDEMIA PARA O DIA
A DIA’: UM RELATO
DE EXPERIÊNCIA
Douglas Emanuel Silveira Ribeiro
Halana Antonagi Caseiro Lourenço
Valeria Aparecida Risson Dallabrida
Dielma de Sousa Borges Cassuci
Denise Mesquita de Melo Almeida
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-8

“Existirmos: a que será que se destina?” A pergunta do poeta também nos


ajuda a trilhar o caminho de compreensão da trajetória da Psicologia na Edu-
cação Básica brasileira. Descrevendo esse percurso, alguns estudos apontaram
que a história da relação entre a Psicologia e a Educação em nosso país remonta
ao início de nosso processo de industrialização, à ocupação de postos de tra-

102
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

balho em espaços urbanos pelas mulheres e à institucionalização do cuidado


das crianças. De acordo com tais estudos, a institucionalização do cuidado das
crianças engendrou a necessidade da qualificação da força de trabalho incum-
bida da gestão e da promoção do desenvolvimento da infância. Engendrou a
necessidade de investimento na formação profissional das professoras (Cirino
& Miranda, 2013; Mrech, 2013). Nesse sentido, a ciência psicológica emer-
giu e foi percebida como elemento essencial instrumentalizando esses proces-
sos formativos com saberes relacionados a estudos sobre o comportamento, ao
desenvolvimento psíquico humano e às teorias de aprendizagem, entre outros
(Silva et al, 2021).

Aliás, há mais de trinta anos, antes da certificação da profissão de psicó-


logas(os), os saberes produzidos pela ciência psicológica já participavam de
formações profissionais, constituindo, inclusive, as matrizes curriculares dos
primeiros cursos de medicina e direito do país (Cirino & Miranda, 2013). O es-
paço garantido a tais saberes na Educação Básica e na formação de professoras
foi mais amplo, diversificado ou mais restrito, em consonância com a trajetó-
ria histórica, a importância e os sentidos atribuídos à educação de crianças e à
profissionalização dos jovens no Brasil (Machado, 2016; Kohatsu & Machado,
2018). Desde a reforma de Francisco Campos, na década de 1930, passando
pelas leis orgânicas de ensino, a implantação do Sistema S, a promulgação das
diferentes leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e as reformas do
ensino médio, nas últimas décadas o lugar e a diversificação de conteúdos da
Psicologia na Educação Básica vêm acompanhando o movimento de assepsia
ideológica na formação de jovens, de desinvestimento nos processos de for-
mação de professores(as), bem como de desinvestimento na formação técnico
profissionalizante em nível médio (Barros, 2013). Para Barros (2007) “uma
educação efetivamente procedente em direção à emancipação [...] não poderia

103
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

ser separada dos questionamentos da psicologia”. O autor aproxima o esva-


ziamento dos conteúdos da Psicologia nas matrizes curriculares da Educação
Básica à produção de uma educação para a barbárie, com a formação de jovens
com oportunidades reduzidas para reflexão sobre si mesmos e a compreensão
dos contextos sociais, econômicos e culturais que engendram suas existências.

Tudo isso impactou, também, na formação de professoras(es) de Psicolo-


gia resultando tanto na flexibilização da oferta desse tipo de formação, quanto
em sua qualidade. Conforme González Rey (2014) passou-se a verificar uma
formação docente em Psicologia marcada pela confusão entre o papel de psi-
cólogas(os) escolares e professoras(es) de Psicologia e por uma concepção de
ensino marcada pela cisão entre pensar e agir. Tal fato resultou em práticas de
ensino de Psicologia focadas na reprodução de teorias de aprendizagem e no
desconhecimento acerca da importância de saberes produzidos pela ciência psi-
cológica para o desenvolvimento de pessoas em idade escolar.

De acordo com o artigo 13, da Resolução CNE/CES n. 5/2011, a Licen-


ciatura em Psicologia é um projeto complementar à formação dos psicólogos,
que habilita psicólogas(os) à docência em Psicologia, “articulando os sabe-
res específicos da área com os conhecimentos didáticos e metodológicos, para
atuar na construção de políticas públicas de educação, na educação básica, no
nível médio, no curso Normal, em cursos profissionalizantes e em cursos téc-
nicos, na educação continuada, em contextos de educação informal” (Conselho
Nacional de Educação - CNE/CES, 2011).

Este estudo relata uma experiência relacionada ao ensino de Psicologia


na Educação Básica. Trata-se de uma atividade realizada durante um Estágio
de Formação de Professores em Psicologia regido por tal resolução, no qual
lecionou-se sobre as habilidades sociais e competências socioemocionais e a
sua importância no dia a dia, sobretudo considerando o contexto pandêmico

104
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

de Covid-19. O objetivo geral foi formar psicólogos para exercício crítico da


docência em Psicologia. E, como objetivo específico, qualificar licenciandos
para produzir e lecionar conteúdos acadêmicos ligados ao campo específico
de saberes da Psicologia, presentes na Base Nacional Comum Curricular. O
estágio foi realizado em uma escola municipal e participaram das atividades
professoras(es) e alunas(os) do 6º ano do Ensino Fundamental. Quanto aos pro-
cedimentos metodológicos, após a análise e a crítica, elegeu-se como conteúdo
das regências a reflexão sobre habilidades sociais e competências socioemocio-
nais e sua aplicação no cotidiano, assim como estratégias de enfrentamento em
situações desafiadoras. Ocorreram três encontros semanais em forma de ofici-
nas reflexivas, via google meet, sendo abordado, semanalmente, um tema que
incluía: resiliência, cooperatividade e engajamento com os outros. A avaliação
da atividade se deu com a utilização de um instrumento de pesquisa desenvol-
vido na plataforma google forms, com perguntas referentes às regências desem-
penhadas. Conclui-se este relato tecendo-se considerações sobre a vivência da
experiência proposta e as aprendizagens por ela proporcionadas, tanto em rela-
ção à docência em Psicologia, quanto em relação à importância dos saberes da
ciência psicológica para o desenvolvimento das(os) estudantes participantes.

Procedimentos Metodológicos

Como foi dito, a Licenciatura em Psicologia é uma formação comple-


mentar à formação de psicólogas(os). Conforme a legislação atual, ela é cursa-
da simultaneamente à graduação, acrescentando a essa saberes relacionados à
educação escolar e à formação de professoras(es) de Educação Básica. A for-
mação na Licenciatura em Psicologia é constituída por conteúdos de natureza
prático-teórica, entre os quais, estágios específicos à formação docente. Com
isso, habilita psicólogas(os) para o ensino de Psicologia em todos os níveis e

105
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

modalidades de ensino da Educação Básica, em diferentes espaços educativos.


Portanto, esse estágio no qual a experiência em relato foi desenvolvida previu
o estudo da legislação vigente, tanto para a Licenciatura em Psicologia, quanto
para estrutura e funcionamento da Educação Básica. Do mesmo modo, previu
o estudo do papel do estágio na formação inicial de professores e a vivência de
observações em campo, elaboração e aplicação de um plano de ensino.

O período em que as atividades foram realizadas foi marcado pelo con-


texto da pandemia do Coronavírus – Covid 19. De acordo com o Ministério da
Saúde do Brasil (2021), “a Covid-19 é uma infecção respiratória aguda causada
pelo coronavírus SARS-CoV-2, potencialmente grave, de elevada transmissibi-
lidade e de distribuição global”. Estudos indicam que os primeiros casos tive-
ram início na China e em pouco tempo alcançaram o mundo inteiro. Em dois
anos, 28.764.822 casos foram conhecidos no Brasil, sendo que 649.195 deles
foram fatais. No município em que as atividades foram desenvolvidas 46.874
casos foram conhecidos, sendo que 727 pessoas chegaram a óbito (REDE CO-
VIDA, 2022). No decorrer desse processo, com o intuito de conter a dissemi-
nação do vírus, muitas medidas de controle foram adotadas, entre elas o distan-
ciamento físico, que afetou intensamente o cotidiano escolar. Por essa razão,
as atividades propostas nesse estágio ocorreram em modo remoto, por meio da
plataforma Google Meet e da rede social Whatsapp.

Em condições convencionais, as atividades do estágio teriam envolvido,


além de estudos teóricos, observações em campo e regências presenciais. Nes-
se caso, muitas interlocuções foram estabelecidas para a construção da coope-
ração entre escola de Educação Básica e universidade para que o estágio fosse
viabilizado. Muitas decisões coletivas foram acordadas: distribuição dos gru-
pos, estratégias de aproximação entre os grupos partícipes na ação formadora,
elaboração de um projeto de intervenção que seria implementado através das

106
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

regências, eleição das temáticas, escolha das estratégias tecnológicas, entre ou-
tras. Até mesmo as observações que, convencionalmente, teriam ocorrido pre-
sencialmente, foram substituídas por entrevistas com professoras(es), estudos
dos documentos e visitas às redes sociais das escolas, entre outras estratégias
para conhecer a escola com a qual a relação de aprendizagem da docência se
estabeleceria. Num momento de muita dor e muitas perdas pelo mundo, toda a
intencionalidade foi direcionada para a transformação do estágio em uma situa-
ção de trocas afetivas, estabelecimento de compromisso, solidariedade e cui-
dado de parte a parte – a escola de Educação Básica contribuindo na formação
profissional e técnica de novas(os) professoras(es) e a universidade, através das
regências em Psicologia, contribuindo para o cuidado da escola e sua comuni-
dade. Houve muita incerteza, receio e anseio pelo sucesso da empreitada, tudo
isso foi utilizado como subsídio para o delineamento do planejamento da ação.

As atividades teórico-práticas do estágio foram desempenhadas por meio


de três regências – oficinas com temas relacionados à aprendizagem de habi-
lidades sociais e às competências socioemocionais para o enfrentamento de
situações adversas. O lugar, a importância e, sobretudo, os sentidos atribuídos
a esses conteúdos na atual Base Nacional Comum Curricular vêm sendo pro-
blematizados por importantes pesquisadores (Smolka et al, 2015; Gonçalves
& Deitos, 2020; Pereira et al, 2020). De diferentes formas tais autores – com
os quais concordamos - apontam que a valorização e os sentidos conferidos a
esses conteúdos na política educacional nacional coadunam com certa perspec-
tiva que tende a associar a melhoria da qualidade da Educação e a redução da
evasão escolar ao desenvolvimento de competências socioemocionais. Uma
concepção que busca explicar a “realidade como consequência do conhecimen-
to humano subjetivamente posto, sob o fetiche da autoeficácia e resiliência”
[...], incorrendo “na polarização entre os aspectos objetivos e subjetivos do pro-

107
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

cesso educativo, ignorando a dimensão ontológica que caracteriza a constitui-


ção do humano-social” (Pereira et al, 2020). Contudo, ainda que reconhecendo
tais distorções, o contexto social no qual o estágio esteve circunscrito indicou
a importância do investimento no estudo das habilidades sociais e das compe-
tências socioemocionais. Nesse caso, não como chave, mas como um recurso a
mais, mesmo que limitado, com o qual os participantes das regências poderiam
se instrumentalizar para o enfrentamento da crise sanitária, econômica, social e
emocional decorrente da pandemia do Coronavírus.

Del Prette e Del Prette (2017) apresentaram o conceito de habilidades


sociais como uma categoria que abrange “diferentes classes de comportamen-
tos sociais do repertório de um indivíduo, que contribuem para a competência
social, favorecendo um relacionamento saudável e produtivo com as demais
pessoas”.. Para os autores, o desempenho competente de tais comportamen-
tos pode aumentar a probabilidade da obtenção de consequências reforçadoras
imediatas no ambiente social. Abed (2016) referiu-se às habilidades socioe-
mocionais como um conjunto de “variadas competências nas crianças e jo-
vens, que lhe possibilitam construir uma vida produtiva e feliz em uma so-
ciedade marcada pela velocidade das mudanças”. De acordo com a autora, o
bem viver na contemporaneidade torna imprescindível o desenvolvimento de
algumas habilidades socioemocionais especialmente relacionadas à “motiva-
ção, perseverança, capacidade de trabalhar em equipe e resiliência diante de
situações difíceis são algumas das habilidades socioemocionais imprescindí-
veis na contemporaneidade”. Conforme Abed (2016), esse conjunto especial de
habilidades socioemocionais pode ser organizado em cinco grandes domínios:
autogestão; engajamento com os outros; amabilidade; resiliência emocional; e,
abertura para o novo.

108
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

No planejamento das atividades do estágio, em razão da limitação do


tempo e das condições de realização em modo remoto, construiu-se coletiva-
mente a escolha para que o trabalho fosse voltado para a reflexão sobre o de-
senvolvimento de três desses conjuntos de habilidades sociais e competências
socioemocionais na relação com a vida e com o ambiente escolar: “resiliência”,
“amabilidade” e “engajamento com os outros”. Planejou-se uma regência/ofi-
cina específica para a reflexão de cada um desses conjuntos por meio da ela-
boração e realização de planos de aula dinâmicos, com componentes lúdicos
capazes mobilizar a atenção e o interesse dos alunos.

Reconhecemos a escassez e a fragilidade científica na descrição de tais


conteúdos, mas Abed (2016) descreveu a resiliência emocional como a compe-
tência para “demonstrar previsibilidade e consistência nas reações emocionais
- autocontrole, calma, serenidade”. Assim, durante as atividades, o conceito foi
aproximado à realidade, a partir da exploração de experiências cotidianas nas
quais tais competências pudessem ser problematizadas: somos heróis? Os he-
róis vivenciam momentos ou situações de dúvidas ou fragilidades? Estudantes
e pessoas comuns precisam reagir como heróis ou heroínas frente a situações
desafiadoras? O que pode acontecer quando as reações de pessoas comuns a
situações desafiadoras não se alinham a demonstrações de autocontrole, calma
e serenidade? É possível aprender e reformular modos de pensar, sentir e agir?

A mesma autora relacionou à habilidade socioemocional para “amabili-


dade e cooperatividade” as competências para “atuar em grupo de forma coo-
perativa e colaborativa - tolerância, simpatia, altruísmo” (Abed, 2016). Com
isso, as atividades do estágio planejaram colocar em foco a qualidade do traba-
lho grupal, incluindo o professor, e problematizar as interações, o ajustamento
a projetos comuns. Destaca-se que, em atividades grupais, a união é importan-

109
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

te, tanto quanto o desenvolvimento da empatia e o respeito às singularidades


e aos limites de cada pessoa. Por fim, as competências ligadas à extroversão e
engajamento com o outro foram descritas como competências para “orientar
os interesses e energia para o mundo exterior - autoconfiança, sociabilidade,
entusiasmo” (Abed, 2016). Frente a tal descrição, a reflexão foi direcionada à
observação das singularidades expressas nas personalidades das diferentes pes-
soas que convivem dentro da sala de aula. Problematizou-se que, variando de
acordo com cada situação do dia a dia, com o intuito de adentrar à dinâmica de
grupo, independente da sua personalidade, o auxílio ao próximo é requisitado
em diversas situações e atividades do cotidiano. Incentivou-se a compreensão
de que a aprendizagem escolar implica trocas e cooperação, portanto, a dispo-
nibilidade para as interações em grupo.

Saviani e Galvão (2021) criticaram o ensino remoto como estratégia para


o enfrentamento ao distanciamento físico e a manutenção das atividades esco-
lares. Apontaram que a falta de acesso aos recursos tecnológicos, tanto pelas
escolas quanto por estudantes, as limitações na formação docente para o de-
sempenho do trabalho pedagógico em modo remoto e muitas outras razões se
somariam para resultar numa redução significativa da qualidade da educação
proporcionada pelas escolas públicas às classes sociais econômica e social-
mente vulnerabilizadas. Nesse contexto, considerou-se que a aprendizagem de
habilidades sociais e competências socioemocionais poderia auxiliar na sensi-
bilização dos grupos envolvidos para compreensão do contexto de aprofunda-
mento da desigualdade engendrado pela pandemia e a produção de estratégias
coletivas voltadas à minimização de seus efeitos.

110
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Resultados e Discussões

Para apresentação de resultados consideramos importante apontar que


49 acadêmicas(os) do curso de Psicologia participaram do estágio, seguindo
o mesmo percurso metodológico descrito até aqui. Esse contingente de acadê-
micas(os) foi distribuído por 04 escolas1, sendo que 14 delas(es) foram abriga-
das(os) pela escola na qual ocorreram as atividades discutidas neste relato. A
distribuição de quatorze estagiárias(os) nesta escola viabilizou a realização do
conjunto das três regências/oficinas mencionadas, em 13 salas de aulas. Assim,
tivemos a oportunidade de envolver desde a direção da escola, a coordenação
pedagógica, cinco professoras, até alunos e alguns de seus familiares. Conse-
guiu-se reunir, portanto, um significativo número de agentes escolares na refle-
xão sobre a valorização das habilidades sociais e das competências socioemo-
cionais como recurso para a retomada da vida acadêmica durante a pandemia.
Os desafios foram muitos e a apresentação dos resultados alcançados junto à
turma do 6º ano ajuda a compreendê-los.

O público alvo constituiu-se de crianças e adolescentes, com idades va-


riando entre 10 e 14 anos, matriculadas(os) no 6º ano, portanto, de uma esco-
la municipal situada numa região marcada por vulnerabilidade econômica e
social. A experiência foi realizada durante a pandemia do novo coronavírus,
ocorreu de forma remota, pelo Google Meet, que viabiliza encontros de ma-
neira simples e permite o uso simultâneo de outros aplicativos que auxiliam na
dinamização do trabalho. Esse foi o primeiro grande desafio enfrentado: consi-
derando a vulnerabilidade econômica de grande parte da comunidade escolar,
as atividades acadêmicas vinham sendo realizadas de modo assíncrono, por

1 Para a gestão do estágio, além da docente supervisora na Universidade, contou-se com a partici-
pação de um representante de cada escola parceira, 03 psicólogas(os) escolares, 01 coordenadora
pedagógica e 02 monitoras, formandas do curso de Psicologia.

111
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

meio de atividades impressas retiradas e entregues, semanalmente, na secreta-


ria da escola. As(os) professoras(es) se comunicavam com o alunado por meio
da rede social WhatsApp, quase sempre com grupos fechados e espaço de fala
reservado aos administradores do ambiente.

As regências foram realizadas pouco antes da terceira onda do novo coro-


navírus. Nos dias que antecederam, convites foram enviados por meio do Wha-
tsApp das(os) professoras(es) para que o alunado acessasse o link, no horário
marcado, e comparecesse à atividade síncrona planejada. Uma mãe entrou em
contato, demonstrou interesse. Mas, como visto nos estudos de Mrech (2013),
confundia se seriam consultas psicológicas ou aulas. Suas dúvidas foram di-
rimidas ao tempo em que o convite foi estendido às mães e outros familiares.
Outros participantes também se manifestaram em busca de informações que,
curiosamente, já constavam nos banners de apresentação. Esse fato demonstra
que os meios de divulgação de eventos utilizados em ambientes digitais - seu
layout e disposição de informações - não eram acessíveis ao universo cultural
dos participantes – o que, mais uma vez, corroborou as análises de Saviani e
Galvão (2021) sobre os limites do ensino remoto.

A ferramenta tecnológica escolhida para a realização das atividades ainda


não fazia parte e não era acessível à comunidade escolar. Durante as regên-
cias foi possível observar que, para muitas(os), era o primeiro contato com
ela, muitas(os) apresentaram timidez, vergonha de abrir câmeras, de falar ao
microfone e, até mesmo, de digitar. Mas foram acolhidas(os), estimuladas(os) e
orientadas(os) sobre como proceder e manifestar sua participação no ambiente
virtual. Aos poucos, foram se soltando e respondendo. Entretanto, durante o
planejamento, com o estudo de Saviani e Galvão (2021), foi possível prever
a possibilidade dessa ocorrência. Os autores argumentaram que o êxito do en-
sino remoto, entre outros fatores, depende do fato de “que todos estejam de-

112
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

vidamente familiarizados com as tecnologias e, no caso de docentes, também


preparados para o uso pedagógico de ferramentas virtuais”. Portanto, o uso das
Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) foi adicionado e
transformado em conteúdo implicado na aprendizagem da docência durante o
estágio.

Não obstante, a despeito de todo esforço e investimento realizado - por


estagiárias(os), professoras, coordenação pedagógica e direção da escola -, e a
despeito, ainda, da qualidade do desempenho apresentado pelos alunos durante
as atividades realizadas, a frequência e a adesão às atividades não ultrapassou a
oito alunos e duas ou três professoras presentes em cada regência. E, de acordo
com relatos, esse quantitativo vinha sendo a média de adesão a todas as outras
(poucas) atividades online, síncronas, propostas pela escola. As justificativas a
esse cenário coadunaram com as informações proporcionadas pela ANDES-SN
(2020, citado em Saviani & Galvão, 2021, p.38), segundo as quais durante o
período de realização do estágio 4,5 milhões de brasileiros não tinham acesso à
internet banda larga e mais de 50% dos domicílios da área rural não possuíam
acesso à internet. Além disso, 38% dos domicílios brasileiros não possuíam
acesso à internet e 58% não tinham computadores. O alunado da escola não
tinha o acesso ao ambiente virtual propiciado por equipamentos adequados, a
maioria só acessava por meio de telefones celulares por tempo limitado – visto
que os adolescentes quase sempre utilizavam equipamentos pertencentes a seus
pais, que necessitavam deles para o trabalho. Os participantes também não ti-
nham acesso à internet de qualidade em razão da adoção de planos de telefonia
de baixo custo e alcance.

Tudo isso impôs limites para o conjunto das ações realizadas. Contudo,
as três regências foram cuidadosamente preparadas, diversos elementos foram

113
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

delineados e articulados a fim de garantir que os conteúdos em pauta pudessem


ser estudados, discutidos coletivamente e aprendidos. As(os) estagiárias(os)
pesquisaram sobre perfis gerais de desenvolvimento de adolescentes entre 10
e 14 anos e os tomaram como referência para o planejamento do passo a passo
de cada atividade, para eleição de linguagens e recursos (textos, vídeos, clipes
musicais, jogos) para mediar sua comunicação com os alunos e tornar os con-
teúdos acessíveis a eles com a utilização das TDIC. E, desde a acolhida às(aos)
participantes ao desenvolvimento de cada atividade, o afeto esteve presente
entrelaçando arte e ciência no estágio. As músicas “Catch & Release”, de Matt
Simons, “Maremotos”, da banda brasileira Supercombo, bem como a cena final
do filme” Os Vingadores: Ultimato” (onde os personagens se unem na batalha
contra o Thanos) foram articuladas a estudos críticos e inspiraram significativas
reflexões com as(os) participantes sobre a importância dos conteúdos socioe-
mocionais na Educação Básica.

As(os) alunas(os) manifestaram prazer em participar dos encontros: len-


tamente abriram suas câmeras, sorriram, abriram microfones, usaram o chat e
expressaram suas opiniões sobre os temas em estudo. Aproveitaram a oportuni-
dade proposta para se dedicar ao estudo sobre si mesmos, sobre suas condições
de vida em sociedade, na escola, na família, sobretudo, para refletir sobre os
efeitos da pandemia sobre sua sociabilidade. Usufruíram da ocasião para cons-
truir conhecimentos sobre situações vivenciadas em seus cotidianos, mesmo
quando adversas. Compartilharam suas trajetórias de vida tecendo articulação
com os temas propostos. E, sem tecer ilusões sobre a extensão do alcance dos
efeitos do desenvolvimento de habilidades sociais, indicaram estar compreen-
dendo sobre caminhos atenuantes às situações de desgaste e sofrimento que
podem ser construídos a partir do conhecimento de si.

114
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Considerações Finais

Diante das adversidades do contexto atual, nos deparamos com o desafio


inédito de ter que trilhar uma parcela significativa da formação de psicólo-
gas(os) de forma não presencial. O ensino da docência em Psicologia foi atra-
vessado por preocupações antigas que se misturaram às urgências impostas pela
pandemia de Covid-19. A palavra reinvenção foi muito utilizada durante esse
período. No entanto, é possível que ela não traduza os esforços efetivamente
desempenhados. O trabalho realizado exigiu esforço, intencionalidade e racio-
nalidade. Enfrentamos a necessidade de aprender e nos adaptar aos recursos
tecnológicos disponíveis, a fim de abstrair a máxima aprendizagem possível
da docência no contexto remoto, desempenhando um estágio proveitoso, ainda
que distante da realidade concreta da escola e das pessoas que a constituem.

Embora pesquisas científicas nos apresentassem elementos que dessem


a conhecer a realidade enfrentada pelas escolas, foi desafiador vivenciar a ex-
periência imediata dos entraves. Impactou-nos verificar os limites, a falta de
acesso aos recursos necessários para o desenvolvimento de processos pedagó-
gicos de qualidade e a evasão escolar. Também foi desconcertante lidar com a
baixa adesão do público-alvo às atividades propostas. De outro lado, aqueles
que puderam, apresentaram um envolvimento significativo com as atividades e
reflexões propostas, interagindo, sempre que possível, e respondendo de forma
congruente às solicitações apresentadas, e revelando sobre sua relação com as
novas metodologias de ensino, os desafios impostos aos contextos familiares
pela pandemia, bem como sobre as habilidades que desenvolveram para en-
frentar as dificuldades do presente.

Sobretudo, sua participação nos conduziu a uma melhor compreensão da


importância da Psicologia na Educação Básica. Pudemos perceber a relevância

115
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

da atuação de profissionais da Psicologia nos ambientes escolares – psicólo-


gas(os) e professoras(es) de Psicologia -, bem como o valor dos conhecimen-
tos produzidos pela ciência psicológica para formação de professoras(es). A
atuação da professora e do professor de Psicologia, junto aos temas relacio-
nados ao desenvolvimento humano, à aprendizagem, bem como às questões
socioemocionais, é de extrema importância na escola, sobretudo nesse momen-
to de pandemia, em que o contato físico, o adoecimento, o desemprego e o
empobrecimento se fazem tão presentes no cotidiano. Assim, a circunstância
específica desse estágio reafirmou a importância dos saberes psicológicos para
o desenvolvimento direto de crianças e jovens em situação de aprendizagem
escolar. Reafirmou que a Psicologia como conteúdo curricular na Educação
Básica pode prover subsídios que auxiliem à produção de sentidos significati-
vos à aprendizagem, instrumentalizando ao enfrentamento não apenas do atual
contexto epidêmico, mas também para a vida futura.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

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118
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 9

(IM)POSSIBILIDADES
DO ENSINO REMOTO: UM
OLHAR DA LICENCIATURA
EM PSICOLOGIA
Ana Alice Cavalcanti Serejo
Júlia Medeiros Pereira
Luana dos Santos Machado
Mariana Beloto dos Santos
Jaqueline Batista de Oliveira Costa
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-9

O Estágio é uma experiência essencial para a formação do licenciando,


futuro professor. É preciso destacar que ele é considerado um requisito funda-
mental para a atuação profissional, uma vez que habilita e prepara os graduan-
dos para o exercício da prática docente. A universidade permite o contato com
o conhecimento teórico historicamente acumulado, contudo, sem a vivência
prática, dificilmente o estudante universitário será capaz de relacionar as leitu-
ras teóricas com e a experiência prática. (Mafuani, 2011). Assim, é por intermé-
dio do Estágio Supervisionado que o aluno terá oportunidade de construir sua

119
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

práxis. Se bem realizado, o estágio poderá proporcionar a expressão da cria-


tividade, de competências, da autonomia, independência e caráter, além de se
configurar como uma oportunidade de o profissional em formação perceber se a
escolha profissional corresponde com sua aptidão técnica (Bianchi et al. 2005).

Na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), o Estágio Su-


pervisionado de Formação de Professores deve ser realizado presencialmente
durante três semestres letivos. Todavia, devido ao advento da pandemia de Co-
vid-19, o estágio foi realizado integralmente na modalidade remota, no ano de
2021.

Neste capítulo relataremos a experiência realizada durante o Estágio de


Formação de Professores II, cuja temática abordada foi Autoestima e Autoima-
gem (AE e AI), conteúdos entendidos como fundamentais na elaboração da
autopercepção, assumindo um importante papel na promoção de saúde física e
mental do adolescente.

De modo geral, a autoestima é definida como uma “[...] avaliação afetiva


do valor, apreço ou importância que cada um faz de si próprio” (Freire & Ta-
vares, 2011, p. 185) por meio de suas habilidades. A autoimagem, por sua vez,
“[...] é mais o (re)conhecimento que fazemos de nós mesmos, como sentimos
nossas potencialidades, sentimentos, atitudes e idéias, a imagem o mais realista
possível, enfim, que fazemos de nós mesmos.” (Mosquera & Stobaus, 2006, p.
84). Percebe-se que há uma relação entre a construção da identidade e do “filtro
de introjeção” que a Autoestima e a Autoimagem adequadas podem propor-
cionar para o público de adolescentes. Portanto, partimos da compreensão de
que, ao estudar e refletir sobre esses conceitos, é possível que os adolescentes
tenham consciência da importância de olhar para si mesmo e se aceitarem.

Nessa perspectiva, as atividades desenvolvidas durante o estágio, além


de propiciar aos estudantes o esclarecimento desses conceitos, diferenciando-

120
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

-os, exemplificando e investigando a influência das mídias digitais, também


tiveram como objetivo a promoção de reflexões e do desenvolvimento do pen-
samento crítico em relação aos conteúdos consumidos por esses alunos.

Segundo Erik Erikson, citado por Hall, Lindzey e Campbell, durante a


adolescência, o indivíduo busca por sua própria identidade, vivencia o luto do
corpo infantil e “[...] se torna consciente das características individuais ineren-
tes, de situações, pessoas e objetos dos quais gosta ou não gosta, de metas futu-
ras antecipadas e da força e do propósito de controlar o próprio destino” (Hall,
Lindzey, & Campbell, 2007, p. 173). Entretanto, até constituir sua identidade, o
adolescente busca formas de identificação, em um processo de indecisões e in-
certezas que é intensificado por possíveis sentimentos de incapacidade, medo,
ansiedade e a tendência a se preocupar com a forma com que os outros o veem.

Perceber os atravessamentos que permeiam a adolescência e a construção


de sua identidade, possibilita a compreensão da influência que as facilidades
e modelos presentes no cotidiano, por meio das mídias digitais e das novas
tecnologias, exercem nos indivíduos em formação nesta sociedade digital. A
relação dessas influências destaca-se entre os adolescentes pela ideação de
uma Autoimagem ideal, adequada aos padrões impostos pela sociedade e re-
forçados pela divulgação de personalidades famosas que servem como modelo
para diversos jovens. Como afirma Uchôa et al., “um fator importante para
o entendimento da influência da mídia sobre o corpo refere-se à imposição
de comportamentos a fim de serem alcançados os padrões estéticos de corpo”
(Uchôa et al, 2015, p. 295).

Neste sentido, o papel das tecnologias e das mídias digitais podem tanto
auxiliar a construção da identidade do adolescente, proporcionando modelos
saudáveis de comportamentos, quanto promover padrões de adoecimento fí-
sico e psíquico. Considerando o desenvolvimento da Autoimagem como um

121
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

fator inerente à construção da identidade e promotor de manutenção do Au-


toconceito, compreende-se a importância da orientação desse público acerca
das dificuldades e facilidades geradas pelos meios digitais. Principalmente em
um momento pandêmico de grande uso dos meios virtuais para comunicação
e interação social, ou seja, o tema trabalhado durante o estágio impõe-se de
forma relevante à fase da adolescência e ao contexto da pandemia causada pelo
Coronavírus.

Nesse sentido, o objetivo deste trabalho consiste em 1) apresentar um


relato de experiência de ensino, realizado durante o Estágio de Formação de
Professores, estruturado no formato de oficinas remotas; 2) discutir os limi-
tes/dificuldades e possibilidades/potencialidades dessa modalidade de ensino;
e 3) analisar e compreender a relevância do tema da Autoestima e Autoimagem
frente às influências da internet, sobretudo em um período no qual a comunica-
ção e interação social aumentaram significativamente.

Material e Método

A experiência de Estágio Supervisionado em Formação de Professores


foi desenvolvida no primeiro semestre do ano de 2021. Trata-se de uma ati-
vidade obrigatória para conclusão do curso de Licenciatura em Psicologia na
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). As atividades, aqui des-
critas, foram realizadas por um grupo formado por sete estagiárias do sétimo
semestre. O público-alvo foi constituído por 24 adolescentes, com idades entre
15-24 anos, cursando o Ensino Médio e Técnico em Informática para Internet,
em uma Instituição Federal de Ensino do Mato Grosso do Sul (IFMS). A dura-
ção do trabalho foi de 72h, divididas em 12 semanas, totalizando dez encontros
realizados de forma remota, utilizando a plataforma Google Meet.

122
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

A temática escolhida justificou-se pelo interesse do público-alvo que,


dentre uma lista de cinco opções apresentadas, optou pelo tema: “Autoestima
e Autoimagem”. O objetivo do trabalho, realizado junto ao grupo de adoles-
centes, consistiu em discutir e ampliar o conceito de autoimagem e autoestima
de forma que, na prática do dia a dia, estes fossem capazes de distingui-los;
demonstrar a influência da mídia sobre a construção da autoimagem e autoes-
tima; apresentar e identificar fatores que contribuem para a baixo autoestima,
bem como para os pensamentos distorcidos sobre o tema e promover a reflexão
sobre a possibilidade de se construir uma autoimagem e autoestima positiva.
Tendo em vista o alcance de tais objetivos, evitou-se, no ambiente virtual, a uti-
lização exaustiva de aulas expositivas, tal como acontece, na maioria das vezes,
na modalidade tradicional de ensino, uma vez que esta metodologia, por vezes,
gera desinteresse e desmotivação nos estudantes. Assim, levando em conside-
ração a idade e as transformações comuns ao período da adolescência, optou-se
por estratégias que permitissem a participação ativa e reflexão crítica. Desse
modo, os encontros foram organizados no formato de oficinas pedagógicas
temáticas. Uma oficina Pedagógica se caracteriza como sendo “um sistema de
ensino-aprendizagem que abre novas possibilidades quanto à troca de relações,
funções, papéis entre educadores e educandos” (Souza, 2016, p. 2). Esse tipo de
estratégia possui um enorme potencial pedagógico para trabalhar determinadas
temáticas que pertencem ao domínio da Psicologia. As oficinas também são ca-
pazes de proporcionar aprendizagens mais completas, pois valoriza a constru-
ção do conhecimento de forma aberta, participativa, dinâmica e questionadora
que se baseiam em situações vivenciadas pelo aluno.

Durantes os dez encontros realizados virtualmente foram trabalhados os


seguintes conteúdos programáticos: primeiro e segundo encontros: 1) concei-

123
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

tuação de autoimagem e autoestima; 2) terceiro e quarto encontro: autoimagem


e autoestima na prática (dia-a-dia); 3) quinto e sexto encontros: influência da
mídia na construção da autoimagem e autoestima; 4) sétimo e oitavo encontros:
a autoestima adequada e a baixo autoestima; 5) nono encontro: autoimagem
adequada e distorções de imagem; e, por último, 6) décimo encontro: caminhos
para construção uma boa autoimagem e autoestima.

As estratégias metodológicas utilizadas durante as oficinas pedagógicas


foram: aulas expositivas com o apoio de slides preparados em PowerPoint,
exibição de trechos de filmes, músicas, dinâmicas interativas e uso de posts em
redes sociais de perfis populares, seguidos de rodas de conversas e discussão
sobre os conteúdos apresentados. Como instrumento de avaliação foram apli-
cados questionários via Google Forms, uma plataforma online de pesquisas e
coleta de dados. As discussões realizadas em rodas de conversa com os estu-
dantes durante e após os encontros, também foram utilizadas como instrumen-
tos avaliativos.

O material coletado, através dos questionários e rodas de conversa, possi-


bilitou realizar a análise de dados tendo em vista identificar se o trabalho reali-
zado nas oficinas pedagógicas ampliou ou modificou conceitos, desenvolveu o
senso crítico e favoreceu o desenvolvimento de uma autoimagem e autoestima
saudável nos adolescentes participantes da intervenção. Os dados foram anali-
sados seguindo pressupostos básicos de uma investigação de natureza qualita-
tiva, cujo interesse consiste “em descobrir e observar fenômenos, procurando
descrevê-los, classificá-los e interpretá-los” (Oliveira, 2007, p. 67), por meio de
entrevistas e observações prezando o olhar do pesquisador e sua interpretação
analítica das informações coletadas (Cyriaco et al. 2017). Portanto, o modelo
qualitativo ao priorizar o ambiente natural para coleta de dados, onde o pesqui-

124
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

sador tem papel fundamental, favorece uma apresentação e análise de dados de


caráter descritivo, por meio da qual busca compreender o significado que os
sujeitos dão às coisas e à vida e possui um enfoque indutivo. (Oliveira, 2007).

Nessa perspectiva, os dados foram agrupados em dois blocos representa-


dos nos quadros 1 e 2. O quadro 1 apresenta a compreensão dos alunos sobre a
influência da mídia e redes sociais na Autoestima (AE) e Autoimagem (AI); e o
segundo expõe uma comparação das respostas dos alunos sobre o conceito de
AE e AI na primeira e última oficinas.

Apresentação e Discussão dos resultados

O Ensino de Psicologia em tempos de pandemia: Limites e


Possibilidades

O Ensino em Psicologia tem o caráter educativo e coletivo, pois, por


meio da relação entre professor e alunos, busca um espaço de desenvolvimento
da aprendizagem e “[...] momentos de reflexão e de pensamento crítico que ga-
rantam a estes a conquista da autonomia. E nisso a Psicologia poderia ser muito
útil, levando aos alunos, e construindo com eles, um conhecimento sobre eles
mesmos, sobre os outros e sobre o mundo.” (Izidoro, Jorcuvich & Costa, 2019,
p. 33). No entanto, nem sempre esse objetivo é claro, principalmente quando o
profissional vem de uma graduação em que a identidade profissional está vol-
tada para a clínica psicológica e não para a docência.

Provavelmente essa falta de clareza seja resultado da dificuldade na for-


mação da identidade do professor de Psicologia. Por vezes, esse profissional, ao
se deparar com a possibilidade de ensinar, não se sente preparado ou não sabe
o que (conteúdos) e como ensinar (metodologias). Associado a isso, há uma
dificuldade de compreender a relevância dos saberes da Psicologia nas escolas

125
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

de ensino básico e, mais especificamente, na formação integral dos estudantes.

É necessário desvincular a licenciatura em Psicologia da herança indivi-


dualista da clínica, compreendendo que nesse contexto há uma sala de aula e
um saber social com demandas específicas (Larocca, 2000). Trabalhar temas
como autoestima e autoimagem, inteligência emocional, orientação profissio-
nal, violência, entre outros, mostra a capacidade e a necessidade da psicologia
estar na educação como promotora de uma formação integral e para a cidada-
nia, especialmente em tempo de Pandemia, no qual o isolamento social impõe
uma nova forma de interação social e os adolescentes ficam submetidos e ex-
postos a todos os tipos de informações e influências midiáticas.

O compromisso ético com o ser humano é inquestionável na formação do


psicólogo, mas há de se buscar, ainda, o compromisso com o coletivo da
vida humana e, por aí se vê que a promoção da saúde, também envolve
compromisso com a Educação. (Larocca, 2000, p. 61).

Durante as oficinas pedagógicas realizadas no formato remoto com alu-


nos do IFMS, surgiram desafios próprios de uma regência online: distancia-
mento físico, estranhamento para receber os conteúdos, timidez para expressar
opiniões e insegurança para utilizar câmera/microfone, participação apenas via
chat ou falta dela. Como se não bastasse, a fala de um aluno (“Não vou ligar mi-
nha câmera, tenho a autoimagem muito baixa”) tornou evidente que, além dos
desafios mencionados acima, a participação é atravessada por questões que en-
volvem uma autoavaliação e uma autopercepção de si extremamente negativa.

Todavia, apesar da baixa participação nos encontros síncronos, não é pos-


sível afirmar que o conhecimento e as reflexões não estejam ocorrendo, por isso
a necessidade de que outros mecanismos que promovam a interação devam ser
utilizados. A avaliação também deve ser uma prática contínua, durante os en-
contros/aulas remotas, pois ela servirá como norte para que o professor reflita e
reestruture ou modifique sua prática docente de modo que esta garanta a apren-

126
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

dizagem e, consequentemente, o desenvolvimento dos estudantes. A estratégia


avaliativa adotada pelo grupo foi a de utilizar questionários e até os comentários
e questionamentos feitos no chat ofereceu ao grupo de estagiários elementos
importantes para uma comunicação assertiva e não-violenta, bem como para o
planejamento das atividades de ensino. O uso de redes sociais (principalmente
o Instagram) também se mostrou como uma alternativa produtiva, pois serviu
como mecanismo de veiculação de conhecimentos de modo a complementar e
fundamentar o ensino com assuntos relacionados ao dia-a-dia dos adolescentes
e promovendo maior engajamento e reflexão acerca dos temas trabalhados nas
oficinas. Nesse sentido, a oficina considerou o contexto do adolescente, sua fa-
miliaridade com as redes sociais e expôs a importância do senso crítico diante
dos conteúdos digitais.

O fortalecimento da autoestima e autoimagem para uma


formação Integral do Estudante

É preciso enfatizar a importância do fortalecimento da Autoestima e da


Autoimagem dos estudantes. De acordo com Moysés (2014), diversas pesquisas
científicas comprovam uma relação significativa entre a atribuição de um valor
próprio dos alunos e seu desempenho nas atividades escolares. Dessa forma,
um aluno que possui uma percepção positiva de si e de suas capacidades tem
uma probabilidade maior de obter sucesso nas tarefas que realiza.

Assim, o estudante com uma AE adequada é mais capaz de refletir sobre


os conteúdos, de participar ativamente das atividades escolares, de relacionar
os temas propostos em sala de aula com aspectos da sua própria vida, etc. Por
outro lado, um aluno com uma autoavaliação negativa pode desenvolver fra-
casso escolar pela apatia em relação às atividades escolares. Esses aspectos
são evidenciados por Moysés em seu livro “A Autoestima se Constrói Passo

127
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

a Passo” (2014) ao afirmar que a transformação de suas práticas pedagógicas


resultaram num fortalecimento da AE e, consequentemente, uma melhora não
somente no desempenho escolar dos alunos, mas na diminuição da evasão es-
colar e na transformação da dinâmica de sala de aula.

Atualmente, a sociedade vive coberta por um universo virtual repleto de


possibilidades e influências que ora são positivas, ora negativas, tudo à dispo-
sição de seus usuários. Logo, o modo como os indivíduos interagem com os
conteúdos da internet demanda cuidado. Compreender os conceitos de AE e
AI podem ajudar em um uso direcionado deste universo (redes sociais, inter-
net, etc.), que se tornou tão importante no cenário pandêmico, para produzir
conhecimento e filtrar as influências, promovendo qualidade de vida e menos
adoecimento.

Ao estudar as definições conceituais de Autoestima e Autoimagem, per-


cebe-se que estão interligadas, mas não são sinônimos. Ambas estão ligadas
com a promoção de saúde e, na mesma medida que se diferenciam como per-
cepções, relacionam-se como suporte, ou seja, a elaboração de uma afeta dire-
tamente à compreensão da outra. Segundo Leite, mencionando Schultheisz &
Aprile (2013), elas podem refletir “[...] sentimentos de confiança e valorização
ou inadequação, inferioridade e fraqueza” e sua ausência pode causar senti-
mentos de insegurança, incapacidade, timidez, depressão e outros.

Observa-se que a AE está relacionada à forma com que o indivíduo ava-


lia a si mesmo, como discerne suas qualidades e defeitos, sendo eles físicos ou
não, ou seja, é um juízo de valores sobre si mesmo. Desse modo, “A autoestima
é um construto psicológico, definido como a avaliação do indivíduo sobre seu
próprio valor, competência e adequação, refletindo atitudes de aprovação ou
desaprovação de si e indicando o grau em que se considera importante, capaz e
valioso.” (Leite, 2019, p. 33). Entretanto, a AI é a maneira como cada um se vê,

128
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

simboliza uma espécie de “espelho interno” com o qual o sujeito se representa


em diferentes situações e como ele compreende a forma com que as pessoas o
percebem. Sendo um constructo dinâmico construído através da interação com
o meio social, “A auto-imagem pode ser caracterizada como o quadro que o
indivíduo tem de si mesmo e é a chave que o ser humano tem para compreen-
der seu comportamento e a consistência que ele oferece” (Fraquelli, 2008, p.
24-25).

As redes sociais, com seu amplo poder de influência, têm grande impac-
to na AE e AI, principalmente de adolescentes, constantemente conectados e
absorvendo conteúdos virtuais. Muitas vezes esse ambiente se torna hostil e
nocivo para a saúde mental sendo necessário compreender o que está sendo
consumido. Diante de tantos conteúdos diversos é fundamental a construção de
um senso crítico perante ao que se é exposto. Jovens e adolescentes têm se de-
senvolvido neste meio, o qual impõe um padrão de vida, de corpo e de posicio-
namentos que, muitas vezes, fogem da realidade. Logo, um indivíduo em de-
senvolvimento e em uma fase de descobertas pode se sentir não pertencente por
não se adequar a nenhum padrão exigido virtualmente e/ou pode desenvolver
uma AI distorcida sobre quem é, de sua aparência e de como deveria aparentar.

Assim, a formação de pessoas conscientes ultrapassa as barreiras de in-


divíduos que apenas reproduzem comportamentos e ideologias. Colocar em
pauta a discussão do que é apresentado no mundo virtual é imprescindível, pois
é inviável obter o controle do que é compartilhado. Para isso ocorrer, é preciso
um posicionamento, compreensão da própria realidade e de autovalor, diferen-
ciando o que é virtual e o que é real.

Nesse sentido, o ensino de Psicologia tem muito a contribuir com o for-


talecimento da AE e AI, pois deste depende a visão que o estudante tem de si e
consequentemente o seu desempenho na escola, a interação que este estabelece

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

com os outros e conquista de sua autonomia, elementos indispensáveis para a


construção da cidadania. Desse modo, a compreensão de que o fortalecimento
da Autoimagem e Autoestima promove a formação integral do estudante, justi-
fica e enobrece o trabalho com essas temáticas na escola básica.

Autoestima e autoimagem, redes sociais e ensino remoto

Com a inserção dos meios virtuais no processo de formação dos indiví-


duos, tanto na vida privada quanto na escolar, o uso das redes sociais se tornou
cada vez mais presente no cotidiano. Spizzirri et al (2012), em um estudo rea-
lizado com adolescentes, mostram que as principais vantagens do uso da inter-
net e das redes sociais incluem: a rapidez na comunicação, ser uma tecnologia
econômica e a facilidade do contato com mais pessoas, etc. Já as desvantagens
são classificadas em virtude dos perigos implícitos que podem acarretar decor-
rente da falta de contato real, limitação de expressão e do tempo que prende o
usuário, viciando-o.

Considerando o contexto atual e as dificuldades impostas pela crise sani-


tária da Covid-19, foram feitas diversas adaptações em diversas áreas e setores
da sociedade, para que fosse possível obedecer às medidas de biossegurança
e diminuir a proliferação do coronavírus. Nesse sentido, os meios de trabalho
passíveis de mudança foram alterados para a modalidade em Home Office e na
educação ocorre a transposição do ensino presencial pelo ensino remoto. Des-
sa forma, além do tempo de lazer, as pessoas começaram a trabalhar e estudar
através da internet.

A aprendizagem por meio do ensino remoto expandiu as formas de pro-


duzir conhecimento e alterou a relação entre alunos e professores, exigindo que
os profissionais desenvolvessem novas habilidades. Isso porque “A tecnologia
digital ampliou ainda mais estas possibilidades de diferentes linguagens usadas

130
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

nas interlocuções sociais, produzindo novos desafios para os processos de pro-


dução de conhecimento e de escolarização.” (Calejon & Brito, 2020, p. 296).

O uso das redes sociais, tão presentes na vida diária dos estudantes, é per-
meado por propagandas, conteúdos e informações pensadas para gerar identifi-
cação e apreender o maior número possível de sujeitos em contato com aquele
material. Há pessoas que se conectam com temáticas diversas, podendo ou não
estar relacionadas à culinária, empreendimentos, política, religião, saúde, bele-
za, etc.

Tal conexão é atravessada por formas de identificações, desejos, afeta-


ções e, entre outras coisas, às percepções subjetivas sobre o material reprodu-
zido. Reforçadas por algum tipo de ganho subjetivo, o que não significa ser um
ganho saudável, as pessoas se mantêm observando e sendo, consequentemente,
influenciadas. Dá-se, assim, a importância de adquirir senso crítico para ser
capaz de distinguir e filtrar o que se consome na internet.

O adolescente que está passando por um período de transformações cres-


centes em seu corpo e em seu psiquismo, deve se ater de maneira crítica ao
que consome no mundo virtual, principalmente, por estar em um processo de
construção de identidade. Desse modo, distinguir o Eu do Não Eu auxilia em
seu processo de formação, ou seja, conhecer-se, avaliar-se e se enxergar de
maneira adequada pode proporcionar um contato mais seguro com a internet e
suas influências.

Como forma de compreender a visão prévia dos adolescentes sobre Au-


toestima e Autoimagem, os inscritos na oficina foram convidados a responde-
rem um questionário via Google Forms. Dentre os participantes das oficinas,
apenas 11 adolescentes responderam ao questionário. Os dados fornecidos pelos
participantes corroboram com as preocupações, de estudiosos do tema, sobre as

131
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

influências positivas e negativas de estar conectado. Exemplo disso é o relato


de dez dos alunos que afirmaram já ter presenciado alguma propaganda nas
mídias sociais que influenciavam a busca por uma perfeição irreal, em geral,
fundamentadas na ideação de um padrão ideal de imagem/corpo. Contudo, um
pequeno número de estudantes relata não se lembrar de ter visto. Inicialmente,
observa-se um grande destaque para a presença dos conteúdos influenciadores,
reafirmando a necessidade de senso crítico ao utilizar as mídias.

Quando questionados sobre como entendem a influência que a mídia pode


exercer em sua autoestima e na autoimagem, os(as) alunos(as), cujos nomes
são fictícios, responderam, em suma, que os conteúdos expostos na internet são
uma grande fonte de influência para as percepções subjetivas de si. Vejamos o
que dizem alguns adolescentes que responderam ao questionário:

Quadro 1: Compreensão dos alunos sobre a influência da mídia e redes


sociais na AE e AI.

Alex: “Eu acho que a mídia tem uma grande pressão sobre a autoestima das pes-
soas.”.
Dominique: “As pessoas se comparam a influencers e se sentem mal.”.
Taylor: “Acho que significa que quando os influencers postam algo, eles estão in-
fluenciando os seus seguidores, pois este é o trabalho. Mas às vezes essa influência
pode ser negativa ou positiva. Negativa quando eles não mostram a verdade em
relação a eles mesmo e positiva quando influenciam as pessoas serem verdadeiras
com elas mesmas.”.
Manu: “As pessoas se importam muito com o que as outras pessoas pensam delas
e por isso acaba afetando a autoestima delas. Se for algo bom a autoestima aumen-
ta e se for algo ruim ela diminui.”.
Cris: “O ser humano tem uma necessidade natural de ser aceito no convívio so-
cial. No entanto com o surgimento das redes sociais essa necessidade tem cada vez
mais gerado distorções, através da necessidade de ser aceito pela maior quantida-
de de pessoas possíveis (através de comentários e likes), levando assim o indivíduo
a modificar sua estética em função da visão do outro, não por vontade própria.”.

132
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Charlie: “A internet influencia muito na autoestima e autoimagem das pessoas.


Muitas blogueiras ‘divulgam’ cirurgias plásticas por que também fizeram ou in-
fluenciam as pessoas a fazerem dietas malucas.”.

Ariel: ‘Que as pessoas acabam tendo uma imagem distorcida da realidade e isso
acaba afetando sua autoestima e a autoimagem.”.

Kim: “Influenciadores digitais (de preferência menina) sempre estão em busca de


um corpo perfeito, um rosto, uma boca, e diante disso optam por realizar proce-
dimentos estéticos que muitas vezes colocam suas vidas em risco apenas por um
rostinho ou corpo bonito, mas além disso acabam influenciando seus seguidores ao
mesmo, mostrando apenas a parte boa, como se tudo fosse perfeito [...] às vezes o
seguidor não tem nenhum problema com o seu corpo, porém só de ver aquilo ele
começa a idealizar que o corpo dele não está tão perfeito igual aquele, então co-
meça a correr atrás da perfeição ( que não existe) e muitas vezes coloca sua vida
em risco.”.

Quinn: “O mundo atual vive envolto na tecnologia, todos os dias é possível ter
acesso a milhares de conteúdos, estes os quais influenciam de forma explícita e
implícita em como enxergamos a vida. Se acompanharmos somente conteúdos pos-
tados em redes sociais, com todas aquelas ‘belas’ pessoas e suas vidas ‘perfeitas’,
comparações serão inevitáveis, fato esse que provavelmente irá levar as pessoas a
crerem que suas vidas e elas próprias são menos do que aquela glamourosa mos-
trada por outra pessoa (influencer).”.

Fonte: Dados coletados pelas estagiárias durante as oficinas.

Na sequência, dois estudantes afirmaram se sentir parcialmente incomo-


dados com conteúdos fantasiosos, representando uma vida perfeita e um padrão
ideal de beleza, enquanto nove deles relataram se sentir incomodados. Em um
segundo momento constata-se que todos os estudantes, a amostra de 11 pes-
soas, estão em comum acordo de que o fortalecimento da AE e da AI são im-
portantes na vida de todos. Vale ressaltar que a compreensão dos alunos sobre o
conceito de AE e AI sofreram alterações ao longo dos encontros. Dessa forma,

133
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

nessa oficina foi utilizado, no início e fim das atividades, o método de Brains-
torming ou Tempestade de Ideias, uma técnica que ocasiona um trabalho em
grupo e uma implicação individual para o levantamento de um grande número
de ideias sobre um tema específico, por meio do qual os estudantes constroem
espontaneamente suas ideias e potencializam sua criatividade (Pérez, González
& Maldonado, 2017).

Para isso, foi perguntado a eles, na primeira e última oficinas, o que pen-
savam quando ouviam as palavras Autoestima e Autoimagem. As falas chega-
ram via chat ou via microfone e uma estagiária anotou-as e compartilhou-as em
um slide com todo o grupo, a fim da reflexão em conjunto. O quadro dois faz
um comparativo dessas respostas.

Quadro 2 : Comparativo das respostas dos alunos sobre o que é AE e AI na


primeira e última oficinas.

Compreensão de AE e AI na
Compreensão de AE e AI na última oficina
primeira oficina
“Acho que envolve se conhecer, como me
“Uma avaliação positiva
vejo, como as pessoas me vem, o que elas
ou negativa”; “Se aceitar.”
pensam sobre mim.”.
“Acredito que autoimagem é como eu
“Não seguir padrões estéticos.”;
me vejo. Já a autoestima eu acho que seja
“O que pensamos sobre
a confiança que eu tenho em mim e nas
nós mesmos.”.
minhas escolhas.”.
“Defino a autoestima como a forma que
nos vemos diante do espelho por exemplo,
“Estar bem consigo mesmo
se comparando ou não com outras pessoas,
independente dos julgamentos.”;
e autoimagem acho que vai muito além de
“Como nos vemos.”
apenas aparência, acho que o modo que nos
vimos em um todo, nossa personalidade e
etc.”.
“Conhecer nossas qualidades
“A maneira pela qual você se percebe,
e aceitar nossos defeitos.”;
diante da sua subjetividade e do meio
“Aceitar a si mesmo do jeito
social que está inserido.”.
que nós somos.”

134
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

“Autoestima é como nos vemos perante a so-


“Confiar em si mesmo.”
ciedade, é o que pensamos sobre nós mesmos
em relação aos outros. Autoimagem é como
“Visão que nós temos sobre nossa
nós nos vemos, é quando você olha para um
aparência ou corpo.”
espelho e você faz uma autoavaliação do seu
corpo positiva ou negativa.”.
“Autoimagem é percepção que o indivíduo
tem sobre sua aparência, como ele(a) se
“Imagem que a pessoa tem de si enxerga, como se vê. É uma construção ima-
mesma.”. gética do próprio eu. Autoestima é o estado
emocional do indivíduo, como ele se sente
diante da percepção do outro.”.

Fonte: Dados coletados pelas estagiárias durante as oficinas

Ao verificar e comparar os resultados das questões em dois momentos


distintos, fica perceptível uma mudança nas concepções dos alunos. Observa-se
que os relatos se tornam mais elaborados e precisos. Convergindo os conteúdos
discutidos nas oficinas sobre AE e AI com um repertório próprio, os estudantes
tornaram-se capazes de refletir e ampliar suas concepções, apresentando com-
preensões de noções importantes para a Psicologia, como subjetividade, auto-
conhecimento e personalidade. É possível perceber, ainda, que os estudantes
puderam ampliar suas concepções anteriores de autoestima, que se referiam,
majoritariamente, apenas às características físicas.

Além disso, percebe-se que muitos estudantes incluem em suas com-


preensões de AE e AI a visão externa das pessoas, enquanto sociedade (“meio
social”, “sociedade”, “visão das pessoas”). Entende-se que esse é um avanço
importante, pois apresenta uma reflexão de dilemas da sociedade e as conse-
quentes reverberações individuais e coletivas.

Desse modo, evidencia-se que as oficinas impactaram positivamente a


compreensão dos alunos sobre a temática de Autoestima e Autoimagem. En-
tende-se que essa discussão é de extrema importância no âmbito escolar, uma

135
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

vez que possibilita novas compreensões da subjetividade humana e da vida


comunitária, fortalecendo o desenvolvimento do senso crítico dos sujeitos e
ampliando suas visões de si mesmos (CRP-SP, 2008).

Considerações Finais

Frente à experiência da realização de uma oficina de modo remoto e dos


desafios retratados como, por exemplo, as barreiras para uma comunicação flui-
da, constatou-se que, mesmo não sendo uma estratégia satisfatória, ela é neces-
sária para o atual momento, havendo a possibilidade de construir conhecimento,
pois através do ensino remoto foi viável trabalhar com o público adolescente.
Neste sentido, entende-se que as impossibilidades do ensino online são muitas:
1) dificuldades de comunicação causadas por instabilidade de rede de internet
ou em razão da interação mediada por telas; 2) baixa adesão às atividades; e
3) insegurança para ligar a câmera ou microfone. No entanto, tendo em vista o
contexto da pandemia e a necessidade de isolamento social, esta atividade não
poderia ter sido realizada de modo presencial. Apesar das impossibilidades,
há de se ressaltar a relevância do ensino de temáticas da Psicologia no Ensino
Médio, pois, a discussão de conteúdos do dia-a-dia, a partir de uma perspectiva
científica, confere aos estudantes a capacidade de desenvolver habilidades de
autoconhecimento e de senso crítico. Dentre os objetivos propostos ao estágio,
esses se concretizaram e refletiram as possibilidades do ensino remoto.

Assim, foi possível compreender a necessidade da discussão de temas


como Autoestima e Autoimagem em sala de aula. Refletir sobre o impacto so-
cial e psicológico de padrões de beleza extremamente rigorosos e excludentes
é imprescindível para desenvolver nos adolescentes um senso crítico frente aos
conteúdos veiculados na grande mídia e nas redes sociais. O ensino remoto
impôs uma urgência em adaptar os métodos de ensino, dessa forma, a utiliza-

136
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

ção de redes sociais como estratégia pedagógica pôde ampliar as discussões


dos conceitos de AI e AE no cotidiano, possibilitou uma aproximação com os
estudantes.

Diante de uma sociedade em desenvolvimento seria um erro ignorar as


tecnologias e as redes de comunicações adotadas na atualidade. Por tal motivo,
enfatizou-se no presente trabalho o incentivo à formação de pessoas críticas
em conjunto ao uso das redes sociais e ferramentas digitais à comunicação
e à metodologia de aula. Foi possível observar, através das falas dos alunos,
a compreensão de uma ideação de vida perfeita construída nas redes sociais,
fazendo-os refletir sobre o que é real e o que faz parte de uma tentativa de pa-
dronização de corpos e estilos de vida. Com isso, fica clara a importância do
estímulo à obtenção de uma autoestima e autoimagem adequadas para uma boa
qualidade de vida, pois o conhecimento desses conceitos leva a habilidade de
filtrar conteúdos saudáveis e nocivos presentes no ambiente virtual.

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139
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 10

PRÉ NATAL PSICOLÓGICO


ONLINE: PRÁTICAS DE
PROMOÇÃO DA SAÚDE
MATERNO INFANTIL
Ada Oliveira da Silva
Samara Goya Coelho
Valdirene Alves de Lima Rigoni
Veronica Aparecida Pereira
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-A

A pandemia de Covid-19 ocasionou, até novembro de 2021, a morte de


mais de meio milhão de brasileiros, levando ao enlutamento de milhões de
pessoas. Provocou também crises socioeconômicas, agravamento das desigual-
dades, com dificuldades no acesso à educação e saúde (Saraiva, Traversini &
Lockmann, 2020). Frente às condições de isolamento físico, como medida de
conter a contaminação, as atividades de ensino, pesquisa e extensão precisaram
ser planejadas no formato remoto, de modo a garantir a continuidade das ati-
vidades no ensino superior, visto que as dificuldades de uma pandemia não se
resolvem em curto prazo.

140
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Frente a essa realidade, as atividades práticas oferecidas no Estágio Bá-


sico, para os acadêmicos do quinto semestre do curso de Psicologia da Univer-
sidade Federal da Grande Dourados, foram interrompidas. Dentre esse grupo
estavam os alunos que escolheram a ênfase voltada para avaliação e acompa-
nhamento de bebês nascidos no Hospital Universitário (HU-UFGD) durante
o primeiro ano de vida. Nessa modalidade, o objetivo é voltado ao desenvol-
vimento de habilidades acadêmicas para atendimento às famílias, como técni-
cas de entrevistas, intervenção, aplicação e interpretação de testes e escalas de
desenvolvimento infantil e saúde emocional, avaliação da interação da criança
com seus familiares. Até então, o desenvolvimento dessas habilidades era pla-
nejado a partir de atividades presenciais.

Com a publicação da resolução ad referendum CEPEC/UFGD nº 04, de


02 fevereiro de 2021, (publicação no Boletim de Serviço da UFGD), que apro-
vou e regulamentou o Regime Acadêmico Emergencial por Modalidades e Fa-
ses (RAEM), foi decretado o oferecimento em 2021 das práticas de estágio
de forma remota. Essa medida acarretou muitas inseguranças aos estudantes
acerca do processo de aprendizagem e de como seriam realizadas as propostas
outrora oferecidas. Para implementação, foi necessário que os professores e as
faculdades reformulassem as propostas de ensino para a modalidade remota,
que passaria a ser mediada por plataformas online de comunicação como Goo-
gle Meet, Google Classroom, e Whatsapp.

O estágio básico em Psicologia, na UFGD, é ofertado em dois semestres.


No primeiro semestre, no formato remoto, a ênfase foi sobre a formação de
habilidades dos alunos. Durante as supervisões foram realizados treinamentos
com observação estruturada de comportamentos interativos entre pais e bebês.
Para isso, foram utilizadas filmagens do banco de dados do estágio, provenien-
tes de avaliações realizadas por turmas anteriores. Os vídeos eram estruturados

141
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

a partir do paradigma do Face-to-Face Still Face (FFSF) (Tronick, 1978). Para


análise dos vídeos foram utilizados os protocolos de Fuertes (2004) sobre os
comportamentos do Bebê, de Varão (2012) sobre os comportamentos mater-
nos e o Interadiade (Rodrigues, Chiodelli, & Pereira, 2020). As análises eram
realizadas em duplas, com avaliação de fidedignidade durante as supervisões.
Nesse período, formativo, também houve a apresentação de artigos, pelos (as)
estagiários (as), sobre desenvolvimento infantil, intervenção precoce e saúde
emocional. Enquanto isso, o projeto Pré-Natal Psicológico Online (PNP online)
tramitava no Comitê de Ética.

No segundo semestre, a ênfase esteve voltada ao preparo e oferta do PNP


online, atendendo a demanda dos (as) estagiários (as) sobre a avaliação da saú-
de emocional materna, orientação às gestantes e suas famílias. Intervenções
nessa área apresentam indicativos sobre a importância da saúde emocional ma-
terna como preditora para boa vinculação com o bebê e, consequentemente, um
fator de proteção para o desenvolvimento infantil (Soares, et al., 2015; Schiavo,
2016; Schiavo & Perosa, 2020). Esses estudos têm mostrado alta prevalência
de mulheres que apresentaram alterações emocionais no período gestacional
e pós-parto, indicando a relevância de práticas preventivas nesse período. Ra-
poport e Piccinini (2011), em meios a seus achados, ressaltaram as radicais
exigências da maternidade e suas transformações socioambientais e adaptações
que tornam a gestação e o nascimento do bebê em um momento estressante, an-
siogênico, provocador de cansaço, preocupações, mal-estar, frustração e medo.

Nesse cenário, a proposta do PNP online no estágio básico, aprovada


pelo Comitê de Ética da UFGD (Parecer n. 4.903.179) surge como uma possi-
bilidade de promoção da saúde materno-infantil e de sua rede familiar. O for-
mato online vem atender às exigências do ensino remoto, frente aos cuidados
necessários frente à condição de pandemia.

142
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

PNP Online: prática de ensino e intervenção em


saúde

O PNP pode ser considerado como um programa de promoção de saúde


gestacional juntamente com o pré-natal convencional, porém, seu diferencial
está no foco em uma prática preventiva voltada não somente à gestante, mas
também, a sua rede familiar. Possibilita atuar de forma psicoterapêutica, com
apoio emocional, esclarecimento de dúvidas e resolução de conflitos inerentes
ao período gravídico-puerperal, reflexões sobre questões relacionadas aos mi-
tos da maternidade, idealização materna, riscos de aborto, cuidados necessários
em gestação de risco, malformação fetal, receios quanto ao parto, alterações
emocionais, sexualidade, conflitos conjugais, planejamento familiar, plano de
parto e importância do acompanhante durante o trabalho de parto (Cabral, Mar-
tins & Arrais, 2012). Almeida e Arrais (2014) destacam o caráter humanizante
do processo gestacional, do parto e da parentalidade que o PNP carrega. Esse
Programa foi pioneiro em Brasília, como o objetivo de levar “à integração da
gestante e da família a todo o processo gravídico-puerperal, por meio de encon-
tros temáticos em grupo, com ênfase psicoterápica na preparação psicológica
para a maternidade e paternidade” (p.251); e prevenção de transtornos mentais
ligados a gestação.

Juntamente com seus aspectos de promoção de saúde, realizar o PNP em


grupo provoca uma troca de questionamentos, culturas, identificações, idea-
lizações, medos e frustrações, experiências e transformações enriquecedores
tanto para os participantes quanto para o próprio projeto, além do caráter tera-
pêutico que a formação de grupos proporciona. Fortalecendo a promoção em
educação em saúde que edifica mudanças significativas e comportamentais em
cada indivíduo participante do PNP, ao ampliar a intervenção das pessoas além

143
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

de sua própria realidade, modificando a forma de lidar com as transformações


psicossociais de seu contexto grávido-puerperal compartilhando as expectati-
vas e realizações da parentalidade (Silva, 2002; Campos, 2007).

Nesse contexto, evidencia-se que um grupo de suporte a gestantes pode


proporcionar discussões que envolvam vários componentes afetivos, gerando
um clima de sensibilização para os aspectos relativos ao ciclo gravídico-puer-
peral e à subjetivação das informações bem como uma vivência positiva da
gestação, do parto e da maternidade (Klein & Guedes, 2008). Além disso, é
evidente que o oferecimento do PNP como prática de intervenção de saúde e
de projeto educacional é de grande valia, principalmente no contexto de iso-
lamento e distanciamento físico que as gestantes vivenciam durante a pande-
mia de COVID-19. Dessa forma, busca-se a partir do PNP online, descrever o
processo de participação das gestantes e suas famílias, realizar a avaliação da
saúde emocional das gestantes e promover as adaptações necessárias ao am-
biente online. Possibilitando um espaço de escuta e reflexão, onde a gestante e
sua rede de apoio [companheiro(a) ou familiar], possam expressar suas dúvidas
e/ou inseguranças frente às transformações causadas pela gestação; comparti-
lhando conhecimentos científicos sobre desenvolvimento humano e técnicas de
cuidados neonatais.

Método

Trata-se de um estudo descritivo, com método de análise qualitativo. O


estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal da Grande
Dourados, Parecer n. 4.903.179.

144
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Participantes

Oito gestantes se inscreveram para o PNP online, porém, apenas seis par-
ticiparam efetivamente. Na Tabela 1 são apresentados os dados sociodemo-
gráficos e obstétricos. As participantes tinham idade entre 21 e 29 anos (M =
25,5), 12 a 17 anos de escolaridade (M = 15,67) e encontravam-se entre a 11ª
e 33ª semana gestacional (M = 25,83). A maioria exercia trabalho remunerado,
encontrava-se na segunda gestação e planejou a gestação (66,7%). Todas con-
viviam com o parceiro e 50% passaram pela condição de aborto.

Tabela 1: Dados sociodemográficos e obstétricos das gestantes

Mínimo - máximo Média – Desvio Padrão

Idade 21 – 29 25,5 (3,02)

Escolaridade 12 – 17 15,67 (2,16)

Idade Gestacional 11 – 33 25,83 (8,90)

Frequência (%)

Sim 4 (66,7)
Trabalho remunerado
Não 2 (33,3)
Primípara 2 (33,3)
Número de gestações
Multípara 4 (66,7)

Conjugalidade Convive com o parceiro 6 (100)

Sim 3 (50)
Histórico de aborto
Não 3 (50)
Sim 4 (66,7)
Gravidez Planejada
Não 2 (33,3)

145
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Instrumentos

O PNP Online foi divulgado pelas redes sociais (Facebook, Instagram e


Whatsapp). Ao acessar o link, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
era apresentado, apresentando os objetivos do projeto, os direitos das parti-
cipantes e obrigações das pesquisadoras. Ao aceitar as condições, a gestante
recebia outro link para integrar o grupo do Whatsapp, com informações sobre
os encontros online.

Após o segundo encontro, que tratava sobre a saúde emocional materna,


as mães foram convidadas a responder, individualmente, a escala DASS-21 G
(Silva, 2020). Esta é constituída por 21 questões, em escala do tipo likert (com
variação de zero a três), indicando a frequência com que puderam observar na
última semana os eventos descritos. As 21 questões, devidamente randomiza-
das, possibilitam o rastreio de sinais de depressão, ansiedade e estresse, tendo
os respectivos pontos de corte: 3, 6 e 7. A escala foi escolhida por viabilizar o
rastreio simultâneo de três construtos relacionados à saúde emocional, otimi-
zando o tempo de aplicação, de modo a evitar cansaço e desconforto.

Procedimento

Inicialmente, o projeto fora planejado para grávidas a partir de 28 sema-


nas gestacionais, residentes na região da grande Dourados/MS, recomendando-
-se a participação de um parceiro ou familiar. Porém, durante o breve período
de inscrições, surgiram demandas de gestantes residentes de outras regiões e
cidades querendo participar do projeto e para não negligenciar suas necessida-
des, exceções foram abertas e o projeto acabou incluindo gestantes de outras
localidades.

146
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Em sua primeira turma, o PNP online foi ofertado em sete encontros on-
line, sempre às quintas-feiras, das 19h às 20h30 (horário de MS), de setembro a
novembro de 2021. Para realização utilizou-se da plataforma Google Meet. Os
temas e objetivos encontram-se descritos no Quadro 1.

Quadro 1: Delineamento do PNP Online

Tema Objetivo Avaliação

Acolher as gestantes
nas diferentes fases de gestação
1.Formação e saúde Participação no contexto
que se encontram, esclarecendo
do bebê coletivo.
dúvidas e incentivando
a participação.
Participação no
contexto coletivo;
Descrever a interação Observação dos pontos
entre saúde emocional materna de corte para depressão,
2.Saúde emocional e desenvolvimento infantil. ansiedade e ou
materna Identificar precocemente sinais estresse (obtidos a partir
de depressão, ansiedade e ou da DASS-21);
estresse. encaminhamento para
atendimento psicológico
quando necessário.

Favorecer o diálogo sobre


os direitos da gestante e sua Participação nas
3.Orientações sobre família, papel da equipe discussões sobre o parto,
o parto humanizado de saúde e estruturas necessárias plano de parto e direitos
para o acolhimento e vivência da gestante e sua família.
do parto humanizado.

Apresentar técnicas
4.Preparação de respiração, postura e Identificar falas
para reconhecimento cuidados importantes para a que indiquem a
e controle das vivência do parto humanizado. autonomia da gestante
contrações Descrever práticas de prevenção no processo do parto.
à violência obstétrica.

147
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Orientar práticas de incentivo


à amamentação, cuidados
Diálogo reflexivo sobre
5.Amamentação e essenciais para sua
as possíveis dificuldades
cuidados neonatais implementação e acolhimento
para amamentar.
das mães que não podem
amamentar.
Descrever as principais
alterações do período do
pós-parto: ambiente, rotina,
6.Pós-parto: Esclarecimento
sono e humor. Identificar sinais
cuidados, de dúvidas e diálogo no
de sofrimento emocional
orientações contexto coletivo.
materno e suas implicações.
Valorizar e identificar possíveis
redes de apoio.

7. Participação Esclarecimento
Incentivar a participação
familiar e de dúvidas e diálogo no
paterna nos cuidados neonatais.
paternidade contexto coletivo.

Cada encontro foi conduzido por uma dupla de estagiários, a exceção do


tema amamentação, que foi conduzido pela supervisora, e o tema participação
paterna, conduzido por uma mestranda que também integrava a equipe. A expo-
sição era dialogada, como uma roda de conversa, incentivando as participantes
a interagir em qualquer momento que considerasse oportuno, devendo, para
isso, apenas sinalizar o ícone mão levantada, disposto na plataforma.

Análise de dados

Os dados sociodemográficos foram tabulados a fim de gerar os descri-


tores amostrais do estudo. Os dados sobre saúde emocional foram avaliados a
partir dos pontos de corte, com indicação de apoio psicológico quando necessá-
rio. Os conteúdos dos encontros foram registrados em diários de campo, sendo
avaliados a partir das demandas apresentadas pelas gestantes, apresentados de
forma descritiva na seção de resultados.

148
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Resultados e Discussão

A partir dos descritores amostrais, disponíveis na Tabela 1, é possível


identificar algumas informações importantes sobre as expectativas e sentimen-
tos acerca da gestação. Tomando por exemplo, o histórico de abortos ante-
riores, presente em metade da população desse estudo, compreende-se que a
morte de um filho que está em fase de gestação tem um grande impacto na rede
familiar, mas principalmente na mãe que vivencia em seu corpo as transforma-
ções físicas e emocionais de forma direta (Freitas & Barros (2015). Esse acon-
tecimento pode tornar-se um fator de risco para ansiedade e estresse durante
a nova gestação. Outro dado relevante refere-se ao planejamento da gestação,
que esteve presente para a maioria das participantes. Para Brito et al. (2015),
uma gravidez não planejada pode apresentar um impacto negativo sobre a saú-
de de crianças e mulheres. Compreender, junto a essas gestantes, o impacto
da gestação não planejada, oferecendo apoio e descobrindo estratégias de um
enfrentamento saudável é imprescindível. Por outro lado, alguns fatores de pro-
teção podem ser identificados nesta amostra como a idade materna, por não se
encontrarem na adolescência (Caputo & Bordin, 2008) ou acima dos 35 anos
(Papalia & Feldman, 2013), períodos que requerem maior atenção. As mães
também apresentam um bom nível de escolaridade e encontram-se com seus
parceiros, variáveis que na literatura podem ser consideradas como fator de
proteção, sendo associadas, por exemplo, a maior probabilidade de aleitamento
exclusivo (Faleiros, Trezza, & Carandina (2006), Pereira-Santos, M., Santana,
M. S., Oliveira, D. S., Nepomuceno Filho, R. A., Lisboa, C. S., Almeida, L. M.
R. et al. 2017).

A partir da realização dos encontros, ficou evidente a importância da


oferta do PNP online, tanto para a comunidade como para os estagiárias. Mes-

149
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

mo de forma remota, esse projeto serviu como um programa de promoção de


saúde gestacional/fetal e de assistência às essas gestantes e sua rede familiar,
através do favorecimento de um espaço aberto de diálogo, escuta, informação
e rede de apoio. As participantes tiveram participação ativa no andamento e
construção das discussões dos encontros, compartilharam suas dúvidas, seus
medos, suas angústias e suas felicidades. Na medida em que compartilhavam
suas experiências, fortaleciam-se mutuamente, mostrando que não estão sozi-
nhas nesse processo de gestar uma vida. Além de exercer uma função de orien-
tação, desmistificando algumas crenças sobre todo esse processo que envolve
a gestação, as gestantes demonstraram interesse significativo acerca dos temas
trabalhados, indicando que o planejamento e execução foi ao encontro de suas
necessidades e expectativas.

Tinha-se a expectativa de que os encontros teriam uma participação efeti-


va de todas inscritas, porém, na realidade, a participação oscilou, possivelmen-
te, em função das necessidades, disponibilidade e interesses individuais. Sobre
a saúde emocional, todas foram entrevistadas individualmente, ainda que não
tivessem comparecido ao encontro. Nos encontros individuais foi possível uma
maior proximidade com as participantes. Nenhuma gestante atingiu o corte ne-
cessário para estresse, ansiedade ou depressão, porém para a G5, foi oferecido
um acompanhamento psicológico individual, já que ela chegou bem perto de
atingir a pontuação para ansiedade e possui um histórico de aborto. Nos atendi-
mentos individualizados oportunizados à G5 foi possível gerar melhores condi-
ções de acolhimento e escuta, a fim de tranquilizá-la para o parto.

Do ponto de vista acadêmico, quando nem todas as gestantes estavam


presentes, foi necessário que os(as) estagiários(as) aprendessem a lidar com
suas expectativas, adaptando rapidamente os conteúdos em função das deman-
das individualizadas, esclarecendo dúvidas e realizando o trabalho de busca ati-

150
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

va das gestantes ausentes. Ao contrário do que pensavam, sobre mulheres com


grande desejo de participar de todos os encontros serem as mais envolvidas,
passaram a compreender as diferentes realidades desse período, em torno de
imprevistos, de dores físicas e psicológicas, além de demandas de outros filhos
ou complicações em relação ao horário dos encontros.

Ao conhecer melhor as gestantes que estavam participando do PNP on-


line, foi possível observar que havia um número significativo de mães (50%)
que já passaram pela condição de aborto. Nesse contexto, a oferta de atenção e
acompanhamento psicológico durante a gestação é fundamental. Desse modo,
é possível garantir condições para um bom desenvolvimento fetal, vinculação
e desenvolvimento infantil.

Na avaliação final, as gestantes indicaram a oferta do PNP online como


um espaço de escuta indispensável. Desse modo, configura-se como uma inter-
venção efetiva de promoção à saúde durante a pandemia, assegurando a prática
de estágio básico em Psicologia.

Considerações Finais

Algumas limitações surgiram no decorrer do projeto, como pouco tempo


de divulgação, o horário dos encontros coincidiu com o horário de trabalho de
alguns parceiros(as) das gestantes, o que impediu que os mesmos participassem
e a própria modalidade online trouxe alguns pontos positivos e outros negati-
vos, mas ainda assim a oferta do Pré Natal Psicológico online em 2021, cum-
priu com seu propósito de criar um espaço de escuta, acolhimento e reflexões e
também servir como rede de apoio para as gestantes da região da Grande Dou-
rados, MS. Tudo foi pensado para que elas sentissem confortáveis e acolhidas
para poderem compartilhar tudo aquilo que quisessem, como também, houve
relatos de gestantes que afirmaram que os encontros tinham sido uma forma

151
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

delas esquecerem os seus problemas e servir de companhia, pois os parceiros


de algumas delas encontravam-se fora de casa por conta do trabalho.

Sendo assim, a assistência psicológica durante a gestação por meio do


PNP é uma ferramenta de intervenção preventiva que minimiza os impactos
que as gestantes e puérperas vivenciam na maternidade de algum nível de so-
frimento psíquico, físico e social, devido às inúmeras transformações que elas
são atravessadas e, às vezes, falta acolhimento, um suporte de assistência e
orientação e/ou até mesmo um espaço de escuta.

Dito isso, é passível de considerar o PNP, de forma remota ou com en-


contros presenciais, uma prática de ensino para os estudantes de Psicologia de
forma permanente, já que exercita o conhecimento e promove técnicas, práticas
e fazeres essenciais da ciência psicológica. Além disso, vale a reaplicação do
projeto focando em outras variáveis que essa edição não abraçou, como o histó-
rico de saúde mental parental e a eficácia do PNP como prevenção da depressão
pós-parto; e a possibilidade de trabalhar mais temas nos encontros como por
exemplo: a possível morte gestacional, e a sexualidade durante a gestação. Fa-
vorecendo o ensino, as pesquisas científicas em desenvolvimento humano e a
extensão de serviços da universidade para a comunidade.

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154
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

PARTE II

Pesquisas na
Pandemia

155
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 11

VIDAS DE MULHERES
NO TRECHO
Luciana Codognoto da Silva
José Sterza Justo
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-S

Nosso interesse pelo tema “mulheres, errâncias e nomadismos” surgiu a


partir de nosso ingresso no Grupo de Pesquisa “Figuras e Modos de Subjetiva-
ção no Contemporâneo” (cadastrado no CNPq) e filiação a uma das linhas de
pesquisa do Pós-Doutorado em Psicologia da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” - UNESP/Assis, voltada à investigação dos proces-
sos de subjetivação constituídos em torno das condições de mobilidade e dro-
mologia femininas contemporâneas.

Para Justo (2011), Nascimento (2012) e Freitas (2014), o que diferencia


andarilhos e trecheiros seria justamente o grau de deambulação, ou seja, en-
quanto que os andarilhos buscam abrigos em pontos fixos ou em determinados
lugares de rodovias e acostamentos de estradas e cidades, os trecheiros visam
apenas lugares de passagem, sendo a cidade o local de parada para visitação
ou para fins de ajuda para prosseguimento de sua viagem. Estas figurações dro-
mológicas, metamórficas, nômades e plurais visam indagar e legitimar a ação

156
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

desses sujeitos, sobretudo das mulheres na sociedade, tomando como prova


histórica, cultural e política a decadência das identidades ditas estáveis e meta-
fisicamente fixadas.

Situados numa perspectiva que relaciona gênero e mobilidade, pergun-


tamos: se a mobilidade é tão essencial à humanidade, como a constituição e as
relações de gênero são afetadas por ela? Se os homens que vivem em trânsito,
caminhando pelas estradas ou migrando de cidade em cidade, são expressões
radicais de mobilidade na sociedade atual, o que dizer das mulheres, especifi-
camente daquelas que percorrem trechos de uma cidade a outra?

A partir dos estudos realizados sobre as mobilidades de andarilhos, tre-


cheiros e população em situação de rua, o objetivo deste estudo é discutir as
questões de gênero relacionadas à mobilidade, mediante relatos de experiên-
cias de mulheres que vivem em condição de perambulação de cidade em ci-
dade, passando a abrigar-se, temporariamente, em um município de pequeno
porte populacional, localizado no interior do Estado de Mato Grosso do Sul
(MS). Buscaremos examinar, por meio da pesquisa qualitativa em Psicologia e
a partir do método cartográfico, como as mulheres, denominadas pela literatura
científica de trecheiras, vivem as diversas facetas da feminilidade em um espa-
ço radicalmente oposto àquele ambiente de confinamento e de subalternidade,
tradicionalmente reservado à mulher na nossa sociedade e cultura, a saber, o
espaço domiciliar, vinculado ao trabalho doméstico, à função materna e de es-
posa subordinada ao marido.

Errância Feminina: revisitando as pesquisas em


Psicologia

Em nossa pesquisa, constatamos a inexistência de estudos, sobretudo da


Psicologia, que retratam o modo de vida de mulheres trecheiras. Para Costa

157
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

(2005), tal negligência em relação às mulheres andarilhas ou trecheiras pode ser


verificada pela extrema carência de pesquisas e falta de quaisquer dados sobre
elas em censos demográficos ou outro tipo de levantamento de dados e estudos
sobre esta população e pela ausência de políticas públicas de assistência social
dirigidas especificamente para elas. Em nossos levantamentos bibliográficos
preliminares, verificamos que os estudos realizados, até o presente momento,
sobre trecheiros encontram-se vinculados às realidades locais do Estado de São
Paulo, sendo problematizadas, com maior frequência, por universidades, como
em Justo (1998, 2011, 2012), Nascimento (2008, 2012) e Freitas (2014).

O que encontramos, no campo da assistência social, são projetos e ini-


ciativas destinados a pessoas em situação de rua, cada vez mais crescentes no
país, principalmente a partir do ano de 2004, quando se deu a implantação do
Sistema Único da Assistência Social, criado pela Lei Orgânica da Assistência
Social n° 8742 - LOAS, e que podem fazer alguma referência a trecheiros.

Os dados apresentados pela Pesquisa Nacional sobre População em Si-


tuação de Rua (Brasil, 2008) apontam que esta população é composta majorita-
riamente por homens, uma média de 82%. Estes dados ainda sofrem interferên-
cia, quando percebemos que tal pesquisa, assim como tantas outras, considera
apenas algumas cidades de grande porte como fonte de dados oficiais e estatís-
ticos dessa população no país.

Quando recortamos, especificamente, andarilhos, trecheiros e questões


de gênero, fica ainda mais evidente a inexistência de estudos e pesquisas – seja
no âmbito acadêmico, seja no governamental – de mulheres trecheiras. No le-
vantamento realizado, encontramos as pesquisas de Tiene (2004), intitulada
“Mulher moradora de rua: entre violências e políticas sociais”, de Alves (2013),
intitulada “As moradas de rua entram em cena: a violência contra a mulher mo-
radora de rua como uma das expressões da questão social” e de Rosa e Brêtas

158
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

(2015), denominada “A Violência na vida de mulheres em situação de rua na


cidade de São Paulo”. Trata-se de duas pesquisas vinculadas ao curso de Ser-
viço Social e uma, de Enfermagem, ligadas, restritamente, à população de rua
feminina, e não à temática específica de mulheres vivendo no trecho, se deslo-
cando de uma cidade à outra.

No âmbito da Psicologia, encontramos apenas uma pesquisa, referente à


dissertação de mestrado de Verônica Bem dos Santos, intitulada “Mulheres em
vivência de rua e a integralidade no cuidado em saúde”, defendida no ano de
2014, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal
de Santa Maria - UFSM. Todas as pesquisas, antes mencionadas, estão voltadas
à problematização exclusiva da violência e da saúde coletiva de mulheres que
vivem em situação de rua, e não de trecheiras, centralizando suas análises em
grandes centros urbanos, como as cidades de São Paulo (SP) e Fortaleza (CE),
e um município que se constitui em um importante polo universitário no Estado
do Rio Grande do Sul (RS).

Observamos que existe uma quantidade expressiva de pesquisas sobre


pessoas em situação de rua, poucas sobre andarilhos e trecheiros, concentradas
no grupo de pesquisa da UNESP-Assis, porém, não localizamos, em nossos
levantamentos, nenhuma pesquisa específica sobre trecheiras ou andarilhas foi
conduzida na perspectiva dos estudos de gênero. Até mesmo as pesquisas com
mulheres em situação de rua não privilegiam, com maior clareza, a questão es-
pecífica do gênero e do trecho.

A partir desses dados, consideramos complacente apresentar, neste artigo,


as pesquisas que desenvolvemos com mulheres trecheiras, que foram publica-
das em anais de eventos científicos e em publicações de dois artigos científicos
em revistas bem conceituadas em Psicologia no Qualis/Capes, a saber, a Re-
vista Psicologia & Sociedade (Silva & Justo, 2020), ligada à Associação Bra-

159
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

sileira de Psicologia Social, e a Revista Subjetividades (Silva & Justo, 2020),


vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de
Fortaleza.

Método

Recorremos à abordagem qualitativa de pesquisa em Psicologia. Por meio


da cartografia, realizamos entrevistas abertas com quatro mulheres trecheiras,
que procuravam abrigo na Casa do Migrante de um município de pequeno por-
te populacional, localizado na região sudeste do Estado de Mato Grosso do
Sul - MS. São mulheres com idades entre 18 e 59 anos, que buscavam abrigo
temporário na Instituição mediante demanda própria. Em sua maioria, eram
consideradas pessoas mais fechadas e de pouco diálogo e contato afetivo e in-
terpessoal, se comparadas aos homens, que também passavam pela Instituição.

As entrevistas foram gravadas, transcritas e, posteriormente autorizadas


pelas participantes, mediante a assinatura do TCLE – Termo de Consentimen-
to Livre Esclarecido – aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) de
uma Universidade Pública do Estado de São Paulo. Elas foram realizadas nas
dependências da Casa do Migrante do referido município, em uma sala reser-
vada, tendo a duração de, aproximadamente, uma hora. Tivemos, como eixos
disparadores, os seguintes pontos: perfil das participantes, momento de ruptura,
acontecimentos e conflitos que deflagraram a deserção, vida no trecho e pers-
pectivas de futuro.

Por questões éticas, optamos em não revelar os nomes das participantes,


bem como do município onde ocorreu esta pesquisa, destacando apenas a sua
localização geográfica. Por fim, destacamos que os nomes citados durante esta
pesquisa foram escolhidos pelas próprias participantes, a partir de uma lista
apresentada a elas, constando apenas títulos e significados de pedras preciosas.

160
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Buscamos, com isso, dar visibilidade aos preciosos discursos e à riqueza de


histórias contadas por elas, sem, no entanto, comprometer suas identidades.

Resultados e Discussões

As experiências de nomadismo ou de errância, vividas por aqueles classi-


ficados como “pessoas em situação de rua”, “trecheiros”, “andarilhos” e outros
transumanos distanciados da norma, recebem rotulações pelas quais seus atores
são equivocadamente reconhecidos e tratados socialmente. Via de regra, são
percebidos como “vagabundos, loucos, sujos, perigosos e coitadinhos” (JUS-
TO, 1998), ou ainda, como “pilantras, aproveitadores, coitados, sofredores e
filhos desgarrados de Deus” (Justo, 2011).

Em Nascimento (2012) e Justo (2012), vemos que, mesmo em uma época


de constantes movimentos e transformações, a errância se configura como um
fenômeno complexo e multifacetado, no qual os andarilhos e trecheiros passam
a serem vistos como um de seus exemplos mais radicais. Assim, “vagabunda-
gem, doença mental, desvinculação familiar e opção de vida” (Nascimento,
2008; 2012) e tantas outras denominações que: “[...] fugindo à racionalidade
citadina moderna dominante, passam a ser vistos e tratados como enjeitados e
indesejáveis, carregando consigo a marca indelével da discriminação do senso
comum” (Freitas, 2014, p. 19).

Para Justo (2011), são muitas as condições que levam as pessoas em si-
tuação de nomadismo a desancorar de uma vida territorializada. A busca por
um trabalho, o “fazer bicos”, a procura por serviços de assistência social para
completar a viagem e a condição financeira estão entre as principais. Mas tam-
bém, não podemos nos esquecer de três importantes aspectos: a busca por uma
situação melhor de vida, a fuga dos problemas gerados por uma vida indesejada
e o mais evidente – as relações interpessoais e afetivas, permeadas por forma-

161
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

ção ou não de vínculos e um possível compartilhamento de histórias de vida


entre essas mulheres.

Constatamos que a precarização e a divisão sexual do trabalho, a segre-


gação, o desemprego, a pobreza, a vivência de conflitos familiares, sobretudo
a violência estrutural e de gênero contribuíram para que nossas participantes
optassem radicalmente pelos caminhos da errância, tal como apontam os estu-
dos desenvolvidos por Justo (1998) e Nascimento (2008). Mas também, obser-
vamos que este caminho, muitas vezes, torna-se um ato de coragem, sobretudo
de muitas mulheres, de abandonar os referenciais hegemônicos de identidade
feminina – como o casamento, a vida doméstica, a procriação e a docilidade –
para viverem cotidianos transitórios, inesperados e improvisados, que rompem,
drasticamente, com o modelo de mulher esperado, idealizado e normatizado
pela sociedade.

Observamos a presença de múltiplos fatores que levam trecheiros e an-


darilhos às ruas, como desentendimentos familiares, rupturas de laços afetivos
significativos, sofrimento emocional e uso frequente de álcool e outras drogas.
Especificamente no caso das mulheres trecheiras, destacamos que estes fatores
também se interligam, levando estas mulheres a buscarem, na errância, novos
caminhos de vida, como Cristal e Topázio, que enfrentaram desilusões e desen-
tendimentos familiares, escassas possibilidades de trabalho remunerado e falta
de apoio social e familiar.

Acreditamos que, um evento isolado, por mais desgastante que seja, não
seria, por si só, o condicionante para a deserção, tal como apontam as pesquisas
com andarilhos e trecheiros de Justo (2011), e com mulheres em situação de
rua, enfatizadas por Santos (2014) e Rosa e Brêtas (2015). Designadamente no
caso das mulheres trecheiras, observamos que tanto as histórias de vida de Cris-
tal quanto as de Topázio foram marcadas por conflitos e divergências familia-

162
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

res importantes, vividos em especial com mulheres – a mãe, que ocultou a sua
verdadeira origem familiar, e, posteriormente, a repetição dos comportamentos
de sua filha na errância e na prostituição – e Topázio – que assinalou cenas mar-
cantes de violência vividas na prostituição, após a sua única irmã tê-la colocado
em um prostíbulo, na época.

Um fator que nos chamou a atenção foi que Safira sempre se dirigia à
pesquisadora pelo nome de “abençoada”. Durante a entrevista, a participante
alternava seus sentimentos, ora, de desconfiança, agressividade e choro, ora, de
apego e carinho a nós. Relutando, inicialmente, em estabelecer uma relação de
maior proximidade com a pesquisadora, Safira, no final da entrevista, estabele-
ce uma relação de confiança conosco, ao nos chamar de “abençoada”. Para ela,
abençoada era toda a pessoa que lhe fazia bem, que a escutava e a ajudava de
uma forma ou de outra. Já Esmeralda, nomeava os homens com os quais se re-
lacionava rapidamente de “meus cachos”. Quando questionada sobre o signifi-
cado deste termo, dizia ser uma forma carinhosa de tratar seus “rolos afetivos”.

Observamos que as mulheres com as quais dialogamos enfrentam, na


errância, o desafio de terem de construir estratégias para assegurar a vida e a
sobrevivência. Dito de outra forma, não existe qualquer legado cultural que
possa ser transmitido de geração a geração e, tampouco ensinamentos sobre
essa forma de viver que dê às mulheres trecheiras orientações básicas de vida,
diferentemente do que ocorre com outras formas de vida socialmente instituí-
das. A cultura de trecheiras, como gírias, práticas cotidianas, valores, simbo-
logias, relacionamentos, é completamente segregada e cultivada por e entre
elas. A única maneira de se apropriar dessa cultura ou dessa forma de viver é
ingressando nela ou se aproximando dela pelo contato direto com seus atores e
suas atrizes.

163
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

São muitos os desafios e as dificuldades das mulheres para se iniciarem


no trecho, uma vez que se trata de um universo desconhecido e bem diferente
da vida pregressa e sedentária vivida por elas antes da deserção. Não nasceram
no trecho e nem passaram a infância nele. Portanto, quando decidiram “cair no
mundo”, ou seja, abandonar a vida sedentária e a viver como trecheiras, peram-
bulando de cidade em cidade, se defrontaram com um universo e um cotidiano
muito diferentes dos quais estavam habituadas.

Logo, faz-se necessário pensar em tais pressupostos a partir de uma pers-


pectiva mais ampla, de forma a conceber não mais o termo mulher, mas mu-
lheres no plural, haja vista que cada uma delas carrega em si as marcas das
relações de poderes, pressupostos de saberes e também de resistências a dados
modelos considerados, até então, inquestionáveis em grande parte das insti-
tuições regulatórias de produção e manutenção de certo modelo de sociedade,
como é o caso das mulheres que vivem em condição de errância, as chamadas
“mulheres trecheiras”.

Considerações Finais

Verificamos uma quantidade expressiva de estudos sobre pessoas em si-


tuação de rua e pouca sobre andarilhos e trecheiros, concentrada no grupo de
pesquisa da UNESP-Assis, porém, não localizamos pesquisas sobre mulheres
trecheiras ou andarilhas conduzidas na perspectiva dos estudos de gênero e Psi-
cologia. Até mesmo as pesquisas com mulheres em situação de rua não privile-
giam, com maior clareza, a questão específica do gênero e do trecho e os fatores
que deflagraram o momento de deserção destas mulheres, as quais passaram a
viver como trecheiras.

Dentre os motivos que deflagraram a deserção estão: a violência de gê-


nero vivida, sobretudo na família, conflitos familiares, violência estrutural, de-

164
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

corrente do desemprego e de falta de oportunidades para estas mulheres se


inserirem e permanecerem no mercado de trabalho, e o espírito de aventura, de
lançar-se por caminhos desconhecidos, tal como a vida no trecho.

Acreditamos que essa pesquisa contribuirá com os estudos de gênero, fo-


calizando um aspecto relevante dessa questão praticamente inexplorado: con-
tribuir com subsídios para a formulação de políticas e assistências públicas
voltadas às mulheres trecheiras, principalmente no âmbito da saúde e da assis-
tência social, voltada às mulheres em situação de rua, especialmente de trechei-
ras, deixando, assim, de privilegiar apenas os homens, incluindo em suas ações
e problematizações as particularidades do feminino em um espaço historica-
mente ocupado e destinado aos homens – o lugar do nomadismo, da transição,
da ebulição e do movimento.

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nistério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Brasília.

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Freitas, C. J. (2014). “Os Indesejáveis”: agentes públicos e a gestão da mobi-


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165
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

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Santos, V. B. (2014). Mulheres em vivência de rua e a integralidade no cuida-


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Tiene, I. (2004). Mulher moradora de rua: entre violências e políticas sociais.


Campinas: Alínea.

166
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 12

POLÍTICAS PÚBLICAS
PARA MULHERES E
ENCARCERAMENTO
FEMININO: ALGUMAS
APROXIMAÇÕES
Thiago Luís da Silva
Maria de Lourdes Dutra
Conrado Neves Sathler
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-D

Este trabalho é um recorte da pesquisa de Mestrado do autor, objetiva


realizar algumas aproximações entre as principais Políticas Públicas e legis-
lações para o enfrentamento da violência contra as mulheres no Brasil com as
altas taxas do encarceramento feminino. Para tal, foram analisados índices da
violência contra as mulheres, assim como taxas de aprisionamento e o perfil so-
ciodemográfico da população carcerária feminina no país com base nos aportes
decoloniais e interseccionais e, também, da criminologia crítica feminista.

O desmonte das políticas públicas para o enfrentamento da violência


contra as mulheres e o consequente processo de aprisionamento pode ser anali-

167
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

sado como estratégia para a manutenção de uma matriz de dominação sobre as


mulheres (Collins, 2021), marcante na história do Brasil (Gonzalez, 2020; Nas-
cimento, 2006). A pandemia pelo COVID-19 parecer ter agravado ainda mais
essa problemática, (des)velando uma verdadeira necropolítica (Flauzina, 2006;
Reis, 2005; Rosario, 2020), uma vez que os dados analisados identificam como
alvos principais, seja das violências, do encarceramento ou mesmo da morte na
pandemia, as mulheres negras e as mais pobres.

Nesse sentido, ressalta-se a importância de se considerar as categorias


gênero, raça, classe e outras fontes de subordinação estruturantes do Sistema de
Justiça e centrais para entender e enfrentar o problema do encarceramento em
massa feminino no Brasil.

(Des)velamento da violência contra as mulheres


na pandemia do COVID-19

A violência contra as mulheres no contexto de pandemia pela COVID-19


tem sido veiculada como um fenômeno de grande repercussão nacional e mun-
dial. Muitos países têm alertado sobre o aumento da violência contra as mu-
lheres em suas variadas manifestações. Na Nigéria e na África do Sul, os estu-
pros registraram alta, no Peru aumentaram os desaparecimentos de mulheres,
enquanto no Brasil e no México os feminicídios cresceram desmesuradamente
(ONU BRASIL, 2020).

O isolamento social se mostrou medida segura e eficaz para minimizar a


propagação do COVID-19, entretanto apresenta consequências negativas para
a economia, para a educação e também para a vida das mulheres que já viviam
em situação de violência. A permanência com agressores na própria residência,
somada a outros fatores como renda diminuída e alteração significativa da di-
nâmica com os filhos agravam e tornam ainda mais complexas as dinâmicas de

168
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

violência para as mulheres, sobretudo para as mais pobres. Há que se destacar


a redução dos serviços de atendimento e de proteção, neste período (FBSP,
2021).

Os dados estatísticos do Brasil sobre as violências contra as mulheres


são difusos, mas apresentam crescimento significativo. Segundo o Fórum Bra-
sileiro de Segurança Pública (2021), entre março de 2020, mês que marca o
início da pandemia e dezembro de 2021, foram registrados 2.451 feminicídios
e 100.398 casos de estupro e estupro de vulnerável de vítimas do gênero femi-
nino. Os dados mensais de feminicídios no Brasil, entre 2019 e 2021, indicam
aumento de casos entre os meses de fevereiro e maio de 2020, quando houve
maior restrição nas medidas de isolamento social. Além disso, há diferenças
percentuais e na forma de violência em cada estado da federação. Em 2021, os
estados que registraram as maiores taxas de feminicídio – muito superiores à
média nacional – foram Tocantins (2,7), Acre (2,7), Mato Grosso do Sul (2,6),
Mato Grosso (2,5) e Piauí (2,2). Além disso, o problema da subnotificação da
violência doméstica e familiar contra as mulheres persiste em tempos de pan-
demia. Estima-se que apenas 40% das vítimas denunciem as violências viven-
ciadas.

Os dados estatísticos apresentados comprovam que a problemática da


violência contra as mulheres no Brasil sempre foi epidêmica. A situação se
torna ainda pior para as mulheres negras e pobres, maiores vítimas de violência
no Brasil: nos últimos 11 anos, o homicídio dessa população aumentou 2%, en-
quanto o assassinato de mulheres não negras caiu 27% (FBSP, 2021). Trata-se
de um (des)velamento da violência contra as mulheres e não apenas seu cres-
cimento, embora nas últimas décadas as Políticas Públicas para as mulheres
tenham sido muito expressivas.

169
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Na primeira década do ano 2000, foi possível verificar grande avanço nas
Políticas Públicas para mulheres, embora a luta das feministas date de muito
antes. A participação das mulheres na Constituinte e a criação da Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, em 2003,
foram grandes marcos, sobretudo porque as ações e projetos da Secretaria eram
elaborados e realizados em conjunto com a Secretaria Nacional de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial, em evidente movimento intersetorial. Desta-
cam-se também as I e II Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres,
em 2004 e 2007 respectivamente, que resultaram na construção coletiva de dois
Planos Nacionais de Políticas para Mulheres e especialmente a promulgação da
Lei nº 11.340, em 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que caracteriza
uma conquista no sistema de justiça.

A partir de 2010, foram promulgadas outras leis importantes para o en-


frentamento da violência contra as mulheres, com destaque para a Lei Carolina
Dieckman (12.737/2012), que as protege da divulgação de imagens íntimas em
redes sociais; Lei do Minuto Seguinte (12.845/2013), que garante assistência
nos serviços públicos de saúde e de segurança às mulheres vítimas de violência
sexual; Lei Joanna Maranhão (12.650/2015), que dá validade sem prazo a de-
núncias de violência ou assédio sexual; Lei do Feminicídio (13.104/2015) que
estabelece qualificadores de crime hediondo para os crimes contra as mulheres
e a Lei da Importunação Sexual (13.718/2018) que tipifica crimes de importu-
nação sexual e contra a liberdade sexual.

Muitos projetos e ações para enfrentamento da violência contra as mulhe-


res advindas dessas políticas foram amplamente realizadas na primeira década
de 2000, entretanto nos últimos anos é possível perceber um recrudescimento
dessas políticas e ações, o que demarca um desmonte das Políticas Públicas
para as mulheres. Mesmo as realizações da III Conferência Nacional de Polí-

170
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

ticas para as Mulheres, em dezembro de 2011, com a elaboração do Plano Na-


cional de Políticas para as Mulheres 2013-2015, cujo foco era a continuidade
e aprofundamento da transversalidade e intersetorialidade nas ações visando
ampliar a inserção das temáticas de gênero nas diversas frentes do governo,
verifica-se pouco investimento e mobilização.

Na gestão Bolsonaro, as ações políticas neste tema foram atravessadas


pelo conservadorismo e os recursos diminuídos. A título de exemplo, desta-
camos a nota técnica divulgada pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos
(INESC) no Dia Internacional da Mulher deste ano, que identifica que o orça-
mento do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos para a causa será
de R$ 43,2 milhões. São R$ 89 milhões a menos que o orçamento de 2020, de
132,5 milhões revelando um corte de 68%.O orçamento do governo federal
para o combate à violência contra as mulheres para 2022 é o menor desde o iní-
cio da gestão Bolsonaro. Em 2019, o montante era de R$ 71,9 milhões (INESC,
2022).

Esse retrocesso também se verifica no sistema de justiça. Apesar do gran-


de avanço com a promulgação da Lei Maria da Penha, atualmente a legislação
tem sido insuficiente para estancar o crescimento dos casos registrados de vio-
lência contra as mulheres, sobretudo no âmbito doméstico e familiar. As demais
legislações seguem o mesmo caminho.

Ao (des)velar a violência contra as mulheres, a pandemia também lança


luz ao projeto necropolítico brasileiro (Flauzina, 2006; Reis, 2005; Rosario,
2020), pois ao afetar diferentes grupos de pessoas de distintas maneiras, a pan-
demia pelo COVID-19 aprofunda e intensifica as desigualdades existentes. As
intersecções de raça, classe, gênero e território, estruturantes dessas desigual-
dades, estabelecem os alvos desse projeto. Nessa lógica, as mulheres negras,

171
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

que Sueli Carneiro afirma estar no “último lugar da fila depois de ninguém”
(2011, p. 21), tomam o lugar primário de espoliação e violências, quando esca-
pam da morte, apesar de haver tantas leis de proteção.

Faces do encarceramento em massa feminino no


Brasil

O Brasil ocupa o terceiro lugar no pódio das nações com maior popula-
ção encarcerada e os índices de ascensão do encarceramento de mulheres são
alarmantes. Em números absolutos atualizados, obtidos por meio do Levanta-
mento Nacional de Informações Penitenciárias (InfoPen), referentes a dezem-
bro de 2019, temos 748.009 pessoas privadas de liberdade e, dessas, 36.929 são
mulheres. Mas o crescimento da taxa de encarceramento de mulheres chama
atenção: entre 2006 e 2014, a população feminina nos presídios brasileiros au-
mentou em 567,4%, ao passo que a média de aumento da população masculina
foi de 220% (Borges, 2019).

A figura 1, do último Relatório Temático sobre as mulheres privadas de


liberdade, do InfoPen, de 2017 ilustra o crescimento entre os anos 2000 e 2017.

Figura 1: Evolução das mulheres privadas de liberdade entre 2000 e 2017


(InfoPen, 2017).

172
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

As taxas brasileiras de encarceramento de mulheres não são expressivas


somente se analisadas internamente. No comparativo com outros países, justa-
mente aqueles que mais encarceram – Estados Unidos, China, Rússia e Tailân-
dia -, o Brasil também ganha destaque. Segundo a ativista feminista Joice Melo
(2019), no Brasil o aumento em 16 anos (2000 a 2016) foi de 455%. No mesmo
período, a Rússia diminuiu em 2% o encarceramento deste grupo populacional,
conforme se verifica na figura 2:

Figura 2. Variação da taxa de aprisionamento nos cinco países que mais encar-
ceram mulheres no mundo (Melo, 2019).

Germano et al (2018) enfatizam que a análise a partir dos números abso-


lutos de mulheres presas, se comparados ao masculino, leva à uma compreen-
são errônea de que mulheres são menos selecionadas pelo sistema penal em
razão do fato de cometerem menos crimes. Contudo, com o aumento da taxa
de encarceramento feminino no país nas duas últimas décadas, é forçoso reco-
nhecer critérios de seletividade penal para aprisionamento feminino, análogos
aos masculinos.

173
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Para as autoras,

Focalizar o entrelaçamento entre o sistema patriarcal capitalista e racista


ajuda a compreender como os mecanismos de opressão e marcadores so-
ciais de seletividade do sistema penal se repetem em relação à seleção das
mulheres presas. Esses sistemas de opressões estão inseridos num contexto
de implementação de políticas neoliberais, de forma que as mulheres en-
contram-se duplamente dominadas e exploradas (Silva, 2017). Esse padrão
de seletividade penal por classe social e cor acaba por discriminar um certo
perfil de mulher que é encarcerada (Germano et al, 2018, p. 33).

O perfil sociodemográfico de mulheres presas no Brasil caracteriza a se-


letividade penal. Entre as mulheres encarceradas, 50% têm entre 18 e 29 anos
e 67% são negras, ou seja, duas em cada três mulheres presas são negras. Dos
referenciais de escolaridade, 50% não concluíram o ensino fundamental (Bor-
ges, 2019).

Outro dado merecedor de atenção é o contraste do percentual de mulhe-


res solteiras presas com as que possuem filhos. São 58,4% de mulheres presas
solteiras e 79,3 % possuem filhos, caracterizando grande número de mães solo.
Essa condição de organização familiar em que as mulheres são as responsáveis
pela família também é marcante em contextos extramuros carcerários. Segundo
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, 37,3% dos
49 milhões de domicílios registrados eram comandados por mulheres (IBGE,
2010) e, desse número, 61% são mulheres negras (Silva, 2020). A condição se
mostra muito complexa quando essas mulheres, quase sempre as únicas res-
ponsáveis pelo sustento da família, são presas. Verifica-se verdadeiro esfacela-
mento do núcleo familiar e, quase sempre, os filhos são abrigados ou ficam sob
cuidados da família extensa, acentuando as vulnerabilidades.

Dos crimes cometidos por mulheres, destacam-se os crimes envolven-


do drogas. A maioria das mulheres presas por crimes ligados às drogas ocupa
uma posição coadjuvante no crime, realizando serviços de transporte de dro-

174
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

gas e pequeno comércio. Muitas são usuárias, sendo poucas as que exercem
atividades de gerência do tráfico. As condições sociais a que eram submetidas
antes do envolvimento criminal também caracteriza a seletividade penal: em
sua maioria, moradoras da periferia, responsáveis pela provisão do sustento
familiar, com baixa escolaridade, oriundas de extratos sociais economicamente
desfavorecidos e exerciam atividades de trabalho informal em período anterior
ao aprisionamento (Alves, 2017).

Cada vez mais marginalizadas do acesso às esferas de produção, de consu-


mo e de direitos de cidadania, mulheres negras figuram na economia ilegal
do tráfico de drogas como vendedoras, mulas ou simplesmente consumi-
doras. Suas experiências podem ser entendidas a partir do que a socióloga
norte-americana Julia Sudbury tem chamado de «feminizacão da pobreza e
da punição», isto é, de como as vulnerabilidades sociais, a criminalização
e a punição fazem parte do mesmo processo de subordinação racial das
mulheres negras (Alves, 2017, p. 101).

Neste sentido, as mulheres negras e pobres configuram o alvo primordial


de uma política de encarceramento no Brasil. Portanto, a curva ascendente do
encarceramento em massa feminino segue como uma engrenagem de profunda
manutenção e reprodução de novas desigualdades baseadas na hierarquia racial
e tendo, no segmento juvenil, seu principal alvo.

De escravizadas à aprisionadas: algumas reflexões

As duas últimas décadas foram marcadas pelo advento de Políticas Pú-


blicas e legislações de proteção às mulheres. Isso poderia dar a entender que
a lógica patriarcal seria questionada e combatida e, as mulheres, sairiam da
condição de subalternidade. Entretanto o desmonte das Políticas Públicas para
as mulheres nos últimos anos e a curva cada vez mais ascendente das taxas de
aprisionamento feminino desmascaram tal afirmativa.

Em linhas gerais, o mesmo perfil de mulheres vitimadas pelas violências


é o das aprisionadas pelo sistema penal. O aprisionamento feminino se revela

175
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

estratégia e resultado dos processos de dominação sobre as mulheres no entron-


camento interseccional. Nesse sentido, as bases para o entendimento do “lugar”
da mulher negra na sociedade brasileira, assim como do paradoxo proteção-pu-
nição, encontram-se nas estruturas de nossa organização social.

Germano et al (2018) elencam os principais elementos que levam ao


aprisionamento feminino: as mudanças econômicas e sociais de matiz neoli-
beral em curso no Brasil que sustentam a feminização da pobreza e a inserção
precária da mulher no mercado de trabalho; as políticas de segurança pública
equivocadas, sobretudo a de “guerra às drogas” que as vitimizam e, os trâmites
do sistema de justiça, que operam na reprodução da injustiça social.

As condições de empobrecimento da população brasileira nos últimos


anos estão intimamente ligadas às mudanças econômicas de matiz neoliberal.
A política de liberação dos mercados, privatizações e austeridade, pilares neoli-
berais, tem caráter seletivo e impõe sacrifícios para as classes mais vulneráveis,
reafirmando o lugar social da mulher negra (Rossi e Dweck, 2018).

O lugar social relegado às mulheres negras na sociedade brasileira é bem


demarcado desde a escravidão. Ser negra, pobre e mulher no Brasil é ocupar
um lugar de extrema vulnerabilidade e invisibilidade. Beatriz Nascimento, em
texto de 1976 (Nascimento, 2006) explica:
A mulher negra, elemento no qual se cristaliza mais a estrutura de domina-
ção, como negra e como mulher, se vê, deste modo, ocupando os espaços e
os papéis que lhe foram atribuídos desde a escravidão. A “herança escravo-
crata” sofre uma continuidade no que diz respeito à mulher negra. Seu pa-
pel como trabalhadora, a grosso modo, não muda muito. As sobrevivências
patriarcais na sociedade brasileira fazem com que ela seja recrutada e as-
suma empregos domésticos, em menor grau na indústria de transformação,
nas áreas urbanas e que permaneça como trabalhadora nas rurais. Podemos
acrescentar, no entanto, ao que expusemos acima que a estas sobrevivên-
cias ou resíduos do escravagismo, se superpõem os mecanismos atuais de
manutenção de privilégios por parte do grupo dominante. Mecanismos que
são essencialmente ideológicos e que ao se debruçarem sobre as condições
objetivas da sociedade têm efeitos discriminatórios.

176
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

A inserção da mulher no crime, especialmente no tráfico de drogas, se liga


às condições de vulnerabilidade e discriminação a que foram/estão mantidas.
A oportunidade de ascensão social, de complementação de renda e de presença
em casa na criação dos filhos justifica, segundo os estudos de Del Olmo (1996),
a inserção de grande parte dessas mulheres em pequenas atividades varejistas
no tráfico de drogas, pois lhes permite trabalhar sem se ausentarem por longos
períodos do lar e representam uma ocasião de continuarem desempenhando
os papéis sociais de cuidado dos filhos. A dinâmica de exploração se repete,
sendo cooptadas pelo crime organizado. A reatualização da divisão sexual do
trabalho na hierarquia do patriarcado se renova no continuum de dominação e
exploração, de escravizadas - amas de leite - mucamas - empregadas domésti-
cas - moradoras das favelas/periferias, agora também como “mulas”/trafican-
tes de drogas - presidiárias. A política repressiva de guerras às drogas realiza
o trabalho de aprisionamento em massa, pois seu alvo principal são os mais
vulneráveis entre os envolvidos. “Os ‘inimigos’ dessa guerra são os pobres, os
marginalizados, os negros, os desprovidos de poder, como os vendedores de
drogas do varejo das favelas, demonizados como traficantes ou aqueles que a
eles se assemelhem” (Karam, 2015, p. 37).

É, no entanto, no âmbito do Sistema de Justiça que se verifica a confluência


entre as Políticas Públicas, as legislações para proteção das mulheres e o
sistema penal que garante o aprisionamento. A Criminologia Crítica Feminista
tem se debruçado a discutir o metadiscurso machista e racista que propaga
pressupostos filosóficos acerca da superioridade branca e do gênero masculino
nesse sistema (Andrade, 1999; Alves, 2017).

A profunda crise de legitimidade do sistema penal - uma vez que as leis


são criadas por homens e para os homens -, favorece o julgamento errôneo das
causas femininas, ainda que analisadas por magistradas -, identificada por Vera
Regina Pereira Andrade (1999), parece encontrar, nos estudos de Dina Alves

177
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

(2017), grande elaboração, tendo em vista a análise interseccional empreendida


por essa última. Assim, a compreensão de que o sistema de justiça, de maneira
ampliada, funciona como instrumento de dominação e de manutenção de vul-
nerabilidades, sobretudo de mulheres negras e pobres, ganha destaque.

Para Andrade (1999),


[...] o sistema penal, salvo situações contingentes e excepcionais não ape-
nas é um meio ineficaz para a proteção das mulheres contra a violência,
como também duplica a violência exercida contra elas e as divide, sendo
uma estratégia excludente [...]. Isto porque se trata de um subsistema de
controle social, seletivo e desigual, tanto de homens como de mulheres e
porque é, ele próprio, um sistema de violência institucional, que exerce seu
poder e seu impacto também sobre as vítimas. E, ao incidir sobre a vítima
mulher a sua complexa fenomenologia de controle social (Lei, polícia, Mi-
nistério Público, Justiça, prisão), que representa, por sua vez, a culminação
de um processo de controle que certamente se inicia na família, o sistema
penal duplica, em vez de proteger, a vitimação feminina (Andrade, 1999,
p. 113).

Assim, corroborando com a análise de Alves (2017), podemos conside-


rar o sistema de justiça brasileiro uma (re)atualização da ordem escravocrata,
que além de não garantir proteção às mulheres, em detrimento às inúmeras
políticas e leis, também as aprisiona e potencializa as vulnerabilidades já exis-
tentes. Além disso, as prisões obtêm lucro. Ângela Davis (2009) as nomeia de
“complexo industrial prisional” ao evidenciar que as prisões estão no radar de
incontáveis corporações nas indústrias de manufaturas e de serviços devido aos
potenciais de consumidores e de mão de obra barata.

A pandemia pelo COVID-19 aumentou ainda mais as possibilidades de


vitimização das mulheres. O índice crescente de violações ocorridas durante
o isolamento social e a redução dos espaços de proteção, vitimizando as(os)
marginalizadas(os) socialmente, configura-se em uma verdadeira necropolíti-
ca. Para Mbembe (2020), a pandemia democratizou o poder de matar e o isola-
mento social é justamente a forma de regular esse poder. Para a maior parte das
mulheres negras e pobres, o isolamento não foi uma opção possível.

178
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Conclusão

As temáticas das mulheres no sistema prisional ou mesmo do aprisiona-


mento em massa feminino têm sido objeto de crescente interesse entre pesqui-
sadores. Estudos interseccionais sobre o aprisionamento feminino são, cada vez
mais, realizados. Entretanto, ainda coabitamos discursos racistas e patriarcais
não somente no sistema de justiça, mas também na academia. Problematizar
essa discursividade pode ajudar a entender a dinâmica colonial e racista que
sustenta e estrutura toda a sociedade brasileira.

A constatação de que o Sistema de Justiça, seja no aditamento de leis e


políticas de proteção das mulheres, seja no âmbito penal, tem servido à reatua-
lização da lógica escravocrata, na manutenção de uma matriz de dominação
sobre as mulheres pode ajudar à fomentar medidas interventivas mais eficazes.
A interseccionalidade, neste ínterim se mostra como ferramenta fundamental.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 13

OLHARES SOBRE VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA E FAMILIAR
PELO PERISCÓPIO DE
POLICIAIS MILITARES
Eliciel Freire de Salles
Catia Paranhos Martins
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-F

O presente trabalho é um recorte da pesquisa em andamento pelo Pro-


grama de Pós-Graduação em Psicologia da UFGD, e tem como objetivo com-
preender como os/as policiais militares, pertencentes a um batalhão localizado
no sul do estado de Mato Grosso do Sul, atendem as ocorrências de violência
doméstica e familiar envolvendo meninas e mulheres, cujas demandas chegam
por meio do telefone 190. Articulamos com a vivência do pesquisador como
policial militar que atua desde o ano 2019 no Programa Mulher Segura-PRO-
MUSE, criado pela Polícia Militar do Estado de Mato Grosso do Sul, mas há
treze anos na profissão. Através de uma abordagem qualitativa, sustentada na
literatura sobre masculinidades, gênero e interseccionalidade, busca-se analisar
se a prevalência de uma valoração dos crimes, que se desdobram no atendimen-

183
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

to da violência doméstica e familiar, ou seja, quais ocorrências seriam ou não


“casos de polícia”. O nosso olhar recaiu sobre as relações de poder e gênero que
se estabelecem na violência doméstica e familiar do cotidiano policial.

Muito se tem falado sobre a violência doméstica e familiar trazendo em


perspectiva as narrativas das vítimas e, inclusive, a dos agressores, mas pouco
tem se falado do processo endógeno das instituições que estão à frente e lidam
diariamente com esses crimes. Pretendemos analisar a relevância que o Estado
dá a esses tipos de delito pelo viés da polícia militar, denominada constitucio-
nalmente como uma polícia preventiva1.

Contudo, a ideia de ordem social2, que estaria atrelada com objetivos


do bem-estar social e das justiças sociais como garantia constitucional, acaba
por ser apenas um preceito programático a despeito do que preconiza a Carta
Magna – uma vez que se busca manter uma ordem de controle social usando a
polícia em detrimento do enfrentamento das justiças sociais.

Segundo Reiner (2004, p.22), a esteira máxima das instituições de segu-


rança pública é o policiamento, e este, por sua vez, tem como objetivo o contro-
le da população. Para o autor, “policiamento é a tentativa de manter a segurança
por meio de vigilância e ameaça de sanção”.

Para Veiga e Souza (2018, p.59), a formação policial militar evidencia


disputas políticas e ideológicas. Teoricamente se prega uma polícia direcio-
nada para mediação de conflitos pelo consenso, quando na prática a própria
formação de policiais militares continua estruturada pelo uso da força. Ainda,
de acordo com os autores, quando falamos da criação de instituições no Brasil,

1 Art. 144. § 5º da Constituição Federal. Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preser-
vação da ordem pública.
2 Art. 193 da Constituição Federal. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como
objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

logo o objetivo é para controle social e a proteção da propriedade privada3, re-


lacionada ao surgimento do Estado capitalista: “Assim, o aparelho de repressão
do Estado, composto pelo sistema judiciário, pelas instituições policiais e pelas
instituições prisionais, detém o monopólio da força e exerce coerção para cum-
primento das regras legais estabelecidas socialmente” (Veiga e Souza, 2018,
p.59).

Denise Santiago, uma Major da Polícia Militar da Bahia, em 2015, criou


na cidade de Salvador – BA a “Ronda Maria da Penha” – uma companhia
especializada e independente da Polícia Militar voltada especificamente à vio-
lência doméstica e familiar. Outros Estados, estão longe de possuir uma compa-
nhia independente, o mais próximo que se chegou foi à criação de programas,
onde dentro dos batalhões designa-se grupo de policiais4 treinados para o aten-
dimento das violências domésticas e familiares.

No Mato Grosso do Sul, em 2018, por meio da Portaria PMMS nº


032/2018, a Polícia Militar de Mato Grosso do Sul criou o Programa Mulher
Segura-PROMUSE5 – em que pese o Programa não visar o primeiro atendi-
mento de violência e, sim, a mulheres que já possuem Medidas Protetivas. Crí-
ticas feitas a esse modelo no interior da própria instituição afirmam que o papel
do policial militar é o empenho a outros crimes, e que já existiria um setor da
polícia responsável por atender as demandas das violências contra as mulheres.
Além disso, argumenta-se que a existência de um pequeno grupo dentro da
polícia para o atendimento de tais demandas não daria conta do quantitativo de
solicitações inerentes à violência doméstica e familiar, sendo, portanto, funda-
mental o empenho de todo o efetivo policial.

Segundo Rolim (2006), o surgimento das polícias modernas não adveio


de uma preocupação com a ocorrência de crimes, mas em decorrência das re-
voltas populares e das desordens da eclosão de manifestações que ocorriam nos

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

espaços urbanos. O autor complementa que o surgimento adveio da “incapaci-


dade dos governos para continuarem lidando com elas através da convocação
de tropas do Exército” (Rolim, 2006, p.25).

Dessa forma, a polícia militar ainda continua sendo um dos braços do


Exército, como se observa na Constituição Federal em seu artigo 144 § 6º:
“As polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares
e reserva do Exército” (Brasil, 1988) e pela própria legislação que regula a
PMMS6, essa herança castrense perdura através de sua formação, organização e
socialização. A polícia moderna nasce de ambívio, como também defende Mar-
tins e Bertoline (2013, p.57): “Tal caráter instituiu a existência de um inimigo
da sociedade, a valorização do físico e o tratamento violento no desenvolver da
missão policial. Contudo, mantendo o caráter militar, a ideologia de defesa do
Estado e proteção das elites”.

Para Veiga e Souza (2018, pp.59-60), a organicidade militar da polícia é


antagônica com o regime democrático. As autoras complementam que a filoso-
fia militarista é contrária ao modelo de polícia cidadã defendida pela Declara-
ção Universal dos Direitos Humanos (DUDH) (ONU, 1948), que em seu Art.
3º afirma que “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança
pessoal”. Mas quando falamos das mulheres, a segurança pessoal é frágil inclu-
sive em seus lares. As polícias são pensadas para agir no espaço público, o que
difere muito nas ocorrências de violência doméstica e familiar.

De acordo com Reiner (2004), uma segurança pública com modelo ge-
rencialista nos moldes empresariais (cliente e prestação de serviço) foi desen-

6 A legislação que regula a PMMS é a Lei Complementar Nº 053, de 30 de Agosto de 1990, em seu
artigo 2º “Nos termos da Constituição Federal a Polícia Militar, instituição permanente destinada à
manutenção da Ordem Pública, sendo Força Auxiliar Reserva do Exército Brasileiro, subordina-
-se administrativamente eoperacionalmente ao Secretário de Estado de Segurança Pública” (grifo
meu). Disponível em:http://aacpdappls.net.ms.gov.br/appls/legislacao/secoge/govato.nsf/66ecc3c-
fb53d53ff04256b140049444b/ff 6e653dca4d5a630425729e006f48e7?OpenDocument.

186
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

volvida na década de 1970 nos Estados Unidos e Inglaterra, que tinha como
premissa um policiamento voltado à resolução de problemas. Em que pese ain-
da não contemplar as violências no contextos domésticos.

Quando falamos que as mudanças estruturais das polícias advêm da eclo-


são de manifestações que ocorrem nos espaços urbanos, como defendido por
Rolim (2006), não podemos ignorar a importância do movimento feminista.
No Brasil nos anos 1980, sobretudo, após a morte de Ângela Diniz e Cláudia
Lessin, ambas na cidade do Rio de Janeiro, e a grande repercussão do slogan
que ganhou o Brasil: “Quem ama não mata”, houve a reverberação em todos os
meios sociais e trouxe reflexões sobre “honra” e masculinidades, inclusive, na
forma de fazer políticas públicas voltadas às mulheres vítimas de violência. As-
sim, a primeira política de Estado foi a criação das Delegacias de Atendimento
à Mulher (DAM), no ano de 1985, ou seja, a Polícia Civil se bifurcou para criar
as Delegacias Especializadas em crimes contra a mulher.

No Brasil, a partir de 1990, o modelo gerencialista de policiamento co-


meçou a ganhar força juntamente com o policiamento comunitário, no qual são
criadas soluções juntamente com a comunidade, e o policial age como pacifica-
dor. Esse último modelo, apesar de algumas tentativas inclusive com a criação
das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) em alguns estados do Brasil, é um
modelo considerado utópico para a realidade brasileira.

Ainda segundo Veiga e Souza (2018, p.62), foi somente a partir dos anos
2000 que no Brasil o projeto didático-pedagógico da formação dos policiais
teve uma preocupação pautada nos Direitos Humanos. Em que pese grande
parte da grade de formação ainda ser para a educação física e a ordem unida,
para ressaltar o uso da força em detrimento das disciplinas de ética e direitos
humanos, “pela ideia do desenvolvimento de competências e pelo fomento à

187
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

perspectiva dos Direitos Humanos para formação policial militar, contudo, a


divisão de cargas horárias é paradoxal ao objetivo escolhido” (Veiga & Souza,
2018, p.64).

A violência contra a mulher é um dos maiores desafios dos Direitos Hu-


manos, com a criação da Lei 11.340/2006, conhecida como Maria da Penha,
o próprio sistema de Justiça também mudou. Antes da referida Lei, os crimes
eram julgados pelos Juizados especiais criminais, ou seja, Juizado que julga
crimes de menor potencial ofensivo, vulgarmente chamados de “crimes vaga-
bundos”. Assim, os crimes envolvendo mulheres passaram a ser analisados por
outra dimensão, com penas maiores e direcionados às varas específicas, inclu-
sive, muitas cidades brasileiras já contam com as “Varas da Mulher”.

Diante de tais mudanças, que são peremptórias e necessárias como a bi-


furcação da Polícia Civil e a criação de Varas especializadas em crimes contra
mulheres, parece ainda haver lacunas, pois os crimes contra as mulheres não
diminuíram. Assim, é importante indagarmos se a polícia militar, que geral-
mente é quem realiza os atendimentos de emergência dessas mulheres, também
se transformou. Afinal, essa polícia está em conformidade com as diretrizes que
contemplam um aporte às pautas das conquistas de atendimento específico às
mulheres? Como se relaciona o poder entre homens e mulheres dentro dessa
instituição historicamente masculina? São questões que reafirmam a relevância
de problematizarmos para entendermos os olhares dos policiais sobre a violên-
cia doméstica e familiar, e de como a vida das pessoas se dá na interface dessa
administração do Estado.

Masculinidades e Polícia Militar

Ambra (2021, pp. 09-23) problematiza o homem biológico dos cromos-

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

somos XY e questiona se ser homem é apenas uma construção social. O autor


a partir da tese da “autoafirmação performática: homem é quem diz homem”,
indaga sobre o que significa ser homem para os homens. Afinal, como cada ho-
mem se relaciona com as diferentes representações do masculino?

Na apresentação que a polícia militar é uma instituição gendrada, é in-


quietante o delineamento de como se dá no interior da instituição a (não) defesa
dos direitos humanos das mulheres, uma vez que não parece sutil a exibição de
“uma masculinidade”. Como argumenta Connell: “Quando os exércitos do tipo
europeu se multiplicaram pelo mundo, foram exportadas não apenas as armas,
mas também as formas sociais que os acompanham, notavelmente a violência
organizada das masculinidades militares” (Connell, 1995, p.192).

A polícia militar é uma instituição baseada em princípios de hierarquia e


disciplina oriundos do exército, com padrões de masculinidades orientados para
guerra, e são essas normas que regem o comportamento e a vida dos policiais
dentro e fora do batalhão, tais como atividades físicas constantes, “formatura”
(espécie de docilização e controle do corpo pelo enquadramento de ficar nas
posições de sentido, de descansar e à vontade), cuidado corporal (não podem
ter barba, os cabelos têm um padrão de corte, a atenção com o fardamento etc.)
–, que moldam um “ser homem”.

Para Mendes (2002), essa performatividade militar configura uma repre-


sentação globalizante de masculinidade. Para a autora, “Os uniformes do Exér-
cito americano, francês ou brasileiro são semelhantes, assim como as insígnias,
que podem ser diferentes na forma (estrelas, barras), mas se assemelham na
revelação de distinção de poder e autoridade” (Mendes, 2002, p.94). Em uma
masculinidade marcada por símbolos, a farda tem muita significação. Segundo
Cappelle e Melo (2010, p.75), “Ela (farda) se relaciona ao mito da indestrutibi-
lidade, ao fazer que os policiais se sintam como super-homens, como imortais”.

189
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Diante da complexidade no interior da masculinidade e as suas múltiplas


formas, Connell (1995, p.188) afirma que “Os pontos fracos da teoria do papel
sexual são agora bastante claros e o conceito deveria ser dado como obsoleto”.
Sem essencializar as formas de operar o mundo, a norma androcêntrica que
parece se moldar na PM é preocupante, pois, “os homens dominam coletiva
e individualmente as mulheres. Esta dominação se exerce na esfera privada
ou pública e atribui aos homens privilégios materiais, culturais e simbólicos”
(Welzer-Lang, 2001, p. 461).

Bourdieu (2012) contesta a dominação masculina como uma questão de


ordem biológica, e afirma que é a construção arbitrária do biológico que fun-
damenta as divisões sexuais de modo aparentemente despretensioso. Assim, a
masculinidade foi sendo moldada como oposição ao feminino, e as instituições
socialmente estabelecidas – como família, Igreja, escola e Estado – são estrutu-
rantes no processo de naturalização dessa dominação masculina. Para o autor,
essa coragem viril que impinge sofrimento aos outros, na verdade tem como
fundo a covardia para não ser excluído do mundo dos “homens”.

De acordo com Nolasco (2001, p.13), “quem deseja de fato compreender


por que um homem mata e agride, é necessário pensar nos processos culturais
que criam soldados e os ensinam a puxar o gatilho”. Para o autor, há um inte-
resse dos Estados nessas masculinidades bélico-guerreira, encurralada e res-
sentida – a cumprir uma agenda, cujo roteiro do capitalismo é produzir cifras
com a indústria do armamento e das guerras. E nesse compasso a flexibilização
da posse das armas de fogo, assinada pelo atual presidente da República Jair
Messias Bolsonaro em janeiro de 2019, o referido decreto tem muito mais rela-
ção com uma política de gênero, do que com uma política de segurança, como
anunciam seus defensores.

Para Goffman, “as instituições totais realmente não procuram uma vitória

190
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

cultural. Criam e mantêm um tipo específico de tensão entre o mundo domés-


tico e o mundo institucional, e usam essa tensão persistente como uma força
estratégica no controle de homens” (Goffman, 1974, p.24). Nessa abordagem
feita por Goffman, tomamos a liberdade de articular aqui com a concepção de
Welzer-Lang na “Casa dos Homens” e perguntar: como é o mundo doméstico
desses “homens policiais” como clubes esportivos, clubes de tiro, etc.? Em
que medida esse mundo se estreita com a Instituição Polícia Militar? Será que
há tensionamento ou harmonia dos valores dessas masculinidades? Quais os
consensos de interesse da tal “ordem”, os conflitos de interesses que podem ser
latentes ou manifestos no trabalho destes policiais que vêm de grupos sociais
atravessados por hierarquias de classe, raça, masculinidades e num complexo
entrelaçamento dos anseios do Estado a suas (re)construções sociais e cultu-
rais?

Nesse prisma, Connell (1995) advoga que, em torno de uma determina-


da masculinidade hegemônica, outras orbitam em torno dela, “diferentes mas-
culinidades são produzidas no mesmo contexto social; as relações de gênero
incluem relações entre homens, relações de dominação, marginalização e cum-
plicidade” (Connell, 1995, p.189).

Nesse desiderato, segundo Goffman (1974, p.22): “Independentemente


do fato de determinada instituição total agir como força boa ou má na sociedade
civil, certamente terá força”. Por outro lado, Rolim (2006, p.28) é contrário a
essa ideia de “força”. Ele sublinha que este termo atrapalha a missão civiliza-
dora e humanista que deve ter a polícia.

É pertinente investigar se experiências anteriores de formação/


capacitação podem levar os agentes a interpretarem o trabalho para além das
fronteiras pessoais e profissionais. Nesse sentido, avaliar se no campo da vida
“as autoridades legais já possuem um entendimento preconcebido sobre os

191
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

crimes cometidos contra as mulheres e que tal construção social acarreta a


culpabilização da vítima e falta de confiança e crédito no sistema e em seus
operadores” (Cardoso, Coelho & Nascimento, 2020, p.21).

Em que medida os atendimentos, os registros e as estatísticas refletem


determinado constructo de um mundo generificado em diversas arestas, e como
estas vértices se cruzam no interior da instituição? A maioria das solicitações
de violência doméstica atendidas pelo telefone 190, não entram para a estatís-
ticas, tem um desfecho de “resolvido no local”. “Para tanto, a cultura policial,
também entendida como cultura organizacional, é regida por normas informais,
declaradas e simbólicas, definidas por valores, regras, atitudes e perspectivas
compartilhada pelos policiais, a fim de lidar com os confrontos externos e in-
ternos da instituição” (Martins & Bertoline, 2013, p.55).

Será que existe uma dialética no comportamento daquelas mulheres que


não se reconhecem “vítimas” com a dos policiais que vão atender essas ocor-
rências e não enxergam essas demandas como “coisa de polícia”? Há uma for-
ma específica dos policiais compreenderem o mundo social e o seu papel nele?
Há ocorrências que são performáticas do “ser policial”?

Na observação de Rolim, há um alinhamento da masculinidade com de-


terminados fatos para o que ele denomina de “verdadeiro trabalho de polícia”.
Ainda de acordo com o autor:

De fato, para a maioria dos policiais em todo o mundo existiria um verda-


deiro trabalho da polícia: prender “criminosos”. Todas as demais atividades
desempenhadas no dia a dia do policiamento – como as tarefas de pacifica-
ção ou de assistência – são normalmente vistas como “perda de tempo” e
são, quando muito, toleradas pelos policiais. No fundo, eles gostariam que
outras instituições as realizassem porque não se sentem “policiais” quando
estão envolvidos com elas (Rolim, 2006, p.28).

É comum ouvirmos no meio policial a expressão “Serra Fox7”, para ro-


7 Serra Fox: letras ‘S’ e ‘F’ no alfabeto fonético internacional.

192
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

tular aquelas ocorrências sem importância – e as de violência doméstica qua-


se sempre recebem essa titulação, de uma ocorrência “Sem Futuro”. O olhar
da banalização dessas ocorrências, como algo trivial e corriqueiro, como uma
briga de casal, é significado como uma ocorrência ordinária e sem solução –
linguagem usada pela polícia militar, como frisam Martins & Bertoline (2013,
p.58). Outro termo trazido por Reiner (2004, p.143) é a denominação das ditas
ocorrências como “lixo”, essa última expressão não é usual da PMMS.

Para Goffman (1974, p. 155), “Conhecer as suposições implícitas a res-


peito do uso adequado das instituições de uma cidade é conhecer o caráter e os
interesses atribuídos aos cidadãos e considerados legítimos para eles”. Nessa
perspectiva, podemos indagar quais são os cidadãos legítimos, e como essa le-
gitimidade é construída pelos agentes da polícia militar de Mato Grosso do Sul.

Assim, dentro da própria instituição existem aqueles que se consideram


mais policiais que os outros, aqueles que se aproximam mais do ideal hege-
mônico dessa masculinidade bélico-guerreira. Para as autoras Martins e Berto-
line (2013, p.57), os perigos da profissão remetem a parâmetros de uma mas-
culinidade forjada na força física, brutalidade, violência, disciplina e embate.
São características que definem a estrutura do policiamento da PMMS. Se faz
necessário aprofundar nas discussões de desigualdades de gênero no âmbito
institucional. Além disso, como (e quanto) as violências doméstica e familiar
podem ser impactadas pelo modo como os agentes públicos compreendem,
interpretam e atuam com a questão. Afinal, nos termos de Connell: “Buscar a
justiça nas relações de poder, significa contestar a predominância dos homens
no estado, nas profissões liberais e na administração e terminar a violência con-
tra as mulheres” (1995, p. 200).

P-Fem: Policiais Femininas

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Diante do exposto, cabe nos perguntarmos: se a ocorrência de violência


doméstica e familiar fosse direcionada por uma guarnição composta por mu-
lheres policiais, o atendimento seria diferente? Será que as mulheres podem
ter uma visão própria a respeito de seu papel dentro da polícia? Há autores e
autoras que trabalham essa reflexão, como Martins e Bertoline (2013). Para
estas autoras, a formação da mulher policial militar permeia por uma socia-
lização para que elas reproduzam comportamentos semelhantes aos dos poli-
ciais masculinos. Por outro lado, para Rago (1998, p.10), há uma construção
da subjetividade e da cultura feminina quando elas passam a ocupar profissões
masculinas, elas transformam esses espaços rompendo com um enquadramento
conceitual normativo, feminizando, inclusive, a cultura e a linguagem.

Dentro da instituição as mulheres policiais são denominadas de “P-Fem”,


que quer dizer policial feminina, ou seja, é um marcador da diferença que as
distingue o tempo todo de estar no “mundo dos machos”, já que os homens
não são chamados de “P-Masc”. Segundo Ribeiro (2018, p.02), “No Brasil, a
inclusão das mulheres nas polícias militares foi iniciada na década de 1950”.
A princípio essa adesão tinha como objetivo a modernização de uma polícia
autoritária. A autora pontua que a polícia militar paulista em 1955 foi pioneira
na inclusão de mulheres, mas que foi somente a partir da década de 1970 que as
outras unidades federativas do País começaram a aderir o ingresso de mulheres
nas polícias militares.

A dificuldade para essa instituição em receber mulheres tem como pres-


suposto a alegação de diferenças biológicas. Na década de 1980 inicia-se o
estabelecimento de cotas que, segundo Ribeiro (2018, p.05), “dificilmente ul-
trapassavam o patamar de 10%”, e as que entravam, trabalhavam em funções
distintas prestando os serviços estereotipados pelo gênero “de secretárias, tele-
fonistas, recepcionistas, enfermeiras, datiloscopistas e datilógrafas” (Moreira,
2011, p.57).

194
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Segundo Ribeiro (2018), a média mundial de mulheres policiais é de


30%. “Olhando os dados por este prisma, as polícias militares brasileiras estão
aquém da média mundial que soma 18,5% do total do efetivo policial” (Ribei-
ro, 2018, p.05). No Mato Grosso do Sul, em seu último concurso que ocorreu
no ano de 20188 para soldados da polícia militar para as mulheres, a quantidade
de vagas foi de 12%, não alcançando nem a atingir a média nacional.

Se queremos analisar como as políticas públicas voltadas para as mulhe-


res vítimas de violências têm o marcador o gênero, devemos olhar dentro das
instituições e perceber como o gênero ainda continua sublinhado pelo medo de
que um policiamento feminino possa “feminilizar/maternizar um dos espaços
construtores/reprodutores da masculinidade viril: a atividade policial” ( Morei-
ra, 2011, p.86).

O problema ainda perdura na dificuldade de alguns comandantes não


aceitarem mulheres em sua equipe, e a forma de fazer isso não é velada. O
estereótipo de que elas devam ocupar funções administrativas permeia toda a
instituição, se a atividade fim, ou seja, o trabalho operacional nas ruas é o mais
valorizado, congratulado com medalhas e elogios, o que constitui o “policial de
verdade”, ter a inserção de mulheres na polícia seria apenas como cumprir um
requisito protocolar, pois, “as policiais que trabalham no policiamento nas ruas,
nos aglomerados e nas favelas sofrem a estereotipagem de que são homos-
sexuais, e as que possuem muitas amizades entre os colegas são vistas como
prostitutas” (Cappelle & Melo, 2010, p.92). O ethos da profissão associado ao
homem e ao essencialismo atravanca aqueles que estão à margem dessa hege-
monia, como se fosse um problema ser homossexual, prostituta, mulher.

8 EDITAL n. 1/2018 – SAD/SEJUSP/PMMS/CFSD – 2.1. O Concurso Público visa selecionar


candidatos para o preenchimento de 388 (trezentas e oitenta e oito) vagas para o Curso de For-
mação de Soldados da Polícia Militar, sendo 341 (trezentas e quarenta e uma) vagas destinadas
aos candidatos do sexo masculino e 47 (quarenta e sete) vagas destinadas aos candidatos do sexo
feminino. O efetivo ativo da PMMS é de 5.487, desse número, 582 apenas, são mulheres. Dados
obtidos pelo SIGCOE, acesso restrito.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Cappelle e Melo (2010) em uma pesquisa com o objetivo de compreender


o trabalho operacional feminino na 8ª Região da Polícia Militar de Minas Ge-
rais (PMMG), entrevistou 33 mulheres policiais do policiamento operacional,
e relata que, mesmo diante de todos os entraves, inclusive estruturais (como a
ausência de locais adequados para realizar as necessidades fisiológicas), na rea-
lização do trabalho operacional, e de tantas outras barreiras institucionais, mui-
tas policiais enxergam as assimetrias como positivas, e, além disso, elas não
desejam mudanças. De acordo com algumas dessas policiais, essa configuração
faz com que se “sintam especiais” por fazer parte de uma minoria (Cappelle e
Melo, 2010, pp. 86-91).

As mudanças dentro da instituição talvez sejam possíveis quando as mu-


lheres não apenas alcançarem os postos mais elevados, mas quando as repre-
sentações sociais e institucionais em torno do gênero se ressignificarem. Se,
como afirmam Cappelle e Melo (2010, p.84), na polícia militar “até a rede de
rádio é proibida para a voz feminina, pois a credibilidade da informação trans-
mitida está relacionada ao masculino”, é preciso dizer que o privilégio secular
dos homens no interior das instituições militares, e que tem reverberado no
modo como eles lidam com a violência de gênero, precisa ser contestado, des-
naturalizado e problematizado para a proliferação de outros atores/as e outras
vozes.
Considerações Finais

A polícia tem mudado nos últimos anos, e essas transformações advêm


em grande parte das demandas sociais obliterar-se do patriarcado, fomentar
um processo formativo que contemple não somente o uso da força, mas outras
formas de resolução de conflitos para a realização de um policiamento que res-
peite e promova os Direitos Humanos.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Se as mulheres ainda experimentam uma segregação horizontal que as


privam do acesso a determinadas profissões, essa limitação também se apre-
senta na forma vertical, pois o acesso a postos mais altos da hierarquia orga-
nizacional da polícia também é outro problema que podemos cruzar na forma
dos homens modularem os espaços das mulheres, e que por sua vez tem toda a
relação com a violência doméstica e familiar.

A divisão sexual do trabalho – refere-se às diferenças anatômicas, os es-


tereótipos de atividades e funções tipicamente masculinas e femininas – são
formas segregatórias que uma masculinidade hegemônica resiste em manter,
mas que as instituições devem a priori combater, sobretudo aquelas que atuam
no enfrentamento da violência de gênero na sua forma mais nua e crua de forma
diária.

Por fim, ser homem e ser mulher ou ser um Uranista, na expressão de


Preciado (2019, p.37), ainda é um processo de clivagens. Como nos lembra
o filósofo, “àquelas que têm sido até agora consideradas como formas infra-
-humanas da vida (os corpos não brancos, proletários, não masculinos, trans,
deficientes, doentes, migrantes”) têm a possibilidade de se redesenhar diante
da revolução fármaco/tecno/biológicas, o corpo e a sexualidade, em face desse
universo de possibilidades, e, talvez um dia estaremos travando outras batalhas
e construindo novos olhares...
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199
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

200
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 14

CRIMINOLOGIA
FEMINISTA: DISCURSOS
BIONECROPOLÍTICOS
NA MÍDIA E NO SISTEMA
PENITENCIÁRIO
Conrado Neves Sathler
Kyara Mauriane Oliveira Gradini
Rafaela Alexandre da Costa
Tawana Mirelle Gonçalves de Oliveira
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-G

O atual contexto dos presídios brasileiros tem evidenciado a necessida-


de de se problematizar o sistema carcerário contemporâneo que vem transfor-
mando as prisões em depósitos de sujeitos. Nesses muitos espaços, os Direitos
Humanos são violados, as desigualdades são intensificadas e as subjetividades
tornam-se determinadas pelo Estado. Segundo o sistema de Informações Peni-
tenciárias - Infopen - Mulheres (2018), nos últimos anos, o número de mulheres
em situação de cárcere tem aumentado significativamente e, a partir de uma
análise do perfil dessas mulheres, observa-se que a maior parte delas são negras

201
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

ou pardas, jovens entre 18 e 30 anos e com baixo nível de escolaridade. Há uma


escolha política em fazer morrer os corpos de mulheres jovens, negras e pobres,
por meio de estratégias e técnicas penitenciárias, o que revela o caráter discri-
minatório do Estado racista.

O resultado desta análise aponta frutos da formação histórica do Brasil,


país que concebeu espaços específicos à população negra, principalmente à
mulher negra. Incontáveis são os impactos sociais, sendo possível notar alguns
deles no sistema jurídico prisional e nos discursos propagados pela mídia. As-
sim, o presente texto objetiva apresentar, em um primeiro momento, algumas
marcas deixadas pelo racismo e pelo patriarcalismo na existência das mulheres
e, por meio da exposição de dados estatísticos, evidenciar violências que afe-
tam esses corpos e, a partir disso, comentar relações entre cor de pele, crime e
discurso midiático, balizada pela ferramenta da interseccionalidade.

A criminologia, por meio da perspectiva da interseccionalidade, tem bus-


cado explicar as desigualdades associadas à raça, classe e gênero. Essas de-
sigualdades nos levam a observar a escolha do Estado em descartar corpos
específicos por meio da violação de políticas e/ou ausência delas. Com isso,
se faz perceptível a noção de necrobiopoder. O Estado moderno e capitalista
utiliza mecanismos de poder e de controle para atuar como gestor de corpos,
da vida e da morte. O biopoder, conforme Foucault, se constitui da noção de
“fazer viver” e o “deixar morrer”, encarregando-se de gerir e preservar certo
modo de vida, neste caso, o eurocêntrico e patriarcal, eliminando as ameaças
ao bem estar e ao modo de viver do homem branco. Assim, a mulher preta se
torna alvo duplo.

Segundo Mbembe (2018), a maior grandeza da soberania está em carre-


gar em si o poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer. À vista dos
modos de extermínio da vida, o autor pontua que as “inovações nas tecnologias

202
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

de assassinato visam não só “civilizar” as maneiras de matar, mas também eli-


minar um grande número de vítimas em um espaço relativamente curto de tem-
po” (Mbembe, 2018, p.18). E, segundo Franco (2021) a necropolítica se ocupa
ainda da administração dos corpos desaparecidos, ainda vivos ou mortos. Essa
gestão cruel, ao fazer sumir de circulação sujeitos indesejáveis, tortura com a
falta de informações sobre esses corpos gerando a dúvida: a(o) desaparecida(o)
estará viva(o) ou morta(o)?

Ao longo da história, a sociedade tem determinado às mulheres negras


o seu “lugar”/“não lugar”, de modo a estarem em empregos que desumanizam
e em posição de subordinação, como percebemos nas recentes denúncias de
trabalhos análogos à escravidão. Logo, conduz a emergência do “fazer morrer”
como política de morte.

Ao observar o modo como a mulher é tratada nas diversas esferas da so-


ciedade, entre elas o sistema criminal, pode-se notar o Estado ocupando o papel
de carrasco do século XVII, ao passo que as punições físicas são substituídas
por “penalidade do incorporal”. Foucault aponta no dispositivo criminal um
“fundo ‘suplicante’ nos modernos mecanismos da justiça criminal - fundo que
não está inteiramente sob controle, mas envolvido, cada vez mais amplamen-
te, por uma penalidade do incorporal” (Foucault, 1975, p.21). Ainda sobre os
mecanismos de punição presentes na modernidade, “o ser humano tem de estar
plenamente vivo no momento de morrer, estar ciente de sua morte, para viver
com o sentimento de estar morrendo” (Mbembe, 2018, p.44). Deste modo, per-
cebe-se no princípio da necropolítica, alicerce das políticas de criminalização,
no fazer sofrer/morrer do sujeito.

A política de morte de escravidão deixou vestígios que podem ser vis-


tos na atualidade pela marginalização da população negra, especialmente das
mulheres. Esse processo social expõe uma dupla opressão: racial e de gênero.

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Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Como retratado por Davis (2016), os corpos negros eram considerados pro-
priedades no sistema escravagista e não havia distinção de gênero. O trabalho
da mulher negra voltava-se tanto aos serviços domésticos, como cozinheira e
arrumadeira na casa dos senhores, quanto às lavouras. O pouco valor dado às
questões de gênero também pode ser percebido nas ameaças do açoite, pois a
opressão vivida pelas mulheres era a mesma dos homens.

Mas as mulheres também sofriam de forma diferente, porque eram vítimas


de abuso sexual e outros maus-tratos bárbaros que só poderiam ser infligi-
dos a elas. A postura dos senhores em relação às escravas era regida pela
conveniência: quando era lucrativo explorá-las como se fossem homens,
eram vistas como desprovidas de gênero; mas, quando podiam ser explora-
das, punidas e reprimidas de modos cabíveis apenas às mulheres, elas eram
reduzidas exclusivamente à sua condição de fêmeas (Davis, 2016, p.25).

Os atos discriminatórios, preconceituosos e racistas – explícitos ou im-


plícitos – contra as mulheres são vestígios do escravista. A violência contra as
mulheres está presente em todas as classes sociais, contudo nos segmentos mais
vulneráveis nos quais estão inseridas as mulheres negras, essa violência recai
de forma diferente e com um maior grau de intensidade (Grossi & Aguinsky,
2001). A perpetuação desse ato na contemporaneidade é percebida nas con-
dutas de caráter discriminatório que excluem a participação negra e limitam a
construção de medidas de equidade.

Um exemplo dessa discriminação se faz presente na PEC das Domésti-


cas (PEC nº 66/2012) que deu, posteriormente, origem à Lei Complementar
nº150/2015, na qual se amparam legalmente os trabalhadores domésticos com
os mesmos direitos conquistados na Consolidação das Leis do Trabalho. Apesar
do avanço na garantia de direitos, o Brasil, mesmo após 133 anos da abolição,
perpetua um estereótipo que fere o povo negro. A PEC garante direitos básicos,
entretanto, não é capaz de reverter o perfil histórico das trabalhadoras domés-
ticas: mulheres negras, pobres, à margem da violência e vistas pela sociedade
racista como as que possuem “cara de empregada”.

204
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Ao relatar histórias de mulheres privadas de liberdade, Varella questiona:


“O que a sociedade ganha trancando essas mulheres por anos consecutivos?”
(2017, p. 209). Do ponto de vista da feminização, da pobreza e da punição, a
vulnerabilidade na economia neoliberal presente na vida de uma mulher negra
tem a transformado em objeto do Estado Penal (Sudbury, 2005). A gênese do
sistema punitivo está no poder de vigilância como forma de controle social e
com base nos estudos da criminologia crítica feminista. O sistema penal sele-
ciona e criminaliza, previamente, os indivíduos pertencentes às classes subal-
ternas. As faltas de políticas sociais levam as mulheres desse grupo ao tráfico, à
violência doméstica, ao roubo e ao furto, entre outros (Depen, 2018).

Assim, todas essas condições junto à negligência histórica do lugar da


mulher em uma sociedade patriarcal e racista, acarreta o aumento dos índices
de aprisionamentos, violências, feminicídios e homicídios.

Tecendo a Pesquisa

Dada a importância da discussão a respeito das questões feministas, o


presente texto tem como objetivo contribuir com a Psicologia Social a partir
da leitura dos recortes de gênero. A perspectiva de gênero possibilita reflexões
e questionamentos de cunho emancipatório, cuja finalidade está para além de
visualizar as distintas práticas que excluem e oprimem as mulheres e tem a fi-
nalidade de transformar essas práticas. A mulher é atravessada por territórios,
histórias e pessoas. É primordial ampliar o olhar à forma e à intensidade da vio-
lência contra os corpos das mulheres, visando perceber as facetas da violência
do racismo e demais discriminações ligadas às mulheres negras.

Diante do avanço da violência contra as mulheres, buscamos evidenciar


a violência contra esse grupo no sistema judiciário prisional e nos dizeres mi-
diáticos das páginas policiais, assim como, apresentar dados estatísticos de ou-

205
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

tras formas de violência infligidas às mulheres em espaços públicos e diversos,


atentando também para a interseccionalidade.

O propósito de investigar a forma que os discursos policiais e jurídicos


são produzidos e como se associam aos dizeres disseminados pela mídia é o de
apontar a produção de determinados efeitos sociais, como são construídos este-
reótipos criminais tendo como princípio o emprego de enunciados pejorativos
sobre certos modos de vida em nossa sociedade.

A partir disso, realizou-se uma revisão bibliográfica não exaustiva a res-


peito da criminologia feminista e das estatísticas com relação à violência sobre
as mulheres, quer seja intrafamiliar, em ambientes públicos e diversos, no sis-
tema carcerário e aquelas relacionadas ao trabalho de empregada doméstica.
Além disso, também foram analisados dados estatísticos do Atlas da violência,
referentes aos anos de 2019 e 2020, e do Fórum Brasileiro de Segurança Públi-
ca.

Considerando a proposta do texto e a importância da discussão a respeito


do lugar histórico de negação de direitos das mulheres negras, aplicou-se a fer-
ramenta da interseccionalidade a fim de ressaltar e analisar os impactos sociais
e as ações racistas e discriminatórias que acabam gerando como consequência
desigualdades e desvantagens associadas à raça, classe, gênero e sexualidade,
entre outras. A Interseccionalidade não é uma ferramenta aplicada às identida-
des, mas às matrizes de opressão produtoras de desigualdades. Assim, perceber
as estruturas sociais que impõe lugares subjetivos excludentes e a forma como
vidas são excluídas e silenciadas permitem novas enunciações e linhas de fuga
de realidades ignoradas e/ou desprezadas pela sociedade (Akotirene, 2019).

206
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Mulheres, pandemia e violência

O último Atlas da Violência, publicado em 2021, aponta que 3.737 mu-


lheres foram assassinadas no Brasil no ano de 2019, taxa equivalente a 3,5
vítimas para cada 100 mil mulheres no território nacional. Esse número corres-
ponde, de modo geral, a todas as mulheres vítimas de violência letal, seja por
feminicídio - morte de mulheres em decorrência de gênero - ou devido à violên-
cia urbana. Os dados referentes às mulheres negras assassinadas neste mesmo
período foi de 4,1 por 100 mil, enquanto de mulheres não negras consistia em
2,5 por 100 mil.

Apontamos ainda que, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública


- FBSP - (2020), houve o aumento do número de casos de violência doméstica
durante a pandemia COVID-19. A dificuldade imposta pelo isolamento social,
que coloca a vítima em convivência contínua com o agressor, e a distância das
instituições responsáveis pelas medidas de segurança amenizou os registros de
Boletins de Ocorrência. As vítimas de violência doméstica estão entre as que
mais perderam renda e emprego durante a pandemia. A maioria são mulhe-
res separadas/divorciadas (35%), pretas (28,3%) e jovens entre 16 e 24 anos
(35,2%). Segundo dados divulgados pelo Ministério da Mulher, Família e Di-
reitos Humanos, o Mato Grosso do Sul ocupa o terceiro lugar do ranking de
ligações para o 180.

Ainda, a FBSP em parceria com o Datafolha publicou, em outubro de


2021, os resultados da pesquisa sistemática realizada nas unidades federativas
do território nacional denominada “Visivel e Invisivel: a vitimização de mulhe-
res no Brasil”. O estudo reafirma que apesar da diminuição dos registros poli-
ciais de lesão corporal dolosa, ameaça, estupro e estupro de vulnerável contra
mulheres, houve aumento expressivo de feminicídio. É perceptível como o fa-

207
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

tor sexista influencia na forma como os corpos femininos são violentados antes,
durante e posterior à morte. As características sexuais e femininas destes corpos
são alvo dos impulsos machistas, que buscam a manutenção de uma estrutura
político-social que violenta e segrega mulheres. Campos (2015) aponta, através
de estudos feministas, características específicas dessas mortes: “existência de
violência sexual, mutilação e desfiguração do corpo da vítima (especialmente
seios, vagina e rosto) desvelam um comportamento misógino” (p.109). As es-
tatísticas criminais do FBSP indicam que, no Mato Grosso do Sul, 42,5 % das
vítimas de feminicídio são mulheres de cor preta ou parda.

No que diz respeito às formas e aos lugares onde ocorrem as violências,


são apontados que 17 milhões de mulheres brasileiras sofreram pelo menos um
tipo de violência no período de maio de 2020 a maio de 2021. As agressões fo-
ram: 18,6% ofensa verbal; 6,3% tapa, empurrão e chute; 5,4% milhões ofensa
sexual ou tentativa forçada de manter relação sexual; 3,1% ameaça com faca ou
arma de fogo e 2,4% espancamento ou tentativa de estrangulamento.

Segundo o IPEA (2020), a redução de 12% da taxa de homicídios ocorrida


entre 2017 e 2018 se concentrou mais na população não negra. Se aplicarmos a
relação gênero-cor, as mulheres negras representam 68% do total das mulheres
assassinadas no país, quase o dobro comparada às mulheres não negras. Com
base nos dados obtidos, “o risco relativo de uma mulher negra ser vítima de ho-
micídio é 1,7 vezes maior do que o de uma mulher não negra, ou seja, para cada
mulher não negra morta, morrem 1,7 mulheres negras”. Pode-se compreender
então que fatores sociais e de raça e gênero estão associados ao fenômeno da
violência, visto que, “essa tendência vem sendo verificada há vários anos, mas
o que a análise dos últimos onze anos indica é que a redução da violência letal
não se traduziu na redução da desigualdade racial” (IPEA, 2021, p. 38).

208
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Evidencia-se que, mesmo com a entrada em vigor, em março de 2020, da


Resolução CNJ nº 62/2020 que previa medidas alternativas à prisão em busca
da diminuição de lotação nas unidades prisionais, em virtude das medidas sa-
nitárias de prevenção da propagação do COVID-19 no sistema prisional, ainda
há, segundo FBSP, “cerca de 33.999 mulheres nos sistemas prisionais estadual
e federal em 2020”, assim, mesmo que o número de mulheres seja menor em
referência aos homens, a “política de encarceramento ainda é uma realidade
consolidada no país” (FBSP, 2021b, p. 212). E ao determos o olhar na compo-
sição por cor deste grupo, os dados do Infopen - Mulheres evidenciam que da
população total de 31.038, cerca de 17.224 são mulheres negras ou pardas.

As aproximações entre a cor, o crime e o discurso


midiático

Conforme a Associação Paulista dos Defensores Públicos (APADEP),


toda pessoa que está presa, não importando sua classe social, raça, cor da pele,
sexo, orientação sexual, quantidade da pena ou crime(s) praticado(s), deve ser
tratada como cidadã e ter seus direitos respeitados. Entretanto, é evidente a
diferença de tratamento que mulheres jovens, negras e pobres recebem compa-
rado às mulheres não negras.

Carvalhaes, Mansano e Toneli (2018) apontam, na tese “Crimes cometi-


dos por mulheres brasileiras: uma análise sobre enunciados de gênero”, como
as mulheres são tratadas pela mídia, que as caracterizam como a vítima, a louca
e a hipersexualizada, entre outras. Os autores destacam que

De forma análoga, as maneiras como grande parte das reportagens sobre


mulheres tidas como criminosas são apresentadas tendem a deslocar a in-
formação para um julgamento de ordem moral e/ou psiquiátrica, sendo
que, muitas vezes, o que está em questão não é o crime em si ou as circuns-
tâncias em torno dele, mas sim a condenação de condutas “irregulares” de

209
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

mulheres que se envolveram em práticas consideradas dissonantes às nor-


mativas de gênero (Carvalhaes, Toneli, & Mansano, 2018, p. 6-7).

Destaca-se, ainda, que a mulher fatal geralmente é branca, loira e de clas-


se média alta, como no caso de Lourraine Bauer Romeiro, 19 anos, estudante
de direito e modelo, detida por tráfico no centro de São Paulo, denominada “a
Gatinha da Cracolândia” (G1, 2022). Em contrapartida, os discursos a respeito
das mulheres negras ganham outros contornos, como o caso de Sandra Helena
Ferrari Gabriel, mulher negra, 54 anos, aprisionada por comandar o tráfico na
comunidade de Jacarezinho-RJ, ficou conhecida como “Sandra Sapatão” (EX-
TRA, 2021).

Os discursos disseminados pela mídia afetam e produzem efeitos quanto


aos sujeitos e aos diferentes modos de vida em sociedade. Os elementos utiliza-
dos pela mídia, como “gatinha” e “sapatão”, revelam os privilégios dos sujeitos
brancos ao mesmo tempo em que marginalizam os não-brancos reduzindo-os
a predicativos ligados à sexualidade. Dessa forma, observam-se contrastes de
tratamento em relação à mulher branca e à negra, pois, independente do crime
cometido, a mulher negra será marginalizada, silenciada e a sua história será
mais uma vez assassinada.

O Conselho Nacional de Justiça, apresenta no “Manual de Prevenção


e Combate à Tortura e Maus-tratos para Audiência de Custódia” (2010), tre-
chos do relatório produzido pela organização Human Rights Watch contendo
diversos casos de abusos e torturas praticados por agentes penitenciários. É
destacado que as pessoas negras estão mais à margem do encarceramento em
massa e violências como torturas e maus-tratos. Além disso, as sentenças pelo
mesmo crime tendem a ser maiores para os negros quando comparadas as dos
brancos, evidenciando a discriminação e o racismo estrutural nas prisões. A
julgar pelo princípio de docilização de corpos, descrita por Foucault (1975)

210
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

na obra “Vigiar e punir”, compreende-se que o sistema penitenciário, além de


sua natureza coerciva, representa um sistema de poder fundamentado por uma
ideologia racista, patriarcal e classista.

Do ponto de vista de Baratta (2002), o sistema penal é um sistema de


direito desigual, pois para realizar a manutenção do poder da classe dominante,
criminaliza e exclui os subalternos. Desde a criação dos presídios femininos no
Brasil, prendem-se mulheres que transgridem a ordem natural vigente e que,
pelos olhos da sociedade, apresentam riscos à construção patriarcal e capita-
lista (Angotti, 2011). As condições do sistema prisional feminino produzem,
enquanto órgão de controle, “[...] tipo de prisioneiro que, por sua vez, justifica
a expansão das prisões” (Davis, 2003, p. 528).

A visita íntima nas instituições prisionais é um direito fundamental para


a manutenção dos vínculos com o encarcerado, todavia sua ocorrência é condi-
cionada à revista, procedimento de segurança, entretanto o modo como se dá o
procedimento viola, humilha e constrange as mulheres envolvidas.

Os portões abrem às sete, quando a fila já está enorme. É obrigatório passar


pelas baias de Revista. A dos homens é mais superficial; as mulheres são
revistadas por funcionários que olham até dentro da calcinha e, quando
desconfiam, mandam que a revistada a tire e se agache, para verificar se
há corpo estranho na vagina. Por mais tato que as revistadoras possam ter,
o exame é constrangedor, especialmente para senhoras recatadas (Varella,
1999, p.54).

Toda mulher possui uma relação íntima com o seu corpo. Quando ocorre
a violação do corpo, há também uma violação dessa relação. Este tipo de vio-
lência é resultado de uma concepção existente que vê a anatomia do corpo fe-
minino como suspeito de “objetos de transporte”, logo “é como se toda a ordem
de objetos ilícitos que adentra nos estabelecimentos prisionais fossem oriundos
dos corpos femininos (DONADEL, 2016, p. 57).

211
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

A partir dessas relações, entende-se que o sujeito se faz presente, entre-


tanto, um sistema que atua em função do poder institucional determina agen-
ciamentos com a finalidade de manter esses corpos em condição sempre su-
balterna. Mesmo diante de tantas opressões, vale ressaltar que todo corpo é
político e que sobre ele incidem as relações de poder, logo, afirma-se que todo
preso é um preso político (Foucault, 1979). Assim sendo, para que uma insti-
tuição hierarquizante se mantenha no topo, desfrutando da autoridade, é neces-
sário docilizar o corpo social que compõe sua base estrutural, uma vez que só
há sujeito dominante enquanto houver sujeitado. A subjetividade dócil torna-se
fabricável, de modo que o poder, por meio de um trabalho detalhado, sem folga
e sem espaços, busca agir em cada indivíduo.

Considerações Finais

Diante disso, compreende-se que existe um controle social que atravessa


os corpos encarcerados por meio de injustiças sociais e múltiplos modos de
violência e opressão. As incontáveis políticas de morte tem afetado a existên-
cia, a história e a dignidade das mulheres. Fica claro que ser mulher, negra, po-
bre e de baixa escolaridade na sociedade brasileira é viver junto ao desamparo
e à margem imposta pelo Estado e pela massa branca privilegiada e injusta.

A criminologia feminista e os estudos interseccionais nos ajudam a ana-


lisar os dados apresentados e concluir que existe um grupo de mulheres in-
tencionalmente selecionadas para serem afetadas pelo sistema punitivo com a
finalidade de desaparecer com os corpos negros de forma cruel. O racismo, a
feminilização da pobreza e a carência de políticas públicas ressaltam o espaço
desprivilegiado - uma sociedade patriarcal e racista às mulheres negras - histo-
ricamente determinado.

212
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Faz-se necessário que a Psicologia, como profissão ética, política e de-


fensora dos Direitos Humanos reinvente novas formas de resistência e fomente
a construção de espaços, micro e macro políticos, capazes de repensar o que
está sendo naturalizado por essa sociedade adoecida.

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216
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 15

ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE


E RELAÇÃO INTERPESSOAL:
UMA REVISÃO DA PRODUÇÃO
CIENTÍFICA, 2010-2019
Júlia Medeiros Pereira
Bárbara Yumi Brandão Sakane
Gabriela Rieveres Borges Andrade
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-H

A Atenção Primária em Saúde (APS) é a base do Sistema Único de Saúde


(SUS) por ser considerada a porta de entrada do usuário para o sistema e por
fazer prevenção, promoção e atenção à saúde para a maioria das condições,
atuando nas esferas coletivas e individuais. Além disso, por sua característica
de promoção à Saúde, a APS é capaz de reduzir taxas de mortalidade prematura
e possibilitar menor custo no uso de tecnologias duras, como exames e medica-
mentos. No contexto brasileiro, a Política Nacional de Atenção Básica (Portaria
nº 2.436, 2017) estabelece que à APS é atribuída a função de coordenadora do
cuidado e ordenadora das ações da rede de saúde.

217
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Para Starfield (2006), a característica exclusiva e essencial da APS é a


longitudinalidade, ou seja, o acompanhamento periódico da população residen-
te de um determinado território, feito por um profissional de saúde, com a fina-
lidade de assisti-los no que se refere às múltiplas ocorrências de saúde, além de
realizar atividades de prevenção e promoção. A longitudinalidade pode ser de-
finida como contendo três dimensões: a primeira é “fonte regular de cuidados”,
que diz respeito ao reconhecimento, por parte do usuário, da Unidade de Saúde
como um local capaz de fornecer cuidados de forma contínua e consistente; a
segunda, é “continuidade da informação” que define que os registros em saúde
devem incluir informações necessárias para orientar a conduta terapêutica do
profissional; a terceira é a “relação interpessoal”, caracterizada por uma relação
contínua, ao longo do tempo, entre profissionais de saúde e usuários (Cunha,
2009; Cunha & Giovanella, 2011; Starfield, 2006).

Neste estudo damos foco à terceira dimensão da longitudinalidade, a


partir de um levantamento não sistemático de produções científicas brasileira
sobre a relação profissional-usuário na APS, a partir de artigos e dissertações
indexados na plataforma LILACS (Literatura Latino-Americana e do Caribe
em Ciências da Saúde), entre os anos de 2010 a 2019.

Relação interpessoal na APS: concepções e


centralidade no cuidado em saúde

A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) adota a nomenclatura


“vínculo” ao abordar a relação de confiança e de afetividade desenvolvida por
profissional e usuário, em que se estabelece a responsabilização mútua pelo
processo terapêutico (Portaria nº 2.436, 2017). Nesta relação, leva-se em conta
o acolhimento e o atendimento humanizado do usuário, visando a adesão ao
tratamento (Portaria nº 2.436, 2017).

218
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Cunha e Giovanella (2011) propõem, a partir de uma revisão dos instru-


mentos de avaliação da APS, que a relação interpessoal entre profissional-usuá-
rio seja mensurada sob a perspectiva do usuário, a partir dos seguintes atributos:
1) existência de um profissional de saúde que ofereça cuidado regularmente; 2)
conhecimento dos profissionais sobre aspectos familiares e psicossociais do
usuário; 3) capacidade de contatar o médico/enfermeiro, caso tenha dúvidas
sobre o tratamento; 4) tempo de consulta suficiente para sanar dúvidas e preo-
cupações; 5) valorização das opiniões, queixas e preocupações do paciente e 6)
informações dadas de forma clara.

Neste sentido, em síntese, tem-se que a relação interpessoal profissional-


-usuário desenvolve-se a partir de uma perspectiva temporal (considerando tan-
to o tempo de consulta quanto o acompanhamento do usuário por um mesmo
profissional ao longo do tempo), interpessoal (no sentido de que é preciso que
haja confiança mútua e de que o profissional conheça os aspectos psicossociais
do usuário) e interlocução (em que as orientações sejam fornecidas de forma
explícita para os pacientes).

A partir do exposto, entende-se que a relação interpessoal profissional-


-usuário tem um papel primordial no cumprimento dos princípios do SUS de
integralidade e equidade, quando tem por foco o atendimento humanizado e a
autonomia e a escuta do indivíduo. Além disso, a partir do desenvolvimento da
relação interpessoal, o profissional tem maior participação na vida dos usuá-
rios, conhecendo suas especificidades e as necessárias diferenciações no cuida-
do (Cunha, 2009; Cunha & Giovanella, 2011; Starfield, 2006).

A relação interpessoal entre usuário-profissional compõe um conjunto de


“tecnologias leves” em saúde, relacionais (Cunha & Giovanella, 2011). Para
Merhy e Franco, o trabalho em saúde é sempre relacional, por conter uma ca-
racterística de “Trabalho Vivo”, ou seja, o profissional reconhece que o usuário

219
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

não se resume a uma enfermidade, mas que reúne em si um conjunto de fatores


sociais, econômicos, culturais que devem ser levados em conta no processo
terapêutico. Assim, a produção do cuidado passa por (e parte de) um encontro
entre o usuário e o profissional. Neste sentido, os autores defendem que, no
cuidado em saúde, o trabalho relacional (Trabalho Vivo) é mais importante que
o trabalho que passa por exames, medicamentos etc (Trabalho Morto) (Merhy
& Franco, 2003).

Entende-se, portanto, que uma interação profissional-usuário que segue


os princípios do SUS deve ser pensada a partir da reflexão do processo saúde-
-doença e da superação do modelo biomédico hegemônico, que coloca a doença
no centro, em detrimento do sujeito, e o profissional de saúde como detentor de
todo o saber. Partindo do pressuposto de que o cuidado terapêutico requer que
profissional e usuário estejam envolvidos e implicados, com corresponsabilida-
de, entende-se, então, que o vínculo é condição para que o caráter terapêutico
de uma intervenção em saúde na atenção primária aconteça (Merhy & Franco,
2003; Rezende, 2015).

Método

Para fazer o levantamento e o mapeamento de produções científicas bra-


sileiras que abordam o tema da relação interpessoal no âmbito da Atenção Pri-
mária do Sistema Único de Saúde, foi realizada uma pesquisa bibliográfica na
plataforma de periódicos científicos Literatura Latino-Americana e do Caribe
em Ciências da Saúde - LILACS. A escolha da plataforma justifica-se por ser
conhecida e consolidada no meio acadêmico, abranger produções da área da
saúde e possuir grande número de artigos brasileiros indexados.

O levantamento foi realizado entre os dias 26 e 30 de abril de 2021 com


a busca de produções científicas brasileiras em português, publicadas entre os

220
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

anos de 2010 e 2019. Dessa forma, a pesquisa foi composta por três descritores:
relação interpessoal, relação profissional-usuário e vínculo profissional-usuá-
rio, que foram cruzados com os termos atenção básica e atenção primária.

Inicialmente, foram encontradas 142 produções. A triagem de trabalhos


relevantes para a pesquisa foi feita em duas etapas iniciais: exclusão dos tra-
balhos em duplicidade e artigos escritos em outra língua que não o português;
leitura dos títulos e resumos, descartando-se 97 produções que não tratavam do
tema de interesse. Foram descartados artigos que não tratavam de análises do
sistema de saúde brasileiro e/ou não tinham a atenção primária como foco.

Em uma terceira e última etapa, as produções foram lidas na íntegra a


fim de selecionar as relevantes. Nesta etapa foram excluídas produções que
abordam a relação interpessoal somente entre profissionais de saúde. Foram
selecionadas 17 produções (13 artigos e quatro dissertações) para análise de
conteúdo, com foco nas características da relação interpessoal e em desafios
atuais da atenção primária em relação a este aspecto.

Resultados e Discussão

Em um trabalho de revisão bibliográfica sobre a interação entre usuário


e profissional da saúde, Rocha (2014) identifica que são utilizados diferentes
termos para referir-se a essa relação, tais como “vínculo”, “vínculo terapêuti-
co duradouro”, “interação terapêutica”, “tecnologia relacional”, “dispositivo
relacional”, “relação terapêutica”, “relação interpessoal”, entre outros. Nesse
sentido, entende-se que há, na literatura científica, o uso de terminologias dis-
tintas para designar, essencialmente, o mesmo fenômeno: a interação entre os
profissionais e usuários de serviços de saúde com o propósito de estabelecer um
contato com finalidades terapêuticas baseado no respeito e na empatia.

221
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

A análise das produções selecionadas para este trabalho confirma a polis-


semia conceitual apontada por Rocha (2014) acerca da noção de relação inter-
pessoal. O termo “relação interpessoal” foi usado em cinco publicações (Bran-
dão et al., 2013; Vilela et al.; 2014, Paiva et al. 2015; Borges et al., 2019; Sá et
al., 2019). O termo “vínculo” apareceu em nove publicações (Rocha, 2014; Re-
zende, 2015; Moura & Silva, 2015; Rêgo & Radovanovic, 2018; Santos, 2015;
Santos et al., 2018; Silva et al., 2015; Stein et al, 2015; Graff & Toassi, 2018).
A dissertação de Pellense (2013) emprega também as expressões “dimensão
interpessoal” e “interação usuário-serviço-equipe”. O termo “comunicação in-
terpessoal” é utilizado no estudo de Haddad et al. (2011) e, por fim, o artigo de
Borges e D’Oliveira (2011) adota “interação”, “comunicação” e “vínculo médi-
co-paciente”. Verifica-se, portanto, que a heterogeneidade de termos é grande.

Dentre as dezessete (17) publicações analisadas, dez (9) abordam a rela-


ção interpessoal a partir da perspectiva do usuário (Borges & D’Oliveira, 2011;
Sá et al., 2012; Brandão et al., 2013; Rocha, 2014; Paiva et al., 2015; Santos,
2015; Stein et al., 2015; Rêgo & Radovanovic, 2018; Borges et al., 2019), sina-
lizando a importância dada à percepção do usuário para a melhoria do serviço
de saúde. A visão do usuário sobre essa relação tem sido considerada um fator
determinante para a adesão ao tratamento, consistindo em um dos elementos
para mensurar a efetividade dos serviços de saúde.

As publicações científicas revisadas evidenciam a importância da relação


interpessoal entre usuários e profissionais, estabelecendo-a como uma tecno-
logia essencial no cuidado à saúde por sua capacidade de, simultaneamente,
humanizar e dar autonomia aos usuários, e, ainda, aumentar a aproximação
efetiva entre esses sujeitos por meio da empatia, respeito e escuta receptiva
(Haddad et al, 2011; Pellense, 2013).

Sobre esse aspecto, Vilela et al. (2014) estabelecem, em pesquisa com

222
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

enfermeiros, que existem lacunas na formação profissional tanto no que se refe-


re aos aspectos teóricos quanto aos aspectos práticos da relação interpessoal, o
que coloca alguns desafios para construir essa relação como uma ferramenta de
cuidado, principalmente no estabelecimento da escuta terapêutica e no trato de
pessoas com transtornos mentais. Na mesma direção, Sá et al. (2012) e Silva et
al (2014) apontam para a necessidade de formação continuada dos profissionais
de saúde com a finalidade de melhorar a qualidade da interação com os usuários
e desenvolver habilidades terapêuticas por meio do estabelecimento da escuta,
confiança e respeito.

Refletindo sobre as competências que devem ser desenvolvidas na forma-


ção dos profissionais de saúde, Stein et al (2015) analisam algumas das estra-
tégias utilizadas na Enfermagem para fomentar a reflexão teórico-prática sobre
o desenvolvimento efetivo da relação interpessoal e do vínculo. A inserção de
estudantes de Enfermagem na realidade de famílias atendidas por uma equipe
de Saúde da Família, possibilitou vivenciar o vínculo que se dá a partir da em-
patia e do respeito à autonomia dos usuários. Assim, os estudantes puderam
compreender os processos saúde-doença a partir de uma perspectiva ampliada,
em que os usuários são “protagonistas de sua história, isto é, autor e promotor
do seu autocuidado” (Stein et al, 2015, p. 226).

Em relação às áreas da saúde analisadas, destaca-se o fato de que uma


parte substantiva das publicações são escritas por profissionais da enfermagem,
indicando que há um interesse dessa área em estudar e aprimorar o vínculo do
profissional com o usuário e a comunidade (Haddad, 2011; Vilela et al, 2014;
Rezende, 2015; Silva at al, 2015; Stein et al, 2015; Rêgo & Radovanovic,
2018; Borges el al, 2019). Ressalta-se a importância de que esta temática seja
ampliada e discutida de forma mais expressiva em todas as áreas da saúde (Re-
zende, 2015; Santos, 2015).

223
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Em relação aos critérios utilizados para a avaliação da relação interpes-


soal na APS, Paiva et al. (2015) ressaltam que é a existência de um médico ou
enfermeiro de referência para o atendimento que garante a continuidade no
cuidado e a confiança neste profissional. Nesse sentido, Rêgo & Radovano-
vic (2018) e Santos (2015) mostram que, no que diz respeito a pacientes com
doenças crônicas, como hipertensão arterial e diabetes, a relação interpessoal
é essencial para a adesão ao tratamento e só é possível a partir da continuidade
do cuidado pelo mesmo profissional.

Nos casos de doenças crônicas, por se tratar de enfermidades que neces-


sitam de mudança de hábito e de adaptações na rotina, é essencial que o usuário
tenha conhecimento sobre sua condição e receba do profissional orientações
minuciosas de forma regular, a fim de que a intervenção terapêutica seja efetiva
(Santos, 2015). Dessa forma, a adesão ao tratamento é maior quando o usuário
é atendido pela mesma equipe de saúde, ou seja, quando é estabelecido um vín-
culo capaz de incentivar a autonomia nas práticas de autocuidado (Barbosa &
Lima, 2006; Santos, 2015; Silva et al, 2015; Rego et al., 2018).

Nesse sentido, uma relação interpessoal mal desenvolvida ou inexistente


pode dificultar a adesão e, consequentemente, a efetividade do tratamento, ge-
rando prejuízos para o usuário. A relação interpessoal é desenvolvida a partir
de uma abordagem temporal contínua, e a rotatividade de profissionais na APS
é um desafio para a construção dessa relação, pois impede o acompanhamento
constante, ao longo do tempo (Rêgo & Radovanovic, 2018).

Outro aspecto importante ressaltado por Borges et al. (2019) é a impor-


tância da linguagem escrita adotada pelo profissional de saúde, tanto em relação
à forma, em termos de caligrafia, quanto ao conteúdo, em termos de compreen-
são/jargões, entre outros. A forma com que a linguagem escrita é utilizada pode
ser determinante para a adesão ao tratamento, uma vez que pode facilitar ou

224
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

dificultar a compreensão de orientações terapêuticas, tanto por parte do usuá-


rio, quanto de seus familiares. Neste sentido, a não observância desse aspecto
constitui-se como mais um empecilho para o desenvolvimento da relação inter-
pessoal. Entende-se, portanto, que é papel do profissional adequar a sua forma
escrita e oral para o nível de instrução do usuário.

A partir da análise dos dados desta pesquisa, verifica-se que cinco (5)
produções entre as selecionadas abordam o papel do Agente Comunitário de
Saúde e uma (1) analisa, com maior profundidade, a relação interpessoal a
partir da perspectiva do trabalho deste profissional (Stein et al, 2015; Rezende,
2015; Moura & Silva, 2015, Santos, 2015; Santos et al., 2018). Esse dado é
relevante, uma vez que o ACS desempenha um papel central na Estratégia da
Saúde da Família, realizando, por meio das visitas em domicílios e educação
em saúde, a prevenção de doenças e agravos e a vigilância à saúde. Destacando
a importância do trabalho do ACS e a necessidade de maior investimento na
formação deste profissional, Costa et al (2013) afirmam que “(...) o ACS tanto
orienta a comunidade como informa a equipe de saúde sobre a situação das
famílias, principalmente aquelas em situação de risco, assumindo o papel de
sujeito articulador” (p.2155).

Considerando o trânsito entre o território e a unidade de saúde, este pro-


fissional é capaz de promover um intercâmbio de informações potencializado-
ras do cuidado: por um lado, o ACS possibilita que as necessidades de saúde
da população cheguem à ESF, promovendo a intervenção e, simultaneamente,
as informações sobre saúde são levadas às casas dos usuários. Neste sentido, o
ACS é um interlocutor entre a comunidade e os demais profissionais de saúde,
já que é parte essencial suas atividades conhecer as especificidades da comu-
nidade em que está inserido (Costa et al., 2013; Moura & Silva, 2015). Ao
estarem profundamente inseridos no cotidiano da comunidade, as relações in-

225
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

terpessoais que os ACS estabelecem são diferenciadas, pela dinâmica de maior


proximidade e igualdade o que potencializa as redes de apoio.

Considerações Finais

A partir dos trabalhos analisados, verifica-se que há um esforço de pes-


quisadores brasileiros em estudar a Atenção Primária em Saúde a partir da
perspectiva do usuário, buscando mensurar sua satisfação como um elemento
essencial na avaliação da APS. Foi possível verificar, ainda, que, apesar de
profissionais da saúde julgarem que a relação interpessoal é importante no es-
tabelecimento do cuidado, há lacunas na formação conceitual sólida para o seu
pleno exercício e desenvolvimento. Nesse sentido, o estabelecimento da rela-
ção interpessoal é permeado por diversas complexidades (como as relações de
poder, cartografia da saúde, noções de território, comunicação não-violenta),
que exigem conhecimentos teóricos e práticos. Entende-se, portanto, que é im-
portante investir na formação continuada dos profissionais da APS.

Destaca-se como desafio na construção da relação interpessoal na APS


diz respeito à alta rotatividade de profissionais da saúde, prejudicando, prin-
cipalmente, os portadores de doenças crônicas, como hipertensão arterial, dia-
betes, que necessitam de acompanhamento profissional constante e regular. As
orientações minuciosas do profissional de saúde aumentam a adesão ao trata-
mento e, consequentemente, sua efetividade. Neste sentido, a eficácia da APS
pode ser fragilizada pela rotatividade de profissionais.

A produção científica nacional analisada inclui a perspectiva do ACS,


figura essencial na ESF que tem como função propor um intercâmbio de in-
formações entre a comunidade e a unidade de saúde. É importante mais pes-
quisas que enfatizem a perspectiva do ACS, principalmente em relação a sua
importância na formação e fortalecimento do vínculo entre usuários e equipe

226
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

de saúde. Verificou-se também que a produção analisada inclui muito pouco a


perspectiva do usuário sobre o vínculo com a equipe e profissionais de saúde.

São necessários mais estudos que possibilitem um aprofundamento da


discussão sobre a relação interpessoal em relação à linguagem escrita que o
profissional adota. É importante que o usuário compreenda perfeitamente as
orientações terapêuticas escritas, que devem ser adequadas ao nível de ins-
trução do paciente, o que pode ser ampliado ao estudo dos registros escritos
em prontuários, importante para o estabelecimento de um vínculo ao longo do
tempo.

Por fim, o desenvolvimento da relação interpessoal na Atenção Primária


em Saúde ficou ainda mais relevante no contexto da pandemia da Covid-19
que, devido à orientação de afastamento social trouxe, com o retorno dos aten-
dimentos, a necessidade de se retomar e fortalecer o vínculo com os serviços
de saúde bem como de criar estratégias efetivas para restabelecer relações in-
terpessoais que respeitem a autonomia dos usuários e que promovam o melhor
cuidado em saúde possível. Para isso, é consenso na literatura que são necessá-
rios investimento em educação profissional e fortalecimento da Estratégia de
Saúde da Família a fim de que as lacunas deixadas, não apenas pelo período
pandêmico, mas pelo desinvestimento na atenção primária sejam revertidos.

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227
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

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228
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Ministério Da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a


Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para
a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

Moura, R. F. S. D., & Silva, C. R. D. C. (2015). Afetividade e seus sentidos no


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229
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

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230
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 16

O PRONTUÁRIO DO
PACIENTE NA ATENÇÃO
PRIMÁRIA EM SAÚDE:
UMA REVISÃO SOBRE A
CONTINUIDADE DA
INFORMAÇÃO E O REGISTRO
DE ASPECTOS PSICOSSOCIAIS
Barbara Yumi Brandão Sakane
Júlia Medeiros Pereira
Gabriela Rieveres Borges Andrade
Elenice Machado da Cunha
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-J

O prontuário do paciente é definido, de acordo com a Resolução CFM


nº 1.638/2002, como “Documento único constituído de um conjunto de
informações, de sinais e de imagens registradas, geradas a partir de fatos,
acontecimentos e situações sobre a saúde do paciente e a assistência a ele
prestada, de caráter legal, sigiloso e científico, que possibilita a comunicação

231
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

entre membros da equipe multiprofissional e a continuidade da assistência


prestada ao indivíduo” (CFM, 2002 p. 2). A resolução é válida para todos os
estabelecimentos de assistência à saúde, hospitalar e ambulatorial, público ou
privado. Contudo, nos serviços de Atenção Primária em Saúde (APS) do SUS
os registros em prontuários devem atender, também, a determinados requisitos
que dizem respeito ao modelo de atenção em voga.

AAPS, ou Atenção Básica (AB) é o conjunto de ações de saúde individuais,


familiares e coletivas que envolvem promoção, prevenção, proteção, diagnóstico,
tratamento, reabilitação, redução de danos, cuidados paliativos e vigilância
em saúde, desenvolvida por meio de práticas de cuidado integrado e gestão
qualificada, realizada com equipe multiprofissional e dirigida à população em
território definido, sobre as quais as equipes assumem responsabilidade sanitária
(Brasil, 2017, Art.2o).

No Brasil, a APS/AB é reconhecida como porta de entrada do atendimento


na Rede de Atenção à Saúde (RAS). Este nível de atenção se diferencia da Atenção
Secundária e da Terciária, caracterizadas por suas práticas especializadas,
por considerar, para além do cuidado aos indivíduos, as características do
território, identificando problemas de saúde mais frequentes e que demandam
ações de promoção e prevenção. Tal qual discorrido pela Política Nacional de
Atenção Básica (2012), as ações desenvolvidas devem ocorrer com alto grau
de capilaridade e descentralização, e serem orientadas pelos princípios da
universalidade, acessibilidade, vínculo, continuidade do cuidado, integralidade
da atenção, responsabilização, humanização, equidade e participação social.

Mendes (2015), corroborando os pressupostos de Starfield (2002)


enunciou que a concretização de uma APS de qualidade ocorre a partir da
operacionalização dos seus atributos essenciais, a saber: primeiro contato,
longitudinalidade, integralidade e coordenação. Cita também os atributos
derivados: focalização na família, orientação comunitária e competência

232
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

cultural. O atributo da longitudinalidade é considerado característica central


da APS e diz respeito ao acompanhamento do paciente por profissional de
referência na APS ao longo do tempo.

Cunha e Giovanella (2011) optam pelo termo ‘vínculo longitudinal’ e


o conceituam como o acompanhamento do usuário ao longo do tempo por
profissionais da equipe de APS para os múltiplos episódios de doença e também
para as ações de promoção e de prevenção. O conceito de vínculo longitudinal
abrange três dimensões: (1) identificação da Unidade Básica de Saúde (UBS)
como fonte regular de cuidados, (2) relação interpessoal entre profissionais da
APS e usuários e (3) continuidade da informação (Cunha e Giovanella ,2011).

A primeira dimensão discorre sobre o reconhecimento, por parte


do usuário, da unidade de saúde como referência para o a maior parte das
necessidades de cuidados de saúde. A dimensão da relação interpessoal versa
sobre o relacionamento dos sujeitos indicados, valorizando a promoção e a
autonomia do usuário, por meio do diálogo aberto e respeitoso. A terceira
dimensão, ocupa-se da qualidade dos registros/prontuários em saúde, seu
manuseio e disponibilização. Compreende-se que a continuidade da informação
está associada ao acúmulo de conhecimentos acerca da situação de saúde e vida
do usuário, o que acarreta na adoção de condutas terapêuticas mais assertivas.

Como afirmado por Fernandes (2009) o fortalecimento da ESF, que


é o modelo organizativo prioritário para a AB no Brasil, tende a reduzir
significativamente as taxas de internação por condições sensíveis ao
acompanhamento na APS e diminuir taxas de mortalidade prematura por causas
evitáveis. Para além disso, Cunha e Giovanella (2011) apontam a familiaridade
da equipe multiprofissional com as vivências dos sujeitos em suas comunidades,
como fator que oportuniza uma boa relação terapêutica entre profissionais-
usuários, marcada por responsabilidade e confiança.

233
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Cunha e Giovanella (2011) pontuam que os registros acerca da saúde


do usuário devem incluir características sociodemográficas, valores e situação
familiar. Tais características influenciam na condição de saúde do sujeito e
podem ser empecilhos para a adesão às recomendações. Contudo, em caso
de predominância do modelo biomédico em detrimento de um olhar mais
abrangente e integral para o paciente, queixas psicossociais, quando ouvidas
pelos profissionais, podem ser menos resgistradas.

Sendo assim, o presente estudo tem por objetivo discutir os registros em


prontuários na APS no SUS com foco nos aspectos psicossociais e sob quais
perspectivas tais aspectos têm sido abordados.

Aspectos metodológicos

Para atender ao objetivo proposto foi realizado estudo de revisão de


artigos publicados em revistas indexadas na plataforma Scientific Electronic
Library Online (SciELO Brasil) entre os anos de 2008 a 2020. Justifica-se tal
recorte temporal tendo em vista que o ano de 2006 foi marcado pela aprovação
da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), fortalecendo perspectivas
de ampliação da cobertura e mudança de modelo, supostamente superando
o domínio do modelo biomédico. Entendeu-se que a partir de 2008 foram
publicadas um volume de produções consideráveis e significativas, dado o
estabelecimento das ações da Atenção Básica.

A busca ocorreu entre os meses de março a junho de 2021. Foram aplicados


os filtros: “Todos os índices”, “Brasil” e, posteriormente, selecionados os anos
do período definido (2008-2020). Os descritores utilizados e os respectivos
resultados foram: “continuidade da informação e atenção primária” (3), “atenção
primária e prontuário” (33), “atenção básica e prontuário” (17), totalizando 53
artigos.

234
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Finalizada a busca foi efetuada leitura dos títulos, o que possibilitou a


identificação de 16 artigos repetidos. Após a exclusão destes procedeu-se a
leitura dos resumos; nesta etapa foram excluídas as revisões de literatura, os
artigos que não tinham o prontuário como objeto de análise e também duas
produções que tinham por enfoque o cuidado em outros países, chegando-se
ao quantitativo de 25 artigos para leitura na íntegra e análise em profundidade.
Após a leitura, foram selecionados 10 artigos para análise, tendo como base a
centralidade que a questão do prontuário teve para o estudo, seja como foco
principal, seja na discussão. Os artigos excluídos após a leitura foram em
decorrência da ausência de foco nos registros em geral, embora alguns desses
artiogos contemplassem contribuições pontuais importantes sobre o prontuário,
ressaltando a importância do seu papel para a gestão, para a coordenação do
cuidado ou para o cuidado.

Os dez artigos selecionados foram analisados em relação aos temas


abordados e aos principais achados sobre prontuário e continuidade da
informação na APS. Os artigos foram revisados na íntegra com destaque para o
objetivo, métodos aplicados, local e população do estudo. Por fim, discutiu-se
o registro de aspectos psicossociais no prontuário como questão que carece de
estudos mais aprofundados.

Resultados

Os artigos revisados se utilizaram de diferentes abordagens e população


de estudo. Chama a atenção os diferentes termos e tipos de prontuários que
os estudos abordam. Aparecem nos estudos “prontuário familiar”, “prontuário
do paciente”, “prontuário da família”, “prontuário eletrônico”, “prontuário da
Atenção Básica” ou apenas “prontuário”. Os diferentes termos usando indicam
que a discussão sobre prontuário tem se modificado de acordo com algumas

235
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

mudanças concretas que podem ser resumidas em dois pares: prontuário


individual e prontuário da família e prontuário “em papel” e prontuário
eletrônico.
Sob o aspecto geográfico, a maioria dos estudos foi desenvolvido na
região Sudeste (8), um estudo foi desenvolvido em estados da região Norte,
um na região Nordeste e um na região Sul. Seis artigos tinham os registros em
prontuário como principal objeto de estudo, um utilizou o prontuário como fonte
de dados (Pinto & Santos, 2020) e três tinham outros temas, como absenteísmo
(Gonçalves et al., 2015), vigilância do território na atenção primária (Pedebos
et al., 2018) e coordenação do cuidado (Ribeiro & Cavalcanti, 2020) (quadro
1).

Quadro 1: Artigos segundo objetivos, método, população e local do estudo

Tipo de estudo
Título/ População/local
Objetivo / estratégia
Autoria/ano do estudo
metodológica

1. O uso do
Avaliação do 88 unidades de
prontuário familiar
prontuário saúde em 16
como indicador de
familiar por municípios dos
qualidade da atenção Estudo descritivo.
equipes de estados do Amapá,
nas unidades básicas
saúde da Pará, Maranhão e
de saúde.
Família. Tocantins.
Pereira et al. (2008)

2. Registros em
Quatro municípios
saúde: avaliação
com mais de 100
da qualidade do
mil habitantes no
prontuário do Avaliação dos
Estudo descritivo Estado do Rio de
paciente na atenção registros dos
exploratório Janeiro. Mulheres
básica, Rio de atendimentos.
maiores de 19
Janeiro, Brasil.
anos, hipertensas e
Vasconcellos et al.
diabéticas.
(2008).

236
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Analisar o
prontuário
da família e
identificar a
3. O prontuário da “percepção” da
Duas unidades
família na perspectiva equipe de saúde
Estudo descritivo de saúde de um
da coordenação da frente a sua
com abordagem município do
atenção à saúde. sistematização,
qualitativa Estado de São
Santos & Ferreira uso e
Paulo.
(2012). importância
para a
coordenação e
qualificação da
atenção.

4. Prontuário
Médicos,
Eletrônico: uma Investigar a
enfermeiros e
ferramenta que pode existência e a Estudo
cirurgiões-dentistas
contribuir para a acessibilidade quantitativo,
das equipes de
integração das Redes ao prontuário descritivo e
Saúde da Família.
de Atenção à Saúde. eletrônico na exploratório.
Montes Claros
Gonçalves et al. APS.
(MG)
(2013)

Verificar a
concordância
5. Informações dos entre as Estudo descritivo
cartões de gestantes informações -análise das
e dos prontuários da do cartão da informações Puérperas. Vitória
atenção básica sobre gestante e do s dos cartões (ES).
assistência pré-natal. prontuário da das gestantes e
Polgliani et al. (2014) APS sobre prontuários
a assistência
pré-natal

237
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

6. Estratégias para
Analisar
o enfrentamento
os motivos
do absenteísmo
das faltas Amostra consistiu
em consultas Estudo
às consultas de 385 usuários
odontológicas nas quantitativo,
odontológicas de 12 USF de
Unidades de Saúde descritivo e
em Unidades Piracicaba/SP,
da Família de um exploratório –
de Saúde da entrevistas com 12
município de grande entrevistas por
Família e cirurgiões-dentistas
porte: uma pesquisa- telefone
implementar e 12 enfermeiras.
ação.
estratégias para
Gonçalves et al.
sua redução.
(2015)

Identificar
fragilidades
no processo Realizado
de trabalho cruzamento
7. A vigilância dos Agentes de dados de
do território na Comunitários dois sistemas
atenção primária: de Saúde (ACS) de informação
UBS de
contribuição do e a percepção (prontuário
Florianópolis (SC).
agente comunitário de importância eletrônico e
na continuidade do dada por eles cadastro das
cuidado. sobre as ações famílias) e
Pedebos et al. (2018) em vigilância aplicação
do território questionário aos
para o trabalho ACS.
da equipe de
saúde.
8. Prontuários
eletrônicos na
Estudo transversal
Atenção Primária:
de base Portadores
gestão de cadastros Analisar os
populacional, de hipertensão
duplicados e registros
Análise dos e diabetes.
contribuição eletrônicos da
registros Município do Rio
para estudos APS
eletrônicos da de Janeiro –
epidemiológicos.
APS
Pinto & Santos
(2020)

238
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Investigar
9. Atenção Primária a visão dos Profissionais de
e Coordenação do profissionais duas equipes de
Pesquisa
Cuidado: dispositivo de saúde a APS que atuam
qualitativa –
para ampliação do respeito da em territórios com
entrevistas com
acesso e a melhoria coordenação do vulnerabilidades e
profissionais da
da qualidade. cuidado na APS desigualdades na
APS
Ribeiro e Cavalcanti e os desafios cidade do Rio de
(2020) frente ao seu Janeiro
exercício.

10. Validade e Comparar as


Concordância informações
do registro em pertencentes a Estudo
Idosos do
prontuário do uso de prontuários de observacional
município de
serviços da Rede de UBS de Saúde transversal de
Alfenas (MG).
Atenção à Saúde por da Família com base populacional
idosos. o autorrelato do
Rocha et al. (2020) uso dos serviços

Destaca-se, para o conjunto dos artigos, os impactos positivos que o bom


uso dos prontuários podem trazer para a atenção em saúde, tais como facilitação
da comunicação entre os pontos de atenção, aumento da produtividade do
serviço e da satisfação dos usuários (Gonçalves et al., 2013), melhoria da relação
usuário-profissional, apoio na discussão de casos, integração entre a equipe
(Gonçalves et al., 2015), potencialização do acompanhamento longitudinal, da
coordenação do cuidado e da integralidade (Rocha et al., 2020).

Em relação à continuidade da informação, embora alguns artigos não


tratassem diretamente do tema, abordavam aspectos concernentes ao prontuário
que facilitam ou dificultam o alcance do atributo (quadro 2). Alguns artigos
apontavam os desafios na utilização dos prontuários, como a falta de integração

239
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

dos prontuários entre os diferentes pontos da rede de saúde (Pedebos et al., 2018;
Ribeiro & Cavalcanti, 2020), problemas no armazenamento e duplicidade de
cadastros (Pinto & Santos, 2020) e não padronização dos registros (Rocha et al.,
2020). Os estudos indicaram também a existência de anotações ilegíveis, dados
incompletos, com informações sucintas ou impossíveis de serem interpretadas
(Gonçalves et al., 2013; Ribeiro & Cavalcanti, 2020).

Quadro 2: Achados sobre continuidade da informação nos artigos revisados

Autoria/ano
Achados relacionados à continuidade da informação
publicação

O prontuário familiar possibilita a detecção de riscos que a


família corre na esfera psicossocial, ao conter informações
como história psicossocial e condição de moradia e
saneamento. Em 26% das unidades o prontuário familiar não
1. Pereira et al.
era utilizado e as razões apontadas foram a falta de materiais
(2008).
impressos e a não capacitação dos profissionais. Quanto
ao preenchimento adequado, 35% dos prontuários foram
avaliados como estando em conformidade com os critérios
de qualidade.

Verificou-se que os registros de características do processo de


atendimento em mulheres, hipertensas e diabéticas, ficaram
2. Vasconcellos et longe das proposições do Ministério da Saúde. Ém Também
al. (2008). foi constatado baixa registro de atributos sociais,como
escolaridade e situação familiar; somente metade dos
prontuários possuía registro da data de abertura.
As equipes faziam uso de dois registros: prontuário individual
e da família. Os profissionais reconheceram o impacto
do uso do prontuário familiar mas indicaram o pouco uso,
substituindo-o pela comunicação verbal durante as reuniões
3. Santos &
de equipe. Nas unidades visitadas, o ACS era quem mais
Ferreira (2012).
consultava o prontuário da família. Observou-se pequena
padronização do registro da informação, da classificação e
do arquivamento dos prontuários, além de pouco uso de seu
conteúdo informacional.

240
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

O prontuário eletrônico (PE) não era utilizado como


ferramenta de gestão nas UBS pesquisadas. O estudo aponta
para as vantagens do uso do PE, tais como a redução de papéis
4. Gonçalves et al. arquivados, facilitação da comunicação entre os pontos de
(2013). atenção, aumento da produtividade do serviço e da satisfação
dos usuários. Foram apontados empecilhos para a utilização
do PE, dentre eles, o custo de implantação e a necessidade de
capacitação dos profissionais.

Foram encontradas variações nos registros sobre a assistência


pré-natal conforme a fonte da informação. O prontuário
5. Polgliani et al.
da Atenção Básica foi subutilizado como instrumento
(2014).
de intercomunicação entre os profissionais de saúde,
evidenciando a precariedade dos registros.

O motivo de falta mais prevalente foi a coincidência do horário


de funcionamento das unidades com o de trabalho dos usuários.
A educação permanente nas reuniões de equipe, capacitação
dos ACS e a adoção de prontuário único foram algumas das
estratégias adotadas para reduzir o absenteísmo. As estratégias
reduziram as faltas em 66,6% . O uso do prontuário não foi
6. Gonçalves et al.
visto como decisivo para diminuir absenteísmo, mas como
(2015).
possibilitador de vínculo entre profissional e usuário; como
motivação para o cirurgião-dentista conhecer o histórico do
usuário e promover sentimento de confiança. Além disso,
facilitaria a discussão de casos promoveria a integração entre
os membros; viabilizaria ainda, em caso de transferência
para outra unidade, o encaminhamento de dados.
O estudo aponta que, apesar de a vigilância do território estar
presente no discurso dos ACS, as fragilidades no processo de
trabalho e na comunicação com a equipe são agravadas pela
existência de sistemas de informação desconexos. Os ACS
agregam informações no Sistema de Cadastro de Família
7. Pedebos et al.
e a atividade de preenchimento do prontuário eletrônico
(2018).
é atribuída aos profissionais de nível superior e técnicos
de enfermagem. Os dois sistemas não são interligados, o
que facilita a discrepância de informações. Ainda que as
reuniões de equipe possibilitem a troca de informações, são
insuficientes para a vigilância e discussão de todos os casos.

241
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

O estudo utilizou registros dos prontuários eletrônicos


para o cálculo de prevalências de doenças crônicas com
8. Pinto & Santos base populacional de uma área de planejamento da cidade,
(2020). demonstrando a necessidade de monitoramento periódico
e gestão regular dos “cadastros de usuários duplicados” na
APS para o cálculo de indicadores de saúde mais fidedignos.

Os desafios da coordenação do cuidado são a superação


da fragmentação da rede, a baixa oferta de vagas para
especialistas, a frágil comunicação entre os serviços, o
prontuário eletrônico (PE) não integrado, a baixa qualificação
9. Ribeiro e profissional e o desconhecimento do papel da APS pelos
Cavalcanti (2020). outros serviços. A não integração dos PE às demais unidades
e níveis assistenciais mostrou-se como desafio à continuidade
informacional e coordenação, dada a dificuldade de acesso
às condutas, exames e diagnósticos realizados nos outros
serviços.

O estudo indicou baixa concordância entre o uso do serviço de


saúde autorrelatado e registros em prontuário, apontado como
uma das possíveis causas da fragmentação da continuidade
10. Rocha et al.
do cuidado. Os autores concluem que a padronização dos
(2020).
registros, através da implantação do PE, potencializaria o
acompanhamento longitudinal, a coordenação do cuidado e
a integralidade.

Em relação aos registros de aspectos psicossociais, dois artigos discorre-


ram sobre a importância do registro da história psicossocial, condição de mo-
radia, saneamento (Pereira et al., 2018) e da situação familiar, escolaridade e
ocupação (Vasconcellos et al., 2008). A pesquisa de Pereira et al. (2008) apon-
tou que a detecção de riscos que o grupo familiar tem na esfera psicossocial
possibilita a prevenção da saúde e o acompanhamento de alterações da fun-
cionalidade familiar. Tais registros, quando encontrados, foram considerados
insuficientes. O prontuário familiar foi destacado como fundamental para o
cuidado na esfera psicossocial (Gonçalves et al., 2013) e a falta de materiais

242
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

impressos e a não capacitação dos profissionais foram consideradas barreiras


para a utilização do prontuário familiar (Pereira et al., 2018).

Discussão

A continuidade da informação refere-se ao registro adequado e à


organização da informação médica e social de cada paciente permitindo a
conexão de informação entre diferentes profissionais para a condução do cuidado
ao longo do tempo, o que é concretizado a partir dos registros no prontuário do
paciente.

O preenchimento precário das informações nos prontuários dificulta


o reconhecimento da história clínica de usuários e familiares o que, por sua
vez, pode vir a comprometer o cuidado ofertado (Barros & Botazzo, 2011).
Nesta direção, Santos e Ferreira (2012) e Pedebos et al. (2018) apontam que as
informações do prontuário acabam sendo substituídas pela comunicação verbal,
por meio das reuniões de equipe, e que estas são insuficientes para garantir a
qualidade na vigilância do território e a discussão de todos os casos. É preciso
também considerar que somente registros fidedignos, completos e organizados
garantem a continuidade da informação e do cuidado adequado ao paciente em
caso de rotatividade dos profissionais da APS.

Outro aspecto importante a ser destacado sobre o prontuário é a


informatização. O Sistema Único de Saúde (SUS) conta com o Sistema de
Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB), instituído pela Portaria
Nº 1.412, de 10 de julho de 2013. O SISAB é operacionalizado pela estratégia do
Departamento de Atenção Básica, denominada e-SUS Atenção Básica (e-SUS
AB), que é composta pelos sistemas de software Coleta de Dados Simplificado
(CDS) e Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC).

243
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

O prontuário eletrônico tem sido implementado pelos sistemas locais de


saúde e é ferramenta fundamental para apoiar as decisões tomadas no processo
clínico, pois padronizam as informações que geralmente são pouco estruturadas
e complexas. O registro eletrônico implantado em toda a rede de atenção,
mostra-se como um “instrumento poderoso para garantir a coordenação da
atenção à saúde” (Mendes, 2015, p. 108).

A continuidade da informação abrange, portanto, o bom uso dos registros


escritos e dos prontuários de saúde. Neste sentido, faz-se importante localizar
o debate sobre o prontuário médico e o prontuário familiar. Na perspectiva
do cuidado aos indivíduos e famílias, quando opta-se pelo prontuário familiar
procura-se avançar no sentido da compreensão do contexto familiar. As
equipes da APS devem inserir em suas ações a avaliação e a compreensão
do contexto familiar para tomar decisões clínicas e para desenvolver ações
mais assertivas no território. Assim, o prontuário familiar é sinalizado como
ferramenta fundamental pois engloba registros dos diferentes saberes e práticas
dos profissionais integrantes da equipe de saúde e auxilia no processo de
transparência dos procedimentos e na eficácia da atenção ao usuário (Mesquita
& Deslandes, 2010; Demarzo, Oliveira & Gonçalves, 2011).

O prontuário eletrônico, apontado como uma solução para muitos dos


problemas sinalizados, tem como empecilhos para sua utilização o custo
de implementação e a necessidade de capacitação. A informatização e os
prontuários em plataforma eletrônica parecem não ter resolvido muitos dos
problemas de integração e de comunicação (entre sistemas e entre a equipe),
e de incompletude de dados. Logo, pode não ter impactado positivamente na
continuidade da informação e do cuidado.

O registro dos aspectos psicossociais abrange as crenças, valores e


modos de vida dos sujeitos, a dinâmica familiar e das relações sociais, os

244
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

medos e ansiedades sobre sua doença ou problemas de saúde, escolaridade, as


modificação dos papéis sociais ao longo da vida, aspectos da história de vida,
as particularidades do ambiente e os fatores de risco ambientais e ocupacionais
(Cade, 1998; Caprara & Rodrigues, 2004).

Considerações Finais

No presente levantamento não foram encontrados estudos que trataram


especificamente do registro de aspectos psicossociais nos prontuários da APS.
Podemos inferir que as publicações acerca do tema são escassas, ainda que
haja concordância sobre a importância desses aspectos para um atendimento
mais efetivo e integral. O levantamento indicou também que ainda há poucos
estudos sobre prontuário do paciente e continuidade da informação em outras
regiões que não a região Sudeste.

Dificuldades no registro de dados dos pacientes em prontuários de papel


não foram plenamente superadas com a implementação do prontuário eletrônico.
A instalação de recursos tecnológicos apresenta percalços como a dificuldade
de acesso à internet em algumas localidades e a ausência de capacitação dos
profissionais para o uso efetivo dos recursos. A produção e o compartilhamento
de informações sobre as condições de saúde dos usuários, famílias e territórios
entre a rede de saúde viabiliza estudos epidemiológicos, construção de vínculos
de confiança com a equipe, tomadas de decisão mais assertivas, dentre outras
possibilidades.

Considera-se, portanto, que são necessários mais estudos e discussões


sobre a temática do registro da informação, considerando a necessidade de
melhoria contínua do atendimento e de conhecimento das realidades locais.

245
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

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248
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 17

DESAFIOS DA SAÚDE DA
POPULAÇÃO NEGRA: REDE
HUMANIZASUS NO
ENFRENTAMENTO AO RACISMO
Elizandra dos Santos Razera
Catia Paranhos Martins
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-K

Considerações sobre as Relações Étnico-Raciais


no Sus

O presente estudo, estruturado a partir de nossa Iniciação Científica em


Psicologia Social e Saúde Coletiva (PIBIC/UFGD1), tem por objetivo levantar
subsídios para um debate ético sobre marcadores raciais que desnaturalizam a
representação social da branquitude como identidade racial normativa, cujos
efeitos atravessam a dimensão da vida e da saúde das populações negras e
indígenas. Para a discussão, traremos elementos da luta antirracista na qual
levamos nossa escuta e olhares comprometidos, compreendendo que não parti-
mos do mesmo lugar de legitimação de fala da população negra, mas que pode-
1 Nosso agradecimento ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da UFGD,
bolsa CNPq, no período de 01/10/2021 a 01/12/2021.

249
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

mos ser agentes de transformação nas estruturas e práticas discriminatórias que


acontecem nos serviços de saúde. O estudo está ancorado na experimentação
do espaço democrático que a Rede HumanizaSUS nos proporciona, tal como
discutiremos a seguir.

Para tanto, partiremos da apreciação dos estudos críticos sobre a branqui-


tude no Brasil que nos apontam que este conceito/construto social é fruto de
um processo sócio-histórico que se inicia com o projeto de colonização, melhor
dizendo, um produto da dominação colonial europeia. A saber:

[...] este processo desencadeou a escravidão, o tráfico de africanos para o


Novo Mundo, a colonização, as formações e construções de novas nações
e nacionalidades em toda a América e a colonização da África. Portanto,
são nesses processos históricos que a branquitude começa ser construída
como constructo ideológico de poder, em que os brancos tomam sua iden-
tidade racial como norma e padrão, e dessa forma outros grupos aparecem
ora como margem, ora como desviantes, ora como inferiores (Schucman,
2020, p. 54).

Deste modo, podemos pensar a branquitude como uma força nos espaços
de poder em instituições que atuam com a formação de uma supremacia branca
responsável pela dominação de outros grupos raciais. Partindo desse pressu-
posto, mesmo que existam ações institucionalizadas, engajadas em combater
disparidades raciais na construção de políticas em saúde, buscando equidade
racial em consonância com os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS),
mesmo sendo orientadas por leis, portarias e resoluções nos parecem não trans-
formar as estruturas, as práticas e as subjetividades. Melhor ilustrando, quando
uma política “para negros” é conquistada pelos movimentos sociais e acessa as
instituições, inevitavelmente a mesma se dilui e se transforma em uma política
“para todos” ou uma política “social”. Como afirma Maria Aparecida da Silva
Bento (2016, p. 20), “isso tem feito com que a mudança de condições de vida
da população negra seja menor e tenha um impacto insignificativo nas estatís-

250
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

ticas”. Para a autora, isso acontece devido ao perfil de quem ocupa os espaços
de decisão das políticas de combate ao racismo e promoção da igualdade racial,
ser majoritariamente tomado por pessoas brancas, em sua maioria homens, que
se organizam na direção da manutenção de privilégios materiais e simbólicos,
subjugando corpos negros e indígenas às margens das políticas públicas, acen-
tuando para populações racializadas um lugar de desprivilegios.

O professor Kabenguele Munanga (2004) vai nos dizer que os conceitos


e as classificações servem de ferramentas para operacionalizar o pensamento.
Assim, o conceito de raça e a classificação da diversidade humana em raças
teriam algum sentido. Como salienta, infelizmente, em sociedades estruturadas
pelo racismo, tais classificações, desembocam numa operação de hierarquiza-
ção para legitimar as relações de dominação e de sujeição entre classes sociais
que pavimentaram o caminho do racialismo no Brasil. Tavares & Trad (2021),
apontam que as políticas de saúde no Brasil são racializadas, portanto, pen-
sadas com base em critérios, diagnósticos e tratamentos universais que tem a
população branca como padrão de adoecimento e normalidade, se organizando
a partir da noção da branquitude, sendo este o principal fator social/histórico
causador de estressores e sofrimentos de grupos racializados.

Partindo dessa reflexão, Maria Inês Barbosa (1998, p. 100), afirma que
a maioria das doenças que atingem a população negra é a mesma que atinge
a maioria da população em geral. O que diferencia é seu perfil mais crítico de
saúde, recorrente a diferentes contextos históricos que são pautados na discri-
minação e no racismo, confluindo, assim, na negação de direitos.

Para instrumentalizar a construção de políticas e programas voltados para


o combate de desigualdades na saúde se faz necessário cruzarmos marcadores
sociais como raça/etnia, gênero e classe com indicadores de saúde. Assim, in-

251
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

formações sobre a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS, 2013), apresentadas na


Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN, 2017), nos
alerta que a população negra ainda tem menos acesso à saúde quando compa-
rada à população branca. Entre as mulheres, os cuidado com a saúde foi mais
observado entre as mulheres brancas (66,2%) e com ensino superior completo
(80,9%). As menores proporções foram observadas entre as mulheres pretas
(54,2%), pardas (52,9%) e sem instrução ou com ensino fundamental incom-
pleto (50,9%).

Segundo relatório da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) de 2005,


“Saúde da População Negra no Brasil: Contribuições para a Promoção da Eqüi-
dade”- fatores externos como segregação e violência presentes no meio am-
biente que exclui e nega o direito natural de pertencimento, determina condi-
ções especiais de vulnerabilidade. Outro aspecto que se faz importante para
contextualizarmos a saúde racializada é notado pela Política Nacional de Saú-
de Integral da População Negra (PNSIPN) quando aponta os fatores externos
como principais causadores de mortes de homens negros e mulheres negras.
Esses dados revelam que no grupo de causas externas, o risco de morte dos
homens foi 3,3 vezes maior que o das mulheres na raça/cor branca, 2,8 vezes
maior na indígena e de 6,3 vezes maior na negra. (PNSIPN, 2017).

De acordo com os dados acima, há um descompromisso político com


os grupos citados, representando uma união com interesse na manutenção de
privilégios dos grupos majoritariamente compostos por pessoas brancas que
permanecem no poder de decisões institucionais. A racialidade branca, enten-
dida aqui como branquitude, é um elemento oculto que interfere diretamente
na ação de gestores na materialização de políticas para grupos socialmente
indesejados. O que corrobora com a reflexão de Lia Vainer Schucman (2014),
sobre a branquitude ter seu principal pilar de sustentação nas relações de poder,

252
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

sendo assim, uma condição cunhada para conquista e manutenção do poder


simbólico e material/concreto. Dessa maneira, percebemos certa morosidade
na tessitura das políticas de saúde voltadas para população negra e indígena,
configurando uma exclusão moral que se traduz na desvalorização do outro
como pessoa, tornando-o indigno para tal, assim, passível de ser explorado e
prejudicado de variadas formas.

Maria Aparecida da Silva Bento (2002) traz um importante aspecto sobre


a branquitude - o “pacto narcísico entre a branquitude”. O termo cunhado pela
psicóloga vai evidenciar o silêncio e a cumplicidade entre as pessoas brancas
quando negam o racismo cotidiano e se esquivam de suas responsabilidades
pelas desigualdades raciais. Esse pacto implica a negação do outro e a desauto-
rização de sua fala. Está presente nas práticas racistas que ocorrem por interes-
se, como uma proteção que elege um discurso de saber, uma postura defensiva
pensando na manutenção de privilégios raciais. Para a autora, existe um medo
da perda desses privilégios e de responsabilização pelas desigualdades raciais
que constituem o substrato psicológico, gerando a projeção do branco sobre o
negro, carregada de negatividade.

A partir desses apontamentos, percebemos o racismo como determinante


social em saúde e procuramos explorar o cenário de atravessamentos políticos
nas relações étnico-raciais que poderiam influenciar o fazer em saúde para a
população racializada no território brasileiro.

Cenário Necropolítico no Âmbito da Saúde e seus


Efeitos

Uma das maneiras de se reconhecer a necessidade de superação das bar-


reiras institucionais que reforçam e mantêm o racismo no cotidiano do SUS é
a implementação de políticas de ações afirmativas que configurem caminhos

253
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

para garantir a promoção da equidade em saúde. No entanto, a ideia é que es-


sas ações possam ser instituídas de maneira efetiva no combate as iniquidades
em saúde, sendo essas, constituídas com bases históricas de desigualdade so-
cioeconômicas e culturais. Para o debate, importa pensar em que medida estas
políticas estariam em consonância com a realidade de populações afetadas pelo
racismo no âmbito da saúde pública.

Para tanto, partiremos do entendimento da importância da Política Nacio-


nal de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) que foi instituída como
política de Estado em 2009, pelo Ministério da Saúde por meio da Portaria GM/
MS nº 992, preconizando:

[...] o combate às desigualdades no Sistema Único de Saúde (SUS) e na


promoção da saúde da população negra de forma integral, considerando
que as iniquidades em saúde são resultados de injustos processos socioe-
conômicos e culturais – em destaque, o vigente racismo – que corrobo-
ram com a morbimortalidade das populações negras brasileiras. (PNSIPN,
2017).

O processo de implementação desta Política simboliza um árduo caminho


do movimento negro, especificamente de mulheres negras, desde a redemocra-
tização do País, representando uma trajetória de lutas e reivindicações deste
movimento e de tantos outros e outras atrizes e atores sociais. Para além da
importância da PNSIPN, devemos pensar se estão sendo colocadas em prática
ou não no cotidiano do fazer em saúde, mesmo cientes que a estrutura das insti-
tuições está pautada historicamente nas formas de dominação colonial. Aqui, é
importante ressaltar o quanto o sistema de opressão do racismo está, sobretudo,
nas relações de poder sustentadas pelo capitalismo, herança essa deixada pelo
colonialismo.

O racismo é constitutivo de uma estrutura de normalização e compre-


ensão das relações, sendo estrutural e estruturante das relações sociais e da
formação dos sujeitos (Almeida, 2018). No Brasil, ninguém se declara racista,

254
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

embora vivêssemos em uma sociedade enraizada pelo racismo, expressando


permanentemente nossa condição social estruturalmente racista. Para Lia Vai-
ner Schucmn (2014), “o racismo e a ideia falaciosa de raça, construída no sé-
culo XIX, ainda fazem eco nos modos de subjetivação de indivíduos brancos”
e é decorrente da nossa própria estrutura social e flui nas relações políticas,
econômicas, jurídicas e também nas relações familiares.

Sendo assim, a estrutura institucional do racismo é vivenciada e apre-


endida de maneira subjetiva, desde as primeiras experiências institucionais.
Deste modo, considerando a saúde da população negra brasileira e as práticas
de racismo que acontecem no cotidiano da rede SUS, é importante compreen-
dermos o viés racial que está implícito nessa estrutura institucional. Por vezes,
as práticas são discriminatórias e se dão, ora por desconhecimento de políticas
como direito, ora por manutenção de privilégios materiais e simbólicos. Tendo
em vista que a maior parte destes atores e atrizes que constroem o cotidiano do
SUS, idealizam a brancura2 como norma, um padrão corpóreo que se constitui
a partir de características físicas, bem como todo poder simbólico que essa ide-
alização representa.

Como dito anteriormente, questões de raça, gênero e classe se cruzam


e evidenciam ainda mais a condição de opressão existente em torno da popu-
lação racializada. Dados apontam que as mulheres negras costumam receber
em média menos tempo de atendimento médico que mulheres brancas e que
compõem 60% das vítimas da mortalidade materna no Brasil. Além disso, so-
mente 27% das mulheres negras recebem acompanhamento durante o parto, ao
contrário dos 46,2% das mulheres brancas; e 62,5% das mulheres negras rece-
beram orientações sobre a importância do aleitamento materno, preteridas em

2 Idealização do padrão de existência a partir da cor branca da pele. Segundo Luciana Alves “[...]
“uma construção do branco como grupo privilegiado e como ideal ético, estético, econômico e edu-
cacional a ser alcançado pelos sujeitos” - Significados de ser branco – a brancura no corpo e para
além dele – Dissertação de mestrado – Luciana Alves. (Alves, 2010, p.7)

255
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

favor dos 77% das mulheres brancas. (Arraes, 2014). Nesse sentido, é inegável
que o racismo afeta a saúde e a qualidade de vida das mulheres negras, desde as
formas de atendimentos na rede de saúde, até a maneira como são construídas
as políticas de saúde. Se analisarmos a questão do aborto sob uma ótica racial,
mulheres negras e indígenas traçam o perfil de mulheres em maior risco de óbi-
to por aborto, sendo este um problema de saúde pública no Brasil (Cardoso et
al, 2020). Sabemos bem que o aborto e a decisão por fazê-lo, geram diferentes
significados para mulheres indígenas, negras e brancas.

A Pesquisa Nacional de Demografia da Saúde (2006) revela números


alarmantes no que diz respeito ao acesso de mulheres negras a exames de ro-
tina, como preventivos e consultas de pré-natal se comparada com mulheres
brancas. O estudo aponta que algumas mulheres nunca realizaram tais exames
e confirmam que o número de histerectomias realizadas é maior nas mulheres
negras do que nas brancas. O fato evidencia o controle populacional velado,
comprovando que o racismo é um determinante no acesso à saúde e que inter-
fere diretamente nos processos de adoecimento e morte, tornando-se assim, um
mecanismo necropolítico.

A saber, necropolítica, como conceito cunhado pelo filosofo camaronês


Joseph-Achille Mbembe (2016), pode ser entendido por um fenômeno que ca-
racteriza formas e lógicas coloniais nos diferentes modos de articular o poder
exercido em relação aos corpos, justificando formas de dominação e sujeição
para corpos ditos inimigos, estando além de uma única ideia de poder aplicada
institucionalmente ou juridicamente.

Seu exercício está no movimento de dominação e na expansão da lógica


colonial das relações e, portanto, no cotidiano da saúde no Brasil. Não se trata
mais do “fazer morrer e deixar viver”, uma expressão foucaultiana de biopolí-
tica que percebe as múltiplas formas de dominação, estabelecidas de maneira

256
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

muito distinta, nos desdobramentos e aperfeiçoamentos do capitalismo em suas


formas de sujeição, e em seus diferentes modos de exercício do poder discipli-
nar sobre os corpos. Essas formas de poder se articulam de maneira silenciosa,
atendendo e reforçando a história, porém, modificando o modo de exercer o po-
der ao passar dos tempos. No contexto necropolítico, trata-se de pensar a morte
como gestão política, ou seja, não se trata mais de sustentar formas de vidas
indesejáveis e silenciadas, mas produzir mecanismos de controle e burocracias
como uma maneira silenciosa de matar corpos racializados, nos mais variados
contextos. Assim, certos grupos que estão no poder soberano das instituições
(em sua maioria homens brancos) poderiam decidir “quem pode viver e quem
deve morrer”, parafraseando Mbembe.

Assim, o déficit de atenção na saúde, saneamento, segurança pública se-


rão notados em lugares específicos, racializando determinados grupos e con-
figurando a produção da morte quando se oferece apenas condições mínimas
para a sobrevivência de populações indesejadas. Não há evidencia maior do
cenário necropolítico atual do que a invisibilidade de alguns grupos quando
acessamos o documento do Ministério da Saúde PNS 2020-2023, cujo delimita
muito bem os objetivos da atual política no Brasil. Nele, verificamos que não
existe um direcionamento das políticas em saúde com base nas diretrizes do
SUS e tão pouco propostas detalhadas acerca de políticas voltadas para a popu-
lação negra, indígena, LGBTQIA+ e pessoas com deficiência. Há insuficiência
de políticas específicas para mulheres negras e indígenas, diluindo-as em seus
grupos. Além disso, não contempla ações de saúde necessárias para o enfren-
tamento da Covid-19 e as demandas decorrentes da pandemia. Essas ausências
nos falam sobre o apagamento intencional de conquistas desses grupos no do-
cumento atual, situando-os às margens das políticas públicas em saúde.

257
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Sobre o Afetamento em Navegar na Rede


Humanizasus

A partir dos apontamentos sobre os desafios que a Saúde apresenta à po-


pulação negra, ancoramos a discussão na experiência em navegar pela Rede
HumanizaSUS3 (RHS). A RHS é um ambiente virtual, uma rede de apoio, um
espaço de vivências, trocas e debates sobre os desafios em fazer saúde no cole-
tivo. É um dos dispositivos da Política Nacional de Humanização da Atenção
e Gestão do SUS - HumanizaSUS (PNH) que agrega pessoas implicadas na
transformação do SUS e aposta na horizontalidade das relações, na autonomia
e protagonismo dos sujeitos. Podemos sentir a RHS como uma rede social das/
dos trabalhadoras/es, gestoras/es e usuárias/os do SUS que atuam com o desejo
de fazer um Sistema Único de Saúde com equidade, acesso universal e cuidado
integral em saúde. Dentro desta perspectiva, o caminho proposto foi fazer um
mapeamento de postagens dando ênfase nessa Rede de múltiplos afetos.

O Que as Postagens na Rhs nos Contam?

O mapeamento das postagens foi construído a partir da/na RHS pelas


tags “Racismo”, “Luta antirracista”, “Saúde da mulher negra” e “Saúde da po-
pulação negra”, no período de janeiro de 2015 a dezembro de 2021. Os resul-
tados encontrados foram 66 postagens sobre racismo; 05 postagens sobre luta
antirracista; 45 postagens sobre a saúde da mulher negra e 39 postagens sobre
a saúde da população negra. Para tanto, selecionamos uma ou mais postagens
de cada tag. A escolha se deu a partir das que mais produziram afetos e eviden-
ciaram a pluralidade de vozes no enfrentamento do racismo e na construção da
resistência, a partir das narrativas dos/das usuários/as e as conexões que a RHS
possibilita.
3 www.redehumanizaSUS.net

258
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Das postagens com a tag “Racismo”, nos chama a atenção os apontamen-


tos conectados à rede de apoio que vai desde o questionamento da produção
de conhecimento para saberes específicos, nos mostrando assim, um caminho
polifônico no “chão da saúde”, até denúncias que envolvem o racismo no co-
tidiano dos serviços de saúde. Para melhor ilustrar, escolhemos a postagem:
“Vídeo/Saúde, disponibiliza documentário sobre anemia falciforme”. Publica-
da em 23/06/2020 por Graça Portela (Rio de Janeiro-RJ) que transita/navega
pela RHS desde 2014 e possui mais de 500 postagens na rede.

A postagem escolhida nos traz questões importantes sobre a anemia falci-


forme, uma condição genética e hereditária que atinge, em sua maioria, a popu-
lação afrodescendente no Brasil. Trata-se de um apoio à conscientização sobre
a condição e um manifesto para dar visibilidade ao processo de identificação
precoce da doença. A postagem conta com um vídeo intitulado: “Meia Lua
falciforme”4 e tem como proposta nos afetar com depoimentos de usuárias/os e
profissionais da saúde, revelando vivências desde as dificuldades encontradas
no diagnóstico e no atendimento até preconceito velado em relação à doença.
Sua finalidade é mostrar um pouco mais sobre a dimensão política uma doença
prevalecente na população negra pode carregar, e o quanto essa condição pode
evidenciar o racismo no Brasil.

A racialização desse diagnóstico, aponta que o racismo institucional im-


pede um melhor tratamento da doença. Está presente na formação dos pro-
fissionais da saúde, e, consequentemente na compreensão dos sintomas. De
acordo com os relatos, as dores são paralisantes, e muitas vezes, desprezadas
e silenciadas por quem deveria acolher. Retomamos aqui um dado trazido pela
autora: “Segundo o Ministério da Saúde, a anemia falciforme atinge de 30 a 50
mil pessoas no Brasil”. E sobre o posicionamento da Organização das Nações

4 https://www.youtube.com/watch?v=hUgSDKpc7sU

259
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Unidas (ONU), a mesma instituiu o dia 19 de junho como o Dia Mundial de


Conscientização sobre a Doença Falciforme, com o objetivo de dar visibilidade
e reduzir as taxas de morbidade e mortalidade da doença. (Portela, 2020).

Das postagens com a tag “Luta antirracista”, verificamos que, embora o


tema fosse urgente desde sempre, há poucas postagens com o uso da tag, porém
todas muito intensas e representativas. Dentre elas, falaremos sobre um convite
a uma das aulas do curso intitulado “100 anos de Paulo Freire: Esperançar em
tempos de barbárie”, promovido pela Universidade Emancipa – Rede Emanci-
pa e Universidade Federal do ABC, com parceria e apoio de várias instituições
e movimentos sociais nacionais e internacionais, dentre elas, a Rede Humani-
zaSUS. A aula em questão é: “Freire na África: luta anticolonial e antirracis-
mo”. O convite foi feito pelo psicólogo, pesquisador e professor da faculdade
de medicina, Sérgio Aragaki (Maceió-AL), que transita/navega pela RHS des-
de 2009, com mais de 40 postagens.

A proposta da postagem foi divulgar um curso que nos mostra a impor-


tância da educação antirracista para nos movimentar em coletivos que buscam
histórias contadas por nossos ancestrais e questionam a dominação cultural que,
especificamente as Áfricas, sofriam/sofrem o apagamento de suas histórias pe-
los colonizadores europeus. Em suma, a aula nos conta como foi o encontro de
Paulo Freire com a África de Amílcar Cabral, um pedagogo da revolução que
teve uma grande influência nos movimentos de libertação africana, interessan-
do pedagogicamente Paulo Freire. Ambos lutavam por uma educação que pu-
desse fazer uma leitura crítica do mundo, apostando nos seus efeitos políticos
e sociais, além da valorização da cultura no processo de alfabetização. Neste
período dos anos 1970 em que Freire passou em África, produziu obras como
“Cartas da Guiné Bissau” e “África: ensinando a gente”. Mas o que isso tem
a ver com a saúde da população negra? Acreditamos que a produção de saúde

260
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

se faz no processo de emancipação do sujeito, no movimento de engajamento


político, na participação social e na vivência de uma pedagogia contra as colo-
nialidades. Essas ferramentas estão presentes quando o processo educativo na/
para saúde é libertador, valorizando outros saberes e outras práticas de cuida-
dos, assim, compreendendo as pessoas como protagonistas de suas histórias.

Das postagens com a tag “Saúde da mulher negra”, destacamos: “Diz que
não existe racismo, MAS, uma mulher negra recebe menos tempo de atendi-
mento médico que uma mulher branca – Desigualdades, tornam necessário de-
bater saúde da população negra” – postada por Valéria Regina, em 24/11/2017.
A autora é atuante na rede e trabalhadora da educação em Belo Horizonte – MG
e nos traz dados importantes para entendermos o histórico cenário necropolíti-
co na saúde de mulheres negras no Brasil. Relata a situação da população ne-
gra, especialmente no âmbito da saúde, apontando os índices de “precocidade
dos óbitos, altas taxas de mortalidade materna e infantil, maior prevalência de
doenças crônicas e infecciosas, bem como altos índices de violência urbana que
incidem sobre essa população”. E sobre a violência contra as mulheres, a autora
nos revela dados alarmantes que corroboram com a discussão:

Em relação às mulheres, o Mapa da Violência 2015 mostra que o número


de homicídios de brancas caiu de 1.747 vítimas, em 2003, para 1.576, em
2013. Isso representa uma queda de 9,8% no total de homicídios do pe-
ríodo. Já os homicídios de negras aumentaram 54,2% no mesmo período,
passando de 1.864 para 2.875 vítimas. (Valéria Regina, 2017 – RHS apud
Mapa da Violência, 2015).

Segundo Regina (2017), a discriminação no sistema público de saúde


pode ser mais sentida pela população negra, pois o racismo se efetiva no coti-
diano e das tramas na invisibilidade negra. Nas palavras da autora: “Essa in-
visibilidade funciona como uma mola propulsora de outra prática perversa: o
racismo institucional observado, por exemplo, nos dados da PNS sobre sen-
timento de discriminação em um serviço de saúde”, afirma. A postagem tem

261
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

como proposta o pensamento para além de estatísticas, lançando um olhar afe-


tuoso, escuta atenta e crítica no âmbito da saúde, no que diz respeito à demanda
da população negra, sobretudo da mulher negra. Esses olhares devem estar
voltados para a promoção de equidade, ações de cuidado, atenção, promoção à
saúde e prevenção de doenças, bem como de gestão participativa, participação
popular e controle social, produção de conhecimento, formação e educação
permanente para trabalhadoras e trabalhadores da saúde, afirma a autora.

Das postagens com a tag “Saúde da população negra”, destacamos: “Es-


tudantes aplicam a Política de Atenção à Saúde da População Negra em uma
ESF no interior SP” – a postagem foi feita por Marcelo Cayres (São Paulo-SP),
em 01/09/2018. O autor é estudante de medicina e transita na rede com alguns
relatos de experiência. Nessa postagem, o mesmo traz a vivência de colocar
uma política pública em prática, além de compartilhar conhecimento e ques-
tionar a assistência ofertada nos serviços de saúde. A proposta, nesse caso, foi
colocar em prática a PNASPN na Unidade Básica de Saúde (UBS) local, de
acordo com a demanda trazida pela equipe do território. Foi desenvolvido um
plano de ação que promovesse um entendimento global das especificidades que
determinados grupos apresentam na dimensão da saúde. A publicação nos afeta
pelo simples fato de uma política voltada à população negra ter visibilidade e
ser reconhecida como fundamental no fazer saúde pelos/as estudantes de um
curso de medicina.

Considerações Finais

As postagens relatadas foram expressas por pessoas que circulam pela


RHS e que dentro de um movimento ético-político contribuem, de alguma for-
ma, para a movimentação da página, ampliando o debate sobre o direito à saú-
de. São vozes diferentes de muitas e muitos agentes que ecoam em direção

262
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

ao “SUS que dá certo”. A RHS é um dispositivo que caminha no sentido de


desnaturalizar nossos olhares em direção de um mundo que nos limita e que
decide quem pode viver e quem deve morrer, dentro de uma lógica mercan-
tilista estratégica de saberes e especialidades. Ressaltamos que a análise das
postagens nos revelou um forte indicativo de fortalecimento sobre o assunto e
nos faz entender como é preciso pensar outros mundos e outras saúdes, a fim
de descolonizar qualquer perspectiva hegemônica que traduziriam as opressões
cruzadas sofridas pela população negra.

Deste modo, considerando a saúde da população negra e as práticas de ra-


cismo que acontecem no cotidiano da rede SUS, entendemos que a RHS é uma
potente ferramenta no debate na dimensão da saúde, afim de compreendermos
como o viés racial está implícito nas estruturas institucionais e nas práticas das/
dos agentes de saúde que, por vezes, silenciam e invisibilizam, além de de-
sumanizar populações racializadas. Neste percurso, procuramos compreender
nossa participação na construção das estruturas econômicas, políticas e subje-
tivas da sociedade. Portanto, nos cabe questionar e pensar o quanto naturaliza-
mos práticas discriminatórias no fazer saúde, reproduzindo iniquidades e vio-
lações de Direitos Humanos na construção destes espaços e na implementação
de Políticas Públicas.

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265
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 18

PRIMEIRA INFÂNCIA E
POLÍTICAS PÚBLICAS:
REFLEXÕES SOBRE O
PROGRAMA CRIANÇA FELIZ
Luan Fernando Schwinn Santos
Gabriela Rieveres Borges de Andrade
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-L

O Programa Criança Feliz (PCF), criado em 2016 pelo Decreto nº 8.869,


caracteriza-se como uma política de caráter intersetorial que tem como pre-
missa o fortalecimento da primeira infância, através de visitas domiciliares e
de metodologia com foco em atividades lúdicas e nas relações constituídas
na família. O PCF prevê no seu desenho, a articulação das ações das políticas
de assistência social, saúde, educação, cultura, direitos humanos e direitos das
crianças e dos adolescentes (Decreto n. 8.869, 2016), tendo a ação intersetorial
como central nos documentos que o regulamentam.

A intersetorialidade das políticas públicas tem sido discutida por diversos


autores que apontam que desenhos de políticas fragmentados não dão conta da

266
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

complexidade dos problemas da população e que a cooperação entre diferentes


setores (saúde, educação, assistência social) tem o potencial de melhorar a efe-
tividade das políticas (Junqueira, Inojosa, Komatsu, 1997; Vaitsman & Lobato,
2017; Montoya, Silvestre, Solto, 2018; Wanderley, Martinelli, Paz, 2020). A
setorização tem sido apontada como produzindo desarticulação, fragmentação
e sobreposição das ações, levando a um “paralelismo de intervenções e, muitas
vezes, à duplicidade de cadastros e procedimentos para acesso aos serviços pú-
blicos” (Wanderley et al, 2020, p.8).

A ação intersetorial pressupõe uma visão integrada dos problemas sociais


e tem o potencial de “alcançar resultados integrados em situações complexas,
visando um efeito sinérgico no desenvolvimento social” (Junqueira et al, 1997,
p.24). Enfrenta-se, porém, o desafio da tradição setorializada da gestão no Bra-
sil que, desde o nível federal, se dá de forma fragmentada na estrutura de minis-
térios e se reproduz nas esferas estaduais e municipais (Montoya et al, 2018).
No nível local a coordenação e a cooperação intersetorial são dependentes de
iniciativas informais e horizontais que produzem soluções imediatas, mas des-
contínuas (Vaitsman & Lobato, 2017).

Neste capítulo, fazemos um breve histórico sobre a primeira infância nas


políticas sociais no Brasil e, em seguida, a partir do documento que institui e
descreve as ações do “Programa Criança Feliz: a intersetorialidade na visita
domiciliar” (MDS, 2017a; 2017b) analisamos a importância que é conferida à
intersetorialidade no desenho do PCF, indicando alguns dos desafios para a sua
efetivação. Nas considerações finais, ressaltamos a importância de fortalecer a
discussão sobre intersetorialidade, o que fica ainda mais evidente em eventos
como o da pandemia da Covid 19.

267
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

A primeira infância em questão

As primeiras políticas públicas relacionadas à infância no estado brasi-


leiro surgem em 1940, com a criação do Departamento Nacional da Criança
no Ministério da Saúde e, posteriormente, com o Serviço de Assistência a Me-
nores, voltado para crianças e adolescentes abandonados ou delinquentes pelo
Ministério da Justiça e Negócios Exteriores. Logo, essas políticas tinham como
público alvo crianças e adolescentes que possuíam algum tipo de “problema”
no âmbito da saúde e/ou justiça (Rodrigues & Cruz, 2020).

Em relação à primeira infância, iniciativas no campo da educação, com


as creches, surgiram a partir da década de 1920, com as reivindicações das
trabalhadoras das fábricas, que não tinham onde deixar seus filhos e filhas e
exigiam das empresas um local para atender estas demandas. Neste momento,
não se pensava tanto no impacto da educação infantil, mas sim na liberação das
mães para o trabalho e como uma ação social. Segundo Caldas (2013):

As creches surgem para suprir as necessidades das camadas pobres da so-


ciedade, as quais não tinham acesso a direitos fundamentais enquanto ci-
dadãos, e as escolas de educação infantil surgem para atender a camada da
sociedade com maior poder aquisitivo que começa a se preocupar com a
preparação das crianças para atender os anseios de suas famílias (burgue-
sas) com relação aos bens e as posses (p. 9642).

Havia, portanto, uma distinção entre os objetivos da creche e os da educa-


ção infantil: enquanto uma funcionava para suprir a necessidade das empresas,
a outra tinha o foco no desenvolvimento da criança e na “preparação” para a
vida adulta, sendo direcionada para as camadas médias e altas da população. A
creche surge com um caráter assistencialista, como uma estratégia de combate
à pobreza, e não como uma política com foco no caráter educacional (Rodri-
gues & Cruz, 2020).

268
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

A desigualdade estrutural da sociedade brasileira deixa, desde então, suas


marcas nas políticas voltadas para a infância. O reconhecimento da criança
enquanto sujeito de direitos, independente de sua condição social, vai ser afir-
mado no início da década de 1990 com o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA). O ECA, instituído no ano de 1990, declara a criança como um sujeito
de direitos, devendo ser atendida de forma integral em suas necessidades. Pon-
tua, em seu 4º artigo que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em
geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos
direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária” (Lei n. 8.069, 1990, p.16).

Após a aprovação do ECA, o tema da infância e da primeira infância


vêm ganhando visibilidade em políticas e programas. O Plano Nacional pela
Primeira Infância (2010; 2020); a estratégia da Rede Cegonha (2011) na saúde,
o programa sócio-assistencial Brasil Carinhoso (2012) e a Política Nacional
de Atenção à Saúde da Criança (2015) são alguns exemplos. Voltadas para a
primeira infância, experiências como o “Primeira Infância Melhor” (PIM) do
Rio Grande do Sul (2003); o “Programa Mãe Coruja”, de Pernambuco (2007);
o “São Paulo pela Primeiríssima Infância”, do estado de São Paulo (2009); e
o “São Paulo Carinhosa”, do município de São Paulo (2013), são referências
em políticas públicas intersetoriais, reconhecidas por seus resultados (Cabral,
2016; Montoya et al, 2018; Bichir, Haddad, Hoyler, Canato, Marques, 2019;
Gaia, Candido, Barbosa Junior, 2019).

A noção de que as características, valores, capacidades intelectuais, en-


tre outras particularidades dos indivíduos, estão relacionados diretamente ao
investimento que estes recebem durante ao longo de seus anos, especialmente
durante a primeira infância, vem sendo fortalecida devido às mudanças sig-

269
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

nificativas que a infância vem sofrendo nas últimas décadas. Os espaços para
brincar e se desenvolver livremente, em interação com a natureza vem se redu-
zindo significativamente nas sociedades modernas. Neste sentido, reforça-se a
preocupação com a estimulação precoce de bebês e com as condições que são
dadas ao desenvolvimento das crianças desde a tenra infância. O pleno desen-
volvimento físico-motor e cognitivo depende, portanto, de tais estímulos, que
podem intervir significativamente em ações como o falar, o engatinhar, o andar
e também ter reflexos na vida adulta, com maiores chances de tornarem-se
mais ativos e aptos à vida em sociedades complexas e que exigem cada vez
mais uma sofisticação tecnológica e social dos indivíduos (Shimabukuro &
Reis, 2019).

Vygotsky (1998), já no início do século XX, compreendia que o brincar


é uma atividade social da criança, sendo fundamental para o desenvolvimen-
to sócio-cultural do sujeito sendo a brincadeira uma das principais formas de
compreensão da realidade na infância:

A criação de uma situação imaginária não é algo fortuito na vida da criança;


pelo contrário, é a primeira manifestação da emancipação da criança em
relação às restrições situacionais. O primeiro paradoxo contido no brin-
quedo é que a criança opera com um significado alienado numa situação
real. O segundo é que, no brinquedo, a criança segue o caminho do menor
esforço – ela faz o que mais gosta de fazer, porque o brinquedo está unido
ao prazer – e ao mesmo tempo, aprende a seguir os caminhos mais difíceis,
subordinando se a regras e, por conseguinte renunciando ao que ela quer,
uma vez que a sujeição a regras e a renúncia a ação impulsiva constitui o
caminho para o prazer do brinquedo (Vygotsky, 1998, p. 130).

Assim, o brinquedo e o processo de brincar propiciam o contato entre a


criança e o mundo externo e esta noção encontra-se presente em documentos
governamentais de diferentes setores. O Ministério da Saúde, por exemplo, em
publicação de 2016 sobre estimulação precoce em crianças com atraso no de-
senvolvimento neuropsicomotor atesta que:

270
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

No brincar a criança inicia o seu processo de autoconhecimento, toma con-


tato com a realidade externa e, a partir das relações vinculares, passa a
interagir com o mundo. O brinquedo torna-se instrumento de exploração e
desenvolvimento das capacidades da criança. Brincando, ela tem a oportu-
nidade de exercitar funções, experimentar desafios, investigar e conhecer
o mundo de maneira natural e espontânea, expressando seus sentimentos e
facilitando o desenvolvimento das relações com as outras pessoas. (Minis-
tério da Saúde, 2016, p. 159)

O investimento no brincar é inserido nas formulações de políticas e pro-


gramas pois há nesta ação o desenvolvimento do sujeito através do desafio e
das situações novas que as atividades realizadas proporcionam. Para além do
desenvolvimento físico, o brincar auxilia na construção de afetos, no fortaleci-
mento de vínculos familiares/comunitários e no desenvolvimento emocional.
No documento que institui o PCF, são mencionadas “pesquisas nas neurociên-
cias” que reforçam o entendimento da importância do investimento na primeira
infância e as:

(...) teorias sobre o desenvolvimento humano de diversos autores – Bowlby,


Winnicott, Vygotsky, Spitz, Pikler. Esses estudos já apontavam a importân-
cia dos vínculos, da família, dos cuidados, do brincar e de se oportunizar a
criança, em seus primeiros anos de vida, a possibilidade de se desenvolver
em um ambiente familiar com segurança, vínculos e proteção. (Ministério
de Desenvolvimento Social [MDS], 2017a, p.8)

No Brasil, documentos governamentais têm enfatizado a primeira infân-


cia e as experiências nessa fase da vida como referências cruciais para a vida
adulta. Neste sentido, falar e andar não são desenvolvidas de forma natural e
sim como frutos de um aprendizado baseado na quantidade e na qualidade do
investimento que é feito na criança, afetando diretamente e indiretamente na
construção de seus relacionamentos com os outros seres humanos e tornando-
-lhes protagonistas de suas relações sociais durante a vida adulta (Shimabukuro
& Reis, 2019).

271
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Método

Este capítulo tem como objetivo refletir sobre o PCF como um programa
intersetorial que tem como premissa o fortalecimento da primeira infância. Para
isso, fazemos uma descrição do PCF em linhas gerais e pautamos o conceito
de intersetorialidade e as ações intersetoriais propostas pelo programa, com
base na bibliografia sobre o tema e no documento “Programa Criança Feliz: a
intersetorialidade na visita domiciliar” (MDS, 2017a; 2017b), estabelecendo
um diálogo com a bibliografia sobre o tema. O método da análise documental
permite utilizar um documento governamental enquanto fonte de pesquisa, a
partir de questões de interesse dos pesquisadores (Sá-Silva et al, 2009; Cellard,
2018; Lima Junior et al., 2021), identificar desafios e potencialidades da ação
intersetorial no desenho do PCF.

Programa Criança Feliz: que história é essa?

O PCF tem como objetivo apoiar e acompanhar o desenvolvimento in-


tegral na primeira infância de famílias em situação de vulnerabilidade e tem
como público-alvo: gestantes inseridas no Cadastro Único; crianças de até 36
meses e suas famílias inseridas no Cadastro Único; crianças de até 72 meses
que sejam beneficiárias do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e/ou que
estejam afastadas do convívio familiar em razão de aplicação de medida prote-
tiva prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (Ministério de Desenvol-
vimento Social [MDS], 2017b).

A Lei nº 13.257/2016, conhecida como Marco Legal da Primeira Infân-


cia, é base fundamental para o trabalho do PCF. O Marco visa promover o de-
senvolvimento integral das crianças na primeira infância, atentando sua família
e seu contexto de vida. A lei irá considerar a primeira infância como período

272
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

que abrange os seis primeiros anos completos, ou seja, os primeiros 72 meses


de vida da criança. Nesse período, a família é a principal mediadora na relação
da criança com o mundo e a principal facilitadora dos processos de desenvolvi-
mento (Lei n. 13.257, 2016).

Esse público recebe visitas por profissionais de nível médio ou superior


que são supervisionados por um técnico de nível superior do Sistema Único
de Assistência Social. Todos os atores devem ser capacitados na metodologia
“Cuidados para o Desenvolvimento da Criança” (CDC), desenvolvida pela psi-
cóloga social Jane Lucas e cedido ao Brasil pelo Fundo das Nações Unidas para
a Infância (Unicef) e pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS).

No CDC as atividades e brinquedos que são apresentados ao cuidador


principal de cada criança nessas visitas estão baseados em gestos, cores, sons,
expressão corporal e a capacidade da criança de imitar e ressignificar os estímu-
los que está recebendo de seu meio social. Logo, é possível afirmar com subsí-
dios nos estudos de Vygotsky (1998) que a interação/comunicação da criança
com o meio social é extremamente importante para a realização da atividade e
no seu desenvolvimento pleno. O quadro abaixo descreve a frequência com que
as visitas domiciliares devem ocorrer, de acordo com o público alvo.

Frequência das Visitas


Público Alvo
Domiciliares

Gestantes inseridas no Cadastro Único Mensal

Crianças de 0 até 36 meses


Semanal
(BPC e Cadastro Único)

Crianças de 36 meses a 72 meses


Quinzenal
incompletos (BPC)

Fonte: MDS (2017b, p.30)

273
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

O PCF tem no seu desenho uma proposta intersetorial, que deve ser efeti-
vada por um Comitê Gestor Intersetorial e que se configura enquanto um espa-
ço de articulação formado por representantes das políticas envolvidas no PCF
e que auxiliará as ações desenvolvidas pelo Programa. Cada município define a
composição do Comitê Gestor Intersetorial de acordo com os serviços e políti-
cas ofertadas no âmbito local mas, em geral, o comitê é composto por represen-
tantes das políticas de Assistência Social, Saúde, Educação e Conselho Tutelar.

O município deve aderir ao PCF, sendo condição ter pelo menos um Cen-
tro de Referência de Assistência Social em funcionamento e ter, no mínimo,
140 habitantes na condição de público alvo do programa. Aderir ao progra-
ma, implica em uma contrapartida financeira que será realizada em três fases:
Implantação, Etapa de Execução - Fase I e Etapa de Execução - Fase II. Essa
contrapartida ocorre da seguinte maneira:

Implantação: o recurso vindo por um mês com base no cálculo: R$75,00 x


quantitativo de indivíduos da meta aceita x 2. E nos três meses subsequen-
tes: R$75,00 x quantitativo de indivíduos da meta aceita.

Etapa de Execução - Fase I: Parcela Fixa (R$75,00 X 80%) que será bali-
zada pela composição da equipe e do quantitativo de beneficiários acom-
panhados e uma Parcela Variável (R$75,00 X 20%) que será balizada pela
quantidade beneficiários visitados;

Etapa de Execução – Fase II: Parcela Fixa (R$75,00 X 60%) que será ba-
lizada pela composição da equipe e do quantitativo de beneficiários acom-
panhados e uma Parcela Variável (R$75,00 X 40%) que será balizada pela
quantidade beneficiários visitados; (Portaria n.º 2.496, 2018)

Após a análise de cada município e atendendo aos critérios, o mesmo pode


aderir ao programa. Logo, o PCF é um programa optativo para os municípios
brasileiros elegíveis, podendo esse trabalho ser desenvolvido de acordo com a
gestão municipal vigente.

274
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Intersetorialidade e a complexidade das políticas


públicas

Pensando na intersetorialidade do Programa e nas equipes que fazem a vi-


sita domiciliar, o governo federal lançou documento intitulado “Criança Feliz:
a intersetorialidade na visita domiciliar”. O documento foi elaborado por um
grupo técnico com o objetivo de “oferecer às equipes locais do Criança Feliz
subsídios para o fortalecimento da atuação intersetorial, na perspectiva de uma
atenção integral às famílias participantes do programa” (MDS, 2017a, p. 5). O
documento oferece subsídios para o fortalecimento das ações intersetoriais:

A intersetorialidade ocupa lugar central na operacionalização e efetivação


do Programa Criança Feliz. O Brasil avançou, na última década, na im-
plementação de políticas sociais territorializadas e organizadas, em grande
parte, por meio de sistemas públicos de gestão, com respeito ao pacto fede-
rativo, como é o caso dos Sistemas Únicos da Saúde (SUS) e da Assistência
Social (SUAS). (MDS, 2017a, p. 23)

Neste documento de 67 páginas que tratam da intersetorialidade, a pala-


vra educação é citada 52 vezes, entretanto, a seção específica que fala sobre a
política de educação é de meia página, totalizando 21 linhas. Citando somente
a obrigatoriedade da educação infantil “a partir dos 4 anos de idade. Deverá ser
assegurada a vaga, em caráter compulsório, para criança com deficiência - Lei
7.853, de 24/10/89” (MDS, 2017a, p. 34). Esse dado se torna contraditório, vis-
to que o programa tem como objetivo práticas educativas que complementam e
são base de ações dentro da educação infantil. Dando margem para pensarmos
que políticas públicas temos para educação infantil? O que está assegurado
enquanto direito à primeiríssima infância (0 a 3 anos) para o desenvolvimento
integral desse sujeito?

Após sua implementação, o programa ganhou destaque internacional


ganhando, no ano de 2019, a Cimeira Mundial para a Inovação na Educação

275
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

(WISE), uma iniciativa da Fundação Qatar (QF). O prêmio reconhece projetos


inovadores de todo o mundo que abordam os desafios educativos mundiais (Pr-
newswire, 2019). Ou seja, o PCF tem uma relação intrínseca com a educação e
suas políticas, mesmo que isso não apareça no principal documento que versa
sobre a intersetorialidade do programa.

Entretanto, o PCF tem uma tarefa complexa que é realizar as ações de


forma intersetorial, articulando uma rede de atores e instituições, como estraté-
gia para efetivação dos objetivos do programa. Esta intersetorialidade deve ser
realizada a partir de um Comitê Gestor. Colocam-se, no entanto, diversos desa-
fios para a consolidação de ações intersetoriais, almejadas não apenas por este
programa, mas que tem neste, uma intenção declarada de efetivá-la, enquanto
condição para realizar atingir seus objetivos. Diversos autores tem apontado de-
safios para a prática da intersetorialidade tais como a tradição setorializada das
políticas que forma corporações, secretarias, grupos que disputam, por exem-
plo, por recursos financeiros. Segundo Montoya et al (2018) à essa tradição de
setorialização das políticas desde sua origem, se superpõem duas camadas:

(...) o das corporações setoriais e o político partidário, com suas práticas de


“distribuição” das secretarias (ou ministérios, no âmbito federal) para gru-
pos ou partidos que apoiam os governos. A existência de governos de coali-
zão, inclusive, pode tornar os órgãos criados para a ação intersetorial muito
vulneráveis em relação à formulação de políticas. Nesse sentido, parece
que desde o início do posicionamento de uma temática na agenda pública
ela vem com um risco inerente de fragmentação (Montoya et al., p 47).

Para além das questões burocráticas, gerenciais e institucionais, a ação


articulada entre diferentes setores demanda a construção de saberes e de lingua-
gens comuns aos envolvidos, de forma que as experiências possam ser articula-
das de forma horizontal (Montoya, Silvestre, Souto, 2018). As dificuldades de
articulação próprias de uma agenda que se propõe intersetorial, não impedem
que as ações aconteçam. Em artigo sobre a experiência do PCF no município de

276
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Ribeirão Preto (SP), Gaia, Candido e Barbosa Júnior (2019) apresentam pelo
menos duas conquistas relevantes a partir da sua implementação na cidade:

Primeiro, qualificar, melhorar e incentivar de forma integrada e comple-


mentar o PAIF junto aos CRAS/SUAS, melhorando a resolutividade do
atendimento para as famílias e indivíduos que acompanha; e, segundo, le-
var a ação socioassistencial a vencer determinadas barreiras e desafios, na
perspectiva de atuar com mais amplitude, tranquilidade e rotina cotidiana
no viés de intersetorialidade e interdisciplinaridade, passando a discutir o
cofinanciamento, não só interfederativo (Federal + Estadual + Munici-
pal), mas também intersetorial (políticas diversas) (Gaia et al., 2019, p.
123).

O PCF tem possibilitado ampliar o público atendido e auxiliar no enten-


dimento do que seria um trabalho pautado na intersetorialidade. A partir deste
olhar múltiplo, aposta-se no olhar integral aos indivíduos e famílias foco do
programa.

Considerações Finais

O PCF ganhou, em 2019, um prêmio internacional pelo seu trabalho na


educação, entretanto, não é evidente no documento que versa sobre a interseto-
rialidade do programa o papel da educação para o desenvolvimento do progra-
ma. Sendo assim, como podemos construir equipes que absorverão o conceito/
ideia de intersetorialidade, se não é evidente o papel das outras políticas na
construção do Programa Criança Feliz? Este papel é do Comitê Gestor local?
Qual o envolvimento das demais políticas na execução desse programa? As
questões levantadas são apontamentos para reflexão e que podem ser indica-
dores para construção de uma política intersetorial para Primeira Infância mais
fortalecida, pois não basta a criação de Programas e Serviços se não há investi-
mento e o fortalecimento da intersetorialidade.

Após a reflexão sobre primeira infância, o PCF e a intersetorialidade en-


tendemos que não é possível alcançar a proteção integral e o desenvolvimento

277
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

integral da criança e da família sem pensarmos na intersetorialidade das políti-


cas públicas, visto que essas famílias são atendidas por diferentes equipes nes-
sas políticas. No contexto pandêmico essa articulação intersetorial ficou ainda
mais dificultosa, as famílias tiveram suas vulnerabilidades acentuadas (devido
ao aumento do desemprego, o menor fluxo em serviços noturnos e o aumento
de trabalho no mercado informal), entretanto o atendimento da política de As-
sistência Social se tornou mais restrito devido as normas de biossegurança, as
reuniões passaram pelo processo virtual e assim as articulações intersetoriais
restringiram-se às demandas mais urgentes.

Cada município configura o programa a partir da sua própria realida-


de, mas a intersetorialidade, considerada central para atingir os objetivos do
programa, é uma questão complexa dentro das redes de políticas e dentro do
próprio material que é disponibilizado pelo governo federal. Sendo assim, para
além do papel da Política de Assistência Social, é importante que seja dada uma
ênfase maior ao papel das demais políticas para avançar com a integralidade do
cuidado voltado para Primeira Infância. As reflexões que surgiram ao longo do
texto podem embasar reflexões e questionamentos que possibilitem (re)cons-
truir conhecimentos que auxiliem na compreensão e na execução de políticas
intersetoriais que atendam integralmente à primeira infância.

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281
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 19

O ENSINO DA DISCIPLINA
DE PROCESSOS
PSICOLÓGICOS BÁSICOS
Maria Luiza da Costa Júlio
Gabriela Markus Chaves
Felipe Maciel dos Santos Souza
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-M

Em 2022, a Psicologia no Brasil comemora os seus 60 anos de regula-


mentação. Percebe-se que o processo da profissionalização do psicólogo no
Brasil foi marcado por um conjunto de práticas e discursos contraditórios (Fon-
seca & Mores, 2012, Lourdes, 2021). Em decorrência da promulgação da Lei
nº 4.119, de 1962, a Psicologia, no Brasil, é vista como um campo científico e
profissional que exige uma organização formativa institucional de psicólogos,
em Instituições de Ensino Superior (IES) (Mancebo et al., 2015). Nesse senti-
do, do conjunto de disciplinas que compõem esse quadro formativo, destaca-se
a Processos Psicológicos Básicos (PPB) como um componente importante à
graduação do psicólogo.

Percebe-se que, desde de 1970, o tema da formação em Psicologia tem


sido analisado de diversas formas, por exemplo: aspecto curricular (Calais &

282
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Pacheco, 2001), a formação científica (Natário, 1999), a formação complemen-


tar (Langenbach & Negreiros, 1988), o estágio acadêmico (Witter & Ferreira,
2005), as metodologias de ensino (Kodjaoglanian et al., 2003), a formação do-
cente (Noronha, 2003) e a relação entre graduação e pós-graduação (Yamamo-
to, 2006). Além destas, questões éticas, políticas e epistemológicas, também,
têm sido debatidas (Ferreira Neto, 2004; Witter & Ferreira, 2005). Atualmente,
o impacto da implementação das chamadas diretrizes curriculares (Marinho-
-Araújo, 2007) tem sido enfatizado. O tema também tem sido intensamente
explorado em interface com as diversas áreas de atuação do psicólogo, desde as
chamadas tradicionais até as áreas emergentes (Campos, 2007).

Como se vê, desde a regulamentação da profissão no Brasil, a formação


em Psicologia tem sido objeto de reflexão e debates envolvendo a categoria e
suas entidades, bem como o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde.
Quanto às Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), em 2004, foram aprova-
das as propostas para os cursos de graduação em Psicologia, que em 2011 pas-
saram por reformulação visando regulamentar a licenciatura em Psicologia. A
partir de 2017, todas as profissões da área de saúde passaram a discutir uma
proposta de revisão e atualização das normas instituídas nas DCN, em resposta
à demanda do Conselho Nacional de Saúde (CNS) (Oliveira et al., 2017).

De acordo com Macedo et al. (2018), no Brasil existem 549 cursos ativos
de Psicologia. Destes, 84 funcionam em IES públicas (14,92%), distribuídas
em federais (n = 58), estaduais (n = 22) e municipais (n = 4); 438 no setor pri-
vado (77,79%) e 27 como IES (4,79%) que foram criadas por leis estaduais ou
municipais (até 1988). Os autores indicam que quanto ao número de matrícu-
las, totalizam 207.070, o que equivale a 2,64% do total de matrículas do ensino
superior brasileiro. Isso coloca a Psicologia na 7ª posição entre os cursos com
maior número de matrículas.

283
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Sabe-se que, em 2022, no Estado de Mato Grosso do Sul funcionavam


dez cursos de Psicologia, sendo: Universidade Católica Dom Bosco (UCDB),
Universidade para o Desenvolvimento da Região do Pantanal (UNIDERP),
Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN), Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul – Campus Campo Grande (UFMS), Universidade Fe-
deral de Mato Grosso do Sul – Campus Pantanal (UFMS – CPAN), Faculdade
Anhanguera de Dourados (FAD), Universidade Federal de Grande Dourados
(UFGD), Centro Universitário da Grande Dourados – Capital (UNIGRAN),
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus Paranaíba (UFMS -
CPAR) e Faculdades Integradas de Três Lagoas (AEMS).

Quanto às análises sobre o ensino e formação de Psicologia em Mato


Grosso do Sul, identifica-se uma crescente produção a partir dos anos 2000,
como de Souza (2011, 2016), Melo (2016), Cara, Miranda e Costa (2020), Del-
mondes e Miranda (2020), Flores et al. (2020) e Laura et al. (2021). Tendo em
vista que, anualmente, ingressam e se formam, somente na cidade de Dourados,
mais de cem estudantes em Psicologia e a proposta de Souza e Souza (2021)
de se se caracterizar e discutir tanto a formação quanto a atuação profissional
de forma mais local, o presente capítulo tem como meta principal caracterizar
o ensino de PPB na cidade de Dourados – MS. Dado o número incipiente de
pesquisas desse âmbito, trata-se de uma pesquisa descritiva-exploratória docu-
mental.

Materiais e Método

Material

Sabe-se que tudo pode ser documento, desde que seja assumido como
tal, tendo em vista que os documentos não existem como tais antes que a curio-

284
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

sidade do pesquisador intervenha (Prost, 2008; Souza, 2018). Desta maneira,


os documentos primários para se caracterizar o ensino de PPB em Dourados
foram os seguintes documentos primários: ementas e programas de disciplinas.

Procedimento de coleta e análise

Inicialmente, levantaram-se as Instituições de Ensino Superior (IES)


que possuíam cursos de graduação em Psicologia, na cidade de Dourados, a
saber: Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN), Universidade
Anhanguera campus de Dourados e Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). A partir desta identificação, foram consultados os sítios eletrônicos
das IES.

Nos sítios, foram localizadas as grades curriculares dos cursos, e coleta-


das informações sobre as disciplinas de PPB, como: quantidade de disciplina,
carga horária, semestre, ementa, referências bibliográficas tanto básicas quanto
complementares. A partir destas informações, realizou-se uma análise docu-
mental1 das ementas e dos programas das disciplinas, da qual resultou uma
tabela comparativa entre as instituições com as matérias oferecidas.

Resultados e Discussão

De acordo com os dados compilados em seguida, na Figura 1, observam-


-se algumas características gerais dos cursos de graduação em Psicologia, em
Dourados, úteis ao entendimento das condições locais do ensino de PPB.

1A análise documental corresponde à uma operação a qual visa representar o conteúdo de um


documento sob uma forma diferente da original, visando facilitar a sua consulta e referenciação.
Corresponde a uma fase preliminar da constituição de um serviço de documentação ou de um
banco de dados (Souza, 2011).

285
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Figura 1. Características gerais dos Cursos de Graduação em Psicologia, em


MS.

Natureza Organização Fundação do


Sigla
Administrativa Administrativa Curso
FAD Privada Universidade 2006
UFGD Pública Universidade 2009
Centro
UNIGRAN Privada 1998
Universitário

Fonte: Adaptação de Souza (2011) e Flores et al. (2020).

Nesta Figura, visualizam-se que dois (66%) cursos de graduação, em Psi-


cologia, estão alocados em IES particulares na cidade de Dourados. Esse dado
corrobora com os apresentados por Mancebo et al. (2015), que indicam que as
expansões dos cursos de Psicologia ocorrem por meio da iniciativa privada.
Nota-se, também, que todos os cursos foram criados entre o final dos anos de
1990 e a década de 2000, coincidindo com políticas de expansão do Ensino
Superior no Brasil (Souza, 2011; Castelo Branco & Feitosa, 2017).

Adentrando as informações colhidas pelos levantamentos nos sítios ele-


trônicos das IES, na Figura 2, exposta a seguir, organizam-se algumas informa-
ções relacionadas às disciplinas de PPB.

Figura 2. Caracterização das Disciplinas Identificadas como Processos Psico-


lógicos Básicos em Dourados – MS

Número de Disciplinas
Instituição2 Nome(s)
Identificadas
Processos Psicológicos
I1 1
Básicos
I2 1 Processos Psicológicos Básicos

I3 1 Processos Psicológicos Básicos

2 A fim de preservar a identidade das IES, os autores codificaram aleatoriamente os nomes das
instituições em números de 1 a 3.

286
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Observa-se que todas as três IES possuem uma disciplina intitulada Processos Psicológicos
Básicos. Isso sugere um atendimento à obrigatoriedade do ensino, conforme as DCNs de 2011 (Mi-
nistério da Educação e Cultura, 2011). Atenta-se, ainda, que duas disciplinas possuem carga horária
de 80 horas, e uma de 72. Em dois cursos, as disciplinas são ofertadadas no 2º semestre e, em um,
no 1º semestre, ou seja no início dos cursos. Isso pode indicar o seu estudo como uma possibilidade
de apresentação geral de Psicologia. Essa característica pode indicar, também, que tais disciplinas
constituem pré-requisitos para aquelas específicas de teorias, métodos e técnicas psicológicas.

Deve-se ressaltar que não se posiciona a favor da inclusão de mais disciplinas de PPB,
nas IES, mas acredita-se que a restrição de sua oferta – ou a falta de sua articulação com outras
disciplinas – pode contribuir para omissão e controvérsia sobre as fundações, fundamentações e
aplicações. Como é possível relacionar os conteúdos relacionados à PPB com outras disciplinas,
como a Anatomia, Fisiologia Humana, Neuroanatomia, Neurologia, etc., outros estudos devem ser
realizados para identificar como estas disciplinas se relacionam nos cursos pesquisados.

Na figura 3, apresentada a seguir, apresentam-se as ementas das disciplinas de PPB. Ressal-


ta-se que embora tenha sido localizada a disciplina na I3 não se localizou a ementa e espera-se que,
em novas análises, tal informação seja apresentada.

Figura 3. Ementas das Disciplinas Identificadas como Processos Psicológicos


Básicos em Dourados – MS

Instituição Ementa
Teorias e pesquisa na área de processos cognitivos. Histórico e defi-
nições. Processos básicos de percepção. Processos complexos de re-
I1
solução de problemas. Tomada de decisões e raciocínio. Linguagem,
cultura e cognição.
Estudo dos processos psicológicos básicos. Aspectos Cognitivos
da aquisição de informação. Percepção como processo cognitivo.
Atenção e cognição. Bases Biológicas da aprendizagem. Cognição
I2
e Memória. Linguagem, conceitos e categorias: uso e representação.
Pensamento, resolução de Problemas e Criatividade. Comportamen-
to intencional e teoria da mente.

Ambas disciplinas são ofertadas em regime presencial, entretanto a con-


sulta aos sítios não possibilitou identificar como se procedeu durante a pande-
mia de COVID-19. Quanto aos conteúdos apontados nas ementas, identificam-
-se, em ambas, conteúdos introdutórios, percepção, linguagem e resolução de

287
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

problemas. No ensino de PPB, registra-se as dificuldades de se promover, em


uma única disciplina, o que é introdutório e basilar, mesclado com aquilo que
é intermediário, diferenciador e integrador e aquilo que é avançado e profis-
sionalizante. Embora ainda em análise, os dados apontam para disciplinas que
apresentam os processos psicológicos a partir de uma ótica cognitivista.

Sobre a bibliografia encontrada nos sítios, observamos um total de 25


obras, pertencentes aos cursos em I1 e I2. Dos materiais investigados, três fo-
ram adotados em todas as instituições analisadas: Teorias Cognitivas da Apren-
dizagem (1998) e Teorias Cognitivas da Aprendizagem (2002), de Juan Ignacio
Pozo, e Psicologia Cognitiva (2015) de Robert J. Sternberg. Quanto ao ano de
publicação do material pesquisado, as referências são datadas a partir de 1998
até 2018, havendo uma grande concentração de obras editadas nos anos 2000.
Mais uma vez, em consonância com a ementa, as obras apontam para discipli-
nas com o viés da Psicologia Cognitiva.

Considerações Finais

Ao se comemorar os 60 anos de regulamentação da Psicologia no Bra-


sil, com este capítulo discute-se sobre o ensino de PPB em Dourados. Ainda
que em fase inicial, a análise desta matéria, como uma disciplina ofertada em
cursos de Psicologia, possibilita um melhor entendimento de como este tema
se organiza, destacando a preocupação com a formação e o ensino de futuros
profissionais.

Como indicado no título do presente capítulo, este estudo encontra-se


nas fases iniciais. Sendo assim, em continuidade, pretende-se analisar o emen-
tário da IES que não foi incluída no momento, aprofundar as reflexões sobre as
estratégias de ensino, formação e experiência dos docentes responsáveis pelas
discplinas para que se possa vislumbrar um quadro geral do ensino de PPB no

288
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

contexto universitário douradense. Devido à forma de obtenção dos documen-


tos, os dados analisados ficaram restritos. Outra limitação concerniu ao fato de
que os dados colhidos somente dizem respeito às disciplinas de nome Proces-
sos Psicológicos Básicos, não incluindo outros conteúdos que poderiam estar
disponíveis, em outras disciplinas. Apesar disso, elencaram-se alguns aspectos
ao entendimento da organização institucional do ensino de PPB, em Dourados.

Por fim, para uma visão mais ampla da organização sobre o ensino de
PPB, como disciplina e recurso formativo de psicólogos, sugere-se que novos
estudos sejam realizados, em outras localidades brasileiras, com a variação dos
instrumentos utilizados como, por exemplo, a análise documental de Projetos
Políticos Pedagógicos (PPPs) e dos planos de ensino.

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292
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 20

“PROFESSORES CULPADOS”:
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE
DILEMAS DO FRACASSO
ESCOLAR EM ESCOLAS PÚBLICAS
NA PERSPECTIVA DE DOCENTES
DE MATO GROSSO DO SUL
Esmael Alves de Oliveira
Fernanda Kozlowski Pinto
Daniela Sales
Liergi Vieira
Daniele Marques
Tainá Luane da Rocha Mattoso
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-N

O presente capítulo é resultado de uma das atividades realizadas ao lon-


go da disciplina Psicologia Escolar I, ministrada pela professora Dra. Regina
Barreira no semestre 2021.1 no curso de Psicologia da Universidade Federal
da Grande Dourados - UFGD. Tomando como base a obra Preconceito no co-
tidiano escolar, de autoria da médica pediatra Maria Aparecida Moysés e da

293
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

pedagoga Cecília Colares, publicada em 1996, fomos interpeladas/os a pensar


sobre os dilemas que cercam os problemas de ensino-aprendizagem nas esco-
las públicas, bem como sobre as possíveis justificativas para o “fracasso” das/
os estudantes. Na pesquisa das autoras, realizada em final da década de 1980,
dentre os motivos encontrados para esse fracasso, a culpabilização das/os pro-
fessoras/es se evidencia.

Tomando como pano de fundo o resultado desse estudo, buscamos com-


preender de que modo professoras/es da rede pública de ensino de Mato Grosso
do Sul compreendem e significam a afirmação “os professores são culpados”.
Para acessar tais percepções, a partir da perspectiva histórico-crítica elabora-
mos um questionário on-line, aplicado a 9 participantes, com as seguintes ques-
tões: 1) De modo geral, no Brasil, as/os professoras/es têm sido responsabili-
zadas/os pelo fracasso escolar1 das/os estudantes. O que você pensa a respeito
disso?; 2) Quais fatores você atribuiria como causa do fracasso escolar?; e 3)
Na sua prática docente, o que você tem feito com relação ao fracasso escolar
(estratégias de enfrentamento)?

Dentre as razões apontadas pelas/os participantes, surgem a falta de con-


dições materiais para trabalhar, a existência de ambiguidades na responsabili-
zação, o salário, a desvalorização profissional e o desinteresse de alunos e fami-
liares. Acreditamos que a ideia de que “os professores são culpados” tem sido
utilizada como mecanismo de responsabilização docente, ao mesmo tempo em
que tem impossibilitado a construção de uma cultura de corresponsabilidade

1 Compreendemos a noção de fracasso como uma categoria polissêmica, ou seja, atravessada por
múltiplos sentidos e que, a depender do contexto e dos agentes que a mobilizam, pode assumir
diferentes significados e ênfases. De acordo com Pozzobon, Mahendra e Marin (2017), o termo é
ambivalente e, por vezes, há falta de especificidade em seu uso. Nesse sentido, o termo tem sido
“utilizado para fazer referência às dificuldades de aprendizagem; problemas de comportamento;
baixo desempenho escolar; distorção idade-série/ano; abandono escolar precoce ou repetência”
(Pozzobon, Mahendra & Marin, 2017, p. 388).

294
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

no enfrentamento dos dilemas educacionais existentes no interior das escolas


públicas no Brasil.

Para fins de análise, debruçamo-nos sobre os dados da pesquisa que se


voltam para os “professores culpados”. Para isso, o presente trabalho foi dividi-
do em 5 partes: 1) uma breve apresentação do capítulo “Quando os professores
são os culpados”; 2) um pequeno balanço sobre trabalhos mais recentes sobre
o tema; 3) apresentação do resultado de um questionário aplicado a 9 professo-
ras/es da rede pública de ensino de Mato Grosso do Sul; 4) análise dos dados;
e, por fim, 5) considerações finais.

“Quando os professores são culpados”

A obra Preconceito no cotidiano escolar (1996) é resultado dos trabalhos


desenvolvidos pelas autoras entre o final da década de 1970 e início da década
de 1980. A partir da inquietação sobre os altos índices de repetência e exclusão
na rede pública de São Paulo, em 1988 elas realizaram uma pesquisa sistemáti-
ca em escolas de Campinas-SP.

Para isso, de um total de 35 escolas existentes no município, foram sele-


cionadas 8, obedecendo aos seguintes critérios: interesse e disponibilidade em
participar da pesquisa, clientela e localização geográfica. Entre o público parti-
cipante estiveram: diretoras/es (8), professoras/es (40) e profissionais da saúde
(12 pediatras, 5 psicólogas e 2 fonoaudiólogas).

Como resultado, a constatação de que predomina uma série de equívocos


na compreensão do fracasso escolar, que passam por questões de ordem forma-
tiva, estrutural e pedagógica. Entre os achados da pesquisa, a constatação da
falta de conexão entre ensino e aprendizagem (como se esta última fosse au-
tônoma) e a individualização do problema – no caso, a exclusiva responsabili-

295
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

zação da criança, de seus responsáveis (cuidadoras/es) ou das/dos professores,


perdendo-se de vista a dimensão sistêmica da problemática.

Dentre as/os participantes, a maior parte atribuiu a causa do fracasso es-


colar aos professores. De acordo com os dados, 100% das/os diretoras/es (8) e
35% das/dos professoras/es entrevistados (14) compartilhavam dessa opinião.
O resultado aponta que não se trata tão somente de um processo de respon-
sabilização ou de corresponsabilização desses profissionais (o que implicaria
considerar também outros fatores), mas, sobretudo, de culpabilização. Entre as
acusações destacam-se: incompetência, desinteresse e má-formação.

Mas e o que dizem os próprios acusados? Sobressaem questões como má


formação e condições de trabalho (salário, condições materiais). No entanto, o
que as autoras constatam é que haveria uma dificuldade por parte desses profis-
sionais no reconhecimento de seu grau de participação no problema. Não por
acaso, demonstram que eles têm a mesma compreensão limitada que outras ca-
tegorias profissionais (como as/os diretoras/es) quando o assunto é sucesso ou
fracasso escolar. Ou seja, tendem a valorizar a noção de “aptidão” (individual)
e a desconsiderar questões de ordem social mais amplas. Nesse caso, o risco
(algo que foi observado ao longo das entrevistas) é tomar o “método” utilizado
como fim em si mesmo, como uma espécie de receita de bolo ou varinha má-
gica, desconsiderando tanto a dimensão epistemológica – em que a “norma”/
técnicas existe(m) sem teoria (1996, p. 206) – quanto a significativa, na qual
“o estudante aprende a aplicar o resultado de um conhecimento teórico que ele
nem sabe qual é” (1996, p. 206).

É importante dizer que não se trata de encontrar “um” culpado ou “o”


culpado, mas, antes, de problematizar o quanto o fracasso escolar é uma questão
complexa, em que atuam inúmeros fatores e agentes, embora, certamente, o
professor seja um deles.

296
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

O que diz a literatura acerca da problemática?

A educação é uma das atividades que acompanham o progresso da hu-


manidade. Para isso há a necessidade de desenvolver tecnologias, assim como
novas formas de transmissão do conhecimento (Goes, 2014). Entretanto, quan-
do há uma falha entre a transmissão e a captação/processamento desse conhe-
cimento, logo vem a necessidade de se encontrar um culpado.

O fracasso escolar é e sempre foi um dos problemas mais discutidos, tan-


to no âmbito escolar como fora dele. Contudo, ao invés de encontrar meios para
amenizar esse fato, o que se busca são os responsáveis por essa dissonância,
pois há uma necessidade, quase fisiológica, de se nominar os culpados, ainda
que sejam vários os agentes nessa cena.

Entre eles, está a própria criança, julgada como preguiçosa e incompeten-


te. Para outros, os responsáveis são a família e a comunidade, que não lhe pres-
tam apoio e motivação suficientes para que avance nos estudos. Patto (1999)
formulou importantes contribuições no sentido de romper com o estigma de
que isso é culpa do aluno ou de sua família e alerta para a presença dos deter-
minantes institucionais e sociais na produção do fracasso escolar, mais do que
problemas emocionais, orgânicos e/ou neurológicos, rompendo, assim, com as
visões psicologizantes, ou de carência cultural, que se tornaram comuns nas
falas e nas práticas entre os educadores e nas políticas oficiais.

Em último caso, apontam o sistema educacional, em especial o próprio


professor, como responsável, por não estar adequado e preparado para atender
a todos os alunos, acabando por rotular e desmotivar aqueles que, por algum
motivo, não acompanham os demais. Segundo Moreira (2007), educadores não
podem ser responsabilizados unicamente por esse fracasso, existindo também

297
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

interações externas à escola. Porém, um professor pedagogicamente e politica-


mente posicionado possui, sim, a capacidade de influenciar positivamente no
aprendizado e nas vidas dos educandos, pois tem em mente que a educação não
é neutra, fazendo, assim, as melhores escolhas para que, de fato, seja significa-
tivo esse ensino.

A luta por reconhecimento do professor como professor é uma constante.


Inicialmente surgiu na tentativa de se obter um status profissional, mas também
há a necessidade de reconhecer as mais variadas funções que assume, assim
como as atividades em que tem de responder, pois existem exigências para as
quais não se sente preparado. Os professores são muitas vezes obrigados a de-
sempenhar papéis de assistente social, psicólogo e pais (Gasparini, Barreto &
Assunção, 2005).

Uma possível explicação para essa confusão em relação às atribuições


pode estar atrelada aos saberes docentes, uma vez que estes perpassam a inter-
face do social e do individual, não sendo completamente cognitivos. Logo, tra-
ta-se de um trabalho multidimensional, no sentido em que abrange elementos
relativos à identidade profissional e pessoal (Tardif, 2012).

Tais exigências contribuem para um sentimento de perda de identidade


com a formação acadêmica, pois, além de fomentar a desvalorização, também
cria suspeitas por parte da população de que o mais importante na atividade
educativa ainda está por se fazer ou não é realizado com a competência espera-
da. Atrelado a isso, os testes promovidos pelos sistemas nacionais de avaliação,
a procura pela mensuração do desempenho educacional e a presença familiar
na gestão da escola trazem muitas vezes o sentimento de constante vigilância e
fiscalização das/os docentes (Assunção & Oliveira, 2009).

298
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Se tudo isso não fosse suficiente, é necessário lidar com salas de aulas nu-
merosas, barulho excessivo, atividades extraclasse, baixa remuneração, violên-
cia, alunos desinteressados. Por conseguinte, a busca por novos recursos e para
fugir do tradicional acaba por tornar o cotidiano do docente mais desgastante e,
muitas vezes, mais desestimulante (Barreto, 2007).

A fim de compreender o que dizem as/os professoras/es acerca da acu-


sação de que são os principais responsáveis (se não os únicos) pelo fracasso
escolar, elaboramos um questionário on-line divido em duas partes. Na primei-
ra, questões que nos ajudaram a compreender o perfil das/dos participantes da
pesquisa: idade, gênero, formação universitária, disciplina e nível de ensino em
que atuam, tempo de atuação profissional e carga horária de trabalho semanal.
Na segunda, as três perguntas que elaboramos para acessar as percepções dos/
as docentes: 1) De modo geral, no Brasil, as/os professoras/es têm sido respon-
sabilizadas/os pelo fracasso escolar das/os estudantes. O que você pensa a res-
peito disso?; 2) Quais fatores você atribuiria como causa do fracasso escolar?; e
3) Na sua prática docente, o que você tem feito com relação ao fracasso escolar
(estratégias de enfrentamento)?

Para acessar o público-alvo, acionamos nossa rede de contatos pessoais.


Ao todo, obtivemos um número total de 9 respondentes, dos quais dois homens
e sete mulheres. Abaixo, o quadro com o perfil das/dos participantes, bem como
suas respectivas respostas.

299
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Perfil dos participantes e resultado das respostas


Quadro 1: Dados pessoais/profissionais

Carga
Nível de Tempo
Partici- Área de Disciplina horária Escola públi-
Gênero Idade atuação de de
pantes formação ministrada sema- ca/privada
Ensino atuação
nal

Língua
Masculi- Letras, Fundamen-
1 35 Portuguesa 24h Pública 7 meses
no Filosofia tal e médio
e Filosofia

Letras, Fundamen-
2 Feminino 47 Arte 20h Pública 25 anos
Arte tal

Masculi-
3 36 Pedagogia Médio Filosofia 40h Pública 8 anos
no

Fundamen-
4 Feminino 29 Geografia Geografia 35h Pública 5 anos
tal
Fundamen- Pública/pri-
5 Feminino 45 Pedagogia Diversas* 40h 12 anos
tal vada
Educação
6 Feminino 40 Pedagogia Médio 30h Pública 6 anos
Especial
Fundamen-
7 Feminino 37 Arte Arte 20h Pública 12 anos
tal
História e História e
8 Feminino 32 Médio 40h Pública 10 anos
Sociologia Sociologia
Matemá- Fundamen- Matemá-
9 Feminino 46 20h Pública 21 anos
tica tal tica

Quadro 2: Respostas à pergunta n. 1

De modo geral, no Brasil, as/os professoras/es têm sido responsabili-


Partici-
zadas/os pelo fracasso escolar das/os estudantes. O que você pensa a
pantes
respeito disso?
1 Nós professores somos infelizmente massa de manobra
2 Não concordo.

300
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Jamais, os professores em sua maioria são os responsáveis por manter uma


3 educação de qualidade no País. Concordo que existem professores que já
cansados de serem mal tratados acabam por oferecer uma educação que
remete à escola tradicional, mas são poucos.

É um grande erro responsabilizar somente os professores, quando muitas


vezes nós não temos as condições necessárias para lidar com as dificuldades
4 dos estudantes, e a escola está inserida numa sociedade que não valoriza
o ensino e o conhecimento, e o professor é o único que precisa lutar para
mostrar sua importância.

De modo geral os professores têm sido responsabilizados pelo fracasso es-


colar. Infelizmente, muitos de nós, embora nos dediquemos e façamos um
trabalho de excelência, nos deparamos com situações que nos impedem de
5
agir com autonomia. O discurso de que o professor tem autonomia para
agir em todos os âmbitos com seus educandos, não é verídico. Posso dizer
por experiência de atuação em rede pública, bem como na rede privada.

Não e nunca será, mas sim a é o q faz a diferença da pública e da institui-


6
ção privada.

Professores mal instruídos enquanto estudamos 4 anos presenciais para


uma formação, pessoas passam 2 anos em faculdades onlines onde não se
aprendem a metade entram sem aprendizado ensinar o como se não fazem
cursos governos e prefeitos não oferecem cursos para professores ...O go-
7
verno não quer saber se o aluno aprendeu, mas sim que tenha nota. Não
podemos reprovar alunos, temos de recuperar mesmo que não tenha apren-
dido nada..Professores mal pagos procuram outros meios como segunda
opção, pois o salário não compensa...

8 Penso que essa resposta é a válvula de escape do sistema.

9 É sempre bom ter alguém pra por a culpa.

301
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Quadro 3: Respostas à pergunta n. 2.

Partici-
Quais fatores você atribuiria como causa do fracasso escolar?
pantes
Má gestão pública e a carga horária excessiva com baixos salários que
1 obrigam o professor a trabalhar mais para ganhar um tanto que seja ra-
zoável para viver.
2 Sistema de Ensino.
Má gestão por parte dos governantes que enxergam a educação como
gasto e não investimento. Isso, porque muitas vezes não convém formar
3
a sociedade, o conhecimento sempre será uma arma aos olhos de gover-
nantes sem boas intenções.

São vários os fatores, desde pessoais, como a falta de condições básicas


de saúde, alimentação, moradia que contribui para o desinteresse escolar
4 do aluno, a falta de apoio familiar; um sistema de ensino que não valo-
riza a escola, o professor e o estudante, falta de estrutura e materiais nas
escolas e até mesmo a falta de qualificação profissional dos professores.
Acredito que um fator bastante relevante, seja aprovação de alunos que
não poderiam ser aprovados. As escolas, embora discutam constantemen-
te questões qualitativas, na hora da aprovação querem quantidade. Há
alunos que, por diferentes razões, não estão aptos (principalmente anos
iniciais) a seguir nas séries seguintes. O processo de alfabetização é de
suma importância na formação da criança. Avançar uma criança sem que
ela esteja pronta para isso, no meu ponto de vista é queimar etapas e pre-
judicar seu desenvolvimento como um todo. Outro ponto que considero
bastante importante, diz respeito ao envolvimento dos familiares. Nas
escolas, de modo geral, a grande maioria dos responsáveis não se preocu-
5 pam com o aprendizado e sim se a criança “vai passar de ano”. Percebo
que não há interesse de alguns se houve o aprendizado efetivo. O envol-
vimento, parceria com o professor ainda é pouco. Talvez fique a indaga-
ção para uma nova pesquisa “Por qual motivo alguns familiares não se
envolvem efetivamente com a educação escolar dos seus filhos”. Outro
fator que também posso elencar aqui, seria a desvalorização do professor
enquanto profissional. O professor da Educação Básica é extremamente
desvalorizado no nosso país. Desta forma, tem sido uma profissão em que
poucas pessoas procuram. Bem, são vários os fatores no meu ponto de
vista e que poderia elencar, entretanto, os citados acima são os que estão
latentes em minha concepção.

302
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

falta de verba e material de boa qualidade infra estrutura e suporte com


6 material pedagógico aos professores é o q faz a diferença da pública e da
instituição privada
Os alunos principalmente do ensino médio desistem pois acreditam que
7 é melhor o trabalho lá fora que a escola é o aprendizado… Alunos e pro-
fessores não têm incentivo...
8 Falta de interesse de muitos estudantes.
Falta de investimento verdadeiro e eficaz, tanto na escola como nos pro-
9
fissionais da educação

Quadro 4: Respostas à pergunta n. 3.

Partici- Na sua prática docente, o que você tem feito com relação ao fracasso
pantes escolar (estratégias de enfrentamento)?
Burlando o sistema (possibilitando aos estudantes mais conteúdos críti-
1
cos e menos técnicos).

2 Fazendo recuperação paralela, com aplicabilidade de desempenho.

Primeira observação, o que você entende por fracasso escolar? Ideb,


ANA, Prova Brasil e ENEM? Se as fontes para essa afirmação estão ba-
seadas nas estatísticas dessas avaliações, eu acho uma afirmação superfi-
3
cial, não condiz com a realidade. Sobre a minha atuação como professor
no que diz respeito a minha disciplina tento fazer que a criticidade seja
cada vez mais uma realidade entre os jovens.

Estabelecer uma relação de proximidade com os estudantes possibilita


compreender a realidade de cada um e atuar diretamente em suas dificul-
dades, então sempre busco essa relação mais próxima, além de incentivar
4 muito a leitura de diferentes fontes e textos. Agora na pandemia não é
possível realizar trabalhos coletivos, mas uma estratégia são projetos que
envolvem o trabalho em grupo, além do debate de temas específicos em
sala.
Na minha prática docente, faço sempre avaliações diagnósticas, a fim de
partir do ponto real da necessidade de cada criança. Trabalho bastante
5 com jogos, pois acredito que a ludicidade é muito mais atraente e praze-
rosa para as crianças. Elaboro avaliações formativas. Todavia, como citei
anteriormente, muitas vezes não tenho autonomia para agir.

303
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Primeiramente vontade de ensinar, a fome de ver as crianças a aprender


6
mesmo com os recursos básicos.

Sempre tentamos mostrar a eles que lá na frente irá fazer falta o estudo...
7
Pois tudo que fazem precisam ter terminado os estudos escolares...

Tento incentivar os/as estudantes, reafirmando a importância de construir


uma carreira, me esforço para me aproximar deles, conhecer a realidade,
8 me colocar na mesma situação, dialogar sobre como a minha realidade
foi transformada pela educação. Busco preparar aulas de uma maneira
que seja atrativa para eles/as.

Tento identificar o ponto onde existe a falta do conhecimento, e tento tra-


balhar dobrado para sanar essa defasagem. Tudo isso durante a aula, pois
9
não existe outro tempo disponível. Mas não consigo material e ambiente
necessário para que isso seja de fato efetivo.

Análise dos dados

Analisando historicamente o fracasso escolar, é possível observar que os


fatores determinantes têm sido atribuídos muito mais a questões relacionadas
às/aos discentes, colocando automaticamente em segundo plano os fatores ex-
ternos à escola. Entretanto, um ponto pouco discutido entre os educadores são
as práticas pedagógicas, embora saiba-se que elas exercem um papel funda-
mental nas condições de educabilidade. Patto (1999) relata um dos mitos muito
difundidos que permeiam as explicações dos professores sobre esse fenômeno,
o de que a criança carente não aprende.

Podemos destacar que alguns desses mitos podem ser utilizados com a
intenção de isentar a escola e/ou seus profissionais do fracasso escolar, mas,
para superá-los, faz-se necessário ter conhecimento sobre quais são seus deter-
minantes; só isso permitirá enfrentá-lo.

Por outro lado, tanto a escola como o professor desempenham o papel de

304
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

mediadores no processo de transmissão-assimilação do conhecimento científi-


co e formal, o que auxilia no desenvolvimento de cidadãos críticos, capazes de
contribuir na transformação para uma sociedade realmente democrática.

Uma outra possível causa pode ser identificada diretamente nas práticas
pedagógicas, que precisam ser revistas por meio de uma reflexão sobre seus
principais elementos estruturantes: relação professor-aluno; metodologia de
trabalho; currículo; avaliação; e gestão. Essa reflexão não pode perder de vista
a especificidade do trabalho escolar.

Dessa forma, como podemos verificar nas tabelas apresentadas acima,


as/os professoras/es entrevistadas/os compreendem que são responsabilizados
pelo fracasso escolar, mas não mencionam sua própria prática, apenas o rela-
cionam a fatores externos, assim como foi apresentado na pesquisa de Moysés
e Colares, em que 35% dos professores falam de sua própria prática relacionada
ao não aprendizado da criança.

Alguns elementos apresentados pelas/os entrevistadas/os se relacionam


com o estudo das autoras e o complementam diretamente:

• A falta de condições materiais para trabalhar

“É um grande erro responsabilizar somente os professores, quando mui-


tas vezes nós não temos as condições necessárias para lidar com as dificulda-
des dos estudantes”.

“Falta de verba e material de boa qualidade infraestrutura e suporte


com material pedagógico aos professores”.

• Ambiguidade na responsabilização

“Professores mal instruídos, enquanto estudamos 4 anos presenciais


para uma formação, pessoas passam 2 anos em escolas online onde não se

305
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

aprendem. A metade entra sem aprendizado. Ensinar como, se não fazem cur-
sos? E governos e prefeitos não oferecem cursos para professores?”

“Concordo, que existem professores que já cansados de serem mal trata-


dos acabam por oferecer uma educação que remetem a escola tradicional, mas
são poucos”.

• Salário

“Baixos salários que obrigam o professor a trabalhar mais para ganhar


um tanto que seja razoável para viver”.

• Desvalorização profissional

“A escola está inserida numa sociedade que não valoriza o ensino e o


conhecimento, e o professor é o único que precisa lutar para mostrar sua im-
portância”.

“Infelizmente, muitos de nós, embora nos dediquemos e façamos um tra-


balho de excelência, nos deparamos com situações que nos impedem de agir
com autonomia. O discurso de que o professor tem autonomia para agir em
todos os âmbitos com seus educandos, não é verídico”

“O professor da Educação Básica é extremamente desvalorizado no nos-


so país”.

• Desinteresse dos alunos e familiares

“A falta de condições básicas de saúde, alimentação, moradia que con-


tribui para o desinteresse escolar do aluno, a falta de apoio familiar”.

“Há alunos que, por diferentes razões, não estão aptos (principalmente
anos iniciais) a seguir nas séries seguintes”.

306
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

“Os alunos principalmente do ensino médio desistem, pois acreditam


que é melhor o trabalho lá fora do que a escola e o aprendizado”.

“Falta de interesse de muitos estudantes”.

Entre os achados da pesquisa, podemos destacar alguns aspectos: primei-


ro com relação às respostas relacionadas à pergunta n. 1: observa-se, por parte
das/os professoras/es, uma consciência crítica que desloca a compreensão do
problema de uma dimensão micro (individual) para uma dimensão macro (con-
dições sociais mais amplas). Ou seja, ao rejeitarem, de modo geral, o lugar de
“vilãs” e “vilões”, reconhecem que o fracasso escolar não pode ser discutido de
modo amadurecido sem pensar e visibilizar as condições sociais mais amplas
que lhe dão contorno.

Ao mesmo tempo, quando respondem à pergunta n. 32, constata-se que


entre as alternativas encontradas estão as de caráter individual. Em outras pa-
lavras, é como se houvesse uma valorização das ações em escalas micro (indi-
viduais) em detrimento das coletivas e institucionais. Assim, as “saídas” para
a superação dos impasses ganham uma dimensão experimental, isolada, não
planejada e não reflexiva – em que cada um faz do seu modo, dentro de suas
“possibilidades”. Cabe pensar se tal voluntarismo – sustentado numa “vontade”
de fazer (portanto, numa ação) sem reflexão – seria suficiente para lidar com
dilemas educacionais tão complexos – e que envolvem atores, subjetividades,
expectativas, modelos, processos, planejamentos, objetivos, investimentos,
currículos, instituições, políticas, contextos sociais etc. Assim, há que se levar
em consideração “que existe um complexo universo de questões institucionais,
políticas, individuais, estruturais e de funcionamento presentes na vida diária
escolar que conduz ao [...] fracasso [escolar]” (Proença, 2002, p. 194).
2 Cabe refletir se o modo como a pergunta foi elaborada não teria influenciado as respostas. Suge-
re-se que, em pesquisas futuras, para contrapor aos achados atuais, seja apresentada às/aos partici-
pantes uma questão menos direcionada. Ressalta-se apenas que, na formulação, o grupo objetivou
conduzir a/o entrevistada/o a um processo de autorreflexividade – qual meu papel, enquanto pro-
fessor/a, na mudança das condições socialmente impostas?

307
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Considerações Finais

O que tudo isso nos permite pensar? Qual o papel da psicologia escolar
nesse contexto? Quais os caminhos possíveis para a superação dos impasses e
dilemas encontrados?

Talvez o primeiro ponto a ser destacado é a importância de uma com-


preensão não particularista do problema. Entendemos como “particularistas”
as perspectivas e/ou ações que tendem a tomar o todo pela parte – ou, dito de
outro modo, que tendem a tratar uma problemática de caráter sistêmico como
de ordem “particular”. Nessa abordagem, busca-se sempre a figura do “bode
expiatório”, que pode ser o professor, o diretor, o estudante ou os familiares,
mas nunca um conjunto de atores e condições.

Conforme apontam diferentes autoras/es, é preciso considerar sujeitos,


processos formativos, relações interpessoais, condições de trabalho, infraes-
trutura, orçamentos/financiamentos, currículo, condições sócio-político-econô-
micas etc. Diante de um cenário tão complexo, se não existe receita de bolo ou
“varinha mágica”, é preciso evitar as saídas fáceis, quais sejam: responsabili-
zação individual, intervenções verticalizadas, perspectivas medicalizantes e/ou
abordagens individualistas.

O que os professores “culpados” apontam é que a responsabilização do


outro é sempre o caminho mais fácil e, talvez, o mais cômodo. Mais do que
culpados, é preciso fomentar uma cultura de corresponsabilidades, em que os
acertos e erros sejam problemas de todos e não de alguns, e que questões com-
plexas sejam enfrentadas com a complexidade que merecem – para além de
meros voluntarismos.

308
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Referências
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dos professores. Educação & Sociedade, 30(107): 349-372.

Barreto, M. A. (2007). Ofício, estresse e resiliência: desafios do professor uni-


versitário. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal, RN.

Collares, C. A. L., & Moysés, M. A. A. (1996). Preconceitos no cotidiano es-


colar: ensino e medicalização. São Paulo: Cortez.

Gasparini, S. M; Barreto, S. M; Assunção, A. A. (2005). O professor, as con-


dições de trabalho e os efeitos sobre sua saúde. Educação e pesquisa, 31(2):
189-199.

Goes, C. R. (2014). O ser professor na contemporaneidade: entre a utopia de


mudar o mundo e o desencantamento da realidade. Trabalho de conclusão de
curso, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.

Patto, M. H. S. (1999). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão


e rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Pozzobon, M., Mahendra, F., & Marin, A. H.. (2017). Renomeando o fracasso
escolar. Psicol. Esc. Educ, 21 (3): 387-396.

Proença, M. (2002). Problemas de aprendizagem ou problemas de escolariza-


ção? Repensando o cotidiano escolar à luz da perspectiva histórico-crítica em
psicologia. In: Oliveira, M. K., & Rego, T. C. (Orgs.). Psicologia, educação e
as temáticas da vida contemporânea (pp. 177-195). São Paulo: Moderna.

Tardif, M. (2012). Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes.

Teixeira, I. A. C. (2007). Da condição docente: primeiras aproximações teóri-


cas. Educação & Sociedade, 28(99): 426-443.

309
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 21

O LÚDICO NA TERAPIA
ANALÍTICO-COMPORTAMENTAL
INFANTIL
Juliety Aliny Souza
Felipe Maciel dos Santos Souza
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-B

A Análise do Comportamento, segundo Tourinho e Luna (2010), é uma


orientação teórico-metodológica em Psicologia sustentada pelos pressupostos
filosóficos do Behaviorismo Radical. O Behaviorismo Radical surgiu com as
propostas de B.F Skinner para compreensão do Comportamento Humano por
meio de uma metodologia científica (Skinner, 1974).

A Terapia Analítico-comportamental tem como bases as teorias e princí-


pios de aprendizagem que se desenvolveram a partir do início do século XX,
apoiado nos conceitos de condicionamento clássico, desenvolvido por Pavlov,
condicionamento operante, de Skinner, e aprendizagem social, de Bandura. A
Análise do Comportamento Clínica (Clinical Behavior Analysis) e a Terapia
Analítico-comportamental são definidas como modalidades de psicoterapia
fundamentadas na filosofia do behaviorismo radical e nas bases conceituais,

310
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

metodológicas e empíricas da análise do comportamento (Tourinho & Caval-


cante, 2001, Meyer et al, 2010).

Como Leonardi (2015) pontua a criação do modelo comportamental de


intervenção clínica seguiu a mesma estratégia que havia se mostrado bem-su-
cedida em outras ciências: extrapolar princípios validados empiricamente na
pesquisa básica para a resolução de problemas aplicados. Os pressupostos teó-
ricos e filosóficos introduzidos por Skinner no âmbito da análise científica do
comportamento introduziram uma nova compreensão e intervenção do tera-
peuta comportamental junto a seus clientes, conforme afirmam Moura e Conte
(1997).

Para Castanheira (2002), a Terapia Comportamental é uma linha tera-


pêutica que se baseia nos princípios da aprendizagem operante e respondente,
que podem produzir mudanças no comportamento humano que possui como
um dos principais objetivos compreender as dificuldades dos clientes a fim de
propor estratégias e intervenções baseadas na análise funcional do comporta-
mento.

A Terapia Analítico-comportamental Infantil (TACI) faz uso de jogos e


brincadeiras na relação que se estabelece com as crianças, e constitui numa área
de atividade clínica que visa beneficiar crianças e suas famílias, por intermédio
da aquisição de comportamentos sociais relevantes e a, também, busca melho-
rar o repertório de interações sociais dessas crianças.

Segundo Lima (1981), a psicoterapia comportamental infantil é uma área


que possui um campo de atuação amplo e estende por diversas hierarquias de
problemas comportamentais, desde os mais simples, até incluir o desenvolvi-
mento de comportamentos sociais complexos.

311
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Para Vermes (2009), a terapia focada na criança envolve adaptação dos


procedimentos psicoterapêuticos utilizados com os adultos, a qual leva em con-
sideração o nível de desenvolvimento da criança. Enquanto que na terapia de
adultos os clientes podem descrevem seus comportamentos e relatam seus sen-
timentos, na terapia infantil o repertório verbal da criança para descrever seus
sentimentos e falar de suas lembranças pode ser restrito, o que tendem, a difi-
cultar o caminho do terapeuta no estabelecimento do contato da criança com as
variáveis que interferem em seus comportamentos e sentimentos (Kohlenberg
& Tsai, 2001).

Os jogos tem ganhado um olhar significativo dos pesquisadores, eles res-


saltam a importância da criança aprender a controlar o ambiente e fortalecer
suas habilidades de raciocínio. Outro recurso é o uso do faz de conta, que em
crianças pequenas pode ajudar no desenvolvimento de quesitos básicos para o
desenvolvimento social, bem como brincadeiras que ajudam a expressar sen-
timentos, anseios e vontades que por meio do relato verbal muitas vezes não
é possível de acordo com seu atual estágio do desenvolvimento (Del Prette &
Del Prette, 2006).

Nessa perspectiva, a brincadeira, o jogo, a fantasia, enfim, o lúdico é uti-


lizado como meio para se comunicar com a criança de uma forma mais ampla.
Azevedo e Moura (2000) afirmam que a brincadeira é um meio pelo qual a
criança desenvolve a comunicação de uma forma mais ampla entre as pessoas.
A importância do lúdico no processo terapêutico vem sendo enfatizada por
pesquisadores e teóricos como uma maneira pela qual a criança aprende a con-
trolar o ambiente e fortalecer suas habilidades sociais e de raciocínio.

Portanto estratégias lúdicas favorecem a formação do vínculo com a


criança, e ajudam a identificar regras que governam seus comportamentos, bem
como verificar a relação do indivíduo com o meio em que se relacionam (Ga-
delha & Menezes, 2004). Tendo em vista que o repertório verbal da criança

312
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

pode ser limitado devido a suas fases de desenvolvimento o uso do lúdico pode
favorecer a interação terapeuta e cliente, na coleta de dados, seu histórico de
vida além de propiciar um ambiente harmônico e auxiliar no estabelecimento
do vínculo terapêutico. O lúdico ajuda, ainda, o terapeuta a desenvolver uma
relação mais efetiva com seu cliente, por isso apresenta-se como uma atividade
reforçadora no processo terapêutico, podendo contribuir para que a criança se
empenhe nesse processo, tornando-o mais efetivo. Diante disso, esta pesquisa
se propõe a discutir o lúdico como norteador na prática clínica na Terapia Ana-
lítico-comportamental Infantil (TACI).

Materiais e Método
Tipo de pesquisa

Para a realização deste trabalho, fez-se uma pesquisa de bibliográfica, a


partir do levantamento de referências teóricas já analisadas, e publicadas por
meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, páginas de sítios
eletrônicos. Os artigos analisados foram selecionados com o objetivo de verifi-
car o lúdico como norteador na prática clínica na Terapia Analítico-comporta-
mental Infantil.

Fontes

Para a seleção dos artigos analisados foram consultadas as plataformas


digitais Lilacs, SciELO e Revista Perspectiva em Análise do Comportamento.

Procedimento de seleção e análise de documentos

A seleção dos artigos foi feita com o objetivo de verificar estudos de ca-
sos que usaram o lúdico na Terapia Analítico-comportamental Infantil. Primei-
ramente, foi feita a identificação dos artigos, em seguida, a análise do material
selecionado.

313
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Para a localização de artigos, fez se o cruzamento, na busca, das palavras-


-chave: analítico ou comportamental e lúdico, nas plataformas Lilacs e SciE-
LO. No Lilacs, a busca resultou em nove artigos, para verificar se os mesmos
atendiam os objetivos do trabalho, fez a leitura do título, resumo e descritores.
Dos nove artigos, três foram descartados por pertencerem a outro ramo da psi-
cologia, três por não se relacionarem à psicologia e dois por serem escritos em
língua estrangeira. Selecionou um artigo que estabelecia em seu título, resumo
e descritores a relação estabelecida por esta pesquisa.

A mesma busca, seguindo os mesmos critérios, foi realizada na platafor-


ma SciELO. Foram encontrados cinco artigos que foram descartados pelos se-
guintes critérios: dois por pertencerem a outra corrente da psicologia, dois por
serem escritos em língua estrangeira e um por não se relacionarem à psicologia.

Na “Revista Perspectiva em Análise do Comportamento” foram analisa-


dos os artigos publicados de 2010 a 2018, seguindo o critério estabelecido neste
trabalho, buscou-se artigos que abordassem o uso do lúdico no tratamento pela
Terapia Analítico-comportamental. Dentre os artigos examinados, um artigo
enquadrou-se no propósito desta pesquisa.

Resultados e Discussão

Nos artigos selecionados serão analisados objetivos, os métodos utili-


zados, dando ênfase à importância das estratégias lúdicas empregadas na te-
rapia infantil e os resultados obtidos na pesquisa. Esta análise visa verificar a
relevância do uso do lúdico para a aquisição de comportamentos desejáveis e
mudança de comportamentos indesejáveis no cliente durante o processo tera-
pêutico na TACI.

Haber e Carmo (2007) propõem-se a comparar as informações da litera-


tura especializada com entrevistas sobre as habilidades e conhecimentos neces-

314
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

sários ao psicólogo comportamental, para atuar de forma eficiente, utilizando


a fantasia como recurso. Para tanto, os autores fazem entrevistas com quatro
psicólogas que atuam com crianças e seus familiares em contexto clínico. O
método utilizado pelos autores consistiu em fazer perguntas às entrevistadas e
as respostas foram expostas em quadros e analisadas pelas pesquisadoras, con-
forme o exposto a seguir.

A seguir apresenta-se um resumo das respostas das entrevistadas. Ao se-


rem questionadas se utilizavam o fantasiar em seu trabalho, todas as pesquisa-
doras responderam afirmativamente. A definição dada ao fantasiar pelas tera-
peutas incluiu as seguintes concepções: duas mencionaram o fantasiar como
um evento privado, uma disse que é um instrumento que possibilita a discrimi-
nação de comportamentos abertos e encobertos e uma afirmou que fantasiar é
um meio inato para superar as dificuldades.

Na resposta à questão sobre a importância do fantasiar no processo te-


rapêutico, as entrevistadas ressaltaram que fantasiar é motivador e possibilita
o vínculo terapêutico que é uma forma de expressar o que ocorre no seu am-
biente, que ajuda tanto o terapeuta a ter acesso a contingências e a repercussão
quanto a criança expressar seus sentimentos e ainda, pelo fantasiar, a criança é
capaz de fazer equivalência de estímulos com pessoa da família, da escola e do
seu círculo de amizade.

Quando questionadas sobre as habilidades e questionamentos necessários


para se utilizar o fantasiar na TACI, as entrevistadas enfatizaram a importância
do embasamento teórico. As entrevistadas também foram unânimes em dizer
que os eventos públicos e privados são importantes ao analisar comportamentos
e que o fantasiar permite ao terapeuta o conhecimento desses eventos. Quando
se questionou sobre a realização da análise funcional do fantasiar, destacou-se
que a fantasia exerce a função pela qual a criança pode explicar uma realidade.

315
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

No que concerne aos resultados obtidos na pesquisa, os autores afirmam


que é possível dizer que na prática clínica “o fantasiar é um recurso que o psi-
cólogo da abordagem comportamental pode utilizar ao trabalhar com crianças,
já que motiva a emissão de comportamentos observáveis e o relato verbal de
eventos privados” (Haber & Carmo, 2007, p.58).

Bezerra, Teixeira Júnior e Palha (2013) têm por objetivo em seu artigo
demonstrar como a brincadeira e a produção de regras podem interferir em
outros comportamentos de uma criança. O trabalho baseia-se nos registros dos
atendimentos da paciente de nome fictício Kissyla, seis anos, que foi levada à
terapia pela mãe, apresentando como queixa principal o ato de roubar, verifi-
cou-se que esse comportamento estava relacionado à dificuldade da criança de
seguir regras e também da ausência de vínculo afetivo com a mãe.

Através da descrição do caso, observa-se que um número variado de brin-


cadeiras foi usado pela terapeuta com o objetivo de estabelecer gradativamente
a ampliação de seguimento de regras. Utilizando-se de desenhos e gravuras de
pessoas negras bem-sucedidas, Kissyla aumentou sua autoestima, pois a mes-
ma não se aceitava como negra, representava-se, inicialmente, nos desenhos
como uma menina loira e de olhos verdes. Brincando de salão de beleza, a
cliente soltou os cabelos, modelou os cachos e se reconheceu bonita ao olhar
no espelho.

Por intermédio das brincadeiras, a cliente aprendeu a seguir regras como


não trapacear, assumir erros, respeitar a mãe, arrumar o quarto ou tomar banho.
Para a aquisição dessas regras foram usadas histórias, boliche, ludo, uno, do-
minó e jogos de tabuleiros inventados pela terapeuta que consistia em obedecer
a regras para poder continuar jogando.

316
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

O contato com as regras por intermédio das brincadeiras também possi-


bilitou à cliente formular outras regras como “não roubar” durante o jogo de
boliche ou autorregras como “o importante é brincar” quando estava perdendo
no jogo.

A importância da presença da mãe na terapia foi relevante, pois orientada


pela terapeuta para brincar com os filhos, a mãe estreitou seus laços com Kis-
syla. Notou-se que nas semanas que a mãe relatava, nas sessões, que ter dado
atenção à filha e brincado com ela, a criança obedecia com mais frequência as
regras estabelecidas, ao contrário das semanas das semanas que não havia essa
proximidade e as brincadeiras não ocorriam.

Nota-se que grande parte das mudanças no comportamento da cliente é


atribuída às brincadeiras realizadas pela terapeuta. Podendo se dizer que a brin-
cadeira teve papel na mudança de comportamento da cliente, pois foi através
delas que Kissyla desconstruiu comportamentos que foram motivos da queixa
inicial e construiu novos comportamentos que auxiliaram na convivência mais
harmoniosa de toda a família.

O primeiro artigo analisado relata o resultado de uma pesquisa feita com


terapeuta que usam o lúdico nas terapias. Nesta pesquisa, observa-se a relevân-
cia dada ao lúdico, ressaltando que todas as entrevistadas usavam as brincadei-
ras nas terapias e destacam que o fantasiar é motivador e ajuda a estabelecer
o vínculo terapêutico. O segundo artigo demonstra como o lúdico mudou o
comportamento de uma cliente que tinha dificuldade em obedecer a regras, tor-
nando sua convivência familiar mais harmonioso.

Ao examinarmos os dois artigos, observa-se que ambos ressaltam que


a importância do trabalho lúdico na Terapia Analítico-comportamental, pois
intermédio das brincadeiras, o terapeuta estabelece um vínculo com o terapeu-

317
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

ta, tem acesso aos fatos que ocorrem no ambiente da criança, assim auxilia o
cliente a modificar comportamentos que são motivos da queixa inicial que le-
vou a criança a terapia e adquirir comportamentos desejáveis que a auxiliarão
no decorrer de sua vida.

Considerações Finais

Este trabalho propôs-se a discutir o lúdico como prática norteadora na


Terapia Analítico-comportamental Infantil. Na atualidade, a forma como os
adultos tratam as crianças é muito diferente de como as crianças eram tratadas
em épocas passadas. Estudos históricos, revelam que em épocas mais remotas
as crianças eram tratadas como adultos em miniatura e a elas cabiam tomar de-
cisões e ter comportamentos tais quais os adultos.

Os novos modos de interação entre adultos e crianças, modificam tam-


bém a relação estabelecida entre os terapeutas infantis e seus clientes. Hoje, há
mais conhecimento sobre as necessidades da criança, sobre a importância das
brincadeiras para seu desenvolvimento sensorial, motor, emocional e compor-
tamental e sobre como o ambiente exerce influência na aquisição e manutenção
de comportamentos.

Os trabalhos realizados na área da Terapia Analítico-Comportamental In-


fantil tendem a convergir para a análise de que a busca por recursos e técnicas
específicas para a criança se justifica no sentido de garantirmos uma prática
mais adequada para a mesma. Os artigos analisados evidenciaram que o uso
do lúdico é visto como uma prática relevante na relação terapeuta e cliente, tal
qual evidencia a revisão da literatura. Por intermédio do lúdico, estreita-se os
vínculos entre terapeuta e cliente, evidencia comportamentos da criança e das
pessoas que convivem com ela nos diferentes ambientes e comportamentos
sobre os quais a criança não relataria verbalmente.

318
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Ao final desta pesquisa, pode-se dizer que o lúdico exerce um papel de


relevância na Terapia Analítico-comportamental Infantil. Além disto, corrobo-
ra-se a hipótese de Vermes (2009), ao se constatar que atuar como terapeuta in-
fantil exige do profissional alguns conhecimentos e algumas habilidades espe-
cíficas, pois a coleta de informações e as metodologias de intervenção precisam
alcançar instâncias além do relato verbal. De maneira geral o terapeuta faz uso
de brincadeiras, jogos, encenações e desenhos enquanto ferramentas lúdicas
que auxiliam o processo de expressão da criança. Entretanto, sugere-se que
novos estudos sejam realizados para ampliar os conhecimentos aqui propostos.

Referências
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terapia comportamental infantil. Em: R. C. Wielenska, (Org.), Sobre comporta-
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Bezerra, T. A. dos S., Junior, R. R. T., & Palha, D. C. (2017). A produção de


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319
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

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320
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 22

TESTE DE FLANKER COMO


INSTRUMENTALIZAÇÃO
COMPLEMENTAR NO RASTREIO
DO TRANSTORNO DE DÉFICIT DE
ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE
Tainá Dauzaker Cespedes
Carlos Arturo Valiente Filho
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-V

Este trabalho foi fundamentado em uma pesquisa que explora possibi-


lidades metodológicas para o rastreio do Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH) perante ao uso do Teste de Flanker. O transtorno cita-
do envolve déficits em variados tipos de processamento, entre eles as Funções
Executivas (FE) um dos focos de interesse deste trabalho para com como estas
podem ser investigadas em um processo de rastreio, tanto no âmbito clinico
quanto no da pesquisa através da exploração do uso de instrumentalizações ba-
seadas na teoria de Tarefa Flanker de Eriksen e Eriksen (1974), na proposição
de um estudo de processamento de informação visual.

321
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Esta pesquisa destina-se a investigadores e profissionais que buscam a


oportunidade de enriquecimento instrumental e metodológico, mas também
aos indivíduos em processo de rastreio de um possível distúrbio, sendo uma
oportunidade de enriquecimento para a disciplina da Psicologia, sua atuação e
ciência.

A Tarefa de Flanker, aqui explorada, tem foco em processamentos vi-


suais, como muito bem citado pelo professor Rensink (2015), temos a vivência
de um mundo que se modifica constantemente a partir de cores, formas e mo-
vimentos vistos por nossos olhos, mas não temos conhecimento dos processos
envolvidos nesta visualização, a partir desta pesquisa de faz possível a indaga-
ção de possíveis interligações de processos atencionais e visuais.

A hipótese de utilização do Teste de Flanker, vem como uma oportuni-


dade de inovação para com os recursos já disponíveis para o rastreio dentro do
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), ampliando pos-
sibilidades que podem tornar este processo de mais fácil reconhecimento, de
forma menos evasiva e mais instigante, já que o teste se apresenta de forma
singular, e mais tecnológica.

Portanto, este artigo tem o intuito de disponibilizar possibilidades dentro


da classe da Psicologia, expandindo oportunidades de fortalecimento e promo-
ção cientifica que poderá ampliar o jeito de fazer pesquisa e atuar com o públi-
co citado, tornando viável progressos perante à saúde mental do indivíduo.

Assim sendo, objetivou-se a investigação da utilização do Teste Flanker


como instrumentalização no rastreio do TDAH, por meio de reflexões sobre
este transtorno, e da Teoria de Tarefa Flanker, envolvendo, ambos campos,
atencional e visual.

322
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Estímulos Flankers

Dada a tarefa proposta por Eriksen e Eriksen (1974) existem termos fun-
damentais para a compreensão da forma como esta se apresenta, essencial-
mente nos denominados Flankers, que são tipos de distratores apresentados
de acordo com as respostas direcionais fornecidas a partir da procura por as
figuras alvos diante ao teste, os mesmos são caracterizados quanto a seu modo
de presença nas imagens bases dessa tarefa, são eles: Neutros, Congruentes e
Incongruentes (MClean et al., 2013).

Os estímulos flankers podem aparecer de diversas formas, com o exem-


plo de flechas se faz possível revelar como são caracterizados: levando em con-
ta que o alvo é central e está apontando para uma direção específica ao seu lado
haveria flechas (ou outro elemento) apontando para a mesma direção que esta,
definindo assim estes estímulos flankers como congruentes. Caso contrário, em
uma proposta de flankers apontando para a direção oposta da denotada pelo
alvo, estes são denominados como incongruentes (White, Ratcliff & Starns,
2011).

Já no caso de flankers neutros a resposta vem a ser divergente em seu


aspecto quando em comparação com congruentes e incongruentes, como muito
bem colocado por Lamers e Roelofs (2011), o termo neutro dado aos estímulos
apresentados na tarefa, se faz indicativo de flankers que não evocam conflito
em sua resposta, não possuindo uma exposição idêntica ou similar, de forma a
não se assemelhar com o alvo de nenhuma maneira.

Com a teoria de Eriksen e Eriksen (1974) se convoca a ideia advinda


de fortes evidências de que os estímulos prejudicam o processamento do alvo
central designado levando assim em consideração estes estímulos (Flankers)
citados anteriormente, como distratores da Tarefa de Flanker.

323
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Tarefa de Flanker

A Tarefa de Flanker foi proposta por Eriksen e Eriksen em 1974 no traba-


lho intitulado “Effects of noise letters upon the identification of a target letter
in a nonsearch task” que apresenta uma abordagem experimental no processa-
mento das informações visuais a partir da exibição de um alvo incorporado em
meio à elementos considerados ‘’ruídos’’.

Sobre este estudo Rossini (2006) discorre sobre o estruturamento do teste


estudado: os indivíduos participantes desta tarefa são demandados a identificar
um alvo que possui acompanhamento de flankers compatíveis e incompatíveis
com o mesmo.

Estes estímulos são dispostos com o alvo no centro da imagem apre-


sentada, e os estímulos flanqueadores distribuídos em cada lado do alvo, tais
imagens flanqueadoras são apresentadas por meio de letras, números ou setas,
expondo diferenças de acordo com o ruído intencional de flankers incongruen-
tes (MClean et al., 2013).

É imprescindível afirmar que a ação do sujeito participante de tal tarefa tem


seu desempenho prejudicado pela presença de estímulos flankers incompatíveis
com o alvo, esta circunstância é nomeada de efeito flanker (Rossini, 2006).
Percebe-se também que o tempo de reação é maior quando o alvo e os estímulos
intrusos se apresentam como compatíveis (Rossini & Galera, 2010).

Na Tarefa de Flanker se faz presente a focalização atencional, que é com-


parada em analogia à um holofote que se desloca em posições preenchidas por
objetos no campo de visão contendo dimensões constates, possuindo uma rela-
ção de foco de atenção e características da visão (Posner, Snyder & Davidson,
1980).

324
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Para além, posteriormente a estas pesquisas citadas, Eriksen e Schultz


(1979) analisam pesquisas visuais com o exemplo de: a taxa de associação de
informações relacionadas aos estímulos varia de acordo com os parâmetros do
estímulo em questão de tamanho, contrastes e lócus retiniano, assim como, a
distinção almejada entre ruído e os distratores podem vir a ser manipulados por
diversas modificações.

Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade


(TDAH)

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, é bastante conhe-


cido em meios acadêmicos e de pesquisa, definido de forma constantemen-
te retomada por ser um transtorno do neurodesenvolvimento, delimitado por
implicações gerais em termos de desenvolvimento, dificuldades classificadas
por se expressarem em diversos aspectos do indivíduo, em seu funcionamento
social, pessoal, acadêmico entre outros (DSM-5). Como exposto com frequên-
cia o TDAH é caracterizado por certa permanência destes sintomas principais:
desatenção, hiperatividade e impulsividade de maneira severa, prevalecente em
crianças antes dos 12 anos de idade (Souza, 2017).

Como colocado por Caliman (2010), frente ao diagnóstico e definições


dadas durante a história deste transtorno, se faz necessário um olhar crítico
para uma visão de face biológica reducionista presente por muito tempo dentro
do percurso desta condição, também a uma “cerebrização” característica que
sobrepõe a identidade do indivíduo, por vezes desconsiderando faces morais e
políticas e participações no compreendimento e tratamento do TDAH, faz- se
fundamental a diferenciação de uma análise reducionista, para que se torne
possível intervenções mais plurais e éticas na ação perante a este transtorno,
indo além de uma patologização determinista.

325
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Para além dos comprometimentos motivacionais, por exemplo, perante


as dificuldades cognitivas apresentadas (Barke et al., 2014), os indivíduos que
possuem esta condição estão acometidos de prejuízos na função e desempenho
executivo, dando ênfase para: memória de trabalho, circuitos de temporização,
processamentos básicos, controle inibitório, etc. (Rosa, 2018).

Funções executivas (FE)

As Funções Executivas (FE) apresentadas com déficits no TDAH, como


mencionado anteriormente, são conceituadas como habilidades de origens cog-
nitivas, implicadas ao sistema de controle e direção do comportamento perante
a uma meta estabelecida especificamente, sendo de pratica a supervisionar con-
juntos sequenciais de ações (Elage & Seabra, 2021).

Estão presentes habilidades especificas em questão às funções executi-


vas de importância significativa para realização e manutenção de tarefas, cita-
das por Elage e Seabra (2021): a memória de trabalho- em sua capacidade de
armazenamento e renovação de informações, o controle inibitório- que inibi
respostas automatizadas para que arremates cabíveis à operação apresentada, e
a flexibilidade cognitiva, tomada como a maleabilidade entre focos de atenção
em diferentes tarefas e demandas. A partir destas, pode-se então favorecer três
elementos das FE’S a atualização, o deslocamento e a inibição, cabíveis, por-
tanto, as principais necessidades acometidas pelas metas de atuação em tarefas
(Miyake & Friedman, 2012).

Focando na FE determinista para este artigo, nomeamos a atenção, mais


especificamente como o fator em uma tarefa que é determinado pelo desempe-
nho favorável a certos tipos de percepções, possuindo limites claros quanto a
quantidade de percepções (Rensink, 2015). Vale ressaltar que devem ser consi-
derados também os pressupostos ligados as interfuncionalidades psíquicas e a
análise de função, como a atenção no TDAH, por exemplo. (Souza, 2017)

326
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Miyake et al. (2000) expõe que a mudança de atenção visual envolve


lobos parietais e o mesencéfalo, enquanto a mudança guiada em relação ao
executivo é regulada pelos lobos frontais e cingulado anterior, portanto, consi-
derando a interligação de funcionamento e de funções executivas perante aos
tipos atencionais, como a atenção visual. Como possibilidade Miyake e Fried-
man (2012) referem-se a popular ‘’Tarefa de Stroop’’ como uma proposta de
tarefa específica que possui relação sistemática de variância associada ao con-
texto de FE’s, apresentando também, ruídos aleatórios, teste proposto como
avaliador de atenção seletiva (Dias et al., 2013).

Apesar destes potenciais instrumentos relacionados as funções executi-


vas, o campo de pesquisa ainda é carente de teorias concludentes a partir de
mecanismos de propósitos gerais interligados entre vários subprocessos cog-
nitivos (Miyake et al., 2000), como proposta deste trabalho visa-se uma pro-
posição de instrumentalização para enriquecimentos possíveis para a temática
acerca de funções executivas.

Como predito por Galdos et al. (2011) o Teste de Flanker é um indicador


do controle executivo da atenção. Mirabella (2020) propõe a resolução de um
conflito que avalia a habilidade de inibição com a presença de interferência,
no caso da Tarefa de Flanker, há a potencialidade de duas respostas como
consequência de interferências, podendo levar o indivíduo à uma resposta
errônea.

Ao utilizar a Tarefa de Flanker se faz possível a divisão de interferência


no nível de estímulo e interferência no nível de resposta, notando também, que
os conflitos gerados por respostas incongruentes para ter prevalência sob o efei-
to de interferência do nível incongruente em relação aos conflitos, exige mais
controle cognitivo (Davranche, Hall & McMorris, 2009).

327
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Materiais e Métodos

Para esta pesquisa qualitativa de cunho exploratório, realizou-se uma


revisão narrativa de literatura, este tipo de revisão tem suas particularidades
(Cordeiro et al. 2007), não possuindo um protocolo extremamente rígido para
sua produção e não é pré-determinado e especifico na busca por fontes, assim
como na seleção de artigos, que é caracterizada por ser influenciada pela per-
cepção subjetiva do autor, sujeita assim a viés de seleção, neste caso a seleção
foi feita por meio de buscas de artigos em bibliotecas virtuais e bases de dados,
como: PePSIC, Scielo e Google Acadêmico.

A seleção de artigos foi feita de Outubro a Dezembro de 2021, e os ma-


teriais coletados são datados de forma variada, desde que materiais de teorias
bases são de extrema importância para esta pesquisa mesmo sendo de outrora,
e justificando-se também pelo expansivo alcance dos aspectos e fundamentos
desta temática, porém escassez do tema ‘’Tarefa de Flanker’’.

A maioria dos artigos foram selecionados priorizando ao Inglês como


linguagem, já que pesquisas relacionadas a teoria mencionada anteriormente
são de origens norte-americanas, se encontrando em déficit no campo nacio-
nal. Os descritores considerados nesta pesquisa foram: Teste de Flanker; Tarefa
Flanker, Flakers, Funções Executivas, Transtorno de Déficit de Atenção e Hi-
peratividade, TDAH, Atenção Visual e Focalização. Em Inglês: Flanker Test;
Flanker Task, Flakers, Executive Functions, Attention Deficit Hyperactivity
Disorder, ADHD, Visual Attention and Focusing.

Os materiais bibliográficos foram inseridos levando em conta a seguin-


te ordem de seleção prévia: consideração dos descritores, leitura do resumo e
leitura dos objetivos, após esta triagem fez se possível a leitura na integra dos

328
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

materiais que ainda se colocavam sujeitos a análise do critério de importância


e relevância temática, conseguinte fez se possível a inserção dos seguintes arti-
gos ao trabalho aqui exposto.

Para a incorporação dos materiais bibliográficos, foram assinalados de-


pendendo do teor e objeto destes, priorizando conteúdos relacionados a inves-
tigação do tema atencional, tópico que se apresenta como o elo da temática do
presente trabalho. Para o valor de exclusão se fez necessário desconsiderar teo-
rias que possuem visões subjetivas para com o transtorno apresentado, ou/e aos
conceitos mencionados: funções executivas, Tarefa de Flanker, etc, já que este
trabalho tem a intenção de levantar hipóteses analíticas de ciências especificas,
como as das teorias cognitiva e a comportamental.

O processos foram dados perante a tal organização: Levantamento da


hipótese inicial, seguida pela coleta dos materiais possíveis para responder a
pergunta da pesquisa, conseguinte se fez admissível a análise dos dados cole-
tados para que se fizesse executável a etapa final, de cogitação da hipótese e
pergunta inicial, levando em conta o rigor cientifico necessário para a atividade
deste trabalho, se apresenta necessário o mapeamento dos processos, podendo
ser apresentados por meio de registro de ações e pontos da tomada de decisões
(Zacharias, 2010), resultante no seguinte fluxograma:

Figura 1. Mapeamento do processo de metodologia por meio do Fluxograma.

329
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Resultados e Discussão
Tabela 1: Quantidade de itens inseridos em relação aos descritores desta
pesquisa.

DESCRITORES N° DE ITENS

Flankers 3

Funções Executivas 7

Tarefa de Flanker 6

Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) 6

De acordo com os dados fornecidos com a inclusão de trabalhos, artigos e


livros a partir de tais descritores principais: Flankers; Funções Executivas; Ta-
refa de Flanker e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH),
fez-se possível a proposição e cogitação da hipótese inicial que buscava a via-
bilidade do uso do teste como promissor para variação e complementação de
instrumentos no âmbito do rastreio do TDAH, a partir dos resultados fez-se
possível tal discussão.

A tarefa de Flanker se apresenta como um teste onde se considera o de-


sempenho a partir da resposta que o sujeito deve dar em relação a um alvo
específico central ladeado por estímulos distratores, possuindo assim uma in-
terferência de resposta (STINS et al., 2007).

Este teste se apresenta como uma tarefa a ser resolvida, envolvendo ha-
bilidades do sistema cognitivo que devem funcionar de forma harmônica, tam-
bém possibilita um funcionamento geral das funções executivas principais,
aqui já citadas, como: memória de trabalho, controle inibitório e a flexibilidade
cognitiva, e a atenção que se encontra em ligação com estas, vale citar que o
uso da atenção seletiva se mostrará como conciliadora na ‘’concentração’’ em

330
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

meio aos estímulos e que a atenção visual se baseia em localização dos estimu-
lo perante ao espaço e características do alvo (Rossini & Galera, 2006).

O sujeito que tem TDAH, possui déficits em funções executivas, estas


que são sujeitas a análise durante o Teste de Flanker, cabendo assim, a hipótese
inicial como concebível, já que estas habilidades cognitivas e executivas vem
a ser apontadas por meio da tarefa, predispondo que em caso de carência ou
insuficiência das mesmas, sobressaia-se perante a averiguação.

Considerações Finais

Depreende-se que esta pesquisa responde à pergunta inicial, confirmando


a hipótese de que é factível a utilização do Teste de Flanker na complementação
instrumental no campo de rastreio do Transtorno de Déficit de Atenção e Hipe-
ratividade (TDAH), ressaltando que é viável à contribuição de forma positiva
na condição de instrumentalização complementar e não em uso excepcional-
mente de apenas o uso do mesmo desacompanhado de outros materiais e mé-
todos, pois se coloca como enriquecedor da prática de rastreio, proporcionando
variedade, adaptação e novas possibilidades dentro deste âmbito.

Cabe ressaltar que este instrumento não é restritivo a nenhuma classe, po-
rém, serve de apoio para questões clínicas e de rastreamento, não cabendo a si
o diagnóstico de tal transtorno. Este material pode ser usado através de instru-
mentos tecnológicos (ex: computadores) permitindo maior comodidade, sendo
passível de modificações e adaptações, criando um ambiente mais controlado
para efetividade do teste, facilitando o acesso e, principalmente, fornecendo
dados estatísticos e computadorizados que permitem maior validade de resulta-
dos, sendo assim, uma proposta moderna.

Ressalta-se que esta pesquisa apresenta uma ideia enriquecedora para fa-
vorecer aos profissionais, pesquisadores, sujeitos com TDAH e indivíduos em

331
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

busca de esclarecimento de forma positiva visando ganhos comunitários de


forma social, acadêmica e auspiciosa. Sobressai-se a necessidade de aumen-
to e desenvolvimento de conteúdos sobre os descritores aqui exemplificados,
principalmente quanto a teoria de Eriksen e Eriksen sobre a Tarefa de Flanker
em campo nacional, já que a mesma se encontra em déficit nas plataformas
brasileiras.

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334
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 23

O SUICÍDIO NA VISÃO
DA GESTALT-TERAPIA
Thaynara Rodrigues Damasio
Dionatans Godoy Quinhones
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-C

O suicídio é uma grave questão de Saúde Pública, sendo a décima maior


causa de morte no mundo, segundo registros da Organização Mundial da Saúde
(2013). Ao se discutir sobre o tema do suicídio nos deparamos com os questio-
namentos acerca do sentido da existência e a falta de motivação para se viver.
Acredita-se que o suicídio é multicausal, ou seja, não existem explicações úni-
cas e não deve ser reduzido a um acontecimento desencadeante, e também não
pode ser interpretado somente como uma negligência com a própria existência.

A pessoa que se encontra com uma ideação suicida está lidando com a
falta de sentido da vida, com sentimentos de solidão, culpa e raiva, e vê a morte
como solução para o desespero, e como diz Bispo e Rosa (2013, p.18)“o sui-
cídio parece trazer consigo a ilusão de liberdade”. Segundo Fukumitsu (2012),
o suicida não almeja a morte, mas outra maneira de se viver, e a tentativa de
suicídio pode ser visto como um pedido de ajuda ao outro, em que a pessoa não
quer deixar de existir, mas quer viver de maneira diferente.

335
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Grande parte dos documentos que se propõe a discutir sobre o suicídio,


abordam as causas, os fatores de riscos e possíveis prevenções. Porém, segundo
Cerqueira e Lima (2015), existe uma carência de produções científicas brasilei-
ras sobre o tema, e essa escassez e pouca discussão é percebida principalmente
entre os profissionais psicólogos recém formados que relatam pouco contato
com informações e sobre como lidar com o fenômeno do suicídio.

Com esse entendimento, este trabalho teve como objetivo mapear e anali-
sar documentos encontrados nos dez últimos anos que dizem respeito ao fenô-
meno do suicídio na visão da Gestalt-terapia, pontuando e compreendendo os
mecanismos neuróticos da pessoa suicida e apresentando o que os documentos
encontrados dizem sobre a intervenção psicoterapêutica em situação de crise.

A Gestalt-terapia como uma abordagem com bases filosóficas no huma-


nismo, na fenômenologia e no existencialismo, busca responder e analisar as
mensagens existenciais da pessoa que consegue ou não se auto-aniquilar, discu-
tindo seus ajustamentos criativos disfuncionais. A abordagem gestáltica, apre-
sentada nesse estudo, possibilita a reflexão e discussão de diferentes ângulos na
busca de novas perspectivas na compreensão sobre o fenômeno do suicicídio,
e argumenta sobre possíveis intervenções ou manejo de um gestalt-terapeuta
diante de um cliente em situação de crise.

Materiais e Método

Foi realizado um levantamento bibliográfico na língua portuguesa, a par-


tir das bases Capes, Pepsic, LiLás e Revistas de abordagem Gestáltica (IGT,
ITGT, Aw@re), objetivando analisar s documentos produzidos entre os anos
de 2010-2020. Como estrategia de busca foram empregadas as seguintes com-
binações de palavras chaves: suicídio AND qualquer gestalt-terapia, suicídio
AND gestalt-terapia, gestalt-terapia AND suicído. Inicialmente foram identifi-

336
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

cados um total de 13 artigos nas bases dos dados. Os critérios de inclusão foram
artigos científicos com a palavra chave no título e/ou no resumo, na qual foram
selecionados oito artigos no total. E como critério de exclusão, foi a fuga do
tema, inclusão de temáticas mais abrangentes.

Resultados

Os textos encontrados concordam que trata-se de um assunto pouco dis-


cutido onde o suicídio é considerado pelo viés da patologia e não como um
sofrimento existencial. É apresentado como um fenômeno complexo e multi-
fatorial, com a necessidade não só de apontar os fatores de risco, mas de se
pensar na postura e intervenções do psicólogo nessas condições de sofrimento
existencial. Todos os textos abordaram os dados da Organização Mundial da
Saúde e os textos dos principais autores da literatura da Gestalt-Terapia, como
o fundador Fritz Perls e a autora do livro “Suicídio e Gestalt-Terapia”, Karina
Okajima Fukumitsu.

Ainda que existam poucas produções que apontem sobre o fenômeno do


suicídio dentro da visão da Gestalt-terapia, foram analisados quatro que apre-
sentam uma discussão sobre o suicídio, não só os fenômenos, mas os aspectos
psicológicos na perspectiva da abordagem trabalhada. Os documentos selecio-
nados se dispuseram a apresentar uma proposta terapêutica para a situação que
envolve a ideação suicida, a prevenção e a pós-venção.

Foram identificadas nos textos selecionados observações clínicas, relatos


de experiências, técnicas e propostas clínicas, e foram empregados os seguintes
termos: fenômeno do suicídio, situação de crise, fator de proteção, manejo psi-
coterapêutico e abordagem gestaltica. Nossa discussão foi organizada em três
áreas: suicídio, gestalt-terapia, e proposta terapêutica.

337
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

O que se entende como o fenômeno do Suicídio

O suicídio é um sério problema de saúde pública, considerado como for-


ma trágica de alguém terminar a própria vida, de acordo com a Organização
Mundial da Saúde (2000), onde a pessoa vê o suicídio como uma possibilidade
de encerrar o seu sofrimento e desespero. Cabe ressaltar que o suicídio é um
fenômeno complexo e multifatorial, como explica Fukumitsu “as pessoas que
se suicidam oferecem a si mesmo uma única maneira de vivenciar sua vida-
morrendo[...] Vivem na ambiguidade de não saber o que, porque e para que
viver.”(2012 p. 96).

O comportamento suicida pode ser classificado em três categorias: idea-


ção suicida, tentativa de suicídio e o suicídio consumado (Gutzi, 2014, p. 46).
Segundo a OMS (Gutzi, p.48 apud 2010) o suicídio é considerado uma tragédia
familiar e pessoal, causando sofrimento aos envolvidos com a vítima, “a cada
ano, praticamente um milhão de pessoas morrem por suicídio em todo mundo”
(Cerqueira & Lima 2015, p. 446, apud OMS, 2012 p. 05). Esses são apenas
dados que são registrados, pois há os que são colocados como morte não inten-
cional, além das tentativas de suicídio que não são corretamente registradas.

Não existem explicações únicas e simples para explicar o fenômeno do


suicídio, sendo multicausal e constituindo diversas variáveis “psicológicas,
pessoais, biológicas, sociais culturais e políticas, econômicas e religiosas, bem
como desesperança[...]” (Gutzi, 2014, p.44). Também apresentam fatores de
risco ao suicídio, como transtorno mental (transtorno de humor, esquizofre-
nia, transtornos de ansiedade, transtorno de personalidade, entre outros), socio-
demográficos e condições clínicas incapacitantes, apontados por Cerqueira e
Lima (2015, p. 448-449).

338
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Mas mesmo que a pessoa seja diagnosticada com alguma psicopatologia,


é importante ressaltar que a doença não determina o ato suicida, embora pos-
sa favorecer, como aponta Fukumitsu e Sousa (2015 p.29). Porém “isso não
significa que todo o suicídio seja indicador de doença, pois consideramos que
a pessoa está numa crise existencial”, (Fukumitsu 2012, p. 97). Essas variá-
veis são indicadores que podem mobilizar a ideação e o ato suicida, na qual o
significado da vida para essa pessoa possa estar ofuscado pela situação vivida
(Gutzi, 2014, p.45).

De acordo com a Organização Panamericana de Saúde, são quatro os sen-


timentos principais de quem está com a ideação suicida: desamparo, desespero,
desesperança e depressão. Essas pessoas relatam dificuldades nas relações e em
comunicar o que sentem (Fukumitsu & Sousa 2015, p.29 apud Brasil-OPAS,
2006). A pessoa que busca o suicídio procura romper o sofrimento existencial
que parece insuportável, e a busca pela morte pode ser a possibilidade de en-
frentamento dessa dor (Gutzi 2014, p.48-49).

A pessoa com ideação suicida ou que se suicida não consegue perce-


ber seu funcionamento e consequentemente suas possibilidades de vida, como
aponta Fukumitsu (2012, p.98), e acrescenta dizendo que a Organização de
Saúde Mental apresentou três fatores que se revelam como características da
mente de quem está em crise suicida:
1. Ambivalência: O desejo de viver e o desejo de morrer surgem como uma
batalha no indivíduo. [...] Muitas pessoas suicidas não querem morrer na
realidade - apenas estão descontentes com a vida. 2. Impulsividade: o suicí-
dio é também um ato impulsivo. Como qualquer outro impulso, o de come-
ter suicídio é temporário e dura alguns minutos ou horas. 3. Rigidez: Eles
constantemente pensam sobre suicídio e não conseguem perceber outras
maneiras para sair do problema. Eles pensam drasticamente. (Fukumitsu
2012 pp.29-30 apud WHO 2000, pp. 10)

A pessoa suicida não demonstra uma rejeição pela vida, pelo contrário,
apresenta dificuldade de suportar a própria vida e a condição humana e se sente

339
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

impotente (Gutzi 2014 p.50). Considerando que o suicídio se apresenta como


uma crise existencial, na qual a pessoa vê a morte como solução ou fuga do de-
sespero e desesperança, Fukumitsu e Sousa, (p.29) apontam que é preciso estar
atento ao diálogo existencial da pessoa, “salientando que o fenômeno sobre o
qual devemos nos debruçar não é o suicídio, e sim a falta de sentido de vida.”
(Fukumitsu, 2012, p.12 apud Frazão, 2005).

Qual a visão da gestalt terapia para o fenômeno


suicídio?

A Gestalt-terapia enfatiza o autoconhecimento, satisfação, auto-suporte


e crescimento pessoal, vendo o homem como capaz de se autogerir, de se au-
to-regular. Como aponta Fukumitsu (2012, p.29), o homem é responsável por
suas escolhas e a pessoa, nessa perspectiva é singular e relacional. Somente ela
pode responder por suas questões existenciais “ela é a proprietária do sentido de
sua vida, ou seja, por muitas vezes, embora o significado de vida da pessoa não
esteja claro, sua dor, seu sofrimento e seu desespero são perceptíveis”(p.27).

A pessoa que apresenta um funcionamento saudável ou “ajustamento


criativo” segundo a abordagem, “é o ser que apreende que não existem garan-
tias, o certo ou errado para sua própria vida, e, sim, que existem oportunidades,
possibilidades e escolhas” (Fukumitsu p. 99). De acordo com Cavanellas, Fra-
zão e Basileiro (2007), o suicídio não pode ser visto como ajustamento criador,
entendendo que todo contato é criador e dinâmico, e a pessoa com esse funcio-
namento não apresenta esse ato criador que envolve criação e transformação,
mas é “um ato de ‘sobrevivência’ ao contexto, uma adaptação às impossibili-
dades no meio, e não um ajustamento às necessidades” (Gutzi, 2014, p.47), em
outras palavras, a pessoa não encontrou uma maneira funcional e saudável de
reconhecer e manejar suas necessidades.

340
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Como apresentado anteriormente, a pessoa que pensa em cometer o sui-


cídio, em geral não reconhece seu sentido de vida, ou não consegue identificar
outro modo de se viver, de forma que o “ato de tentar o suicídio é um modo de
expressar algo que não consegue expressar em vida ou, mais ainda, acredito
que a pessoa suicida não busca a morte, mas, sim, uma outra maneira de viver”
(Fukumitsu 2012, p.90). A autora continua dizendo que o fato de a pessoa con-
seguir ou não se auto-aniquilar, revela que existe uma mensagem existencial
(p.24).

É importante ressaltar que a Gestalt-Terapia busca entender essa


mensagem existencial, que pode ser encontrada na significação do ato ou
do desejo. Fukumitsu e Sousa discutem que “Apesar de o suicídio ser uma
escolha individual, sua compreensão deve envolver tanto a compreensão
singular quanto coletiva, pois embora o sintoma esteja no ser, o sofrimento é
resultante das relações insatisfatórias que o indivíduo estabelece com seu meio
ambiente.”(2015, p.21, ).

Considerando que o suicídio é um tema amplo a se refletir, sendo ne-


cessário observar o auto-suporte e o hetero-suporte da pessoa, verificando as
fantasias associadas ao suicídio, há o pressuposto de que organismo e meio
constituem partes de um mesmo todo, onde um influencia o outro e que o indi-
víduo está inserido em um meio com uma história, como apresenta Fukumitsu
e Scavinici;
Dessa maneira, a pessoa que comete ou tenta o suicídio pode carregar o
peso da morte e o estigma de ser considerado o doente da família, enquanto
outros assumem o papel de saudáveis. Portanto, há de se lembrar de que
não é somente o indivíduo que apresenta ajustamentos criativos disfuncio-
nais, mas, sim, provavelmente, a família também faz parte da compreensão
da disfuncionalidade dos comportamentos autodestrutivos. (2013 pp. 202-
203)

341
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

A Gestalt-terapia, segundo Fukumitsu em seu livro, diz ser uma teoria de


interrupções, retomadas, encontros e desencontros, uma abordagem comprome-
tida com a realidade, e que para se compreender os funcionamentos psíquicos e
existenciais, são utilizados conceitos como campo, organismo e meio, escolha,
homeostase, figura e fundo, espontaneidade e o conceito do aqui e agora, entre
outros (2012 p.40-42), no qual o suicida não percebe seu funcionamento e suas
possibilidades. Considerando o conceito de todo e parte, a pessoa suicida em
desespero de fugir da situação de angústia é apropriado como um todo diante da
sua existência, impedindo que a pessoa amplie o campo para poder reconhecer
outras partes do seu ser no mundo (Gutzi 2014 p. 47).

Mecanismos neuróticos

O suicídio pode ser entendido como interrupção ou comprometimento


nas funções de contato, como discute Gutzi, a pessoa tem a “necessidade de
matar a parte daquilo que não está organizado, confunde a parte com sua tota-
lidade” (2014, p.47) e tende a ferir sua existência ao deixar de perceber outras
partes, desapropriando do que é seu. “Em situações de desespero, a awareness
fica restrita e as maneiras de contato empobrecem. [...] o fenômeno visto isola-
damente perde seu sentido e como sabemos, toda a perda de sentido significa
perda da relação figura e fundo. (Fukumitsu p.114-115).

A pessoa com ideação suicida, segundo Fukumitsu e Sousa, pode ser


entendida como aquele que “[...] se apegou ao velho modo de ser, por impossi-
bilidade de acreditar e falta de suporte para experimentar ‘ser de outro jeito’’’
(Fukumitsu & Sousa p.31 apud Souto, 2012, p. 35). Nas tentativas de suicídio,
existe a necessidade de ampliação de contato e da awareness, como um pro-
cesso de aceitação, conhecimento do controle, escolha e responsabilidade. A
pessoa consequentemente irá conhecer seus sentimentos e comportamentos,

342
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

(Gutzi, p.52), pois o suicida apresenta uma grande dificuldade de manejar suas
necessidades. Segundo Fukumitsu, a pessoa que pensa em se auto-aniquilar são
pessoas que não se permitem viver na espontaneidade (p.96).

Cada pessoa tem sua forma de defesa, de acordo com Gutzi (p.52), em
que fugir ou evitar o contato pode ser uma resistência ou defesa da pessoa con-
tra a possibilidade de sofrimento (Perls, 1981), e essa interrupção do contato é
uma das principais características da neurose (Tenório, 2003 p.24). Entende-se
a neurose como o resultado da interrupção do ciclo de contato e perdas e enfra-
quecimento das funções de ego do self (Tenório p. 241).

Na inibição neurótica, o fundo e figura no excitamento está invertido. O


fundo está ocupado por regressão, um processo de inibição que foi mantido es-
quecido e o neurótico, como aponta Gutzi (p.52-54), perde suas fronteiras e seu
sentido de onde está e do que está fazendo. Entende-se que a neurose produz a
inibição reprimida e essa inibição interrompe o avanço do excitamento (evento
que aparece na fronteira) e gera uma distorção na percepção da realidade, re-
sultando em uma perda de fluidez de contato. Consequentemente, o organismo
se ajusta neuroticamente no seu meio.

O distúrbio da fronteira de contato pode ser: confluência; introjeção; de-


flação; projeção; retroflexão; e egotismo. Os mecanismos neuróticos da pessoa
suicida são os seguintes:

- Confluência: O suicida que apresenta o ajustamento confluente se apre-


senta quando o excitamento não está disponível e causa uma generalização
das vivências. A pessoa tem dificuldade de diferenciar o que é seu e o que é
do outro e diante das situações frustrantes apresenta recursos ou repertórios
desatualizados agindo diante do conflito de maneira cristalizada voltando a
agressão contra si novamente. (Gutzi, p.53). A confluência é quando o cliente

343
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

busca fantasiosamente um apoio externo que possa salvá-lo, e se sente morto


e se identifica com a parte já morta, essa parte passa ser o todo (Fukumitsu &
Scavinici p.202).

- Introjeção: O suicida vive fazendo interrupção durante o excitamento.


Os introjetivos constituem crenças, conceitos e sentimentos somente engolidos
e não assimilados. Os efeitos prejudiciais são a dificuldade da pessoa de dis-
tinguir o que sente e o que os outros querem que ele sinta, não reconhecendo o
excitamento, pode gerar a ansiedade. (Gutzi, p.53).

- Proflexão: A profexão é um desejo de vingança de outro, por meio de


morte e de ameaças e provocações, para que a situação seja como deseja. (Fuku-
mitsu & Scavinici, p.202).

-Projeção: A projeção surge quando a pessoa buscar outro meio de viver,


talvez com menos sofrimento e coloca na fantasia de que sua vida seria dife-
rente se morresse, e se compreende que o suicídio é um pedido interrompido
de vida, (Fukumitsu & Scavinici p.202). Fukumitsu afirma (2012, p. 92) que a
pessoa “projeta na morte a possibilidade que não consegue em vida”. A pessoa
coloca no meio o que é de origem dela mesma.

- Retroflexão: A retroflexão é a impossibilidade de lidar com o meio, e


a pessoa investe suas energias na auto aniquilação, mostrando que seu auto
suporte é precário, tendo dificuldade para enfrentar o problema. Ela coloca a
impulsividade contra si mesmo, todas as energias que estão no meio, e ocorre
um arrependimento de exposição com um remorso ou ruminações sem fim,
fazendo consigo o que faria em seu meio. (Gutzi p.53). “A pessoa machuca sua
existência, pois deixa de perceber partes da própria existência - seu corpo. Por
vezes, a pessoa que se suicidou desapropria-se daquilo que é essencialmente
dele.” (Fukumitsu p.100)

344
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

- Egotismo: E a interrupção no contato final é o egoísta, e toma toda a sua


vida pela parte não reconhecendo possibilidades de resolução de problemas,
tentando punir o ambiente. (Gutzi, p. 53).

Manejo do Psicoterapeuta

Compreendendo que as pessoas suicidas estão vivenciando um sofri-


mento existencial, a Gestalt-terapia se preocupa em discutir os funcionamento
neurótico dessas pessoas que pensam e cometem suicídio, mas é importante se
discutir também quais propostas e manejos psicoterapêuticos devem ser abor-
dados em situação de crise. A abordagem gestáltica compreende o ser humano
como um todo, indivisível que está em constante relação com o mundo, e é
vista como uma abordagem dialógica que valoriza a relação entre terapeuta e
cliente (Fukumitsu 2012, p. 92-93).

E isso pressupõe que o terapeuta não tira a pessoa do seu vazio existen-
cial “pois o vazio já está lá e é considerado pela Gestalt como fértil e cheio de
possibilidades. Ajudamos nossos clientes a transformarem o vazio estéril em
vazio fértil” (Fukumitsu p.93). Os psicoterapeutas são considerados facilitado-
res que ajudam seus clientes a entenderem seu sentidos de vida, com o objetivo
de eles se tornarem mais conscientes de suas necessidades e responsabilidades
de estar vivos (p.16), entendendo que é no contato, e por meio de uma boa rela-
ção entre cliente e terapeuta que as mudanças podem acontecer no processo de
psicoterapia (Cerqueira & Lima p. 455).

Por meio da proposta dialógica é possível se pensar que “a experiência


de cuidado na psicoterapia poderá afetar positivamente a maneira como o ser se
interage com o mundo” (Fukumitsu, Sousa, 2015 p.31). E esses autores discu-
tem que existem duas possibilidades de cuidar, “cuidar-de” e “cuidar com”, e o
cuidar-com contribuiu com o desenvolvimento autêntico do ser, que na relação

345
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

o cliente pode compartilhar sua dor com o psicoterapeuta, podendo o psicote-


rapeuta contribuir com a construção de possibilidades e ampliação da aware do
cliente (Fukumitsu, Sousa p.30, apud Fukumitsu et al., 2009).

O suicídio do cliente é um comportamento que o terapeuta não pode pre-


ver, sendo preciso perceber a fatores e o grau relativo ao risco de suicídio, que
é recomendado ação imediata, como, busca a medicamentos, armas, falas e
escritas sobre o morrer. Este profissional que acompanha o caso, deve avaliar
o grau do comportamento suicida, percebendo os sinais observados, como a
desesperança, depressão, planos, raiva, atividades de alto risco, entre outros,
estando atento também às tentativas prévias, e a presença de uma comorbidade
aumenta o risco (Fukumitsu & Scavinici 2013 p.201,).

Quanto mais consciente o psicoterapeuta esta em relação aos fatores de


risco de sucício, melhor será para preparar e realizar uma boa avaliação de po-
tencial de suicídio, Fukumitsu apresenta três passos para ajudar outros psicote-
rapeutas (2012, p. 37);

O primeiro é o de estar consciente e reconhecer os fatores de risco previa-


mente indicados. O segundo está relacionado com a atitude que devemos
adotar como terapeutas, isto é, prestar atenção, cuidadosamente, ao com-
portamento do cliente e às dicas que ele pode dar. O terceiro é que, se há
uma indicação de potencial de suicídio, torna-se vital explorar os proble-
mas do suicídio com o cliente, tanto quanto o terapeuta puder (pp.102).

No contrato terapêutico é garantido ao cliente sigilo clínico, mas em si-


tuações consideradas de risco de vida da pessoa como a ideação suicida, é ne-
cessário informar seus familiares, ou uma pessoa de confiança. Fukumitsu faz
algumas orientações importantes nessa situação; os psicoterapeutas devem do-
cumentar as sessões e situações, registrar contatos telefônicos, sessões extras,
e registrar no contrato terapêutico a quebra de sigilo em casos de risco de vida
do cliente, “sempre lembrando que o terapeuta ligará para alguém da família
somente nesses casos e com o consentimento do cliente”(p. 33).

346
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

A inclusão de propostas terapêuticas nos casos atendidos que envolvem


tentativas de suicídio, é fundamental. Gutzi discute que esse conhecimento pre-
cisa ser constantemente lapidado, e o terapeuta precisa acreditar na sua expe-
riência singular, nas vivências que tem consigo, com seu cliente e na relação
(Gutzi p. 52 apud Fukumitsu, 2005). A autora propôs um roteiro de questões
auxiliares ao processo de avaliação e ações junto ao cliente: Questões auxi-
liares ao processo; como caracterização do ato; antecedentes pessoais; fatores
predisponentes; redes de apoio; motivações para mudanças e sentimentos de
seriedade do ato.

Objetivo da psicoterapia

Compreendendo que suicídio pode ser interpretado como um gesto de


desespero, o terapeuta precisa compreender e tolerar a falta de sentido do outro,
suas motivação e desejo de morte para conseguir manejar e fazer interveções
suficientes (Fukumitsu, Scavinici p.202 2013). O gestalt-terapia deve enfatizar
o potencial e os fatores de proteção do indivíduo, reconhecendo e respeitando
suas singularidades e particularidades da pessoa que vivencia dores e sofrimen-
tos psíquicos, “a fim de que, ao levantar seus melhores recursos, o cliente possa
descobrir e realizar novos ajustamentos criativos” (p.200).

É fundamental a valorização da escuta, e a percepção das necessidades


do cliente, e acolhendo o seu sofrimento, pois ele precisa se sentir acolhido para
aceitar a ajuda (Fukumitsu & Scavinici p.201), e é papel do terapeuta perguntar
sobre o suicídio e discutir sobre os pensamento e planos de suicídio, (p.203).
Fukumitsu(2012) complementa: “A proposta do terapeuta é a de estar onde o
cliente está, podendo se abrir dialogicamente na condição de estar efetiva e
afetivamente com o cliente” (p. 115). Mas acaso haja uma tentativa de suicídio
do cliente, os autores fazem uma lista de acompanhamento;

347
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

(1) reavaliar a situação em 24 horas, garantindo que a pessoa esteja em um


ambiente seguro e protegido; (2) gerenciar, orientar e acompanhar os fami-
liares; (3) solicitar que os familiares, amigos e/ou acompanhantes fiquem
próximos do indivíduo que tentou o suicídio depois da alta hospitalar, evi-
tando que ele fique sozinho; (4) levantar possibilidades e investigar se o
ambiente onde a pessoa se encontra apresenta perigos (quarto com sacada,
medicamentos acessíveis, por exemplo); (5) munir-se de planos para uma
rápida ação, caso a ansiedade, a ideação e os sintomas aumentem; (6) entrar
em contato com os profissionais envolvidos com o cliente (por exemplo,
psiquiatras); (7) acolher a família. (Fukumitsu & Scavinici pp.201)

Para se trabalhar com essa temática são necessários o respeito e a fé na


vida tendo persistência ao ouvir os assuntos sobre à vida e à morte do ser e to-
lerando a falta de fé do outro, estando presente, atento e disponível ao cliente
(Fukumitsu & Scavinici p.201). A autora complementa dizendo, “Precisamos
estar com o cliente para que o mesmo se sinta encorajado a conquistar seu
autossuporte, o que gera uma redução na busca do suporte externo (heterossu-
porte) e enriquece as possibilidades de ampliar sua consciência do agir, sentir e
pensar, favorecendo o autosuporte (Fukumitsu 2015, p.81).

O gestalt-terapeuta deve ajudar o cliente a perceber-se através do autoco-


nhecimento, que pode auxiliar no desenvolvimento da capacidade de se conhe-
cer no aqui-agora, e “tornar-se ciente de que apenas ele é o autor de sua própria
vida, sendo o detentor do poder de realizar escolhas” (Cerqueira & Lima p.
453). E o benefício de uma boa relação e construção terapêutica é o fato que o
cliente passa a se conhecer e manifestando o que deseja e também conhecer e
perceber o outro, descobrindo que o outro tem suas semelhanças, com angús-
tias, potencialidades e desejos, estabelecendo assim um vínculo de confiança e
encontrando satisfação no contato (Fukumitsu & Sousa p. 31).

Para que o gestalt-terapeuta possa exercer sua função de colaborador é


necessário a presença de uma boa relação dialógica entre cliente e psicotera-
peuta, e é nessa relação que vão construindo algo único (Cerqueira & Lima, p.

348
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

454). Segundo Gutzi “Na perspectiva gestáltica o contato é uma das maiores
necessidades psicológicas do ser humano, sem contato não obtemos nutrientes
para sobreviver. (2014, p.53). Cabe ao profissional escutar e perceber os fun-
cionamentos disfuncionais (distúrbios de fronteira) do seu cliente, para poder
fazer um plano de intervenção e ajudá-lo a se perceber.

Contudo, o primordial é acolher o sofrimento existencial do cliente e es-


timular a sua reflexão, mesmo que apresente outros tipos de ajustamentos, pois
precisa ajudá-lo a se perceber e se responsabilizar pela sua própria existência
(Fukumitsu & Sousa p. 31). Na qual objetivo da terapia seja “[...] tornar os
clientes conscientes (aware) do que estão fazendo, como estão fazendo, como
podem transformar-se e, ao mesmo tempo, aprender a aceitar-se e valorizar-se”
(Cerqueira & Lima p. 455, apud Yontef, 1993, p. 16).

Conclusão

O comportamento suicida é classificado em ideação suicida, tentativa de


suicídio e o suicídio consumados, sendo considerado que a pessoa esta em uma
crise de desespero e desesperança, não reconhece seu sentido de vida, ou não
consegue identificar outro modo de se viver, e por isso, não significa que todo
ato suicídio seja indicador de doença.

A abordagem gestáltica busca compreender o ser humano como um todo,


e seu objetivo é tornar seu cliente mais consciente, responsável pela sua vida
e com um bom auto suporte, ou seja busca a mensagem existencial da pessoa,
pois compreende que o que deve ser relevante e trabalhado é a falta de sentido
da pessoa.

Sendo assim, o presente trabalho teve como objetivo realizar uma análise
e mapeamento de documentos que retratassem o suicídio na visão da Gestal-

349
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

t-terpia. Os resultados comprovam que há pouca literatura sobre o assunto, e


não foram suficientes para responder todos os questionamentos sobre o tema,
sendo que dentre esses, é possível identificar fontes de pesquisa em comum,
pois todos utilizam como fonte autores como Friedrich Salomon Perls e Karina
Okajima Fukumitsu.

Contudo, áa um acordo de que o suicídio é um fenômeno relacionado


ao sofrimento existencial, não devendo ser considerado uma doença. Também
concordam que compreender e auxiliar as pessoas com esse sofrimento através
de intervenções, é mais importante que o mero diagnóstico e apontamento de
fatores de risco.

E o psicólogo diante da pessoa suicida deve valorizar a escuta, perceber


suas necessidades, acolher o seu sofrimento, mas também precisa auxiliá-lo
a lidar com suas imprevisibilidades e com a capacidade de serem expostos a
situações difíceis. E o objetivo clínico é a pessoa conseguir reconhecer seu fun-
cionamento, desenvolver a capacidade de se conhecer no aqui-agora e poder
perceber suas possibilidades.

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Saúde Universidade Estadual de Campinas [UNICAMP]. Prevenção de sui-
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nível em http://www.igt.psc.br/ojs.

350
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

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& Print Editora.

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Gestáltica: Phenomenological Studies, 19(2), 198-204.

Fukumitsu, K. O. Sousa, F. B. (2015) O Cuidado como fator de proteção do


suicídio. Revista Brasileira de Psicologia, Salvador, Bahia, 2(2). 28-32.

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World Health Organization et al. (2000). Prevenção do Suicídio: Um manual


para profissionais da mídia.

351
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 24

“ELE É UM POUCO
ESTRANHO QUANDO VOCÊ NÃO
O CONHECE”: O TRANSTORNO
OBSESSIVO COMPULSIVO
DE ADRIAN MONK
Ellen de Souza Valério Barbosa
Henrique Cabral Furcin
Jonatan dos Santos Franco
Nagila Thaina Christ Gheller
Felipe Maciel dos Santos Souza
Doi: 10.48209/978-65-5417-084-X

O Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) é uma doença mental crônica,


faz parte dos transtornos de ansiedade e se manifesta pela presença de sintomas
que denominamos obsessões e/ou compulsões. O sintoma característico do
TOC é a presença de obsessões e compulsões. As obsessões são pensamentos,
impulsos ou imagens recorrentes e persistentes que, em algum momento
durante a perturbação, são experimentados como intrusivos e indesejados e
que, na maioria dos indivíduos, causam acentuada ansiedade ou sofrimento. O

352
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

indivíduo tenta ignorar ou suprimir tais pensamentos, impulsos ou imagens ou


neutralizá-los com algum outro pensamento ou ação (APA, 2014).

As compulsões são comportamentos repetitivos (p. ex., lavar as mãos,


organizar, verificar) ou atos mentais (p. ex. orar, contar ou repetir palavras em
silêncio) que o indivíduo se sente compelido a executar em resposta a uma
obsessão ou de acordo com regras que devem ser rigidamente aplicadas. Os
comportamentos ou os atos mentais visam prevenir ou reduzir a ansiedade
ou o sofrimento ou evitar algum evento ou situação temida; entretanto, esses
comportamentos ou atos mentais não têm uma conexão realista com o que
visam neutralizar ou evitar ou são claramente excessivos (APA, 2014).

O que determina o Transtorno Obsessivo-Compulsivo é o grau de


intensidade, sofrimento e incapacidade causada por esses comportamentos. O
TOC faz com que o indivíduo realize um ciclo de pensamentos e comportamentos
no qual demanda de uma satisfação momentânea, esses sintomas nos levam a
observar as diferenças entre os tipos de reprodução, e a forma do tratamento
adequada ao transtorno (APA, 2014).

O TOC era considerado, há cerca de 15 anos, uma doença bastante


rara, devido ao fato de que na década de 1950 apenas eram apontados, uma
prevalência de cinco pacientes para cada 10.000 pessoas (ou 0,05%). Somente
após a realização de um amplo estudo epidemiológico americano, os psiquiatras
e os meios de comunicação em geral passaram a dar maior importância ao TOC
e possíveis doenças relacionadas a essa condição. Este novo estudo estudou na
reavaliação da presença deste transtorno, uma vez que se constatou ser o quarto
transtorno mais comum dos casos de tratamentos psiquiátricos da população
dos Estados Unidos da América (EUA), com mudança de sua classificação
epidemiológica, passando como um distúrbio comum (Del-Porto, 2001).

353
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

De acordo com Del– Porto (2001), o TOC passou a ser percebido


como uma doença de grande importância para a saúde pública, devido aos
seus prejuízos sociais, ou pelo sofrimento que causa aos pacientes e às suas
famílias. Dessa forma a Organização Mundial da Saúde (OMS) (2000), em
colaboração com o Banco Mundial e a Harvard University, incluíram o TOC na
lista das dez doenças (de todas as especialidades) que maior impacto tem sobre
a incapacitação social.

O TOC parece atingir igualmente homens e mulheres, ao contrário do que


ocorre com a maioria dos transtornos ansiosos, como o transtorno de pânico e o
de ansiedade generalizada, que são muito mais frequentes em mulheres. O TOC
teria ou tem início mais precoce entre os homens, sendo assim diagnosticado
de forma mais frequente para o sexo masculino, nas amostras referentes às
populações infantil e adolescente (Del-Porto, 2001).

Segundo a APA (2014), atualmente nos EUA, a idade média de início do


TOC é de 19,5 anos, e 25% dos casos iniciam-se até aos 14 anos de idade. O
início após aos 35 anos é incomum, mas ocorre. Indivíduos do sexo masculino
têm idade mais precoce de início do que os do sexo feminino: cerca de 25% dos
homens têm o transtorno antes dos 10 anos. O início dos sintomas é geralmente
gradual; entretanto, um início agudo também tem sido relatado.

O objetivo deste estudo foi de descrever e analisar funcionalmente os


comportamentos emitidos por Monk, além de compreender quais são as
condições que desencadeiam, fortalecem e mantém o Transtorno Obsessivo
Compulsivo no personagem; e, também, identificar as formas de atuação do
analista do comportamento no tratamento do TOC. O personagem Adrian
Monk é um detetive com comportamentos diferentes, da série americana, criada
por David Hoberman em 2002, interpretado pelo ator Tony Shalhoub. Monk
atuava como detetive de homicídios na delegacia de polícia na cidade de São

354
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Francisco/EUA e era considerado um excelente profissional, perdeu sua esposa


em um acidente de automóvel. Logo após esse incidente, Monk sofreu um
colapso nervoso e suas compulsões se agravaram, tendo como consequência
seu afastamento da delegacia de polícia, posteriormente foi diagnosticado
com Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC). Após três anos sem sair de
casa, Monk iniciou seus trabalhos como consultor particular para a polícia
em casos complexos e de difíceis soluções, logo, sua atenção obsessiva acaba
contribuindo para suas observações minuciosas, na qual é bastante relevante
em suas investigações.

Para realização deste estudo realizou-se uma análise qualitativa de cunho


bibliográfico relacionando o TOC ao 8º oitavo episódio da 7ª sétima temporada
da série Monk, uma vez se que trata de um tema amplamente estudado, e mesmo
assim oferece novos questionamentos como investigação de um transtorno
mediante a análise de um personagem fictício (Monk), que oferece interações
com a realidade e por isso considerou relevante a sua investigação, a qual
poderá favorecer a compreensão deste comportamento, como sendo comum
para muitas pessoas.

Materiais e Método

Este estudo apresenta um método em que se relaciona um episódio de


uma série estadunidense com a Psicologia. Percebe-se que, nos últimos anos,
desenhos, filmes ou séries têm sido utilizados para explicar e exemplificar
conceitos da Psicologia (Scherer & Souza, 2016; Ferreira & Souza, 2019;
Oliveira & Souza, 2019). Segundo Kohan (2010), isto acontece, pois, tais
materiais possuem diversas temáticas que abrangem todas as faixas etárias
provenientes de todas as partes do mundo.

355
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

De acordo com essa perspectiva, foi realizada uma análise qualitativa


exploratória de cunho bibliográfico com base nos comportamentos obsessivos
compulsivos emitidos pelo personagem Monk. O estudo foi realizado em
quatro fases que não foram excludentes, sendo: (1) levantamento bibliográfico,
(2) identificação do episódio analisado, (3) análise do episódio e (4) discussão
de dados. As características de cada fase são descritas pormenorizadamente a
seguir.

Levantamento bibliográfico

Para a realização deste estudo, foram realizadas leituras de materiais que


contemplam o tema, tais como artigos, dissertações, livros e teses, que foram
localizados em sítios específicos de publicações de documentos científicos.
Segundo Lima e Mioto (2007), a pesquisa bibliográfica busca organizar os
conhecimentos de forma ordenada para melhor buscar soluções estando atento
ao objeto de estudo do pesquisador, de forma a levantar os estudos mais recentes
e verificar o que ainda pode ser estudado.

O estudo constitui-se da coleta de materiais como livros, artigos científicos


e dissertações e teses relacionadas ao tema, e selecionados através da busca no
banco de dados Scielo e Google Acadêmico. Os artigos foram selecionados
dentre o período de 1999 – 2020.

Para a realização da pesquisa foram utilizados os descritores: “Transtorno


Obsessivo Compulsivo”; “intervenção, modificação do comportamento, análise,
análise funcional, análise do comportamento, analítico comportamental,
por contingência, psicoterapia analítico funcional, terapia de aceitação e
compromisso; compulsão; obsessão e TOC”. Somente foram selecionados
materiais de Análise do Comportamento.

356
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Identificação do episódio analisado

Foi selecionado o episódio “Mr. Monk Fica Hipnotizado” da 7ª temporada,


da série Monk, com o objetivo de identificar características relacionadas ao
tema pesquisado, sendo analisado os comportamentos do personagem Adler
Monk, pois o mesmo possui um papel central no episódio.

Tal pesquisa teve o intuito de identificar e relacionar as causas do


comportamento obsessivo compulsivo do personagem com as situações
marcantes ocorridas no decorrer da história. Sofrendo de fobias, a série
“Monk” traz um detetive que era policial até sua esposa ser morta. A partir de
então ele intensificou suas manias compulsivas a ponto de ter que se afastar
do trabalho. Mas Monk tem uma incrível capacidade de dedução, o que o leva
a ser chamado como assistente em vários casos policiais, além de atuar como
detetive particular.

Análise do episódio

Os pesquisadores assistiram o 8º oitavo episódio da 7ª temporada, e


identificaram trechos para análise qualitativa, a qual proporciona a obtenção de
dados descritivos mediante a Análise do Comportamentode Monk.

O personagem Monk está em fase de transição de terapeuta, e tem que


resolver um caso de um falso assassinato, e encontra Harold Krenshaw que
era paciente de seu antigo terapeuta Charles Kroger completamente curado,
e indica um novo médico a Monk. O personagem analisado fica angustiado,
questiona seus onze anos de análise, e se submete ao novo tratamento, visando
livrar-se de todos seus medos. Posteriormente, o novo método de trabalho acaba
lhe trazendo mais problemas comportamentais sendo um deles uma atitude
infantilizada. O episódio evidencia os problemas do TOC de Monk (obsessões

357
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

e compulsões), e também deixa claro que a terapia hipnótica não é o tratamento


mais adequado.

Discussão de dados

Nesta fase, assistiu-se aos trechos selecionados e procedeu-se a correlação


entre teoria da Análise do Comportamento e os dados do personagem Monk.

Resultados e Discussão

Características de TOC segundo a visão Analítico Comportamental

Analistas do comportamento descrevem o TOC como algo que pode


trazer sofrimento ao indivíduo, os comportamentos-problema, mas não como
uma anormalidade, pois não considera esse limiar de padronização imposta
pela sociedade, pois o terapeuta trabalhará para aliviar o sofrimento de seu
cliente e não de torná-lo “normal”, não havendo enquadramento em patologias,
diagnósticos, rótulos e nem o uso de nomenclaturas (Pessoa & Velasco, 2002;
Copque & Guilhardi, 2008).

Para a Análise do Comportamento, somos produtos do ambiente em que


estamos inseridos e das modificações que fazemos neste, além da seleção de
nosso repertório comportamental nos três níveis: filogenético, ontogenético e
cultural (Pessoa & Velasco, 2002).

Para Skinner (1953), o conhecimento suficiente para uma ciência não pode
ser a descrição de um evento em si mesmo, deve-se relacionar o evento a outros
eventos; o comportamento só pode ser compreendido a partir do intercâmbio
do organismo com o ambiente, uma relação que não expresse uma causa, e
sim, que descreva uma função. Ressalta-se que sua preocupação básica de
sua ciência é o estudo do comportamento, a partir do próprio comportamento,

358
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

compreendido em sua relação com o ambiente, sem que a investigação se dirija


à identificação de estruturas mediadoras entre eventos.

Estes sistemas de classificação e diagnóstico apresentam algumas


características que tornam sua utilização por analistas do comportamento
questionável: 1) ênfase na topografia do comportamento, 2) análises nomotéticas
e 3) caráter internalista (Araújo & Medeiros, 2003).

O analista do comportamento se opõe a uma explicação internalista. O


internalismo explica o comportamento individual por ocorrências internas. As
explicações acabam por ficar circulares, e não se resolve a questão, não se
aponta as variáveis que estão ao alcance a partir de uma análise científica. O
externalismo explica o comportamento a partir de uma perspectiva relacional,
ou seja, a relação do indivíduo como um todo com eventos que lhe são externos
(Araújo & Medeiros, 2003). Esses autores também afirmam que essa concepção
não exclui a existência de eventos internos, apenas não lhes confere status
causal. Também possui uma vantagem em relação à internalista por permitir o
controle do comportamento, pois é possível manipular variáveis externas, e não
as internas.

Diante disso, pensa-se em termos Analítico-Comportamental a


concepção de patologia como sendo caracterizada por déficits ou excessos
comportamentais, sendo esses comportamentos mantidos por contingências
de reforçamento em um nível mais importante, que justifica sua manutenção,
produzindo também, punição, em nível menor, que leva a sofrimento em algum
grau, com manifestações emocionais intensas, gerando assim sofrimento para a
pessoa que se comporta.

Atualmente, as “patologias” ou “transtornos” são identificados de


acordo com os sistemas de classificação e diagnóstico baseados no modelo

359
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

médico como o DSM – V e a CID 10. Banaco, Zamignani e Meyer (2010)


fazem uma análise sobre o DSM e descrevem que podem ser encontrados, em
suas primeiras páginas, 750 profissionais envolvidos em sua elaboração. Tais
profissionais são especialistas em doença mental, e podem somar milhares de
horas de observação, diagnóstico e tratamento de portadores de transtornos
psiquiátricos. Esses profissionais são orientados a elaborarem descrições de
transtornos que busquem acordos consensuais ao invés de buscarem evidências
que deem suporte a opiniões teóricas por eles abraçadas previamente. Além
disso, os profissionais são orientados a utilizarem esforços para compatibilizar
as descrições contidas no DSM com as observadas no CID. Na verdade, vários
profissionais participam da elaboração de ambos os manuais. Por fim, eles são
orientados a levar em consideração as várias culturas existentes no planeta,
e suas determinações nas doenças mentais. Assim, diante dessas declarações,
esses materiais não podem ser totalmente desprezados, entretanto a Análise do
Comportamento rejeita algumas considerações vindas desses manuais citados
anteriormente.

A análise do comportamento, ao invés de enfatizar na topografia, enfatiza


a funcionalidade, pois ao se descrever pela forma, não se leva em consideração
as diferenças entre as situações em que o comportamento é emitido, e respostas
com a mesma topografia podem ter funções diferentes e respostas de topografias
diferentes podem ter a mesma função. Ou seja, pessoas podem ter o mesmo
comportamento, mas as circunstâncias em que foram emitidos e as consequências
produzidas serão diferentes. Araújo e Medeiros (2003) colocam que a partir do
reconhecimento das variáveis responsáveis pelo comportamento, ou seja, a sua
função, o analista do comportamento pode prever e controlar o comportamento
de um organismo individual.

Segundo Marçal (2010), a Análise do Comportamento compreende que


a construção de repertórios comportamentais se dá de forma única em cada

360
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

pessoa, ou seja, as contingências ambientais agem sobre ela e geram formas


únicas. Portanto, a compreensão e a intervenção nesse caso são individualizadas.

Ainda segundo Marçal (2010), de acordo com a concepção do


Behaviorismo Radical, um “distúrbio” comportamental é fruto do contexto
ambiental, histórico e atual, são respostas normais de uma história de
contingências ambientais que as produziram. Assim sendo, no modelo médico,
a ênfase está na classificação e nomeação de comportamentos em conjuntos
que formam uma psicopatologia, uma vez que, na Análise do Comportamento
a prioridade encontra-se na realização de uma avaliação funcional (AF).

Análise do episódio “Mr. Monk Fica Hipnotizado’’

Este episódio inicia-se com um suposto assassinato, em que Monk


encontra seu conhecido Harold Krenshaw, que fazia terapia com o mesmo
terapeuta – Dr. Kroger. Harold relata ter uma melhora momentânea, a qual fez
Monk ficar muito angustiado e com pensamentos relacionados ao seu problema
de TOC, e para diminuir sua ansiedade acabou ligando e agendando um horário
com o terapeuta.

Logo as atitudes relacionadas ao TOC podem ser explicadas pelo clínico da


Análise do Comportamento através das análises de contingências, que buscam
identificar quais relações funcionais são responsáveis pelo desenvolvimento
e, principalmente, na manutenção desses padrões comportamentais para
posteriormente intervir sobre esses padrões (Copque & Guilhardi, 2008).
Os objetivos terapêuticos seriam buscar novas formas de interação entre o
indivíduo e seu meio, minimizando estimulações aversivas presentes nessas
relações aumentando estimulações apetitivas – diminuindo assim o sofrimento
do indivíduo de forma direta ou indireta (quando diminui a estimulação aversiva
que seu comportamento produz aos outros e estes, por consequência, diminuem

361
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

as punições direcionadas aos seus comportamentos) (Copque & Guilhardi,


2008).

Monk após a procura da hipnose para solução de seus problemas


relacionados a sua obsessão e compulsão, apresenta comportamento
infantilizado. Visto que o personagem começou a ter TOC após a morte de sua
esposa, o qual o impossibilitou de suas funções posteriormente devido a sua
incapacidade de relacionar-se. De acordo com a cena inicial, observamos que
o estímulo antecedente foi relacionado ao comportamento social de Harold, e
a resposta foram os pensamentos e atos repetitivos, no qual sua consequência
foi sua ligação para o terapeuta que realiza hipnose, sessando assim tais
comportamentos intrusivos com sentimentos de satisfação.

E assim a terapêutica comportamental do Transtorno Obsessivo-


Compulsivo (TOC), oferece ao portador e a seus familiares, uma proposta
eficaz, experimentalmente embasada, de atendimento individual ou em grupo
(Wielenska, 2001).

Segundo Catania (1999), o comportamento respondente é uma relação


fidedigna na qual um determinado estímulo produz uma resposta específica
em um organismo fisicamente sadio. O respondente não se define nem pelo
estímulo nem pela resposta, mas sim pela relação entre ambos. Essa relação é
representada pelo paradigma S-R, em que S denota o estímulo e R, a resposta.
Quanto maior for a intensidade do S, maior será a duração da R e menor será a
latência, e vice-versa. Neste caso S comportamento de Harold e R obsessões e
compulsões de Monk.

Na sequência das cenas, vemos que a relação do detetive Monk com sua
enfermeira Natalie contribui para que a ocorram mudanças na frequência de
determinados comportamentos. Observa-se que as respostas emitidas fazem

362
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

parte do comportamento operante, no caso do personagem o TOC, após a


emissão das respostas adiciona-se ou retira-se o evento ambiental que está
relacionado a ela (ex., quando Natalie insiste para que Monk realize ou deixe de
fazer alguma atividade, ela está em posição de estímulo reforçador); Se houver
alteração (na frequência ou duração) as respostas após a manipulação do evento
ambiental, há forte indicação de ser comportamento operante.

Portanto observa-se que através do comportamento operante pode-


se trabalhar o reforçamento para que ocorra a extinção ou diminuição da
frequência dos comportamentos Obsessivos Compulsivos emitidos por Monk.
Logo esse processo de extinção se caracteriza em uma diminuição da frequência
do comportamento em razão da suspensão da apresentação contingente
de um reforçador (ex., manter o ambiente limpo e organizado para deixar
sucessivamente que esse evento ocorra, papel realizado por Natalie).

As respostas mudaram ao longo do episódio, devido a hipnose em Monk,


onde evidenciou-se que todo comportamento está relacionado ao ambiente
inserido, visto que uma relação operante se caracteriza por uma relação funcional
entre a resposta e a produção do reforçador. Entretanto diante de situações de
enfrentamento para Monk com relação ao TOC, o estímulo reforçador, continuou
a ser apresentado contingente à emissão de respostas. Podemos observar que as
respostas se relacionam com a mudança no ambiente (estímulos), e o ambiente
a ser levado em conta é aquele que quando se modifica induz a uma resposta; e
logo devemos saber os objetos que eliciam a resposta (S antecedentes).

Segundo Pessoa e Velasco (2022) o comportamento operante se define


pela relação entre uma classe de respostas e uma classe de estímulos por ela
produzida. No comportamento operante, a classe de estímulos que o define tem
o efeito de selecionar e manter uma classe de respostas. Este efeito define a
chamada função reforçadora. Já a classe de respostas também chamada de um
operante.

363
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

E assim através da AC podemos observar que o personagem Monk


reconhece as contingências que controlam e afetam suas respostas referentes
ao TOC, fator que facilita a compreensão do analista do comportamento para
consequentemente proporcionar resultados satisfatórios propostos pela AC.

Considerações Finais

Apesar do pequeno número de trabalhos sobre TOC, observa-se a grande


importância e demanda de pesquisas sobre esse tema, não apenas para a
Psicologia, mas para todas as áreas de conhecimento. O reconhecimento da
cultura e do componente biológico das causas do TOC é importante não só
para encaminhar adequadamente, os sujeitos a tratamentos psicoterápicos e
farmacológicos, mas também para que as famílias desses sujeitos não atribuam
a culpa a si mesmas ou a eventos não relacionados ao transtorno.

A análise funcional do comportamento relaciona o contexto que antecede


as obsessões às suas respectivas consequências. Logo as vantagens de uma AF
são que, além de identificar as variáveis importantes para a ocorrência de um
fenômeno, ela venha permitir futuras intervenções possibilitando o planejamento
de condições para a generalização e a manutenção desse fenômeno. Ao identificar
em que classe de comportamentos uma determinada resposta se inclui, ou em
que classe de estímulos uma determinada mudança ambiental se situa, podemos
trabalhar com respostas ou estímulos equivalentes. Se a resposta identificada
não for adequada, podemos substituí-la por uma outra mais aceitável, e que, por
pertencer à mesma classe, continuará a produzir os mesmos reforçadores que a
resposta anterior. E através desses processos ambientais disponíveis podemos
criar outa condição ambiental que venha continuar a exercer o controle desejado
sobre a resposta em questão.

364
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Em relação ao tratamento o método mais indicado para esse transtorno é a


Análise do Comportamento, pois evita recaídas melhorando seu comportamento,
pois o indivíduo deve estar motivado e preparado para aceitar mudança e isso é
proposto pela AF através das contingências.

Os resultados obtidos por meio desta pesquisa mostraram não apenas o


contexto comportamental do personagem Monk, mais também as consequências
provocadas no contexto geral devido aos seus comportamentos obsessivos
compulsivos, sendo assim, acredita-se que este estudo pode contribuir para
o desenvolvimento da literatura científica, pois, remete a situações reais
possibilitando uma maior interação entre a teoria e a prática na Psicologia hoje.

Referências
Associação Americana de Psiquiatria (APA). (2014). Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais: DSM-5. (5a ed.). Porto Alegre, Artmed.

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Análise do Comportamento tem a dizer? In: H. M. Sadi, & N. M. S. M. Castro
(Org.), Ciência do comportamento: Conhecer e avançar, Vol. 3 (pp.185-94).
Santo André: ESETec.

Banaco, R. A., Zamignani, D. R, & Meyer, S. B. (2010). Função do


Comportamento e do DSM: terapeutas analítico-comportamentais discutem
a psicopatologia. In: E. Z. Tourinho, & S. V. Luna (Orgs.), Análise do
Comportamento: Investigações Históricas, conceituais e aplicadas (pp. 175-
191). São Paulo: Roca.

Catania, A. C. (1999). Aprendizagem: comportamento, linguagem e cognição.


(4ª ed.). Porto Alegre: Artmed.

Copque, H. & Guilhardi, H. J. (2008). O modelo comportamental na análise do


TOC. In W. C. M. P. Silva (Orgs.), Sobre comportamento e cognição. Análise
comportamental aplicada, Vol. 21 (pp. 61-72). Santo André, SP: ESETec
Editores Associados.

365
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Del-Porto, J. A. (2001). Epidemiologia e aspectos transculturais do transtorno


obsessivo-compulsivo. Revista Brasileira de Psiquiatria, 23, 3-5.

Ferreira, H. S., & Souza, F. M. S. (2019). Jogando, perdendo e sofrendo: Um


olhar sobre o jogo compulsivo a partir de Marge Simpson. In: E. R. Pereira
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Lima, T. C. S, & Mioto, R. C. T. (2007). Procedimentos metodológicos na


construção do conhecimento científico: a pesquisa bibliográfica. Revista
Katalysis, 10, 35-45.

Marçal, J. V. (2009). Behaviorismo radical e prática clínica. In: A. K. C. R. De-


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caso (pp. 30–47). Porto Alegre: Artmed.

Oliveira, M. C. T., & Souza, F. M. S. (2019). Em busca de um sentido? Uma


análise sobre o filme Patch Adams. In: W. J. Jorge (Org.), Cinema e Cinemato-
grafia: Conceitos e aplicações (pp. 5-12). Maringá: UNIEDUSUL.

Pessoa C. V. B. B., & Velasco S. M. (2012). Comportamento operante. In: N.


B. Borges, & F. A. Cassas (Orgs.), Clínica analítico-comportamental, aspectos
teóricos e práticos (pp. 95-108). Porto Alegre: Ed. Artmed, 2012.

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Criminal Minds e Psicologia. Comunicação & Mercado - Revista Internacional
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Skinner, B. F. (2003). Ciência e comportamento humano. (11a ed.). São Paulo:


Martins Fontes.

Wielenska, R. C. (2001). Terapia comportamental do transtorno obsessivo-


compulsivo. Revista Brasileira de Psiquiatria, 23, 62-4.

366
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

PARTE III

I Mostra de
Livre Expressão:
Atos, Retratos
e Memórias da
Pandemia

367
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Mostra de Livre Expressão

Trabalho da estudante do Suéllen Altrão (PPGPsi/UFGD) em parceria


com o seu colega Ricardo. Ambos interpretam a música “Vapor Barato”, de
autoria de Jards Macalé e Waly Salomão (3´34).

Trabalho da Psicóloga Priscila Teruya e do Psicólogo Lucas Luís Farias.


Fotos da delegação Kunhangue Aty Guasu em Brasília-DF, nos atos contra o
Marco Temporal.

368
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Trabalho de Fernanda Pinto, estudante de Psicologia da UFGD, Braz


Pinto Junior, professor de Artes Cênicas da UFGD e Dionatans Quinhones,
professor de Psicologia da UFGD, com o título: “Efemeridade”.

Trabalho realizado pelo Projeto Travessias. A poesia é de Simone


Bittencourt, estudante de Psicologia da UFGD, com o título: “Sermos existência
melhores”.

369
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Trabalho realizado por Nágila Thainá, estudante de Psicologia da UFGD,


com o título: “Gestalt, vista na janela”.

370
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Trabalho realizado por Kyara Gradini, estudante de Psicologia da UFGD,


com o título: “Firmando”.

Trabalho de Lucas Luis de Faria, autor do livro “Poesias do Isolamento”,


com ilustração de Leonardo Mareco.

371
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Trabalho realizado por Veronica Aparecida Pereira, professora de


Psicologia da UFGD, interpretando a música de Milton Nascimento e inspirada
na “Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa.

Trabalho realizado por Géssica Mendes, estudante do PPGPsi,


interpretando “Como nossos pais”, de Antonio Belchior.

372
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

APRESENTAÇÃO

DAS AUTORAS E DOS AUTORES

CAPÍTULO 1

Anita Guazzelli Bernardes: Psicóloga. Doutora em Psicologia pela Pontifícia Uni-


versidade Católica do Rio Grande do Sul. Pós-doutorado no Centro de Estudos So-
ciais da Universidade de Coimbra, Portugal. Pesquisadora Produtividade CNPq. Do-
cente e Pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade
Católica Dom Bosco.

CAPÍTULO 2

Angelo Luiz Sorgatto: Psicólogo formado pela Universidade Federal da Grande


Dourados (UFGD). É especialista em Saúde Mental pela Universidade Católica Dom
Bosco (UCBD); Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicolo-
gia da UFGD. Atualmente, é psicólogo clínico e trabalha como psicólogo no Centro
de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) da cidade de Dourados,
MS.

CAPÍTULO 3

César Augusto Assumpção: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da


Grande Dourados (UFGD).

Brianne Benites da Mata de Camargo: Estudante de Psicologia na Universidade


Federal da Grande Dourados (UFGD).

Luan Kesley Mendes Batista: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da


Grande Dourados (UFGD).

Jenniffer Simpson dos Santos: Professora do Curso de Psicologia e do Programa de


Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

373
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 4

Elenita Sureke Abilio: Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual


de Maringá (UEM). Especialista em Educação Especial, Saúde do Trabalhador e
Ecologia Humana, Gestão da Clínica nas Regiões de Saúde e Psicologia Hospitalar;
Mestrado em Ensino em Saúde pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
(UEMS). É professora na Faculdade Anhanguera no curso de Psicologia e Psicóloga
do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas de Dourados.

CAPÍTULO 5

Rayssa de Oliveira Duarte: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da


Grande Dourados (UFGD).

Luan Fernando Schwinn Santos: Psicólogo formado pela Universidade Federal


da Grande Dourados (UFGD). Mestrando em Psicologia pela UFGD. Atualmente,
trabalha na Assistência Social em município de Nova Alvorada do Sul-MS.

Gabriela Rieveres Borges de Andrade: Professora Adjunta do Curso de Psicolo-


gia, do Programa de Pós-graduação em Psicologia e da Residência Multiprofissional
em Saúde do Hospital Universitário da Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo, Mes-
tre e Doutora em Políticas Públicas pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio
Arouca (ENSP/Fiocruz).

CAPÍTULO 6

Mayara Vieira Santos: Psicóloga formada pela Universidade Federal da Grande


Dourados (UFGD), com estágio específico em Psicoterapia Cognitiva realizado no
LabSPA, em 2021.

Amanda Marques Moreira: Psicóloga formada pela Universidade Federal da Gran-


de Dourados (UFGD), com estágio específico em Psicoterapia Cognitiva realizado
no LabSPA, em 2021.

Luísa Feil Aquino: Psicóloga formada pela Universidade Federal da Grande Doura-
dos (UFGD), com estágio específico em Psicoterapia Cognitiva realizado no LabS-
PA, em 2021.

374
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Betania Moura Mathias: Psicóloga formada pela Universidade Federal da Grande


Dourados (UFGD), com estágio específico em Psicoterapia Cognitiva realizado no
LabSPA, em 2021.

Karen Priscila Del Rio: Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católi-
ca do Rio Grande do Sul-PUCRS. Pós-doutora pelo Departamento de Psicobiologia
da UNIFESP. Docente do curso de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade
Federal da Grande Dourados (UFGD).

Regina Basso Zanon: Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio


Grande do Sul (UFRGS). Docente dos cursos de graduação e Pós-Graduação em
Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

CAPÍTULO 7

Elder Alves Silva: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da Grande Dou-


rados (UFGD).

Henrique Cabral Furcin: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da Gran-


de Dourados (UFGD), integrante do Grupo de Estudos em Avaliação-intervenção
Psicológica e Processos Inclusivos: Interfaces com a Educação e a Saúde (GEAPPI/
CNPq), do Núcleo de Atenção à Pessoa com Autismo (NAPA/UFGD); e presidente
da E.J. Kaizen Consultoria Júnior.

Rebeca Pereira Manfré: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da Gran-


de Dourados (UFGD). Participou do projeto de pesquisa Pré-Natal Psicológico On-
line-Grupo de Pesquisa Interação Mãe-bebê (2021-2022).

Larissa Dronov Oliveira: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da


Grande Dourados (UFGD). Participou do projeto de pesquisa Pré-Natal Psicológico
Online-Grupo de Pesquisa Interação Mãe-bebê (2021-2022).

Jaqueline Batista de Oliveira Costa: Doutora em Psicologia da Educação pela


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Mestre em Educação: For-
mação de Professores pela Universidade Estadual Paulista (UNESP); graduada em
Psicologia pelo Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN); e licenciada
em Pedagogia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professora do curso
de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). Coordenadora do curso de Psicologia da UFGD e líder do Labo-
ratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Saúde/LEPPSI.

375
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 8

Douglas Emanuel Silveira Ribeiro: Estudante de Psicologia na Universidade Fe-


deral da Grande Dourados. Membro do Grupo de Pesquisa em Psicologia, Educação
e Trabalho: inclusão em diferentes contextos (GEPETIN-contextos UFGD/CNPq).

Halana Antonagi Caseiro Lourenço: Estudante de Psicologia na Universidade Fe-


deral da Grande Dourados. Grupo de Pesquisa em Psicologia, Educação e Trabalho:
inclusão em diferentes contextos (GEPETIN-contextos UFGD/CNPq).

Valeria Aparecida Risson Dallabrida: Estudante de Psicologia na Universidade


Federal da Grande Dourados (UFGD).

Dielma de Sousa Borges Cassuci: Mestre em Entomologia e Conservação da Biodi-


versidade. Licenciada em Ciências Biológicas e em Pedagogia. Professora de Ciên-
cias no Ensino Fundamental e Professora e Coordenadora Pedagógica da Rede Mu-
nicipal de Ensino de Dourados-MS.

Denise Mesquita de Melo Almeida: Doutora e Mestre em Educação. Psicóloga e Li-


cenciada em Psicologia. Docente nos cursos de Graduação e Mestrado em Psicologia
da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Líder do Grupo de Pesquisa
em Psicologia, Educação e Trabalho: inclusão em diferentes contextos (GEPETIN-
-contextos UFGD/CNPq). Vice-líder do Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento
Humano e Educação Especial (UFMS/CNPq). Membro da Coordenadoria do Fórum
de Licenciaturas da Universidade Federal da Grande Dourados.

CAPÍTULO 9

Ana Alice Cavalcanti Serejo: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da


Grande Dourados (UFGD). Realiza pesquisa e extensão na área de gestação, parto e
puerpério.

Jaqueline Batista de Oliveira Costa: Doutora em Psicologia da Educação pela


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Mestre em Educação: For-
mação de Professores pela Universidade Estadual Paulista (UNESP); graduada em
Psicologia pelo Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN); e licenciada
em Pedagogia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professora do curso
de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). Coordenadora do curso de Psicologia da UFGD e líder do Labo-
ratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Saúde/LEPPSI.

376
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Júlia Medeiros Pereira: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da Gran-


de Dourados (UFGD). Realiza pesquisa e extensão nas áreas de gestação e puerpério
e saúde indígena.

Luana dos Santos Machado: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da


Grande Dourados (UFGD).

Mariana Beloto dos Santos: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da


Grande Dourados (UFGD). Realiza estágio de Psicoterapia Psicanalítica.

CAPÍTULO 10

Ada Oliveira da Silva: Estudante de Psicologia da Universidade Federal na Grande


Dourados (UFGD).

Samara Goya Coelho: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da Grande


Dourados (UFGD).

Valdirene Alves de Lima Rigoni: Mestranda em Psicologia pela Universidade Fe-


deral da Grande Dourados (UFGD). Cursando especialização em Terapia Cogniti-
vo Comportamental (FACSU). Membro do grupo de pesquisa “Relação mãe-bebê:
análise de influências de variáveis no desenvolvimento infantil”, pela UFGD. MBA
em Gestão Empresarial pela FGV. Especialista em Docência do Ensino Superior,
UNCISAL (2008). Graduação em Psicologia pelo Centro Universitário (CESMAC).
Atualmente, trabalha como psicóloga clínica, especialista em atendimento materno.

Veronica Aparecida Pereira: Psicóloga. Doutora em Educação Especial (UFSCar).


Pós-Doutorado em Psicologia pela Universidade do Porto, Portugal. Docente do cur-
so de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). Supervisora de Estágio na Área de Intervenção Precoce e Psi-
cologia Jurídica. Assessora na área de Psicologia da Associação Nacional formação
e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios de Grupos de Apoio
à Adoção (ANGAAD). Representante junto ao Observatório Nacional da Adoção.
Membro do Grupo de Trabalho da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Gradua-
ção em Psicologia (ANPEPP) “Parentalidade e desenvolvimento infantil em diferen-
tes contextos”.

377
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 11

Luciana Codognoto da Silva: Pós-Doutorado em Psicologia pela Universidade Es-


tadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Assis). Doutora em Psicologia pela
UNESP/Assis. Mestre em História pela Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Especialista em Metodologia do Ensino Superior e Graduada em Psicolo-
gia pelo Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN). Professora Adjunta
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), campus de Nova Andra-
dina - MS.

José Sterza Justo: professor Livre-Docente do Programa de Pós-Graduação em Psi-


cologia da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (UNES-
P-Campus de Assis).

CAPÍTULO 12

Thiago Luís da Silva: Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal da Gran-


de Dourados (UFGD). Especialista em Direitos Humanos e Lutas Sociais pela Uni-
versidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Graduação em Psicologia pelo Centro
Universitário Salesianos de São Paulo (UNISAL). Atua como psicólogo e supervisor
clínico em consultório particular e psicólogo jurídico, no sistema penitenciário, e
é servidor público na Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São
Paulo (SAP).

Maria de Lourdes Dutra: Psicóloga. Doutora e Mestre em Saúde Coletiva pela


Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Participou do Programa de Douto-
rado Sanduíche no Exterior com bolsa CAPES na Universidade de Coimbra/Centro
de Estudos Sociais. Professora Visitante na Universidade Federal da Grande Doura-
dos (UFGD), atuando como docente no Curso de Psicologia, no Programa de Pós-
-Graduação em Psicologia e no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde.
Atualmente, é Conselheira do Conselho Regional de Psicologia de Mato Grosso do
Sul.

Conrado Neves Sathler: Possui graduação em Psicologia pela Faculdade Salesiana


de Filosofia Ciências e Letras de Lorena, mestrado em Psicopatologia e Psicologia
Clínica pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada de Lisboa e doutorado em
Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (2008). Realizou Es-
tágio de Pós-doutorado em Educação na Universidade São Francisco. Atualmente é
professor associado II da Universidade Federal da Grande Dourados onde atua no
curso de Psicologia, na Residência Multiprofissional em Saúde e no Programa de
Pós-Graduação em Psicologia. Coordena o Grupo de Pesquisa Território, Discurso e
Identidade – TDI.

378
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 13

Eliciel Freire de Salles: Graduado em Geografia pela Faculdades Integradas de


Naviraí (FINAV) e em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
(UEMS), campus Naviraí-MS. Especialista em Antropologia e História dos Povos
Indígenas pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Mestrando em
Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

Catia Paranhos Martins: Professora Adjunta do Curso de Psicologia, do Progra-


ma de Pós-graduação em Psicologia e da Residência Multiprofissional em Saúde do
Hospital Universitário da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

CAPÍTULO 14

Conrado Neves Sathler: Possui graduação em Psicologia pela Faculdade Salesiana


de Filosofia Ciências e Letras de Lorena, mestrado em Psicopatologia e Psicologia
Clínica pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada de Lisboa e doutorado em
Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (2008). Realizou Es-
tágio de Pós-doutorado em Educação na Universidade São Francisco. Atualmente é
professor associado II da Universidade Federal da Grande Dourados onde atua no
curso de Psicologia, na Residência Multiprofissional em Saúde e no Programa de
Pós-Graduação em Psicologia. Coordena o Grupo de Pesquisa Território, Discurso e
Identidade – TDI.

Kyara Mauriane Oliveira Gradini: Estudante de Psicologia na Universidade Fede-


ral da Grande Dourados (UFGD).

Rafaela Alexandre da Costa: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da


Grande Dourados (UFGD).

Tawana Mirelle Gonçalves de Oliveira: Estudante de Psicologia na Universidade


Federal da Grande Dourados (UFGD).

CAPÍTULO 15

Júlia Medeiros Pereira: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da Gran-


de Dourados (UFGD). Realiza pesquisa e extensão nas áreas de gestação e puerpério
e saúde indígena.

379
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Barbara Yumi Brandão Sakane: Estudante de Psicologia na Universidade Federal


da Grande Dourados (UFGD).

Gabriela Rieveres Borges Andrade: Professora Adjunta do Curso de Psicologia,


do Programa de Pós-graduação em Psicologia e da Residência Multiprofissional
em Saúde do Hospital Universitário da Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo, Mes-
tre e Doutora em Políticas Públicas pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio
Arouca (ENSP/Fiocruz).

CAPÍTULO 16

Barbara Yumi Brandão Sakane: Estudante de Psicologia na Universidade Federal


da Grande Dourados (UFGD).

Júlia Medeiros Pereira: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da Gran-


de Dourados (UFGD). Realiza pesquisa e extensão nas áreas de gestação e puerpério
e saúde indígena.

Gabriela Rieveres Borges Andrade: Professora Adjunta do Curso de Psicologia,


do Programa de Pós-graduação em Psicologia e da Residência Multiprofissional
em Saúde do Hospital Universitário da Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo, Mes-
tre e Doutora em Políticas Públicas pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio
Arouca (ENSP/Fiocruz).

Elenice Machado da Cunha: Possui graduação em Enfermagem e Obstetrícia pela


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, especialização em Saúde Coleti-
va, mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca - ENSP/Fiocruz. Atualmente, é professora-pesquisadora do Laborató-
rio de Educação Profissional em Vigilância em Saúde da Escola Politécnica de Saú-
de Joaquim Venâncio (EPSJV/FIOCRUZ) e coordena o grupo de pesquisa Métodos
avaliativos em Atenção Primária e Vigilância em Saúde (MAAPVS).

CAPÍTULO 17

Elizandra dos Santos Razera: Psicóloga formada pela Universidade Federal da


Grande Dourados (UFGD). Mestranda em Psicologia pela UFGD. Bolsista CAPES.

380
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Catia Paranhos Martins: Professora Adjunta do Curso de Psicologia, do Progra-


ma de Pós-graduação em Psicologia e da Residência Multiprofissional em Saúde do
Hospital Universitário da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

CAPITULO 18

Luan Fernando Schwinn Santos: Psicólogo formado pela Universidade Federal


da Grande Dourados (UFGD). Mestrando em Psicologia pela UFGD. Atualmente,
trabalha na Assistência Social em município de Nova Alvorada do Sul-MS.

Gabriela Rieveres Borges de Andrade: Professora Adjunta do Curso de Psicolo-


gia, do Programa de Pós-graduação em Psicologia e da Residência Multiprofissional
em Saúde do Hospital Universitário da Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo, Mes-
tre e Doutora em Políticas Públicas pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio
Arouca (ENSP/Fiocruz).

CAPÍTULO 19

Maria Luiza da Costa Júlio: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da


Grande Dourados (UFGD).

Gabriela Markus Chaves: Graduada em Psicologia pela Universidade Federal da


Grande Dourados (UFGD). Mestranda em Psicologia pela UFGD. Especialista em
Avaliação Psicológica e em Docência na Educação Superior em Saúde pelo Centro
Educacional Integrado (CEI).

Felipe Maciel dos Santos Souza: Formado em Psicologia pelo Centro Universitário
da Grande Dourados, Dourados - MS. Mestre e Doutor em Psicologia Experimental:
Análise do Comportamento na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rea-
lizou estágio pós-doutoral na Universidade Católica Dom Bosco. É membro do GT
História da Psicologia da ANPEPP.

CAPÍTULO 20

Esmael Alves de Oliveira: Doutor em Antropologia Social (UFSC), Docente do


Programa de Pós-Graduação em Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

381
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

Fernanda Kozlowski Pinto: Doutora em Agronomia/Produção Vegetal (UFGD).


Estudante de Psicologia na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

Daniela Sales: Psicóloga formada pela Universidade Federal da Grande Dourados


(UFGD).

Liergi Vieira: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da Grande Doura-


dos (UFGD).

Daniele Marques: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da Grande Dou-


rados (UFGD).

Tainá Luane da Rocha Mattoso: Psicóloga formada pela Universidade Federal da


Grande Dourados (UFGD).

CAPÍTULO 21

Juliety Aliny Souza: Psicóloga, especialista em Terapia Analítico Comportamen-


tal (UCDB), formada em Psicologia pelo Centro Universitário da Grande Dourados
(UNIGRAN).

Felipe Maciel dos Santos Souza: Formado em Psicologia pelo Centro Universitário
da Grande Dourados, Dourados - MS. Mestre e Doutor em Psicologia Experimental:
Análise do Comportamento na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rea-
lizou estágio pós-doutoral na Universidade Católica Dom Bosco. É membro do GT
História da Psicologia da ANPEPP.

CAPÍTULO 22

Tainá Dauzaker Cespedes:Estudante de Psicologia no Centro Universitário da


Grande Dourados (UNIGRAN).

Carlos Arturo Valiente Filho: Psicólogo formado pelo Centro Universitário da


Grande Dourados (UNIGRAN). Especialista em Ciências do Envelhecimento Hu-
mano da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (CEHU/UEMS). Aluno do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Grande Dou-
rados (PPGPsi/UFGD). Atua como docente nos Cursos de Psicologia e Comunicação
Social, Publicidade e Propaganda da UNIGRAN e Psicólogo Clínico.

382
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

CAPÍTULO 23

Thaynara Rodrigues Damasio: Estudante de Psicologia na Universidade Federal


da Grande Dourados (UFGD).

Dionatans Godoy Quinhones: Filósofo. Psicólogo. Professor do Curso de Gradua-


ção em Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Doutora-
do (em andamento) do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal do Paraná (UFPR).

CAPÍTULO 24

Ellen de Souza Valério Barbosa: Psicóloga formada pelo Centro Universitário da


Grande Dourados (UNIGRAN).

Henrique Cabral Furcin: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da Gran-


de Dourados (UFGD), integrante do Grupo de Estudos em Avaliação-intervenção
Psicológica e Processos Inclusivos: Interfaces com a Educação e a Saúde (GEAPPI/
CNPq), do Núcleo de Atenção à Pessoa com Autismo (NAPA/UFGD); e presidente
da E.J. Kaizen Consultoria Júnior.

Jonatan dos Santos Franco: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da


Grande Dourados (UFGD).

Nagila Thaina Christ Gheller: Estudante de Psicologia na Universidade Federal da


Grande Dourados (UFGD).

Felipe Maciel dos Santos Souza: Formado em Psicologia pelo Centro Universitário
da Grande Dourados, Dourados - MS. Mestre e Doutor em Psicologia Experimental:
Análise do Comportamento na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rea-
lizou estágio pós-doutoral na Universidade Católica Dom Bosco. É membro do GT
História da Psicologia da ANPEPP.

383
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

ORGANIZAÇÃO

Jenniffer Simpson dos Santos

Professora do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psico-


logia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

Felipe Maciel dos Santos Souza

Professor do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicolo-


gia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

Catia Paranhos Martins

Professora do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psico-


logia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

Gabriela Rieveres Borges de Andrade

Professora do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psico-


logia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

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PSICOLOGIAS
Psicologias em tempos pandêmicos: experiências profissionais, formação e pesquisa

EM TEMPOS
PANDÊMICOS:
EXPERIÊNCIAS PROFISSIONAIS,
FORMAÇÃO E PESQUISA

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